Curso de Psicologia Geral: Atenção e Memória [III]

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A. R. Luria

Curso de Psicologia Geral Volume III Atenção e Memória Tradução de P aulo B ezerra

Revisão técnica de H elmuth R . K rüger

Professor de Psicologia da u frj e da uerj

civilização

brasileira

Д И — IIM i и—я— —

Titulo do original em russo: VN1MANIE I PAMIATI

Capa: D oun C

Revisão: N ilo F ernandes R egina B ezerra

Direitos desta edição adquiridos, com exclusividade para a língua portueuesa, pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A. Rua Muniz Barreto, 91/93, RIO DE JANEIRO — R J,

que se reserva a propriedade desta tradução

1979 Im presso no Brasil

Printed in Brazil

Sumário

I — A tenção Fatores determinantes da atenção Bases fisiológicas da atenção Mecanismos neurofisiológicos da ativação. sistema reticular de ativação O reflexo orientado como baseda atenção Orientação e atenção Tipos de atenção Métodos de estudo da atenção Desenvolvimento da atenção Patologia da atenção

t 2 6 O

II — Memória História do estudo da memória Bases fisiológicas da memória Conservação dos vestígios do sistemanervoso Processo de “consolidação” dosvestígios Mecanismos fisiológicos da memória “breve” e “longa" Sistemas cerebrais que asseguram amemória Tipos principais de memória Imagens sucessivas Imagens diretas (eidéticas) Imagens da representação Memória verbal Psicologia da atividade mnemónica. Memoriza­ ção e reprodução

9 i6 19 22 2õ 29 35

39 40 44 44 47

50 56 59 59 61 63 67 68

Influência da organização semântica sobre a memorização Dependência da memorização face à estrutura da atividade Peculiaridades individuais da memória Métodos de estudo da memória Desenvolvimento da memória Patologia da memória

74 77 83 86 91 96

I Atenção

0 homem recebe um imenso número de estímulos mas entre estes ele seleciona os mais importantes e ignora os restantes. Potencialmente ele pode fazer um grande núme­ ro de possíveis movimentos mas destaca poucos movimentos racionais que integram as suas habilidades e inibe os outros. Surge-lhe grande número de associações mas ele conserva apenas algumas, essenciais para a sua atividade, e abstrai as outras que dificultam o seu processo racional de pensamento. A seleção da informação necessária, o asseguramento dos programas seletivos de ação e a manutenção de um controle permanente sobre elas são convencionalmente chamados de

atenção. O caráter seletivo da atividade consciente, que é função da atenção, manifesta-se igualmente na nossa percepção, nos processos motores e no pensamento. Se não houvesse essa seletividade, a quantidade de in­ formação não selecionada seria tão desorganizada e grande que nenhuma atividade se tomaria possível. Se não houves­ se inibição de todas as associações que afloram descontrola/

clámente, seria inacessível o pensamento organizado, voltado para a solução dos problemas colocados diante do homem. Em todos os tipos de atividade consciente deve ocorrer um processo de seleção dos processos básicos, dominantes, que constituem o objeto da atenção do homem, bem como a existência de um “fundo” formado pelos processos cujo acesso está retido na consciência; em qualquer momento, caso surja a tarefa correspondente, tais processos podem pas­ sar ao centro da atenção do homem e tornar-se dominantes. É por este motivo que se costumam distinguir o volume da atenção, sua estabilidade e suas oscilações. Por volume da atenção costuma-se entender o número de sinais recebidos ou associações ocorrentes, que podem conservar-se no centro de uma atenção nítida, assumindo ca­ ráter dominante. Por estabilidade da atenção costuma-se entender a dura­ ção com a qual esses processos discriminados pela atenção podem manter seu caráter dominante. Por oscilações da atenção costuma-se entender o caráter cíclico do processo, no qual determinados conteúdos da ati­ vidade consciente ora adquirem caráter dominante, ora o perdem.

Fatores determinantes da atenção Quais são os fatores que determinam a atenção do ho­ mem? Podemos distinguir pelo menos dois grupos de fatores que asseguram o caráter seletivo dos processos psíquicos, de­ terminando tanto a orientação como o volume e a estabilida­ de da atividade consciente. Situam-se no primeiro grupo os fatores que caracterizam a estrutura dos estímulos externos que chegam ao homem (ou a estrutura do campo exterior), situando-se no segundo gru­ po os fatores referentes à atividade do próprio sujeito (estru­ tura do campo interno). Examinemos cada grupo isoladamente. O primeiro grupo é constituído pelos fatores dos estímu­ los exteriormente perceptíveis ao sujeito; estes determinam o sentido, o objeto e a estabilidade da atenção, aproximam-se dos fatores da estrutura da percepção.

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O primeiro íator, integrante deste grupo, e a intensidade (força) do estímulo. Se propomos ao sujeito um grupo de estímulos idénticos ou diferentes, entre os quais une so distinguem pela intensidade (grandeza, coloração, ele,), u atenção do sujeito é atraída justamente por esse estimulo, natural que quando o sujeito entra numa sala de iluminação fraca, sua atenção se volte subitamente para uma lámpada que se acenda de repente. Note-se que quando no campo perceptivo atuam dois estímulos de intensidade diferente c quando as relações entre estes são tão equilibradas que ne­ nhum deles domina, a atenção do homem adquire caráter instável e surgem oscilações da atenção, nas quais ora um, ora outro se torna dominante. Anteriormente, quando exa­ minamos as leis da percepção da estrutura, apresentamos exemplos de tais “estruturas instáveis”. O segundo fator externo, que determina o sentido da atenção, é a novidade do estímulo ou diferença entre este e os outros estímulos. Se entre estímulos bem conhecidos surge um que se distingue acentuadamente dos outros ou é incomum, novo, ele começa imediatamente a atrair para si a atenção e provoca um reflexo orientado especial. Na primeira parte deste, apresenta-se entre círculos idên­ ticos uma única cruz, acentuadamente distinta das outras fi­ guras; na segunda parte, apresentam-se várias séries de linhas idênticas, sendo que numa destas há uma passagem que dis­ tingue esse lugar dos outros; na terceira, entre pontos gran­ des idênticos, apresenta-se um ponto fraco que se distingue dos demais. Vê-se facilmente que, em todos os casos, a aten­ ção se volta para o elemento distintivo, “novo”, que às vezes conserva a mesma força física que os outros estímulos comuns e, às vezes, pode ser até mais fraco do que os outros, pela in­ tensidade. Não é difícil lembrar que se cessa de repente um som costumeiro que se repete em monotonia (o ronco de um motor, por exemplo), a ausência do estímulo pode se tornar um fator que chama a atenção. As duas referidas condições determinam o sentido da atenção. Mas existem também fatores externos que lhe deter­ minam o volume. Já dissemos que a percepção dos estímulos que chegam do meio exterior ao homem depende da sua organização estru­ tural. É fácil ver que não podemos perceber com êxito um

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grande número de estímulos desordenadamente dispersos cinbora possamos fazê-lo facilmente se eles estiverem organizados em determinadas estruturas. A organização estrutural do campo perceptivo é um dos meios mais poderosos de direção da nossa percepção e um dos mais importantes fatores de sua ampliação, enquanto a organização racional psicologicamente fundamentada do cam­ po perceptivo é uma das tarefas mais importantes da enge­ nharia psicológica. Não é difícil perceber a grande importân­ cia que adquire a garantia de formas mais racionais de orga­ nização do fluxo de informação que chega ao aviador que pilota aviões rápidos ou super-rápidos. Todos os referidos fatores, que determinam o sentido e o volume da atenção, situam-se entre as peculiaridades dos es­ tímulos externos que atuam sobre o homem, noutros termos, situam-se na estrutura da informação que chega do meio

exterior. Percebe-se sem dificuldade o quanto é importante levar em conta esses fatores para aprender a dirigir a atenção do homem em base científica. Entre o segundo grupo de fatores determinantes do senti­ do da atenção, situam-se aqueles que estão relacionados não tanto com o meio exterior quanto com o próprio sujeito e com a estrutura de sua atividade. A esse grupo de fatores pertence principalmente a influência exercida pelas necessi­ dades, os interesses e os objetivos do sujeito sobre a sua percepção e o processo de sua atividade. Quando analisamos os problemas da evolução biológica do comportamento dos animais, vimos o papel decisivo da importância biológica dos sinais no comportamento dos ani­ mais. Indicamos que o pato percebe os cheiros vegetais en­ quanto o esmerilhão percebe os cheiros de podre, essencial­ mente vitais para eles; indicamos que a abelha reage a formas complexas que constituem indícios de flores, desprezando as formas geométricas simples sem importância biológica para ela; o gato que reage vivamente ao ruído do rato, não dá atenção aos sons do folheamento de um livro ou ao farfalhar de um jornal. É fato bastante conhecido que a atenção dos animais é provocada por sinais de importância vital. Tudo isso se refere igualmente ao homem, com a única diferença de que as necessidades e interesses que o caracteri­ zan! não têm, em sua grande maioria, caráter de instintos e

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inclinações biológicos mas caráler de faiores motivacionais complexos que se formaram no processo da história social. Por exemplo, o homem que se interessa pelo esporte distin­ gue entre toda a informação que lhe chega aquela que se re­ fere a uma partida de futebol, uo passo que o homem que se interessa pelas novidades da eletrónica procura livros que sc referem justamente a esse objeto. É fácil nos convencermos de que o interesse forte do homem, que toma alguns sinais dominantes, inibe simultanea­ mente os sinais secundários que não pertencem ao seu campo de interesses. São bem conhecidos fatos segundo os quais cientistas absortos na solução de um problema complexo dei­ xam de perceber todas as excitações secundárias; tais fatos indicam o que acaba de ser dito. A organização estrutural da atividade humana é de im­ portância essencial para a compreensão dos fatores que diri­ gem a atenção do homem. É sabido que a atividade do homem é condicionada por necessidades ou motivos e sempre visa a um objetivo deter­ minado. Se em alguns casos o motivo pode permanecer inconsc'ente, o objetivo e o objeto da atividade são sempre conscientizados. Sabe-se, por último, que é justamente esta circunstância que distingue o objetivo da ação dos meios e operações pelos quais ele é atingido. Enquanto as operações isoladas não se automatizam, a execução de cada uma delas constitui o objetivo de certa parte da atividade e atrai para si a atenção. Basta lembrar como fica tensa a atenção de um atirador inexperiente ao puxar o gatilho ou a atenção de um datilógrafo iniciante a cada batida do teclado. Quando a atividade se automatiza, certas operações que a compõem dei­ xam de atrair a atenção e passam a desenvolver-se sem conscientização, ao passo que o objetivo fundamental contínua a ser conscientizado. Para ver isto, basta analisar atentamen­ te o desempenho no tiro de um atirador bem preparado ou o processo de datilografia de uma datilógrafa experiente. Tudo isso mostra que o sentido da atenção ó determina­ do pela estrutura psicológica da atividade e depende essen­ cial mente do grau de sua automatização. A tarefa geral, que orienta a atividade do homem, distingue como objeto da aten­ ção o sistema de sinais ou relações que fazem parte da ati­ vidade provocada do homem, suscitada por tal tarefa. O ob­ jetivo concreto a que o homem que resolve a tarefa visa

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converte em centro da atenção os sinais ou ações relativos a ela. O processo de automatização da atividade leva a que certas ações, que chamavam a atenção, se convertam em operações automáticas e a atenção do homem comece a desJocar-se para os objetivos finais, deixando de ser atraída por operações costumeiras bem consolidadas. É quase fundamen­ tai o fato de que a orientação da atenção se encontra em de­ pendência direta do êxito ou do insucesso da atividade. O feliz coroamento da atividade elimina imediatamente a tensão que o homem manteve durante todo o tempo em que tentou resolver a tarefa. Por exemplo, a pessoa que aca­ ba de enviar uma carta esquece no mesmo instante a inten­ ção cumprida e esta deixa de intranqüilizá-la. A o contrário, uma atividade não concluída ou um problema resolvido sem êxito continua provocando tensão e atraindo atenção, man­ tendo-a enquanto o problema não é resolvido. A atenção integra como mecanismo áe controle o apare­ lho da “ ação accptora”: ela assegura оз sinais indicadores de que o problema ainda não foí resolvido, a ação ainda não terminou e são justamente esses sinais inversos que motivam o sujeito a continuar trabalhando ativamente. Deste modo, a atenção do homem é determinada peld

estrutura de sua atividade, reflete o seu processo e lhe serve de mecanismo de controle. Tudo isto toma a atenção um dos aspectos mats impor­ tantes da atividade consciente do homem.

Bases fisiológicas da atenção Durante muito tempo a Psicologia e a fisiologia tentaram descrever os mecanismos que determinam a ocorrência sele­ tiva dos processos de excitação e servem de base à atenção. Durante muito tempo, porém, essas tentativas se limitaram a indicar esse ou aquele fator, sendo antes descritivas do que auténticamente discriminatórias dos mecanismos fisiológicos da atenção. Alguns psicólogos consideravam que o sentido e o volu­ me da atenção são determinados inteiramente pelas leis da percepção estrutural, razão pela qual achavam supérfluo re­ servar ao estudo da atenção um capítulo especial da Psicolo-

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gia e pensavam que o conhecimento de |ei« como as leis cía “precisão" e da “estruturalidade” da pcrcepçfio eram suficien­ tes para nm julgamento definitivo do processo de atençfio. Essa posição era ocupada pela psicologia da Gestalt o um gestaltista dedicou ao tema um artigo especial, tentando de­ monstrar a tese de que não existe a atenção enquanto cutej o ria especial dos processos psíquicos separados da percepção. O segundo grupo de psicólogos mantinha as posições da teoria “emocional” da atenção. Achavam estes que o sentido da atenção era determinado inteiramente pelas inclinações, pelas necessidades de emoções, esgotando-se com as leis des­ tas. e que a atenção não devia ser destacada numa categoria especial de processos psíquicos. Muitos behavioristas americanos ocupam praticamente essa posição. Por último, o terceiro grupo de psicólogos que enfocam o problema das posições da teoria motora da atenção, vê na atenção uma manifestação dos objetivos motores que servem de base a cada ato volitivo e considera que o mecanismo da atenção é constituído pelos sinais dos esforços nervosos e ca­ racterizara qualquer tensão provocada por uma atividade de­ terminada dirigida a certo fim. Vê-se facilmente que cada uma dessas teorias distingue certo componente integrante da atenção mas cm realidade não tenta abordar o problema dos mecanismos fisiológicos gerais que servem de base à atenção. Dificuldades consideráveis surgiram ante os fisiologistas que lançaram as hipóteses das bases fisiológicas gerais da atenção. Durante muito tempo, essas tentativas foram de caráter excessivamente genérico e consistiram antes na descrição das condições gerais do processo seletivo de excitação do que na discriminação dos mecanismos fisiológicos especiais da atenção. Uma das primeiras tentativas foi a hipótese do conhecido fisiologista inglês Ch. Sherrington, que mais tarde recebeu a denominação amplamente conhecida como "teoria geral do campo motor” ou “funis de Sherrington”. Observando o fato de que nos cornos posteriores da medula espinhal há bem mais neurônios sensórios do que neurônios motores, Sherring­ ton lançou a tese de que nem todos os impulsos motores po-

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dem chegar ao seu fim motor e de que um grande número de excitações sensoriais tem seu “campo motor geral”, que a relação entre os processos sensoriais e motores podem asse­ melhar a um funil em cuja abertura larga penetram os im­ pulsos sensoriais e do furo estreito saem as inervações moto­ ras. Vê-se facilmente que entre os impulsos sensoriais sur­ ge “uma luta pelo campo motor geral“ na qual vencem os impulsos mais fortes, melhor preparados ou integrantes de determinado sistema biológico. Apesar de Sherrington ter sido um dos primeiros fisiologistas a estudar a atividade integrativa do cérebro e a formular a tese da estrutura sistémica dos processos fisiológicos, a teoria da “luta pelo campo motor gerai” se assemelha apenas nos traços mais genéricos aos me­ canismos fisiológicos que servem de base à atenção. Esse mesmo caráter genérico é verificado também nos primeiros enunciados de Pavlov, que assemelhava a atenção (e a consciência nítida) a um foco de excitação optimal, que se movimenta pelo córtex cerebral à semelhança de “um pon­ to luminoso em deslocamento”. A idéia do foco de excitação optimal enquanto base da atenção mostrou-se posteriormen­ te muito importante e levou a alguns mecanismos fisiológicos essenciais da atenção embora, evidentemente, fosse demasiado genérica para dar uma explicação satisfatória desses pro­ cessos. A. A. Ukhtomsky, notável fisiologista russo, deu uma contribuição considerável à análise dos mecanismos fisioló­ gicos da atenção. Segundo as suas concepções, a excitação se distribui de maneira desigual pelo sistema nervoso e cada atividade instintiva (assim como os processos do reflexo con­ dicionado) pode criar no sistema nervoso focos de excitação optimal, que adquirem caráter dominante. Esses focos, a que Ukhtomsky chamou dominantes, não só dominam sobre os demais e inibem outros focos paralelos como também adqui­ rem inclusive a capacidade de reforçar-se sob o efeito de ex­ citações estranhas. Assim, a rã que em determinado período adquire o dominante do reflexo abrangente das patas diantei­ ras, reage à excitação das patas traseiras com a intensifica­ ção dos dominantes que abrangem o movimento das patas dianteiras. Essa capacidade do dominante para inibir refle­ xos secundários e inclusive reforçar-se sob o efeito de excita­ ções estranhas foi considerada por Ukhtomsky como um pro­ cesso que lembra a atenção; foi justamente isto que lhe deu

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fundamento para considerar o dominante um mecanismo fi­ siológico da atenção. A contribuição da teoría do dominante à análise dos mecanismos fisiológicos do processo seletivo de excitações 6 indiscutível. Mas restava ainda encontrar as vias concretas de construção de modalidades particulares da atividade sele­ tiva dos animais e do homem e os sistemas neurofisiológicos que servem de base a essa via. Foi este o trabalho realizado pelos neurofisiologistas nos últimos vinte anos.

Mecanismos neurofisiológicos da ativação. O sistema reticular da ativação Para o estudo atual dos mecanismos neurofisiológicos da atenção, é fundamental o fato de que o caráter seletivo da ocorrência dos processos psíquicos, característicos da atenção, pode ser assegurado apenas pelo estado de vigília do córtex, do qual é típico um nível optimal de excitabilidade. Esse nível de vigília do córtex só pode ser assegurado pelos mecanismos de manutenção do necessário tônus do córtex e estes estão relacionados com a conservação de relações normais entre o tronco superior e o córtex cerebral e, acima de tudo, com o trabalho da formação reticular ativadora as­ cendente cujo papel já descrevemos anteriormente. Ê justamente essa formação reticular ativadora ascenden­ te que faz chegarem ao córtex os impulsos provenientes dos processos de troca do organismo, que são realizados pe­ las inclinações e mantêm o córtex em estado de vigília; é ela que faz chegarem ao córtex as excitações derivadas do fun­ cionamento dos extero-receptores, que conduzem a informa­ ção afluente do mundo exterior inicialmente para as áreas su­ periores do tronco e do núcleo do tálamo ótico e, posterior­ mente, para o córtex cerebral. Como já foi indicado, a sepa­ ração da formação reticular do tronco do córtex cerebral provoca queda do tônus e sono. N o entanto não é apenas a formação reticular ascen­ dente de ativação que assegura o tônus optimal e o estado de vigília do córtex. A ela também está estreitamente ligado 0 aparelho do sistema reticular descendente cujos filamen­ tos começam no córtex cerebral (antes de tudo nas áreas me-

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diais e mcdiobasais dos lobos frontais e temporais) e se diri­ gem tanto no sentido dos núcleos do tronco como dos núcleos motores da medula espinhal. O trabalho da formação re­ ticular descendente é muito importante pelo fato de que, através dela, chegara aos núcleos do tronco cerebral os sis­ temas seletivos de excitação que surgem inicialmente no cór­ tex cerebral e são um produto das formas superiores de ati­ vidade consciente do homem com os seus complexos pro­ cessos cognitivos e os complexos programas de ação. É a interação dos dois componentes do sistema reticular de ativação que assegura as formas mais complexas de autoregulação dos estados ativos do cérebro, mudando-os sob a influência tanto de formas elementares (biológicas) como de formas complexas (sociais por origem) de estimulação. A importância decisiva desse sistema para assegurar os processos de ativação (arousal) foi verificada por uma gran­ de série de fatos experimentais, observados pelos célebres neurofísiologistas H. W. Magoun, G. Moruzzi, H. H. Jasper, D. B. Lindsley, Naokhin e outros. Os testes de Bremer mostraram que o corte das áreas in­ feriores do tronco não leva à mudança da vigília, ao passo que o corte das áreas superiores do tronco provoca sono com o surgimento característico de lentas potencialidades elétri­ cas. Como mostrou Lindsley, nestes casos os sinais provoca­ dos por estímulos sensoriais continuam a chegar ao córtex mas as respostas elétricas do córtex a esses sinais se tomam apenas breves e não suscitam mudanças longas e estáveis. Esse fato mostra que, para o surgimento de processos está­ veis de excitação, característicos do estado de vigília, é insu­ ficiente só um afluxo de impulsos sensoriais, sendo necessá­ ria uma influência mantenedora do sistema reticular ativador. Outros testes inversos, nos quais os pesquisadores não excluíram, mas excitaram a formação reticular ascendente através de eletrodos nela implantados, mostraram que tal ex­ citação da formação reticular leva ao despertar do animal enquanto a intensificação sucessiva dessas excitações leva ao surgimento de reações efetivas bem expressas. Se os experimentos que acabamos de citar mostram como a excitação da formação reticular ascendente influencia o comportamento do animal, os experimentos posteriores, rea­ lizados pelos mesmos autores, permitiram um conhecimento

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iríais aproximado dos mecanismos fisiológicos dessas influên­ cias alivadoras. Verificou-se que a excitação da formação reticular do tronco provocava o surgimento de rápidas oscilações elé­ tricas no córtex cerebral e das ocorrências de “dcssincronização” que caracterizam o estado ativo de vigília do cortex. Como resultado da excitação dos núcleos da formação reti­ cular nas áreas superiores do tronco cerebral, as excitações sensoriais começaram a provocar mudanças duradouras na atividade elétrica do córtex, o que indicava uma influencia crescente e fixadora da formação reticular sobre os ganglios sensoriais do córtex. Por último, o que é sobretudo importante, a excitação dos núcleos da formação reticular ascendente e ativadora pro­ vocou a movimentação dos processos nervosos no córtex ce­ rebral. Deste modo, se em condições habituais dois estímulos concomitantes provocam apenas uma reação elétrica do cór­ tex, que “não consegue a tempo” dar uma resposta isolada, aos estímulos, já após a excitação dos núcleos do tronco da formação reticular ativadora ascendente, cada um desses es­ tímulos começa a gerar resposta isolada, o que sugere uma elevação substancial da mobilidade dos processos de excita­ ção que ocorrem no córtex. Essas ocorrências eletrofisiológicas correspondem também aos fatos registrados nos testes psicológicos de Lindsley. Este mostrou que a excitação dos núcleos do tronco da formação ativadora reticular ascendente reduz substancialmente os limia­ res da sensibilidade (noutros termos, aguçam a sensibilida­ de) do animal e permitem diferenciações sutis (por exemplo, a diferenciação entre a figura de um cone e a de um triângulo), antes inacessíveis ao animal. Pesquisas posteriores, realizadas por alguns autores (Hernandez Peón, Doti, e outros) mostra­ ram que, se o corte das vias da formação reticular ascenden­ te leva ao desaparecimento dos reflexos condicionados antes adquiridos, então cora a excitação dos núcleos da formação reticular torna-sc possível a aquisição de reflexos condiciona­ dos inclusive nas excitações subliminares, nas quais antes não ocorriam reflexos condicionados. Tudo isso alude nitidamente à influência ativadora da formação reticular ascendente sobre o córtex cerebral e indi­ ca que ela assegura o estado ideal do córtex cerebral, que é necessário à vigília.

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N o entanto surge uma pergunta: será que a formação reticular ascendente assegura apenas a influência ativadora genérica sobre o córtex cerebral ou sua influência ativadora apresenta traços seletivos específicos? A té recentemente os pesquisadores tendiam a considerar a influência ativadora da formação reticular ascendente como influência modal — não específica: ela se manifes­ tava igualmente em todos os sistemas sensoriais e não apre­ sentava qualquer efeito seletivo sobre nenhum deles (visão, audição, etc.). Ultimamente foram obtidos dados indicadores de que as influências ativadoras da formação reticular ascendente têm caráter também seletivo e específico. N o entanto essa especificidade das influências da formação reticular ativadora é de outra natureza: ela assegura não tanto a ativação sele­ tiva de processos sensoriais isolados quanto a ativação de sis­ temas biológicos, isto é, os sistemas de reflexos alimentares, defensivos e orientados. Isto foi sugerido por Anokhin, que mostrou que existem partes isoladas da formação reticular ascendente que ativam diferentes sistemas biológicos e são sensíveis a diversos agentes farmacológicos. Foi demonstrado que a uretana provoca um bloqueio da vigília e leva ao surgimento do sono, mas provoca um blo­ queio dos reflexos defensivos de dor; a aminazina, ao con­ trário, não provoca bloqueio da vigília mas leva ao bloqueio dos reflexos defensivos de dor. Esses dados dão fundamento para pensar que na in­ fluência ativadora da formação reticular ascendente existe certa seletividade mas esta corresponde apenas àqueles sis­ temas biológicos básicos que motivam o organismo para um desempenho ativo. N ão são menos interessantes para a Psicologia os im­ pulsos ativadores seletivos, que são assegurados pela forma­ ção reticular ativadora descendente cujos filamentos come­ çam no córtex cerebral (sobretudo nas áreas mediais dos lo­ bos frontal e temporal) e dali se dirigem aos aparelhos das áreas superiores do tronco. Há fundamentos para se supor ser justamente esse sis­ tema o que desempenha papel essencial ao assegurar a in­ fluência ativadora seletiva sobre as modalidades e os com­ ponentes da atividade que se formam com a participação imediata do córtex cerebral e que essas influências são pre-

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cisamente as que têm relação mais íntima com os mecanis­ mos fisiológicos das formas superiores de atenção. Os dados da anatomia mostram que os filamentos des­ cendentes da formação reticular começam praticamente em todas as áreas do córtex cerebral, especialmente nas áreas mediais e mediobasais do lobo frontal e de sua região límbica. O começo de tais filamentos pode ser constituído tanto pelos neurônios das áreas profundas de muitas zonas do cór­ tex cerebral quanto por grupos especiais de neurônios que, em sua maioria, se encontram nas zonas límbicas do cére­ bro (no hipocampo) e nos gânglios basais (corpo caudal). Esses neurônios se distinguem essencialmente dos neurônios específicos que correspondem a propriedades fracionarias isoladas das excitações visuais ou auditivas. Ao contrário des­ tes, aqueles neurônios não respondem a quaisquer excitações específicas (visuais ou auditivas): basta um pequeno núme­ ro de repetições destas excitações para que esses neurônios “se acostumem” a elas e deixem de reagir ao seu apareci­ mento sejam quais forem as cargas. N o entanto basta sur­ gir qualquer mudança do estímulo para que os neurônios reajam a ela com cargas. É característico o fato de que as cargas podem surgir num grupo isolado de neurônios em me­ dida idêntica com a mudança de quaisquer estímulos (tá­ teis, visuais, auditivos) e não só o reforço como também o enfraquecimento dos estímulos ou a ausência do estímulo esperado (como, por exemplo, na omissão de uma série rít­ mica de excitadores) pode provocar um desempenho ativo desses neurônios. Diante de tais circunstâncias, alguns autores como, por exemplo, o neurofisiologista canadense H. H. Jasper, pro­ puseram chamar-lhes “neurônios da novidade” ou “células da atenção”. É característico que no período em que o ani­ mal aguarda sinais ou procura a saída de um labirinto, é jus­ tamente nessas áreas do córtex (onde 60% de todos os neu­ rônios pertencem ao grupo que acabamos de descrever) sur­ gem séries ativas, que cessam com a supressão do estado de expectativa ativa. Isto mostra que os dados da região cortical e os neu­ rônios não específicos que nesta se encontram e respondera a cada mudança de situação, são um importante aparelho que modifica o estado de atividade do cérebro e regula a sua prontidão para a ação.

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Se no animal a parte mais importante do encéfalo, a qual desempenha importante papel na regulação do estado de pron­ tidão, é a das áreas mediais da região límbica e dos gánglios basais, já no homem, com suas formas complexas altamente desenvolvidas de atividade, esse aparelho principal, que regula o estado de atividade, é constituido pelas áreas lobulares do

cerebro. Em suas pesquisas, o conhecido fisiologista ingles Walter Gray mostrou que cada estado de expectativa ativo (por exem­ plo, a expectativa de um terceiro ou quinto sinal em respos­ ta ao qual o sujeito deve apertar um botão) provoca o sur­ gimento, nos lobos cerebrais, de oscilações elétricas especial­ mente lentas, às quais ele chamou ondas de expectativa. Es­ tas ondas se intensificam bruscamente quando a probabilida­ de do sinal esperado aumenta, enfraquecendo quando a pro­ babilidade dos sinais diminui e desaparecendo totalmente quando se substitui a instrução para a espera do surgimento do sinal. Outra prova do papel desempenhado pelo córtex dos lobos cerebrais na regulação do estado de atividade é cons­ tituída pelos testes do fisiologista soviético N. N. Livanov. Retirando as correntes de ação de um grande número de pontos do crânio, correspondentes a diversas áreas do córtex, Livanov mostrou que cada tensão intelectual (por exemplo, a tensão que surge na solução de complicados exemplos arit­ méticos como a multiplicação de um número de dois alga­ rismos por outro) faz surgir nos lobos cerebrais um grande número de pontos que trabalham sincrónicamente e esta ocor­ rência continua enquanto a tensão permanece, desaparecendo após a solução do problema. É sobretudo interessante que o número desses pontos que trabalham em sincronía no cór­ tex lobular é sobretudo grande nos estados patológicos do cérebro que se caracterizara por um estado estável e elevado de tensão (como ocorre, por exemplo, nos pacientes que so­ frem de esquizofrenia paranoica), desaparecendo após a ado­ ção de agentes farmacológicos que eliminam essa tensão. Tudo isso mostra que os lobos do cérebro têm importân­ cia decisiva no surgimento das excitações, que refletem a mu­ dança dos estados de atividade do homem. O estado de elevada excitação “não específica” no córtex da região límbica do animal e dos lobos do cérebro humano é a fonte dos impulsos que posteriormente descem pelos fila*

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mentos da formação reticular descendente no sentido das áreas superiores do tronco e exercem influencia considerável sobre o desempenho destas. Como mostraram as observações de eminentes físiologistas (French, Nauta, Laguren e outros), as excitações das áreas do córtex cerebral provocam uma série de mudanças na ati­ vidade elétrica dos núcleos do tronco e levam à animação do reflexo orientado. Assim, com a excitação das áreas occipitais do córtex ce­ rebral, podem mudar substancialmcnte as respostas elétricas das áreas profundas do sistema visual (N. S. Narikashvili). A excitação do córtex motorsensorial leva à atenuação das res­ postas provocadas nas áreas subcorticais do sistema motor ou à inibição destas. Além do mais, a excitação de sistemas iso­ lados pode levar ao surgimento de diversas manifestações comportamentais, que fazem parte do reflexo orientado. Fenômenos semelhantes são provocados também pelas formas complexas de atividade do animal, que geram no cór­ tex focos de excitação elevada cuja influência se estende às formações do tronco através da formação reticular ascenden­ te. Fatos análogos foram descritos pelo conhecido fisiologista mexicano Hernandez Péon, que observou que as ativas cargas elétricas dos núcleos do nervo auditivo, que surgem no gato em resposta a ruídos sonoros, desapareciam quando se mostra­ va um rato ao gato ou este sentia cheiro de peixe. Esses fa­ tos mostram que os focos de excitação, que surgem no cór­ tex cerebral, podem intensificar ou bloquear o trabalho das formações subjacentes do tronco cerebral, noutros termos, po­ dem regular os estados de atividade que surgem com a par­ ticipação dessas formações. Participação análoga do córtex no trabalho da formação subjacente pode ser observada quando desaparece a influên­ cia ativadora do córtex cerebral. Deste modo, a extirpação do córtex límbico nos animais leva a mudanças nítidas na atividade elétrica das áreas do tronco cerebral e a distúrbios visíveis no comportamento do animal. Por um lado, a destruição do córtex ou a redu­ ção de sua influência leva ao surgimento de uma reanima­ ção patológica do reflexo orientado e à perda do seu caráter seletivo, fato considerado pela ciência moderna como elimi­ nação das influências inibitórias do córtex cerebral sobre os mecanismos da estrutura subcortical do tronco cerebral.

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Tudo isto mostra que os sistemas reticulares ascendente c descendente, que contatam o córtex cerebral com as forma­ ções do tronco por meio de ligações bilaterais, têm influência ativadora tanto genérica quanto seletiva; se o sistema reticular ascendente, que conduz os impulsos até a córtex cerebral, ser­ ve de base às formas biologicamente condicionadas de ativa­ ção (relacionada tanto com os processos de troca e as incli­ nações elementares do organismo quanto com a influência ativadora geral da afluência de excitações), o sistema reticular descendente provoca a influência ativadora dos impulsos, que surgem no córtex cerebral sobre as formações subjacentes e deste modo asseguram as formas superiores de ativação sele­ tiva do organismo em relação às tarefas concretas que se im­ põem ao homem e às formas mais complexas de sua atividade consciente.

O reflexo orientado como base da atenção O sistema reticular ativador, com os seus filamentos as­ cendentes e descendentes, é o aparelho neurofisiológico que assegura uma das formas mais complexas da atividade refle­ tora, conhecida pela denominação de reflexo orientado {ou pesquisador-orientado). A influência deste reflexo para a com­ preensão das bases fisiológicas da atenção é tão grande que ele merece uma análise especial. Cada reflexo incondicionado, que tem por base uma in­ fluência biologicamente importante para o animal (influência alimentar, dolorosa, sexual), gera um sistema seletivo de res­ posta a esses estímulos com inibição simultânea de todas as reações aos estímulos secundários. Esse mesmo caráter sele­ tivo é observado nos reflexos condicionados. Nestes, domina um sistema de reações, reforçado por um estímulo incondi­ cionado, enquanto todas as reações secundárias restantes são simultaneamente reprimidas. Podemos dizer que tanto os refle­ xos incondicionados quanto os condicionados que neles se ba­ seiam criam determinado foco dominante de excitação cujo desempenho obedece às leis do dominante. Entre todos os tipos de atividade reflexa devemos, entre­ tanto, enfatizar uma na qual o comportamento do animal não é excitado por um dos motivos de comportamento acima enn-

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merados, atividade essa que não c um reflexo alimentar, de­ fensivo nem sexual. Essa atividade tem por base a reação ativa do animal a cada mudança de situação, que é a que provoca no animal animação geral e uma série de reações se­ letivas destinadas a identificar essas mudanças de situação. Pavlov chamou a esse tipo de reflexos reflexos orientados ou

reflexos do "o que é isto?". O reflexo orientado se manifesta numa série de reações eletrofisiológicas, vasculares e motoras nítidas, que surgem sempre que ocorre algo incomum ou importante nu situação que rodeia o animal. Entre essas reações situam-se a virada do olho e da cabeça no sentido do novo objeto, a reação de precaução ou escuta; entre elas, situam-se no homem a ma­ nifestação da reação galvánica da pele (mudança da resistên­ cia da pele ao choque elétrico ou o surgimento dos potenciais elétricos próprios da pele), as reações vasculares (compressão dos vasos do braço com a expansão dos vasos da cabeça), a mudança da respiração e, por último, o surgimento de ocor­ rências de “dessincronização” nas reações bioelétricas do cé­ rebro, que se manifestam na depressão do “alfa-ritmo” (os­ cilações elétricas de 10-12 w por segundo, características do funcionamento do córtex cerebral em estado calmo). Todas essas ocorrências podem ser observadas sempre que surge rea­ ção de precaução ou reflexo orientado, provocado pelo sur­ gimento de um estímulo novo ou essencial para o sujeito. Os cientistas ainda não são unânimes em responder se o reflexo orientado é uma reação condicionada ou incondicionada. Pelo caráter inato, o reflexo orientado pode ser incluído entre os reflexos incondicionados. O animal responde com uma reação de precaução a quaisquer estímulos novos ou essenciais de qualquer aprendizagem; por este indício, o reflexo orien­ tado se situa entre as reações incondicionadas e congénitas do ''rg-’nrm o. A existência de neurônios especiais, que respon­ dem com descargas a qualquer mudança de situação, indica que o reflexo orientado se baseia na ação de determinados aparelhos nervosos. Por outro lado, o reflexo orientado apresenta uma sé­ rie de indícios que o distinguem essencialmente dos reflexos condicionados comuns: com a repetição constante do mesmo estímulo, as ocorrências do reflexo orientado logo se extin­ guem, o organismo se habitua a esse estímulo cujos indí-

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cios deixam de provocar as reações descritas. Esse desapa­ recimento das respostas orientadas aos estímulos que se re­ petem é denominado habituação (habituation). Cabe observar que o desaparecimento do reflexo orien­ tado na medida da habituação pode ser uma ocorrência pro­ visória, sendo necessária uma pequena mudança no estímulo para a reação orientada tornar a surgir. Essa ocorrência do surgimento do reflexo orientado sob mudanças mínimas da excitação é chamada às vezes de reação da excitação (ou arousal). É característico que semelhante ocorrência de re­ flexo orientado, como já observamos, pode verificar-se não só com o reforçamento mas também com o enfraquecimento do estímulo habitual e até mesmo com o seu desaparecimen­ to completo. Assim, basta “extinguir” inicialmente os refle­ xos orientados aos estímulos ritmicamente apresentados e, cm seguida, depois que as reações orientadas a cada estimulação tenham-se extinguido como resultado da habituação, omitir um dos estímulos apresentados por via rítmica. Neste caso, a ausência do estímulo esperado provocará o surgimento de reflexo orientado. Por todos esses traços da sua dinâmica, o reflexo orien­ tado difere essencialmente do reflexo incondicionado. Cabe observar também que o reflexo orientado pode ser provoca­ do por um estímulo condicionado: ele pode ser obtido apre­ sentando-se ao animal um sinal condicional, que anunciará o surgimento de alguma mudança na situação ambiente. Para o homem, esse sinal pode ser representado pela palavra, que nele provoca facilmente ocorrências de alerta, precaução e expectativa do surgimento do sinal, etc. Seria incorreto pensar que o reflexo orientado tem cará­ ter de ativação geral, generalizada do organismo. Em reali­ dade, ele pode ter caráter diferenciado e seletivo, sendo que a seletividade pode manifestar-se tanto em relação aos sinais que surgem como pelo caráter da prontidão dos aparelhos motores efetivos que são gerados pelo “estado de alerta”. Isto é facilmente observável se, durante muito tempo, apresentarmos ao sujeito um sinal qualquer, por exemplo, um som de determinada altura; neste caso, por força do hábito, todas as respostas a esse som serão extintas embora essa “ha­ bituação” tenha caráter seletivo e seja bastante uma mudan­ ça mínima da altura do som para que torne a surgir todo um complexo de respostas orientadas. Esse procedimento

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permitiu ao pesquisador soviético E. N. Sokolov avaliar objetivamente a seletividade que caracteriza as reações orien­ tadas (ou “reações de excitação”) cm relação aos sinais di­ ferenciados e falar de um “modelo nervoso de estímulo” que se manifesta através da aplicação desse procedimento.

Orientação e atenção A alta seletividade do reflexo orientado pode manifes­ tar-se também em relação à sua parte efetiva c motora. As pesquisas mostraram que, se o homem aguarda eclosão de luz, surge nele uma mudança das respostas elétricas (“poten­ ciais gerados”) nas áreas visuais (occipitais), e se ele aguar­ da uma excitação dolorosa, surgem-lhe mudanças das respos­ tas elétricas (“potenciais gerados”) na área sensomotora do córtex. Se o sujeito foi alertado para responder ao sinal com um movimento do braço direito, então a espera desse sinal provoca mudanças das ocorrências elétricas (eletromiogramas) nos músculos do braço direito, sem provocar ocorrên­ cias idênticas nos músculos do braço esquerdo. Ocorre o contrário quando se alerta o sujeito para que ele movimen­ te o braço esquerdo em resposta ao sinal. Esse estado de alerta para determinado movimento é denominado orienta­ ção para o movimento e seus indícios objetivos têm caráter rigorosamente seletivo. Esses fatos mostram igualmente que a reação ativadora, incluída no sistema de reflexo orientado, pode ter caráter ri­ gorosamente seletivo. O caráter seletivo da orientação, provocado no homem pelo alerta para uma atividade qualquer, foi minuciosamente estudado pelo notável psicólogo soviético D. N. Uznadze em seus conhecidíssimos experimentos com a orientação fixada. Depois que o sujeito apalpava várias vezes uma peque­ na esfera com a mão direita, ele conservava uma “orientação fixada”, isto é, o alerta para receber na mão direita uma es­ fera de volume maior. Por isto, quando se colocavam inespe­ radamente esferas idênticas nas mãos do sujeito, esse estímulo entrava em conflito com a esperada desigualdade das esfe­ ras e a esfera colocada na mão direita, em contraste com u

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esperada, era interpretada como menor do que a esfera colo­ cada na mão esquerda. Essa orientação, que se manifesta na “ilusão de contraste” que acabamos de descrever, mantinha-se durante algum tem­ po e depois extinguia-se paulatinamente, sendo que, em al­ guns sujeitos, esse processo de extinção da orientação fixada podia apresentar caráter variado: em uns a orientação cria­ da se extinguia paulatinamente e - apresentava oscilações (a ilusão de contraste ora se manifestava, ora desaparecia para, afinal, extinguir-se inteiramente); em outros, ela se manti­ nha apenas por um tempo muito breve e logo desaparecia. As diferenças individuais na situação criada se manifestavam também no seu grau de seletividade. Em uns sujeitos, a orientação no tamanho variado das esferas, provocada pelo experimento descrito, limitava-se ao campo motor c se ma­ nifestava apenas nos experimentos de apalpação das esferas tendo, conseqüentemente, caráter concentrado. Em outros sujeitos, a orientação se estendia a outros campos e depois que a ilusão descrita era gerada no campo motor (apalpação de esferas de diferentes tamanhos com as mãos direita e es­ querda) ela se manifestava também no campo visual, na ilu­ são de que das duas esferas de diâmetro idêntico, a direita (correspondente à mão direita) era menor do que a esquerda; essa ocorrência aponta o caráter irradiado da orientação provocada. Os testes de orientação, que são ura procedimento espe­ cial de estudo das ocorrências de ativação, indicam o quanto esses fenômenos podem ter caráter seletivo no homem. Esses testes abrem novas perspectivas para o estudo dos processos de ativação no homem e para a análise dos fatores que a regulam. As ocorrências de “reflexo orientado” da “ativação” po­ dem ser geradas por qualquer mudança de situação ou pela expectativa de um estímulo novo ou essencial. Elas se extin­ guem paulatinamente como resultado da “habituação” e tor­ nam a manifestar-se com a mudança do caráter habitual dos estímulos que atuam sobre o sujeito. Todas essas ocorrências têm caráter natural e servem de base à atenção não involuntária. N o entanto o homem tem a possibilidade de mudar as leis naturais da ocorrência do reflexo orientado, de tornar mais estável o estado de ativação e gerar- estados de atenção

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tensa estáveis e duradouros inclusive naquelas condições em que o caráter habitual do estímulo não apresenta nenhuma mudança externa e esses estados continuam a ser fisicamen­ te os mesmos quando, por força das leis naturais, as ocorrên­ cias de reflexo orientado já deveria ter desaparecido há muito tempo. Essa possibilidade de prolongar o estado de longa ativa­ ção e ultrapassar os limites das leis naturais de sua extinção pode ser obtida no homem através de tuna instrução verbal. Para tanto basta propor ao sujeito contar demoradamente os estímulos propostos ou, dando-lhe uma tarefa, acompanhar a mudança de tais estímulos. Nestes casos os estímulos físi­ cos continuam os mesmos e as respostas a eles deveriam ter sido extintas há muito tempo, mas a instrução verbal, que co­ locou diante do sujeito uma tarefa, mantém o estado cons­ tante de atividade. No primeiro caso (quando o sujeito conta a ordem dos estímulos) cada um deles continua fisicamente velho e bem conhecido, tornando-se novo psicologicamente ao adquirir determinado número, sendo isto o que mobiliza a atenção do sujeito e mantém o estado permanente de tônus elevado. No segundo caso, a tarefa de esperar o surgimento de uma mudança qualquer no estímulo transforma a observa­ ção que se faz sobre este em atividade de acompanhamento ativo, resultando daí que a reação da ativação se mantém por muito tempo mesmo apesar de os estímulos não mudarem concretamente. É característico que a obliteração da instrução verbal aqui descrita leva ao rápido desaparecimento dos indícios antes per­ sistentes do reflexo orientado estável. A ação da instrução verbal pode provocar uma influên­ cia seletiva forte e ao mesmo tempo rigorosa, criando um persistente foco dominante de excitação e mudando as habi­ tuais relações de força na atividade do estímulo. É sabido que o estímulo forte provoca reação elevada e o estímulo mais fraco, reação fraca. Pela intensidade dos estí­ mulos, porém, essas relações naturais podem mudar como re­ sultado da instrução verbal, que provoca no homem uma atenção seletiva a determinado estímulo. Esse fato é ilustrado pelo registro dos sintomas objetivos do reflexo orientado em relação a estímulos diferentes pela força. Se no estado normal um estímulo estranho forte provoca elevadas reações orientadas (compressão dos vasos da mão)

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enquanto sinais sonoros fracos (tons sonoros brandos) não provocam reações, com a instrução de contar o número de sinais sonoros brandos aqueles continuam a provocar respos­ tas vasculares estáveis (indício de reação orientada) enquan­ to o ruído estranho forte não desvia o sujeito do cumprimento da tarefa nem provoca qualquer reação orientada visível.

A possibilidade de regular os processos de ativação por meio da instrução verbal constitui um dos jatos mais impor­ tantes da psicojisiologia do homem. Ela constitui a base fi­ siológica das formas específicas superiores da atenção huma­ na, sendo o registro da influencia da instrução verbal sobre a ocorrência dos sintomas objetivos de reflexo orientado um dos mais importantes métodos psicofisiológicos de estudo da atenção do homem.

Tipos de atenção A Psicologia distingue dois tipos básicos de atenção: o

arbitrário e o involuntário. Fala-se de atenção involuntária nos casos em que a aten­ ção do homem é atraída quer por um estímulo forte, quer por um estímulo novo ou por um interessante (correspondente à necessidade). É justamente com esse tipo de atenção que de­ paramos quando viramos involuntariamente a cabeça ao ouvir­ mos no quarto uma batida súbita, quando nos precavemos ao ouvirmos ruídos incompreensíveis ou quando nossa atenção é atraída por uma mudança nova e inesperada da situação. Os mecanismos da atenção involuntária são comuns no homem e no animal. Já nos referimos aos fatores desse tipo de atenção e as suas bases neurofisiológicas quando analisa­ mos os mecanismos dos reflexos orientados. Vê-se facilmente que esse tipo de atenção já ocorre na criança de idade tenra, cabendo apenas observar que nas pri­ meiras etapas ela tem caráter instável e relativamente estrei­ to pelo volume (a uiança de idade tenra e pré-escolar perde muito rapidamente a atenção pelo estímulo que acaba de sur­ gir, seu reflexo orientado se extingue rapidamente ou se inibe com o surgimento de qualquer outro estímulo); o volume de sua atenção é relativamente pequeno, podendo a criança dis­ tribuí-la entre vários estímulos voltando-se para o anteceden­ te sem afastar o seu campo de visão ou anterior.

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A atenção arbitrária só é inerente ao homem. Durante muito tempo ela permaneceu uma incógnita para a Psicologia e merece análise especial. O principal fato indicador da existência de um tipo es­ pecial da atenção no homem, não inerente aos animais, con­ siste em que o homem pode concentrar arbitrariamente a aten­ ção ora em um ora em outro objeto, inclusive nos casos em que nada muda na situação que o cerca. O exemplo mais conhecido de atenção arbitrária foi dada pelo psicólogo francês Revot d’Allonnes; esse exemplo se tornou base da filosofia idealista de Allonnes. Se propusermos a uma pessoa olhar atentamente para o tabuleiro de xadrez cujos quadros são imutáveis, de acordo com a nossa instrução ou com instrução própria ela poderá distinguir facilmente as figuras mais diversas nesse fundo ho­ mogéneo. Num fundo homogéneo e imutável há oculta uma infinidade de estruturas diversas e o homem pode, por von­ tade própria, distinguir quaisquer estruturas novas desse cam­ po imutável. Às vezes, essa possibilidade de distinguir arbi­ trariamente a estrutura necessária de um campo manifesta-se com nitidez ainda maior e segundo seus desígnios, o homem pode discriminar uma estrutura menos precisa entre estrutu­ ras mais precisas, superando as leis da percepção estrutural que descrevemos anteriormente. Deste modo, fica claro que o homem pode ir alem do li­ mite das leis naturais da percepção, sem se sujeitar ao efeito de um fundo homogéneo ou de fortes estruturas perceptivas mas discriminando e mudando segundo sua vontade as estru­ turas que lhe são necessárias. Todos esses fatos deram a Revot d’Allonnes fundamento para argumentar as concepções idealistas dos processos psíqui­ cos do homem, indicando que se o comportamento do animal está sujeito à ação direta do meio, já o comportamento do homem dispõe da possibilidade de criar quaisquer esquemas e subordinar o seu comportamento a essa “esquematização” livre, que ele considerava propriedade fundamental do espírito humano. Fenômenos análogos poderiam ser observados também na organização dos movimentos do homem: basta o homem resol­ ver que está levantando o braço para este se levantar como

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que automaticamente; a esse fenômeno o psicólogo James de­ signou com o termo latino “fiat” (faça-se), vendo nele a prova mais simples da existência do livre arbítrio, que não se sujeita às leis da natureza mas determina o comportamento do homem. Observações posteriores mostraram que a simples idéia do iminente movimento do braço provoca neste uma nítida ten­ são, que pode ser registrada na mudança do eletromiograma do braço. Esses fenômenos receberam em Psicologia a deno­ minação de “atos ideomotores” e foram freqiientcmente cita­ dos como ilustrações das influências da concepção sobre o movimento. Por último, esses mesmos fenômenos da atenção arbitrária podem ser observados na atividade intelectual, quando o pró­ prio homem se propõe determinada tarefa e esta determina o sucessivo fluxo seletivo de suas associações. Eis porque os fatos da atenção arbitrária eram incluídos nos manuais clássicos de Psicologia entre a seção “Vontade” e serviam para ilustrar a tese da psique segundo a qual o ho­ mem não está sujeito às leis objetivas da natureza mas de­ pende das influências procedentes do espírito livre. É fácil perceber que todas essas observações descreviam fatos realmente existentes; não obstante, a explicação des­ ses fatos dos limites da tradicional Psicologia naturalista era impossível, sendo justamente isto o que abria amplamente as portas a hipóteses idealistas anticientíficas, atinentes à influên­ cia do “livre arbítrio” sobre a ocorrência dos processos psí­ quicos do homem. O impasse a que levaram as tentativas de explicar os fe­ nômenos da atenção arbitrária na Psicologia naturalista clás­ sica pode ser superado se mudarmos as concepções tradicio­ nais dos processos conscientes, se deixarmos de considerá-los primários, particularidades primárias sempre existentes da vida espiritual e abordá-los como produto de um complexo desen­ volvimento histórico-social. Só após darmos esse passo e exa­ minarmos o problema da génese da atenção arbitrária é que poderemos ver as suas raízes autênticas e dar-lhe uma ex­ plicação científica. Como já tivemos oportunidade de salientar (Vol. I — Cap. I ll) , a criança vive num ambiente de adultos e se de­ senvolve num processo vivo de comunicação com eles.

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Essa comunicação, que se realiza através da fala, de atos c gestos do adulto, influencia essencialmente a organização dos processos psíquicos da criança. A criança de idade tenra contempla o ambiente costu­ meiro que a cerca e seu olhar corre pelos objetos presentes sem se deter em nenhum deles nem distinguir esse ou aquele objeto dos demais. A mãe diz para a criança: “isto aqui é tuna xícara!” e aponta o dedo para ela. A palavra e o gesto indicador da mãe distinguem incontinenti esse objeto dos de­ mais, a criança fixa a xícara com o olhar e estende o braço para pegá-la. Neste caso, a atenção da criança continua a ter caráter involuntário e exteriormente determinado, com a úni­ ca diferença de que aos fatores naturais do meio exterior in­ corporam-se os fatores da organização social do seu compor­ tamento e o controle da atenção da criança por meio de um gesto indicador e da palavra. Neste caso, a organização da atenção está dividida entre duas pessoas: a mãe orienta a atenção e a criança se subordina ao seu gesto indicador e à palavra. N o entanto isto constitui apenas a primeira etapa de for­ mação da atenção arbitrária: trata-se de uma etapa exterior pela fonte e social por natureza. No processo de sucessivo desenvolvimento, a criança domina a linguagem e toma-se ca­ paz de indicar sozinha os objetos e nomeá-los. A evolução da linguagem da criança introduz uma transformação radical na orientação da sua atenção. Agora ela já é capaz de deslo­ car com autonomia a sua atenção, indicando esse ou aquele objeto com um gesto ou nomeando-o com a palavra corres­ pondente. A organização da atenção, que antes estava dividi­ da entre duas pessoas, a mãe e a criança, toma-se agora uma nova forma de organização interior da atenção, social pela origem mas interiormente mediata pela estrutura. É esta etapa a que deve-se considerar etapa do nascimento de uma nova forma de atenção arbitrária, que não é ugia forma de mani­ festação do “espírito livre” primariamente própria do homem mas um produto de um complexo desenvolvimento históricosocial. Nas etapas posteriores a linguagem da criança se desen­ volve; criam-se estruturas intelectuais (discursivas) interna? cada vez mais complexas e elásticas e a atenção do homem adquire logo os traços, convertendo-se em esquemas intelcc

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tuais internos dirigíveis que são, por si mesmos, uni produto da complexa formação social dos processos psíquicos. Tudo isto mostra que a atenção arbitrária do homem realmente existe com seu caráter elástico e independente das ações exteriores imediatas mas tem caráter determinado expli­ cável por ser social por origem e mediada por processos de linguagem internos por estrutura. Na medida em que se desenvolve, os processos de lin­ guagem internos e intelectuais da criança vão-se tornando tão complexos e automatizados que a transferência da sua aten­ ção de um objeto para outro passa a dispensar esforços espe­ ciais e assume o caráter da facilidade e, pareceria da “involuntariedade” que todos nós sentimos quando em pensamento passamos facilmente de um objeto a outro ou quando somos capazes de manter por muito tempo a atenção tensa numa atividade que nos interessa. Ainda examinaremos os mecanismos das modalidades su­ periores de atenção depois de esclarecermos os problemas da formação dos processos intelectuais complexos.

Métodos de estudo da atenção Os estudos psicológicos da atenção costumam colocar como tarefa o exame da atenção arbitrária: do volume, da estabilidade e distribuição. O estudo das formas mais com­ plexas de atenção representa interesse maior do que o estudo da atenção involuntária que, em determinado grau se revela mediante a aplicação dos procedimentos antes descritos de es­ tudo do reflexo orientado e pode sofrer distúrbio substancial somente nos casos de afecções maciças do cérebro, que con­ duzem a uma redução geral da atividade. O estudo do volume da atenção se faz habitualmente por meio da análise do número de elementos simultaneamente apresentáveis, que podem ser aceitos com clareza pelo sujeito. Para estes fins usa-sc um dispositivo que permite sugerir deter­ minado número de estímulos num espaço de tempo tão curto que o sujeito não consegue transferir o olhar de um objeto a outro, excluindo o movimento dos olhos, permite medir o número de unidades acessíveis à percepção simultânea.

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O aparelho empregado para esse fim é chamado taquistoscópio (do grego taquisto = rápido, skopeo = olho). Este aparelho é constituído por uma janelinha, separada do objeto a ser examinado por uma tela cadente cujo corte pode mudar arbitrariamente de maneira que o objeto em exame aparece no espaço muito breve de tempo de número 10 a 50-100 m/seg. Às vezes, para uma exposição rápida do objeto empregase o flash, que permite examinar o objeto numa fração muito pequena de tempo (até 1 -5 m /seg.). O número de objetos nitidamente percebidos é o que constitui o índice do volume da atenção. Se as figuras suge­ ridas são bastante simples e dispersas desordenadamente num campo demonstrativo, o volume da atenção não costuma ir além de 5-7 objetos simultaneamente perceptíveis com nitidez. Para evitar a influência da imagem consecutiva, costumase fazer a exposição breve dos objetos sugeríveis ser acompa­ nhada de uma “obliteração da imagem”, para que no fundo escuro que continua visível se trace para o sujeito um con­ junto desordenado de linhas sem mudar a imagem dos objetos sugeríveis que se manteve depois de todas as apresentações e é aparentemente “obliterante”. Ultimamente têm sido feitas tentativas de exprimir o vo­ lume da atenção em números, adotados na teoria da comuni­ cação para medir a “capacidade receptora dos canais” através da aplicação da teoria da informação. Mas essas tentativas de mudança do volume da informação em "bits” (unidades em­ pregadas pela teoria da informação) têm importância ape­ nas limitada e são aplicadas somente àqueles casos em que o sujeito opera com um número final de possíveis figuras que conhece bem, das quais apenas algumas lhe são sugeri­ das para um pequeno espaço de tempo. O conceito “volume de atenção” é bastante próximo ao conceito “volume de pcrccpção”, e os conceitos de “campos de atenção nítida” e “campos de atenção confusa”, ampla­ mente empregado na literatura, são muito próximos aos con­ ceitos de “centro” e “periferia” da percepção visual para a qual foram minuciosamente elaborados. Paralelamente ao estudo do volume da atenção, é de grande importância o estudo da estabilidade da atenção: ele se propõe a estabelecer até que ponto é sólida e estável a ma­ nutenção da atenção por determinada tarefa durante longo tempo, a ver se neste caso se observam certas oscilações na

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estabilidade da atenção e quando surgem ocorrências de fadi­ ga nas quais a atenção do sujeito começa a ser desviada por estímulos estranhos. Para medir a estabilidade da atenção costuma-se empre­ gar as tabelas de Burdon, que consistem numa alternância de­ sordenada de letras isoladas que se repetem, uma por uma, num mesmo número de vezes em cada linha. Propõe-se ao su­ jeito desenhar durante 3-5-10 minutos as letras dadas (nos ca­ sos simples, uma ou duas letras, nos complexos a letra dada somente se ela estiver diante de outra, por exemplo, de uma vogal). O experimentador observa o número de letras dese­ nhadas durante cada minuto e o número de omissões encon­ tradas. As oscilações da atenção se manifestam na queda da produtividade do trabalho e no aumento do número de omissões. São de importância análoga as tabelas de Kraepelin, for­ madas por colunas de números que o sujeito deve ordenar durante um longo período. A produtividade do trabalho e o número de erros podem servir de índice de oscilações da atenção. Para aumentar as exigências diante da organização arbi­ trária da atenção, a realização dos referidos testes é dificul­ tada pela discriminação dos fatores de abstração. Deste modo, dá-se ao sujeito a tarefa de traçar determinadas letras não numa coletânea desordenada como ocorre nas tabelas de Bur­ don mas num texto de conteúdo interessante. Neste caso a influência abstraente do texto interessante pode levar ao au­ mento do número de omissões e a queda da produtividade do trabalho; ao contrário, a estabilidade da atenção arbitrária se manifesta no fato de que o cumprimento da tarefa exigida continua inalterável mesmo nas condições de introdução de influências que abstraem a atenção. Reveste-se de grande importância o estudo da distribui­ ção da atenção. Os primeiros experimentos de Wundt já mos­ traram que o homem não pode concentrar a atenção em dois estímulos simultaneamente apresentados e que a chamada “distribuição da atenção” entre dois estímulos representa de fato uma substituição da atenção, que se transfere rapidamente de um estímulo a outro. Isto foi de­ monstrado com o auxílio do chamado aparelho de complica­ ção, que permitia apresentar um estímulo visual (por exem-

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pio, o ponteiro de um relógio na posição “I” simultaneamen­ te como um estímulo sonoro: um som. Os testes mostraram que se os sujeitos prestam atenção ao ponteiro em movimen­ to, têm a impressão de que o sinal sonoro que acompanha a passagem do ponteiro ao lado do ponto correspondente se atrasa e aparece algumas frações de segundo após; se eles prestam atenção ao som, a percepção do ponteiro em mo­ vimento se atrasa e os sujeitos relacionam o surgimento do som com um momento anterior. Tem grande importância prática o estudo da distribuição da atenção num trabalho demorado; para este fim, aplicamse as chamadas “tabelas de Schullt”. Nestas apresentam-se duas séries de números vermelhos e negros dispostos desorde­ nadamente. O sujeito deve indicar em ordem sucessiva uma série de números, alternando cada vez o número vermelho e um negro ou indicar, em condições dificultadas, os números vermelhos em ordem direta e os negros em ordem inversa. A possibilidade de distribuição demorada da atenção é expressa por uma curva, que indica o tempo gasto para des­ cobrir cada um dos números que fazem parte de ambas as séries. Como mostraram as pesquisas, aparece com a mesma ni­ tidez as diferenças individuais em sujeitos isolados; tais dife­ renças podem refletir com segurança algumas variações de in­ tensidade e mobilidade dos processos nervosos, podendo ser empregadas com êxito para fins diagnósticos.

Desenvolvimento da atenção Os indícios do desenvolvimento da atenção involuntária estável manifestam-se nitidamente nas primeiras semanas dc vida da criança. Podem ser observado nos primeiros sintomas de manifestação do reflexo orientado: a fixação do objeto pelo olhar e a interrupção dos movimentos de sucção à primeira vista dos objetos ou com a manipulação destes. Pode-se afir­ mar com todo fundamento que os primeiros reflexos condi­ cionados começam a formar-se no recém-nascido com base no reflexo orientado, noutros termos, somente se a criança presta atenção ao estímulo, discrimina-о e se concentra nele.

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A princípio a atenção involuntária da criança dos primei­ ros meses de vida tem caráter de um simples reflexo orien­ tado de estímulos fortes ou novos, de acompanhamento destes estímulos com o olhar, de “reflexos de concentração” nes­ tes. Só mais tarde a atenção involuntária da criança adquire formas mais complexas e à base dela começa a form ar-se a atividade orientada de pesquisa em forma de m anipulação dos objetos; nos primeiros tempos, porem, essa atividade orienta­ da de pesquisa é muito instável, bastando aparecer outro obje­ to para cessar a manipulação do primeiro objeto. Isto mostra que no primeiro ano de vida da criança o reflexo orientado da busca já tem caráter rapidamente esgotante, é facilm ente inibido por influências de fora e ao mesmo tempo já apresen­ ta os traços de “habituação” que conhecemos, podendo extin­ guir-se com repetições longas. No entanto, o problem a mais importante é o desenvolvimento das formas superiores d e aten­ ção arbitrariamente reguláveis. Essas formas de atenção se ma­ nifestam antes de tudo no surgimento de formas estáveis de subordinação do comportamento de instruções verbais do adulto que regulam a atenção e, bem mais tarde, na forma­ ção das formas estáveis da atenção arbitrária auto-reguladora da criança. Seria incorreto pensar que essa atenção orientadora, que regula a influência da fala, surge ¡mediatamente na criança. Os fatos mostram que a instrução verbal “dá a boneca!” provoca na criança apenas uma reação orientada genérica e só atua sobre ela se for acompanhada pela ação real d o adul­ to. É característico que, nas primeiras etapas, a fala do adulto que nomeia o objeto atrai a atenção da criança se a nomeação do objeto coincide com a percepção im ediata da criança. N os casos em que não há o objeto nom eado no campo de visão imediato da criança, a fala provoca nela apenas uma reação orientada genérica que logo se extingue. Só ao término do primeiro ano de vida e ao início do segundo é que a nomeação do objeto ou a ordem verbal co­ meça a ter influência orientadora e reguladora; a criança di­ rige o olhar para o objeto nomeado, distingue-о entre outros ou procura caso o objeto não esteja aos seus olhos. M as nessa etapa a influência da fala do adulto, que orienta a atenção da criança, é ainda muito instável e a reação orientada por ele provocada dá rapidamente lugar a uma reação mediata orien­ tada para o objeto mais nítido, novo ou interessante para a

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criança. Isto pode ser nitidamente observado se transmitirmos à criança dessa idade a instrução de dar um objeto situado a alguma distância dela. Neste caso a vista da criança se dirige para o objeto mas se desvia rapidamente para outros objetos mais próximos e a criança começa a estender o braço não para o objeto mencionado mas para o estímulo mais próximo ou mais nítido. Apenas em meados do segundo ano de vida, o cumpri­ mento da instrução verbal do adulto, que orienta a atenção seletiva da criança, torna-se mais estável embora uma com­ plicação relativamente significativa da experiência elimine fa­ cilmente a sua influência. Deste modo, é bastante adiar por algum tempo (às vezes por 15-30 segundos) o cumprimento de uma instrução verbal para que esta perca a sua influência orientadora e a criança, que a cumpria facilmente e sem de­ mora, comece a voltar-se para objetos estranhos que lhe atraem ¡mediatamente a atenção. A mesma frustração no cumprimento da instrução verbal pode ser obtida por outro meio. Se várias vezes consecutivas sugerirmos a uma criança diante da qual há dois objetos (por exemplo, uma xícara e uma taça) a instrução “dê-me uma xícara” e em seguida, após reforçarmos a instrução, a substituirmos por outra e com o mesmo tom de voz dissermos à criança “dê-me a taça!”, então a criança, cuja atividade ainda se caracteriza por certa inércia, subordina-se a esse estereótipo inerte e continuará tendendo para a xícara, repetindo seus movimento anteriores. Somente na metade do segundo ano de vida, a instrução verbal do adulto adquire a capacidade bastante sólida de or­ ganizar a atenção da criança, embora nesta etapa ela tam­ bém perca facilmente o seu significado regulador. Assim, a criança dessa idade cumpre facilmente a instrução: “a moeda está debaixo da xícara, dê-me a moeda”, se a moeda foi es­ condida às vistas da criança; mas se isto não ocorreu e a moeda foi escondida debaixo de um objeto fora das vistas da criança, a atenção orientadora da instrução se frustra facil­ mente pelo reflexo orientado imediato e a criança começa a dirigir-se aos objetos situados diante dela, agindo independen­ temente da instrução verbal. Deste modo, a ação da instrução verbal, que orienta a atenção da criança, só é assegurada nas etapas iniciais nos casos em que coincide com a percepção imediata da criança.

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A criança de um ano e meio a dois anos pode começar facilmente a cumprir a instrução “aperte a bolinha” se a bola de borracha estiver em suas mãos; mas os movimentos de compressão da bola, provocados pela ordem verbal, não ces­ sam e a criança continua a apertar a bola muitas vezes segui­ das mesmo depois de receber a nova ordem: “não precisa apertar!”. A instrução verbal aciona um movimento mas não pode reprimi-lo e as reações motoras por ela provocada conti­ nuam a ser cumpridas de maneira inerte independentemente da sua influência. Os limites da influência orientadora da instrução ver­ bal se manifestam com nitidez especial quando se complica essa instrução. Assim, examinando o comportamento de uma criança pequena, a quem se dá instrução verbal: “quando acender a luz aperte a bola”, que exige o estabelecimento de

ligação entre dois elementos de uma condição formulada, pode-se ver facilmente que a instrução não exerce sobre a criança influência organizadora. A criança ao perceber cada passo dessa instrução, dá uma resposta motora imediata e qo ouvir o fragmento “quando acender a luz” começa a procurar essa luz e ao ouvir o fragmento" “ ...a p erte a bola” come­ ça mediatamente a apertar a bola. Deste modo, se entre os dois anos e os dois e meio de idade uma simples instrução verbal pode orientar a atenção da criança e levar a um cumprimento bastante preciso do ato motor, a instrução verbal complexa, que exige uma síntese prévia dos elementos nela incluídos, ainda não pode provocar a necessária influência organizadora. Somente no processo de sucessivo desenvolvimento, no segundo e terceiro anos de vida, a instrução do adulto, com­ pletada posteriormente pela participação da própria lingua­ gem da criança, converte-se em fator que orienta sólidamente a atenção. Mas essa influência sólida da instrução verbal, que orienta a atenção da criança, se forma com a íntima partici­ pação da atividade da criança e, por isto, para organizar a sua atenção estável, a criança não só deve dar ouvido à ins­ trução verbal do adulto como ela mesma deve distinguir as ordens necessárias, reforçando-as em sua ação prática. Esse fato foi mostrado por muitos psicólogos so­ viéticos. Em seus experimentos, A. G. Ruzskaya, su-

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geriu a crianças de idade pré-escolar uma instrução verbal, que exigia reagir com um movimento ante o surgimento de um triângulo e não reagir ante o surgi­ mento de um quadrado. A criança que recebia seme­ lhante tarefa cometia inicialmente muitos erros, rea­ gindo aos indícios “angulares" que se observam em am­ bas as figuras. Somente depois que as crianças de ida­ de escolar inferior tomaram conhecimento prático das figuras, manipularam-nas e “ganharam o jogo contra elas”, as suas reações às figuras assumiram caráter se­ letivo e elas começaram a obedecer à instrução, res­ pondendo com um movimento apenas ao surgimento de um quadrado, abstendo-se do movimento ante o sur­ gimento de um triângulo. Na etapa seguinte, para crianças de 4-5 anos, a discriminação prática dos indí­ cios das figuras já podia ser substituída por uma de­ senvolvida explicação verbal (“isto aqui é uma cam­ pánula, quando ela aparecer não precisa apertar o bo­ tão; isto aqui é uma janelinha, quando ela aparecer é preciso apertar o botão”) ; depois desta explicação, a instrução verbal começou a orientar sólidamente a atenção, adquirindo influência reguladora estável. Fatos análogos foram registrados nos testes, V. Ya Vasilevskaya. Nestes as crianças receberam uma série de quadros, todos representando uma situação em que participava uma cadela. A tarefa consistia em selecio­ nar os quadros nos quais “a cadela cuidava dos seu9 filhotes” ou quadros nos quais “ela servia ao homem”. Essa instrução não exercia nenhuma influência orien­ tadora sobre o comportamento das crianças de dois anos de idade. O quadro despertava nelas uma torren­ te de associações, e as crianças começavam simples­ mente a contar tudo o que haviam visto antes. Nas crianças de 2,5-3 anos, a atenção seletiva pela tarefa dada só podia ser assegurada permitindo-se à criança “perder o jogo” na prática para a situação representa­ da, repetindo a tarefa. Para as crianças de 3,5-4 anos, a atenção estável pelo cumprimento da tarefa devida só era possível com a repetição da tarefa em voz alta e uma ampla análise da situação; só a criança dc 4,5-5 anos estava em condições de orientar com estabilidade a sua atividade através da instrução, mantendo a aten-

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ção seletiva por aqueles indícios representados na instrução. O desenvolvimento da atenção arbitrária na idade infantil foi examinado nos primeiros trabalhos de Vigotsky e posteriormente de Leôntyev, que mostraram que nos graus posteriores de desenvolvimento era pos­ sível observar a via de formação da atenção aqui des­ crita, dando ênfase aos meios auxiliares externos com sua redução posterior e com a transição paulatina para formas superiores de uma ampla organização interior da atenção. Em seus testes, Vigotsky escondeu uma noz em alguns vidros e a criança devia retirá-la; para efeito de orientação, ele colou pedacinhos de papel pardo nos potinhos em que estavam escondidas as no­ zes. Habitualmente, a criança de 3-4 anos não dava atenção aos papéis nem distinguia seletivamente os po­ tinhos necessários; mas depois que a noz era depositada aos seus olhos ele indicava com o dedo o papel pardo, este adquiria o caráter de sinal que sugeria o objetivo oculto e orientava a atenção da criança. Para as crian­ ças de idade mais avançada, o gesto indicador era substituído por uma palavra, a criança começava a usar por si mesma o sinal indicador com base no qual po­ dia organizar a sua atenção. Fatos análogos foram observados também por Leôntyev que sugeriu às crianças cumprir a difícil ta­ refa de um jogo: “não dizer sim nem não, não escolher preto nem branco”, ao qual se acrescentava uma con­ dição ainda mais difícil, que proibia repetir duas vezes o nome de uma mesma cor. Essa tarefa foi inacessível inclusive para crianças na idade escolar, e a criança de tenra idade escolar só conseguia assimilá-la marcando os quadros coloridos correspondentes e mantendo a sua atenção seletiva cora auxílio de apoios mediatos exteriores. A criança de idade escolar mais avançada deixava de sentir a necessidade de apoios externos e mostrava-se em condições de organizar a sua atenção seletiva inicialmente pronunciando tanto a instrução quanto as posteriores respostas “proibidas” e só nas últimas etapas limitava-se a pronunciar interiormen­ te (ou reproduzir mentalmente) as condições que orien­ tam a sua atividade seletiva.

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O que acaba de ser dito permite concluir, que a aten­ ção arbitraria, considerada pela Psicologia clássica como pri­ mária, mais tarde manifestação do “livre arbitrio” ou quali­ dade fundamental do “espirito humano”, em realidade é pro­ duto de um desenvolvimento sumamente complexo. As fontes desses desenvolvimentos são as formas de comunicação da criança com o adulto, sendo o fator fundamental que as­ segura a formação da atenção arbitrária representada pela fala, que é iuicialmente reforçada por uma ampla atividade prática da criança e em seguida diminui paulatinamente e adquire o caráter de ação interior, que media o comporta­ mento da criança e assegura a regulação e o controle deste. A formação da atenção arbitrária abre caminho para a com­ preensão dos mecanismos interiores dessa complexíssima for­ ma dc organização de atividade consciente do homem, que desempenha papel decisivo em toda a sua vida psíquica.

Patologia da atenção O distúrbio da atenção é um dos mais importantes sin­ tomas do estado patológico do cérebro e seu estudo pode acrescentar dados importantes ao diagnóstico das afecções cerebrais. Nas afecções maciças das áreas profundas do cérebro (do tronco superior das paredes do terceiro ventrículo, do sistema límbico) podem ocorrer graves distúrbios da atenção involuntária, que se manifestam em forma de redução geral da atividade e de expressas perturbações dos mecanismos do reflexo orientado. Esses distúrbios podem ter tanto o caráter de prolapso e manifestar-se num fato de que o reflexo orientado é de caráter instável que se extingue rapidamente quanto caráter de irritação patológica dos sistemas do tronco e límbico re­ sultando daí que os sintomas de reflexo orientado uma vez surgidos não se extinguem e durante muito tempo os estímu­ los continuam gerando reações eletrofisiológicas e vege­ tativas inextinguíveis (vasculares e motoras). As vezes os sintomas comuns de reflexo orientado podem assumir cará­ ter paradoxal, os estímulos começam a provocar exaltação em vez de depressão de alfa-ritmo ou a expansão paradoxal

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dos vasos ao invés de sua compressão em resposta à apre sentação de sinais. No quadro clínico, esses disturbios se manifestam no fato de que os doentes revelam acentuados sintomas de abati­ mento, inércia e não respondem aos estímulos externos ou a eles respondem somente com permanentes irritações com­ plementares. No caso de superexcitação patológica dos sis­ temas cerebrais do tronco superior e da região límbica, os pacientes, ao contrário, revelam sintomas de elevada exci­ tabilidade, sentem inquietação permanente e apresentam es­ tado altamente vulnerável à distração por quaisquer excita­ ções emocionais e irritações. Para a clínica têm importância especial os distúrbios da atenção arbitrária. Estes se manifestam no fato de que o doente se abstrai facilmente com qualquer estímulo secun­ dário, mas é impossível organizar-lhe a atenção, atribuindolhe uma tarefa determinada ou lhe dando uma instrução ver­ bal correspondente. Isto pode ser observado em pesquisas psicofisiológicas se após a extinção dos indícios de reflexo orientado dermos ao doente uma tarefa como, por exemplo, contar os sinais, acompanhar a sua mudança, etc. Se, como já vimos, essa instrução tem por norma gerar a estabiliza­ ção dos sintomas eletrofisiológicos do reflexo orientado, nas afecções cerebrais a instrução verbal dirigida ao doente não provoca nenhum reforço da reação orientada. Os exemplos mais típicos de distúrbios das formas su­ periores de atenção partem dos doentes com afecção dos lobos do cérebro (especialmente das suas áreas mediais). Freqiien te mente não se pode observar nestes doentes nenhu­ ma queda do reflexo orientado dos sinais exteriores; às ve­ zes a atenção involuntária deles é inclusive elevada e o doen­ te se abstrai facilmente com qualquer irritação secundária (ruído no quarto de hospital, abertura de portas, etc.); no entanto verifica-se impossível concentrar o doente no cum­ primento de uma tarefa, elevar o tônus do córtex cerebral através de uma instrução verbal e a apresentação de uma instrução verbal (contar os sinais, acompanhar sua mudança) não provoca nesse doente nenhuma mudança dos sintomas eletrofisiológicos e vegetativos de reflexo orientado. Às vezes esse tipo de perturbações, que constitui a base fisiológica da mudança do comportamento das pessoas com afecção dos

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lobos cerebrais, é fundamental para o diagnóstico desses distúrbios. É característico que esse tipo de perturbação da regula­ ção verbal do reflexo orientado só ocorre com as afecções dos lobos cerebrais e não se verifica na afecção de outras áreas. Isto mostra o papel exclusivo dos lobos cerebrais do homem no processo de formação dc intenções estáveis e na realização do controle do processo de comportamento. É natural que semelhantes formas de distúrbio da aten­ ção arbitrária conduzem a importantes mudanças de todos os complexos processos psicológicos. É justamente por força desses distúrbios que os doentes com afecção dos lobos ce­ rebrais são incapazes de concentrar-se na solução de uma tarefa, e criar um sistema estável de relações seletivas, cor­ respondentes ao programa de ação proposto e se desviam facilmente para relações secundárias, substituindo o cumpri­ mento planejado de um programa por reações que surgem impulsivamente a qualquer estímulo secundário ou à repe­ tição dos estereótipos surgidos que há muito perderam a sua importância mas frustram facilmente a atividade que se ini­ ciara voltada para um objetivo. É por isto que a leve perda da seletividade no cumprimento de qualquer operação intelectual constitui um dos indícios essenciais da afecção dos lobos frontais do cérebro. Podem ocorrer distúrbios importantes também durante as doenças cerebrais que se caracterizam por um estado pa­ tológico inibitório (fásico) do córtex. Nesses estados (característicos de estafa aguda ou esta­ dos “oniróides”), a “lei da força” descrita por Pavlov, na qual os estímulos fortes provocam reações fortes, e os fra­ cos, reações fracas, é violada. Nos estados “fásicos” relativamente brandos do córtex, tanto os estímulos fortes quanto os fracos começam a pro­ vocar reações idênticas, e com aprofundamento posterior des­ ses estados, conhecido como “fase paradoxal”, os estímulos fracos começam a provocar reações até mais fortes do que os estímulos fortes. É natural que em semelhantes estados tome-se impos­ sível a atenção estável pela tarefa colocada e a atenção co­ mece a ser facilmente abstraída por quaisquer estímulos secundários.

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A diferença entre a instabilidade da atenção arbitrária e as formas profundas de sua perturbação, que surgem nas afecções dos lobos frontais do cérebro, consiste em que, nestes casos, a mobilização da atenção pela intensificação dos motivos, o recurso a meios auxiliares de apoio e a con­ solidação da instrução verbal levam à compensação das de­ ficiências da atenção, ao passo que na afecção dos lobos frontais, que destrói o mecanismo fundamental de regulação da atenção arbitrária, esse caminho pode não surtir o efeito necessário. A instabilidade da atenção arbitrária não surge apenas nos estados patológicos expressos do cérebro mas também em estados do sistema nervoso, provocados por es­ tafa e neuroses; às vezes, essa instabilidade reflete peculia­ ridades individuais do homem. Por isto o estudo da insta­ bilidade da atenção, com a aplicação de todos os métodos psicofisiológicos e psicológicos objetivos, pode ter grande im­ portância diagnóstica.

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II Memória

0 estudo das leis da memória humana constitui um dos capítulos centrais e mais importantes da ciência psico­ lógica. É sabido que cada deslocamento, impressão ou mo­ vimento nosso deixa certo vestígio e este se mantém du­ rante um tempo bastante longo e em determinadas condições reaparece e se torna objeto de consciência. Por isto entende­ mos por memória o registro, a conservação e a reprodução dos vestígios da experiência anterior, registro esse que dá ao homem a possibilidade de acumular informação e operar com os vestígios da experiência anterior após o desapareci mento dos fenômenos que provocaram tais vestígios. Os fenômenos da memória podem pertencer igualmente ao campo das emoções e ao campo das percepções, ao refor­ ço dos processos motores e da experiência intelectual. Todo o reforço dos conhecimentos e habilidades e a capacidade de aproveitá-los pertencem à área da memória. De acordo com isto, impõe-se à Psicologia uma série de problemas complexos, que fazem parte da área de estudos dos processos da memória. A Psicologia se propõe estudar 39

a maneira pela qual se registrara os vestigios, os mecanismos fisiológicos desse registro, as condições que contribuem para ele, os seus limites e os procedimentos que permitem ampliar o volume do material registrado. A Psicologia se propõe responder qual a duração que pode ter a conservação desses vestígios, quais os mecanismos de sua conservação em lapsos de tempo breves e longos, quais as mudanças que sofrem os vestígios da memória que se encontram em estado latente e qual a influência que eles podem exercer na ocorrência dos processos cognitivos do homem. Entre as questões do capítulo dedicado à psicologia da memória, situam-se os problemas dos mecanismos de repro­ dução dos vestígios latentes, que em certas condições podem tornar-se objeto da atividade consciente. Esse capítulo es­ tuda as condições que levam à reprodução dos vestígios da memória, estudando também as principais formas que in­ cluem tanto a reprodução não arbitrária dos vestígios quan­ to a arbitrária, intencional. Por último, esse capítulo inclui a descrição de diversas formas de processos da memória, começando pelos tipos mais simples de registro não arbitrário e aparição dos vestígios e terminando pelas formas complexas de atividade mnemónica que permite ao homem voltar arbitrariamente à experiência passada, adotando uma série de procedimentos sociais, e am­ pliar substancialmente o volume de informação retida e os prazos de sua conservação. O capítulo dedicado à psicologia da memória, é de gran­ de importância para a interpretação dos mais importantes processos de atividade cognitiva e para a doutrina do de­ senvolvimento dos processos psíquicos na idade infantil e da perturbação dos processos psíquicos nos estados patológicos do cérebro.

História do estudo da memória O estudo da memória foi uma das primeiras partes da Psicologia à qual se aplicou o método experimental: fizeramse tentativas de medir os processos estudados e descrever as leis a que eles se subordinam.

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Na década de 80 do século passado, o psicólogo alemão H. Ebbinghaus propôs o método através do qual, supunha ele, era possível estudar as leis da memória pura, noutros termos, as leis dos processos de registro dos indícios inde­ pendentes da atividade do pensamento. Esses procedimentos, que consistiam em decorar sílabas sem sentido, que não ge­ ravam quaisquer associações, permitiram a Ebbinghaus encon­ trar as curvas básicas da decoração (ou memorização) do material, descrever as suas leis básicas, estudar a atividade da conservação dos vestígios na memória e o processo de sua extinção paulatina. As pesquisas clássicas de Ebbinghaus foram acompanha­ das dos trabalhos do psiquiatra alemão Kraepelin, que atra­ vés desses procedimentos estudou a ocorrência do processo de decoração dos doentes com alterações psíquicas; foram acompanhadas também dos trabalhos do psicólogo alemão H. E. Müller, que deixou um estudo fundamental dedicado às leis básicas de reforço de reprodução dos vestígios da memória no homem. Nas primeiras etapas, o estudo dos processos da memó­ ria limitava-se a examiná-la no homem e era antes um estudo da atividade mnéstica consciente (o estudo do processo de decoração premeditada e reprodução dos vestígios) que um processo de ampla análise dos mecanismos naturais e regis­ tro dos vestígios que se manifestam igualmente no homem e no animal. Com o desenvolvimento das pesquisas objetivas do com­ portamento do animal, especialmente com os primeiros pas­ sos no sentido do estudo das leis da atividade nervosa superior, ampliou-se substancialmente a área de estudos da memória. Em fins do século xix e começo do século xx, sur­ giram as pesquisas do conhecido psicólogo americano E. L. Thorndike, o primeiro psicólogo a transformar em objeto de estudo o processo de formação das habilidades no animal, aplicando para este fim a análise da maneira pela qual o animal aprendia a encontrar saída em um labirinto e como reforçava paulatinamente as habilidades obtidas. No primeiro decénio do século xx, os estudos desses processos adquiriram uma forma científica quando Pavlov propôs o método de estudos dos reflexos condicionados, através do qual conseguiu examinar os principais mecanis-

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mos fisiológicos de formação e reforço de novas ligações. Foram descritas as condições sob as quais essas ligações sur­ gem e permanecem, bem como as condições que influenciam essa permanência. A doutrina da atividade nervosa superior e suas leis básicas tornou-se posteriormente a fonte básica dos nossos conhecimentos acerca dos mecanismos fisiológicos da memória, enquanto a elaboração e conservação das habi­ lidades e do processo de “aprendizagem” ( learning) nos ani­ mais constituíam o conteúdo básico da ciência americana do comportamento, que englobava os célebres pesquisadores J. Watson, В. F. Skinner, D. Hebb e outros. O estudo clássico das leis básicas da memória no ho­ mem e as pesquisas posteriores do processo de formação das habilidades dos animais limitaram-se igualmente ao estudo dos processos mais elementares de memória. O estudo das formas arbitrárias e conscientes superiores de memória que permitiram ao homem aplicar determinados procedimentos de atividade mnemónica e voltar-se arbitrariamente para quaisquer lapsos do seu passado foi apenas descrito pelos filósofos que os contrapunham às formas naturais de memó­ ria (ou de “memória do corpo”) e os consideravam mani­ festação da memória consciente superior (ou “memória do espírito”). N o entanto essas indicações de alguns filósofos idealistas (por exemplo, o filósofo francês H. Bergson) não se converteram em objeto de um estudo especial rigoroso e científico e os psicólogos falavam do papel desempenhado na memorização pelas associações ou indicavam que as leis da memorização das idéias diferem essencialmente das leis elementares da memorização. Praticamente não se colocava o problema da origem e muito menos do desenvolvimento das formas superiores de memória no homem. O mérito do primeiro estudo sistemático das formas su­ periores de memória na criança cabe a Vigotsky, que em fins dos anos vinte tornou pela primeira vez objeto de um estudo especial o problema do desenvolvimento das formas superiores de memória e, juntamente com seus alunos A. N. Leôntyev e L. V. Zamkov, mostrou que as formas superiores de memória constituem uma forma complexa de atividade psíquica social por origem e mediata por estrutura e estudou as etapas fundamentais de desenvolvimento da memorização mediata mais complexa.

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As pesquisas das formas mais complexas de atividadí mnésica arbitrária, nas quais os processos da memoria se li­ gavam aos processos do pensamento, foram essencialmente completados por psicólogos soviéticos, que atentaram para as leis que serviam de base à memorização involuntária (não intencional) e descreveram minuciosamente as formas de or­ ganização do material memorizado, que ocorrem no proces­ so de decoração consciente. Essas pesquisas, empreendidas por A. A. Smirnov e P. I. Zintchcnko, descobriram leis no­ vas e essenciais da memória, como da atividade consciente do homem, enfocaram a dependência entre a memorização e a tarefa colocada e descreveram os procedimentos funda­ mentais de memorização do material completo. Apesar dos êxitos reais dos estudos psicológicos da memória, continuaram desconhecidos os processos fisiológicos de registro dos vestígios e a natureza do próprio fenômeno da memória; filósofos e fisiologistas como Simon ou Hering se limitaram a indicar que a memória “é propriedade geral da matéria”, sem fazer qualquer tentativa de descobrir a sua essência e os profundos mecanismos fisiológicos que lhe ser­ vem de base. Apenas nos dois últimos decénios a questão mudou essencialmente. Estudos publicados mostraram que os processos de re­ gistro, conservação e reprodução dos vestígios estão relacio­ nados cora profundas mudanças bioquímicas, particularmen­ te com a mudança do ácido ribonucléico (Hiden), que os vestígios da memoria podem ser deslocados por via humo­ ral, bioquímica (Mc. Connell e outros). Começaram estudos intensivos dos íntimos processos nervosos de “reverberação da excitação” (manutenção da excitação nos círculos e retí­ culos nervosos), que passaram a ser considerados como subs­ trato fisiológico da memória. Surgiu um sistema de pesqui­ sa, no qual se estudava o processo de consolidação paulati­ na dos vestígios bem como o tempo necessário para a con­ solidação e as condições que levam à destruição dos vestígios. Por último, surgiram pesquisas que tentavam discriminar as áreas do cérebro, que são indispensáveis para a conserva­ ção dos vestígios, e os mecanismos neurológicos que servem de base à memorização e ao esquecimento. Tudo isto fez do capítulo da psicologia e psicofisiologia da memória uma das partes mais ricas da Psicologia. Ape-

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sar de muitas das questões da memória continuarem sem so­ lução, a Psicologia dispõe hoje de um material incompara­ velmente maior para o estudo dos processos da memória do que há algum tempo atrás.

Bases Fisiológicas da Memória Conservação dos vestígios do sistema nervoso

Os fenômenos da longa conservação dos vestígios de um estímulo dado foram observados por muitos estudiosos ao longo de todo desenvolvimento do mundo animal. Observou-se freqüentemente que uma excitação por cho­ que elétrico do sistema nervoso dos pólipos provocavam o surgimento de impulsos elétricos rítmicos, que podiam man­ ter durante muitas horas. Semelhantes fenômenos podiam ser observados no estu­ do do funcionamento do sistema nervoso dos animais. A s­ sim, a excitação provocada por uma eclosão de luz provo­ cava no corpo bigêmco superior do coelho descargas elétri­ cas rítmicas, que podiam ser registradas durante um período bastante longo e essas reações podiam ser observadas inclu­ sive quando se desviava essa ação do neurônio isolado. A continuação das descargas elétricas, que surgem de­ pois de uma excitação única, mostra que os neurônios não são apenas aparelhos que recebem os sinais e reagem a estes com respostas correspondentes mas também que conservam os vestígios do estímulo, continuando a dar respostas rítmi­ cas negligenciadas por esse estímulo muito tempo após ter este cessado a sua influência. Esse efeito das influências do estímulo é o que representa a manifestação mais elementar da memória fisiológica, que pode ser observada tanto num neurônio isolado como no trabalho de todo o sistema nervo­ so em conjunto. As manifestações fisiológicas mais elementares da me­ mória podem ser observadas por outra via, já mencionada no presente capítulo. Como mostraram as pesquisas a longa repetição de um mesmo sinal leva à habituação a este, a qual se manifesta

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no desaparecimento dos reflexos orientados para este estímu­ lo que se tornou hábito. O psicólogo soviético E. N. Soko­ lov mostrou que semelhantes ocorrências da habituação po­ dem ser observadas também no estudo das respostas de um neurônio isolado a estímulos que se repetem muitas vezes. O mais característico é o fato de que, com uma pequena mudança da intensidade ou do caráter do estímulo, os indí­ cios de reflexos orientados tornam a surgir. Os dados obtidos por Sokolov e seus colaboradores mos­ traram que o fenômeno da reanimação de um reflexo orien­ tado antes extinto podia ser observado não só imediatamen­ te após a mudanças do caráter do estímulo mas também den­ tro de alguns espaços de tempo às vezes bastante longos. As­ sim, se no sujeito se observava a ocorrência da habituação a determinado estímulo, bastava mudar a intensidade, a du­ ração ou o caráter do estímulo para que os sintomas vege­ tativos ou neurofisiológicos dos reflexos orientados se resta­ belecessem, sendo que esse restabelecimento do reflexo orien­ tado se observava após lapsos bastante consideráveis de tem­ po depois da extinção. Esse fato podia se observar tanto no registro dos sintomas dos reflexos orientados do sistema ner­ voso como um todo quanto no nível de um neurônio isola­ do. Tanto o sistema nervoso como um todo quanto neurô­ nios isolados podem reter o arquétipo do sinal e comparar um novo estímulo com os vestígios desse “modelo” de sinal, que se manteve sob a forma de vestígios durante um período bastante longo. O fato de que o sistema nervoso pode conservar com uma sutileza impressionante os vestígios dos estímulos ante­ riores pode ser ilustrado por toda uma série de observações posteriores, das quais citaremos apenas duas. É sabido que quanto mais freqüente é o sinal determi­ nado quanto mais o sujeito se acostuma a ele e tanto mais rapidamente ele apresenta reação motora diante do sinal (e tanto mais breve é o período latente dessa reação). O estudo minucioso mostrou que nas condições mais simples essa lei permanece e a rapidez da reação ao sinal é diretamente pro­ porcional à freqiiência com que ele se apresenta. O cérebro registra não apenas o próprio fato da apre­ sentação do sinal mas também a freqiiência com que este se apresenta, registrando ainda que a “decoração” da freqiiên­ cia da apresentação do sinal e a regulação da rapidez da 45

resposta ao grau de probabilidade do aparecimento do sinal é uma das funções essenciais do funcionamento do cérebro. Fatos e pesquisas posteriores mostraram que o sistema nervoso do homem pode manter vestígios de sinais isolados com grau muito elevado de precisão e conservá-lo durante muito tempo. Pode servir de ilustração disto o teste de labo­ ratório realizado por E. N. Sokolov. Apresentou-se uma só vez ao sujeito um sinal so­ noro de determinada altura (500Hz> e intensidade (20 decibéis). Em resposta a esse sinal o sujeito devia apertar as mãos, devendo responder com movimento somente a esse sinal, mantendo as mãos imóveis ante o aparecimento de qualquer sinal distintivo. Em seguida foram sugeridos desordenadamente ao sujeito sons di­ ferentes de altura idêntica mas que variavam por inten­ sidade (de 5 a 30 decibéis). Foram registrados eletro­ encefalograma, eletromiograma e reação galvánica da pele. O mesmo teste foi repetido nos 2.°, 4.° e 25.° dias, e o padrão mostrado uma vez (som de 500Hz e inten­ sidade de 20 decibéis) não foi apresentado nenhuma vez mais. Os resultados do teste indicaram que o padrão uma vez mostrado foi mantido pelo sujeito durante um período longo e após longos intervalos (de 2 a 25 dias) o sujeito conti­ nuou a apresentar respostas elctrofisiológicas e motoras pre­ cisas somente aos sinais correspondentes ao padrão dado, omitindo-se diante de todos os outros sinais. O teste citado mostra que o cérebro humano é capaz de manter vestígios precisos, durante muito tempo, de um estímulo apresentado uma vez, e a precisão desses vestígios não só não desaparece com o tempo como ainda pode aumentar. Citamos alguns fatos segundo os quais o sistema ner­ voso é dotado da capacidade de preservar por muito tempo os vestígios de um estímulo apresentado uma vez, de ava­ liar a freqiicncia com que este se apresentou e conservou-se na memória com grande precisão os padrões de estímulos que foram apresentados pelo menos uma vez.

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Isto torna o cérebro humano o instrumento mais sutil não apenas para captar os estímulos e distingui-los entre os outros que lhe chegam mas também para conservar na me­

mória os vestígios das influências antes percebidas por ele.

Processo de "consolidação"’ dos vestígios O fato do registro dos vestígios dos estímulos que atua­ ram sobre o cérebro do homem nos leva a levantar uma importante questão: como ocorre o processo de consolida­ ção desses vestígios? Consolidam-se ¡mediatamente ou neces­ sitam de algum tempo para a consolidação? Esta questão foi objeto de toda uma série de pesquisas. Antes já fora observado que nos casos em que o homem sofre um trauma craniano, desaparecem os vestígios dos es­ tímulos que atuaram sobre o homem algum tempo antes do trauma e algum tempo após. A pessoa que recebe um trau­ ma maciço do crânio ou desmaia não costuma conservar quaisquer lembranças do que antecedeu ¡mediatamente ao trauma e do que ocorreu logo após. Esse fato é am­ plamente conhecido sob a denominação de amnésia anterógrada e retrógrada. Indica que um choque forte, experi­ mentado pelo sistema nervoso, torna o cérebro incapaz de registrar durante algum tempo os vestígios das excitações que lhe chegam. O fato da amnésia anterógrada e retrógrada permitiu al­ gumas tentativas no sentido de medir o tempo a que se es­ tende a incapacidade provisória do cérebro de registrar ves­ tígios. É conhecida uma observação segundo a qual desapa­ receram da memória de um motociclista acidentado na estra­ da número 78 todas as lembranças que começavam na es­ trada número 64. Se considerarmos que ele desenvolvia uma velocidade de 60 quilómetros por hora, verificaremos que o trauma levou a que a memória do motociclista não consoli­ dasse os vestígios das impressões surgidas 10-15 minutos antes do trauma e, conseqüentemente, a pessoa necessita de ÍO-15 minutos para consolidar definitivamente os vestígios da me­ mo ri a e o efeito traumático que durante esse período ocor­ reu sobre o cérebro impede essa consolidação.

Os fatos descritos se constituíram num impulso pars experimentos especiais, nos quais uma pessoa recebeu cho­ que elétrico artificial e fraco, ocasião em que se observou o lapso de tempo que desaparecia da memória do sujeito. Podem servir de exemplo os testes do psicofisiologista soviético F. D. Gorbov. O sujeito foi colocado diante de uma janelinha através da qual passavam em cadência números simples com sinais aritméticos ( 4 - 4 , — 1, + 5, etc.). O su­ jeito devia realizar operações aritméticas corresponden­ tes, acrescentando um dado número ao resultado das operações antes obtidas ou subtraindo dele um núme­ ro correspondente. Era natural que para o cumprimen­ to dessa tarefa o sujeito tivesse de manter sólidamente na memória os vestígios do resultado anteriormente obtido. De repente o sujeito recebia ura “choque” em for­ ma de uma fulguração brusca. O teste mostrou que, nestes casos, o sujeito cos­ tumava “esquecer” o resultado que acabara de obter e começava a operar não a partir do último número mas do antecedente. Esse experimento mostra que até um choque tão insignificante afasta as condições indis­ pensáveis à “consolidação” dos sinais. As observações aqui expostas sugeriram a hipótese de que, para a consolidação dos números na memória, è neces­ sário algum tempo; elas suscitaram várias pesquisas volta­ das para a verificação dessa hipótese. Os experimentos de alguns autores (predominantemente americanos) se basearam no seguinte esquema: o animal adquiria uma habilidade e algum tempo após essa aquisição ele recebia um choque elétrico. Verificou-se que se o choque era aplicado 10-15 minutos após a aquisição da habilidade, esta desaparecia; se o choque era aplicado de 45 minutos a uma hora após a aquisição, a habilidade se conservava. Esses experimentos mostraram que deve ser considerado de 10-15 minutos o tempo necessário para a consolidação dos vestígios. Um experimento posterior mostrou que o choque exer­ ce a mesma influência obliterante nas habilidades que come-

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çaram a ser adquiridas pouco tempo antes ou depois do cho­ que: em ambos os casos não havia aquisição de habilidade. Conseqüentemente, o choque podia não só impedir a “con­ solidação” dos vestígios mas também criar o estado do cére­ bro no qual era impossível a aquisição de novas habilidades. Verificou-se, em seguida, que o mesmo efeito pode ser obtido não através do choque elétrico mas da aplicação de alguns agentes farmacológicos, que ora provocavam estado inibitório do córtex (por exemplo, barbituratos) ora levavam a um estado elevado de excitação do córtex e provocavam câimbras (por exemplo, metrazol). Verificou-se que a apli­ cação de barbituratos um minuto após a formação da habi­ lidade levava ao desaparecimento de seu vestígio, ao passo que a aplicação da mesma dose de barbituratos trinta minu­ tos após não perturbava as habilidades que até então já ha­ viam conseguido “consolidar-se”. Dados análogos foram obtidos em testes com aplicação de metrazol: nestes casos, a aplicação de metrazol dez segundos após a aquisição da habilidade levava a uma violenta destruição dos vestígios, a aplicação do metrazol dez minutos após levava a uma con­ servação relativamente fraca dos vestígios e a aplicação vin­ te minutos após mantinha a habilidade conservada. N o entanto substâncias diversas, que influenciam o es­ tado de excitabilidade do cérebro, influenciam a conserva­ ção dos vestígios com “profundidade” variada. Algumas delas podem obliterar os vestígios que se formaram 3-4 dias antes da aplicação do metrazol, enquanto outras surtem efei­ to apenas nos vestígios que acabam de formar-se. Por último, verificou-se que existem substâncias que aceleram o processo de “consolidação” dos vestígios e os tor­ nara estáveis. Um desses preparados é a estricnina, cuja inje­ ção acelera consideravelmente a consolidação e tom a os ves­ tígios mais resistentes às influências destruidoras. ^ q u is a s realizadas nos dois últimos decénios mostra­ ram que a consolidação de um vestígio requer certo tempo que pode ser medido, existindo diversos agentes que atuam com intensidade diferente sobre o processo de consolidação dos vestígios. Mas existem diferenças individuais nos ani­ mais, que consistem em que a consolidação dos vestígios apresenta velocidade variada em espécies diferentes. Deste modo, o pesquisador americano Mc Goy mostrou que se um choque aplicado a ratos 45 segundos após haverem estes

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adquirido uma habilidade elimina os vestígios e o choque aplicado 30 minutos após mantcm os vestígios intactos, então nos ratos que adquirem lentamente uma habilidade o cho­ que aplicado 45 minutos após a aquisição e o choque apli­ cado 30 minutos após levam igualmente ao desaparecimen­ to dos vestígios. Isto significa que se no grupo “rápi­ do” de ratos os vestígios já se consolidaram em 15-20 mi­ nutos, no grupo “lento” de ratos a consolidação dos vestí­ gios ainda não ocorre nesse espaço de tempo e eles ainda permanecem estáveis durante um período bastante longo. Todos esses testes mostram que a formação de determi­

nado vestígio ainda não significa que este esteja consolidado e para a consolidação é necessário certo tempo, que depende de uma série de fatores (inclusive das peculiaridades indivi­ duais) e que pode ser medido. O estudo da consolidação dos vestígios é uma das importantes conquistas da psicofisiologia. Ele permitiu separar dois estágios do processo de forma­ ção da memória, que posteriormente passaram a ser desig­ nados pelos termos memória breve (subentendendo-se por esta o estágio em que os vestígios se formavam mas ainda não se consolidavam) e memória longa (subentendendo-se por esta o estágio em que os vestígios não só se haviam forma­ do mas estavam de tal forma consolidados que podiam exis­ tir durante muito tempo e resistir ao efeito destruidor das ações de fora). A divisão da memória “breve” e “longa”, apesar de condicional, colocou a psicofisiologia diante de questões futuras, sobretudo diante do problema dos meca­ nismos fisiológicos dos dois tipos de memória.

Mecanismos fisiológicos da memória "breve" e "longa" Quais são os mecanismos fisiológicos que servem de base à memória “breve” e “longa”? Nas décadas de 30 e 40 foi feita uma observação que deu fundamento para se lançar a hipótese da natureza dos processos nervosos que servem de base à memória “breve”. Através das pesquisas morfológicas e morfofisiológicas dos neurofisiologistas americanos Lorente de N ó e Mc Culloch, foi estabelecido que no córtex cerebral existem apa­ relhos que permitem uma longa circulação da excitação pelos

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circuitos fechados. Serviu de base o fato de que, nos axónios de certos neurônios, existem ramificações que voltam ao corpo desse mesmo neurônio e contatam ¡mediatamente com ele ou com dendritos isolados desse mesmo neurônio; com isto cria-se a base para uma circulação permanente das ex­ citações nos limites dos circuitos circulares fechados ou dos círculos rcverberatórios da excitação. No entanto, a ques­ tão não se limita a esse mecanismo tão simples. Há todos os fundamentos para se pensar que no sistema nervoso existem aparelhos mais complexos de “redes de neurônios” que rea­ lizam círculos reverberatórios estáveis de excitação. Esses aparelhos são os complexos funcionais de neurônios, unidos entre si por neurônios “postiços” ou neurônios com axônios curtos cuja função, ao que parece, consiste em transmitir a excitação de um neurônio a outro, assegurando a passagem longa da excitação pelas redes mais complexas ou “círculos reverberatórios”. Alguns estudiosos consideram que os “círculos reverbe­ ratórios” da excitação são a base neurofisiológica da memó­ ria “breve”. Segundo essas hipóteses, é um mecanismo es­ sencial de conservação dos vestígios o mecanismo de trans­ missão sináptica da excitação, o que assegura a passagem da excitação de um neurônio para o outro e permite uma con­ servação longa da excitação que passa pelos “círculos rever­ beratórios”. De acordo cora essa teoria, o choque destrói a passagem da excitação pelos círculos reverberatórios e leva ao desa­ parecimento daqueles vestígios que se conservaram graças a essa passagem da excitação. O processo de circulação da excitação pelos “círculos reverberatórios” não é, entretanto, o único mecanismo pos­ sível de conservação dos vestígios. Os fatos, obtidos por mui­ tos pesquisadores, levaram à suposição de que o mecanismo de conservação dos vestígios está relacionado com as pro­ fundas mudanças bioquímicas que podem ocorrer não ape­ nas nas sinapses (lugares de transmissão da excitação de uns neurônios a outros) mas também nos próprios corpos dos neurônios e em seus órgãos particulares (núcleos, metacôndrios). Em 1959, o pesquisador sueco H. Hyden mostrou que cada excitação das células nervosas leva a uma visível ele­ vação do teor do ácido ribonucléico (Rna), ao passo que a 51

longa ausência de excitação reduz o leor de rna. As obser­ vações posteriores de Hyden e seus colaboradores levaram à hipótese de que as mudanças do rna têm caráter específico e podem ser hipoteticamente consideradas como mecanismo bioquímico de conservação dos vestígios da memória. Essa hipótese se baseia no fato de que as mudanças do rna, pro­ vocadas por certas ações, podem ser muito específicas e in­ fluências diversas podem provocar diferentes modificações do RNA. Lançou-se a hipótese segundo a qual o número de possí­ veis mudanças das moléculas do rna, sob o efeito de ações diversas, pode ser medido pelo imenso número — 10,s — 1020 e, deste modo, o rna pode manter um imenso número de diferentes códigos. Como supunham esses pesquisadores, a repetição do mesmo estímulo leva a que o ácido ribonucléico específicamente mudado comece a “repercutir” justa­ mente diante dessa excitação e a capacidade de repercutir específicamente diante dessa excitação constitui a base a par­ tir da qual a célula nervosa, que conserva o vestígio do efeito recebido, começa a “identificar” este efeito, distin­ guindo-o dc qualquer outro. Essa mudança específica do rna sob a influência de ações diversas foi o que deu aos estudiosos fundamento para levantar a hipótese de que ela é a base bioquímica da

memória. A hipótese da participação

do ácido ribonudéico na conservação dos vestígios da memória foi confirmada por uma série de observações. Situam-se entre estas as obser­ vações do fisiologista americano E. F. Morrell que mostrou que o aumento do teor de rna, provocado pela excitação re­ petida de determinada área do cérebro, manifesta-se tanto neste foco como no ponto a ele simétrico de outro hemisfé­ rio. Isto significa não apenas que os círculos reverberatórios de excitação podem abranger zonas muito glandes do cérebro, estendendo-se ao hemisfério oposto, mas também que nesse “foco especular” simétrico, que não sofreu nenhuma influência direta do estímulo, surge um elevado teor de rna que parece sugerir nele um alerta para novas excitações. Entre aquelas observações situam-se as observações fei­ tas com auxílio de microscopia eletrónica; estas mostraram que. na medida em que se formam vestígios de habilidade nos respectivos neurônios do animal, pode-se observar o au-

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mento do número de vesículas mínimas (empolinhas), que contêm elevada concentração de acetil-colina, que assegura o deslocamento do impulso nas sinapses, ao passo que a lon­ ga ausência de excitações diminui o número dessas vesículas. Entre essas observações siluam-sc ainda os fatos segun­ do os quais os vestígios da informação, assimilada pelo ani­ mal, podem ser transmitidos a outro animal por via humo­ ral através do rna modificado e, ao contrário, a destruição do rna (sua dissolução pela ribonuclcase) leva à destruição desses vestígios. Essas observações provocaram uma animada discussão. Citaremos dados breves, observando que a sua verificação e avaliação definitiva ainda pertencem ao futuro. Os dados relativos a uma possível participação do tanto na conservação como na transmissão da in­ formação foram obtidos pela primeira vez pelo pes­ quisador americano M c Connell. Este fez planárias adquirirem habilidade de evitar a luz. Esse aprendiza­ do requereu um número considerável de testes. Depois disto ele cortou a planária em duas partes e cada uma destas recuperou-se paulatinamente, transformando-se num animal inteiro. Quando as espécies regeneradas começaram a aprender mais uma vez o mesmo procedi­ mento, verificou-se que a aprendizagem tanto do extre­ mo regenerado da cabeça quanto do extremo regene­ rado da cauda requeria um número três vezes menor de testes de treinamento. Conseqüentemente, a conserva­ ção dos vestígios da memória não ocorre à custa dos neurônios restantes do gânglio posterior (que tornava a regenerar-se na extremidade da cauda) mas à custa de avanços humorais (bioquímicos) que se mantiveram em todos os tecidos do corpo. É característico que se as duas extremidades da planária, que adquirira a habi­ lidade, eram imersas em solução de ribonuclease, que destruiu o rna, os vestígios da habilidade adquirida de­ sapareciam e os vermes regenerados requeriam para nova aprendizagem o mesmo número de novos testes de trei­ namento que requeriam as espécies não treinadas. Segundo os autores, estes testes confirmam a participação do rna na conservação dos vestígios da memória.

rna

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Testes posteriores, realizados por M c Connell e outros pesquisadores, criaram a impressão de que o rna modificado pode não só conservar os vestígios da informação obtida como também transmiti-los a outras espécies por via humoral. Para mostrá-lo, Mc Connell introduziu inicialmen­ te a respectiva habilidade num grupo de planárias e de­ pois alimentou as planárias não treinadas com um ex­ trato feito de corpos das planárias treinadas. Pelos da­ dos apresentados pelo pesquisador, resultou daí que as planárias não treinadas começaram a adquirir bem mais rapidamente a habilidade específica antes adquirida pelas planárias treinadas, habilidade essa que parece ter-se transmitido às planárias não treinadas por via hu­ moral através do «na específicamente mudado, que conserva vestígios da modificação do comportamento adquirido. Semelhantes testes foram realizados numa série de animais (inclusive em ratos, em cujos cérebros foi in­ troduzido um extrato de cérebro picado de ratos ante­ riormente treinados) e os autores que os realizaram le­ vantaram a hipótese dc que, nestes casos, o rna parti­ cipa não só da conservação dos vestígios da informa­ ção recebida mas também pode participar da transmis­ são dessa informação a outras espécies por via humoral (bioquímica). Como já dissemos anteriormente, estes testes pro­ vocaram acalorada discussão e ainda é difícil afirmar que os seus resultados venham a ser confirmados por pesquisas posteriores. Surge uma questão essencial: limita-se a mudança do que surge como resultado da excitação, a apenas alguns neurônios ou ao processo de conservação dos vestígios incorporam-se outros tecidos do cérebro? Essa questão chamou a atenção dos estudiosos. Como se sabe, a composição dos núcleos das formações subcorticais e a composição do córtex são integradas, além dos neurônios, também pela glia, que reveste as células ner­ vosas com uma densa massa esponjosa. Durante muito tempo a glia foi considerada um simples tecido de apoio do cére­ bro; mas últimamente ficou claro que ela tem outras funções rna,

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bem inais complexas, participando lanto dos processos de troca como da regulação dos processos de excitação que ocorrem nos aparelhos nervosos e, provavelmente, do proces­ so de conservação dos vestigios das excitações que surgem no tecido nervoso do ccrebro. i:: sabido, ainda, que o nú­ mero de células da glia é dez vezes superior ao número de células nervosas; diferentemente das células nervosas, que são indivisíveis durante a vida, as células da glia continuam a dividir-se e seu número aumenta na ontogénese. É caracte­ rístico que, na medida do desenvolvimento, cresce substan­ cialmente a relação da massa das células nervosas com ioda a massa da substância parda a que pertencem as células da glia. As células da glia revestem densamente as células nei vo­ sas e, segundo expressão de Hyden, “ocupam posição estraté­ gica entre as células nervosas e os capilares sanguíneos”. Os potenciais elétricos surgem nelas com uma lentidão centenas dc vezes maior do que nas células nervosas, enquanto as mu­ danças bioquímicas que nelas se processam sob as influen­ cias das excitações encontram-se em relações inversas com as mudanças bioquímicas que se processam nas células nervosas. No início da excitação, aumenta nas células nervosas (neu­ rônios) a quantidade do rna diminuindo na glia circunvizi­ nha; ao contrário, ao término da ação do estímulo diminui rapidamente a quantidade de rna na célula nervosa, aumen­ tando nas células da glia circunvizinha. Por isto, o surgi­ mento de potenciais lentos aos quais a neurofisiologia dá im­ portância sobretudo grande, é hoje relacionada não só ao trabalho dos neurônios como também da própria glia. Tudo isto leva a supor que a glia dá estabilidade aos processos que surgem na célula nervosa, exerce influência moduladora na ocorrência das excitações e, provavelmente, participa diretamente da conservação dos vestígios das excita­ ções que surgem nos neurônios. A circulação das excitações nos círculos reverberatórios e as indicações das mudanças bioquímicas que surgem sob a influência das excitações que chegam ao tecido nervoso são suficientes para explicar os mecanismos que servem de base à memória longa. Por isto alguns estudiosos consideram ne­ cessário procurar os mecanismos da memória longa em algu­ mas mudanças morfológicas, que surgem no aparelho sinóp­ tico dos neurônios e suscitam a hipótese de que são justa-

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mente essas novas formações morfológicas que constituem o substrato da memória longa. O conhecido morfofisiologista Ariens Kappers já indicara anteriormente que o crescimento dos axônios e dendritos não é casual e os apêndices do neurônio se orientam no sentido da excitação ocorrente. Esse fe­ nômeno, que Kappers denominou “neurobiótico”, foi con­ firmado em observações posteriores. Atualmente os cientistas admitem que a orientação do crescimento dos apêndices dos neurônios é até certo ponto determinada pelo funcionamento destes e pelos “programas” que dependem do código de ex­ citação e servem de base à atividade dos neurônios. O crescimento do sistema sinapso-dendrítico de uma sé­ rie de neurônios ocorre também durante a vida, sendo esti­ mulado em grande medida pelo exercício e abstendo-se do “emprego” desse ou daquele sistema. O exercício faz aumen­ tar consideravelmente o número de sinapses, aumenta o nú­ mero de empolas (vesículas) que conduzem a excitação dos neurônios, e o número daqueles apêndices mínimos locali­ zados nos axônios, que hoje são considerados o principal aparelho neuroquímico, que assegura a transmissão da exci­ tação nas sinapses. Essas mesmas reações do movimento e do crescimento surgem na excitação não só dos apêndices dos neurônios mas também na glia. (A. I. Rewtback), e, segundo alguns autores, é justamente esse efeito da formação de novas sinapses que constitui o substrato da memória longa. Se a memória breve se baseia no movimento que sur­ giu no círculo reverberatório e a memória longa no cresci­ mento do aparelho sinapso-dendrítico da glia, a formação de novas sinapses ainda não se pode considerar demonstrável embora muitas das tentativas atuais de encontrar a base fi­ siológica dos eventos da memória sigam nessa direção.

Sistemas cerebrais que asseguram a memória Surge uma pergunta natural: quais são os grandes sis­ temas cerebrais que asseguram o registro dos vestígios? Par­ ticipariam dos processos da memória todos os sistemas ce­ rebrais, que desempenham o mesmo papel na fixação dos vestígios ou dentre todos os sistemas cerebrais que conhece-

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mos é possível distinguir alguns que desempenhem papel es­ pecial na fixação e conservação dos vestígios da memória? Já sabemos (ver Vol. I, Cap. IV) que no cérebro po­ demos distinguir pelo menos três grandes blocos, dos quais um assegura o tônus no córtex e a regulação dos estados ge­ rais de excitabilidade, o segundo é o bloco de recebimento, processamento e conservação da informação recebida, sendo o terceiro o bloco de formação dos programas e controle do comportamento. Essse fato já mostra que não é idêntica a participação de formações isoladas do encéfalo nos proces­ sos de memória. Sabemos ainda que não é idêntica a característica neurofisiológica de neurônios isolados que fazem parte de di­ ferentes sistemas do cérebro. Se nos sistemas de projeção das zonas cortícais auditiva, visual cinética da pele a maio­ ria esmagadora das células receptoras é específico-modal e reage aos indícios seletivos limitados dos estímulos, há ou­ tras áreas (as quais pertencem, por exemplo, o hipocampo e o corpo caudal) que são constituídas predominantemente de neurônios que não têm caráter específico-modal e reagem apenas à mudança da excitação. É natural que esses fatos dêem fundamento para supor que o hipocampo e as forma­ ções a ele relacionadas (núcleo amendoado, núcleos do tá­ lamo ótico, corpos mamilares) desempenham papel especial na fixação e conservação dos vestígios da memória e os neu­ rônios que fazem parte de sua composição são um apare­ lho adaptado para a conservação dos vestígios das excitações, a comparação destas com novas excitações, tendo ainda a finalidade de ativar as descargas (se a nova excitação difere da velha) ou inibi-las. Esses fatos levam a pensar que os referidos sistemas são um aparelho que assegura não apenas o reflexo orientado (como já indicamos anteriormente) mas também um apare­ lho portador da função de fixar e comparar os vestígios que desempenham papel especial nos processos de memória. Eis porque, como mostraram as observações, a afecção bilateral do hinocamno leva a distúrbios maves da memória; os doentes com semelhante afecção começam a apresentar um quadro da impossibilidade de fixar as excitações que lhe chegam, conhecido na clínica pela denominação de “síndro­ me de Korsakov”. Esses fatos foram estabelecidos por mui-

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tos estudiosos (Brenda Miler, Scovill e Penfield) em opera­ ções de grande importância teórica. Dados muito importantes foram obtidos em testes espe­ ciais pela neurofisiologista canadense Brenda Miler. Ela in­ troduziu na artéria do sono do hemisfério direito de um doente com afecção unilateral do hipocampo uma substân­ cia narcótica (amital e sódio); isto provocou um breve des­ ligamento (por alguns minutos) das funções do córtex do segundo hemisfério, resultando daí que os dois hipocampos deixaram de funcionar por um breve espaço de tempo. O resultado dessa interferência foi o desligamento tem­ porário da memória e a impossibilidade de qualquer fixação dos vestígios, que durou alguns minutos e depois desapareceu. Vê-se facilmente qual a importância dessas pesquisas para a compreensão do papel do hipocampo na fixação e con­ servação dos vestígios da memória. Para a compreensão do papel que o hipocampo e as for­ mações a ele ligadas desempenham nos processos de me­ mória, são igualmente importantes as observações clínicas se­ gundo as quais as afecções dessas áreas do cérebro, estrei­ tamente relacionadas com a formação reticular, levam não apenas a uma redução geral do tônus cortical mas também a uma perturbação considerável da capacidade de fixar e con­ servar os vestígios da experiência corrente. Essas observa­ ções foram clinicamente observadas em todas as afecções que bloqueiam o movimento normal no chamado círculo hipocampo-tálamo-mamilar (ou círculo de Paypez), que inclui entre seus componentes o hipocampo, os núcleos do tálamo ótico, os corpos mamilares e a amígdala. A cessação da circulação normal da excitação por esse círculo perturbava o funcionamento normal da formação reticular e levava a grosseiros distúrbios da memória. Isto tudo não significa que outras áreas do encéfalo, par­ ticularmente o córtex cerebral não participem dos processos de memória. O importante, entretanto, é que a afecção das zonas occipitais ou temporais do córtex pode levar a supres­ são da capacidade de fixar os vestígios das excitações especí­ fico-modais (visuais, auditivas) mas nunca leva a uma per­ turbação geral dos vestígios da memória. Isto significa que a memória é um processo complexo por sua base nervosa e é assegurada pela participação de di-

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ferentes sistemas cerebrais, que desempenham, todos eles, pa­ pel próprio e dão sua contribuição específica à realização da atividade mnésica.

Tipos principais de memória A Psicologia admite vários tipos básicos de memória. Va­ mos examiná-los sucessivamente, dispondo-os numa ordem de complexidade crescente. Mas nos limitemos à análise das modalidades de memó­ ria, que têm importância para os processos cognitivos, deixan­ do de lado o exame dos fenômenos da memória emocional e motora.

Imagens sucessivas As imagens sucessivas constituem a forma mais elemen­ tar de memória sensorial. Elas se manifestam tanto no cam­ po visual quanto no campo auditivo e sensitivo geral e fo­ ram bem estudadas pela Psicologia. O fenómeno da imagem sucessiva (freqiientemcnte re­ presentada pelo símbolo nb , correspondente ao termo ale­ mão “Nachbild” consiste no seguinte: se durante certo tem­ po, 10-15 segundos, por exemplo, apresentarmos ao sujeito um estímulo simples, sugerindo-lhe olhar durante o referido período para um quadrado e em seguida retirarmos esse qua­ drado, o sujeito continua vendo no lugar do quadrado ver­ melho um vestígio de forma idêntica embora habitualmente de cor azul-verde (completando a vermelha). Esse vestígio às vezes surge de imediato, às vezes alguns segundos após e permanece durante algum período de (10-15 a 45-60 segun­ dos), começando em seguida a empalidecer paulatinamente e a perder seus contornos nítidos, como que se desfazendo, para desaparecer em seguida; às vezes ele toma a aparecer para depois sumir definitivamente. Em sujeitos diferentes po­ dem variar tanto a clareza como a precisão e a duração das imagens sucessivas. O fenômeno das imagens sucessivas deve-se ao fato de que a irritação da retina surte o seu efeito: provoca a fadiga

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da fração da púrpura visual (componente sensível à cor bulbo ocular), que assegura a percepção da cor vermelha e por isto no deslocamento da vista para uma folha branca surge um sinal de luz azul-verde completando a vermelha. Esse tipo de imagem sucessiva é denominado imagem sucessiva ne­ gativa. Esta pode ser considerada a forma mais elementar de conservação dos vestigios sensoriais ou o tipo mais ele­ mentar de memória sensorial. Além das imagens sucessivas negativas existem também as imagens sucessivas positivas. Estas podem ser observadas se em plena escuridão colocarmos diante dos olhos um objeto qualquer (por exemplo, a mão) e em seguida iluminarmos o campo com luz clara (por exemplo, a fulguração de luz elétrica) durante o breve espaço de 0,5 segundos. Neste caso, depois que a luz se apaga, a pessoa ficará algum tempo vendo a imagem clara do objeto situado diante de seus olhos, desta vez nas cores naturais; essa imagem perdura por algum tem­ po e em seguida desaparece. O fenômeno da imagem sucessiva positiva é o re­ sultado do efeito direto da percepção visual breve. O fato de essa imagem não mudar de coloração se deve a que, na escuridão que se inicia, o fundo não provoca excitação da retina e a pessoa pode observar o efeito imediato da excitação sensorial provocado num instante.

A s imagens sucessivas refletem antes de tudo os fenôme­ nos da excitação que ocorrem na retina do olho. Isto é de­ monstrado por um teste simples. Se durante certo tempo re­ produzirmos um quadrado vermelho num fundo cinza e após retirarmos esse quadrado obtivermos a sua imagem sucessiva e em seguida afastam os a tela, veremos que a dimensão da imagem sucessiva aumenta paulatinamente e esse aumento é diretamente proporcional ao afastamento da tela ("Lei de Emmert’’). Isto se explica pelo seguinte fato; na medida em que se afasta a tela, o ângulo que o seu reflexo começa a ocupar na retina diminui paulatinamente e a imagem sucessiva começa a ocupar um espaço cada vez maior nessa área decrescente da imagem da tela que se afasta na retina. O fenômeno des-

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crito serve para demonstrar nitidamente que, no caso dado, realmente observamos o efeito dos processos de excitação que ocorre na retina, sendo a imagem sucessiva a forma

mais elementar de memoria sensorial breve. É característico que a imagem sucessiva constitui o exem­ plo dos processos mais elementares de vestigio, que não po­ dem ser regulados por um esforço consciente: a imagem não pode ser nem prolongada ao bel-prazcr nem repetida arbi­ trariamente. É nisto que consiste a diferença entre as ima­ gens sucessivas e os tipos mais complexos de imagem da memória. As imagens sucessivas podem ser observadas no campo auditivo e no campo das sensações da pele, embora ali te­ nham expressão mais fraca e sejam menos duradouras. Apesar de serem as imagens sucessivas um reflexo dos processos que ocorrem na retina, a sua nitidez e sucessividade dependem essencialmente do estado do córtex visual. Deste modo, quando há tumores na re­ gião occipital do cérebro, as imagens sucessivas se ma­ nifestam em forma debilitada e se mantêm por tempo mais breve, chegando, às vezes, a não ser provocadas (N. N. Zislina). Ao contrário, quando se introduzem algumas substâncias estimulantes, as imagens podem tor­ nar-se mais nítidas e duradouras.

Imagens diretas eidéticas Devemos distinguir das imagens sucessivas os fenômenos das imagens diretas ou eidéticas (do grego eidos — imagem). O fenômeno das imagens diretas (em Psicologia elas são re­ presentadas pelo símbolo ab — do alemão Anschauungsbild) foi descrito em seu tempo pelos psicólogos alemães, os irmãos Jensh e consiste no seguinte: em algumas pessoas (sobretudo na infância e na juventude) podemos observar imagens cla­ ras e precisas de um objeto mostrado ou quadros inteiros que se mantêm durante muito tempo após o desaparecimento dos objetos e quadros apresentados. Esse fenômeno foi observado em experimentos. Durante 3-4 minutos apresentou-se ao sujeito um quadro de cena de

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ma. Depois que o quadro foi retirado, fizeram-se perguntas ncerca de seus detalhes. Se os sujeitos comuns não conse­ guiam responder a quase nenhuma das perguntas formuladas, iv sujeitos que possuíam nítidas imagens eidéticas continua­ vam como que vendo o quadro e respondiam facilmente a perguntas como “quantas árvores havia na rua?”, “quantos animais havia no quadro?”, “como está o anúncio na pa­ rede?” . Eles respondiam a todas as perguntas, como que continuando a “observar” o quadro retirado e, via de regra, não cometiam nenhum erro na descrição. A imagem eidética nítida se distinguia por muitas parti­ cularidades radicais da imagem sucessiva. Podia manter-se por muito tempo se fosse necessário; se desaparecia posterior­ mente, o sujeito podia reativá-la facilmente e por isto os tes­ tes de “conferimento” dos detalhes da imagem eidctica podiam tlurar várias semanas, meses c até anos após o primeiro teste. Nas publicações soviéticas de Psicologia, o fenômeno das imagens eidéticas foi descrito por A. R. Luria que durante muitos anos observou impaciente com essa memória visual direta nítida. A o contrário da imagem sucessiva, as imagens eidéticas são de natureza mais complexa e não são de maneira nenhu­ ma vestígios de excitações provocadas na retina do olho. Isto pode ser demonstrado por um teste simples. Se mostrar­ mos a um sujeito dotado de memória eidética uma figura ou uma imagem complexa na tela e em seguida afastarmos a tela, a imagem que ficar da figura não começará a aumentar na medida em que a tela se afastar, na proporção que se verifica na imagem sucessiva, porém manterá uma permanên­ cia bem maior. Esse desvio da “Lei de Emmerl” e a grande constância da imagem eidética distinguem-na da imagem su­ cessiva e colocam-na num ponto intermediário entre a imagem sucessiva (que cresce acentuadamente na medida em que se afasta a tela) e a imagem da representação (que conserva a sua constância plena e não aumenta com o deslocamento da tela). Tudo isto mostra que as imagens eidéticas possuem mecanismos centrais e, conseqiientemcnte, constituem um tipo mais complexo de memória sensorial. A diferença entre as imagens eidéticas e as imagens su­ cessivas consiste em que aquelas permanecem sem quaisquer mudanças de nitidez, não apresentam nenhuma ocorrência de dispersão e flutuação, podem ser provocadas arbitrariamente

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a qualquer momento, inclusive num lapso de tempo muito grande após terem sido fixadas. Por último, as imagem eidéticas apresentam como dife­ rença essencial a mobilidade e a capacidade de mudar sob o efeito das tarefas e concepções do sujeito. O experimento simples, realizado pelos irmãos Jensli, mostra que o sujeito dotado de memória eidética recebia um quadro representando uma maçã e a algu­ ma distância, um gancho. Depois que se retira a ima­ gem e o sujeito continua “vendo” a imagem eidética, propõe-se que ele imagine que está com vontade de ga­ nhar uma maçã. Imediatamente após essa instrução, o sujeito observa que o gancho, antes situado à distância da maçã, se aproxima dela atraindo a maçã em sua di­ reção. Conseqüentemente, a imagem eidética resulta mó­ vel e muda sob o efeito da orientação do sujeito. Como mostram as pesquisas, as imagens eidéticas são mais frcqiientes na infância e na adolescência e desaparecem paulatinamente, conservando-se apenas em algumas pessoas. Há fundamentos para se pensar que alguns pintores famosos eram dotados de imagens eidéticas claras. Assim, são conhe­ cidos pintores para os quais era bastante observar um mode­ lo durante alguns minutos, após o que podiam continuar com­ pondo o quadro na ausência do modelo, conservando a ima­ gem com todos os detalhes. Há fundamentos para pensar que existem substâncias que reforçam as imagens eidéticas (entre estas, os irmãos Jensh situavam as substâncias que contêm íons de potássio), bem como substâncias que as enfraquecem (entre estas, eles si­ tuavam as substâncias que contêm fons de cálcio). Por isto alguns agentes farmacológicos especiais (a mescalina, por exemplo) podem reforçar acentuadamente as imagens eidé'ticas provocando nítidas alucinações visuais.

Imagens da representação Yerifica-se uma estrutura visualmente mais complexa no terceiro tipo, mais importante, de memória visual: a imagem da representação (esta é às vezes representada na Psicologia

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pelo símbolo vp, do alemão Vorstellungsbild). As imagens de representação são de todos conhecidas. Dizemos que vemos a imagem de uma árvore, de um limão, de um cão. Isto sig­ nifica que a nossa experiencia anterior deixou em nós vesti­ gios dessas imagens, razão por que a existencia das represen­ tações é considerada a forma mais importante de memória. Pode parecer à primeira vista que as imagens das repre­ sentações se assemelham às imagens diretas, distinguindo-se destas apenas por serem menos nítidas, mais pobres e esba­ tidas e menos definidas. N o entanto essa característica das representações como imagens mais pobres de conteúdo é pro­ fundamente errónea, pois uma análise psicológica atenta mos­ tra que as imagens das representações não são mais pobres

porém ¡mensamente mais ricas do que as imagens diretas. O primeiro traço que distingue as imagens das repre­ sentações das imagens diretas consiste em que as primeiras são sempre polimodais, noutros termos, sempre incluem entre seus componentes elementos dos vestígios tanto visuais quan­ to táteis, auditivos e motores; elas não são vestígios de um tipo de percepção mas vestígios de uma complexa atividade

prática com objetos. Exteriormente a imagem das representações pode pare­ cer visualmente mais pobre e é antes um esquema, uma con­ figuração geral de um dado objeto que sua imagem visual direta. No entanto ela compreende diferentes aspectos das representações do objeto: a imagem das representações do limão inclui tanto a forma exterior do objeto (forma e cor) como o seu sabor, a casca rugosa, o peso, etc. A imagem de uma mesa compreende não só o aspecto pobre e esquemáti­ co da mesa mas tambcm o seu emprego, os vestígios de que o homem a usou para comer, trabalhar, sentar-se a ela, etc. Por si só essa múltipla composição da imagem da represen­ tação, que compreende uma prática multivariada com o ob­ jeto, já dá uma noção bem mais rica do objeto do que o seu simples aspecto exterior, A segunda peculiaridade da imagem da representação consiste em que ela sempre engloba uma elaboração intelec­ tual da impressão do objeto, a discriminação dos traços mais substanciosos deste e sua inclusão em determinada categoria. Nós não apenas reproduzimos a imagem de uma árvore mas a nomeamos com uma palavra determinada, discriminamos nela os indícios essenciais e a incluímos numa determinada 64

categoria. Ao provocarmos a imagem da árvore, não costu­ mamos provocar a imagem de uma árvore determinada (uma mangueira ou uma jaqueira) mas operamos com uma imagem generalizada da árvore que pode compreender tanto a ima­ gem direta da mangueira ou da jaqueira como a imagem di­ reta de um pinheiro ou de uma casa. O simples fato de a imagem da representação parecer, à primeira vista, apenas es­ batida e mais pobre do que a imagem visual direta, consti­ tui de fato o indício de sua generalidade, da riqueza poten­ cial das ligações que ela oculta, o indício de que ela pode ser inserida em quaisquer relações. Essa aparente pobreza da imagem da representação sugere simultaneamente que um traço qualquer (ou conjunto de traços) se destaca nela como mais substancioso enquanto outros traços são ignorados como me­ nos importantes. Por conseguinte, a imagem da representação é, em suma, não uma marca passiva da nossa percepção visual mas o re­ sultado de sua análise e síntese, da abstração e generaliza­ ção, noutros termos, é o resultado de uma codificação per­ cebida como certo sistema. Por conseguinte, na imagem da representação a nossa memória não conserva passivamente a marca do percebido mas faz com este um trabalho profundo, reunindo toda uma série de impressões, analisando o conteúdo do objeto, genera­ lizando essas impressões e unificando a própria experiência direta com os conhecimentos do objeto. Conscqiientemente, a imagem da representação é o pro­ duto de uma atividade ¡mensamente mais complexa e uma formação psicológica incomparavelmente mais complexa do que a imagem sucessiva ou direta. Essa complexidade da imagem da representação se obser­ va nitidamente tanto na identificação do objeto quanto na conservação da imagem. A identificação do objeto nunca é um processo de sim­ ples superposição do objeto percebido à imagem de sua re­ presentação conservada na memória. Essa identificação ocor­ re, via de regra, mediante a discriminação dos traços essen­ ciais do obieto, da comparação dos traços complexos e dis­ tintos do objeto esperado e percebido em termos reais dos quais resulta a “tomada de decisão” para definir se o objeto visível é aquele que esperávamos ou não. O fato de ter o homem uma “imagem” do seu conhecido não significa, abso-

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hitamente, que c!e disponha de urna plena marca visual des­ se conhecido que ele “identifica” por meio da simples iden­ tificação da imagem perceptível com aquela que ele tem na memória. Isto significa que o homem dispõe de um com­ plexo generalizado de traços que mantém como essenciais para o seu conhecido: alta estatura, meio calvo, de óculos, postura ereta, etc. Ao encontrar uma pessoa parecida com seu conhecido, ele compara traeos particulares e se estes não coincidem por algum motivo (“meio calvo, de óculos mas de rosto re d o n d o ...” etc.), ele “decide” que a pessoa não é aquela, ele “não a reconhece”; somente a coincidência de to­ dos os traços principais dá a certeza de que ele está diante da pessoa esperada e o leva a “decidir” e essa decisão re­ presenta a manifestação da “identificação” do seu conhecido. Isto dá fundamentos para considerar a imagem da re­

presentação não uma simples cópia de uma impressão tínica na memória mas um produto reduzido da complexa ativida­ de com o objeto, que compreende elementos tanto da expe­ riência direta quanto dos conhecimentos desta. O processo igualmente complexo é a conservação da imagem da repre­ sentação na memória. Como mostraram várias pesquisas (principalmente as do psicólogo soviético M. Solovyev), a imagem da representa­ ção às vezes não se conserva na memória em forma imutável; ela sempre sofre mudanças dinâmicas que podem ser facil­ mente descobertas se, dando ao sujeito a possibilidade de co­ nhecer o objeto depois de algum tempo (um dia, uma sema­ na, um ou vários meses) não apenas perguntar se ele tem al­ guma noção de dado objeto mas também sugerir-lhe dese­ nhá-lo. A experiência mostra de modo convincente que a conservação dessa imagem na memória está praticamente re­ lacionada com a modificação da imagem da representação desse objeto, com a discriminação e a ênfase dos seus traços mais substanciosos, com o desaparecimento das suas peculia­ ridades individuais, noutros termos, com uma profunda trans­ formação da imagem mantida na memória. Tudo isto mostra que a imagem da representação é um complexíssimo fenômeno psicológico e a “memória icônica” do homem não pode ser jamais considerada um fenômeno elementar. As imagens das representações são tipos bem mats com­ plexos de vestígios da memória e é justamente a sua seme-

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Ihança com os processos intelectuais que faz delas um dos mais importantes componentes da atividade cognitiva do homem.

Memória verbal A memória verbal é a modalidade mais complexa e mais elevada de memória específicamente humana. Não usamos as palavras apenas para nomear os objetos, o discurso verbal não apenas participa da formação das con­ cepções e da conservação da informação direta; o homem re­ cebe o maior volume de conhecimentos por meio do sistema verbal, recebendo informação verbal, lendo livros e conser­ vando em sua memória o resultado dos dados obtidos atra­ vés do discurso. A memória visual é em grau ainda menor uma fixação imediata das palavras e uma conservação passiva das imagens por estas provocadas do que uma fixação e conservação dos resultados da experiência direta que se forma sob o aspecto de concepções. Ainda veremos que, ao receber uma informação verbal o homem grava menos as palavras e conserva a impressão que lhe chega textualmente. A memória verbal é sempre uma transformação da in­ formação verbal, uma discriminação do que nesta há de mais Substancial, abstraído do secundário, sendo ainda uma reten­ ção não das palavras imediatamente percebidas mas das ¡délas transmitidas pela comunicação verbal. Isto significa que a memória verbal sempre se baseia num complexo processo de recodijicação do material comunicado, processo esse vincula­ do ao processo de abstração dos detalhes secundários e de generalização dos momentos centrais da informação. É por isto que o homem é capaz de “gravar na memória” o conteú­ do de um vasto material obtido de informações verbais e li­ vros lidos, sendo, ao mesmo tempo, absolutamente incapaz de conservar na memória o conteúdo literal dessas informações e leituras. Não raro a memória verbal é denominada “associativa” ou “lógica”. Isto se deve a que as palavras nunca provocam

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em nós noções isoladas mas cadeias e matrizes inteiras de ele­ mentos associativos ou logicamente conexos.

Psicologia da atividade mnemónica. Memorização e reprodução Atd agora abordamos tipos particulares de vestígios e as peculiaridades do seu registro. Agora devemos caracterizar a atividade mnésica especial, noutros termos, os processos de registro especial ou decoração do material. A maioria esmagadora dos nossos conhecimentos sistemá­ ticos surge como resultado de uma atividade especial, na qual se coloca diante do sujeito a tarefa de memorizar o material correspondente para gravá-lo na memória e posteriormente rememorizá-lo ou reproduzi-lo. Essa atividade, destinada à memorização e reprodução do material retido na memória é denominada atividade

mnésica. iNesta atividade, sugere-se a uma pessoa lembrar seleti­ vamente de um material que lhe foi proposto, conservá-lo e em seguida reproduzi-lo ou memorizá-lo. É natural que em todos esses casos a pessoa deve distinguir nitidamente o ma­ terial que lhe propuseram recordar de todas as impressões se­ cundárias e na reprodução limitar-se justamente a esse mate­ rial, sem introduzir nele quaisquer impressões estranhas ou associações. Por isto a atividade mnésica sempre tem caráter seletivo. A atividade mnésica do homem é uma forma de ati­ vidade na qual o processo de memorização está separado do processo de recordação ou reprodução por certo lapso de tempo, às vezes breve (quando a verificação do material reti­ do vem imediatamente após a recordação), às vezes conside­ rável (quando a verificação se faz uma hora, várias horas ou dias após). Dependendo da tarefa (memorizar num espaço curto ou longo) pode-se disiinguir a memória breve e longa, embora seja relativa a distinção dessas duas formas de memória. A atividade mnésica é uma formação específicamente hu­ mana, que não ocorre nos animais. N o processo de formação da habilidade ou do reflexo condicionado, provoca-se no ani-

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mal urna determinada atividade que, ao repetir-se, se conserva, embora só no homem o processo de memorização se torne ta­ refa especial e a fixação do material na memória bem como o apelo consciente para o passado com a finalidade de me­ morizar o material aprendido constitui uma forma especial de atividade consciente. Desde o início, uma das principais tarefas da Psicologia consistiu em medir o volume de memória acessível ao homem, a rapidez com que ele pode memorizar o material e o tempo durante o qual ele pode conservá-lo na memória. Essa tarefa foi difícil em todos os sentidos. Para medir a memória “pura”, é necessário afastar to­ das as influências complicadoras que sobre ela exerce a elaboração intelectual do material. É sabido que a assimilação do material, a organização de elementos isolados num sistema integral pode ampliar a possibilidade de memorização enquanto organização de ele­ mentos perceptíveis numa estrutura integral organizada: o vo­ lume da percepção. Ao medirmos a memória, devemos to­ mar todas as medidas para que o material que nossos sujei­ tos memorizam não seja por eles inserido em estruturas semânticas (isto tomaria impossível a medição da memória “pura” e impediria distinguir as unidades capazes de expri­ mir o volume de memória). N o entanto essa tarefa de afastar do estudo da memó­ ria qualquer possibilidade de organização do material em cer­ tos sistemas semânticos é justamente a mais difícil. Ao me­ morizar o material sugerido, o sujeito sempre tenta reuni-lo em determinados grupos semânticos, ligar por associações os elementos isolados isto permite medir o volume de memória “pura”, separando-as da codificação intelectual dos elemen­ tos, formando unidades maiores. A tarefa de medir o volume de memória em sua forma mais pura foi resolvida no despertar da Psicologia experi­ mental por Ebbinghaus. Para estudar o volume de memó­ ria, ele resolveu propor a um sujeito várias sílabas sem sen­ tido (sav, hok, pin, dun, etc.) que davam as mínimas possi­ bilidades de assimilação e formação de associações. Propon­ do ao sujeito memorizar dez, doze sílabas e ressaltando o número dos componentes memorizados da série, Ebbinghaus o adotou como volume da memória “pura”. 6 ')

Repetindo o teste várias vezes consecutivas e registran­ do um número dos componentes memorizados em crescimen­ to paulatino, Ebbinghaus obteve uma curva crescente do número de elementos memorizados que foi por ele denomi­ nada curva da aprendizagem decorativa. Por último, ao verificar o número de componentes reti­ dos alguns minutos, horas ou dias após, ele pôde observar que caía o número de elementos retidos e isto lhe permitiu regis­ trar a curva do esquecimento ou da extinção dos vestígios da memória. Os dados obtidos por Ebbinghaus se converteram no material básico, que caracteriza os processos da memória hu­ mana em suas formas mais simples. A par com a medição dos limiares das sensações, esses experimentos lançaram as bases da Psicologia experimental científica. Quais foram as leis básicas da memória descobertas por esses experimentos? O primeiro resultado dessas pesquisas foi o estabeleci­ mento de um volume médio de memórict, que caracterizava o homem. . • Verificou-se que, após a primeira leitura, o homem me­ moriza facilmente uma média de 5-7 elementos isolados: esse número oscila consideravelmente e se as pessoas dè memó­ ria fraca retêm de uma só vez apenas 4-5 elementos isolados, as pessoas de boa memória são capazes de reter 7-8 elemen­ tos isolados sem sentido ¡mediatamente após a primeira lei­ tura. Verificou-se mais tarde que o volume de memória varia dependendo do método de apresentação do material. As pessoas com predomínio da memória auditiva memori­ zam mais elementos se as sílabas sem sentido lhes forem li­ das em voz alta; as pessoas com predomínio da memória visual memorizam mais elementos se estes lhes são apre­ sentados em forma escrita. É verdade que as diferenças nas memórias auditiva e visual não são muito consideráveis e os experimentos realizados dão fundamentos para constatar ape­ nas uma leve intensificação da memória visual com a idade, o que está possivelmente relacionado com o procer so de do­ mínio da escrita. É característico que a diferença da memó­ ria visual e auditiva, que nas pessoas normais pode se ma­ nifestar apenas em formas não acentuadas, nas atecções ce­ rebrais podem manifestar-se em formas especialmente níiidas. Os experimentos de Ebbinghaus permitiram estabelecer

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importantes leis no processo de aprendizagem decorativa do material. Com a apresentação repetida da mesma série de 12-15 elementos, o número de elementos retidos aumenta paulati­ namente e com isto toma-se possível deduzir uma curva do número crescente de componentes retidos ou a curva da aprendizagem decorativa. Foi característico o fato de que a curva da aprendizagem decorativa teve carátei regularmente crescente nos sujeitos normais, retendo-se ou crescendo ini­ cialmente para depois começar a cair nas pessoas em estado de forte estafa. Nas pessoas com falhas de memória (na ve­ lhice, por exemplo) ela subia com muita lentidão e parava praticamente a sua ascensão. Era natural que a curva da estagnação mudasse essencialmente dependendo da extensão da série a ser decorada e se com a apresentação de uma série de 10 palavras ela chegava muito rapidamente ao limi­ te (após 3-4 repetições muitos sujeitos começavam a reter 10 palavras), com a apresentação de 20 ou 30 palavras a aprendizagem decorativa tinha duração bem maior que, via de regra, chegava a uma reprodução completa inclusive de­ pois de muitas repetições. Dados essenciais foram obtidos na verificação da dura­ ção da retenção do material decorado e da maneira como ocor­ re o seu esquecimento paulatino após diferentes intervalos de tempo. Para este fim Ebbinghaus propôs aos sujeitos decorar uma determinada série de elementos e verificou em seguida o núme­ ro desses elementos que os sujeitos retinham após certo intervalo. Esses experimentos permitiram mostrar que o material de­ corado é retido inteiramente apenas durante um tempo relati­ vamente curto, após o que começa a ser esquecido e a curva que reflete o número de elementos retidos desce bruscamente. Posteriormente diminui esse ritmo de esquecimento de vestígios e alguns dias após pequeno número de elementos retidos con­ tinua praticamente o mesmo. É característico que a curva do esquecimento depende da estabilidade da aprendizagem decorativa (número da repetição sem erros da série nessa aprendizagem), diminuindo bruscamen­ te o ritmo do processo de esquecimento da série sólidamente decorada, dependendo também do nível de organização da série em sistemas assimilados (o esquecimento da série de sílabas

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¡■'■rri sentido é bem mais rápido do que o esquecimento da série de palavras organizadas em certas estruturas semânticas). Cabe lembrar, por último, que a conservação do material decorado depende altamente daquilo que preencheu o tempo do sujeito no intervalo entre a aprendizagem decorativa e a recor­ dação. Se esse intervalo foi preenchido pela vigília e por tra­ balho intelectual, o esquecimento do material decorado se pro­ cessava bem mais rapidamente, processando-se bem mais len­ tamente se o intervalo era preenchido pelo sono. Os dados mais importantes, que nos aproximam da com­ preensão dos mecanismos íntimos da memória, foram obtidos no estudo da dependência entre os resultados da memorização e o volume da série apresentada, bem como na análise atenta da dependência da retenção do esquecimento dos elementos da sé­ rie proposta em relação ao lugar que eles ocupam nesta série. As pesquisas mostraram que se a série de 5-6 elementos é inteiramente recordada após a primeira apresentação, o au­ mento da série proposta não leva ao aumento mas à redução do número de elementos retidos. Assim, na apresentação de 4-5 números, o sujeito os retinha plenamente; na apresentação de 7-8 números ele retinha apenas 70%; na apresentação de 9-10 números, 40%; na apresentação de 10 números, apenas 23%; a apresentação de uma série de 11-13 números levou a que o número dos elementos retidos caísse para 2-3%. Resultados análogos foram obtidos em outra expressão: verificou-se que se uma série de 6-7 elementos (palavras) era retida já depois de uma apresentação, a plena retenção da série de 12 elementos já reoueria 16 repetições, a aprendizagem o'ecorativa da série de 16 elementos. 30 reoetições. da série de 24 elementos. 44 repetições e da série de 26 elementos, 65 repetições. Dados análogos foram obtidos na anrendizagem decorativa de séries de diferentes números de sílabas. Os dados obtidos mostram de maneira convincente que o aumento do número inicial de elementos memorizáveis não é indiferente para a sua memorização, que o número dos ele­ mentos retidos não aumenta na dependência linear face à gran­ deza da série inicial e que. ao contrário, o aumento do volu­

me dn série inicial leva à retenção, à inibição do processo de memorização. Dados especialmente importantes foram obtidos com uma anâlire atenta da denendência que se verifica na retenção dos elementos dependendo do lugar que ocupam numa série.

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Como mostraram as pesquisas, os elementos da série pro- • posta são retidos de maneira bem diversificada. Via de regra, os primeiros e os últimos elementos da série são retidos de

modo bem mais frequente que os elementos intermediários da série. Esse fato, que em Psicologia recebeu o nome de fato da extremidade, é de grande importância de princípio. Ele mostra que a retenção e a reprodução dos elementos deco­ ráveis ocorrem sob a influência inibitória que elos isolados exer­ cem uns sobre os outros. Os primeiros elementos sofrem in­ fluência inibitória apenas nos sucessivos, enquanto os elemen­ tos finais da série sofrem influência inibitória apenas nos elos antecedentes; diferentemente disto, os elementos intermediá­ rios da série sofrem influência inibitória tanto dos elos an­ tecedentes quanto dos posteriores, razão pela qual sua repro­ dução é bem pior. A influência inibitória dos elos antecedentes da série deco* rável sobre os posteriores é chamada de Psicologia de inibi­ ção pró-ativa; a influência inibitória dos elementos posteriores sobre os anteriores é chamada de inibição retroativa. Depois do que acaba de ser dito, na influência inibitória do choque sobre os vestígios posteriores e anteriores, o mecanismo da influência dos dois vestígios de inibição sobre a consolidação dos dois vestígios se torna bastante nítida. Os fatos expostos são de grande importância para a psi­ cologia da memória, pois propiciam uma resposta plena à per­ gunta: quais são os mecanismos que servem de base ao es­

quecimento? Durante muitos anos existiram na Psicologia duas teorias que explicavam as causas do esquecimento. Uma delas era chamada de teoria da extinção permanente dos vestígios (trace decay) , a outra, de teoria da inibição interferente dos vestígios. De acordo com a primeira teoria, os vestígios deixados no sistema nervoso por essas ou aquelas influências se extinguem paulatinamente, obliterando-se as respectivas influências (ou emoções). Por isto o esquecimento é um processo que ocorre naturalmente, um processo passivo. A segunda teoria abor­ da a solução do problema das causas do esquecimento. Ela parte da tese de que os vestígios deixados por essas ou aque­ las excitações, permanecem no cérebro por tempo bem mais longo, às vezes por muitos anos (fato confirmado por testes de hipnose, nos quais é possível provocar lembranças antigas, às vezes da infância, que pareciam ter desaparecido há mui-

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to tem po); o esquecimento de impressões ou vivências é ex­ plicado por essa teoria como resultado da influência de efei­ tos secundários “interferentes”, que inibem o aparecimento desses vestígios. Essas influências inibitórias podem apresen­ tar duplo caráter: partem de efeitos ¡mediatamente anteriores ao momento do registro dos vestígios (efeitos da inibição próativa) tanto de efeitos dos vestígios ¡mediatamente posteriores ao momento do registro (inibição retroativa). É fácil perceber que essa segunda teoria considera o es­ quecimento um processo ativo e acha que este não está “loca­ lizado” no registro mas na reprodução dos vestígios da ex­

periência passada. Essa suposição é confirmada por dois grupos de fatores. O primeiro deles é o fato da influência inibitória do tra­ balho da obstrução sobre a reprodução dos vestigios. Pesquisas especiais, nas quais o intervalo entre a aprendizagem decora­ tiva e a reprodução foi preenchido pela memorização das sé­ ries de fora, confirmam a tese da influência inibitória dos efei­ tos interferentes. A tese segundo a qual o esquecimento se baseia não tan­ to na debilidade de uma extinção natural dos vestígios quanto na influência inibitória dos agentes interferentes, é confirma­ da também pelo último fato que recebeu em Psicologia a de­ nominação de reminiscência. Esse fato consiste em que a reprodução dos vestígios, que é inacessível imediatamente após a aprendizagem decorativa de uma série, toma-se acessível após certa pausa durante a qual o cérebro consegue repousar. Por isto, por mais parado­ xal que pareça, o volume do material reproduzido após certo intervalo pode ser maior do que o volume do material da reprodução imediata. O esquecimento se deve não tanto ao resultado da ex­ tinção dos vestígios quanto ao resultado da inibição destes por influências interferentes encadeadas; a obliteração desses fa­ tores inibitórios (repouso do córtex) leva a que os vestígios provisoriamente inibidos comecem a manifestar-se.

Influência da organização semântica sobre a memorização Até agora examinamos as leis básicas da memorização e. da reprodução das séries constituídas de elos isolados.

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São internamente distintas as leis que caracterizam a re­ cordação e a reprodução da informação, organizada em es­ truturas semânticas integrais. O fato principal consiste em que, como ocorre no cam­ po da percepção, a organização dos elementos cm estruturas semânticas ( lógicas) integrais amplia substancialmente as pos­

sibilidades da memória e toma incomparavelmente rnais está­ veis os vestígios da memória. Essa tese pode ser ilustrada por um exemplo. Suponhamos que temos de recordar uma série de 18 números isolados: de zeros e unidades. (a) 101000100111001110 É natural que a memorização de uma série de ele­ mentos homogéneos que se alternam casualmente repre­ senta grandes dificuldades e requer um grande número de repetições. Agora unifiquemos esses números a princípio em pares e depois em triplos. (b) 10 10 00 10 01 11 00 11 10 (c) 101 000 100 111 001 110 Ao invés de 18 unidades para memorização, na série (b) temos 9 e na série (c) apenas 6. Naturalmente a memorização será mais fácil e a aprendizagem decora­ tiva requererá bem menos tempo. Unifiquemos todo esse material em grupos ainda maiores, constituídos de 4 números e posteriormente de 5. (d) 1010 0010 0111 ООП 10 (e) 10100 01001 11001 110 Como resultado de toda essa transformação, todo o material passa a incluir, ao invés de 18 números isola­ dos, apenas 5 grupos (d) ou 4 grupos (e ). É natural que esse reforço facilitará posteriormente a memo­ rização. tomando-se necessárias apenas duas ou três repetições para a aprendizagem decorativa dessa série. Simplificação análoga da tarefa mnésica e amplia­ ção do volume da memória podem ser obtidas através da organização de uma série de palavras isoladas num sistema semântico. É pouco provável que alguém con­ siga memorizar de uma só vez 10 palavras isoladas, man­ tendo a necessária ordem de sua reprodução: noite-bos-

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que-casa-janela-gato-mesa-bolo-som-agulha-fogo. No en­ tanto basta organizar esta série de palavras num sistema semântico para que a tarefa se torne facilmente realizada. Л noite, nura bosque numa casa pela janela entrou um gato, pulou sobre a mesa, comeu um bolo mas que­ brou o prato, ouviu-se um som; ele sentiu que um frag­ mento do prato lhe espetou a pata como uma agulha e sentiu na pata algo queimando como fogo. Neste caso, a recordação deixa de ter caráter de re­ gistro mecânico imediato de elementos isolados; ao tra­ balho de memorização antecede o trabalho de transfor­ mação lógica ou codificação da série. iNo entanto esse trabalho é compensado pelo fato de que a série de 10 elementos (que agora se transforma numa estrutura se­ mântica) é memorizada de uma só vez e, o que é igual­ mente importante, pode reproduzir-se facilmente um dia ou uma sem am após sem que se perca sequer um elo e sem qualquer deslocamento dos elementos incluídos nesse grupo semântico. Vê-se facilmente que nos dois exemplos citados descre­ vemos modelos do processo de codificação lógica do mate­ rial memorizavel, que caracteriza toda a memorização de sen­ tidos e é a forma principal de atividade mnéstica do adulto, que assimila o conteúdo de um manual e procura interpretar o material didático, etc. A o mesmo tempo, vê-se facilmente que esse processo de memorização semântica é, pela estrutura psicológica, inteira­ mente diferente do processo de memorização mecânica, pois compreende diversas operações lógicas auxiliares e, em essên­ cia, se assemelha ao processo de pensamento lógico com a única diferença de que os procedimentos deste pensamento visam não apenas assimilar as conexões essenciais e as correlaçõees dos elementos mas também tornar esses elemen­ tos acessíveis à conservação na memória. A medida que se desenvolve ou se estabiliza, o processo de memorização lógica sofre uma série de mudanças substan­ ciais facilmente observáveis caso examinemos as etapas pelas quais passa a pessoa que estuda esse ou aquele livro. A pessoa lê iniciaimente o livro, destaca as suas partes essenciais, em seguida põe o conteúdo essencial do livro num sumário que posteriormente se resume e se transforma

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num esquema lógico do livro; o processo de assimilação do material pode considerar-se acabado depois que todo o con­ teúdo de um longo artigo ou livro pode ser inserido num es­ quema lógico muito breve porém substancial. 0 processo de assimilação do material lógico nem sem­ pre apresenta esse caráter lógico; o leitor experiente não ne­ cessita de todas essas fases intermediárias dessa atividade des­ dobrada, o processo de “codificação” do material lido pode reduzir-se e limitar-se a algumas observações breves pelas quais o conteúdo da matéria lida pode ser plenamente resta­ belecido. Em alguns casos, nos leitores muito experientes isto se torna desnecessário e o processo de codificação (ou de or­ ganização lógica) do material assimilado começa a transcor­ rer com rapidez e sem quaisquer apoios externos. O processo de memorização lógica, que aproxima a ati­ vidade mnésica ao pensamento, reorganiza essencialmente tanto o processo de “aprendizagem decorativa” quanto o processo de “memorização”. Ambos começam a ter caráter indireto, mediato, e é justamente nesse caráter que torna a recorda­ ção altamente eficaz tanto pelo volume do material que se torna acessível à memorização quanto pela estabilidade do material memorizado e pela possibilidade de reproduzir dentro de intervalos longos. É característico que os resultados dessa memorização logicamente organizada requerem um número bem menor de repetições para a aprendizagem decorativa, são em medida incomparavelmente inferior suscetível de influência inibitória dos fatores interferentes e não manifestam em for­ ma tão nítida ocorrências de reminiscência como a memo­ rização mecánica dos elos isolados e desconexos. A via da memorização mecânica à memorização através da organização lógica do material é a via fundamental de desenvolvimento das formas complexas de memória, que ocor­ re igualmente na ontogênese e no processo de assimilação dos procedimentos da atividade mnésica no processo de apren­ dizagem.

Dependência da memorização face à estrutura da atividade Em todos os casos que abordamos, a memorização ou a aprendizagem decorativa foi objeto de tarefa especial colo-

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cada ante o sujeito е as leis básicas da memorização e re­ produção foram as leis da atividade mnésica especial. N o entanto surge uma pergunta: a que leis se subor­ dina o processo de memorização nos casos em que não se atribui ao sujeito a tarefa especial de memorizar ou aprender de cor o materia1 correspondente e quando a memória está incluída numa outra atividade que prescreve ao sujeito ou­ tras tarefas? O estudo dessas leis é tarefa de uma seção especial da Psicologia, que estuda os fenômenos habitualmente designa­ dos pelo termo memorização imediata ou memorização invo­

luntária. Imaginemos uma pessoa caminhando pela rua, com pres­ sa de chegar ao trabalho. Ela passa ao lado de vitrines, ao lado de operários que consertam uma linha de bonde, ao lado tie jornaleiros e bancas de jornais. O que é que lhe fica na memória depois do caminho percorrido? Os fatos mostram que nenhum dos detalhes descritos fica em sua memória; mas se ele tem pressa de chegar ao traba­ lho e, economizando cada minuto, entra numa rua interdita­ da, ele recordará bem esse detalhe. Semelhantes observações nos convencem de que o homem memoriza antes de tudo aquilo que está relacionado com o /¡7n de sua atividade, aquilo que contribui para atingir o objetivo ou serve de obstáculo. Aquilo que está relacionado com o objetivo ou com o objeto da atividade motiva a reação orientada, torna-se dominante e é memorizado, não se obser­ vando nem se conservando na memória os detalhes secundá­ rios que não têm relação com o objeto principal da atividade. É por isto que a pessoa que participa de uma discussão re­ corda cada pronunciamento de seus participantes, a posição de um, o caráter das objeções; mas ela pode não se lembrar absolutamente se as janelas do auditório estavam abertas ou fechadas, em que lugar estava o armário, se havia jornais nas mesas, etc. O ettudo das regras a que se subordina a memorização involuntária é de grande importância tanto para a teoria da memória como para uma série de áreas práticas da Psicologia, particularmente para a Psicologia dos depoimentos; os dados defcta área da Psicologia são justamente os que permitem en­ tender'porque alguns depoimentos de testemunhas casuais de

n

uma ocorrência são tão pobres e às vezes insuficientemente fidedignos. A análise das leis que determinam a memorização invo­ luntária foi objeto dc diversos estudos de psicólogos soviéti­ cos entre os quais são de importância especialmente grande as pesquisas de I. I. Zintcbenko e A. A. Smirnov. Zintclienko realizou uma série dc experimentos especiais, nos quais mostrou a dependência que existe entre a memo­ rização involuntária e a tarefa para a qual foi dirigida a atividade. Ante o sujeito havia um conjunto de cartões; em cada um deles havia o desenho de objetos, plantas, ani­ mais, etc. No canto de cada cartão havia um número. Numa série de testes o sujeito tinha a tarefa de dis­ por os cartões em grupos, classificando os objetos neles representados; na segunda série de testes a tarefa dele consistia em distribuí-los na ordem dos números escri­ tos no canto de cada um. O resultado dos testes mos­ tra que a retenção na memória dos desenhos ou dos numeros depende altamente da orientação da atividade do sujeito: os sujeitos, cuja tarefa era classificar os car­ tões pelo conteúdo, recordavam-se bem dos objetos aVi desenhados mas quase não se lembravam dos números escritos nos cantos; os sujeitos que dispuseram os car­ tões na ordem dos números crescentes, memorizaram os números mas não conseguiram reter na memória os de­ senhos dos cartões e o lugar em que estava situado o cartão com esse ou aquele desenho. Resultados semelhantes foram obtidos nos testes de Smir­ nov, que mostram o quanto a memorização involuntária de­ pende da orientação da atividade do sujeito. Os sujeitos receberam a tarefa de resolver vários proble­ mas, sendo que a atividade transcorria em condições diferen­ tes: um grupo de sujeitos resolvia tarefas acabadas, outro gru­ po devia organizar por si mesmo as tarefas de acordo com determinado regulamento. Terminada a atividade, verificou-se até que ponto ambos os grunos de suieitos retiveram os números que maninularam. Como mostraram os resultados do teste, os dois grupos Tètivcram de modo diferente os números com os quais opera­ ram: os que resolveram tarefas acabadas retiveram uma

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quantidade relativamente pequena de números, os que deviam organizar por si mesmos as tarefas, levando em conta as ne­ cessárias correlações dos números retiveram quase três vezes mais números do que o primeiro grupo. Esses dados mostram que o êxito da retenção do mate­ rial na memória depende em alto grau do caráter do objetivo da atividade, da tarefa proposta ao sujeito. O êxito da memorização involuntária não depende ape­ nas da tarefa da atividade mas também do caráter da ativi­ dade e do grau de sua complexidade e operância. Esse fato é demonstrado por outros experimentos dos mesmos autores. Propõe-se aos sujeitos três tipos de trabalho: esco­ lher para as palavras dadas palavras complementares da mesma letra, escolher para elas palavras análogas pelas propriedades e por último palavras que estejam ligadas a elas pelo conteúdo. O número de palavras re­ tidas na memória nos dois últimos testes é duas vezes su­ perior ao número de palavras retidas após o primeiro teste. Manifesta-se com toda evidência o fato de que uma ati­ vidade intelectual complexa leva ao mesmo tempo a um efei­ to bem maior da retenção involuntária do material corres­ pondente na memória. Dados análogos foram obtidos no es­ tudo da maneira pela qual o material complexo assimilado é retido dependendo do grau de complexidade da atividade in­ telectual desenvolvida com o auxílio desses dados. Propôs-se aos sujeitos um variado trabalho com uma série de trechos com sentido; em uns casos eles deviam repetir três vezes esses trechos, em outros, interpretá-los de acordo com o plano que lhes fora proposto. O trabalho de análise do conteúdo dos trechos me­ diante a aplicação do plano lógico proposto aos sujeitos leva a que escolares da 5.® série e estudantes de nível su­ perior retenham material bem mais volumoso do que com a repetição mecânica embora tríplice dos trechos. Os fatos aqui apresentados mostram que a memorização involuntária depende da complexidade da atividade intelec­

to

tual e quanto mais complexa é essa atividade tanto mais se retém o material a cujo trabalho ela foi dedicada. Os testes, que mostraram esse fato, consistiram no seguinte. Os sujeitos receberam a tarefa de realizar tra­ balhos variados com os trechos com sentido: em uns casos eles deviam repetir três vezes os trechos, nou­ tros casos, analisar o conteúdo destes, aplicando um plano pronto; no terceiro caso, a tarefa consistia em compor de maneira autónoma o plano nesses trechos. Depois de cada um desses trabalhos sugeria-se a eles dizer que trechos haviam memorizado; questão se­ melhante era repetida alguns minutos após a realização do trabalho. Resultados da reprodução adiada foram diferentes em todos os três casos. Se no teste de repetição tríplice do trecho, o sujeito reproduzia imediatamente, após intervalo dado, o núme­ ro de detalhes igual ao da reprodução imediata, o número de detalhes reproduzidos após o adiamento nos dois últimos testes foi consideravelmente maior do que na reprodução imediata. Isto significa que a atividade intelectual complexa, relacionada com a aplicação do plano pronto ou com a confecção autónoma do plano do trecho não leva apenas a uma memorização melhor deste (como mos­ traram os fatos anteriores mas também toma a reten­ ção do material mais sólida e, em sua reprodução pror­ rogada, permite recordar inclusive mais detalhes do que se conseguiu reproduzir na enquete realizada imediata­ mente após a realização do teste). Os fatos aqui apresentados mostram que o trabalho in­ telectual com o material leva a uma retenção bem mais sóli­ da e completa deste do que a retenção na aprendizagem de­ corativa mecânica, permitindo, deste modo, avaliar o efeito

mnésico da atividade intelectual. O efeito da retenção involuntária do respectivo material na memória depende tanto da orientação e da complexidade intelectual da atividade quanto do seu processo e do seu co­

lorido emocional.

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O fato da dependencia da memorização face ao processo de atividade foi minuciosamente estudado pelo famoso psicó­ logo alemão Kurt Lewin. É sabido que uma intenção qualquer se retém sólidamen­ te na memoria enquanto a tarefa está sendo executada e de­ saparece da memória tão logo se cumpre a tarefa. Lembra­ mos a intenção de depositar uma carta no correio enquanto não a depositamos; mas basta cumprirmos a intenção para que a lembrança da carta desapareça da nossa memória. É justamente por força dessa regra que qualquer tarefa se conserva na nossa memória enquanto não se executa a habilidade correspondente e por isso mesmo os vestígios da atividade não acabada e não cumprida se mantém melhor na memória do que os vestígios da atividade acabada. Esse fato da melhor conservação de ações inacabadas na memória foi bem mostrado por B. W. Zeigamik, discípula de Lewin, e entrou na Psicologia com o nome de “efeito de Zeigamik”. Os experimentos e estudo da dependência da re­ tenção do material na memória em relação ao grau de conclusão da atividade consiste no seguinte: propõe-se ao sujeito a execução de uma série de tarefas (formar figuras com fósforos, pôr colares em caixas diferentes, resolver problemas aritméticos, etc.). O cumprimento de algumas dessas tarefas é interrompido de forma a que o sujeito não as conclua; outras atividades ele con­ segue levar até o fim. Após o término dos testes propõe-se ao sujeito re­ cordar as ações por ele executadas. Resultados mostram que as atividades não concluí­ das são recordadas com frequência duas vezes maior do que as atividades concluídas. A melhor recordação das ações não acabadas explica por­ que é mais fácil recordar uma obra de conteúdo pungente e fábula inacabada e porque a lembrança se mantém sólida en­ quanto não se conclui a leitura da obra. Essa memorização explica o fato de que as tarefas não solucionadas continuam sólidamente retidas na memória enquanto se mantém a tensão que desaparece com a solução. O que acaba de ser dito nos leva ao último fator deter­ minante da estabilidade da memorização involuntária, isto é,

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à influência do colorido emocional do material memorizável. Sabe-se que os estados emotivos de colorido emocional são re­ tidos na memória de modo bem mais produtivo do que as impressões indiferentes. Esse fato parece dever-se a que as im­ pressões de colorido emocional geram um elevado reflexo ori­ entado e ocorrem sob um tônus cortical mais elevado e à circunstância de que o homem tende a voltar de modo bem mais freqüente a tais impressões; neste sentido, as vivências de colorido emocional geram a mesma tensão elevada que quaisquer ações inacabadas. Mas a melhor retenção das ações do colorido emocional na memória também tem limites. É fato bem conhecido que os estados afetivos acentuados, angustiantes insuportáveis para o sujeito, são atividade mibívels, “deslocáveis” da consciência e esquecíveis pelo sujeito. Freud deu atenção a esse fato, ao mostrar um grande número de observações que o homem tende a “reprimir” os estados emotivos desagradáveis (incompatíveis com seu pro­ gramas) e angustiantes, que se inibem e se tomam essência de seu inconsciente, manifestando-se apenas nos estados de atividade reduzida: em forma de sonhos ou lapsos na escrita, ressalvas, etc. que surgem na abstração da atenção. Os fatos da repressão dos estados afetivos insuportáveis dos eventos inconscientes constituem uma das mais importan­ tes conquistas da Psicologia moderna. Seus mecanismos fi­ siológicos se devem à inibição que surge nas excitações superfortes e protege o córtex contra novas excitações excessivas. É justamente por isto que os mecanismos fisiológicos, que ser­ vem de base ao “deslocamento” os estados emotivos insupor­ táveis da memória, se aproximam dos mecanismos de inibi­ ção “parabiótica” ou “defensiva”.

Peculiaridades individuais da memória ' Até agora nós nos detivemos nas leis gerais da memória humana. Mas existem diferenças individuais que diferenciam a'memória de umas pessoas da memória de outras. Essas diferenças individuais na memória podem ser de dois tipos. Por um lado, a memória de diferentes sujeitos se disfihgúc pela predominância de uma modalidade visual, auditiva

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ou motora; por outro lado, a memória de diferentes pessoas pode distinguir-se também pelo nível de organização. Ê sabido que em umas pessoas predomina a modalidade visual de memória, em outras, a auditiva, em terceiras a mo­ tora. Isto é facilmente verificado se compararmos como dife­ rentes pessoas registram a mesma estrutura visual e se anali­ sarmos os procedimentos pelos quais elas recordara um con­ teúdo (por exemplo, um número de telefone ou um so­ brenome) . Fatos análogos podem ser observados na memória audi­ tiva. Aqui as diferenças individuais são muito grandes, e se na história foram observados casos em que uma obra musical complexa foi ouvida uma vez e repetida inteiramente por pes­ soas com acentuada memória auditiva, são conhecidas muitas observações em pessoas que se mostram quase inteiramente in­ capazes de memorizar uma melodia durante uma fração míni­ ma sequer de tempo. Nas referidas diferenças individuais da memória manifes­ tam-se tanto as características genotípicas como a atividade profissional humana, que leva a um elevado desenvolvimento tla memória visual, auditiva e, às vezes, gustativa. Os traços característicos da memória podem manifestar-se ainda no fato de que diferentes sujeitos resolvem de modo di­ ferente, uma mesma tarefa, como, por exemplo, a memorização do número de um telefone ou de um sobrenome. Sabe-se que compositores famosos (Prokófyev, por exemplo) diziam que memorizam números de telefones como memorizam melodias conhecidas, ao passo que outros sujeitos vêem o número de um telefone como se ele estivesse escrito num quadro e o me­ morizam visualmente. N o entanto são especialmente importantes as diferenças

dos modos de memorização e do nível de organização da me­ mória de pessoas diferentes. Como mostram as observações, numas pessoas predomi­ nam as formas sensoriais (visuais, auditivas, motoras) indire­ tas de memorização, ao passo que, noutras, a memorização tem, predominantemente, o caráter de uma complexa codifi­ cação do material, de transformação deste em esquemas lógicoverbais. Era justamente o que Pavlov tinha em vista ao divi­ dir as pessoas em dois grupos, um pertencente ao tipo de ‘pensadores” e o outro ao tipo de “artistas”. Nem de longe

,14

as diferenças individuais da memória são sempre simples pe­ culiaridades particulares, que não ultrapassam os limites dos processos mnésicos. Freqüen temen te elas levam a mudanças consideráveis na estrutura de toda a personalidade do homem. t. 1 e A. R. Luria descreveu um desses casos com o fa­ moso mnemonista soviético S. A pessoa descrita apresentou uma memória eidética impressionante pelo potencial. Sem dificuldade me­ morizava imensos quadros de números e palavras e con­ tinuava a "vê-los”, “sentindo-os” simultaneamente em for­ ma de sons, matizes de som (cinestesias). Por isto não lhe era difícil reproduzir um imenso material após con­ sideráveis lapsos de tempo, às vezes após muitos anos. Para S., entretanto, era essencial que as peculiari­ dades incomuns da sua memória se refletissem na es­ trutura do seu pensamento e nas peculiaridades da sua personalidade. Dotado de uma extraordinária memória direta, S. resolvia facilmente tarefas difíceis se sua solução pudes­ se ocorrer num plano direto e se baseasse na possibilida­ de de fixar visualmente o material e operar com imagens diretas. No entanto era-lhe freqiientemente impossível superar a dificuldade de resolver tarefas abstratas que requeriam abstrair as imagens diretas, o que no plano direto era impossível. Por isto, compreender estruturas lógico-gramaticais complexas e abstratas era-lhe fre­ qiientemente mais difícil do que às pessoas não dotadas de tão forte memória figurativa direta. Contudo o que representa maior interesse é a per­ sonalidade de S. Ele tem noções figurativas diretas tão fortes que o mundo de sua imaginação confunde-se, às vezes, com o mundo das impressões reais; são justamen­ te esses limites entre o mundo real e o imaginário, tão nítidos no homem comum, que nele são muito esbatidos. Por isto o comportamento de S. se distingue amiúde pela ausência de praticidade, pela confusão da realidade e da fantasia; o desenvolvimento superintensivo da memória figurativa direta levou à formação de traços especiais de sua personalidade no conjunto.

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Métodos de estudo da memória O estudo da memória pode ter por finalidade um dos três problemas: estabelecer o volume e a estabilidade da me­ morização, caracterizar a natureza fisiológica do esquecimen­ to e descrever os níveis possíveis da organização semântica

da memória. Para resolver a primeira tarefa empregam-se os méto­ dos de retenção de vários dos elementos isolados e desco­ nexos (sílabas sem sentido, palavras, números ou figuras geo­ métricas visualmente apresentadas). Os métodos de estudo do volume e da estabilidade da memória elementar apresenta algumas variantes. Situam-se entre essas variantes, por um lado, os méto­ dos de pesquisa da retenção de vários elementos desconexos e, por outro, os métodos de pesquisa da aprendizagem deco­ rativa de uma série longa (além dos limites) de semelhantes elementos. O primeiro desses métodos consiste em sugerir ao sujei­ to uma série crescente de números de elementos (sílabas, números ou palavras) e nropor-lhe reproduzi-los na mesma ordem em que foram dados.

pin soclt pig

cuv chon muv zin pack ou cush bov lav gur etc.

1 —б — 8 3 —5 —0 —9 7 2 1 8 0 eic.

Considera-se que о volume da memória imediata (breve) é o número máximo de elementos que o sujeito pode repro­ duzir após uma única apresentação e sem erros. Para estabelecer as diferenças entre a memória auditiva e a visual, as séries dadas podem ser apresentadas por via au­ ditiva ou visual. Uma variedade desse método é representada pelo ex­ perimento em que o sujeito recebe um determinado grupo de figuras geométricas (em ordem sucessiva ou simultaneamen­ te), devendo, em seguida, encontrar essas figuras entre gru­ pos de outras figuras (método de identificação) ou desenhâias (método de reprodução). O método de estudo da aprendizagem decorativa con­ siste em que o sujeito recebe uma longa série de sílabas des-

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conexas, palavras ou números, que ele não pode memorizar de imediato, devendo reproduzir os elementos memorizados em qualquer ordem.

pin znk mov din хак кип boch casa bosque gato mesa forno agulha bolo som ponte cruz IV 1 2 2) 1 2 3) 1 2 1) 2) 3)

3 3 3

1 2 3 1 2 3 1 2 3

4 4 6

4 5 5 etc. 4

4 5 5 4

5

6 7 6 7 8 6 7 4

Repete-se o experimento várias vezes (até 10 vezes), sen­ do que cada palavra reproduzida é assinalada por um número na oHem de sua reprodução. N o final do experimento traça-se a curva da aprendiza­ gem decorativa. Esta é avaliada pelo resultado global (o número de membros memorizados da série e o número de re­ petições necessárias à sua completa aprendizagem decorativa), pelo caráter da curva (sua rápida ascensão, a existência de oscilações, etc.) e pela estabilidade da ordem em que o su­ jeito reproduziu as palavras (isto permite estabelecer tanto as peculiaridades da “estratégia” da atividade mnésica do sujeito como a expressão do “fator de extremidade” de que já fala­ mos anteriormente). O estudo da natureza fisiológica do esquecimento coloca a tarefa de saber se o esquecimento tem por base a debilidade dos vestígios ou a sua inibição pelos agentes interferentes. Para responder a essa questão, citaremos uma série de es­ tudos nos quais, por um lado, verifica-se a capacidade de me­ morizar os vestígios de um dado núcleo em certo espaço de tempo (não preenchido por nenhuma atividade secundária) e, por outro lado, observa-se como a atividade de fora (interfefente) influencia a memorização dos vestígios. Os experimentos mais simples, relativos a esse grupo, con­ sistem no seguinte: (1) Propõe-se ao sujeito uma série breve de sí­ labas, palavras ou números, constituída de 4, 5 e 6

87

elementos; em uns casos sugere-se-lhe reproduzi-los na mesma ordem ¡mediatamente após recebê-los e, em ou­ tros, depois de uma pausa de 30 segundos, 1 minuto e 2 minutos. A debilidade dos vestígios se manifesta no fato de que, depois de repetir com êxito a série ¡mediata­ mente após a apresentação desta, o sujeito descobre di­ ficuldades em sua reprodução posterior e apresentará um número menor de elos reproduzidos ou reproduzirá elementos interferentes (relacionados pelo som ou o sen­ tido), ou irá remanejá-Ios, mudando a ordem em que foram dados. (2) Propõem-se ao sujeito as mesmas séries de 4, 5 e 6 elementos (sílabas, palavras e números), sugerin­ do-se a ele reproduzi-las imediatamente após recebê-las. Depois disto sugere-se que ele execute alguma ativida­ de secundária (por exemplo, que faça operações rela­ tivamente complexas de subtração e multiplicação), que ocupa o mesmo tempo que a “pausa vazia” (30 seg., I min., 2 min.); depois disto torna-se a pedir-lhe que repita a mesma série de elementos (sílabas, palavras e números) que lhe fora apresentada antes. A influência da atividade interferente (ou fator interferente heterogé­ neo) irá manifestar-se no fato de que, diferentemente do teste de “pausa vazia”, ele será incapaz de repro­ duzir o mesmo número de elementos que reproduziu anteriormente. (3) Propõe-se ao sujeito uma série breve de 3, 4 e 5 elementos (sílabas, palavras e números) e sua re­ produção; depois disto, propõe-se-lhe uma segunda sé­ rie desses mesmos elementos, que também deve ser re­ produzida. Em seguida pede-se que ele reproduza a pri­ meira (dada antes) série de elementos. A influência inibitória da atividade interferente ho­ mogénea irá manifestar-se no fato de que o sujeito ou será inteiramente incapaz de voltar à primeira série, ou será capaz de reproduzir um número conside­ ravelmente menor de elementos ou reproduzirá a série parcialmente composta por elementos da segunda série, isto é, apresentará a ocorrência conhecida em Psicologia pelo nome de contaminação.

/

Todos os testes aqui descritos (1, 2 e 3) podem repetir­ se várias vezes seguidas: isto permitirá ver em que grau su­ pera-se a reprodução perturbadora da influência do interva­ lo não preenchido, por um lado, e a influência inibitória da atividade interferente secundária, por outro. O confronto dos dados, obtidos na série que acabamos de descrever, com os resultados dos testes simples de reten­ ção dos elementos da série apresentada uma vez ou dos tes­ tes de aprendizagem decorativa permitirá que se tenha uma informação das peculiaridades da atividade mnésica bem mais completa do que a aplicação de apenas um dos métodos descritos. Para o estudo do nível de organização semântica acessí­ vel da memória, é comum aplicar os métodos de estudo da memorização mediata, elaborados por L. S. Vigotsky, A . N. Leôntyev e L. V. Zankov. O método da memorização mediata consiste em que o sujeito recebe a tarefa de usar para memorizar uma série de palavras e quadros auxiliares, relacionando logicamente cada palavra com um determinado quadro; feita essa parte do experimento, o sujeito deve examinar em seguida os qua­ dros selecionados, mencionando sempre a palavra para cuja memorização foi empregado um dado quadrado. Deste modo, o sujeito recebe não uma série de estímu­ los (palavras para serem memorizadas) mas duas séries, das quais a primeira (palavras a serem memorizadas) é objeto de memorização e a segunda (os quadros auxiliares) é um meio para a memorização. O procedimento seguinte avalia tanto o caráter das re­ lações semânticas auxiliares, que o sujeito estabelece entre as palavras e quadros, como o êxito da memorização das pa­ lavras segundo os quadros auxiliares escolhidos ou sugeridos. " O método da memorização mediata pode ser aplicado em duas variantes: uma livre e uma dependente. Na variante livre do experimento, mostram-se ao sujeito 25-30 cartões de loto, propondo-se em seguida palavras iso­ ladas; para memorizar cada palavra ele deve escolher uni dos cartões, que relaciona com uma palavra; depois da apre­ sentação de 12-15 palavras, o sujeito recebe em ordem casual quadros isolados, devendo sempre mencionar a palavra para cuja memorização foi escolhido o quadro.

89

Na variante dependente de experimento, o experimenta­ dor pronuncia a palavra a ser memorizada e apresenta ao sujeito um quadro, que ele deve usar como meio auxiliar para a memorização da palavra. Na primeira variante, propõem-se ao sujeito quadros que podem ser facilmente relacionados com uma dada pala­ vra (por exemplo, escola, o quadro “caderno”, a palavra “inverno”, o quadro “forno”) . Na segunda subvariante de experimento, levada a efeito com a finalidade de estabele­ cer-se a possibilidade de uma definição ativa e criadora das relações auxiliares, propõera-se ao sujeito quadros dificilmen­ te relacionáveis a uma dada palavra (por exemplo, a palavra “escola”, o quadro “pato”, a palavra “inverno”, o quadro “óculos”, etc.). O registro do experimento com a memorização mediata adquire o caráter:

palavra

qua d ro

relação

r Cp rod II' ção

1. escola

cad e rn o

n a escola escrcvc-ss cm c ad ern o s n o inverno usa-se óculos p a ra o lh a r para a neve com a fa c a corta-sc a cam c co m o m ach a d o c o ría -яс a lenha p a ra ace n d e r o fogo

c a d e rn o

4-

inverno

"f"

g arfo



2. in v ern o óculos 3. c a rn e

faca

4 . fogo

m ach a d o

avalia­ ção

len h a

A possibilidade de organização lógica do material se ma­ nifesta tanto na correta construção das relações auxiliares como no seu emprego enfático com o retorno às palavras inicialmente dadas através dos quadros usados. A deficiência da organização lógica da memória mani­ festa-se no fato de que o sujeito ou se mostra incapaz de estabelecer as relações auxiliares entre uma dada palavra e os quadros auxiliares ou no fato de que ele não pode voltar à palavra inicial e durante a verificação, quando observa atentamente o quadro, nega-se a dizer que palavra esse qua-

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dro representa condicionalmente ou, ao invés de reproduzir a palavra inicial, apresenta urna palavra qualquer, ligada por associação ao quadro escolhido. O método de estudo da memorização mediata 6 de gran­ de valor para a análise psicológica de diversas formas de retardamento mental. Uma variante específica do método de memorização me­ diata é o método conhecido do plctograma. Lê-se para o sujeito uma série de 12-15 palavras, que não podem ser representadas imediatamente (por exemplo, as palavras “duvida”, “desenvolvimento” ou “a menina está com frio”, “o garoto está com medo”, etc.); para memorizar essas palavras, o sujeito deve traçar um desenho condicional (sinal) e, após correr os olhos sobre este, deve lembrar-se da palavra ressaltada. Uma vez que as palavras sugeridas não podem ser representadas diretamente, o sujeito pode empre­ gar um pequeno sinal convencional ou representar uma si­ tuação que lembre a palavra dada. Os sujeitos normais usam facilmente o primeiro ou o segundo caminho (no que se manifestam as suas peculiari­ dades individuais). Os sujeitos mentalmente retardados não conseguem resolver essa tarefa ou desenham apenas objetos concretos, sem distinguir nestes os sinais característicos e in­ formativos, o que torna insolúvel a tarefa de memorizar a série proposta de palavras através dos pictogramas auxilia­ res. Os dois referidos métodos de estudo da memorização mediata podem ter grande importância diagnóstica.

Desenvolvimento da memória O desenvolvimento da memória na idade infantil é o que menos se pode considerar como um processo de crescimento quantitativo paulatino ou maturação. N o seu desenvolvimento, a memória passa por uma his­ tória dramática, plena de profundas transformações qualita­ tivas e mudanças de princípio tanto de sua estrutura quanto de suas relações mútuas com outros processos psíquicos. H á muitos fundamentos рата se supor que a capacidade de registrar e fixar vestígios nos primeiros anos de vida não

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6 inais fraca porém mais forte do que nos anos posteriores e que a memória direta (eidética) na criança é bem mais desenvolvida do que no adulto. Leon Tolstoy disse mais de uma vez que metade de todas as suas recordações se forma­ rá quase nos primeiros anos de vida. Mas, paralelamente à força, a memória de uma criança de três e quatro anòs de idade também tem as suas fraque­ zas: é difícil organizá-la, torná-la seletiva, ela ainda não é em nenhuma medida uma memória arbitrária capaz de me­ morizar o necessário, orientado para um dado fim, separan­ do os vestígios fixáveis dentre todos os outros. Isto se pode mostrar facilmente se propusermos a uma criança de 2,5-3 anos de idade memorizar e em seguida reproduzir 5-6 pala­ vras ou, propondo-lhe 5-6 quadros, pedir-lhe dizer quais foram justamente os quadros que lhe foram dados. Neste caso, percebe-se facilmente que a criança, a par com as pa­ lavras que lhe foram dadas (ou quadros), irá reproduzir outras a elas ligadas por associação e não pode interromper as suas associações secundárias reproduzindo seletivamente apenas a série necessária de indícios. O processo de memori­ zação arbitrária seletiva ainda não está pronto nessa idade e a possibilidade de subordinar a atividade mnemónica à ins­ trução verbal surge na criança apenas bem mais tarde, jun­ tamente com o desenvolvimento geral do comportamento orientado para um fim. Esse caráter contraditório do desenvolvimento, certa re­ dução da possibilidade da memória figurativa direta, junta­ mente com o aumento da capacidade diretiva dos processos mnemónicos são o primeiro traço característico do desenvol­ vimento da memória na idade infantil. O segundo traço distintivo do desenvolvimento da me­ mória são o desenvolvimento paulatino da memorização me­ diata e a transição de formas de memória imediatas e natu­ rais a formas mediatas e verbais. Esse fato fundamental do desenvolvimento da memória foi estudado minuciosamente por Vigotsky e seus colabora­ dores (Leôntyev e Zankov). Visando a ter uma idéia das mudanças qualitativas que .íofre a memória da criança na medida em que se desenvol­ ve, Vigotsky realizou duas séries de testes com crianças de diferentes idades. Na primeira série ele deu a uma criança a tarefa de memorizar imediatamente (sem quaisquer procedi-

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I mentos auxiliares) e reproduzir uma série de quadros au-, xiliares como meio de memorização das palavras, relacio­ nando cada palavra com o respectivo quadro através de uma ligação auxiliar qualquer. Os testes mostraram o quanto é complexo o caráter do desenvolvimento dos processos mnemónicos da criança. Um grupo de escolares de idade inferior conseguiu reter determinado número de palavras sem o uso de quaisquer pro­ cedimentos; no entanto os quadros, que se lhes propuseram como recurso auxiliar, não melhoraram o processo de me­ morização; as crianças dessa idade não conseguiram relacio­ nar por meio lógico-verbal o quadro proposto com a pala­ vra dada, declarando “aqui não tem dessas palavras” ou procurando localizar ¡mediatamente a representação da pala­ vra dada no quadro (quando se propôs a uma das crianças lembrar a palavra “sol” olhando para um quadro que repre­ sentava um samovar, ela apontou para uma pequena mancha clara no samovar e disse; “olhe o sol ali!”). Por isto o teste era uma espécie de trabalho complementar, que apenas abs­ traía a atenção da criança da memorização da palavra neces­ sária. Quando se pedia que a criança lembrasse pelo quadro a palavra correspondente, ela caía no total impasse, simples­ mente descrevia o quadro dado ou fazia as associações que lhe surgiam diante do quadro. Resultava daí que a operação, na qual o quadro auxiliar desempenhava a função de sinal para a memorização da palavra necessária, era substituída por uma operação mais simples e imediata de associações poste­ riores e o esquema A (palavra)

A (palavra)

era substituído por outro esquema mais elementar; A — X — X (do tipo da palavra “sol”; o quadro “samovar” é um samovar) ou A — X — Y (palavra “sol”; o quadro “samovar” signi-' fica tomar c h á ... ch aleira... xícara)

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A criança pequena ainda não tinha condições de estabelecer ou usar ligações auxiliares (“mnemotécnicas”) e no teste com o uso de quadros apresentava resultados não melhores mas às vezes até piores do que no teste de memorização imediata. Esses fatos permitiram estabelecer que a memorização da criança de idade pré-escolar, em sua maior parte, ainda tem caráter não-arbitrário (e por isto dificilmente dirigível). Outro quadro era o que se verificava quando os pesqui­ sadores faziam esse teste com escolares principiantes, e, mais tarde, com alunos das últimas séries. As crianças dessa idade tiveram, naturalmente, mais fa­ cilidade de dirigir os processos de sua memorização e por isto se desempenharam melhor do teste de memorização imediata da série de palavras que lhes foi proposta. No en­ tanto o avanço mais importante, que se observou na idade escolar, consistiu em que as crianças estavam agora em con­

dições de usar meios auxiliares externos para o processo de memorização, estabelecer ligações auxiliares que lhes permi­ tiam usar os quadros como sinais de apoio para a memori­ zação da palavra necessária. N os primeiros momentos essa possibilidade era limitada pelo emprego de ligações prontas relativamente simples. Para memorizar a palavra “escola”, as crianças agora estavam em condições de usar o quadro “caderno” (“na escola há ca­ dernos”) mas ainda não conseguiam criar por conta própria novas ligações auxiliares, recusando-se, para a memorização da palavra “escola”, por exemplo, a usar o quadro “navio” (“não, escola não, nela se estuda; o navio está no m a r ...”) . Mas essa dificuldade foi sendo superada nas etapas posterio­ res de desenvolvimento. As crianças começavam a realizar a possibilidade de formação autónoma de novas ligações au­ xiliares, utilizáveis para a memorização das palavras sugeri­ das. Como resultado desse processo, o número de palavras memorizáveis com o auxílio dos quadros auxiliares aumen­ tava acentuadamente e começava a superar o número de pa­ lavras que a criança conseguia reter ¡mediatamente. Aqui, contudo, os erros característicos das crianças em idade pré-escolar (do tipo A-X-X ou A -X -Y ) já desapare­ ciam e a criança, a quem no teste de controle se sugeriam os quadros por ela já usados, voltava à palavra inicial (a pala-

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1 vra “escola" — quadro “navio” — palavra “escola” ou A-X -A) ou fazia uma reprodução imprecisa da palavra dada, substituindo-a por alguma palavra aproximada (a palavra “escola”, o cuadro “navio", a palavra “mestre”, isto é, apre­ sentava o esquema A-X -B), Esses testes mostravam de modo evidente que a idade escolar é a etapa em que, a par com a memória imediata, formam-se na criança os processos de memorização mediata e que a passagem para o estudo da memória dos escolares das últimas séries e dos adultos permitia descrever a etapa seguinte e última do seu desenvolvimento. Os testes, realizados com os alunos das últimas séries e com adultos, mostraram que estes estabelecem facilmente li­ gações auxiliares, que lhes permitem usar quaisquer meios exteriores de apoio para a memorização das palavras dadas; para eles, a existência de ligações primárias entre a palavra e o quadro não oferece qualquer obstáculo visível e eles usam facilmente qualquer quadro como meio auxiliar para a memorização. No entanto o traço mais importante, que distingue esses sujeitos, consiste em que, agora, eles já dispen­

sem os apoios externos e estão em condições de memorizar as palavras que se lhes sugerem mediante a organização ló­ gica interna destas, colocando-as em certa estrutura lógica e “codificando-as” em grupos semânticos determinados. Os pro­ cedimentos de memorização, que na etapa anterior tinham caráter mediato externo, redHzem-.se agora e adquirem o ca­ ráter de processo mediato interno. A memória mecânica se converte paulatinamente em inemória lógica. O resultado desse processo é o aumento considerável dos resultados da memorização na primeira série de testes, na qual não se dão ao sujeito quaisquer apoios externos e a curva desta série de testes começa a subir de maneira céle­ re, revelando a tendência a fundir-se, no seu limite, com a curva da memorização exteriormente mediata. Este fato, que em seu tempo recebeu a denominação de paralelogramo da memória, apresenta o esquema dos principais fatos de desen-, volvimento da memória na idade infantil. Ele mostra que sç na idade escolar ocorre o processo básico de transformação da memória elementar imediata em memória exteriormentç mediata, então com a passagem para a faixa etária de nível superior e para a idade madura o homem se torna capa? de dominar a memorização interiormente mediata. Por istq

u hrusca elevação da curva da memorização “imediata” nessa idade se deve a que essa memorização, aqui, se toma de falo interiormente mediata. Verifica-se, deste modo, que o processo de desenvolvi­ mento da memória na idade infantil é um processo de transíor mações psicológicas radicais cuja essência consiste em que as formas imediatas naturais de memorização se

convertem em “processos psicológicos superiores”, sociais por origem e mediatos por estrutura, que distinguem decisiva­ mente os processos psicológicos do homem dos processos psicológicos do animal. Vê-se facilmente que essa transformação radical dos processos de memória durante o desenvolvimento da crian­ ça não é apenas uma estrutura modificada da própria me­ mória mas, ao mesmo tempo, uma mudança nas relações entre os processos psicológicos básicos. Se nas etapas iniciais de desenvolvimento a memória tinha caráter direto e era, até certo ponto, uma continuação da percepção, com o de­ senvolvimento da memorização mediata ela perde a sua li­ gação imediata com a percepção e contrai uma ligação nova e decisiva com o processo de pensamento. O aluno de nível superior ou o adulto, que fazem operações complexas de codificação lógica do material suscetível de memorização, executam um complexo trabalho intelectual e o processo de memória começa, assim, a aproximar-se do processo de pen­ samento discursivo, sem entretanto perder o caráter de ati­ vidade mnemónica. Essa mudança radical da relação entre processos psico­ lógicos isolados, bem como a formação de novos sistemas funcionais, constituem o traço fundamental do desenvol­ vimento psíquico da criança, podendo o processo de desen­ volvimento da memória durante a ontogênese ser entendido apenas como uma transformação radical dos processos cujas vias acabamos de expor.

Patologia da memória Os estados patológicos do cérebro são muito amiúde acompanhados da perturbação da memória. Mas até recente­ mente eram muito pouco conhecidas as particularidades psi96

cológicas que distinguem as perturbações da memória em afecções cerebrais diferentes pela localização, bem como os mecanismos fisiológicos que lhes servem de base. São amplamente conhecidos os fatos segundo os quais, dos traumas muito agudos ou intoxicações, podem resultar ocorrências de amnésia retrógrada e anterógrada; nestes casos, os doentes, conservando recordações de acontecimen­ tos há muito ocorridos, revelam consideráveis perturbações da memória dos acontecimentos correntes, esgotando de fato os conhecimentos de que dispunham os psiquiatras e neuropatologias que descreviam as mudanças da memória nas afecções orgânicas do cérebro. A esses dados incorporavamse os fatos que indicavam que as afecções das áreas profun­ das do cérebro podem levar a profundas perturbações da capacidade de fixar vestígios e reproduzir coisas memorizá­ veis; no entanto a natureza dessas perturbações continuava obscura. Os dados, obtidos por muitos pesquisadores nos últimos decénios, enriqueceram substancialmente os nossos conheci­ mentos acerca do caráter da perturbação da memória durante afecções diferentes pela localização e permitiram precisar tanto os dados básicos sobre o papel de algumas estruturas cerebrais nos processos da memória quanto os mecanismos fisiológicos que servem de base às suas perturbações. As afecções das áreas profundas do cérebro — regiões do hipocampo e do sistema conhecido como “círculo de Peipetz” (hipocampo, — núcleos do tálamo ótico, — cor­ pos mamilares, — corpo amendoado) — costumam levar a

perturbações maciças da memória, que não se limitam a nenhuma modalidade. Conservando recordações de aconteci­ mentos distantes (há muito consolidados no cérebro), os doentes desse grupo são incapazes, contudo, de gravar na me­ mória os vestígios das ocorrências correntes; em casos menos nítidos eles se queixam de memória fraca, indicam que são forçados a anotar tudo para não esquecer. As afecções maci­ ças dessa região provocam uma grosseira amnésia face aos acontecimentos correntes, levando às vezes o homem a per­ der a noção precisa de onde se encontra e começar a expe­ rimentar dificuldades consideráveis de orientar-se no tempo, ficando impossibilitado de mencionar o ano, o mês, a data, o dia da semana e às vezes a hora do dia.

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É característico que, nesses casos, as perturbações da .memória não têm caráter seletivo e se manifestam igualmente na dificuldade de retenção do material visual e auditivo, imediato e discursivo. Nos casos em que a afecção abrange ambos os hipocampos, essas perturbações da memória são especialmente nítidas. Pesquisas neuropsicológicas minuciosas permitiram fazer uma caracterização posterior tanto da estrutura psicológica dessas falhas da memória quanto analisar os mecanismos fi­ siológicos que servem de base às suas perturbações. Mostrou-se que, nos casos de afecções relativamente brandas das referidas regiões do cérebro, as perturbações se limitam a falhas da memória elementar, imediata, desprezan­ do a possibilidade de compensação dessas falhas por meio da organização semântica do material; os doentes que não podem memorizar as séries de palavras isoladas, quadros ou ações, são capazes de executar bem melhor essa tarefa, re­ correndo a meios auxiliares e organizando o material memorizável em determinadas estruturas semânticas. Nesses doen­ tes a perturbação da memória imediata não é acompanhada de qualquer perturbação expressa do intelecto e, via de re­ gra, eles não apresentam indícios de demência. Fatos importantes foram registrados durante a análise das possíveis perturbações fisiológicas da memória nos casos em exame. Como mostraram essas pesquisas, os doentes com afec­ ções das áreas profundas do cérebro podem reter séries de palavras e ações relativamente longas e reproduzi-las após um intervalo de 60-90 segundos. N o entanto é bastante uma pequena abstração, provocada por atividade interferente, para tornar-se impossível a reprodução da série de elementos recém-memorizada. Nestes casos, a base fisiológica da pertur­ bação da memória não é tanto a debilidade dos vestígios quanto uma elevada inibição dos vestígios por ações inter­ ferentes. Esses mecanismos de perturbação da memória nos casos descritos devem-se ao fato de que a firme conserva­ ção dos focos dominantes e dos reflexos seletivos orientado­ res 6, aqui, facilmente perturbada em virtude da redução do tônus do córtex e da separação, do trabalho normal, dos aparelhos primários de confrontação dos vestígios que, como já foi dito, é função imediata do hipocampo e das forma­ ções a ele ligadas.

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O quadro das perturbações da memória muda substan­ cialmente quando à afecção das regiões profundas do cérebro incorpora-se a afecção dos lobos frontais (sobretudo de suas áreas mediais e basais). Nestes casos, o doente deixa de ter uma atitude crítica em relação às falhas da sua memória, é incapaz de lhe compensar as falhar e perde a capacidade de discernir a execução autêntica das associações que afloram desordenadamente. As confabulações e erros da memória ( “pseudo-reminiscências”) , que surgem nesses doentes, incor­ poram-se às grosseiras perturbações da memória (“síndrome de Korsakov”) e levam àquelas ocorrências de embaraço que se encontram na fronteira das perturbações da memória e das perturbações da consciência. De todas as variantes do quadro acima descrito distin­ guem-se as perturbações da memória, que surgem durante as afecções locais da superfície externa (convexa) do cérebro. Semelhantes afecções nunca são acompanhadas da per­ turbação geral da memória e jamais levam ao surgimento da “síndrome de Korsakov” e muito menos de perturbações da consciência com a desintegração da orientação no espaço e no tempo. Os doentes com afecções locais das áreas convexas do cérebro podem apresentar uma perturbação particular da atividade mnemónica, que costuma ter caráter específicomodal, noutros termos, manifesta-se em alguma região. Assim, os doentes com afecção da região temporal es­ querda apresentam sintomas de perturbação da memória au­ ditivo-verbal não podem reter as séries de sílabas ou pala­ vras da menor extensão. No entanto eles podem não mani­ festar quaisquer falhas da memória visual e, a partir desta, em alguns casos podem compensar as suas falhas mediante a organização lógica do material consolidável na memória. Os doentes com afecções locais da região occipto-parietal esquerda podem apresentar perturbação da memória es­ paço-visual mas, via de regra, conservam a memória auditi­ vo-verbal em grau consideravelmente maior. Os doentes com afecção dos lobos frontais do cérebro não costumam perder a memória, embora sua atividade mnemónica possa ser essencialmente dificultada pela inércia patológica dos estereótipos uma vez surgidos e pela difícil transferência de um elo do sistema memorizável a outro. A s tentativas de memorização ativa do material que se lhes

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propõe são dificultadas ainda pela patente inatividade desses doentes, e toda memorização de uma série longa de elemen­ tos, que requer um trabalho tenso sobre o material mcmorizável, neles se converte em repetição passiva dos mesmos elos da série que são memorizados ¡mediatamente sem quais­ quer esforços. Por isto a "curva da memória", que tem nor­ malmente um nítido caráter ascensional, deixa de crescer iieles, mantendo-se num mesmo nível e começando a ter ca­ ráter de “plato”, que reflete a inatividade de sua atividade mnemónica. É característico que as afecções locais do hemis­ fério direito (subdominante) podem desenvolver-se sem per­ turbações visíveis da atividade mnemónica. Os estudos dos últimos decénios permitiram que se en­ focassem mais de perto as características daquelas perturba­ ções da memória que surgem nas perturbações cerebrais ge­ néricas da atividade psíquica. Se essas perturbações provocara debilidade e instabilida­ de das excitações no córtex cerebral (e isto pode ocorrer com‘ diferentes afecções vasculares, a hidrocefalia interna e hiper­ tensões cerebrais), as perturbações da memória podem ma­ nifestar-se na redução geral do volume de memória, na clificultaçâo da memorização e da leve inibição dos vestígios pelas ações interferentes; elas levam a um brusco esgotamen­ to do doente, resultando daí uma forte complicação da me­ morização e ocorrendo que a “curva da memorização” come­ ça a não crescer, chegando até a reduzir-se nas repetições posteriores. A análise da “curva da memorização” pode ter gTande importância diagnóstica, permitindo distinguir as síndromes da mudança dos processos psíquicos em afecções cerebrais diferentes por caráter. Os traços característicos distinguem as perturbações da memória na demência orgânica (mal de Pick, Alzheimer) e nos casos de oligofrenia. Para tais afecções, costuma ser central a perturbação das formas superiores de memória, predominantemente da me­ mória lógica. Esses doentes não têm condições de aplicar os procedimentos necessários de organização semântica do ma­ terial memorizável e apresentam falhas especialmente paten­ tes nos testes de memorização mediata. É característico que nos casos de retardamento mental (oligofrenia) essas perturbações da memória lógica podem

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apresentar-se, às vezes, no fundo de uma memória mecânica bem conservada que, em casos particulares, pode ser satis­ fatória pelo volume. O estudo da memória é de importância muito grande para precisar os sintomas das doenças cerebrais e diagnosticá-las.

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