118 63 2MB
Portuguese Pages 224 [218] Year 2008
FERNANDO
FILGUEIRAS
CORRUPÇÃO, DEMOCRACIA E LEGITIMIDADE
EpiToRA UFMG BeLO HORIZONTE 2008
€ 2008, Fernando Filgueiras € 2008, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.
F488c
Filgueiras, Fernando Corrupção, democracia e legitimidade / Fernando Filgueiras. — Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 221 p. (Humanitas Pocket)
Inclui referências.
ISBN: 978-85-7041-705-3
1. Ciência política - Filosofia. 2. Corrupção na política. 3. Ética. 4. Ciências sociais. 1. Título. II. Série.
CDD: 320 CDU: 32
Elaborada pela Central de Controle de Qualidade da Catalogação da Biblioteca Universitária - UFMG.
ASSITÊNCIA EDITORIAL: Euclídia Macedo e Letícia Féres EDITORAÇÃO DE TEXTOS: Maria do Carmo Leite Ribeiro REVISÃO DE TEXTO E NORMALIZAÇÃO: Bernardo Bethonico PROJETO GRÁFICO: Cássio Ribeiro REVISÃO DE PROVAS: Márcia Romano PRODUÇÃO GRÁFICA: Warren Marilac Santos FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA: Robson Miranda
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A Carol e Miguel, por me ensinarem a existência do amor indiscreto.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a José Eisenberg pela motivação e pelo debate em torno do argumento defendido ao longo dos capítulos subsequentes. Seus comentários e críticas muito ajudaram na elaboração do texto. Aos antigos mestres, devo agradecer o estímulo constante
para enfrentar esta empreitada, em especial Marta Assumpção Rodrigues e Rubem Barboza Filho.
A Cicero Araújo, Marco Aurélio Nogueira, Maria Regina Soares de Lima e César Guirnarães. Suas observações permitiram aprimorar o argumento e as questões levantadas neste livro. A Leonardo
Avritzer,
Newton
Bignotto,
Juarez
Guimarães e Heloisa Starling pela confiança depositada em meu trabalho. Eles me motivaram a escrever este livro e encorajaram a continuidade de minhas pesquisas no âmbito do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da UFMG.
Devo aos amigos Nilson Borges Filho e Carlos Frederico Delage Junqueira a parceria intelectual e
à permanente interlocução. Ambos proporcionaram monmentos descontralídos em que sc dispuseram à discutir idéias. Agradeço o apoio financeiro e logístico proporcionado por diversas instituições: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cicntífico e Tecnológico (CNPq),
à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (FAPEMIG), o Departamento de Ciências Sociais da UFJF, o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e o Departamento de Ciência Política da UFMG.
Finalmente, à minha família devo agradecer a cons-
tante motivação. Carol e Miguel foram obrigados a
conviver com seguidas ausências, aturarem os dissa-
bores do mau humor e engolir elucubrações confusas. Mesmo frente a isso tudo, sempre propiciaram um convívio que alivia as tensões do mundo real. Sem o ambiente familiar, não teria sido possível concluir este trabalho com resignação.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO
n
CaríTtTULO
-
ÀA HISTORIA DO CONCEITO DE CORRUFÇÃO
25
A corrupção no referencial lingóístico do aristotelismo
29
À corrupção no mundo romano
43
A corrupção no mundo medieval e no mundo renascentista
52
O pensamento político moderno
e o conceito de corrupção
67
ÀA corrupção e as crises de legitimidade (1)
82
CaPÍTULO II A MORALIDADE
E AS FORMAS
DA CORRUPÇÃO
Os juízos morais e os consensos normativos ÀA forma política ou republicana da corrupção
87 94 108
A forma cultural ou comunitarista da corrupção
115
A forma social ou avioritativa da corrupção
122
A forma econômica ou liberal da corrupção
131
Os elementos formais da corrupção
e suas significações morais CaPíTuULO III A CORRUPÇAO
E A DEMOCRACIA
À corrupção e a crise da democracia
138
144
representativa
146
O problema da desocultação da corrupção
168
ÀA desocultação da corrupção
no campo político
ÀA desocultação da corrupção
176
no campo jurídico
185
À corrupção e as crises de legitimidade (1)
195
NOTAS
201
REFERÊNCIAS
212
SOBRE O AUTOR
220
APRESENTAÇÃO
Cônego Vargas, em “Sereníssima República', de Machado de Assis, era um homem de ciência.' Acreditava que a racionalidade expressa no mundo científico era capaz de organizar a sociedade e suas instituições; distribuir direitos e deveres de maneira a projetar uma sociedade ideal, conforme uma linguagem técnica. Em um de seus experimentos, Vargas descobriu que as aranhas eram sociáveis, porque dotadas de capacidade lingúística. Cônego Vargas descobriu um aracnídeo com a capacidade de fala. Vargas foi, seggundo Machado de Assis, responsável pela reprodução maciça das aranhas falantes, organizando-as socialmente. Vargas foi considerado um Deus pelas aranhas falantes e procurou, de maneira racional, organizar a política de Sereníssima República, nome dado à organização dos aracnídeos. O Deus das aranhas falantes tratou de organizá-las socialmente. Mas, para isso, precisava criar um governo idôneo, que, ao contrário dos governos dos homens, fosse livre da corrupção. Estipulou
as virtudes necessárias ao funcionamento de Sereníssima República, inspirando-se na República de Veneza. Tratou, Cônego Vargas, de excluir os desvarios das paixões, os desazos da inépcia e o congresso da corrupção. Primeira tarefa: organizar o sistema de eleições. Para o funcionamento do sistema eleitoral, organizou os partidos. O partido retilíneo, que representava as aranhas que faziam teias com fios retos; e o partido curvilíneo, que fazia suas teias em curvas. Além desses dois partidos, cabia um ao centro, o partido reto-curvilíneo, que fazia teijas em curvas e retas. As eleições se baseavam
em
um
simples procedimento: o sorteio. Cônego Vargas estipulou que as aranhas fêmeas mais velhas trançassem uma bolsa espessa, na qual fossem colocadas bolas com os nomes dos candidatos. Todo o processo seria conduzido e fiscalizado por uma aranha com o ofício de “das inscrições”. No primeiro pleito, houve problemas com as inscrições dos candidatos. Nenhum dos candidatos oficiais dos partidos foi eleito. Subiu ao poder uma aranha ambiciosa, política obscura, para espanto da República. Dados esses problemas, resolveram organizar uma reforma do sisterna eleitoral, para impedir a corrupção do poder. A lei passou a aceitar que os nomes pudessem ser escritos de forma equivocada, desde que uma comissão formada por cinco aranhas jurasse ser
o nome
inscrito o próprio nome
do
candidato. Partiu-se para um outro pleito eleitoral. Duas aranhas se candidataram: Nebraska e Caneca. As aranhas acreditavam, dadas as tradições de Sereníssima República, que a reforma livraria a sociedade das aranhas da corrupção. Nebraska foi o sorteado, devendo, por conseguinte, subir ao poder. Caneca, no entanto, contestou o
resultado. Declarou a eleição uma fraude, já que, mesmo
estando escrito “Nebraska” na bola retirada do saco, aquilo significava “Caneca”. O juiz aceitou a petição e pediu que
Caneca provasse a referida acusação. Caneca convocou o
primeiro filólogo de Sereníssima República, que provou sua asserção. Provou, por meio das teorias mais avançadas
da lingúística das aranhas, que “Nebraska” tem sua raiz etimológica na palavra “Caneca”. O juiz aceitou a prova e os eleitores aceitaram o argurmnento; Caneca foi eleito
e as
aranhas, insatisfeitas, promoveram novas reformas para impedir a corrupção eleitoral. Mudaram o formato do saco, que trouxe uma série de problemas na eleição dos alcaides,
e mudou
novamente em novas eleições para o
ducado de Sereníssima República. E assim seria, até que, segundo Machado de Assis, Ulisses repousasse um dia entre as aranhas, com sua sapiência.
De acordo com Machado de Assis, toda República é
imperfeita; nunca está livre dos abusos, dos descuidos e
das lacunas que a lei deixaria. Enfim, a República, segundo Machado, nunca está livre da corrupção, porque a política é discurso, é retórica e está passível à interpretação que Y a comunidade faz dela. A política é interesse, é conflito, é disputa pelo que a comunidade entende. Na visão machadiana, a política não é o domínio da razão teórica,
mas da razão prática. A política é o estado prático da moral.
Nesse caso, a tão nova forma republicana das aranhas ainda
carecia de aprendizado moral. Que só aconteceria com a sequência de pleitos eleitorais, sempre corrompidos. Se olharmos para nossas repúblicas contemporâneas, talvez estejamos vivendo o mesmo dilema das aranhas falantes do Cônego Vargas. Acreditamos ainda que a ciência política, com sua linguagem técnica, seja capaz de 13
organizar a comunidade, de maneira a produzir o melhor para a vida republicana. À ciência política, hoje, vive o
mesmo experimento do Cônego Vargas, em que, por mais que se tente, em teoria, organizar a vida política, mais a
corrupção se mostra como prática cotidiana, inerente ao mundo político. Mais ela se expressa como a própria prática da política. As conjecturas que a ciência política contemporânea faz sobre a corrupção seguem a mesma linha do trabalho de Vargas. As reformas que delas resultam prometem ser panacéias. Mudanças de sistemas eleitorais, mudanças de sistemas partidários, de financiamento de campanhas, das relações entre o Executivo e o Legislativo, enfim, uma série de remédios que prometem a cura para o mal da corrupção. Nunca atentam, todavia, para o fato de que a política não se deixa levar pela organização científica. A política é discurso, é estado prático e, por isso, sempre exposta, segundo Machado de Assis, ao mito de Penélope. Fazer e refazer a teia, visando a adequar o saco eleitoral, até que Ulisses retorne. E esse saco sempre estará suscetível à ilegitimidade da ação dos agentes políticos, conforme o entendimento que se faz do processo como um todo. Em “Sereníssima República”, Machado mostra como a corrupção persistia, dados os discursos que envolviam certo moralismo das aranhas| A analogia não é ao acaso. A corrupção só persistia porque todo sistema eleitoral que
era criado carecia de legitimidade, de um consenso em torno de valores que sustentasse a existência das instituições políticas como um todo. À corrupção persistia,
sem que as aranhas encontrassem um sistema idôneo de governo. Mas a idoneidade planejada ao futuro dependia
dos problemas do presente. A corrupção persistia em Serenissima República, era uma potência dentro da ordem. E a ilegitimidade da corrupção cometida pelas aranhas polílicas tornava-a ainda mais aparente, nas crises de legitimis dade que a corrupção aparece como problema político. — A ciência política contemporânea acredita ser capaz,
como o Cônego Vargas, de organizar a sociedade dos homens, bem como um sistema político idôneo. Criou-se uma linguagem empírica, baseada em dados que mostram as mazelas da corrupção nas democracias. Criou-se uma hegemonia do discurso, que não é passível de contestação
no atual cenário das dernocracias. Mas essa mesma ciência
política se nega a perceber que a política é o mundo moral, formado por discursos que procuram pela construção da legitimidadef E essa mesma literatura não atenta para o desiderato de que a corrupção se torna mais aparente quando ocorrem crises de legitimação. A política foi colonizada pelo discurso econômico, que acredita ser capaz de organizar as instituições con-
forme uma racionalidade presente no mundo cotidiano. A política, para esse discurso econômico, é o espaço do irracional, no qual a corrupção impera como prática. À economia, ao colonizar o discurso político, nas democracias contemporâneas, promove uma despolitização do político e uma naturalização do conceito de corrupção, conforme uma linguagem que se define no liberalismo de mercado. Foi produzido um discurso que tende a perceber que a corrupção é um fenômeno natural à política, conforme a intencionalidade da ação. Isso leva a uma histeria ética, tal como vivia Sereníssima República, que nunca se livraria da fraude eleitoral.
Se seguirmos a orientação habermasiana, seu diagnóstico da razão instrumental é facilmente demonstrável, quando lidamos com o problema da corrupção. Há, na teoria política contemporânea, um discurso hegemônico sobre o problema da corrupção, tendo em vista a teoria da escolha racional e o novo institucionalismo. Há, hoje, uma
perspectiva hegemônica
na ciência política acerca
do tema da corrupção que, mediante suas conjecturas,
organiza um paradigma de análise e a visão que os atores
têm a respeito da corrupção na política. Utilizando amplo instrumental empírico, os cientistas políticos produziram pesquisas comparativas ao longo de toda a década de 1990, modificando os termos para se pensar o conceito e o alcance da corrupção. Essa abordagem do tema da corrupção, iniciada com o trabalho de Susan Rose-Ackerman, adotou as premissas da escolha racional e do novo institucionalismo, no âmbito do liberalismo contemporâneo. Ela se tornou hegemônica a partir da década de 1990, com o reconhecimento dado por instituições multilaterais que adotaram essa perspectiva científica para defender um tipo de reforma do Estado.? O viés do liberalismo conternporâneo parte de um critério antropológico da ação humana, sendo o interesse o elemento que explica e dá significado à política. A natureza da política, segundo essa vertente, é percebida como todas aquelas decisões tornadas em contextos institucionais que afetam a todos. Se a natureza da política está centrada na busca dos resultados do processo político, seu objeto de estudo passou a ser os fatores que incidem sobre estes mesmos resultados, derivando, a partir dessa premissa fundarnental, as premissas auxiliares de que: (1) os atores
políticos são eminentemente racionais, ou seja, buscam maximizar a utilidade esperada em contextos de decisão 16
conforme uma ordem de preferências; (2) os contextos de decisão influenciam as preferências e são determinados
pela estrutura organizacional da política, que requer uma institucionalização dada à representação dos atores.* A corrupção na política, de acordo com Susan RoseAckerman, ocorre justamente na interface dos setores público e privado.* Os esquernas de corrupção dependem do modo como a organização institucional permite o uso de recursos públicos para a satisfação de interesses privados, tendo em vista o modo como o arranjo institucional produz ação discricionária por parte das autoridades políticas, Esta discricionariedade ensejada pelo arranjo
institucional incentiva o uso de pagamento de propinas e
de suborno e reforça a corrupção, no âmbito do setor público e do setor privado. O arranjo institucional deve coibir as ações que resultam em corrupção, porquanto sua
conseqiiência é a criação de monopólios no interior da burocracia, que as motivam pelo lado dos resultados do jogo político. A abordagem da ciência política chama a atenção, por conseguinte, para a necessidade de reformas institucionais, no plano político e econômico, visando a criar regras fixas para a interação entre os interesses privados e o interesse
público, comungando com mecanismos institucionais que impeçam a existência de monopólios e a captura da burocracia estatal por parte de funcionários públicos e de agentes privados. Um excesso de controle para coibir a prática de corrupção, no entanto, pode implicar a ineficiência da administração pública, fazendo com que a busca de integridade mediante a maquinaria anticorrupção e as reformas institucionais resultem, necessariamente, em mais corrupção.ó
Do ponto de vista das reformas institucionais para o combate à corrupção, a mudança deve ser realizada entre os sistemas de incentivo e a eficiência burocrática. Em outras
palavras, não cabe às reformas institucionais reforçar o poder da burocracia, uma vez que estas reformas resultariam em maior discricionariedade e em maior incentivo para o pagamento de propina e de suborno, ou seja, em ampliação das práticas de corrupção. Por outro lado, é necessário um mecanismo de agregação de vontades particulares em decisões coletivizadas, visando a assegurar a consecução de uma ordem estável e produtora de cooperação entre os indivíduos.No aspecto formal, que representa um consenso entre analistas ligados a teorias neo-institucionalistas, a prática de corrupção não é coibida mediante reforço do poder burocrático mas pelo fomento do mercado.” Paralelamente às reformas das instituições políticas,
cabe ao arranjo institucional fomentar a existência de um mercado enquanto arena constante de negociação e de catalisação dos interesses por parte de agentes econômicos e políticos. Os esquemas de corrupção dependem dos recursos disponíveis - políticos ou materiais — para que as autoridades ajam discricionariamente, redundando na criação de incentivos para o pagamento de propinas e de suborno.) Todavia, a corrupção, de acordo com Rose-Ackerman, é uma ação que encontra motivação na proporção em que as falhas de mercado estão presentes na cena política.º Essas falhas nascem da excessiva intervenção estatal e fazem com que os agentes públicos se comportem de maneira rent-seeking, ou seja, maximizando seu bem-estar econômico, seja seguindo as regras do sistema, seja não as seguindo,
18
A teoria do rent-secking foi desenvolvida por Gordon Tullock e aprimorada por Annce Krueger, segundo a qual os agentes económicos encontram motivação para maximizar
o bem-estar económico. Essa maximização de bem-estar está inserida dentro de um contexto de regras determinadas e de uma renda fixada de acordo com as preferências individuais. Os agentes, segundo estes autores, buscarão a maior
renda possível, dentro ou fora das regras de conduta, operando transferências dentro da sociedade mediante a existência de monopólios e de privilégios, constituindo um mercado político competitivo em que os agentes lutam por esses monopólios e por esses privilégios, transferindo a renda de outros grupos sociais para si.º O ponto central para o estudo da corrupção na política, de acordo com esta abordagem econômica, é a consideração dos sistemas de incentivos criados pela burocracia para que os agentes tenham um comportamento rent-seeking. As democracias competitivas e os mercados são condições necessárias para um governo honesto, já que estabilizam os interesses egoístas dos agentes em torno de regras mínimas
de pacificação social, criando a estabilidade e o contexto de cooperação necessários à prosperidade."º O fato é que, segundo essa abordagem econômica da política e da democracia, a corrupção é resultado de uma natural ineficiência do Estado e de seus órgãos burocráticos. À política é, naturalmente, o espaço dos vícios, em que impera a corrupção como prática corriqueira.
O mercado,
por definição, é o melhor espaço institucional de construção de bens públicos. Essa abordagem econômica da corrupção e da política colonizou o discurso político, de forma a criar um atual contexto de endemia social da corrupção, que denuncia a ineficiência estatal para produzir bens 19
públicos. O resultado é uma crescente despolitização do Estado, que modifica a relação entre corrupção e demo-
cracia.
Ao partir de uma antropologia da ação política, a visão
econômica da corrupção não proporciona uma concepção
normativa de interesse público. Ao naturalizar a corrupção como ineficiência do Estado, a perspectiva hoje hegemônica na teoria política não deriva um sentido valorativo da política, Além disso, é uma perspectiva estreita e restrita
da corrupção, uma vez que não leva em consideração os aspectos culturais, sociais e propriamente políticos. O
conceitode interesse público envolve, por esse discurso econômico sobre a corrupção, mais o aspecto mercantil do que a discussão de valores e normas. Poucos conceitos são tão fugidios à teoria política como o conceito de interesse público. Ele tem uma abrangência maior do que o caráter meramente mercantil definido pela abordagem econômica da corrupção, não se restringindo a seu caráter monetário. O conceito de interesse público tem uma ressonância moral, porquanto esteja assentado na discussão de valores e normas na política. Por ter uma natureza moral é fugidio, pois está circunscrito em
problemas práticos, definidos em contextos históricos, fazendo com que seu sentido dependa de um caráter hermenêutico dos valores e normas que organizam as instituições políticas. Sendo a corrupção a elevação dos interesses privados ao interesse público, percebe-se que é fundamental a uma teoria da corrupção uma discussão mais abrangente da
moralidade política. Só é possível definir a corrupção na política se buscarmos uma visão dos aspectos consensuais
20
que organizam a prática da política como um todo. À perspectiva, hoje hegemônica, no entanto, cria uma miopia teórica a respeito da corrupção, visto que a compreende
apenas pela lógica dos interesses mercantis. O conceito de corrupção, tal como o conceito de interesse público, também é fugidio à teoria política, porque precisa de uma atribuição de sentido, que só é possível por uma compreensão mais alargada dos elementos formais dos valores e normas que organizam a política. Ou seja, o conceito de corrupção só é compreensível se tomarmos, de forma pressuposta, a discussão de valores e normas. Afinal, só existe corrupção quando uma norma é transgredida. Dessa forma, a corrupção só pode ser compreendida por uma crítica moral da política e suas instituições. Devemos partir da premissa de que a corrupção é um fato inerente ao campo da política, porque só a partir do momento em que ela existir é que poderemos averiguar a legitimidade dos valores e normas consensuais, que organizam as instituições.
- Este livro é uma teoria política da corrupção, preocupada em pensar conceitos e categorias para a análise desse problema. Corno teoria política, o mesmo está assentado mais em aspectos normativos do que propriamente empí-
ricos. O objetivo é formular novos problemas a respeito do conceito e da prática da corrupção na política. Como uma teoria política se faz discutindo questões normativas, parto da premissa de que esses aspectos normativos influenciam a prática da política, não só porque justificam regras institucionais, mas porque constituem valores que funcionam como motivos para a ação. A questão é a discussão do bom governo e a forma como a corrupção é um tipo de patologia política. Isto é, acredito 21
que a discussão teórica e normativa possibilita a compreensão do mau governo, da desordem e da decadência derivados de um tipo de prática que se nomeia, na teoria política, como corrupção. Como problema de teoria política, a corrupção está associada aos processos de decadência institucional, marcados por semânticas distintas,
de acordo com contextos históricos variados. Mas, afinal, qual é o problema deste livro? Ele procurou classificar, de maneira bastante abrangente e geral, as formas que a corrupção pode assumir na prática da política, tendo em vista as diferentes maneiras com que os agentes justificam e aplicam normas nos contornos da ordem. Ou seja, o problema é classificar a corrupção enquanto as formas de sua prática, de acordo com a constituição de determinados espaços sociais e de determinados aspectos relacionados às diferentes moralidades da política. Este livro pretende realizar essa crítica moral da corrupção com base na discussão de valores e normas que
organizam a política e a democracia. Defendo a tese de que a corrupção na política se torna mais evidente em cenários de crises políticas, em que concepções consen-
suais de valores e normas erodem em função de contextos
de mudanças sociais. Mas, afinal, o que devemos entender
por crises políticas? Situações de crise envolvem mudanças pa moral política, invocando perguntas dirigidas ao futuro histórico, em que pesem a instabilidade e as incer'tezas." Crises representam momentos de mudança social, em que instituições entram em rota de colisão com
as
demandas comunitárias e republicanas da sociedade. Fundamentalmente, situações de crise podem ser representadas como crises de legitimidade.
22
chuindo aponta
uma
orientação
habermasiana,
este
livro
para o fato de que o atual contexto de crítica ao
Estado como espaço dos vícios e da corrupção conduz a uma gradativa crise de legitimidade da própria democracia. Há uma histeria ética que nasce com as demandas por transparência, da parte do liberalismo contemporâneo, que faz com que a corrupção persista à medida que as reformas de Estado vão sendo encaminhadas. Tal como em “Sereniíssima República”, de Machado de Ássis, a corrupção persiste, apesar dos espasmos de alvoroço social. E persiste porque das demandas por transparência não resultam noções gerais de interesse público. Como se trata de um conceito vazio de valor, as reformas não promovem um aprendizado republicano com a corrupção, convertendo-se em endemia que reforça a crise de legitimação. É um trabalho de Penélope que tem sido feito, de modo a esvaziar, como pretendo mostrar, a própria idéia de democracia. - Partindo da premissa de que a legitimidade depende da aceitação racional de valores e normas, de forma consensual, podemos afirmar que, nas democracias contem-
porâneas, a corrupção tem por consequência produzir uma crescente crise de legitimação. Crise essa que se expressa nas atividades governamentais, que ocorrem em
uma dimensão pública cada vez mais despolitizada, uma vez que a economia colonizou o discurso político."* À tese que nestas páginas defendo espelha o fato de que a despolitização da vida política promove uma persistência das crises, fazendo com que a corrupção se torne cada vez mais aparente, sem que disso resultemm mecanismos efetivos de controle. Tal como o personagem de Machado de Assis, a teoria política está condenada a fazer e refazer o saco de bolas. 23
Sem perceber que a corrupção é um fato da política, o discurso hoje hegemônico sobre o tema da corrupção carece de uma teorização mais profunda sobre sua relação com os contextos de crise de legitimação. Nas democra-
cias contemporâneas, isso fica mais evidente: o discurso
econômico não percebe que, ao promover com suas conjecturas uma histeria ética, colabora para uma crescente despolitização da política, o que faz com que a corrupção persista, sem uma solução eficaz para
o problema. Como
em Sereníssima República, estaremos condenados à corrupção, a reformar indefinidamente os sistemas políticos, visando a atender às denúncias produzidas pelo mercado, sem que isso signifique um resultado concreto. Esta questão permeará as páginas seguintes, de forma a especular a respeito da relação entre corrupção, democracia e legitimidade. O livro está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, apresento uma história do conceito de corrupção, mostrando como ela está presente nos contextos de crise e como podemos pensar os elementos estruturais de sua prática, No segundo capítulo, apresento um argumento analítico da corrupção, tendo em vista uma discussão da moralidade política. No terceiro capítulo, discuto a relação entre democracia e corrupção, com base
em uma sociologia do contexto de crise da modernidade capitalista.
24
CAPÍTULO
|
A HISTÓRIA DO CONCEITO DE CORRUPÇÃO
A referência a um conceito, tal como o de corrupção, carrega uma forte conotação histórica assentada em traços hermenênuticos, que devem ser apreendidos para a devida análise de um objeto por parte da ciência política. No caso do conceito de corrupção, tal como a ciência política . o aborda, há a utilização de um referencial lingúístico centrado na naturalização da concepção
dos interesses
e da legalidade derivada de sua diferenciação funcional, encobrindo os sentidos amalgamados no plano histórico, sem atingir seu amplo horizonte no referencial lingúístico. Esse encobrimento dos diferentes sentidos atribuídos pelos sujeitos em ação estreita as possibilidades de análise e de imaginação institucional, a qual está destinada a controlar esse tipo de prática no âmbito da sociedade. O fato é que a ciência política excluiu do plano analítico da corrupção as conotações morais, as quais são partes
integrantes da emissão de um enunciado acerca da probidade ou da corrupção de determinada ordem política e
social. Ou seja, a ligação funcional do conceito de corrupção ao preceito dos interesses e da legalidade encobriu seu referencial lingiístico, o qual encontra assento apenas nos
traços morais identificados em situações sociais concretas, tendo em vista o apelo normativo empregado pelos atores e não apenas a descrição dos fatos em função de uma suposta objetividade do método. Ou seja, o julgamento moral, em certos contextos históricos, tem um peso considerável na definição do conceito de corrupção, porquanto a moralidade é essencial na construção de instituições políticas, de acordo com noções de bom governo e, por derivação, dos critérios para se definir o mau governo. AÀ abordagem econômica procura encobrir esses apelos normativos empregados pelos atores em interação social, focando a análise em uma objetividade factual, a qual não leva em consideração as valorações produzidas em
contextos de interação, que permitem
absorver os
juízos emitidos pelos atores a respeito da condição de determinada ordem. Como quero recuperar esses apelos normativos para a descrição das práticas de corrupção, é fundamental a rediscussão do tema da moralidade na política. É fundamental a apreensão dos diferentes significados e sintaxes em que a corrupção foi pensada ao longo da história do pensamento político. É necessária a produção de uma história do conceito de corrupção, atrelada aos diferentes modos como ele foi recebido ao longo do pensamento Ocidental, evidenciando as diferentes modalidades e alcances desse tipo de prática no contexto histórico. É pela história das recepções e das inovações conceituais que poderemos absorver, no âmbito do plano analítico,
26
os diferentes significados e aplicações no campo prático, uma vez que, pela razão prática, a corrupção é um fato da política. O objetivo é ampliar o horizonte de aplicabilidade do
conceito de corrupção, tendo em vista as continuidades, as mudanças e as inovações em seus significados e em
suas aplicações, tal como a perspectiva da história dos conceitos assenta seu núcleo metodológico.! Por outras palavras, é necessário apreender o modo como as concepções presentes são influenciadas por inovações do passado,
bem como o quadro normativo da política é influenciado por essas concepções, delineando uma vida institucional balizada em conceitos políticos. Ademais, a história con-
ceitual propõe-se a analisar os conceitos em face de seus contraconceitos, uma vez que estes informam o caráter denotativo do contexto lingúístico em que aqueles foram empregados. A recorrência aos termos dos contraconceitos evidencia os horizontes de sua aplicação. De modo bastante sintético, percorrerei a história do conceito de corrupção da antigúidade à modernidade, tomando a perspectiva metodológica da história dos conceitos. Esse percurso passará pelas expressões do pensamento político a respeito do conceito de corrupção. Parto da premissa de que o pensamento político não se restringe a uma ideologia, filosofia ou ciência política mas a práticas e concepções do mundo político relevantes, tomadas de forma consensual e que se expressam em proposições enunciativas.
O pensamento
político, aqui
considerado, é um saber formulado, uma ação e atividade concentrada em problemas práticos, que não se confunde com as jornadas acadêmicas. Pretendo, portanto, dar voz
27
aos pensadores políticos em que o pensamento é exercido
como atividade, como experiência da política, incorpora-
da à ação.
O objetivo é analisar as formas com que se pode pensar o conceito e a prática da corrupção de acordo com os critérios para a definição do bom governo, levando em consi-
deração o definido em diferentes tradições do pensamento político como “o melhor” para a comunidade política como um todo. Pretendo demonstrar neste capítulo a abordagem positiva e construtiva da teoria política, com o intuito de absorver os elementos analíticos e valorativos do conceito de corrupção, conforme um conjunto de problemas práticos que a teoria política enfrentou em suas diferentes tradições. Esse exercício, contudo, não será exaustivo ou
cormnpleto, porém instrutivo para a definição dos critérios morais e práticos fundamentais para a teoria política. Existe, déntro do pensamento político, uma proposição estrutural: a corrupção se torna um problema de teoria política em contextos de crise. Partindo da premissa de que as crises representam momentos de mudança social e
de que, nesses momentos, há uma erosão dos valores e
normas fundamentais, afirmo que a corrupção se torna mais evidente à medida que afeta a legitimidade dos sistemas políticos. Pretendo demonstrar que a história do conceito de corrupção está associada à forma como o pensamento político formulou diferentes visões das crises de legitimidade. Desse modo, este capítulo carrega uma viagem ao passado, na perspectiva de ampliar o horizonte de aplicabilidade do conceito de corrupção a diferentes modulações do mundo social e político, especulando a respeito de inovações institucionais relacionadas a proposições 26
políticas do passado, visando a aprender, com a história
do pensamento
político, soluções para o plano institu-
cional do presente. A CORRUPÇÃO
NO REFERENCIAL LINGÚÍSTICO
DO ARISTOTELISMO
A corrupção está originalmente associada à idéia de
degeneração, putrefação ou destruição, representando,
na natureza, um processo profundo de transformação dos seres, tendo em vista a mudança de sua matéria no contexto dos movimentos. Como destaca Peter Euben, não é possível chegar à primeira ocorrência da palavra corrupção.ITodavia, seu úso não advém apenas do latim corruinpere, porque aidéia já era presente entre os gregos, A palavra corrupção
aparece entre os gregos em vista de seus estudos sobre a natureza e uma cosmologia assentada na existência de dois mundos: às formas perfeitas e a ausência de corrupção do mundo dos deuses e as formas imperfeitas do mundo dos homens, passível, a todo instante, à prática de corrupção.? Daí diaphthora, que significa destruição, ruína e dano aos valores e à ordem. O problema da corrupção é comum entre os pensadoTes gregos, mas assentarei o argumento no referencial aristotélico, o qual busca traçar, por meio da razão, uma analogia do mundo físico com o mundo humano, identi-
ficando a condição humana através de sua natureza dada
à intelecção. Aristóteles está preocupado com a constitui-
ção de um saber teórico centrado no logos e não no mito,
que transforme o mundo grego, purgando o mito como critério de busca da verdade, A lógica, de acordo com o estagirita, se estabelece não pela busca da verdade a partir 29
da vontade dos deuses mas pela busca das necessidades
verdadeiras presentes no mundo físico, que podem ser comparadas e pesquisadas de forma tal que a verdade se estabeleça pela indução daquilo que se coloca entre duas coisas. O saber teórico, portanto, estabelece a verdade pela indução da causa, tendo em vista a episteme que defineas regras racionais de validação e evidência, alcançando, dessa forma, a essência das coisas.* O mundo natural, de acordo com Aristóteles, é, em essência, constantemente sujeito à corrupção, entendida aqui como um processo de mudança com base em um substrato material que se coloca de modo inseparável dos princípios que organizam a natureza.* Todavia, mesmo estando sujeito à corrupção constante, o ser é compreendido por sua ordem e estabilidade,
e o movimento da geração
e da corrupção assegura a sua continuidade, em vista do poder de dissolução da diversidade e da mudançal A par da possibilidade de corrupção, desse modo, encontra-se a questão da ordem do mundo natural, significando movimentos antinômicos necessários à natureza.
Por outras
palavras, a solução de continuidade de uma ordern depende da possibilidade constante de sua corrupção, sendo ela necessária para a integridade do ser frente à diversidade do universo. A possibilidade de corrupção assegura a geração de mecanismos para seu controle, uma vez que a natureza se reproduz mediante sua ordem. Por conseguinte, a corrupção está contraposta, no mundo natural, ao problema da ordem, significando o movimento dos corpos que tendem a corromper a sua estabilidade, gerando novos mecanismos para a consolidação e para a manutenção da integridade ' em face da possibilidade de nova corrupção. O termo 30
corrupção, portanto, está relacionado com a idéia de dege-
neração dos corpos, fazendo parte de sua natureza finita. No que diz respeito à ordem da política, seu estudo encontra assento apenas na analogia com o mundo natural, sendo a política uma forma de saber constituído pelo saber prático caracterizado pela falibilidade das causas, que são
estabelecidas apenas por possibilidade ou verossimilhança. Os elementos do saber prático não se definem a priori, fazendo com que a busca da verdade se dê por múltiplas causas, que só são apreendidas através da pesquisa, da comparação e, finalmente, da indução lógica. Apesar da pluralidade das causas, Aristóteles não via uma pluralidade ontológica, que se daria pela existência de dois (ou mais) mundos, como pretendia Platão.” O alcance do saber se dá apenas na metafísica, que informa o paradigma unicista do meio físico — physis - e das entidades não materiais — retórica , estando a política, do mesmo modo que o mundo natural, passível a corrupção constante.
A corrupção na política, no entanto, é necessária à imaginação e à geração de mecanismos para a reprodução da ordem conforme uma disposição dos atores a buscar a felicidade, em face de concepções ideais que perpassam as instituições. Geração e corrupção ocorrem
simultanea-
mente, e não é possível a apreensão da gênese ou da primeira ocorrência da palavra, uma vez que elas fazem parte da natureza das coisas. E por pertencer ao mundo natural, quando geração e corrupção são levadas para o saber prático, não podem ser deduzidas de modo a priori, porque, na política, elas se definem de modo retórico em torno de significações e contextos nos quais as palavras são produzidas, i
31
É a techné que define a política, que é o mundo, como observa Vernant, da discussão, da argumentação, do conflito, enfim, da proeminência da palavra.º A polis é a orga-
nização coletiva dos homens buscando a eudamonia, ou o
bem comurn, na qual os cidadãos participam da vida política através das assembléias deliberativas do governo. Os cidadãos advogam através da retórica os empreendimentos que podem assegurar a prosperidade rnaterial e não-material da comunidade política e garantir, desse modo, a reprodução da ordem ao longo do tempo. Por se tratar do mundo da palavra, não existe uma causa única para os fenômenos tidos como políticos mas um mesmo princípio ontológico que se dá pela pesquisa, pela comparação e pela indução das constituições. De acordo com Aristóteles, a constituição define a forma segundo a qual os homens se relacionam e definem o éthos da organização coletiva, podendo resultar tanto na eudamonia quanto na corrupção da polis, ou na justiça ou injustiça, respectivamente.º É aqui que o tema da corrupção aparece na obra aristotélica e ganha centralidade enquanto mecanismo induzido de aproximação ou verossimilhança com a verdade das constituições., Ou seja, é impossível a realização do bom governo sem pensar Os critérios e características do mau governo, sendo a corrupção o conceito primordial para se pensar o segundo e buscar a construção de instituições que sejam estáveis e boas, no sentido de produzir a felicidade. Etimologicamente relacionado ao problema da ordem, o problema da corrupção (diaphtora) atravessa todas as
formas mediante as quais a política está organizada, sendo um fenômeno presente e concebido em sua transfiguração da natureza para a política. À corrupção, inclusive;-é um 32
fato da política, porquanto, de acordo com a acepção aristotélica, ela compreende a manutenção do movimento do corpo político ao longo do tempo, uma vez que ela propi-
cia a geração de mecanismos
institucionais para o seu
controle. Não é possível, desse modo, erradicar a prática da corrupção, já que ela configura a possibilidade de reprodução da ordem desde que mantida sob controle. Não há possibilidade de forma política perfeita, já que o mundo, tanto natural quanto político, assenta-se na unidade ontológica e, ao mesmo tempo, no movimento que demanda,
para a sua continuidade, mecanismos de controle sobre a possibilidade de desordem. Nesse sentido, a analogia do mundo natural com o mundo político permitiu a Aristóteles conceber, indutivamente, as formas de exercício do governo, ou seja, o modo como elas são geradas e o modo como elas estão sujeitas à corrupção, derivando; por conseguinte, mecanismos
institucionais que visem a manter a continuidade da ordem."ºSe a corrupção é uma espécie de tendência presente em todas as ordens políticas, do mesmo modo que no mundo natural, ela ocorre em potência e não em ato, ou seja, ela depende de uma paixão e não de uma ação."' Vale ressaltar que, no plano político, Aristóteles trata das paixões e da ação no contexto ético fundamentando as causas primeiras da corrupção da ordem política. Segundo o estagirita, a condição natural do homem é a ação, sendo o seu conhecer e o seu intentar dirigidos à consecução da felicidade (eudamonia). Essa busca, todavia,
deve ocorrer nos contornos de uma ordem contextualizada no mundo natural, buscando criar mecanismos de controle sobre o potencial de corrupção, o qual é derivado das paixões que fazem degenerar o bem viver estabelecido pela 393
*
ordem política. A finalidade da ação é a felicidade, mas o potencial das paixões pode corromper a geração de felicidade, demandando, para seu controle, a introdução de mecanismos racionais que permitam alongar
a manuten-
ção da ordem. O bem humano é derivado do exercício ativo por parte dos homens, mas a possibilidade de sua corrupção em função das paixões pode fazer esse bem degenerar, tendo em vista as adversidades que elas introduzem. Se o bem ocorre em ato, a corrupção ocorre em potência, demandando, desse modo, a criação de um elemento de estabilidade da ação, que Aristóteles encontrou nas virtudes."? Aristóteles entende por virtude toda aquela disposição moral destinada a controlar as paixões humanas, as quais fazem parte de um quadro natural que tende à corrupção. Como disposição moral, a virtude é um estado de caráter devido ao qual os homens se encontram bem ou mal dispostos em relação às paixões, não sendo entendida, entretanto, como capacidade, uma vez que as paixões fazem parte da natureza humnana, não tornando o homem capaz de detê-la. Isso leva Aristóteles a colocar o problema da corrupção na política como um problema ético, análogo ao mundo natural. Se a política ocorre em ato, a corrupção ocorre em potência, sendo a virtude o elemento estabilizador do sistema, colocado entre as paixões e a ação, observada a mediania relativa determinada pela razão. * Se a corrupção ocorre em potência, ela surge, na acep-
ção de Aristóteles, em função de dois vícios, um constituído pelo excesso da ação, como o amor à riqueza ou à honra, outro constituído pela deficiência das paixões, como a apatia ou a fuga. Desse modo, a unidade e a manutenção da ordem dependem da introdução de virtudes do agir 34
humano, visando a conter o potencial de corrupção, que faz parte da natureza da política! Dessa maneira, no âmbito das formas de governo, a constituição deve encetar determinadas virtudes no comportamento dos homens, visando a conter o potencial de corrupção presente em qualquer forma de governo. É daí que a imaginação institucional deve dar conta de
uma razão prática a qual, uma vez assentada na ação, se
preocupa com o modo como os governos se legitimam, isto é, com a fonte do poder legítimo. No entanto, deve-se procurar os problemas relativos à forma como o poder é, de fato, exercido, bem como à forma das patologias do exercício do poder político no interior da comunidade!/Dessa maneira, a tipologia das formas de governo de Aristóteles parte dessas duas dimensões: a fonte do poder legítimo, de um lado, e o exercício efetivo desse poder, de outro. À tipologia das formas de governo especula sobre os critérios do bom governo, perante a realidade do exercício do poder político e de todos os seus potenciais desvios, dentre eles a corrupção. Aristóteles, por conseguinte, organiza sua
tipologia ao colocar de um lado as formas boas, derivadas de uma vida moral do cidadão e dos governantes, e de outro, as formas más, que representam a corrupção como um tipo de prática inerente ao exercício do poder político. A corrupção, compreendida como potência, pertence ao exercício efetivo do governo e do poder político. Tendo em vista a tipologia das formas de governo de Aristóteles, pode-se derivar o potencial de corrupção como a degeneração de virtudes, conforme uma natureza típica de cada uma das formas.”* Uma vez que a corrupção ocorre em potência, no plano das formas de governo
existem princípios que a potencializam, tendo em vista o 35
caráter prático do exercício do governo na comunidade. A corrupção, dessa maneira, cumpre um papel histórico, em face dos ciclos de ascensão e decadência de instituições políticas. Com relação à questão conceitual, a idéia de corrupção está envolvida numa concepção cíclica de história, típica do mundo antigo. No plano analítico, toda forma boa de governo encontra sua oposição na corrupção potencializada no tempo. É inerente às formas de governo uma corrupção potencial, que pertence à natureza do
poder político. A monarquia é uma forma boa de governo em que o monarca persegue o bem comum da polis, além de ser a forma mais praticável, porque o governante não necessita
coordenar sua ação com os demais cidadãos. A segunda forma boa de governo é a aristocracia, em que o governo está nas mãos dos melhores, ou seja, dos cidadãos dotados da devida virtude, que os permite distinguir o bem do mal, além de ser a forma de governo mais duradoura, porque os aristocratas temperam melhor as paixões. Finalmente, a terceira forma justa ou boa de governo é a politeía, em que o poder está nas mãos de muitos. É a forma de governo mais sublime e mais instável, já que depende da generalização das virtudes em todo o povo para não degenerar em sua forma corrompida. Se as formas justas ou boas de governo derivam de uma natureza constitucional, Aristóteles faz corresponder a cada uma delas sua forma corrompida, que surge potencialmente quando os homens elevam suas paixões ao bem da comunidade. À busca pela eudamonía dá lugar, segundo
Aristóteles, à busca pelas vantagens privadas, fazendo com que o resultado da participação na polis seja a ausência .da liberdade e a degradação da ordem, uma vez que as 36
paixões se sobrepõem às virtudes. Ou seja, as formas más
especulam sobre o exercício efetivo do governo, sendo a corrupção uma disposição natural da política. À monarquia corresponde a tirania enquanto forma corrompida de governo, em que o tirano oprime o povo através do uso da força contra os cidadãos, tendo em vista o excessivo
amor à riqueza e as deficiências da honra. À aristocracia corresponde a oligarquia, forma de governo segundo a qual alguris oprimem o povo, expropriando a produção coletiva para o atendimento de suas vantagens privadas. Enfim, à politeífa corresponde a democracia enquanto forma corrompida, em que o demos se torna desejoso por vantagens e não consegue alcançar o bem comum, uma vez que seus vícios levam às paixões.
Se o potencial de corrupção atravessa todas as formas de governo, o estudo comparativo das constituições permite estabelecer qual forma de governo poderia evitar a corrupção e assegurar, segundo Aristóteles, a eudamonia, impedindo a elevação dos desejos ou a busca por vantagens privadas, conforme um conjunto de virtudes que se coloquem entre as paixões dos homens e o potencial de corrupção. Aristóteles, ao propor o governo misto (politeía), tinha em vista a confluência dos diferentes tipos de
virtudes que movem a ação dos homens, evitando tanto os excessos da ação quanto as deficiências das paixões. Aristóteles não admitia a existência da dimensão privada na politeía, porque o governo não deve ceder lugar aos desejos dos homens apetitosos, evitando assim a sua corrupção. A forma mista de governo, em essência, integra as forças antagônicas da comunidade, inclinando-as para a moralidade e para a justiça."”
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O governo misto, de acordo com Aristóteles, é aquele
que menos está, potencialmente, sujeito à corrupção, por-
que absorve as diferentes virtudes das demais formas de governo, criando uma ordem institucional assentada em diversas modalidades de controle das paixões e de incitação do ato, observada a mediania garantida pelo controle dos vícios. A corrupção, entretanto, faz parte de sua natu-
reza, porque dela deriva o ato praticado pelos agentes para coibi-la. Por outras palavras, se os aristocratas tendem a se tornar oligarcas, encontram oposição por parte do monarca, que teme perder o seu poder, e do povo, que terne se tornar oprimido. Do mesmo modo, se o povo se torna desejoso, cabe aos aristocratas e ao monarca moderarem suas paixões, com o objetivo de alongar a vida institucional. Isso só é possível, entretanto, contrabalançando, com os excessos
da ação e as deficiências das paixões, as virtudes do corpo político, tais como a coragem, a temperança e a justiça. O governo rmisto, ao assentar-se nos diferentes princípios e fontes de legitimidade das formas puras de governo, proporciona, segundo o estagirita, um ciclo de expansão das virtudes, de acordo com uma realidade institucional e pedagógica da política na sociedade. Aristóteles via na possibilidade do governo misto uma forma de governo praticável e justa, capaz de impedir a corrupção do corpo político, ou, pelo menos, adiá-la ao máximo. A politeía, sendo uma forma de governo constitucional, permite esse contexto
de expansão das virtudes políticas, visando à realização efetiva do bom governo. O controle da corrupção, dessa forma, depende de que a imaginação institucional derive variadas fontes de legitimidade do poder político, além de “pensar” na realização efetiva desse poder, que sempre tem o peso da corrupção como algo potencial que o assola. 38
Como destacou o estagirita, a corrupção representa os
momentos de mudança, tal como a crise que assolava o mundo grego e, em especial,
a Macedônia.
À corrupção é
uma prática comum nos contextos de crise de legitimidade, sendo o governo misto a única resposta a essa crise, tendo em vista a ascensão do populacho, qualificado por Aristóteles como naturalmente corrompido, e a decadência
das aristocracias. As mesmas preocupações cercaram Políbios, que via na corrupção que se alastrava em Roma uma evidência
da decadência institucional.É a partir deste pressuposto e da tradição do governo misto, abordada por Aristóteles, tendo em vista o pressuposto do conhecimento verdadeiro, que Políbios fez um minucioso estudo comparativo das Constituições, afirmando que a espartana, elaborada por Licurgos, é a superior, porque agregou as diferentes virtudes da ação humana, sendo elas decorrentes das causas naturais das sociedades e da política."º Políbios manteve o paradigma ontológico unicista da forma de busca da verdade de Aristóteles, mas agregou a ele uma filosofia da história que lhe possibilitou observar as mudanças, no tempo, da forma como os homens se organizam em coletividade. Desse modo, se a filosofia da história está balizada na busca das transformações ao longo do tempo, a corrupção assume papel primordial, porque, na natureza, tem o papel complementar da geração e da inovação institucional.”? A filosofia da história de Políbios tem a peculiaridade de afirmar que a organização dos homens é uma sucessão cíclica de formas de governo, na qual a corrupção desempenha um papel fundamental, visto que ela é o elemento central que explica as mudanças políticas. O autor utilizou 39
a imagem da ferrugem e do caruncho para caracterizar
a corrupção como um mal inerente e necessário a todas
as constituições ou formas de governo. É um fenômeno natural que decorre da predisposição do homem ao apetite e à ganância."? A corrupção faz parte da natureza das ordens políticas, cabendo, entretanto, ao legislador criar mecanismos institucionais capazes de moderar as paixões,
adiando ao máximo possível a presença da corrupção no interior da ordem, mesmo sabendo que ela é inevitável. O ponto de partida polibiano é a assertiva de que os homens naturalmente se unem e formam grupos, pois são os únicos animais dotados do sentimento de costume e Os únicos que conseguern, por meio da razão, formular leis que assegurem a justiça, tendo em vista o sentido do bem comum. Ao mesmo tempo, os homens são os únicos animais que desenvolvem as paixões, equilibrando a ação através de uma contra-ação. À medida que a organização coletiva dos homens se expande, eles vão formando leis que sintetizam objetivamente os costumes, derivados historicamente através da capacidade de lçmbzança./As leise os
costumes, portanto, são os fundamentos de acordo com os quais é possível fazer uma análise do político, porque eles incitam em todas as criaturas humanas a noção de dever, que é o princípio e a finalidade da justiça. Do mesmo modo que Aristóteles, Políbios identificou
seis formas possíveis de governo, sendo também três delas justas ou boas e três delas corrompidas ou más, havendo, entretanto, uma sucessão temporal cíclica, que encontra seu ponto de partida na monarquia. A variação no tempo, de acordo com Políbios, representa uma sucessão de corrupções e gerações de ordens políticas, num movimento circular incessante, ao longo da história de uma civilização. , 40
Se a corrupção é um fenômeno inerente a qualquer forma de constituição, Políbios sustentou a possibilidade de haver repúblicas prósperas - como Esparta e Roma. A perspicácia do legislador impediria que as diferentes partes do corpo político “crescessem indevidamente
e
degenerassem nos males que lhes são inerentes”* contrabalançando, às paixões de cada uma, suas virtudes. Ou seja, emerge a idéia de que a estabilidade institucional de uma forma de governo e o controle da potencialidade de corrupção ocorrem pelo equilíbrio de forças e pelo choque de ações virtuosas entre as partes componentes do corpo político. Como afirmei anteriormente, Políbios via nas leis e nos costumes os dois fundamentos da sociedade. As leis, como mostra o autor, devem ser boas a tal ponto que moderem a vida privada, protegendo a comunidade política dela Inesma, ou seja, de suas paixões, e que gerem a justiça e motivem o homem a buscar o bem comurn através das virtudes. No entanto, os costumes são peças fundamentais para a prosperidade de uma república, porque eles podem ou tornar os homens desejosos em sua vida privada e injustos na vida pública, ou virtuosos a tal ponto que cultivem a igualdade e a liberdade, assegurando a solidariedade. São os costumes - que podem ser entendidos como cultura - que legam às gerações futuras determinados valores mediante os quais poderá ser impedida a corrupção do corpo político.. O bom governo, nesse sentido, depende dos costumes e da
lei, conforme uma filosofia da história que congregue, no sentido do aristotelismo, as fontes do poder legítimo e o efetivo exercício do poder, no mundo prático da política. É nesse sentido, segundo Políbios, que o governo misto, tal como elaborado na constituição de Licurgos, pode 41
assegurar a prosperidade e evitar a corrupção. O governo misto é uma organização institucional do Estado que visa à disposição de mecanismos de voz a todos os cidadãos € a todas as classes sociais, além de encerrar o ciclo de degeneração e de corrupção. A idéia de misturar as três formas boas de governo possibilita a institucionalização do conflito, em que o Estado passa a contar com um remédio republicano para evitar a corrupção: a participação de todas as camadas da sociedade na consecução dos negócios públicos, através do devotamento de cada cidadão à pátria. Correspondente a uma organização jurídica do Estado, entretanto, cabe ao legislador absorver, no conteúdo normativo das instituições, as virtudes inerentes à ação humana no plano ético. Desse modo, a doutrina jurídica do Estado deve conter as deficiências e os excessos das paixões através de uma engenharia institucional que congregue as diferentes forças presentes na ordem política, tornando a potencialidade de corrupção controlada em função da vida ativa dos homens, na consecução de sua felicidade. É comungando o Estado com o ideal de uma vida boa, de acordo com Aristóteles e'com Políbios, que podermos alongar a vida institucional e assegurar a prosperidade da polis. Tanto Aristóteles quanto Políbios formularam uma perspectiva do problema da corrupção levando em consideração os problemas práticos da política em suas épocas. Políbios, em especial, escrevia para a Roma republicana, levando em conta a experiência grega do governo misto e as tradições atenienses e espartanag. O ponto comum a am-
bos é a crença num processo de construção ascendente de virtudes, conforme um elemento pedagógico que promova 42
a prosperidade da ordem republicana, apesar dos contextos de crise que assolavam a legitimidade dos regimes políticos. Ambos acreditavam que a ordem republicana desencadearia um processo virtuoso de consolidação das instituições políticas. Dessa maneira, a corrupção seria um
elemento da política e do real exercício do poder político a ser superado, porém existente como potência no interior da ordem política. Diferente é a experiência romana. À filosofia política romana ressalta os elementos das virtudes e da vida republicana, recebendo os conceitos e perspectivas institucionais dos gregos, conforme o contexto de helenização de Roma.
Todavia, a recepção do conceito de corrupção
ocorre em um momento de crise da experiência republicana em Rormna, retratado especialmente nas asserções do estoicismo e de Cícero a respeito do conceito e da prática da corrupção. Na próxima seção, trato da experiência ro-
mana e da mudança conceitual operada no contexto da
crise do mundo republicano.
A CORRUPÇÃO
NO MUNDO
ROMANO
+A preocupação com o bom governo define os elementos de criação institucional por parte da teoria política. Se o aristotelismo derivou a expansão das virtudes como um problema prático da política no sentido de evitar a corrupção, os romanos absorveram essa concepção no sentido de pensar os elementos que configuraram a crise do último século da história republicana. Crises políticas,
derrotas e seguidas conspirações colocavam em xeque a
autoridade do Estado romano, de maneira que a corrupção 43
teria se lornado um tipo de prática comum relativa à prática da política. A inovação proporcionada pelos romanos foi discutir os critérios do bom governo com base em um contexto lingúístico de degeneração das virtudes políticas. Tal como apontado pelo aristotelismo, a virtude seria o elemento estabilizador da ação que permite identificar o critério de legitimação do governo com base na busca pela felicidade. Mas, lendo criticamente a abordagem aristotélica, os pensadores romanos destacaram o processo de abrandamento ou degeneração das virtudes, processo esse que pertenceria ao próprio mundo natural, tão importante ao estoicismo. No que diz respeito ao movimento e à ordem natural da política, o estoicismo herdou de Heráclito a concepção segundo a qual o eterno devir apoiaria a visão de que a corrupção seria inevitável, porquanto pertença à própria natureza da política. Para Sêneca, a felicidade depende de uma vida mora!l assentada no dever, o que caracterizaria a visão estóica da corrupção como a não realização dos deveres cívicos.” Sêneca, como conselheiro de Nero e mais
tarde seu algoz, argumentava que o cumprimento do dever é a única forma de realização da felicidade, tendo em vista uma ligação da prática da política com a realização fraterna da humanidade. ÀA corrupção é o correlato da felicidade, visto que o devir pressupõe a existência do mau governo como potência do bom governo. Dessa maneira, o cumprimento dos deveres aproxima-se de um exercício sagrado por parte do bom cidadão. Se o aristotelismo estava preocupado com a questão institucional de exercício do poder político,.os. 44
estóicos, em especial Sêneca e Cícero, acreditavam que
o aprimoramento do cidadão a partir da lei seria fundamental - sem ele o contexto de degeneração das virtudes
se concretizaria,
Cicero narra que a república absorveu as diferentes forças da sociedade romana, atingindo uma maturidade que lhe permitiu a grandeza.*' Se a cidade tinha sido fundada
por uma monarquia, ela foi incorporando gradativamente, em um primeiro momento, as forças aristocráticas com a
criação do Senado, por Rômulo. O Senado era uma agência estamental de conselho ao rei, que, mais tarde, incorporou elementos populares pela introdução da elegibilidade do rei, por Numa Pomrnpílio, e a criação das centúrias, no reino
de Sérvio Túlio. De acordo com Cícero, quando a monarquia decaiu para o despotismo, nos reinados dos Tarquínios, os nobres e a plebe o derrubaram para instaurar o regime dos cônsules, já em uma ordem republicana, Bruto e Colatino foram os primeiros cônsules da república romana. Ademais, quando o regime do consulado decaiu em oligarquia, com a instalação do decenvirato, consolidou-se a instituição dos tribunos da plebe, que ligavam o povo ao poder. Cícero adverte que a maturidade atingida com a ordem republicana estava justamente na união dos diferentes elementos da comunidade através da constituição mista, que tornou a ordem política mais estável, Mesmo na Antiguidade, o problema da estabilidade da ordem política era central para a fundamentação das instituições e para a teoria política como um todo. O desafio era equilibrar os antagonismos da sociedade romana, à época, e suas disputas internas, tendo em vista a formação
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de agências que encarnassem o império da lei. É interessante frisar que os antagonismos da sociedade romana
eram resolvidos pela criação de agências que identificavam a ordem. Ou seja, a sociedade não era representativa de indivíduos, no sentido moderno, mas de ordens estamentais identificadas por essas agências governamentais, as quais exerciam funções constitucionais específicas. À estabilidade, como destaca Políbios, jamais seria alcançada pelo fim dos antagonismos das ordens estamentais, mas pela permanência da disputa no exercício da lei.”? .A ordem republicana equilibrou as forças constituintes e os desejos marcados por cada um dos estamentos da sociedade, de forma que cada um dos grupos sociais pudesse participar no governo de Roma. É importante assinalar que os grupos sociais, comumente designados como classes, não devem ser compreendidos
em
sua acepção
moderna como grupos definidos em termos econômicos ou conforme sua posição na divisão do trabalho social. À ordem estamental, como ensina Weber, é uma hierarquia de grupos sociais definida pelo status que cada membro tinha no conjunto da comunidade.” Essencialmente, a ordem estamental é definida conforme a distinção de seus membros, que define, por sua vez, a extensão dos poderes políticos e legais exclusivos a cada um dos estamentos. Desse modo, o equilíbrio proporcionado pela constituição mista traçou uma sólida hierarquia de ordens ou estamentos, que se cristalizaram no império da lei não de modo funcional mas pelo poder político conferido a cada um desses grupos. Portanto, a monarquia, o Senado e os tribunos não eram agências funcionais, encarregadas de certas responsabilidades e com limites explícitos na lei. Eram, antes de qualquer coisa, instituições que distinguiam 46
as ordens estamentais, e não uma divisão do trabalho constitucional, a qual determinava funções específicas a cada uma dessas instituições.”* A grandeza do Império Romano está relacionada justa-
mente, como muitos historiadores afirmaram, com a or-
dem republicana. A constituição mista e a participação dos diferentes estamentos no poder permitiram a Roma atingir sua grandeza pela extensão de suas fronteiras além da cidade. Como destacou Montesquieu, a grandeza estava no ifíodo como a república instilou um estado de guerra permanente, sendo esse um princípio de governo que possibilitou sua expansão.” A república estava alicerçada em princípios de virtudes dos cidadãos, cuja participação permanente nos negócios do governo permitiu a manutenção da liberdade da cidade. O Estado romano tinha, de acordo com Montesquieu, uma alma que o vivificava. E
essa alma manifestou as virtudes políticas por um permanente espírito de patriotismo e por uma sacralização da república. E a medida do papel das virtudes na ordem republicana está, como afirma Montesquieu, no curto período em quea liberdade foi perdida em face da tirania dos decênviros, que recobrou a importância da participação da plebe nos negócios públicos.”* A grandeza romana estava depositada justamente na capacidade da ordem republicana de corrigir qualquer tipo de abuso de poder, tendo em vista a vinculação dos indivíduos a uma ordem que apertava a teia de interdependência entre a realeza, os aristocratas e o povo. À expansão do império pela distribuição de terras e pelo poderio da disciplina militar dos romanos ligou de modo eficaz os diferentes grupos estamentais, possibilitando a anexação de novas terras e uma permanente expansão. Sendo que a
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república era um bem sagrado dos romanos e dos povos que ficaram sob seu domínio! o abuso de poder e a corrupção erarii controlados pór um império da lei calcado nas virtudes do cidadão romano. As leis seriam fundamentais para a construção do bom governo, como apontou Cícero, visto que não se pode confiar na bondade ou na virtude do cidadão. O aprimoramento do cidadão passa por sua capacidade de cumprir os deveres cívicos expressos nas leis, cujo objetivo era garantir o equilíbrio no exercício do poder político. Cícero argumentava que a vida republicana depende do Direito como instrumento de realização das virtudes, com base em critérios de busca pelo bem, que ele definia como honestidade.”” A honestidade, de acordo com Cicero, é a primeira virtude do cidadão, a qual não se confunde com a busca do útil, defendida pelos epicuristas. A virtude se realiza, fundamentalmente, na ação honesta conforme os costurnes e os deveres que implicam em bons motivos para a ação.'A característica fundamental do estoicismo é uma visão dogmática das virtudes, que eles identificavam conforme a interpretação dada aos textos de Platão, em contraposição a Aristóteles, que via o útil como algo agradável e legítimo. A honestidade, para Cícero, é um valor primeiro, que se realiza nas leis e nos costumes. Daí a necessidade do Direito como um elemento pedagógico sobre as virtudes. Para tanto, Cícero acreditava que as virtudes passariam pela definição dos deveres cívicos, tendo em vista uma concepção do bem realizada nos costurnes da comunidade política.º Foi justamente o contexto de crise republicana que “ motivou Cícero a afirmar uma outra forma de concepção do bom governo. O bom governo passa pelas leis e pelos 48
costumes, tendo a virtude da honestidade como corifeu da
realização da vida republicana. Cícero denuncia o contexto de degeneração das virtudes republicanas e o modo como Roma estaria condenada à corrupção, caso nada fosse feito para mudá-la. O bom cidadão, que precisaria ser educado e aprimorado, deveria se submeter ao império da lei, caso a vida republicana quisesse ser mantida. Ao contrário disso, a experiência romana apontava uma crise interna,
dados os desequilíbrios entre os estamentos republicanos. A legitimidade da república estava em jogo, de maneira a aprofundar uma crise que foi sendo permanentemente adiada, Momento importante é o da disputa entre Cícero e Catilina, que revelaria, de acordo com
as Catilinárias,
o modo como a desonestidade seria o significado específico para a corrupção, entre os romanos. Narrada por Salústio, a conjuração liderada por Catilina é o retrato do modo como a corrupção se tornou prática corriqueira no contexto da política romana. De acordo com Cícero; a desonesta chegada de Catilina ao poder seria exemplo vivo de que a corrupção havia se tornado prática corriqueira na política. Pressionado por dívidas, Catilina tentou ser nomeado cônsul mediante conspiração e extorsão. Inter-
pelado por Cícero no Senado, Catilina partiu para a luta aberta, tentando matar Cícero, sem sucesso, fugindo para a Etrúria para liderar seu exército. Roma declarou Catilina inimigo público, sendo ele mais tarde preso pelo exército do cônsul Antônio e condenado à morte. À narrativa de Salústio descreve bem o contexto romano, como se pode depreender logo abaixo:
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Sendo eu jovem, no princípio fui arrastado como a maioria pela paixão à política e nela muitas coisas me foram adversas, pois no lugar do pudor, da integridade e da virtude, prevaleciam a audácia, o suborno e a avareza. E ainda que meu espírito desconhecedor das más artes depreciasse tudo isto, não obstante entre tão grandes vícios, minha indefesa idade se corrompia com a ambição. E ainda que discordasse dos maus costumes dos dernais, a ânsia por honrarias me deixava não menos que aos outros com a maledicência e com a inveja.”*
Salústio apontou que a corrupção se tornou algo corriqueiro na política republicana romana, sendo o dinheiro e o poder os elementos centrais para a construção do mau governo. Como conjunto de práticas corriqueiras, a corrupção, para o historiador romano, referia-se à gradativa decadência das virtudes que marcou o final da vida republicana, especialinente no último quarto de século, antes da conversão ao império. A conjuração de Catilina é resultado concreto desse processo em que a corrupção espraiou-se pela ordem republicana, dernandando a concretização de mudanças institucionais e o aprimoramento da vida citadina, conforme os termos das virtudes. Salústio, que era defensor de uma perspectiva anti-senatorial e que, mais tarde, lutou ao lado de César na Guerra Civil, narrou o modo como a corrupção estava relacionada ao desgoverno do Senado, que condenou Catilina à morte sem, no entanto, ter jurisdição para tanto.
O fato é que o estoicisimo romano abordou o problema da corrupção de uma perspectiva dos deveres, sendo o contexto de degeneração de virtudes relativo a um aprofundamento do papel do Direito na vida republicana. Daíl Cícero ovacionar a iniciativa de Lúcio Pisão de apresentar so
uma lei contra a extorsão.”º Todavia, ressalta Cícero, a lei
de nada serve se o cidadão não for aprimorado no exercício da virtude, a qual é compreendida pelo exercício dos deveres cívicos. O conceito de corrupção é a contraparte
da honestidade. Tanto assim que Cícero postulou a idéia do homem bom como elemento jurídico presente nas leis. A corrupção seria o sinal de que a busca pelo útil, defendida pelos epicuristas, acarretaria uma gradativa degeneração das virtudes da política. Se o aristotelismo ligava a corrupção ao plano do exercício efetivo do poder político, os estóicos, entre eles Cícero, ligavam àquilo que é externo ao ser, ou seja, a tudo aquilo que representasse o útil. A corrupção na política é resultado de uma gradativa crise da experiência republicana de Roma, sendo seu conceito ligado mais ao plano dos valores de uma vida ética. Roma, nesse contexto, era um laboratório em que práticas como chen.tg_smo, extorsão. e suborno eram formas para a.ngarla.r poder, desrêspeitando a idéia de uma vida pautada pelo decoro ou convenções da comunidade. Daí o processo 'decrise republicana ser inevitável, de acordo com Cícero, que via nas leis o único remédio para impedir o avanço da corrupção nas lides romanas.*' Mas a lei de nada bastaria se o cidadão não fosse aprimorado nas virtudes cívicas| O estoicismno, desse modo, une tanto o aspecto jurídico-formal, que interessava ao aristotelismo, quanto o aspecto propnamente pedagógico que a lei poderia exercer como motor das virtudes. A corrupção em Roma se expressou, de acordo com Cícero, na cobiça pelo poder adotada por César. À aristocracia senatorial jamais poderia se submeter ao medo e aos favores do ditador.! A corrupção estaria associada à falta de clareza nas decisões políticas e à falta 51
de honestidade dos cônsules. Esta é a razão da rediscussão moral das virtudes que Cícero operou em Dos deveres. O rearranjo das instituições da República e a mudança legislativa advinda com o assassinato de César, nos Idos de Março, em 44 a.C., por Brutus, não resultou na recuperação da vida republicana, porquanto o poder e o dinheiro corromperam a moralidade dos romanos. O resultado foi a conversão da ordem republicana em uma ordem imperial, conforme a ampliação das guerras civis por todo o território romano. Com a posterior cristianização do império, modificou-se tanto o conjunto das práticas institucionais, quanto a própria filosofia política, marcando um quadro de mudança conceitual da corrupção, baseado nas perspectivas do cristianismo. Mesmo assim, a inovação conceitual ocorreu no contexto da re-
cepção do platonismo no conjunto dos problemas do pensarnento cristão, em especial com Santo Agostinho.
A CORRUPÇÃO NO MUNDO MEDIEVAL E NO MUNDO RENASCENTISTA À corrupção tornou-se um
processo
cotidiano
em
Roma. Ao gradativo descontrole das arrnas e do dinheiro, somaram-se as crescentes imunidades legais previstas a certos estamentos da sociedade.” Essas imunidades legais mudaram a estrutura do Direito, de forma a proteger certos estamentos e esvaziar o império da lei. Devido à endemia da corrupção em Roma, a prosperidade do período de grandeza jamais poderia ser reconstruída, O Estado corrompido e as lutas internas pelo poder acarretaram a divisão do império, a qual foi provocada pela morte de Teodósio, em 395. 52
A fragmentação, a crescente insegurança e a oficiali-
7zação da religião cristã, de acordo com
Gibbon, foram
responsáveis pela queda do império.* Especialmente no
que lange à religião, segundo o autor, o cristianismo, reves-
tido do neoplatonismo, aprofundou ainda mais a apatia dos cidadãos em relação aos negócios do governo. Pela condição decaída dos homens, o cristianismo foi responsável por romper com a tradição de culto aos grandes feitos dos romanos. No juízo de Santo Agostinho contra
as teses de Cícero, não havia, na república romana, moralidade pública, e os feitos dos grandes cidadãos romanos, junto com seus deuses, não impediram a corrupção.** Para
Santo Agostinho, a fé cristã e o sinônimo da redenção
poderiam tirar Roma da corrupção e ingressar seu povo
no amor do Deus cristão, A cristianização do império foi responsável por retirar de suas instituições e de sua tradição o caráter sagrado, o qual era, como mostrei anteriormente, responsável por vincular ao poder político valores ligados à coisa pública. O amor ao Deus cristão retirou dos romanos a capacidade de amor à cidade. Na alusão de Santo Agostinho, a cidade
terrena cultua o amor próprio, o qual leva à corrupção e à
decadência moral, enquanto a cidade celestial propicia ao
homem uma negação de si mesmo. Ou seja, a vida ativa,
característica da grandeza republicana de Roma, deu lugar a uma vida contemplativa, em vista da condição decaída dos romanos, tão ressaltada pelo bispo cristão. Enquanto a religião dos romanos republicanos era responsável por reforçar um ideal de virtudes dos cidadãos, capaz de gerar uma compulsão ao bem e à probidade,ya religião cristã foi responsável por retirar da moralidade pública o caráter de ação. Se na república a ação política era 53
necessária, no contexto da larga corrupção de Roma, como destaca Agostinho, o único modo de estabilizar as lutas e impedir a degeneração da ordem estava no reconhecimento da fé cristã. O papel do cristianismo foi reformular a teoria política, de forma que o neoplatonismo de Agostinho representou, primordialmente, as tentativas de reorganização das instituições. Os conflitos políticos seriam resolvidos apenas quando 08 homens negassem a si mesmos. A pacificação do império e a estabilidade das instituições se tornariam realidade pela negação dos interesses materiais, Santo Agostinho depositava na contemplação o potencial para estabilizar politicamente o império e assegurar sua salvação. Como diz, num claro conselho aos romanos:.
Consente em assegurar tua liberdade contrao0s imundos
espíritos que te puseram no pescoço o jugo de sua igno-
Inínia, para consagrá-la a si mesmos e celebrá-la em sua honra. Excluíste do acesso às dignidades os intérpretes dos crimes divinos. Suplica, pois, ao Deus verdadeiro, que afaste de ti esses deuses que se comprazem em suas próprias velhacarias, quer verdadeiras, o que é o cúmulo da ignomínia, quer falsas, o que é o cámulo da malícia. Está bem que espontaneamente negues o direito de cidadania a histriões e comediantes. Acaba de abrir os olhos! A Majestade divina jamais aplaca as artes que empanam a dignidade humana.”
No entanto, as releituras feitas por Maquiavel e, mais tarde, por Gibbon destacam que o cristianismo foi o responsável por aprofundar a crise e introduzir todas as mudanças na ordem política, no âmbito da queda do império, no Ocidente, em 476. De acordo com Maquiavel, ao fomentar a apatia, o cristianismo
retirou de Roma
todo o ideal de ação política, fazendo com que o império 54
perecesse e se fragmentasse* Gibbon, por sua vez, susten-
ta que o cristianismo introduziu Roma na obscuridade e
na opressão, fazendo com que as lutas pelo poder dessem lugar a uma aparente estabilidade, que não foi capaz de impedir a queda * O Império Romano, a partir do século IV, inovou o conceito de corrupção, tendo em vista o modo como a nova religião definia as práticas políticas. A fragmentação gradativa do império e a oficialização do cristianismo proporcionaram uma mudança cultural que centralizou a idéia de decadência nas proposições da filosofia política. A recepção do platonismo ocorreu com a idéia de condição decaída do homem como premissa fundamental para pensar a política e suas instituições. A Tdade Média também assistiu a uma mudança conceitual da temática da corrupção, uma vez que o pensamento político estaria marcado pelo dogma cristão e pela existência de uma ontologia cindida entre dois mundos. De um lado, há a mundanidade infinita, pertencente ao reino de Deus, capaz de assegurar, de acordo com Santo Agostinho, as devidas virtudes capazes de gerar a integridade de uma república * De outro lado, a par do mundo
sagrado, existeamu.nda.mdade finita, pertencente ao reino
dos homens, na qual a corrupção, traduzida como o luxo e a cobiça, desempenha o papel de redenção à fé cristã, além de fazer parte da condição decaída em que se encontravam os homens. AÀ supremacia do cristianismo a respeito da corrupção carrega um forte teor neoplatônico, responsável por cin' dir a ontologia do mundo e romper com os pressupostos filosóficos antigos, especialmente com o aristotelismo, que, de algum modo, caiu em desuso. O ponto central é o 55
rompimento com a idéia de desmesura, modificando os termos de uma vida ativa, centrada nas idéias de ação e de virtudes, para uma vida contemplativa, na qual seria possível a felicidade pela contemplação de Deus. O rompimento com os pressupostos filosóficos do aristotelismo assegurou a transposição do problema da natureza humana para o problema da condição humana, a qual seria, por definição, uma condição decaída, cabendo ao dogma cristão a mediação entre o finito e o infinito, ou seja, entre os homens, corrompidos pela luxúria e pela
ganância, e Deus, capaz de redimi-los e de assegurar a salvação. A história, desse modo, não ocorre pela busca das transformações e das inovações introduzidas no tempo mas pela idéia de salvação; isto é, a história humana é a história da salvação, tendo em vista a presença de um mundo infinito dado à contemplação pelo povo eleito por Deus. Cabe à Igreja, portanto, o papel de mediar a condição decaída dos homens com a salvação prometida por Deus, tendo ela o poder de manter o gládio espiritual, ligado ao mundo sagrado, e indicar o gládio secular, uma vez que o poder é dispensado por Deus aos homens através da Igreja.*? Desse modo, não haveria uma preocupação, por parteda Igreja, com a temática da corrupção, uma vez que a condição dos homens se fazia decaída, cabendo apenas à conternplação, e não às virtudes do conhecimento prático, o papel de salvação. Não haveria, por conseguinte, uma preocupação com a construção de uma engenharia institucional destinada a alongar a vida da república, porque, em um mundo decaído, nem mesmo Roma poderia ser considerada uma res publicae, uma vez que seu povo
era uma
multidão
interessada 56
somente
em
seus
próprios desejos, sem a presença de um princípio trans-
cendente que ligasse o povo a Deus: A república ornaria a felicidade apenas se ascendesse o preceito relativo aos costumes cristãos, reinando em uma beatitude eterna destinada a amalgamar as verdadeiras virtudes: as virtudes dos santos.** Cabe ao poder secular, dessa maneira, reduzir
o medo
da admoestação de Deus, colaborando para a construção de uma ordem com base em uma vida contemplativa, que é a verdadeira, enquanto a vida ativa apresenta realidades falsas ou ilusórias. Segundo o pensamento medieval, fundamentado no neoplatonismo de Agostinho, a política é uma função do pecado original e da degradação humana decorrente deste, não fazendo sentido discutir a degeneração, já que nossa submissão ao eterno, à “cidade de Deus”, fará atingir a vocação necessária para manifestar a fundamentação das leis divinas, alcançando a redenção final. A política medieval se baseia, portanto, na objetividade do mundo decorrente da figura de Deus, ensejando um processo em que os homens estão atrelados ao juízo divino. Em relação ao problema do Império Romano e sua degradação, caberia uma resposta universal idealizada em sua transfiguração mediante a Igreja. À potencialidade de fragmentação do império, seria fundamental a constituição de uma autoridade assentada em um princípio universal, e não por força da vontade, como queriam os pensadores atrelados aos fins práticos da política, no mundo antigo. Todavia, a política deveria ser absorvida pelo pensamento cristão e transfigurada em um princípio universal capaz de assegurar a unidade.da humanidade. É desse modo que a política foi absorvida pela Igreja, tendo em vista, no século XIII, a tradução de Aristóteles para o latim, com o objetivo 57
de produzir uma grande síntese entre a natureza e Deus,
reunindo os elementos díspares e irreconciliáveis, como
o império e o papado, o paganismo e a cosmologia cristã,
e, enfim, o mundo dos homens e o mundo de Deus. À tradução de Aristóteles para o latim veio com o objetivo de rearticular a clássica cisão ontológica produzida pelo pensamento cristão da Baixa Idade Média, responsável, de algum modo, por acirrar o conflito entre os reis e os papas. Tomás de Aquino foi responsável por trazer ao centro do pensamento cristão o conceito de humanidade, organizando-o a partir de um dualismo entre o corpo natural — o Estado - e um corpo supranatural - a Igreja.** O corpo natural é configurado pelo corpo supranatural, do mesmo modo que a natureza humana é formada pela vontade de Deus, fazendo com que tadosse sujeitem à sua lei divina. Isto permitiu que esse princípio universal encontrasse guarida nos termos da monarquia, a forma de governo mais propensa a manter a integridade do mundo cristão. Frente aos particularismos que rondam o corpo natural, como as diferentes ordens, associações e necessidades reais, é necessária a constituição
de uma
autoridade balizada em sua finalidade de governar bem, ou seja, atingir a felicidade da multidão conforme um estado de graça alcançado mediante a fé.º O fundamento desta autoridade estaria na leitura tomista das cartas de
Paulo, que afirmaria o fato de Deus dispensar o poder a
favor dos homens, sendo os reis ministros do reino de Deus.** No preceito tomista, a monarquia seria uma forma de governo que não se corromperia, trazendo de volta a temática da corrupção, a partir da recepção de Aristóteles.
58
A legitimidade estaria alicerçada em um preceito universal que se sobrepusesse a toda forma de particularismo, não admitindo fissuras na unidade da humanidade. Este universalismo justificava a posição da monarquia, enquan-
to corpo natural, e da Igreja, enquanto corpo supranatural, trazendo ao centro da discussão o conceito de corrupção, que poderia atravessar a natureza mas não o transcendente. A ordem, por redundância, é compreendida como integridade, já que a unidade dos mundos e a universalidade do poder se estipulam pela política. O contraconceito da corrupção na política está na integridade da ordem frente
aos particularismos das paixões, no tempo. À corrupção, desde então, está contraposta à integridade da ordern, atravessando, conceitualmente, a constituição da política.
ÀA produção e a recepção de tal conceito por Tornás de . Aquino, já na Alta Idade Média, propiciou a retomada de seu debate enquanto patologia da política, já que tanto o domínio imperial quanto o domínio papal não conseguiam estabelecer uma ordem política capaz de se reproduzir no tempo. A justificativa é o fato de o tempo ser criação de Deus e pertencer à natureza humana, tornando de primordial importância a produção de uma síntese entre a natureza e Deus, ou entre o império e o domínio papal. A temática da corrupção é recebida pela vertente tomista do pensamento
cristão a partir do referencial
lingúístico aristotélico - preocupado com os termos de uma boa ordenação da política -, através de formas que sejam praticáveis e reproduzidas ao longo do tempo, porém atreladas a uma leitura religiosa da natureza. A recepção do aristotelismo por São Tomás de Aquino propiciou ainda a fundamentação jurídica do Estado moderno, abrindo caminho para a posterior secularização do 59
Estado e para a introdução do pensamento jusnaturalista.*º Antes, porém, o princípio de secularização é encontrado em uma monarquia idealizada não em sua transfiguração religiosa mas em sua transfiguração poética, em Dante, no século XIV.* A resposta ao problema do império ocupou um lugar muito especial, sendo ela a criação de uma autoridade de um governante único, responsável por assegurar a unidade da humanidade e, nesse sentido, da ordem. A felicidade seria alcançada, na concepção de Dante, por meio de um monarca universal, posto que apenas ele poderia garantir a tranquilidade e a paz, ou seja, evitar a corrupção.
Do mesmo modo, o monarca universal não poderia se
corromper, uma vez que já possuía tudo aquilo a que um homem poderia apetecer. As razões para a idéia de uma monarquia universal estariam nas lutas entre o poder papal e o poder secular, na Itália, onde faltava autoridade no âmbito dos assuntos públicos, derivando, desse quadro, uma corrupção generalizada. A baixeza do populacho e o egoísmo dos potentados e dos reis nacionais convenceram Dante a apontar uma monarquia universal como princípio capaz de controlar a corrupção na política.'No entanto, a legitimação não ocorreria-de Thódo que o poder fosse oriBinado pela sucessão de Pedro, o apóstolo. O poder seria originado da natureza e não dos papas, posto que, de modo algum, Deus confiou aos papas o poder de criar, A criação era obra exclusiva de Deus, e não caberia ao papado. Para restaurar a ordem, caberia ao monarca universal indicar, na forma de lei, um conjunto de virtudes derivadas de sua natureza secular, restaurando à política seu fim prático. Na prática, a tentativa de instauração de uma monarquia universal malogrou diante da precariedade de qualquer forma de controle imperial sobre os reinos itálicos. 60
O malogro de Henrique de Luxemburgo tornou a tese de Dante anacrônica, não fazendo jus à sua vivência frente ao poder dos papas.**À resposta para o problema da desordem da Europa durante o final do século XIII e o início do século XIV certamente é encontrada em Marsílio de Pádua, cuja tese é a de que os dirigentes eclesiásticos erraram ao atribuir à Igreja o poder legal, político ou qualquer outra espécie de jurisdição coercitiva.” A corrupção inerente a este âmbito da ordem, entendida como o abuso por parte dos sacerdotes, demandaria a separação entre o poder eclesial e o poder secular, transferindo a plenitudo potestatis do papado para o legislador humano.** No contexto de uma desordem manifesta no mundo europeu, capaz de levar à corrupção absoluta da humanidade, caberia ao poder secular fomentar a ordem e estabelecer a lei mediante um governo virtuoso.”º ÀA atuação da segunda escolástica e o contexto de crise de legitimação do poder papal e do poder imperial deflagrou, especialmente na Itália, uma série de movimentos
intelectuais que vêm, na esteira de Marsílio de Pádua, fundamentar o terna da separação entre o poder eclesial e o poder legal, traçando como horizonte o tema da liberdade. O poder papal passava por urna crise de legitimação, sendo considerado, fundamentalmente, um poder corrompido. A solução proposta pelo humanismo cívico, movimento nascente no século XV, é recriar o ideal de uma vida ativa e independente por parte dos cidadãos, tendo em vista a redescoberta do tema das virtudes e da corrupção. De um lado, o tema das virtudes está preocupado com a ordenação racional das leis por um enfoque claramente prático, herdado de uma perspectiva aristotélica. Colocando as virtudes no centro da reflexão política, os autores 61
do republicanismo cívico escolheram como horizonte de debate o problema da ação política dos governantes e o problema da legitimação deles junto à sociedade. O movimento republicanista procurará traçar princípios gerais de orientação da ação do corpo político, tendo em vista a absorção de certas virtudes por parte das leis e uma discussão substancial e não-formal da ação política. O conceito de corrupção é recebido e transformado na concepção do humanismo cívico. Enquanto o aristotelismo estava preocupado com o caráter jurídico-formal das constituições e o modo como elas podem controlar a potencialidade de corrupção, os humanistas cívicos concentrarão esfórços em umna espécie de vida política - e não em aperfeiçoar
a máquina governamental
— priori-
zando o aprimoramento do espírito público e a energia dos cidadãos.” Isto não significa que a máquina governamental não interesse os humanistas, mas de nada vale o esforço de aprimorar o governo se não houver o aprimoramento moral do cidadão. Os humanistas cívicos recontaram a história romana, especialmente de seu período republicano. O intuito era considerar o tema das virtudes ' pela ótica dô bom cidadão, na qual a corrupção estaria relacionada à apatia política e ao não cumprimento do dever, ao modo do pensamento estóico. O problema da liberdade, tal como colocado pelo humanismo cívico, diz respeito a formas virtuosas de ação por parte do corpo político, ou seja, à ação direta praticada pelos cidadãos no âmbito da esfera pública, independentemente de qualquer noção circunscrita em torno de sua
consciência ou de sua capacidade de cognição. O essencial é reconstruir um ideal de participação e de virtudes do vívere civile, capazes de refrear as paixões e possibilitar 62
o alongamento da vida institucional da república.*' À república se caracteriza pela contingência, sem nenhum
juízo a priori que organize a questão. À teoria das formas
de governo, como pensada por Aristóteles e por Políbios, não satisfaz, de acordo com os humanistas, a condição de estabilidade das instituições, já que as formas corrompidas não são desejáveis e as formas boas não podermn ser mantidas. A estabilidade das instituições depende de um tipo de vivência virtuosa por parte dos cidadãos. Entretanto, a perda da liberdade, em função da corrupção da república, de acordo com Leonardo Bruni, ocorre de
modo que o povo não exerça sua autonomia para criar as leis, ou seja, não exerça suas virtudes no sentido do bem,
abstendo-se de participar na esfera pública.ºº A maior amneaça à liberdade e a maior causa da corrupção é o fato de os cidadãos não se sentirem mais preparados para lutar por sua liberdade em face das agressões por parte de qualquer forma de opressão, mas, ao invés disso, preferirem ser representados na esfera pública, colocando sua liberdade nas mãos de demagogos não confiáveis. Os humanistas cívicos das repúblicas italianas dos séculos XIV e XV promoveram a recepção do conceito de virtudes e de corrupção, no âmbito da tradição romana, em vista de uma mudança operada nos aspectos centrais do vívere civile e não dos aspectos jurídico-formais do exercício de governo, ao contrário do que defenderia o aristotelismo. Não há uma preocupação com as formas
de exercício do poder, mas com as substâncias valorativas que orientam a ação do corpo político, em vista de princípios fundamentais que organizam o império da lei. Enquanto a idéia de liberdade significa a ausência de qualquer interferência externa e o poder de tornar parte 63
na vida ativa da república, a corrupção significa a ausência de espírito público no interior do corpo político. É desse modo que o conceito de corrupção, na forma como os autores renascentistas trataram a questão, estará relacionado
com a idéia de decurio, no plano moral,
e com a idéia de
populatio, no plano da comunidade, entendido este, no latim, como o povo não dotado de espírito público, capaz de destruir a comunidade. Se a república depende de ações virtuosas por parte do corpo político, no sentido prescrito pelos humanistas, dirá Maquiavel que, para as instituições se tornarem estáveis,
não deve haver qualquer preocupação com a natureza ou com as paixões que os homens possam carregar consigo.”* O sentido grego dado às virtudes e sua necessidade da forma jurídico-política para proteger os homens deles mesmos, ou seja, controlar suas paixões, não é o horizonte de uma teoria republicana, que lida com a contingência. O fator de estabilidade das instituições não está contido na engenharia jurídica das formas, como vem a pensar a linguagem do aristotelismo, mas nos valores que orientam e controlam a ação política, tanto por parte dos governantes, quanto por parte dos súditos. Por ver os súditos se tornarem apáticos diante dos assuntos públicos, como no caso de Florença, foi que Maquiavel condenou sua república a se tornar uma forma de governo estreito, a qual se corrompeu pelo uso arbitrário do poder em favor de interesses privados do governante.** O governo de Florença utilizou redes de clientelas assentadas no poder do dinheiro na forma de propinas e o uso do dinheiro para a compra de cargos públicos. Quando as virtudes do corpo político deram lugar à apatia, segundo o pensador florentino, ocorreu a corrupção da república. 64
Além das conotações em torno do problema da liberdade, outra temática importante para os autores republicanos é a fundação da ordem. É a existência de um bem comurm que, para eles, deve ser resguardada de qualquer ato arbitrário por parte do governante. O que justifica, na concepção republicana, a fundação de uma ordem política e a institucionalização crescente do conflito entre os homens, ou seja, o que justifica o vivere civile, é a existên-
cia de um bem que pode ser compartilhado por todos, sem nenhuma restrição aos participantes da comunidade política, o que se reitera no tempo através dos mecanismos da tradição. Como consagrou a interpretação de Pocock sobre a obra de Maquiavel, o republicanismo derivado do movimento renascentista aprimorou e inovou toda uma tradi-
ção de pensamento político, permitindo destacar um momento maquiaveliano, caracterizado por três elernentos, que aqui nos interessam:* (1) a reativação da vita ativa em contraposição à vita contemplativa própria do Cristianismo; (2) a concepção da república como uma ordem política dedicada a satisfazer e a controlar as paixões do zoon politikon, destinado a uma vida civil, tendo em vista sua
historicidade secular; e (3) a república como criadora de história e inscrita no tempo, ou seja, sem uma eternidade
ou projeção ideal, estando, portanto, sempre exposta a crises e à potencialidade de corrupção. A república manifesta-se, desse modo, não como universal ou eterna, mas como uma comunidade histórica singular. O republicanismo, desse modo, reconheceu a vida comunitária como a única capaz de criar um mecanismo de agregação da ação, consubstanciando uma idéia de bem que se incorpora no imaginário dos indivíduos. A condição 65
da vida comunitária é o devotamento dos homens a esse bem público, através da sua participação política ativa na esfera pública, derivando uma ação virtuosa, independentemente de qualquer tipo de natureza dada a priori. À corrupção, entretanto, surge da apatia do cidadão diante dos assuntos da república, além de ser perniciosa no sen-
tido de sempre expor a vida republicana a crises as quais, por sua vez, reforçam ainda mais a apatia do cidadão. À corrupção, por conseguinte, é extremamente nociva à vida
republicana, porquanto cria um ciclo de apatia e crises que reforça ainda mais esse tipo de prática na ordem política. A tradição alonga a vida das instituições, possibilitando sua adaptação às mudanças por meio de um constante experimentar, o qual se dá nos rituais cívicos, que reforçam, no imaginário simbólico, o preceito do bem comum.
Cenários de crise institucional, desse modo, demandam sempre um retorno ao passado, um revigoramento da
tradição, visando a impedir a corrupção do corpo político e a reordenar as instituições para manter a estabilidade. A recorrência a princípios é, pois, fundamental para a orientação da teoria republicana renascentista, uma vez que eles asseguram a reprodução da ordem mediante os termos de uma fundação dada a interpretações. Desse modo a tradição é constantemente revigorada, permitindo sua reprodução no tempo, já que sua historicidade possui uma secularidade singular. A teoria republicana renascentista retomou, portanto, o tema da corrupção no âmbito do debate político, rece-. bendo o conceito da tradição romana e transformando-o, colocando-o no plano moralizado da comunidade. Além disso, o tema da corrupção está relacionado ao tema da liberdade, tendo como horizonte de sua discussão a idéia 66
de espírito humana em a natureza atrelada às
público, que atravessa as conotações da ação contextos políticos, sabendo, de anternão, que humana é eminentemente desejosa, ou seja, paixões. O republicanismo, por conseguinte,
irá revigorar o conceito de virtudes, adicionando a ele um
adjetivo que denota seu caráter comunitário, isto é, cívico. Como potencialidade, a corrupção é inerente a todas as ordens políticas, cabendo às virtudes cívicas o exercício de seu controle. O PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO E O CONCEITO DE CORRUPÇÃO As filosofias políticas dos séculos XVII e XVIII se orientaram pela aplicação de mecanismos das consideradas ciências naturais para conclusões a respeito da política e da sociedade. O que animou esta nova concepção filosófica não foi a obtenção de concepções ideais de mundo deslocadas da história mas a ocasião de derivar princípios normativos capazes de mudar a política por dentro da história. Os séculos XVII e XVIII assistiram ao nascimento da ciência moderna, atrelada a uma concepção naturalizada e sustentada em juízos empíricos. Ademais, quanto ao conceito de corrupção, o domínio da ciência moderna proporcionou uma virada em seu sentido linguúístico, ao desvincular o problema da corrupção do problema moral das virtudes. Nos diferentes aspectos da vida política, ocorreu essa separação entre a moral e a lei, proporcionando uma inovação conceitual no que tange à corrupção. À moderni-
dade erigiu com uma nova moral política, marcada não 67
pela unidade dos valores mas por seu crescente pluralismo. Acima desse pluralismo de visões de mundo, a legitimida-
de não seria alcançada mediante
a tradição,
mas
pela
afirmação de uma autoridade soberana que concentrasse o domínio como domínio formal. Esse processo levou a uma mudança conceitual da política e da corrupção. A primeira experiência na inovação conceitual da corrupção, certamente, é encontrada em Montesquieu.
No espírito de sua época, Montesquieu ocupa no pensamento político um lugar de transição entre a Antigúidade clássica e a modernidade, em que fará uma tentativa de amalgamar o novo com o tradicional.** Como observou Aron, O espírito das leis constitui uma narrativa histórica com o objetivo de tornar o mundo inteligível, porquanto o autor substituiu uma diversidade caótica por uma ordem conceitual generalizante, que organiza o processo de entendimento da realidade.”” Por outro lado, Althusser aponta que Montesquieu lançou, com sua obra magna, as bases para a ciência social moderna, tendo em vista o problema da socialidade* O espírito das leis tem o objetivo de conjugar o tradicional com o moderno, derivando uma teoria de transição que assenta suas bases primeiro na tentativa de construir
um modelo ideal normativo, a partir do qual o autor
buscará as fontes éticas e morais da política; segundo, no
uso recorrente dos elementos empíricosda ciência de sua época. No que tange ao tradicional, Montesquieu desenvolveu uma tipologia das formas de governo a partir de uma inspiração aristotélica, predominando um viés normativo, isto é, um “dever ser” que organiza os modos de pensar e de agir do político. Em outra esfera, no que tange ao moderno,
O autor está preocupado com a realidade efetiva das coisas, 68
investigando as causas reais dos acontecimentos, formando
um sistema conceitual generalizável. Montesquieu abordou o problema da política a parlir da conjunção da nmatureza, conforme os objetivos da ciência moderna, com os princípios, que organizam os diferentes lipos de governo. Por natureza, o autor entende o número de pessoas de um dado Estado que detêm a soberania, fazendo com que o governo seja o que ele de fato é. Em outras palavras, a natureza do governo é a forma como se dá a organização institucional do Estado,
derivando, a partir daí, como serão as relações da sociedade com o poder. Por princípio do governo Montesquieu entende aqueles sentimentos recorrentes na ordem social, que fundamentam a organização da natureza a partir da harmonia e da obediência dos homens em relação às leis. O princípio do governo é a paixão e não a virtude, que orienta as atitudes dos homens em relação ao aparato institucional do Estado. AÀo comungar natureza e princí-
pios, Montesquieu agregou, aos temas fundamentais da teoria política antiga e renascentista, os temas de uma ciência preocupada com a natureza das coisas, ocupan-
do, dessa maneira, um lugar de transição na história da teoria política. A conjunção de natureza e princípios permitiu a Montesquieu criar uma nova linguagem para a temática da
corrupção, atrelada ao papel da economia na vivência dos modernos, moralizando, desse modo, a representação do eu mediante seus interesses. A moralização dos interesses, como destaca Hirschman, possibilitou uma virada epistemológica e conceitual da política, que passou a estar assentada na sobreposição maciça do Estado sobre a república.”* A lógica dos interesses é constituída, na modernidade, com 69
o intuito de envolver os desejos
e mantê-los sob controle,
possibilitando uma ordenação da política independente do tema das virtudes do corpo político ou da moralidade da ação política em arenas públicas. A constituição da boa ordem sai da república e encontra assento no Estado, tendo
em vista o princípio da representação dos interesses e a
crescente tutela por parte do Estado, em face do sistema moderno de produção.*“ Para Montesquieu, a república é uma forma de governo que não condiz mais com os tempos modernos. É uma
forma de governo muito frágil, à medida que pressupõe que todos os cidadãos sejam virtuosos e que devotem seus espíritos ao bem da comunidade. Para Montesquieu, a república é um regime que pertence ao passado, no qual pequenos grupos de homens virtuosos se reuniam em uma esfera pública para deliberarem os negócios do governo, tendo em vista certa igualdade de riquezas e de valores, condizentes com o pequeno território. O contexto da produção intelectual presente em O espírito das leis é um ciclo de crescimento das populações, do comércio e da diversificação das riquezas, ensejando um processo de fissura da sociedade em classes sociais, que redundará na não possibilidade das virtudes cívicas. Uma vez que a virtude necessita, para se tornar efetiva,de uma ampla igualdade de condições entre os cidadãos, a diferença provoca o surgimento da inveja e da cólera, sobrepondo as paixões a qualquer tipo de virtude moral que seja a base da organização política.
Montesquieu, portanto, observou no mundo
mo-
derno a supremacia do interesse, porque não é possível
mais a manutenção das virtudes num mundo que busca, incessantemente,
a acumulação 70
do capital. Os
atores
políticos se fazem representar na esfera pública por seus interesses, fazendo com que o ordenamento político não possa ser sustentado no princípio da virtude e nem na precedência da idéia de bem comum como horizontes da ação humana.º A solução do autor, por conseguinte, é buscar leis positivas decorrentes das relações políticas, as quais façam a intermediação entre os homens e suas necessidades, distribuindo e organizando o poder com o intuito de assegurar a paz social e a liberdade. De acordo com Althusser, foi a partir desta compreensão que Montesquieu rompeu com a tradição do aristotelismo e do republicanismo, ao considerar que o problema da política não é um problema de paidéia — educação cívica.ºº Porém, Montesquieu estava preocupado com a maneira pela qual seria possível à humanidade criar leis positivas, que exprimissem penalidades, mediante as quais 'se processariam constrangimentos morais às paixões dos homens. Ou seja, o autor estava preocupado com a forma como os homens criariam artifícios nomológicos que exprimissem, por meio da coerção, constrangimentos aos
próprios homens em relação à coisa pública. As leis podem corrigir a imoralidade do interesse por meio da coerção, tornando a ação humana reta no sentido de uma ética derivada da realidade efetiva das coisas, que opera no plano externo à consciência. À moral se separou da política, na modernidade, demandando ao Direito o papel de enunciação dos valores.º Para Montesquieu, é o Estado monárquico que melhor condiz com a realidade efetiva das coisas. O espírito das leis rompeu com o civismo republicano, acreditando que o desenvolvimento das sociedades leva ao declínio das virtudes, fazendo emergir um 71
mundo
marcado
pelos
interesses particulares e pela desigualdade; nenhum procedimento de justiça pode ser configurado consensualmente pelos homens, uma vez que eles caminham apenas em direção a seus interesses. Todavia, apesar de fazer esta constatação dramática, Montesquieu ainda tomou a república romana como paradigma normativo para a modernidade em ascensão. Paradigma esse que orienta a construção
de instituições que evitern a corrupção.
Porém, essa construção institucional está alicerçada em outras bases que não as virtudes e o decorrente espírito público. Asleis positivas cumprem o papel de assegurar a liberdade, a qual, segundo o autor, significa a prerrogativa de cada cidadão “poder fazer o que se deve querer e [...] não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar”.“ Isto é, os cidadãos devem fazer o que as leis prescrevem com base nos costumes e nos valores presentes nas.sociedades, sofrendo penalidades caso desviem dos preceitos legais acordados de forma legítima. Assim sendo, a legitimidade não é alcançada medianite a tradição, mas pelo império da lei. Além do rompimento com o tema das virtudes, carac-
terístico da linguagem do aristotelismo e do republicanismo, Montesquieu rompeu também com a tradicional concepção de liberdade, estando ela assentada na ausência de constrangimento e na possibilidade de autonomia, prescindindo da comunidade ou da vida ativa como mecanismo que assegure urna vida livre por parte dos atores políticos. Não é possível, em sociedades comerciais, que aprofundam a divisão do trabalho, manter a vida republicana, como designaram os renascentistas do século XV.
Apesar disso, ela opera como um paradigma ou projeção 72
ideal para as instituições, apesar de não ser crível, do pon-
to de vista histórico e instrumental. As instituições não mas na própria ambição que caracteriza a vida dos modernos. Essencialmente, as instituições devem fazer com que
a ambição e o interesse sejam capazes de ordenar a vida política, de maneira a garantir estabilidade e progresso. Já que a liberdade é garantida por uma engenharia institucional assentada nas leis, que absorve os diferentes interesses representados na esfera pública, e que estes inte-
resses significam uma forma de moralização dos desejos,
a melhor maneira de criar uma engenharia institucional é fazer com que a ambição se contrarie. O arranjo institucional da monarquia deve ensejar a separação dos poderes, que representam os interesses do monarca, da aristocracia e do povo, para moderar os apetites humanos e evitar o despotismo e a corrupção. Montesquieu indicou que a condição Para à manutençãoda liberdade é o arranjo institucional monárquico que prevê frêias e contrapesos ao
poder, moderando a natureza desejosa do homem através de sua representação perante o poder do Estado. Além disso, é a partir do surgimento das classes sociais que o autor falou dos organismos intermediários enquanto força social capaz de moderar os apetites dos governantes, além da criação de canais de representação, ligando Estado e sociedade. Sobre esse ponto, Althusser observou que a teoria da separação de poderes de Montesquieu não é apenas um problema jurídico-administrativo da organização do governo, como muitos doutrinadores jurídicos observaram.* Trata-se do problema de como criar correlações de força que moderem as paixões e os interesses das diferentes classes sociais, mantendo intacta a liberdade 73
política. No seu famoso estudo da constituição da Inglaterra,Montesquieu observou como a separação de poderes
serviu para frear os apetites dos ingleses. O autor mostrou
como a separação entre o monarca - poder executivo -, as duas assembléias do povo - a câmara dos lordes e a câmara baixa - e o judiciário serviu para implementar a moderação entre os ingleses, impedindo que eles caíssem no despotismo e assegurando a liberdade de todos os cidadãos e a prosperidade mediante os interesses particulares. Se a liberdade política somente pode ser alcançada pelo princípio da moderação, qualquer forma de governo, segundo Montesquieu, corrompe-se quando seus princípios normativos degeneram-se. Em O espírito das lé%m corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios”* A corrupção do governo ocorre quando o móvel psicológico dos comportamentos políticos não mais assegura a moderação dos apetites, fazendo com que as instituições políticas não mais consigam efetuar suas responsabilidades e que a harmonia dê lugar à discórdia entre os cidadãos, esmaecendo a solidariedade dos homens e implementando a desordem. O governo corrompido é aquele que se esvai de seus princípios, configurando uma institucionalidade marcada pela violência e pela usurpação, sem qualquer tipo de normatividade que dê sustentação ao aparato institucional. Dessa forma, a república democrática é corrompida quando as virtudes cívicas dão lugar aos interesses privados — o cidadão não mais quer obedecer à autoridade legítima do Estado, mas às próprias convicções -, resultando na desordem, tal como ocorreu em Roma. O efeito da corrupção da democracia é sua condução ao despotismo de um só, em decorrência do espírito de igualdade extrema. O não 74
devotamento à comunidade conduz à licenciosidade e à libertinagem, redundando na supremacia dos interesses privados sobre o bem comum. À medida que a república não precisa de leis positivas, ela facilmente se corrompe, dado que seu princípio organizador é a virtude. A república aristocrática é corrompida quando os nobres da sociedade não mais se orientam pelo espírito público a partir do momento que seu poder se torna arbitrário, trans-
formando a obediência dos súditos em submissão, ou seja, a aristocracia transforma-se em oligarquia.”” Montesquieu observou que um dos principais fatores de corrupção da aristocracia é ela tornar-se hereditária, promovendo um total espírito de negligência, preguiça e abandono, fomentando um declínio da obediência ao Estado. ÀA monarquia se corrompe quando o monarca não mais
obedece às leis, convertendo a honra, manifestada na ambição do corpo político por prerrogativas e dignidades, em supressão dos súditos e em poder arbitráª/lªor outras palavras, Montesquieu asseverou que a ambição não mais se contraria levando à concentração dos poderes e ao uso dos interesses privados para interesses privados. Assim, a concentração do poder em uma ou poucas mãos é o que caracteriza, para o autor, a corrupção da monarquia, já que
suas instituições não efetivam a obediência dos súditos ao aparato administrativo da sociedade. Uma vez que os súditos não têm a garantia de que a obediência resultará na harmonia das coisas, eles se orientam por seus exclusivos interesses, violentando os demais concidadãos para saciar seus apetites.
Finalmente, o governo despótico é corrompido por
natureza, porque seu princípio leva a uma constante discór-
'dia entre os cidadãos, uma vez que não há nem leis e nem 75
virtudes que assegurem a liberdade, em circunstâncias que levam os indivíduos a se subrneterem cegamente ao medo. No império da violência, não existe obediência porque a razão implica a ausência de liberdade. No despotismo, a corrupção é a regra, já que não existe nenhum tipo de aderência do político à norma. O medo implica a ausência de respeito à norma, uma vez que a corrupção, segundo
Montesquieu, é a própria norma. — O conceito de corrupção, como demonstram os termos lingúísticos presentes em Montesquieu, se transpõe de um
mal natural atrelado aos vícios, no plano moral, para o poder arbitrário do corpo político, que deve ser moderado através da tutela jurídica no plano formal das normas. Ocorre, desse modo, a mudança de um problema moral para um problerna jurídico, traçado em torno da questão. da arbitrariedade do poder em função da impossibilidade das virtudes no plano da política. O fundo ético é a moderação dos interesses através de instituições responsáveis por implementar normas coercitivas em um mundo de desiguais, não havendo nem virtudes e nem procedimento, ou seja, não havendo nem a antecedência do bem comum,
nem a antecedência do procedimento de formação dos princípios de justiça. No seu lugar, é o princípio da honra — entendida como interesse — e a formação de instituições que podem moderar os apetites e evitar
a corrupção do
corpo político. O bem comum apenas pode ser alcançado com a regulamentação crescente do mundo dos homens desiguais da modernidade e com a criação de jurisdições coercitivas destinadas a combater qualquer forma de arbitrariedade, tanto por parte do legislador quanto por parte do governo. Arbitrariedade que é combatida por um aparato legal, cuja 76
formalidade é assegurada pelo Estado, o qual está separado do governo e da própria sociedade. AÀ ordem jurídica formal, entretanto, encontra seu substrato material em interesses. Contudo, essa mesma ordem jurídica opera acima da moral, de forma a arbitrar os interesses, dado o problema da socialidade. A corrupção, desse modo, passa a ser concebida como qualquer forma de uso arbitrário do poder, apontando mais os aspectos formais do plano jurídico do que os aspectos morais presentes na esfera pública, confundindo, muitas vezes, corrupção com ilegalidade, além de prescindir da idéia de que é um problema de vícios do político. A virada conceitual dos séculos XVII e XVIII modificou os termos pata se pensar a corrupção na política, fundamentando uma releitura de sua raiz etimológica, referente ao problema da destruição ou putrefação da ordem, ligando-a à idéia de arbitrariedade ou usurpação. Em vista das diferentes longo do pensamento político, podemos derivar desse processo três modulações distintas, no plano conceitual: (1) o problema do arranjo das instituições para controlar .a corrupção do corpo político; (2) o problema do espírito público e das virtudes do corpo político; e (3) o problema das leis e do controle da arbitrariedade. Mesmo pensadores modernos, entretanto, criam separações conceituais relacionadas ao problema da corrupção em relação à república e ao Estado. De acordo com Rousseau, inspirado em Montesquieu, em face da cisão entre república e Estado, a corrupção é sinônimo de restrição deste, e ocorre quando o governo não o administra mais conforme o conjunto de leis definido deliberativamente 77
pela vontade geral, usurpando o poder soberano e se tornando arbitrário.*º De acordo com Rousseau, quando esse fato ocorre, o Estado se restringe e forma-se um outro dentro dele, composto unicamente pelos membros do governo. Quando a soberania é usurpada pelo governo, o contrato social está, portanto, rompido e os homens retornarão à liberdade natural, sendo forçados a obedecer. Entretanto, pode ocorrer que os membros do governo usurpem, separadamente, a soberania. O resultado é a existência de vários príncipes e vários magistrados, dividindo o governo, que deveria agir como um corpo. Quando o Estado se dissolve dessa maneira, o abuso da soberania resulta em anarquia, e o corpo político morre, porque seus membros não têm uma única autoridade a que obedecer, mas uma série de supostos príncipes que abusam da soberania em nome de uma série de desejos insaciáveis. A corrupção no plano da república ocorre, de acordo com Rousseau;, quando determinadas virtudes do corpo político deixam de ser observadas, fazendo com que o procedimento da vontade geral não seja mais respeitado. Ou seja, a corrupção da república é sinônimo de degeneração dos valores da comunidade, os quais dão lugar à avidez dos homens em seu estado natural. É desse modo que a religião civil é necessária como mecanismo de reprodução das virtudes, permitindo alongar a vida institucional republicana, paralela à vida institucional do Estado, tendo em vista a obediência à vontade geral e o respeito aos princípios da autoproteção e da auto-realização. A corrupção, portanto, não é mais compreendida através do conceito de virtudes, mas do conceito de interesses como substrato material das leis. A linguagem do pensamento político moderno
aborda a corrupção em 78
torno
do problema da arbitrariedade dos governantes, da qual resulta toda forma de opressão e desordem. Tanto o é, que essa linguagem fundamenta sua concepção de liberdade não enquanto um fim, sendo possível alcançá-la pelo exercício de determinadas virtudes, mas como
um
meio,
já que os fins são díspares o bastante para que possam ser agregados na forma de um valor. Por outras palavras, a liberdade positiva dos republicanos pode ser uma forma de opressão, uma vez que não permite o exercício da autono-
mia individual, em face da centralidade da vida cívica.
Dessa maneira, os juízos morais, entre os modernos, não estão assentados nas virtudes mas nas necessidades,
admitindo que todas as leis estejam fundadas em recom-
pensas e punições, conforme relações necessárias entre
objetos.ºº O juízo empregado pelos modernos é formado ém torno do problema das necessidades, tendo em vista a primazia da produção e dos interesses sobre a política, configurando um quadro de moralização assentado não no par virtude e comunidade mas no par interesse e indivíduo. O homem é desejante e os interesses propiciam a moralização dos desejos, criando mecanismos de controle sobre a ação individual, denotando, a partir disso, um conceito de corrupção ligado aos termos dos interesses e não das virtudes. O tema da corrupção, no juízo de um conceito assentado linguúisticamente na presença da economia política, carrega à preocupação com a ordenação do modo de produção, tendo em vista a condição ontológica do ser fundamentada na figura das necessidades materiais e concretas, visando à reprodução do sistema e à regulação externa do agente social. Ao mesmo tempo em que demanda a presença do Estado, e não da república, o controle 79
da corrupção encontra-se na presença de um mercado, locus privilegiado de satisfação das necessidades e de moralização dos interesses.”º O alongamento da vida institucional sobrevém mediante uma engenharia jurídica que dá ao Estado a capacidade de tutelar os interesses e distinguir, funcionalmente, o interesse público do interesse privado, além de o mercado gerar um equilíbrio no poder dos atores através da competição. Uma vez que o pensamento político moderno assenta-se na presença de sociedades mercantis, o problema daá política desloca-se para a construção de uma ordem legítima com base em uma visão funcional do Estado na sociedade. Portanto, o pensamento político moderno trabalha com o problema da corrupção através de uma sernântica distinta daquela que tracei para o aristotelismo e para o republicanismo, moralizando os interesses e encobrindo o
tema das virtudes, reproduzindo a ordem por uma organização das necessidades em contextªcis'el:ãªànliígsj)omo observa Hume, o interesse é a-antárra das paixões e dos vícios, sobretudo porque oferece a confiança necessária na regularidade futura da conduta dos homens. Além disso, é essa regularidade e essa confiança, fundadas no interesse, que permitem a moderação e a abstinência através do seu conflito, pressuposto nos princípios de justiça, já que “o egoísmo humano é atiçado pela escassez de nossos bens, quando comparados às necessidades; e é para restringir esse egoísmo que os homens se viram obrigados a se separar da comunidade e a distinguir entre seus próprios bens e os dos outros””'
Se o interesse não depende da comunidade nem das
virtudes, a corrupção ocorre apenas numa distinção arti-
ficial e naturalizada entre público e privado, ensejando á
8o
componentes funcionais de representação da sociedade perante o Estado. O essencial, na lógica dos interesses, é a reprodução de uma ordem sem a dependência de uma virtude moral ou disposição humana, cabendo apenas à natureza desejante estabelecer a justiça e criar uma simpatia como interesse público, o qual se coloca como um artifício criado em torno de um sentimento de aprovação moral e não de uma virtude ou disposição dos atores perante esse público. O juízo, dessa forma, é externo ao indivíduo, tendo em vista suas necessidades concretas e nenhuma forma de adesão a valores, uma vez que não necessitam ser justificados racionalmente. Não havendo a necessidade de adesão a valores, a única premissa é a necessidade de sirmpatia à idéia de público, não se confundindo com um espírito ou virtude inerente aos atores.”? “ Pela linguagem do pensamento político moderno, o conceito de corrupção é concebido através do artifício,
próprio dos modernos, dos interesses, sobretudo quando se considera a necessidade de uma simpatia e não de uma virtude por parte do corpo político. Deslocando o conceito para o campo da representação dada no plano formal do Estado, desconsidera-se todos os substratos materiais presentes na esfera pública, com base em um horizonte de liberdade traçado em torno da idéia de autonomia individual e de reprodução das condições materiais através de uma ordem.iOrdem esta sujeita a corrupção, compreendida não em seu aspecto político, lI"nas eminentemente econôrnico.
81
A CORRUPÇÃO
E AS CRISES DE LEGITIMIDADE
(!)
O conceito de corrupção tem uma história, se pensar-
mos os contextos em que foi recebido ou modificado, possibilitando assim a ampliação do seu horizonte de aplicação empiírica. É recorrendo a essa história que o objetivo deste trabalho é ampliar o horizonte analítico da corrupção na política, frente a seus dilemas conceituais. Essa história do conceito de corrupção é marcada por momentos de crises de legitimação, em que os atores qualificam a ordem política como corrompida. A corrupção é um fenômeno estrutural dos momentos de mudança social, à medida que esteja correlacionada às crises de legitimação. Necessariamente, do modo como a teoria política, através de seus diferentes pensadores, estabeleceu a idéia do que venha a ser um bom governo, estabeleceu também quais são, potencialmente, as possibilidades de corrupção, derivando, dessa maneira, a articulação de uma organização jurídico-política destinada a conter seu avanço e a possibilitar a reprodução da ordem. O problema inerente à corrupção é o fato de ela ser uma possibilidade constante, fazendo parte da natureza das ordens políticas. Inescapavelmente, o problema é como evitá-la e alongar a vida institucional, seja da república, seja do Estado. O esforço intelectual é imaginar mecanismos institucionais,
mediante os quais se possa adiar a corrupção, através do controle sobre o corpo político e sobre os grupos sociais integrados à comunidade política, Como a corrupção é um contraconceito de bom governo, há uma ligação necessária entre determinados valores no plano moral e sua ocorrência na esfera pública, enquanto fenômeno. Ou seja, para pensar o que venha 82
à ser a corrupção, necessariamente temos que pensar o. que
vem
a ser
o bom
gOVCl'l'l() e o modo
como
os
atores
justificam determinados valores e normas, atribuindo às instituições o qualificativo da integridade ou da corrupção.
Pelo fato de estar relaclonado a um valor e qualificar, por conseguinte, determinada ordem política, o problema da corrupção não escapa ao aspecto moral, não podendo ser apreendido, nesse sentido, através da naturalização de seu conceito. Daí o fato de que não existe um conceito unívoco a respeito da corrupção, porquanto ela se liga a problemas práticos da política, ou seja, pertence a uma razão prática ligada a problemas históricos específicos. Como não escapa à moral política, o conceito de corrupção aparece nos mormentos de crise de legitimidade das instituições. À corrupção se torna aparente e corriqueira
nesses contextos de crise, porquanto as mudanças sejam fatos da história. Mudanças que foram compreendidas de duas formas diferentes. No mundo antigo, a corrupção estava associada à idéia de decadência institucional. No mundo moderno, contudo, as mudanças são representadas mediante o conceito de revolução.” À corrupção é um fato endógeno à política e se torna mais aparente nos contextos de transformações históricas. O pensamento político, nesse sentido, foi profícuo na discussão dos valores e normas, tendo em vista os contextos de corrupção e crise. Se os mornentos de mudanças dirigem o olhar ao futuro,” a história do conceito de corrupção revela o fato de que ela está associada aos ciclos de crises de legitimação que assolaram a política em diferentes momentos. Essas crises significam a erosão das bases consensuais dos valores e normas que organizam a política. À erosão dessas bases consensuais demonstra que a corrupção está além 83
do aspecto meramente mercantil, próprio de uma leitura econômica de mundo. À corrupção pode ter diferentes formas, como vemos nas substantivas diferenças que marcam a Antigiidade e a modernidade. Pensar a corrupção a partir da dimensão dos valores e normas, consensuais e pressupostos, possibilita uma critica moral da política, em que pesem os ciclos de crises de legitimação. Dessa forma, a corrupção está correlacionada a processos de patogênese institucional, de acordo com as transformações sociais e suas correlações de formas do poder político. Como o conceito de corrupção tem uma história, é fundamental perceber que sua dinâmica está em uma hermenêutica das crises de legitimação. Por se tratar de uma história centráda no ato de pensar valores e normas, a corrupção deve ser analisada na dimensão do discurso político. Por estar associada à moral política, a corrupção é representada como a precedência dos interesses privados em relação ao interesse público. Ou seja, uma dimensão da vida privada que não é legítima, pelo fato de estar dissociada dos valores e normas que organizam o interesse público. A corrupção está relacionada a valores e normas pressupostos, em função do aspecto moral que envolve seu conceito e sua história. Por conseguinte, há uma relação direta com os princípios de justificação de normas, conforme um processo racional de deliberação, mediante o qual é possível derivar o significado da corrupção. Dessa forma, se procurarmos as significações morais da corrupção, temos
que perceber que eles estão relacionados a discursos ernpregados pelos atores para qualificar a ordem política.
84
A compreensão do significado da corrupção apenas
pode ocorrer através da apreensão dos tipos de juízo
emitidos pelos atores em contextos de razão prática, convergindo diferentes modulações que fazem parte do plano moral, mobilizando, para tanto, valores e necessidades
num quadro factível posto à comprovação. Não é intenção desse trabalho naturalizar conceitos. Ao contrário, pre-
tende-se ampliar o horizonte analítico da corrupção, comungando com as diferentes linguagens presentes na esfera pública, que utilizam o termo corrupção para qualificar determinada ordem política. A compreensão do significado e do altance-da corropção na esfera pública contemporâ'nea necessita desse alargamento de horizontes intelectuais,
(indo além da mera noção de legalidade ou de interesses. A história conceitual aqui empregada, guardadas as devidas proporções que ela mereceria, propicia o alar-
garnento do horizonte de aplicabilidade da idéia de corrupção, haja vista o fato de a ordem se estender a outras formas de modulação na esfera pública, que não apenas a ordem no plano do Estado e no plano da economia. Não se pretende, por outro lado, jogar fora o que foi até aqui produzido, mas apenas focar sua análise em torno dos sentidos estabelecidos pelos seus usos lingúísticos, os quais permitem absorver, dentro do círculo lingúístico, as causas, o alcance e as conseqiiências da corrupção nas
ordens políticas contemporâneas. Dessa forma, a história conceitual da corrupção fornece, como observa Koselleck, possibilidades estruturais, e não apenas o caráter singular de fatos passados.”* E são as possibilidades estruturais que
aqui interessam, caso se queira fazer uma crítica moral da
corrupção nas democracias contemporâneas, uma vez que problemas do passado ainda se fazem presentes.
85
Mesmo que a história do conceito de corrupção aqui empregada não tenha contemplado o século XIX, é possível perceber que o recurso ao pensamento político clássico, medieval, renascentista e moderno fornece os elementos básicos de compreensão dos conceitos políticos fundamentais a uma teoria da corrupção, em especial o conceito de legitimidade. Não temos a pretensão de fazer uma linha do tempo do conceito de corrupção, mas resgatar proposições teóricas que forneçam a possibilidade de compreensão analítica das formas de corrupção. O resgate das questões relacionadas à corrupção no mundo antigo, medieval, renascentista
e moderno permite a ampliação
do horizonte de aplicabilidade de seu conceito, de acordo com a discussão de valores e normas que asseguram a legitimação política. Nesse sentido, a linha de interlocução teórica do conceito de corrupção está na sua associação com os contextos de crise de legitimidade. O fundamental, portanto, é pensar um quadro analítico da legitimidade nas democracias, suas crises e a corrupção nesses contextos - o que
farei no próximo capítulo, discutindo, no marco do pensamento moderno e contemporâneo, um marco analítico da corrupção na política.
86
CaAPÍTULO
AS FORMAS
Se o fenômeno
[[
AÀ MORALIDADE E DA CORRUPÇÃO
da corrupção
tem uma vinculação
necessária com a moral política, é fundamental pensar uma perspectiva analítica que possibilite sua reflexão nos contextos de crises de legitimidade. Sendo a corrupção : um qualificativo da ordem política, com base em valores e normas, ela se expressa no plano do discurso político empregado pelos atores em interação social. A corrupção,
portanto, não se resume ao aspecto monetário, como tende a ver a abordagem econômica da política e da dernocracia. Ela custa dinheiro. Isso é inegável. Porém, em uma dimensão fenomênica, ela se expressa como discurso, de forma plástica e flexível, conforme valores e normas pressupostos. O objetivo deste capítulo é formular uma perspectiva analítica da corrupção na política, partindo da premissa de que a compreensão dg*legitimigíade só é possível através da justificação da ordem política.
O modo como a corrupção, como vimos no capítulo
anterior, está atrelada ao plano da moralidade implica o fato de os atores qualificarem determinada ordem como corrompida ou íntegra. À corrupção na ordem política significa um juízo emitido pelos atores em contextos de interação, sendo ela um qualificativo moral que denota os termos em relação à boa conduta por parte do corpo político. Através dos juízos morais os atores compreendem o alcance da corrupção na esfera pública. Uma questão não abordada, entretanto, é se os atores têm capacidade para
emitir esses juízos, tendo em vista as sociedades complexasdá contemporaneidade! Em outras palavras, quais os critérios para a emissão dos juízos, pensando a pluralidade de valores e de concepções do bem? Na perspectiva de John Rawls, a faculdade do juízo tem um limite intrínseco, visto que a ordenação da política por parte de indivíduos razoáveis e racionais está atrelada a um desacordo razoável em torno das fontes da ordenação.! Ou seja, não é possível haver consenso em torno de valores morais, fazendo com que o valor possa ser defensável, uma vez que sociedades complexas são, necessariamente, sociedades plurais, permeadas por doutrinas divergentes e razoáveis, as quais possibilitam diferentes tiposde julgamento por parte dos atores. As fontes do desacordo estão no fato de os valores morais e políticos serem moldados pela experiência, sendo constanternente sujeitos a controvérsias, além de as considerações normativas se
pautarem por pesos diferentes por parte dos atores. O desacordo tem por conseqijência a limitação das instituições para admitir valores. Em sociedades complexas, portanto, a ordenação
ocorre por um
consenso
constitucional
sobreposto, destinado a absorver as fontes do desacordo
e dos juízos para processá-los no sentido da estabilidade, não se confundindo com um consenso efetivo originado dos atos de vontade. A referência de Rawls aos limites do juízo moral por parte dos atores, em sociedades complexas, faz jus a uma articulação deontológica da ordem, em vista de fins formatados individualmente, conforme uma concepção construtivistada política. O que esta concepção dos juízos morais não considera é que a emissão de um juízo é levantada contra algo que ocorra no plano da experiência, tomando a ordenação política de modo a priori, ou seja, a ordem necessita estar justificada racionalmente para que um juízo possa ser emitido, não havendo como configurar juízos antes da ordenação. O que, ainda, a perspectiva rawlsiana não reflete é o fato de a experiência se articular às expectativas comportamentais formadas no plano contrafactual, vinculando o experimentar a normas que orientam o agir em contextos de interação. A perspectiva
rawlsiana da moralidade pressupõe uma matriz contratualista da teoria política, dependendo de um consenso sobreposto, de acordo com os princípios de justiça, respei-
tada acondição de uso do véu de ignorância. Por se tratar de um mecanismo hipotético, a moralidade está desatrelada da experiência e da capacidade de aprendizado por parte da sociedade.
A par do experimentar, desse modo, temos configurações de valores que permitem emitir um juízo acerca
da ordem.À discordância moral, como destaca Bernard
Williams, envolve, essencialmente, expectativas normativas dadas à experiência, uma vez que ocorra uma ordenação anterior que permita a emissão dos juízos.º Juízos morais estão relacionados à justificação da moralidade, que se 89
constitui a partir de seu próprio avesso, ou seja: a moralidade é mobilizada sempre que algo coloca em risco a ordem
vigente, formatando juízos que ofereçam uma motivação
para o comportamento orientado por normas. Por outras palavras, a emissão dos juízos depende de uma ordenação configurada ex ante, que determina normas em função de
expectativas para o comportamento humano. Tais normas permitemn o experimentar em contextos sociais plurais e
complexos, e o comportamento que orientam depende de sua potencial transgressão para que tenha aderência junto aos atores, fazendo com que o juízo em torno da corrupção mantenha uma relação intrínseca com uma ordem de valores que motive a existência da própria norma. À moral, portanto, assegura a coerência da nqr'"riàpela adesão dos atores aos valores expressós por expectativas comporta-
mentais normativas. A emissão dos juízos morais e mesmo a possibilidade intrínseca do desacordo entre os homens dependem de uma afirmação da ordem, fazendo com que a possibilidade de julgamento-ocorra apenas-em-função de uma expectativa comportamental formatada numa norma. À emissão de juízos parte dos sujeitos, mas isso não constitui uma
referência ao subjetivismo moral, tal como defendido por Hare.º O subjetivismo moral acusa que os juízos morais emitidos pelo sujeito expressam suas posições mais pro-
fundas, significando observações autobiográficas, as quais representam uma tomada de posição por parte do individuo, resultando, como observa Williams, no relativismo moral. A emissão do juízo não se limita a descrever a posição de quem fala, mas depende das motivações e impulsos morais, que envolvem
a referência a conteúdos do
juízo os quais explicam a situação do homem munidos da
(se'
conduta que se espera dele, ou seja, em concordância com à posição do outro.
A configuração dos conteúdos desse juízo envolve expectativas comportamentais, que levam em consideração vivências e jogos de linguagem por parte dos atores que os empregam. Como observa Habermas, a linguagem da moralidade envolve, necessariamente, a emissão de juízos justificados no plano da razão prática, os quais permitem a postura de assentimento ou de rejeição por parte do sujeito.* O jogo da linguagem moral envolve uma analogia da moral com o conhecimento, vinculando o sentido prescritivo, tais como as asserções “correto” ou “proibido”, ao sentido epistêmicô, tais como as asserções “justificado” ou “injustificado” Numa herança da deontologia kantiana, Habermas vinculou a moralidade a um saber moral, o qual faz referência à ação em contextos de interação face a face. —Desse modo, o saber moral envolve as premissas de verdade e de correção no âmbito das expectativas normativas, indicando que os juízos são necessariamente descritivos, ao mesmo
tempo em
que prescritivos, por significarem
um estado de existência acompanhado do caráter obrigatório dos modos de agir prescritos ou-proibidos. JVerdade e correção das normas são interdependentes, porque a , Segunda se estabelece apenas pela verdade dos enunciados prescritivos, ao mesmo tempo em que a primeira depende da prescrição para descrever factualmente a ação. O sentido de correção da norma implica, na acepção habermasiana, a aceitabilidade racionalmente justificada, que assegura sua devida aplicação por jogos de linguagem que estabeleçam a verdade, no plano descritivo do agir, através do conhecimento ou saber moral. 9
Uma vez que a moralidade envolve a construçãode ' um saber moral, o plano do agir comunicativo torna-se responsável pela fundamentação de normas que ocorre Sapenas pelo estabelecimento de consensos. A rmoral tem uma natureza inclusiva, porque tem a pretensão de atrelar
ao agir uma norma reguladora que se dê no plano universal, porquanto respeite o critério de validade estabelecido racxonalmente e acordo com Habermas, “só são válidos normas que, do ponto de vista inclusivo da igual consideração de reivindicações pertinentes de todas as pessoas, poderiam ser aceitos por boas razões por parte
e cada pessoa envolvida”” Em
vista de seu critério de validade da norma e dos
ÁJuizos, a eficácia da moral está no reconhecimento pelo círculo de seus destinatários, demandando sua fundamen-
tação no plano de consensos normativos
que integre
plano do agirasnormas reguladoras do comportamento.
A correção dos juízos morais emitidos pelos atores, em situações de comunicação, é garantida por um acordo racionalmente motivado acerca de normas, o qual assegura o impulso regulador presente nas situações de fala. A emissão:desgnizos morai3, desse modo, depende da construção de conserisõos que operem no plano contrafactual a junção da experiência do agir com as expectativas configuradas em normas para o mesmo agir. —Dizer, portanto, que certa ordem política é corrompida ou que algum ator praticou um ato de corrupção significa mobilizar nessa asserção normas que estão no plano de consensos normativos, em torno de expectativas comportamentais. Quando levadas ao plano factual, a emissão do juízo acerca da corrupção degendªe um cnténo descn-
tivo de verdac
92
par de um critério prescritivo envolvido na correção das normas. Por outras palavras,
a emissão de um juízo moral que
diz que certa ordem é corrompida ou íntegra depende de uma validade configurada em uma assertibilidade idealmente justificada - entretanto, de acordo com Habermas, não significa que se tenha esgotado a possibilidade de desacordo moral; esgota-se apenas o sentido da correção normuativa, dado quehá uma norma consensualmente
reconhecida pelos atores, mas sujeita a prova é à experiências desintegradoras a todo instante. AÀ emissão dos juízos morais depende, pois, da formatação de consensos normativos que operam no plano contrafactual, os quais denotam a moralidade do agir em vista de normas que têm
uma natureza inclusiva por pretenderem ser universais.À possibilidade do juízo está no fato de o agir ser constante-
mente avaliado, porque os consensos normativos operam
com uma reserva falibilista. O desacordo razoável, dêsse modo, permite a constante (re)fórmatação dos consensos
normativos e não é motivo para a incapacidade de emissão dos juízos morais, mesmo em sociedades complexas. uando os atores emitem um juízo acerca da ordem Áíºtica. mobilizam consensos normativos que operam as expectativas comportamentais
no plano intersubjetivo,
configurando uma possibilidade de avaliação e de correção «do agir em contextos políticos. Da ligação entre os juízos morais e os consensos normativos, podemos derivar os mecanismos através dos quais os atores delimitam as fronteiras de corrupção e honestidade do agir do corpo político, conhecendo sua abrangência na esfera pública.
93
. OS JUÍZOS MORAIS
>*E OS CONSENSOS
NORMATIVOS
D
' Como vimos, a emissão de um juízo ªo,rgb,d.ep_en.de «da configuração de expectativas normativas estabelecidas consensualmente por parte dos atores. A legitimidade desta configuração surge de acordos racionalmente motivados em urma situação de uso público da razão. Usando a razão icomunicativa, os homens podem construir consensos . normativos com base nas dimensões da validade estabeJecidas em situações de discurso. Por haver uma pretensão de verdade nos atos de fala, os homens podem produzir compreensões lingiísticas que coordenem a ação social, fazendo com que os contrafactuais operem de modo relevante na construção e na manutenção da ordem social e política--Os contextos sociais são produzidos através da
universalização da aceitação racional, congregando uma
ordenação capaz de mediar o sujeito com as formas cognitivas do agir. AÀ dupla contingência da ação comunicativa, entretanto, é absorvida na interação, havendo o constante risco do dissenso, ou seja, da desintegração social latente.ó "Todavia, esse dissenso se impõe como mecanismo próprio
'ao entendimento: prefere-se a motivação racional para o acordo à estabilização violenta de expectativas de comportamento, no sentido da teoria dos sistemas.” Mediante um acordo racional justificado nas dimensões da validade, é possível aos atores produzir uma sociabilidade passível de crítica constante, a qual é dinâmica no que diz respeito à possibilidade de mudança, face ao contrafactual da possibilidade de dissenso. AÀ ordem, na chave de pensamento habermasiano, é a manifestação empírica dos acordos racionais produzidos pelos homens na esfera pública, mediante deliberação, os quais são capazes de 94
tencionar a facticidade das necessidades cotidianas com a validade produzida intersubjetivamente nos discursos éticos. Por haver uma pretensão de verdade no discurso,
a validade da ordem somente pode ser assegurada se seus afetados puderem deliberar, mediante o uso público
da razão comunicativa, os termos da ordenação e dos — procedimentos democráticos necessários à tensão entre
: facticidade e validade.º Ou seja, a construção de consensos normativos depende da justificação racional de valores, a qual opera constanternente com matrizes desintegradoras oferecidas por controvérsias introduzidas em situações de fala. As expectativas normativas são fundamentadas na práxispública de justificação racional de valores por uma comunidade de comunicação, visando a estabelecer a verdade de enunciadosnormativos em função de razões justificadoras, as quais assegurem um processo de aprendizado moral. Isto é, as convicções normativas partilhadas intersubjetivamente têm uma função cognitiva que leva as partes conflitantes a um constante experimentar de normas colocadas à deliberação. O saber moral é sempre empregado na construção dos consensoss normativos, já que a justificação racional de normas ocorre em paralelo à sua constante crítica. AÀ moralidade, desse modo, tem uma função epistêmica, que opera com justificações racionais dadas ao entendimento. .- A função cognitiva da norma, entretanto, apenas ocorre em discursos de aplicação, que selecionam, dentre as normas justificadas, aquelas que serão dadas aos casos colocados à correção. À emissão do juízo moral, desse modo, ocorre em contextos de aphcaçao de normas racionalmente
justificadas, que passaram pelo crivo de situações críticas 95
oferecidas pelas matrizes desintegradoras, fomentando, no
plano prático da razão, sua função pedagógica. À par da justificação, que constitui motivações e valores normativos que orientam os atores no sentido do consenso, existe a
aplicação, que assegura a eficácia das normas no sentido da ação coletiva empregada pelos atores. Ou seja, a emissão do juízo depende de normas morais bem fundamentadas, que reivindicam sua validade prima facie. Eventuais situações conflitantes ou não previstas na aplicação de normas geram uma nova necessidade de justificação, que é realizada, desse modo, apenas em um discurso de aplicação. A emissão de juízos morais, portanto, ocorre em função de discursos justificadores e aplicadores de normas, face às formas consensuais com as quais os atores motivam o agir.
AÀ fundamentação de normas morais, de acordo com Habermas, ocorre por uma atitude autocrítica nos contextos de aplicação, a par de uma troca empática das perspectivas
interpretativas oferecidas
por contextos
de justificação.?Os juízos envolvem uma moralidade configurada em torno de uma justificação racional de valores dados à aplicação por meio de normas. Todavia, como observa Eisenberg,'a teoria habermasiana oferece apenas uma minima moralia, uma vez que as condições
da razão prática se dão em contextos institucionais que devem assegurar a proeminência dos procedimentos de deliberação sobre os valores."* Isso implica o fato de que antecede à moralidade um formalismo kantiano, o qual vincula à obrigação uma idéia de valores fundamentados no plano epistêmico. Esta minima moralia oferecida por Habermas, de acordo com Eisenberg, impede a produção de novos arranjos institucionais além do estado constitucional, que protege 9%
os cidadãos por meio de direitos básicos que lhes assegurem a livre participação e a segurança. Além do estado
constitucional, existem outras formas de ordenação da
política, derivadas por deliberação nos planos da justifi-
cação e da aplicação de normas. Em situações anteriores
à deliberação, como indica Eisenberg, existem posições de divergência ou convergência em relação à justificação e à aplicação de normas, configurando quatro cenários distintos para a construção de horizontes normativos. Ele separa a validade da aceitação racional, sendo possível que uma norma válida no plano da justificação não seja aceitável no plano da aplicação. Desta divergência configuram-se os quatro cenários, permeados por metaprincípios de justificação e de aplicação de normas. Os metaprincípios de justificação constituem as Imnotivações e os valores normativos que movem os atores na direçãodo consenso. Esses metaprincípios estão acima das doutrinas morais divergentes dos atores, definindo agendas políticas de ação, uma vez que constituem as motivações fundamentais da política. Por outro lado, a cada um dos quatro .metaprincípios de justificação, existe um de aplicação, que articula uma propriedade em justificações racionais de normas, definindo uma estratégia de ação coletiva para os atores. Entre ambos, existem os mecanismos de arbitragem, com os quais cada um dos tipos de consensos normativos tem assegurada a eficácia na aplicação de normas, cujo resultado é a reprodução do consenso sem a necessidade de recorrer permanentemente aos instrumentos de deliberação. Se a corrupção significa a emissão de juízos morais por
parte dos atores políticos, e estes dependem, como salienta Williams,'! dos conteúdos das expectativas normativas, a estratégia de Eisenberg permite especificar a natureza 97
dos consensos por seus conteúdos morais, derivando os juízos que permitem a descrição da ordem conforme sua corrupção ou sua integridade. Da posição inicial de convergência ou divergência em relação à justificação e à aplicação derivam-se quatro tipos de consensos, cada qual correspondente a um princípio de justificaçãoe um de aplicação. Em primeiro lugar, se há uma concordância explícita entre o metaprincípio de justificação e o metaprincípio de aplicação, estamos envolvidos em um consenso comunitarista que, de acordo com Eisenberg, implica a articulação da justificação identitária entre os atores, correspondendo à reprodução de valores comuns o princípio de aplicação de normas. Uma vez que os atores precedem ao justo um conceito de bem comum, a arbitragem ocorrerá pelo reafirmar da tradição, institucionalizada na forma de costumes, para os quais a legitimidade refere-se à identificação dos atores com os valores da cultura. - Em segundo lugar, se há uma discordância no plano da justificação, aindã que haja concordância no plano da aplicação, estamos diante de um consenso liberalo qual utiliza como justificativa a idéia de tolerânciaà diversidade moral, tornando necessária a aplicação baseada na proteção de liberdades individuais. A arbitragem ocorre pela distribuição de direitos, institucionalizada na forma de leis sancionadas pelo sistema jurídico. Em terceiro lugar, se há uma concordância no plano da justificação, mas uma divergência no plano da aplicação, estamos diante de um consenso republicano,
uma
vez
que a concordância na justificação Témete à idéia de
fundação
da ordem,
que define um
momento
inicial
quando, consensualmente, se delimita a cidadania. Desse 98
modo,
a aplicação sc dá no afirmar de virtudes cívicas
que produzem uma arbitragem centrada na distribuição de deveres.
Finalmente, se estamos diante de uma divergência tanto
na justificação quanto na aplicação, ocorre um consenso
autoritativo motivado pelo fato de os atores buscarem a continuidade da ordem. Mesmo que divirjam em ambos os planos, os atores podem consentir em transferir a autoridade para um soberano, que arbitra, mediante coerção, a segurança destes em troca de sua obediência, num típico cenário hobbesiano. A idéia de que os atores configuram consensos normativos, em face de metaprincípios que atravessam a ordenação da política, permite uma abordagem dinâmica para a moralidade, uma vez que, como destaca Eisenberg, diante de problemas práticos, os atores podem mobilizar outros tipos de consensos, alterando suas estratégias de justificação e de aplicação de normas na busca de um novo consenso. Ou seja, os quatro tipos de consenso são dinãâ-
micos a ponto tal que circulam livremente na sociedade, podendo ser mobilizados em determinada situação de conflito ou juízo em torno da moralidade. Cada consenso, desse modo, possibilita a emissão de um juízo conforme os metaprincípios de justificação e de aplicação de normas. Diante de um quadro factível de corrupção da ordem, os atores podem mobilizar esses consensos para gerar um
juízo que visa um tipo de normatização, a qual assegure a
manutenção da ordem através da aplicação de normas ao agir, tomado cormo desintegrador ou desviante. A par dos metaprincípios de justificação, podemos caracterizar os juízos morais como emissões substantivas de avaliação da ordem política, em função da antecedência dos consensos 99
normativos, que organizam a moralidade diante da apli-
cação de normas.
Uma vez que a corrupção ocorre em potência, seguindo
uma orientação aristotélica, esta circulação de consensos normativos em sociedades complexas permite a reprodução da ordem mediante um círculo virtuoso da democracia, o qual possibilita, de acordo com Eisenberg, a passagem de um consenso a outro sempre que a ordem for colocada em perigo, ou seja, na iminência de sua corrupção.” A identificação desses estágios de potencialidade da corrupção, entretanto, ocorre pelo fato de os atores emitirem juízos acerca da ordem, num contexto de avaliação constante que integra a experiência com as expectativas de comporta-
mento. Os agentes, através de processos discursivos, criam e justificam barreiras entre o público e o privado, visando a impedir a corrupção da ordem política, em face dos consensos normativos. Nesse sentido, a corrupção e a honestidade em relação à coisa pública são termos definidos com base em um processo lingúístico, através do qual os indivíduos atribuem seus significados e sintaxe. . Cada consenso normativo justifica a existência da ordem e permite a descrição de sua potencial corrupção, tendo em vista valores e normas consensuais que especificam a legitimidade da ordem política. Como fato da política, a corrupção é uma ação ilegítima dos agentes, de acordo com valores e normas pressupostos, que especificam as condições pré-reflexivas de sua compreensão por parte dos atores. Corrupção elegitimidade, nesse sentido, são termos cognatos, porque só através da corrupção os valores e normas que especificam a legitimidade se tornam concretos, e apenas com os valores e normas pressupostos é que podemos compreender o que vem a ser a corrupção 100
na política. Como
termos cognatos, existe uma relação
estrutural entre eles, uma vez que a corrupção se torna muais aparente nos contextos de crise de legitimação. Pensar a corrupção, dessa maneira, demanda a compreensão dos juízos morais dos atores, conforme valores e normas justificados em um plano deliberativo. A mobilização de juízos morais para descrever a potencialidade de corrupção da ordem, a partir dos consensos normativos, depende, contudo, de interrogações de avaliação forte, no sentido dado a esse termo por Charles Taylor.” Quem emite um juízo moral mobilizando os consensos normativos, o faz na tarefa de levar uma vida plena, ou seja, emite aqueles juízos que alicerçam plenamente o agir..Por outras palavras, trata-se de juízos sustentados em configurações da vida por excelência, a par da vida cotidiana. A distinção entre a vida por excelência e a vida cotidiana, traçada por Charles Taylor, possibilita articular a passagem dos princípios de justificação para os princípios de aplicação, não atentada nem por Habermas nem por Eisenberg. Entre os contextos de justificação e os contextos de aplicação, temos os princípios de mediação, que transfiguram justificações racionais de expectativas comportamentais normativas em aplicações da norma no
sentido de sua eficácia, porque oferecem os mecanismos que permitem a transmutação de valores justificados racionalmente em sanções imputadas ao agir."* Os princípios de mediação configuram semanticamente a passagem do discurso de justificação para o discurso de aplicação, em vista de um discernimento do viver em sociedade. Avaliações fortes em torno do bem viver permitem a formação empática de valores, que asseguram a reprodução da ordem. O bem viver é uma finalidade de 101
uma associação política, tendo em vista a identificação
dos indivíduos em torno de valores comuns, pertencentes
a uma ordem de distinção. Na chave aristotélica, o bem viver significa a contemplação teórica e a vida ativa por
parte do cidadão da polis. Por outro lado, avaliações fortes
que mobilizem a vida cotidiana para emitir um juízo permitem a formação simpática de valores, que asseguram a reprodução da ordem através da solidariedade em torno de necessidades vitais. Na mesma chave aristotélica, a vida cotidiana é uma forma de associação exclusivamente privada, porque os homens, substancialmente produtores e reprodutores, se associam exclusivamente pelos objetivos econômicos e defensivos. Tanto o consenso republicano quanto o consenso comunitarista mobilizam um discurso de mediação atrelado à vida por excelência. Na república, a vida por excelência traduz a fundação em virtudes do corpo político, visando a evitar a corrupção da ordem. O bem viver significa o vivere civile, fundamentado na idéia de um espírito público que permeia O agir do corpo político em face de sua nobreza, honra e glória. No consenso comunitarista, a vida por excelência traduz as identidades em bem comum, configurando uma tradição que deve ser protegida de sua corrupção mediante valores que afirmern a vida comunitária através de um sistema cultural..O princípio de mediação do discurso pela vida por excelência significa que o bem viver pertence a uma configuração de valores, a qual antecede a ação e identifica os atores na excelência de seus atos em contextos de interação. O consenso autoritativo e o consenso liberal transfiguram justificações racionais de normas em aplicação
através de um discurso de mediação ligado à idéia de-. 102
vida cotidiana. À vida cotidiana, seguindo a orientação
de Charles Taylor, designa os aspectos da vida referentes
à produção e à reprodução, ou seja, às coisas necessárias à vida e à existência.”” A vida cotidiana é a afirmação do
homem comum, que configura a identidade moderna em torno de um self desprendido, tendo em vista um pluralismo de valores próprio da modernidade. O homem é, essencialmente, produtor e reprodutor, sendo digno de uma vida cotidiana que orienta o agir pela motivação atrelada às necessndades O consenso autoritativo traduz a justificação em torno da segurança em aplicação através da obediência, tendo em vista necessidades como a proteção à vida e à propriedade. O consenso liberal, por outro lado, traduz liberdade em direitos, em vista de uma vida cotidiana que afirma a autonomia privada do cidadão para perseguir e satisfazer suas necessidades, no sentido de uma moralizaçãodo interesse." A emissão do juízo moral para descrever a corrupção de determinada ordem política aciona valores e necessidades. Ou seja, para avaliar a integridade ou a corrupção, mobilizamos juízos morais de valor e juízos morais de necessidade, de acordo com noções pressupostas de bom governo, O juízo não depende da pessoa que o emite, como afirmaria o subjetivismo ético, mas do objeto que é passível de avaliação forte por parte dos atores.”” No contexto de orderis políticas, os atores mobilizam as diferentes formas de consenso normativo, transfigurando os princípios de justificação em aplicação racional de normas. A emissão desses juízos, todavia, depende dos princípios de mediação do discurso, que permitem avaliações do objeto passível de crítica, por meio de valores e necessidades. 103
Os juízos morais de valor dependem de relações empá-
ticas que identificam os atores, porque se mobiliza o conceito de corrupção para descrever a não excelência do corpo político, em função de uma configuração de valores
que orienta o agir em contextos sociais complexos. Tanto
a justificação racional de valores em torno da fundação, quanto a justificação racional de valores em torno das identidades demanda do comportamento dos atores normas entronizadas, que são aplicadas pela ação virtuosa e pelo respeito aos costumes de determinada comunidade política singular. Já os juízos morais de necessidade demandam relações
de simpatia por parte dos atores, porque o princípio de mediação da vida cotidiana fundamenta a solidariedade como mecanismo primordial da moralidade. Não se espera do corpo político a excelência do agir, mãs apenas uma neutralidade em relação a valores, a qual permita a cada indivíduo satisfazer suas necessidades."* Em sociedades complexas, alicerçadas na vida cotidiana, cabe ao Estado, em face da divisão do trabalho social, a realização moral do indivíduo.” A justificação racional da segurança e da liberdade demanda apenas a afirmação de normas que assegurem, respectivamente, a aplicação mediante a obediência e os direitos, que atuam no plano externo do indivíduo, em vista de um consentimento.
A emissão dos juízos morais ocorre em contextos de
avaliação forte por parte dos atores, sendo, no caso da corrupção, em torno da ordem vigente. Os atores mobilizam valores e necessidades para representar a ordem política, derivando, desse processo, os adjetivos da corrupção ou da integridade,Do ponto de vista formal, em face dos tipos de juízo moral emitidos e dos tipos de consenso normativo,
podemos configurar distintas modalidades em que a corrupção se apresenta à avaliação dos atores. Essencialmente,
estou preocupado em definir categorias de análise sobre o fenômeno da corrupção, as quais se assenterm em um plano lingúístico sempre recorrente, frente ao factual da corrupção na política. Num
quadro factível, dividido em linhas tênues que
separam os tipos de consensos normativos, podemos derivar quatro modalidades de corrupção que atravessam as ordens políticas contemporâneas. Do mesmo modo que a configuração das formas de consenso, essas modalidades de corrupção se atravessam em função dos juízos morais emitidos em situações amplas de comunicação, no
espaço e no tempo social. Com o intuito de organizar as
idéias, tendo em vista os tipos de juízos morais e os tipos de consensos normativos, formulamos o Quadro 1 posto à verificação:
105
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106
As modalidades de corrupção significam o modo como os atores articulam juízos, de valor ou necessidade, em face de consensos normativos que integram a justificação racio-
nal de normas com sua aplicação factual, visando a alongar a vida institucional de determinada ordem. Seguindo os modelos de consensos normativos traçados por Eisenberg, eis quatro modalidades de corrupção que surgem em função de expectativas comportamentais normativas, no
plano da justificação.” A ligação com o problema da moralidade fica mais clara pelo fato de o ato corrupto ser uma transgressão de normas do comportamento dos atores, justificadas no plano contrafactual. A possibilidade da corrupção só existe por que há uma 'expectativa normativa, e vice e versa, Mas ela apenas pode existir se houver a ordenação de uma expectativa, a qual demanda a justificação mediante acordo motivado racionalmente. Os princípios de justificação, nos quatro consensos, definem os valores que asseguram a legitimidade da ordem política. Nesse caso, a corrupção é um juízo moral que expressa a ação ilegítima por parte do corpo político, com base em valores e normas pressupostos e consensuais. Dessa forma, os consensos normativos espe-
cificam as condições pré-reflexivas que orientam o entendimento dos agentes em torno da corrupção na política. É no plano das expectativas normativas que a corrupção se apresenta como potência, indo além da ação praticada por indivíduos. E, enquanto potência, a corrupção é submetida a permanente julgamento, porquanto, através das normas morais, estipula-se a possibilidade de sua ocorrência. A corrupção é inerente a cada um dos consensos normativos, sendo uma ocorrência delimitada conforme cada tipo de ordenação. Cada consenso normativo estipula um 107
tipo de corrupção, conforme a transgressão do comportamento orientado por normas. Como especulo neste trabalho, ao associar ação e potência, é possível ampliar os sentidos do fenômeno da corrupção na política. Ao consi-
derar o fenômeno da corrupção como potência, deve-se especular que ela faz parte da ordem política, uma vez que a definição de um comportamento orientado por normas definirá, também, a possibilidade de sua transgressão. Ligada à moralidade política, que se opõe sempre a acontecimentos no plano prático, a corrupção faz parte de sua própria constituição. Ou seja, é necessária ao avanço da própria moralidade, já que não haveria regras se elas não fossem transgredidas. À corrupção, portanto, encontra-se na interlocução de
juízos que expressam tanto uma função epistêmica quanto prática, porque o juízo está ligado, necessariamente, a critérios de verdade e de correção.”' Assim, podernos diferenciar as modalidades de suas concepções hermenêuticas, que circulam livremente nas sociedades conternporâneas, podendo ser mobilizadas para a compreensão do alcance da corrupção no âmbito das ordens políticas.
A FORMA POLÍTICA OU ' REPUBLICANA DA CORRUPÇÃO A forma política ou republicana da corrupção define que os atores recorrem ao consenso republicano e derivam dele um tipo de juízo moral, o qual está atrelado aos valores da ordenação. Quando os indivíduos qualificam determinada ordem política como corrompida, utilizando, para tanto, o consenso republicano, especificam determinados 108
conteúdos morais que servem de orientação ao juízo, tendo
em vista a fundamentação de normas para o agir do corpo político e a posterior aplicação nos contextos de ação.
A justificação racional de normas, no âmbito do consenso republicano, leva em consideração os termos da fundação, a qual especifica os critérios de cidadania em torno
da excelência do agir em contextos contingentes. A emissão do juízo ocorre em função de uma justificação racional de valores, que tem na fundação o momento original de ordenação da política, uma vez que ela especifica os termos da boa vida e de bom governo em face da contingência e do conflito. A discussão republicana está, portanto, nos termos da fundação do corpo político, através do conflito que molda as instituições em suas formas jurídicas e que determina, por outro lado, as virtudes capazes de estabilizar os desejos privados, criando valor para a vida comunitária em razão de um critério de cidadania substantivo. As instituições dependem não da engenharia institucional Tnas dos princípios básicos que permitem alongar sua vida pela tradição e orientam a ação do político, criando uma cena estável enquanto arena de resolução dos conflitos fundamentais. O momento de fundação da república fornece valores que sustentam a vida institucional, pois possibilitam juízos morais independentemente de qualquer natureza ou paixão dos homens.” O referencial teórico republicano está assentado no par fundação e virtudes, sem os quais não é possível operar a questão da liberdade positiva e a redundante participação ativa dos cidadãos na condução dos negócios públicos. A finalidade da fundação de uma república é operar a construção de uma ordem que permita o bem viver, na medida das condições da excelência, por parte do corpo 109
político. À emissão do juízo moral, no âmbito do consenso
republicano, leva em consideração a excelência do agir do corpo político, face ao critério de aplicação que demanda dos destinatários das normas as virtudes cívicas derivadas do momento original. Se a finalidade da fundação de uma república é manter a liberdade, essa finalidade apenas pode ser alcançada através da excelência do agir, a qual está ligada aos valores aplicados na forma de virtudes cívicas. A valorização da vida comunitária permite a ativação da vida por excelência em uma república, que satisfaz e controla as paixões dos homens, considerando os grandes feitos de seus heróis, narrados pela história.* Eles operam uma exemplaridade moral que expõe, às eventuais crises e
à potencialidade de corrupção, a virtude do corpo político como justificadora da aplicação de normas por meio dos deveres cívicos.” Os deveres cívicos são representações dotadas de uma história sempre recontada, capaz de criar uma identidade, no plano de um conflito generalizado no corpo político, e motivos razoáveis para ação. É a perma-
nente como O que o
ação que torna a república livre, tendo as virtudes direção. republicanismo é uma forma de liberdade positiva em agente moral deve buscar sua condição de liberdade
através de uma vigília que leva à excelência de seus atos,
de acordo com uma pré-noção ou antecedência do bem viver, independentemente de qualquer forma racional ou transcendental de consciência.” É a existência de um bem viver que, para os autores republicanos, deve ser resguardada de qualquer ato arbitrário por parte do governante. À condição da vida ativa por parte dos corpos da república fomenta uma tradição que alonga a vida institucional através de um constante experimentar, reforçando, no 110
imaginário simbólico, a glória. O vivere civile, na chave
republicana, apenas pode ocorrer por uma vida destinada
à excelência, que demanda dos atores o respeito a valores configurados na forma de virtudes do caráter, passíveis de julgamento por parte dos concidadãos.” O republicanismo, desse modo, reconhece a vida comunitária como
a única capaz de criar um
mecanismo
de
agregação da ação, consubstanciando uma idéia de bem viver que se incorpora no imaginário dos indivíduos. AÀ condição da vida comunitária é o devotamento dos homens a esse bem viver, através da sua participação política ativa na esfera pública, constituindo uma ação virtuosa, independente de qualquer tipo de natureza dada a priori. À vida institucional, entretanto, depende de uma tradição que será responsável por alongá-la no tempo, de acordo com normas circunscritas em torno de deveres cívicos
constituídos no momento original da fundação. O que motiva a criação de normas é a idealização de um bem viver que demanda do agir humano as virtudes em torno da civitas. A idéia de civilidade motiva a fundação republicana, originando um conjunto de normas que visam a temperar as paixões humanas e a assegurar uma ordem institucional que se alongue no tempo. A práxis política, como apontou Aristóteles, é a identificação do bem viver ou do melhor caminho para a prosperidade, demandando do homem virtuoso o conhecimento do bem no plano abstrato e no contexto das circunstâncias.”” O consenso republicano e a aplicação de normas através das virtudes do corpo político têm como pano de fundo a valorização e a idealização da nobreza dos atos, de modo a pender a orderm para a aristocracia. É nesse sentido que Aristóteles afirmou que os aristocratas temperam melhor as paixões, 1117
porque são dotados das virtudes necessárias para fundamentar o bem viver, funcionando como guardiões da república, depositários da prudência. A ordem política é sempre resguardada da corrupção, quando a tradição consegue alongar os termos do bem viver, fazendo com que a nobreza do ato esteja assentada
sempre na competição, na glória e na justiça, as quais asse-
guram a excelência do agir em contextos de contingência
e de conflito. De acordo com Maquiavel, liberdade e competição são interdependentes, e as constituições mistas são
sempre preferíveis porque a liberdade é resultado de uma disposição moral por parte dos cidadãos, que não toleram os abusos do monarca e dos aristocratas.ºº Desse modo,
governos largos, que permitam a competição mútua entre
os corpos da república, são menos propensos à corrupção. À glória, por outro lado, é um componente essencial da virtude cívica, porque é capaz de unificar as dissensões internas em situações de guerra. É uma paixão ordinária que permite o alongamento da vida institucional, porque remete à idéia de sacrifício do cidadão, em função dos objetivos da república.º Finalmente, a justiça, segundo Cícero, é peça fundamental das virtudes, porque remete à verdade e à constância em palavras e acordos.*º Ou seja, é necessária a uma boa ordenação da república a justiça como virtude do corpo político, porque possibilita o fiat para a manutenção da ordem. Uma vez que a virtude cívica funciona como o rmetaprincípio de aplicação das normas fundamentadas, mediante a excelência do ato, ela é mobilizada para a emissão de um juízo moral em torno da fundação da república. Sempre que um juízo moral é emitido em torno do consenso republicano, seu conteúdo é a idéia de decoro do 112
corpo político, que remete, à prevaricação dos atores políticos, à substância essencial da corrupção em contextos
republicanos. Ou seja, a emissão do juízo moral de valor, mobilizando o consenso republicano, acusa a indignidade das ocupações voltadas para a vida cotidiana como eminentemente corrompida. Ela coloca em risco a ordenação da república, uma vez que não haja o cumprimento dos deveres cívicos. À prevaricação ocorre sempre que o cor-
po político não cumpre com seus deveres cívicos, em função de atos indecorosos que não servem à glória da república. Cicero definiu o decoro (decurio) como a qualidade
que combina excelência do ser com uma natureza distintiva, proveniente do bem viver.*' A nobreza dos atos é determinante para a vida institucional da república, porque é dela que se origina a reprodução do bem viver. A corrupção ocorre, nesta chave do pensamento político, por uma mudança ou suspensão dos valores do bem viver e do bom governo, proporcionando uma crescente deslegitimação da ordem política, diante da prevaricação dos atores. Como qualidade do agir, o decoro é a exigência da excelência da ação no plano da ordem política, sendo o qualificativo dessa excelência em torno dos valores fundamentais da república. Exige, além disso, a excelência dos diferentes corpos da república, em função dos princípios criados no momento da fundação. Como observa Sara Shumer, a corrupção, de acordo com o ponto de vista maquiaveliano, resulta na incapacidade do povo de manter a liberdade, já que as virtudes dão lugar aos desejos em função de ocupações sórdidas, as quais implicam a ampliação da grandeza e o potencial da corrupção.” A vida privada, odiosa no juízo republicano, 113
é indigna e propicia a crescente irresponsabilidade moral por parte dos atores, uma vez que fomenta a apatia e um mero viver cotidiano. Se os meios da vida cotidiana avolumam-se demais, eles põem em risco o bem víver e, logo, propiciam a corrupção da república. Desse modo, a busca exagerada da riqueza era vista como armeaça à vida livre da república, porque, além de fomentar a apatia política, promove a enganosa busca do útil (bonum utile).”* A busca dos apetites desordenados fomenta a corrupção porque assegura aos mais ricos o poder para usufruir das redes de clientelas e do suborno como práticas para auferir prestígio.” A par da glória, da competição e da justiça, o controle da riqueza é fundamental para evitar a prevaricação e manter o decoro do corpo político, na medida em que é importante para a manutenção da disposição guerreira, a qual mobiliza os cidadãos em torno do bem viver” É sempre diante da potencialidade de corrupção que o consenso republicano opera um retorno à fundação, que especifica a liberdade alcançada mediante a glória do corpo político. A emissão do juízo moral de valor, diante da corrupção, remete aos princípios constituintes da ordem política, tendo em vista valores justificados que, através da tradição, operarn um retorno ao passado, visando a afirmar virtudes que assegurem o bem viver e o bom governo. À norrmatização contra o ato corrupto, na vertente do consenso republicano, opera com mecanismos pedagógicos que afirmem virtudes por certos princípios fundamentais que orientem e motivem o agir conforme a nobreza dos atos. Essa afirmação de uma fundação e o aprendizado moral permitem alongar o vivere civile, retornando ao passado num contexto em que o poder 114
constituinte se faz presente, mediante um conflito permanente entre os corpos da república.* Todavia, o consenso republicano não é o único que opera com a mediação da vida por excelência. Temos outra modulação de construção da ordem política que, do mes-
mo modo, valoriza a vida comunitária. Pensando o bem viver, o comunitarismo opera a questão da corrupção e da
boa ordem de modo distinto do problema republicano.
A FORMA CULTURAL OU : COMUNITARISTA DA CORRUPÇÃO A forma cultural ou comunitária da corrupção é a mais difícil de ser intuída, porque em muitos pontos se confunde com os conceitos e categorias chaves do republicanismo. Como na república, o consenso comunitarista opera a justificação e a aplicação de normas pela mediação da vida por excelência, que demanda dos agentes morais o cumprimento de certos valores no âmbito da comunidade. Por estar relacionado à vida por excelência, o consenso comunitarista enseja a justificação racional de normas
através de mecanismos empáticos, que configuram a identificação dos agentes. A identidade é configurada de modo a estabelecer laços de compartilhamento em função de um bem que, a princípio, é acessível a todos de modo adscritivo, fomentando uma justificação racional de normas em torno de valores entronizados no indivíduo,
através da reafirmação de uma tradição que se alonga no tempo. A identificação ocorre em função da entronização dos valores, diferenciando os bens que atuem pela competição e pela excelência. Como afirma MacIntyre, a vertente 115
comunitarista
trata dos bens internos, cuja característica
cessencial é o fato de sua conquista ser proveitosa para a comunidade, a par dos bens externos, que sempre são de propriedade de alguém.” O consenso comunitarista, desse modo, trata de uma
identificação empática em torno de normas, que afirmam costumes como mecanismos de aplicação, derivando um quadro de busca pela excelência do agente moral, em contextos de normatização que ocorrem num plano interativo, formando um sistema cultural. O consenso comunitarista ordena práticas dos agentes como honestas ou corruptoras através da afirmação de uma cultura, que estabelece mecanismos de controle no âmbito interno do agir individual. Esses mecanismos de controle, por sua vez, só podem ser eficazes se a ordem cultural conseguir operar a entronização de valores, permitindo a formação de uma moralidade que se dá, exclusivamente, pela mediação de uma vida por excelência. Na lógica do comunitarismo, a cultura é concebida como uma idéia substantiva de boa vida. A concepção do bem antecede os procedimentos da justiça, de maneira a ajustar os padrões de preferências e o padrão pelo qual essas mesmas preferências são analisadas. Ou seja, o “eu” está situado nas práticas da comunidade, a qual define papéis que assumimos de forma partilhada na cultura.º À identidade engendrada no plano da cultura, nesse sentido, é fundamental para a construção dos valores comunais, afirmados pelos membros da comunidade.”* A cultura fornece opções significativas para a ação e para a avalia-
ção de instituições, dadas as concepções do bem criadas comunitariamente.
116
A entronização dos valores ocorre pela via dos costumes, que visam a reproduzir a existência da comunidade
através da reafirmação de uma tradição, conhecida por
todos os co-partícipes. À ordenação é possível em face dos bens internos, para os quais a tradição alonga sua
existência em normas que integrem o plano do agir com a
excelência do ato em contextos de participação. Em função de um tipo de ordenação que é entronizada no indivíduo, o juízo moral toma como conteúdo os costurmnes, que, antes de qualquer coisa, envolvem a alteridade e a identificação dos membros no âmbito da interação. O juízo, portanto, só pode ser realizado entre os membros de uma determinada comunidade, não cabendo aos de fora, porque não participam daquela ordem. Fundamentalmente, a dinâmica da comunidade implica o conflito entre os “de dentro” e os “de fora”*º
A entronização da identidade pelos sistemas culturais ocorre de modo a afastar o sofrimento, permitindo ao agente moral a fruição de bens no plano interno, desde que consiga controlar os desejos em relação ao mundo externo. Falar de uma vida comunitária é, necessariamente, falar de uma técnica para afastar o sofrimento, através da reorientação dos objetivos instintivos, de maneira a iludir o mundo externo e produzir o bem como controlador das paixões. É desse modo que a criação de tabus e costumes opera no agente moral o controle dos desejos, fazendo com que a comunidade seja reproduzida, colocando-se acima do indivíduo como um superego que a tudo controla e a tudo ordena. O bem viver molda-se no sistema cultural, de modo a
processar um autocontrole sobre os atos e sobre os hábitos. A estabilização dos hábitos e a moderação dos costumes 117
acontecem através de uma interdependência que ocorre
devido a uma diferenciação funcional crescente da comu-
nidade, a qual distribui a seus membros papéis que devem ser cumpridos de modo a reproduzi-la. AÀ comunidade, dessa forma, muda a estrutura da personalidade do indivíduo e o modo como ele encara seus semelhantes. Ao invés de hábitos “bárbaros”, maior é a percepção do indivíduo de que sua ação diz respeito a razões que são, por natureza, interdependentes, ligadas às ações dos outros. Por redundância, o bem viver é fundamental na justificação racional de normas, porque o abrandamento dos desejos impulsivos, em função dos costumes arraigados na forma de “cortesia”, é o fator primordial de ordenação.“ Portanto, é a identificação dos “de dentro” e dos “de fora” que permite a emissão do juízo moral de valor em relação à ordem. Toda comunidade, desse modo, é particular, e as obrigações dos atores frente a ela são definidas pelo fato de a vida comunitária ser dotada de um sentido, uma vez que ela é entronizada no indivíduo, ao mesmo tempo em que se reitera como moral. Não é possível, desse modo, a afirmação de mecanismos deônticos para as obrigações políticas, porque quaisquer tipos de afirmações universais de princípios de justiça remetem a uma configuração do bem que os antecede.* À natureza do consenso comunitarista, por conseguinte, é dizer que a identificação permite a formação de um sistema cultural, cujo traço essencial é a reprodução de um bem compartilhado moralmente, associando a ele princípios de aplicação em torno dos valores. A formação do sisterna cultural ocorre pelo fato de a sanção efetuar-se exclusivamente no plano da cultura, responsável por reproduzir os valores institucionalizados na forma de costumes. 118
Se o conteúdo do juízo moral é o costume, exige-se do agente moral sua honestidade frente ao potencial corruptor dos bens externos, formatando o bem viver em torno da honra pessoal, à qual torna o agente passível de julgamento por parte da comunidade. No consenso comunitarista, a honra é um mecanismo essencial para a delimitação das obrigações, em razão de que a honestidade
(honestus)
é derivada de ideais profundamente justificados.** À obrigação ou o comportamento orientado por normas, nesse contexto, ocorre uma vez que o agente moral se sinta obrigado consigo mesmo, ou seja, vincule a seu agir a conquista dos bens internos em vista do potencial corruptor dos bens externos, tornando-se honrado perante seus co-partícipes na comunidade. Tal como o consenso republicano, no consenso comunitarista o conflito entre bonum honestum e bonum utile é determinante na construção da idéia de corrupção. A honestidade não comporta a busca do útil, porquanto o útil é um elemento corruptor de primeira ordem. A honestidade é um tipo de agir orientado por normas, dominadas pelos agentes morais. À corrupção, nesse sentido, significa a reprodução de determinadas práticas que minam os bens internos dos agentes morais, configurando um quadro de ameaça à reprodução da comunidade, pelo fato de romper com a tradição. Desse modo, ela depende dos campos simbólicos que designam as práticas dos agentes como honestas ou como corruptoras, considerando-se a honra pessoal diante do juízo baseado em valores fundamentais da comunidade. Quando um indivíduo, no caso de
um juízo particular, é julgado por prática de corrupção, a mobilização do consenso comunitarista se dá na defesa da
honra, com a qual ele se torna membro da comunidade. 119
A emissão
do juízo, no
consenso
comunitarista,
está
preocupada com os significados culturais da tradição, visando a reproduzi-la através da afirmação de costumes. Ao contrário de se fazer representar, o cidadão deseja participar ativamente na esfera pública, uma vez que sua auto-realização ocorre pela realização da comunidade. Por conseguinte, os significados culturais, para o indivíduo e para sua comunidade, exercem uma função transmutadora da realidade, capaz de estabelecer juízos morais de verdade ou falsidade a partir da excelência da ação individual. À corrupção é necessariamente um perigo para se re-
produzir a tradição, porque o potencial corruptor dos bens externos torna a excelência do agir vulnerável pela via de um viver cotidiano.“º Do mesmo modo que no consenso republicano, o crescimento do viver cotidiano, orientado pela captação de bens externos, aumenta o potencial de corrupção, porque vulgariza os costumes e substitui a honra pessoal pelo hedonismo. No âmbito da comunidade, qualquer tipo de agir que venha apenas a ampliar as posses pessoais contraria a identificação do bem viver, ensejando a corrupção dos costumes e a generalização da desonestidade,. A normatização contra a corrupção dos costumes in-
tegra a comunidade pela repressão dos desejos. Quando
um agente moral, no âmbito do consenso comunitarista,
comete um ato de corrupção, ele o faz em função do juízo emitido pela comunidade, tornando os campos simbólicos primordiais para a definição da honestidade do agir. A forma cultural da corrupção permite um particularismo do juízo, porque o mesmo apenas pode ser emitido pelos membros da comunidade, tornando essa forma passível de certo relativismo moral, quando confrontada 120
com
formas universais, como, por exemplo, a vertente
kantiana. Sistemas culturais fundamentados em uma identificação em torno da família, por exemplo, tornam os laços de nepotismo e de patronagem tolerados, desde que não coloquem em risco a reprodução da comunidade, ou seja, que não firam os costumes arraigados e reproduzidos no âmbito das interações no seio da comunidade. Os próprios nepotismo e patronagem podem ser tipos de agir considerados honestos em determinado sistema cultural. Isso não significa, entretanto, que devemos nos eximir de julgar essa ordem como corrompida, desde que este juízo seja emitido “de fora”. A normatização contra a corrupção ocorre de modo a instilar costumes e tabus no âmbito da comunidade como um todo, não se confundindo com os deveres cívicos e a idéia de decoro, no âmbito do consenso republicano, porque eles não envolvem, necessariamente, a concordância
em torno dos princípios de aplicação das normas.* À forma cultural da corrupção diz respeito, portanto, a falhas no controle dos desejos por parte do agente moral, demandando um tipo de normatização que opere no plano interno do indivíduo, configurando determinadas proibições que visem a reproduzir a comunidade. ÀA par do consenso cornunitarista e do consenso republicano, existem, porém, duas outras modulações dos juízos
mmorais, as quais permitem averiguar os tipos de corrupção
existentes na política. Essas outras modulações ocorrem, entretanto, pela afirmação de outro metaprincípio de mediação no configurar dos consensos normativos, que opera, primordialmente, com a idéia de vida cotidiana, ou seja, com o cidadão comum, que é incapaz de assegurar a excelência de seu ato. Isto acontece porque a ordenação ocorre 121
de modo a satisfazer necessidades de um agente moral que é, essencialmente, um produtor de coisas. É a despeito dessas formas de ordenação da política - a republicana e a comunitarista - que erige na modernidade a idéia de vida cotidiana, a qual modificará os termos da moralidade e da própria corrupção, que passarão a ser pensados no contexto
de uma regulação externa ao agente moral. A FORMA SOCIAL OU AUTORITATIVA DA CORRUPÇÃO
Ao longo da exposição dos consensos normativos anteriores, afirmei que os termos da corrupção, em função dos juízos morais, estão atrelados aos ideais de bem viver e de bom governo, que têm, em valores profundamente justificados, o balizamento moral do agir. Além disso, afirmei que o potencial de corrupção é tão maior quanto menos profunda for a justificação racional do bem viver, ou seja, quanto maiores forem as paixões desenfreadas de um homem produtor e reprodutor de coisas, maior é o potencial de corrupção. A gênese da modernidade, entretanto, propiciou uma mudança conceitual no que diz respeito à moralidade, transfigurando o bem viver pela afirmação de uma vida cotidiana, a qual moraliza o homem que produz bens externos, destinados a satisfazer suas necessidades. Neces-
sariamente, a moralidade transfigurou-se da nobreza dos atos, mediante a afirmação de virtudes e de costumes,
para o trabalho e a produção. Entre os antigos, o bom está etimologicamente ligado ao nobre, a um ideal aristocrático, correlato à sua dupla face plebéia, ligada àquilo que é 122
ruim, comum, simples. À relação entre o bom, associado ao nobre, e o ruim, associado ao mundo plebeu, perpassa as diversas linguagens em que os conceitos morais foram produzidos. De acordo com Nietzsche, a mudança destes valores, ou seja, da fronteira entre o bom e o ruim, somente se concretizou com a introdução de valores sacerdotais que possibilitaram a revolta dos escravos da moral.* Contra o espírito cavalheiresco, dedicado ao público, surgiram os judeus, que se vingaram de seus inimigos através de uma tresvaloração de seus valores fundamentais, tornando o nobre, como sinônimo de bom e feliz, igual a “caro aos deuses”. Isto permitiu uma inversão dos valores e uma guinada para um mundo dominado pelos plebeus. É dessa forma que a moralidade, no mundo moderno, é inimiga da vida boa.”? O bom passa a significar o mundo das privações, ou seja, o mundo do privado, ligado a uma moral do homem comurm, sem senhores e sem o espírito de vitória pela glória na guerra. O mundo judaizado e cristianizado tornou plebéia a moral e permitiu a organização do ressentimento para com qualquer forma de violência. Essa moral plebéia introduziu seu oposto, que até então não existia. Enquanto a moral escrava dependia de seu contrário, isto é, do espírito guerreiro, o qual surge de modo espontâneo, buscando sua oposição apenas para afirmar-se por si mesmo, a moral plebéia reage contra o mundo aristocrático. É essa reação a qualquer modo aristocrático de vida, a privações que o mundo dos nobres impunha aos plebeus, que permitiu aos escravos da moral organizarem-se permanentemente na forma de uma revolta, a qual possibilitou 123
a mudança conceitual da ética, operada na modernidade. A moral plebéia, portanto, está ligada às necessidades, enquanto a moral aristocrática está ligada a um ideal de auto-realização. Certamente, o primeiro autor a operar esta mudança conceitual é Hobbes, para quem a honra, a competição e a glória significavam as causas da discórdia entre os homens, próprias de uma natureza má, que deve ser controlada por leis civis.ºº Não cabe à teoria política narrar os feitos dos heróis, porque o problema da ordem política, de acordo com Hobbes, é o estabelecimento de uma associação en-
tre os participantes do contrato, em torno de princípios de justiça, que antecedem qualquer tipo de formação do bem. Uma vez que a história não é o artifício ideal para se chegar ao entendimento da boa ordem, deve-se reconstruir dedutivamente as causas naturais da origem da sociedade política ou do Estado, para que, desse modo, se chegue à ética dominante que informa o fim ao qual a ordem se torna necessária.” Hobbes, no conjunto do jusnaturalismo do século XVII, descobriu, nos contornos dos conceitos políticos, a idéia de sociedade.
Contraposta a um bem viver, a anteposição do justo significa a afirmação de uma vida cotidiana feita de homens produtores e reprodutores das condições que satisfaçam suas necessidades, nem que, para isso, tenham que entrar em conflito com seu semelhante. A perspectiva da vida cotidiana não afirma a existência do zoon politikon, porque não há possibilidade de harmonia em função das necessidades. Ou seja, Hobbes apontava a existência de um pluralismo de valores, em especial no que tangia às guerras religiosas na Inglaterra, mesmo que não tenha formulado um princípio de tolerância, mais tarde criado 124
por Locke.”*º No estado de natureza hobbesiano, luta-se por sobrevivência, porque a atitude mais racional é se antecipar
a eventuais usurpações realizadas por outros homens. Já que o “homem lobo do homem” é tão igual que ninguém consegue triunfar de maneira total sobre o outro, todos serão opacos diante dos olhos de seu semelhante. Do estado de natureza, Hobbes derivou a concepção de
um direito de natureza, mediante o qual se assegura o uso indiscriminado da força individual como fonte legítima da sobrevivência, dada a violência extrerna que caracteriza um estado pré-social. Consequentemente, o homem pode fazer tudo o que lhe aprouver, cabendo apenas o julgamento individual dos meios necessários para se atingir os fins propostos. O homem hobbesiano não é, entretanto, o komo oeconomicus, porque seu maior interesse não é a riqueza,
mas a garantia, em primeiro lugar, de sua sobrevivência, nem que para isso disponha do uso da violência” ÀA justificação racional de normas ocorre pela via do consenso autoritativo, através da segurança, que é um desejo racional, na medida em que a natureza humana estabelece a satisfação das necessidades cotidianas como o motor fundamental do agir. Nenhum homem, nesta abordagem, quer alcançar a honra ou a glória, porque sua segurança é o fundamento da vida cotidiana, em um mundo contingente e dominado pela necessidade. E, fazendo uso da razão, os homens percebem que podem se associar
e estabelecer, conjuntamente,
uma paz. vida sSua
uma
sociedade política,
vez que têm a esperança de que possam alcançar a Segurança e desejos são princípios que organizam a em sociedade. Os homens são desejosos e lutam por segurança não apenas contra ameaças externas mas
nas transações realizadas reciprocamente. O conceito de 125
segurança, aqui empregado, não se limita às restrições do
uso da força, mas busca uma abrangência que compreenda as relações sociais. À segurança depende, em última instância, da antecedência de uma autoridade soberana capaz de arbitrar os interesses da sociedade. Weber, seguindo a perspectiva de Hobbes, apontou que o Estado, enquanto monopólio legítimo do uso da força, está inscrito em um processo de racionalização em que se sobrepõe à sociedade no sentido de garantir a ordem. Às sociedades modernas são plurais em seus valores, e os indivíduos agem no sentido de uma intencionalidade dos interesses que está na base do capitalismo. Assim sendo, existe, na sociologia weberiana, uma conflito entre a racio-
nalização e a intencionalidade da ação, de forma que a segurança nas diferentes formas de transação justifique um Estado laico e soberano.** O Direito, segundo Weber, tem a faculdade de assegurar a aplicação do princípio da segurança, fazendo com que ela converta-se em tema jurídico.”* Consenso autoritativo tem no Estado, portanto, o
elemento fundamental de consolidação da ordem, tendo
em vista o pluralismo de interesses e concepções substantivas do bem. Não há, na perspectiva do consenso autoritativo, uma
noção de virtude ou de bem que possa conter as paixões e os desejos do homem, porque esses fazem parte de uma
natureza que necessita, prioritariamente, de critérios de
justiça para que os homens possam fazer parte de um ordenamento civil. O princípio de mediação da vida cotidiana transmuta a justificação racional de normas em princípios de aplicação, os quais estão orientados pela obediência dos súditos a uma autoridade constituída para garantir a segurança dos indivíduos. De acordo com 126
Hobbes, a finalidade da constituição de um governo civil é a segurança dos súditos, tendo em vista a contrapartida da obediência, visando a satisfazer todas as necessidades
e o bem viver que o homem pode vir a adquirir.* A segurança, desse modo, não é a simples preservação mas a possibilidade de concretizar todo tipo de atividade legitima, sem perigo e nem dano ao Estado ou aos demais súditos. A segurança é obtida pela afirmação de uma autoridade que seja obedecida pelos homens, atendendo ao consentimento em torno de uma associação política. Dessa forma, o conteúdo do juízo moral, no âmbito do consenso autoritativo, é o respeito de cada indivíduo a
seu semelhante, na medida em que a sociedade política é formada em função de necessidades comuns a todos.
Diante dessas necessidades, a justificação racional de norImas ocorre por mecanismos simpáticos que reiterem a
norma mediante a solidariedade, típica do mundo cristão
e plebeu. Se o conteúdo do juízo moral é o respeito, sua consideração diante de casos de corrupção está atrelada
à usurpação, a qual significa a tomada violenta dos bens e da vida de uma pessoa por parte de outra, visando a satisfazer, exclusivamente, seu bem viver.
A idéia do respeito, como conteúdo do juízo moral, no âmbito do consenso autoritativo, ocorre porque a obediência se dá no respeito à autoridade do soberano, compreendida como o direito a realizar uma ação, visando à segurança dos agentes. O respeito à autoridade do Estado é essencial, porque o consenso autoritativo envolve uma situação de discordância acerca dos princípios de justificação e dos princípios de aplicação, gerando um quadro em que o poder é transferido a uma pessoa em nome de 127
seus súditos, com o objetivo da segurança. O Estado, por conseguinte, para satisfazer a necessidade da segurança, deve ser depositário dos meios de violência, tornando sua ação legítima pelo ordenamento civil. Qualquer ação que represente uma usurpação mina a autoridade do Estado, porque transgride o objetivo da segurança e proporciona uma crescente deslegitimação da ordem. À normatização contra a corrupção ocorre pela afir-
mação de um direito positivo que especifique diretivas ao comportamento humano.* O fundamento jurídico da concepção autoritativa é que a liberdade e a justiça somente podem ser alcançadas quando se transponha o direito positivo ao direito natural. Ou seja, o Estado, ao contrário da república, funda-se pela constituição de normas, independentemente de qualquer ato virtuoso por parte dos cidadãos. Basta que eles sejam formalmente reconhecidos enquanto tal, para que possam buscar o reconhecimento de seus interesses. A distinção entre república e Estado já foi classicamente debatida por Rousseau.**º Enquanto a república lida com o alargamento de suas instituições mediante as virtudes do corpo político, o Estado se estabiliza por intermédio de uma engenharia institucional, capaz de agregar vontades particulares, através do direito positivo. Enquanto a república se faz pela vida ativa dos cidadãos, o Estado demanda apenas o imperativo da representação enquanto mecanismo substancial, o qual sustente a legalidade de seus atos.”? O Estado é constituído a partir do modo como personifica um ordenamento jurídico, tornando-se uma pessoa jurídica, capaz de ação e sujeita a direitos e deveres.”* Essa personificação, por sua vez, permite a ele controlar os mecanismos de inclusão ou exclusão da cidadania, uma 128
vez que, para se representar, o cidadão necessita ser for-
malmente reconhecido enquanto tal, independentemente de seu estado de consciência ou de alienação. A fundação do Estado, por sua vez, como observa Araújo, acaba por colocar, ontologicamente, a dimensão do procedimento sobreposta à dimensão das substâncias valorativas, as quais estão presentes no tema das virtudes e do bem comum.” Isto significa que, por se tratar de uma pessoa jurídica, sujeita a direitos e a deveres, sobreposta à sociedade, a corrupção do Estado será tão maior quanto maior for o fosso que o separa dos súditos plebeus, provenientes das fontes materiais de sua ordenação jurídica. Por outras palavras, a liberdade dos homens somente será alcançada se eles criarem leis que permitam a formação de regras estáveis para a ação humana e sua coalescência na sociedade política. Contudo, como afirma Hobbes, não basta apenas o fundamento jurídico, mas é preciso que exista um Estado soberano, cuja força seja irresistível para fazer os homens, através da coerção, respeitarem o direito
positivo calcado na lei natural. O esforço de engenharia institucional se dá no sentido de conter a invasão da plebe desejosa e possibilitar o alongamento da ordem, uma vez que essa invasão denota uma desordem e uma corrupção generalizada - populatio -, que representa o homem em seu estado natural. O arranjo institucional é moldado conforme o poder constituinte originário, formando, por meio da criação de uma estrutura jurídica formal, os termos do reconhecimento da civitas como indivíduos de iguais direitos políticos. Tema essencial na corrupção do Estado, diante do consenso autoritativo e da possibilidade de usurpação, é o controle das armas, em face de uma regulação que assegure, 129
mediante coerção, o respeito, seja dos súditos seja ao Estado. O alongamento da vida institucional do Estado ocorre pelo controle das armas, quer de pessoas particulares quer das próprias milícias responsáveis pela segurança. À posse de armas amplia o potencial de corrupção, tendo em vista a natureza desejosa do homem, destinando o esforço da engenharia institucional a controlar os mecanismos de violência. Desse modo, a ordem jurídica é essencial para dar uma legalidade à ação do Estado, ao mesmo tempo em que o torna responsável diante da sociedade política.ºº A legalidade, nesse sentido, constitui-se como
um
mecanismo essencial de legitimação do Estado diante da sociedade, porquanto o controle das armas exige uma lógica procedimental e fixa, que opere no plano externo do indivíduo, no sentido da ordem. Estado e Direito passam a se confundir, visto que a crescente burocratização demanda a crescente formalização das fontes do Direito, sendo ele um instrumento de controle da ação do Estado. Substantivamente, a corrupção do Estado está ligada a qualquer tipo de prática ilegal que vise a ampliar o bem viver em
contraposição
aos procedimentos
da justiça.
Essencialmente, a corrupção é um ato que implica a restrição do Estado, entendida por Rousseau como o fato de o governo não administrar mais conforme o império da lei, usurpando o poder soberano.º Quando isso ocorre, o Estado se restringe e forma-se um outro dentro dele, composto unicamente pelos membros do governo. Cabe à normatização operar o controle sobre os bens externos, atuando por uma regulação que vise a especificar diretivas externas ao agente, mediante coerção. Cabe aos procedimentos da justiça fundamentar os mecanismos de controle da ação, visando a conter o potencial de corrupção 130
e a evitar que o homem retorne ao seu estado pré-social, cuja ação é, por definição, corrompida. Resta estabelecer os juízos acerca da ordem mobilizando o consenso liberal, o qual determina uma forma econômica para a corrupção, ligada aos preceitos dos bens externos, especialmente em torno da propriedade privada., É um tipo de modulação da ordem e de seu potencial de corrupção que ocorre, fundamentalmente, pela emissão de juízos em torno das necessidades dos agentes morais. Do mesmo modo que no consenso autoritativo, o consenso liberal opera uma guinada na moralidade, calcando o juízo na possibilidade de primazia do homem comum.
A FORMA ECONÔMICA OU LIBERAL DA CORRUPÇÃO A despeito dos demais consensos normativos, existe uma outra modulação da política típica dos modernos, assentada na primazia do homerm fabricante de coisas, mediante a qual ocorre uma objetificação do ser, que passa a adotar uma postura neutra em relação a valores.*º Do mesmo
modo
que no consenso autoritativo,
o consenso
liberal opera a mudança conceitual acerca da passagem da tradição para a modernidade, fomentando um tipo de moralidade que está balizada na mediação do viver cotidiano, justificando normas que assegurem, na dimensão externa ao indivíduo, a legitimação de um sistema coercitivo, que visa a reproduzir o viver cotidiano pela aplicação de normas que tenham o caráter jurídico.º Toda a construção normativa, no âmbito do liberalismo, gira em torno do tema da propriedade privada, a qual 131
seria fator de liberdade para um self desprendido, que toma o sujeito moral como objeto de regulação externa, sem qualquer tipo de virtude ou bem que anteceda os critérios de justiça.* A propriedade privada, de acordo
com Locke, é uma instituição anterior à sociedade e, por
esta condição, jamais poderia ser violada pelo Estado.”“ No estado de natureza o homem era proprietário de sua vida, de sua liberdade e de seus bens, porque o trabalho justifica o domínio sobre a produção e se torna o fator originário de organização coletiva dos indivíduos. O trabalho se constitui na natureza fundamental do ser humano, fazendo com que a moralidade seja derivada de juízos em torno das necessidades vitais. A moralidade se configura por uma mecanização do agir em contextos de
uma racionalidade instrumentalizada, ou seja, orientada, exclusivamente, para os fins.º“ A liberdade positiva, tal como defendida pela tradição republicana, mediante a afirmação de virtudes cívicas, pode, no consenso liberal, tornar
o homem escravo de sua
natureza ou de suas paixões, considerando que ele ainda
não é consciente de sua ontologia. A liberdade positiva, numa sociedade massificada, tal como a sociedade mo-
derna, torna o homerm escravo de seus desejos, resultando na degeneração de qualquer forma de organização da política. A verdadeira essência da liberdade seria a ausência de qualquer forma de constrangimento, consistindo no impedimento por parte dos homens de escolher como deve agir um outro indivíduo.” Ou seja, a liberdade seria a condição da posse de si, por parte de indivíduos racionais. O princípio da liberdade é maximizado conforme os procedimentos da justiça possibilitem a constituição do igual respeito.ºº A liberdade pertence ao homem comum, 132
dotado dos mais variados interesses, que visam a satisfazer necessidades vitais. É a moralização dos interesses que permite o controle dos desejos e a afirmação de um meio que possibilite a convergência do agir pela satisfação de necessidades, de modo simultâneo ao convívio pacífico entre os homens.º Em sociedades desencantadas, a tolerância justifica a criação de normas, tendo na produção e no mercado os meios institucionais de realização da liberdade. Como a propriedade privada e a produção exigem o correlato da autonomnia privada do cidadão, é assegurada a aplicação na dimensão externa ao indivíduo, através da afirmação de direitos que permitam sua autonomia no campo civil, político e social. O mundo cotidiano opera a transmutação da justificação racional de normas pela liberdade para a aplicação mediante os direitos, colocando em relevo os mecanismos simpáticos da solidariedade, os quais formatam a experiência através de expectativas normativas que
venham a reproduzir o modo de produção pela via de uma racionalidade orientada a fins. Isso significa a afirmação da solidariedade como construção de consensos normativos, a qual mobiliza necessidades em contextos contingentes, visando à ordenação da sociedade.”º O liberalismo, desse modo, está alicerçado na sobrepo-
sição do mundo econômico - o trabalho e a produção - ao mundo político e comunitário, fazendo com que a moralidade esteja ligada, necessariamente, à divisão do trabalho social, sem a qual não é possível a convivência pacífica em torno de normas, em um mundo cotidiano e diferenciado funcionalmente. Especialmente em sociedades complexas, que romperam com os laços comunitários do bem viver, a ordenação passa pelo afirmar de uma solidariedade que 133
enseja, em contextos contingentes, a possibilidade de um convívio pacífico entre indivíduos de iguais direitos e domínios.” O direito à propriedade e sua função social contribuem para um modelo de ordenação que configure, em torno de sujeitos de direitos, normas para a convivência pacífica por meio da coerção. Se o agir em sociedades complexas, formatado pelo domínio da coisa sobre o sujeito, orienta-se primordialmente pelos fins, a regulação ocorre de modo exterior ao indivíduo, que é livre apenas quando consegue satisfazer, pelo seu trabalho, suas necessidades vitais. Não
cabe ao Estado, desse modo, operar a regulação pela imposição de obediência, porque ela pode resultar em constrangimento. O domínio de si ocorre pelo trabalho, na medida em que o indivíduo for proprietário privado, fazendo jus aos direitos da civitas através de um viver cotidiano que imprima no instinto de liberdade a ausência de constrangimento.”? Visto que a regulação é necessária, visando a manter o domínio privado dos sujeitos de direitos, é fundamental a moralização da vida econômica pela via de um domínio público, que proteja o indivíduo dele mesmo e da própria sociedade, tendo em vista seus interesses e direitos. Cabe ao
Estado, portanto, “chamar o indivíduo à existência moral”;7? afirmando um domínio público que assegure a existência do domínio privado, mediante uma lógica procedimental que proteja o indivíduo através de direitos. A contraparte, para evitar sua corrupção, é garantir um modelo de representação, em que o indivíduo se faça representar por seus interesses junto ao Estado, os quais são formados em contextos interativos e configurados por necessidades derivadas do modo de produção. A autonomia de sujeitos 134
privados ocorre por uma moral contratual, que gera obrigações pela via do consentimento com outro igual sujeito de direito, no plano individual e coletivo. Do consentimento, cujo princípio é um ato de vontade sem constrangimento, deriva-se um conjunto de promessas assentadas na base da confiança, ou seja, na fé que um indivíduo deposita na conduta futura de outro. A confiança é o conteúdo rnoral, por definição, de uma sociedade que reificou o homem, ao preceder o dormnínio da coisa sobre o sujeito.”* Pelo consenso liberal, assim como no mercado, a ordenação da política ocorre pelo consentimento dado por indivíduos à sobreposição constitucional de leis, as quais permitam o exercício da autonomia privada.”” O Direito é precondição para o exercício da confiança e de uma moral contratual, fazendo a autoridade política depositária da confiança dos cidadãos na reprodução das condições econômicas, dadas pelo modo de produção. Como o domínio público é dado à confiança de um órgão da sociedade política, através da representação, configura-se um contexto em que ela se torna o conteúdo do juízo moral em torno de necessidades no que diz respeito ao consenso liberal.”º Pela expectativa de que o Estado ou qualquer outro sujeito privado venha a cumprir as promessas acertadas por urma moral contratual, a confiança é o conteúdo essencial do juízo moral, operando num quadro de necessidades no qual se estabelece a solidariedade e a possibilidade de convivência pacífica entre os indivíduos e entre o indivíduo e o Estado. Qualquer tipo de fraude que ocorra nos contratos que envolvam o domínio público será considerado um ato de corrupção, uma vez que rompe com a confiança depositada, seja em um órgão do Estado, seja em um funcionário público, seja em um sujeito privado. À emissão 135
do juízo de necessidade que considere o agir corrupto ou corrompido, mobilizando, para tanto, o consenso liberal, ocorrerá em função de um conteúdo assentado na idéia de confiança. Em essência, a corrupção, em sua forma econômica,
representa qualquer tipo de apropriação indébita de um domínio público, tendo em vista sua ilegalidade. Ao contrá-
rio da usurpação, a corrupção aqui não ocorre por meio da
violência mas das fraudes que envolvam o domínio público, rompendo a confiança depositada nos atores políticos que representam as partes envolvidas na moral contratual. Uma vez que esta não seja respeitada em função de uma fraude, a qual se generaliza no âmbito da sociedade, temos um contexto desestabilizador do modo de produção pela via da corrupção, em sua forma econômica.
Há uma
ligação
intrínseca entre o liberalismo e a economia, fazendo com que as conseqiiências da corrupção sejam a transferência de renda entre grupos sociais, a qual aumenta as desigualdades, e a monopolização das atividades econômicas pelos indivíduos ou grupos corruptores. No plano econômico, a corrupção é a obtenção de vantagens indevidas, porquanto sejam ilegais. Indivíduos ou grupos sociais que não cumpram suas promessas, não fazendo jus à confiança depositada pelos credores, criam uma ordem econômica fraca ou instável,
a qual não permite a reprodução pelos mecanismos de instituições assentadas no Direito e no Estado. No caso da corrupção, a apropriação indébita de um domínio público implica o rompimento das relações de confiança entre os membros da sociedade civil, a qual compreende o conjunto de relações materiais de produção entre os indivíduos e o Estado, sendo este o mandatário da ordem econômica. 136
A forma econômica da corrupção descreve, em juízos
morais de necessidade, situações de apropriação indébita
de um domínio público, tomando como conteúdo as relações de confiança oferecidas por uma moral contratual. Todo tipo de fraude, desse modo, é descrito como uma cor-
rupção, porque representa situações de transferência ilegal de renda entre grupos e de monopolização da atividade econôrmica, cujo resultado é a degeneração de uma forma de ordenação construída ao longo da modernidade, considerando a vivência de um homern produtor e reprodutor de coisas. Uma vez que a forma econômica da corrupção ocorre pelo reconhecimento da fraude, resultante de um juízo moral que envolva a confiança, sua medida está na linguagern monetária, a qual descreve as causas e os efeitos do ato corrupto pelo ganho e pelo prejuízo gerado, em termos fiduciários. AÀ par da fraude, a normatização visa a manter o modo de produção pelo convívio pacífico entre homens produtores e reprodutores, legalizando determinados tipos de relacionamento que assegurem a base de uma moral contratual, responsável por operar a confiança. É dessa forma que o Direito se reduz à lei, configurando um quadro em que a norma está dissociada dos valores, reproduzindo um modo de produção assentado na divisão do trabalho social. Sua justificativa afirma a liberdade como autonomia de um sujeito privado, mediada por um viver cotidiano que aplica normas através do Direito. É a reprodução dos bens
externos que interessa ao homem
fabricante de coisas, o
qual cria normas que protegem a propriedade privada e o domínio público da fraude, mediante uma ordenação que controle seu potencial de corrupção.
137
Na próxima seção descrevo como podemos compreender a corrupção em termos morais, em face dos quatro tipos de consensos normativos descritos acima - os quais não são estanques, bem como a moralidade que deles deriva: o termo “moralidade”, inclusive, deveria ser posto
no plural, tendo em vista a pluralidade de princípios e mecanismos de derivação de um comportamento orientado por normas. OS ELEMENTOS FORMAIS DA CORRUPÇÃO E SUAS SIGNIFICAÇÕES MORAIS
A apreciação destas formas de corrupção permite identificar um círculo lingúístico que configura a compreensão dos atores em contextos interativos, tanto no plano externo quanto no plano interno do indivíduo. Não cabe afirmar que cada uma destas formas deva ter exclusividade sobre as demais, porque, através do discurso político, elas circulam livremente na sociedade, sendo mobilizadas para o entendimento dos atores acerca da ordem política em que vivem. O discurso político combina estas quatro formas de corrupção para estabelecer a contraparte de normas orientadas ao controle do agir do corpo político. Cada forma da corrupção é dotada de um significado, conforme uma história conceitual de mudanças e de recepções da moralidade, em vista de um aprimoramento moral do homem no que diz respeito à manutenção da ordem. AÀ análise da corrupção nos sistemas políticos contemporâneos deve, portanto, absorver este círculo lingúístico para que possa operar os diferentes significados que pode assumir o ato de corrupção por parte dos atores políticos. 138
A idéia é que há uma ligação intrínseca entre o fenômeno da corrupção e a moralidade, sem a qual as instituições políticas não podem concretizar o controle sobre a ação do corpo político. No plano formal, a corrupção deriva-se dos juízos morais dos atores, quando julgam determinada ordem política em função de consensos normativos que justificam o comportamento orientado por
normas. É da relação entre justificação racional de normas e sua aplicação, mediadas pelo bem viver e pelo viver cotidiano, que podemos discernir as formas por meio das quais podemos compreender a corrupção no mundo conternporâneo, tendo em vista conteúdos de juízo que permitem aos atores emitir que determinada ordem é íntegra ou corrompida. O essencial é que as linguagens da corrupção permitern pensá-la pela razão prática: a ação está circunscrita em uma moralidade política, formada em torno de expectativas comportamentais normativas e de experiências concretas no espaço e no tempo social da política. Cada uma das formas de corrupção está orientada pela existência contraposta de um comportamento orientado por uma norma, ao qual se relacionam quatro substâncias políticas justificadas em um plano contrafactual. Podem-se derivar essas quatro formas de corrupção da transgressão à norma, conforme a consideração do juízo em vista dos conteúdos morais expressos formalmente nos contornos dos consensos normativos. Dito de outra maneira, conteúdos TnOrais expressam a aderência da ação à norma, ao mesmo tempo em que estipulam o juízo em relação à integridade ou à transgressão desta. Essa aderência é formatada por quatro formas consensuais da ordem política, que definem 139
os limites e as substâncias os quais informam a abrangência
do conceito de corrupção: cada forma tem um conteúdo
de juízo que expressa os significados pré-reflexivos do ato corrupto na política. A comunidade dos intérpretes da corrupção mobiliza-os em um plano pré-reflexivo, com base em noções consensuais dos valores políticos. Organizando as idéias, podemos montar o Quadro 2, que expõe as formas da corrupção (p. 141). Essas formas de corrupção circulam livremente nas sociedades plurais e complexas da contemporaneidade, permitindo a descrição de determinados atos e instituições como corretos ou incorretos em relação a determinadas normas. Tal descrição, em essência, ocorre por juízos acerca da ordem que mobilizam valores e necessidades, no quadrode uma vivência social organizada em torno de consensos normativos que operam, no plano contrafactual, a construção da ordem. Sempre que um ator mobiliza o termo corrupção para emitir um juízo acerca da ordem
política em que vive, utiliza-se de uma dessas quatro formas para a compreensão do comportamento ilegítimo do corpo político.
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141
Os consensos normativos expressam os valores fundamentais da moral política, que asseguram a legitimidade do sistema. Discutir a moral política, contudo, não significa discutir o sexo dos anjos. A corrupção é fato da política e faz parte de seu cotidiano. À corrupção pode ser, inclusive, necessária à política, já que só por meio dela é que os valores e normas da legitimidade podem ser mobilizados. Seguindo uma discussão durkheiminiana, a corrupção é normal na política, visto que apenas quando ocorre é que valores e normas fundamentais da moral política ganham concretude. Nesse sentido, ela é expressão da ilegitimidade, tornando-se mais comum, como vimos no capítulo anterior, nos contextos de crise. Ademais, para a moralidade, a corrupção exerce uma função importante, porque seu potencial permite aos atores reproduzirem a ordem em seus variados contextos, sejam eles políticos, culturais, sociais ou econômicos. À corrupção, por ocorrer em potência, seguindo uma orientação
aristotélica, permite aos agentes estabelecerem normas ao comportamento do corpo político: suas consequências,
portanto, não residem no plano da moral, como querem alguns autores. O efeito da corrupção na política não é sentido no plano moral mas no plano da ordem. Há quem pense que a corrupção provoque graves problemas na moral, como Patrick Dobel, para o qual a consequência da corrupção é a incapacidade dos indivíduos de se comprometerem de modo desinteressado na administração da coisa pública.” Esta perspectiva analítica permite identificar diferentes modalidades de corrupção, de acordo com problemas práticos, no plano da política. Como se trata de constituir
142
princípios de justificação e aplicação de normas, os consensos normativos permitem identificar diferentes problemas de legitimação em que o ato corrupto surja como prática corriqueira. Afinal, como já havia destacado Montesquieu, “a corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios”.”* Tendo esse construto teórico como guia, como podernos pensar a corrupção nas democracias contemporâneas?
O próximo capítulo cuida dessa questão, analisando a estrutura dos discursos legitimadores no mundo conternporâneo. O caminho até aqui percorrido identifica a corrupção como algo complexo, relacionada aos momentos de crises de legitimação, em que ela compõe o discurso político. Recuperar suas noções clássicas, como realizamos no primeiro capítulo, é fundamental para absorver critérios de legitirnação política e de estudo de seu alcance na esfera pública, sem que esteja resumida a relações de interesses no plano econômico. A corrupção tem um sentido moral, em que a política é construída a partir de valores e normas que justificam as instituições e suas práticas: a definição desse marco analítico permite sua compreensão nas democracias contemporâneas, de acordo com a constituição
de valores e normas.
143
CarítTuULO
ITII
A CORRUPÇÃO E A DEMOCRACIA
No capiítulo anterior, defini um marco analítico para o
problema da corrupção, que, do ponto de vista fenomênico, está relacionado à existência de valores e normas que organizam as bases legítimas de ação política. Tendo esse marco analítico da corrupção como guia, como será possível estudá-la no plano das democracias conternporâneas? Em que medida a idéia dos juízos morais é fundamental à compreensão do ato corrupto na política? O fato é que a política contemporânea passa por um processo de mudança. À emergência de agentes econômicos transnacionais, de sistermas mundiais de produção e a proeminência do mercado significam, para a sociedade, uma crescente desorganização.' Pode-se dizer que essa mudança represente, no fundo, uma reviravolta epocal. E, no presente estágio, há a supremacia de um consenso |liberal que associado ao atual contexto de globalização,
erode a autoridade do Estado.º Há, no mundo contemporâneo, um contexto de crise que se expressa no discurso
político, com o objetivo de atestar as mudanças e expor as
mazclas sociais e políticas. Nesse contexto, apesar do ampliamento da democracia nas duas últimas décadas, a corrupção se tornou um tipo de prática corriqueira na política contemporânea. À política, para o liberalismo contemporâneo, é vista como o espaço dos vícios, em que a corrupção se tornou à mazela estrutural do Estado, sendo ele, por definição, mau gestor e ineficiente gerador de bens públicos. Dada a proeminência do consenso liberal, esse parecer tambémn tem ares consen-
suais. O mercado, a mídia e os próprios agentes do campo político não se cansam de fazer essa acusação. A crise do Estado e a emergência de um sistema de produção autônomo promovem, segundo Habermas, a tendência a permanentes crises políticas.º Crises essas que são derivadas dos problemas de legitimação de valores e normas, pog__a.ntoy elas surjam de um domínio público. despolitizado. E, em meio a esta tendência de crises políticas, a corrupção se tornou um lugar comurm, acometendo tanto os países centrais quanto os países da periferia do capitalismo. A corrupção, como fator dessas crises, se tornou lugar comum na vida democrática, fazendo com que ela esteja submetida a seguidos escândalos, que criam um sentimento de descontentamento com as instituições políticas como um todo. À corrupção contemporânea está associada a uma crescente crise de legitimidade do Estado, o que, em sentido prático, acarreta uma crise da legitimidade da demo-
cracia representativa. Vista a partir do marco analítico apresentado anteriormente, constata-se que a erosão do consenso autoritativo, promovida pelo liberalismo: con-
temporâneo, provoca uma crise de legitimação em que o 145
ato corrupto é visto como endemia social, contribuindo, dessa maneira, para uma suspensão dos consensos republicano e comunitarista. A crise do Estado, entendida como crise de legitimação, não permite que demandas republicanas e comunitaristas convertam-se em políticas efetivas, já que a erosão da soberania dos Estados nacionais implica, por sua vez, uma enorme restrição da participação política e uma crise das identidades fundamentais que organizam a cidadania.* Para a democracia, isto explica o fato de a corrupção persistir como prática, apesar das reformas realizadas a partir das décadas de 1980 e 1990. Dessa forma, uma instituição republicana como o Judiciário se vê impotente para controlá-la, Interrogaremos aqui o problema da corrupção nas democracias contemporâneas, tendo em vista uma crítica
da própria teoria dernecrática e do que chamo de processo de desocultação da corrupção. Este capítulo é uma sociologia política da corrupção com base no modelo analítico apresentado no capítulo anterior. A CORRUPÇÃO E A CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Existe um ponto comum às teorias democráticas produzidas ao longo do século XX: a inevitável desconfiança para com a participação ativa dos cidadãos nos negócios públicos. De fato,essas teorias buscaram conciliar essa constatação empírica com o arranjo de instituições que
proporcionerm a existência de uma ordem democrática em sociedades complexas. Sociedades plurais e permeadas de 146
doutrinas morais divergentes, ainda que razoáveis, necessi-
tam de modelos institucionais que permitam aos diferentes setores vocalizarem sua opinião e vontade no âmbito do governo. Se a constatação empírica da apatia estrutural promovida pela teoria democrática é autêntica, a conseqúência é a afirmação do caráter essencialmente procedural desse tipo de regime. Como mecanismo de construção da legitimidade política, a lógica procedimental é o centro da produção a respeito do tema da democracia, desde, pelo menos, a noção de Estado de Direito, fundamentada por Max Weber.º Nesse sentido, existe um outro ponto comum às teorias democráticas do século XX: a legitimidade do regime democrático é construída com base na existência de regras constitucionais estáveis, conforme o suporte dado pelos eleitores, mediante eleições regulares e limpas. Ou seja, a legitimidade da democracia só é possível a partir. de um modelo formal. Do ponto de vista conceitual e prático, não é possível pensar a existência da dernocracia sem regras jurídicas que estabeleçam um procedimento para a conquista do poder, instituindo a representação. Sociedades complexas e “desencantadas”, na assertiva de Weber, constroem a legitimidade da ordem política através de um Direito secular que antecede a luta pelo poder. As sociedades capitalistas demandarn a existência de uma estrutura burocrática, a qual está comprometida com um código legal. A burocracia do Estado conduz seus assuntos de acordo com os procedimentos legislativos corretos, e os cidadãos respeitam a autoridade em virtude da manutenção dos princípios legislativos, em função de uma estrutura de direitos que antecede a ação e o conflito dos interesses. 147
Pensar a democracia em sociedades capitalistas, de acordo com Weber, implica constatar um modelo de burocratização que caminha no sentido da crescente racionalização e da luta pela satisfação dos interesses. À modernidade capitalista não está envolvida no mundo estamental mas no mundo das classes sociais, grupos que lutam pela satisfação de seus interesses no plano do mercado, conforme a constltuu;ao de relações associativas e não de relações comunitárias.” À par do processo de racionaliZação, as sociedades modernas são plurais em seus valores e estabelecem, no sentido da ação, uma intencionalidade que reforça o mundo dos interesses e uma racionalidade dirigida à busca dos fins. Racionalização e racionalidade, na dimensão da sociologia weberiana, representam uma tensão constitutiva de valores e normasna modernidade. De acordo com Weber,
a racionalização é decorrente do mundo econômico e dos interesses como esfera básica de construção dos sentidos do agir, o que demrmanda a existência de um Estado e de um Direito burocratizados, conforme o respeito a normas que têm nas fontes formais o elemento de controle da ação.º O processo de racionalização implica um afastamento em relação aos aspectos carismáticos e tradicionais de valores e normas, configurando um processo histórico que, no Ocidente, proporcionou a elevação de um mundo marca-
do, fundamentalmente, pela luta pelo poder no plano das classes sociais. ÀA demnocracia do século XX, nesse sentido, forma-se com a luta pelo poder no plano das classes sociais, o que demanda a constituição de mecanismos de representação dos interesses dos cidadãos frente ao Estado e sua estrutura burocrática. A representação e a luta pelo poder ocorrem 148
no plano de uma legislação que autoriza ou proíbe a ação no sentido de impedir as imposturas do homem público. É
a partir dessa compreensão que o Direito Administrativo
funciona como elemento de controle da ação burocrática, ao instituir o conceito de responsabilidade. Da mesma maneira, a responsabilidade é instituída no plano jurídico, nas dimensões penal e civil. Na medida em que a autoridade do Estado rotiniza a burocracia, a representação constitui-se no plano de grupos organizados no âmbito de partidos políticos reconhecidos de acordo com uma legalidade que os institui no interior de um parlamento. A representação demanda partidos políticos e a extensão da participação significa disseminar associações nolíticas que organizem o eleitorado por seus interesses. O sentido da democracia, para Weber, é um mecanismo institucional que organize a luta pelo poder entre os diferentes partidos políticos, representativos de um espírito associativo das classes sociais. No que tange à construção da legitimidade, a democracia assenta suas bases nos procedimentos legais e na absorção dos interesses das classes, representados nos diferentes partidos políticos. Tal como o Estado, os partidos também passam por um processo gradativo de burocratização e racionalização, uma vez que definem uma elite partidária que controla, burocraticamente, os rumos e os interesses representados no seio do partido. À sociedade de massas, de acordo com
Weber, é a sociedade da progressiva autonomia relativa dos partidos políticos como máquinas eleitorais. A progressiva burocratização das associações políticas promove a passividade da sociedade perante os partidos e as eleições. É nesse sentido que Weber explica a passividade da massa pelas 149
poucas oportunidades que a sociedade tem de participar da vida institucional. Ão mesmo tempo, esse processo de racionalização implica a construção de sociedades que reforçam o papel
do carisma, tendo em vista uma racionalidade que dirige
a ação no sentido dos fins. A tensão entre racionalização e
carisma explica, segundo Weber, a necessidade de normas abstratas que legitimam a ação política. A burocratização dos partidos políticos tornou-os máquinas eleitorais, que dependem dos políticos profissionais, vocacionados para lutar pelo poder político e pelos votos dos eleitores. À par da estrutura burocrática, a democracia depende da existência de lideranças políticas capazes de fazerem referência à emotividade da massa e angariar votos para seus partidos. À máquina partidária, por outro lado, estabelece rígidos instrumentos de controle sobre o político.º Com partidos e representação dos interesses de classe, a democracia depende de uma estrutura burocrática que organize o eleitorado e as máquinas eleitorais. Dessa forma, dada a racionalização, a democracia se torna uma maneira de eleger uma elite política composta por indivíduos vocacionados para a luta pelo voto e pelo poder, tendo em vista a capacidade de liderança e o carisma do chefe político. A dernocracia é uma forma de se criar uma elite política legitimada pelos interesses das classes, em face de um conjunto de procedimentos legais especificados em um Direito posto pelo Estado. À democracia é a com-
petição por votos e pela representação dos interesses de classes sociais por parte de uma elite política, constituída no interior dos partidos políticos."º Do ponto de vista institucional, segundo Weber, o fundamental
em
uma
democracia é equilibrar a existência da autoridade política, 150
a liderança dos demagogos, a administração burocrática € a responsabilidade política. O problema institucional, no mundo da racionalidade
capitalista, depende de uma técnica, a qual organiza o poder conforme o plano das consegiiências da ação polís tica. Acredita-se que essa razão técnica saiba organizar do melhor modo possível a vida democrática, atribuindo aos atores um lugar, um papel e produtos simbólicos a consumir, passando por cima de um cotidiano que opera fora do mundo político. A política se tornou, nesse sentido, uma atividade para proflssnonms A racionatidade técnica impõe à política o exercício vocacionado de profissionais, capazes de lutar pelo poder e reproduzir uma ordem técnica e administrativa no plano do bem comum. A razão técnica organiza o mundo político de modo a neutralizá-lo em relação a valores, anulando ou extenuando a moralidade
—da política. A democracia representativa, por conseguinte, não se confunde com a democracia dos antigos, sustentada na retórica e na excelência da ação moral do cidadão. 'A democracia representativa moderna não pode admitir a liberdade dos demagogos políticos e um excessivo poder do demos. Ambos degeneram o caráter de estabilidade das instituições, porquanto a demagogia direta impede o sisterna parlamentar de sobreviver. Para controlar a existência natural dos demagogos e um excessivo poder do demos, a estrutura burocrática limita os direitos políticos dos cidadãos promovendo uma “salutar” passividade do eleitorado diante das máquinas eleitorais e do próprio Estado. Entretanto, a burocratização excessiva também traz prejuízos ao mundo institucional da dernocracia, uma vez que pode criar uma ditadura dos funcionários públicos e dos partidos. O próprio Direito cria, de acordo com Weber, 151
limitações ao exercício do poder político da burocracia,
ao instituir uma administração pública especializada e disciplinada, capaz de absorver a pluralidade de interesses e expressões políticas das classes. O Direito, nesse sentido, é essencial à vida institucional
da democracia, porque cria um conjunto de limitações ao
exercício do poder em função de sua estrutura sabidamen-
te coercitiva. Nas democracias representativas, portanto,
existe uma constante tensão entre o poder e a lei - entre a racionalidade e a racionalização -, que é rarefeita, de acordo com Weber, pelo papel das lideranças na construção da responsabilidade política, bem como pelo papel da razão técnica no contexto do racionalismo ocidental." Por esta assertiva, a racionalização do Direito é o mecanismo fundamental para a concretização dessa racionalidade técnica nas ordens democráticas."? Segundo Weber, o Estado de Direito não obtém sua legitimidade do livre exercício da autonomia da vontade por parte dos cidadãos mas do exercício da dominação conforme o Direito, baseada na racionalização da atividade administrativa do Estado por uma estrutura abstrata das leis, da autonomia das jurisdições e da vinculação funcional através do Direito Administrativo. Tomando esse modelo de Estado e de democracia como guia, não importa a convicção dos valores, mas os resultados derivados de uma racionalidade orientada aos fins. Ou seja, o dilema institucional dernocrático é equilibrar o poder da burocracia e o poder dos demagogos, sendo a responsabilidade instituída pelo Direito o elemento central à balança de poder. É nesse sentido que, do ponto de vista ético, não cabe a existência de juízos orientados por convicções valorativas. «
152
A diferenciação entre ética de convicção e ética de responsabilidade, de acordo com Weber, pauta-se na restrição da esfera pública e no papel dos partidos na consecução, dos interesses.
À ética de convicção é perniciosa nas de-
mocracias modernas, conforme opera com a produção de “profetas quiliastas”, em função de mandamentos incon- * dicionais, como atestou Weber. À ética de convicção não
serve à vida institucional da democracia, porque serve à ação de demagogos carismáticos, que se confundem com os heróis e santos, pautados pela plena virtude do agir conforme a convicção moral. A ética de convicção
é o domínio incondicional das virtudes da ação política,
normalmente relacionadas aos demagogos carismáticos. É perniciosa à vida institucional da democracia, visto que subverte os procedimentos legais de luta pelo poder, sem se ater às conseqiilências da ação política. A ética de responsabilidade, por outro lado, é aquela que se pergunta pelas consequências da ação política. Não se pauta em mandamentos incondicionais mas na avaíia'ção da ação política conforme os interesses das classes sociais. Weber esvazia a política dos conteúdos morais ao admitir que ela deve estar ligada a um “olhar realista”, em que o político se responsabilize pelas consequências de sua ação e a democracia esteja assentada em uma racionalidade que seja capaz de derivar instituições eficazes. À ética de responsabilidade, atenta às consequências da ação política, não opera com códigos morais. É um juízo pautado pelos interesses, já que a ação política se responsabiliza no plano do eleitorado, que pode retirar ou colocar a elite partidária no poder, bem como no Direito, nos planos penal, administrativo e civil.
Distinguir ética de convicção e ética de responsabilidade,
segundo Weber, relaciona-se às restrições do cleitorado,
que apenas aprova ou desaprova a ação realizada pela elite política. Não cabe a existência de convicções morais na política, porquanto a capacidade de emissão do juízo configura-se na passividade do eleitor frente aos assuntos políticos e na autonomia das máquinas eleitorais perante a esfera pública." Ou seja, as restrições estruturais presentes na esfera pública não a habilitam a emitir juízos corretos acerca da ação política. Se pautados por convicções morais ou pela virtude dos santos, a democracia aumenta o espaço dos demagogos e põe em risco a estabilidade do sistema político. Para Weber, a democracia representativa moderna opera com a ética de responsabilidade, porquanto lida com um mundo burocratizado e racional, que se diferenciou da esfera pública em função da existência dos políticos profissionais. É nesse sentido que a burocratização e a racionalização da política demandam a avaliação das consequências da ação dos políticos e não dos meios empregados para a consecução dos fins. Em sociedades permeadas por uma pluralidade de valores, a avaliação da ação política se pauta por suas consequências junto ao eleitorado, Dada essa característica da democracia representativa, no mundo moderno, a noção de interesse público, enquanto princípio heurístico, depende de uma enunciação por parte das agências do Estado, cujo objetivo é determinar a dominação conforme o Direito. O interesse público converte-se em tema jurídico, esvaecendo o plano dos valores de uma moral política que o cerca. Uma vez que a participação é limitada, a noção de interesse público nas democracias representativas perde seu caráter comunitário. Ao se converter em terna jurídico, o interesse público é, 154
primordialmente, enunciado pelo Judiciário, conforme um conjunto de normas abstratas e formais. A visão weberiana da democracia, em alguma medida, funciona como pressuposto de toda a teoria democrática produzida ao longo do século XX. Guardadas as variantes teóricas e epistemológicas, a democracia representativa em Estados burocratizados e racionalizados é o pressuposto da visão liberal. Mesmo as noções pluralistas, como a de Dahl,'* pressupõem a vida institucional balizada nos procedimentos e um vazio dos valores morais, construídos
conforme convicções políticas. De acordo com Dahl, a democracia demanda a constituição de instituições responsivas aos interesses da sociedade, respeitadas as regras institucionais da poliarquia. A garantia da responsividade das instituições aos interesses depende da liberalização e institucionalização dos direitos da cidadania, conforme regras procedimentais como eleições livres e limpas, sufrágio inclusivo, liberdade de expressão, informação alternativa e autonomia de associação."S Weber lançou as bases sociológicas para se pensar a democracia na modernidade, cujo embate é sempre equilibrar o poder e a responsabilidade política, visando a criar instituições estáveis. As variantes teóricas estão no
plano dos procedimentos adotados e na constatação da passividade dos cidadãos frente aos negócios públicos. As barreiras estruturais à participação enfrentadas pela esfera pública são componentes da vida institucional democrática na modernidade, mesmo para teorias mais progressistas, que trabalham com uma noção mais aberta de esfera pública e de participação, como a de Habermas."* Contudo, esse processo de especialização e as barreiras à participação da sociedade civil, ao mesmo tempo em que 155
proporcionam a legitimação dos sistemas administrativos,
viabilizam suas crises de legitimação pelo fato de instrumentalizar o discurso político em vista das relações de poder. A democracia se submeteu à razão instrumental, de forma que o domínio do Estado vai se tornando, gradativamente, despolitizado. Essa despolitização acarreta o fato de a democracia estar submetida a uma tendência de crises políticas cada vez mais frequentes, sendo a corrupção um dos elementos centrais dessas crises. ÀA democracia, dessa forma, fica colonizada pelos sistemas administrativos: os discursos se dissociam pelo gradativo distanciamento entre burocracia e sociedade civil. No àrgumento habermasiano, as sociedades passam por uma crise do mundo do trabalho - não se pode falar nos partidos como instrumentos eficazes de ampliação da participação política -, tornando as classes sociais um mecanismo inadequado para a legitimação política do Estado. O problema do modelo partidário-eleitoral criou uma crise de legitimação que passa, necessariamente, pela crise do modelo de representação.”” Habermas defende o papel da sociedade civil como a esfera pública e política na construção da legitimidade democrática. Mesmo partindo da constatação empiírica de uma esfera pública ativa, Habermas também constata a existência de limites da sociedade civil. Nesse sentido, não escapa à defesa de uma lógica procedimental da democracia, mesmo que trabalhe com uma concepção deliberativa. Uma estrutura de direitos e a existência de um marco constitucional são fundamentais à existência de uma vida institucional democrática. . Existe uma outra modulação presente na teoria democrática que não o mundo das classes, no sentido weberiano. A crise do mundo do trabalho levou a uma afirmação 156
da cidadania como tfoco de uma institucionalidade demoerática à qual, de neordo com Hobermas, ocorre pela presença de uma sociedade civil balizada em interesses que transcendem à lógica do mundo do trabalho, ou seja, das classes. AÀ democracia é construída em um procedimento de deliberação pública no sentido de constituição da legitimidade do sistema político, conforme a validade das posições sociais e políticas, definidas em um mundo autônomo e não colonizado pelos sistemas."* Mesmo que opere em cuategorias e conceitos diferentes da sociologia weberiana, a democracia deliberativa de Habermas continua assentada na lógica procedimental via sistemas político e jurídico. Apesar da crise do mundo do trabalho e da crise do modelo de representação via partidos políticos, a democracia continua assentada em uma lógica procedimental, nutrindo uma enorme desconfiança com relação à capacidade de participação do cidadão comum nos negócios públicos. ÀA passividade e a apatia do cidadão são contornadas pelos mecanismos de controle burocrático via Direito, um instrumento coercitivo por definição. Todas as formas de desvio são corrigidas por intermédio de normas legais e a existência de uma administração profissional. Independente das variações na teoria democrática, a corrupção nas democracias representativas é compreendida conforme as
consequências da ação política, de acordo com os mecanismos de responsabilidade instituídos no Direito. Não se compreende a corrupção pela generalização de um código moral mas pelos instrumentos legais instituídos em uma administração pública feita de funcionários profissionais, que pautam sua ação pelas regras procedimentais de controle do poder, conforme uma noção de responsabilidade 157
como instrumento heurístico. Dessa forma, a corrupção nasce da tensão entre racionalização e intencionalidade
da ação.
Na modernidade, a relação entre democracia e corrupção ocorre em torno da responsabilidade dos políticos diante do eleitorado, em conformidade com os mecanismos de controle burocrático dentro dos partidos e do governo, Ademais, a corrupção é tolerada nas democracias representativas modernas, visto que as restrições da esfera pública desprezam as convicções morais nutridas por demagogos e líderes carismáticos. Como destaca Weber, a corrupção é tolerada em democracias modernas, tal como exemplifica a existência de sistemas de despojos e venda de cargos públicos."º Fundamentalmente, a corrupção, nesse contexto da modernidade capitalista, é um desvio da legalidade instituída no Direito, em especial em sua esfera administrativa. Sua relação com a democracia está no fato de ela afetar o aparato institucional do Estado. Ou seja, a relação entre corrupção e democracia está nas consequências da primeira sobre a segunda. Anuladas as condições pré-reflexivas da moralidade, a sociologia weberiana trabalha com a relação entre corrupção e democracia pela lógica da responsabilidade política, que encontrou diferentes variantes na teoria democrática moderna. Vista pelas consequências, a corrupção na política democrática é tratada como os efeitos colaterais da ação conforme os termos da ética de responsabilidade. Desse modo, trata-se de controlar o exercício do poder pela ação política, conforme uma estrutura
normativa
burocratizada,
pública profissional e impessoal.
158
uma
administração
Na medida dos códigos legais, institui-se a vida democrática pelo controle do poder político e sua natural ten-
dência à discricionariedade. Na premissa weberiana, a
corrupção é vista como um desvio de funcionalidade por parte de um funcionário público (incluindo os políticos), na medida em que não existam normas que impeçam a arbitrariedade do político ou do funcionário. Por esta premissa, a corrupção nas democracias contemporâneas
é vista sermpre como um problema do Estado e seus órgãos burocráticos, restringindo o alcance dos valores e das virtudes na política. Como a teoria democrática opera na ética de responsabilidade, não existe espaço para a existência de códigos morais ou valores. Vista pelas conseqilências,
a corrupção
afeta a construção da vida institucional democrática, criando uma visão de mundo em que seu controle depende, exclusivamente, do arranjo do aparato legal e administrativo do Estado. A relação entre democracia e
corrupção, por conseguinte, está no plano da responsabilidade do político diante do eleitorado. Esse tipo de visão sistêmica e condicionada às consequências da ação política circunscreve a relação entre democracia e cor-
rupção conforme seus efeitos na ordem estatal como um todo. De um modo geral, são os seguintes efeitos da corrupção sobre a democracia: a) a b) a c) a d) a política
deslegitimação das instituições dernocráticas; crescente desconfiança para com a elite política; fundamentação de desigualdades sociais; centralização excessiva pela criação de uma elite que se reproduz no poder.
159
A visão weberiana marca, substantivamente, a visão
liberal acerca dos efeitos da corrupção na democracia. No sentido da ética de responsabilidade, a corrupção está sujeita ao controle burocrático no plano da administração pública, exigindo, dessa maneira, a construção de uma vidtinstitucional que impeça qualquer tipo de discricionariedade por parte dos agentes políticos. O controle da corrupção, nas diferentes abordagens conternporâneas, tal como expus na apresentação deste trabalho, é realizado conforme o controle dos sistemas de incentivo às práticas de corrupção. Como os termos da ética de responsabilidade circunscrevem-se na ação política, o essencial é controlar
os incentivos à ação corrupta ou corruptora por parte dos
agentes políticos. A relação entre democracia e corrupção,
dessa forma, está assentada em construir mecanismos de controle sobre a ação política na direção da crescente responsabilização dos políticos diante do eleitorado, tendo em vista a intencionalidade da ação. "Caso não haja a construção de mecanismos de responsabilização dos políticos na institucionalidade dernocrática, o risco de crescente deslegitimação é grande. À corrupção contribui para uma crescente deslegitimação das instituições democráticas, ao reduzir a confiança depositada pelos cidadãos. Se a legitimidade é construída conforme a existência de um marco constitucional, a corrupção compromete o poder ao ferir os valores democráticos com a idéia de que o governo se encontra à venda.” A deslegitimação das instituições democráticas ocorre pela quebra da confiança do eleitorado, visto que a corrupção sistêmica dá espaço a demagogos e a tentativas de quebra institucional.”'* Além disso, a corrupção
160
contribui para a deslegitimação ao criar uma assimetria
do processo democrático, favorecendo iniciativas pessoais,
ou não marcadas pelo senso da responsabilidade política. Em outras palavras, a corrupção torna os mecanismos de suporte político ineficazes para as regras constitucionais, especialmente no que diz respeito às eleições e ao sisterrra de partidos. Do mesmo modo que as instituições democráticas sofrem os efeitos da corrupção, a elite política e partidária não possui prestígio diante do eleitorado. Tal descrédito contribui para a instabilidade política e para uma possível quebra institucional. Como a democracia é um método para instituir uma elite política,”? sua relação com a corrupção circunscreve-se na baixa participação política. Ademais, ocorre uma fragmentação do sistema partidário, ao se dividirem as elites políticas. A terceira consegiiência da corrupção sobre a democracia é a ampliação das desigualdades sociais, ao se criarem assimetrias no plano do mercado. Ou seja, a corrupção tem efeitos distributivos em função da relação entre o Estado e o setor privado. Sistemas de suborno e pagamentos de propina criam assimetrias mercadológicas, o que prejudica
a democracia no sentido da alocação dos recursos públicos. A fatia maior dos ganhos é acumulada pelos vencedores nos esquemas de corrupção, deixando a base social com uma fatia menor: o Estado, para compensar as perdas com impostos e taxas, aumenta a carga tributária ou corta gastos essenciais, especialmente nas políticas sociais. À corrupção, do ponto de vista econômico, tem efeitos nocivos à democracia, porquanto consolida um sistema desigual de alocação dos recursos públicos.”
161
Além dos cfeitos econômicos sobre a democracia, a corrupção contribui para uma centralização excessiva do poder, ao possibilitar a hegemonia de uma elite política, que se arraiga no comando pela manipulação do acesso político como retorno para outros ganhos econômicos. Em outras palavras, a corrupção contribui para reproduzir uma elite política que se encastela no poder, controlando as oportunidades econômicas em função da baixa competição, tendo em vista o domínio sobre o acesso a cargos públicos e o impedimento da abertura substancial da política. Como não há competição entre elites políticas - ou, se houvesse, seria fraca -, propicia-se a hegemonia de uma elite, que não encontra qualquer forma eficiente de oposição. À centralização do poder vem justamente do controle das oportunidades econômicas e do acesso aos cargos públicos, primordialmente via corrupção. Como existe um contexto de forte centralização política, não é possível afirmar a sustentabilidade das instituições democráticas.** A premissa para a derivação dessa análise consegiencialista, presente na literatura especializada sobre o tema da corrupção,
é, essencialmente, weberiana.
Nos
termos
da ética de responsabilidade, a corrupção é avaliada pelas conseqiiências da ação política, não envolvendo nenhum tipo de juízo fundamentalmente valorativo. Como premissa teórica, a avaliação da ação política, de acordo com Weber, ocorre no plano de sua intencionalidade, conforme o preceito da racionalidade no mundo Ocidental e a vida pelos interesses intra-mundanos. À relação entre democracia e corrupção é sempre descrita conforme o paradigma weberiano da ação social, sem se ater aos processos cotidianos e à moralidade envolvida no conceito e na prática da corrupção. Ao dissociar a moralidade da 162
responsabilidade, Weber proporcionou o esvaecimento dos valores na política, tornando obscura a prática e o julgamento do ato corrupto. O problema não é abordar as conseqiiências da corrupção em si, mas abordar o tema de maneira a neutralizar qualquer ressonância moral que garanta uma significação mais ampla da corrupção, como o fiz no capítulo anterior. A crise do modelo representativo de democracia se dá pela crescente diferenciação funcional da política. À corrupção mina a capacidade das instituições democráticas de aterem-se a mecanismos de responsabilização dos representantes perante os representados, já que o dinheiro tornou-se elemento central em eleições. À representação, dessa forma, criou uma lógica de diferenciação do poder, a qual torna a corrupção um elemento central, tendo em vista os sistemas de patronagem, clientelismo e espólios. As democracias representativas convivem, assim, com
um tipo de prática corriqueira, contrária aos elementos republicanos que perpassam uma noção de cidadania democrática. O fato é que democracia e corrupção estão no plano de uma atividade especializada, ditada por uma razão técnica que acredita poder distribuir papéis e valores. À responsabilidade política e o controle da corrupção passam, necessariamente, pela estrutura burocrática do Estado e dos partidos políticos, de acordo com os resultados da ação política, como afirmou Weber. Por essa lógica, o controle da corrupção ocorre no interior dos sistemas políticos e obedece a regras e costumes do modelo administrativo burocrático, sendo a corrupção um problema ligado às patologias da representação política.
163
Todos os seus cfeitos sobre a democracia, como apontei acima, são controlados ou pela mudança do sistema, via
reformas, ou pela manutenção da corrupção no interior dos órgãos burocráticos. Como mostrarei mais à frente, isso resulta em certa artificialidade das instituições políticas, em que as reformas acreditam poder controlar a corrupção sem reproduzir um discurso moral empregado no plano de sociedades complexas e plurais. Ou seja, nas democracias representativas, a corrupção está relacionada a um
cotidiano ditado pela crescente rotinização da estrutura
burocrática. A burocracia está orientada pelos interesses,
sendo ela uma agência neutra em relação aos apelos morais no plano dos valores. Isso faz com que a corrupção componha o próprio cotidiano da política, assentada no mundo econôrmnico. Para a visão hegemônica, o essencial é que a vida institucional da democracia estabeleça mecanismos de responsabilidade política, sem romper os mecanismos de equilíbrio entre estabilidade das instituições e processos eleitorais, ou entre Direito e poder. É o mesmo jogo da
premissa weberiana que se faz presente nas proposições
de reformas liberalizantes, defendidas ao longo das décadas de 1980 e 1990. De acordo com Susan Rose-Ackerman, as reformas institucionais nas democracias contemporãâ-
neas devem promover o controle da corrupção como algo essencial à consolidação desse marco institucional.** Trata-se de um conjunto de mudanças que visam a implementar a responsabilidade política e os mecanismos de competição estável entre elites partidárias. É na reforma dos arranjos institucionais que se concretiza a idéia de controle democrático sobre o ato corrupto no mundo
164
conternporâneo, acreditando poder resgatar a representação, mesmo no contexto de sua crise. A crise do modelo de representação e o crescente distanciamento da burocracia em relação à esfera pública, como apontou Habermas,* acarretam uma crise de legitimidade do modelo de democracia representativa e um gradativo avanço da corrupção, visto que os elementos de responsabilização política se tornaram ineficientes em face da pouca densidade dos partidos junto ao eleitorado. De um lado, a representação tornou-se uma atividade especializada, feita por políticos profissionais, que investem grande volume de dinheiro nos processos eleitorais. De outro lado, a crise do modelo de representação implicou o gradativo distanciamento em relação à esfera pública, proporcionando a inércia dos sistemas de responsabilização política. Dessa forma, as reformas se mostram ineficazes para a consolidação de mecanismos de controles democráticos da corrupção, porque criam um tipo de democracia às voltas com a apatia do cidadão comum, fazendo com que as demandas republicanas por controle da corrupção não se convertam em políticas efetivas.
O problema é que a gradativa especialização e a introdução do dinheiro nas relações políticas implicaram a rotinização do ato corrupto, de acordo com um quadro de crise do modelo de representação democrática derivado da baixa capilaridade dos partidos junto ao eleitorado, da diversificação dos interesses e dos loci decisórios. É daí que os Parlamentos, em especial, se tornaram centros da
corrupção nas democracias contemporâneas bem como
caixa de ressonância do descontentamento com a atividade política. A proposição de reformas para o controle da
165
corrupção, dessa maneira, está vinculada à reconstrução da representação. Porém, a crise acarreta a ineficiência dos
mecanismos de responsabilização política, já que se parte da premissa de que seja reconstruído um modelo de controle do representado sobre o representante, sem perceber
que o sistema político soa como esotérico perante o cidadão
comurm. Cormo notou Kelsen, a relação entre representado e representante é o calcanhar de Aquiles das democracias representativas, uma vez que a especialização e a rotiniza-
ção da atividade política criam um distanciamento entre os dois, tornando quase impossível a criação de um sistema de responsabilidade política, que poderia ser instituído apenas pela racionalização do Direito.”” Guardadas as eventuais variantes de um caso a outro, as reformas institucionais defendidas ao longo das décadas de 1980 e 1990 desencadearam a idéia de que o controle da corrupção está associado à restrição dos sistemas de incentivo. Ou seja, as reformas estão circunscritas em uma
noção geral da ação enquanto movida pelos interesses dos agentes políticos e econômicos, desconsiderando eventuais diferenças nas concepções morais de uma sociedade bem como os elementos que definem sua práxis social. O rol de reformas defendidas tanto na literatura especializada quanto pelas agências internacionais tem um caráter gene-
ralista e míope, visto que desconsidera os elementos morais e as condições cotidianas da corrupção na política. As reformas propõem mudanças nos marcos constitucionais tomando como pressuposto uma realidade global da corrupção, passando por cima das diferenças entre realidades culturais, políticas, econômicas e sociais, de acordo com um modelo universal de representação política defendido como modelo de demnocracia. 166
Dessa forma, ao denunciar o Estado como centro da corrupção, o modelo liberal promove uma erosão
do consenso autoritativo, em que a idéia de soberania submerge à precedência dos mercados internacionais.
lsso acarreta uma visão comum de que a corrupção nasce
do Estado, tendo em vista uma histeria ética que nasce justamente da ausência de uma autoridade soberana, que arbitre os interesses. O liberalismo não se dá conta de que, ao promover a erosão do Estado (consenso autoritativo),
promove uma crise de legitimação que tem efeitos no âmbito dos consensos republicano e comunitarista, que, por sua veêz, o afeta também. Levado ao discurso político, percebe-se a gradativa erosão dos consensos autoritativo, republicano e comunitarista, o que implica uma crise de legitimação em que valores e normas esvaecem em meio à proeminência do mercado. No caso dos mecanismos de responsabilização política, a crise do modelo de representação acarreta aquilo que chamo de problema da desocultação da corrupção, do qual trato mais adiante. O problema da desocultação da corrupção está relacionado aos discursos políticos e à presunção de validade desses discursos, de maneira a ressaltar o cotidiano do escândalo e da histeria ética inerentes aos contextos dernocráticos representativos. À corrupção se tornou um tipo de prática cotidiana na política, em especial em sua dimensão representativa, na qual a falta de responsividade implica o fato de sua desocultação criar uma endemia das delinqúências do homem público.
167
O PROBLEMA DA DESOCULTAÇÃO DA CORRUPÇÃO De uma perspectiva cética, a corrupção é um tipo de força oculta, porque está em uma posição liminar, representando um fenômeno ubíquo, que se realiza na política e, ao mesmo tempo, fora dela,ºº apoiado em segredos e esquemas que ultrapassam suas fronteiras morais. Por se tratar de algo subliminar, funciona como um tipo de prática que não é aparente e muito menos sujeita a punição,
caso seja bem sucedida. É por isso que não é possível uma medida empírica eficaz da corrupção. Mas o fato de estar oculta na política não impede que ela possa ser desocultada. A desocultação é um tipo de problema inerente às democracias representativas contemporâneas, que assentam o problema da corrupção em discursos políticos com pretensão de validade, porquanto representam discursos assertóricos sobre uma realidade empírica da corrupção. À desocultação é a produção de discursos com pretensão de serem verdadeiros, assentados em rotinas próprias do mundo político e jurídico, por meio dos quais a corrupção deve ser controlada e combatida. A desocultação é uma modalidade de produção da verdade em política, quando a corrupção se torna aparente, Significa a elaboração de discursos firmada em proposições assertóricas, que são ermpregadas intencionalmente
e estruturam uma atividade orientada a fins.” O fato é que a desocultação é um tipo de juízo instrumentalizado a respeito da corrupção na política, em que o objetivo é obter algum tipo de vantagem ou angariar poder, por parte de quem o enuncia. Dessa forma a desocultação possui a pretensão de verdade, visto que é um ato de fala 168
representativo, cujo objetivo é afirmar uma proposição acerca da corrupção na política. A desocultação da corrupção, por ser um discurso assertórico sobre sua realidade empírica, é realizada por uma comunidade de intérpretes da corrupção. Basicamente, são três os atores envolvidos no problema: primeiramente, a própria esfera de representação política no plano dos partidos e das demais instituições políticas; em segundo lugar, a opinião pública influenciada pela mídia; e, finalmente, o Direito e seus procedimentos. No caso dos dois primeiros atores, eles atuam no mesmo contexto da política, em
que a lógica do escândalo é resultado dos discursos assertóricos, orientados aos fins. O Direito, por outro lado, apresenta-se como narrador imparcial. Esses atores compõem camnpos diferentes de atuação; isto é, atuam em espaços da política, que circunscrevem práticas e visões de mundo diferenciadas, influenciando o modo como se constrói o juízo. O fato é que o controle e a punição aos casos fracassados de corrupção passam, necessariamente, por mecanismos
de discursos que pretendem ser verdadeiros, sujeitos a um uso instrumental por parte dos atores do campo político. Por se tratar de um ato de fala representativo, a desocultação depende de quem o enuncia. Existe um plano lingúístico em que a estratégia domina os meios pelos quais a verdade será produzida, tratando-se de uma modalidade de discurso político ligada a um tom matizado de revelação da corrupção à opinião pública. Como verdade factual, a desocultação está ligada ao mundo da doxa, em que a aparência importa mais que a essência, sendo uma
modalidade discursiva na qual importam formas como reputação, carisma e capacidade de liderança do político. 169
lsso se deve, de alguma maneira, à diferenciação da mídia e à produção da opinião pela indústria cultural, de acordo
com um discurso instrumentalizado e não orientado para
o entendimento.” A crise do modelo de representação e a erosão do consenso autoritativo, pela crise do Estado, acarretam, com relação ao tema da corrupção, um tipo de problema em que a responsabilidade política depende de sistemas de desocultação. Um dos elementos fundarnentais para uma ética de responsabilidade, própria ao mundo da demo-
cracia representativa, está na construção da verdade na
política. A responsabilidade política depende de sistemas
de construção da verdade, relacionados a uma lógica de controle da corrupção. No caso da corrupção, esses siste-
mas de construção da verdade factual, no mundo conternporâneo, passam por uma lógica de desocultação, a qual tem um processo específico nas arenas política e jurídica. Por se tratar de discursos com pretensão de validade, eles podem ser verdadeiros ou falsos. Opiniões ou convicções morais, entretanto, não são sempre verdadeiras. Quem compartilha, do mesmo modo, uma concepção falsa não é, necessariamente, irracional. A especialização técnica e profissional da política acarretou um processo em que a corrupção pertence às rotinas
da burocracia do Estado e dos partidos políticos. Desse modo, ela é inerente ao cotidiano dos sistemas adminis-
trativos, porquanto o dinheiro e a competição pelo voto demandam a criação de sisternas de arrecadação de fundos de campanha e posterior distribuição dos espólios. À corrupção, ao se tornar cotidiana na vida burocrática, relaciona-se com um mundo técnico, ditado especialmente pelo Direito e seus procedimentos. Em que medida ela 170
avançou ou regrediu não é possível afirmar, mas o fato é que a corrupção que se conhece está relacionada a esquemas que não deram certo e, por tal característica, será passível de punição por parte de sistemas especializados ditados pelo Direito. Nas democracias contemporâneas, a ineficiência dos mecanismos de responsabilização, no interior dos órgãos burocráticos do Estado e dos partidos políticos, implica um processo em que a desocultação é um tipo de discurso inerente à política. Os casos de corrupção que emergem à esfera pública estão sujeitos a essa modalidade de discurso, que pretende produzir verdade de acordo com a prática do escândalo. Esse fenômeno deriva do fato de os sistemas administrativos produzirem um distanciamento em relação à esfera pública, o que, de acordo com Habermas, significa a produção de sua legitimidade ao mesmo tempo em que ocorrem processos de crise de legitimação.*' O resultado é uma crescente instrumentalização do discurso político,
que, por se constituir de atos de fala representativos, tem
a pretensão de ser verdadeiro. Em outras palavras, a cor-
rupção se torna algo fundamental no discurso político, no interior das democracias contemporâneas, porquanto a histeria ética se tornou elemento central nas relações de poder entre os agentes e os partidos. A corrupção configura um processo em que a crise de legitimação da dernocracia promove a permanência da lógica de sua desocultação, num movimento em que ela se apresenta como inércia, apesar dos espasmos de controle social. Do ponto de vista da democracia, esses discursos tornaram-se comuns.
Como
são discursos representativos, a
audiência não tem meios para distinguir se a sua essência é verdadeira ou falsa. O problema da desocultação é que 171
esses discursos assertóricos estão na base de atos de fala atirmativos, sem que o resultado seja a responsabilidade, mas à gradativa penalização do mundo político; além disso, o discurso que pretende ser válido a respeito da corrupção está entregue a atores sociais nem sempre dotados da plena legitimidade para proferi-los. Como há a pretensão de verdade, ocorre uma precipitação do juízo, que nem sempre resulta em responsabilidade do corpo político. À corrupção, uma vez desocultada por esses discursos assertóricos, não implica a elaboração da responsabilidade mas de uma lógica assentada no escândalo e no esquecimento coletivo. Como uma forma de discurso que tem a pretensão de validade acerca do que é corrupto, a desocultação torna-se um discurso permanente nas democracias contemporâneas, acarretando um processo de histeria ética que agrava as crises de legitimação. Isso passa, necessariamente, pela instrumentalização do discurso político, cujo fim não é a produção de consensos normativos no plano da sociedade mas o fortalecimento das relações de poder e do conflito político. Como doxa, a desocultação é a produção de verdade factual, cuja resultante, nas democracias conternporâneas, é a instauração de um sentimento de crise
ética, associado ao mau funcionamento do sistema, fazendo
com que a apatia e a indiferença sejam a tônica do comportamento político. Isso se deve ao fato de a desocultação tratar-se de um discurso marcado por hipérboles, destinado
a aumentar ou diminuir a verdade da corrupção. É nesse sentido que a transparência se torna um mito com relação ao controle da corrupção. A diferenciação do sistema político implicou a construção de uma linguagem técnica, em que aquilo que 172
transparece é controlado sistemicamente. Como pretensão de verdade, a corrupção pode ser mantida oculta, ou desocultada, acarretando os efeitos perniciosos sobre a ordem. A transparência das instituições políticas, nesse sentido,
pode ser danosa ao Estado e à república, porque o domínio da opinião, próprio da esfera pública, não consegue julgar, eficazmente, a ação política, visto que se trata de discursos instrumentalizados com o fim de angariar poder. O político pode agir de maneira responsável se ocultar a corrupção aos olhos da esfera pública. Nem sempre, portanto, o políftico pode agir de maneira transparente diante do público, visto que a responsabilidade nern sempre depende da verdade, no sentido da política. Aquilo que é desocultado, ou transparecido, pode se transformar em denúncia moral e não em responsabilidade perante o juízo da esfera pública. O denuncismo moral anula qualquer possibilidade de debate público acerca da corrupção, visto que as idéias reitoras do verdadeiro ocultam-se na obviedade de uma realidade comum, tendo em vista uma histeria ética. Ou seja, o entendimento dá lugar à estratégia, de modo que a desocultação colabora para sua (re)ocultação. Como a corrupção é um problema político de primeiro plano, a ausência de entendimento acerca de sua prática vela seu real alcance. Aquilo que é transparecido não significa uma verdade no sentido epistêmico mas uma proposição enunciada de acordo com um ato de fala representativo. AÀ transparência, nesse sentido, não implica, necessariamente, em responsabilidade. Ela implica a exclamação de discursos de desocultação que pretendem ser verdadeiros, mas que podem ser falsos à medida que não precisam apresentar uma base de justificação.
173
No liberalismo contemporâneo, o conceito de transpa-
rência se tornou primordial. Ele pressupõe que a política
deve se submeter à percepção que eleitores e contribuintes têm das políticas públicas conduzidas pelo Estado. O con-
ceito de transparência, em primeiro lugar, aponta para uma
visão restrita da cidadania, criando uma miopia em relação às demandas republicanas e comunitárias. E, em segundo lugar, do conceito de transparência não se deriva uma concepção substantiva de interesse público, com a qual se possa criar mecanismos eficazes de controle da corrupção — esta apenas se torna aparente e submetida ao processo de desocultação, tão em voga hoje. Uma vez desocultada, não é possível distinguir se o alcance da corrupção é verdadeiro ou falso, visto que ela representa a instrumentalização do discurso político, esvaecendo, dessa forma, qualquer possibilidade de produção da verdade. A perplexidade dessa afirmação está no fato de que aquilo que ocorre em segredo, de maneira oculta, não permite entendimento, porém permite estratégia, ação e erro. À revelação da corrupção termina por ser mais o denuncismo moral do que o alargamento do debate de seus efeitos. A corrupção tem a faceta de, normalmente, se transformar em escândalo, cujo efeito é mais se (re)ocultar
do que se tornar aparente. O campo político tem essa peculiaridade, uma vez que se sustenta na doxa. A conclusão, seguindo uma proposição de Hannah Arendt, é que a verdade, nesse caso a verdade da corrupção, deve ser revelada fora do domínio político, pelo motivo de que sua enunciação exige imparcialidade e desinteresse.”º Mesmo que a verdade não seja uma exigência da política, ela pretende se tornar própria ao campo político quando estiver diante de casos revelados de corrupção. À 174
desocultação aparentes ao segredo, para no contexto
é inerente ao momento em que eles se tornam público, perdendo seu traço de ubiquidade e se converterern em escândalos, especialmente da crise do modelo de representação na de-
mocracia. O fato é que, na democracia, a verdade acerca
da corrupção pretende ser “verdadeira", porquanto circunscrita em torno da opinião e da lógica da desocultação. À corrupção revelada ao público, sem se ater a qualquer concepção pura de verdade, perde, nesse sentido, seu poder coercitivo, que nem sempre se converte em responsabilidade, via Direito. O fato é que a desocultação tornou-se um problema inerente às dernocracias representativas, uma vez que,
diante dos casos de corrupção, não se consegue converter o discurso em responsabilidade. Nesse caso, o narrador irmparcial, que seria o Direito, passa pelo mesmo processo submetendo-se aos discursos com pretensão de verdade, se pensarmos, por exemplo, a relação entre a mídia e o mundo da magistratura. Se, na democracia, a corrupção deve ser desocultada fora do contexto político, com o objetivo de impedir o escândalo e a histeria ética, isso deveria ser realizado por um narrador imparcial, com o intuito de impedir a instrumentalização do discurso. O problema é quando esse narrador imparcial é instrumentalizado pela política, cormo mostrarei mais à frente, acarretando um processo em
que a corrupção se torna permanente, mas nunca punida,
contribuindo, dessa forma, para o aprofundamento da crise
de legitimação da democracia. A lógica da desocultação proporciona uma abrangência em que a corrupção se apresenta de maneira endêmica, suscetível a certa paralisia decisória, uma espécie de normalidade cotidiana da política, já que a sociedade 175
a tolera no contexto das relações de poder. Ela se torna, com o problema da desocultação, inerente às democracias representativas, um tipo de endemia explorada pela histeria ética, sem alcançar resultados práticos no que diz respeito a elementos de reforma e mudança institucional. A democracia, dessa forma, fica sujeita ao gradativo descontentamento, à indiferença, ampliando sua crise de legitimidade em conformidade com a desocultação da corrupção. À política, a permanecer no problema da desocultação, passa a ser vista como o espaço dos vícios, tornando-se secundária em relação ao mundo econômico. Como está balizada em discursos com pretensão de verdade, a desocultação cria um contexto de perplexidade e paralisia, contribuindo para o avanço de um processo de patogenia das instituições, em que ela se torna cada vez mais endemia do corpo social e político, contribuindo para uma gradativa ruptura da vida institucional.
A DESOCULTAÇÁO DA CORRUPÇÃO NO CAMPO POLÍTICO Seguindo uma orientação habermasiana da teoria dos atos de fala, conclui-se que a corrupção está relacionada a discursos assertóricos, baseados em atos de fala representativos, que estruturarm uma atividade orientada a fins. São discursos que têm uma pretensão de verdade, que todavia não pode ser verificada pela audiência, visto que
não ocorrem na base de uma justificação e aplicação de valores. Operar esses discursos na base de uma sociologia política da corrupção acarreta o fato de se perceber os espaços sociais onde o problema da desocultação ocorre. 176
Nesse sentido, é fundamental pensar os discursos assertóricos tão comuns ao problema da desocultação, bem
como os espaços sociais onde são enunciados. Dessa ma-
neira, a teoria do campo de Bourdieu pode ser profícua à compreensão do espaço desses discursos assertóricos, ampliando a margem de aplicação da teoria dos atos de fala de Habermas. Ou seja, unir o plano do discurso às práticas inerentes às esferas política e judicial. A teoria do campo de Pierre Bourdieu parte do fato de que a vida social é constituída de vários microcosmos ou espaços de relações objetivas e disposições subjetivas no plano individual e coletivo.** O campo é aquilo que une o perceptível e o imperceptível, uma vez que este significa relações estruturais que moldam ações e instituições, enquanto aquele trata da estruturação das relações sociais. O campo é uma estrutura que constrange seus agentes, de maneira a estipular instituições e critérios do agir no contexto dos grupos. São processos de diferenciação social, de maneira a produzir certo tipo de conhecimento específico o qual delimita técnicas e esquemas de ação a seus agentes. O campo é aquilo que une estrutura e ação, ajustando as relações sociais mediante a determinação de uma interioridade e de uma exterioridade - isto é, a determinação de um espaço “dentro” e outro “fora” do campo, respectivamente,.
O campo político, na ótica de Pierre Bourdieu, é um tipo de esfera da vida social dotada de autonomia, na qual os agentes concorrem entre si pela disputa da produção de
programas, análises, conceitos e acontecimentos. Ou seja,
os agentes lutam pela geração de “produtos simbólicos”, dotados de uma força ideológica que permita a conquista do poder.” Na modernidade, como apontou Bourdieu, a 177
política é a realização de “produtos simbólicos” originados da disputa entre políticos profissionais. Esses profissionais criam representações de mundo mediante discursos passíveis de serem produzidos e reproduzidos dentro de um espaço de tomadas de posição, tendo em vista um universo de técnicas de ação e de expressão a serviço da sociedade. AÀ disputa pelo poder ocorre, essencialmente, pela capacidade do político de gerar “produtos simbólicos”, que permitam a representação permanente da política, conforme uma homologia com a estrutura do teatro político. O desenrolar da luta no campo, de acordo com Bourdieu, se dá na força de mobilização do vencedor frente ao grupo que reconhece as idéias produzidas, seja pela sua expressão na força de manifestação de massas, seja pelo “silêncio ou ausência de desmentido”” O campo político, portanto, é o espaço de crenças, dotadas de uma força representativa do mundo, capaz de descrever e julgar a realidade política de maneira factual. Discursos assertóricos, baseados em atos de fala representativos, são inerentes às práticas do campo político. Se a política é um campo dotado de autonomia, construído sobre conflitos específicos entre aqueles que são incluídos e iniciados no campo, o cidadão comum, que se inclui entre aqueles “de fora”; está sempre sujeito a uma cultura esotérica. A política é feita de problemas e perspectivas de mundo estranhas e inacessíveis ao cidadão comum, de maneira que seus conceitos e discursos nunca estejam referidos ao vulgar, àquilo que é comum à grande maioria. O jogo relacional do campo político é feito de discursos destinados a deter uma verdade factual, reunindo em seu espaço social uma força simbólica capaz de torná-lo legitimo. E, enquanto discurso, existem motivações de poder, 178
que ampliam o potencial de conflito para a produção de mobilização ou de silêncio da audiência sujeita a essa cultura esotérica. Um fato não atentado por Habermas é que, na política, os atos de fala representativos dependem de quem os enuncia, ou seja, precisam da força simbólica de seu autor junto à audiência. Como são discursos com pretensão de validade, o verdadeiro depende de quem está falando. A noção de campo de Pierre Bourdieu, associada à idéia dos discursos assertóricos de Habermas, permite compreender a maneira de acordo com a qual a corrupção é desocultada no contexto político. A corrupção bem-sucedida é aquela que se mantém como força oculta do campo político, tendo em vista o silêncio e o segredo que a caracteriza. À corrupção malsucedida, entretanto, é aquela que mobiliza o discurso e fortalece a disputa pelo poder, uma vez que os diferentes agentes procuram representá-la de maneira a animar suas posições políticas, seja pela crescente mobilização dos cidadãos em torno de um denuncismo moral, seja pelo crescente silêncio, visando a reproduzir a situação do campo. O fato é que a desocultação da corrupção cria uma correlação de forças entre aqueles que preferem a crescente mobilização e aqueles que preferem o silêncio. Desse antagonismo, o verdadeiro acerca da corrupção distancia-se, à medida que ele se torna
uma disputa pelo factual da corrupção junto aos “de fora” do campo, em especial, junto à opinião pública. Cada força do campo político procura, dessa forma, representar a corrupção de uma maneira que favoreça sua posição e a luta pelo poder, construindo discursos assertóricos dissonantes, que escamoteiam a real face da corrupção
na política. Esses discursos assertóricos têm a capacidade 179
de aumentar ou diminuir a verdade acerca da corrupção,
porquanto buscam sua legitimidade frente à opinião pública através da gradativa dramatização e histeria ética. Cada força do campo político leva a desocultação da corrupção
ao exagero, visando a fortalecer suas posições através de duas hipóteses: (1) a desocultação da corrupção, no campo político, pode resultar na construção social do escândalo, o qual resulta na (re)ocultação da corrupção; (2) a corrupção pode ser (re)ocultada, desde que a força majoritária
consiga desmentir o caso pela afirmação de uma outra noção verdadeira, mantendo o silêncio dentro do campo político. Enquanto escândalo político, a corrupção envolve uma infração, uma violação de regras que são denunciadas pelas forças políticas não participantes do esquema. Enquanto discurso assertórico, a linguagem do escândalo procura sua legitimação pela forma como se espalha rapidamente e de maneira incontrolável. O escândalo político depende da audiência, como ensina John Thompson.* Ele toma a forma de um discurso legitimado por parte da audiência da opinião pública junto à força antagônica a ela associada, ditado pela mídia. Como conseqúência imediata, o escândalo fere a reputação dos envolvidos, permitindo ou a expulsão, ou o arrefecimento de seu poder. Uma vez que a reputação tem uma força simbólica, como indica Thompson, ela é sempre o primeiro recurso mobilizado nos discursos dentro do campo político. O escândalo depende do conhecimento das forças antagônicas do campo político bem como de outros campos da vida social, tornando aquilo que era segredo visível aos olhos do público. É importante frisar que o escândalo não se resume à corrupção. Também pode se tratar de escândalos sexuais, 180
morais, familiares e religiosos, que estejam ligados ao
campo
político. Entretanto, o escândalo político
é uma
das facetas da corrupção malsucedida, porquanto a torna visível ao público, ou seja, desocultada. Da mesma maneiTa, é importante frisar que nem toda corrupção, mesmo a malsucedida, torna-se escândalo. À medida para que a corrupção se torne escândalo depende do antagonismo das forças envolvidas dentro do campo político bem como da disposição dessas forças para (d)enunciá-la mediante discursos assertóricos, além da disposição da própria opinião pública para se tornar audiência desses discursos. Em tese, os escândalos políticos que envolvem a corrupção representam sua face visível, suscetível ao poder do campo da mídia e o modo como ocorre sua cobertura. O fato é que a corrupção, quando se confunde com o escândalo, torna-se suscetível de ser aumentada ou diminuída, uma
vez que se trata de um discurso com pretensão de validade e orientado aos fins. A faceta visível da corrupção, sujeita aos discursos assertóricos emitidos pelas diferentes forças do campo, implica o envolvimento de lideranças políticas, encerrando-se em uma arena de discussão na qual a luta pelo poder é o mote central do conflito. Em outras palavras, a produção da verdade factual da corrupção na política está sujeita a um uso instrumental. Cada envolvido nos esquemas corruptos procura aumentar ou diminuir a verdade acerca deles. Aqueles que a aumentam procuram invalidar o poder dos envolvidos, recorrendo, normalmente, ao denuncismo moral, o qual é capaz, em muitos casos, de mobilizar
à massa e ferir a reputação das lideranças. Aqueles que
diminuem a verdade da corrupção procuram manter sua posição dentro da distribuição do poder no campo político, 181
desmentindo ou desclassificando aquilo que está visível, ou seja, informações e imagens. O antagonismo de forças no campo político, dessa forma, se descontrola de manei-
ra a criar instabilidade e incertezas. Por essa lógica, aquele que desoculta a corrupção, ou seja, que revela os segredos da política, fica numa posição dúbia, entre o herói e o traidor. Enquanto herói, os discur-
sos que aumentam a corrupção procuram ressaltar a probidade e a reputação daquele que a denuncia. Enquanto traidor, os envolvidos procuram ressaltar justamente a falta de reputação e loucura daquele que a denunciou. Entre o herói e o traidor, aquele que desoculta a corrupção torna-se personagem central do campo político, uma vez que torna visível aquilo que não é compreendido por parte do mundo do cidadão comurm. Esses discursos assertóricos procuram criar representações do campo político em
dois extremos dissonantes. E, como representações dissonantes, os discursos assertóricos dos escândalos políticos sempre terminam por distorcer o foco da corrupção, de maneira que a verdade factual se esvaece em meio ao enredo do escândalo político. Como esboça Lawrence Sherman, a corrupção, quando se torna escândalo político, tem diferentes estágios de desenvolvimento.” Em primeiro lugar, vem a revelação, que a submete ao escrutínio público. Em segundo lugar, vem a publicização e o modo como a mídia assume papel relevante na propagação do escândalo. Em terceiro lugar, vem a defesa dos envolvidos, que procuram desmentir as acusações. Em quarto lugar, o escândalo atinge seu ápice quando se torna dramatização por parte das posições políticas contrapostas. Em quinto lugar, vem a execução, quando o escândalo se torna uma questão jurídica. E, 182
finalmente, vem a rotulação a qual, de alguma maneira, encerra o caso. Uma vez que o escândalo tem um desenvolvimento temporal, o resultado prático é que a corrupção (re)oculta-se no campo político, uma vez que afasta-se da verdade factual, inicialmente revelada, em tese, ao público.
Como se trata de disposições do discurso assertórico, a retirada de foco termina por (re)ocultar a corrupção, na medida do interesse das forças políticas em disputa. Como discursos que procuram representar a corrupção
na política, os escândalos resultam no esquecimento
coletivo, de maneira que a perda do foco (re)oculta seu
epicentro dentro do próprio campo político. Mesmo
que haja oposições constitutivas no campo, a corrupção
é absorvida e retirada do domínio comum. Dentro dos discursos assertóricos, os escândalos de corrupção saem do campo político e retornam a ele mediante a recomposição
das forças e da distribuição do poder. O esquecimento coletivo é o fato de os escândalos serem processados pelo campo político, de maneira que sua normalidade seja reconstruída. No campo político, não existe nenhumm mecanismo que permita afirmar uma verdade factual da corrupção de maneira desinteressada, de modo que a autonomia do
campo a torna esotérica ao cidadão comum. O caráter acroamático da corrupção está no fato de o cidadão comum apenas ter ouvido falar nela, mas sem nenhuma base que o permita julgá-la. AÀ verdade, como ensina Hannah Arendt, não se dá bem com a política, de forma que o campo político é o contexto menos favorável à desocultação da corrupção.** É fundamental perceber que a corrupção deve ser desocultada fora do campo político, porque a exigência de ação não necessariamente deve se pautar 183
pela moralidade. Qualquer tentativa de revelar a verdade da corrupção por dentro do campo político, nesse sentido, ocorre por uma motivação de poder, já que essa revelação se dá pela via dos discursos assertóricos, com pretensão de verdade, mas sem uma base de justificação. O fato é que, na política, jamais a corrupção será revelada, mantendo-se como força oculta, presente em sua estrutura e suscetível ao movimento de desocultação e (re)ocultamento.
O fato é que as instituições políticas precisam ser responsivas às demandas da sociedade, mesmo que isso implique a existência de discursos assertóricos, com pretensão de serem verdadeiros, mas que, ao mesmo tempo, também podem ser falsos. Não cabe à política o papel de narrador imparcial, porquanto seus juízos estão assentados no plano das necessidades e dos interesses. As instituições políticas, em uma democracia representativa, precisam
ser responsivas às demandas da cidadania, especialmente àquelas que estão assentadas nos juízos de necessidade,
principalmente o interesse e a segurança. O problema da desocultação, entretanto, implica um processo de gradativa tribunalização da política, em que esta incorpora os procedimentos e valores do mundo judicial, arrogando-se o papel de narrador imparcial sem, contudo, portar a competência para fazê-lo.” O campo político opera com um tipo de atividade em que os rituais do mundo judicial são incorporados para a construção de discursos com pretensão de verdade a respeito da corrupção. O fato é que a corrupção precipita-se em culpa e não em responsabilidade perante a opinião pública e a própria sociedade. O processo de tribunalização da política, decorrente do problema da desocultação da corrupção nas democracias
representativas
conterporâneas,
184
agrava os
discursos assertóricos e pretensamente verdadeiros. O fato é que o discurso político, de acordo com o processo de tribunalização da política, implica a gradativa instrumentalização do fenômeno da corrupção e a exacerbação dos
discursos assertóricos, sem, todavia, converter o fato em
responsabilidade. O processo de tribunalização, comum
ao campo
político, nas democracias representativas, agrava a crise
de legitimidade e fere, especialmente, as instituições representativas, passando pelos parlamentos e partidos.
Por esse processo, os parlamentos e os partidos são vistos
como instituições “naturalmente” corrompidas, tendo em vista a pouca responsividade em relação aos interesses da sociedade e a opinião pública. Resta, nesse sentido, apenas o Judiciário.
A DESOCULTAÇÃO
DA CORRUPÇÃO
NO CAMPO JURÍDICO
Das asserções produzidas na seção anterior, conclui-se que a verdade na política deve ser contada fora de seu domínio, por um narrador imparcial e desinteressado. À imparcialidade e o desinteresse são fundamentais para a desocultação da verdade da corrupção na política, porquanto ela sempre está passível à dramatização e ao exageToO, Os quais são responsáveis por (re)ocultá-la no âmbito da esfera pública. No contexto político, não há um ambiente propício para a desocultação da verdade da corrupção, visto que não há possibilidade de entendimento acerca de seu alcance, o que favorece seu esquecimento coletivo e seu caráter acroamático. 185
Se a verdade tem essa face coercitiva, a corrupção deve
ser desocultada em um contexto em que a coerção esteja presente e seja constitutiva do campo de forças em disputa. No campo do Direito, a coerção é elemento central, porque
a norma é dotada de uma qualidade autoritativa, capaz de emitir ordens e comandos a seus afetados. O Direito possui uma formalidade que neutraliza as pressões externas ao campo, de maneira a instaurar uma imparcialidade garantida de modo procedimental, porque é dotado de um rigor interpretativo que assegura sua autonomia,“º Tal como o campo político, o campo jurídico é caracterizado por sua autonomia relativa a outros campos de força, ou seja, é um microcosmo instituído sobre um poder simbólico, uma vez que consiste em uma competência técnica e social para interpretar um corpo de textos que consagra a visão legítima da sociedade. Como afirmou Bourdieu, o campo jurídico é o “monopólio do direito de dizer o direito”;*' ou seja, é um campo de forças em disputa, as quais lutam pela interpretação da norma frente aos casos práticos da vida social. Isso ocorre conforme um conjunto de convenções internas ao campo,
responsáveis por neutralizar e processar as pressões externas, dando a esse campo a legitimidade para afirmar o justo. A linguagem jurídica, como indicou Bourdieu, tem o efeito de convergir neutralização e universalização, de maneira que a norma possui uma ligação direta com a verdade, pelo fato de ser, essencialmente, coerciva. À autonomia do Direito e, de alguma maneira, o monopólio de dizer o verdadeiro ocorre pela estrita racionalização do campo, que converge e restringe o habitus dos atores envolvidos, de modo a estruturar a ação pela exclusiva linguagem da legalidade. 186
No que diz respeito ao efeito de neutralização, o campo jurídico realiza a façanha de construir sua argumentação em uma sintaxe na qual predominam discursos caracte-
risticamente passivos e impessoais, próprios para marcar
o enunciado normativo e objetivo. O habitus do campo jurídico exige um afastamento de seus atores em relação à própria realidade, uma vez que põe em prática procedimentos codificados de resolução regulada de conflitos. Os agentes do carnpo jurídico - juízes, promotores e advogados - colocam-se, sempre, como uma terceira pessoa, de maneira externa à própria realidade, permitindo-se a condição de narradores dos fatos sociais. E essa condição
distanciada, que neutraliza as pressões externas ao campo, implica a transformação do jogo em “des-realização” da realidade social, como indica Bourdieu. A neutralidade, no campo jurídico, funciona corno um imperativo que institui o próprio campo, de maneira a introduzir, pelo habitus, um distanciamento em relação à própria realidade social narrada por seus atores. O efeito de universalização, por outro lado, decorre do fato de a imparcialidade exigida pelo campo jurídico convergir no poder de enunciar normas e revelar o veredicto. Isso se deve a uma gradativa racionalização a qual coloca o operador do direito como sujeito universal, capaz de emitir a verdade acerca da realidade social, em função da competência
interpretativa de textos canônicos, como
chamou a atenção Weber, tendo em vista um reservatório de autoridade instituído pela técnica social advinda da divisão do trabalho.ºº Como técnica social específica, o direito tem a capacidade de apurar e resolver conflitos, conforme um postulado de validade retirado da própria realidade social.* E, por operar com a “des-realização, o 187
campo jurídico acaba por universalizar, racionalmente, a força interpretativa das normas. Pelos efeitos de neutralização e de universalização, o contexto do direito é propício à desocultação da corrupção, na medida em que se trata de um campo estruturado na imparcialidade. Ou seja, as disputas dentro do campo
jurídico, por serem supostamente neutras e universais,
envolvem a descrição da realidade corrupta pelo invólucro da formalização, que retira de cena os discursos assertóricos próprios do campo político. Por se tratar de discurso feito em terceira pessoa, a argumentação jurídica, no que concerne à verdade da corrupção na política, neutraliza as pressões externas e os interesses envolvidos, porquanto os procedimentos formais dão a seus agentes a autoridade formal para dizer a verdade factual da política, incorrendo, nesse sentido, o poder autoritativo próprio da coerção implicita e certa, porque o Direito, essencialmente, tem uma pretensão de correção.* Isto é, pelo caráter de neutralidade e universalização, o Direito revela-se como depositário de idéias corretas, porque assentadas em uma concepção de verdade que dá à sua estrutura o poder autoritativo enquanto técnica social para a resolução de conflitos. A verdade da corrupção, nesse sentido, apenas pode
ser revelada na autonomia relativa do campo jurídico, o
único dotado da competência específica para neutralizar as pressões e os interesses vindos de fora. E, por se estruturar na neutralidade, a autonomia relativa do campo jurídico permite-lhe “des-realizar” a realidade social, já que o operador do Direito coloca-se como narrador universal, que vai ao estrangeiro para contar a verdade a respeito da
política, instituindo a autoridade coercitiva própria do mundo das normas. Como argumentou Bourdieu, seguindo 188
a trilha de Weber, a autonomia do campo jurídico, na modernidade, é fundamental para a legitimação da ordem, visto que o selo da universalização é capaz de nomear uma realidade factual, assentada em sua racionalização. A lógica do Direito, entretanto, invadiu, no mundo contemporâneo, o campo político, de modo que sua linguagem tornou-se a linguagem da ação política. O campo jurídico, gradativamente, vem perdendo seu poder de “des-realizar” a realidade social, sendo invadido por interesses e outros modos de narrá-la. O Direito, por conseguinte, não se constitui mais como o sujeito universal que
narra a realidade mas como a própria linguagem que estrutura a ação política. De acordo com Antoine Garapon, o Direito terminou por se constituir como gramática da
política, retirando do poder judiciário o caráter de neutralidade constitutivo do carnpo jurídico.* À norma jurídica foi invocada como linguagem política, de maneira que o dermocrático passou a se confundir com o jurídico, em um processo de judicialização da democracia representativa, que absorveu os rituais e procedimentos do Direito como elemento central para a consolidação da própria representação. Entretanto, foi retirado do judiciário o poder de nomear à realidade social enquanto terceira pessoa. À invocação indiscriminada do Direito, como indica Garapon, tem o efeito de submeter ao judiciário aspectos da vida privada e impor, por outro lado, uma visão penal às relações políticas e administrativas. Ou seja, de um lado, o discurso jurídico é invadido por uma lógica intimista, preocupada em ressaltar o sentimento de justiça envolvido no plano da sociedade, de maneira que a magistratura, especialmente, assume a função de dramatizar a cena social pela ética da denúncia.* 189
Como a magistratura, no mundo contemporâneo, perdeu
o poder de “des-realizar” a realidade social, ela compro-
meteu a competência de enunciar a verdade factual, uma vez que o drama social, enquanto novo objeto do trabalho judicial, demandou uma ligação com o mundo dos discursos assertóricos, fazendo com que, do mesmo modo que na política, o Direito seja invadido pelos escândalos políticos. A corrupção, nesse sentido, assume o papel de tema fundamental da atividade judicial, especialmente por parte do Ministério Público, uma vez que a ética da denúncia aumenta a percepção do drama social vivido no mundo da realidade. O judiciário, sobretudo, passou a estar sujeito aos discursos assertóricos do escândalo político, transformando sua suposta neutralidade e impessoalidade em papel político ativo, cujo efeito, como demonstrei na seção anterior, é o (re)ocultamento da corrupção na política. Pela lógica dos escândalos que invadem a esfera judicial e da ética da denúncia permanente, ocorre, de acordo com Garapon, a penalização gradativa da leitura de mundo por parte dos operadores do Direito. À opção pelo penal, como revela Garapon, significa o fracasso das regulações sociais, fazendo com que o judiciário se torne o locus das paixões políticas, sendo o tribunal o teatro privilegiado para a solução dessas disputas. Tal como na política, o Direito está sujeito a pressões externas quando o escândalo opera por dentro do sistema. À sociedade deposita suas expectativas no judiciário, ligando-se aos escândalos pelo modo como os discursos assertóricos dos atores esvaziam de sentido os entendimentos possíveis via argumentação jurídica. A opção pelo penal, segundo o autor, constrói uma jurisdição das emoções, que esvaece o caráter de neutralidade 190
próprio ao campo jurídico. E, ao perder a neutralidade, perde-se, no âmbito penal, o princípio de interpretação restritiva da lei, fazendo com que, a cada nova situação, o Direito seja solicitado a emitir uma nova decisão, desvinculada do caráter racional e formal construído ao longo da modernidade. Como o Direito se tornou gramática política, no caso da corrupção, o judiciário ficou submisso a seu uso estratégico por parte dos agentes políticos, em vista de fins em curto prazo. O campo político se serve do campo jurídico para transformar as disputas políticas em Direito. Ou seja, a ética da denúncia faz com que o Direito se torne um espaço de exigibilidade. No caso da corrupção na política, o Direito tornou-se o espaço de exigência moralista da honestidade, convertendo a neutralidade e a impessoalidade do narrador universal em moralismo assertórico. O judiciário ficou sujeito, portanto, ao uso instrumental por parte do carnpo político e da mídia, visto que os tribunais se tornaram espaço social para a adjudicação de conflitos. À ética da denúncia, como indica Garapon, termina por fazer com que a classe política parta-se em pedaços, porquanto a denúncia, de maneira suicida, faz com que a corrupção no mundo dos tribunais assernelhe-se a um programa com atores e enredo determinados pela mídia, sempre sujeito às especulações e ao exagero. Dentro dos tribunais, a corrupção é dramatizada para a sociedade, de forma a exaurir a neutralidade e a impessoalidade do campo jurídico. Os magistrados são sempre convocados pela mídia a expressarem suas opiniões de modo a (re)ocultar a verdade acerca da corrupção. Pela
lógica do penal, a dramatização da corrupção termina por
criar um jogo perverso entre mídia e justiça, por meio do 191
qual, de acordo com Garapon, “cada um encontra a absol-
vição de sua transgressão na transgressão do outro - a
mídia se faz juiz, alguns juízes se aventuram sobre o terre-
no político, e os políticos denunciam a conspiração para
se isentarem”.“ Pela lógica do escândalo político, que invadiu a esfera judicial, a verdade acerca da corrupção termina por se deslocar do quadro de neutralidade e impessoalidade do Direito. A ética da denúncia dramatiza a corrupção dentro da esfera judicial, fazendo com que ela seja invadida por interesses e motivações que envolvam a denúncia. Portanto, ao ser invadido pela política, o campo jurídico termina por (re)ocultar a corrupção, uma vez que a argumentação jurídica desmanchou-se em moralismo suicida por parte dos agentes políticos. No que tange ao escândalo, a corrupção é dramatizada de maneira a impedir a neutralidade e a impessoalidade do poder judiciário. Juízes e promotores se transformam em guardiões privados da moralidade, sem se sujeitarem ao escrutínio público e submetendo o Direito - especialmente o penal - aos discursos assertóricos emitidos pela mídia. A ética da denúncia, por outro lado, sujeita o Direito aos escândalos típicos do campo político. O judiciário tornou-se o espaço no qual os escândalos instrumentalizaram o Direito, visando a atender a fins formatados por indivíduos ou grupos localizados no campo político. O judiciário, ao ser invadido pela política, maximiza o poder da denúncia transformada em escândalo. Os tribunais se tornaram espaço para a denúncia de corrupção e maximização de ganhos políticos. Adversários políticos utilizam o judiciário e a mídia para a denúncia e o moralismo recíproco, retirando dos tribunais a competência de proferir o veredicto.
192
A competência de enunciar
a verduade, nesse sentido, transmuta-se em opinião, porque o sujeito universal capaz de proferir a verdade, de modo essencialmente imparcial, fica sujeitado ao domínio da política e da mídia. Como o judiciário perdeu sua capacidade de enunciar a verdade da corrupção, o Direito, refém de sua própria instrumentalização, esvazia sua capacidade de proferir o interesse público e os princípios fundamentais da moral política. Além disso, se o Direito se tornou linguagem preferencial da ação política, o campo político conhece, também, sua gradativa tribunalização, ao assumir procedimentos tipicamente jurídicos para realizar os fins políticos.** A tribunalização da política significa a densificação do Direito e suas normas na política: há, por conseqiiência, a
dramatização da corrupção, especialmente na arena legislativa, onde o processamento do moralismo converteu-se em procedimento judicial sem o domínio da competência específica. Ou seja, houve uma tribunalização do campo político sem os imperativos da neutralidade e da impessoalidade, convertendo o império do Direito no mundo da doxa, sujeito aos escândalos. Sujeito ao escândalo e sem capacidade de exercer o papel de proferir o interesse público, o campo jurídico terminou por se tornar ineficiente para controlar a corrupção. Em função dos discursos assertóricos emitidos pela mídia, da instrumentalização gradativa do Direito pela política e do comportamento dos magistrados, a competência para enunciar a verdade factual ficou comprometida, porquanto o discurso assertórico da corrupção (re)oculta seu verdadeiro alcance. Não se pode perder de vista, entretanto, que a corrupção bem-sucedida é aquela que ninguém vê e, logo, aquela sobre a qual o judiciário 193
não pode emitir uma verdade, já que ele é, por definição, um poder reativo.* Ademais, a lógica da autonomia do campo jurídico pode constituir simplesmente o silêncio programado acerca da corrupção. A autonomia plena do Direito diante da política e da própria mídia pode significar um omertá republicano da corrupção, em que ela passa despercebida porque todo mundo se aproveita dela. O Direito deve ser flexível e aberto a uma moralidade política, ampliando a possibilidade de sua autocorreção perante as demandas da sociedade. O fechamento autopoiético do Direito, como
indicaria Luhmann,* diante do problema da corrupção, acarretaria a incapacidade do sistema de processar expec-
tativas cognitivas. Ou seja, o Direito se tornaria imune a
qualquer possibilidade de aprendizado moral. A abordagem do direito responsivo, por outro lado, pode se tornar mais interessante em vista do problema da corrupção, já que a responsividade do mundo jurídico se mede pela sua capacidade de se tornar uma instituição flexível, porquanto é sensível às necessidades e aspirações sociais.*! Fundamentalmente, trata-se de reintegrar Direito, moral e política. Ou seja, a desocultação da corrupção no seio do carnpo jurídico, que traz o inconveniente do escândalo, depende menos da lógica procedimental estreita do que da capacidade das instituições jurídicas de processar as expectativas normativas da sociedade. Isto é, transformar demandas republicanas e comunitárias em regras claras e executáveis. Não significa reprimir o poder da mídia e do campo político no Direito, mas impedir sua instrumentalização pela via de uma maior abertura ao debate público a respeito dos efeitos e do alcance da corrupção no âmbito da administração do público. O judiciário deve contribuir 194
para esse debate, impedindo os discursos assertóricos emitidos pela lógica estritamente instrumental. A corrupção jamais será desocultada no campo político; porém, no campo jurídico, ela pode ser motivo de aprendizado moral no âmbito das instituições, porquanto o judiciário é capaz de se tornar responsivo diante das expectativas sociais. O judiciário pode ser o bastião republicano das democracias contemporâneas, porque suas práticas cotidianas estão revestidas da neutralização e do efeito de universalização, tendo em vista o papel específico, dentro de uma ordem republicana, de interpretar a lei e adjudicar os conflitos a partir de sua imparcialidade. O judiciário, por ser o ator desinteressado, não se sujeita a discursos assertóricos com pretensão de verdade, mas profere o verdadeiro a partir de uma competência específica, sem a qual o destino da República está em converter-se em formas autoritárias. Do ponto de vista dos consensos normativos, o judiciário é o ator que pode estabelecer o juízo a partir dos valores, de acordo com princípios balizados nas virtudes e na honestidade dos agentes políticos.
A CORRUPÇÃO
E AS CRISES DE LEGITIMIDADE (Il)
Existiria hoje uma crise política que faria com que a
corrupção ficasse mais aparente? À resposta a essa inda-
gação é positiva, uma vez que o denuncismo moral e o atual ataque à eficiência do Estado como produtor de bens públicos leva a uma erosão dos consensos que asseguram a legitimidade política.
195
Esse processo desencadeado pela crise do Estado pro-
duz um descontentamento com as instituições políticas,
fazendo com que a corrupção se torne mais aparente e resulte, dessa forma, em um agravamento das crises de legitimação. Criou-se um círculo vicioso em que a corrupção, mais aparente e presente na vida pública contemporânea, alimenta a crise de legitimação, que, por sua vez, alimenta a corrupção. À erosão do consenso autoritativo, promovida pelo liberalismo, faz com que a corrupção se converta em uma patologia política, apresentando-se como endemia social, dado o crescente caos do capitalismo e suas instituições.
A erosão do consenso autoritativo criou novas formas
de corrupção, uma vez que o conceito de soberania do Estado submergiu devido à onipresença do mercado como centro das democracias conterporâneas. Não espanta, nesse sentido, o crescimento do crime organizado e o modo como ele usa a corrupção como forma de mediação dos interesses.?* Ou mesmo os escândalos que assolam os mercados internacionais e as crises econômicas derivadas
da corrupção, para os quais o judiciário não consegue respostas. O fato é que o descontentamento gerado pela lógica do denuncismo e da histeria ética do liberalismo contemporâneo agrava as crises de legitimidade, porque, dada a fraqueza do Estado e sua crescente despolitização, é im-
possível fazer com que dernandas republicanas e comunitárias de valores se convertam em políticas efetivas.* AÀ despolitização demonstra que o Estado não é mais o agente de realização do ideal republicano e o guardião das identidades comunitárias. Ampliando o descontentamento com as instituições, o atual domínio despolitizado 196
promovido pelos sistemas de produção autônomos faz com que as bases consensuais que organizam a política explodam, restando apenas o mercado como centro de organização dos interesses.
O problema é que o mercado não consegue produzir uma concepção normativa de interesse público, através da qual se reconstruam os valores políticos. Dessa forma, não se consolida uma visão de público que seja capaz de sustentar o próprio liberalismo, que se vê defronte a problemas para os quais não consegue respostas. Sem uma visão
normnativa de interesse público, agrava-se a crise da democracia representativa, agravando a crise de legitimação que assola as instituições políticas. O descontentamento da cidadania amplia-se na medida em que a crise do Estado e a crise das instituições representativas acarretam o fato de que demandas republicanas — ligadas às virtudes das instituições — e dernandas comunitárias - ligadas às identidades - não conseguem se concretizar. Da mesma forma, uma política transparente pressupõe uma forma utópica de sociedade em que todas as relações de poder pautern-se pelo modo como se tornam aparentes e sujeitas à percepção do público. Do conceito de transparência, tão defendido pelo liberalismo contemporâneo, não se deriva uma concepção substantiva de interesse pú-
blico, capaz de organizar valores e normas no âmbito das instituições políticas. A transparência, como apontei antes,
pode resultar em uma inércia da corrupção, que, apesar do controle, sempre se faz presente na esfera pública. Do ponto de vista teórico, toda a perspectiva hoje hegemônica sobre o tema da corrupção está equivocada na proposição de seus remnédios. Restringir a democracia a uma visão econômica significa submetê-la às seguidas 197
tendências de crises políticas, que têm, por sua vez, reflexos nas crises econômicas. Como o resultado é uma inércia da corrupção, em que ela tende a avançar independentemente dos esforços que se faça para controlá-la, a despolitização do Estado acarreta uma despolitização da própria democracia. Daí que as reformas propostas para o controle da corrupção, que propõem uma série de mudanças na legis-
lação dos Estados, carecem dos elementos assentados na
práxis social. Mudanças institucionais não ocorrem apenas
no plano da legislação, mas envolvem, tambérn, uma mudança cultural. As reformas institucionais nas democracias contemporâneas, propostas por agências internacionais,
carecem desse substrato valorativo.
Nas democracias conternporâneas, o sistema represen-
tativo não consegue sublimar a corrupção, sendo ela uma palavra permanente no discurso político. No judiciário,
a corrupção se tornou um problema central, sem que o
Direito consiga controlá-la. A crise das instituições demo-
cráticas, tendo a corrupção como foco, cria um desconten-
tamento generalizado, abarcando as instituições políticas e judiciais. Apesar disso, há a tentativa de mudança na legislação ordinária e nos marcos constitucionais bem como a adoção de tratados de cooperação internacional, que funcionam como panacéia para a corrupção. Democracias não se consolidam ou não estabelecem um progressivo controle da corrupção apenas com mudanças na legislação, mas também na prática social, dotando as instituições de uma essência valorativa e pedagógica sobre a sociedade. Não basta apenas a construção de um marco procedural de exercício e controle do poder político, é necessário dotar a institucionalidade democrática de um valor intrínseco. Em outras palavras, as reformas
devem estar alicerçadas na idéia de reconstruir um ideal 198
republicano de bom governo, em que a corrupção não seja apenas uma propriedade de ações particulares, mas de sociedades inteiras, nas quais a prática da cidadania ativa seja valorizada de forma bem distinta da utilidade de seus resultados.”* Essa avaliação dos resultados das reformas não deve estar relacionada apenas às consequências da ação política. Envolve, também, um conjunto de convicções que
está no plano de uma moralidade política, a qual serve ao
controle da corrupção pelo fato de agregar às instituições um conjunto de valores ligados ao bom funcionamento do governo como um todo, respeitada a razão prática nutrida no plano da sociedade. Sem o resgate de uma moralidade política, informada por uma reconstrução da idéia de república, as reformas têm como resultado um contexto de tolerância generalizada às práticas de corrupção, não permitindo afirmar que haja um controle eficiente delas no que concerne aos resultados do processo político. Não basta a mudança no marco legal de controle da corrupção, nem mesmo a redução dos sistemas de incentivos a uma ação corrupta ou corruptora. Sem o resgate de uma moralidade política e sem conectar essas mudanças institucionais às práticas sociais, o risco de ineficiência dos mecanismos de controle é muito grande. Sem o resgate de uma concepção republicana de política e da essencial idéia de uma educação cívica, não é possível constituir um marco legal e prático de controle da corrupção na política. A dernocracia representativa, de viés liberal, ao anular
a presença de certa concepção de bom governo, anulou a possibilidade de controle da corrupção, que ficou sujeita ao problema da desocultação permanente, criando a sensação de impotência das instituições da política e do mundo jurídico. Como o discurso é instrumentalizado com o fim 199
de angariar poder, criou-se um descontentamento generalizado com a corrupção, sem que isso resulte na ampliação das esferas de seu controle. Na medida em que o discurso de desocultação está carregado de denuncismo moral, esvai-se de determinados consentimentos produzidos na sociedade, os quais são pressupostos e necessários, no sentido definir a possibilidade do juízo com base em critérios racionais de justificação. Critérios esses que definem concepções substantivas de interesse público, sem as quais não se pode definir o alcance da moral política, nem mesmo formas eficazes de controle da corrupção. O descontentamento é gerado à medida que falta ao discurso político um pano de fundo moral, sustentado em consensos de natureza normativa, os quais especificam os juízos que permitem identificar a corrupção. E a corrupção, dessa forma, está relacionada a uma profunda apatia, visto
que, apesar dos espasmos de alvoroço social, se mantém como prática cotidiana realizada no interior das instituições políticas. O resultado da apatia é uma profunda tolerância com a corrupção, desde que essa não ultrapasse a fronteira das necessidades, mantendo intacta certa inércia social, atrelada à reprodução do mundo econômico. Se o presente contexto representa uma mudança epocal, dada a globalização e a internacionalização dos mercados, o fundamental é olhar para o futuro, conforme o atual espaço de experiência da corrupção. Essa atividade demanda um repensar a política, especialmente na sua dimensão republicana. Caso não seja feito, estaremos condenados a viver como as aranhas de “Sereníssima República”, sempre às voltas com a corrupção, tendo em vista as delinquências cometidas na política. Mas isso é outra conversa.
200
NOTAS
APRESENTAÇÃO
a
v
-
s
ASSIS. Serenissima República. ROSE-ACKERMAN. A economia política da corrupção, p. 59-96.
DOWNS. An Economic Theory of Democracy. MARCH; OLSEN. Rediscovering Institutions: The Organizational Basis of Polítics. ROSE-ACKERMAN, Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reform, p. 127. ANECHIÁRICO; JACOBS. The Persuit of Absolute Integrity. How
w
=
Corruption Control Makes Government Ineffective, p. 26-27.
NORTH. Institutions, Institutional Change, and Economic Performance. ROSE-ACKERMAN. Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reform, parte III. TULLOCK.
The Welfare Costs of Tariffs, Monopolies, and Theft;
KRUEGER. The Political Economy of Rent-Seeking. "" MONTINOLA; JACKMAN. Sources of Corruption: a Cross-Country Study.
" KOSELLECK. Crítica e crise, p. 61-77.
!?! HABERMAS. A crise de legitimação no capitalismo tardio, p. 62.
CAPÍTULO |
A HISTÓRIA DO CONCEITO DE CORRUPÇÃO
-
KOSELLECK. The Practice of Conceptual History: Timing History, Spacing Concepts, p. 30. EUBEN. Corruption.
? VERNANT. Mito e pensamento entre os gregos.
-
* ARISTÓTELES. Metafísica. S ARISTÓTELES. Da geração e da corrupção. * ARISTÓTELES. Da geração e da corrupção, p. 141. PLATÃO. A república. 8
VERNANT. As origens do pensamento grego.
? Não entrarei no mérito da analogia de Aristóteles da corrupção
na política com a injustiça, uma vez que, como veremos adiante,
a corrupção surge do não atendimento do princípio da mediania,
do mesmo modo que a injustiça. Isso permite indicar o uso que os
gregos faziam da palavra kakodikia, que diz respeito à corrupção da
H
justiça.
ARISTÓTELES. A política.
E
&
=
E
H
ARISTÓTELES. Da geração e da corrupção, p. 115.
ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos. ARISTÓTELES, A política. KOSELLECK. Futuro passado, p. 41. CARDOSO. Que república? Notas sobre a tradição do governo misto. POLÍBIOS. História. Se Aristóteles já relacionava a corrupção a determinados ciclos, Políbios delimitou a compreensão desses ciclos de geração e corrupção de maneira que as formas de governo fossem cornpreendidas por sua
sucessão. Ver KOSELLECK. Futuro passado, p. 47.
'* POLÍBIOS. História, p. 332. 202
* POLÍBIOS. História, p. 332.
* SÊNECA, Cartas a Lucílio, * CICERO. The Republic. ” POLÍBIOS. História.
* WEBER. Estamentos € classes. ” FINLEY, Política no mundo antigo, p. 82. * MONTESQUIEU. decadência.
As causas da grandeza dos romanos e da sua
* MONTESQUIEU.
As causas da grandeza dos romanos e da sua
*” *º * % * 3 * *%
decadência, p. 96. CÍCERO. Dos deveres. CÍCERO. The Republic. SALÚSTIO. La conjuración de Catilina, p. 37. CÍCERO. Dos deveres, p. 117. CÍCERO. Dos deveres. MACMULLEN. Corruption and Decline of Rome. GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. SANTO AGOSTINHO. AÀ cidade de Deus, p. 90 a 94.
* SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, p. 103-104.
*% MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, p. 199. 3 GIBBON. Declínio e queda do Império Romano, p. 235. * SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus.
*” ULLMANN. Historia del pensamiento político en la edad media.
1 SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, p. 88.
|
* SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, v. II.
* ULLMANN, Historia del pensamiento político en la edad media,
p. 174-175.
* SANTO
TOMÁS
DE AQUINO.
Do reino ou do governo dos
príncipes ao Rei de Chipre, p. 145. * PAGDEN. Dispossessing The Barbarian: The Language of Spanish Thomism and The Debate Over The Property Rights of The American
Indians. * ALIGHIERI. Da monarquia.
203
*% ULLMANN.
p. 188.
Historia del pensamiento político en la edad media,
* Marsílio de Pádua reconstrói a teoria das formas de governo de Aristóteles, de maneira a pensar a questão do governo corrompido
como a degeneração de formas justas de governo. Essencialmente, de acordo com o autor, o governo corrompido é aquele que não se dirige ao bem comum, tendo em vista o desejo dos governantes. À
*º * sº ' 3 5)
esse respeito, ver PÁDUA. O defensor da paz, p. 104. SKINNER., As fundações do pensamento político moderno. PÁDUA. O defensor da paz. SKINNER. As fundações do pensamento político moderno, p. 102. BIGNOTTO. Humanismo cívico hoje. BIGNOTTO. As origens do republicanismo moderno. Para um devido tratamento do tema das virtudes e seu mapeamento na história do pensamento político, ver MACINTYRE.
virtude.
Depois da
* MAQUIAVEL. História de Florença. % POCOCK. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought
and The Atlantic Republican Tradition. 56 MONTESQUIEU. O espírito das leis. 57 ARON. As etapas do pensamento sociológico. * ALTHUSSER. Montesquieu: a política e a história.
5 HIRSCHMANN. As paixões e os interesses: argumentos políticos para
o capitalismo antes de seu triunfo.
& ARAÚJO. Quod omnes tangit: fundações da república e do Estado. *! É interessante notar que a correlação entre o conceito moral de
interessee o d l ) do capitalismo, em Mc quieu, está relacionada com a etimologia da palavra. “Interesse”, originalmente, está relacionado com a idéia de lucro ou acumulação no plano pecuniário.
& ALTHUSSER. Montesquieu: a política e a história.
* * % *
KOSELLECK. Crítica e crise. MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 156. ALTHUSSER. Montesquieu: a política e a história. MONTESQUIEU., O espírito das leis, p. 121.
204
$” O autor em momento algum trata da oligarquia enquanto forma de
governo. Esse termo somente aparece em uma nota de rodapé - nota
313 do livro oitavo da edição brasileira de O espírito das leis -, que, apesar de não explícito, certamente se refere à tipologia de Políbios, com quem o autor debate a todo o momento no decorrer de sua
obra.
%º ROUSSEAU. O contrato social. * HUME. Tratado da natureza humana, p. 445. 7º SMITH. Teoria dos sentimentos morais. 7 HUME. Tratado da natureza humana, p. 535. 7º SMITH. Teoria dos sentimentos morais, p. 7. 7? KOSELLECK. Crítica e crise.
? KOSELLECK. Futuro passado, ?? KOSELLECK. Futuro passado, p. 116.
CAPÍTULO |l ÀA MORALIDADE
E AS FORMAS
DA CORRUPÇÃO
s
WILLIAMS. Moral: uma introdução à ética, p. 13.
P
RAWLS. O liberalismo político, p. 102. HARE. A linguagem da moral. HABERMAS.
Correção
versus verdade: o sentido da validade
HABERMAS.
Correção
versus verdade: o sentido da validade
-
deontológica de juízos e normas morais.
ES
HABERMAS. Teoria de la acción comunicativa.
”
deontológica de juízos e normas morais, p. 294. LUHMANN.
Social systems.
HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade. HABERMAS.
Correção
versus verdade: o sentido da validade
deontológica de juízos e normas morais.
1º EISENBERG. A democracia depois do liberalismo, !! WILLIAMS. Moral: uma introdução à ética.
205
U EISENDERG. À dermocracia depois do liberalismo, p. 192. U TAYLOR, As fontes do self; a construção da identidade moderna. 1 É interessante à maneira como o tema da passagem dos princípios
de justificação para os princípios de aplicação tem mobilizado a filosofia política e juridica. A idéia que defendo a respeito sobrevém com o princípio de mediação. Ou seja, a passagem dos princípios de
justificação para os principios de aplicação depende de concepções
de vida que permitam sua interpretação e consenso no que tange ao mundo político como um todo. No âmbito da filosofia jurídica, entretunto, já existem trabalhos preocupados com essa temática
lançada por Habermas. Especialmente, vale conferir a idéia de discursos de adequação, formulada por Klaus Gúnther. Tais discursos referem-se à circunstância concreta e a todas as normas que possam
se aplicar ao caso. À esse respeito, ver GUNTHER.
Teoria da
argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.
'* TAYLOR. As fontes do self. a construção da identidade moderna. t* HIRSCHMANN. As paixões e os interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo.
17 HARE, A linguagem da moral. ' A respeito do pluralismo e do princípio de neutralidade, ver LARMORE. Patterns of moral complexity. 1 DURKHEIM. Lições de sociologia. * EISENBERG. A democracia depois do liberalismo. 3?º! HABERMAS. Correção versus verdade: o sentido da validade deontológica de julzos e normas morais.
* Do ponto de vista histórico, é interessante observar como os valores republicanos foram mobilizados nos séculos XVII e XVIII para
denunciar o despotismo como forma de corrupção da política. A esse
respeito, ver MONTESQUIEU. O espírito das leis,; ARENDT. Sobre a revolução.
3 PpocOCK. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and The Atlantic Republican Tradition. % HERÓDOTO. História.
25 TAYLOR. As fontes do self. a construção da identidade moderna. 2 POCOCK. Virtudes, direitos e maneiras.
2 ARISTÓTELES. A política, p. 48-51. 206
2º MAQUIAVEL. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. * A respeito da glória como componente da virtude, ver VIROLI. Republicanism, p. 75.
* n” 2 * *% 3
CÍCERO. Dos deveres. CÍCERO. Dos deveres, p. 48. SHUMER. Machiavelli: Republican Politics and its Corruption. Sobre a crítica ao hedonismo, ver CÍCERO. Dos deveres. GUICCIARDINI. Dialogue on the Government of Florence, p. 129. Como destaca Skinner, não há um consenso no âmbito do republicanismo clássico e renascentista acerca da indignidade da riqueza e da vida privada. O republicanismo oscila no que diz respeito à recepção ou repúdio da vida cotidiana, uma vez que humanistas
como Leonardo Bruni elogiam a opulência dos mercadores e produtores. À esse respeito, ver SKINNER. As fundações do pensamento político moderno. 2 Para uma devida noção do constitucionalismo republicano, ver BUTTLE. Republican Constitutionalism: a Roman Ideal. 37 MACINTYRE. Depois da virtude.
* TAYLOR. Às fontes do self. a construção da identidade moderna. 3 SANDEL. O liberalismo e os limites da justiça. « KYMLICKA. Filosofia política contemporânea, p. 293.
“ SANDEL. O liberalismo e os limites da justiça. < WALZER. Obligations: Essays on Disobedience, War, and
Citizenship. * A respeito da idéia de honra pessoal, ver WALZER. Obligations: Essays on Disobedience, War, and Citizenship, p. 161. * TAYLOR. As fontes do self. a construção da identidade moderna.
* *% < * * sº s)
EISENBERG. A democracia depois do liberalismo, p. 187. NIETZSCHE. Genealogia da moral. JOAS. The Genesis of Values, p. 31. HOBBES. Leviatã, JASMIN. Racionalidade e história na teoria política. LOCKE. Carta sobre a tolerância. RIBEIRO. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 207
* BREINER. Max Weber and the Democratic Politics. * WEBER. Sociologia do direito. * A mudança conceitual da moralidade de uma vida mediada pela excelência para uma vida medinda pelo cotidiano não quer dizer que uma forma se imponha à outra, mas que uma anteceda a outra. Nos dois tipos de consenso tratados anteriormente, o mundo aristocrático, que visa à excelência do agir, antecede as formas plebéias, ligadas à reprodução da vida. AÀ modernidade operou uma virada na hierarquia dos sentidos existenciais, antecedendo à excelência um cotidiano ligado à produção, contrapondo-se aos ideais aristocráticos. * Koselleck destaca que a formação do Estado moderno implicou uma separação entre a política e a moral. À moral não se realiza, como para os antigos, politicamente, mas através do direito, que formalizou o exercício do poder político. À esse respeito, ver KOSELLECK. Crítica e crise.
s% ROUSSEAU. O contrato social. 3? AÀ esse respeito, ver o capítulo XVI do Livro I de HOBBES. Leviatã. º KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado; ZIPPELIUS. Teoria geral do Estado. % ARAÚJO. Quod omnes tangit: fundações da república e do Estado. % WEBER. Sociologia do direito. $! ROUSSEAU. O contrato social. & WEBER. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. º WEBER. Sociologia do direito.
“ TAYLOR. As fontes do self. a construção da identidade moderna, p.210.
* LOCKE. Dois tratados sobre o governo civil, * A demonstração de que a modernidade configura-se em racionalidade instr é classic debatida pela Escola de Frankfurt, a qual denuncia como o capitalismo criou esferas de diferenciação que conduzem a ação no sentido dos fins. À esse respeito, ver ADORNO; HORKHEIMER.
Dialética
$” BERLIN. Dois conceitos de liberdade. * NOZICK. Anarquia, Estado e utopia. * HIRSCHMANN. As paixões e os il o capitalismo antes de seu triunfo.
2068
do esclar
políticos para
b
DORKUNIM, De divisão do trabelho social, p. 30, DURKUBIM, Lições de sociologia, p. 205, ” AOCKE, Dois trutitdos sobre o governo clvil, ) DURKHEIM, Lições de sociologia, p. 97. Nn SIMMEL, E secreto y la socledod secreta, p. 367. n RAWIS, Uma tevria de justiça, b À modulação do conceito de conflança, aqui, catá ligada à tradição Tumana, que relactona a conflonça a nconios comerciais, estabelecidos mediante crédito tário, O pr entr , tem um tratamento distinto no sodologln política oomempor&nea O termo “ontiança” dista de estar reluclonado a interações pessoais, mas está ligado à sua taiz lotina na palovra fides, À esse respeito, ver EISENBERG; FBRES JR. Dormindo com o Inimigo: uma crítica analitica so conceito de conflança. Além disso, ver FILGUEIRAS.
República, confiança e sociedade,
* DORBEL, The Corruption of the State. * MONTESQUIBU. O espírito das leis, p. 121.
CAPÍTULO l
A CORRUPÇÃO E AÀA DEMOCRACIA
2 3
4
”
Sobre a desorganização das instituições políticas e sociais, ver BAUMAN. Em busca da política. CASTELLS. Fim de milênio. HABERMAS, A crise de legitimação no capitalismo tardio. CASTELLS. O poder da identidade. RAWLS. O liberalistno político. WEBER. A política como vocação. WEBER. Classe, estamento e partido, BREINER. Max Weber and the Democratic Politics. WEBER. À política como vocação. WEBER. Os tipos de dominação, p. 193. WEBER. Os tipos de dominação, p. 139-198. 209
? WEBER. Sociologia do direito. 1 É pela passividade e pelo mundo dos interesses que, de acordo com a teoria democrática, o problema institucional é decidir, e não discutir e deliberar. À esse respeito, ver MANIN. Los princípios del gobierno representativo. '* DAHL. Poliarquia: participação e oposição. 18
DAHL. Um prefácio à teoria democrática.
'* HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 104.
" HABERMAS. A crise de legitimação no capitalismo tardio. '* HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade. !? WEBER., A política como vocação, p. 76.
*º ROSE-ACKERMAN. Corruption and Government; Causes, Consequences, and Reform. *! ROSE-ACKERMAN. Trust, Honesty, and Corruption: Theories and Survey Evidence from Post-Socialists Societies.
* SCHUMPETER. Capitalism, Socialism, and Democracy. ? ROSE-ACKERMAN. Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reform. * JOHNSTON. Syndromes of Corruption: Wealth, Power, and Democracy.
? ROSE-ACKERMAN. Corruption and Government: Causes,
Consequences, and Reform,
? HABERMAS. A crise de legitimação no capitalismo tardio.
2 KELSEN. A democracia. ?º LESSA. Da corrupção, do despotismo e de algumas incertezas: uma perspectiva cética, p. 116. ? HABERMAS. Racionalidade do entendimento mútuo, p. 111. 3 HABERMAS. Mudança estrutural da esfera pública. 3 HABERMAS., AÀ crise de legitimação no capitalismo tardio.
* ARENDT. Verdade e política, p. 324. *? BOURDIEU. O poder simbólico. * Bourdieu, no que tange ao conceito de ideologia, segue uma influência marxista, ao atrelar o conceito de poder simbólico ao modo como
uma cultura dominante é ideologicamente representada para a
integração fictícia da sociedade. No limite, o conceito de ideologia 210
de Bourdieu expressa a força com que as idéias são capazes de criar uma falsa consciência, capaz de desmobilizar as classes dominadas, legitimando a ordem estabelecida. A esse respeito, ver BOURDIEU. À economia das trocas simbólicas.
** BOURDIEU. O poder simbólico, p. 185. * THOMPSON, O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia.
*” SHERMAN. The Mobilization of the Scandal. * ARENDT. Verdade e política, p. 283. ” EISENBERG. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política.
* BOURDIEU. O poder simbólico, p. 213. *! BOURDIEU. O poder simbólico, p. 212. * WEBER. Sociologia do direito.
* KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado. * ALEXY, La pretensión de corrección del derecho. * GARAPON. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. * GARAPON. O juiz e a democracia: o guardião das promessas, p. 67.
* GARAPON. O juiz e a democracia: o guardião das promessas, p. 68. ** EISENBERG. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política. *º A respeito do caráter reauvo do poder judiciário, ver SANTOS et al Os tribunais nas socied iporânea * LUHMANN. Sociologia do direito. 5! NONET; SELZNICK. Law and Society in Transition: Toward Responsive Law.
sº CASTELLS. O poder da identidade. 5 Se seguirmos uma orientação hegeliana da política, é impossível não concluir que, na modernidade, as repúblicas apenas se realizam, dados
os marcos constitucionais, na existência do Estado moderno. * PHILP. Conceptualizing Political Corruption.
2
REFERÊNCIAS
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Integrity: How Corruption Contro]l Makes Government Ineffective. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
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ARENDT, Hannah. Sobre a revolução.
- Entre o passado e o
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SOBRE O AUTOR Fernando Filgueiras é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Pesquisador
associado do Centro
Federal de Minas
Gerais (UFMG).
de Referência do Interesse Público da Universidade
Bolsista de pós-
doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Autor de artigos em periódicos especializados nacionais e internacionais. E-mail: fernandofilgueiras&hotmail.com