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Portuguese Pages [273] Year 2009
D IREITO À E DUCAÇÃO Aspectos Constitucionais
coordenação
Nina Beatriz Stocco Ranieri organização
Sabine Righetti
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitora Vice-reitor
Suely Vilela Franco Maria Lajolo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Diretor-presidente
Plinio Martins Filho COMISSÃO EDITORIAL
Presidente Vice-presidente
Diretora Editorial Editoras-assistentes
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José Mindlin Carlos Alberto Barbosa Dantas Adolpho José Melfi Benjamin Abdala Júnior Maria Arminda do Nascimento Arruda Nélio Marco Vincenzo Bizzo Ricardo Toledo Silva Silvana Biral Marilena Vizentin Carla Fernanda Fontana
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Copyright © 2009 by autores
Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP Ranieri, Nina. Direito à Educação / coordenação Nina Beatriz Stocco Ranieri; organização Sabine Righetti. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 288 p.; 16 x 23 cm Inclui bibliografia. Apêndice: Os autores. ISBN 978-85-314-1147-2 1. Direito à educação (Brasil). 2. Educação. I. Righetti, Sabine. II. Título.
CDD- 379.81
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SUMÁRIO
9 Apresentação Nina Beatriz Stocco Ranieri I. OS ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO À EDUCAÇÃO 19 A Educação. Direito Fundamental Monica Herman S. Caggiano 39 Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988: Comentários Acerca da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Nina Beatriz Stocco Ranieri 61 O Poder Judiciário e o Direito à Educação Eduardo Pannunzio 89 O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: Do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à Prestação Estatal Positiva Salomão Barros Ximenes II. OS SISTEMAS DE ENSINO E O MINISTÉRIO PÚBLICO
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SUMÁRIO
113 As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais: Autonomia e Controle Eduardo Martines Júnior 123 Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito à Educação Básica Adriana A. Dragone Silveira III. O DIREITO À QUALIDADE NA EDUCAÇÃO 145 Direito à Educação de Qualidade na Perspectiva Neoconstitucionalista Erik Saddi Arnesen 167 Padrão de Qualidade do Ensino Marcelo Gasque Furtado IV. REFLEXÕES SOBRE O ENSINO PRIVADO 185 A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições Privadas de Ensino: Controvérsias sobre o Tema Luiz Gustavo Bambini de Assis 203 A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo Privado Fernanda Montenegro de Menezes 219 A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Privada e seus Limites Legais Luiz Tropardi Filho V. EDUCAÇÃO E INCLUSÃO 241 A Educação Indígena e o Papel do Estado Sabine Righetti 257 Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior: Uma Reflexão sobre o Debate Recente Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti 285 Sobre os Autores
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Apresentação Nina Beatriz Stocco Ranieri
Em 2006 foi criada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo a primeira Cátedra Unesco de Direito à Educação do país, com o objetivo de promover estudos e pesquisas na área do direito à educação no sistema jurídico brasileiro e no direito internacional. O direito à educação está definido como parte indissociável da missão da Unesco, a instituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Expressa a crença, defendida por seus idealizadores, da necessidade de se criarem oportunidades iguais e verdadeiras de educação para todos. A Cátedra tem, além disso, o desejo de tornar realidade o ideal de igualdade de oportunidades educacionais, tal como apontado pelo Fórum Mundial da Educação, realizado em Dakar em 2000. Como se sabe, o direito à educação ocupa papel central no âmbito dos direitos humanos. É indispensável ao desenvolvimento e ao exercício dos demais direitos. Por dar acesso a outros direitos, ele se mostra, portanto, um instrumento fundamental, por meio do qual adultos e crianças marginalizados, econômica e socialmente, podem emancipar-se da pobreza e obter os recursos necessários à sua plena participação no meio social. A Unesco criou seu Programa de Cátedras em 1991, com o objetivo de fortalecer o ensino superior nos países em desenvolvimento, uti9
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APRESENTAÇÃO
lizando mecanismos apropriados para intensificar a cooperação entre universidades. Foram assinados acordos para criação de cátedras em mais de vinte países, cobrindo os mais diversos campos acadêmicos – das ciências naturais a questões ambientais e ecológicas, os tópicos de população, ciência e tecnologia, ciências sociais e humanas, ciências da educação, cultura e comunicação, como também a paz, a democracia e os direitos humanos. Na qualidade de professora do Departamento de Direito de Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pude tomar as primeiras providências, com o apoio do diretor da Faculdade de Direito, professor João Grandino Rodas, para a criação desta Cátedra, da qual me tornei coordenadora. Os entendimentos tiveram início no final de 2006 quando, por iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, foi realizado um seminário internacional com foco nos desafios e perspectivas do ensino superior público no Estado, do qual participou o doutor Kishore Singh – responsável na Unesco pela área de Educação Básica e Direito à Educação. Naquela ocasião, a Faculdade de Direito da USP foi integrada ao programa Unitwin/Unesco (University Education Twinning and Networking Scheme). O programa da Unesco tem por objetivo promover capacitação pela troca e compartilhamento de conhecimentos dentro de um espírito de solidariedade. Dessa forma, o programa entende a cooperação nortesul e sul-sul como estratégia de aprimoramento das instituições participantes. São elas, na maioria, universidades e institutos de pesquisa que atuam em parceria com diversas e importantes organizações nãogovernamentais, fundações e instituições do setor público e privado. O Unitwin cria condições, portanto, para que aqueles que se dedicam ao ensino superior possam somar esforços com a Unesco para elaboração dos objetivos de uma agenda global. Ao iniciar seus trabalhos, a Cátedra ofereceu, durante 2008, a disciplina Aspectos Constitucionais do Direito à Educação – I, no âmbito do mestrado em Direitos Humanos da Fdusp, com quinze alunos regularmente matriculados e cinco alunos ouvintes. O livro que ora vem a lume – Direito à Educação I – em primorosa edição da Edusp, é o resultado das atividades de pesquisa desses alunos. 10
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A temática é ampla. Abrange a problemática dos direitos fundamentais e do direito à educação, em particular, assim como os reflexos da organização federativa do país nos sistemas de ensino e a distribuição de competências entre a União, os Estados e os Municípios, na Constituição Federal de 1988. Enfrenta ainda questões atuais concernentes à educação indígena, ao ensino religioso e às ações afirmativas; e percorre a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal e a atuação do Ministério Público, em busca de indicadores que permitam avaliar a efetivação e a efetividade do direito à educação. Todos os artigos levantam aspectos teóricos e práticos do Direito à Educação, buscando disseminar o seu conteúdo. O livro é composto por cinco partes. A primeira delas é introdutória, concentrando mais análises teóricas que práticas, os demais cuidam de temas específicos. A Parte I trata dos Aspectos Constitucionais do Direito à Educação em quatro capítulos, que intentam expandir possibilidades de promoção e proteção do direito, a saber: “A Educação. Direito Fundamental”; “Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988: Comentários acerca da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”; “O Poder Judiciário e o Direito à Educação”; “O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: Do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à Prestação Estatal Positiva”. Monica Herman S. Caggiano, em “A Educação. Direito Fundamental”, faz notar que a trajetória histórica da doutrina dos Direitos Humanos indica a clara preocupação do homem – ou dos mais conscientes dos homens – com a sua instrução. É o que consta na Declaração Francesa de 1789, na qual esta presente a ideia da impositiva necessidade de se assegurar acesso à educação e aos meios direcionados à emancipação intelectual e política do ser humano, integrante da comunidade social. Esse capítulo, ao pontuar a afirmação histórica do direito à educação, introduz a temática de sua promoção e proteção pelo Judiciário, tratado em dois capítulos, de diferentes perspectivas. No primeiro deles, “Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988: Comentários Acerca da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, de minha autoria, são apontados os avanços alcançados até o momento na garan11
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tia do direito à educação, a partir da jurisprudência do STF posterior à Constituição Federal de 1988. É expressivo o aumento de casos individuais e coletivos levados à apreciação do Tribunal, não só quando comparado às Constituições brasileiras anteriores como também em relação às demandas judiciais de garantia dos demais direitos sociais. Ao que tudo indica, a sociedade brasileira, o Ministério Público e o Judiciário, vem percebendo a importância do direito à educação na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Nesse sentido, destaco que as duas dimensões do direito à educação – direito individual e coletivo, e habilitação de caráter instrumental – permitem a difusão da democracia, dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente, valores cruciais no mundo contemporâneo. Em “O Poder Judiciário e o Direito à Educação” analisa as formas de garantia do direito à educação no sistema jurídico nacional e no internacional. Nesse sentido, avalia a possibilidade de o direito à educação ser invocado perante órgãos com funções judiciais ou “quase-judiciais”, fazendo uma revisão da jurisprudência do STF nos vinte anos de vigência da Constituição Federal e dos principais órgãos do Sistema Global e Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Por Eduardo Pannunzio. Esta Parte é encerrada com a temática do ensino religioso e da liberdade de culto. Em “O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: Do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à Prestação Estatal Positiva” o autor Salomão Barros Ximenes acompanha a trajetória do ensino religioso na legislação brasileira. Um ponto fundamental desta pesquisa reside no embate do ensino laico e do ensino religioso em torno da natureza da obrigação estatal neste campo. Na Parte II são analisadas as obrigações dos sistemas de ensino e a atuação do Ministério Público na Educação, com dois seguintes capítulos: “As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais: Autonomia e Controle”; “Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito à Educação Básica”. “As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais: Autonomia e Controle”, de autoria de Eduardo Martines Júnior, focaliza as dificuldades da análise jurídica dos amplos temas educacionais. Destaca que a educação chegou aos domínios do Direito, exigindo dos juristas 12
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e profissionais militantes uma atuação interdisciplinar, influenciando e sofrendo interferências diversas. A educação como direito tem sido discutida entre os juristas como prioridade absoluta, de modo a combater a pobreza, o subdesenvolvimento econômico e social, e mesmo a criminalidade. Conclui que qualquer tentativa de solução para os graves problemas que enfrentamos passa pela priorização da educação. Já em “Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito à Educação Básica”, Adriana A. Dragone Silveira analisa, em detalhes, a atuação do Ministério Público ante a proteção do direito à educação básica. Destaca a importância da prática do diálogo e dos benefícios do trabalho conjunto do MP com a sociedade civil organizada. O artigo aponta, no entanto, alguns limites dessa instituição, como a dificuldade da exigibilidade de demandas relacionadas com a qualidade da educação. As preocupações com a qualidade de ensino constituem a temática da Parte III – O Direito à Qualidade na Educação. “Direito à Educação de Qualidade na Perspectiva Neoconstitucionalista”, de Erik Saddi Arnesen, propõe uma interpretação da exigência da qualidade na educação à luz da teoria neoconstitucionalista. Considera que da perspectiva do Estado Constitucional de Direito ampliamse as possibilidades de dar-se conteúdo jurídico, portanto exigível, à expressão “direito à educação de qualidade”, de tal sorte que deixe de ser um ideal ou meta subjetiva ou intangível. Enumera, ainda, algumas das perplexidades que a expressão, no cotidiano, vem apresentado. Em “Padrão de Qualidade do Ensino”, Marcelo Gasque Furtado defende que, embora seja unânime a ideia de que a educação deva, em todos os níveis escolares, revestir-se de qualidade, há concepções diversas e até conflitantes sobre a definição dessa qualidade. Aponta algumas balizas que permitem pensar na concretude jurídica desse conceito, a partir das diretrizes estabelecidas na Constituição Federal, em especial no artigo 206, VII, que estabelece a garantia de padrão de qualidade como um dos princípios orientadores do ensino em nosso país. O ensino privado, examinado na Parte IV, é o tema em torno do qual giram as preocupações de três autores. Denominado Reflexões sobre o Ensino Privado, reúne os seguintes capítulos: “A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições Privadas de Ensino: Controvérsias 13
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APRESENTAÇÃO
sobre o Tema”; “A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo Privado”; “A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Privada e seus Limites Legais”. “A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições Privadas de Ensino: Controvérsias sobre o Tema”, focaliza a natureza jurídica do serviço de educação prestado por instituições privadas de ensino e a controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca desse tema. Destaca as discussões sobre o assunto, ocorridas no Supremo Tribunal Federal, o conceito de serviço público na doutrina nacional e estrangeira e explora a noção de direito público subjetivo. Por Luiz Gustavo Bambini de Assis. O capítulo “A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo Privado”, de Fernanda Montenegro de Menezes, busca destacar as formas mais utilizadas pelo governo para efetivação do direito à educação, mais especificamente, para efetivação do direito à educação superior através de programas implementados em instituições privadas. Também analisa o processo histórico de surgimento e de expansão do ensino superior privado no Brasil. Luiz Tropardi Filho também cuida da expansão do ensino privado. Seu foco são os limites legais da atividade educacional. Confrontando a expansão acentuada do número de estabelecimentos educacionais privados e a crescente intervenção estatal nessa atividade, levanta a hipótese de haver um conflito entre o interesse público envolvido na prestação dos serviços educacionais e o interesse privado daquele que explora a atividade. Diante desta constatação, o autor em “A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Privada e seus Limites Legais”, pergunta-se como compatibilizar tais interesses e se é possível estabelecer um convívio pacífico entre a atuação privada e a atuação estatal. A Parte V finaliza a obra voltando-se à Educação e Inclusão, com artigos relevantes a propósito da educação indígena e da problemática das ações afirmativas. “A Educação Indígena e o Papel do Estado”, de Sabine Riguetti, reflete sobre as recentes discussões no campo da educação indígena no Brasil, atentando para os aspectos jurídicos e institucionais que envolvem o tema, na criação da Funai (Fundação Nacional do Índio), em 14
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1967, no Estatuto do Índio, em 1973, e na inserção da questão da educação indígena na Constituição Brasileira de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996. Em “Ações Afirmativas e Cotas no Brasil: Uma Reflexão sobre o Debate Recente” três autoras – Camila Magalhães, Fernanda Montenegro de Menezes e Sabine Righetti – analisam as ações afirmativas e as políticas de cotas para negors e indígenas com um recorte específico das cotas no ensino superior púbico para egressos de escolas públicas. O texto reproduz o estágio internacional e nacional das discussões sobre cotas no ensino superior, aborda os aspectos jurídicos do tema e analisa as experiências com políticas de inclusão. Pela diversidade e amplitude dos problemas focalizados pelos capítulos que o compõem, Direito à Educação I é, portanto, leitura indicada para os que se dedicam ao estudo do Direito à Educação e dos Direitos Humanos em geral, tanto no nível de graduação ou pós-graduação, quanto para pedagogos e juristas atraídos pela importância do Direito à Educação. Num país onde não há tradição de defesa individual e coletiva desse direito, a reflexão sobre o tema e a disseminação de doutrina e jurisprudência neste campo são extremamente bem vindas e oportunas. Fevereiro de 2009
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I Os Aspectos Constitucionais do Direito à Educação
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A Educação. Direito Fundamental Monica Herman S. Caggiano
Introdução Transcorridos mais de duzentos anos do impacto das primeiras Declarações de Direitos1 e apesar dos inúmeros documentos internacio-
1. Cuida-se aqui das declarações americanas, de nítida inspiração religiosa, impregnadas pela filosofia jusnaturalista e pela tradição liberal inglesa: a. a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, estabelecida pela assembléia constituinte do Estado de Virgínia e promulgada com o texto da Constituição, em 12 de junho de 1776; b. a Declaração de Independência dos Estados Unidos, documento que tem origem em proposta do General Lee, em nome de Virgínia, aprovada pelo 2o Congresso Continental, recebendo na sua redação final o título de Declaration of Independence veio a ser aprovada na sessão de 4 de julho de 1776; c. a A Constituição dos Estados Unidos, de 1787, documento produzido pela Convenção Constitucional de Philadelphia, que abriu seus trabalhos em 25 de maio de 1787, apresentando um quorum de sete estados, com o fim de debater e deliberar a revisão dos “Articles of Confederation”. Em 17 de setembro do mesmo ano, os delegados de doze Estados aprovaram a nova Constituição, sendo que, dos 42 presentes, 39 a subscreveram. O novo documento constitucional conquistou eficácia em 21 de junho de 1788, quando o nono Estado norteamericano (New Hampshire), o ratificou; d. as dez Emendas da Ratificação da Constituição dos Estados Unidos (Bill of Rights de 1790), conformam um texto que decorre de um trabalho preparado por James Madison e apresentado ao Congresso (Câmara dos Representantes), já sob o título de Bill of Rights, sendo aprovadas, nessa fase, doze emendas que, a seguir foram encaminhadas aos Estados para fins de ratificação. Em 15 de dezembro de 1791, o Estado de Virgínia ratifica o texto, mas apenas dez das emendas passam a integrar o texto da Consti19
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nais2 que vêm denotar a especial e intensa atenção que o mundo moderno dispensa à proteção dos direitos fundamentais, direitos do homem e do cidadão, paradoxalmente, pouco se avançou em termos fáticos. A imprensa e a mídia se encarregam de denunciar profundos pontos de vulnerabilidade: discriminação racial, discriminação da mulher, discriminação religiosa e a educação contemplando poucos – uma elite. O reduzido avanço que se alcançou, em parte, pode ser atribuído à própria evolução do mundo, de modo muito acelerado e diante de um processo de globalização que conduz a novos comportamentos e a novas demandas. Nesta perspectiva, oportuno o registro de que até nas sociedades mais evoluídas, como o desenvolvido mundo europeu, o tema educação passa, novamente, a trazer inquietudes diante do fenômeno imigratório que impacta os países com o advento de um contingente de alunos de culturas diferentes, línguas diferentes, preparo diferente e que reclama das autoridades novas medidas para atender e qualificar esta diferenciada clientela. É o caso da Alemanha e da Itália que buscam no-
tuição norte-americana, passando a primeira emenda a ser rotulada de expressão da garantia dos fundamental rights, vindo ali registrada a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de opinião, a liberdade religiosa (free exercise clause) e a establishment clause, reconduzindo a lei às suas finalidades seculares. E mais, ainda, na França, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Conquanto, historicamente não se afigure pioneira ao utilizar essa fórmula de documento escrito e solene para proclamar, arrolados num elenco ordenado, os direitos do homem, parece certo afirmar que o texto é o que mais reflexos produziu no mundo, operando nítida e potente influência sobre a elaboração de toda uma doutrina edificada girando em torno do tema “direitos humanos”, e, por isso, a que mais se notabilizou pela iniciativa. 2. Tratado de Versalhes, 28.6.1919 (OIT); Constituição soviética de 1936; Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948; Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Bogotá, 1948; Estatuto do Conselho da Europa, de 1949; Convenção contra a discriminação no campo da educação (Unesco, 14.12.1960); Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1965; Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, 1966; Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; Convenção Americana Relativa aos Direitos do Homem (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969; Ato Final de Helsinki, de 1975; Recomendação sobre a Educação para a Compreensão, a Cooperação e a Paz internacionais e a Educação relativa aos Direitos Humanos e às Liberdades Fundamentais, da ONU, de 1974; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação das Mulheres, de 1979; Convenção sobre o Direito da Criança, de 1989; Declaração Universal da Unesco sobre o genoma humano, de 1997. 20
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vas fórmulas para enfrentar a emergente fenomenologia e incrementar a qualidade do ensino3. Daí o renovado interesse no debate sobre este especialíssimo tópico. O seu adequado enquadramento no contexto atual, num mundo atingido pelo processo de globalização que importa, inclusive, um recrudescimento de atitudes e a imposição de um novo tratamento desse velho e sempre presente problema. Na aldeia global a que se referem Brecher e Costello (1998), que descortina grupos e forças sociais em contínua competição, a atual tarefa dos homens consubstancia-se em edificar um sistema de tutela mais adequado e pré-ordenado à concreta defesa dos Direitos Humanos, inclusive do direito à educação e, primordialmente, a promoção da educação para direitos humanos fundamentais. Oportuna e meritória a iniciativa quanto à abordagem dessa matéria, inserindo-a no contexto de uma obra dedicada ao estudo da promoção da educação pelo Direito, porquanto para alcançar o status civitatis, definido pela ordem jurídica, é mister – e mais que isto – é condição insuperável o incremento da educação, conferindo-lhe tratamento adequado no sistema jurídico e nas políticas públicas praticadas.
Educação: Fundamentalidade do Direito A trajetória histórica da doutrina dos Direitos Humanos é indicador preciso da clara preocupação do homem – ou dos mais conscientes dos homens – com a sua instrução. Já desde a edição da declaração francesa de 1789, avulta a ideia da impositiva necessidade de se assegurar acesso à educação e aos meios direcionados a emancipação intelectual e política do ser humano, integrante da comunidade social. No seu preâmbulo, emerge evidente a hostilidade em relação à ignorância, registrando este documento, já nas suas primeiras linhas: “[...] que a ignorância, o esquecimento e o desprezo pelos direitos humanos são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos [...]”4. 3. Neste sentido as reportagens trazidas pela revista The Economist, 18 out. 2008, pp. 61-62. 4. Em Textos Básicos sobre Derechos Humanos, Madrid, Universidad Complutense, 1973, p. 87. 21
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A declaração jacobina, também francesa, de 1793, avança, no tema para, expressamente, envolver o tópico educação sob o seu braço protetor, dedicando-lhe o dispositivo do seu artigo 22, que principia por identificá-la como “[...] uma necessidade para todos”5. E, ainda, em terreno francês, a Constituição de 1848 cuida da matéria em dois diferentes artigos. O primeiro (art. 9) declara a liberdade do ensino e o segundo (art. 13) a gratuidade do ensino primário e do profissionalizante como fatores a assegurar o direito do trabalho6. No contexto atual não nos parece subsistir dúvidas quanto à inclusão do direito à educação no elenco dos direitos humanos fundamentais, amparado portanto por um quadro jurídico-constitucional que vem a lhe assegurar, também, um sistema de garantias. É direito fundamental porque, de uma banda, consubstancia-se em prerrogativa própria à qualidade humana, em razão da exigência de dignidade, e, de outra, porque é reconhecido e consagrado por instrumentos internacionais e pelas Constituições que o garantem. O direito à educação, destarte, inserido no nicho dos direitos fundamentais, apresenta-se revestido das qualidades que a estes são próprias. Estes caracteres, aliás, consagram a postura dos direitos fundamentais como elementos da essência de uma Constituição7, revelando, como anota Robert Alexy: a. a natureza de direitos morais, porquanto contam com a “universalidade” na sua estrutura, assumindo a postura de direitos de todos contra todos;
5. Ver nota 36. 6. Art. 9o O ensino é livre. A liberdade de ensino é exercida em condições de capacidade e de moralidade determinadas pelas leis e diante da vigilância do Estado. Esta vigilância estende-se a todos os estabelecimentos de educação e ensino sem qualquer exceção. Art. 13 A sociedade favorece e fomenta o desenvolvimento do trabalho por força do ensino primário gratuito, a educação profissionalizante – Textos Básicos sobre Derechos Humanos, op. cit., p. 103. 7. Já proclamava a declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26.8.1789 preconizava no seu art. 16: “Toda a sociedade em que a garantia dos direitos não estiver assegurada [...] não tem Constituição”. 22
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b. a qualidade de direitos preferenciais, porquanto fundamentam, exatamente, o direito dos homens à sua tutela pelo direito positivo; c. a “fundamentalidade do interesse ou carência protegida” que exige e implica na “necessidade de respeito, sua proteção ou o seu fomento pelo direito”8. E mais até, no mundo atual, o direito à educação comparece nas suas duas facetas (de primeira e segunda dimensão ou geração), enquadrado como uma realidade social e individual. Com efeito, insuflado e robustecido pelos caracteres de índole coletiva, extraídos das duas últimas gerações de direitos9, vislumbra-se o direito à educação com conteúdo multifacetado, envolvendo não apenas o direito à instrução como um processo de desenvolvimento individual, mas, também o direito a uma política educacional, ou seja, a um conjunto de intervenções juridicamente organizadas e executadas em termos de um processo de formação da sociedade, visando oferecer aos integrantes da comunidade social instrumentos a alcançar os seus fins. Nesse sentido, a orientação contida na Declaração de 10 de dezembro de 1948, que concebe o direito à instrução na sua conotação clássica, individualística, acoplando-lhe, também, uma finalidade social: Art. XXVI. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerân-
8. “Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático”, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 16, 199, p. 203. 9. A segunda geração de direitos – direitos sociais e econômicos – eclode sem que se abandone a imposição de salvaguarda das prerrogativas inerentes ao ser humano (primeira geração) proclamadas nas declarações americanas e no documento francês de 1789. Esta nova dimensão insere direitos que reclamam em favor do indivíduo, integrante da sociedade estatal, determinadas prestações positivas por parte do Estado. São direitos sociais e econômicos, que, se de uma parte, já insinuam presença na declaração jacobina de 1793 e na declaração que integra a Constituição francesa de 1848, em realidade, passam a ser apresentados de forma inequívoca por força da Constituição mexicana de 1917 e ganham ressonância com a sua inserção na Constituição alemã de Weimar, de 1919, que dedica todo um capítulo à vida social e outro à vida econômica, oferecendo um novo modelo constitucional. 23
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cia e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz10.
Merece, aliás, reparo, o disposto no inciso 3, do mesmo artigo XXVI, do referido documento, que atribui à educação um sentido social, todo especial, ao outorgar aos pais, também, responsabilidade pela instrução da prole. A família, pois, ao lado da instituição social que é representada pela escola, emerge como fator coadjuvante no processo educacional preconizado como meio operativo de garantia do direito à educação. E, em 1960, como primeiro instrumento internacional, com o perfil de convenção, a Unesco aprovou em 14 de dezembro, a convenção concernente à luta contra a discriminação no panorama da educação, partindo do prevalência da ideia insculpida nos atos constitutivos e na já anotada Declaração de 10 de dezembro de 1948 de que, dentre suas tarefas, emerge a primazia da promoção do direito a educação para todos. A seu turno, relevante marco nessa trilha evolutiva, a Recomendação sobre a Educação para a Compreensão, a Cooperação e a Paz internacionais e a Educação relativa aos Direitos Humanos e às Liberdades Fundamentais, documento resultante da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas, dedicada ao tema Educação (de 1974), define a questão: 1. Para os efeitos da presente Recomendação: a. a palavra “educação” designa o processo global da sociedade, por via do qual as pessoas e os grupos sociais apreendem a desenvolver conscientemente, no interior da comunidade nacional e internacional e em benefício destas, a totalidade de suas capacidades, atitudes, aptidões e conhecimentos [...] (Barba, 1997, p. 139, tradução nossa).
Em verdade, a ideia da impositiva presença e efetivação do direito à instrução nas sociedades politicamente organizadas vem vinculada, cada vez mais, à própria evolução da sociedade, preordenada a viabilizar um clima de respeito à dignidade humana. Multiplicam-se, pois, os documentos que buscam servir de instrumento a sua garantia. Nesse
10. Direitos Humanos. Instrumentos Internacionais. Documentos Diversos, Brasília, Ed. Senado Federal, 1996, p. 134. 24
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diapasão, dentre outros, poderíamos enunciar: o Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 8 de março de 1989, pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, e a Declaração Mundial sobre Educação Para Todos, adotada na Conferência Mundial de 9 de março de 1990, na Tailândia, que reclama por uma renovação do compromisso com a educação. Inobstante o extenso elenco de atos cercando a adoção e a aplicação dos princípios vetores da educação, no seu status de direito fundamental, constata-se, ainda, uma acentuada fragilidade na adequada implementação desse direito, reconhecida, aliás, pelo ordenamento nacional e internacional. Assim é que, em 1990, a própria Declaração Mundial sobre Educação Para Todos anotava “as seguintes realidades”: 1. Mais de 100 milhões de crianças, das quais 60 pelo menos são meninas, não tem acesso ao ensino primário. 2. Mais de 960 milhões de adultos são analfabetos [...]. 3. Mais de 1/3 dos adultos do mundo não tem acesso ao saber [...]. 4. Mais de 100 milhões de crianças e inumeráveis adultos não conseguem completar o ciclo de educação básica [...] (Barba, 1997p. 222, tradução nossa).
Mais recentemente, membros da Anistia Internacional, uma das mais beligerantes ONGs em prol da concreta eficácia dos direitos proclamados na Declaração de 1948, reunidos em Dakar, capital de Senegal, promoveram relevante debate acerca da atual necessidade de se intensificar a luta em prol dos direitos sociais, econômicos e culturais. De sucesso na sua investida contra a prisão arbitrária e a tortura, ou seja na defesa de direitos de natureza civil e política, a proposta dessa organização visa, a seu turno, assegurar maior publicidade e, portanto, visibilidade ao tratamento oferecido pelos governos aos direitos de terceira geração, que, de certa forma, vem sendo negligenciados e, sem uma adequada vigilância, acabam se apresentando de reduzida eficácia prática11.
11. Sobre a Conferência de Dakar, ver The Economist, 18 agos. 2001, p. 18. 25
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Crianças em regime de escravidão, como denunciado na Nigéria12, assassinato de crianças em Kabul, identificando-se a ação de uma rede de tráfico de órgãos humanos13, são fatos reveladores de que, além da exigência, ainda presente, quanto a instrumentos adequados para a validez dos direitos da primeira geração, impositivas se apresentam providências direcionadas a fortalecer o plano educacional, diminuindo o prejuízo oriundo da ausência de políticas públicas voltadas a fazer prevalecer este direito. Mais até o direito à educação para direitos humanos. E, mediante instrução, inibir o resultado da ignorância, “causa dos males públicos e da corrupção”, como já proclamavam os revolucionários franceses do século XVIII. A realidade doméstica brasileira, a seu turno, não descortina um quadro muito animador em relação ao grau de instrução. Conquanto tenha avançado no combate ao analfabetismo, nas últimas eleições municipais, o levantamento promovido pela Justiça Eleitoral14 identifica, num total 130.469.549 eleitores, 8.097.513 analfabetos, 20.367.757 que sabem ler e escrever, 44.456.754 que possuem o primeiro grau incompleto e só 10.129.580 concluíram o primeiro grau. Estes registros são corroborados por pesquisa produzida pelo jornal Folha de S. Paulo, que aponta o triste fato de um em cada cinco jovens não terem completado o ensino fundamental15. Apenas 3,49% dos eleitores têm diploma de ensino superior, sendo que os Estados de Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina detém o maior número de eleitores com ensino superior. Os Estados do Norte e Nordeste, Maranhão e Piauí destacam-se como os de menor percentual de eleitores formados em universidades. Demais disso os problemas de evasão e de reprovação importam em significativa exclusão educacional, colocando a educação brasileira, no quesito matemática, na 53a posição no ranking Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) e da Organização
12. O Estado de S. Paulo, 21 jul. 2001, p. A 17. 13. El País, 9 dez. 2001, p. Internacional 5. 14. Fonte: TSE, divulgando o perfil do eleitorado de 2008, em 15 jul. 2008. 15. Folha OnLine, 21 jan. 2008. 26
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para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), no quesito ciências na 52a e quesito leitura na 48ª16.
A Educação sob o Impacto das Recomendações Extraídas dos Documentos Internacionais Partindo de clássicas assertivas, que erigem e reconhecem o patamar da educação como fator essencial no desenvolvimento do indivíduo e da coletividade social, registrando, destarte, impositivas as providências, no espectro nacional e internacional, em prol do robustecimento da qualidade e da garantia de acesso a todos à educação, clamam esses documentos por medidas concretas a incidir tanto na estrutura como, ainda, no processo de aprendizagem. E isto, no sentido de viabilizar a universalização e fomentar a equidade no campo da instrução, buscando, em pleno processo de mundialização, orientar as novas gerações para o progresso socioeconômico, cultural, para a tolerância e para as inevitáveis exigências de cooperação internacional. Dentre as recomendações que, de forma especial, vem enfatizadas na já aludida Declaração Mundial sobre Educação Para Todos, reclama peculiar atenção a necessidade de promover condições propícias e fortalecer os campos da cooperação e da associação. Em verdade, como Rawls observa na sua Teoria da Justiça, a sociedade deve ser compreendida como “um empreendimento cooperativo para a vantagem mútua (e) esse empreendimento é tipicamente marcado por um conflito e também por uma identidade de interesses”. Avulta da teoria defendida pelo ilustre filósofo de Harvard, a relevância do envolvimento coletivo da sociedade, por intermédio de todos os setores que a compõem, para o cumprimento das metas e objetivos que busca alcançar (Rawls, 1997, p. 580, grifo nosso). Daí, natural e lógica a recomendação que emana da referida Declaração Mundial sobre Educação Para Todos. Esta, ao reclamar a interveniência da sociedade, no que toca a suportes para a educação, eviden-
16. Idem, ibidem. 27
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cia, exatamente, o espírito participativo, hoje dominante, e que implica, mais, no reconhecimento de que não há como atribuir, isoladamente, ao Estado a responsabilidade prioritária de proporcionar educação. Insiste, pois, o documento, na evidência da necessidade de “cooperação e de associação entre todos os subsetores” (Rawls, 1997, p. 229, grifo nosso). Invoca a atuação conjunta dos órgãos governamentais e das Organizações não Governamentais (ONGs), do setor privado, das comunidades locais, dos grupos religiosos e da família. A seu turno, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, resultante do tratado de Nice, de 7 de dezembro de 200017, cuida deste tema por intermédio dos seus artigos 14 (Direito à Educação), 21 (A Não-Discriminação) e 24 (Direitos da Criança), onde registra-se a prevalência do interesse da criança e o dever das autoridades e da sociedade na observância desta imposição de privilegiamento. O campo da educação, portanto, sob forte influência do impacto participativo, passa a demandar ações concretas de índole coletiva direcionadas à garantia de melhores condições para o aprendizado. E, para tanto, são convocadas todas as forças sociais. Sob essa nova roupagem, especial atenção é atribuída ao papel desempenhado pelos educadores e pela família. A instrução e o preparo desses representa fator de realce, que não pode ser ignorado, conduzindo a sociedade a um repensar coletivo quanto à garantia de meios adequados a oferecer um nível de ensino compatível com as exigências do século XXI e, notadamente, com as recomendações da ONU que já anteviam os desafios desses novos tempos. Na realidade, o ensino e a pesquisa, no novo modelo, abandonam a exclusiva esfera estatal, passando a referenciar “uma visão ampliada e um compromisso renovado”, envolvendo esse compromisso toda a sociedade e, de modo particular, a família que, a seu turno, deve assumir 17. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi elaborada na expectativa de que integrasse o Tratado de Constituição para a Europa, o qual, no entanto não foi subscrito, sendo objeto de negativa, por intermédio de referendo, na Holanda e na França em 2005. Portanto, referida Carta de Direitos Fundamentais, na Europa, ainda está sendo objeto de estudos, aperfeiçoamento e continua sem implementação. Ver Code de Droit International dês Droits de l’Homme, Bruxelas, Bruylant, 2005. Ver ainda, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Riquito et al., 2001). 28
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sua parcela de responsabilidade na educação dos que irão construir a história do século XXI. Somente nos termos de uma educação insuflada a partir de toda uma coletividade, norteada pelo princípio participativo e desenvolvida em bases comunitárias, é que, os objetivos delineados para a preservação dos direitos humanos e, consequentemente, da própria dignidade, se tornarão viáveis.
A Realidade Brasileira A Constituição atual, conhecida como a “Constituição cidadã”, rótulo que lhe foi acoplado ao final dos trabalhos constituintes, por ocasião de pronunciamento do presidente da constituinte18, inovou ao contemplar, no seu título II, o já célebre catálogo dos direitos, um extenso rol de direitos e garantias. No entanto alterou a tradicional posição do tema e, deste molde, buscou o constituinte, no dizer de Raul Machado Horta, “conferir-lhe precedência” (Horta, 1995, p. 240), sem que esse posicionamento, contudo, viesse a estabelecer uma hierarquia entre as normas constitucionais. Pretendeu, presume-se, assegurar “impregnação valorativa” a esses dispositivos, “sempre que forem confrontados com atos do legislador, do administrador e do julgador” (Horta, 1995, p. 240). Acompanhando, porém, a tradição pátria, o texto atual cuidou do tema adotando um tom moderno e ampliou o elenco já preconizado pelos antigos documentos para agasalhar os direitos da segunda e da terceira geração, enfocando direitos coletivos e sociais e oferecendo nuanças de extrema contemporaneidade ao sistema de tutela engendrado. Em verdade a elaboração do documento constitucional de 1988 resultou de influências de grupos e facções políticas representativas dos mais diferentes e diversificados setores da sociedade e o quadro decorrente dessa espiral de ações de interveniência configura a radiografia exata do espírito ávido por garantias à liberdade reinante naquele mo-
18. Em data de 27 de julho de 1987, ao defender o projeto de constituição em tramitação de duros ataques quanto a sua possível eficácia, o presidente da constituinte, deputado Ulysses Guimarães proclamava, em pronunciamento pela TV, em cadeia nacional, que se cuidava de uma “Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros”. 29
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mento histórico. Daí, embora, própria a vocação do nosso Direito Constitucional em acolher e oferecer o superior status da Lei Maior ao tópico “direitos e garantias fundamentais”, o modelo atual oferece peculiaridades, a começar pelas figuras introduzidas e pela singular topografia, vez que, como acima apontado, estreia o posicionamento dessa matéria logo no começo do texto, no seu título II. O tratamento do tópico educação é identificado, ao longo de toda a textura constitucional. De forma sucinta e sistematizada, o analista vai se deparar com a seguinte lista de preceitos abordando a questão educacional: Art. 5o, IV; e XIV; Art. 6o, caput, (D. Sociais) – Cap. II do Tit. II; Art. 7o, XXV – assistência a dependentes e filhos de 0 a 5 anos; Art. 23, V – competência comum – promoção da educação; Art. 24, IX e XV – competência concorrente. Normas gerais e específicas; Art. 30, VI (competência comum envolvendo obrigação do município), Art. 205 (Sec. I, Cap. III, Tit. VIII – Da Ordem Social); Art. 206 – princípios de regência do ensino; Art. 207 – universidades – a autonomia universitária; Art. 208 – educação dever do Estado; Art. 209 – ensino privado – regras de atendimento; Art. 210 – formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais; Ensino religioso e língua portuguesa (§ 1o); Art. 211 – organização do sistema federal de ensino. Art. 212 – 18% União e 25% Estados e municípios; Art. 213 – direção dos recursos públicos.
Reflexo do ambiente de elevada permeabilidade em relação a ideias e mecanismos aptos a integrar as ideias de cooperação e associação como indissociáveis do setor educacional, a Lei Fundamental de 1988, no seu título VIII, “Da Ordem Social”, passa a definir, no seu art. 205, os responsáveis pela implementação desse direito: “Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
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E mais, no dispositivo seguinte, arrola o texto constitucional a base principiológica a nortear o desenvolvimento do ensino, indigitando: Art. 206 – [...] I. Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II. Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III. Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV. Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V. Valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, [...] e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; VI. Gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII. Garantia de padrão de qualidade.
Identifica-se, nessa linha, um inequívoco privilegiamento das recomendações extraídas dos documentos internacionais, a preocupação em robustecer as condições de eficácia do cânone isonômico, a intensa exigência de políticas de apoio para a garantia do aprendizado básico dos adultos e das crianças. Enfim, transluz clara a perspectiva do constituinte em oferecer maior favorecimento ao direito à educação, ampliando o território constitucional com os elementos, decorrentes das declarações contemporâneas, a buscar concretização fática à prerrogativa de educação que, a par de inerente ao ser humano, configura exigência no tocante ao próprio desenvolvimento da humanidade. A preocupação com o tratamento constitucional da educação, entre nós – um estado federal, em que a Magna Lei assegura autonomia em relação aos entes federados, vem refletida, ainda, nos textos constitucionais produzidos pelos Estados-membros e municípios. Nesta esteira, a Constituição do Estado de São Paulo cuida deste tema no capítulo III, seção I, do seu título VII (arts. 237 a 258). Relevância especial assume o art. 249 que impõe oito anos de duração obrigatório do ensino, a partir da idade de seis anos. A seu turno, o art. 255 impõe a reserva e destinação de 30% da receita dos impostos para o incremento da educação e,
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não ignorando a exigência de controle obriga a publicação trimestral das receitas arrecadadas e das transferências efetuadas (art. 256). O município de São Paulo, de sua parte, não ignorou a essencialidade deste direito e, buscando, a par do seu reforço, também, a previsão clara da responsabilidade local no implemento da educação, preconizou como dever do Poder Municipal assegurar ensino fundamental e educação infantil (art. 7o, VI Lei Orgânica do Município de São Paulo). O detalhamento vem oferecido pelo documento municipal ao longo dos arts. 200-211 (título VI, capítulo I), havendo, em simetria com o dispositivo estadual, a previsão de reserva e destinação de 31% dos recursos resultantes de impostos, ao cumprimento do dever no tocante ao implemento do direito à educação. É certo que, apesar dos esforços dos constituintes que visaram assegurar estatura constitucional a esse direito e, inspirados em modelos subtraídos de modernas deliberações internacionais, cuidaram da questão educacional robustecendo-a com a indicação da necessidade de cooperação e associação das forças e grupos sociais para a concreção do processo de aprendizagem e de transmissão do conhecimento, ainda restam falhas acentuadas; portanto um intenso trabalho de se alcançar no espaço educacional o ponto ideal. Basta verificar a resolução adotada pelo governo brasileiro, em decorrência dos debates verificados no âmbito da Conferência Internacional contra o Racismo, realizada pela ONU em Durban, na África do Sul, em setembro de 2000, de promover a reserva de vagas para negros nas universidades.
As Ações Afirmativas. O Modelo de “Cotas” A previsão de cotas reservadas aos de raça negra, indicador preciso da influência da mobilização dos grupos sociais em prol do desenvolvimento do setor educacional, é tema discutido em sede muito explorada nos últimos quarenta anos: as affirmative actions ou programas de ações afirmativas visando a implementação de políticas de inserção social pela via da educação. Pois bem, ensina a professora Fernanda Dias Menezes de Almeida que as denominadas ações afirmativas consubstanciam-se “em proce32
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dimentos destinados à concretização do direito à igualdade” (Almeida, 2004). E aduz mais o fato de que programas afirmativos “designa o conjunto de políticas públicas ou particulares destinadas a corrigir desequilíbrios que desfavorecem grupos minoritários, impedindo ascensão social, cultural, política, econômica etc.”. Paulo Lucena de Menezes, com longa e profunda pesquisa na matéria, esclarece: “Ação afirmativa, nos dias correntes, é um termo de amplo alcance que designa o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade [...]” (Menezes, 2001, p. 27). Em verdade, embora possa se vislumbrar programas de ações afirmativas buscando a inserção de setores menos aquinhoados na população ativa e produtiva da sociedade, a exemplo das políticas de admissão no mercado de trabalho de negros, de deficientes físicos, de mulheres na política, enfim, políticas de capacitação e privilegiamento no ensejo de nulificar o desequilíbrio que as condições deficitárias introduzem no cenário social, fato é que as políticas afirmativas praticadas no panorama educacional conquistaram maior notoriedade, perseguindo a inserção, notadamente, dos afro-descendentes no mundo universitário, autorizando a capacitação deste contingente de desfavorecidos mediante o acesso a educação superior. Interessante, a esse passo, verificar a trajetória destes programas que encontram sua certidão de nascimento na política inovadora praticada no governo Kennedy, que utilizou pela primeira vez a expressão ação afirmativa quando da criação do “Equal Employment Opportunity Commission” (EEOC). Certo é que este projeto introduzia medidas buscando alargar a isonomia quanto às oportunidades no campo do trabalho. Ao longo da evolução histórica, contudo, o objetivo perseguido passou a se concentrar no acesso às universidades, como vem demonstrado na Tabela 1. Em cenário brasileiro, principalmente, sob a égide da Constituição de 5 de outubro de 1988, a técnica das ações afirmativas conquistou de imediato discípulos, difundindo-se por meio de medidas tendentes a ampliar o leque de oportunidades de acesso à educação superior, principalmente para os afro-descendentes e a população de baixa renda. Neste 33
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sentido, no âmbito federal é de se destacar a Lei n. 10.558/02, documento que instala o Programa de Diversidade na Universidade, a Lei n. 10.678/03, que preconiza a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Social, o Decreto n. 4228/02, que institui, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, e, mais recentemente, a Media Provisória n. 213, de 10 de setembro de 2004, que institui o Programa Universidade para todos – Prouni, importante instrumento de política positiva de inserção e que vem sendo discutida no âmbito das ADIs 3330, 3314 e 3379, junto ao Supremo Tribunal Federal. No âmbito dos Estados-membros, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro contam com legislação própria, disciplinando a prática de ações afirmativas, acolhendo a técnica de cotas para o ingresso nas universidades. Em Alagoas, o ingresso pela técnica de cotas na Universidade Federal é regulado pela Resolução 09/2004 – Cepe, de 10 de maio de 2004. Em Brasília, Distrito Federal, a matéria é tratada por via de um Plano de Metas de Inserção Social da Universidade de Brasília, aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), em 6 de junho de 2003. No Estado de São Paulo, o tema é disciplinado por via de dois decretos: Decreto Estadual n. 48.328/03 – cria o Programa de Ações Afirmativas do Estado de São Paulo e Decreto Estadual n. 49.602/05 – institui o Sistema de Pontuação Acrescida para afros e egressos ensino público para Escolas Técnicas (Etes) e Faculdades de Tecnologia (Fatecs). E, o Município de Piracicaba se destaca com legislação própria, tendo editado a Lei Municipal n. 5.202/02. Oportuno, por derradeiro, o registro da original e especialíssima técnica idealizada no Estado de São Paulo, oriunda de aplicações no âmbito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e que, pelos bons resultados, foi remodelada para o ingresso nas Fatecs estaduais. Trata-se do sistema de pontuação acrescida, que confere aos afro-descendentes, aos egressos de escolas públicas, índios e aos menos favorecidos, um acréscimo na pontuação, desde que atinjam a nota de corte. Não adotam, contudo o método da reserva de vagas, ou seja, as cotas.
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Tabela 1. Políticas de ação afirmativa nos governos norte-americanos P E 1935
Legislação trabalhista (The 1935 National Labor Relaction Act)
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6 de março de 1961 governo Kennedy
governo Lyndon Johnson (1963-1969)
governo Richard Nixon (1969-1974)
governo Jimmy Carter (1977-1981)
governo governo governo Ronald Bush Bill Clinton Reagan (1989-1993) (1993-2001) (1981-1989)
governo Georg W. Bush (2001-2009)
Ordem Executiva 10925 do presidente J. F. Kennedy. Foi o primeiro a usar a expressão “Ação Afirmativa”. Criou a Equal Employment Opportunity Commission (EEOC)
Criados mecanismo e estratégias Nixon era conde combate e de superação das de- servador e inisigualdades raciais e de gênero. migo das ações afirmativas.
Caso Regents of the University of California v. Bakke
O interesse de Nixon era apenas angariar eleitorado negro a votar no Partido Republicano.
A Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia reservou dezesseis das cem vagas para estudantes pertencentes às minorias. A Suprema Corte decidiu, que os direitos do vestibulando branco, Alan Bakke ficaram violados com o plano de Ação Afirmativa desta Universidade.
Reagan possuía tendência antiações afirmativas. Fora eleito com o auxílio da classe média branca (avessa aos avanços da política de ações afirmativas).
Atualmente, a Suprema Corte dos Estados Unidos tem decidido contrariamente às políticas públicas que adotem critérios de favorecimento das minorias.
Evitou-se discriminação a operários e sindicalistas, garantindo-se seus cargos. Proibida a discriminação feita por instituições governamentais com base em cor, religião e nacionalidade para a contratação de funcionários. Mais: estimulou-se a contratação de minorias.
1964
1965
“Civil Rights Act” Artigo VII. Visa a garantia do princípio da igualdade na contratação e promoção de seus empregados, pertencentes às minorias.
Lindon Johnson era efusivo defensor das Ações Afirmativas. Discursou em 1965 para os Plano Philadelalunos de Har- phia: estímulo à vard University. contratação de minorias (racial e gênero) por companhias e entidades educacionais.
Bush não era muito afeito aos progressos dos direitos civis. A Suprema corte voltou a decidir casos que chocaram a comunidade de direitos humanos.
Clinton contava com o apoio da comunidade negra.
Estabeleceu em governo mais intervencionalista, com ações impactantes na diminuição da desigualdade A Civil Rights entre os grupos Acto foi vetada raciais. por Bush, em outubro de 1990. No anos seguinte, foi promulgada, ajudando as vítimas de discriminação.
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Forçoso convir que a necessidade de satisfazer as cambiantes demandas que o século XXI insinua induz a uma atuação perseverante tanto do Estado, como, ainda, a imposição de envolver nessa tarefa a sociedade civil e todos os elementos que a compõem. Exige um esforço conjunto. Uma constante ação cooperativa, a associação, visando patamares conformes aos princípios proclamados nas declarações, enfim a mobilização da comunidade social para o ensino em níveis que atendam às expectativas internacionais de educação.
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Os Estados e o Direito à Educação na Constituição de 1988: Comentários Acerca da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Nina Beatriz Stocco Ranieri
Introdução Ao estudarmos o direito à educação no sistema jurídico brasileiro observamos um notável avanço em sua proteção e promoção a partir da Constituição Federal de 1988, não só com referência às constituições brasileiras anteriores como também em relação à garantia dos demais direitos sociais. Essas previsões produzem importantes consequências jurídicas e políticas, em termos de agregação do interesse público em âmbito nacional, que podem ser identificadas, pelo menos, em dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao pacto federativo, no qual se instala uma forma de cooperação efetiva e eficaz no campo educacional, o segundo à afirmação da dimensão democrática do direito à educação. Ambos aspectos se inter-relacionam na medida em que o dever do Estado se efetiva por meio de ações integradas e coordenadas de todos os entes federados, insinuando um federalismo cooperativo, com resultados altamente positivos para a ampliação do exercício do direito à educação, em seus diferentes níveis, tanto na esfera pública quanto na privada. De fato, dentre as inúmeras transformações operadas no Brasil após a edição da Constituição de 1988, destaca-se o considerável progresso 39
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dos níveis educacionais da população em geral e dos jovens em particular, tendo-se alcançado, praticamente, a universalização do ensino fundamental1. Dados do recente estudo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre os primeiros anos da educação fundamental no Brasil – Uma Visão dentro de Escolas Primárias2 – demonstram, igualmente, que apenas 10% dos estudantes no Brasil se encontram hoje em escolas privadas e que um em cada dois alunos encontra-se matriculado em escolas cuja maioria, ou todos os alunos, são provenientes de famílias com pais que não haviam completado a educação primária. Não há dúvida de que esse resultado advém do enfrentamento público de questões recorrentes da educação brasileira, tais como universalização, financiamento, garantias de acesso e permanência na escola, qualidade do ensino, dentre outras. A atuação do poder público nos últimos vinte anos assume especial relevância quando consideramos o atraso secular da educação no Brasil, notadamente da educação pública, em comparação a outros países da América Latina, como a Argentina e o Uruguai, que já no início do século XX haviam universalizado a educação fundamental (Fausto & Devoto, 2004; Marcílio, 2005, dentre outros autores). A participação dos Estados e Municípios nesse processo tem sido significativa, podendo-se concluir que a discriminação de competências educacionais promovida pela Constituição Federal – ao combinar a atribuição de encargos educacionais aos entes federados, em grau de generalidade crescente, com a obrigatoriedade de aplicação de percentuais fixos da receita de impostos no financiamento da educação – tem sido eficaz. Este modelo beneficia-se da organização federativa dos sistemas de ensino no Brasil, levando em conta o princípio da descentralização normativa e executiva que lhe é inerente. Do ponto de vista jurídico, inúmeros são os aspectos que podem ser analisados a respeito da organização federativa dos sistemas de ensino 1. Cf. Inep/Ministério da Educação. Censo Escolar 2006, que aponta aproximadamente 56 milhões de matrículas na Educação Básica. 2. Cf. www.unesco.org.br 40
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e de seus efeitos na ampliação dos meios de acesso e permanência na escola. Um dos mais complexos é o das competências legislativas concorrentes dos Estados-membros, devido à tênue distinção entre normas gerais e normas suplementares de educação, até porque, neste campo, a distinção entre o interesse nacional e o regional é praticamente inexistente. O tema torna-se ainda mais árduo quando se trata de analisar a intervenção dos Estados-membros no domínio econômico, em circunstâncias nas quais a matéria de direito econômico ou do consumidor se sobrepõe à educacional. Este artigo visa demonstrar, em linhas gerais, a problemática inerente à atuação legislativa dos Estados na educação, por via da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), em situações de controle abstrato de constitucionalidade. O objetivo é identificar as dificuldades jurídicas de implantação do programa normativo assumido pela Constituição Federal de 1988 nessa área, sob a ótica federativa. A relevância do tema para o Estado Democrático de Direito revelase no fato de que a educação consiste tanto em direito individual como direito coletivo, além de ser uma habilitação de caráter instrumental. Essas duas dimensões, inter-relacionadas, permitem a difusão da democracia, dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente, valores cruciais no mundo contemporâneo. A forma democrática de vida, disse Anísio Teixeira, “[...] funda-se no pressuposto de que ninguém é tão desprovido de inteligência que não tenha contribuição a fazer às instituições e à sociedade a que pertence [...]” (Teixeira, 1968). Tal crença, prossegue, equivale a uma hipótese político-social que, para se confirmar, exige da sociedade que ofereça, a todos os indivíduos, acesso aos meios de desenvolver suas capacidades, a fim de habilitá-los à maior participação possível nos atos e instituições em que transcorra sua vida, participação que é essencial à sua dignidade de ser humano (Teixeira, 1968, p. 14).
O Direito a Educação na Constituição Federal de 1988 A Constituição brasileira, ao definir o dever do Estado com a educação (art. 205) e o seu comprometimento com o desenvolvimento na41
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cional e com a construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3o), individualiza a educação – direito de todos – como bem jurídico, dado o seu papel fundamental para o desenvolvimento da pessoa e ao exercício dos demais direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Nesse sentido, o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é qualificado como direito subjetivo (art. 208, § 1o), assegurando a sua universalização, bem como a progressiva universalização do ensino médio sob a égide da equidade (art. 206), dentre outros princípios que orientam a atividade educacional. Para garantir o exercício do direito, no que diz respeito ao dever do Estado, a Constituição discrimina encargos e competências precisas para os sistemas de ensino da União, dos Estados e dos Municípios (art. 211), e os correspectivos percentuais da receita de impostos para aplicação na manutenção e desenvolvimento do ensino (arts. 22, XXIV, 24, VIII, 30, VI, 208 e 212). Neste modelo, a partir da ênfase à competência genérica comum, dá-se a indicação dos níveis de atuação prioritária, mas não exclusiva, para cada esfera de governo, à exceção do federal, o que reclama e evidencia a necessidade de organização dos respectivos sistemas em regime de colaboração, especialmente enfatizado com referência ao ensino obrigatório. Assim, compete aos municípios atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil, aos estados e Distrito Federal no ensino fundamental e médio, e à União atuar supletivamente para garantir a equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade de ensino, mediante assistência técnica e financeira aos estados, Distrito Federal e municípios, em todos os níveis de ensino (art. 211, § 1o). A competência coordenadora da União em matéria de política nacional de educação é reforçada, na legislação infraconstitucional, pelo art. 8o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei n. 9.394, de 20.12.1996), visando articular os diferentes níveis (básico e superior) e sistemas de ensino. Esta previsão complementa a norma genérica dos § 2o e 3o do art. 211, o que significa que, sob a coordenação da União, todos os entes políticos atuarão na educação infantil, e no ensino fundamental, médio e superior, atendida a seguinte regra: municípios prioritaria42
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mente no ensino fundamental e na educação infantil; estados e Distrito Federal no ensino fundamental e médio; sendo que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público, ou sua oferta irregular, importará a responsabilidade da autoridade competente (art. 208, § 3o). Em razão de a Constituição Federal não ter indicado nenhum nível de ensino para a atuação prioritária da União, reforça-se a sua ação supletiva e redistributiva em todos os níveis. Considerando-se o amplo escopo desta atribuição (todos os níveis de ensino), fica claro que à União compete oferecer o ensino superior à ausência do seu oferecimento pelas demais esferas de governos. Como estas devem se ocupar prioritariamente da educação básica, a competência da União, em relação ao ensino superior, é residual. Cabe também à União intervir nos estados e no Distrito Federal, em hipótese de não aplicação, na educação, do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, na forma do art. 34, VII, “e”, organizar o seu sistema de ensino e o dos territórios (art. 211, § 1o), financiar as instituições de ensino público federais; autorizar e avaliar os estabelecimentos de ensino de seu sistema (art. 206, VII), inclusive os particulares (art. 209, II). Para os estados, o Distrito Federal e municípios, restam os encargos federativos de execução dos planos nacional e estaduais de educação, à vista do dever do Estado para com a educação (CF, art. 205), e por força dos artigos 10 e 11, da LDB. Há também os encargos de organização, manutenção e desenvolvimento dos respectivos sistemas de ensino, em relação aos quais deverá ser aplicado, no mínimo, 25% da receita resultante de impostos (na forma do art. 212); e, no âmbito destes, a autorização e avaliação das instituições de ensino. No plano das competências legislativas reserva-se à União competência privativa para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV), e para estabelecer o plano nacional de educação (art. 214), e competência concorrente à dos estados e Distrito Federal para legislar sobre educação mediante normas gerais (CF, art. 24, IX). A competência dos estados e municípios, neste cenário, é bastante restrita, posto que remanescente, limitada a baixar normas complementares para os respectivos sistemas de ensino. 43
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Para suportar tais encargos foram garantidos recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino, por meio de vinculação de receita tributária, na forma do art. 212: a União aplicará anualmente nunca menos de 18%; os Estados e Municípios 25%, no mínimo, aí incluída a receita proveniente das transferências. No campo do financiamento da educação obrigatória, alem da previsão do art. 167, IV, que permite a vinculação da receita de impostos para a manutenção e desenvolvimento do ensino, instituiu-se um eficiente sistema de distribuição de recursos públicos, baseado no número de matrículas em educação básica, nas redes estaduais, municipais e do Distrito Federal. A distribuição foi assegurada inicialmente pelo Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental – Fundef (Emenda Constitucional n. 14, de 12.9.1996), posteriormente ampliado para incluir a educação infantil e o ensino médio, no hoje denominado Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico – Fundeb (art. 60, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com a redação da Emenda Constitucional n. 53, de 19.12.2006). A Constituição Federal também prevê a destinação de recursos públicos às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, em caráter de fomento, atendidas as condições fixadas nos seus incisos do art. 213. Esta previsão, por evidente, deve ser conjugada à do art. 205 no qual, expresso o dever do Estado para com a educação, indica-se a necessária colaboração da sociedade, o que se reforça em face do art. 209, que permite o oferecimento do ensino pela iniciativa privada, observadas as normas gerais de educação e de autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. No que diz respeito ao exercício do direito à educação, já assegurado indiretamente pelo conjunto das previsões constitucionais antes indicadas, merecem destaque o seu reconhecimento como direito individual e a qualificação do ensino fundamental como direito público subjetivo, tal como previsto nos arts. 205 e 208 § 1o, respectivamente. Tais previsões facultam ao indivíduo, aos grupos ou categorias, às associações, entidades de classe, organizações sindicais ou entes estatais personalizados, como é o caso do Ministério Público, demandar a garantia ou tutela do interesse individual, coletivo ou público, por intermédio 44
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dos mecanismos previstos na própria Constituição Federal, como a ação civil pública, mandado de segurança, mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, dentre outros3. Notamos, ainda, a extensão da titularidade do direito subjetivo à educação a grupos de pessoas indeterminadas, como as gerações futuras, por exemplo. É o que se comprova, a partir da previsão do art. 6o, em face do conteúdo do art. 210 (relativo aos conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais), e de seu § 2o (que, como exceção à regra geral de utilização da língua portuguesa no ensino fundamental, assegura às comunidades indígenas a utilização de línguas maternas). Além disso, o direito à educação beneficia-se das garantias constitucionais próprias aos direitos e garantias fundamentais, expressas no § 1o, do art. 5o e do § IV, inciso IV, do art. 60, e também das normas internacionais relativas a direitos humanos, conforme assegura o § 2o, do art. 5o. De todas as disposições constitucionais apontadas resultam, inequivocamente, avanços relevantes na promoção, proteção e exercício do direito à educação, em benefício da ampliação das possibilidades de participação do indivíduo na elaboração dos valores da sociedade a que pertence, como já indicado. A recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria educacional tem acompanhado esta evolução, sendo inegável a ampliação da atuação da Corte no que concerne à implementação de políticas públicas educacionais, em particular no que se refere à educação infantil e fundamental, de competência dos municípios4.
3. A propósito, consultar Ranieri (1994). 4. Cf. AI 455802 (relator ministro Marco Aurélio, DOU de 5.3.2004), AI 411518 (relator ministro Marco Aurélio, DOU de 3.3.2004), AI 475571-8 (relator ministro Arco Aurélio, DOU de 31.3.2004 ), RE 401880 (relator ministro Eros Grau, DOU de 28.9.2004), RE 402024 (relator ministro Carlos Velloso, DOU de 27.10.2004), RE 410715 (relator ministro Celso de Mello, DOU de 8.11.2005), RE 438493 (relator ministro Joaquim Barbosa, DOU de 12.12.2005), RE 293412 (relator ministro Eros Grau, DOU de 29.5.2006). 45
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No que diz respeito às competências concorrentes dos Estadosmembros, entretanto, tem se mostrado dúbia, não sedimentada, sendo razoável supor que o baixo número de demandas levado ao conhecimento da Corte e as dificuldades inerentes à efetivação de direitos sociais contribuam para tanto. Contudo, de modo geral, apesar da pouca margem de ação legislativa deixada aos estados pela Constituição Federal, observamos que entre ambiguidades, avanços e retrocessos, a garantia dos meios de acesso e permanência na escola têm sido ampliados. É o que passamos a demonstrar, com a observação de que a escolha dos acórdãos deve-se às particularidades do caso analisado, bem como à qualidade do debate realizado no Plenário do STF, sem pretender exaurir todas as decisões referentes ao tema.
O Supremo Tribunal Federal e as Competências Concorrentes em Matéria Educacional O Caso das Mensalidades Escolares. Garantia dos Meios de Acesso e Permanência na Escola e Iniciativa Privada 1.007-75. Requerente: Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen). Requeridos: governador do Estado de Pernambuco e Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. O Tribunal Pleno decidiu, por maioria de votos, pela procedência da ação, acompanhando o voto do relator, ministro Eros Grau6. A Confenen pleiteou a declaração de inconstitucionalidade da Lei 10.989/93, do Estado de Pernambuco, que fixava o último dia do mês, em que ocorreria a prestação dos serviços educacionais, para o pagamento das mensalidades escolares. O governador do Estado em sua manifestação asseverou que, dada a inexistência de lei federal que disponha sobre a oportunidade do paADIN
5. Entende-se ADIN como abreviatura de Ação Direta de Inconstitucionalidade. 6. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 10.989/93 do Estado de Pernambuco. Educação: Serviço público não privativo. Mensalidades escolares. Fixação da data de vencimento. Matéria de direito contratual. Vício de iniciativa, ministro relator Eros Grau, DOU de 24.2.2006. 46
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gamento das mensalidades escolares, o Estado Pernambucano exerceu a competência legislativa plena. A Assembléia Legislativa, por sua vez, fez notar que a lei impugnada propunha-se, tão-somente, a evitar o privilégio, das escolas, de receber antecipadamente a remuneração pelos serviços prestados. A Corte não vislumbrou, no texto normativo, legislação sobre educação ou ensino, mas matéria de direito contratual, de competência privativa da União. Afastou também, na situação examinada, eventual relação de consumo, o que ensejaria a competência concorrente do Estado, na forma do art. 24, V, da Constituição Federal. O argumento central, nos votos vencedores (ministros Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, César Peluso e Eros Grau), foi o de que não seria viável instituir tratamento diferenciado para o vencimento de obrigações, sob o manto das peculiaridades estaduais, não obstante eventuais abusos do poder econômico (matéria já enfrentada pela Corte, no início dos anos de 1990, em face de lei federal). Chamam atenção, nos debates, as distinções feitas pelo ministro Eros Grau entre “cidadão” e “agente econômico”, em face da relação contratual que se instaura perante as instituições de educação privadas: [...] a relação contratual de que se cuida não é travada entre prestador de serviço e mero consumidor, porém aquele e usuário de serviço público, isto é, cidadão. Daí porque não há pura e simplesmente, na hipótese, uma relação de consumo, o que ensejaria a ponderação do disposto no art. 24, inciso V, da Constituição do Brasil. As relações de consumo são acessíveis unicamente a quem possa ir ao mercado portando moeda suficiente para adquirir bens e serviços, situação bem diversa daquela em que se situa o cidadão usuário do serviço público (p. 15).
E mais: [...] Não posso reduzir o cidadão a um agente econômico que tem direitos porque travou relações com um produtor de bens ou de serviços e que, atuando no mercado e tendo pago o custo, o preço desses bens, desses serviços, merece proteção jurídica. Não! A proteção jurídica que o usuário do serviço público merece do ordenamento jurídico é anterior ao seu ingresso no mercado. Ele a obtém na medida em que participa, como cidadão, do Estado (p. 19).
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Não concordando com esta posição, o ministro Carlos Britto manifestou-se no sentido de “[...] que o cidadão, o consumidor e o usuário de serviço público merecem proteção do Estado, cumulativamente. Uma coisa não exclui a outra. A ordem jurídica protege o cidadão, o consumidor e o usuários, cumulativamente”. Propôs, ainda, que o Estado tome decisões de mercado, e que saia em defesa do consumidor, principalmente do consumidor de atividade educacional, que é um direito social (p. 20 e ss.). O entendimento foi acompanhado pelos ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa, para reconhecer a possibilidade de interferência estatal no âmbito das relações firmadas entre os donos de estabelecimentos educacionais e os pais de alunos, a fim de proteger e salvaguardar o direito à educação (p. 30 e ss). Neste caso, ainda que não seja ampliada a proteção do direito à educação, a oposição que se instala entre as duas correntes contribui para promover o necessário debate acerca das relações de mercado no campo da educação, no que concerne à regulação de abusos do poder econômico e das relações de consumo. Para a primeira corrente, impõe-se a prevalência da matéria contratual, de caráter geral e de competência da União, uma vez que o sistema de produção, fundado em contratos, padeceria de insegurança jurídica se perturbado por diferentes normas, em diferentes estados. Por outro lado, percebemos no voto do relator e em suas manifestações posteriores, que a categorização da educação como “serviço público”, não privativo do Estado, visa, exatamente, fazer com que a matéria “subexamine” transcenda o campo meramente contratual da iniciativa privada, de tal forma que se imponha induvidosamente a natureza pública da educação. Esta posição, de resto sempre adotada pelo ministro Eros Grau, não é aqui considerada suficiente para fundamentar a constitucionalidade da legislação estadual, como ocorreu em outros casos. Para a segunda corrente, os problemas relacionados às mensalidades escolares envolvem diretamente o direito à educação e, consequentemente, à cidadania, o que não exclui, como vimos, a defesa do consumidor. Sua regulação, portanto, favoreceria a proteção dos alunos, principalmente dos carentes.
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Não há dúvida de que esta última posição, ainda que minoritária, apresenta, de forma mais simples, maior garantia de acesso à educação. A natureza pública da educação advém de seu caráter democrático, em benefício da ampliação das possibilidades de exercício da cidadania, independentemente de sua conceituação como serviço público. Ademais, o ensino, na iniciativa privada, esta condicionado pela atividade estatal de controle e avaliação, bem como pelo atendimento de normas gerais, nos termos do art. 209 da Constituição. O mesmo debate já havia sido desenvolvido anteriormente, por ocasião do julgamento da ADIN 1.266-5, com resultados diferentes como veremos a seguir.
O Caso do Material Escolar. Garantia de Acesso e Permanência na Escola e Iniciativa Privada 1.266-5/BA. Requerente: Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – Confenen. Requeridos: governador do Estado da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia. O Tribunal Pleno, por maioria de votos, acompanhou o voto do relator, ministro Eros Grau, para julgar improcedente a ação7. A Confenen, com fundamento no art. 103, IX, da Constituição Federal, requereu a declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 6.586/94, do Estado da Bahia, que regulamenta a adoção de material escolar e de livros didáticos pelos estabelecimentos de ensino particulares de educação básica. A finalidade da lei consistia em assegurar ao aluno, e a seus responsáveis, garantias de acesso e permanência na escola, especificamente em relação ao material a ser utilizado durante o período letivo, tais como: ciência da quantidade, vedação da indicação de preferência por marca ou modelo de qualquer item; possibilidade de entrega do material em uma única vez ou de forma parcelada etc. ADIN
7. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 6.584/94 do Estado da Bahia. Adoção de material escolar e livros didáticos pelos estabelecimentos particulares de ensino. Serviço público. Vício formal. Inexistência, ministro relator Eros Grau, DOU de 23.9.2005. 49
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A propósito, afirmou o relator: “[...] que os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, isto é, podem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização. São, porém, sem sombra de dúvida, serviço público. O Estado membro detém competência para legislar sobre a matéria, nos termos do art. 24, IX, da Constituição” (ADIN 1.266-5, p. 102). De outra parte, sustentou o ministro Joaquim Barbosa, em apoio à tese de que embora a educação não tenha a natureza de serviço público, tal como sustentado pelo relator, remanesce a competência concorrente do Estado para legislar sobre educação, dada a sua natureza de direito fundamental (p. 107). Neste caso, a Corte afirmou a competência concorrente dos Estados-membros, em benefício da maior proteção aos direitos fundamentais, mesmo interferindo em relações privadas. Em situações análogas, pronunciou-se posteriormente no mesmo sentido, como demonstram os acórdãos proferidos na ADIN 682-7, relativa à Lei n. 9.346/90 do Estado do Paraná, DJ 11.5.2007, e na ADIN 3.669-6, relativa à Lei Distrital n. 3.694, de 8.11.2005, DJ 29.6.2007, dentre outras. Importante notarmos que o entendimento da Corte, neste caso, não se constituiu em precedente para o julgamento da ADIN 1.007-7/ PE, antes comentada. Aqui, entendeu-se que o disposto no art. 209 da Constituição Federal, relativo à liberdade de ensino conferida à iniciativa privada, não fora afrontado pelo Estado da Bahia, com exceção do voto do ministro Marco Aurélio (p. 104). O mais curioso é que a argumentação do relator, acerca da natureza jurídica da educação, como de serviço público não privativo, embora não fosse acolhida pelos demais ministros, constituiu o fundamento de seu voto, para afastar a ingerência indevida da lei estadual no domínio privado. Tanto neste caso como no anterior, o debate acerca deste ponto específico – educação como serviço público não privativo – produziu posicionamentos diversos e inconclusivos, posto não ser o objeto específico da questão levada à corte. O ministro Carlos Britto, por exemplo, entendeu que “saúde pública e educação são atividades ambivalentemente estatais e privadas, ou 50
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seja, mistamente públicas e privadas, porque admitem duas titularidades, os dois senhorios”, excluindo ambas da área dos serviços públicos, até porque o art. 175 da Constituição Federal deixa claro que serviço público é aquele titularizado pelo Estado (pp. 105-106). Já o ministro Sepúlveda Pertence concluiu que, em termos constitucionais, “o ensino privado não é serviço público; é uma atividade privada, mas porque imbricada com o direito à educação, sujeita a regulamentações públicas” (p. 107). Para o ministro Joaquim Barbosa “a fundamentalidade desse direito é que leva à legitimação da atuação do Estado, no sentido de disciplinar essa prestação” (p. 108). O ministro Gilmar Mendes, por outro lado, manifestou-se no sentido de que não é necessário converter a educação em serviço público, nem chegar a um meio termo, “porque é comum o entendimento de que é passível de regulação a matéria por parte do Estado” (p. 108). Ao que tudo indica, esse debate deve se reproduzir em situações análogas. O problema que se põe nessa definição diz respeito à tormentosa conciliação entre Estado de Direito e Estado Social. O Estado de Direito é um conceito formalmente jurídico, não o sendo do Estado Social. As limitações do primeiro são de natureza técnica, voltadas à preservação do dualismo Estado/sociedade, do que resulta a circunscrição do fenômeno do poder ao seu contorno constitucional. No Estado Social, ao contrário, pressupõe-se um Estado politicamente ativo, que desempenha funções interventivas, e que praticamente desconhece aquele dualismo. Em o desconhecendo, é até mesmo possível que algumas intervenções venham a ultrapassar os limites de controle do Estado de Direito, alterando o caráter geral das normas em nome da legitimação de aspirações sociais, e relativizando as suas funções de bloqueio do modelo constitucional tradicional8. Observamos a mesma situação no caso a seguir comentado.
8. Cf. Nina Ranieri, Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo, Edusp/Fapesp, 2000, p. 269. 51
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O Caso da Meia-entrada em Espetáculos Esportivos, Culturais e de Lazer. Garantia de Acesso à Educação e Intervenção no Domínio Econômico ADIN 1.950-3/SP. Requerente: Confederação Nacional do Comércio – CNC. Requerido: governador do Estado de São Paulo e Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. O Tribunal Pleno, por maioria de votos, acompanhou o voto do relator, ministro Eros Grau, para julgar improcedente a ação9. Na ADIN 1.950-3, relativa à Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo (3.11.2005), volta a ser debatida a intervenção do Estado na ordem econômica, em face do dever de garantir o acesso à educação e à cultura (arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217), com resultado favorável à ampliação do direito à educação. A referida lei assegura aos estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino de educação básica do Estado de São Paulo, o pagamento de meia-entrada em espetáculos esportivos, culturais e de lazer. Entendendo haver afronta aos arts. 170 e 174 da Constituição Federal, por indevida intervenção do Estado-membro no domínio econômico, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) propôs a ação direta. Desta feita, em oposição às razões que determinaram a inconstitucionalidade da lei pernambucana antes comentada (ADIN 1007), a Corte reconheceu a prevalência do direito à educação sobre a livre iniciativa, bem como a constitucionalidade da competência concorrente estadual, nos termos do art. 24, I, por maioria de votos, nos termos do voto do relator, ministro Eros Grau. Asseverando não se tratar de matéria de direito civil – como ocorrera no caso da lei pernambucana – posicionou-se o ministro Eros Grau pela preservação do interesse da coletividade no seguinte sentido:
9. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo. Meia entrada assegurada aos estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino. Ingresso em casas de diversão, esporte, cultura e lazer. Competência concorrente entre a União, Estados-membros e o Distrito Federal para legislar sobre direito econômico. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem econômica. Mercado. Intervenção do Estado na economia, ministro relator Eros Grau, DOU de 2.6.2006. 52
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No caso, se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado membro a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (arts. 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217, § 3o, da Constituição). Ora, na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. A superação da oposição entre os desígnios do lucro e de acumulação de riqueza da empresa e o direito de acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, como meio de complementar a formação dos estudantes, não apresenta maiores dificuldades (p. 63).
Nos debates, salientam-se as posições contrárias dos ministros Marco Aurélio e César Peluso, por vislumbrarem interferência indevida do Estado, manifestada pelo tabelamento do valor de prestação de contrato. Notável o contra-argumento apresentado pelo relator às observações do ministro Peluso, afirmando que a meia-entrada faz parte da cultura brasileira e, portanto, deve ser mantida, no que foi acompanhado pelos ministros Carlos Britto e Sepúlveda Pertence (fls. 73 e 74).
O Caso dos Cursos de Graduação na Área da Saúde. Competência Concorrente e Organização Federativa dos Sistemas de Ensino 3.098/SP. Requerente: governador do Estado de São Paulo. Requerido: Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. O Tribunal Pleno, por inanimidade, julgou procedente a ação10. Neste caso, diversamente dos anteriores, o STF apreciou matéria na qual não se manifestava tão equívoca a conciliação entre Estado de Direito e Estado Social. A flagrante inconstitucionalidade facilitou o posicionamento da Corte, fundado em normas educacionais, exclusivamente. A Lei n. 10.860, de 31.8.2001, do Estado de São Paulo, estabeleceu requisitos para criação, autorização de funcionamento, avaliação e reconhecimento dos cursos de graduação na área da saúde, das instituições públicas e privadas de educação superior, determinando que os pedidos de criação dos referidos cursos, por universidades e demais instituições ADIN
10. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Constitucional. Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei n. 9.394, de 1996. Competência legislativa concorrente: CF, art. 24. Competência estadual concorrente não-cumulativa ou suplementar e competência concorrente estadual cumulativa, ministro relator Carlos Velloso, DOU de 10.3.2006. 53
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de educação superior, deveriam ser encaminhados ao Conselho Estadual de Educação e submetidos à prévia avaliação do Conselho Estadual de Saúde. Sustentou o requerente afronta aos arts. 22, XXIV, e 24, IX, § 1o e § 2o, da Constituição Federal, por violação da competência da União e, por consequência, contrariedade ao art. 209, da Constituição Federal. Este entendimento foi acompanhado pelo relator ministro Carlos Velloso, que confirmou ter a lei estadual excedido a competência concorrente suplementar, uma vez que editada quando já existente a lei de diretrizes e bases e sem qualquer conexão a peculiaridades locais. Além disso, dispunha sobre instituições que não integravam o sistema de ensino paulista, invadindo a esfera de competências da União. Nesses termos, claro estava que a Lei n. 10.860, de 31.8.2001, do Estado de São Paulo não cuidava de matéria de competência concorrente suplementar ou de competência plena, em virtude de lacuna11. Destaca-se no voto do relator a clareza da análise do art. 24, da Constituição Federal, quanto às hipóteses em que o direito federal afasta o direito estadual de suplementação e em que a legislação estadual preenche a lacuna deixada pela legislação federal, exercendo competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades. In casu, a edição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20.12.1996) afastou a possibilidade da lei estadual cuidar da matéria. A propósito, o ministro Nelson Jobim apontou “uma espécie de reserva de mercado paulista em relação à autorização desses cursos, entrando exatamente no sistema (o que) criaria uma situação curiosa: as universidades federais estariam sujeitas à autorização do Conselho de Saúde” (fls. 117). Nos debates, por sua vez, destaca-se a posição do ministro Carlos Britto, restritiva em relação ao âmbito da competência concorrente dos Estados no que diz respeito à atuação da iniciativa privada na área edu-
11. Situação análoga foi igualmente examinada pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.399-8, São Paulo, em face da Lei Estadual n. 9.164/95, que estabelecia a exigência de formação específica par o exercício do magistério. Relator ministro Maurício Correa, m.v., j. 3.3.2004, DJU 11.6.2004. 54
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cacional, mercê do art. 209, I, da Constituição. No seu entender, a exigência de atendimento das normas gerais de educação nacional excluiria os Estados da competência legiferante para conformar a atividade privada em tema de ensino (fls. 116). Esta é uma posição isolada que, se sedimentada, criaria dificuldades para os Estados-membros normatizarem os seus respectivos sistemas de ensino (que na educação básica, incluiu as instituições privadas de ensino, cf. art. 17 da LDB), conforme assegurado pelo art. 10, V, da LDB, e para fazer frente aos encargos decorrentes da previsão do art. 23, V da Constituição Federal.
O Caso da Expedição de Certificado de Conclusão do Ensino Médio Independentemente do Número de Aulas Frequentadas por Alunos do 3o Ano do Ensino Médio. Princípio da Igualdade e Garantia de Acesso ao Ensino Superior ADIN 2.667-4/DF. Requerente: Confederação Nacional dos Estabele-
cimentos de Ensino – Confenen. Requerida: Câmara Legislativa do Distrito Federal. Tribunal Pleno, por unanimidade, acompanhou o voto do relator, ministro Celso de Mello, para julgar procedente a ação12. A Lei n. 2.912, de 22 de fevereiro de 2002, do Distrito Federal, determinou aos estabelecimentos de ensino que expedissem o certificado de conclusão do ensino médio, em favor de alunos da terceira série do ensino médio, que, independentemente do número de aulas por eles frequentadas, comprovassem aprovação em vestibular para ingresso em ní-
12. Brasil, Supremo Tribunal Federal, Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei distrital que dispõe sobre a emissão de certificado de conclusão do curso e que autoriza o fornecimento de histórico escolar para alunos da terceira série do ensino médio que comprovarem aprovação em vestibular para ingresso em curso de nível superior – Lei distrital que usurpa competência legislativa outorgada à União federal pela Constituição da República – Considerações em torno das lacunas preenchíveis – Norma destituída do necessário coeficiente de razoabilidade – Ofensa ao princípio da proporcionalidade – atividade legislativa exercida com desvio de poder – Plausabilidade jurídica do pedido – Deferimento da medida cautelar com eficácia ex tunc. A usurpação da competência legislativa, quando praticada por qualquer das pessoas estatais, qualifica-se como ato de transgressão constitucional, ministro relator Celso de Mello, DOU de 12.3.2004. 55
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vel superior. Determinava, ainda, que a expedição do diploma se fizesse em tempo hábil, de modo que o aluno pudesse matricular-se no curso superior para o qual fora habilitado. Vetada a lei distrital pelo governador, com fundamento no art. 22, XXIV, da Constituição Federal, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – Confenen, independentemente de prévia solicitação de informações à Câmara Legislativa, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, com a finalidade de impugnar a referida lei. A medida liminar foi deferida em votação unânime pelo Tribunal Pleno, com eficácia ex-tunc, acompanhando o voto do ministro Celso de Mello, relator. O ministro Celso de Mello, relator, deferiu o pedido de liminar, com fundamento na desnecessidade de atuação normativa do DF, em face existência da legislação nacional sobre a matéria e da inexistência de peculiaridades locais que justificassem a necessidade de atendimento pela referida norma distrital. Em seu voto enfatizou a afronta à Lei n. 9.394/96, no concernente à obrigatoriedade de cumprimento, pelo aluno, de conteúdos mínimos e de carga horária mínima de oitocentas horas, distribuídas em duzentos dias de efetivo trabalho escolar (conforme já assinalado enfaticamente pelo Conselho Nacional de Educação), e o tratamento discriminatório assim instituído entre cidadãos brasileiros, em desrespeito ao princípio da isonomia. Mais ainda, apontou a falta de atendimento, pelo legislador distrital, de padrões mínimos de razoabilidade, fundados no princípio da proporcionalidade, este último qualificado, pela jurisprudência da Corte, como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. “Não se pode desconhecer que as normas legais [...] devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (art. 5o, LIV) [...]”. A norma inscrita no art. 5o, LIV, da Constituição, reafirmou, proporciona um decisivo fator obstativo que deslegitima a edição de atos legislativos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável, como é o caso. Neste caso, aventou-se, desde logo, a matéria educacional, não se apresentando qualquer dúvida acerca da abrangência nacional Lei de 56
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Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96) e da impossibilidade de legislação estadual suplementar. A Corte manifestou-se veementemente contra o “desvio de poder legislativo” em que incorreu a Câmara Legislativa do Distrito Federal, enfatizando a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada.
Considerações Finais Nos cinco casos comentados, notamos que as questões levadas ao conhecimento do STF, em sede de controle normativo abstrato, mais suscitaram discussões relativas à matéria de direito econômico, direito civil, direito do consumidor, conexas à problemática educacional do que, propriamente, a análise desse conteúdo específico vis-à-vis a competência estadual concorrente. É bem verdade que são tênues e duvidosos os limites entre a lei de diretrizes e bases da educação nacional, as normas gerais de educação e a suplementação normativa possibilitada aos Estados-membros, em especial quando o caso não apresenta inconstitucionalidades flagrantes. Ainda assim, nem sempre a finalidade da lei estadual tem sido vista pela Corte como um fator que possibilite interpretação mais benéfica à afirmação do direito à educação, embora esta posição não pareça se apresentar como regra. Foi o que ocorreu, por exemplo, em termos de maior restrição ao exercício da competência concorrente estadual, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.007-7, julgada em 31.8.2005, que teve por objeto a análise de constitucionalidade da Lei n. 10.989, de 7.12.1993, do Estado de Pernambuco, em face de matéria considerada pela Corte como de direito civil. Por outro lado, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.2665, referente à Lei n. 6.586/94, do Estado da Bahia (6.4.2005), a Corte se manifestou em sentido contrário, entendendo prevalecer a matéria educacional sobre os demais aspectos de direito econômico, posição reafirmada posteriormente na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.950-3, relativa à Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo (3.11.2005). 57
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Observamos também que em situações nas quais a atuação legislativa estadual é de manifesta inconstitucionalidade, por afronta ao art. 24, IX, § 2o e 3o, da Constituição Federal (como o demonstra a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.098-1, relativa à Lei n. 10. 860, de 31.8.2001, do Estado de São Paulo), a matéria educacional tem sido mais facilmente focada. Sob este ângulo, a apreciação da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.667-4, referente à Lei n. 2.912, de 22.2.2002, do Distrito Federal, é paradigmática. Em todos os casos, porém, entre ambiguidades, avanços e retrocessos, a jurisprudência do STF propiciou significativos avanços na proteção do direito à educação e da definição do âmbito e dos limites da atuação estatal, sendo notáveis as discussões acerca da possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico para realização do programa educacional enunciado pela Constituição. Não é simples a compatibilização do Estado de Direito ao Estado Social. Se por um lado se faz necessário garantir que valores comuns sejam admitidos pelos grupos envolvidos, o que constitui um problema eminentemente político, de outro, impõe-se um quadro constitucional rigoroso, balizando a atuação do Estado, o que é um problema exclusivamente jurídico. Em outra oportunidade concluímos, que a grande dificuldade desta compatibilização reside em impedir que as chamadas funções sociais do Estado se transformem em funções de dominação, o que também seria propiciado pelo puro formalismo. Este é o desafio que se apresenta à formulação e implementação de uma política de educação no Brasil, desafio que não é inédito nem exclusivo da área educacional. A Constituição Federal de 1988 exige do Estado a responsabilidade pela transformação social, sendo pressuposto desta função a articulação e a qualificação do interesse público e do interesse individual, na linha de princípio do Estado Social. Não há dúvida de que a atuação do Supremo Tribunal Federal oferece um panorama privilegiado dessa situação, como procuramos demonstrar.
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Referências Bibliográficas INEP/Ministério da Educação. Censo Escolar. 2006. FAUSTO, Boris & DEVOTO, Fernando. 2004. Brasil e Argentina – Um Ensaio de Historia Comparada (1850-2002). São Paulo, Editora 34, p. 50 e ss. LDB. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394, de 20.12.1996). MARCÍLIO, Maria Luiza. 2005. História da Educação em São Paulo e no Brasil. São Paulo, Imprensa Oficial. Ranieri, Nina. 1994. Direito ao Desenvolvimento e Direito à Educação – Relações de Realização e Tutela. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, v. 2, n. 6, pp. 124-134. _____. 2000. Educação Superior, Direito e Estado. São Paulo, Edusp/Fapesp, p. 269. TEIXEIRA, Anísio. 1968. A Educação É um Direito. São Paulo, Cia. Editora Nacional, p. 13. UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Site: www.unesco.org.br, acesso em 10 jun. 2008.
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O Poder Judiciário e o Direito à Educação Eduardo Pannunzio
Introdução Em uma democracia fundada na tripartição das funções do Estado, o Judiciário tem um papel de relevo na realização dos direitos humanos, assegurando a sua prevalência em situações de ameaça ou remediando uma violação já consumada. O presente trabalho tem por objetivo analisar os mecanismos existentes para o desempenho da função judicial – e, devido à similaridade de propósito, também aqueles de caráter “quase-judicial” – em relação a um direito humano específico: o direito à educação. Para tanto, inicia-se com uma investigação acerca da “justiciabilidade” do direito à educação, haja vista que, assim como ocorre com outros direitos econômicos, sociais e culturais, a crença de que sua implementação depende sempre de uma atuação positiva do Estado faz com que se alegue que o Judiciário não teria legitimidade ou competência para tomar decisões que, direta ou indiretamente, afetam o desenho de políticas públicas ou a alocação de recursos no orçamento estatal. Uma vez firmado o protagonismo do Judiciário nessa seara, partese para a apresentação de um panorama dos principais mecanismos ju-
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diciais e quase-judiciais disponíveis para se fazer valer o direito à educação, tanto no plano doméstico quanto internacional. Na terceira parte do trabalho, é então avaliado como os órgãos responsáveis pelo funcionamento desses mecanismos têm atuado. Na esfera doméstica, isso é feito por meio do exame da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), desde a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 até os dias atuais. No campo internacional, pela análise das deliberações dos órgãos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA). Por fim, este trabalho se encerra com algumas conclusões feitas com base nas considerações apresentadas nas seções precedentes.
A Justiciabilidade do Direito à Educação Há mais de cinquenta anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos já consagrava a educação como um direito humano1. Essa concepção foi confirmada e aprofundada em diversos outros instrumentos internacionais editados nas décadas seguintes, com destaque para o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) da Organização das Nações Unidas (ONU)2, celebrado em 1966 e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, com a publicação do Decreto n. 591. O mesmo ocorreu no plano jurídico interno. A Constituição Federal não apenas contemplou os direitos decorrentes dos tratados ratificados pelo Estado Brasileiro3 o que inclui, evidentemente, o direito à educação tal como estabelecido no Pidesc, entre outros –, como elevou a educação à categoria de direito fundamental, incluindo-a no rol dos direitos de caráter social4 que integram o seu título II, dedicado justamente aos “Direitos e Garantias Fundamentais”.
1. Cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Resolução da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) n. 217 A (III), de 10.12.1948, art. 26. 2. Cf. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pelo Decreto n. 591/92, art. 13. 3. Cf. Constituição Federal, art. 5o, § 2o. 4. Idem, art. 6o. 62
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Essa categorização não é livre de consequências, principalmente no que se refere ao acesso ao Judiciário por parte dos titulares desse direito. Vejamos.
O Valor Agregado da Abordagem de Direitos Humanos Reconhecer a educação como um direito humano não é uma mera operação retórica. Ao contrário, implica a sujeição a um marco conceitual e normativo específico, com importantes desdobramentos. Para os objetivos deste trabalho, é suficiente mencionar dois deles. Em primeiro lugar, tratar uma determinada utilidade como um direito humano significa que ela não pode ser vista como caridade (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008c) nem como uma commodity cuja distribuição é determinada pelo mercado (Leary, 2003, pp. 481-493, especialmente p. 482), mas sim como uma prerrogativa (entitlement) (Osmani, Nowak & Hunt, 2008) especialmente forte que os indivíduos possuem como uma questão de direito. Como lembra Dworkin (1977, p. 90), a proposição que descreve um direito constitui um argumento de princípio. Trata-se de um parâmetro que reclama aplicação devido a uma exigência de equidade, justiça ou qualquer outra dimensão da moralidade, independentemente da eventual circunstância de favorecer ou prejudicar a consecução de algum objetivo coletivo de caráter econômico, político ou social (Dworkin, 1977, pp. 22 e 91). Este é, sem dúvida, o caso dos direitos humanos, fundados naquilo que o filósofo denomina “um dos mais fundamentais de todos os princípios morais”: o princípio da humanidade compartilhada, segundo o qual toda vida humana possui um valor intrinsecamente relevante e igual (Dworkin, 2003). Isso não significa, evidentemente, que direitos são absolutos, no sentido de que devem invariavelmente triunfar; afinal, isso conflitaria com a própria noção dworkiana de princípios, que, diferentemente de regras, não funcionam sob a lógica do tudo-ou-nada (Dworkin, 1977, p. 24). No entanto, notadamente quando se está diante de direitos em face do Estado, o “peso” que tais prerrogativas assumem vis-à-vis outros objetivos políticos é especialmente forte. O próprio Dworkin consegue aventar unicamente três hipóteses em que um direito dessa natureza 63
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poderia sofrer alguma limitação: quando se demonstrar que os valores protegidos pelo direito não estão realmente ameaçados; quando ele puder prejudicar o exercício de um outro direito de importância equivalente; ou, finalmente, quando a sua concretização seja capaz de gerar um custo totalmente excepcional e elevado à comunidade (Dworkin, 1977, p. 200). Em suma: quando direitos humanos estão em jogo, a presunção é por sua prevalência sobre considerações de outra ordem. Esta própria constatação equivale a um princípio sem o qual não há como se compreender – e, quanto menos, justificar – a prática política de uma comunidade que resolveu incorporar seriamente o ideal dos direitos humanos. O segundo desdobramento que importa realçar, no presente trabalho, é que a categorização da educação como direito humano implica a sua sujeição aos princípios que são comuns ao “direito dos direitos humanos” (Robinson, 2008). Essa abordagem deve assegurar, por exemplo, um papel importante para o princípio da não-discriminação nas decisões relacionadas à educação, enfatizando a necessidade de se promover a igualdade entre os indivíduos e, portanto, garantindo uma especial atenção a grupos sociais mais vulneráveis (Robinson, 2008). Participação é outro princípio de direitos humanos de grande importância para a educação (Robinson, 2008). Ele determina que políticas educacionais devem ser elaboradas, executadas e monitoradas com o ativo e efetivo envolvimento daqueles que serão por elas afetadas e pela sociedade civil em geral. Mais significante ainda, uma abordagem de direitos humanos à educação traz à tona o princípio da accountability (Robinson, 2008). Se políticas educacionais estão ligadas a direitos, os seus aspectos substantivos e procedimentais não estão sujeitos à discricionariedade de governos. Muito ao contrário, estão eles vinculados por parâmetros que devem ser seguidos como obrigações legais e que, portanto, podem ser reclamados por indivíduos como prerrogativas jurídicas. É nesse sentido que se costuma falar na “justiciabilidade” dos direitos humanos, ou seja, na possibilidade de serem invocados perante o Poder Judiciário (ou outro órgão com funções análogas) e aplicados 64
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pelos juízes (Sheinin, 2001, pp. 29-54, especialmente p. 29), em benefício de seus titulares. Afirmar, portanto, que a educação é um direito humano implica o reconhecimento de que, sempre que essa prerrogativa estiver sob ameaça ou tiver sido violada, o(s) seu(s) titulares devem poder recorrer ao Judiciário a fim de obter um provimento capaz de assegurar a sua prevalência.
Resistências à Justiciabilidade dos Direitos Sociais No campo dos direitos humanos civis e políticos (como o direito à integridade física, à liberdade de locomoção ou à liberdade religiosa, entre outros), parece já estar sedimentada a ideia de que são eles perfeitamente passíveis de escrutínio pelo Judiciário. Não obstante, quando se trata de direitos humanos econômicos, sociais e culturais – a exemplo do direito à educação –, a sua justiciabilidade nem sempre é aceita sem alguma resistência. Esse tratamento diferenciado tem origem na crença, largamente difundida, de que enquanto os direitos civis e políticos funcionariam como barreiras à ação estatal, de modo a preservar uma esfera privada aos indivíduos – e, nesse contexto, a edição de leis seria suficiente para protegê-los –, os direitos econômicos, sociais e culturais demandariam, além disso, uma atuação positiva dos governos para criar as condições necessárias à sua realização (Arambulo, 1999, p. 60). Dessa premissa segue a conclusão de que os tribunais não teriam legitimidade ou competência para julgar decisões relacionadas a esta segunda categoria de direitos, por envolver a definição de políticas públicas ou a alocação de recursos (Hunt, 1996, pp. 24-26), as quais deveriam ser deixadas, quase que exclusivamente, ao poder discricionário dos governos. O argumento, contudo, é frágil em vista das teorias da tipologia das obrigações do Estado, inicialmente desenvolvida por Henry Shue. De acordo com a sua “tipologia tripartida de deveres”, o reconhecimento de um “direito básico” dá luz a deveres para o Estado em três diferentes níveis: a. um dever de evitar privar qualquer titular daquele direito das condições necessárias a seu exercício; 65
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b. um dever de proteger os indivíduos de terem o seu direito violado por outras pessoas; e c. um dever de ajudar aqueles que não podem satisfazer o direito por si próprios (Shue, 1996, p. 52 e ss.). Apesar do conceito de “direitos básicos” de Shue – isto é, direitos cuja realização é “essencial para a realização de todos os outros direitos” (Shue, 1996, p. 19) – não necessariamente corresponder ao dos direitos humanos, a teoria parece ser perfeitamente passível de aplicação a estes últimos. Asbjørn Eide, por exemplo, desenvolveu com sucesso essas ideias para indicar que os deveres do Estado em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais também incluem obrigações em três diferentes níveis: a. de respeitar os recursos individuais, permitindo às pessoas que possam satisfazer suas necessidades por si próprios; b. de proteger os indivíduos da interferência de “sujeitos agressivos” no exercício de sua liberdade de ação; e c. de ajudar e satisfazer aqueles que não possuem recursos suficientes para fazer frente às suas necessidades (Eide, 2001, pp. 9-28, especialmente pp. 23-24). A tipologia é válida tanto para direitos civis e políticos (que podem ser relacionados aos conceitos de Shue de “direitos de segurança” e “liberdades”) quanto para direitos econômicos, sociais e culturais (que se encaixam na sua proposta de “direitos de subsistência”). O direito à segurança pessoal5, por exemplo, impõe ao Estado a obrigação de a. evitar violar a segurança pessoal de qualquer indivíduo; b. de proteger os indivíduos frente a violações por parte de outros particulares; e c. de ajudar aqueles cuja segurança pessoal tenha sido violada ou esteja exposta a isso. A obrigação “a” poderia ser ilustrada com a determinação para que o Estado adote medidas para assegurar que os seus agentes não inter5. Vide Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto n. 592/92, art. 9o. 66
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firam, fora das hipóteses da lei, na segurança pessoal dos indivíduos. A estruturação e funcionamento de um sistema de segurança pública eficiente para proteger a segurança individual poderia decorrer da obrigação “b”. Finalmente, o Estado teria ainda o dever de promover uma investigação séria sempre que alguém tiver o seu direito violado e, também, de garantir à vítima alguma forma de compensação, em virtude da obrigação “c”. O mesmo enfoque pode ser aplicado aos direitos econômicos, sociais e culturais. O direito à educação demanda, por exemplo, que o Estado: a. respeite a liberdade dos pais de escolher as escolas que seus filhos irão frequentar; b. proteja os indivíduos contra ações de outros particulares que possam ameaçar o seu direito à educação, como o aumento abusivo de preços das mensalidades escolares; e c. disponibilize um sistema público e gratuito de ensino, ou ofereça bolsa em instituições particulares, para aqueles que não possuem condições de arcar com os custos de sua própria educação. Fica claro, portanto, que ambas as categorias de direitos demandam uma atuação positiva do Estado a fim de serem plenamente realizadas, principalmente nos níveis secundário e terciário de deveres. Constitui uma simplificação inadequada sustentar que os direitos civis e políticos podem ser satisfeitos apenas pela legislação, assim como que os direitos econômicos, sociais e culturais sempre demandam um papel ativo por parte dos governos. Como demonstrado anteriormente, algumas vezes o Estado deve abster-se de praticar um determinado ato (no exemplo dado, evitar o cerceamento à liberdade de escolha da escola dos filhos) para prestar deferência a esta categoria de direitos, especialmente quando o nível primário de deveres é que está em foco. Sempre que se pretender comparar as obrigações do Estado em relação a essas duas categorias de direitos é fundamental garantir que o mesmo nível de deveres esteja sob análise. Concentrar-se no nível primário ao se examinar os direitos civis e políticos e, ao revés, no nível terciário quando são os direitos econômicos, sociais e culturais que estão 67
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em jogo é nada mais do que privilegiar, sob um precário disfarce, uma categoria de direitos em detrimento da outra. No entanto, isso é o que parecem fazer aqueles que se recusam a admitir a justiciabilidade dos direitos econômicos sociais e culturais. Afinal, problemas de legitimidade e competência dos tribunais para decidir sobre as obrigações do Estado nos níveis secundário e terciário não são exclusividade desta categoria de direitos, aparecendo igualmente para os direitos civis e políticos. Se ambas as categorias tiverem os seus correlativos deveres analisados no mesmo nível, as dificuldades de justiciabilidade serão comuns a ambas. A título ilustrativo, note-se o que ocorre em relação ao direito à segurança pessoal. Caso o Estado falhe em cumprir com o seu dever de proteger e, em razão disso, os indivíduos começam a ser afetados por atos de violência na sua vida cotidiana, como os tribunais podem resolver este problema sem considerar temas de políticas públicas? Se detentos estão cumprindo suas sentenças em penitenciárias superlotadas porque o Estado paralisou a construção de novos estabelecimentos e, nesse contexto, estão sujeitos a tratamento cruel, desumano ou degradante, como esta evidente violação do artigo 7o do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos pode ser remediada sem considerar questões de políticas públicas? Esse dilema, entretanto, está longe de ser insuperável. O fato de o Judiciário ter de avaliar a compatibilidade de políticas públicas a parâmetros legais não significa que ele terá de formular decisões nesta área e, assim, substituir o papel de governos eleitos. Como Paul Hunt assinala, com base na lição de Mureinik, “[...] A função das cortes não é a de anular uma decisão ilegal e substituí-la pela sua própria. [...] elas estariam revendo escolhas políticas, e não fazendo-as” (Hunt, 1996, p. 67). Trata-se, como se vê, de um juízo semelhante ao das decisões do STF brasileiro que apreciam a constitucionalidade das leis. Ao ditar a inconstitucionalidade de um determinado diploma normativo, a Corte retiralhe a eficácia, mas não edita uma nova lei para substituí-la – encargo primariamente atribuído ao Congresso Nacional. O mesmo vale para o campo das políticas públicas: um eventual juízo de inconstitucionalidade não levará o Judiciário a sobrepor-se ao Executivo, mas assegurará, 68
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sim, que as escolhas feitas no âmbito deste poder sejam compatíveis com o primado dos direitos humanos. Em suma: mesmo quando levantam questões de políticas públicas ou alocação de recursos, os direitos econômicos, sociais e culturais – o que inclui, por suposto, o direito à educação – deve ser plenamente passíveis de adjudicação. Esta é uma consequência inevitável do reconhecimento, pelo Estado brasileiro, do direito à educação como um direito humano.
Mecanismos Judiciais e Quase-judiciais de Proteção do Direito à Educação Fixadas as premissas para a justiciabilidade do direito à educação, vejamos agora quais são os mecanismos judiciais ou quase-judiciais6, tanto domésticos quanto internacionais, que podem ser acessados pelos titulares do direito. Ressalte-se que a análise a seguir não tem a pretensão de apresentar uma relação exaustiva desses mecanismos, mas apenas de traçar um panorama das principais vias de acesso para a reclamação do direito à educação.
Mecanismos Domésticos A maioria dos mecanismos disponíveis no direito brasileiro não são exclusivos para o direito à educação, sendo normalmente aplicáveis a direitos públicos subjetivos em geral. A única exceção talvez resida na ação judicial prevista no artigo 5o, § 3o, da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96), estabelece que: “Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo (cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público) tem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2o do art. 208 6. Por mecanismos “quase-judiciais” entendem-se aqueles que, embora dotados de competência para decidir sobre a aplicação do direito à educação, não têm poderes para fazer valer, por si só, a sua decisão, dependendo da colaboração de outro órgão ou do próprio Estado. 69
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da Constituição Federal7, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.” Dessa forma, o direito à educação pode ser protegido pelos seguintes mecanismos judiciais: a. mandado de segurança: previsto na Constituição Federal e regulamentado pela Lei n. 1.533/51, o mandado de segurança pode ser individual8 ou coletivo9 e destina-se a proteger qualquer direito “líquido e certo” (ou seja, que não demanda instrução probatória), não amparado por habeas corpus, sempre que alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la10; b. mandado de injunção: igualmente previsto na Constituição, o mandado de injunção aplica-se naquelas hipóteses em que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais11, como o direito à educação, tendo o Judiciário o papel de apontar a regulamentação aplicável até eventual edição da norma12;
7. Constituição Federal, art. 208: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I. ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II. progressiva universalização do ensino médio gratuito; III. atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV. educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V. acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI. oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII. atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1o O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2o O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3o Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.” 8. Ver Constituição Federal, art. 5o, LXIX. 9. Idem, art. 5o, LXX. 10. Cf. Lei n. 1.533/51, art. 1o. Caso o titular do direito seja criança ou adolescente, há também, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), previsão expressa da possibilidade de recurso ao mandado de segurança no Estatuto da Criança e do Adolescente. Vide Lei n. 8.069/90, art. 212, § 2o. 11. Cf. Constituição Federal, art. 5o, LXXI. 12. Há, pelo menos, um caso de mandado de injunção relacionado ao direito à educação 70
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c. ação popular: também de base constitucional, a ação popular tem por objetivo anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural13, podendo ser manejada por qualquer cidadão. Encontra-se regulamentada pela Lei n. 4.717/65; d. ação civil pública: embora prevista na Constituição Federal apenas entre as atribuições do Ministério Público14, como instrumento para a promoção de interesses difusos e coletivos, a Lei n. 7.347/85 ampliou a relação dos legitimados a propô-la, estendendo-a também às associações constituídas há mais de um ano15; e. ação direta de inconstitucionalidade: de competência originária do STF, a ação direta de inconstitucionalidade é regulamentada pela Lei n. 9.868/99 e destina-se a declarar a incompatibilidade de lei ou ato normativo federal ou estadual frente a dispositivos da Constituição16, incluindo aqueles atinentes ao direito à educação. No entanto, são poucos os entes legitimados a utilizá-la17, estando fora do alcance direto de cidadãos e da maioria das entidades da sociedade civil; f. arguição de descumprimento de preceito fundamental: a ADPF tem por objetivo evitar ou reparar lesão a “preceito fundamental”18, no STF. Trata-se do MI 727, impetrado por um estudante de pós-graduação que sustentava que a ausência de legislação federal garantindo aos estudantes o direito ao pagamento de meia passagem nos ônibus interestaduais prejudicava o seu acesso à educação. A Corte negou seguimento ao mandado, sob a alegação de que o texto constitucional não impunha ao Estado o dever de legislar sobre a concessão de benefícios aos estudantes nos meios de transporte interestaduais. Vide STF, MI 727, relator ministro Eros Grau, decisão monocrática de 4.10.2005. Disponível em http://www.stf.gov.br, acesso em 21 jun. 2008. 13. Cf. Constituição Federal, art. 5o, LXXIII. 14. Idem, art. 129, III. 15. Cf. Lei n. 7.347/85, art. 5o, V. 16. Cf. Constituição Federal, art. 102, I, “a”. 17. Idem, art. 103. 18. Nem a Constituição Federal nem a Lei n. 9.882/99 definem “preceito fundamental”, mas, como asseverou o ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da ADPF 33, “ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais” (entre eles o direito à educação). Vide STF, ADPF 33, relator 71
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resultante de ato do Poder Público, quando inexistir outro meio eficaz para sanar a violação19. É também de competência originária do STF20 e os legitimados a propô-la são os mesmos da ação direta de inconstitucionalidade21. Encontra-se regulamentada pela Lei n. 9.882/99; g. ação judicial da LDB: além das ações constitucionais acima elencadas, é importante ressaltar, como já mencionado, que a LDB prevê uma ação judicial, de rito sumário e gratuita, no caso de nãooferecimento do ensino obrigatório pelo poder público ou de sua oferta irregular. Apesar da amplitude desse mecanismo – que pode ser acessado por qualquer cidadão, dentre outros legitimados –, ele aparentemente tem sido pouco utilizado no Brasil. A par das ações judiciais acima apontadas, vale mencionar ainda a existência de mecanismos quase-judiciais previstos na legislação brasileira. Dentre eles, destacam-se: a. no âmbito geral, o direito de petição aos poderes púbicos, previsto no artigo 5o, XXXIV, “a”, da Constituição Federal como um instrumento para a “defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”, independentemente do pagamento de taxas; b. no âmbito específico da educação, o Conselho Nacional de Educação (e órgãos análogos instituídos no âmbito dos sistemas estaduais e municipais de ensino), com atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação, de forma a assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional22; c. no âmbito específico do direito à educação de crianças e adolescentes, os conselhos tutelares, que possuem competência para requisitar serviços públicos na área de educação, bem como para ministro Gilmar Mendes, acórdão de 7.12.2005. Disponível em http://www.stf.gov.br, acesso em 21 jun. 2008. 19. Cf. Lei n. 9.882/99, art. 4o, § 1o. 20. Cf. Constituição Federal, art. 102, § 1o. 21. Cf. Lei n. 9.882/99, art. 2o, I. 22. Cf. Lei n. 4.024/61, art. 7o, com a redação conferida pela Lei n. 9.131/95. 72
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representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento de suas deliberações23.
Mecanismos Internacionais Em vista do fato de o direito à educação ser reconhecido em instrumentos internacionais do qual o Estado brasileiro é parte, se o Judiciário local falhar em oferecer uma resposta efetiva a eventuais violações abrem-se as portas para recurso aos mecanismos internacionais. Esses mecanismos podem integrar o Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, estruturado junto à ONU; ou o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, estabelecido junto à OEA. Mecanismos do Sistema Global (ONU) No âmbito da ONU, é possível citar ao menos três importantes mecanismos que cumprem funções de proteção do direito à educação e aspectos a ele relacionados: a. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Cdesc): estabelecido pela Resolução do Conselho Econômico e Social 1985/17, é o órgão composto por experts independentes que monitora a implementação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, incluindo os seus artigos 13 e 14, voltados ao direito à educação. Diferentemente do que ocorre com o Comitê de Direitos Humanos (órgão encarregado de supervisionar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos), o Cdesc não tem competência para receber reclamações por parte de indivíduos, muito embora há muito se discuta a assinatura de um Protocolo Adicional ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais para superar essa limitação (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008b). Não obstante, o Comitê recebe informações por parte de organizações não-governamentais, as quais podem ser úteis quando da avaliação dos relatórios que os Estados são obrigados
23 Cf. Lei n. 8.069/90, art. 136, III. 73
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a apresentar periodicamente (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008d). b. Relator Especial para o Direito à Educação: “relator especial” é o título dado a indivíduos que atuam, em nome da ONU, com mandato conferido pelo seu Conselho de Direitos Humanos, para investigar, monitorar e sugerir soluções para problemas de direitos humanos. Desde 1998, há um relator rspecial para o Direito à Educação, que realiza visitas aos países, submete relatórios sobre temas específicos ao Conselho de Direitos Humanos e – o que é de especial relevo para os propósitos deste trabalho transmite comunicações aos Estados em vista de alegadas violações ao direito à educação, inclusive aquelas originárias de reclamações individuais (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008d); c. Ceart – Comitê de Experts sobre a Aplicação da Recomendação Referente ao Status dos Professores: o Ceart é o resultado de uma iniciativa conjunta da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e tem por objetivo supervisionar a implementação da Recomendação Referente ao Status dos Professores, adotada em 1966 e complementada em 1997 com a Recomendação Referente ao Status do Pessoal de Ensino da Educação Superior. O Comitê pode receber de associações nacionais e internacionais de professores denúncias de violações dos dispositivos da Recomendação (International Labour Organization, 2008a). Mecanismos do Sistema Interamericano (OEA) No domínio da OEA, é interessante destacar que a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, não apresenta um amplo catálogo de direitos econômicos, sociais e culturais, limitando-se a estabelecer o compromisso dos Estados-partes de “adotar providência, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e 74
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sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”24 (destaques acrescidos). Essa aparente lacuna foi suprida, no entanto, em 1988, com a adoção do Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de São Salvador”)25, que dedica um amplo artigo (13) ao direito à educação. Mais ainda: o Protocolo estabelece expressamente que o direito à educação pode ser objeto do sistema de reclamações individuais previsto na Convenção Americana, do qual participam a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, EUA, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja sede encontra-se em São José, Costa Rica26. Dessa forma, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou organização não-governamental pode apresentar reclamações27 sobre violações do direito à educação, tal como estabelecido no Protocolo Adicional, à Comissão Interamericana. Tem início então um processo que poderá resultar na divulgação de um relatório em que o órgão em geral torna pública a sua decisão e recomendações28; ou, ao revés, na submissão do caso à Corte Interamericana, na hipótese de o Estado envolvido ter reconhecido a jurisdição desta29 – o que é o caso do Brasil desde 1992, quando foi editado o Decreto n. 4.463. Nesta última situação, a Corte poderá determinar que seja assegurado à vítima a realização do direito violado, incluindo compensação pelos eventuais danos causados30. 24. Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678/92, art. 26. 25. Vide Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgada pelo Decreto n. 3.321/99. 26. Idem, art. 19 (6). 27. Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678/92, art. 44. 28. Idem, art. 51 (3). 29. Note-se que, na forma do art. 61 (1), da Convenção Americana, apenas os Estadospartes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à Corte, não se estendendo essa prerrogativa diretamente ao cidadão, grupo de cidadãos ou organização não-governamental. 30. Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678/92, art. 63 (1). 75
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A Aplicação Jurisprudencial do Direito à Educação Pois bem. Devidamente afirmada a justiciabilidade do direito à educação e apresentado um panorama geral dos mecanismos domésticos e internacionais para fazer valer essa prerrogativa, resta ver como, na prática, os órgãos encarregados de sua implementação têm atuado. No domínio interno, optou-se por centrar foco em um desses órgãos: o STF, que desempenha o nobre papel de Corte Constitucional brasileira. A escolha deveu-se, de um lado, aos estreitos limites deste trabalho e, de outro, ao impacto que as decisões do STF, como órgão de cúpula do Judiciário, exercem sobre todos os demais tribunais e juízes do país. Já na esfera internacional, buscou-se apontar os pronunciamentos dos órgãos da ONU e da OEA mencionados na seção anterior que digam respeito especificamente ao direito à educação no Brasil, não tendo sido consideradas as decisões que tratem dessa prerrogativa de forma genérica ou vinculada a outras realidades nacionais.
A Jurisprudência do STF após a Constituição de 1988 A fim de identificar a jurisprudência da Corte acerca do direito à educação, procedeu-se a uma intensa pesquisa nos acórdãos disponibilizados no portal eletrônico do STF na internet31, com base nos mecanismos de busca ali disponíveis. Tendo em vista as naturais limitações desse método, os resultados abaixo apresentados não têm a pretensão de constituir um levantamento exaustivo das decisões da Corte, embora ofereçam um material certamente representativo das posições por ela adotadas. Esclareça-se que, para esta pesquisa, foram selecionados tão-somente acórdãos, ficando de fora as decisões monocráticas adotadas pelos ministros do STF. Do mesmo modo, optou-se por promover um recorte temporal, incluindo-se apenas as decisões proferidas a partir da data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Com base nesses parâmetros, foram então localizados 33 acórdãos, conforme a Tabela 1. 31. Site: http://www.stf.gov.br. 76
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Tabela 1. Acórdãos selecionados Processo n.
Tipo
Ano 1989
1
51
2
319
3
155.772
Ação direta de inconstitucionalidade Questão de ordem na ação direta de inconstitucionalidade Agravo regimental no agravo de instrumento
4
1.042
Ação direta de inconstitucionalidade
1994
5
1.511
Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade
1996
6
22.111
Recurso ordinário em mandado de segurança
1996
7
123
Ação direta de inconstitucionalidade
1997
8
490
Ação direta de inconstitucionalidade
1997
9
640
Ação direta de inconstitucionalidade
1997
10
163.231
Recurso extraordinário
1997
11
578
Ação direta de inconstitucionalidade
1999
12
606
Ação direta de inconstitucionalidade
1999
13
1.749
Ação direta de inconstitucionalidade
1999
14
241.757
Ação direta de inconstitucionalidade
1999
15
2.667
Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade
2002
16
2.316
Agravo regimental na petição
2003
17
2.643
Ação direta de inconstitucionalidade
2003
18
2.806
Ação direta de inconstitucionalidade
2003
19
2.997
Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade
2003
20
3.324
Ação direta de inconstitucionalidade
2004
21
1.007
Ação direta de inconstitucionalidade
2005
22
1.950
Ação direta de inconstitucionalidade
2005
23
3.098
Ação direta de inconstitucionalidade
2005
24
362.074
Agravo regimental no recurso extraordinário
2005
25
410.715
Agravo regimental no recurso extraordinário
2005
26
436.210
Agravo regimental no recurso extraordinário
2005
27
436.996
Agravo regimental no recurso extraordinário
2005
28
3.512
Ação direta de inconstitucionalidade
2006
29
465.066
Agravo regimental no recurso extraordinário
2006
30
820
Ação direta de inconstitucionalidade
2007
31
845
Ação direta de inconstitucionalidade
2007
32
3.669
Ação direta de inconstitucionalidade
2007
33
384.201
Agravo regimental no recurso extraordinário
2007
1993 1993
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Do total de acórdãos, 14 (42%) foram proferidos na década de 1990 e 19 (58%), já nos anos 2000 (58%); nada menos do que 13 (39%) dos acórdãos foram adotados entre 2005 e 2008 apenas. Esses dados sugerem que a jurisprudência do STF acerca do direito à educação é não apenas relativamente incipiente, quando analisada à luz do grande volume de casos julgados anualmente pela Corte, como recente. Gráfico 1. Número de acórdãos por ano
No que se refere ao tipo de processo em que proferidas as decisões, tem-se a seguinte distribuição: Tabela 2. Tipo de processo em que proferidos os acórdãos Tipo
Quantidade
Percentual
Ação direta de inconstitucionalidade
19
58%
Agravo regimental no recurso extraordinário
6
18%
Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade
3
9%
Agravo regimental na petição
1
3%
Agravo regimental no agravo de instrumento
1
3%
Questão de ordem na ação direta de inconstitucionalidade
1
3%
Recurso extraordinário
1
3%
Recurso ordinário em mandado de segurança
1
3%
Observa-se que grande maioria dos acórdãos (dezenove) foram proferidos no âmbito de ações direta de inconstitucionalidade. Quando consideradas também as decisões adotadas no julgamento de medidas cautelares e questões de ordem nas ações diretas de inconstitucionalidade, esse percentual salta para 23 (70%), evidenciando que os acórdãos do STF em relação ao direito à educação estão sendo proferidos, funda78
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mentalmente, no exercício do controle concentrado da constitucionalidade de leis a atos normativos, sendo residuais as decisões tomadas como tribunal revisor de julgados de instâncias inferiores. Finalmente, no que toca à temática central discutida em cada um desses acórdãos, a distribuição constatada foi a seguinte: Tabela 3. Temáticas centrais discutidas nos acórdãos Temática
N. de decisões
Processos n.
Eleição direta para escolha de dirigentes de instituições públicas de ensino
7 (21%)
51, 123, 490, 578, 606, 640 e 2.997
Mensalidades de escolas particulares
6 (18%)
Direito de atendimento em creche e préescola a crianças de 0 a 6 anos
5 (15%)
Repartição de competências
5 (15%)
1.749, 2.316, 2.667, 3.098 e 3.669
Transferência de alunos da universidade privada para a pública
2 (6%)
3.324 e 362.074
Adequação do calendário escolar aos dias de guarda das diferentes religiões
1 (3%)
2.806
Autonomia universitária
1 (3%)
1.511
Dever do Estado de assegurar acesso à cultura como decorrência do direito à educação
1 (3%)
1.950
Direito à meia-passagem a estudantes nos transportes coletivos
1 (3%)
845
Isenção da taxa de inscrição para vestibular
1 (3%)
2.643
Legitimidade da função regulatória do Estado
1 (3%)
22.111
Oferecimento de ensino obrigatório a pessoas portadoras de deficiência
1 (3%)
241.757
Vinculação de recursos à educação
1 (3%)
820
319, 1.007, 1.042, 3.512, 155.772 e 163.231 410.715, 436.996, 463.210, 465.066, 384.201
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Como se nota, a temática em que se encontrou o maior número de pronunciamentos do STF é a referente à eleição direta para a escolha de dirigentes de instituições públicas de ensino, estabelecida em leis estaduais. A Corte tem derrubado esse tipo de previsão, sob o argumento que é da competência privativa do Chefe do Poder Executivo o provimento de cargos em comissão em escolas públicas. Em relação à segunda das temáticas mais presentes, a das mensalidades das escolas particulares, o STF declarou a constitucionalidade da fixação de critérios para o reajuste das mensalidades em três acórdãos (processos n. 319, 3.512 e 155.772), desde que isso seja feito pela União, e não pelos Estados (cf. processos n. 1.007 e 1.042). Ademais, assentou a competência do Ministério Púbico para, por via de ação civil pública, impugnar mensalidades abusivas ou ilegais (cf. processo n. 163.231). No que se refere ao direito de atendimento em creche e pré-escola, trata-se da temática em que a Corte melhor adentrou na análise do sentido e alcance do direito à educação, com destaque às decisões proferidas nos processos n. 410.715 e 436.996 em que se firmou que “a educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental”, razão pela qual [...] embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas na própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
A competência do Judiciário para proteger o direito à educação, diante da omissão do Executivo, foi também afirmada nos processos n. 384.201, 463.210 e 465.066.
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Tendo em vista que tanto a União quanto os estados e o Distrito Federal têm competência para legislar sobre educação32, cabendo à primeira a edição de “normas gerais” e aos demais a elaboração de legislação “suplementar”33, e que a fronteira que separa essas dois domínios nem sempre é de fácil identificação, não surpreende averiguar que a temática da repartição de competências entre as unidades federadas tenha também ocupado a Corte em cinco decisões (processos n. 1.749, 2.316, 2.667, 3.098 e 3.669). A quinta das temáticas mais presentes na jurisprudência do STF corresponde à da transferência de alunos de universidade privada para a pública. A Corte teve a oportunidade de declarar inconstitucional uma leitura da LDB que permita essa passagem, sob o argumento de que é fundamental garantir-se a “congeneridade das instituições envolvidas” (processos n. 3.324 e 362.074). Por fim, constatou-se a existência de ao menos uma decisão para os seguintes assuntos: adequação do calendário escolar aos dias de guarda das diferentes religiões, o qual está fora da alçada dos estados (processo n. 2.806); autonomia universitária, da qual, segundo o STF, não decorre a inconstitucionalidade da lei que institui o “provão” como instrumento de avaliação das universidades (processo n. 1.511); dever do Estado de assegurar acesso à cultura, razão pela qual declarou constitucional lei que assegura meia-entrada aos estudantes matriculados em estabelecimentos de ensino (processo n. 1.950); direito à meia-passagem a estudantes nos transportes coletivos, cuja constitucionalidade foi igualmente reconhecida pela Corte (processo n. 845); isenção da taxa de inscrição para o vestibular, passível de ser instituída pelos Estados (processo n. 2.643); legitimidade da função regulatória do Estado, pois embora o ensino seja livre à iniciativa privada, é necessário que sejam atendidas certas condições (processo n. 22.111); oferecimento de ensino obrigatório a pessoas portadoras de deficiência, cujo descumprimento enseja a responsabilidade da autoridade competente (processo n. 241.757); e
32. Cf. Constituição Federal, art. 24, IX. 33. Idem, art. 24, § 1o e 2o. 81
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vinculação de recursos à educação, tendo o STF declarado inconstitucional a determinação de aplicação de parte dos recursos destinados à educação na “manutenção e conservação das escolas públicas estaduais”, em vista da vedação constante do artigo 167, IV, do texto constitucional (processo n. 820).
A Jurisprudência dos Órgãos Internacionais em Relação ao Brasil Se na jurisprudência interna as manifestações relacionadas ao direito humano à educação ainda são escassas – ao menos no que se refere ao STF –, o case law internacional é ainda menor em relação ao Brasil. Particularmente no âmbito Cdesc, essa constatação não surpreende. Afinal, como ressaltado acima, ainda hoje o órgão não detém competência para receber demandas individuais de violação a direitos econômicos, sociais ou culturais. Por essa razão, a principal oportunidade que possui para se manifestar sobre o tema é quando da análise dos relatórios periódicos dos Estados membros (country reports). No caso do Brasil, isso ocorreu em uma única oportunidade, até agora. Foi no ano de 2003, quando o Comitê analisou o relatório inicial do Brasil em relação à implementação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Em suas conclusões (concluding observations), no que se relaciona especificamente ao direito à educação, o Cdesc enfatizou como positiva a aprovação da Emenda Constitucional n. 14 – que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e, assim, reorganizou o sistema de ensino fundamental e vinculou mais recursos à educação – bem como a criação de um relator especial independente para o direito à educação (United Nations Economic and Social Council, 2003, parágrafos 11-12). Entretanto, manifestou preocupação em relação à inexistência, na prática, de mecanismos efetivos (judiciais ou extrajudiciais) para assegurar a prevalência de direitos econômicos, sociais e culturais, e com a elevada taxa de analfabetismo então informada ao órgão, de 13,3% da população no ano de 1999 (United Nations Economic and Social Council, 2003: parágrafo 18 e 39). Dessa forma, solicitou ao Brasil que adote medidas para combater o analfabetismo e que informe, em seu próximo relatório ao Comitê, as providências 82
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adotadas e os resultados obtidos (United Nations Economic and Social Council, 2003, parágrafo 63)34. De outra parte, no que se relaciona à atuação do relator especial da ONU para o Direito à Educação, não foi possível identificar medidas dirigidas especificamente ao Brasil. É certo que providências adotadas em relação a eventuais demandas individuais são mantidas sob confidencialidade até serem incluídas no relatório anual que o expert apresenta ao Conselho de Direitos Humanos da ONU (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008d) – razão pela qual não se pode descartar a hipótese de que o relator tenha adotado ações em relação ao governo brasileiro que ainda não foram publicizadas –; no entanto, nos casos já tornados públicos não se visualizou nenhum relativo ao Brasil. Apesar disso, cumpre esclarecer a existência de menções ao Brasil em, pelo menos, duas manifestações do relator especial. A primeira foi no relatório apresentado em 2004 à extinta Comissão de Direitos da ONU, em que se destacou que o Brasil, juntamente com alguns outros países, tinha feito grande progresso na realização do direito à educação de meninas (United Nations Economic and Social Council, 2004, parágrafo 37). A segunda refere-se às respostas a um questionário formulado pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos em 2007, quando, indagado sobre boas práticas de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância, o relator citou o processo iniciado com a emenda feita à LDB pela Lei n. 10.639/03, que incluiu no currículo escolar o ensino da histórica e da cultura africana e afro-brasileira – posteriormente ampliado para abranger também a história e cultura dos povos indígenas (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, 2008a). Até o presente momento, o relator especial para o Direito à Educação não fez nenhuma visita oficial ao Brasil, à diferença de diversos outros relatores da ONU, como o relator sobre a tortura ou o relator sobre 34. Registre-se que o Estado brasileiro já apresentou o seu segundo relatório periódico, no ano de 2007, motivo pelo qual em breve o Cdesc deve publicar as suas novas constatações e recomendações em relação ao país. 83
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execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias. No entanto, vale consignar que a professora Karatina Tomasevki, quando exercia a função de relatora especial para o Direito à Educação, esteve no Brasil no ano de 2003 para participar, entre outras atividades, do Fórum Mundial da Educação (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, 2008); não foi possível localizar, contudo, nenhum registro oficial desta visita no âmbito da ONU. Ainda no âmbito do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, no que diz respeito ao terceiro dos mecanismos apontados na seção precedente – o Ceart –, cumpre esclarecer que os relatórios disponibilizados pelo órgão tampouco registram o processamento de denúncias envolvendo o Estado brasileiro (International Labour Organization, 2008b). No Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos, a realidade não se distancia muito daquela em nível global. Isso porque não se localizou nem um único caso brasileiro, tanto na Comissão quanto na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que abordem de forma específica ou mais aprofundada o direito à educação. O máximo que se logrou identificar foram cinco decisões da Comissão em que a temática foi tangenciada. A primeira e mais antiga delas deu-se, em 1985, no caso dos índios Yanomami (Resolução n. 7.615), em que os peticionários alegaram, entre outras ofensas, violação do direito à educação tal como consagrado pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Em sua decisão, a Comissão recomendou ao Brasil que os programas educacionais “[...] sejam levados a cabo em consulta com a população indígena afetada e com a assessoria de competente pessoal científico, médico e antropológico”. A segunda oportunidade ocorreu em 2002, quando a Comissão declarou a admissibilidade do caso “Adolescentes em Custódia da Febem” (Informe n. 39/02), fundada em violações de diversos direitos humanos, dentre os quais o direito à educação previsto no art. 13 do Protocolo de São Salvador. Embora tenha considerado prima facie que os fatos apresentados podem efetivamente caracterizar esse ilícito, até o presente a Comissão não se pronunciou sobre o mérito do caso. 84
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Além disso, em 2006 houve, perante a Comissão, um acordo de solução amistosa para o caso “Meninos Emasculados do Maranhão” (Informe n. 43/06) em que o Estado brasileiro comprometeu-se a adotar diversas providências para melhorar a atenção escolar destinada às crianças e adolescentes da região metropolitana de São Luís, bem como a utilização do ambiente escolar para atividades desportivas e culturais. Naquele mesmo ano, a Comissão declarou admissível o caso “Membros da Comunidade Indígena de Ananas e Outros” (Informe n. 80/06), fundamentado também em possível violação do direito à educação. Paralelamente a essa quatro decisões, adotadas no exame de demandas litigiosas, a Comissão abordou o tema em seu relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, de 1997. O fez ao notar a situação “grave” em que se encontrava a educação no país, eis que mais de três milhões de crianças estavam fora da escola em 1992, e a distorção em favor das classes mais ricas nos gastos sociais realizados pelo governo (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1997, capítulo II). Ademais, alertou para violações específicas cometidas em relação a grupos mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, povos indígenas, mulheres e outros grupos vítimas de discriminação racial (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1997, capítulos V, VI, VIII e IX). Esse rápido retrato da jurisprudência internacional permite concluir que questões relacionadas ao direito à educação no Brasil não têm ocupado um lugar proeminente na atuação dos órgãos responsáveis pelo monitoramento da situação dos direitos humanos no país. É impossível investigar, nos estreitos limites deste trabalho, as causas por trás dessa realidade, mas não se pode deixar de aventar que, possivelmente, ela se deve a uma baixa litigiosidade em questões relacionadas ao direito à educação ou, o que é mais provável, a um conhecimento ainda incipiente das possibilidades abertas pelos mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos.
Conclusão O presente trabalho buscou demonstrar que o direito à educação, a exemplo dos demais direitos humanos (civis, políticos, econômicos, 85
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sociais ou culturais), é perfeitamente passível de adjudicação pelo Judiciário. Afinal, ao contrário do que se costuma afirmar, dele nem sempre decorre a necessidade de atuações positivas por parte do Estado e, mesmo quando isso acontece, os tribunais têm como assegurar a proteção do direito sem invadir o terreno próprio dos poderes Executivo ou Legislativo. Ademais, procurou-se evidenciar como os cidadãos brasileiros e demais indivíduos residentes no país têm à disposição uma série de mecanismos judiciais ou quase-judiciais nos casos de ameaça ou de violação ao direito à educação, tanto na esfera doméstica quanto internacional. Finalmente, este trabalho tratou de investigar como órgãos com competência para servir como guardião do direito à educação têm lidado com o assunto. Nesse sentido, demonstrou-se que a jurisprudência do STF, desde o advento da Constituição Federal de 1988, ainda é relativamente incipiente e recente, constituindo-se precipuamente de decisões proferidas no âmbito de processos de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos (ações diretas de inconstitucionalidade). Ademais, foram indicadas as temáticas relacionadas ao direito à educação que, até aqui, dominaram o debate na Corte – que, de modo geral, tem adotado uma interpretação favorável à efetivação do direito nos casos que lhe são submetidos. De outra borda, demonstrou-se que a temática do direito à educação no Brasil ainda não foi abordada, de modo específico ou mais aprofundado, pelos órgãos internacionais de monitoramento. Pode-se concluir, assim, que o Judiciário tem um papel relevantíssimo na promoção e proteção do direito à educação, principalmente nos casos em que o Executivo ou o Legislativo omitem-se no cumprimento de seus deveres; e que o Brasil dispõe de mecanismos que permitem, ainda que de forma não plenamente satisfatória, o exercício dessa atribuição. A jurisprudência do STF, ainda que em estágio inicial, comprova essa assertiva. Além disso, há uma plêiade de mecanismos internacionais que podem ser acionados quando os tribunais deixarem de cumprir o seu papel, apesar de esse recurso aparentemente ainda não estar sendo plenamente explorado. De qualquer modo, é importante lembrar que todas essas instâncias – e, em especial, o Judiciário – funcionam por meio do impulso dos 86
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atores legitimados a provocá-lo. A ampliação e qualificação de seu papel passam, portanto, não apenas por uma crescente capacitação dos juízes ou membros que as compõem, mas também por uma tomada de consciência, por parte daqueles atores – dentre os quais incluem-se os cidadãos e as organizações não-governamentais –, para as oportunidades abertas pelos mecanismos judiciais e quase-judiciais disponíveis.
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to the questionnaire prepared by the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, pursuant to decision PC.1/10 of the Preparatory Committee of the Durban Review. UN DOC A/CONF.211/PC.2/8. _____. 2008b. Fact sheet n. 16 (Rev. 1), The Committee on Economic, Social and Cultural Rights [on line]. Disponível em http://www.ohchr.org/Documents/ Publications/FactSheet16rev.1en.pdf, acesso em 21 jun. 2008. _____. 2008c. Human Rights in Development [on line]. Disponível em http:// www.unhchr.ch/ development/approaches-07.html, acesso em 17 jun. 2008. _____. 2008d. Special Rapporteur on the Right to Education [on line]. Disponível em http://www2.ohchr.org/english/issues/education/rapporteur/index.htm, acesso em 21 jun. 2008 OSMANI, Siddiq; NOWAK, Manfred & HUNT, Paul. 2008. Human Rights and Poverty Reductions Strategies – A Discussion Paper [on line]. Disponível em http:// www.fao.org/righttofood/kc/downloads/vl/docs/AH177.doc, acesso em 17 jun. 2008. ROBINSON, Mary. 2008. Bridging the Gap Between Human Rights and Development: From Normative Principles to Operational Relevance [on line]. Disponível em http:// www.unhchr.ch/huricane/huricane.nsf/view01/2DA59 CD3FFC033DCC1256B1A0033F7C3?opendocument, acesso em 17 jun. 2008. SHEININ, Martin. 2001. “Economic and Social Rights as Legal Rights”. In EIDE, Asbjørn; KRAUSE, Catarina & ROSAS, Allan. Economic, Social and Cultural Rights: a Textbook, 2. ed. Haia, Kluwer Law International, pp. 29-54. SHUE, Henry. 1996. Basic Rights – Subsistence, Affluence and US Foreign Policy, 2. ed. Princeton, Princeton University Press. UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL. 2003. Concluding Observations of the Committee on Economic, Social and Cultural Rights: Brazil. 23/05/2003. UN DOC E/C.12/1/Add.87. _____. 2004. Economic, Social and Cultural Rights – The Right to Education – Report submitted by the Special Rapporteur on the Right to Education, Mr. Vernor Muñoz Villalobos. UN DOC E/CN.4/2005/50.
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O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: do Direito à Liberdade de Crença e Culto ao Direito à Prestação Estatal Positiva Salomão Barros Ximenes
Introdução Neste artigo procuramos analisar a previsão constitucional de oferta de ensino religioso nas escolas públicas e sua regulamentação infraconstitucional, apontando as principais questões daí advindas. Vale adiantar que, no caso do ensino religioso, a resposta a muitas das questões não respondidas no âmbito federal encontra-se nos sistemas estaduais e municipais de ensino, uma vez que a atual redação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n. 9.394/1996 delega a essas esferas da federação competência absoluta para dispor sobre os conteúdos e a forma de implementação da disciplina. Ressalte-se que este é o único exemplo de conteúdo curricular obrigatório cujas diretrizes não são estabelecidas pela União, que, com essa postura, não exercita a competência legislativa do art. 22, inciso XXIV da Constituição1. Essa situação levou a regulamentações muito distintas no âmbito dos estados e muni-
1. Constituição Federal de 1988, art. 22, XXIV: “Compete privativamente à União legislar sobre: [...] XXIV – diretrizes e bases da educação nacional”. 89
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cípios, sendo que um bom exemplo se verifica na divergência de concepções entre os sistemas estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo2. O mundo jurídico é parte do mundo social e político, por esse motivo, muitas das explicações para as opções dos legisladores e tribunais não devem ser procuradas unicamente nos códigos e na Constituição. Tendo isso em mente, começamos o artigo com uma rápida revisão das formas de previsão do ensino religioso no constitucionalismo brasileiro, com a qual veremos que este tema sempre esteve associado às definições sobre a própria configuração de nosso Estado. Atualmente, a já mencionada delegação aos sistemas estaduais e locais de ensino, ao tempo que multiplica os espaços de decisão sobre os conteúdos e as formas de implementação, inviabiliza a constituição, neste tema específico, de conteúdos mínimos referentes a uma base curricular comum. Também remete a milhares de sistemas de ensino o embate histórico em torno da secularização do Estado, o qual, muito mais que na declaração formal de separação entre este e a igreja, expressa-se nos debates cotidianos dos valores que animam a vida pública. Sobre isso, o recente julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI n. 35103, proposta pelo Procurador-Geral da República contra a Lei n. 11.105/2005, que dispõe sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias, na qual atuou como Amicus Curiae a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); representou, sem dúvidas, uma vitória da razão laica frente a Igreja Católica. É justamente nos campos da sexualidade e da reprodução (temas a serem obrigatoriamente trabalhados nas escolas) que têm se apresentado os maiores confrontos públicos entre setores laicos e setores religiosos. Temas caros à cidadania como o aborto e união civil de pessoas do mesmo sexo são inconciliáveis com os dogmas religiosos, razão pela qual estudiosos como Flávia Piovesan, defendem o Estado laico como “garantia essencial para o exercício dos direitos humanos” (2006, p. 20),
2. Para um aprofundamento da questão da distinta e por vezes contraditória regulamentação do ensino religioso nos sistemas estaduais consultar: Luiz Antônio Cunha, Autonomização do Campo Educacional: Efeitos do e no Ensino Religioso. Disponível em http:// www.luizantonio.cunha.nom.br/. 3. Supremo Tribunal Federal – STF, ADI n. 3510. 90
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o que se mostra compatível com o exercício do direito fundamental à liberdade de crença e culto: Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabilizam qualquer projeto de uma sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não tem o direito de pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico (Piovesan, 2005, p. 20).
No entanto, analisando o atual contexto, a autora identifica movimentos contrários: “se de um lado o Estado contemporâneo busca separar-se da religião, esta, por sua vez, busca adentrar os domínios do Estado” (Piovesan, 2005, p. 20). Como concluímos ao final desse texto, o ensino religioso na Constituição Federal de 1988 e, principalmente, a partir de sua regulamentação na Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997 que alterou a redação original da LDB, representam indubitavelmente este esforço de adentrar o domínio da esfera pública estatal, inclusive com o direcionamento de recursos públicos para sua oferta. Feitas essas considerações, poderíamos perfeitamente concluir nosso estudo declarando a completa incompatibilidade entre a natureza laica do Estado brasileiro e a oferta obrigatória de ensino religioso nas escolas públicas estatais. Contudo, apesar de plenamente defensável, tal postura em nada contribuiria com o conhecimento adequado do problema: do ponto de vista jurídico, além de um direito de liberdade, relacionado ao direito fundamental a professar e difundir crença e culto religioso, o ensino religioso configura-se hoje no Brasil como um direito público subjetivo, encontrando-se em acelerado estágio de expansão e implementação nas escolas do país. Por isso, os problemas realmente colocados dizem respeito à compatibilização, nas leis e nas políticas públicas, dos preceitos constitucionais já mencionados, ou seja, cabe perguntar se existe um modelo de implementação do ensino religioso que se adeque ao caráter laico do Estado e que respeite a diversidade de conteúdos curriculares, opiniões políticas e crenças religiosas existentes na escola pública. Neste artigo 91
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não pretendemos abarcar tal magnitude de problemas, mas esperamos contribuir com a compreensão dos desafios que nos são colocados, retomando a origem dos institutos no constitucionalismo brasileiro e procurando interpretá-los no atual contexto jurídico.
O Direito à Educação e o Ensino Religioso no Constitucionalismo Brasileiro Em seu estudo sobre os reflexos da laicidade estatal e da liberdade religiosa na jurisdição constitucional brasileira, Letícia Martel ressalta “que ao longo da história republicana a relação entre o ensino e a laicidade estatal foi uma polêmica constante” (2007, p. 22), sendo que “um dos grandes objetos de disputa foi e continua sendo a oferta da disciplina de ensino religioso, de matrícula facultativa, no ensino público fundamental, prevista por sucessivas Constituições, inclusive a vigente” (Martel, 2007, p. 23). A Constituição do Império de 1824, seguindo a tradição do período colonial, não deixava margem de dúvida quanto ao caráter confessional do Estado: “Art. 5o A religião catholica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de Templo”. Não havia disposição específica sobre ensino religioso, tampouco sua ausência poderia ser notada, uma vez que o direito à educação de então, como assinala Marcos Augusto Maliska, era “fortemente caracterizado pela participação da Igreja Católica no processo de educação do povo” (2001, p. 22). Ou seja, a omissão não se devia a pouca importância dada ao tema, mas sim ao fato inconteste que educação era sinônimo de educação religiosa. Maliska também ressalta, em relação à Constituição Imperial de 1824, certa tendência à incorporação em nosso sistema jurídico do ideário advindo da Revolução Francesa, com a positivação dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros. Tal influência, quando mesclada a um regime monárquico conservador, acabou por produzir “alguns extremos que, em essência, são inconciliáveis, como liberdade e escravidão, unicidade religiosa e garantia das demais religiões” (2001, p. 22). 92
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Apesar desses primeiros traços de liberalismo, foi somente com a conquista da República que o debate sobre o Estado laico ganhou relevo no Brasil, com o consequente reflexo na esfera do ensino. Efetivamente, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 dispunha: “Art. 72 [...] Parágrafo 6o Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. Com este dispositivo, o ensino religioso nas escolas públicas foi suprimido durante as quatro primeiras décadas da República. Para substituir a disciplina religiosa, foi introduzida a educação moral e cívica. Ao comentar a questão do ensino religioso, Aristides Milton apresenta uma leitura de época plenamente aplicável aos dias presentes, afirmando: Sobreleva acrescentar – que é dever dos pais e das mães de família, e ao mesmo tempo compete aos clérigos de cada confissão, dar ao ensino religioso a quantos estão sob seus cuidados, ou procuram sinceramente obtê-lo; visto que o civil e o eclesiástico têm suas espheras distintas e delimitadas. E assim como ensinar a sciencia incumbe aos instituidores, ensinar a religião pertence aos padres, que aliás no lar encontram – regra geral – auxiliares preciosas e sinceras. [...] A sciencia se funda na experimentação, ao passo que a religião apóia-se na revelação e no milagre. Não é justo, pois, confundi-las; e daih logicamente procede a escola chamada leiga, que nossa Constituição adoptou, e opõe-se à escola religiosa ou confessional (Milton, 1898, pp. 382-383).
No entanto, a laicização do ensino público não passou ao largo das pressões dos setores católicos. Estas iniciaram-se logo da publicação da carta republicana, sendo que entre 1891 e 1931 vivenciamos um grande embate entre os setores laicos e o campo católico, com vitória deste último. É o que registra Carlos Roberto Jamil Cury, em texto no qual aborda a recorrência histórica desse enfrentamento em torno do ensino religioso e destaca a singularidade histórica da Constituição de 1891: Entretanto, desde a proibição do ensino religioso nas escolas oficiais em 1891, a Igreja católica se empenhou no restabelecimento desta disciplina ora no âmbito dos estados, ora no âmbito nacional, sobretudo por ocasião de mudanças constitucionais. [...] bem-sucedida por ocasião da reforma educacional do ministro Francisco Campos na década de 1930, a disciplina retornou às escolas públicas através de decreto. 93
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Com efeito, o ensino religioso aparece em todas as constituições federais desde 1934, sob a figura de matrícula facultativa. Mas é importante ressalvar que, desde o decreto sobre o ensino religioso de 1931 até hoje, tal disciplina sempre foi caracterizada como de matrícula facultativa para uma oferta obrigatória, embora sob as leis orgânicas do Estado Novo até 1946 ela também fosse de oferta facultativa (Cury, 2004, pp. 14-15). É importante ter em mente que vivenciávamos (como atualmente) um momento de expansão do ensino público, sobretudo nos estados mais ricos da federação, que tirava a escola pública de uma situação de inexistência prática e a colocava no centro dos debates nacionais, animados por diferentes vertentes ideológicas e posições políticas de atores sociais descontentes com a política da Velha República – trabalhadores fabris, intelectuais urbanos, artistas modernistas, militares insurgentes etc. Luiz Antônio Cunha registra a posição ativa da hegemonia católica nesse cenário, colocando-se ao lado do status quo: [...] a militância católica, organizada sob a liderança do cardeal Sebastião Leme e de um verdadeiro aparato de produção e difusão ideológica, logrou situarse, no campo político, como solução eficaz para a produção da ordem, ameaçada, primeiro, pelos movimentos dos trabalhadores dos anos de 1910, depois, pelas insurreições militares dos anos de 1920 (Cunha, 2007, p. 287).
Com isso, obtém os primeiros avanços institucionais no campo do ensino religioso e da atenuação da laicidade estatal. Foi no Estado de Minas Gerais, tradicional beneficiário do regime, onde a Igreja Católica conseguiu progredir na transgressão da norma constitucional: “Em 1928, o presidente mineiro Antônio Carlos de Andrada autorizou, por decreto, o ensino do catecismo nas escolas mantidas pelo governo estadual, uma vez por semana, dentro do horário normal de aulas” (Cunha, 2007, p. 288) – estava aberto o caminho para a retomada do ensino religioso nas escolas do país. Finalmente, em 30 de abril de 1931 é estabelecido o Decreto n. 19.941, o qual facultava o oferecimento, “nos estabelecimentos públicos de ensino primário (no Rio de Janeiro), secundário e normal, da instrução religiosa. Não obrigava, mas facultava a oferta desse ensino” (Cunha, idem). 94
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O passo seguinte seria sua obrigatoriedade, com o caráter facultativo da frequência matrícula. A Constituição de 1934 rompe definitivamente com o ensino laico, dispondo sobre o ensino religioso em termos que se repetiriam até a atualidade: “Art. 153: O ensino religioso será de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituirá matéria dos horários nas escolas publicas primarias, secundarias, profissionais e normais” (grifo nosso). Vale ressaltar que a é justamente a Constituição de 1934, que pela primeira vez no país, sob influência da tradição constitucional alemã, eleva o direito à educação à “categoria de direito subjetivo público” (Maliska, 2001, p. 26), além de construir a estrutura do direito constitucional à educação que hoje conhecemos: declaração de direitos, atribuições dos entes federados, vinculação de recursos ao ensino, papel normativo do Conselho Nacional de Educação, previsão de um Plano Nacional de Educação e, como já mencionado, ensino religioso obrigatório nas escolas públicas, sendo a frequência facultativa. No entanto, com o advento do Estado Novo e de um novo texto constitucional – a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, o ensino religioso passa a ser facultativo, ficando adstrito às escolas primárias: “Art. 113: O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos” (grifo nosso). Por outro lado, parecendo retomar a educação moral e cívica da Primeira República, em substituição ao ensino religioso obrigatório, a nova Constituição de 1937 estabeleceu a “obrigatoriedade do ensino cívico, ao lado da educação física e dos trabalhos manuais, em todas as escolas primárias, normais e secundárias, públicas e privadas” (Cunha, 2007, p. 290). Sob o signo do ideário fascista, seu objetivo maior era fomentar o espírito patriótico e o desenvolver histórico do povo brasileiro, fortalecendo a unidade nacional. Tratava-se de difundir um novo culto, em substituição a Deus entrava “o culto ao regime e à pessoa do ditador” (Herkenhoff, 1987, p. 41). O direito subjetivo público à educação é banido, sendo que o texto de 1937 incorpora o ensino no capítulo dedicado à família, “prioriza a 95
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escola particular como mecanismo de efetivação do direito do cidadão à educação, não a mencionando como um dever do Estado, ao qual é reservado um papel subsidiário nesta tarefa, revelando uma concepção privatista” (Oliveira, 1995, p. 78). Até aqui, é importante notar que parece haver um pêndulo no qual de um lado se coloca o fortalecimento do ensino religioso na escola pública e de outro o fortalecimento da função privada na educação, ou seja, quanto mais importante se torna a escola pública na promoção do ensino, mais pressão o Estado sofre para garantia do ensino religioso. Essa hipótese será confirmada nas constituições seguintes. Com a redemocratização do país, a Assembléia Constituinte de 1946 retoma a base da Constituição de 1934 em relação ao direito à educação e, consequentemente, a obrigatoriedade de oferta do ensino religioso, silenciando, no entanto, quanto à etapa de ensino em que deveria ser ministrado: “Art. 168. [...] V – O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada pelo presidente João Goulart na vigência da Constituição de 1946, em 20 de dezembro de 1961 (Lei n. 4.024) regulamenta o ensino religioso em seu art. 97, transcrevendo literalmente o supracitado art. 168 da Constituição de 1946, com uma modificação que contrariava a Igreja Católica: o ensino religioso seria ministrado “sem ônus para os poderes públicos”. Desse modo, não caberia ao Estado, por meio das escolas públicas, remunerar os professores de ensino religioso, restando à disciplina religiosa recorrer ao voluntariado dos fiéis ou à remuneração por entidade religiosa. Assim dispunha a LDB de 1961: Art. 97 O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa, e será ministrado sem ônus para os poderes públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável. § 1o A formação de classe para o ensino religioso independe de número mínimo de alunos. § 2o O registro dos professores de ensino religioso será realizado perante a autoridade religiosa respectiva (grifo nosso). 96
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Comentando os parágrafos deste dispositivo de nossa primeira LDB, Luiz Antônio Cunha explica o sentido pretendido: (O) ER não dependeria do número de alunos interessados, eliminando a interpretação inercial gerada pelo decreto de 1931, que estipulou um limite mínimo para sua viabilização. O outro parágrafo dizia que o registro dos professores do ensino religioso seria realizado perante as autoridades dos respectivos credos, vale dizer, que o poder público abria mão desse poder em proveito da Igreja Católica, principalmente, e de outras entidades que se propusessem a disputar a hegemonia religiosa no espaço das escolas públicas (Cunha, 2007, p. 294).
Apesar, como adiante justificaremos, de nos parecer que esta seria uma forma de compatibilizar, na institucionalidade constitucional atual (similar à de 1946), a previsão de ensino religioso ao caráter laico do Estado; o fato de a Constituição prever este ensino como obrigatório nas escolas públicas e a LDB vedar a oneração estatal gera um problema de difícil enfrentamento do ponto de vista jurídico. A nosso ver, a opção regulamentar da LDB de 1961, por eximir o Estado do custeio do ensino religioso, descaracteriza-o enquanto parte do direito público subjetivo à educação, esvaziando, do ponto de vista da exigibilidade, esse conteúdo. Afinal, na prática não se pode exigir do Estado o oferecimento de um serviço público no qual se encontra ele impedido de aplicar recursos por expressa disposição legal. Nesse contexto, em que o ensino religioso seria assegurado nas escolas públicas por atores diferentes do Estado, fazia sentido a não preocupação com o número mínimo de alunos (fator diretamente relacionado aos custos da educação) e a vinculação dos docentes diretamente aos organismos religiosos. No entanto, mudança significativa ocorre com a revisão da LDB em 1971 (Lei n. 5.692), no contexto do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, sendo que o ensino religioso passa a ser obrigatoriamente ofertado tanto no primeiro como no segundo graus de ensino: Art. 7o Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de lo e 2o graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969. 97
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Parágrafo único. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de 1o e 2o graus.
Percebe-se a exclusão da vedação de ônus para os cofres públicos, retomando-se a força normativa do ensino religioso frente ao Estado. Outro fator importante é que, não somente no aspecto geográfico, as disciplinas Educação Moral e Cívica e Ensino Religioso estiveram materialmente relacionadas durante o recente período ditatorial. Como registra Luiz Antônio Cunha, na Moral e Cívica também havia forte influência católica, sendo que suas finalidades “representavam uma sólida fusão do pensamento reacionário, do catolicismo conservador e da doutrina de segurança nacional, conforme era concebida pela Escola Superior de Guerra”4. Fato que ganhou ares de oficialidade através parecer aprovado pelo Conselho Federal de Educação (Parecer n. 94/71), da lavra do arcebispo-conselheiro Luciano José Cabral Duarte, no qual proclamava-se ser a religião a base da moral a ser ensinada. Prevenindose dos eventuais questionamentos, o parecer afirmava tratar-se da “religião natural”, a qual emanaria de uma razão crítica. Sobre esta confusão entre Estado e Igreja Católica, na qual esta por muitas vezes na história do país assumiu o papel de legitimadora de regimes ilegítimos do ponto de vista social e jurídico, Letícia Martel recorre aos clássicos estudos empreendidos pelo brasilianista Keneth Serbin, no qual se destaca mais uma vez o papel desempenhado pelo ensino religioso e o acesso ao fundo público:
4. Cunha descreve detalhadamente os fins últimos da educação moral e cívica: “a. a defesa do princípio democrático, pela preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b. a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c. o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; d. o culto à Pátria, aos seus símbolos, às suas tradições, instituições, e aos grandes vultos de sua história; e. o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade; f. a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sociopolítico-econômica do país; g. o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum; h. o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade” (Cunha, 2007, pp. 295-297). 98
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Analisando as relações Estado/Igreja Católica no Brasil no período 1930-1964, o autor concluiu que se processou uma intensa simbiose entre o Estado e a Igreja Católica. Em uma via, a igreja fornecia o aparato moral necessário à sustentação dos governos, e, como retorno, recebia fundos públicos que garantiam a sua hegemonia. Os fundos destinaram-se a três áreas preferenciais: a. educação (colégios católicos, universidades pontifícias e seminários); b. assistência social, inclusive no âmbito da saúde (Santas Casas); c. cultura. Ademais, as isenções e imunidades fiscais não eram concedidas mediante requisitos objetivos, mas segundo padrões que ofereciam ampla margem interpretativa. No campo educacional, Serbin detectou que tais benefícios foram ligados à capacidade de preparação moral dos estudantes e, por conseguinte, privilegiaram os educandários católicos. Nas primeiras fases do regime militar, o pacto moral continuou, sendo atingido apenas no processo de abertura (Martel, 2007, pp. 22-23).
O ensino religioso, segundo avaliação de Luiz Antônio Cunha, foi utilizado pelo campo religioso para instrumentalizar o campo político para “propósitos hegemônicos, pela ação no campo educacional” (2007, p. 300). Por outro lado, a educação moral e cívica “representou tentativas do campo político de instrumentalizar o campo religioso para propósitos igualmente hegemônicos, pela mesma via da escola pública” (idem, ibidem). Esse aparelhamento mútuo serviu para a inserção dos ensinamentos religiosos no material didático da educação moral e cívica, expressando de forma objetiva uma sintonia entre ambas as disciplinas, sendo a Igreja Católica a entidade religiosa que mais contribuiu. Anteriormente à revisão da LDB e ao Ato Institucional n. 5, a Constituição promulgada em 1967 havia praticamente repetido o texto de 1946, com menos destaque, entretanto, para a condição de adequação à confissão religiosa dos estudantes ou de seus pais: “Art. 168. [...] IV – O ensino religioso de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio”. Esta redação foi mantida após a Emenda Constitucional n. 1, de 1969. No processo da Constituinte de 1988 “parecia que se restabeleceria uma aliança entre liberais, socialistas e religiosos evangélicos, em defesa da laicidade” (Cunha, 2006, p. 4), capaz de suplantar a visão confessional, no entanto, a atual Constituição retoma a tradição hegemônica de garantia do ensino religioso nas escolas públicas – este, no entanto, é o tema adiante tratado. 99
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Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n. 9.394/1996): O Ensino Religioso como Direito à Liberdade de Professar Crença e Culto e a Dimensão Negativa do Dever Estatal A Constituição de 1988, ao dispor sobre a organização do Estado, funda-se na ideia de laicidade, vedando aos entes federados “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvadas, na forma da lei, a colaboração de interesse público (art. 19, I). Ou seja, ao mesmo passo que positiva a separação entre Estado e igreja, a Constituição deixa em aberto a possibilidade de colaboração entre ambos, a ser regulada em lei. Não nos parece, entretanto, que esta autorização pontual legitime a atuação confessional do Estado, mesmo se adstrita a situações específicas. Ademais, nesta colaboração, não pode o Estado atuar em benefício de uma denominação religiosa específica sem que viole a vedação imposta no mesmo artigo: “É vedado [...] criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si” (art. 19, III), considerando-se aí, evidentemente, diferenciações indevidas entre nacionais de distintas crenças, ateus ou agnósticos. Analisando esse dispositivo constitucional, José Afonso da Silva afirma haver três possíveis sistemas de relação entre Estado e igreja: 1. confusão, quando ambos se confundem numa mesma institucionalidade, como é o caso dos Estados islâmicos; 2. união, quando há relação jurídica concernente à organização e funcionamento de ambos, como era o caso do regime imperial brasileiro; e 3. separação, quando não há determinação organizativa e operativa entre ambos, assegurando-se a liberdade religiosa, sendo o caso do Estado laico brasileiro desde a Constituição de 1891. No entanto, segundo o jurista, ao longo do tempo “[...] houve pequenos ajustes quanto às relações Estado-igreja, passando de uma separação mais rígida para um sistema que admite certos contactos” (Silva, 2001, pp. 229-230). Essa separação flexível é possibilitada pela autorização da Constituição (art. 19, I) para a “colaboração de interesse público”. O autor admite a dificuldade em determinar juridicamente os limites dessa colaboração, mas, para ele, não há dúvida que “[...] não 100
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poderá ocorrer no campo religioso. Demais, a colaboração estatal tem que ser geral a fim de não discriminar entre as várias religiões” (Silva, 2001, p. 230). É nesse contexto que deve ser interpretada a disposição constitucional sobre o ensino religioso nas escolas públicas: Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1o O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental (grifo nosso).
A Constituição de 1988 retoma os elementos normativos do ensino religioso estabelecidos em nosso direito constitucional a partir da Constituição de 1934 – oferta obrigatória nos horários normais e matrícula facultativa, com duas diferenças: restringe ao ensino fundamental (neste trabalho não nos dedicaremos a analisar a adequação pedagógica dessa medida) e exclui qualquer menção ao caráter do ensino religioso. Retomando a conclusão de José Afonso da Silva, esse último fato nos permitiria concluir que de forma a impedir o contato entre Estado e igreja no âmbito religioso, a Constituição sinalizava no sentido de que deveria ser abolida, na escola pública, a modalidade confessional de ensino religioso, ou seja, o ensino atrelado a uma determinada denominação religiosa. No entanto, este ensino é bastante comum nos dias de hoje, invertendo-se o sentido da interpretação do autor: antevendo que o ensino religioso conformaria-se como verdadeira catequização em determinados casos, o constituinte encontrou na matrícula facultativa o meio de compatibilização com as liberdades fundamentais de crença, culto e organização religiosa. Essa parece ser a interpretação corrente no meio jurídico nacional. No artigo 213 da Constituição, fica mais explícita a flexibilização da relação entre Estado e igreja, quando a Constituição autoriza a destinação de recursos públicos para as escolas particulares comunitárias, filantrópicas e confessionais. Ou seja, além de financiar o ensino religioso nas escolas públicas, o Estado está autorizado a financiar diretamente a 101
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formação de quadros religiosos em escolas declaradamente confessionais. Neste caso, não há como deixar de privilegiar determinadas denominações religiosas, pois, como se sabe, nem todas as religiões dispõe da mesma estrutura institucional e hierárquica da Igreja Católica, exigida para que acessem os recursos estatais. Após 1988, embora tenha ocorrido “o enfraquecimento da posição laica, pela derrota sofrida na Assembléia Constituinte” (Cunha, 2006, p. 4), seguiu-se o embate entre os campos laico e confessional, a partir do qual “o Congresso Nacional criou, anos mais tarde, uma limitação para o ER nas escolas públicas. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96), o dispositivo constitucional sobre o ER foi incorporado, com a restrição de ser oferecido ‘sem ônus para os cofres públicos’” (Cunha, 2006, p. 4). Retomava-se a tradição da LDB de 1961, inclusive quanto à previsão do caráter confessional do ensino, ao qual se agrava de modo inédito uma segunda opção – o ensino interconfessional. Tal disposição – ensino confessional sem ônus – parece-nos uma tentativa de composição das diferentes posições em um mesmo artigo, fato recorrente na tradição cordial brasileira. Vejamos a redação original da LDB de 1996: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I. confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II. interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa (grifo nosso).
No entanto, como poucas vezes se viu na história legislativa do país, em pouco tempo houve alteração desse dispositivo, caindo mais uma vez em nossa história a vedação de financiamento estatal ao ensino religioso nas escolas públicas. Luiz Antônio Cunha, em artigo já mencionado, narra o contexto social e político em que se aprovou a nova redação do artigo 33, acima referido: 102
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Um projeto de lei proposto pelo Ministro da Educação, três meses após a promulgação da LDB, determinava mudança no artigo sobre o ER nas escolas públicas. Esse projeto foi fundido, no Congresso Nacional, a dois outros, de iniciativa parlamentar. Os três projetos foram gerados no campo da centro-direita do espectro político, mas o relator do projeto substitutivo, que logrou aprovação, foi um deputado sacerdote católico, militante de partido de centro-esquerda, padre Roque (PT-PR) (Cunha, 2006, p. 5).
A professora, Roseli Fishmann, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que na época era integrante da equipe que elaborava os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Básica do MEC, relata: Dizia-se à época que o Ministro da Educação, pressionado por essa demanda de ter de dar alguma resposta quando o papa chegasse ao Brasil, e considerando a afinidade e a confiança pessoal, teria encomendado logo ao (depois falecido) deputado Nelson Marchezan, um dispositivo que serviria de emenda à LDB naquele artigo específico, e que desse conta de superar todos os problemas apontados. Contudo, o mais pitoresco foi a tranquilidade com que o Congresso entregou o projeto de lei de Nelson Marchezan a um relator que não teria como ser isento (foi relator o deputado padre Roque), por ser religioso da confissão historicamente dominante, sendo finalmente aprovada a emenda à LDB, lei complementar à Constituição Federal, por acordo de lideranças, às vésperas do recesso parlamentar, em pleno mês de julho, férias escolares (Fishmann, 2006, pp. 6-7).
Ambos os relatos narram o momento político destacando o papel da Igreja Católica junto ao Congresso Nacional. Também colhemos o depoimento de Carlos Roberto Jamil Cury sobre o assunto, que destaca o papel desempenhado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE): Em parecer normativo relativo ao assunto, ainda na vigência da primeira redação do art. 33, o Conselho Nacional de Educação (CNE), através do parecer CNE n. 05/97 se pronunciou a fim de dirimir a questão relativa aos ônus financeiros da oferta desta disciplina pelo poder público já que “haveria violação do art. 19 da Constituição Federal que veda a subvenção a cultos religiosos e a igrejas”. E afirmava também: [...] por ensino religioso se entende o espaço que a escola pública abre para que estudantes, facultativamente, se iniciem ou se aperfeiçoem numa determinada religião. Desse ponto de vista, somente as igrejas, individualmente ou associadas, poderão credenciar seus representantes para ocupar o espaço como resposta à demanda dos alunos de uma determinada escola (p. 2). Essa redação não agradou 103
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várias autoridades religiosas, em especial as católicas, cujo objetivo inicial era pressionar a presidência da República a fazer uso do seu direito de veto. O próprio Executivo assumiu, então, o compromisso de alterar o art. 33 mediante projeto de lei, daí resultando a Lei n. 9.475/97 (Cury, 2004, pp. 7-8).
Ou seja, na visão de Cury, amparado na interpretação do CNE à redação original do art. 33 da LDB, havia até então uma lógica, baseada no caráter laico do Estado determinado no art. 19, I da Constituição, que assim funcionaria: o Estado abriria as escolas públicas para que as diferentes denominações religiosas lá ofertassem, de modo associado (interconfessional) ou individualmente (confessional), o ensino religioso, sendo este facultativo aos estudantes. Caberia portanto às organizações religiosas que assim entendessem, ocupar, sem ônus para as administrações públicas, o espaço a elas disponibilizado nas escolas, arregimentando dentre seus fiéis e sacerdotes os professores de ensino religioso. Caso as confissões religiosas não disponibilizassem tal ensino, não caberia ao Estado assegurá-lo. Com isso, poder-se-ia dizer que a Constituição Federal, uma vez que autorizava regulamentação nos termos do texto original da LDB, não estabelece, em princípio, o ensino religioso no rol dos deveres positivos do Estado quanto ao direito à educação. Não poderia, portanto, até a reforma de LDB em 1997, o cidadão exigir do Estado a oferta de ensino religioso enquanto direito público subjetivo, quando este não estivesse organizado em determinada escola, pois esta tarefa caberia diretamente ao setor religioso privado, que atuaria nas escolas públicas com base na margem de liberdade concedida pelo Estado. A este, por outro lado, caberia tão-somente não embaraçar a realização do ensino religioso nas escolas e protegê-lo contra eventuais ameaças de terceiros.
A Reforma da LDB pela Lei n. 9.475/1997: O Ensino Religioso na Dimensão Positiva do Dever Estatal No entanto, assim como já ocorrera no episódio da revisão da regulamentação do ensino religioso na LDB de 1971, esta interpretação precisou ser refeita com a edição da Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997, que 104
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a partir das pressões das entidades e grupos religiosos altera o art. 33 da LDB, o qual passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1o Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2o Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso (grifo nosso).
A nova redação suprime a expressão “sem ônus para os cofres públicos”, tacitamente afirmando o financiamento público. Além disso, determina que o ensino religioso é “parte integrante da formação básica do cidadão”, ou seja, enquanto tal passa a ser passível de exigibilidade jurídica, cabendo ao Estado assegurá-lo independentemente da posição das organizações religiosas. De fato, assim surgem os primeiros julgados, em sede de Ação Civil Pública, determinando ao Estado a oferta de ensino religioso nas escolas públicas: Ementa: Apelação Cível. Ação Civil Pública. Ensino Religioso não oferecido nas escolas estaduais do Município de Paraíba do Sul. Procedência do pedido. Ensino Religioso. Previsão nacional inserida na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases, na forma facultativa. Disciplina obrigatória neste Estado, na forma do disposto na Lei Estadual n. 3.459/2000, art. 1o Resolução que não tem poder para modificar o texto de lei. Obrigação ao oferecimento da disciplina. Honorários Advocatícios. Ministério Público. Confusão. Órgão mantido pelo Estado, como a Defensoria Pública. Aplicação, por semelhança, da Súmula n. 80 deste Egrégio Tribunal de Justiça. Provimento parcial do recurso, somente para excluir a condenação ao pagamento de honorários advocatícios5.
5. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) – Décima Câmara Cível, Proc. n. 2006.001.08880 – Apelação Cível, Des. Gilberto D. Moreira – Julgamento em 5.9.2006.
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Inclusive extensível, numa posição que nos parece inadequada, por previsão expressa de uma lei estadual carioca (Lei n. 3.459/2000), à educação infantil: Ementa: Ação Civil Pública. Ensino Religioso. Estabelecimento de ensino estadual. Obrigatoriedade. Abrangência da medida. Apelação Cível. Ação Civil Pública. Ensino Religioso. Escolas da Rede Pública do Estado do Rio de Janeiro. A Lei n. 3459/00 que dispõe sobre o Ensino Religioso Confessional nas Escolas da Rede Pública de Ensino do Estado do Rio de Janeiro determina que o ensino religioso é de matrícula facultativa, parte integrante da formação básica do cidadão, constituindo disciplina obrigatória dos horários normais das escolas públicas, na Educação Básica. O inciso I, do artigo 21 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, define como Educação Básica: a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. A disciplina de ensino religioso deve ser oferecida, também, aos alunos das classes de educação infantil e classes de jovens e adultos nas escolas estaduais do Município de Três Rios e Comendador Levy Gasparian. Descabida condenação do Estado do Rio de Janeiro em honorários advocatícios em favor do Ministério Público, que é um órgão do próprio Estado. Incidência da Súmula 80, TJRJ. Recurso parcialmente provido6.
Ou seja, não por disposição da Constituição, mas em decorrência do que determina a Lei n. 9.475/1997, podemos dizer que o ensino religioso, apesar de facultativo, passa a compor o rol dos deveres positivos do estado quanto à educação, sendo inclusive exigível em caso de omissão estatal.
Considerações Finais Feito esse resgate da trajetória do ensino religioso na legislação federal, podemos perceber a magnitude da reforma promovida pela Lei n. 9.475/1997 em relação a postura estatal frente ao tema do ensino religioso nas escolas públicas: de um direito de liberdade, vinculado especificamente à liberdade de crença e culto, a ser exercido inclusive no espaço da escola pública, sem ônus para o Estado, de quem se cobrava tão-somente
6. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) – Décima Quinta Câmara Cível, Proc. n. 2005.001.45451 – Apelação Cível, Des. José Pimentel Marques – Julgamento em 17.5.2006. 106
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uma postura negativa de não intervenção e de proteção contra ameaças a seu exercício; passamos a um direito a prestações positivas do Estado, que deverá organizar-se no sentido de prover administrativa e financeiramente sua rede de ensino das condições objetivas de oferta do ensino religioso, independentemente de requerimento das próprias organizações confessionais. Com isso, passa o ensino religioso a ser defendido como parte do direito à educação, assim como, por exemplo, o ensino de língua portuguesa e matemática. A única diferença, no caso, reside na esfera de liberdade do estudante em não frequentá-lo, não mais na postura estatal quanto à sua oferta. A nosso ver essa não é a melhor solução para a questão, pois o ensino religioso deve sim ser visto como um direito, exercido, no entanto, na esfera privada, sendo proposto, organizado e custeado pelas organizações religiosas interessadas. Nesse sentido, precisamos avançar rumo a uma reforma constitucional. Atualmente, a alteração da posição estatal em relação ao ensino religioso, bem como sua incorporação, inclusive em termos de financiamento, ao rol dos deveres estatais, apresenta aos educadores, gestores públicos e operadores jurídicos uma complexidade sem precedentes e de difícil resolução, envolvendo aspectos que vão desde a administração e organização escolar ao exercício das liberdades de cátedra e de crença. Questões como a formação exigida para que o professor lecione ensino religioso, sua forma de contratação, sua vinculação com as organizações religiosas, a organização curricular, a forma de avaliação, a frequência e carga-horária em que deve ser ofertado etc., passam a povoar o universo dos debates sobre sua implantação no país. No entanto, a maior complexidade decorrente da forma de implementação do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras, deve-se à absoluta delegação de competência aos sistemas de ensino para regulamentar “os procedimentos para a definição dos conteúdos” e estabelecer “as normas para a habilitação e admissão dos professores” (Lei n. 9.475/1997, art. 33, § 1o), gerando grandes desigualdades de interpretação e de nível de implementação. É imperioso lembrar que ao falarmos de delegação aos sistemas de ensino estamos nos referindo, potencial107
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mente, a mais de cinco mil unidades próprias, formadas por estados, Distrito Federal e municípios7. Contudo, esses são temas a serem tratados em outra oportunidade.
Referências Bibliográficas CUNHA, Luiz Antônio. 2007. “Sintonia Oscilante: Religião, Moral e Civismo no Brasil – 1931-1997”. Caderno de Pesquisa. São Paulo, v. 37, n. 131, p. 287, maio-ago. _____. 2006. Autonomização do Campo Educacional: Efeitos do e no Ensino Religioso. Disponível em http://www.luizantonio.cunha.nom.br/. CURY, Carlos Roberto Jamil. 2004. “Ensino Religioso e Escola Pública: O Retorno de uma Polêmica Recorrente”. Revista Brasileira de Educação, n. 27, pp. 183-191, set.-out.-nov.-dez. FISHMANN, Roseli. 2006. Ainda o Ensino Religioso em Escolas Públicas: Subsídios para a Elaboração de Memória sobre o Tema. Disponível em www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero2/artigos/rfischmann.pdf. HERKENHOFF, João Batista. 1987. Constituinte e Educação. Petrópolis, Vozes, 1987. MALISKA, Marcos Augusto. 2001. O Direito à Educação e a Constituição. Porto Alegre, SAF. MARTEL, Letícia de Campos Velho. 2007. “Laico, mas nem Tanto: Cinco Tópicos sobre Liberdade Religiosa e Laicidade Estatal na Jurisdição Constitucional Brasileira”. Rev. Jur. Presidência da República, Brasília, v. 9, n. 86, pp. 11-57, ago./set. MILTON, Aristides A. 1898. A Constituição do Brazil – Notícia Histórica, Texto e Commentario, 2. ed. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. OLIVEIRA, Romualdo Portela de. 1995. Educação e Cidadania: O Direito à Educação na Constituição de 1988 da República Federativa do Brasil. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo. PIOVESAN, Flávia. 2006. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo, Saraiva. SILVA, José Afonso da. 2001. Curso de Direito Constitucional Positivo, 19. ed. São Paulo, Malheiros.
7. A LDB (Lei n. 9.394/1996, art. 11) atribui aos municípios a faculdade de criar sistemas de ensino próprios, integrar-se ao sistema estadual ou compor com este um sistema único de educação básica. 108
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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 3.510-DF. Relator: ministro Carlos Ayres Brito.
Disponível em www.stf.gov.br. de Justiça do Rio de Janeiro. Décima Quinta Câmara Cível, Proc. n. 2005.001.45451 – Apelação Cível, Des. José Pimentel Marques – Julgamento em 17.5.2006. Disponível em www.tj.rj.gov.br. _____. Décima Câmara Cível, Proc. n. 2006.001.08880 – Apelação Cível, Des. Gilberto D. Moreira – Julgamento em 5.9.2006. Disponível em www.tj.rj. gov.br. TJRJ. Tribunal
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II OS SISTEMAS DE ENSINO E O MINISTÉRIO PÚBLICO
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As Instituições de Educação Superior e as Autoridades Estatais: Autonomia e Controle Eduardo Martines Júnior
Introdução A experiência tem revelado que, indo muito além da seara da própria, a educação tem chegado aos domínios do Direito, exigindo dos juristas e profissionais militantes uma atuação interdisciplinar, influenciando e sofrendo influências diversas. A educação tem sido discutida entre os juristas, inclusive como prioridade absoluta de modo a combater a pobreza, o subdesenvolvimento econômico e social, chegando até a criminalidade, esta afeta diretamente aos domínios do Direito, enquanto aqueloutras de forma indireta, mas de toda forma evidenciando que qualquer tentativa de solução para os graves problemas que enfrentamos, passa pela priorização da educação. Embora os benefícios sejam visíveis em muitos países que realmente priorizaram a educação, não é possível, segundo entendemos, depositar nela toda a responsabilidade pelo avanço (ou não) do país, senão a concreta esperança de um amanhã melhor do que o hoje. Não há solução mágica. Todavia, as gerações vindouras serão bem mais esclarecidas e conscientes de seus direitos e deveres, caso fizermos uma opção clara e firme pela educação da geração presente. Para isso é preciso que os indivíduos aprendam a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser, como 113
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ensina Delors (2001), apresentando uma visão moderna do conceito de educação, sustentada nesses quatro pilares. É bom dizer que esses quatro pilares da educação não estão restritos à aplicação nas escolas, antes, pelo contrário, englobam todas as formas de educação e vão desde o nascimento, até o final da vida. Delors adverte: Numa altura em que os sistemas educativos formais tendem a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um todo. Esta perspectiva deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas educativas, tanto em nível da elaboração de programas como da definição de novas políticas pedagógicas.
Finalizando, estamos com Delors (2001, p. 103) ao dizer que não é mais possível alguém adquirir na juventude uma gama de conhecimentos, ainda que vastos, julgando-os bastante para o resto da vida, dado que a evolução do mundo em velocidades fantásticas exige contínua atualização dos saberes. Afirma ele: [...] as missões que cabem à educação e as múltiplas formas que pode revestir fazem com que englobe todos os processos que levem as pessoas, desde a infância até ao fim da vida, a um conhecimento dinâmico do mundo, dos outros e de si mesmas, combinando de maneira flexível as quatro aprendizagens fundamentais descritas no capítulo anterior. É este continuum educativo, coextensivo à vida e ampliado às dimensões da sociedade, que a Comissão entendeu designar, no presente relatório, pela expressão “educação ao longo de toda a vida”. Em seu entender, é a chave que abre as portas do século XXI e, bem além de uma adaptação necessária às exigências do mundo do trabalho, é a condição para um domínio mais perfeito dos ritmos e dos tempos da pessoa humana (Delors, 2001, p. 104).
Como se vê, o conceito atual de educação é muito mais amplo que aquele fundado na mera transmissão do conhecimento. Não se pode deixar de dizer que o processo educativo, ainda que baseado no aproveitamento da experiência anterior, não se limita apenas àquilo que se ensina e se aprende nos bancos escolares. Vai muito além, e incorpora valores socialmente relevantes para cada distinta sociedade, inovando com alguns e aprimorando os existentes. Adorno (2003) referiu-se à “produção de uma consciência verdadeira”, dizendo que uma democracia deve operar de acordo com seu concei114
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to, razão pela qual exige pessoas emancipadas. Diz ainda: “Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado” (Adorno, 2003, p. 141). Em seguida, o autor pondera: A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade uma ambiguidade. Talvez não seja possível superá-la no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela” (Adorno, 2003, p. 143).
De fato, a educação deve ter um espectro amplo, desenvolvendo o ser humano em todas as suas facetas, efetivamente o preparando para a vida social, a familiar, para o trabalho e, de modo especial, para o exercício da cidadania. Nesse sentido, relevante se mostram ainda, a educação ambiental, a educação inclusiva, a educação do consumidor, que se inserem no contexto da vida moderna como uma exigência, com a consciência dos indivíduos sobre a busca constante de desenvolvimento econômico-social, sem deixar de proteger o meio-ambiente, sem deixar de enxergar as pessoas diferentes por qualquer razão, como iguais detentores de direitos etc. Ensinar isso hoje é garantir o sucesso das futuras gerações, pois a humanidade deve se desenvolver respeitando valores que nos são caros. É considerável o espaço dedicado à educação pela Constituição de 1988, tendo o artigo 205 firmado o dever do Estado e da família para com ela, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. De fato, só a educação será capaz de permitir o exercício da cidadania e só ela fará com que os brasileiros eliminem as gritantes desigualdades – das mais variadas ordens – que teimam em existir entre nós. Mas qual o significado do vocábulo Estado? Estaria a Constituição se referindo aos Poderes Legislativo e Executivo tão-somente? Pretendemos dar amplitude maior a esse vocábulo e nele incluir o Ministério Público, ente estatal diferenciado, ao qual foram cometidas relevantes funções, dentre as quais se destacam a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, 115
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dos interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos aos direitos assegurados no Texto Maior, promovendo o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos difusos e coletivos. Assim, no exercício de suas funções, embora seja ente estatal, pode o Ministério Público se voltar contra o próprio Estado. A relevante e difícil tarefa de educar exige a atuação de muitos atores e órgãos governamentais. A família e a sociedade igualmente são chamadas a assumir seus papéis. Sob o ponto de vista do Estado, a educação está distribuída em sistemas, previstos na Constituição e detalhados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, bem como na Constituição Estadual e em leis e normas estaduais. De algum tempo para cá o Ministério Público tem atuado no campo educacional com ênfase em pontos específicos, mas a tendência é no sentido de alargar o campo de atuação, colocando-se como mais um ente estatal a serviço da educação. A somatória de esforços é positiva, segundo entendemos, mas exige focalização em pontos cuja relevância justifique a atuação conjunta de todos os entes estatais envolvidos, permitindo maior probabilidade de sucesso na decisão e implantação de políticas públicas. Sobre os sistemas de ensino e o Ministério Público na educação é que trataremos a seguir.
Educação na Constituição e na LDB O tema educação é tratado na Constituição de 1988 em diversas passagens do texto. O mais importante deles está no artigo 6o, pelo qual a educação ganha o status de direito social e, via de consequência, direito fundamental do ser humano. O detalhamento desse fundamental direito vem no artigo 205 e seguintes, com a educação dignificada como sendo direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, tendo por objetivos o desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Depois de fixar os princípios básicos da educação, a Lei Maior organiza os sistemas de educação, em obediência ao princípio federativo por nós adotado. Assim sendo, nos termos do artigo 221 compete à União 116
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organizar o sistema federal de ensino e dos territórios, bem como exercer função redistributiva e supletiva, de modo a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade. Aos estados e Distrito Federal foi garantida a organização de seus próprios sistemas de ensino, bem como determinada a atuação prioritária no ensino fundamental e médio. Finalmente, também os municípios poderão organizar seus sistemas de ensino, cabendo-lhe atuar prioritariamente na educação fundamental e infantil. A regulamentação foi feita pela Lei n. 9.394/96, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com fundamento em regra de competência prevista no inciso XXIV do artigo 22 da Constituição, segundo o qual compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. O artigo 9o e seguintes da LDB fixam as competências de cada sistema, cabendo à União estabelecer as competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, bem como baixar normas gerais sobre cursos de graduação e pós-graduação (incs. IV e VII do art. 9o). Prevê-se ainda a existência de um Conselho Nacional de Educação (§ 1o do art. 9o), cuja estrutura e funções estão elencadas na Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, com a redação dada pela Lei n. 9.131, de 24 de novembro de 1995, como se verá a seguir. Também nessa lei fica claro o dever do sistema nacional de ensino de fixar as diretrizes curriculares tanto para a educação básica (infantil, fundamental e média), quanto para a educação superior. Para os Estados e municípios a LDB reservou uma série de competências, inclusive baixar normas complementares para os seus próprios sistemas. Por fim, aos estabelecimentos de ensino coube elaborar e executar sua proposta pedagógica, respeitadas as normas comuns e aquelas do seu sistema de ensino (art. 12 da LDB). Obviamente que por tais razões, as propostas não podem ser descoladas das diretrizes curriculares e nem das normas complementares baixadas nos sistemas estaduais e municipais ao qual estejam ligados. Em resumo, pode-se dizer que à União compete editar as normas gerais e as diretrizes curriculares; aos estados e municípios cabe baixar normas complementares aos seus sistemas de ensino; e aos estabelecimentos de ensino a tarefa de elaborar e executar suas propostas pedagógicas. 117
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Os Órgãos Educacionais Estatais O Conselho Nacional de Educação Vista a relevância do tema educação, cumpre agora procurar mostrar como atuam os atores do cenário educacional na prática. Como visto, o sistema nacional previsto na LDB contempla a existência do Conselho Nacional de Educação (CNE), em cujo rol de funções está (em conjunto com o Ministério da Educação) a edição de diretrizes curriculares nacionais, para todos os níveis de ensino. O CNE aprova o parecer relatado por um dos conselheiros que contêm a fundamentação e uma proposta de resolução, indo à homologação pelo Ministro da Educação. Se homologado o parecer e a proposta de resolução, finalmente é concretizada a norma que a todos obriga. Essa é a norma usual e conhecida nos sistemas educacionais, ressaltando-se que a própria LDB fixa como princípio de ministração do ensino o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (inc. III do art. 3o), tendo por limite os currículos e os conteúdos mínimos fixados nas diretrizes (inc. IV do art. 9o). No que diz respeito ao ensino superior cabe à União baixar normas gerais sobre os cursos (inc. VIII do art. 9o), bem como deliberar sobre as diretrizes curriculares dos cursos superiores (alínea “c”, do § 2o, do art. 9o, da Lei n. 4.024/61, com a redação dada pela Lei n. 9.131/95).
O Conselho Estadual de Educação No que concerne ao sistema estadual, o artigo 237 da Constituição paulista repete, de maneira geral, os princípios estabelecidos na Carta Política. Institui o sistema estadual de ensino (artigo 238 e 239), disciplinando como se organizarão, impondo aos municípios a responsabilidade prioritária pelo ensino fundamental. Consagra o Conselho Estadual de Educação – CEE (artigo 242) como órgão cuja tarefa é de normatizar e deliberar sobre o sistema de ensino estadual, além de exercer funções de consultoria. Essas disposições estão de acordo com a Constituição Federal e com a Lei n. 9.394/96, particularmente o artigo 17 que disciplina o sistema estadual de ensino, dentre outras. Resta dizer que em relação ao Conselho Estadual de Educação, a Constituição Estadual foi regulamentada pela Lei n. 10.403, de 6 de ju118
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lho de 1971, vinculando-o à Secretaria de Estado da Educação. No âmbito estadual, são exarados pareceres e indicações que, eventualmente, podem gerar projeto de deliberação, espécie normativa própria do Órgão, posteriormente homologada pelo titular da Pasta da Educação. O CEE é, portanto, o órgão deliberativo, normativo e consultivo do sistema estadual de ensino, cabendo-lhe as competências ditadas pela Constituição Federal, Constituição Estadual, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a lei estadual regulamentadora.
O Ministério Público na Questão Educacional Com a Constituição Federal de 1988 o Ministério Público avançou significativamente, fortalecendo-se como instituição, à qual coube o qualificativo de “permanente e essencial à função jurisdicional” como quer o artigo 127. Todavia, mais que uma atuação no campo jurisdicional, a Lei Maior reserva ao Ministério Público incumbências nitidamente extraprocessuais, como na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Depois de fixar os alicerces de atuação, no artigo 129 fixou-se as funções institucionais, em rol aberto e que apenas exemplifica concretamente, em quais situações jurídicas e quais instrumentos utilizará o Ministério Público. Importa que nem a Constituição Federal ou a Constituição Estadual, nem a Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público), ou a Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), ou a Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), passaram perto de limitar as funções ministeriais à seara jurisdicional, ao contrário, pois é função institucional do Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual (art. 103, inc. VII da LC n. 734/93, incumbindo ao promotor de justiça atender a qualquer do povo, tomando as providências cabíveis (art. 121, inc. II da LC 734/93). Já a LC 75/93, convenhamos, é muito mais abrangente e consagra diversas hipóteses de atuação ministerial fora do Judiciário (art. 5º), com a utilização de instrumentos elencados nos artigos 6o, 7o e 8o da norma. De toda forma, 119
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não só pode como deve o Ministério Público atuar nas questões educacionais, seja administrativamente ou judicialmente1. Relativamente à educação de maneira geral, já afirmamos2 que ela é a medida do desenvolvimento social, cultural e econômico de um povo. Se a ele é oferecida educação de qualidade, certamente terá maior facilidade de alcançar o pleno desenvolvimento. A educação é, para o conjunto da sociedade, a solução viável de oferecimento de oportunidades de crescimento e desenvolvimento sustentável, com inclusão social, com preservação do meio ambiente e, de resto, afirmação da cidadania como um todo. O Brasil precisa de investimentos nos variados setores econômicos, com geração de empregos, de renda, afastando-nos da pobreza. Todavia, a busca do status de país desenvolvido não pode significar desrespeito a valores que a própria Constituição consagra. Desse modo estaremos garantindo um futuro melhor ao Brasil, com a atual geração preparando aqueloutras vindouras, para conquistar um degrau acima na escala do desenvolvimento econômico e social. Segundo Durkheim (1978): A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine (Durkheim, 1978, p. 41).
A preparação das futuras gerações, para que a consciência de defesa e preservação dos valores definitivamente incorporados no pensamento da sociedade, é árduo mister e exige incansável aperfeiçoamento, sobretudo considerando as contínuas e crescentes adversidades. Cabe a nós alterar o resultado do jogo:
1. Defendemos esse entendimento em tese de doutorado no programa de pós-graduação em Direito da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, sub-programa de Direito Constitucional, sob o título: Educação, Cidadania e Ministério Público, com a orientação da professora doutora Maria Garcia, 2006. 2. Nosso, op. cit., passim. 120
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[...] quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade da esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las (Freire, 1996, p. 52).
Portanto, se ao Ministério Público incumbe a defesa do direito à educação como um todo, deve a Instituição velar pela sua efetiva implantação, dando cumprimento ao disposto na Constituição Federal.
Conclusões A educação é tema destacado na ordem constitucional, merecendo a especial atenção do Estado, da família e da sociedade. Nesse sentido, a Constituição e demais normas aplicáveis tratam dos sistemas educacionais e seus órgãos, quer os legislativos ou os executivos, corporificando uma complexa estrutura que foge aos padrões. A existência de uma repartição de competências, em obediência ao princípio federativo, vem complementada pela existência dos Conselhos, quer o Nacional ou os Estaduais, órgãos incumbidos de expedir normas gerais e que a todos os envolvidos na matéria educacional obrigam. O Conselho Nacional de Educação, atuando junto ao Ministério da Educação, edita resoluções, além de exarar pareceres. No âmbito regional, o Conselho Estadual de Educação normatiza os sistemas por deliberações, em articulação com a Secretaria de Educação, além de igualmente exarar pareceres e indicações. Possível ainda a existência de Conselhos Municipais de Educação que somados às Secretarias Municipais de Educação, tornam realmente complexo o chamado sistema educacional. O Ministério Público galgou notável crescimento na Constituição de 1988, passando de um órgão com atuação meramente judicial, para ir além e assumir a função de defensor dos direitos constitucionais da sociedade. Sendo defensor dos direitos do povo, natural que possa e deva exigir o direito à educação, base do desenvolvimento da sociedade. É nessa linha de atuação que o Ministério Público deve atuar, influenciando e exigindo a concretização do fundamental direito à educação.
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Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor Wiesengrund. 2003. Educação e Emancipação, trad. Wolfgang Leo Maar, 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. DELORS, Jaques (org.). 2001. Educação: Um Tesouro a Descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, trad. José Carlos Eufrázio, 5. ed. São Paulo, Cortez; Brasília: MEC/Unesco. DURKHEIM, Émile. 1978. Educação e Sociologia: Com um Estudo da Obra de Durkheim, de Paul Fauconnet, trad. Lourenço Filho, 11. ed. São Paulo, Melhoramentos; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar. FREIRE, Paulo. 1996. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo, Paz e Terra. MARTINES JÚNIOR, Eduardo. 2006. Educação, Cidadania e Ministério Público: O Artigo 205 da Constituição e sua Abrangência. São Paulo, tese de doutorado em Direito Constitucional, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito à Educação Básica Adriana A. Dragone Silveira
Introdução A declaração do direito à educação está presente na legislação brasileira desde o Império, com a gratuidade do ensino primário, sendo aperfeiçoada do ponto de vista jurídico, desde a Constituição Federal de 1934 (Oliveira, 2007a). Entretanto, a promulgação deste direito na Constituição Federal de 1988 (CF/88), com seu detalhamento na legislação complementar, Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – instituído pela Lei n. 8.069 de 1990 (ECA/90), Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei n. 9.394 de 1996 (LDB/96), não são suficientes para que todos os cidadãos brasileiros tenham acesso à escola, permaneçam nela e ainda a concluam com qualidade. Os dados educacionais sobre acesso indicam que a universalização completa do atendimento no ensino fundamental, única etapa da educação básica considerada obrigatória, não se concretizou, apesar de sua crescente expansão na década de 1990, atingindo 97% na taxa de escolarização líquida. Na educação infantil, de acordo com os dados do último Censo Demográfico do IBGE de 2000, apenas 9,4 % das crianças de zero a três anos tinham acesso à creche, e a pré-escola era frequentada por 61,4 % das crianças de quatro a seis anos; no ensino médio, a taxa de 123
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escolarização líquida, em 2000, era 33,3%, evidenciando o baixo percentual de atendimento da população jovem (Inep/MEC, 2004). O índice de analfabetismo no Brasil entre a população de 15 anos ou mais era de 10,5% em 2004. No contexto de ampliação de direitos, a CF/88 também aperfeiçoou os mecanismos jurídicos para a sua proteção: ação civil pública, mandado de injunção, mandado de segurança coletivo. Neste rol destaca-se também o papel atribuído ao Ministério Público (MP) para a defesa dos direitos sociais (Duarte, 2003). Instituição concebida, no novo marco legal brasileiro como “permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF/88, art.127). O MP tem sua atuação fortalecida com o ECA/90, ao explicitar os direitos infanto-juvenis, inclusive os educacionais, e ao prever as funções da instituição para a proteção desses direitos. A atuação do MP, definida pelo ECA (art. 201), se desenvolve de diversas formas, judicial ou administrativamente. Entre elas, destacam-se: instaurar Inquérito Civil e promover a Ação Civil Pública para a defesa dos interesses individuais, difusos ou coletivos1 relativos à criança e ao adolescente; inspecionar entidades e programas de atendimento destinados à criança e ao adolescente. Compete-lhe, também, adotar medidas administrativas ou judiciais no caso de irregularidades; instaurar procedimentos administrativos; instaurar sindicância, requisitar diligências investigatórias e determinar a instauração de inquérito policial para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à ju-
1. Os direitos difusos e coletivos são definidos de acordo com a sua divisibilidade, abrangência e origem. Difusos são “são compartilhados por um grupo indeterminável de lesados; o objeto desses interesses é indivisível; o grupo está unido por uma situação de fato comum (exemplo: uma ação destinada a obter a reparação cível pela lesão ao meio ambiente, em prejuízo dos moradores de uma região; uma ação civil pública destinada a impedir uma propaganda enganosa pelo rádio ou pela televisão)”; os coletivos: “aqueles que estão compartilhados por um grupo determinável de lesados; o objeto desses interesses é indivisível; o grupo está unido por uma relação jurídica básica comum, que deve ser resolvida de maneira uniforme para todo o grupo (exemplo: uma ação coletiva que vise a anular uma cláusula abusiva num contrato de adesão)”. Mazzilli, 2004, p. 76, grifos do autor. 124
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ventude; zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e aos adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis; fiscalizar o processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar; fiscalizar o ingresso no cadastro de doações; fiscalizar entidades e programas de proteção ou socioeducativos; e intervir nos atos infracionais cometidos por adolescentes. Este artigo analisa em dois municípios do interior paulista, a atuação do MP para a proteção do direito à educação básica, tendo como objetivos averiguar os diferentes tipos de atuação – judicial e extrajudicial – desenvolvidos pelos promotores de justiça da Infância e Juventude, além de caracterizar as consequências da ação do MP para a garantia do direito à educação básica. O estudo foi realizado nas Promotorias da Infância e Juventude de Rio Claro e Ribeirão Preto, municípios do interior do Estado de São Paulo, sendo consideradas ambas Comarcas de 3a entrância para progressão na carreira no MP. A pesquisa abrangeu as ações desenvolvidas pelos promotores de justiça no período de 1997 a 2004, tendo em vista que as alterações no financiamento da Educação, com a Emenda Constitucional n. 14, de 1996, e a introdução do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), com a focalização de prioridades no ensino fundamental ocasionaram impactos no padrão de oferta e atendimento das demais etapas da educação básica. Para a coleta de dados, recorreu-se a dois procedimentos: análise documental dos procedimentos extrajudiciais, ações judiciais e outros documentos elaborados pelas Promotorias de Justiça, com vistas à proteção do direito à educação básica; e entrevista com os Promotores de Justiça da Infância e Juventude dos municípios selecionados. A escolha pela análise da atuação da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude considerou que no estado de São Paulo os representantes do MP, nesta Promotoria de Justiça, devem atuar na proteção integral dos direitos da criança e do adolescente, incluindo os direitos educacionais, além de serem contemplados nesta faixa etária os alunos que se enquadram na educação básica.
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Do Reconhecimento do Direito à Educação Básica na Legislação Brasileira aos seus Mecanismos de Proteção O direito à educação, incluído no rol dos direitos humanos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, compreende além da dimensão individual a social. A educação é imprescindível para o completo desenvolvimento pessoal, fundamental para o acesso aos demais bens e serviços disponíveis na sociedade e necessário para o desenvolvimento econômico, político e social de um país. No Brasil a educação é reconhecida também como um direito fundamental, consagrada pelo Estado com regras constitucionais. Como direito inalienável do cidadão impõe ao Estado o dever de oferecê-la gratuitamente, para que seja acessível a todos os cidadãos. Na CF/88 o direito à educação é declarado no conjunto dos direitos sociais (art. 6o) e como direito de todos e dever do Estado e da família visa ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205). De acordo com Duarte (2003) o direito à educação é o direito social mais “reforçado em termos de proteção jurídica” no sistema constitucional brasileiro. O art. 208 da CF/882 explicita os deveres do Estado para com a educação, possibilitando a sua eficácia (Motta, 1997), como: ensino fundamental obrigatório e gratuito; ensino médio gratuito; atendimento educacional especializado aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino; atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos; programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência saúde. O ECA/90 apresenta alguns aspectos do direito à educação que são complementares a CF/88, é o caso, da possibilidade de discussão pelas famílias dos critérios de avaliação rendimento escolar adotados pela escola e acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência, declaração esta que favorece a possibilidade de exigência do transporte escolar gra-
2. O artigo 208 da CF/88 foi alterado pela Emenda Constitucional (EC) n. 14/1996 e pela EC n. 53/2006. 126
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tuito na impossibilidade de atendimento do educando na escola próxima de sua residência (Oliveira, 1995). No conjunto de inovações da CF/88 está a declaração expressa do ensino obrigatório como direito público subjetivo, sendo que o “nãooferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente” (art. 208, § 1o e 2o). Esta declaração reforça a importância do direito à educação, pois o direito público subjetivo constitui-se em instrumento jurídico de controle da ação estatal, possibilitando ao cidadão, investido de seus direito, exigir judicialmente do Estado o cumprimento de seus deveres (Duarte, 2004). A LDB/96 no que se refere ao direito público subjetivo acrescenta as partes que poderão acionar o Poder Público para exigi-lo: qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e o MP. A mesma LDB/96 ainda explicita que a negligência da autoridade competente não oferecendo o ensino obrigatório, ou seja, o ensino fundamental, implica em crime de responsabilidade. Assegurar o direito à educação não se encerra em garantir a todos igualdade de condições de acesso e permanência e à gratuidade do ensino público é preciso que o ensino tenha “padrão de qualidade”. O texto constitucional apenas determinou que o ensino deve ter qualidade como um dos princípios pelos quais o ensino deve ser ministrado (art. 206), mas não definiu clara e objetivamente o que viria a ser “qualidade” dentro do contexto escolar. A LDB/96 define como padrões mínimos de qualidade de ensino: “[...] a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo ensinoaprendizagem” (art. 4o, inc. IX). A incorporação do princípio constitucional de qualidade de ensino, a partir da CF/88 não foi suficiente para que se estabelecesse uma forma de proteção junto ao Poder Judiciário, sendo necessário à construção de indicadores de qualidade, passíveis de serem exigidos judicialmente (Oliveira e Araújo, 2005). As políticas de democratização do ensino, implementadas nos últimos anos, tiveram como prioridade a expansão do acesso ao ensino fun127
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damental. Com isso, novos desafios surgem como consequências dessas reformas: o atendimento da demanda crescente nas demais etapas da educação básica e na educação superior e, principalmente, a necessidade de solucionar a exclusão do acesso ao conhecimento, buscando uma educação com padrões de qualidade (Oliveira, 2007b). Uma questão clara diante desses desafios é a insuficiência dos investimentos financeiros em educação para responder às necessidades impostas pela evolução no quadro de matrículas, que vem crescendo desde a década de 1970 (Pinto, 2000). Esse fato leva a pensar no principal entrave para as políticas educacionais: a escassez de recursos para as áreas sociais. A CF/88 trouxe importantes conquistas para o direito à educação, tendo a sua elaboração acontecida em um período de fim do regime militar, num processo de redemocratização do país e de participação da sociedade civil em seus novos rumos sociais e políticos. Dessa forma, ela é considerada como uma tentativa de construção de um Estado de bem-estar social no Brasil ao reconhecer para seu povo amplos direitos sociais. Entretanto, o direito à educação, assim como as demais políticas sociais, sofrem interferência de orientações econômicas para a redução dos gastos sociais, com finalidades de garantir as metas de estabilidade monetária, o controle da inflação e o equilíbrio fiscal, de maneira a gerar sistemas de ensino mais eficientes com menores gastos. Essa mudança na concepção do Estado, na oferta e manutenção das políticas sociais, remete às lições de Bobbio (2004), destacando que o momento atual não seria de buscar fundamentos para os direitos do homem, mas de colocar as condições para a realização dos direitos proclamados, principalmente com os direitos sociais. Assim sendo, o importante é saber como garantir esses direitos que, apesar de serem reconhecidos em declarações, são constantemente violados. O direito à educação, já garantido na legislação, pode ter sua proteção favorecida pela atuação do MP, que com a CF/88 e o ECA/90, vai além das tradicionais funções criminais, assume a função zelar pelos direitos e garantias legais. Desta forma pode constituir-se em mais um aliado à educação, impetrando ações na Justiça, assim como atuando extrajudicialmente, cobrando junto aos órgãos públicos o direito à educação de 128
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todos os cidadãos brasileiros, não apenas o seu ingresso e permanência na escola, mas o direito a um ensino de qualidade. No caso da educação, a requisição judicial deste direito pode ser realizada por meio de instrumentos processuais como o Mandado de Segurança, o Mandado de Injunção e a Ação Civil Pública. Na atuação extrajudicial, o MP pode firmar Compromisso de Ajustamento de Conduta com o infrator (ECA, art. 211), o que possibilita, sem ter que recorrer ao Poder Judiciário, a definição de prazos e condições para a concretização dos direitos pelo infrator. Para instruir os procedimentos administrativos, o membro do MP pode expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos, assim como exigir informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta ou indireta. Cabe-lhe, também, promover inspeções a instituições particulares e instituições privadas e ainda requisitar informações e documentos a particulares e instituições privadas.
Caracterização das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude de Rio Claro e Ribeirão Preto Para empreender as possibilidades e limites do Ministério Público para a proteção do direito à educação básica, buscou-se analisar a atuação de duas Promotorias da Infância e Juventude do Estado de São Paulo. Apresenta-se a seguir uma breve caracterização dos dois municípios e as características das duas promotorias de justiça, que embora estejam na mesma classificação para promoção no MP, apresentam estruturas física e pessoal muito diferenciadas. Cabe ainda destacar que o estudo não objetivou comparações, considerando que cada promotor de justiça tem independência no exercício de suas funções, estando sua atuação também vinculada ao contexto social de cada município.
Rio Claro O município de Rio Claro está localizado a leste do Estado de São Paulo e distante da capital 157 km. Em 2005, a estimativa de seus habitantes chegava a 185.131, considerado um município de médio porte no Estado. 129
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Em 2004 atuavam na Comarca de Rio Claro sete promotores de justiça. Quatro deles desenvolviam suas atividades junto às duas Varas Criminais e os demais nas três Varas Cíveis. As atividades da promotoria da Infância e Juventude eram exercidas por dois promotores de justiça: o 5o e o 7o promotor de justiça. O MP ocupava as dependências de um prédio, junto com o Poder Judiciário. Não havia um espaço único ao MP, as salas dos promotores de justiça eram distribuídas pelo fórum. O espaço era pequeno e havia promotores de justiça que não possuíam sala confortável, dificultando, principalmente, o atendimento de um número maior de pessoas. O 5o promotor de justiça ingressou no MP em 1988 e trabalhava em Rio Claro desde 1992. Nas promotorias especializadas, atuava na área da Infância e Juventude, Habitação e Urbanismo e Acidentes de Trabalho. Com a vinda do 7o promotor de justiça para a Comarca de Rio Claro, no segundo semestre de 1999, as funções na Promotoria da Infância e Juventude foram divididas. O 5o promotor de justiça passou a atuar somente em casos envolvendo menores infratores, ficando a cargo do novo promotor os demais casos. O 7o promotor de justiça desempenhava, além da Infância e Juventude, funções na Promotoria da Cidadania e na área Criminal. Cada promotor de justiça era auxiliado por um oficial de promotoria e por um estagiário. Os dois promotores indicaram a necessidade de equipar as promotorias com profissionais para o melhor andamento dos processos. As prioridades de atuação eram definidas em uma das reuniões mensais. As prioridades definidas por esse 5o promotor nos últimos anos foram a construção da unidade da Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (Febem) e a garantia do acesso da criança e do adolescente à escola. Para o 7o promotor, constou como prioridade a verificação das crianças em situação irregular, as que ficam esmolando nas ruas e, juntamente, procurar conhecer melhor o problema da evasão escolar.
Ribeirão Preto Considerado um município de grande porte no Estado, Ribeirão Preto localiza-se na região nordeste do Estado de São Paulo, a 313 km da capital. A população estimada, em 2005, foi de 543.885 habitantes. 130
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O MP em Ribeirão Preto, diferentemente de Rio Claro, possuía uma estrutura, tanto física como de pessoal, mais ampla e específica o que possibilita, sem o objetivo de estabelecer comparações, depreender outras possibilidades de ações dos membros do MP para a proteção do direito à educação básica. O MP em Ribeirão Preto, funcionado em prédio próprio, estava organizado em duas promotorias, uma de Justiça Criminal e uma de Justiça Civil. Integravam a área civil oito promotores de justiça. Na área da Infância e Juventude também havia mais um promotor que atuava somente nos atos infracionais e outros seis promotores que dividiam os processos versando sobre guarda, tutela e adoção. O promotor da justiça da Infância e Juventude, com a atuação analisada neste trabalho, ingressou no MP em 1984. Trabalhava no município de Ribeirão Preto desde 1994. Nas Comarcas em que trabalhou, sempre atuou na área da Infância e Juventude, entretanto, o fazia de maneira mais especializada nos últimos anos. Além dessa área, atuava como responsável pela Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e de Conflitos Fundiários. Na Promotoria da Infância e Juventude, a sua atuação estava direcionada para a área de direitos difusos e coletivos, que seria o controle das políticas públicas e o cumprimento dos direitos fundamentais, fazendo, também, o acompanhamento de medidas sócio-educativas de internação de uma das unidades da Febem. A equipe de apoio era composta por dois oficiais de promotoria, um assistente técnico e vários estagiários. Para definir o Programa de Atuação Local e as prioridades, a Promotoria da Infância e Juventude de Ribeirão Preto realizava, anualmente, audiências públicas, com a participação da sociedade civil. Entre as indicações aprovadas na audiência pública de 2004, para integrar as prioridades do Programa de Atuação Local, a educação apareceu como primeira, com a adoção das medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis para assegurar: o atendimento da educação infantil; o direito da criança e do adolescente de estudar na escola mais próxima de sua residência, com especial atenção no que tange à descentralização das escolas de ensino médio; o direito à educação do egresso da Febem; a gestão demo131
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crática do ensino, por meio da instalação e do adequado funcionamento dos Conselhos Escolares; medidas para garantir a educação ambiental nas escolas públicas; e a promoção de seminário sobre gestão democrática do ensino. Do trabalho do MP em Ribeirão Preto destaca-se também a experiência da “Promotoria de Justiça da Comunidade”, desde 2003. Esse trabalho era realizado pelo promotor de justiça da Infância e Juventude e pelo promotor de justiça da Habitação e Urbanismo. Os promotores de justiça, os oficiais de promotoria e um procurador do Estado, neste trabalho deslocam-se até uma região carente da cidade para fazer o atendimento à população.
Medidas Adotadas pelas Promotorias de Justiça para a Proteção do Direito à Educação A atuação da Promotoria da Infância e Juventude de Rio Claro, no período definido para a pesquisa, envolveu oito ações, sendo sete judiciais e um procedimento extrajudicial, além das medidas administrativas de cunho mais informal, por meio de ofícios ou de telefonemas para a requisição de vagas, por escolas próximas das residências dos educandos e a atuação com relação à evasão escolar. Os processos judiciais constituem-se de uma Ação Civil Pública e de seis mandados de segurança, ambos demandando acesso à educação. A primeira ação solicitava do município o oferecimento de vagas de ensino fundamental, complementares àquelas oferecidas pela rede estadual, processo que enfatizou a divisão de competências para o atendimento nessa etapa da educação básica entre o município e o Estado, tendo como “pano de fundo” a discussão da municipalização do ensino fundamental. O mandado de segurança requisitava matrícula em escola próxima da residência, sendo que, no total, foram instaurados seis mandados requisitando o mesmo direito. O procedimento extrajudicial envolveu a discussão por acesso à educação infantil em creches e préescolas, próximas da residência, para aquelas crianças que não haviam conseguido vagas na rede municipal pública. 132
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Das atuações dos promotores de justiça da Infância e Juventude de Rio Claro para a efetivação do direito à educação, nota-se que todas estão vinculadas às demandas por acesso à educação. Todavia o 5o promotor de justiça declarou que, apesar de não haver reclamações, percebia a falta de qualidade do ensino nas escolas por meio do contato com os menores infratores, quando esses apenas “desenhavam os nomes”, mesmo estando na sexta série, por exemplo. O promotor de justiça reconheceu a dificuldade que o MP tem para atuar na garantia de um ensino de qualidade; todavia, apontou para a possibilidade de trabalho coletivo dessa instituição com professores e pais. Devido ao excesso de atividades, incluindo audiências, processos, atendimento ao público e atuação em diversas áreas, os promotores de justiça de Rio Claro declararam que, às vezes, se torna difícil a participação em eventos, fazer visitas e realizar audiências públicas. Quanto à análise sobre a atuação do MP para a garantia do direito à educação, o 5o promotor de justiça de Rio Claro, considera que a instituição cumpriu a sua parte, “porque cumpriu a função de modificador da realidade social, ao menos a vaga está sendo garantida, sendo agora preciso trabalhar a questão da qualidade”. Para o 7o promotor, seria importante que a população tivesse consciência dos limites do MP e, principalmente, do que sejam os direitos coletivos, pois não é em todos os casos que cabe atuação do MP, sendo importante divulgar “quais são as funções e de que maneira essas funções podem ser exercidas”. Da atuação do MP em Rio Claro para a garantia do direito à educação evidenciam-se as características estruturais da instituição no município e a atuação dos promotores de justiça em diversas áreas como condições potencializadoras que dificultam uma intervenção mais especializada na Infância e Juventude, principalmente na garantia dos interesses difusos e coletivos. Em Ribeirão Preto, a atuação da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude para a garantia do direito à educação envolveu diferentes solicitações, totalizando 53 documentos analisados, desde a requisição do acesso e permanência à educação infantil, ao ensino fundamental e médio, às escolas próximas da residência; questionamentos sobre a qualidade da educação; incentivos à gestão democrática do ensino público; 133
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e diversos outros assuntos, como controle da evasão e financiamento da educação. Dos processos judiciais e procedimentos extrajudiciais instaurados pela Promotoria da Infância e Juventude envolvendo o direito à educação, 32 podem ser considerados como requisitando o direito ao acesso e à permanência em escolas da educação básica. Essas ações envolveram solicitações por vagas em escolas próximas à residência, abertura de novas vagas, matrículas em creches e pré-escolas e outras que discutiam as medidas adotadas pelas escolas para o impedimento da permanência do aluno, como expulsão de alunos, cobrança de taxas e uniformes. Além dos procedimentos extrajudiciais e ações civis públicas ingressadas judicialmente, exigindo o direito ao acesso à educação e permanência na trajetória escolar, outras ações questionaram como estava sendo ofertado o ensino. Ao todo, dezesseis processos discutiram problemas que se associam à qualidade da educação, com discussões sobre condições dos equipamentos escolares; falta de professores e funcionários para o adequado funcionamento da escola e questões pedagógicas envolvendo currículo e atendimento pedagógico. A adoção de medidas judiciais e extrajudiciais para assegurar o princípio constitucional da gestão democrática do ensino constava do Programa de Atuação Local, assim como do Plano de Atuação do MP do Estado de SP, na área da Infância e Juventude. Segundo o promotor de justiça, a melhoria da qualidade da escola pública, com o atendimento dos interesses da população, seria possível com a concretização da gestão democrática, com a efetiva participação de todos os segmentos interessados. Para estimular o princípio da gestão democrática, a promotoria de justiça incentivou a formação dos grêmios estudantis e estava desenvolvendo ações para o efetivo funcionamento dos conselhos de escolas, principalmente criando Conselhos Regionais de Conselho de Escola. Da análise da ação da Promotoria da Infância e Juventude de Ribeirão Preto, destaca-se como característica principal da atuação o campo extrajudicial, pois, de todos os documentos analisados, apenas 9% das discussões foram para a decisão judicial. Para o promotor de justiça, a ação judicial deve ser “excepcional”, devendo buscá-lo somente quando não é possível uma solução no âmbito extrajudicial. 134
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A estrutura da Promotoria da Infância e Juventude, da forma como está composta em Ribeirão Preto, gera um diferencial na atuação envolvendo as demandas educacionais. O trabalho do assistente técnico é fundamental e tem colaborado muito, segundo o promotor de justiça. O promotor de justiça destacou que a educação já estava com uma prioridade no plano de atuação no Estado de São Paulo, mas que para se tornar realidade, era necessário instrumentalizar os promotores de justiça da Infância e Juventude com capacitação técnica e suporte material para que eles pudessem, de fato, cumprir suas atribuições, além de “mobilizá-los no sentido de abraçar essa prioridade”. Também enfatizou a necessidade de outra forma de cobrança do trabalho do promotor. Para ele, a corregedoria, além de conferir o cumprimento dos prazos, deveria verificar se os promotores estão cumprindo a estratégia institucional. Acredita-se que essa aproximação do MP em Ribeirão Preto junto à sociedade, aliada às condições educacionais do município, evidenciada na caracterização do atendimento à educação básica, é impulsionadora para as diferentes e expressivas ações da Promotoria da Infância e Juventude para a proteção do direito à educação básica.
Algumas Considerações a Respeito da Proteção dos Direitos Educacionais por meio da Atuação do Ministério Público A proteção do direito à educação pelo MP, nos municípios analisados, ensejou número reduzido de solicitações para o acesso ao ensino fundamental. Estas ações foram rapidamente solucionadas, tendo em vista a expressa declaração desta etapa da educação básica como direito público subjetivo (CF/88, art. 208). O direito à educação não está garantido somente pela oferta de vagas, mas é necessário que o aluno estude em escola próxima à residência, como garante o ECA (art. 53, inc. V), para que ele possa ter mais condições de frequentar as aulas e permanecer na escola. Esse assunto foi requisitado nas duas Promotorias de Justiça. Em Rio Claro, o direito foi assegurado por meio de mandados de segurança. No entanto, em Ribeirão Preto, a atuação do promotor de justiça deu-se extrajudicialmente, no diálogo com as escolas, com a Secretaria Municipal de Educação e 135
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Diretoria Regional de Ensino, processo este nem sempre favorável às necessidades das crianças e adolescentes. A dificuldade de concretização deste direito revela o número excessivo de alunos nas salas de aulas e a falta de planejamento e construção de escolas, agravado em parte, neste município, pelo Programa de Reorganização das Escolas da Rede Pública Estadual, que ocasionou a divisão da oferta do ensino fundamental em escolas diferentes. As constantes queixas por vagas próximas as residências dos alunos conduziram o promotor de justiça de Ribeirão Preto a discutir a construção e/ou ampliação de equipamentos escolares, especialmente nas regiões periféricas, com grande demanda de vagas. Ainda com relação ao acesso à educação básica, a requisição à creche e pré-escola foi abordada nas duas promotorias, evidenciando a necessidade de ampliação de vagas. A declaração da educação infantil como um dever do Estado pela primeira vez na CF/88 se dá em um contexto de importantes discussões teóricas sobre o papel da educação infantil e de organização da sociedade civil, principalmente de movimentos mulheres trabalhadoras, em favor do atendimento às crianças pequenas antes da etapa escolar obrigatória (Corrêa, 2007). Contudo, esse processo se dá em um momento de priorização dos recursos ao ensino fundamental com a EC-14/96 e criação do Fundef (Pinto, 2000). A requisição pela ampliação do atendimento da educação infantil, tanto em Ribeirão Preto pela via judicial, como em Rio Claro pelo entendimento dos promotores de justiça na representação encaminhada por alguns cidadãos, evidenciou a posição de não-obrigatoriedade do atendimento à educação infantil, constituindo-se de norma programática, que deveria ser atendida na medida do possível pelo poder público municipal, de acordo com as suas possibilidades. Em processo judicial semelhante, que também requisitava o direito a matrícula de criança em creche, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em 2005 um recurso extraordinário interposto pelo MP de São Paulo, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou a oferta da educação infantil como um ato discricionário da administração pública. No entanto, o relator do Recurso, Celso de Mello, considerou que a educação infantil “por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias 136
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da administração pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental” (STF, Recurso Extraordinário n. 410715/SP). Esta decisão corrobora para a efetivação do direito à educação infantil para todas as famílias que assim o desejarem. A efetivação do direito à educação infantil estava sendo realizada, ainda que de maneira mais lenta que a desejada, principalmente em Ribeirão Preto, por meio da atuação extrajudicial do MP, com pressões junto ao poder público municipal, requisitando o direito indisponível de acesso à creche e à pré-escola individualmente, nomeando as crianças que seus pais ou responsáveis requisitavam a vaga. Entretanto, as inúmeras requisições individuais ocupam tempo maior de trabalho dos promotores de justiça, o que pode inviabilizar uma atuação em outras áreas e na busca pela realização de políticas públicas pelo município que contemplem um número maior de crianças. Entre as argumentações para a negativa do direito à educação infantil alguns processos evidenciaram debates sobre a prioridade do ensino fundamental em relação ao atendimento pelo município das crianças de zero a seis anos. De acordo, com Sena (2004), na definição de responsabilidades entre os entes da administração pública, a CF/88 determina como abrangência prioritária de atuação dos municípios o ensino fundamental e a educação infantil, não hierarquizando prioridades para o atendimento. Ainda versando sobre o acesso à educação básica, o direito ao ensino médio foi requerido em Ribeirão Preto, mas ainda de maneira mais tímida do que à educação infantil. Esses processos versaram sobre a ampliação do atendimento ao ensino médio em algumas localidades, evidenciando a necessidade de construção de equipamentos escolares, pois muitos alunos obtinham a vaga em escolas muito distante de sua residência, o que dificulta a sua permanência. Sobre a qualidade do ensino e a atuação do MP para a sua proteção o estudo das promotorias de justiça evidencia a dificuldade para a exigibilidade do cumprimento deste direito. No que se refere às condições da estrutura do prédio escolar a ação do MP foi mais efetiva, no entanto, os processos que questionavam a falta de professores e funcionários nas unidades escolares, principalmente na rede estadual de ensino, e a or137
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ganização do currículo e atendimento pedagógico oferecido aos alunos não foram solucionados prontamente, tendo o promotor de justiça de Ribeirão Preto, uma atuação mais extrajudicial, discutindo com diferentes segmentos, principalmente por meio do Conselho Regional de Conselho de Escola, as soluções para estes problemas, acreditando na melhoria da escola pública por meio da gestão democrática. A estratégia de atuação mais extrajudicial do MP no que diz respeito à qualidade de ensino evidencia, como afirma Oliveira (2007a), o desafio de pesquisa para “identificar em que consiste a qualidade a que todos têm direito, de forma a que seja possível exigi-la na justiça, como se faz com a vaga” (p. 39). Da análise da atuação das duas promotorias pesquisadas é possível constatar que a prática mais constante de diálogo com comunidade, assim como outras características estão mais relacionadas ao perfil de cada promotor de justiça. Desta forma é preciso considerar alguns princípios constitucionais que regem a instituição. O MP está estabelecido em três princípios: unidade, indivisibilidade e independência (CF/88, art. 127 § 1o), sendo, então, como afirma Paula (2000), uma instituição “[...] cujas funções são únicas e exercidas por representantes que atuam em nome do Ministério Público, gozando seus membros de plena liberdade no que tange à formação de convicção jurídica e de ampla autonomia de atuação nos casos que lhe são afetos” (2000, p. 194). Segundo Kerche (2002), a estrutura do MP é diferenciada de outras agências estatais, pois com uma “estrutura monocrática”, o “procurador-geral não pode exigir que um determinado promotor, em suas atividades-fim, deva agir desse ou daquele modo e não está autorizado, por exemplo, a trocar um membro do Ministério Público no meio de um caso” (pp. 95-96). Essa garantia pode dificultar o trabalho, mas constitui-se uma segurança para a sociedade, pois um membro do MP não pode ser substituído para atender a pressões internas e externas à instituição. No entanto, essa garantia impossibilita, ainda segundo Kerche (2002) Martinez Júnior (2006) e Silva (2001), a criação de políticas institucionais. 138
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Destaca-se como uma possibilidade para potencializar a atuação do de minimizar a vinculação da atuação ao perfil do promotor, a participação mais ativa da sociedade civil organizada, instruindo o MP com suas reais demandas, por meio de representações, estimulando a realização de audiências públicas. Essas ações em conjunto também potencializam o poder de pressão do MP junto aos órgãos públicos. Ao afirmar que a demanda da sociedade civil torna a atuação do MP mais efetiva e frequente, cabe ressaltar que conselheiros (Conselho Tutelar, Conselho dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, da Educação, de Acompanhamento e Controle Social do Fundeb) e os representantes das Associações Comunitárias, de bairros e/ou de moradores necessitam entender quais são as funções da instituição e as suas possibilidades de atuação, pois os promotores de justiça são requisitados com frequência a solucionar problemas que seriam destinados à Defensoria Pública. Da análise da atuação das duas Promotorias de Justiça destacam-se ainda a diferenciação de estrutura física e da equipe de apoio, características essas que podem influenciar em uma atuação mais ampla e ativa dos membros do MP para a proteção dos direitos sociais, incluindo o direito à educação. Na Promotoria de Justiça de Rio Claro os promotores atuavam em um número maior de áreas do que em Ribeirão Preto, além de não contar com a presença de um profissional mais especializado, como o assistente técnico em Ribeirão Preto, que possibilitava uma orientação mais especializada na área, auxiliando o desenvolvimento de diferentes trabalhos. O MP, como instituição independente dos demais poderes do Estado, no exercício de suas funções determinadas pela própria Constituição e leis infraconstitucionais, pode-se constituir em mais um aliado da sociedade civil na busca da concretização da educação para todos os cidadãos brasileiros, cobrando do Estado o cumprimento de seus deveres. Entretanto, como também destaca o trabalho de Souza Júnior (2006) a instituição apresenta limitações de ordem histórica, material, cultural. É preciso, também de acordo com Castilho (2006), que a instituição assuma a educação como uma de suas prioridades de atuação, com a criação de promotorias especializadas, centros de apoio operacional, que seus MP, além
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membros participem nos conselhos e fóruns em prol da devida efetivação dos direitos educacionais. E ainda, como evidencia Martinez Júnior (2006) é preciso que a atuação do MP seja mais abrangente, cobrando o cumprimento do direito fundamental à educação junto ao Poder Público, família e sociedade, não devendo se limitar à requisição de vagas, e a posteriori, mas participando ativamente na formulação e fiscalização da implementação das políticas públicas para a educação. Neste artigo buscou-se apresentar, a partir do estudo de caso de duas Promotorias de Justiça, as possibilidades e os limites do MP para a efetivação do direito à educação. Como visto pelos dados educacionais brasileiros, a declaração do direito na legislação não se faz suficiente é preciso que a sociedade se organize para fazer os valer. Nesse contexto, o MP é uma instituição, dentre as demais existentes em nossa sociedade, que pode contribuir para defender, frente ao Estado, violações dos direitos consagrados na legislação.
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III O DIREITO À QUALIDADE NA EDUCAÇÃO
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Direito à Educação de Qualidade na Perspectiva Neoconstitucionalista Erik Saddi Arnesen
Introdução Ensaia-se, com olhar de simplicidade, uma visão do direito à educação de qualidade sob a luz da teoria neoconstitucioalista. Necessário reconhecer-se simples, posto que o próprio pressuposto teórico com que se pretende trabalhar, o neoconstitucionalismo, merece reflexões muito mais elaboradas do que as breves considerações feitas aqui. Da mesma forma, dar conteúdo jurídico, portanto exigível, à expressão direito à educação de qualidade, constitui tarefa impossível de ser realizada em algumas poucas páginas. Inicia-se, assim, com uma despretensiosa exposição do que se entende por esse novo modelo jurídico, para que com suas cores, sequencialmente, analise-se o direito à qualidade na educação. Por fim, serão visitadas algumas perplexidades que o cotidiano tem apresentado a essa combinação.
Desenvolvimento de um Novo Pressuposto Jurídico Com intuito ilustrativo, uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permite fundamentar as premissas com que aqui se 145
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pretende trabalhar, ou seja, buscam demonstrar a existência no ordenamento e na prática jurídica brasileira de pressupostos suficientes para se tomar o direito constitucional à educação de qualidade como direito subjetivo plenamente exigível judicialmente e diretamente acessível pelo particular, seu titular. Nesse sentido, foram selecionadas as seguintes decisões (Tabela 1): Tabela 1. Decisões do STF concernentes ao direito à educação Tipo Agravo Regimental em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário
Número
Relator
Demandante
Maurício 241.757-2 Corrêa
Associação dos Deficientes Auditivos do Maranhão
Data de Julgamento
Data de Publicação
Município de São Luís (MA)
29.06.1999
20.04.2001
Demandado
455.802
Marco Aurélio
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
07.02.2004
05.03.2004
411.518
Marco Aurélio
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
03.03.2004
26.03.2004
475.571-8
Marco Aurélio
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
03.03.2004
31.03.2004
474.444
Marco Aurélio
Thiago Inácio Município de Calado represenSanto André tado po Enedina (SP) da Silva Calado
05.03.2004
31.03.2004
401.673
Marco Aurélio
Ministério público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
26.03.2004
19.04.2004
401.880
Ministério PúEros Grau blico do Estado de São Paulo
Município de São Paulo (SP)
27.08.2004
28.09.2004
431.773
Marco Aurélio
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
15.09.2004
22.10.2004
402.024
Carlos Velloso
Ministério Público do Estado de São Paulo’
Município de Santo André (SP)
05.10.2004
27.10.2004
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DIREITO À EDUCAÇÃO: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS
(cont.) Tipo Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Agravo Regimental em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão monocrática em Recurso Agravo Regimental em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Recurso Extraordinário Agravo Regimental em Recurso Extraordinário Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento
Número
Relator
Demandante
Demandado
Data de Julgamento
Data de Publicação
509.347
Ministério PúSepúlveda blico do Estado Pertence de São Paulo
Município de São Bernardo do Campo (SP)
16.12.2004
09.02.2005
410.715
Celso de Mello
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município do Santo André (SP)
27.10.2005
08.11.2005
410.715-5
Celso de Mello
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
22.11.2005 Votação Unânime
03.02.2006
436.996
Celso de Mello
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
26.10.2005
07.11.2005
438.493
Joaquim Barbosa
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
20.11.2005
12.12.2005
463.210
Carlos Velloso
Ministério Público de Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
07.11.2005
17.11.2005
463.210-1
Carlos Velloso
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
06.12.2005 Votação Unânime
03.02.2006
467.255
Celso de Mello
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de São Paulo (SP)
22.02.2006
14.03.2006
472.707
Celso de Mello
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de São Paulo (SP)
14.03.2006
04.04.2006
293.412
Ministério PúEros Grau blico do Estado de São Paulo
Estado de São Paulo e Município de Presidente Venceslau
15.04.2006
29.05.2006
384.201
Marco Aurélio
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de Santo André (SP)
26.04.2007
03.08.2007
564.035
Carmen Lúcia
Ministério Público do Estado de São Paulo
Município de São Paulo (SP)
30.04.2007
15.05.2007
Fonte: elaboração própria. 147
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Ressalte-se que a seleção de tais decisões é meramente exemplificativa, objetivando tão somente a conclusão acerca da natureza das normas relacionadas ao direito à educação e, eventualmente, também em relação às demais normas de direito educacional. Com o objetivo de se demonstrar esse ponto de vista, pode-se iniciar pela apresentação da mais antiga dentre as decisões selecionadas: a contida no acórdão ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 241.757-2. O Recurso Extraordinário n. 241.757 teve negado seu seguimento por decisão monocrática do ministro Mauricio Corrêa, à qual foi interposto Agravo Regimental do qual foi relator. Votaram pela negativa de provimento, além deste, os ministros Néri da Silveira e Nelson Jobim, restando vencido o ministro Marco Aurélio. Naquele momento, logrou vitória o entendimento segundo o qual não cabia ao Poder Judiciário intervir diretamente para fazer efetivar o direito à educação de portadores de deficiência. As palavras do ministro Néri da Silveira expressa o posicionamento dos demais: Não há dúvida nenhuma de que essas disposições postas na Constituição (relacionadas ao direito à educação) têm um sentido social de extraordinária abrangência. O constituinte inseriu-as num avanço significativo neste plano. Mas, parece-me que o mandado de segurança não é, de fato, a via adequada para a fruição desses direitos contemplados no texto constitucional. Não tenho essas normas, desde logo, como autoaplicáveis. Penso que elas possuem um conteúdo predominantemente programático e dependeriam de procedimentos de integração (STF, RE-AgR 241757, relator ministro Maurício Corrêa, DJ 24.04.2001 (grifo nosso).
O voto vencido do ministro Marco Aurélio, entretanto, impressiona pelo arrojo e reflete o que parece ser a posição atual do Supremo Tribunal Federal. Mencionou o artigo 208, inc. III, da Constituição Federal, que determina ser dever do Estado o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência”, para afirmar que: “Esse preceito tornou-se, desde logo, com a promulgação da Carta, auto-aplicável, e, portanto, veio à baila com força suficiente a compelir a pessoa jurídica de direito público a viabilizar o acolhimento desses deficientes na rede pública” (STF, RE-AgR 241757, relator ministro Maurício Corrêa, DJ 24.04.2001). 148
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Sobre os direitos relacionados à educação elencados na Constituição, acrescentou: “Penso que as normas constitucionais são auto-aplicáveis. Não há em qualquer delas a remessa à lei regulamentadora, a não ser quanto à definição do que se entenda – isso já temos – como escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas” (STF, RE-AgR 241757, relator ministro Maurício Corrêa, DJ 24.04.2001). Com a mesma intenção de assentar o pressuposto para a compreensão que se pretende quanto à concepção atual do direito fundamental à educação pelo Supremo Tribunal Federal, é interessante apontar a alteração no padrão decisório do ministro Eros Grau. No Recurso Extraordinário 401.880, cujo julgamento foi proferido em 27 de setembro de 2004, figurava como demandante o ministério público do Estado de São Paulo, que pleiteava em face do município de São Paulo a realização de matrículas na rede pública municipal de ensino fundamental. Na oportunidade, em decisão monocrática, o ministro entendeu pela não exigibilidade direta das normas constitucionais relacionadas ao direito social à educação, em especial aquela contida no § 2o do artigo 211, sobre a qual afirmou: “O preceito inscrito no artigo 211, § 2o, da Constituição – ‘Os municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e pré-escolar’ – é norma programática que encontra sua concretização por meio de leis que visem implementar as políticas públicas” (STF, RE 401880, relator ministro Eros Grau, DJ 28.09.2004). Ocorre que algum tempo depois, em 15 de abril de 2006, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 293.412, também em decisão monocrática, o jurista alterou substancialmente sua posição. O demandante era novamente o Parquet paulista; demandados o Estado de São Paulo e do município de Presidente Venceslau. O pleito, no entanto, desta vez ia além da garantia de matrícula. Buscou o ministério público garantir pela via judicial que estado e município fornecessem transporte escolar gratuito a alunos domiciliados em assentamentos da municipalidade, como expressão de efetivação do direito à educação. Diante da decisão proferida, obteve êxito em sua demanda. O ministro Eros Grau, diferentemente do que havia feito em 2004, entendeu desta vez que: “A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É de-
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ver do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. A omissão administrativa impede que o Poder Público cumpra integralmente dever a ele imposto pela própria Constituição do Brasil” (STF, RE 293412, relator ministro Eros Grau, DJ 29.05.2006). Afirmou ser esse o posicionamento do Supremo Tribunal e, citando o ministro Celso de Mello, afirmou: [...] (a) educação infantil, por qualificar como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da administração pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. [...] Os municípios [...] não poderão demitir-se do mandado constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo artigo 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais [...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional (STF, RE 293412, relator ministro Eros Grau, DJ 29.05.2006).
É de grande relevância perquirir sobre o que o cerne dessa diferença entre o entendimento dos ministros Maurico Corrêa, Nelson Jobim e Néri da Silveira no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 241.757-2 e o apresentado pelo ministro Marco Aurélio em seu voto vencido, bem como do aparente realinhamento de posicionamento do ministro Eros Grau entre 2004 e 2006 pode representar à ciência jurídica. A história constitucional, de modo geral, nos apresenta duas grandes tradições constitucionais (Sanchís, 2003). Uma, observada em linhas gerais na tradição constitucionalista norte-americana, traz a Constituição como regra do jogo, constituindo um critério mínimo de divisão de competências sociais e políticas para a produção de regras. É a corrente a que adere Kelsen (1984) na definição de sua constituição material, como “norma positiva ou normas positivas através das quais é regulada a produção de normas jurídicas gerais”. Entendida dessa forma, a Cons150
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tituição exerce a função de apenas assegurar aos indivíduos autonomia para que, tanto quando sujeitos privados como quando agentes políticos (Sanchís, 2003, p. 125), possuam ampla segurança e liberdade para, democrática e igualitariamente, determinarem os rumos tanto de suas vidas particulares como da comum. O conteúdo constitucional é um conteúdo de limites e procedimentos dirigidos ao legislador, sem prescrever, ou prescrevendo ao mínimo, determinações substanciais. Desse modelo constitucional sucinto é que se extraem as garantias constitucionais dos indivíduos e grupos face o poder do Estado assim como a própria ideia de supremacia da constituição. Se são suas normas que organizam o poder de legislar, limitando e repartindo as competências entre os órgãos produtores de normas (entre os quais o legislador ordinário), a elas é, por lógica, juridicamente superior. O Judiciário, em especial, assume grande relevância nesse modelo. Porque cumprir-lhe-á efetivamente assegurar a aplicação das normas constitucionais, garantindo os indivíduos. A outra tradição verificada na doutrina constitucional é aquela formada por Constituições de forte conteúdo substancial, representando um guia axiológico bastante detalhado à sociedade, e que historicamente esteve ligada a momentos de transformação social e política (Sanchís, 2003, p. 125). Trata-se do constitucionalismo continental europeu, originado nas vontades transformadoras da Revolução Francesa, que ao longo dos séculos foi muito além dos limites ao poder estatal e constitucionalizou demandas sociais como educação, saúde, direitos do trabalhador, meio ambiente etc., pormenorizando juridicamente no texto constitucional quase todos os espaços da vida do indivíduo. Todo esse ambicioso programa, contudo, figura separado da sociedade pela figura do legislador, responsável por captar a abstrata vontade geral e traduzi-la institucionalmente. Porque dessa forma inacessíveis, as normas constitucionais enfraquecem diante do incontrastável legalismo das maiorias democráticas, incapazes de condicioná-los. As Constituições desse modelo são carentes de instrumentos aptos a garantir a força de seu texto porque o poder constituinte pretende perpetuar-se no direcionamento da sociedade através de seu titular, o povo. Contudo, a au151
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toridade desse povo se dissolve ao ter de ser expressada pelo legislador, debilitando-o quando em confronto com os interesses do governo. No entanto, contemporaneamente entre nós, e já há algumas décadas nos sistemas jurídicos europeus ocidentais, o modelo constitucional vem assumindo nova estrutura, que tem sido tratada, com crescente frequência, por neoconstitucionalismo. Pode-se entender que a novidade do modelo neoconstitucionalista é reunir elementos dessas duas tradições constitucionais mencionadas: a concepção lógica de supremacia constitucional e as garantias jurisdicionais para assegurá-la de um modelo de constituição sintética, concebida como pacto mínimo; e um forte conteúdo normativo material (substancial), relacionado à concepção de constituição como uma ordenação articulada, que busca regular os mais diversos aspectos da vida social e política. Em seu bojo temos “una Constituición transformadora que pretende condicionar de modo importante las decisiones de la mayoría, pero cuyo protagonismo fundamental no corresponde al legislador, sino a los jueces” (Sanchís, 2003, p. 126). São os instrumentos judiciais de garantia, disponíveis à efetivação de um vasto rol substancial de direitos constitucionais, que alteram essas posições. Importante notar que esses juízes não são somente aqueles de um Tribunal Constitucional. Serão os juízes das instâncias comuns, jurisdição de que usufruem todos os cidadãos, aqueles que assegurarão a aplicação direta das normas constitucionais. Pelo contrário, a própria existência de um tribunal constitucional é herança da tradição de constituição como regra de poder. Porque agora garantidas judicialmente, de programáticas as constituições substanciais passam a ser normativas. Isso significa que não há mais o filtro de eficácia representado pelo legislador; suas disposições, sejam sobre direitos individuais, sejam sobre condições do local de trabalho consubstanciam obrigações diretamente acessíveis e exigíveis pelo particular, de modo independente, em suas relações privadas ou face ao Estado. Por tais elementos, diz-se que o neoconstitucionalismo enseja um novo modelo de estado de direito, talvez mais completo por submeter também o poder do legislador, através da constituição. A esse novo tipo de Estado a doutrina chama de Estado Constitucional de Direito. 152
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Se possível conceber a Constituição brasileira de 1988 como expressão neoconstitucionalista, o enfoque seria o de uma constituição de amplo conteúdo substancial, razão pela qual condiciona a maior parte das decisões de modo crucial, totalmente garantida judicialmente. Isso significa que as normas constitucionais não se dirigem ao legislador. Sua eficácia não depende de nenhuma vontade intermediária; garantidas na via judicial, estabelecem direitos e obrigações que são diretamente exigíveis. O impacto dessa concepção sobre o direito à educação e normas relacionadas é evidente. Relaciona-se a isso a importância de se reconhecer força deôntica imediata, por exemplo, à norma contida no artigo 205 da Constituição Federal. Esse esforço deve passar por considerações sobre qual a efetiva posição dos direitos fundamentais, e talvez especificamente daqueles relacionados à educação, no Brasil, utilizando-se, por exemplo, os critérios de regulação com maior hierarquia, maior força jurídica, maior importância e maior indeterminação (Alexy, 2003, p. 32 e ss). Quanto ao critério de maior hierarquia, este encontra-se satisfeito pela simples presença dos direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Do mesmo modo a maior força encontra-se garantida posto que condicionam a atuação dos poderes do Estado, existindo instrumentos jurisdicionais capazes de garantir tal vinculação. Algum espaço para questionamento, quanto a algumas normas de direitos fundamentais do ordenamento pátrio, há em relação aos critérios de maior importância do objeto e máximo grau de indeterminação. No entanto, esse não parece ser o caso do direito à educação, nem tampouco do direito à sua qualidade. Pode-se, também, investigar sobre a constitucionalização do ordenamento brasileiro. Guastini (2003) apresenta sete condições que permitem identificar se um determinado ordenamento está ou não constitucionalizado (Guastini, 2003, p. 50 e ss.). São elas: a. Rigidez constitucional: tratar-se de uma constituição escrita e garantida contra a legislação infraconstitucional por força de sua hierarquia superior, contando mesmo com um mínimo axiológico inalterável. 153
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b. Garantia jurisdicional da constituição: possibilidade de controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais através do poder judiciário. c. Força vinculante da constituição: aceitação pela cultura jurídica do caráter normativo e não meramente programático das disposições constitucionais. d. Sobre interpretação da constituição: postura assumida, principalmente pelos membros do Judiciário, de interpretação extensiva do texto constitucional de modo que restem poucos espaços de liberdade ao legislador. e. Aplicação direta das normas constitucionais: acessibilidade dos particulares aos direitos constitucionais. f. Interpretação conforme das leis: prática judicial no sentido de interpretar as leis sempre na direção axiológica indicada pelo texto constitucional. g. Influência da constituição sobre as relações políticas. Importante ter claro que o resultado de tal verificação não será absoluto, podendo ser dividido em graus de constitucionalização. Apenas as duas primeiras são condições indispensáveis. Contudo, considera-se evidente que ambas estejam presentes no Brasil. Quanto às demais, de modo geral, percebe-se que surgem com cada vez maior frequência na prática jurídica brasileira. É o que se pode depreender das decisões selecionadas, em especial se comparadas ao que se decidia em tempos passados, exemplificado pelos votos vencedores no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 241.757-2. O que se pretende nesse tipo de análise é a negação da visão das normas de direitos fundamentais aos moldes da tradição constitucionalista da República de Weimar. Pretende-se a compreensão de um direito à educação cuja efetivação não conceba as disposições a ele referentes como declarações programáticas. Pelo contrário, deve-se compreender que as normas constitucionais sobre o tema educacional são passíveis de controle e garantia judiciais imediatos, não havendo espaço para argumentos de que sua efetivação depende da conveniência política. 154
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As decisões selecionadas do Supremo Tribunal Federal permitem vislumbrar a necessária difusão na cultura jurídica, sobretudo na jurisprudência, porque pela voz de seu órgão máximo, de uma concepção vinculante de Constituição, que atribui direitos desde logo exigíveis. Nesse sentido, confira-se decisão da lavra da ministra Cármen Lúcia, proferida no Agravo de Instrumento 564.035/SP: [...] educação compõe o mínimo existencial, de atendimento estritamente obrigatório pelo poder público, dele não podendo se eximir qualquer das entidades que exercem as funções estatais. O mínimo existencial afirma o conjunto de direitos fundamentais sem os quais a dignidade da pessoa humana é confiscada. E não há de se admitir ser esse princípio mito jurídico ou ilusão da civilização, mas dado constitucional de cumprimento incontornável, que encarece o valor de humanidade que todo ser humano ostenta desde o nascimento e que se impõe ao respeito de todos (STF, AI 564035, relator ministra Carmen Lúcia, DJ 15.05.2007).
Na mesma linha, é contundente a decisão do ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário 431773/SP: [...] consubstância dever do Estado a educação, garantido o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. O estado – União, Estados propriamente ditos, ou seja unidades federadas, e municípios – deve aparelharse para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa. Eis a enorme carga tributária suportada no Brasil a contraria essa terna lengalenga (STF, RE 431773, relator ministro Marco Aurélio, DJ 22.10.2004).
Mas não apenas no Supremo Tribunal encontra-se a tendência. Permita-se mencionar dois trechos de decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema educacional. Ao decidir sobre o direito constitucional à creche, o ministro Luiz Fux, relatando o acórdão, afirma que: [...] ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como circulares, portarias, medidas provisórias, leis ordinárias tenham eficácia e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria
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intelectual que assola o país (STJ, RE 575.280/SP, Rel. p/ acórdão ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 25.10.2004).
Relatando outro acórdão, também relacionado à educação infantil, o mesmo ministro Luiz Fux é ainda mais contundente: “[A] Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário, reclama efetividade real de suas normas” (STJ, RE 771.616/RJ, relator ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 01.08.2006). Os trechos selecionados permitem vislumbrar a possibilidade de um efetivo modelo constitucional substancial garantido. É alto o valor da concepção de que os direitos fundamentais em geral são a todos garantidos de maneira incondicionada, independentemente da conjuntura política, até mesmo contra a vontade da maioria. Isso permitiria, por exemplo, enxergar como violação do poder público o não cumprimento das promessas constitucionais que constam, por exemplo, do artigo 205 da Constituição, violação esta passível de controle pelo Judiciário. Os enunciados do artigo 6o (direito social à educação), do artigo 205, 208 e 211 da Constituição Federal, dentre outros igualmente relacionados ao tema, são normativos e, portanto, trazem consigo conteúdo deôntico (prescrição). Apesar de aparentemente óbvia, essa constatação traz grande conforto argumentativo. Admitindo-se que se trate de enunciados normativos de direitos fundamentais, torna-se possível conceber os direitos fundamentais relacionados à educação, de implementação ainda tão restrita, como mais que apenas boas ideias para o futuro, fruto retórico de um momento pós-autoritário. Permite concebê-los não como expectativas, mas como exigências reais de prestações fáticas cuja satisfação não é disponível. Por sua vez, a referência à vontade da maioria não é singela. Vem como lembrança da objeção democrática corriqueiramente feita ao neoconstitucionalismo. No entanto, entende-se que o modelo de Estado Constitucional de Direito, substancial e garantista, introduz uma dimensão substancial também na democracia, tornando necessariamente inerentes a ela os direitos fundamentais (Ferrajoli, 1999, p. 23 e ss.). Assim, além da democracia formal ou política, fala-se em democracia material ou substancial. Enquanto a primeira relaciona-se ao modo 156
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de produção das decisões de Estado, segundo regras formais, a segunda refere-se ao que pode ser decidido ou ao que deve ser decidido pela maioria, à luz dos direitos fundamentais, sob pena de invalidação da decisão ou da ausência de decisão. A democracia política adquire, assim, vínculos de substância, que podem ser negativos nos casos de direitos de liberdade, ou positivos, nos casos de direitos sociais. “Ninguna mayoría, ni siquiera por unanimidad, pudede legítimamente decidir la violación de um derecho de libertad o no decidir la satisfacción de um derecho social” (Ferrajoli, 1999, p. 24). Importante que se compreenda que o modelo neoconstitucionalista não descreve mera filosofia de justiça de traços jusnaturalistas. Pelo contrário, identifica um modelo institucional específico, cuja dinâmica demanda sua própria estrutura de interpretação. Evidente que depende também de uma prática social específica. Já se apontaram certas características do Estado Constitucional de Direito relacionadas a certas posturas sociais face à constituição. No entanto, não parece que apenas tal praxis pudesse forjar o modelo neoconstitucionalista, sem o auxílio de instrumentos institucionais como as garantias jurisdicionais de efetivação de direitos constitucionalmente previstas1. A origem da transformação do Estado de Direito Legalista ao novo modelo, quer-se crer, é social. Trata-se de uma mudança de postura face ao caráter neutro da lei geral e abstrata expressada pelo legislador. Sobretudo diante do desgaste provocado pelo período que envolve as duas guerras mundiais, a constitucionalização do direito surge a partir de uma percepção social de que a compreensão liberal da lei, como expressão independente da vontade geral e abstrata da nação, pode constituir uma perigosa farsa. Perigo comprovado, entre outros exemplos, pelas experiências totalitárias europeias das décadas de 1930 e 1940 do século XX, cuja visão otimista2 da atuação do poder e da autoridade em benefício da nação
1. Para posição contrária, ver Pozzollo (2006, p. 78). 2. Citando Luigi Ferrajoli, Luis Pietro Sanchís explica que “[t]odos os totalitarismos comportam uma visão otimista do poder; ‘ao contrário, o pressuposto do garantismo é sempre uma concepção pessimista do poder, seja quem for que o possua, posto que se encontra 157
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viabilizou que aqueles estados adotassem as soluções institucionais discriminatórias e aviltantes contra apátridas e minorias que a História infelizmente a todos fez conhecer. Esse processo, todavia, deixou evidente a insuficiência da concepção legalista de direito, afastada de qualquer atribuição de conteúdo moral, e cujo suporte no ordenamento advém exclusivamente da não negação às normas formais de sua produção. A crise da legislação ordinária, oriunda da percepção da lei como ato permeado pelos mais diversos, por vezes nocivos, interesses, aliada a tudo o que representaram as duas grandes guerras terminará por questionar a capacidade do direito “para ordenar adequadamente a vida social e política e suporá a definitiva superação do estado legislativo de direito como modelo de ordenação social e a necessidade de reformular e restaurar a eficácia do direito como limite ao poder”3. No momento pós-Segunda Guerra Mundial, a demanda presente em todos os setores sociais é a da atribuição de forte conteúdo axiológicosocial ao ordenamento, que declarasse direitos e garantisse a proteção e o desenvolvimento dos indivíduos. Esse “novo ethos político que resultava da superação da concepção liberal da separação da sociedade e estado traduzia-se, agora, num esforço cada vez mais crescente de institucionalizar um estado que se caracterizasse como social, conformando, portanto, desde um novo tipo de relação estabelecida entre Estado, cidadãos e sociedade, a uma ordem normativa capaz de direcionar a própria ordem econômica e social em função da promoção da dignidade humana”4. Conforme aponta Barroso5, essa foi a forma como a constitucionalização se deu na Europa. No Brasil, o Estado Constitucional de Direito
exposto, em todo caso, à falta de limites e garantias e a degenerar em despotismo’”. Em Luis Pietro Sanchís, “Constitucionalismo e Garantismo”, Revista de Direito do Estado, n. 7, Rio de Janeiro, 2007. 3. Écio Oto Ramos Duarte, Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico: Uma Introdução ao Neoconstitucionalismo e às Formas Atuais do Positivismo Jurídico. São Paulo, Landy, 2006, p. 19. 4. Écio Oto Ramos Duarte, op. cit., p. 19. 5. Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil, p. 4. Disponível em www.georgemlima.xpg. com.br/barroso.pdf. 158
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começa a se forjar, eminentemente, no momento da redemocratização com a Constituição de 1988, possivelmente em função da mesma vontade socialmente compartilhada de que permanecesse a equidade. Nas palavras do jurista, observou-se nesse período de quase vinte anos o surgimento entre nós de um “sentimento constitucional”, ainda tímido, mas já suficiente para ser celebrado, porque começa a afastar dos brasileiros a histórica indiferença face ao texto constitucional.
O Conteúdo do Direito à Qualidade Todo esse esforço teórico, no entanto, fica sem sentido se não for possível ao aplicador do direito constitucional (na ótica até aqui trabalhada o juiz) definir o conteúdo da prescrição do direito à qualidade da educação. A educação constitui um direito subjetivo público. Significa que envolve uma relação em que um sujeito determinado possui um interesse juridicamente protegido. Essa proteção jurídica, por sua vez, organiza-se por meio da existência oposta de um dever. Segundo Kelsen, “o direito do credor é protegido pelo dever jurídico do devedor” (1984, p. 194). Essencial, portanto, ter claro qual a prestação (dever) envolvida na relação estabelecida pelo direito à educação. Na Constituição brasileira esse conteúdo é esclarecido pelos artigos 205 e 206. O primeiro individualiza os sujeitos sobre quem recai o dever, o Estado e a família. Estipula também, ainda que com máxima abstração, diretrizes mínimas ao conteúdo do direito: “desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. É, porém, determinação, não poesia jurídica. Já o artigo 206, por sua vez, enumera os princípios que devem fundamentar o ensino no país. Destaque-se seu inciso VII, que garante um padrão de qualidade. O intérprete percebe com facilidade que o interesse juridicamente protegido não é aquele de ter todo o grupo social em idade escolar fisicamente dentro de estabelecimentos de ensino. Não se menospreza a universalização do acesso à rede de ensino. Contudo, este somente pode ser entendido como o primeiro momento da tarefa do Estado (e em algum grau da família) de efetivar o direito à educação. Nesse sentido, Oliveira 159
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atribui “importância significativa à universalização do acesso ao ensino fundamental, posto que esta faz com que ‘as contradições mudem de lugar’, passando a concentrar-se na expansão das etapas posteriores a este e na qualidade da educação básica, notadamente do ensino fundamental” (Oliveira, 2007, p. 666). Conforme a apresentação do autor, nas últimas três décadas, período em que o ensino fundamental praticamente se universalizou, direção para a qual também caminha o ensino médio, as contradições na demanda por educação transferiram-se progressivamente no processo educativo, na medida em que o problema imediato anterior era resolvido. O primeiro objetivo teria sido o aumento da rede física, configurando a demanda pela expansão do número de vagas nas séries de acesso. Resolvida essa questão, o passo seguinte apresenta-se como a necessidade de reduzir os índices evasão escolar, criando condições para que os alunos concluíssem o ensino fundamental. Ligada à necessidade de controle da evasão veio a demanda pela redução da repetência e dessa forma a regularização do fluxo de escolarização, homogeneizando os índices de matrículas ao longo das séries do ensino fundamental. Inúmeras soluções, tais como a “adoção de ciclos, da promoção automática e de programas de aceleração da aprendizagem” (Oliveira, 2005, p. 10), foram encontradas para resolver o problema do progresso no sistema educacional. A ineficácia do direito à educação, como se vê, tem passado por diferentes momentos do processo educativo. Já não se encontra no tempo do acesso inicial, nem tampouco representada pelas barreiras à passagem aos níveis seguintes (como foi o caso do Exame de Admissão ao Ginásio). Aos poucos, também deixa de existir no fluxo dentro do sistema, à medida que este se regulariza. Pois bem, não causa embaraço afirmar que a dimensão de ineficácia do direito à educação encontra-se hoje, sobretudo, naquilo que se refere à garantia de qualidade. Essa constatação não é privilégio nacional. Brown, ao iniciar reflexão sobre a qualidade na educação, afirma que “a questão da quantidade é urgente que se torna compreensível, embora não de bom senso, esquecermos inteiramente da qualidade” (tradução livre de Brown, 1957, p. 361). Importante retomar o fundamento te160
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órico do neoconstitucionalismo para se remarcar que não se trata de mera demanda social, surgida da percepção de uma nova contradição. Trata-se de um direito constitucional, diretamente acessível, passível de ser garantido juridicamente através do Judiciário. Para tanto, porém, é necessário que haja, ao menos na cultura jurídica, definição do dever envolvido nessa obrigação pública. Muitos elementos poderiam ser oferecidos a uma definição jurídica, não pedagógica, de educação de qualidade, tais como estrutura física, currículo, material de ensino, recursos de aprendizado, diplomação do corpo docente etc. No entanto, pensando nesses elementos como prestações do Estado por meio de intervenções diretas no sistema, deve-se ter em mente a necessidade de equilíbrio, apontada por De Groof, “entre liberdade e, dessa forma, responsabilidade das administrações das escolas, universidades e outras instituições de educação superior de um lado, e o papel diretivo do governo de outro” (De Groof, 1998, p. 2). Segundo a opinião de De Groof (1998), a qualidade, tomada como algo a que o aluno tem direito, refere-se à intervenção do Estado. O dever do Estado em relação a essa dimensão do direito à educação avalia-se (e se efetiva) quanto à qualidade de sua intervenção no processo educacional. Nesse sentido, afirma, a qualidade da intervenção estatal é melhor avaliada em função dos esforços que faz para promover qualidade nas instituições de ensino. Essa ideia, qual seja, a de que o dever do Estado quanto à qualidade avalia-se do ponto de vista de sua obrigação de garantir um processo educacional confiável e livre de defeitos, é extremamente interessante para a pretensão de efetivação jurisdicional dessa dimensão do direito à educação. Porque, ao menos do ponto de vista jurídico, a eficácia da qualidade não deve ser pensada sob a mesma estrutura lógica utilizada para resolver contradições de quantidade. Ao juiz não pode ser imputada a tarefa da análise fria de índices numéricos, sob pena de ser captado por perversões a eles inerentes, incapazes de serem percebidas sem a formação técnica adequada. Medidas como a construção de escolas, eliminação de barreiras de acesso, adoção de ciclos, adoção de promoção automática, são todas suscetíveis de provocar grande impacto em índices de eficiência do sistema 161
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educacional. Contudo, relacionam-se todas com dimensões do direito à educação que não são aquela da qualidade. Oliveira (2007, p. 10) menciona um novo indicador de qualidade que vem sido introduzido no Brasil. Trata-se da medida de qualidade através da capacidade cognitiva dos alunos, medida através de testes padronizados em larga escala. Mas mesmo tais exames, muitas vezes, são imperfeitos por não eliminarem da medição as diferenças sociais, vez que acabam não considerando na avaliação o resultado em função do ponto de partida. O estudante que parte de um nível intelectual alto, em função de condições familiares e socioeconômicas favoráveis, pode apresentar progresso muito inferior que um estudante que parte de um nível baixo, em função de condições desfavoráveis, e ainda assim apresentar um resultado objetivo superior a ele. Há ainda o vício possível de, num esforço de melhorar indicadores, direcionar a educação tão-somente para o sucesso no teste. Não parece, portanto, que o paradigma da produtividade pura possa servir de parâmetro ao aplicador do direito quando da garantia da educação de qualidade. Tomar dela o produto como instrumento de controle ganha ares de imperfeição. A função do juiz restaria mais efetiva se relacionada ao controle do processo de aprendizagem. Obviamente não lhe caberia avaliar estratégias pedagógicas. Mas a prática jurisprudencial sobre o tema, em reiteradas decisões, é capaz de delimitar um mínimo de responsabilidade, extraída da própria compreensão de dignidade humana, que possa ser exigível do Estado na condução da educação. Algo como um mínimo de estrutura física e de condições sanitárias, o já existente mínimo de dias letivos, um máximo de abstenção de professores, um mínimo de recursos educativos aos alunos. A perspectiva neoconstitucionalista demanda essa postura dos juízes. Tomando a constituição como conjunto de normas de vinculação direta, cabe-lhes prover a efetivação, o que se faz por meio das categorias jurídicas conhecidas. Já foi dito aqui que no neoconstitucionalismo os juízes ocupam posição de protagonistas. Deixar a definição jurídica (exigível) de qualidade ao Executivo ou ao Legislativo seria reintroduzir um elemento de intercalação entre sociedade e Constituição. Tem-se a consciência do 162
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extremamente amplo debate na psicologia e na pedagogia em torno do que seja educação de qualidade. O Judiciário, entretanto, para além do direito, não é um órgão técnico. Seria possível, nesse sentido, fazer a distinção de educação de qualidade definida para fins de política pública e educação de qualidade definida para fins de proteção jurídica. Importante ter claro que não se pode pretender do juiz o desempenho de personagem psicólogo ou pedagogo. Porém é tarefa sua, no Estado Constitucional de Direito, determinar uma definição jurídica para esse direito. Daí falar-se em mínimo de responsabilidade por parte do Estado na condução do processo educacional. Porque se trata de ideia que remete ao princípio da dignidade humana, passível de ser mais facilmente assimilado e trabalhado pelo Judiciário através de critérios de razoabilidade. Nesse esforço é que deve buscar apoio nas outras ciências, bem como em demandas sociais. Por sua vez, faz-se menção à reiteração jurisprudencial como fonte dessa conceituação jurídica de educação de qualidade por ser ela o elemento que atribui racionalidade e segurança ao sistema (a análise jurisprudencial permite ao particular conhecer o conteúdo de seu direito; o que esperar da decisão judicial).
Considerações Finais Há, por fim, uma peculiaridade em relação ao sistema educacional brasileiro, ligada à questão da qualidade, sobre a qual devem ser tecidos alguns comentários, ainda que de modo singelo, como uma sugestão de tema para um próximo estudo. Trata-se da interface entre a qualidade da educação e a exploração desta pela iniciativa privada. Com fundamento na abertura conferida pela norma do artigo 209 da Constituição Federal, a educação no país encontra-se, de modo dificilmente reversível, inserida na roda do moinho satânico de que fala (Polanyi, 2000). Na sociedade da informação, à medida que o mercado cria relações de dependência cada vez maiores com o conhecimento, tal como ocorreu com o trabalho, a terra e o dinheiro em outra ocasião, também a educação vai ganhando a categorização de mercadoria fictícia. Qualificar de fictícia a assemelhação de educação a mercadoria é ação de extrema relevância, que, acredita-se, deve estar sempre presente 163
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no raciocínio do estudioso do tema. De fato, na sociedade contemporânea, parece sem retorno a organização da educação num mercado, com oferta, demanda e agentes econômicos concretos, sobretudo no âmbito de sua exploração pela iniciativa privada. A essa composição, o conceito de mercadoria é essencial. Todavia, não se pode perder de vista que, em sua essência, não é à venda e ao comércio que se destina a atividade educacional6. No âmago, a finalidade da educação é divulgação do conhecimento, de modo a promover o crescimento intelectual de todos os indivíduos e garantir, assim, o desenvolvimento conjunto do corpo social. Ainda que organizada numa estrutura semelhante a um mercado, esse é o conteúdo que deve prevalecer na exploração da atividade educacional, e não meramente a aferição de lucro (que, todavia, não se condena de antemão). Essas constatações têm importante implicação no que diz respeito à qualidade da educação. Porque é através de sua garantia que, ao abrir à iniciativa privada a exploração do ensino, o artigo 209 da Constituição mantém-na, por critérios de autorização e avaliação de qualidade pelo poder público, como responsabilidade última do Estado. Mantémna como direito subjetivo público, diretamente acessível e exigível pelo particular através da via judicial. O problema, como aponta (Ranieri, 2005, pp. 58-70), é que as regulações relativas à autorização e o controle são no mais das vezes vagas e incertas, mecanismo que não tem favorecido o controle de qualidade também no âmbito da exploração privada de ensino. Nas palavras da autora, “pelo contrário, enseja questionamentos acerca da legalidade e legitimidade do controle que exercem. Isso não só o enfraquece como provoca um alto grau de incerteza relativa aos referenciais legal e administrativo inseridos no sistema jurídico. O procedimento desencadeia táticas defensivas por parte dos grupos afetados e tende a relativizar o direito em sua generalidade abstrata”. Conclui-se afirmando o grande desenvolvimento que a perspectiva neoconstitucionalista pode trazer ao debate do direito à educação e, em 6. Nesse sentido, ver a explicação de Polanyi (2000, p. 94) cerca da natureza de mercadoria fictícia do trabalho, da terra e do dinheiro. 164
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especial, do direito à educação de qualidade. Seja quanto à efetivação pública do direito, seja no momento de garanti-lo na exploração privada, a Constituição Federal atribui ao indivíduo o poder de, de forma independente, acessá-la diretamente e cobrar, através do Judiciário, a eficácia não de um programa, de um ideário, mas da norma que lhe confere um direito público subjetivo em todas as suas dimensões. Quanto à dificuldade de atribuição de conteúdo ao direito à qualidade de ensino, parece que, nessa perspectiva neoconstitucionalista, de protagonismo judicial, o melhor caminho a ser trilhado é o da realização da dignidade humana. Somente dessa forma o direito não será à nota, não será à aprovação, noções de fácil maquiagem, o direito será à educação.
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Introdução A discussão sobre qualidade em educação assumiu grande visibilidade no debate público e faz parte do rol de preocupações, não só dos especialistas da área da pedagogia, mas também de outras áreas de conhecimento como a economia e a administração. O direito pouco a pouco também vai tomando parte nessa importante questão educacional, talvez ainda sem o volume de produção acadêmica que o tema merece. De toda sorte, a questão da qualidade do ensino possui elementos que a todos parece interessar e é notável o apelo que o assunto desperta na população. Os meios de comunicação de massa, em geral, e especificamente os jornais e revistas dedicam espaço, editoriais e cadernos especiais sobre o tema. A publicação de resultados de avaliações de ensino, por exemplo, é sempre notícia que aparece em primeira página dada a sua repercussão pública. Vivemos um período histórico em que o ensino fundamental1, encontra-se, salvo exceções, praticamente universalizado no país, de forma 1. O art. 21 da Lei n. 9394/96 (LDB) divide a educação escolar em educação básica 167
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que o caminho da superação do problema do acesso a vagas no sistema educacional começou a abrir uma nova senda de preocupações para o direito à educação. Segundo Oliveira (1996, p. 61) “a questão da qualidade, ou temática da qualidade, substitui a temática mais tradicional da igualdade e da igualdade de oportunidades, e nessa perspectiva ela funda um novo centro para a elaboração de políticas educacionais”. É certo que a falta de vagas continua sendo um problema sério no país, principalmente na etapa da educação infantil na modalidade creche, mas parece que cada vez mais o direito à educação vai se ampliando para abarcar preocupações que vão além da mera obtenção de matrícula para incluir o padrão de qualidade das vagas oferecida. Se todos os setores da sociedade concordam com a ideia de que a educação deve ter qualidade, uma noção mais precisa do que seria essa qualidade do ensino parece perdida em uma cacofonia dentro da qual as vozes do debate destoam e tecem suas próprias concepções de qualidade no setor. Não há propriamente uma unanimidade em torno do que é qualidade do ensino e dado que o tema, como apontamos, desperta a atenção e interesse em múltiplas áreas de saber, pois parece guardar em si um ideal de concretização complexo que solicita esforços complementares, a nossa intenção é oferecer ao debate um viés jurídico-constitucional recorrendo a uma singela reflexão a partir da Constituição Federal que apresenta a garantia de padrão de qualidade como princípio a reger a forma em que o ensino será ministrado no país (art. 206, VII). Antes, porém, apresentaremos a problemática conceitual de qualidade do ensino e traçaremos, brevemente, o contexto histórico de sua emergência.
(composta por educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e ensino superior. A educação infantil é oferecida em creches para crianças de até três anos e em pré-escolas, para crianças entre quatro e cinco anos. O ensino fundamental tem duração de nove anos, sendo o seu acesso obrigatório às crianças a partir dos seis anos de idade e o ensino médio é a etapa final do ensino básico, com duração de três anos. 168
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Qualidade do Ensino: Problemas Conceituais A noção de qualidade do ensino é um daqueles conceitos que gera para si concordância imediata de todos assim que é enunciado, mas que causa grande divergência assim que a mera aceitação da ideia geral é substituída por uma análise mais minuciosa sobre o conteúdo abarcado pela noção. Ora qualidade parece não ir além de um certo consenso difuso, dentro do qual há o enaltecimento do ensino oferecido pelas escolas privadas, notadamente na esfera de educação básica e a concomitante “estigmatização”2 do ensino público como o âmbito da falta de qualidade; ora qualidade parece excessivamente vinculada à ideia de avaliação, como se avaliação por si só fosse sinônimo de qualidade; ora o ensino de qualidade parece ser aquele que dá conta de formar o aluno dentro de certa concepção de educação ou mais instrumental (passar no vestibular, por exemplo) ou mais humanística, entre outras inúmeras possibilidades de se entender qualidade do ensino. As diferentes visões sobre qualidade do ensino é destacada por Carvalho: A exemplo do que acontece com outros “objetos” do discurso social de ampla visibilidade política e notável repercussão nos meios de comunicação de massa, o conceito de “qualidade do ensino”, em seu uso corrente, oferece uma série de riscos aos intelectuais e pesquisadores que sobre ele se debruçam. Dentre eles, o de ser tratado não como uma expressão polissêmica, capaz de nos remeter a diferentes interpretações e categorizações de uma variedade de experiências, vivências e práticas sociais, mas como uma entidade fixa e imutável, cuja presença essencial seríamos capazes de detectar – ou cuja grandeza pudéssemos medir – de forma inequívoca e a-histórica (2007, p. 307). [...] atendo-nos a alguns atores sociais é pouco provável que por exemplo, a Fiesp e a CUT, o Estado e a família, os professores e os responsáveis pelas políticas públicas tenham, todos, as mesmas expectativas sobre o que venha a ser educação de qualidade. [...] Para uns, a educação de qualidade deve resultar na aquisição de diferentes “competências”, que capacitarão o aluno a se tornarem trabalhadores diligentes; para outros, líderes contestadores, cidadãos solidários, empreendedores de êxito,
2. Sobre essa questão, ver o elucidativo artigo “A Estigmatização da Escola Pública”, Azanha, 1995. 169
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pessoas letradas, consumidores conscientes. Ora, é evidente que embora alguma dessas expectativas sejam compatíveis, outras são alternativas ou conflitantes, pois a prioridade de um aspecto pode dificultar ou inviabilizar outro. Uma escola que tenha como objetivo maior – e, portanto, critério máximo de qualidade – a aprovação no vestibular pode buscar a criação de classes homogêneas e alunos competitivos, o que impede a oportunidade de convivência com a diferença e reduz a possibilidade de se cultivar o espírito de solidariedade. Por outro lado, para certas correntes de pensamento, a própria ideia de que uma escola de “qualidade” deve desenvolver “competências” ou “capacidades” pode comprometer o ideal educativo, já que competência e capacidade, não revelam em seu uso comum um necessário compromisso ético para além da eficácia (2007, pp. 328-329).
Além disso, o uso comum da expressão “qualidade do ensino”, ora pode estar se referindo ao cumprimento do que seria esperado do processo educativo, de acordo com dada concepção de educação; ora pode estar se referindo a um plus de excelência, em que se leva em conta não apenas o que é meramente esperado, mas a contínua melhoria. É importante lembrar que “qualidade” guarda um sentido de excelência aplicável aos processos das corporações privadas que, diante da acirrada competitividade do mercado, buscam a melhoria de produtividade, maximização de resultados, diminuição de prejuízos. Esse sentido corporativo de “qualidade”, onde está implícita a noção de eficiência, acabou migrando para outros setores da sociedade, inclusive para a área de educação. Tanto a escola privada como também a escola pública absorveram um vocabulário típico das relações de mercado, do mundo do consumo e do ambiente corporativo com palavras tais como “satisfação”, “eficiência”, “resultados”, “qualidade” etc. A pergunta que seria pertinente fazer é em que medida seria apropriada essa passagem de noções advindas das relações das organizações empresariais privadas para as instituições de ensino, considerando que no campo educacional parece não ser facilmente aceitável conceber, por exemplo, resultados com variações mínimas de características no sentido de uma produção industrial em série, já que se lida com a formação de seres humanos, que são individualmente únicos. Por isso, causa um certo mal-estar a muitos pesquisadores da área da pedagogia, a unanimidade no discurso social que atribui qualidade 170
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ao ensino que almeja resultados utilitários, como a aprovação em vestibulares concorridos. O sucesso na aprovação em vestibulares por si só significa qualidade de ensino? Para a educação da rede pública de ensino esse também é o critério de qualidade? Ainda que os exames vestibulares sejam um dado da realidade social ao qual uma escola não pode se furtar, isso não implica tomá-los como meta – não raro exclusiva − a ser atingida pela escola pública. Inclusive, se as escolas públicas de São Paulo, por exemplo, tivessem como meta a aprovação de seus alunos nos vestibulares mais concorridos, estariam inevitavelmente fadadas ao fracasso, já que a oferta de vagas no ensino superior nessas universidades é notadamente menor do que o número de alunos que concluem o ensino médio (Silva, 2008, p. 76).
Por isso, o autor do excerto acima discute em sua tese de doutorado um sentido de qualidade para a escola pública, algo que não seja meramente instrumental e utilitário mas vinculado aos interesses públicos que a educação deveria servir. Esse quadro de dificuldades no estabelecimento de uma ideia mais precisa do que seja qualidade em educação justifica a nossa preocupação em lançar um olhar sobre qualidade a partir da própria Constituição Federal.
A Emergência do Tema “Qualidade do Ensino” As preocupações contemporâneas com a qualidade na educação coincidem com os acontecimentos da política e economia internacionais, em especial a partir da década de 1980 do século XX. É preciso destacar, em primeiro lugar, o papel da globalização, a internacionalização da economia e o quadro de competitividade entre as nações gerando o discurso da educação enquanto elemento propiciador de diferencial na concorrência além de peça chave para o desenvolvimento dos países periféricos. Além disso, com a queda do Muro de Berlim, houve uma certa unanimidade em torno de políticas de natureza neoliberal a ensejar reformas visando a maior eficiência do Estado e dos serviços por ele mantidos, trazendo para dentro da estrutura estatal formas de administração 171
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típicas das corporações privadas, onde a noção de “qualidade” já tinha livre trânsito. Também é importante destacar que o avanço tecnológico das últimas décadas tem repercutido de forma marcante na empregabilidade das massas trabalhadoras exigindo uma educação cada vez mais especializada afinada com esse novo panorama. No Brasil, segundo Oliveira e Araújo (2005), a concepção de qualidade sofreu mudanças de enfoque na história recente da educação nacional sendo percebida, segundo os autores, de três formas diferentes: universalização do acesso ao ensino, fluxo do aluno dentro do sistema escolar e avaliações por meio de testes. Em um primeiro momento, a qualidade foi discutida em função do processo de universalização do acesso ao ensino obrigatório e gratuito de oito anos, ocorrido na segunda metade do século XX. Falar em ensino público obrigatório e gratuito até esse período, era falar de um processo de escolarização primária com duração de quatro anos. A etapa do processo de escolarização que hoje chamamos de “ensino fundamental” era claramente cindida após o término dos quatro primeiros anos do primário, já que o acesso à etapa posterior do ensino, o ciclo ginasial do ensino secundário, era dificultado pelo chamado “exame de admissão” que tinha características similares ao atual vestibular para universidades públicas: extrema dificuldade, sucesso reservado às classes economicamente mais privilegiadas e exclusão da grande maioria. Entretanto, esse estado de coisas começou a ser alterado com as mudanças sociais advindas do intenso processo de industrialização do país, êxodo rural, migrações internas, intenso processo de urbanização e das pressões das populações excluídas da escolarização de duração mais ampla. A necessidade de estender a escolaridade obrigatória de oito anos para todos, flexibilizando-se o exame de admissão, passou a ser uma exigência política daquele período histórico e culminou com a Lei n. 5692/71 que apresenta o ginásio como sequência natural do primário, conforme art. 18: “O ensino de 1o grau terá a duração de oito anos letivos [...]3.
3. Atualmente, por conta das alterações no art. 32 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e 172
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Nesse processo, houve reação de parte da imprensa que se posicionou contrariamente ao que era chamado pejorativamente de “massificação” do ensino. Os próprios professores da rede pública mostraram-se arredios já que a mudança implicava em alterar práticas pedagógicas às quais estavam acostumados e lidar com um alunado de extratos populares, desconhecedores da linguagem, valores e signos até então cultivados em uma instituição escolar de elite. Vem dessa época o saudosismo, que ecoa até os dias de hoje, em relação aos supostos “bons tempos” em que a escola pública tinha qualidade e que seria preciso recuperar os padrões que o ensino público teve no passado. O problema é que a escola do passado respondia às necessidades do passado. A qualidade que a ela se atribuía não pode ser reproduzida nos dias de hoje pois implicaria em um quadro excludente da maioria da população. Sob a perspectiva dos segmentos privilegiados da coletividade, a qualidade do ensino público realmente pode ter piorado: os grupos privilegiados já não encontram na escola pública os padrões de ensino que recebiam num passado recente. Mas sob a perspectiva das classes subalternas, a situação não é a mesma. A relação, aqui, se inverte, pois, à medida, que veio conquistando a possibilidade de matrícula, a população passou a contar com serviços antes inacessíveis. Para quem não tinha acesso à educação escolar, mesmo este ensino de má qualidade representava uma melhoria. Isso não significa, obviamente que as deficiências da escola pública sejam aceitáveis. Mas as avaliações da qualidade da escola pública não podem ignorar as transformações qualitativas introduzidas no ensino no processo de sua extensão às classes populares (Beisiegel, 2005, p. 151).
Durante o período em que a tônica da qualidade era a ampliação do acesso, a prioridade era a geração de novas vagas. Note-se que o problema do acesso não está de todo resolvido, mas uma vez minimizado, surge, a partir da década de 1990, o segundo enfoque da qualidade, agora calcado no fluxo do aluno no sistema de ensino fundamental.
na Constituição Federal pela Emenda n. 53/2006, o ensino fundamental obrigatório passou a ter duração de nove anos, iniciando-se aos seis anos de idade. Na verdade, não se acrescentou um ano a mais de escolarização, mas simplesmente retirou-se um ano da pré-escola para classificá-lo com educação fundamental. 173
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Segundo Oliveira e Araújo (2005, p. 10) “a partir da comparação entre a entrada e a saída de alunos do sistema de ensino, era medida a qualidade da escola. Se a saída se mostrasse muito pequena em relação à entrada, a escola ou o sistema como um todo teria baixa qualidade [...]”. A questão do fluxo diz respeito, portanto, às preocupações que envolvem a permanência e evolução do aluno na escola, recebendo a educação no tempo previsto, sem o abandono dos estudos antes de terminar o processo educativo. Assim, o enfoque da qualidade passa a se deter em métodos para correção de desvios na progressão do aluno no sistema, como a repetência e a evasão escolar, o que originou, por exemplo, o regime de progressão continuada. Considerando que a questão do fluxo esteja minorada (embora não de todo solucionada, assim como o acesso a vagas também não está de todo resolvido), e que, em tese, a maioria permanece e progride na escola até o fim da etapa obrigatória, o foco da qualidade volta-se, mais recentemente, para os resultados obtidos após o processo de escolarização, por meio de avaliações cognitivas dos estudantes com testes padronizados4, em larga escala. Não se põe em questão o fato de a prática escolar produzir resultados. Aliás, seria inusitado que, após um processo de escolarização, compreendendo as etapas da educação básica, por exemplo, não esperássemos alguns resultados, muitos deles óbvios como o aprendizado da leitura, escrita e noções de cálculo. Mas outros tipos de resultados esperados de um processo de escolarização podem não ser objetivos ou claramente mensuráveis através de exames padronizados. Pense-se, por exemplo, que um “resultado” a ser apresentado pela escola é o de formar cidadãos [...] (Silva, 2008, p. 24).
O problema apontado no excerto acima é uma grande preocupação dos educadores com o uso de testes no campo do ensino: a crença acrítica de que avaliações cognitivas possam revelar tudo o que seria importante em um processo educativo. Sem cair nessa distorção, é importante
4. São exemplos desses testes o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), esse último voltado para avaliação do ensino superior, entre outros 174
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frisar que avaliação é um mero indicador que precisa de uma hermenêutica de resultados competente para de fato auxiliar na elaboração de políticas públicas na área de educação.
Qualidade de Ensino na Constituição de 1988 e na LDB Diz a Constituição Federal de 1988: “Art. 206 O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] VII. Garantia de padrão de qualidade. O status constitucional dado ao tema da qualidade do ensino é exclusividade da Carta de 1988, não encontrando antecedentes na história constitucional brasileira. Na verdade, a preocupação com a questão da qualidade em todos os setores da vida contemporânea, inclusive, mas não somente, na área de educação, faz parte, como já nos referimos anteriormente, de desdobramentos históricos de maior amplitude ocorridos em especial, nas décadas finais do século XX e com repercussões sociais, econômicas e políticas em escala planetária. Mas a Constituição não apresenta uma definição de qualidade do ensino que possa dirimir as divergências de entendimento que apontamos anteriormente. Como se nota, a garantia de “padrão de qualidade” é apresentada como um princípio constitucional. Sem a pretensão de discutir as concepções e a complexidade que envolvem doutrinariamente a ideia de “princípio” no âmbito do Direito Constitucional, admitamos a perspectiva de que: “os princípios são normas imediatamente finalísticas. Eles estabelecem um fim a ser atingido [...] A instituição do fim é o ponto de partida que procura por meios. Os meios podem ser definidos como condições (objetos, situações) que causam a promoção gradual do conteúdo do fim” (Ávila, 2008, p. 79). Assim, o princípio do art. 206, VII, traz em si a finalidade de obtenção de qualidade do ensino, sendo pertinente pensar quais seriam as condições que contribuiriam para a materialização dessa finalidade. Recorrendo à leitura privilegiada da Constituição feita por alguns renomados constitucionalistas que publicaram obras que se destinam a comentar a Constituição de 1988 artigo por artigo ou apor notas ao texto constitucional, podemos tentar colher lições no que tange ao en175
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tendimento desses juristas sobre a concretização da qualidade, ao comentarem o art. 206, VII. Ferreira Filho (1999, p. 244) faz uma nota simples onde demonstra alguma desconfiança sobre a exequibilidade da qualidade: “a busca da qualidade do ensino é, sem dúvida, um princípio louvável. Garanti-la, porém, é uma promessa nem sempre executável. Silva (2006, p. 789) procura identificar com objetividade o que comporia a ideia de padrão de qualidade: O padrão de qualidade do ensino depende de fatores intrínsecos e de fatores extrínsecos. Os primeiros estão vinculados à organização dos estabelecimentos escolares, que hão de estar aparelhados com o instrumental adequado a cada tipo de habilitação que oferecem, desde o preparo da criança para as sucessivas etapas do ensino até sua formação profissional – o que envolve a boa formação dos profissionais do ensino em cada uma dessas etapas, mas também requer a permanente atenção dos poderes públicos para com as condições materiais das escolas, tais como as tecnologias modernas de ensino, como a informatização dos estabelecimentos de ensino. Os segundos significam oferecer condições econômicas adequadas às famílias para que seus filhos tenham condições de auferir um bom aprendizado, porque o padrão de qualidade do ensino só se afere no rendimento escolar dos estudantes, e isso não depende apenas da boa qualidade dos professores, mas também, e principalmente, da predisposição do alunado para o aprendizado – o que, na mais das vezes, depende de uma boa alimentação e da posse de material escolar apropriado.
Bastos (2000) comenta o inciso também descrevendo as condições em que a qualidade seria observada: O inc. VII do art. 206 da Constituição assegura a garantia do padrão de qualidade de ensino. Esta deve ser obtida por várias formas, entre elas a contratação e manutenção de professores qualificados nas escolas, boas instalações das instituições de ensino, laboratórios modernos, computadores, bibliotecas e material didático de boa qualidade e acessível a todos (Bastos, 2000, p. 535).
Ferreira (1995, pp. 86-87), que ao comentar o art. 205 da CF escreve um longo texto em forma de artigo, verdadeiramente primoroso e raro em obras de cunho jurídico, ao analisar o art. 206, VII, foca na formação de professores dizendo que
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[..] a garantia do padrão de qualidade é importante para o sucesso da educação e da formação da cidadania. Para manter-se tal padrão de qualidade, os professores deverão estar habilitados para ministrar aulas, permitindo-se-lhes a participação em cursos de especialização e aperfeiçoamento. O padrão de qualidade deve ser o melhor possível, daí a necessidade de remuneração razoável para os professores, material didático acessível para os alunos, laboratórios, tudo formando um complexo indispensável para a manutenção de levado padrão educacional, útil para o processo democrático de nobilitação da pessoa humana
Bulos (2000, p. 1197) comenta que “a qualidade referida não é somente a interna, apurada através de exames de avaliação escolar, como provas, testes, trabalhos de pesquisa, monografias etc., mas também a externa, mediante a qual o ensino será aferido pelos padrões e necessidades da sociedade”. Com base nessas indicações, poderíamos dizer que, para os juristas que comentam o art. 206, VII da CF, o padrão de qualidade do ensino seria atingido por uma série complexa de meios que envolveria: condições materiais para o ensino, tanto das instituições de ensino (existência em número suficiente, boas condições do edifício escolar, do equipamento físico disponível, limpeza e manutenção efetivos, fornecimento regular de água, energia elétrica etc.) como dos alunos (fornecimento de material escolar, merenda, transporte etc.); condições dos recursos humanos ligados ao ensino (formação adequada, atualização constante, remuneração condigna etc.); condições de natureza pedagógica (currículos adequados, metodologias apropriadas ao perfil do alunado etc.) resultados cognitivos do processo de aprendizagem aferíveis por meio de avaliações etc. De maneira geral, esses comentários parecem tender a uma percepção do tema da qualidade ligado a necessidades do sistema público de educação. De fato, quando se fala e qualidade do ensino, a imaginação costuma ser preenchida por problemas como superlotação de salas, falta de professores, professores despreparados, condições insalubres, falta de segurança etc., questões muito fortemente ligadas às percepções de qua-
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lidade do sistema público. Entretanto, o art. 206, VII é aplicável tanto ao ensino ministrado em instituições públicas quanto privadas. Além de aparecer na enunciação de um dos princípios que norteam a forma como será ministrado o ensino no nosso país, a ideia de qualidade ainda é mencionada no texto constitucional nos arts. 209, II; 211, § 1o; 214, III e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), no art. 60, VI e § 1o; reformulados pela Emenda Constitucional 53/06. Com exceção do art. 209, II, todas essa outras menções são destinadas especificamente ao ensino público: Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: [...] II. autorização e avaliação de qualidade pelo poder público (grifo meu). [...] Art. 211, § 1o A União organizará o sistema federal de ensino e o dos territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios (grifo meu). [...] Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do poder público que conduzam à: [...] III. melhoria da qualidade do ensino (grifo meu). Art. 60 (ADCT). Até o 14o (décimo quarto) ano a partir da promulgação desta Emenda Constitucional, os estados, o Distrito Federal e os municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento da educação básica e à remuneração condigna dos trabalhadores da educação, respeitadas as seguintes disposições [...]. VI. até 10% (dez por cento) da complementação da União prevista no inciso V do caput deste artigo poderá ser distribuída para os Fundos por meio de programas direcionados para a melhoria da qualidade da educação, na forma da lei a que se refere o inciso III do caput deste artigo (grifo meu). [...] § 1o A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão assegurar, no financiamento da educação básica, a melhoria da qualidade de ensino, de forma a garantir padrão mínimo definido nacionalmente.
Há nessas outras menções, as ideias de “avaliação” de qualidade, “melhoria” de qualidade e “padrão mínimo” de qualidade. A ideia de “avaliação” pelo poder público das condições de oferecimento de educação por parte das entidades privadas decorre do inte178
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resse público envolvido na atividade educacional. A ideia de “melhoria” não parece estar ligada imediatamente a uma concepção de que a educação pública deve ser cada vez melhor, mas da constatação implícita de que, grosso modo, tudo está muito ruim nessa área e é preciso garantir, no mínimo, uma melhora das condições de penúria vigentes. Chama a atenção as menções a “padrão mínimo” contidas no art. 211, § 1o, e também no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 60 § 1o. O próprio princípio do art. 206, VII, é enunciado tão somente como “padrão”, sem o qualificativo mínimo. Quando se fala em “padrão”, no uso comum da palavra, está presente a ideia de especificações normativas emanadas desse padrão, enquanto um modelo a ser seguido. Quando se diz “padrão mínimo de qualidade”, como no art. 211 § 1o, a ideia de “modelo” evidentemente permanece, mas a adjetivação “mínimo” impõe uma padronização menos exigente no que concerne à excelência e mais próxima de um patamar de essencialidade que, se respeitado, não se incorrerá em prejuízos graves. Mas o que seria esse padrão mínimo para o ensino público? A LDB prevê em seu artigo, 4o, IX: “Art. 4o O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: [...] IX. padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem”. Pela leitura do artigo, a dúvida sobre o que seria o “padrão mínimo” de qualidade transfere-se para determinar o que seria variedade e quantidade mínimas de insumos por aluno5.
5. Está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 71 impetrada em 2005, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, por ocasião da edição de decretos do Executivo veiculando um método de cálculo do valor mínimo por aluno, em desacordo com o estabelecido pela regras do Fundo de Desenvolvimento do Fundamental (Fundef). Um dos pedidos da ação é a fixação pelo Executivo do padrão mínimo de qualidade, imprescindível para calcular o valor mínimo por aluno. Se o pedido no tocante ao descumprimento às regras do Fundef ficou prejudicado, em função de sua substituição pelo Fundeb, voltado para educação básica, subsiste o problema de saber o que seria o padrão mínimo de qualidade. 179
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Com base na LDB, Liberati (2004, p. 257), sem a preocupação em definir quantidades mínimas de insumos por aluno, mas interessado em identificar o conteúdo material do direito à educação, aponta como uma das facetas desse conteúdo, a qualidade do ensino, e com o objetivo de, segundo suas palavras, “salientar a materialidade do direito à educação de qualidade”, aponta alguns indicadores retirados da prática escolar: [...] gestão da escola [LDB, art. 3o, VIII]; a utilização do tempo [LDB, art. 24, I], a organização do espaço [LDB, arts. 4o, IX, 25,74 e 75], a valorização dos profissionais da educação [LDB, art. 67, II], a composição dinâmica do currículo escolar [LDB, arts. 9o, IV, 26, 27 e 28], a orientação didático-pedagógica, as formas de avaliação [LDB, art. 24, V], a participação dos pais na escola [LDB, art. 14, II], o reconhecimento da comunidade e o apoio das autoridades. [...] cada um desses indicadores de qualidade de ensino (podem surgir outros!) é considerado direito material à educação de crianças e adolescentes e pode ser protegido por ações judiciais e extrajudiciais de qualquer espécie (ECA, art. 209), com a utilização de todos os instrumentos legais de exegibilidade previstos na legislação (ECA, art. 212).
Para o autor, portanto, a própria legislação infraconstitucional oferece as diretrizes para a determinação da qualidade a ser obtida judicialmente, se for o caso.
Considerações Finais Embora a expressão qualidade do ensino possa provocar entendimentos conflitantes sobre o seu verdadeiro conteúdo, é possível encontrar na Constituição Federal e na LDB, caminhos para o estabelecimento de uma concretude para o conceito. Mesmo reconhecendo que possa haver certo grau de incerteza quanto ao significado de “padrão de qualidade” no contexto da própria Constituição Federal, o recurso aos comportamentos concretos necessários à realização da finalidade embutida no princípio da garantia de padrão de qualidade, dão mais clareza ao significado do princípio. Na área da pedagogia, quando se fala em “ensino de qualidade”, é comum apontar-se a ambiguidade da ideia de qualidade e criticar-se certas unanimidades que consideram aprovação nos vestibulares ou resultados 180
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de avaliações cognitivas como sinônimos de qualidade. Ao pensar juridicamente o problema da qualidade do ensino há um certo conjunto de elementos cuja ausência implicam em evidente déficit de qualidade e esvaziamento do direito à educação tais como higiene das dependências do estabelecimento escolar, formação contínua de professores, apoio ao aluno (material escolar, transporte, merenda) etc. Sob esse enfoque, a qualidade é uma dimensão intrínseca ao direito de todos à educação. Dessa forma o próprio direito à educação sofre um alargamento em suas preocupações na medida em que não se trata mais de meramente garantir vagas no sistema de ensino, mas também garantir a qualidade do ensino oferecido.
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IV REFLEXÕES SOBRE O ENSINO PRIVADO
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A Natureza Jurídica do Serviço Prestado pelas Instituições Privadas de Ensino: Controvérsias sobre o Tema Luiz Gustavo Bambini de Assis
Introdução Diante da classificação constitucional da educação como um direito fundamental, mais precisamente, um direito social, e em virtude da sua caracterização, na essência, como um tipo de serviço público prestado pelo estado, o que se pretende é analisar se esse atributo de serviço público é perdido quando o serviço passa a ser prestado por instituições privadas. E o seu fundamento pode ser encontrado na significante divergência existente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acerca da natureza desse tipo de serviço: se trata-se efetivamente de um serviço público ou de uma relação de consumo, onde o aluno paga pela qualidade do serviço oferecido. A fim de tornar mais didático nosso estudo, pretendemos dividi-lo em três tópicos. No primeiro deles, analisaremos a divergência entre o conceito de educação privada como serviço público ou mera relação de consumo. Para tanto, faremos um estudo sobre a recente jurisprudência hoje predominante no Supremo Tribunal Federal para pontuarmos a questão. Em seguida, nosso objetivo será trabalhar, especificamente, o conceito de serviço público, suas origens, caracterização e, principalmente, 185
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seu enquadramento no ordenamento jurídico brasileiro. Recorreremonos à doutrina estrangeira e nacional para melhor explicitar o conceito. Por fim, almeja-se discutir o conceito de direito público subjetivo e de que maneira ele está ligado ao serviço prestado na área da educação. Esse ponto será importante para que possamos estabelecer uma conexão entre o conceito de serviço público, de direito público subjetivo e suas aplicações no campo do ensino privado. Construídas as premissas baseadas na doutrina e na jurisprudência, podemos, por fim, apresentar nossas conclusões acerca do tema.
Divergência entre o Conceito de Educação Privada como Serviço Público ou mera Relação de Consumo Não é de hoje que a nossa Suprema Corte vem se debruçando sobre como melhor conceituar o ensino privado, assim está interpretado esse tema na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.266/BA, relator ministro Eros Grau, cuja ementa abaixo transcrevemos: Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 6.584/94 do Estado da Bahia. Adoção de material escolar e livros didáticos pelos estabelecimentos particulares de ensino. Serviço Público. Vício Formal. Inexistência. 1. Os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização. 2. Tratando-se de serviço público, incumbe às entidades educacionais particulares, na sua prestação, rigorosamente acatar as normas gerais de educação nacional e as dispostas pelo Estado-membro, no exercício de competência legislativa suplementar (§ 2o do art. 24 da Constituição do Brasil). 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado improcedente (grifos nossos).
Ao entender que a natureza do serviço prestado é eminentemente pública, o relator admite que às instituições de ensino privado, esteja autorizado prestar um serviço de natureza pública, não privativo e que, portanto, pode ser delegado ao particular por meio de um ato administrativo meramente autorizativo. Ressalte-se que a autorização, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 430) é “ato unilateral, pelo qual a Administra186
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ção, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, tendo como regra, caráter precário”, ou seja, trata-se de ato sem maiores formalidades, que prescinde de contrato ou lei para existir. É de se ver que em seu voto divergente, o ministro Marco Aurélio entendeu que há uma diferença entre o ensino público específico e aquele prestado pelas instituições privadas. A seu ver, não há falar em ausência de distinção entre esses dois tipos de serviços, um prestado pelo Estado e outro pelo particular. Maior divergência ainda se instaura entre o ministro Carlos Brito e o relator. O primeiro vem afirmar o quanto segue: “Quero deixar registrado que não tenho a educação enquanto modalidade de serviço público. Com respeito à opinião do eminente Ministro-Relator, entendo que o artigo 175 da Constituição deixa claro que o serviço público é aquele titularizado pelo poder público, ou seja, de senhorio exclusivo do poder público” (grifos nossos). No que responde o ministro-relator, Eros Grau: “Exatamente por ser serviço público é que a Constituição diz, depois, que é livre no sentido de que, apesar de ser serviço público, é não privativo. Esse é o entendimento que se tem adotado ultimamente”. Em seu voto, explicita o ministro Sepúlveda Pertence não tratar-se o ensino privado de serviço público e sim de atividade privada, mas por estar relacionada a um direito fundamental, está sujeita às regulamentações estatais. Este posicionamento acabou sendo acompanhado pelo ministro Joaquim Barbosa1. A mesma discussão reaparece no julgamento da ADI 1.007/PE, cujo relator é também o ministro Eros Grau. Ao apartear o ministro Carlos Brito em seu voto, o ministro Joaquim Barbosa faz questão de deixar claro que o serviço prestado por instituições privadas não é objeto de consumo, mas sim um direito fundamental que, em última análise, deve ser entendido como uma prestação estatal.
1. Os votos e suas fundamentações foram retirados de um programa específico do Supremo Tribunal Federal denominado “Consulta 2000”, que traz toda a discussão e o conteúdo dos votos em arquivo pdf. 187
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No fundo, trava-se uma divergência no seguinte sentido: para alguns ministros, não obstante existir uma relação de consumo no caso em comento, essa também há que ser tutelada pelo Estado, que deve atuar em defesa do consumidor2. Para outros, não há falar em relação de consumo entre o estudante e a instituição privada, mas sim em serviço público. Por essa razão, a atividade econômica acaba tutelada pelo Estado. Essas referências que levantamos, mais especificamente nas duas ações de controle concentrado de constitucionalidade citadas, alertanos para essa divergência acerca da natureza do serviço em questão. Em uma tentativa de colaborar com o debate, partamos para uma análise dos conceitos propriamente ditos.
O Conceito de Serviço Público Trabalharemos, a partir de agora, o conceito do termo “serviço público”. As diversas formas de desempenho das atividades de estado, seja em seu sentido estrito quando prestada pelo próprio estado, seja em seu sentido amplo quando desempenhada pela iniciativa privada3, é que traz
2. Conclusão extraída da explicação apresentada pelo ministro Eros Grua na ADI 1.007, mais especificamente às fls. 18-21. 3. A diferenciação entre os conceitos “atividade econômica em sentido estrito” e “atividade econômica em sentido amplo” são trazidas por Eros Grau (2003, p. 91) em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 8. ed. São Paulo, Malheiros. O autor faz uma distinção interessante, pela qual considera o conceito atividade econômica em sentido amplo um gênero, da qual são consideradas espécies os conceitos de serviço público e atividade econômica em sentido estrito. O estado pode desempenhar atividades monopolizadas que, a priori, podem ser caracterizadas como atividades privadas, ou melhor, como atividades a serem prestadas pela iniciativa privada. O professor de Direito Econômico citado chega a caracterizar essa atividade como sendo de intervenção estatal, a “atuação do estado além da esfera do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado)”, caracterizando o termo “intervenção” ainda como “a intervenção na esfera de outrem”. Todavia, o estado desempenha também atividades que são inerentes à sua essência, que são a base de sua razão e existência. A prestação de serviços públicos é um exemplo desse tipo de, nas palavras do professor Eros, atividade estatal legítima, não caracterizada como intervenção, pois é justamente uma função inerente, uma tarefa precípua do ente público. É através da prestação de serviços públicos que a interação entre o estado e a sociedade encontram seu ponto de maior 188
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sentido à existência dessa relação entre estado e sociedade, tão estudada desde o século XVII, a partir das teorias de contrato social. É com as palavras da professora Cristiane Derani (2002, p. 61) que podemos corroborar nossa tese, quando afirma que: “O estado encontra sua legitimidade nos serviços que presta à coletividade. O poder público não pode se legitimar pela sua origem, mas somente pelos serviços que presta conformemente às regras do direito”. Assim, não há como dissociar a existência do estado da sua finalidade primordial, que visa à satisfação dos interesses da sociedade brasileira. Hely Lopes Meirelles (2001, p. 116) vem caracterizar o conceito de administração pública, em sentido material, como o conjunto de funções necessárias ao serviço público em geral. Ressalta ainda que em acepção operacional, a administração seria todo o aparelho do estado preordenado à realização de serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas. Das presentes assertivas podemos constatar que uma das principais metas da administração pública é a realização das necessidades da sociedade. O conceito de serviço público nasce na França, com León Duguit (1923, p. 54) e a chamada Escola de Serviço Público, para quem esse serviço é o fundamento, a premissa do poder governamental. Em sua famosa obra Traité de Droit Constitutionnel, o autor chega a subordinar o direito administrativo, seus princípios e bases à noção de serviço público4. O autor classifica o estado como sendo uma cooperação de serviços públicos que são organizados e controlados pelos governantes, o que demonstra a necessidade de disponibilidade do estado para a prestação do serviço em questão.
tangenciamento. É através da prestação desses serviços públicos que o estado é capaz de fazer valer a execução de suas políticas públicas planejadas que visem à promoção dos direitos. 4. De acordo com o autor: “No berço da Nação, no limite do território ocupado por essa nação os governantes devem empregar suas forças para organizar e controlar o funcionamento dos serviços públicos. Assim, os serviços públicos são um elemento do Estado”. (Tradução própria.) 189
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André de Laubadère (1988, p. 19) relaciona diretamente a noção de serviço público com a noção de interesse geral, que pode vir a ser traduzido pela noção de interesse público5. Assim, o conceito de serviço público afirma-se como sendo a própria existência do direito administrativo, a base de formação do Estado contemporâneo que se aperfeiçoa na busca das garantias das liberdades individuais e coletivas. Parece-nos que o conceito de serviço público só tende a ser aperfeiçoado na medida em que o estado liberal, seguido das revoluções sociais do século XIX e da presença do estado de bem-estar social no século XX, surge na tentativa de garantir direitos individuais e sociais. Leon Duguit (1923, p. 54) continuará defendendo as delimitações da ação estatal que devem ter como fulcro a plena garantia das liberdades individuais. Se o estado agir de maneira a privilegiar indivíduo ou minoria, estará agindo em desacordo com o interesse público6. E, assim, o autor condiciona a correta forma de atuação estatal à prestação dos serviços públicos, cujo escopo é justamente, nas palavras do autor francês, o desenvolvimento e a interdependência social, que é de tal natureza que só pode ser realizada a partir da intervenção da força governamental7. Essa subordinação da ação estatal à prestação de serviços públicos ganha linearidade a partir do momento em que as ações do Estado pas-
5. O autor afirmará: “O elemento essencial da definição do serviço público é a noção de interesse geral. O serviço público tem por finalidade der satisfação ao interesse público. O Estado exerce uma atividade em serviço público ao invés de entregá-la à iniciativa privada por entender que o interesse público envolvido na questão é incompatível com os interesses da iniciativa privada. É assim, a satisfação de um interesse geral que justifica e move o serviço público. Esta ideia define serviço público e o distingue dos interesses privados da Administração”. (Tradução própria.) 6. Na mesma obra citada, o autor francês menciona: “Les gouvernants [...] ne peuvent em aucune façon faire une chose qui, pour une classe, une minorité ou même um Seul individu, serait um entrave quelconque a la satisfaction des besoins communs a tous les hommes”, ou seja, não é possível ao agente político agir em benefício de uma classe ou um grupo minoritário de pessoas, em detrimento à defesa do interesse comum a todos os homens. Essa assertiva corrobora a tese de que o serviço público está diretamente relacionado à noção de interesse público. 7. Idem, p. 55. 190
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sam a ser limitadas, não podendo ser arbitrárias e contrárias à defesa dos interesses coletivos e individuais. Trata-se da noção de responsabilidade do estado perante seus atos, que ganha contorno a partir das revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII, fundamentada na ideia de defesa da liberdade e propriedade dos indivíduos, que finalmente ganha consistência e forma a partir das revoluções sociais vividas no mundo no século XIX. Desta forma, passa a estar presente o fundamento de que o estado pode ser responsabilizado por atos praticados por seus agentes políticos ou públicos. Essa noção advém de teorias modernas, encontrando maior respaldo a partir das famosas decisões do Conselho de Estado francês, que traz à baila a noção de responsabilidade do estado perante a sociedade e encontra seu marco no famoso caso “Decisão Rothschild”, que data de 18558. Apenas após a Revolução Industrial do século XIX, do surgimento dos movimentos sociais e dos direitos que chamamos de segunda geração, ou seja, os direitos sociais e coletivos, é que passamos a ter um estado balizado pelos direitos dos cidadãos, um estado ciente dos seus deveres e obrigações e, consequentemente, ciente da sua responsabilidade. As constituições formuladas a partir desse período passaram a assegurar os direitos e garantias individuais e coletivos, bem como os deveres do poder público como um instrumento interventor e gerador de políticas de bem estar social que garantissem os direitos do homem. Nas palavras do professor José Cretella Jr. (2002, p. 231): O direito francês corrige o princípio da irresponsabilidade do poder público, admitindo a possibilidade de uma responsabilização pessoal dos funcionários, por
8. A decisão proferida pelo Conselho de Estado francês parte do raciocínio de que cabe à administração, sob o império da lei, regular as condições do serviço público que por ela deva ser assegurado. Deve a administração assegurar a boa relação do serviço que é prestado entre os agentes públicos que o executam e a população que por ele é beneficiada. Foi incisiva a decisão desse caso no sentido de que essa relação entre o estado e a sociedade não deve ser considerada e analisada no âmbito do direito civil, como acontece nas relações de particular contra particular. Por se referir à responsabilidade do Estado, em caso de culpa, negligência ou erro cometido por um agente da administração, é lícito que seja tratada por regras diferentes. 191
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atos relativos as suas funções diante das jurisdições civis, mas o artigo 75 da Constituição do Ano VIII, que subsiste depois desta, subordina o exercício da ação de responsabilidade a uma autorização dada pelo Conselho de Estado.
Segundo o professor Edimir Netto de Araújo (1975, p. 4), a partir das sentenças prolatadas pelo Tribunal de Conflitos na época de 1873, fica reconhecida a legitimidade desse tribunal para decidir sobre os casos de responsabilidade do estado. Isto corrobora a tese do fortalecimento do direito administrativo como um ramo autônomo da ciência do direito. Mais do que isso, a consolidação do conceito de responsabilidade do estado perante seus atos fortalece também a noção do conceito de serviço público, pois se trata de uma atividade inerente do estado, que tem justamente por objetivo a promoção da segurança dos direitos individuais e sociais. Leon Duguit (1923, p. 63) novamente traz à tona a concretude dessa relação existente entre a responsabilidade do estado e a prestação do serviço público, alegando que se este não for executado em benefício da comunidade, é responsabilidade do estado reverter essa situação9. Evidente, pois, a relação direta que passa a existir a partir do aperfeiçoamento do conceito de responsabilidade do estado e a prestação de serviço público. Por muito tempo a noção de ligação estrita entre ambos exigiu do Estado o resguardo de determinadas atividades monopolísticas, a fim de garantir a promoção de direitos individuais e sociais, no escopo de não ser responsabilizado pelo desrespeito a esses princípios. Todavia, a partir do desenvolvimento do estado e de suas relações com o meio social, a atividade de prestação de serviço público foi, paulatinamente, sendo reformulada e compartilhada entre estado e iniciativa privada. Muitas vezes dentro da própria administração pública, o conceito de atividade privada servia para diferenciar o serviço público de outras funções exercidas pelo próprio estado.
9. Ao afirmar, na mesma obra já citada que os serviços públicos são estabelecidos e devem funcionar de acordo com o interesse de todos. Se o seu funcionamento irregular causar prejudicialidade ao particular, o prejuízo deve ser suportado pelos bens que são afetos à prestação do serviço determinado ou pelo conjunto de bens afetos ao serviço público, caracterizando-se dessa forma a responsabilidade do estado. 192
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Os autores franceses citados analisam esse aspecto com muita acuidade em suas clássicas obras do direito administrativo. Laubadère (1988, p. 20) é enfático ao afirmar a possibilidade de o estado vir a prestar serviços públicos que visem ao ganho financeiro, afirmando que os serviços públicos industriais ou comerciais estão classificados em uma categoria especial que permite a preocupação de possível ganho financeiro. Essa ideia toma corpo no século XX, também no Brasil, que passa a contar com um parque industrial público que viria a prestar serviços de relevância para o país, sob a ótica da comunhão entre desempenho e exploração da atividade econômica. Duguit (1923, p. 57) ressalta que a característica do serviço público não implicará no seu monopólio pelo governo ou seus agentes, podendo ser prestado pelo particular, citando como exemplo o ensino e a assistência. O autor afirma que é relativamente fácil enumerar as diversas atividades que servem de suporte ao serviço público, não sendo inútil observar que uma de suas características não implica em monopólio ao proveito dos governos e seus agentes e que certas atividades podem ser livremente exercidas pelo particular. Além disso, chega a discordar de grande parte da doutrina francesa que entende não ser possível o exercício de serviços públicos pela iniciativa privada. A doutrina clássica do direito administrativo, porém, mostra-se atenciosa com a relação direta entre o desenvolvimento da sociedade e a complexidade para a prestação de determinados serviços. Leon Duguit (1923, p. 57) é quem também chama a atenção para o assunto: Tudo o que podemos alegar é que, na medida em que a civilização se desenvolve, o número de atividades suscetíveis de servir de suporte aos serviços públicos aumenta, e o número de serviços públicos parece crescer nesta proporção. É lógico [...] à medida que a civilização progride, a intervenção dos governantes deve ser mais frequente, pois a ele cabe realizar os interesses da civilização.
Nessa lógica, temos o desenvolvimento social atrelado à ideia de maior intervenção do estado por meio da prestação de serviços públicos. Assim pensava a doutrina clássica e é esse um ponto essencial a ser analisado: em que medida deve o estado atuar e até que pondo a delegação 193
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de um serviço ao ente privado não descaracteriza o conceito de serviço público? Podemos constatar, à luz do quanto exposto, que a participação do particular no desempenho de atividades revestidas de interesse público não é algo original da doutrina recente. A própria tradição da Escola de Serviço Público francesa trabalha com a hipótese da participação da iniciativa privada na prestação de serviços públicos sem que, com isso, tal atividade venha a ser descaracterizada.
A Educação como Direito Público Subjetivo Resta saber, então, a natureza do direito à educação. Caracterizá-lo como um direito público subjetivo ou não importa em diferentes atitudes, por parte do estado, na sua promoção e efetivação. O direito à educação, considerado pela doutrina como sendo de segunda geração ou segunda dimensão, é resultado de conquistas sociais, fruto das lutas dos homens e dos povos ao longo de séculos e séculos. Se, por um lado, o fim do período absolutista, no início da Idade Moderna, cristalizado com as revoluções liberais na França e na América, trataram de positivar os primeiros direitos nas declarações que elaboraram, sendo esses os direitos considerados de primeira geração (Vida, Liberdade e Propriedade), é certo que a evolução humana e do direito não se estagnaram nesse momento. Os movimentos sociais que eclodiram na Europa no período pós Revolução Industrial deram à constitucionalização de direitos um novo caminho. Se, em um primeiro momento, positivaram-se os direitos individuais, ou seja, aqueles que traziam garantias aos indivíduos frente a um estado despótico, em um segundo momento, o que se pretendeu foi positivar direitos que não só asseguravam a integridade física e patrimonial do indivíduo, mas também a integridade de seus valores sociais e culturais, tornando-o mais cidadão e integrante do mundo. Costuma-se dizer, e isso sem exagero, que os direitos de primeira geração, segundo Norberto Bobbio (2000, pp. 320-370), podem ser considerados negativos, porquanto exigiriam uma omissão do estado frente aos direitos individuais conquistados. Nessa esteira, caberia ao estado 194
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respeitar esses direitos, não os afrontado, mas simplesmente não agindo para fazê-los valer, uma vez que se tratam de direitos naturais, inerentes ao homem. Já os direitos de segunda geração podem ser considerados positivos, por exigirem do estado uma ação específica para a sua afirmação. É o próprio ente público, através da prestação de serviços públicos, ou seja, por sua atuação e não mais por sua omissão, que dará guarida a essa nova gama de direitos. Tem-se que, daí, a história seguiu seu curso e positivou aqueles direitos da fraternidade ou até mesmo de terceira geração, principalmente após o fim do período das grandes guerras, quando a humanidade buscou a construção de uma sociedade mais justa, humana e fraterna, consubstanciada na criação da Organização das Nações Unidas em 1945 e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (Cf. Comparato, 2006, p. 320). É de se ver, pois, que a promoção dos direitos de segunda geração, de igualdade ou sociais demandam do estado uma atuação constante, e que depende da efetiva prestação de serviços públicos para verem-se consolidados. De acordo com o professor Gilberto Bercovici (2001, p. 132): [...] o objetivo primordial do estado social, assim, torna-se a busca da igualdade, com a garantia da liberdade. O estado não se limita mais a promover a igualdade formal, a igualdade jurídica. A igualdade procurada é a igualdade material, não mais perante a lei, mas através da lei. O que o estado busca garantir é a igualdade de oportunidades, o que implica na liberdade, justificando a intervenção estatal.
Assim, ao positivar os direitos sociais, a Constituição Cidadã de 1988 não poderia agir diferente. E justamente por esse motivo é que constitucionalizou o direito à educação como um direito de todos, e dever do Estado, consoante consta do caput do art. 205. Essa questão acabou reconhecida pela Suprema Corte do país, mais recentemente com a decisão proferida no Recurso Extraordinário 538.924/GO, relator ministro Ricardo Lewandowski: “A promoção dos direitos de segunda geração, de igualdade ou sociais, demandam do Es195
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tado uma atuação constante, e que depende da efetiva prestação de serviços públicos para verem-se consolidados”. Nas palavras de José Afonso da Silva (2007, p. 785): A Constituição de 1988 eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem, quando a concebe como um direito social (art. 6o) e direito de todos (art. 205), que, informado pelo princípio da universalidade, tem que ser comum a todos. [...] Vale dizer: todos têm direito à educação, e o Estado tem o dever de prestá-la, assim como a família. Isso significa, em primeiro lugar, que o estado tem que se aparelhar para fornecer, a todos, os serviços educacionais, oferecer ensino, de acordo com os princípios e objetivos estatuídos na Constituição. Essas normas constitucionais – repita-se – tem, ainda, o significado jurídico de elevar a educação à categoria de serviço público essencial, que ao poder público impende possibilitar a todos (grifos nossos).
E, ao fazer uma interpretação sistêmica de nossa Constituição, não deixou o constitucionalista de observar que, A consecução prática dos objetivos da educação, consoante o art. 205 – pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho –, requer que o poder público organize os sistemas de ensino público, para cumprir com o seu dever constitucional para com a educação, mediante prestações estatais que garantam, no mínimo, os serviços consignados no art. 208 (grifos nossos).
Nessa linha, cumpre-nos analisar o conceito de direito público subjetivo e a sua relação direta com o direito à educação. Afirmamos que esse direito de segunda geração tende a exigir do estado uma ação, ao contrário da omissão atinente aos direitos de liberdade. Mas essa ação diz respeito apenas ao indivíduo que quer ver um direito assegurado ou a uma coletividade? Porque se falamos em direitos sociais, não há falar em direitos de um, mas sim do direito de uma coletividade. Nesse sentido, como bem observa Clarice Seixas Duarte (2003, p. 74): “Quando a teoria dos direitos públicos subjetivos foi elaborada, pensava-se apenas na possibilidade da titularidade individual de direitos contra o Estado, mais especificamente, contra a administração pública. Hoje é preciso examinar se os titulares dos direitos subjetivos, no lado 196
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ativo, podem ser apenas os sujeitos isoladamente considerados ou uma coletividade”. É dizer, pois, que a teoria do direito subjetivo nasce justamente para assegurar aos indivíduos que o Estado não venha a atuar em desfavor dos direitos de liberdade. Resta saber se esse direito perece ou não quando estudamos os direitos de segunda geração. Para a autora citada, não há falar em direito subjetivo sem norma que o preveja, isto é, sem a existência do direito objetivo que, por sua vez, pode estar positivado ou não. Assim, ao citar Jhering e sua importância para a evolução da metodologia jurídica, a autora chama a atenção para o fato de, para que saibamos ou não se estamos diante de um direito público subjetivo, “é preciso verificar se a lei que beneficia o indivíduo em questão foi feita para seu interesse individual ou apenas no interesse público” (Duarte, 2003, p. 118). Nesse sentido, é o fim, ou o sentido teleológico da lei que deve ser buscado. Os métodos práticos de interpretação já assim nos ensinaram. É dizer que “as normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua finalidade” (Barroso, 2006, p. 138). A positivação dos direitos sociais tem por objetivo alcançar uma coletividade, não apenas o indivíduo. Com isso deve o estado, em uma democracia, envidar todos os esforços necessários para fazer valer esses direitos. Interessante notar que o regime democrático, além dos benefícios trazidos com a sua criação, como a legítima representação popular, a possibilidade de se refletir, com maior eficiência, a vontade da população nas diretrizes políticas é capaz, ainda, de trazer mais inovações positivas. Refiro-me especificamente ao fato de o regime democrático, quanto mais evoluída for a democracia de um país, permitir a manutenção de programas e políticas públicas que passam a ser de estado e não mais de governo. Não é novidade afirmarmos que a educação tem um tratamento diferenciado no texto constitucional no que se refere à destinação de recursos públicos. O próprio art. 212 da Carta Maior trata especificamente do montante a ser aportado por cada ente da federação na área da educação. 197
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Embora a não afetação de recursos públicos seja um imperativo orçamentário, nas palavras de José Afonso da Silva (2007, p. 799): “Nesse caso (do art. 212), a vinculação aparece como exceção ao princípio da não afetação. [...] No entanto, a própria norma tem sentido extensivo, na medida em que a vinculação não é de valor fixo, mas de um mínimo”. Buscou o constituinte elevar o direito à educação a um patamar de destaque em relação aos outros encargos a serem providos pelo estado. Com isso, todas as políticas públicas voltadas para o campo da promoção desse direito social não podem estar divorciadas desse contexto. Para melhor entendermos o raciocínio, importa pontuarmos o conceito de política pública. Para a professora Cristiane Derani (2002, p. 239), trata-se de “atos oriundos das relações de forças na sociedade. São as diversas formas de sua materialização. [...] As políticas são chamadas de públicas, quando estas ações são comandadas pelos agentes estatais e destinadas a alterar as relações sociais existentes”. Para Muller e Surel (1998, p. 16), trata-se de um “programa de ação governamental para um setor da sociedade ou um espaço geográfico”, que para obter o êxito necessário, precisa perdurar não só no espaço, mas também no tempo. Eis o sentido do direito à educação para a Constituição que hora completa os seus vinte anos. Um direito a ser oferecido pelo Estado que, por meio de políticas públicas, deve prestá-los aos diretamente interessados. Além do mais, foi o próprio texto constitucional que em seu art. 208, § 1o, positivou o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como um direito subjetivo. Ora, se o acesso ao ensino é um direito subjetivo, colocando-se como uma obrigação a ser provida, como não entender como subjetivo o direito à educação nas instituições privadas, se elas só existem para prestar um serviço quando o Estado não é capaz de realizá-lo para toda a coletividade? Melhor dizendo, se o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito subjetivo, e não se trata de um direito individual, mas social, como não caracterizar a educação, independentemente dos meios como é prestada, como um direito público subjetivo? Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal parece já ter pacificado a questão. É o que podemos constatar ao analisar o Recurso Extra198
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ordinário 472.207/SP, relator ministro Celso de Mello: “O direito à educação necessita ter eficácia. Sendo considerado como um direito público subjetivo do particular, ele consiste na faculdade que tem o particular de exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações”. No mesmo sentido, RE 467.255/SP e RE 410.715/SP, ambos de relatoria do ministro Celso de Mello, também na decisão proferida no Agravo de Instrumento 476.367/SP, o então ministro Sepúlveda Pertence também concebeu o direito à educação como sendo subjetivo: O juiz deu ao caso solução adequada, não tendo a sentença o condão de ocasionar ingerência do poder judiciário na esfera da administração pública, mas apenas o de garantir a efetivação do dever constitucional de fazer respeitar-se direito público subjetivo. Ao descumprir tais preceitos legais a autoridade violou direito líquido e certo da criança.
Percebe-se, pois, que a questão tem sido objeto de atenção de nossa Suprema Corte e a tendência é do reconhecimento do direito à educação como sendo público e subjetivo. Por essa razão, não obstante ser prestado pela iniciativa provada, o serviço educacional, na sua essência, não perde as características do serviço público.
Conclusão A partir da celeuma estabelecida acerca da natureza jurídica do serviço de educação prestado pelas instituições privadas, faz-se necessário pontuarmos tratar-se ou não de um serviço público típico ou outra nomenclatura. É de se ver que no direito brasileiro, essa questão leva à cisão de pensamento entre os estudiosos do direito administrativo e do direito econômico. Para os administrativistas de maneira geral, o que define se o serviço é público ou não é a titularidade de quem o presta, enquanto que para os teóricos do direito econômico, o que vale é a natureza do serviço prestado. A clássica teoria do serviço público trabalha com a hipótese de participação da iniciativa privada na prestação desse tipo de atividade, sem que isso descaracterize a sua natureza. Em outras palavras, não importa a titularidade de quem o presta, mas a sua natureza específica. 199
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Vimos também que a educação pode ser considerada um direito público subjetivo e, com isso, alçar-se ao patamar de um direito fundamental. Assim, a sua efetivação pela administração torna-se algo imperioso. Diante de tudo o que aqui foi colocado, nos inclinamos no sentido de caracterizar como serviço público a prestação educacional, mesmo quando efetivada pela iniciativa privada. Não obstante a delegação dessa função, pelo Estado, dar-se por meio do precário instrumento da autorização administrativa, há um controle direto sobre a atividade prestada pelo particular, apenas justificável diante da grandeza e importância do direito fundamental tutelado. Assim, o interesse público envolvido coloca o direito à educação como sendo público e objetivo. Mais do que isso, o direito à educação terá sempre a natureza de um serviço público, devendo assim ser entendido sob pena desse serviço tornar-se negociável economicamente, o que – é certo – traria prejuízos incomensuráveis à sociedade brasileira.
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A Expansão do Ensino Superior no Brasil: A Opção pelo Privado Fernanda Montenegro de Menezes
Introdução A trajetória histórica dos direitos humanos é um forte indicador da constante preocupação do homem com a educação. Desde a Declaração francesa de 1789, impõe-se a necessidade de assegurar acesso à educação e aos meios direcionados à emancipação intelectual e política do ser humano, integrante da comunidade social. Nos dias atuais, é indiscutível o reconhecimento do direito à educação como um direito fundamental inserido na cotidiana realidade social e individual. A garantia deste direito envolve não apenas a instrução como um processo de desenvolvimento individual, mas, também o direito a uma política educacional que ofereça aos integrantes da comunidade social instrumentos a alcançar os seus fins (Caggiano, 2002). Todavia, nem sempre foi assim o tratamento dado à educação. No panorama nacional brasileiro, o reconhecimento constitucional do direito à educação ganhou força somente a partir da Constituição Brasileira de 1934. Promulgado o texto constitucional, a formulação de uma política educacional e a execução de um plano científico, específico
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para executá-la, tornou-se um imperativo a Cargo do Conselho Nacional de Educação (art. 152 do texto de 19341). O caráter nacional da atividade educacional enquanto obra comum dos entes federados firmou-se, no entanto, a partir da atribuição conferida à União para traçar, privativamente, as diretrizes da educação nacional e pela divisão de encargos na área da educação (art. 150 do texto de 1934): Art. 150. Compete à União: a. fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do país; b. determinar as condições de reconhecimento oficial dos estabelecimentos de ensino secundário e complementar deste e dos institutos de ensino superior, exercendo sobre eles a necessária fiscalização; c. organizar e manter, nos Territórios, sistemas educativos apropriados aos mesmos; d. manter no Distrito Federal ensino secundário e complementar deste, superior e universitário; e. exercer ação supletiva, onde se faça necessária, por deficiência de iniciativa ou de recursos e estimular a obra educativa em todo o país, por meio de estudos, inquéritos, demonstrações e subvenções. Art. 151. Compete aos Estados e ao Distrito Federal organizar e manter sistemas educativos nos territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União (grifo nosso).
Neste sentido, a Constituição de 1934 representou um marco para efetivação do direito à educação como norma jurídica fundamental no Brasil, considerando que possibilitou a fixação de importantes atribuições ao Estado e, em especial, a previsão de construção de um plano nacional de educação. Ao longo de décadas, portanto, a evolução e o reconhecimento do patamar da educação como fator essencial no desenvolvimento do indivíduo e da coletividade social permitiu que o direito à educação fosse inserido no nicho dos direitos fundamentais, tornando-se elemento essencial de toda e qualquer Constituição.
1. “Art. 152. Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Educação, organizado na forma da lei, elaborar o plano nacional de educação para ser aprovado pelo Poder Legislativo e sugerir ao Governo as medidas que julgar necessárias para a melhor solução dos problemas educativos bem como a distribuição adequada dos fundos especiais”. 204
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Mais recentemente, ainda em território nacional, a Constituição Federal de 1988 – no seu extenso rol de direitos e garantias – erigiu o direito à educação ao catálogo dos direitos fundamentais. Este importante leque de normas educacionais positivadas pode ser identificado, portanto, ao longo de todo o texto constitucional brasileiro. Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência são contundentes em relação tratamento do direito e educação, conforme aponta a decisão do Ministro Ricardo Lewandowski no Recurso Extraordinário 500.171-7 – Goiás: A vigente Carta Magna positivou o direito à educação, retirando-o do limbo destinado às obrigações genéricas do Estado para com a cidadania. No dizer de José Afonso da Silva ela guindou a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem, quando a concebe como um direito social (art. 6o) e direito de todos (art. 205), que, informado pelo princípio da universalidade, tem que ser comum a todos. A educação, com efeito, mereceu especial relevo no texto magno, configurando, a teor do art. 205, não apenas um direito de todos, mas um dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. Ela visa, segundo estabelece o artigo em tela, ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (grifo nosso).
Que o direito à educação é um direito fundamental, não há nenhuma dúvida. Busca-se, no entanto, através da criação de políticas públicas e programas governamentais a implementação e efetivação deste direito. No presente estudo, faremos, no entanto, um recorte. Buscaremos destacar as formas mais utilizadas pelo governo para efetivação do direito à educação, mais especificamente, para efetivação do direito à educação superior através de programas implementados em instituições privadas, bem como analisar o processo histórico de surgimento e de expansão do ensino superior privado no Brasil. É o que verificaremos na próxima seção.
O Cenário Brasileiro do Ensino Superior Privado No Brasil, ao longo de muitas décadas, prevaleceu a quase exclusividade da atividade estatal na área do ensino superior. Durante muitos anos este quadro pouco se alterou: a ideia de participação da iniciativa 205
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privada na área educacional não era facilmente aceita. A ausência de previsão legal da exploração da atividade educacional pela iniciativa privada nas Constituições Brasileiras de 1824 (Império) e de 1891 (República) reforça a ideia do predomínio da educação superior estatal durante um longo período que marcou a história nacional2. Da Colônia à República o ensino superior foi eminentemente público e privativo do poder central (Ranieri, 2000). Pioneira no reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino, a Constituição de 1934, em seu artigo 150, caput, previu “o reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente quando assegurarem a seus professores a estabilidade, enquanto bem servirem, e uma remuneração condigna”. As Constituições de 1937 e de 1946, embora não trouxessem tais condições, proclamaram a liberdade de ensino à iniciativa privada. A Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, que deu o primeiro tratamento de diretrizes e bases para o ensino no Brasil, fazia apenas referência à possibilidade de manutenção de instituições isoladas de ensino particular. A liberdade de iniciativa particular prevista na LDB de 1961 assegurou às universidades particulares posição de igualdade em relação às universidades públicas3. A Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional n. 1/69 garantiram expressamente o ensino livre à iniciativa particular, com previsão de amparo técnico e financeiro dos poderes públicos, inclusive mediante bolsas de estudos4.
2. O fato do reconhecimento constitucional do direito à educação só ganhar força a partir da Constituição de 1932 explica a ausência de previsão legal do ensino particular nas Constituições de 1824 e de 1891. Isto, no entanto, não significa a inexistência de instituições privadas de ensino superior na época. 3. “Art. 3o O direito à educação é assegurado: I. pela obrigação do poder público e pela liberdade de iniciativa particular de ministrarem o ensino em todos os graus, na forma de lei em vigor; [...]. Art. 5o São assegurados aos estabelecimentos de ensino públicos e particulares legalmente autorizados, adequada representação nos conselhos estaduais de educação, e o reconhecimento, para todos os fins, dos estudos neles realizados”. 4. Art. 20, § 2o da Constituição de 1967 e art. 19, § 2o da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969. 206
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Neste contexto, abertura de espaço ao setor privado passou a ser, nas últimas quatro décadas, uma realidade cada vez mais presente. Na década de 1960, período em que o país caminhava para a rápida industrialização, o processo desenvolvimentista eclodiu e sua população passou a exigir educação de qualidade para enfrentar os anseios do novo mercado competitivo e promissor. Neste contexto, as escolas particulares foram conclamadas pelo Estado a criarem cursos superiores. É justamente neste período, em pleno regime militar, que se desenvolve a primeira expansão do nível superior no país, mediante a criação de instituições de ensino superior privado. Verificou-se, portanto, um tardio processo de flexibilização do ensino particular (Barros, 2005). O início da década de 1970 até o final da década de 19905, políticas fragmentadas, de curto prazo, produziram uma efetiva expansão do sistema educacional (Ranieri, 2000), tanto em razão do regime de financiamento público, quanto em relação às autorizações para funcionamento de novos cursos e instituições privadas, facilitadas devido à crescente demanda por educação superior. O cenário atual, no entanto, é diferente. Concomitantemente à elevação dos custos do ensino superior público para o Estado – que não consegue atender à incessante demanda da população por mais vagas – assiste-se ao vertiginoso aumento das instituições privadas dedicadas ao ensino superior. No Brasil, assim como em toda a América Latina, as recentes mudanças no ensino superior têm caminhado para um numero cada vez maior de vagas no ensino privado e, há quem diga, para o sucateamento do ensino público6. Para alguns estudiosos, as reformas educacionais, na América Latina, que tiveram início na década de 1980, período do fim da ditadura militar em diversos países, culminaram com o estabeleci-
5. A atual Constituição Federal Brasileira de 1988 é expressa ao mencionar que o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas duas condições: cumprimento das normas gerais da educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. O art. 7o, III, da atual LDB (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) acrescenta uma terceira condição: capacidade de autofinanciamento para as instituições privadas. 6. Neste sentido, ver Righetti e Shober (2004). 207
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mento de condições econômicas, políticas e sociais fundamentais para implementação de “reformas neoliberais baseadas no ajuste fiscal, na privatização e na desregulação do mercado” (Yarzábal, 2001). Como característica destas reformas, houve um desproporcional acréscimo do número de instituições privadas de ensino superior na América Latina, em especial no Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador e República Dominicana (Righetti & Shober, 2004), países com altos índices de desemprego, caracterizados por povos em busca de certificação e inserção no competitivo mercado de trabalho. Apesar da crítica deste viés neoliberal adotado pelo Estado, a verdade é que, conforme restará demonstrado, o Estado não teria condições de suprir as vagas de ensino superior na velocidade exigida pela sociedade, nas últimas décadas, de acordo com a crescente demanda por ensino superior de qualidade. A sociedade brasileira clama pelo incremento no número de vagas nas universidades. Sobretudo com a expansão da economia e a inserção de tecnologias mais sofisticadas nos meios de produção, o trabalho qualificado passou a ser a regra e não a exceção, como outrora. É neste contexto que se insere a Reforma Universitária e, como consequência, o Prouni – Programa Universidade para Todos, como opção do Estado pela democratização do ensino, por meio das instituições privadas.
A Política de Expansão de Vagas nas Instituições Privadas: O Caso Prouni (Lei n. 11.096, de 20 de dezembro de 2005) O Prouni, instituído pela Medida Provisória 213/04, convertida na Lei n. 11.096, de 20 de dezembro de 2005, é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% ou de 25% para estudantes de cursos de graduação e cursos sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos7.
7. Art. 1o da Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que institui o Programa Universidade para Todos – Prouni. 208
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O Programa abrange duas modalidades de benefícios: bolsas de estudo integral, concedida a brasileiros não portadores de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até 1,5 salário-mínimo e as bolsas de estudo parciais de 50% ou de 25%, concedidas a brasileiros não-portadores de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até três salários-mínimos, mediante critérios definidos pelo Ministério da Educação (art. 1o, § 1 o e § 2o da Lei n. 11.096). De acordo com o artigo 2o da Lei n. 11.096, a bolsa de estudos será destinada a: 1. estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; 2. estudante portador de deficiência, nos termos da lei e 3. professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica, independentemente da renda a que se referem os § 1o e 2o do art. 1o desta Lei. Em troca da concessão de bolsas de estudo, as instituições de ensino privado que aderem ao programa recebem uma série de benefícios fiscais: isenção do Imposto de Renda das pessoas jurídicas, da contribuição social sobre o lucro líquido, contribuição social para financiamento da seguridade social e contribuição para o programa de integração social, durante todo o período de vigência do termo de adesão. A proposta, apesar de aprovada e implementada, encontra-se sob análise da mais alta Corte Constitucional Brasileira. O Supremo Tribunal Federal deverá verificar, em meados de 20098, a legalidade do sistema de cotas criado pelo Prouni. No dia 2 de abril de 2008, o ministro Carlos Ayres Brito votou pela constitucionalidade do programa, contestado pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem), pelo Partido dos Democratas (DEM) e pela Federação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Fenafisp) nas Ações Diretas de Constitucionalidade n. 3330, 3314 e 3379. O julgamento foi inter-
8. Segundo informações retiradas do site do Supremo Tribunal Federal, a legalidade do Programa poderá passar pelo crivo do Tribunal ainda no ano de 2008. 209
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rompido pelo ministro Joaquim Barbosa, que pediu vista do processo, para melhor análise da questão. Além da ausência de requisitos constitucionais de relevância e urgência necessários para a edição da Medida Provisória 213/04 que instituiu o programa, os textos trazidos pelas ADINs alegam ser o Poder Executivo incompetente para “ofertar” renúncia fiscal como contrapartida para adesão ao programa a entidades beneficentes de assistência social que, pela Constituição Federal, já têm imunidade tributária. Tais argumentos foram absolutamente rechaçados tanto no voto do ministro Ayres Britto, quanto no parecer do então Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, elaborado na ADI 33309. Outro argumento trazido pelas ADINs é de que o art. 2o da Lei n. 11.096/05 violaria o caput e os incisos I e LIV do art. 5º da Constituição Federal (princípio constitucional da isonomia e da não discriminação), ao conceder bolsas integrais aos alunos da rede pública de ensino e estabelecer o critério racial para preenchimento dessas vagas. Segundo a decisão do ministro Ayres Britto, mais uma vez, não assiste razão às autoras: O substantivo “igualdade”, mesmo significando qualidade das coisas iguais (e, portanto, qualidade das coisas idênticas, indiferenciadas, colocadas no mesmo plano ou situadas no mesmo nível de importância), é valor que tem no combate aos fatores de desigualdade o seu modo próprio de realização. Quero dizer: não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. O desvalor da desigualdade a proceder e justificar a imposição do valor da igualdade. Com efeito, é pelo combate eficaz às situações de desigualdade que se concretiza, em regra, o valor da igualdade (valor positivo, aqui, valor negativo ou desvalor, ali). Isto porque no ponto de partida das investigações metódicas sobre as coisas ditas humanas, ou seja, até onde chegam as lentes investigativas dos politicólogos, historiadores e sociólogos acerca das institucionalizadas relações do gênero humano, o que se comprova é um estilo de vida já identificado pela tarja das desigualda-
9. Quanto ao primeiro argumento, o procurador geral da República Cláudio Fonteles, com base na exposição de motivos do Prouni, alegou em seu parecer que 37,5% das vagas nas faculdades particulares (cerca de meio milhão) estariam ociosas. Neste sentido, tornar-se-ia imperativo que tais medidas fossem adotadas imediatamente, via medida provisória, em prol do aumento do número de bolsas de estudos para alunos de baixa renda. 210
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des (culturais, políticas, econômicas e sociais). O desigual a servir como empírico portal da investigação científica e, daí, como desafio de sua eliminação pelas normas jurídicas.
E ainda: Nessa vertente de ideias, anoto que a desigualação em favor dos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas e os egressos de escolas privadas que hajam sido contemplados com bolsa integral não ofende a Constituição pátria, porquanto se trata de uma descrímen que acompanha a toada da compensação de uma anterior e factual inferioridade. Isso, lógico, debaixo do primacial juízo de que a desejada igualdade entre partes é quase sempre obtida pelo gerenciamento do entrechoque de desigualdades (uma factual e outra jurídica, esta última a contrabalançar o peso da primeira) (grifos nosso).
A questão é controvertida. Segundo estudiosos do tema, o Prouni violaria sim, de início, o princípio constitucional que assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à educação. A “escolha” dos destinatários do programa (conf. art. 2o da Lei n. 11.096/2005), portanto, feriria diretamente o princípio constitucional que garante educação a todos. Nesta hipótese, assinala a professora Nina Ranieri, “o Prouni deveria atender não só aos professores da educação básica, como também aos da educação infantil” (Abmes, 2004). Por fim, atacando o último argumento das ADINs, de que o artigo 7o da Lei n. 11096/05 desrespeitaria o princípio da autonomia universitária garantida pelo art. 207 da Constituição Federal, o ministro Ayres Britto é claro: [...] o Prouni é, salientemente, um programa de ações afirmativas, que se operacionaliza mediante concessão de bolsas a alunos de baixa renda e diminuto grau de patrimonialização. Mas um programa concebido para operar por ato de adesão ou participação absolutamente voluntária. Incompatível, portanto, com qualquer ideia de vinculação forçada. E precisamente um programa de adesão ou vinculabilidade espontânea por efeito mesmo daquele princípio da autonomia universitária que é, repise-se, de estatura constitucional (art. 207, CF).
Confrontados todos os argumentos que questionam a constitucionalidade do programa Universidade para Todos – Prouni, resta saber 211
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qual será a interpretação dada pelos outros ministros do Supremo Tribunal Federal para os questionamentos acima explicitados. Sob o aspecto político, de acordo com Nina Ranieri, verifica-se “[...] uma retirada do poder público do financiamento direto da educação e seu descomprometimento com a própria avaliação” (Abmes, 2004). Observa, ainda, que o programa não se estendeu às instituições de ensino superior públicas que não gozam de isenção, representando uma falta de compromisso com a oferta na escola pública de ensino superior. Neste contexto, o programa favoreceria as instituições privadas de ensino superior e acabaria por manter o sistema de ensino nos moldes privatizantes traçados durante a década de 1990. Conforme assinalam Valente e Helene (2004): “O que o Prouni faz é aumentar as isenções fiscais para as instituições e ensino superior privadas que, com poucas exceções, não prestam contas de como as usam, remuneram de forma ilegal seus sócios, não tem transparência na concessão de bolsas e maquiam balanços” (Valente e Helene, 2004). Seria, assim, uma medida de impacto popular, privatista, assistencialista e de baixo custo orçamentário. A questão é mais política do que propriamente jurídica. A verdade é que, embora represente uma proposta avançada de ocupação de vagas no ensino privado, o Prouni traz uma noção falsa de democratização do ensino: não atua em todos os níveis de ensino, não assegura a permanência do aluno na escola e não avalia a qualidade do ensino ministrado. A criação do Prouni revela, nitidamente, a atual tendência do Estado brasileiro em relação à educação: o apoio à expansão de vagas nas instituições privadas superiores, de forma a amenizar o déficit educacional público e a incapacidade do Estado em prover novas vagas na velocidade que a sociedade contemporânea exige.
A Proliferação de Vagas no Ensino Privado e o Importante Papel do Estado Fiscalizador Ainda como reflexo do fenômeno de aumento das vagas no ensino privado, observou-se, desde a segunda metade da década de 1990, uma maior flexibilidade do MEC na autorização de abertura de novas 212
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instituições de ensino privado em todo o território brasileiro. Segundo o Censo da Educação Superior realizado pelo MEC, entre 1998 e 2002, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) – quando houve a maior expansão do ensino superior privado brasileiro nos últimos anos – criavam-se, em média, 4,5 cursos por dia (Barros, 2005). O pico, no entanto, ficou registrado em 2002, quando 2.244 novos cursos de graduação obtiveram autorização para funcionamento. De fato, o governo Fernando Henrique Cardoso trocou o viés da política de concessão de licenças para o funcionamento de novos cursos superiores, conferindo maior liberalidade e velocidade à concessão de licenças simultaneamente a um maior vigor e rigor na fiscalização dos cursos existentes. Isto significou, na prática, o desenvolvimento de um Estado regulador de serviços de educação superior, diverso do antigo Estado prestador direto da educação de terceiro grau. E não é só. Ainda, conforme levantamento feito pela Secretaria de Educação Superior do MEC, antes de completar o primeiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva, foram autorizados a funcionar mais 1.769 novos cursos superiores, sendo 1.245 em 2003 e 515 entre janeiro a 31 de maio de 2004, significando, em média, a abertura de 3,4 cursos por dia. Segundo Barros (2005), a única razão pela qual se pode explicar a alucinante velocidade na ampliação de cursos privados está na meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001 (Barros, 2005). O Plano estabelece como meta “prover, até o final da década, a oferta de educação superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos”. Para suprir a falta ou insuficiência de investimentos nas universidades públicas, o Estado passa, portanto, a subsidiar vagas em instituições de ensino superior privado como opção para expansão de vagas e democratização do ensino de qualidade. A questão é: seria esta a melhor forma de democratizar o ensino? Por óbvio, são vários os aspectos positivos desta política. Além da inegável velocidade na criação de novas vagas, há um desdobramento que começa a ser percebido no ambiente educacional brasileiro, qual seja, os benefícios, para os alunos, da competição entre várias institui213
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ções privadas, que passaram a ter que investir em qualidade por uma questão de sobrevivência mercadológica. Na verdade, a expansão das vagas permitiu algo que até há pouco tempo não se via no Brasil: um razoável leque de escolhas para o pretendente ou candidato a um curso superior. O jovem ou mesmo o adulto que necessita de educação de terceiro grau passou a ter maior opção de escolha, frente à recentíssima “concorrência” no setor. A concorrência que começa a se estabelecer no Brasil, decorrente da deliberada política estatal de estímulo à proliferação de vagas no sistema privado de ensino, inspirou-se principalmente na experiência americana, onde há muitas décadas a qualidade de ensino é bem mais ditada pela disputa por alunos entre instituições de ensino do que propriamente pela regulação estatal. Não obstante, pelas especificidades da realidade brasileira, por uma certa vulnerabilidade do público universitário e pela dificuldade no estabelecimento de parâmetros ou referenciais nesta recente guinada na política de ensino superior do país, não há como, no Brasil, deixar apenas à “mão invisível do mercado” a regulação do ensino. Aqui, as organizações do Estado não podem deixar de atuar fortemente na fiscalização das instituições privadas, já que o abandono ou negligência desta atividade pode acarretar o black-out do sistema. Imaginemos instituições de má-qualidade concorrendo e deixando o estudante livre para escolher entre a ruim e a pior, numa espiral negativa que pode resultar no atraso e no próprio engessamento do desenvolvimento econômico, em plena “era do conhecimento”. Mas, se o Estado tem deficiências crônicas para ampliar o sistema público de ensino superior, parece ter também suas mazelas no exercício desta tão fundamental “função reguladora”. Sim, porque a fiscalização constante e concomitante de todas as instituições privadas exige equipe, preparo, estrutura, austeridade e um acervo considerável de critérios, parâmetros e experiências que os órgãos estatais ainda não conseguiram formar. Neste ambiente, parece que a fiscalização das instituições privadas é enormemente falha, o que permite a convivência do estudante com desvios, irregularidades e falhas graves cometidas pela sua universida214
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de, quase sempre não detectadas pelos radares da atividade fiscalizadora do Estado. No ambiente jurídico, o exemplo maior desta distância entre quantidade e qualidade no ensino superior é o resultado dos exames promovidos pela Ordem dos Advogados do Brasil, sendo que há, até com certa frequência, faculdades de Direito que graduam hordas de jovens despreparados e incapazes para o exercício da advocacia. Resta claro que as consequências da abertura desenfreada de novos cursos nas últimas décadas coloca em dúvida o próprio planejamento educacional do Estado Brasileiro. A evidência é de que, de fato, este não reúne, em razão de suas limitações materiais e financeiras, condições adequadas para exercer com eficiência a função fiscalizadora sobre esta atividade pública essencial.
Novas Perspectivas para a Expansão do Ensino no Brasil O Estado brasileiro, ao optar pelo estímulo à expansão de vagas no ensino superior pela via privada, parece ter falhado na concomitante preparação de estruturas eficientes de acompanhamento da qualidade do ensino. Resta saber, no entanto, se esta deficiência é crônica ou circunstancial, se é transitória ou será permanente. Constatada a incapacidade do Estado em gerar vagas no sistema público na velocidade e quantidade que a sociedade contemporânea exige, a constatação futura da incapacidade estatal em fiscalizar a qualidade de ensino do sistema privado poderá causar uma insuperável crise de identidade da política educacional nacional, com consequências de difícil reparação. Em 2008, políticas de expansão de vagas no ensino superior público têm surgido com grande expressão, principalmente, no Estado de São Paulo10. Tais ações, no entanto, muito recentes, dependem ainda de um intenso trabalho do governo para o alcance da verdadeira “democratização do ensino”.
10. O Decreto n. 53.536, de 9 de outubro de 2008, instituiu o Programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo – Univesp, objetivando a expansão do ensino superior público no Estado de São Paulo, por meio de tecnologias de informação, além de outros instrumentos que visem à ampliação do número de vagas oferecidas no ensino público e à crescente qualidade no Estado de São Paulo. 215
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A esperança é de que, num futuro próximo, as universidades públicas e privadas possam contar com um número suficiente de vagas para estudantes. A construção de ambientes de ensino cada vez mais acessíveis e qualificados é uma necessária e desafiadora proposta para o futuro.
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A Exploração da Atividade Educacional pela Iniciativa Privada e seus Limites Legais Luiz Tropardi Filho
Introdução O que é Educação? Dentre as diversas acepções possíveis, adotamos, para elaboração desse artigo, o entendimento consubstanciado no art. 205 da Constituição Federal: a educação é um processo de formação do indivíduo que visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O ordenamento jurídico brasileiro permite o exercício da atividade educacional pela iniciativa privada, de forma a complementar a atuação estatal. Ensina Nina Beatriz Ranieri que “na tarefa educacional, devem ser consideradas as esferas pública e provada numa relação complementar e não dicotômica e excludente, como o fez o Estado-polícia” (Ranieri, 2000). A oferta da educação pelo Estado e a exploração desta atividade por particulares têm características diferentes. No primeiro caso, temos um serviço público puro, regido por preceitos constitucionais; no segundo caso, temos um serviço privado, regido pela relação contratual estabelecida entre instituição de ensino e seus alunos e, consequentemente, pelos princípios contratuais.
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A Constituição Federal atualmente vigente alterou esse modelo, passando as instituições de ensino privadas a se submeterem ao dirigismo estatal. Esta alteração ocorreu, em primeiro lugar, em razão da expressa previsão de que a educação formal é dever do Estado, impondo-se a este a obrigação de tutelar e fiscalizar a prestação dos serviços educacionais (art. 205 e 206 da Constituição Federal). Por outro lado, com a normatização de vários microssistemas (Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor, Lei do Direito Autoral, entre outros), forçoso reconhecer que as relações jurídicas de direito privado passaram a receber um tratamento social, buscando-se equilibrar a proteção legal da autonomia das vontades e do interesse coletivo. O direito educacional, nesse contexto, sofreu intensa modificação, principalmente com a promulgação da Lei n. 9.634/1996, denominada Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), restando questões ainda polêmicas na doutrina e na jurisprudência, entre as quais a responsabilidade civil das instituições de ensino em função dos serviços educacionais prestados, notadamente com relação à determinação da adequação e propriedade destes serviços. Convém assinalar, ainda, que a LDB é norma principal e organizacional, necessitando, pois, de regulamentação, que se dá através da edição de normas diversas (leis, portarias e resoluções). E são estas normas, constitucional e/ou infraconstitucionais que limitam a atividade do particular na área educacional.
A Evolução do Ensino Superior Privado no Brasil Conforme ensina Nina Beatriz Ranieri, no período colonial, o ensino superior era atribuição privativa do poder real, servindo de ferramenta para a “formação de uma ideologia de unidade nacional, capaz de justificar a continuidade dos modelos social, econômico e político” (Ranieri, 2000). Reflexo desse fato e das reformas pombalinas1 ocorridas 1. A respeito das reformas pombalinas, leciona Laerte Ramos de Carvalho que “não se 220
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em Portugal, na Constituição do Brasil Império (1824) não havia previsão legal de exploração da Educação por particulares. A proclamação da República altera este cenário, muito embora a Constituição de 1891 também seja silente no tocante à exploração da atividade educacional por particulares. Nesse período é criado o Conselho de Instrução Superior e aprovado o regulamento das instituições de ensino jurídico (Decretos n. 1.232-F e 1.232-G). A legislação passa a permitir a existência de estabelecimentos particulares, denominadas faculdades livres, sob concessão do poder público. Em 1o de janeiro de 1901, é publicado o Decreto n. 3.390, que aprova o código dos institutos oficiais de ensino superior e secundário. Nas palavras de Frauches e Fagundes, “o decreto prevê a existência de estabelecimentos de ensino superior ou secundário fundados pelos Estados, pelo Distrito Federal ou por ‘qualquer associação ou indivíduo’, aos quais o governo poderá ‘conceder os privilégios dos estabelecimentos federais congêneres’” (Frauches & Fagundes, 2005, p. 309). O Conselho de Instrução Superior é substituído em 1911 pelo Conselho Superior de Ensino2, que por sua vez é substituído pelo Conselho Nacional de Ensino em 19253. Em 1931, ocorre uma nova mudança. Através do Decreto n. 19.851, de 11.4.1931, é criado o Conselho Nacional de Educação, em substituição ao Conselho Nacional de Ensino. A referida norma prevê a exploração da atividade educacional por particulares ao dispor que as universidades poderão ser criadas e mantidas pela União, Estados (respectivamente, universidades federais e estaduais) ou sob a forma de fundações ou de associações, por particulares (universidades livres). É importante ressal-
tratava de uma simples transferência de mando (das ordens religiosas para o poder real), mas dos próprios fins e objetivos do ensino, de tal modo que uma nova pedagogia, solidamente fundamentada nas razões da filosofia moderna, tomasse o lugar da pedagogia escolástica de que se tornaram expressão altamente significativa, em Portugal, as escolas dos jesuítas” (Carvalho, 1978). Diante disso, a educação passou a ter um objetivo mais amplo: conservar a união da sociedade civil. 2. O Conselho Superior de Ensino foi criado através do Decreto n. 8.659, de 5.4.1911. 3. O Conselho Nacional de Educação foi criado através do Decreto n. 16.782-A, de 13.1.1925. 221
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tar que a norma veda a exploração da atividade educacional com finalidade lucrativa, uma vez que estabelece como formas de organização da mantenedora somente a fundação ou associação. A Constituição de 1934 prevê, pela primeira vez, a atuação do particular na área educacional, no artigo 150: “Compete à União: [...] f. reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente quando assegurarem a seus professores a estabilidade, enquanto bem servirem, e uma remuneração condigna”. Adiante, no artigo 154, o legislador constituinte beneficia com imunidade tributária os estabelecimentos particulares de educação, gratuita, primária ou profissional, considerados idôneos. A Constituição de 1937, em seu artigo 128, dispõe que a arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associação de pessoas coletivas públicas e particulares. A Constituição de 1946 mantém a previsão legal para atuação do particular na área educação, conforme artigo 167, e, de forma definitiva, condiciona tal atuação às normas que regulamentam a atividade educacional4. Em 20 de dezembro de 1961 é publicada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (Lei n. 4.024/1961). Conforme ensina Frauches e Fagundes, “a liberdade de ensino é a marca mais significativa da primeira LDB, assegurando igualdade entre estabelecimento de ensino públicos e particulares ‘legalmente autorizados’. Abandona-se a expressão ‘universidade livre’ ou ‘faculdade livre’ para designar as instituições privadas de ensino superior” (Frauches e Fagundes, 2005, p. 311). A LDB de 1961 criou o Conselho Federal de Educação, o qual substituiu o Conselho Nacional de Educação. Em 1968, a LDB foi alterada pela Lei n. 5.548/68 e pelo Decreto-lei n. 464/69, notadamente no que se refere ao ensino superior (Reforma Universitária de 1968). A LDB, com a alteração de 1968, inaugurou o primeiro período de expansão de instituições de ensino superior no Brasil. Sobre o tema, escreve Luiz Antônio Cunha que “as instituições privadas receberam in-
4. CF 1946 – “Art. 167. O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem” (grifo nosso). 222
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centivos diretos e indiretos inéditos, que, aliados à representação majoritariamente privatista do Conselho Federal de Educação, propiciaram um surto de expansão” (Cunha, 2004). As instituições privadas multiplicaram-se em número e tamanho. Atualmente, a atividade educacional é regulamentada, principalmente, pela Constituição Federal de 1988 e pela atual LDB. O artigo 205 da Constituição Federal dispõe que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Neste mesmo sentido, dispõe o art. 2o, da LDB5. Não obstante, o art. 209 da Constituição Federal permitiu a exploração da atividade educacional pela iniciativa privada, impondo, para tanto, o respeito a duas condições: I. cumprimento das normas gerais da educação nacional; e II. autorização e avaliação e qualidade pelo poder público. A autorização para exploração da atividade educacional pela iniciativa privada também foi prevista no art. 7o da LDB6, desde que atendidos, além dos requisitos previstos nos incisos I e II do artigo 209, a capacidade de autofinanciamento da instituição de ensino. Diante disso, indubitável que a Constituição Federal e a LDB prevêem a coexistência da escola pública e da escola privada, sendo certo que esta atua mediante autorização do Estado. Além disso, as normas atualmente vigentes passaram a prever um terceiro tipo de instituição de ensino: as instituições de ensino privadas com finalidade lucrativa. Sendo assim, a normatização da Educação no Brasil apresenta um conflito aparente: a exploração da atividade educacional por particulares ocorre de acordo com o princípio da livre iniciativa, conforme disposto 5. Art. 2o A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 6. Art. 7o O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I. cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino; II. autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público; III. capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal. 223
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no caput do artigo 209 da Constituição, ou está sujeita à intervenção estatal, como demonstram os incisos do mesmo artigo? É o que passaremos a analisar no item seguinte.
O Princípio da Autonomia Privada e a Atividade Educacional Como dito acima, de acordo com o artigo 209 da Constituição Federal, o ensino é livre à iniciativa privada. Nas palavras de José Afonso da Silva, “a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato” (Silva, 1992). Trata-se de princípio relacionado ao ideal liberal, ou seja, a possibilidade de os indivíduos atuarem com autonomia jurídica, desenvolvendo livremente a atividade escolhida, sem a intervenção estatal. A liberdade de iniciativa econômica coaduna-se com o princípio da livre concorrência. Celso Ribeiro Bastos, por sua vez, leciona que “a livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal da economia e tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre concorrência onde há livre iniciativa. [...] Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais” (Bastos, 2002, p. 807). José Afonso da Silva define o princípio da livre concorrência nos seguintes termos: [...] a livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princípios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado coibir este abuso (Silva, 1992, p. 674).
No que se refere à exploração da atividade educacional no Brasil, é possível afirmar que os princípios da livre iniciativa e da livre concor224
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rência não são exercidos em sua plenitude, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio estabelece algumas limitações, entre os quais o da função social da empresa7. Nesse contexto, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência têm sua aplicação reduzida e condicionada às políticas públicas econômicas, de modo a assegurar “a existência digna de todos, conforme ditamos da justiça social” (Silva, 1992, p. 692). É o que se verifica na exploração dos serviços educacionais: dada a relevância social e o interesse coletivo envolvidos, o princípio da livre iniciativa, previsto no artigo 209 da Constituição Federal, e o princípio da livre concorrência, inerente ao primeiro, têm sua abrangência reduzida, em função dos preceitos da justiça social. Essa limitação, registre-se, é prevista no art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal: “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos salvo nos casos previstos em lei” (grifo do autor). É o que ocorre no presente caso, visto que, nos termos do art. 209 da Constituição Federal, a atividade educacional está condicionada ao credenciamento e fiscalização do Estado, bem como ao cumprimento das normas gerais de educação. Sobre o tema, Gabriela Giannella Samelli, citando Vicente Ráo, defende que “o liberalismo não exclui a legitimidade da intervenção do Estado quando age, nas relações particulares, por normas jurídicas positivas, quando e enquanto for necessário”8. Para melhor ilustrarmos a relevância social da prestação dos serviços educacionais, necessário analisarmos a natureza jurídica de tais serviços, o que se fará no próximo item.
7. Sobre a função social da empresa, ensina Eros Grau que “o princípio da função social da propriedade, para logo se vê, ganha substancialidade precisamente quando aplicado à propriedade dos bens de produção, ou seja, na disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob o compromisso de sua destinação. A propriedade sobre a qual em maior intensidade refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade, dinâmica, dos bens de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresa” (Grau, 1981, p. 128). 8. Trecho extraído da dissertação de mestrado A Prestação de Serviços Educacionais, defendida na USP em 2002, sob orientação do professor Álvaro Villaça de Azevedo. 225
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Natureza Jurídica dos Serviços Educacionais por Particulares Não há que se questionar a natureza pública dos serviços educacionais prestados pelo Estado. Resta analisar se a prestação dos serviços por particulares tem o condão de alterar a natureza jurídica dos serviços educacionais. Di Pietro (2007) ensina que há dois conceitos possíveis de serviços públicos: amplo e restrito. De acordo com o conceito amplo, os serviços públicos abrangem todas as funções do Estado. Entre os juristas que adotam o conceito amplo estão Cretella Jr. (1980)9 e Hely Lopes Meirelles10. O conceito restrito, por sua vez, caracteriza o serviço público como atividade exercida pelo Estado, excluindo, assim, as funções legislativas e jurisdicional. Adotam este conceito Celso Antônio Bandeira de Mello11 e a própria Di Pietro (2007)12. De qualquer forma, é certo que os serviços públicos devem: a. objetivar o interesse coletivo; b. ser prestados pelo Estado; e c. prestados através de procedimento de direito público. Interessa-nos analisar o segundo item, ou seja, de que o serviço público deveria ser prestado pelo Estado. Carlos Roberto Jamil Cury, ao analisar a prestação de serviços educacionais, defende a ideia de concessão de serviço público, porém com
9. De acordo com José Cretella Junior, serviço público “é toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para satisfação das necessidades públicas mediante procedimento típico do direito público” (Cretella Jr., 1980). 10. Para Hely Lopes Meirelles, serviço público é “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado” (Meirelles, 2003, p. 319). 11. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administradores, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – porquanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houve definido como próprios no sistema normativo” (Mello, 1975, p. 20). 12. Segundo Di Pietro (2007, p. 90), serviço público é “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”. 226
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ressalvas. Para o autor, somente os estabelecimentos privados sem finalidade lucrativa atuariam em nome do Estado, mediante concessão. Os estabelecimentos privados com finalidade lucrativa, por possuírem uma visão possessiva (ou seja, de se beneficiar financeiramente de tais serviços), atuariam em nome próprio e estariam sujeitos exclusivamente aos preceitos do direito privado: “assim, a Constituição redefine a situação: aquele ensino privado (art. 209), voltado para o lucro (por oposição à letra do art. 213), é, no seu teor, tipicamente capitalista. Em oposição a ele, as outras modalidades indicadas (art. 213 e art. 150, VI, c) teriam uma presença não tipicamente capitalista dentro de uma economia de mercado” (Cury, 1992). O autor fundamenta sua tese de que os estabelecimentos privados sem finalidade lucrativa atuam por concessão no fato de que as mesmas estão autorizadas a receber recursos públicos. Sobre o tema, ensina Ranieri (2003) “[...] embora a atividade privada seja livre, sujeita a todos aqueles princípios informadores da atividade econômica, o fato é que, do ponto de vista prático, estamos diante de uma concessão, tal como via Marquês de Pombal: a educação naquela época era definida como um jus regio, permitido o seu exercício, excepcionalmente, à iniciativa privada (no caso, religiosa apenas)”. Não partilhamos deste posicionamento13. Entendemos que os serviços prestados pelos estabelecimentos privados, com ou sem finalidade lucrativa, são essencialmente privados, mas com interesse socioeconômico coletivo. Tratam-se, pois, de serviços privados, mas de interesse público. Estes serviços privados de interesse público relacionam-se com o conceito de Constituição Econômica, defendida por Gilberto Bercovici (1988), ou seja, a inserção de assuntos econômicos no texto constitucio-
13. Corroborando nosso entendimento no sentido de que não há delegação de serviço público ao particular, transcrevemos, a seguir, decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que se declarou a Justiça Federal incompetente para julgar matéria relativa a ensino superior privado: “Conflito de Competência. Mandado de Segurança. Ensino Superior. Ato Administrativo de dirigente de faculdade particular. Justiça Estadual. Compete à justiça estadual processar e julgar mandado de segurança investindo contra ato administrativo de dirigente de faculdade particular” (STJ, CC 19279, Processo 199700100782 – RS, DJ 09.12.1997, p. 64585). 227
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nal, definidores dos parâmetros para elaboração da política econômica do Estado. O interesse público dos serviços educacionais decorre da própria Constituição, vez que a norma constitucional elevou a educação à categoria dos direitos fundamentais e sociais (art. 205, combinado com o art. 6o da CF/88), mais precisamente direito da segunda geração, em função de que se pode afirmar tratar-se de dever do Estado, a ser prestado segundos os princípios constitucionais aplicáveis. Por se tratar de serviço privado de interesse público, a atividade educacional deve se submeter ao dirigismo estatal. Nas palavras de Samuel Pontes do Nascimento, Antonio Roberto W. de Carvalho e Giovani Clark, “a exploração econômica do ensino superior, apesar de regida pelo princípio da livre iniciativa, não se escusa à atuação do poder público que, através de normas e órgãos executivos, realiza funções de controle do serviço, objetivando assegurar a todos uma existência digna, promovendo a defesa dos direitos do consumidor e a livre concorrência, conforme os ditames da justiça social (CF/88, art. 170, caput, IV e V)”14.
Limitações à Atuação do Particular na Área Educacional Diante do exposto, temos que a atuação do particular na área educacional dá-se na esfera privada, mas condicionada ao interesse social, e que, pela relevância jurídica da educação, a livre iniciativa do particular é relativizada pela função social da empresa e pelos preceitos da justiça social. Sendo assim, temos que a primeira e mais importante limitação à atuação dos particulares na atividade educacional é justamente o fato de se tratar a Educação de direito fundamental e social, de interesse geral. Outro exemplo da limitação em referência é a submissão das instituições privadas à autorização e avaliação de qualidade pelo poder público (artigo 209 da Constituição Federal). O particular, embora esteja sob fiscalização do poder público, uma vez autorizado pelo Estado, atua
14. Samuel Pontes do Nascimento; Antonio Roberto W. de Carvalho e Giovani Clark, O Ensino Privado Superior pela Ótica das Relações de Consumo. Disponível em www.scielo. com.br. 228
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ao seu lado, mas não em seu nome. Porém, para que a instituição privada possa atuar, necessário se faz o credenciamento desta no Ministério da Educação, bem como a autorização de curso para que possa funcionar. Inquestionável a necessidade de se submeter o curso e seu projeto pedagógico a prévia autorização do MEC, como forma de se garantir a qualidade dos serviços prestados, mas, a nosso ver, a obrigatoriedade de credenciamento da instituição de ensino privada no MEC caracteriza, claramente, uma ingerência estatal infundada na livre iniciativa. A esse respeito, merece nota a distinção criada no sistema brasileiro entre mantida e mantenedora. A primeira é a instituição de ensino propriamente dita, responsável por todos os aspectos acadêmicos e pedagógicos; a segunda é a provedora de recursos financeiros e gestora administrativa da instituição. Embora o MEC não interfira na constituição e no funcionamento da mantenedora, condiciona a criação da mantida, e uma não vive sem a outra. Sendo assim, verifica-se uma clara e expressa violação ao disposto no artigo 5o, XVIII, da Constituição Federal: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”. Uma vez credenciada a mantida e autorizados os cursos, a instituição de ensino privado exerce suas atividades educacionais, em caráter relativamente precário, uma vez que está sujeita às avaliações de qualidade15. A avaliação de qualidade é realizada pelo MEC através do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Sinaes, instituído pela Lei n. 10.861/2004 e regulamentado pela Portaria MEC n. 2.051/2004. Abrange três aspectos: institucional, cursos e auto-avaliação. Se os resultados forem considerados insatisfatórios, a instituição é obrigada a assi-
15. Convém registrar que todas as instituições de ensino privadas estão submetidas ao sistema federal de ensino e, portanto, sujeitas ao sistema de avaliação adotado pelo MEC. Vale destacar que é adotado um mesmo sistema de avaliação para todas as instituições do território nacional, desconsiderando-se, assim, as peculiaridades de cada região e as singularidades de cada instituição de ensino. Em outras palavras, o MEC emprega os mesmos padrões de qualidade tanto para universidades, comprometidas com pesquisa e extensão, quanto para instituições não-universitárias, que têm como único objetivo o ensino de cursos de graduação. 229
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nar um protocolo de compromisso16, estabelecendo metas e prazos para solução das desconformidades apontadas. Não cumprido o protocolo, são aplicadas penalidades17, que têm seu ápice no fechamento de cursos e descredenciamento de instituições de ensino. Por fim, é importante ponderar que o Conselho Nacional de Educação não participa do processo de avaliação. Em substituição, foi criado ao Conaes – Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior, órgão colegiado composto por cinco integrantes do Governo, um representante docente, um discente e um técnico-administrativo, bem como cinco cidadãos de notório saber científico indicados pelo MEC18. Outro aspecto a ser considerado é a da autonomia universitária. Nos termos do artigo 207 da Constituição Federal, as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Tal prerrogativa, vale reiterar, aplica-se somente às universidades, públicas ou privadas, excluindo, assim, as instituições não universitárias (faculdades, centros universitários e institutos superiores). Contudo, observa-se que somente as universidades públicas gozam da autonomia em sua plenitude, tal como prevista na norma constitucional. Às universidades privadas são impostas algumas restrições. A esse respeito, vale destacar o ensinamento de Nina Beatriz Stocco Ranieri: a autonomia universitária, que abrange três aspectos – didático-
16. Nos termos do art. 10 da Lei n. 10.861/2004, deverão constar do protocolo de compromisso os seguintes itens: I. o diagnóstico objetivo das condições da instituição; II. os encaminhamentos, processos e ações a serem adotados pela instituição de educação superior com vistas na superação das dificuldades detectadas; III. a indicação de prazos e metas para o cumprimento de ações, expressamente definidas, e a caracterização das respectivas responsabilidades dos dirigentes; IV. a criação, por parte da instituição de educação superior, de comissão de acompanhamento do protocolo de compromisso. 17. São penalidades previstas na Lei n. 10.861/2004: I. suspensão temporária da abertura de processo seletivo de cursos de graduação; II. cassação da autorização de funcionamento da instituição de educação superior ou do reconhecimento de cursos por ela oferecidos; III. advertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela ação não executada, no caso de instituições públicas de ensino superior. 18. Uma das críticas feitas ao Conaes é a falta de representantes das instituições de ensino privadas na Comissão, gerando questionamentos acerca da imparcialidade do órgão na execução de seus trabalhos. 230
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científica, administrativa e de gestão financeira – refere-se à instituição mantida e não à mantenedora (Ranieri, 2003, pp. 29-47). Porém, a instituição mantida, por definição, não possui capacidade administrativa e de gestão financeira, tarefas que competem à mantenedora. Assim, algumas medidas que limitam a atuação da mantenedora, como a necessidade de cumprir os preceitos da Lei n. 9.870/99, que estabelece parâmetros para fixação do valor de suas anuidades, e da Portaria n. 40/2007, que proíbe a cobrança de taxa para expedição de diplomas, não implicam em violação ao preceito constitucional em comento. Por outro lado, a submissão das universidades privadas a avaliações realizadas pelo MEC, bem como a necessidade de se credenciar a abertura de novos campi fora da área de atuação da universidade e de se autorizar a criação de novos cursos ferem a autonomia universitárias garantida constitucionalmente a estes estabelecimentos. Assim, é imprescindível que se garanta às universidades privadas o pleno gozo da autonomia universitária, para que possam exercer suas atividades livremente no tocante ao ensino, pesquisa e divulgação de ideias, sem interferência do poder público e do mercado. Cumpre analisar, por fim, a questão da capacidade de autofinanciamento da instituição de ensino. A LDB, ao prever a participação da iniciativa privada na atividade educacional, dispõe, em seu art. 7o, adicionou, ao rol trazido pelo art. 209 da Constituição Federal, uma terceira condição: capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal19. Diante disso, a LDB extrapolou a norma constitucional ao prever que a atuação da iniciativa privada na atividade educacional está condicionada à sua capacidade de autofinanciamento. Resta, portanto, que se o financiamento da instituição de ensino originar-se de políticas públicas, ter-se-ia um investimento político público e social e os serviços
19. A regra de comprovação da capacidade de autofinanciamento, excetuam-se as instituições enquadradas no artigo 213 da Constituição Federal: escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que recebem recursos públicos mediante a comprovação da finalidade não lucrativa e assegurem a destinação de seus patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder público. 231
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educacionais, nesta hipótese, jamais poderia receber um tratamento de bem econômico de caráter privado. A contrario sensu, as instituições de ensino com comprovada capacidade de autofinanciamento estariam totalmente sujeitas às normas do direito privado, não havendo lugar para a ingerência estatal. Não há qualquer justificativa para a inclusão, na LDB, da obrigatoriedade da capacidade de autofinanciamento das instituições de ensino privadas. Ademais, integra o rol de princípios em que está baseada a ordem econômica nacional a liberdade de exercício da atividade econômica, independente de comprovação de capacidade de autofinanciamento! Na mesma linha, o Decreto n. 3.860/2001 impõe às mantenedoras de instituições de ensino a obrigação de comprovar sua regularidade perante a Fazenda Nacional para solicitar autorização, reconhecimento ou renovação de reconhecimento de cursos. Procurou o legislador certificar-se da capacidade da mantenedora de prover a mantida dos recursos necessários, de forma a garantir continuidade na prestação de serviços. Nada mais descabido, uma vez que a qualidade do curso não guarda nenhuma relação com a regularidade fiscal da mantenedora da instituição de ensino20.
20. A exigência contida no art. 20 do Decreto n. 3.860/2001 foi recentemente questionada na medida cautelar proposta pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), processo n. 2006.61.00.09158-6, em trâmite perante a 4a Vara Federal de São Paulo. Transcrevemos o trecho da decisão: “Desta forma, entendo abusiva e ilegal a exigência de comprovação de regularidade fiscal, previdenciária e perante o FGTS, para recebimento e processamento de pedido de reconhecimento e renovação de reconhecimento de curso superior, instituída mediante decreto, uma vez que extrapola os limites do seu poder regulamentar, a imposição de exigências não previstas em lei, mormente quando utilizadas como modalidade de coação para o recebimento de tributos como no caso” (grifo do autor). Igual entendimento foi adotado na decisão proferida nos autos do processo n. 2005.34.00.010501-8, proposto por Sociedade Educacional Tuiuti Ltda., em trâmite perante a 4a Vara Federal do Distrito Federal, conforme demonstra o trecho a seguir transcrito: “Com efeito, assiste razão à ora agravante no que acentua inexistir qualquer lei (no estrito sentido material do termo) a amparar a exigência. [...] Por ilustrativas, recordem-se as Súmulas n. 70, 323 e 547 do eg. STF, que, mutatis mutandis, em essência ajustam-se à hipótese sub examine: 232
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A Intervenção do Estado no Domínio Econômico: A Lei n. 9.870/99. A publicação da Lei n. 9.879/99, que dispõe sobre o valor total das anuidades escolares e dá outras providências, legitimou a intervenção do Estado no domínio econômico. De fato, a referida norma legal estabelece vários critérios a serem verificados pelas instituições de ensino no reajuste de suas anuidades e semestralidades. Além disso, estabelece limites a serem respeitados pelas instituições privadas. Ora, é regra primordial de qualquer ordem econômica que os preços sejam estabelecidos pelo mercado, de acordo com os princípios econômicos, entre os quais o da oferta e da procura e o da concorrência. Em outras palavras, cada instituição de ensino privada deveria estar livre para definir seus preços, de acordo com a demanda, os custos da atividade, o poder aquisitivo de seus alunos e as práticas de seus concorrentes. Porém, tal prerrogativa foi tirada das instituições de ensino privadas pelo Estado, que intervém na economia, impondo parâmetros de valores praticados por tais instituições. Estes parâmetros, infelizmente, distanciam-se dos custos, cada vez mais elevados diante das melhorias constantes que as instituições de ensino privadas foram obrigadas a adotar frente a um mercado cada vez mais profissional e competitivo. Além do acima exposto, há outra deformidade na norma legal em comento. Embora o artigo 5o da referida lei autorize as instituições de ensino a indeferirem a renovação da matrícula de alunos inadimplentes, não há nada que autorize o desligamento do aluno durante o semestre. Sendo assim, basta ao aluno pagar a primeira parcela da anuidade ou semestralidade para que tenha assegurado o direito de frequentar o período letivo. – Súmula 70: Inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. – Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributo. – Súmula 547: Ao contribuinte em débito, não é lícito à autoridade proibir que adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”. 233
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Diante disso, as instituições de ensino são obrigadas por lei a cumprirem sua obrigação até o final, mesmo sem receber a contraprestação devida pelo aluno, o que caracteriza, em última análise, o enriquecimento sem causa do aluno, prática, aliás, há muito repudiada em nosso ordenamento.
O Crescimento da Atuação Privada no Segmento Educacional Conforme mencionado anteriormente, a legislação brasileira vigente atualmente permite a coexistência de instituições públicas e privadas. Na prática, o que se verifica é um significativo aumento na participação do particular na prestação desse serviço, incentivada por vários aspectos, entre os quais destacamos a ampliação da camada média, ávida pela obtenção do grau superior, então símbolo de prestígio econômico e social, pela existência de diversos dispositivos legais, como a previsão de incentivos fiscais para as instituições privadas, e, principalmente, pelo sucateamento das instituições públicas, bem como pela falta de incentivo estatal na criação de novos estabelecimentos de ensino. Até 1996, as mantenedoras das instituições de ensino privadas eram sempre constituídas sem finalidade lucrativa. Este cenário foi alterado com a atual LDB, que inovou ao prever a existência de instituições de ensino privadas com finalidade lucrativa, gerando uma crescente profissionalização dos mantenedores educacionais, processo este que resultou na realização de oferta pública de ações por alguns desses mantenedores. A nova realidade, embora apresente algumas desconformidades, não é negativa. Os empreendimentos educacionais mantidos pela iniciativa privada, além de sua relevante função social, respondem mais rapidamente às aspirações da sociedade. Essas instituições são mais ágeis na implementação dos projetos e na mudança dos programas em andamento, com capacidade extraordinária de adaptação a novos paradigmas, valores e crenças, numa sociedade em constante mutação. Em reportagem publicada na edição 2067, ano 41, n. 26, da Revista Veja (“Educação vai à Bolsa de Valores”), a jornalista Camila Pereira aponta diversos benefícios advindos com o processo de capitalização e profissionalização das instituições de ensino, tais como redução do valor 234
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das mensalidades, avanços na infraestrutura e até mesmo a melhoria da qualidade de ensino. Não obstante, a profissionalização e inclusão desses estabelecimentos no mercado trazem, como consequência direta, a necessidade de estes estabelecimentos melhorarem a sua prestação de serviços, investindo em infraestrutura e corpo docente, objetivando a oferta de ensino de qualidade, de modo a se manterem num mercado crescente e competitivo. Nesse cenário, necessário se faz um Estado atento e ativo, pronto para desempenhar as funções interventistas previstas em lei sem inviabilizar o crescimento do segmento educacional. Não há que se criar mecanismos reguladores da atividade educacional, que limitariam ainda mais a atuação dos estabelecimentos privados. Deve-se cumprir o disposto na Constituição Federal, dentro de seus limites, de modo a assegurar a qualidade dos serviços prestados.
Conclusão Nos termos do art. 209 da Constituição Federal, é livre à iniciativa privada a exploração da atividade educacional, desde que atendidas as seguintes condições: a. cumprimento das normas gerais da educação nacional; b. autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. O artigo 170, IV, da Constituição Federal, por sua vez, dispõe que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deve ser orientada por diversos princípios, dentre os quais o princípio da livre concorrência. Os dois artigos, embora contraditórios em princípio, devem ser analisados em conjunto. Isso porque a iniciativa privada, em razão da relevância e interesse social da educação, direito fundamental e social, não é exercida em sua plenitude, limitada pelos ditames da justiça social, em observância à função social da empresa. Quaisquer limitações à atuação da iniciativa privada na área educacional que seja pautada nos conceitos acima são justas e desejáveis. Contudo, o que se verifica atualmente é a proliferação de normas infraconstitucionais que ferem, sem qualquer justificativa ou consistência, a técnica adotada pela Constituição Federal. Tais limitações devem ser 235
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afastadas, de modo a garantir o desenvolvimento pleno e eficaz das instituições privadas, as quais, nos moldes da LDB, devem coexistir com as instituições públicas.
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V Educação e Inclusão
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A Educação Indígena e o Papel do Estado Sabine Righetti
Introdução Recentemente, a imprensa mundial divulgou, sem economia de espaço, as imagens de um grupo de indígenas isolados, encontrado no Acre, próximo à fronteira do Brasil com o Peru. As imagens, que foram coletadas por uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre final de abril e maio de 2008, fizeram brasileiros e estrangeiros atentarem ao fato de que o Brasil é um dos poucos países do mundo (se não o único) que ainda preserva, com dificuldades e muitas limitações, alguns povos indígenas isolados, que desde a época do “descobrimento” permaneceram afastados de todas as transformações ocorridas no país e mantêm as tradições culturais de seus antepassados, sobrevivendo da caça, da pesca, da coleta e da agricultura incipiente (como os índios fotografados, que mantinham uma grande área de roçado próxima às malocas). O Brasil, de acordo com dados da Funai, concentra hoje aproximadamente 460 mil índios integrados ou em vias de integração, distribuídos entre 225 sociedades indígenas (aldeias), que perfazem cerca de 0,25% da população brasileira. Além destes, há entre 100 e 190 mil índios vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas, e 241
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aproximadamente 55 grupos de índios isolados, sobre os quais ainda não há informações objetivas1. Nunca, em nenhum outro momento histórico, o país esteve tão pressionado pela sociedade civil, por meio da imprensa e de organizações não-governamentais (ONGs), do Brasil e do mundo, a olhar com cuidado especial para a questão indígena visando a sua preservação. Esse movimento tem suas raízes na década de 1970, quando teve início um apoio na luta em defesa da identidade indígena, incluindo a necessidade de formulação de políticas públicas voltadas à saúde, à educação e ao bem-estar social dessas comunidades (Righetti, 2005). A explicação para essa pressão social é simples: a preservação do restante da cultura indígena presente no país depende de ações que garantam a sustentabilidade ambiental das áreas de reserva indígena (o habitat natural desses povos), e de suas proximidades, e que perpetuem os costumes, línguas e tradições desses povos. Tais ações e políticas públicas devem ser voltadas tanto diretamente para as comunidades indígenas, quanto para o restante da população brasileira (“tradicional”), por meio, por exemplo, de iniciativas de conscientização e de informação sobre a preservação das culturas indígenas. Na academia, as discussões sobre a sustentabilidade da cultura indígena brasileira permeiam, sobretudo, os campos da sociologia e da antropologia. Mas as ações voltadas à causa indígena são garantidas por instrumentos jurídicos, na forma da criação de instituições, de fundações, de decretos ou de leis. Nesse sentido, dado o objetivo do presente trabalho, faz-se fundamental valer a discussão aqui tecida de um memorial dos instrumentos institucionais recentes destinados aos povos indígenas.
1. A Funai não tem um dimensionamento exato das regiões habitadas por índios isolados. O número de grupos isolados é uma estimativa feita a partir do trabalho das chamadas Frentes de Contato, que atuam nos Estados do Amazonas, Pará, Acre, Mato Grosso, Rondônia e Goiás desde 1987. 242
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Os Instrumentos Jurídicos e Institucionais dos Índios Um dos passos mais significativos na instrumentação jurídica nacional, no sentido de proteção às comunidades indígenas, foi dado ainda durante o período ditatorial brasileiro, na instituição da Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio da Lei n. 5.371, de 5 de dezembro de 1967. A criação da Funai extinguiu automaticamente o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI) e o Parque Nacional do Xingu (PNX), concentrando as funções voltadas à causa indígena por meio de uma instituição de patrimônio próprio e com personalidade jurídica de direito privado. De acordo com os termos da lei, a Funai surgiu com o objetivo de estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada principalmente em quatro princípios: 1. respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais; 2. garantia à posse permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recurso naturais e de todas as unidades nelas existentes; 3. preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional e 4. resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma que sua evolução socioeconômica se processe a salvo de mudanças bruscas. Na década seguinte à criação da Funai, ainda sob o período ditatorial, é então disposto o Estatuto do Índio, por meio da Lei n. 6001, de 19 de dezembro de 1973, que regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. De acordo com os termos do Estatuto do Índio, a proteção das leis vigentes no país é, então, estendida aos índios e às comunidades indígenas, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas. O artigo 4o da Lei n. 6001, que trata das Normas e Definições, subdivide os índios em três grupos2: 2. O Estatuto do Índio de 1973 não deixa clara a metodologia usada na classificação do índio isolado, parcialmente integrado ou integrado. De acordo com a material da Funai, 243
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I. Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional. II. Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão vez mais para o próprio sustento. III. Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.
Assim, o grupo que representa os índios incorporados à comunhão nacional tem reconhecido o pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. Como define o parágrafo 8o do Artigo 7o, em sequência, que trata da Assistência ou Tutela: Art. 7o Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei. § 8o São nulos os atos praticados entre índios não integrados e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.
Isso significa que a condição indígena garante a aplicação de legislação especial e que, no caso de condenação do índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada, tal como define o artigo 56, que trata dos Princípios das Normais Penais. Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também ao grau de integração silvícola. Parágrafo Único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado.
a própria definição do que é ser índio é polêmica: “Um grupo de pessoas pode ser considerado indígena ou não se estas pessoas se considerarem indígenas, ou se assim forem consideradas pela população que as cerca. Mesmo sendo o critério mais utilizado, ele tem sido colocado em discussão, já que muitas vezes são interesses de ordem política que levam à adoção de tal definição, da mesma forma que acontecia há quinhentos anos” (ver Funai: http://www.funai.gov.br). 244
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A abordagem da causa indígena sob a previsão do desaparecimento físico dos índios e a postura integracionista que buscava assimilar os índios à comunidade nacional, porque os entendia como categoria étnica e social transitória e fadada à extinção, foram abandonadas na Constituição Brasileira promulgada em 1988, que reconheceu aos índios o direito de ser e de manter-se como índio. Sob essa concepção inovadora, a questão indígena é abordada no tratamento dos princípios fundamentais, dos direitos e garantias fundamentais, das atribuições do congresso nacional, dos tribunais regionais federais e dos juízes federais, das funções essenciais à justiça, dos princípios gerais da atividade econômica, da cultura e, mais especificamente, dos índios. A Constituição de 1988 reforçou, nos artigos 231 e 232, o caráter tutelar do Estado3 em relação aos indígenas, já apresentado pelo Estatuto do Índio de 1973: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o ministério público em todos os atos do processo.
A Constituição de 1988 não menciona a tipologia apresentada no Estatuto do Índio, de 1973, que classifica os índios como isolados, parcialmente integrados e integrados, o que tem dado margem para debates no campo do direito civil. Nessa discussão, alguns autores defendem a aplicabilidade do princípio da igualdade da Constituição (artigo 5o, que afirma que todos brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de
3. A tutela do Estado em relação aos índios tem sido pauta de discussões de autores que, como Souza Filho (1993), questionam até que ponto o regime tutelar orfanológico (que o Estado exerce sobre os órfãos) pode, no caso dos índios, ser caracterizado como uma forma de discriminação ou de opressão. 245
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qualquer natureza) e outros autores intercedem pela não imputabilidade dos índios, conforme o Estatuto do Índio4. Outro debate presente na questão indígena, que ultrapassa o campo do direito civil e atinge uma discussão mais ampla, sobre os direitos humanos, centra-se no tema da universalização dos direitos humanos, no Brasil abordada por autores como Piovesan (1999). Entende-se como “universalização dos direitos humanos” a aplicação dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, a todo ser humano, indepedente de sexo, idade, grupo social, etnia ou nacionalidade. Nesse contexto, cabe a discussão: até que ponto as práticas específicas de algumas culturas, como a cultura indígena, devem ser punidas caso firam algum dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, da qual o Brasil é signatário?5 Caso sejam punidas, como se aplicará a punição (de maneira diferenciada)? A universalização dos direitos humanos deve ultrapassar as especificidades de cada cultura, como as culturas dos povos indígenas? Cabe à justiça brasileira – idealizada e concebida em uma sociedade totalmente distinta da indígena – refletir sobre tal sociedade? Essa prática, por si só, não seria uma forma de autoritarismo e de opressão? Posta essa reflexão e dada uma breve síntese do tratamento jurídico que tem sido dado às questões indígenas no Brasil e suas repercussões, é
4. Um exemplo de discussão na defesa de que, com exceção dos índios isolados, os demais devem responder como cidadãos comuns em processos penais, é o projeto de lei do Senado – PLS 00216/2008, de 29 de maio de 2008 , apresentado pelo senador Lobão Filho (PMDB-MA), em tramitação, que altera o art. 56 da Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973, para estabelecer critérios de imputabilidade de índios. 5. Nesse cenário da discussão, encaixa-se, por exemplo, o projeto de lei – PL 1057/2007 –, de autoria do deputado Henrique Afonso (PT-AC), que atualmente está aguardando parecer. O projeto “dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”. O projeto é conhecido como Lei Muwaji, em homenagem a uma mãe da tribo dos suruwahas, que se rebelou contra a tradição de sua tribo e salvou a vida da filha, que seria morta por ter nascido deficiente. 246
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possível explorar, então, o tema central deste trabalho: o direito do índio à educação e o papel do Estado nessa atividade. Entende-se, neste trabalho, o direito à educação como um direito fundamental de segunda geração6, com caráter social e assistencial.
Educação Indígena Como lembra Cunha (2005), desde o século XVI, logo após a chegada dos portugueses ao Brasil, a educação escolar no país atinge comunidades indígenas, pautada, a princípio, pela catequização feita pelos missionários jesuítas e, posteriormente, pela integração forçada dos índios à sociedade nacional, pelos programas de ensino do extinto Serviço de Proteção aos Índios. Nas últimas duas décadas, a partir da mobilização dos próprios índios e de movimentos relacionados à causa indígena, a política educacional voltada para os índios começou a apresentar mudanças, principalmente a partir da Constituição Federal, promulgada em 1988, e da legislação subsequente7. O artigo 210o da Constituição Nacional, embora reafirme a imposição da língua portuguesa no ensino fundamental brasileiro – posta em prática, inicialmente, no século XVIII, pelo Marquês de Pombal –, assegura às comunidades indígenas a possibilidade de também utilizar nas escolas suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem: Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
6. Os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, com base no princípio da liberdade. Os direitos de segunda geração têm caráter econômico, social e cultural, como o direito ao lazer, ao trabalho, à saúde e outros, correspondendo ao princípio da igualdade. Os direitos de terceira geração correspondem à fraternidade, como direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente sadio. Juntos, eles compõem a tríade liberdade, igualdade e fraternidade. 7. Vale destacar, no entanto, que as práticas de educação e de catequização indígena ainda persistem no Brasil, como aponta Amoroso (1998). 247
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§ 2o O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Vale destacar que, de acordo com dados da Funai, pelo menos 180 línguas8 são faladas pelos membros das sociedades indígenas presentes no Brasil, que pertencem a mais de trinta famílias linguísticas diferentes9 que, de acordo com a Funai, permanecem em constante processo de modificação e de re-elaboração, independente do contato com as sociedades de origem europeia e africana. Depois da Constituição de 1988, outros instrumentos dispuseram sobre a educação indígena, como o Decreto n. 26, de 4 de fevereiro de 1991, que, no uso da atribuição conferida pelo artigo 84o, inciso IV, da Constituição de 1988, e tendo em vista o Estatuto do Índio, determinou: Art. 1o Fica atribuída ao Ministério da Educação (MEC) a competência para coordenar as ações referentes à educação indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a Funai. Art. 2o As ações previstas no art. 1o serão desenvolvidas pelas secretarias de educação dos estados e municípios em consonância com as secretarias nacionais de educação do Ministério da Educação.
A transferência de responsabilidade e de coordenação das iniciativas educacionais em Terras Indígenas do órgão indigenista (Funai) para o MEC, em articulação com as secretarias estaduais de educação, através de Decreto da Presidência da República (n. 26/1991), abriu a possibilidade, ainda não efetivada, de que as escolas indígenas fossem incorporadas aos sistemas de ensino do país, com o objetivo de encerrar a recorrente
8. De acordo com informações da Funai, cerca de 1.300 línguas indígenas diferentes eram faladas no Brasil há quinhentos anos. O desaparecimento de tantas línguas representa uma enorme perda para a humanidade, pois cada uma delas expressa todo um universo cultural, uma vasta gama de conhecimentos, uma forma única de se encarar a vida e o mundo. 9. O fato de diferentes sociedades indígenas falarem línguas pertencentes a uma mesma família não faz com que seus membros consigam entender-se mutuamente. Um exemplo disso se dá entre o português e o francês: ambas são línguas românicas ou neolatinas.
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transferência de responsabilidades do órgão indigenista para missões religiosas no atendimento das necessidades educacionais indígenas. Alguns anos depois, o governo federal instituiu a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que dedica dois artigos das disposições gerais ao ensino voltado para os índios: Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I. proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II. garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias. Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. § 1o Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas. § 2o Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos planos nacionais de educação, terão os seguintes objetivos: I. fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena; II. manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas; III. desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades; IV. elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.
A partir da LDB, surge uma demanda, por parte dos próprios indígenas, por um ensino diferenciado em suas comunidades (Cunha, 2005), tema abordado no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001. De acordo com o texto referente ao diagnóstico da educação indígena no Brasil, presente no PNE, a transferência da responsabilidade pela educação indígena da Funai para o MEC, realizado pelo Decreto n. 26/1991, abordado anteriormente, representou uma simples 249
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transferência de atribuições e responsabilidades, sem um processo de instituição de parcerias entre órgãos governamentais e entidades ou organizações da sociedade civil: A transferência da responsabilidade pela educação indígena da Funai para o MEC [...] representou uma mudança em termos de execução: se antes as escolas indígenas eram mantidas pela Funai (ou por secretarias estaduais e municipais de educação, através de convênios firmados com o órgão indigenista oficial), agora cabe aos estados assumirem tal tarefa. A estadualização das escolas indígenas e, em alguns casos, sua municipalização, ocorreram sem a criação de mecanismos que assegurassem uma certa uniformidade de ações que garantissem a especificidade destas escolas (Educação Indígena – Diagnóstico PNE/2001).
Conforme a análise exposta no PNE de 2001, não há, ainda, uma clara distribuição de responsabilidades entre a União, os estados e os municípios, o que dificulta a implementação de uma política nacional que assegure a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngue às comunidades indígenas. E, indo além: “Há também a necessidade de regularizar juridicamente as escolas indígenas, contemplando as experiências bem-sucedidas em curso e reorientando outras para que elaborem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagógicos e conteúdos programáticos adaptados às particularidades étno-culturais e linguísticas próprias a cada povo indígena”. A construção de escolas indígenas é abordada recorrentemente em projetos de lei atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, como o PL 468/2007, do deputado federal Geraldo Resende (PPS-MS), que sugere a construção de escola indígena em Dourados (MS), ou do PL 281/2007, do deputado federal Vander Loubet (PT-MS), que faz a mesma sugestão para o município de Porto Murtinho (MS). A regularização das escolas indígenas, proposta pelo PNE de 2001, há tempos é um tema polêmico na discussão da educação indígena. Alguns estudiosos, como Cavalcanti (1999), questionam o papel da escolarização de índios, posto que não se sabe qual é, precisamente, o significado cultural da demanda dos índios por escolas. Nessa linha de debate abordada por Cavalcanti (1999), incidimos na questão do direito à educação como um direito fundamental, de 250
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segunda geração, de obrigação do Estado. E aqui cabe um questionamento: mesmo considerando as especificidades, cabe ao Estado garantir educação, na sua forma adotada pela sociedade dita “tradicional”, às populações indígenas que, em seu histórico e tradição, não fizeram uso dessa forma de educação? Sem o objetivo de responder tal pergunta, que muito provavelmente não tem, ainda, uma resposta ou uma reflexão suficiente, vale ascender um debate trazido por Cunha (2005): recentemente, algumas escolas indígenas, em que as aulas eram ministradas apenas em língua indígena, têm solicitado o ensino de português, que passou a representar um instrumento na luta pelos direitos dos índios, encabeçada pelos próprios indígenas e pelos movimentos relacionados. O fenômeno revela uma nítida mudança de paradigma10 no papel assistencial do Estado em relação aos índios, até então vigente, para dar lugar a um movimento amparado pela sociedade civil e promovido pelos próprios índios na luta pelos seus direitos. Recentemente, os indígenas têm participado mais ativamente de fóruns organizados pelo MEC em parceria com a Funai, de audiências públicas e de outras reuniões (Cunha, 2005). Dado esse fenômeno, os próprios índios não poderiam, então, concentrar o poder de decisão sobre o tipo de ensino que terão (se terão) e, indo além, de escolherem se o ensino deve ser na sua língua nativa ou bilíngue (incluindo o português)? Ou o próprio fenômeno, por si só, já representa uma integração progressiva dos índios na sociedade “tradicional”, o que contraria os objetivos de preservação da cultura indígena? Dentro do debate da educação indígena, surge um novo debate referente à formação de professores para a educação indígena: no Brasil apenas duas universidades oferecem graduação específica para índios
10. O conceito de “paradigma” (ou “modelo vigente”) refere-se à análise de Thomas Kuhn (1987) em relação à produção científica. A teoria de Kuhn (1987), aplicada ao presente trabalho, tem o objetivo de mostrar que o paradigma vigente de que o Estado tem um papel assistencial em relação aos índios tem sido quebrado e, no lugar, surge um movimento em que os próprios índios e movimentos relacionados passam a exigir os seus direitos e a guiar tomadas públicas de decisão. 251
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que desejam se tornar professores para a educação indígena. A pioneira foi a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), que criou a primeira turma de indígenas em 2001, reunindo índios estudantes de onze estados diferentes. Graduados em 2006, os novos professores indígenas ficaram habilitados em licenciatura de ciências sociais, línguas, artes e literatura e ciências da matemática. Em 2003, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) criou, com a mesma finalidade, a Licenciatura Intercultural. Na UFRR, desde 2007, os índios também podem se inscrever no vestibular dos cursos tradicionais de graduação. Os candidatos devem apresentar registro administrativo indígena expedido pela Funai, carta de indicação da comunidade indígena e documento no qual se comprometem a trabalhar pelo seu povo e sua região após a conclusão do curso. A Universidade Federal do Amazonas (Ufam) estuda a implantação do curso de Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Comunitário, ministrado em línguas indígenas no Amazonas. A proposta tem o apoio do MEC e deve ser realizada em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e com o Instituto de Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol). Enfim, se o oferecimento de educação indígena, suas práticas, suas metodologias e sua instrumentação jurídica, estão longe de ser um consenso e constituem uma fogueira de debates, o debate sobre a formação de professores voltados para a prática dessa educação está apenas começando a soltar suas faíscas.
O Direito do Habitante “Tradicional” à Educação para Cultura Indígena Como mencionado no início deste trabalho, tão importante quanto a discussão sobre a educação indígena, voltada para os índios, é a educação para a promoção e preservação da cultura indígena, voltada à sociedade dita “tradicional”. Tal atividade depende de políticas públicas e de ações para disseminar a cultura indígena, com o objetivo de incentivar a sua preservação. Além de iniciativas educacionais pontuais, como, por exemplo, a realização de mostras e de exposições sobre cultura indígena, a inserção 252
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da temática indígena na escola e no currículo escolar tem se mostrado fundamental. O debate sobre essa inserção tem caminhado junto, porém com menos força, com as discussões sobre a inclusão de temáticas afrobrasileiras no currículo escolar, já prevista na LDB de 2003. Inserir a temática do índio na escola, obviamente, significa ir além de atividades já realizadas nas escolas e que se restringem, por exemplo, nas comemorações do Dia do Índio (19 de abril), atividades essas que, muitas vezes, podem contribuir para uma mitificação do índio e um distanciamento do conceito real da cultura indígena (Freire, 2002). Trata-se de inserir a temática efetivamente no currículo escolar. Recentemente, o avanço, do ponto de vista jurídico, foi grande: o estudo da história do povo indígena no Brasil será obrigatoriamente incluído no currículo escolar, de acordo com a Lei n. 11.465/08, sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e publicada no Diário Oficial da União em 11 de março de 2008. A lei altera um artigo da LDB e substitui a Lei n. 10.639/2003, que já previa a inclusão da temática afro-brasileira nos currículos das redes de ensino. Agora, as escolas de ensino fundamental e médio, tanto públicas quanto privadas, devem conferir o ensino da história e cultura dos povos indígenas. De acordo com a nova lei, todas as disciplinas, especialmente história, geografia e literatura, devem incorporar a contribuição dos negros e indígenas à cultura brasileira. Se de fato praticada, a iniciativa pode contribuir para mudar a percepção que se tem do índio e para avançar no campo das políticas, educacionais ou não, voltadas à causa indígena nas próximas gerações.
Considerações Finais O presente artigo teve o objetivo de trazer uma reflexão sobre as recentes discussões no campo da educação indígena no Brasil, partindo de uma contextualização dos instrumentos jurídicos e institucionais dos índios, tais como a criação da Funai (Fundação Nacional do Índio), em 1967, do Estatuto do Índio, em 1973. O artigo ressalta uma mudança na abordagem da causa indígena a partir da Constituição Brasileira de 1988, posto que, anteriormente à 253
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Constituição, prevalecia a ideia de previsão de desaparecimento físico dos índios e, desse modo, o governo assumia uma postura integracionista que buscava assimilar os índios à comunidade nacional. Depois da Constituição de 1988, o Brasil assume a cultura indígena e dá ao índio e o direito de ser índio e de preservar a sua cultura e seus costumes. Especificamente sobre à educação indígena, é abordada a inserção desta temática na Constituição de 1988 e na legislação subsequente, como LDB, de 1996, e o PNE, de 2001. O debate proposto baseia-se na ideia de educação como um direito fundamental, de segunda geração, de obrigação do Estado. No entanto, o texto traz uma série de reflexões e questionamentos acerca do papel do Estado na educação especificamente indígena (se realmente existe esse papel) e, indo além, questiona se a educação nos moldes “tradicionais” deve, de fato, ser oferecida aos índios, mesmo que sejam consideradas as suas especificidades e sua língua tradicional no processo educativo. O artigo levanta ainda a questão da formação de professores para a educação indígena e os recentes movimentos da própria causa indígena pare receber educação em português, dado que conhecer a língua portuguesa é um instrumento para os índios exigirem seus direitos. Caracterizo esse movimento, em os índios tomam as rédeas da sua causa, como uma “mudança de paradigma”, já que coloca em xeque o papel tutelar do Estado em relação a eles. Por fim, o texto aborda a questão da educação indígena para o habitante dito “tradicional”, ou seja: a inserção da temática indígena no currículo escolar com o objetivo de disseminar a sua cultura e sua história. O trabalho não tem o comprometimento de esgotar o assunto, mas de trazer uma contribuição para a reflexão sobre a temática. Em relação à instrumentação jurídica sobre a educação indígena, o país ainda patina, por exemplo, criando resoluções que transferem responsabilidades sem o acompanhamento de um processo de instituição de parcerias entre órgãos governamentais e entidades ou organizações da sociedade civil (como o Decreto n. 26/91, que transferiu da Funai ao MEC a atribuição da educação indígena). Discussões nesse sentido são essenciais em várias áreas do conhecimento, principalmente em um momento em que, como apresentado no 254
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início no texto, o Brasil enfrenta pressões nacionais e internacionais para preservar a cultura indígena. Posto que o país concentra hoje apenas 0,25% de índios, do total de sua população, e que mais de 1.100 línguas indígenas já desapareceram do país desde a época do “descobrimento”, de acordo com dados da Funai, pode-se dizer que reflexões sobre a questão indígena, atualmente, são mais do que fundamentais: são urgentes.
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internacional “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 30 set. 1999. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/revista/numero11/PainelVI-2.htm RIGHETTI, Sabine. 2005. “Riquezas em Terras Indígenas Geram Conflitos”. Revista ComCiência, n. 64 sobre Direitos Indígenas. Disponível em: http://www. comciencia.br/reportagens/2005/04/04.shtml SILVA, Aracy L. & GRUPIONI, Luís D. (orgs.). 1995. A Temática Indígena na Escola. Novos Subsídios para Professores de 1o e 2o graus. Brasília, Mec/Mari/ Unesco. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. 1993. “Tutela aos Índios: Proteção ou Opressão?” In: SANTILLI, Juliana (org.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre, Fabris Editor.
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Ações Afirmativas e Cotas no Ensino Superior: uma Reflexão sobre o Debate Recente Camila Magalhães, Fernanda Montenegro Menezes e Sabine Righetti
Introdução Nunca, em nenhum outro momento da história, o tema das ações afirmativas esteve tão presente nos discursos políticos, na mídia, nos movimentos sociais e nas discussões populares. Entendemos, neste trabalho, ação afirmativa como o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas (Menezes, 2001). Em outras palavras, trata-se de medidas que visam eliminar desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados. A ação afirmativa possui uma nítida finalidade: implementar efetivamente uma igualdade concreta (igualdade material), que a isonomia (igualdade formal garantida na Constituição Federal de 1988), por si só não consegue proporcionar (Menezes, 2001, p. 27). Em relação à sua aplicação, a fixação de cotas é, ressalte-se, apenas uma das modalidades existentes de ação afirmativa. Neste sentido, podemos citar outras hipóteses de aplicação de ação afirmativa, reconhecidos, por exemplo, pelo governo norte-americano: a reformulação de 257
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políticas de contratação e promoção de desempregados, levando-se em conta fatores que estão associados aos grupos que se pretende beneficiar e a oferta de treinamento específico para minorias, tendentes a corrigir algum desequilíbrio existente (Menezes, 2001). A ideia de implantação de cotas visa limitar um número máximo (teto) ou número mínimo (piso) de pessoas em uma determinada função, atividade, curso e afins. No primeiro caso (teto), o objetivo é, basicamente, evitar abusos1. No segundo caso (piso), a meta é a inclusão social por meio de uma fixação de um mínimo de pessoas que representam uma minoria desprivilegiada. Na legislação brasileira há exemplos de cotas para inclusão. A Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, define no 3o parágrafo do artigo 10o que “cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”. Na prática, essa lei possibilita que pelo menos 30% dos candidatos sejam mulheres – por isso a lei ficou popularmente conhecida como a “lei de cotas para mulheres em partidos políticos”. No mesmo caminho, a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, garante, em seu artigo 2o, parágrafo único, referente à área da formação profissional e do trabalho, “a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência”. Embora a Lei n. 7.853 não aborde especificamente as cotas, os portadores de necessidades especiais passaram a contar, em alguns concursos públicos, com uma quantidade mínima de vagas (piso)2. Outro exemplo de cotas mínimas estabelecidas, alvo do presente artigo, diz respeito ao estabelecimento de cotas para estudantes egressos
1. Hoje em dia, por exemplo, há um debate instalado no Brasil – bastante polêmico, por sinal – sobre a criação de um possível projeto de lei com o objetivo de limitar a contratação de parentes de primeiro e segundo grau para cargos exercer cargos públicos (tem-se falando de um a dois parentes por cargo executivo). 2. A inclusão de portadores de deficiência física por meio de cotas em concurso público pode ser considerada uma medida importante, porém simplista, já que não considera se, de fato, o portador terá condições de trabalhar no posto assumido. Por exemplo: há, nos prédios públicos, amplas condições para cadeirantes se locomoverem? Certamente não há. 258
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de escolas públicas, em especial pretos, pardos e indígenas3, nas instituições públicas federais de educação superior. Merece destaque na análise da implementação da política de cotas raciais no acesso ao ensino superior, posto que as universidades públicas desempenham um papel fundamental no desenvolvimento e solidificação de uma democracia capaz de representar as diferentes identidades culturais formadoras da sociedade, a partir da construção de um espaço público apto à produção de um conhecimento mais plural, fruto de diferentes experiências e visões de mundo4. A educação, conforme os princípios da Lei de Diretrizes e Bases (LDB – 1996), é um dever da família e do Estado “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 2o). Assim, o acesso à educação é uma maneira de garantir uma sociedade democrática, igualitária e desenvolvida tanto para seu exercício de cidadania, quanto para o mercado de trabalho. Tratando-se de educação superior, vale destacar que, em um país com desigualdades sociais extremas como o Brasil, o ingresso na universidade representa também ascensão social. Em todas as regiões brasileiras, o rendimento para cada ano adicional de escolaridade em relação ao ensino médio completo é muito expressivo: quem cursa um ano de ensino superior no Brasil tem um ganho de 50% em relação à situação de um indivíduo que tivesse apenas o ensino médio5. E nesse contexto
3. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) separa a população brasileira em brancos, pretos, pardos e indígenas ou amarelos. 4. De acordo com o pensamento de Silva e Silvério (2003): “Negros na universidade, pois, tem de deixar de ser reivindicação do Movimento Negro para converter-se em comprometimento do poder público, compromisso das instituições de ensino, para que repare o secular déficit de educação da população negra, produzido por organização social excludente, discriminatória, racista. Compromisso e comprometimento que exigem quebra do domínio intelectual, político, material, centrado numa única visão de mundo, de ciência, de cidadania de origem europeia e estadunidense, requer diálogo entre estas visões e outras, como as de raiz africana, indígena, asiática”. 5. Para as pessoas que têm quinze anos de escolaridade, que em média coincide com o nível de ensino superior completo, o rendimento passa a ser 117% superior ao de indi259
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em que o ingresso no ensino superior significa quase lineramente ascensão social, os negros correspondem, hoje, a apenas 2% do contingente de universitários, apesar de representarem 45% dos brasileiros6. O debate sobre as cotas no ensino superior – em especial as cotas raciais – é polêmico e está longe de chegar a um consenso, inclusive em grupos como os do movimento negro. De um lado, há a afirmativa de que um impulso como o das cotas seria capaz propulsionar uma mudança social maior. De outro lado, especialistas advertem para o fato de que a própria existência de cotas seria uma forma de descriminação. O presente artigo não tem a pretensão de esgotar o tema, mas sim de fornecer subsídios para uma discussão especialmente do ponto de vista jurídico, partindo da premissa de que a educação, independente da raça ou classe social, é um direito de todos.
História das Ações Afirmativas As ações afirmativas (affirmative actions) ganharam notoriedade pública internacional na década de 1960, quando políticas de combate à discriminação foram implantadas nos Estados Unidos como forma de promover a igualdade entre negros e brancos norte-americanos. Neste período, o então presidente Jonh Keneddy publicou o Decreto n. 10.952, de 6 de Março de 1961, que criou a “Equal Employment Opportunity Commission” (EEOC)7, buscando assegurar total isonomia entre trabalhadores no campo de trabalho. Percorrendo a história norte-americana, podemos identificar uma série de fatos e decisões históricas que contribuíram para o desenvolvi-
víduos com as mesmas características de idade, gênero, raça e região geográfica, mas que possuem apenas o ensino médio. Já para os indivíduos com dezessete anos de estudo, isto é, que possuem pós-graduação ou fizeram cursos de graduação de mais longa duração (como medicina), o retorno no rendimento é 285% superior ao dos indivíduos com apenas o ensino médio (Vogt, 2008). 6. De acordo com material institucional da Universidade Nacional de Brasília (UnB) sobre sua política de cotas. Disponível em: http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index. php, acesso em nov. 2008. 7. O Decreto n. 10.952/61 foi pioneiro na utilização da expressão “Ação Afirmativa”. 260
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mento e, ao final, para o declínio das ações afirmativas no país. De fato, a política adotada por cada um dos governos norte-americanos contribuiu efetivamente para a trajetória das ações afirmativas. Inicialmente, faz-se necessária a contextualização do princípio da igualdade jurídica veiculada pela décima quarta emenda constitucional norte-americana – a equal protection clause – cuja disposição estabelece que nenhum Estado poderá “negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis”8. A igualdade jurídica veiculada pela décima quarta emenda nem sempre foi aplicada de maneira uniforme nos tribunais norte-americanos. Após anos da edição da emenda, somente nas últimas décadas, a Suprema Corte tem assegurado a aplicação efetiva deste princípio, apoiada em critérios fortalecidos e bem definidos. Ocorre que o posicionamento inicialmente emcampado pela Suprema Corte nos primeiros casos envolvendo a equal protection clause9 deu margem ao desenvolvimento de uma doutrina que veio a ser identificada como separate but equal – separados mas iguais –, amplamente adotada no período compreendido entre 1896 e 1954 (Menezes, 2001). Segundo tal doutrina, a segregação racial seria admitida na prestação de serviços ou como criterio genérico de tratamento, desde que os “separados” tivessem as mesmas condições, dentro de um mesmo padrão para todas as raças. Neste sentido, proibia-se que a segregação fosse utilizada a pretexto da discriminação e da exclusão racial. Muito embora a doutrina “separados, mas iguais” tenha perdurado durante quase um século, a partir da década de 1950 ela foi afastada em importantes decisões da Suprema Corte, que tinham por objeto justamente o tema no qual ela se originou: a segregação racial adotada nas instituições de ensino.
8. Constituição dos Estados Unidos da América – Emenda XIV. “Nenhum Estado poderá... negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis”. 9. Neste sentido vide Strauder v. State of West Virginia 100 US 303 (1879) e Pace v. Alabama 106 US 583 (1883). 261
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Em 1954, a decisão proferida no emblemático caso Brown v. Board of Education of Topeka10 representou, portanto, um marco do direito constitucional norte-americano no rompimento da doutrina “separados, mas iguais”. Na decisão, reforçou-se o entendimento de que a doutrina, que permitia a segregação racial em escolas, mas exigia que as instalações e “facilidades” educacionais11 para os afro-americanos fossem da mesma qualidade que a dos brancos – nunca daria aos afro-americanos o mesmo padrão de qualidade de educação recebidas pelos brancos. A decisão proferida no caso endossou o descontentamento dos negros com as políticas discriminatórias adotadas nos Estados Unidos e colaborou para o surgimento de vários movimentos em defesa dos direitos humanos. Evidenciou-se que as manifestações do judiciário eram insuficientes para conter a intensa onda discriminatória. É neste contexto – de profundo descontentamento e de crescimento de movimentos de direitos civis – que surgem os primeiros avanços das políticas de ações afirmativas nos Estados Unidos. Durante o governo Lyndon Johnson (1963-1969) – efusivo defensor de Ações Afirmativas foram criados mecanismos e estratégias de combate e de superação das desigualdades raciais, culminando, em 1964 com a aprovação do Civil Rights Act12, da Lei de Direitos Civis (1964) e da Lei de Direito ao Voto (1965). O governo Richard Nixon (19691974), no entanto, representou um retorno conservador no que tange à política de ações afirmativas. Apesar da elaboração do Plano Philadélfia, que estimulou a contratação de minorias por companhias e entidade
10. O Brown v. Board of Education de Topeka (cidade norte americana situada no Estado de Kansas) foi um caso judicial iniciado contra o Distrito Escolar de Topeka, em nome de Linda Brown, uma aluna da terceira série que era forçada a caminhar 1,6 quilômetro para estudar em uma escola para afro-americanos, enquanto que uma escola para alunos brancos estava distante apenas sete quateirões de sua casa. 11. O termo “facilidades educacionais”, aqui aplicado, leva o sentido de laboratório e outras formas de infra-estrutura para a educação como no seu original em inglês “educational facilities”. 12. O artigo V do documento Civil Rights Act previa a garantia do princípio da igualdade na contratação e promoção dos trabalhadores, pertencentes às minorias. 262
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educacionais, os vários programas de incentivo à isonomia no trabalho falharam em suas tarefas. Em 1978, em pleno governo Jimmy Carter (1977-1981), a Suprema Corte dos Estados Unidos pronunciou-se no emblemático caso Regents of the University of California v. Bakke, no qual o candidato Alan Bakke, reprovado no processo seletivo do curso de medicina da Universidade da Califórnia discutiu a reserva de dezesseis das cem vagas destinadas a estudantes pertencentes às minorias. A Suprema Corte decidiu, por cinco a nove votos, que o vestibulando branco Alan Bakke teve seus direitos violados com o plano de Ação afirmativa dessa Universidade. Comentando a decisão, Dworkin (2005), esclarece que: Em 1978, no famoso processo Bakke, a Suprema Corte decretou que os planos de admissão sensíveis à raça não violam a 14a emenda da Constituição dos Estados Unidos, que declara que “nenhum estado poderá negar a qualquer pessoa a igual proteção das leis”, contanto que tais planos não estipulem cotas fixas para qualquer raça ou grupo, porém considerem raça somente como fator dentre outros.
O Juiz Lewis Powell, em seu parecer no famoso veredicto da Suprema Corte no processo Bakke, decidiu, portanto, que as preferências raciais são constitucionais se sua finalidade for aumentar a diversidade racial entre os alunos, não estipulando cotas fixas para as minorias, mas levando em consideração a raça como um fato dentre muitos outros. Mas, muitas vezes, não é possível definir as características que distinguem o sistema de cotas das políticas de ações afirmativas, admitidas atualmente pela Suprema Corte do Estados Unidos. Nas palavras de Menezes (2001): “Este dilema, na prática norte-americana, termina sendo solucionado por exclusão: os sistemas de cotas são, de plano, considerados inconstitucionais (razão pela qual eles são evitados), enquanto que a constitucionalidade das outras modalidades de ação afirmativa acaba sendo apreciada, de forma isolada, em cada caso específico”. O programa de ações afirmativas nos Estados Unidos foi apoiado com força até a década de 1980, quando Ronald Reagan foi eleito presidente (1981-1989) e introduziu a ideia de que ação afirmativa era uma espécie de “discriminação às avessas” (Anderson, 2004). Efetivamente, o desmantelamento das políticas de ação afirmativa nos EUA se iniciou em 263
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1995, durante o mandato de Bill Clinton (1993-2001), quando a Universidade da Califórnia as aboliu13. O entendimento atual é que, para terem o efeito desejado – de inclusão social - as cotas são necessárias por um uma geração (25 anos). Assim, na segunda geração, a política de cotas pode ser reduzida ou extinta. É fato, portanto, que a implantação de programas e políticas de inclusão social de minorias, com vistas a conferir tratamento isonômico entre os indivíduos, não é um assunto novo no cenário mundial. Embora o tratamento das cotas no ordenamento jurídico norte-americano possa servir como referencial para a aplicação de uma eficiente política de ações afirmativas, a história traçada ao longo de todos estes anos e, em especial, a realidade brasileira mostra-se completamente distintas da norte-americana. Por isso, vale uma caracterização especial do contexto brasileiro.
O Racismo no Brasil14 Desde o final do século XIX, o antropólogo maranhense Raimundo Nina Rodrigues, apontado como pioneiro dos estudos africanos no Brasil, tem trabalhado nos estudos voltados para a questão negra no país e, mais especificamente, para o racismo. Em 1900, já havia publicado no Jornal do Comércio o que viria a ser depois capítulo do livro póstumo Os Africanos no Brasil, de 1933. Nessa mesma década de 1930, Gilberto Freyre consolidou-se como intelectual abordando o tema na obra Casa Grande e Senzala, publicada pela primeira vez em 1933. Nesse período, irrompia no Brasil uma série de reivindicações dos que lutavam para que assuntos de seu interesse fossem abordados na mídia e para que termos preconceituosos fossem dispensados dos textos jornalísticos. O negro está presente na mídia com sua imagem comumente ligada à força muscular (esportes, principal-
13. Nesse período, em meados da década de 1990, tem início a discussão sobre as ações afirmativas no Brasil. 14. Os conceitos de racismo e raça são entendidos e trabalhados como construções sociais, que somente se eivam de sentido quando inseridos num contexto valorativo, no qual práticas discriminatórias dirigidas a determinados grupos são recorrentes. 264
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mente o futebol, e subemprego), à música (samba) e a crimes (na seção policial). Antes disso, a presença dos negros nos jornais era um modo de legitimar a escravidão, tal como o trecho transcrito a seguir, uma crítica ao movimento da Mocidade Negra. Continua o nosso reacionário: Por que motivo os negros, em grande maioria, moram nos cortiços? A resposta, asseguro-lhe, é muito fácil: a pouca valia que imprimem aos seus trabalhos; a pouca ou nenhuma cultura e a acentuada dolência dos seus passos; a inércia e a falta de vontade e iniciativa para uma reação na trilha do progresso, são as causas principais que obrigam os negros às misérias do cortiço. (O trecho transcrito faz parte do editorial Ironia de um congresso, do jornal Folha da Manhã – atual Folha de S.Paulo –, publicado num domingo, 12 de janeiro de 1930.)
Com a ditadura militar e a repressão à imprensa e aos movimentos sociais, nas décadas de 1960 e 1970, a cobertura das questões raciais pela imprensa continua deficitária. É como se mostrar questões raciais na grande mídia significava assumir que esses problemas existiam (Righetti, 2003). A nova Constituição Federal de 1988 passou a considerar o racismo como crime, o que foi regulamentado no ano seguinte, pela a Lei n. 7.716, do deputado negro Carlos Alberto Caó (por isso, ficou conhecida como Lei Caó). A partir de então, expressões que destacavam a cor de pele da pessoa citada sumiram das notícias jornalísticas, o que refletiu até nos manuais de redação (Righetti, 2003). Além da mídia, a própria inserção da temática dos negros na educação é recente e foi inicialmente institucionalizada no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional: Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. § 4o O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia (grifo nosso). 265
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Porém, somente em 2003, a Lei Federal n. 10.639, de 9 de janeiro, alterou a LDB (Lei n. 9.394), acrescentando a ela dois artigos (art. 26-A e art. 79-B). Dessa forma, a lei incluiu, efetivamente, no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira. Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
A nova Lei Federal n. 10.639/03 incluiu também no calendário das escolas o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra (art. 79-B)15. A partir da LDB tem início uma movimentação no sentido de inserir a história da África nos materiais didáticos e, com isso, despertar o interesse para a questão negra no Brasil. Mas uma mudança marcante no debate sobre as relações raciais no Brasil16 é recente e marcada pela III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. Pela primeira vez, desde o fim da escravidão, o Estado brasileiro reconhece, perante a comunidade internacional, a persistência do racismo nessa sociedade e como este se apresenta como variável relevante na determinação das desigualdades socioeconômicas entre brancos e negros no Brasil.
15. Vale destacar que a alteração da LDB de 1996 pela nova lei federal de 2003 resultou em um “reaquecimento” do debate sobre o movimento negro no Brasil. 16. Ressalta-se que o movimento negro, refletindo as demandas daqueles que sofrem o preconceito, é personagem principal da luta política pelo rompimento com determinados paradigmas sociais não mais aceitáveis eticamente. 266
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Reconhece também que as estruturas e práticas do colonialismo levaram à discriminação racial, mostrando-se necessária a implementação de políticas públicas especificamente voltadas para efetiva inclusão da população negra nas mais diferentes esferas sociais17. Além da herança deixada pelas práticas escravistas18, foi difundido socialmente o mito da democracia racial brasileira, da sociedade mestiça, em que brancos e negros são iguais perante a lei19, silenciando sobre a diversidade étnica formadora da sociedade e contribuindo para a construção de um tipo de racismo bastante particular no Brasil20.
17. Declaração e programa de ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, 2001, Durban, África do Sul: Artigo 13. Reconhecemos que o colonialismo levou ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e que os Africanos e afrodescendentes, os povos de origem asiática e os povos indígenas foram vítimas do colonialismo e continuam a ser vítimas de suas consequências. Reconhecemos o sofrimento causado pelo colonialismo e afirmamos que, onde e quando quer que tenham ocorrido, devem ser condenados e sua recorrência prevenida. Ainda lamentamos que os efeitos e a persistência dessas estruturas e práticas estejam entre os fatores que contribuem para a continuidade das desigualdades sociais e econômicas em muitas partes do mundo ainda hoje; Artigo 17. Enfatizamos que a pobreza, o subdesenvolvimento, a marginalização, a exclusão social e as disparidades econômicas estão intimamente associadas ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e contribuem para persistência de práticas e atitudes racistas que geram mais pobreza; Artigo 32. Reconhecemos o valor e a diversidade da herança cultural dos africanos e afrodescendentes e afirmamos a importância e a necessidade de que seja assegurada sua total integração à vida social, econômica e política, visando a facilitar sua plena participação em todos os níveis dos processos de tomada de decisão. 18. Ressalta-se que, para alguns autores, as políticas imigratórias do início do século XX, voltadas aos europeus e asiáticos, deram continuidade a práticas observadas na escravidão, como tráfico de pessoas, espancamentos, ausência de contratos de trabalho, entre outros (Almeida, 2004). 19. A igualdade entre brasileiros está assegurada nos artigos 3o e 5o da Constituição Federal de 1988: Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: § IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. 20. Guimarães (1999) entende o mito democrático como uma teria tão persuasiva quanto à ideologia, definindo-o como “uma ideologia historicamente dada, materializada em práticas sociais, em políticas estatais e em diversos discursos literários e artísticos”, defenden267
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Diferentemente do que ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos e na África do Sul, onde a discriminação racial foi institucionalizada por meio de leis segregacionistas, o discurso jurídico brasileiro, estabelecendo uma igualdade abstrata, acabou por gerar uma anulação cultural dos negros (não-reconhecimento) sob dois aspectos elementares na formação da sua identidade: o de ser negro em sua própria subjetividade e enquanto grupo étnico-racial. Com efeito, a manipulação discursiva do conceito da igualdade absoluta, que não considera a diversidade humana e a sua vertente do direito à diferença, não foi capaz de superar as desigualdades estabelecidas entre brancos e negros até o presente momento, verificadas a partir dos dados estatísticos em diferentes níveis (educação, emprego, violência urbana, renda etc.), mesmo sem ser a população negra uma minoria propriamente dita21. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2005, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud): As políticas de ação afirmativa justificam-se no Brasil porque as diferenças raciais persistem ao longo das décadas, seja em fases de crescimento, seja em fases de desaceleração da economia. [...] O Estado deve administrar a tensão existente entre a necessidade do reconhecimento das singularidades de determinado grupo e a exigência da superação das desigualdades. Reconhecer a diferença cultural implica estabelecer uma democracia multicultural.
Ronald Dworking (2005), defensor da implementação desses princípios nos EUA, afirma que programas desse tipo são necessários e válidos, enquanto os negros dentro da comunidade não tenham conquistado a
do que, somente a partir da reconstrução do conceito de raça e, com isso, o aparecimento de uma identidade negra, é que se poderá pensar na superação do racismo. 21. De acordo com o IBGE, com base no levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2007, somente 12% de negros e pardos estão entre o 1% mais rico, enquanto os brancos formam 86,3% do grupo. Já entre os 10% mais pobres figuram 73,9% de negros e pardos contra 25,5% de brancos: “os grupos raciais subalternizados [...] padecem de uma precária inserção social ao longo dos 120 anos. Esta precária inserção social não é explicada pelo ponto de partida, mas pelas oportunidades diferenciadas a eles oferecidas”. 268
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liberdade de se autodeterminarem, por meio de escolhas próprias sobre qual papel deseja exercer socialmente, pois onde o racismo se faz presente, ao negro cabe o enquadramento no modelo representativo culturalmente estabelecido, impondo-lhes um estilo de vida reduzido, uma vez que não são reconhecidos como indivíduos titulares de direitos22.
A Fundamentação Jurídica O debate jurídico sobre o sistema de cotas para o ensino superior, basicamente, gira em torno de duas ideias: da inconstitucionalidade das cotas, a partir de uma interpretação de que os direitos de todo e qualquer brasileiro são iguais, e da constitucionalidade da política, pela interpretação de trata-se de uma política de promoção da inclusão que, inclusive, pode ser realizada com base em princípios estabelecidos por cada universidade pública. Um dos argumentos vigentes no debate sobre a inconstitucionalidade das cotas é a inexistência, na jurisprudência nacional, de separação racial para qualquer finalidade. Esse tratamento – de separação por raças – feriria o princípio fundamental de igualdade entre os cidadãos, garantido, na Constituição Brasileira de 1988, pelo artigo 5o (princípio da isonomia). “Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. A partir dessa linha de argumentação, o próprio levantamento do sistema de cotas raciais no ensino superior “estimula” ou, até mesmo, “desenvolve” um sentimento nacional de racismo, de competição entre
22. Reza o artigo 33 da Declaração da III Conferência de Durban: “Consideramos essencial que todos os países da região das Américas e de todas as outras áreas da Diáspora africana, reconhecerem a existência de sua população de descendência africana e as contribuições culturais, econômicas, políticas e científicas feitas por esta população e a reconhecerem a persistência do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata que os afeta especificamente, e reconhecemos que, em muitos países, a desigualdade histórica em termos de acesso, inter alia, à educação, ao sistema de saúde, à moradia tem sido uma causa profunda das disparidades sócio-econômicas que os afeta”. 269
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raças – inclusive nas vagas dos vestibulares para ingresso em universidades públicas. Por esse entendimento, haveria, nas cotas, um tratamento discriminatório contra determinadas pessoas23. Por outra interpretação, favorável às cotas, há a ideia de que tal política de cotas poderia ser considerada constitucional já que tem por objetivo remediar situações desvantajosas a um grupo social (no caso, os negros). Assim, as cotas raciais nas universidades, enquanto política pública de um Estado Democrático de Direito, para alcançar efetividade deve também justificar-se juridicamente, identificando as normas constitucionais que se colocam em tensão no debate, a fim de solucionar o conflito gerado pela implementação de políticas públicas não universalistas24. Um dos pontos de partida é a constatação de que a universalização do ensino fundamental e o crescimento do ensino médio, cujos objetivos principais são de formação do cidadão e preparo para a vida, não foram eficazes na equiparação qualitativa entre as escolas públicas e particulares, pondo-se necessariamente em conflito o direito à igualdade, traduzido pelo forte argumento do mérito no êxito do vestibular, e o direito à educação, nos seus aspectos de acesso e permanência. Na maioria das vezes, os egressos de escolas privadas continuam vários passos a frente dos egressos de escolas públicas no caminho ao ensino superior. Vale destacar também o princípio da autonomia universitária25, que garante que cada instituição pública de ensino superior tenha liberdade administrativa, financeira e pedagógica – o que incluiu, obviamente,
23. Vale destacar que, apesar do princípio da igualdade constante na Constituição Federal de 1988, permanece, no país, uma série de tratamentos desiguais entre pessoas. Por exemplo, citamos o art. 295, do Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro 1941), que garante prisão especial, com uma série de benefícios, a ministros do Estado, portadores de diploma de ensino superior, magistrados, entre outros. 24. Ressalta-se que o silêncio e a falta de debate sobre a diversidade, estabelecido durante todo o século XX, contribuiu decisivamente para dificultar o debate envolvendo a questão racial no Brasil. 25. De acordo com Ranieri (2005) significado mais amplo e genérico de autonomia designa poder de autodeterminação, exprimindo a ideia de direção própria: “autonomia indica a competência de autonormação, ou seja, a possibilidade de dar-se um ordenamento jurídico, o que consiste em poder funcional derivado, circunscrito ao peculiar interesse da entidade 270
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a liberdade para desenvolver sistemas de ingressos que possam incluir ações afirmativas como as cotas. A autonomia universitária é assegurada pela Constituição Brasileira de 1988, no artigo 207: Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. § 1o É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 11, de 1996.) § 2o O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 11, de 1996.)
Os antropólogos da Universidade de Brasília (UnB), José Jorge de Carvalho e Rita Segato, que elaboraram o programa de política de cotas para negros naquela universidade, aprovado em 2003, entendem tal política como medida estrutural de correção das desigualdades raciais, pois o objetivo da prestação é a igualização de situações sociais desiguais. De acordo com as projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se a educação brasileira continuar progredindo no mesmo ritmo de hoje, em treze anos os brancos devem alcançar a média de oito anos de estudo e os negros só atingirão essa meta daqui a 32 anos. Portanto, só daqui a três décadas brancos e negros ficariam a par no ensino e concorreriam em pé de igualdade a uma vaga no ensino superior público. Com isso, o Brasil arcaria com o ônus de perder os talentos de mais de uma geração de jovens negros em sua quase totalidade (Carvalho e Segato, 2002). Dados também do Ipea revelam que dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% são negros; entre os 53 milhões de pobres do país, 63% são negros (Henriques, 2003). Pesquisas realizadas pela UnB comprovam, ainda, o déficit de renda dos estudantes negros em relação aos demais estudantes. Os dados apontam que 57,7% dos candidatos de cor preta possuem renda familiar inferior a R$ 1.500 reais, já em relação ao grupo de cor branca esse percentual é bem menor, 30%. A mesma disparidade é verificada quando se
que o detém, e limitado pelo ordenamento geral em que se insere, sem o qual, ou fora do qual, não existiria” (Ranieri, 2005, p. 20). 271
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analisa o percentual de pessoas com renda acima de R$ 2,5 mil: 46,6% dos candidatos de cor branca estão nessa categoria, enquanto o percentual no grupo de cor preta é de 20,4%26. Diante dos dados, impende estabelecer um conceito de princípio e o instrumento jurídico de composição dos conflitos instaurados na relação de tensão entre eles. Fazendo uso da teoria de Alexy (1997), de distinção entre princípios e regras, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, diante das possibilidades jurídicas e fáticas (da realidade) existentes, sendo caracterizados como “mandamentos de otimização” que podem ser cumpridos em diferentes graus a depender das condições fáticas e jurídicas de realização. Os princípios denotam que algo deve ser realizado somente a prima facie, pois, no caso concreto, não conduz a um resultado definitivo. O princípio não determina como resolver definitivamente a tensão com razões opostas de outras normas, carecendo de um “conteúdo de determinação” frente as possibilidades fáticas de sua realização, significando dizer que a razão dos princípios apenas apontam uma direção que não contém uma decisão definitiva. Em contrapartida, as regras seriam normas que contêm determinações no âmbito do que é jurídica e faticamente realizável, ou seja, são normas válidas se seus comandos puderem ser totalmente cumpridos; se a razão da norma fracassa frente a impossibilidades jurídicas e fáticas, não cabendo a introdução de uma cláusula de exceção, a referida regra deve ser declarada inválida27. Assim, a oposição de princípios não se encontra na dimensão de validade das normas, pois, tem-se como premissa que todos os princípios são igualmente válidos, assim, a solução da oposição no caso concreto, se concentra na dimensão do peso de cada principio, haja vista as suas razões não serem absolutas ou definitivas, determinando direitos ou deveres apenas prima facie.
26. Informações do material “Sistema de Cotas para Negros” da UnB. Disponível em: http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.php, acesso em nov. 2008. 27. Segundo Silva (2003), na teoria de Alexy, as regras expressam direitos ou deveres definitivos, que devem ser realizados exatamente nos termos exigidos pela norma. 272
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Então, numa relação de tensão entre dois princípios aos quais o Estado está vinculado pela Lei Fundamental, a solução deve ser tomada por meio de uma ponderação sobre qual dos interesses opostos no caso concreto possui o maior peso, com respeito às possibilidades fáticas e jurídicas do seu cumprimento. Quando tomados em si mesmos, esses princípios conduzem a resultados distintos, significando dizer que cada um deles limita a possibilidade jurídica de realização do outro28. Somente através da análise das condições do caso concreto, buscando uma solução que não lesione um direito fundamental protegido pelo ordenamento jurídico, a oposição de princípios deve ser solucionada por meio do sopesamento, isto é, qual princípio tem peso maior sob aquelas circunstâncias do caso em questão. Sopesamento ou ponderação entre pesos é aqui compreendida como diálogo entre os mandamentos dos princípios colidentes e as condições suas de realização (fáticas e jurídicas) no caso concreto. Não é uma escolha do que seja ontologicamente melhor, pois a restrição do alcance de uma norma de direito fundamental impõe o exercício argumentativo, não havendo qualquer fórmula ou parâmetro de otimização na solução do conflito, apenas a Lei Fundamental. Com efeito, a política pública de cotas raciais, gerando uma relação de tensão entre os direitos fundamentais à igualdade de quem presta o vestibular e à educação de quem não se encontra em condições semelhantes de competitividade, impõe, segundo Alexy, uma necessária restrição a um dos princípios; por meio do sopesamento, ou seja, tendo como ponto de equilíbrio a própria sistemática constitucional, diante das condições da realidade brasileira e das desigualdades entre brancos e negros, necessário se mostra o diálogo entre as razões determinadas por
28. Segundo a explicação de Luis Virgílio Afonso da Silva, “[...] importante, nesse ponto, é a ideia de que a realização completa de um determinado princípio pode ser – e frequentemente é – obstada pela realização de outro princípio. Essa ideia é traduzida pela metáfora da colisão entre princípios, que deve ser resolvida por meio de um sopesamento, para que se possa chegar a um resultado ótimo. Esse resultado ótimo vai sempre depender das variáveis do caso concreto [...]”. 273
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ambos os princípios para se chegar a solução da aparente colisão no caso concreto, qual deles teria peso maior. Uma consideração deve ser exposta: a restrição ao princípio da igualdade resultante do sopesamento dos princípios fundamentais em tensão, na verdade, é atuante apenas em um dos aspectos dessa relação de tensão, pois, em última instância, a máxima realização do direito à educação dos negros, em decorrência das condições fáticas da realidade brasileira, sugere à máxima realização do direito à igualdade, quando se tem como referencial do sopesamento a sistemática jurídica da Constituição Federal de 1988. Ainda, remanesce a mesma reflexão, se a relação de tensão se estabelece eventualmente entre o direito fundamental à educação e a vertente da não-discriminação do direito à igualdade, pois, por uma primeira análise, a efetividade das cotas raciais pode conduzir à efetividade do último para o grupo socialmente discriminado.
Experiências no Brasil O debate sobre as ações afirmativas e cotas no ensino superior público brasileiro ganhou força em meados da década de 1990, em especial com o PL 73/99, de Nice Lobão (PFL-MA), que dispôs sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais, estipulando a reserva de 50% das vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos de ensino médio – cota universitária29. Outros PLs foram subsequentes, como o PL 3627 de 2004, que está arquivado, versou sobre a instituição do Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior. A primeira instituição federal de ensino superior a implementar o sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), que aprovou em junho de 2003, após cinco anos de discussão, um plano de metas para integração racial e étnica (já mencionado anteriormente). O sistema
29. O PL 73/99 ainda aguarda encaminhamento. A última ação foi em 20 de maio de 2008, quando não foi apreciado. 274
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atraiu 4,4 mil estudantes de um total de 23,5 mil inscritos – 18,6% dos candidatos. Para eles, foram destinados 20% do total de vagas de cada curso oferecido no 2o vestibular de 2004, 392 de 1.994. Desse número, os cotistas foram 37830. No ano seguinte, em 2004, a Universidade Federal da Bahia (UFBA), estado que concentra a maior população preta e parda do país de acordo com dados do IBGE31 – 15,7% e 63,4%, respectivamente, num total de 79,1% da população preta ou parda no estado – instituiu sua política de cotas, integralmente transcrita no Manual do Candidato 2005. Pelo sistema, há seis categorias32 de inscrição dos candidatos, de acordo com cor e com sistema em que concluiu o ensino médio (público ou privado). De acordo com Queiroz e Santos (2006), em um trabalho de análise da política de cotas, o vestibular com reserva de vagas proporcionou “uma revolução na UFBA”, pois fez ingressar, nos cursos mais competitivos, uma parcela considerável de estudantes oriundos de escolas públicas. Cursos como Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Odontologia, Ciências da Computação, entre outros, que tinham uma participação média de 27% de estudantes de escolas públicas, passou para 43%. As iniciativas de cotas mencionadas, na UnB e na UFBA, foram reproduzidas, de diferentes maneiras, em outras instituições federais de ensino superior do país. No estado de São Paulo, já existem políticas de
30. Vale dizer que o Sistema de Cotas da UnB integra uma “comissão para averiguação da raça” dos candidatos. Essa questão evidencia uma polêmica debatida até os dias de hoje: como avaliar a “raça” de uma pessoa? Quem estaria apto a fazer isso? Não cabe, neste artigo, um aprofundamento deste debate, mas é importante mencionar a sua existência. 31. Os dados são da última Pesquisa por Amostra em Domicilio (PNAD) do IBGE, realizada em 2006. 32. As categorias são: Categoria A (36,55%): candidatos de escola pública que se declararam pretos ou pardos. Categoria B (6,45%): candidatos de escola pública de qualquer etnia ou cor. Categoria D (2%): candidatos de escola pública que se declararam índio-descendentes. Categoria E (55%): todos os candidatos, qualquer que seja a procedência escolar e a etnia ou cor. Não sendo preenchidas todas as vagas das Categorias A e B, elas são prioritariamente preenchidas por candidatos de escola particular que se declararam pretos ou pardos (inscrição de Categoria C). Permanecendo vagas abertas, elas são preenchidas por candidatos com inscrição da Categoria D. Não sendo preenchidas todas as vagas da Categoria D, elas são preenchidas por candidatos com inscrição da Categoria E 275
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cotas e outras ações afirmativas implementadas, o que será apresentado a seguir.
Experiências no Estado de São Paulo O Estado de São Paulo concentra um total de 819 mil vagas no ensino superior público e privado33 e integra as principais universidades do país: Universidade de São Paulo (USP), Universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), sendo as duas primeiras elencadas entre as principais universidades da América Latina. O Estado também integra 33 Faculdade de Tecnologia (Fatecs). Em 2003, o Decreto Estadual n. 48.328, de 15 de dezembro de 2003, determinou a criação, junto a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, da Comissão de Coordenação e Acompanhamento das Políticas de Ações Afirmativas para Afrodescendentes, composta por representantes de várias secretarias, de universidades públicas e de outras instâncias de governo, entre elas o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra. Pouco depois a discussão das políticas de ação afirmativa ganhou força, concomitantemente ao crescimento dos movimentos de inclusão racial. Em uma dessas grandes universidades – a Unicamp – foi instituído, em 2004, o primeiro programa de ação afirmativa sem cotas implantado em uma universidade brasileira: o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (Paais), que visa estimular o ingresso de estudantes da rede pública e “estimular a diversidade étnica e cultural”34. Os estudantes que optarem pelo Paais na inscrição para o vestibular recebem uma pontuação a mais nota final do vestibular, proporcionalmente a seu desempenho na prova. Candidatos autodeclarados pretos, pardos e indíge-
33. Os dados são de 2006 e foram coletados por meio do projeto Sistema Integrado de Informação sobre o Ensino Superior do Estado de São Paulo (Siesp-SP), com base no Sistema de Informações, Pesquisas e Estatísticas Educacionais (Inep). 34. De acordo com material institucional da Unicamp. Disponível em: http://www. comvest.unicamp.br/paais/paais.html
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nas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas terão, além dos trinta pontos adicionais, mais dez pontos acrescidos à nota final. O Paais já traz resultados significativos de inclusão e rompe com ideias comumente difundidas sobre uma possível queda de qualidade na universidade causada por programas de inclusão. Nota-se, por exemplo, que o número de estudantes egressos de escolas públicas aumentou de 28% (antes do Paais, em 2004) para 34,1% (depois do Paais, em 2005). De acordo com os últimos dados, do vestibular 2008, o número de egressos de escola pública era 32%. Vale destacar ainda que anos 2006, 2007 e 2008 a relação de matriculados na Unicamp oriundos de escola pública foi maior do que a relação dos inscritos no vestibular oriundos de escola pública. Nota-se também que o número de estudantes pretos, pardos e indígenas também aumentou após a implantação do Paais, passando de 11,6% antes do Paais (em 2004) para 15,7% depois do Paais (em 2005). Também em 2004, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) instituiu um programa de cotas para candidatos que se autodeclararem com cor de pele preta, parda ou indígena e tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas, com o oferecimento de 10% a mais de vagas em cada curso. Em 2005, considerando a política de ações afirmativas para afrodescendentes instituída pelo Decreto Estadual n. 48.328 já mencionado, e considerando a necessidade da “criação de condições para a superação acadêmico-intelectual dos graduados na rede pública de ensino”, o governo estadual instituiu o Decreto Estadual n. 49.602, de 13 de maio de 2005, que determinou o sistema e pontuação acrescida para afrodescentes egressos do ensino público nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e Fatecs. O artigo 7o determina ainda a proposta de estudos para nortear o sistema de pontuação acrescida nas universidades estaduais paulistas: “Art. 7o A Secretaria da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo proporá às Universidades Estaduais a realização de estudos visando a implantação dos princípios e diretrizes que norteiam o Sistema de Pontuação Acrescida de que trata este decreto”. O Decreto Estadual n. 49.602 reitera os rumos do caminho que a Unicamp já havia traçado: o Estado de São Paulo trabalha no sentido de instituir ações afirmativas com fator racial para egressos de escolas pú277
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blicas, e não política de cotas ou reserva de vagas. Nesse sentido seguiu também a política da Universidade de São Paulo (USP), que implementou em 2007 o Inclusp, programa que combina a inclusão social com o mérito acadêmico por meio de três tipos de bonificação35 que podem resultar em um bônus de até 12% da nota do vestibular dependendo do desempenho do candidato. O pouco tempo de funcionamento do Inclusp dificulta uma avaliação mais profunda, mas destacamos algumas observações. Nota-se que desde a implantação do programa, o número de ingressantes na USP que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas aumentou um pouco: de 2.248 alunos (em 2006), para 2.719 (em 2007). Em seguida, houve uma queda: 2.713 (em 2008). De acordo com as primeiras avaliações feitas pela pró-reitoria de graduação da USP, o desempenho acadêmico dos alunos que ingressaram na USP beneficiados pelo programa (nota média 6,3) é maior do que aluno “não-Inclusp” (nota média 6,2) o que, assim como o programa o Paais da Unicamp, mostra que, ao contrário do que se imaginava, um possível fraco desempenho acadêmico dos alunos poderia reduzir a qualidade geral do ensino oferecido pela universidade pública. A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) ainda não tem um programa específico de ações afirmativas como a Unicamp, a USP e a Fatec, apesar de já ter anunciado que está estudando essa possibilidade, e não conta com programa de cotas como a Unifesp. Mas a Unesp possui o programa de cursinhos pré-vestibulares gratuitos36 mantidos pela instituição como uma forma de política de inclusão
35. Os sistemas de bônus do Inclusp são: universal (até 3% sobre a nota do vestibular), Enem (até 9% sobre a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio – Enem) e Pasusp (até 12% na nota). 36. Oferecidos gratuitamente, os cursinhos da Unesp preparam os estudantes egressos da rede pública para os exames vestibulares de universidades públicas e particulares. Atualmente são oferecidas cerca de 3.800 vagas, em 22 campi. Os candidatos devem comprovar carência socioeconômica. Nos vestibulares realizados no final de 2007, os pré-vestibulares ajudaram a aprovar 1.050 alunos, sendo 707 em universidades públicas. As informações são do material institucional da Unesp. Disponível em: http://www.unesp.br/aci/cursinhos/. acesso em nov. 2008. 278
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de alunos do ensino médio público. Atualmente, a universidade estuda criar vagas nos cursos de graduação exclusivas para estudantes que fizeram o ensino médio nas escolas públicas. Seria uma espécie de programa de cotas, só que com novas cadeiras, que ainda seriam criadas. O debate sobre acesso no ensino superior público do Estado de São Paulo tem se acirrado cada vez mais, principalmente diante de uma observada redução de inscritos gerais no vestibular, mais especificamente, de uma queda dos inscritos egressos de escolas de ensino médio público. Além disso, mesmo diante da comprovação estatística de que alunos matriculados no ensino superior público beneficiados com programas de inclusão têm rendimento superior elevado, mantém-se o debate sobre a dificuldade de manutenção desses alunos – em geral, de baixa renda – na universidade.
Considerações Finais A eleição de Barack Hussein Obama nos Estados Unidos, mais de quatro décadas após a aprovação da Lei de Direito ao Voto naquele país, reascende um debate mundial sobre a efetividade das políticas de ações afirmativas, em especial das cotas raciais. O debate, por si só, especialmente em países que sofrem de uma extremada desigualdade social como o Brasil, já é válido, mesmo que no meio de tanta incerteza e de opiniões controversas. A discussão traz à tona um assunto que, no contexto brasileiro, parecia escondido por uma espécie de “vergonha social” ou por um imaginário coletivo cultural e historicamente enraizados de que o país é livre do racismo. A discussão das desigualdades sociais e raciais, com recorte específico nas cotas para o ensino superior público, é controversa e, como exposto no presente trabalho, divide opiniões inclusive de um mesmo movimento (como o movimento negro). É importante destacar, no entanto, que o apoio às cotas, no contexto brasileiro, é apoiado em todos os segmentos sociais e nos níveis de renda e de escolaridade mais elevados: de acordo com pesquisa DataFolha de 2006, 65% dos brasileiros apóiam as políticas de cotas para negros nas universidades brasileiras (Queiroz e Santos, 2006, pp. 718-719). 279
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Sem a pretensão de se chegar a qualquer tipo de conclusão, vale ressaltar que as cotas raciais atingem apenas uma parte do problema, ou seja, trata-se de um paleativo. Com a medida das cotas raciais no ensino superior público, o governo pode deixar para segundo plano o problema da educação. É necessário refletir sobre uma política mais ampla de educação, que fortaleça, sobretudo, o ensino médio público – onde a grande maioria dos pretos, pardos e indígenas, de acordo com a classificação do IBGE, faz sua escola. Mas, destacamos, a inexistência de um debate fortalecido no ensino médio não exclui a necessidade de um debate ainda mais aprimorado sobre o ensino superior. É preciso fortalecer ambos os debates, garantindo que todas as raças e classes sociais estejam representadas no ensino básico, médio e superior público e, assim, garantir o definitivo Direito à Educação de todos os brasileiros.
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Sobre os Autores
Adriana A. Dragone Silveira Pedagoga pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em educação pela Faculdade de Educação da USP (Feusp) na área de concentração Estado, Sociedade e Educação, e doutoranda pela mesma instituição. Participa do Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas em Educação (Cepppe/ Feusp). Contato: [email protected]. Camila Magalhães Advogada. Mestranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fdusp). Integrante do grupo de estudos Proteção Internacional ao Direito à Educação, da Cátedra da Unesco de Direito à Educação da Fdusp. Contato: [email protected]. Eduardo Martines Júnior Promotor de Justiça em São Paulo. Professor de Direito Constitucional da PUCSP, da Escola Superior do Ministério Público e da Fadi/Sorocaba. Bacharel em Ciências Econômicas e em Ciências Jurídicas. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Conselheiro Titular do Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Presidente do Conselho Estadual de Acompanhamento e Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Ceacs-Fundeb. Contato: eduardomartines@ globo.com. 285
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SOBRE OS AUTORES
Eduardo Pannunzio Advogado, pós-graduado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Essex (Reino Unido) e mestrando na área de Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação da professora doutora Nina Beatriz Stocco Ranieri. Contato: [email protected] Erik Saddi Arnesen Advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fdusp) e mestrando em Direito do Estado pela mesma instituição. Contato: [email protected]/[email protected] Fernanda Montenegro de Menezes Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2006), mestranda do programa de pós-graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aluna especial da disciplina Aspectos Constitucionais do Direito à Educação I na pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1o sem. 2008). Atualmente exerce as funções de Chefe de Gabinete da Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo. Contato: [email protected] Luiz Gustavo Bambini de Assis Advogado e mestre pela USP. Doutorando em Direito do Estado pela mesma Instituição. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Ex-assessor especial da subchefia para assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. Foi secretário parlamentar junto à liderança do governo no Senado Federal. Foi também diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro no Brasil da Universidade de São Paulo (Neimb/USP), bolsista do CNPQ e assessor jurídico do gabinete da Prefeitura de São Paulo. Contato: [email protected]. Luiz Tropardi Filho Advogado pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Educacional pelo Centro de Extensão Universitária (CEU) e mestrando em Direito Civil pela USP. Contato: [email protected] Marcelo Gasque Furtado Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestrando em Direitos Humanos pela mesma instituição; professor do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac-SP). Contato: [email protected] 286
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Monica Herman S. Caggiano Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Mestre, doutora e livre-docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito pela mesma instituição. Presidente da comissão de pósgraduação da Fdusp. Professora titular de Direito Constitucional e Coordenadora do curso de especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora especial do governador do Estado de São Paulo (2006). Procuradora geral do município de São Paulo (1995-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do município de São Paulo (1972-1996). Nina Beatriz Stocco Ranieri Professora Doutora do Departamento de Direito do Estado, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autora de diversas obras relativas ao direito à educação e ao direito educacional, é membro do Conselho de Educação do Estado de São Paulo. Desde 2006, integra a Education Law Association (ELA), sediada na Universidade de Dayton (EUA) e a International Political Science Association (IPSA). Exerce atualmente as funções de Secretária Adjunta de Ensino Superior do Estado de São Paulo. Contato: [email protected] Sabine Righetti Jornalista pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), especialista em jornalismo científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre em política científica e tecnológica também pela mesma instituição. É pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/ Unicamp), onde desenvolve trabalhos nas áreas de mídia e ciência, percepção pública da ciência e da tecnologia e indicadores de cultura científica. Também é pesquisadora associada ao Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp, onde trabalha com inovação no setor de mídia e desenvolvimento indicadores de inovação. Contato: [email protected] Salomão Barros Ximenes Advogado, mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é assessor da Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação.
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Direito à Educação: Aspectos Constitucionais Nina Beatriz Stocco Ranieri Sabine Righetti Igor Daurício Adriana Garcia Adriana Garcia Regina Brandão Cinzia de Araujo Eliane dos Santos 16 x 23 cm Minion 11/15 Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) Chamois Fine Dunas 80 g/m2 (miolo) 288 1000 Art Printer Gráficos Ltda
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