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Portuguese Pages 335 Year 2021
Crises
na
Democracia
Legitimidade, participação e inclusão
A publicação deste livro foi apoiada pelo Projeto Democracia Participativa - Emenda Parlamentar Deputado Patrus Ananias nº 14080020 TED 8974 - 699225 (Projeto subsídios para entender a crise da democracia no Brasil).
LEONARDO AVRITZER PRISCILA DELGADO DE CARVALHO (Organizadores)
Crises
na
Democracia
Legitimidade, participação e inclusão
Projeto Democracia Participativa
Belo Horizonte 2021
CONSELHO EDITORIAL Álvaro Ricardo de Souza Cruz André Cordeiro Leal André Lipp Pinto Basto Lupi Antônio Márcio da Cunha Guimarães Bernardo G. B. Nogueira Carlos Augusto Canedo G. da Silva Carlos Bruno Ferreira da Silva Carlos Henrique Soares Claudia Rosane Roesler Clèmerson Merlin Clève David França Ribeiro de Carvalho Dhenis Cruz Madeira Dircêo Torrecillas Ramos Edson Ricardo Saleme Eliane M. Octaviano Martins Emerson Garcia Felipe Chiarello de Souza Pinto Florisbal de Souza Del’Olmo Frederico Barbosa Gomes Gilberto Bercovici Gregório Assagra de Almeida Gustavo Corgosinho Gustavo Silveira Siqueira Jamile Bergamaschine Mata Diz Janaína Rigo Santin Jean Carlos Fernandes
Jorge Bacelar Gouveia – Portugal Jorge M. Lasmar Jose Antonio Moreno Molina – Espanha José Luiz Quadros de Magalhães Kiwonghi Bizawu Leandro Eustáquio de Matos Monteiro Luciano Stoller de Faria Luiz Henrique Sormani Barbugiani Luiz Manoel Gomes Júnior Luiz Moreira Márcio Luís de Oliveira Maria de Fátima Freire Sá Mário Lúcio Quintão Soares Martonio Mont’Alverne Barreto Lima Nelson Rosenvald Renato Caram Roberto Correia da Silva Gomes Caldas Rodolfo Viana Pereira Rodrigo Almeida Magalhães Rogério Filippetto de Oliveira Rubens Beçak Sergio André Rocha Vladmir Oliveira da Silveira Wagner Menezes William Eduardo Freire
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora. Impresso no Brasil | Printed in Brazil
Arraes Editores Ltda., 2021.
Coordenação Editorial: Fabiana Carvalho Produção Editorial e Capa: Danilo Jorge da Silva Revisão: Fabiana Carvalho e Raquel Rezende Tradução dos Capítulos 4, 5 e 8: Victoria Frois Padronização das Referências: Arthur Lopes 341.234 D383 2021
Crises na democracia: legitimidade, participação e inclusão / [Organizado por] Leonardo Avritzer [e] Priscila Delgado de Carvalho. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021. 335 p.
ISBN: 978-65-5929-041-3 ISBN: 978-65-5929-040-6 (E-book) Vários autores.
1. Democracia. 2. Neoliberalismo. 3. Participação social – Brasil. 4. Cidadania social. 5. Democracia liberal. I. Avritzer, Leonardo (Org.). II. Carvalho, Priscila Delgado (Org.). I. Título.
CDDir – 341.234 CDD(23.ed.)–321.8043 Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700
Matriz Av. Nossa Senhora do Carmo, 1650/loja 29 - Bairro Sion Belo Horizonte/MG - CEP 30330-000 Tel: (31) 3031-2330
Filial Rua Senador Feijó, 154/cj 64 – Bairro Sé São Paulo/SP - CEP 01006-000 Tel: (11) 3105-6370
www.arraeseditores.com.br [email protected] Belo Horizonte 2021
Autores ALANA FONTENELLE Doutoranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB. ALEM ASMELASH WEREDE Mestre pela Universidade de Addis Ababa, Etiópia. Mestrando em Roads to Democracies na Universidade de Siegen, Alemanha. ALEXANDRE ARNS Doutorando no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB. ALEXANDRE GOMES Doutorando no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, professor voluntário do Programa de Pós-Graduação em Computação Aplicada da UnB. ALFREDO RAMOS PEREZ Doutor em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri, Espanha. Pesquisador associado do INCT – Democracia e Democratização da Comunicação. BEATRIZ FRANCO Mestranda em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB. BRUNO DIAS MAGALHÃES Mestrando no Programa de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Democracia y Buen Gobierno pela Universidade de Salamanca, Espanha. V
CIRO ANTÔNIO DA SILVA RESENDE Doutorando no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pesquisador do Centro de Estudos Legislativos (CEL) da UFMG. EMMA ROSE ÁLVAREZ CRONIN Mestre em Desenvolvimento Econômico e Políticas Públicas pela Universidade Autônoma de Madri. FLÁVIA DE PAULA DUQUE BRASIL Professora da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. GABRIEL MATTOS ORNELAS Mestrando no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (bolsista CAPES/PROEX). LEONARDO ASSIS SILVA Mestre pelo Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Consultor legislativo na Câmara Municipal de Belo Horizonte. LEONARDO AVRITZER Professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Coordenador do Projeto Democracia Participativa (Prodep) e do INCT – Democracia e Democratização da Comunicação. Doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research, EUA. LETÍCIA BIRCHAL DOMINGUES Doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. LORENA VILARINS Mestranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB. VI
MARISA VON BÜLOW Professora Associada do Instituto de Ciência Política da UnB. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Resocie - Repensando as Relações entre Estado e Sociedade. Doutora em Ciência Política pela Universidade Johns Hopkins, EUA. MAX STABILE Doutorando no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB. Diretor-Executivo do IBPAD. PEDRO ABELIN Mestrando no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UnB. Bolsista Capes no INCT - Democracia e da Democratização da Comunicação. PRISCILA DELGADO DE CARVALHO Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pesquisadora de pós-doutorado no INCT – Democracia e Democratização da Comunicação. TEÓGENES MOURA Graduado em Engenharia de Computação pela Universidade de Brasília – UnB.
VII
Sumário
INTRODUÇÃO Priscila Delgado de Carvalho, Leonardo Avritzer..............................
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Capítulo 1
CRISE DA DEMOCRACIA COMO UM PROCESSO DE DESDEMOCRATIZAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE OS CASOS LATINO-AMERICANOS Leonardo Avritzer................................................................................. 7 PARTE I DIREITOS, PARTICIPAÇÃO E INCLUSÃO EM CRISE..... 27 Capítulo 2
CRISE DA DEMOCRACIA, NEOLIBERALISMO E PROTESTOS: ENQUADRAMENTOS DE DESIGUALDADE ECONÔMICA E SERVIÇOS PÚBLICOS DE QUALIDADE EM OCCUPY WALL STREET E EM JUNHO DE 2013 Letícia Birchal Domingues.................................................................... 29 Capítulo 3
DESCONSTRUÇÕES E RESISTÊNCIAS DEMOCRÁTICAS: O CASO DA INSTITUIÇÃO LEGAL DO SISTEMA NACIONAL DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL Bruno Dias Magalhães, Gabriel Mattos Ornelas, Flávia de Paula Duque Brasil.............................................................. 57 IX
Capítulo 4
CIDADANIA SOCIAL E A CRISE DA DEMOCRACIA REFORMA DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA RADICALMENTE DEMOCRÁTICA Emma Rose Álvarez Cronin................................................................ 89 Capítulo 5
DEMOCRACIA ESPANHOLA DIANTE DO DESAFIO DO CORONAVÍRUS Alfredo Ramos Perez............................................................................. 115 PARTE II CRISE E TECNOLOGIA: INTERNET E IMPACTOS NA DEMOCRACIA........................................................................ 135 Capítulo 6
GOOGLE E AS ELEIÇÕES BRASILEIRAS DE 2018 Lorena Vilarins, Max Stabile, Marisa von Bülow, Teógenes Moura, Alexandre Arns, Alexandre Gomes, Beatriz Franco e Alana Fontenelle....................................................... 137 Capítulo 7
CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL E AS NOVAS TECNOLOGIAS: UM ESTUDO DE CASO DO MOVIMENTO BRASIL LIVRE Pedro Abelin.......................................................................................... 171 PARTE III A CRISE NAS INSTITUIÇÕES E NA OPINIÃO PÚBLICA............................................................................................ 219 Capítulo 8
RENÚNCIA: UMA NOVA ESTRATÉGIA DOS PARTIDOS POLÍTICOS DOMINANTES NA ÁFRICA PARA MANTER O PODER? Alem Asmelash Werede.......................................................................... 221 X
Capítulo 9
INSTITUIÇÕES JUDICIAIS E CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL Leonardo Assis Silva............................................................................. 253 Capítulo 10
CONFIANÇA NA DEMOCRACIA E EM INSTITUIÇÕES POLÍTICAS: UMA ANÁLISE DAS PERCEPÇÕES DOS DEPUTADOS FEDERAIS BRASILEIROS Ciro Antônio da Silva Resende............................................................ 273 Capítulo 11
SENTIDOS DO AUTORITARISMO NO BRASIL DE 2019: UM REGIME REABILITADO? Priscila Delgado de Carvalho............................................................... 301
XI
Introdução Priscila Delgado de Carvalho Leonardo Avritzer Este livro trata da crise contemporânea da democracia em diálogo com as recentes teorias que identificam como características centrais desses processos a erosão das instituições (Levitsky e Ziblatt, 2018), a erosão de valores democráticos e da confiança – seja na política, seja no futuro (Mounk, 2019), ou a degradação econômica (Przeworski, 2019). Para esse último autor, crises não duram indefinidamente, levando a desfechos em termos de ruptura ou retomada. Wendy Brown (2019), em outra linha, situa as origens da crise na expansão da racionalidade neoliberal que estreita o espaço da política e mina a possibilidade de relações igualitárias essenciais à democracia. Os textos aqui reunidos oferecem análises sobre as crises e os problemas que assolam democracias na América do Sul, na África e no Sul da Europa, lançando olhares sobre países que não estão necessariamente no centro das atenções de autores que vêm estabelecendo o cânone da área. Os textos indicam temas e abordagens teóricas que precisam de atenção para que avancemos no entendimento das crises contemporâneas, apontando potencialidades e limites das teorias que circulam globalmente e, por vezes, propondo articulações e categorias teóricas inovadoras. Leonardo Avritzer, no primeiro capítulo, diferencia crises que ocorrem em países com democracias consolidadas e em democracias da terceira onda (1974-2010). Nas primeiras, o autor
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
sugere tratar das crises como processos de desconsolidação, enquanto em países nos quais a construção democrática ainda é um desafio seriam mais bem entendidos como processos de desdemocratização – no sentido usado por Tilly (2007). Para esses, Avritzer propõe que, ao lado da degradação das instituições e da desconfiança da opinião pública, é necessário levar em conta outras três dimensões, que se desdobram em paralelo: a) alterações no equilíbrio de poderes, que incluem b) a politização das instituições judiciais, e c) o desencaixe da economia com processos democráticos e com os sistemas de direitos. Para esses últimos, usa o termo “desembeddedness”, dessa vez em diálogo com Polyani (1959) e Blyth (2002). As múltiplas dimensões das crises contemporâneas oferecem um bom ponto de partida para entender as relações entre os textos que compõem o volume, dividido em três eixos: o primeiro reúne temas que tratam de direitos e de interseções entre formas de participação e a crise democrática; o segundo aproxima tecnologia e internet; e o terceiro retoma debates sobre crise nas instituições e na opinião pública. O primeiro eixo do livro enfoca direitos e participação nas democracias em crise e, no geral, discute o problema do desencaixe entre processos democráticos, sistemas de direitos e a economia. A contribuição de Bruno Magalhães, Gabriel Ornelas e Flávia Duque Brasil organiza as leituras sobre a crise no Brasil entre abordagens estrutural, institucional ou política, para então analisar os desafios colocados à participação desde a frustrada tentativa de construção de Sistema Nacional de Participação Social em 2014. Os autores analisam também os decretos de Jair Bolsonaro em 2019, extinguindo espaços e mecanismos de participação social. A relação entre participação (não eleitoral) e crise é abordada também por Letícia Birchal Domingues, que provoca um debate sobre o lugar do ciclo global de protestos na caracterização das crises nas democracias liberais contemporâneas. No texto, em que discute especialmente os enquadramentos dos ativistas no Occupy Wall Street, de 2011, nos EUA, e Junho de 2013, no Brasil, a autora aponta ambiguidades entre a potência de repolitização do
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sistema esvaziado pelo neoliberalismo e os limites encontrados na efetivação de demandas. As relações entre direitos e democracia são objeto de dois artigos de pesquisadores radicados na Espanha. Emma Alvarez toca no cerne da democracia em seu capítulo “Cidadania social e a crise da democracia”. A jovem pesquisadora trata da crise do estado de bem-estar social e do mercado de trabalho após reformas neoliberais na Europa em diálogo com os debates sobre renda básica universal, com o feminismo, com o ambientalismo e com a necessidade de reconhecimento e redistribuição. Alvarez propõe uma revisão do conceito de cidadania social desde uma visão radicalmente democrática que leve em conta o trabalho de cuidado e garanta a inclusão de mulheres e minorias para além dos direitos ligados ao trabalho. Um texto sobre uma “democracia radicalmente inclusiva” em meio ao cenário de crise é uma lufada de ar fresco capaz de mostrar como, mesmo em meio à crise, é central manter espaço para pensar em políticas democráticas. O texto ganha atualidade dada a reativação do debate sobre renda mínima em muitos países em meio à pandemia do novo Coronavírus. Em um livro produzido em meio à pandemia, consideramos essencial incluir o tema entre os artigos. O atualíssimo capítulo de Alfredo Ramos discute os impactos da Covid-19 na Espanha a partir de um olhar sobre os impactos da crise sanitária na democracia. O autor discute como as respostas do poder público foram pouco abertas ao acúmulo sobre participação, com impactos sobre direitos, para além da saúde. Para um livro publicado no Brasil, o texto vale ainda como registro de como outros países, apesar das dificuldades e dos limites à participação, foram capazes de realizar um mínimo de debate público não só sobre a crise sanitária e econômica, mas sobre os caminhos para a saída dela. Um olhar crítico a esses esforços, como o oferecido por Ramos, contribui com a qualificação dos debates e nos lembra dos sentidos dos processos participativos que oferecem contribuições não apesar dos, mas sobretudo nos momentos de crise. Gênero é um tema central das crises contemporâneas e as disputas em torno do conceito afetam os processos de inclusão e a construção de direitos, como apontam trabalhos recentes (Biroli,
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Machado e Vaggione, 2020). Embora este livro não traga um capítulo específico sobre o tema, diversos trabalhos incluem um olhar da teoria feminista para a crise da democracia, incluindo no debate sobre crises temas como a redistribuição e o reconhecimento, a divisão sexual do trabalho e a feminização do cuidado ao lado da masculinização da gestão – como vemos em Alvarez e Ramos. Werede aporta ainda um olhar sobre geração. O segundo eixo do livro traz um debate da internet, tema que vem ganhando destaque nas leituras contemporâneas sobre as crises das democracias e que não poderia estar ausente deste volume (Mounk, 2019; Runciman, 2018). Os debates situam-se na interseção entre teoria política, tecnologias, liberdade de expressão e direito à comunicação. Ambos os textos do eixo são frutos do trabalho do grupo de pesquisa Resocie – Repensando as Relações entre Sociedade e Estado, com sede no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), e partes das pesquisas contaram com apoio do INCT-IDDC. O capítulo “Google e as eleições brasileiras de 2018”, assinado por nada menos que oito pesquisadores do grupo, traz o resultado de um experimento inédito sobre o uso do Google como ferramenta de busca de informações por eleitores durante o pleito presidencial de 2018, aportando dados e reflexões sobre tecnologia e democracia. Já Pedro Abelin articula o debate sobre tecnologia com populismo e a rearticulação da direita, no Brasil, ao estudar o uso de redes sociais e seu potencial para contornar os gatekeepers tradicionais, especialmente entre os partidos políticos. Abelin esmiúça no caso do Movimento Brasil Livre que, ao mesmo tempo, duvida das instituições – inclusive dos partidos – e interage com eles. Por fim, no terceiro eixo, o livro trata da dimensão institucional e da opinião pública. A degradação das instituições é abordada no texto de Alem Werede. Ele mostra que o uso da renúncia por lideranças políticas do Zimbábue, África do Sul, Seychelles, Angola e Etiópia, entre 2016 e 2018, indica mais do que um efeito dominó: trata-se de uma estratégia de partidos dominantes para se manter no poder. No texto “Instituições judiciais e crise da democracia no Brasil”, Leonardo Assis revisita uma das dimensões elencadas por
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Avritzer, aprofundando a questão da politização do poder judiciário no Brasil e discutindo impactos da atuação das instituições de controle democráticos em termos de alterações no equilíbrio de poderes. Trata-se de tema que tem se mostrado central nas crises do Brasil e de outros países latino-americanos, renovando também o olhar institucional sobre a crise. Ainda em diálogo com as instituições democráticas, mas se aproximando dos debates de opinião pública, o capítulo de Ciro Resende discute a confiança na democracia e em instituições políticas comparando percepções de deputados federais brasileiros e da população em geral e encontrando um forte descompasso. Os dados articulam surveys aplicados pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT-IDDC) e pelo Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (CEL-UFMG) em parceria com a Universidade de Salamanca, Espanha. Opinião pública está presente no livro também a partir de um segundo olhar, agora qualitativo, sobre como cidadãos brasileiros entendem temas como o autoritarismo e quais sentidos associam ao termo. No capítulo de Priscila Delgado de Carvalho, são analisados sentidos e usos de termos como “autoritarismo” e “regimes não democráticos” em grupos focais realizados pela equipe do INCT-IDDC ao longo de 2019. Tendo encontrado sentidos relativos à força, à resolutividade e à segurança aliados a uma fraca preocupação com as instituições democráticas, o texto lança hipóteses que podem ajudar a entender a maior abertura de brasileiros e brasileiras a regimes não democráticos identificada em diversos surveys de anos recentes. Cada texto, a seu modo, retoma os debates correntes sobre crise na democracia, jogando luz sobre como os aspectos vêm sendo discutidos e apresenta contribuições para a literatura. Os textos que compõem este volume têm três origens. Alguns foram apresentados e discutidos durante o workshop The Crisis and the Challenges of Democracy, organizado pelo INCT – Instituto da Democracia (INCT-IDDC) e pelo programa de doutorado “Democracia no século 21” do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em novembro de 2019. Outros
textos foram ensaios preparados por estudantes do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG) que, no primeiro semestre de 2020, participaram do curso Crise da democracia: entre teoria global e aspectos locais. Há ainda textos de integrantes do INCT-IDDC. O resultado é a reunião de trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras jovens em estágios finais de formação ou recém-doutores ao lado de trabalhos de professores da área. Esperamos que os textos contribuam para o amadurecimento dos debates sobre as crises e os desafios das democracias. REFERÊNCIAS Biroli, Flavia; Machado, Maria das Dores Campos; Vaggione, Juan Marco (2020), Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo. Blyth, Mark (2002), Great transformations: Economic ideas and institutional change in the twentieth century. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Brown, Wendy (2019), Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politeia. Levitsky, Steven; Daniel Ziblatt (2018), Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar. Mounk, Yascha (2019), O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras. Polanyi, Karl (1959), Anthropology and economic theory. Readings in Anthropology, 2, 161-184. Przeworski, Adam (2019), Crises of democracy. Cambridge: Cambridge University Press. Runciman, David (2018), Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia. Tilly, Charles (2007), Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.
Capítulo 1 A Crise da Democracia como um Processo de Desdemocratização: Reflexões Sobre os Casos Latino-Americanos Leonardo Avritzer 1. TEORIAS SOBRE A CRISE ATUAL A democracia é um conceito essencialmente contestado envolvendo disputas intermináveis sobre sua definição, seu significado e seus usos adequados (Collier e Levitsky, 1997, p. 433; Gallie, 1956; Santos e Avritzer, 2002; Santos e Mendes, 2017). A democracia é contestada por causa de sua história, de sua evolução e das diferentes maneiras como é colocada em prática. Desde o colapso da democracia ateniense em 413 a.C. até a Revolução Francesa, o termo em geral carregava uma conotação negativa nas obras dos pensadores políticos (Dunn, 1992). Em pouco mais de um século, da Revolução Francesa à rejeição da democracia no início da modernidade, uma mudança dramática ocorreu no uso do conceito. Joanna Innes resume essa mudança como a substituição da ideia de democracia como comportamento da multidão e rebelião pela ideia de reivindicações legítimas para inclusão política pela via institucional (Innes e Philp, 2013, p. 7). Foi como um mecanismo de inclusão política e social que a democracia adquiriu sua influência global durante a segunda metade do século XX. O fato de a democracia ser um conceito essencialmente contestado também torna a crise da democracia propensa à contestação. Dentro da ciência política existem várias teorias sobre o desenvolvimento da democracia, e elas influenciam como podemos
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analisar sua atual crise. A democracia foi recentemente desagregada em vários adjetivos: representativa, participativa, deliberativa, delegativa, entre outros (Collier e Levitsky, 1997). Cada um desses conceitos gera um conceito relacionado de crise da democracia. A maioria dos autores que trabalha com a crise da democracia padronizou seu próprio conceito de requisitos mínimos de democracia, a fim de estabelecer um padrão em relação ao qual a democracia experimentaria sua crise. Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, Adam Przeworski e Yascha Mounk estabeleceram os principais elementos de uma teoria sobre a atual crise da democracia. Em todos eles, uma teoria minimalista da democracia é o ideal frente ao qual se analisa a crise, porém há variações no interior da teoria. Para Levitsky e Ziblatt, há dois elementos que estão no cerne da democracia, as instituições e a legalidade. O problema da democracia para eles é que pode ser degradada por dentro e não por violentas tomadas de poder (Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 5). Nesse sentido, eles estão preocupados com o esforço legal para subverter a democracia “no sentido de que [ações antidemocráticas] são aprovadas pelo legislativo e aceitas pelos tribunais” (Levitsky e Ziblatt , op. cit.). Levitsky e Ziblatt estabelecem seu quadro para compreender a crise da democracia rompendo com um princípio fundamental da teoria democrática, a ideia de que uma crise de democracia leva a um golpe de Estado. Para eles, a degradação interna, que muitas vezes nem sequer rompe com a legalidade, é que deveria ser a questão da preocupação. Adam Przeworski, por outro lado, tem uma teoria mais padrão de crise. Para ele, em uma crise da democracia, “a situação corrente é, de alguma maneira, insustentável, e algumas ameaças à democracia já foram materializadas. Ainda assim, o status quo democrático permanece” (Przeworski, 2019, p. 10). Przeworski se apega justamente à bem estabelecida teoria da crise (Koselleck, 1988) como uma situação intermediária na qual elementos da velha ordem não funcionam, mas, ao mesmo tempo, ele afirma claramente que situações de crise não podem se sustentar. Para ele, quando a democracia está em crise, “os que estão no poder tornam impossível para a oposição removê-los de suas posições de
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poder […] ou a oposição não reconhece a legitimidade do governo e este se defende através da repressão” (Przeworski, 2019, p. 13). A comparação das duas teorias abre um caminho para estudar a atual crise da democracia. Cada visão da crise é baseada em uma teoria da democracia e da crise. A teoria da democracia de Przeworski está fortemente fundamentada na visão huntingtoniana da democracia, ou seja, em uma concepção de que a democracia anglo-saxã teve um funcionamento ininterrupto de instituições representativas que a diferenciam dos outros casos (Przeworski, 2019, p. 74; Huntington, 1991). O argumento de Huntington, porém, tem um segundo elemento tão importante quanto o primeiro, que é a centralidade de um núcleo de países democráticos. Esse argumento, que faz parte da maioria das teorias bem estabelecidas da democracia (Dahl, 1971, 1990), assume um foco empírico. Segundo essa visão, há um núcleo de países democráticos pertencentes ao mundo anglo-saxão – especialmente a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e algumas democracias europeias – que não corre o risco de desdemocratização. Nesse sentido, a ideia de crise está em tensão com a ideia de rompimento ou, pelo menos, diferencia casos de acordo com os dois possíveis resultados. O que falta na teoria de Przeworski foi recentemente trazido ao debate por autores como Yascha Mounk, uma degradação dos valores democráticos que se expressa na diminuição do apoio aos valores democráticos por parte da população e das elites nas democracias consolidadas (Mounk, 2019, p. 171). Assim, Przeworski supõe uma repetição de regularidades mais forte do que a existente, já que ele descarta o ambiente de degradação dos valores democráticos no qual a crise ocorre, especialmente nos países anglo-saxões. Levitsky e Zibblatt não têm exatamente uma teoria sobre a crise da democracia. Se tivessem, teriam que apontar a direção em que a crise se desenrolaria. No entanto, eles têm uma perspectiva diferente de Huntington/Przeworski. Para eles, há a possibilidade de degradação interna da democracia que levará ao fim do regime, sem um rompimento. Essa possibilidade está enraizada no fato de que importantes líderes políticos, dentro dos principais países democráticos, não respeitam os elementos que tornam a
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democracia forte e estável em termos institucionais. Eles apontam que, nos Estados Unidos, as primárias romperam com uma concepção de gatekeeping que manteve líderes historicamente populistas afastados do processo de formação de governo e governança naquele país ao longo do século XX (Levitsky e Zibblat, 2018, p. 142). Assim, a degradação por dentro rompe com o elemento huntingtoniano e coloca a crise da democracia no núcleo de países anglo-saxões. Há um argumento alternativo sobre as principais características da democracia, avançado por Charles Tilly. Ele defende que a democracia envolve tanto movimentos em direção a consultas mais amplas e iguais entre o Estado e seus cidadãos, como movimentos opostos em direção a relações mais estreitas, mais desiguais e menos protegidas (Tilly, 2007, p. 14). Assim, para Tilly, a democracia é um movimento muito mais amplo envolvendo diferentes oscilações em direções opostas, e toda definição de democracia deve levar em conta a desdemocratização. Tilly toma como exemplo-chave os movimentos a favor e contra a democracia na França entre 1789 e 1968, período no qual muitos episódios de democratização e desdemocratização ocorreram. Para ele, a França, e não o mundo anglo-saxão, deveria ser o modelo para a compreensão da democracia. A questão do consenso em torno da democracia e da reversão de direitos em momentos de crise, especialmente os direitos sociais e os direitos civis, é parte da discussão sobre crise da democracia. Apesar de pouco tocada, especialmente por Levitsky e Zibblatt, essa questão não pode ficar de fora de uma discussão sobre a crise. Para entender a crise da democracia é necessário entender a relação entre democracia e o consenso em relação aos direitos. Charles Tilly (2007, p. 38) cita John Markoff, que afirma o seguinte a esse respeito: “Durante uma onda de democracia, ocorre uma grande discussão sobre as virtudes da democracia, os movimentos sociais frequentemente demandam mais democracia e as pessoas em posições de autoridade proclamam suas intenções democráticas. Durante as ondas antidemocráticas governos se transformam de forma amplamente antidemocrática [...]” (Markoff, 1996, p. I). Vai em direção semelhante a afirmação de Foa e Mounk (2017)
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sobre a existência de processos de desconsolidação da democracia e que é necessário considerar elementos tais como o apoio popular à democracia, a abertura a alternativas não democráticas e o apoio a partidos e candidatos antissistema. Todos são elementos importantes para avaliar a atual crise da democracia. Assim, há um elemento geral da crise da democracia que tem sido muito discutido, mas cujas consequências não têm sido plenamente entendidas. Trata-se da erosão de valores democráticos e de tolerância compreendidos não apenas como uma categoria quantitativa capaz de permitir a comparação entre tipos de adesão à democracia (Almond e Verba, 1963), mas enquanto fortes sinais qualitativos de que certas categorias tomadas como dadas podem estar sendo questionadas pelos cidadãos e cidadãs. A democracia no pós-guerra foi construída em cima de consenso em relação a essas categorias que se tornaram “quase permanentes”. Questões relacionadas à democracia ser a melhor forma de governo foram naturalizadas. Tal como aponta David Runciman, existe um desconforto em relação a essas questões que possui um elemento histórico e um elemento prático. O elemento histórico, segundo o autor de “Como a democracia chega ao fim”, está ligado à relatividade da afirmação do inglês Winston Churchill sobre a democracia ser a pior forma de governo, salvo todas as demais. Como diz Runciman, “o contexto importa. Churchill [realizou sua afirmação sobre a democracia] em 1947 depois do fracasso completo de uma alternativa possível a democracia. Setenta anos depois, a situação é diferente.” (Runciman, 2019, p. 169). Ou seja, há um problema na dimensão de “deliverance” da democracia, o que significa que ela não é capaz de resolver problemas dos cidadãos da mesma maneira como ela foi durante o pós-guerra. É essa a base da corrosão dos valores democráticos. Assim, podemos usar as observações de Tilly, Mounk e Foa para propor dois conceitos interrelacionados de crise da democracia: o primeiro deles é o de desconsolidação, tal como proposto por Mounk e Foa. Esse conceito questiona o cerne do argumento huntingtoniano/przeworskiano, isto é, de que democracias consolidadas não correm o risco de desconsolidação. O segundo está ligado ao fato de que os cidadãos das democracias
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contemporâneas são cada vez mais críticos aos partidos, às instituições representativas e aos direitos das minorias ao mesmo tempo em que se mostram abertos a interpretações autoritárias da democracia (Foa e Mounk, 2017, p. 5). Trata-se aqui de perceber que certas características da democracia podem ser revertidas mesmo quando essa última não entra em colapso. No entanto, essa descrição da desconsolidação abrange apenas parcialmente aquilo que Tilly e Markoff chamam de “desdemocratização”. Essa última envolve ataque às estruturas de divisão de poderes e uma hostilidade aberta à democracia e ao estado de direito. 2. DESDEMOCRATIZAÇÃO E DESCONSOLIDAÇÃO Neste breve artigo tentarei diferenciar o que chamo de “desconsolidação”, seguindo a Foa e Mounk, do que chamo de “desdemocratização”, seguindo Tilly e Markoff. Meu ponto de partida é o conceito de ondas de democratização. Samuel Huntington, ao discutir no início da terceira onda de democratização o conceito a ela correspondente, propôs a seguinte definição: uma onda de democratização consiste “em um grupo de transições de regimes não democráticos para regimes democráticos que ocorre em um determinado período de tempo e supera em número transições na outra direção durante este mesmo período de tempo” (Huntington, 1991, p. 15). A definição huntingtoniana tem dois elementos principais: o primeiro é uma visão teleológica dos países que se constituíram em núcleo da primeira e segunda ondas de democratização – EUA, Inglaterra e países da Europa Continental. Nesses casos, a visão huntingtoniana é que esses países não correm o risco de desconsolidação. Irei mostrar em seguida, a partir de Mounk e Foa, que esse não é o caso atualmente. O segundo elemento da definição de Huntington é uma visão institucional do que consiste a democratização, como a realização de eleições regularmente sem contestação de vencedores. Mesmo a partir desse critério os Estado Unidos devem fazer parte de uma lista de democracias em desconsolidação, se levarmos em conta o comportamento do ex-presidente Donald Trump na eleição de 2020.
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Assim, é possível afirmar que existe sim um processo de desconsolidação em curso. Ele passa por uma mudança ampla no apoio à democracia, mas tem consequências diferenciadas nas democracias consolidadas, por um lado, e nas novas democracias do Sul, por outro. Irei utilizar três parâmetros para diferenciar desconsolidação de desdemocratização e para analisar as crises nas democracias do Sul global, que em geral coincidem com a terceira onda: (a) degradação dos valores democráticos, (b) desinstitucionalização de importantes direitos civis e sociais, um processo que chamarei de disembeddedness de direitos, em diálogo com Polanyi (1959) e Blyth (2009), e (c) mudanças na estrutura de equilíbrio de poderes (Tilly, 1975, 1986, 2007). Irei oferecer alguns exemplos comparados a partir da América Latina. Em síntese, além da degradação das instituições políticas que já vem sendo discutida na área, como vimos nessa primeira seção, trabalhamos aqui com um modelo para compreender a crise contemporânea da democracia em nossa região, que articula a degradação dos valores democráticos e suas consequências em termos de desdemocratização, o disembeddedness tanto da economia como dos direitos, e alterações no equilíbrio de poderes que passam, em grande medida, pela politização de instituições judiciais. O diagrama abaixo sintetiza esses elementos. DIAGRAMA 1 Dimensões da crise da democracia Degradação das instituições políticas
Disembeddness econômica
Degradação dos valores democráticos
Crise da democracia
Estreitamento dos direitos e repressão dos movimentos sociais
Fonte: elaboração própria.
Politização das instituições judiciais
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2.1. Degradação de valores democráticos A crítica à concepção huntingtoniana nos permite entender elementos globais da crise da democracia. A corrosão dos valores democráticos é um problema global, que tem incidência mais forte nas novas democracias. É possível fazer uma dupla afirmação sobre esse processo. De um lado, há uma corrosão inédita dos valores democráticos em algumas das democracias que considerávamos mais bem consolidadas e que permitiam aos cientistas políticos afirmarem que a consolidação constitui uma via de mão única nas democracias antigas, para as quais não estariam no horizonte as ondas reversas que assolaram muitos dos países que aderiram mais tarde à franquia democrática. De outro lado, há uma diminuição que não é inédita, mas é significativa, no apoio à democracia nas novas democracias. As consequências dos dois fenômenos, que quantitativamente podem ser semelhantes, são radicalmente diferentes em termos de direitos e processos institucionais. Se tomamos de forma comparada dados dos Estados Unidos e dados do Cone Sul das Américas sobre a preferência em viver em uma democracia, vemos a seguinte variação: nos Estados Unidos, durante o período pré-segunda Guerra Mundial, esses dados chegam a seu ápice de aproximadamente 71%. Depois da Segunda Guerra Mundial, a preferência da população pela democracia se mantém acima de 50% ao longo das décadas de 1940 e 1950, alcançando um ápice de 58% no final dos anos 40, tal como a tabela abaixo extraída de Mounk mostra:
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GRÁFICO 1
%
Importância de viver em uma democracia 80 70 60 50 40 30 20 10 0
71 58
57
51
44 29
1930
1940
1950
1960
1970
1980
Década de Nascimento
Fonte: Mounk, 2018, p. 132.
Os dados para os Estados Unidos confirmam o argumento de David Runciman. Os EUA tiveram índices muito altos de apoio à democracia em dois momentos: imediatamente após a guerra, quando a ideia de disputa de modelos foi forte e o modelo democrático americano se sobressaiu. Em segundo lugar, no pós-guerra, quando a ideia da superioridade do modelo democrático como capaz de vencer uma proposta totalitária se sobressaiu mais uma vez. Os dados para o Cone Sul da América Latina desde as democratizações são bem diferentes. Os países do Cone Sul que passaram recentemente por processos de democratização raramente ultrapassaram a marca 50% de satisfação dos cidadãos com a democracia. O Uruguai parece ser a exceção, uma vez que tem conseguido manter uma cultura democrática desde então. Na verdade, é possível argumentar a existência de uma cultura democrática no Uruguai muito superior à de seus dois vizinhos, Argentina e Brasil, como mostram os dados a seguir:
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TABELA 1 Satisfação com a democracia – 2018 País Argentina
Brasil
Uruguai
Muito satisfeito
6,0%
1,1%
14,2%
Satisfeito
21,1%
7,6%
32,6%
Pouco satisfeito
44,1%
43,2%
36,9%
Nada satisfeito
26,4%
45,8%
12,7%
Não sabe
2,3%
1,9%
3,0%
Não respondeu
0,2%
0,4%
0,6%
(N)
(1.200)
(1.204)
(1.200)
Fonte: Latinobarómetro, 2018.
A Argentina e, principalmente, o Brasil têm níveis menores de apoio à democracia, e esses números variam em momentos de crise. A crise 2000-2002 implicou em uma queda no apoio à democracia na Argentina, e a crise 2014-2020 tem levado a um índice muito baixo de apoio à democracia no Brasil. Provavelmente, a diferença entre os dois países está ligada à profundidade da experiência autoritária entre 1976 e 1983. No entanto, o que diferencia os processos nos Estados Unidos, por um lado, e no Brasil e na Argentina, por outro, não são propriamente os dados de erosão da confiança, mas as consequências distintas em termos de erosão de direitos e vigência do estado de direito motivadas pelo processo de erosão democrática. 2.2. O processo de disembeddedness de direitos Um segundo elemento do modelo proposto para diferenciar desconsolidação de desdemocratização e para analisar as crises nas democracias do Sul global será uma compreensão diferente da relação entre desempenho econômico, direitos e conflitos sociais. Essa interação não pode ser totalmente entendida apenas com uma ideia geral de desempenho econômico, como Przeworski
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sugere, porque há um conflito político associado ao aumento ou à diminuição da proteção social. Proporei, a esse respeito, utilizar os conceitos de embeddedness1 e disembeddedness (Polanyi, 1959; Blyth, 2002). A análise de Polanyi sobre a separação entre o homem, o trabalho e a natureza tem dois limites que são importantes para entender a relação entre embeddedness, disembeddedness e re-embeddedness. Polanyi, assim como vários autores depois dele, entendeu ser irreversível o processo de separação entre homem, natureza e trabalho, e criação de um mercado que obrigava os indivíduos a interagir através de outro padrão. Além de irreversível, esse processo tinha características fixas e estáveis. Elementos que afetaram a vida dos indivíduos – tais como o emprego, o desemprego e as políticas de apoio aos desempregados – teriam de se encaixar em uma concepção de equilíbrio de mercado (Polanyi, 1959, p. 210). A reação dos atores sociais e dos movimentos políticos do início do século XX às formas como o mercado desinseria os indivíduos da comunidade é parte de um entendimento sobre a ruptura da democracia no período de entreguerras e nos ajuda a entender fenômenos como o Trumpismo nos Estados Unidos. O conceito de embeddedness foi entendido em termo puramente natural, embora também envolvesse um sistema de proteção das mesmas relações, ou seja, homem e família. A ideia de que o homem e a mulher poderiam se organizar para desafiar o sistema existente de mercantilização das relações sociais era, para Polanyi, uma imposição que só poderia ter levado ao fascismo: “a solução fascista para o impasse alcançado pelo capitalismo liberal pode ser descrita como uma reforma da economia de mercado alcançada ao preço da extirpação das instituições democráticas.” (Polanyi, 1959, p. 237). Assim, Polanyi não podia ver uma forma democrática de reembeddedness como uma possível forma alternativa de estabilização das relações de trabalho, da família e de outras 1
Embeddedness é uma palavra de difícil tradução envolvendo tanto a ideia de inserção quanto de uma forma natural de incrustamento das relações econômicas em uma comunidade. Assim, o centro do conceito é que as formas de separação entre os indivíduos e a natureza, assim como o fim das formas de proteção comunitárias são instituídos de modo coercitivo pelo estado e pelo mercado.
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formas de interação social necessárias pela economia capitalista. Contudo, a experiência do pós-guerra nos mostrou que era sim possível uma forma de proteção social compatível com a economia de mercado, desde que fossem estabelecidos limites muito claros para a atuação do mercado. No pós-guerra, esses elementos impuseram-se especialmente na Europa através de serviços públicos e direitos na área da saúde, da educação e da aposentadoria que reestabeleceram um padrão de não intervenção do mercado em determinadas áreas da sociabilidade. A inclusão envolve uma compreensão cognitiva do papel do Estado na proteção social. Grandes desafios ao Estado ou a práticas antidemocráticas locais, bem como a ampliação do direito por meio do sistema jurídico fazem parte da inclusão. Por fim, a inclusão envolve também uma estrutura de protestos políticos que estabeleceu um horizonte de inclusão política. A capacidade do movimento social de influenciar regras fazia parte desse processo, que tem sido revertido em todas as democracias nas últimas décadas. É exatamente essa forma de reembeddedness que foi atacada pelo neoliberalismo. Como mostrou recentemente Wendy Brown, o neoliberalismo questiona a própria ideia de sociedade, portanto ele retrocede para antes do próprio ataque do fascismo às instituições, uma vez que o fascismo aceitava processos de proteção social. Para Brown, Hayek considera “a sociedade uma expressão improvisada [...] na melhor das hipóteses, diz ele [...] o termo carrega a nostalgia de mundos antigos de associações pequenas e íntimas e pressupõe falsamente ‘uma busca comum de fins compartilhados”. (Brown, 2019, p. 41). Assim, vemos um debate direto entre Polanyi e Hayek. Enquanto para um a “desinserimento” dos indivíduos é o fenômeno que causa a crise da democracia, para Hayek deve ser um objetivo, e não temos como negar que mercado e Estado realizaram um novo “desinserimento” e destruição das estruturas de proteção nas últimas décadas, processo esse diretamente ligado à crise da democracia. Vale a pena aqui mencionar que as formas de disembeddedness que o neoliberalismo implantou variam na crise das democracias na Europa e América Latina, devendo ser diferenciadas. Especialmente na América Latina, tivemos um momento de forte expansão
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da proteção social na década passada, mas a inclusão não foi capaz de conter um processo que denominamos de “disembeddedness econômico”, entendido como o aumento da desigualdade, a redução dos direitos sociais e a desindustrialização. Ele reduziu os direitos na região como um todo, particularmente no Chile, Colômbia e Brasil, especialmente os direitos civis e os sociais. É importante entender esse fenômeno para entender a crise da democracia. Os países latino-americanos podem ser diferenciados em relação aos direitos civis em dois grupos: um primeiro que não teve justiça de transição, caso do Brasil, ou teve violações profundas dos direitos humanos, como tem sido o caso do México e da Colômbia. No segundo grupo estão países que reestabeleceram uma tradição mais forte de direitos humanos, como tem sido o caso da Argentina e do Uruguai. Além da questão dos direitos civis, há a importante questão da legalidade/ilegalidade das formas de contenção social. A América Latina tem formas historicamente fortes de ação coletiva desde a revolução mexicana até a derrubada de regimes autoritários. Essas formas de ação coletiva criaram repertórios durante o período democrático. Mobilizações de massa de populações do campo são importantes em diversos países como o Brasil e o México. A mobilização de comunidades tradicionais é importante em diversos países, como a Colômbia, o Peru, a Bolívia e também o Brasil. Mobilizações de trabalhadores urbanos também têm relevância na maior parte dos países. O importante é entender a dinâmica dessas formas de mobilização. Elas foram importantes na articulação de uma nova dinâmica entre Estado e movimentos socais nas últimas décadas, que expandiu significativamente direitos para as populações tradicionais e para as populações ligadas à luta pela terra. Assim, confirma-se a suposição que a democracia não é apenas um processo valorativo de adesão a certas instituições, mas, também, um método de solução de conflitos. No entanto, o processo de expansão de direitos por meio da articulação de um repertório de contenciosidade com estruturas estatais inclusivas está sob ameaça agora em toda a região latino-americana. Governos que ou impõem limitações judiciais
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às manifestações ou as reprimem com novas forças policiais militarizadas estão no poder em praticamente todos os países. Assim, temos uma situação de crise generalizada da democracia na América Latina, constituída pela associação entre a baixa adesão valorativa à democracia e forte reversão de estruturas de inclusão. No entanto, gostaria de sustentar que essa crise ocorre em relação a novas práticas democráticas ou a um novo repertório no qual o sistema judicial, o direito e uma estrutura de proteção social estão em vigor. Portanto, a crise da democracia é também uma disputa por direitos, inclusão econômica e instituições políticas capazes de estabilizar a crise, e pela politização de instituições judiciais. 2.3. Mudanças na estrutura de equilíbrio de poderes O modelo proposto incorpora ainda uma terceira questão ao debate acerca da crise da democracia, o papel do Estado de Direito. A terceira onda de democratização ocorreu sob o pressuposto de que a restauração da competição política deveria se articular com um sistema de direitos e regras (O’Donnell, 1992; O’Donnell e Schmitter,1986). De fato, essa questão já estava presente no final da primeira e segunda ondas de democratização, particularmente no cenário europeu (Neumann, 1967). Segundo Neumann, há uma tensão entre o Estado de Direito e a soberania. O Estado de Direito nessa tradição é entendido como o formato empírico que reconcilia soberania e direitos. Essa tensão é lógica e foi capaz de produzir diferentes configurações em períodos históricos específicos. A abordagem de Neumann sobre o Estado de Direito teve consequências para o processo de democratização principalmente no nível do conceito de continuidade jurídica entre autoritarismo e democracia. O elemento mais importante nessa tradição consiste no estabelecimento de uma nova relação entre o poder judiciário e o poder executivo, um poder quase imperial em todos os países da América do Sul. Essa estrutura foi se transformando ao longo dos processos constituintes da terceira onda de democratização, mas ainda estamos longe de ter uma estrutura completamente equilibrada de divisão de poderes e ainda mais longe no que diz respeito à vigência de direitos.
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As democratizações latino-americanas levaram a fortes mudanças na estrutura de divisão de poderes. Novas constituições foram elaboradas em países como o Brasil, a Colômbia, o Peru, a Bolívia, o Equador e a Venezuela (nesse último país, em contexto específico, o de autoritarismo competitivo conforme definido por Levitsky e Way, 2010). Outros países voltaram às suas antigas constituições – Argentina, Uruguai e Chile –, mas em situação de ampliação da estrutura de direitos civis. O caso Argentino pode ser considerado um caso intermediário com uma ampla revisão constitucional na questão de direitos. Os casos de aumento das prerrogativas do poder judiciário podem ser divididos em dois tipos: o primeiro mais ligado a novas formas de garantias de direitos e o segundo relativo à divisão de poderes. No primeiro tipo, essas garantias variam desde instrumentos para deter a arbitrariedade do Estado, como foi o caso da reelaboração do conceito de direito de amparo na Colômbia, até um conjunto de direitos das assim chamadas “populações originárias” em países como a Bolívia e o Equador. A Argentina se encaixa também nesse primeiro conjunto a partir da emenda sobre direitos efetivada pela revisão constitucional de 1994. O segundo tipo está mais ligado à estrutura de divisão de poderes e, sendo assim, também está mais relacionado ao processo em curso de degradação democrática. Ainda que este segundo conjunto envolva um número menor de países, principalmente o Brasil, o Peru e a Colômbia, ele é fortemente significativo no que diz respeito à degradação das instituições democráticas e ao uso do direito na polarização política. Brasil, Colômbia e Peru se situam diferentemente nesse caso. Brasil e Colômbia realizaram amplas reorganizações no interior da estrutura de divisão de poderes. No caso do Brasil, a Constituição de 1988 gerou novas prerrogativas para o poder judiciário relacionadas com a maneira como a revisão constitucional acabou incorporada na própria Constituição de 1988 através dos artigos 102, que define as competências do Supremo Tribunal Federal, e 103, que versa sobre proposições de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade. No caso da Colômbia, o exercício da capacidade de revisão constitucional se deu, inicialmente, em torno
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de uma questão específica que é a possibilidade de declaração de estado de emergência. O caso colombiano difere do brasileiro, tal como argumentei em outro trabalho, porque a limitação dos poderes do executivo se dá em relação à violação de direitos da população e não em relação a disputas políticas internas (Avritzer, 2017). No entanto, essa posição foi sendo ampliada nas limitações impostas à reeleição durante o governo Uribe. Por fim, temos o caso recente do Peru, que parece o mais claro de politização do poder judicial. Ali, a Suprema Corte sacou do poder um presidente legitimamente eleito. Assim, Brasil, Peru e Colômbia, entre outros países da América Latina, mostram uma relação entre mudanças no poder judiciário e degradação democrática. Essa mudança está ligada ao fato de que o poder judiciário, dependendo do desenho por ele adquirido, entra abertamente nas disputas políticas, removendo governantes. É o que tem acontecido no Brasil e no Peru e, em menor medida, na Colômbia. Desse modo, uma estrutura de poder que deveria fundamentalmente estar ligada à ampliação de direitos torna-se parte da polarização política, tornando ainda mais instáveis as democracias em um momento que, tal como mostramos acima, existe uma forte desconfiança no sistema político e na própria democracia. Ou seja, o problema dos fundamentos legais da democracia continua não resolvido, mesmo nos casos em que há um aumento das prerrogativas do poder judiciário. Esse aumento não parece ser capaz de fornecer uma ancoragem legal ao sistema democrático. Pelo contrário, ele se incorpora na própria lógica da desdemocratização. CONCLUSÃO: EM BUSCA DE UMA CONCEPÇÃO DE CRISE DA DEMOCRACIA Foi possível associar neste capítulo a discussão analítica sobre crise da democracia com uma análise especifica sobre como a crise tem se desenvolvido na América Latina. O ponto de partida foi argumentar que existem diferentes tipos de crise da democracia e que a diferenciação deve estar ligada à trajetória democrática anterior nos países. Assim, se estamos de acordo com Mounk e
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Foa acerca do fim de uma concepção “de estrada de mão única” para se pensar a democracia no mundo anglo-saxão, devemos, por outro lado, pensar em formas de diferenciação do fenômeno de acordo com a dependência anterior da trajetória. Assim, de fato, no período de ascensão, a confiança na democracia cresceu tanto em democracias antigas como nas novas, porém a existência de níveis diferenciados de apoio à democracia nos mostram que a trajetória posterior também deve ser diferenciada. Tentamos, ao longo deste texto, com base tanto em trabalhos clássicos como o de Charles Tilly, quanto em trabalhos mais recentes como o de Yasha Mounk, construir uma diferenciação no interior do processo de crise da democracia. Para isso, foi necessário qualificar o conceito de crise proposto por Przeworski (2019). Se o autor está correto em apontar a crise enquanto uma situação indefinida e que leva a algum desfecho, ele peca em buscar padronizar regularidades sociais no que diz respeito à confiança na democracia. Foi nesse sentido que apontamos a importância de entender padrões de apoio à democracia, identificando regularidades e particularidades dos casos latino-americanos. No que diz respeito a regularidades, a queda da confiança da democracia muda a relação entre sistema político e cidadania. A cidadania não mais vê a democracia como o único jogo na cidade e a democracia nos países anglo-saxões como uma rua de mão única. Todavia, o fenômeno mais preocupante ocorre nas novas democracias, nas quais a erosão do apoio à democracia gera fenômenos mais complexos, como perda de direitos e forte politização do sistema judiciário. São esses fenômenos que recolocam uma categoria fundamental de análise no campo analítico, a desdemocratização. Esse parece ser o fenômeno pelo qual os países da América Latina vêm passando e em relação ao qual as análises existentes são insuficientes. Tentamos mostrar os seus elementos principais ao conectar os modelos analíticos da crise das democracias consolidadas com um modelo analítico da crise das novas democracias. Se a crise existe nos dois casos, ela produz consequências radicalmente diferentes em cada um deles e a desdemocratização está na ordem do dia na América Latina.
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PARTE I DIREITOS, PARTICIPAÇÃO E INCLUSÃO EM CRISE
Capítulo 2 Crise da Democracia, Neoliberalismo e Protestos: Enquadramentos de Desigualdade Econômica e Serviços Públicos de Qualidade em Occupy Wall Street e em Junho de 20131 Letícia Birchal Domingues INTRODUÇÃO Processos políticos da segunda metade dos anos 2010 têm chamado a atenção de cientistas políticos quanto à possibilidade de deterioração democrática (Przeworski, 2019; Levitsky e Ziblatt, 2018; Runciman, 2018; Mounk, 2018). Democracias tidas como estáveis correm o risco de se desfazer por dentro, como mostrou a chegada eleitoral de Trump à presidência dos EUA. Democracias que caminhavam para a consolidação também têm sofrido retrocessos, como nos casos da Hungria, da Turquia, das Filipinas, da Polônia e do Brasil. Os fenômenos são multifacetados e têm especificidades locais, contudo o problema da crise da democracia liberal está colocado para diversos países e há elementos comuns entre eles. Considera-se, então, que um modelo específico de democracia, o da democracia liberal, que vinha como referência para os 1
Agradeço ao prof. Leonardo Avritzer pelas considerações de versões anteriores do texto, conforme apresentado e discutido na disciplina Crise da democracia: entre teoria global e aspectos locais, ministrada por ele e Priscila Carvalho no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG em 2020/1. Agradeço, também, ao CNPq pelo apoio no projeto nº 423218/2018-2, coordenado pelo prof. Ricardo Fabrino Mendonça, do qual esta pesquisa faz parte.
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países ocidentais e para a ciência política, tem estado em crise e outros modelos têm angariado apoio da população, como as propostas populistas e autoritárias (Mounk, 2018). O contexto de tal crise será caracterizado como um mundo regido pela racionalidade neoliberal, a qual esvazia a política de seus sentidos democráticos e da busca da igualdade, substituindo-os pela racionalidade econômica (Brown, 2019; Brown, 2015; Brown, 2006; Dardot e Laval, 2016). Esse cenário é, ainda, composto por uma crise fiscal sistêmica, agravada pela crise financeira de 2007-2008 e pela adoção de medidas de austeridade. A crise fiscal, ao cabo, diminui a capacidade de Estados desenvolverem políticas públicas (Blyth, 2017; Offe, 2013). Em uma disparidade de poderes entre Estado e mercado, as instituições democráticas parecem perder capacidade operacional, sendo esses limites percebidos pela população. É nesse contexto que, desde a crise financeira de 2007-2008, um ciclo global de protestos tomou ruas, redes e praças públicas de diversos países em oposição ao neoliberalismo, suas políticas de austeridade e o avanço da precarização do trabalho (Della Porta, 2015; Dean, 2016; Braga, 2017). Contudo, pouco se tem debatido sobre tais protestos na literatura a respeito da crise das democracias contemporâneas. De fato, protestos podem ser bastante rotineiros nas democracias, por serem um dos recursos “que as pessoas comuns têm contra opositores mais bem equipados ou Estados poderosos” (Tarrow, 2009, p. 19). Ainda assim, argumenta-se pela importância de se compreender o referido ciclo global de protestos para a caracterização e análise da crise da democracia liberal contemporânea. Isso porque esses protestos foram marcados por uma forte ambivalência. De um lado, as manifestações que irromperam ao redor do globo conseguiram denunciar os limites democráticos e os prejuízos do neoliberalismo para a população. De outro, suas práticas são insuficientes para reformar ou fortalecer o espaço institucional da democracia liberal, pois ela também está sendo questionada como elemento que permitiu os avanços das desigualdades socioeconômicas em um neoliberalismo avançado. Portanto, busca-se contribuir com uma reflexão a respeito de tal ambivalência a partir de dois protestos: o Occupy Wall Street,
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de 2011, nos EUA, e Junho de 2013, no Brasil. Para cada um, será abordado um enquadramento formulado pelos manifestantes locais: no estadunidense, o da desigualdade econômica; no brasileiro, o da qualidade dos serviços públicos. Quer-se compreender como os dois enquadramentos propostos por tais eventos trazem, simultaneamente, a potência de repolitização de um sistema esvaziado pelo neoliberalismo e seu limite, por não conseguir instrumentos que sustentem a efetivação de tais demandas. Trata-se, então, de um estudo de caráter teórico, de forma que a análise dos casos se dará por meio de literatura secundária. Além desta introdução, o texto está organizado em mais três seções e as considerações finais. São elas: (i) crise de democracia liberal e o descontentamento social; (ii) neoliberalismo e o esvaziamento da política democrática; (iii) protestos e os enquadramentos da desigualdade econômica e dos serviços públicos. 1. CRISE DA DEMOCRACIA LIBERAL E DESCONTENTAMENTO SOCIAL A crise da democracia liberal envolve elementos das instituições políticas (Levitsky e Ziblatt, 2018; Przeworski, 2019), que são influenciados também pelos descontentamentos sociais (Mounk, 2018; Runciman, 2018). Assim, essa seção propõe analisar a natureza dos descontentamentos dos cidadãos em um cenário de fragilidade das próprias instituições democráticas. Isso auxiliará na compreensão das demandas levantadas nos protestos e os papeis que os cidadãos podem ter para uma possível reestabilização democrática. Afinal, a existência de descontentamentos é condição necessária, mas não é suficiente para que manifestações irrompam (Tarrow, 2009; Della Porta, 2015). Levitsky e Ziblatt (2018) propõem uma análise do processo de deterioração democrática centrada nas instituições estatais. Eles focam no papel dos partidos como guardiões contra candidatos populistas que podem colocar em risco a democracia, caso cheguem a posições centrais no sistema político. Os autores afirmam ser errado achar que “o destino de um governo esteja nas mãos de seus cidadãos. Se o povo abraça valores democráticos, a
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democracia estará salva. Se o povo está aberto a apelos autoritários, então, mais cedo ou mais tarde, a democracia vai ter problemas” (Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 21)2. Para eles, isso seria esperar demais da própria democracia. Nessa abordagem, importam menos os eleitores do que o funcionamento partidário, que deve selecionar de antemão os candidatos, isolando e derrotando forças extremistas e autoritárias. Para tanto, os partidos e líderes precisam lidar com uma tensão na qual o excesso de confiança tanto nos “guardiões”, quanto na “vontade popular” pode ser antidemocrático. No primeiro caso, os partidos podem ignorar suas bases e indicar candidatos que não representam o povo; no segundo, pode-se chegar na eleição de um demagogo. Ambos os cenários ameaçam a democracia (Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 37). Para os autores, portanto, o enfoque para compreender a crise da democracia deve estar nas instituições políticas e em suas regras formais e informais. Quanto às últimas, frisam-se as regras de tolerância mútua e reserva institucional – as quais também estão sob ameaça –, que auxiliam na manutenção do sistema de freios e contrapesos entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 98). Przeworski (2019) também tem uma análise voltada para as instituições políticas, ainda que insira a ocorrência de manifestações e tumultos como um dos elementos que podem desestabilizá-las. O autor analisa três dimensões da crise democrática: econômica, política em sentido amplo e de governo em sentido estrito. Sua conclusão a respeito dos padrões de sobrevivência e queda das democracias diz que: A economia importa: tanto a renda na consolidação democrática, quanto o subsequente crescimento econômico distinguem nitidamente os resultados. A desigualdade, funcional e domiciliar, também importa. Democracias presidenciais têm maior tendência a cair, por serem particularmente vulneráveis a crises de governo. Finalmente, enquanto tumultos e greves enfraquecem democracias, enquanto elas não forem violentas, nós não 2
As citações originais do inglês foram traduzidas pela autora.
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devemos temer que manifestações contra o governo devam enfraquecê-las (Przeworski, 2019, p. 38).
Especificamente no que diz respeito a protestos e a demonstrações públicas, comparando casos que resultaram no colapso democrático e casos que não, o autor diferencia a presença de pessoas nas ruas, em manifestações antigoverno, de outras demonstrações mais tumultuosas e com violência física. Enquanto as primeiras parecem fazer parte da dimensão cotidiana das democracias e não precisam ser um indicativo de crise, as últimas parecem enfraquecê-las (Przeworski, 2019, p. 36-37). Diferente do foco institucional de Przeworski (2019) e Levitsky e Ziblatt (2018), outros autores incorporam de forma mais orgânica o descontentamento social em suas análises sobre a crise da democracia, ainda que não realizem uma análise específica dos protestos. É o caso de Mounk (2018) e Runciman (2018), que serão apresentados a seguir. Entende-se que a incorporação de uma perspectiva dos descontentamentos sociais que perpassam a crise democrática é importante para uma análise dos enquadramentos e reivindicações das manifestações que irromperam frente aos avanços do neoliberalismo e de sua crise. Mounk (2018, p. 20) identifica que “o profundo desencantamento com nosso sistema político coloca um perigo existencial para a própria sobrevivência da democracia liberal”. Parte constitutiva desse fenômeno é o aumento da desconfiança da população quanto às instituições e aos políticos, indicando que a democracia não é o único sistema político passível de apoio popular atualmente. Nesse sentido, sua análise da pesquisa de opinião do World Values Survey traz evidências de tal desencantamento. A partir dela, o autor conclui que os cidadãos ao redor no mundo estão menos comprometidos com a democracia e mais abertos a alternativas autoritárias. Os jovens estão ainda mais críticos à democracia e apoiam mais as perspectivas de extrema-esquerda e de extrema-direita (Mounk, 2018, p. 120). Para compreender esse fenômeno, Mounk (2018, p. 15 ss.) levanta três mudanças que ocorreram nas democracias liberais tidas como “consolidadas” nos últimos anos e medidas que devem
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ser adotadas diante do novo cenário. Primeiro, não existe mais a confiança e o otimismo advindos de uma melhora rápida nas condições de vida, devendo-se reformar a economia em níveis local e global. Segundo, não há mais a dominação de um grupo racial ou étnico, sendo necessário ampliar as noções de pertencimento no Estado contemporâneo. Terceiro, a comunicação em massa não é mais controlada por elites financeiras e políticas, devendo ser pensadas novas formas de moldar as mensagens comunicadas virtualmente. Inseguranças e insatisfações diversas parecem advir dessas mudanças e os cidadãos começam a se perguntar se a própria democracia liberal está entregando suas promessas. Isso porque haveria uma disparidade entre as promessas da democracia liberal e o excesso de poder econômico que distorce sua capacidade de cumprir com o esperado: Enquanto o dinheiro puder facilmente comprar poder, muitos cidadãos, compreensivelmente, sentirão que a igualdade política continua a ser uma promessa vazia. E, enquanto a necessidade econômica constranger radicalmente os tipos de escolhas que eles podem fazer, muitos cidadãos, compreensivelmente, sentirão que a liberdade que lhes foi prometida não se materializou (Mounk, 2018, p. 130).
Afinal, segundo Mounk (2018, p. 129-131), o apoio à democracia parece advir mais dos bons resultados que o sistema trouxe com a garantia de paz, de estabilidade e de ganhos econômicos do que de seus princípios fundantes de liberdade e de igualdade. Dessa forma, Mounk (2018) identifica uma deterioração da democracia liberal em seus dois componentes constitutivos, sendo expressão de duas faces de uma mesma moeda. De um lado, a ascensão de uma democracia iliberal, na qual o que é identificado pelos líderes populistas como “vontade do povo” ganha proeminência sobre as estruturas de direitos e garantias de minorias. De outro lado, o liberalismo não democrático, no qual elites tomariam controle do sistema político, tornando-o menos responsivo aos interesses das pessoas, ainda que mantenham as instituições de direitos com algum funcionamento (Mounk, 2018, p. 13-14).
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Por sua vez, Runciman trata da aproximação entre o surgimento de alternativas populistas em democracias e a lógica da desconfiança que se expressa, inclusive, pelo crescimento de teorias da conspiração. A ideia populista de que “a democracia foi roubada do povo pelas elites” (Runciman, 2018, p. 72) opera com base na retórica conspiratória que, quando se torna governo, espalha-se para o sistema político como um todo. “Ganhando ou perdendo, todos os partidos passam a considerar que a democracia encobre conspirações contra ele” (Runciman, 2018, p. 73). Segundo o autor, a crise democrática contemporânea tem essas características de desconfiança sistêmica. No caso das democracias tidas como “consolidadas”, porém, ele argumenta que existe pouco espaço para o rompimento desse ciclo de desconfiança, que dependeria da realização de reformas que promovessem avanços nas próprias democracias (Runciman, 2018, p. 77-79). Contudo, parece haver um esgotamento de espaço para tal crescimento: A reação populista que vem acontecendo nas democracias estabelecidas ocorre em lugares que, já faz um bom tempo, fizeram o melhor que podiam com a democracia. As pessoas estão enfurecidas com as instituições que se mostram incapazes de dar respostas melhores, não porque são subdesenvolvidas, mas porque estão cansadas (Runciman, 2018, p. 79-80).
O autor reconhece que existem direitos a avançar ou privilégios a quebrar, mas argumenta que aqueles que ainda não foram incluídos no sistema têm ficado cada vez mais fragmentados. Ao reivindicarem seus direitos, vê-se uma reação da maioria que se sente traída em benefício de poucos (Runciman, 2018, p. 81). Além disso, nesse exaurimento, parece haver mais tentativas de retomar aquilo que se perdeu – Estado de Bem Estar Social, direitos trabalhistas, segurança, liberdade, entre outros – do que de buscar aquilo “que nunca chegamos a tentar” (Runciman, 2018, p. 80). A isso se soma o problema da persistência da desigualdade – de renda e de riqueza – nas democracias ocidentais, que chega a níveis apenas comparáveis a meados do século XIX nos EUA (Runciman, 2018, p. 86).
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É preciso perguntar se o caminho das reformas irá encontrar espaço o suficiente para reestabilizar a confiança nesse sistema que tem encontrado limites em si mesmo. “Pequenos avanços são possíveis. Mas um grande progresso é mais difícil e sempre pode ser descarrilado pelas reações aos pequenos avanços. É possível que estejamos vivendo um impasse” (Runciman, 2018, p. 88). Tal esgotamento do sistema democrático também seria caracterizado por um esvaziamento de seus sentidos, de forma que Runciman (2018, p. 53-55) afirma haver uma dimensão de espetáculo na democracia atual: cidadãos são colocados no lugar de espectadores convocados, vez ou outra, para aquiescer ou não a alguma proposta da qual não fizeram parte da construção. Até o próprio Estado pode ter papel pouco significativo quanto ao conteúdo ou execução de tais propostas – por vezes limitado por forças econômicas que controlam elementos centrais de sua ação. Frente a tal esvaziamento, demandas sociais por mais democracia podem acabar tendo efeito oposto, com resultados que enfraquecem as instituições existentes. A partir do exposto é possível perceber o descontentamento social como parte da crise da democracia liberal, ficando evidenciado um ciclo vicioso. As instituições políticas, esvaziadas, não conseguem se proteger de seu próprio descrédito. Os partidos e sistemas de freios e contrapesos não parecem conseguir responder ao crescimento de práticas que deterioram a democracia, produzindo candidatos que ameaçam o cerne de seu funcionamento institucional. A população, de outro lado, também não se mostra apta a defender essas mesmas instituições, pois elas estão menos responsivas a seus anseios devido ao esvaziamento democrático. Sendo parte do ciclo vicioso, tem-se uma contradição em se procurar nas próprias instituições que estão ruindo os instrumentos para salvá-las. Parte desse fenômeno de esvaziamento democrático está relacionado com a disparidade na relação entre economia e democracia, com um domínio da primeira sobre a segunda (Mounk, 2018; Runciman, 2018). Sob a racionalidade neoliberal (Brown, 2006, 2015, 2019; Dardot e Laval, 2016) e a perda de força dos Estados em prover políticas públicas (Offe, 2013; Blyth, 2017), a crise da
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democracia liberal se caracteriza por uma crise de capacidade de provimento de direitos e serviços, conforme se abordará na seção seguinte. 2. NEOLIBERALISMO E ESVAZIAMENTO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA Pensar o neoliberalismo como racionalidade permite compreender suas implicações complexas em diversos aspectos da vida, para além de políticas econômicas específicas. Brown (2006, p. 693), seguindo Foucault, afirma que “uma racionalidade política é uma forma específica de razão política normativa que organiza a esfera política, práticas de governança e cidadania. Uma racionalidade política governa o dizível, o inteligível e os critérios de verdade nesses domínios”. A racionalidade neoliberal estende a lógica da economia capitalista para todas as esferas da vida, de forma que o ser humano refeito como capital humano se torna “tanto um membro da firma, quanto uma firma nele mesmo, e em ambos os casos [é] apropriadamente conduzido pelas práticas de governança próprias para as firmas” (Brown, 2015, p. 34). Também dialogando com Foucault, Dardot e Laval (2016, p. 17) afirmam que o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, definindo-o “como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”. Como racionalidade, o neoliberalismo transforma elementos constitutivos da democracia em elementos econômicos. Não há exatamente subordinação ou domínio corrupto sobre os governos, mas uma reconfiguração das instituições e dos sujeitos em termos econômicos, de forma que a própria democracia liberal pode não sobreviver a tal mudança de lógica (Brown, 2015, p. 17). Em seu aspecto subjetivo, Brown (2016, p. 33-34) argumenta que o homo oeconomicus neoliberal é distintivo em, ao menos, três aspectos. Primeiro, que os sujeitos são homo oeconomicus em todas as situações e em todos os lugares. Segundo, sua forma é o capital humano, baseado na competição e valorização próprias. Terceiro,
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seu modelo é o do capital financeiro e de investimentos, não o produtivo ou empreendedor. Quanto ao aspecto político, “a neoliberalização transpõe princípios democráticos de justiça para um idioma econômico, transforma o próprio estado em um gerente na nação sob o modelo da firma [...] e esvazia muito da substância da cidadania democrática e até da soberania popular” (Brown, 2015, p. 35). Isso significa que “compromissos do estado democrático com a igualdade, liberdade, inclusão e constitucionalismo estão agora subordinados ao projeto de crescimento econômico, posicionamento competitivo e aumento de capital” (Brown, 2015, p. 26). A autora argumenta que o neoliberalismo promove, ao mesmo tempo, um ataque à igualdade política e ao social, ambos fundamentos da democracia. Isso porque o neoliberalismo considera que quaisquer tentativas de regulação e redistribuição sociais seriam uma interferência no mercado e um assalto à liberdade de um sujeito atomizado. Com isso, a própria “dependência da democracia em relação à igualdade política também é alijada” (Brown, 2019, p. 39). E a garantia da igualdade política depende da justiça social, sendo o social compreendido como o espaço no qual os cidadãos podem ser reunidos e pensados como um conjunto, no encontro de diferenças e “em que as desigualdades historicamente produzidas se manifestam como acesso, voz e tratamento políticos diferenciados, bem como local em que essas desigualdades podem ser parcialmente corrigidas” (Brown, 2019, p. 38). Tanto os interesses do Estado, quanto do mercado deveriam ser contidos pelo interesse da igualdade política, algo que ocorre cada vez menos, devido ao esvaziamento da própria democracia (Brown, 2019, p. 37). Esses ataques parecem “gerar uma cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que constroem e legitimam formas antidemocráticas de poder estatal desde cima” (Brown, 2019, p. 39 – grifos no original). Do lado dos Estados, o neoliberalismo produz uma desidratação da democracia e do político para seus aspectos mínimos, como a manutenção das eleições, deixando a lógica do mercado substituir propostas de controle político e de redistribuição.
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Gestão, lei e tecnocracia no lugar de deliberação, contestação e partilha democráticas do poder: várias décadas dessa hostilidade multifacetada à vida política democrática geraram em populações neoliberalizadas, na melhor das hipóteses, uma desorientação generalizada quanto ao valor da democracia e, na pior, opróbio em relação a ela (Brown, 2019, p. 71).
Em meio a Estados dominados por interesses econômicos, o neoliberalismo acabou gerando uma cultura profundamente antidemocrática. Há uma ampliação de rancores, raivas e ressentimentos pela população, além de aumento de desigualdades e necessidades materiais. O social e o político, fundamentos democráticos, não são mais vistos como caminhos para o combate a tais distorções. Pelo contrário, há um niilismo que leva ao próprio descrédito quanto à necessidade de proteção desse caminho (Brown, 2019, p. 104-106). Ainda que não tratem do neoliberalismo como racionalidade política, outros autores têm buscado demonstrar como os Estados sob a ordem econômica neoliberal têm perdido sua capacidade de desenvolver políticas públicas, presos em dívidas e seguindo a cartilha da austeridade (Blyth, 2017; Offe, 2013). Blyth (2017) analisa a crise financeira global de 2007-2008 e a retomada das medidas de austeridade nos EUA e na Europa. Argumenta que a austeridade não apenas é incapaz de produzir os resultados esperados, como também gera piores impactos sobre a população mais pobre. O autor explicita que tal crise foi dos bancos e não uma crise da dívida soberana dos Estados. Isso porque ela se iniciou com o rompimento da bolha imobiliária nos EUA, com consequentes quebras de sistemas bancários em diversos países, sendo que os Estados nacionais acabaram por se responsabilizar pelas dívidas dos bancos. “Mas existe uma política de fazer parecer que é culpa dos Estados, de modo que aqueles que provocaram a bancarrota não tenham de pagar por isso. A austeridade não é apenas o preço da salvação dos bancos. É o preço que os bancos querem que alguém pague” (Blyth, 2017, p. 25). Com seus orçamentos prejudicados pelos resgates bancários, diversos países da Europa e os EUA passaram a promover a agenda
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da austeridade econômica, com cortes de gastos públicos. Contudo, as medidas de austeridade têm uma contradição inerente: quando adotadas em diversos países ao mesmo tempo, produzem efeito de contração econômica. Cortes de gastos implicam em uma redução de consumo e em consequente contração econômica. Quanto mais se tenta combatê-la por meio da receita da austeridade, maiores são os resultados de deflação (Blyth, 2017, p. 27). A promessa de crescimento depois do corte de gastos não se efetiva. O impacto distributivo disso é evidente. Os que estão na base da distribuição da renda, ou seja, aqueles que dependem de serviços e provimentos governamentais diretos e indiretos, são os que mais perdem com os cortes de gastos públicos: Em suma, quando se espera que os da base paguem desproporcionalmente um problema criado pelos do topo, quando os do topo fogem ativamente a qualquer responsabilidade pelo problema, atribuindo a culpa dos seus erros ao Estado, espremer os da base não só não produzirá receitas suficientes para resolver as coisas, como produzirá uma sociedade ainda mais polarizada e politizada, em que as condições para uma política sustentável de lidar com mais dívida e menos crescimento estão minadas. Populismo, nacionalismo e apelos ao regresso de “Deus e dinheiro” em doses iguais é o que a austeridade desigual gera, e a ninguém, nem mesmo aos do topo, isso beneficia (Blyth, 2017, p. 35-36).
Em sentido semelhante, Offe (2013) analisa as consequências políticas de um Estado enfraquecido pelo neoliberalismo e por uma crise fiscal endêmica. O Estado passa de agente taxador para um Estado endividado, que vive de empréstimos para ter alguma margem de manobra para ações (Offe, 2013, p. 213). Haveria uma inversão de assimetria: “mercados ditam a agenda e as restrições (fiscais) das políticas públicas, mas há pouco que as políticas públicas podem fazer, por sua vez, para restringir o reino e a dinâmica dos mercados cada vez mais expandidos” (Offe, 2013, p. 212 – grifos no original). Com isso, seria possível dizer que há “uma lacuna dupla de controle: governos perdem controle sobre a taxação e o setor financeiro, e, como resposta, os cidadãos perdem
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sua confiança de que a ideia de controle democrático sobre as políticas de governo tem credibilidade” (Offe, 2013, p. 214 – grifos no original). Nessa situação de esvaziamento de poderes reais do Estado, ocorre uma diminuição da credibilidade de suas instituições e as pessoas, compreendendo o enfraquecimento, deixam de participar da política democrática. Porém, mais do que uma apatia, o autor visualiza quatro possíveis consequências do diagnóstico. A primeira, ele chama de uma política não institucional, a do “faça você mesmo”, pela sociedade civil, no qual ele insere o movimento dos Indignados, por exemplo. Como forma de substituição dos serviços públicos de má qualidade, os indivíduos realizariam ações, como: consumo crítico; boicotes; organizações de movimentos; doações; fundações e ações de caridade (Offe, 2013, p. 215). A segunda consequência seria as irrupções de violência de massa em metrópoles, como ocorreram nas mobilizações de Cairo em 2011. Elas são vistas como “formas de encobertar a liberação de instintos de massa ávidos e agressivos” (Offe, 2013, p. 215). A terceira seria o crescimento do populismo de direita, marcado por elementos como o fortalecimento das fronteiras nacionais, a intolerância aliada às formas agressivas de negar a diferença, e a dependência de líderes carismáticos e empreendedores políticos de sucesso (Offe, 2013, p. 215-216). A quarta e última consequência seria a busca intensa de partidos e cientistas sociais por soluções que aprofundem e melhorem a participação política, mas que não atacariam o cerne da questão, por virem de perspectivas procedimentais e institucionais (Offe, 2013, p. 216). A partir do exposto, é possível perceber que o Estado enfraquecido pela lógica neoliberal não consegue dar as respostas para as causas de indignação da população. A população expressa tal indignação esperando ser atendida por um Estado do qual desconfia. A encruzilhada da democracia, então, é demonstrar seu valor institucional, ainda que tenha poucos recursos em mãos: afinal, eles estão corroídos por décadas de avanços neoliberais e a mais recente adoção de políticas de austeridade. Protestos irrompem ao redor do mundo desde a crise financeira de 2007-2008 expondo tais contradições, conforme será analisado a seguir.
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3. PROTESTOS E OS ENQUADRAMENTOS DA DESIGUALDADE ECONÔMICA E DOS SERVIÇOS PÚBLICOS O ciclo global de protestos que seguiu a crise financeira de 2007-2008 trouxe diversos desafios para a literatura sobre ação coletiva contenciosa, uma vez que foi caracterizado por uma organização frouxa, horizontalizada e baseada em redes sociais digitais de um lado (Nunes, 2014; Bennett e Segerberg, 2012; Silva, 2014; Gomes, 2016; Dean, 2016), e, de outro, utilizou-se de grandes manifestações disruptivas e da ocupação do espaço público com a proposta de formar novas maneiras de convívio e de democracia direta, tendo como referência ideias de prefiguração política (Mendonça, 2017; Mendonça e Costa, 2018; Ortellado, 2013; Dean, 2016; Gibson, 2013; Souza, 2015). Ruas e redes entrelaçadas viram uma profusão de sujeitos e demandas se espalhando pelo globo, dessa vez muito menos dependentes de organizações políticas preexistentes e mais baseadas em indivíduos e articulações de identidade coletiva fracas (Bennett e Segerberg, 2012; Mendonça, 2017; Souza, 2015; Silva, 2014). Para alguns autores, as mudanças no capitalismo contemporâneo advindas dos avanços neoliberais são importantes para a interpretação dos acontecimentos, inclusive no que diz respeito às bases sociais dos protestos (Della Porta, 2015; Dean, 2016; Tejerina e Perugorría, 2012; Braga, 2017; Singer, 2013). Com base em dados demográficos do Occupy Wall Street dos Estados Unidos, do Parque Gezi na Turquia e de Junho de 2013 no Brasil, Dean afirma que “as revoltas da última década são a luta de classes daqueles proletarizados sob o capitalismo comunicativo” (Dean, 2016, p. 16). Segundo esses dados, havia uma presença grande, nas ruas, de jovens com boa educação e de desempregados ou subempregados. Assim, “protestos de estudantes, dívidas, moradia e educação devem ser entendidos em termos de política de classe daqueles que se deparam com a proletarização e não como políticas separadas ou baseadas em demandas específicas” (Dean, 2016, p. 18). De forma semelhante, Della Porta identifica que os protestos globais ocorridos no fim dos anos 2000 e início dos anos
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2010 são parte de “um movimento anti-austeridade, mobilizado no contexto de uma crise do neoliberalismo” (Della Porta, 2015, p. 15). Segundo a autora, uma nova classe seria a agente principal dos protestos: “o precariado social, jovem, desempregado, ou apenas empregado em tempo parcial, sem proteção e, frequentemente, com boa educação” (Della Porta, 2015, p. 16). Contudo, se comparados aos ciclos anteriores, esses protestos teriam tido um diferencial, o de conseguirem uma coalizão de classes mais ampla, tendo como característica comum o impacto das políticas de austeridade em diversas classes (Della Porta, 2015, p. 70). Ela seria formada “por trabalhadores e usuários de serviços públicos. Trabalhadores sociais e usuários do sistema de bem-estar social estiveram na frente, frequentemente em mobilizações comuns pela defesa da saúde ou da educação públicas” (Della Porta, 2016, p. 75). A análise dos protestos brasileiros deve tomar cuidados em relação ao contexto político e econômico local, uma vez que em 2013 políticas de austeridade ainda não tinham sido implementadas no país e a crise econômica viria apenas em 2014. Ainda assim, Tavares e Benedito (2018, p. 183) demonstram a existência de uma política fiscal de caráter neoliberal nos governos petistas, especialmente devido à priorização máxima dos gastos orçamentários para o pagamento da dívida pública; ao aprofundamento da regressividade do direito tributário; ao insulamento do controle da política monetária, realizada pelos setores bancários e financeiros; e ao desenvolvimento de projetos de infraestrutura impondo sacrifícios, como etnocídios e ecocídios, para a prevalência do mercado. De forma semelhante ao pontuado sobre outros protestos do ciclo global, Singer (2013) e Braga (2017) também identificam o trabalhador precarizado como base social dos protestos de Junho de 2013. Singer define as bases sociais dos protestos de Junho de 2013 no Brasil como uma combinação de uma classe média tradicional e o que ele denomina de “novo proletariado”: “trabalhadores, em geral jovens, que conseguiram emprego com carteira assinada na década lulista (2003-2013), mas que padecem com baixa remuneração, alta rotatividade e más condições de trabalho” (Singer,
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2013, p. 27). Para o autor, essa composição social heterogênea se justificaria por dois motivos de caráter material: o aumento do custo de vida dos setores médios e o aprofundamento das desigualdades nos centros hiperurbanizados. O primeiro teria levado a classe média tradicional às ruas e o segundo teria levado para lá o novo proletariado, que encontrava mais barreiras para suas condições de vida nas cidades. Por sua vez, Braga identifica um esgotamento do modelo petista de desenvolvimento apoiado no consumo, combinado com o aprofundamento da crise da globalização para justificar a eclosão de Junho de 2013 no Brasil. Assim como Singer, ele reconhece, no período petista, a entrada de milhões de trabalhadores em um mercado formal de trabalho que se caracterizava pela alta rotatividade, terceirização, flexibilidade e elevação nos acidentes de trabalho (Braga, 2017, p. 225 ss.). Para o autor, seria essa base social precarizada que levou suas reivindicações às ruas em Junho, demandando mais direitos sociais face aos limites da política petista. Com isso, é possível situar tanto o Occupy Wall Street, quanto Junho de 2013 como protestos que, com suas particularidades locais, respondem às desigualdades geradas pelo neoliberalismo enquanto racionalidade e política econômica. Ao demandarem maior igualdade econômica, no Occupy Wall Street, e melhores serviços públicos, em Junho de 2013, os manifestantes expressam o esgotamento que veem na democracia a serviço do neoliberalismo. Apesar da desconfiança política, essas demandas são direcionadas ao Estado (Braga, 2017), de forma que há alguma expectativa que este responda a tais insatisfações. Contudo, talvez não se espere que isso ocorra com o mesmo funcionamento institucional que levou à própria crise, afinal os próprios modelos de democracia existentes estavam em questão durante esses protestos. 3.1. O Occupy Wall Street e o enquadramento da desigualdade econômica Como já apresentado, os EUA foram o epicentro da crise financeira de 2007-2008 e as medidas tomadas para a saída da
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crise envolveram o resgate dos bancos pelo Estado, enquanto a população do país se viu deixada à própria sorte (Blyth, 2017). É nesse contexto de insatisfação que o Occupy Wall Street irrompe em 2011, em Nova Iorque. Tendo aprendido com a experiência da Praça Tahrir, no Egito, os manifestantes organizaram uma ocupação no Zuccotti Park, próximo à Wall Street. A tática da ocupação do espaço público, no centro simbólico do capital financeiro, foi usada para demonstrar sua insatisfação perante a crise econômica e o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas dela advindas. Os manifestantes apontavam, assim, as contradições da prioridade do governo em salvaguardar os bancos e o grande capital em detrimento da população (Chomsky, 2012; Harvey et al., 2012; Blyth, 2017). Logo se espalharam outras ocupações de praças e espaços públicos por todo os EUA e mesmo pelo mundo (Harvey et al., 2012). A experiência autogestionária do espaço e da organização do movimento, construindo formas participativas e não hierárquicas, com a promoção de formatos de democracia direta e decisões por consenso, guiou a forma prefigurativa de contestação política do Occupy, colocando o movimento em diálogo com práticas e princípios anarquistas (Gibson, 2013; Gordon, 2017). A prefiguração é um princípio que guiou várias das experiências autogestionárias e de ocupação do espaço público no ciclo global de protestos – inclusive Junho de 2013 (Ortellado, 2013; Domingues, 2019). A “‘política prefigurativa’ é, agora, um termo familiar para o ethos de unidade entre meios e fins, distintiva de movimentos sociais contemporâneos” (Gordon, 2017, p. 2). Na tradição militante, a prefiguração compreende a existência de uma forma de path dependence entre as práticas revolucionárias e seus resultados: aquilo que se faz hoje cria as direções do caminho a se seguir, de forma que as decisões tomadas acabam por determinar o conteúdo e a forma da revolução (Gordon, 2017, p. 9). Dessa forma, ao propor outras formas de tomada de decisão e de gestão do espaço compartilhado, mais baseadas na horizontalidade, democracia direta e na autodeterminação individual, os manifestantes dão sinais de um distanciamento das formas repre-
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sentativas de política, características do modelo de democracia liberal existente. O que parece ser o maior mérito do Occupy depois de nove anos de sua ocorrência foi a consolidação do que se chamou aqui de “enquadramento da desigualdade econômica”. A partir de seu famoso slogan “nós somos os 99%” (We are the 99%), o movimento conseguiu avançar na denúncia da desigualdade existente entre a imensa maioria da população (os 99%) e o topo (o 1%). O slogan foi uma síntese de crítica ao neoliberalismo e uma referência simbólica para os movimentos contestatórios que o seguiram em diversas “ocupas” que se espalharam pelo mundo nesse ciclo global de protestos (Gibson, 2013; Harvey et al., 2012; Nwanevu, 2020). Vale frisar que, em 2010, o 1% do topo da distribuição de renda dos EUA tinha um quarto do rendimento do país (Blyth, 2017, p. 33). Dessa forma, tal slogan foi capaz de recolocar a questão da desigualdade econômica na agenda política dos EUA3. Ao criar um grande guarda-chuva – dos 99% –, o Occupy conseguiu sintetizar a insatisfação perante a relação entre poderes político e econômico em detrimento das diversas demandas sociais (Chomsky, 2012; Harvey et al., 2012; Gibson, 2013). Considerando a centralidade da igualdade como fundamento da democracia, conforme apresentado em Brown (2019), retomar o enquadramento da desigualdade econômica em um movimento massivo de protesto é um enfrentamento à racionalidade neoliberal, seja em termos do enquadramento discursivo, seja na busca prática de prefigurar relações mais igualitárias e processos decisórios de democracia direta. Se os elementos assembleísticos, de ocupação do espaço público e de deliberação horizontalizada têm limites por se restringirem às pessoas que passam pela experiência da ocupação, a denúncia da desigualdade conseguiu ultrapassar as barreiras da experiência. 3
Protestos como os Fight for 15 de 2012 seguiram o Occupy na denúncia das desigualdades econômicas. Nos anos seguintes, os EUA também viram irromper uma série de manifestações relacionadas a demandas de gênero e raça, como as Women Marches e o Black Lives Matter. Pensando a interseccionalidade desses temas, tratamos de tais protestos em Mendonça e Domingues (2020).
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É um sinal do triunfo da razão neoliberal o fato de que, nas décadas recentes, a gramática do social, incluindo sua importância para a democracia, tenha desaparecido largamente das visões da esquerda (e não apenas da direita) para o futuro. Nos Estados Unidos, pode-se creditar ao Occupy Wall Street o mérito de tê-la forçado de volta ao debate público (Brown, 2019, p. 66).
Por outro lado, o Occupy foi criticado por sua abrangência, compreendida pelos críticos como falta de foco, e por uma dificuldade de tornar suas demandas mais sustentadas no tempo, em organizações ou, mesmo, levá-las para a política institucional. É o que entende Dean (2016) ao analisar o excesso de individualismo nas assembleias realizadas no Occupy. Nesses espaços de deliberação, por vezes os indivíduos se expressavam como superiores à coletividade e acabavam por desconstituí-la e por deixar ao interesse de cada um a consecução dos eventos de protesto: O individualismo de suas correntes democráticas, anarquistas e horizontalistas minou o poder coletivo que o movimento estava construindo. Fazendo com que a ação política dependesse da decisão individual, a ‘teologia do consenso’ fragmentou a unidade provisional da multidão de volta para singularidades desempoderadas (Dean, 2016, p. 9).
A autora trata de uma dupla faceta da dimensão individualizante dos protestos que merece atenção: ela seria parte tanto de uma construção de um capitalismo comunicativo que hegemoniza o mundo contemporâneo, quanto a resultante de uma construção “realista” da esquerda, em que a identidade e a fragmentação superaram as condições de emancipação coletivas (Dean, 2016, p. 27). A multidão vista no Occupy e em outros protestos globais traria como elemento de força a possibilidade de instauração coletiva de uma abertura política. No entanto, ela não teria a capacidade organizativa de manter tal abertura e construir alternativas políticas (Dean, 2016, p. 22). A compreensão de Dean está afinada com a ambiguidade que se busca abordar aqui. Novas formas de sociabilidade e organização políticas horizontalizadas são experimentadas pelos
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manifestantes, que levantam temas e enquadramentos críticos ao neoliberalismo e ao esvaziamento da democracia liberal. Porém, não encontram caminhos em espaços da política formal dessa mesma democracia liberal para sustentar tais enquadramentos e práticas. 3.2. Junho de 2013 e o enquadramento dos serviços públicos Junho de 2013 tem sido foco de diversas análises e interpretações, existindo vasta gama de literatura sobre suas causas, sentidos, práticas e consequências. Não pretendo passar aqui por essa literatura, algo que fiz de forma detalhada em Domingues (2019). Argumento apenas que a diversidade, o conflito e a dinamicidade são elementos constitutivos de Junho de 2013, sendo muito difícil estudá-lo em sua totalidade, ou mesmo considerá-lo um fenômeno estável e estático. Levantar o enquadramento da defesa dos serviços públicos para se pensar sobre Junho, então, é uma escolha de olhar para um pedaço fragmentário das manifestações multitudinárias que tomaram o Brasil em 2013. Esse olhar focado justifica-se, de todo modo, por contribuir para a compreensão de como esses protestos trazem à tona uma denúncia da falta de prioridade do Estado em prover serviços públicos para todos. As manifestações de Junho 2013 ocorreram no contexto da Copa das Confederações, evento preparatório para a Copa do Mundo de Futebol de 2014, para os quais amplos investimentos públicos foram realizados. As cidades, como importantes espaços no processo de acumulação no capitalismo globalizado, tornaram-se palco de competição internacional por investimentos (Harvey, 1989; Brenner, 2018; Maricato, 2014, p. 19). Todavia, os megaeventos esportivos são um mecanismo usado para garantir a entrada de capitais nessas cidades: “quem obtivesse o direito de sediar seus eventos teria uma justificativa de inquestionável popularidade para dispor de rios de dinheiro público em nome da modernização da cidade, alavancando negócios milionários para o setor privado” (Ferreira, 2014, p. 9). Porém, as demandas concretas das cidades não são priorizadas e, mesmo, os resultados
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econômicos para o próprio país são questionáveis4. “Do ponto de vista financeiro, até hoje não se mostrou, na ponta do lápis, o resultado final da equação entre os montantes de dinheiro público investidos, os custos da manutenção dos equipamentos após os eventos e os resultados comerciais efetivos no turismo e no comércio” (Ferreira, 2014, p. 10). Nesse contexto, foi possível perceber uma inversão de prioridades políticas: foi colocado em primeiro plano o gasto público em obras de infraestrutura voltadas para o megaevento, em detrimento de outras demandas mais urgentes. Apesar dos investimentos nas cidades terem tido uma retórica de inclusão social, o que se viu foi “uma tendência geral de expulsão dos pobres da cidade, com a valorização imobiliária vinculando-se à distinção de classe” (Maricato, 2014, p. 18) e uma desregulamentação da normativa urbanística, seguindo a agenda das renovações urbanas da globalização neoliberal (Maricato, 2014, p. 18; no mesmo sentido, Maricato, 2013). A questão das obras de infraestrutura também levanta um outro aspecto sobre o descontentamento social visto em Junho de 2013. Avritzer (2016) identifica que a maior parte das decisões na área de infraestrutura, em especial no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), foi tomada sem envolvimento da sociedade, abrindo conflitos com movimentos ambientalistas, indígenas e urbanos. Nesse sentido parece ter ocorrido uma confluência entre dois processos. O primeiro, que as obras tiveram como consequência “a violação de direitos da população de baixa renda, que dividiu a base de apoio do governo e gerou tensão nas ruas relações com os movimentos sociais” (Avritzer, 2016, p. 120). O segundo foi “a retomada de relações privadas com grandes empreiteiras e o surgimento dos novos casos de corrupção” (Avrit4
Harvey (1989) analisa como se dá a concorrência entre as cidades sob a lógica neoliberal e o papel de megaeventos nesse modelo empreendedor de cidade. O efeito desse modelo de produção urbana é de aprofundamento de desigualdades: “O empreendedorismo urbano, consequentemente, contribui para aumentar as disparidades na riqueza e na renda, assim como para aumentar o empobrecimento urbano que tem sido notado mesmo naquelas cidades (como Nova Iorque) que exibiram grande crescimento” (Harvey, 1989, p. 12).
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zer, 2016, p. 120). Em 2012 ocorreu o julgamento amplamente midiatizado do chamado caso do Mensalão (Ação Penal 410), de forma que o tema da corrupção estava entre a lista de insatisfações dos manifestantes em 2013 (Avritzer, 2016). Chega-se, então, ao enquadramento dos serviços públicos de qualidade. Em um período contraditório de expansão de investimentos públicos nas cidades para um megaevento esportivo e outras agendas de investimentos em infraestrutura, e de falta de priorização de gastos para a vida cotidiana da população, combinado com uma ampliação do tema da corrupção no debate público, o aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus em São Paulo foi o estopim dos protestos multitudinários. Porém, uma série de reivindicações relacionadas a direitos básicos, como saúde e educação, também permearam a série de protestos (Tavares e Benedito, 2018; Mendonça e Costa, 2018; Avritzer, 2016; Judesnaider et al., 2013; Maricato et al., 2013; Gohn, 2014; Singer, 2013; Ricci e Arley, 2014). Inclusive, debateu-se se os protestos eram “só por 20 centavos” ou por outros direitos. Os mais aderentes à pauta do transporte público, tendo como referência o Movimento Passe Livre, indicavam que os protestos eram pelos 20 centavos na tarifa de ônibus e o direito ao acesso à cidade. Porém, à medida que os protestos avançaram, os 20 centavos se tornaram símbolo de uma série de serviços urbanos e outros direitos dos quais os manifestantes se sentiam privados. Assim como o Occupy Wall Street e outros do ciclo global de protestos, Junho de 2013 orientou-se pelas gramáticas da horizontalidade e da ocupação do espaço público5, de matriz autonomista. Com isso, as interpretações apresentadas acima sobre os limites da prefiguração e da prática horizontalista também têm suas ressonâncias nos protestos brasileiros (Tavares e Benedito, 2018; Mendonça e Costa, 2018). Apesar disso, em suas disputas de sentidos, Junho desenvolveu também uma gramática nacionalista, que pode ser compreendida como parte de uma demanda por retomada do controle dos gastos e prioridades políticas. Assim, 5
Uma organização de Junho de 2013 em gramáticas foi proposta por mim em Domingues (2019).
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parece ser possível identificar, em Junho de 2013, uma relação entre a defesa nacional e uma hostilidade à política representativa e às instituições mediadoras. Parece menos relevante para a compreensão dessa indignação dividir os manifestantes em campos de direita e de esquerda, como propõem Alonso e Mische (2016) – que dividem Junho nos repertórios autonomista, socialista e patriótico6. Como Junho foi caracterizado por uma ampla diversidade de sujeitos e pautas, além de rápidas mudanças a cada dia de protesto, torna-se mais efetivo pensar que o enquadramento dos serviços públicos de qualidade perpassou os diversos campos políticos presentes nas ruas de então. Esse enquadramento parece vir de lugares bastante distintos, como a crítica da classe média à corrupção ou a formação de movimentos sociais em defesa do direito à cidade. Ainda assim, a ocorrência de manifestações multitudinárias como as de 2013 para reivindicar direitos básicos a serem prestados pelo Estado é de grande relevância para se pensar nos desafios que a democracia liberal e as cidades neoliberalizadas têm a enfrentar para retomar sua legitimidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o exposto, é possível compreender que o ciclo global de protestos dos anos 2010 faz parte de um contexto político em que há uma combinação entre, ao menos, três elementos: (i) o esvaziamento dos poderes do Estado com os avanços neoliberais e a agenda de austeridade aguçados após a crise financeira de 20072008 (Brown, 2019; Brown, 2015; Brown, 2006; Blyth, 2017; Offe, 2013); (ii) o aumento da desconfiança da população frente às instituições estatais e procedimentos democráticos que têm falhado em prover demandas sociais para as parcelas que mais precisam dos serviços do Estado (Blyth, 2017; Offe, 2013; Mounk, 2018; Runciman, 2018); (iii) falhas dentro das próprias instituições para 6
Mendonça e Costa (2018) fazem uma crítica pertinente a tal divisão, levantando o autonomismo como elemento articulador, que enquadrou o campo contencioso e diverso de Junho de 2013.
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manter outsiders que ameaçam a democracia fora do jogo eleitoral, de forma que eles ganham respaldo pela via do voto (Levistsky e Ziblatt, 2018; Przeworski, 2019). O Occupy Wall Street e Junho de 2013 irromperam em meio a esse contexto, ainda que com especificidades locais. Vale ressaltar que, enquanto os protestos estadunidenses criticavam diretamente as medidas de austeridade adotadas por seu governo em resposta à crise financeira (Chomsky, 2012; Harvey et al.; Gibson, 2013), os protestos brasileiros criticavam a falta de serviços públicos e a inversão de prioridades de gastos pelo governo, ainda que vindo de um contexto de crescimento econômico (Tavares e Benedito, 2018; Mendonça e Costa, 2018; Avritzer, 2016; Judesnaider et al., 2013; Maricato et al., 2013; Gohn, 2014; Singer, 2013; Ricci e Arley, 2014). Daí a importância de se compreender a complexidade do neoliberalismo e dos descontentamentos sociais, que não dizem respeito apenas a indicadores macroeconômicos, mas a uma percepção social da efetividade do cumprimento das promessas pelas democracias liberais. A teoria aqui analisada tem mostrado que essas “entregas” de justiça social (Brown 2019), serviços públicos (Offe, 2013) e igualdade e liberdade (Mounk, 2018; Runciman, 2018) têm sido falhas e a população tem reagido a isso. O ciclo aqui analisado, mais do que criticar, buscou experimentar novas formas de se fazer política, a partir de suas práticas horizontalizadas de organização e de ocupação do espaço público, bem como da definição de pautas contestatórias e base social abrangentes. Seus manifestantes conseguiram denunciar esses limites democráticos e os prejuízos do neoliberalismo sobre a população, por meio dos enquadramentos da desigualdade econômica levantado pelo Occupy Wall Street e por meio dos serviços públicos de qualidade, em Junho de 2013. Os termos levantados nesses enquadramentos trazem direcionamentos importantes para reintroduzir conteúdos democráticos – como o social e o político (Brown, 2019) – dentro de um sistema esvaziado pelo neoliberalismo. Contudo, por mais que essas práticas possam prefigurar um novo futuro que se deseja, parecem ser insuficientes para garantir o funcionamento das instituições democráticas hoje.
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Ao longo do capítulo, buscou-se delimitar e compreender essa ambivalência dos protestos. De um lado, parece haver uma pressão social por respostas do Estado frente a seu próprio esvaziamento político, sendo que tal esvaziamento acaba por tornar o Estado incapaz de responder às demandas vindas das ruas. De outro, a descrença nas instituições existentes – presente entre os próprios manifestantes – parece tornar mais difícil que o fortalecimento da democracia liberal venha por meio de tais protestos. De alguma forma, suas críticas precisariam ser incorporadas pelas instituições vigentes, algo que não ocorreu. Com isso, não se quer argumentar que os protestos causaram o enfraquecimento das democracias liberais, especialmente porque a crise da democracia é multifacetada (Mendonça, 2020) e o fenômeno dos protestos deve ser analisado em sua dimensão interativa: não só com o contexto político, mas com os grupos políticos opositores (Tarrow, 2009). A repressão e a facilitação seletivas são instrumentos usados pelo Estado como parte de sua interação com manifestantes, especialmente na fase de declínio do ciclo de protestos (Tarrow, 2009, p. 191). Nos casos analisados, é possível afirmar que houve pouca abertura dos sistemas políticos vigentes para o descontentamento manifestado nas ruas. Tanto o Partido dos Trabalhadores, quanto o Partido Democrata reprimiram fortemente os protestos no Brasil e nos EUA, respectivamente (Chomsky, 2012; Harvey et al., 2012; Gibson, 2013; Judesnaider et al., 2013; Maricato et al., 2013; Ricci e Arley, 2014; Domingues, 2019). Tarrow (2009, p. 182) também chama a atenção para a importância dos protestos em difundir novas formas de confronto, criar de novos quadros interpretativos e intensificar fluxos entre desafiantes e autoridades. Os protestos aqui analisados efetivamente conseguiram expandir imaginários, formas de ação e linguagens de denúncia política. Porém, sua intensa velocidade nos dias de protestos não seguiu em uma rápida formulação organizativa para buscar avanços dentro das instituições estatais. De fato, é possível dizer que a combinação entre a repressão seletiva de grupos de esquerda e seu rechaço à política representativa levaram a um primeiro movimento de retorno
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dos grupos a suas bases e a um trabalho um pouco mais lento advindo da abertura societária causada por esses protestos (Bringel e Pleyers, 2015). Manifestações posteriores seguiram ocorrendo trazendo linguagens e formulações do campo de esquerda presente no Occupy e em Junho, ainda que em contexto mais polarizado, em ambos países, e já com lideranças abertamente antidemocráticas, como Trump e Jair Bolsonaro (Mendonça e Domingues, 2020). As críticas levantadas pelo ciclo de protestos analisado seguem pertinentes e a expansão do imaginário que eles trouxeram deve ser aproveitada para se propor novas formas democráticas: que não rechacem de antemão as instituições vigentes, mas que olhem para elas com uma saudável desconfiança voltada para um aprofundamento democrático. REFERÊNCIAS Alonso, Ângela; Mische, Ann (2016), “Changing Repertoires and Partisan Ambivalence in the New Brazilian Protests”, Bulletin of Latin American Research. Avritzer, Leonardo (2016), Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Bennett, W. Lance; Segerberg, Alexandra (2012), “The logic of connective action”, Information, Communication & Society, 15(5), 739-768. Blyth, Mark (2017), Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária. Braga, Ruy (2017), A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo. Brenner, Neil (2018), Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles. Bringel, Breno; Pleyers, Geoffrey (2015), “Junho de 2013… dois anos depois. Polarização, impactos e reconfiguração do ativismo no Brasil”, Nueva Sociedad Especial em português. Brown, Wendy (2015), Undoing the demos. Nova York: Zone Books. Brown, Wendy (2016), “The American Nightmare, Neoliberalism, Neoconservatism and De-democratization”, Political Theory, 34(6), 690-714. Brown, Wendy (2019), Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia. Chomsky, Noam (2012), Occupy. Londres: Penguin Books. Dardot, Pierre; Laval, Christian (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo. Dean, Jodi (2016), Crowds and Party. Londres: Verso. Della Porta, Donatella (2015), Social Movements in times of austerity: bringing capitalism back into protest analysis. Cambridge: Polity.
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Capítulo 3 Desconstruções e Resistências Democráticas: O Caso da Instituição Legal do Sistema Nacional de Participação Social Bruno Dias Magalhães Gabriel Mattos Ornelas Flávia de Paula Duque Brasil INTRODUÇÃO A ideia de que a democracia contemporânea passa por um período de crise, sendo desafiada por regimes alternativos, surge a partir de uma tripla evidência conforme apontado no campo da ciência política. Por um lado, a literatura de opinião pública destaca o decréscimo da satisfação e do apoio ao regime democrático no planeta. Por outro, lideranças políticas que canalizam tal insatisfação, em geral outsiders, são eleitas pelo voto popular com discursos autoritários, excludentes e/ou populistas, demonstrando pouco apreço aos valores democráticos, mesmo em contextos de estabilidade política. Em terceiro lugar, há quem sinalize a interrupção ou declínio dos indicadores de qualidade democrática ao redor do globo (Diamond, 2015; Bermeo, 2016; Runciman, 2018; Levitsky e Ziblatt, 2018). De acordo com Ballestrin (2018), diversos eventos contemporâneos permitem caracterizar a conjuntura pós-democrática em uma escala global, são eles: a) um recuo democrático no seu sentido hegemônico e formal, possibilitado por dentro das próprias instituições democráticas; b) a crescente autorização pública da ascensão de discursos autoritários, antidemocráticos e anti-humanistas, com apelo e adesão popular/populista; c) a crescente colonização da esfera econômica internacional sobre a vida política nacional; d) o
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espraiamento da razão neoliberal para todas as esferas da vida pessoal e coletiva, inclusive política; e) o esvaziamento da política e da democracia. A crescente privatização internacional do poder pelas autoridades econômicas e o descontrole público sobre as mesmas evidencia a ausência da democracia liberal nos próprios regimes de governança global (p. 157).
O Brasil atual não parece ser uma exceção a essa tendência. Em 2018, a pesquisa Latinobarómetro registrou uma queda histórica no apoio à democracia no país, com apenas 34% dos entrevistados afirmando que preferem a democracia a qualquer outro regime, enquanto 41% indicaram indiferença em relação à questão e 14% disseram preferir uma alternativa autoritária (Latinobarómetro, 2018). Além disso, o país parece não conseguir superar seu status de parcialmente livre no que diz respeito à liberdade de imprensa, de acordo com a avaliação mais recente da Freedom House, que monitora a qualidade da democracia liberal em diversos países. Embora o relatório de 2018 ainda classifique o Brasil como uma democracia livre, a extensão das investigações de corrupção, bem como a apologia à violência, especialmente contra mulheres e minorias étnicas, associada ao amplo uso de mídia falsa e desinformação durante as eleições presidenciais foram destacadas como pontos alarmantes1. Em decorrência, as últimas eleições não só levaram à presidência um político de origem militar situado à extrema direita com um histórico de declarações antidemocráticas machistas, racistas, LGBTfóbicas e na contramão dos direitos humanos, como promoveram um rechaço generalizado a partidos políticos e a lideranças políticas tradicionais. Empossado, o presidente vem adotando medidas que apontam para a diminuição do espaço democrático do país, tais como a edição do Decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, que extingue diversos espaços e mecanismos de participação social no âmbito nacional ou, ainda, a Medida Provisória 8702, de 01 de janeiro de 1
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Disponível em: https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2019/brazil. Acesso em: 11 de outubro de 2019. A MP 870 também extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) que teve um papel fundamental na consolidação de diversas políticas
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2019, que atribuiu à Secretaria de Governo da Presidência da República a competência para “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais”. O presidente e outros eleitos, ademais, vêm ampliando a retórica e a prática da repressão estatal, sobretudo focada nos movimentos sociais progressistas, nas populações marginalizadas e em situação de vulnerabilidade social. Por fim, há notadamente uma pauta de restrição de direitos e de destruição do sistema de preservação ambiental, indicando a prevalência de interesses econômicos frente às questões sociais e ambientais. Em sua reflexão sobre a crise da democracia, Runciman (2018) afirma que o sistema democrático é constitutivamente mais habilitado a evitar catástrofes do que a oferecer respostas definitivas a problemas estruturais. Trata-se de um sistema marcado por freios e contrapesos capazes de atribuir mediação e reflexão às decisões tomadas, sempre sujeitas a revisões mais ou menos mediatas. Decorre daí a visão do autor de que, apesar do evidente declínio e seus consequentes riscos, o regime democrático moderno pode aprimorar-se e ressignificar-se de distintas formas para além das alternativas tecnocráticas, autoritárias e epistocráticas que hoje se colocam com mais apelo. O presente texto parte do pressuposto que um possível caminho para superar a atual crise democrática seria o aprofundamento da capacidade de resposta positiva do regime (soluções efetivas de problemas, responsividade, etc.), sobretudo a partir do aprimoramento e conexão das dinâmicas participativas e representativas. Diante disso, o texto aborda a crise da democracia no Brasil nos últimos anos por meio da revisão de três lentes analíticas: (i) a ideia de que se trata de uma crise sistêmica, que aponta para os limites do modelo hegemônico liberal representativo; (ii) a perspectiva de crise institucional, que sugere que o desequilíbrio democrático advém da mudança da institucionalidade vigente ou de impasses superáveis do arranjo institucional; e (iii) finalmente intersetoriais, trabalhando com questões relacionadas desde a produção, o acesso, o consumo de alimentos saudáveis, até políticas de saúde, meio ambiente e educação.
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a noção de crise política, que atribui à capacidade de agência dos atores e coalizões políticas as principais causas do cenário atual. Os elementos revelados pelas três vertentes analíticas são então examinados segundo uma renovada abordagem sobre a institucionalização, de modo a explorar os papéis de ativistas, movimentos sociais, agentes políticos e estatais em dois momentos relacionados à participação social no Brasil. Primeiramente, analisa-se a tentativa de institucionalização legal da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e a criação do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), por meio do Decreto 8.243, de 8 de maio de 2014, bem como os debates e instrumentos de apoio e oposição que se formaram na sociedade, na mídia, e no Congresso Nacional. Em segundo lugar, analisa-se a tentativa de desinstitucionalização ou extinção da maioria de instituições participativas no Governo Federal estabelecida por meio do Decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, bem como das resistências e oposições estabelecidas nos âmbitos social e institucional. O artigo conclui sinalizando a complementaridade dos aspectos institucionais e não institucionais para o fortalecimento do sistema democrático brasileiro, notadamente das conexões entre as dinâmicas de participação, representação e ativismo. 1. LEITURAS SOBRE A CRISE DEMOCRÁTICA NO BRASIL: ESTRUTURAL, INSTITUCIONAL OU POLÍTICA Diversas são as perspectivas do que se pode denominar de “crise democrática no Brasil”, cujo período se estende mais ou menos desde o marco das chamadas “jornadas de junho de 2013” até o momento presente3. Destacando que há evidências de retrocessos 3
Contudo, é importante evidenciar que no continente latino americano, marcado pelo colonialismo, pela escravidão e pelo início/experimento do neoliberalismo, existe um histórico de rupturas democráticas, reforçando a necessidade de ponderar e equilibrar a análise sobre a crise democrática atual e/ou o debate sobre a pós-democracia. Por outro lado, o continente também teve um papel central na internacionalização da agenda da democracia participativa a partir de várias experiências de participação local (Ballestrin, 2018).
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muito expressivos para considerá-los apenas um desvio em uma trajetória longa evolução da democracia no país, Avritzer (2019, p. 274) assinala como paradoxal o fato de que “até 2013, todos os indicadores de curto prazo apontavam para a consolidação e o fortalecimento da democracia no país. Nos quase cinco anos que vão de junho de 2013 a 2018, houve uma completa inversão de condições, com a produção de um “mal-estar” na democracia”. Em linhas gerais, as manifestações de junho de 2013 foram inicialmente convocadas pelo Movimento Passe Livre em protesto contra o aumento de tarifas do transporte coletivo em São Paulo, mas rapidamente escalaram em número, diversidade de protestos e demandas em cidades de todo o país4. Viu-se no Brasil performance semelhante a outros protestos globais, tais como a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Indignados e Democracia Real Já! – que apresentavam diversas pautas como, por exemplo, o “sequestro da democracia pela lógica do capitalismo financeiro” (Ballestrin, 2018). As manifestações brasileiras de 2013 podem ser consideradas como integrantes desta “geopolítica da indignação global” (Bringel e Pleyers, 2015). Marcadas por uma disputa simbólica pelos seus significados, as demonstrações de rua experienciaram um deslocamento de demandas (Romão, 2013) ou uma transformação do enquadramento inicial (Mendonça et al., 2019) de maneira a aglutinar o descontentamento geral contra o sistema político, representado pela forte intolerância à corrupção e pelo rechaço aos elevados gastos governamentais para sediar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Embora não tenha sido a única narrativa resultante das manifestações de 2013, nem o único desdobramento prático, o discurso do questionamento generalizado das políticas institucionais (Scherer-Warren, 2014) tornou-se notadamente hegemônico, 4
Em leitura recente, Tatagiba e Galvão (2019) avaliam que as jornadas de 2013 constituíram o pico de uma série de protestos que evidenciaram, desde anos anteriores, um processo de desacomodação de diversos atores que reivindicavam pautas distintas e apontavam para os limites estruturais da agenda de conciliação promovida pelos governos petistas. No entanto, apesar da diversidade crescente de demandas e insatisfação, não há elementos suficientes para se falar em crise da democracia anteriormente a 2013.
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transformando em alguma medida os consensos sociais então vigentes. De um Estado com pauta social efetiva a ser reivindicada em um contínuo estabelecido a partir de conquistas concretas como a redução da pobreza e desigualdade alcançadas nos anos anteriores (Gohn, 2014), emergiu a imagem de um Estado corrupto, ineficiente, em crise, “assaltado” por um grupo político, o Partido dos Trabalhadores, que estava no poder há mais de uma década (França e Bernardes, 2016). Esse novo discurso, articulado por meio das mídias sociais e autorreferido como “sem rótulos” estruturou-se na negação às institucionalidades políticas vigentes, em especial partidos políticos, ao lado dos movimentos sociais tradicionais (Bringel e Pleyers, 2015). Ao fazê-lo, consequentemente negaram-se também os canais de mediação política sociedade-Estado, notadamente a política representativa e as instituições participativas5. Pautadas pela ação imediata, geralmente de rechaço, sem a necessidade de articulação de alternativas ou da projeção de um futuro ideal, e pela política dos eventos composta por uma multiplicidade de atos episódicos que não necessariamente concatenam-se ou levam a algum acúmulo social (Bringel e Pleyers, 2015), as novas matrizes discursivas experimentadas em 2013 repercutiram e legitimaram-se em sucessivos protestos de direita, organizando a oposição contra o então governo e contribuindo para o impeachment ou golpe constitucional da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 (Santos apud Ballestrin, 2018). Nessas ocasiões, acirrou-se o discurso de condenação às institucionalidades políticas articulado com valores autoritários, no sentido de negação da diversidade e da expressão do desejo de destruição do outro. Ainda que não de forma hegemônica, parte das manifestações pautou-se na substituição da utopia de um futuro ideal pela volta a um passado idealizado, expressando desejo de implantação de uma ordem não 5
As instituições participativas consolidaram-se no Brasil após o processo de redemocratização e de elaboração da Constituição de 1988, ampliando as formas de participação e interação da sociedade civil com as questões políticas. Desde então, o país se tornou referência em participação social, com destaque para as iniciativas como o Orçamento Participativo e os Conselhos de Política Públicas que permitiram conectar ações de base e atores políticos (Avritzer, 2009).
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democrática com ampla tolerância, quando não estímulo, à repressão e à violência estatal (França e Bernardes, 2016). Sucedeu-se a 2013 uma crescente crise democrática aberta, de um lado, pelo processo de impeachment baseado em práticas orçamentárias fartamente utilizadas no período pós-88, protagonizado por atores implicados em denúncias de corrupção e sem sólido consenso na sociedade (embora majoritariamente apoiado). De outro lado, a crise foi marcada pelo avanço sistemático da operação Lava-Jato, que potencializou o discurso de rechaço às instituições políticas vigentes, retirou de atuação pivôs políticos tradicionais e contribuiu para o esfacelamento do centro político, ampliando a polarização. Mais além, nesse cenário, as eleições de 2018 realizaram-se em meio a uma escalada de informações falsas, com campanhas marcadas por discursos autoritários e agressivos; intolerantes e preconceituosos com a diversidade sociocultural e afetiva sexual e as questões de gênero, raça e classe; socialmente insensíveis quanto à necessidade de reformas econômicas de cunho inclusivo; e não raro permeados de ataques frontais a instituições democráticas. Três lentes analíticas apresentam interpretações sobre as razões que teriam causado o colapso do modus operandi do sistema político das últimas décadas. A primeira aponta para as razões estruturais da crise, advindas sobretudo dos limites do modelo de democracia liberal-elitista e do modelo participativo. Em segundo lugar, há a leitura da crise institucional, ora advinda de uma mudança nas bases do sistema de formação de maiorias governativas, ora proveniente das incompatibilidades institucionais decorrentes do estabelecimento gradual de um sistema político híbrido, que tentou articular representação e participação, cuja proposta institucional última foi forjada na tentativa de instituir a PNPS. Finalmente, a terceira vertente atribui a crise à agência dos atores e à formação de coalizões que atuaram deliberadamente à margem da institucionalidade vigente. 1.1. Crise estrutural ou sistêmica A perspectiva da crise estrutural ampara-se nos limites inerentes às categorias da representação e da participação política
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da forma em que se encontram articuladas pelo modelo democrático liberal-elitista. Duas principais evidências desses limites apontadas por essa literatura são: (i) a incapacidade, e até mesmo o abandono, como ideal normativo, de superação da desigualdade social e política; e (ii) o não reconhecimento da seletividade das instituições. O fenômeno da desigualdade se expressa, material ou simbolicamente, tanto no seio da sociedade quanto no interior das instituições políticas. Um primeiro aspecto apontado pela perspectiva da crise estrutural é de que há uma incompatibilidade insuperável entre o modelo econômico capitalista e a possibilidade da democracia6. Nesse sentido, para cumprir seus ideais normativos, a democracia necessitaria estar em confronto permanente não só com a desigualdade material inerente ao capitalismo, mas também com a privatização do mundo, a monetização das relações entendidas como mercadoria e a prevalência da competição sobre a cooperação entre as pessoas por ele estimulados (Miguel, 2017a, p. 87). O modelo democrático liberal, sem embargo, articula-se a partir da evasão dessa incompatibilidade estrutural, operada por meio da redução (ou mesmo negação) dos ideais normativos da democracia. Ao adotar uma concepção procedimental de soberania popular circunscrita ao momento das eleições, entendidas como a competição das elites políticas pelo voto, a democracia fica reduzida a um arranjo institucional para se chegar a decisões políticas7. Entre os limites do modelo, Santos e Avritzer (2002, 6
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Para Ballestrin (2018), o capitalismo neoliberal constitui-se como a principal força desdemocratizante, já que potencializa a desigualdade na distribuição de recursos e limita a democratização das sociedades. Nesse sentido, é necessário superar e eliminar a separação entre as esferas econômica e política, que embasa o campo da Ciência Política, para ampliar e complexificar a discussão sobre a crise da democracia contemporânea e o debate sobre pós-democracia. A autora também aponta três pilares fundamentais para entender o debate pós-democrático, são eles: o formalismo democrático, o fascismo social e o domínio absoluto da economia financeira. A referência aqui é, por evidente, a formulação de clássica de Schumpeter (1975), que afirma: “a democracia é um método político [...] um certo tipo de arranjo institucional para chegar a decisões políticas, legislativas e administrativas” (p. 242). Se contrapõem a essa concepção diversos autores/as que acusam seus limites e efeitos do ponto
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p. 46) apontam para sua a insuficiência em relação à representação de agendas e interesses da pluralidade dos diferentes atores sociais e das minorias. A visão amenizada sobre o poder e a superestimação da fluidez da política americana articulada pelo pluralismo e os modelos argumentativos não chegam a superar totalmente os limites apontados. A despeito da pluralização de arenas representativas e participativas, as capacidades de influência política efetiva sempre estiveram muito desigualmente distribuídas (Miguel, 2017a). Se a crítica à submissão do parlamento ao poder de lobby dos grandes interesses econômicos é amplamente aceita, tampouco as instâncias participativas mostraram-se imunes às desigualdades de influência entre os diversos participantes (Pereira, 2019). Nesse sentido, a perspectiva da crise estrutural argumenta que os modelos democráticos representativo e participativo não lograram superar o controle ideológico promovido pelo Estado, cuja lógica de atuação reforça hierarquizações de classe, raça e gênero, a despeito da extensão normativa da garantia dos direitos civis a todos (Miguel, 2017a; Pereira, 2019). Se esse controle ideológico pode bem ser percebido no acirramento da criminalização e no aparato de repressão estatal, ele também se expressa em formas mais sutis como na predominância do saber técnico-científico sobre o saber local, que opera retirando decisões da esfera do político, portanto do alcance da cidadania (Gaspardo, 2018). Essa constatação contribui para reforçar a segunda evidência dos limites estruturais da representação e da participação, a saber, a falha na aposta institucionalista, dada a insuperável seletividade das instituições (Miguel, 2017a; Pereira, 2019). Apesar do discurso de neutralidade, as instituições respondem mais a alguns interesses que a outros (Miguel, 2017a). Tanto o punitivismo seletivo de Estado (Pereira, 2019), quanto a tecnificação da política são exemplos de seletividade das instituições cuja de vista da exclusão e reprodução de desigualdades. Optamos por contrapor a visão a partir da crítica articulada por Santos e Avritzer (2002), uma vez que esta é construída a partir da perspectiva das experiências democráticas latino-americanas, sem prejuízo de outras leituras relevantes.
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superação não parece possível no âmbito dos modelos representativos e participativos, dada sua aposta na transformação pela atuação institucional. Segundo Miguel (2017a), uma vez que as instituições possuem lados, qualquer mudança deve ancorar-se fora delas, reconfigurando a materialização da relação de forças no âmbito do aparato estatal (p. 87). Diante do exposto, a superação da crise estrutural perpassaria por uma atuação política que fosse além da atuação institucional, embora seja negada a alternativa revolucionária, ao menos nas vertentes aqui estudadas. Segundo Gaspardo (2018), apoiado nos escritos de Mangabeira Unger, a solução passaria por uma dupla superação do “fetichismo institucional” e do “fetichismo estrutural”, operacionalizada pela diversificação e pluralização de iniciativas participativas que o autor denomina de “experimentalismo democrático”. Essas experiências de transformação pontual seriam capazes de articular, em algum momento não muito preciso e de modo não especificado, uma espécie de reforma radical apta a provocar uma mudança de maiores dimensões (pp. 81-82). Já Miguel (2017a) e Pereira (2019) apostam na mobilização dos movimentos da sociedade civil como resistências. Para o primeiro, uma mobilização forte em oposição ao redutivismo do regime democrático aos seus aspectos formais forçaria que este explicitasse seu caráter autoritário, ampliando o confronto do qual pode emergir uma reconstrução democrática. Pereira (2019), por seu turno, ressalta a importante tarefa de desconstrução de valores socialmente estabelecidos por meio de novos e diversos movimentos sociais, desmistificando uma ideia de universalidade homogênea, a partir do reconhecimento do lugar do outro, do sentido da diversidade contra silenciamentos históricos e hierarquizações. As saídas articuladas pela lente da crise estrutural, no entanto, explicam pouco como se daria a superação tanto da desigualdade material e simbólica, quanto da seletividade das instituições. De maneira geral, a crítica estrutural acaba refém de uma visão monolítica do Estado, supervalorizando sua coerência, e por conseguinte falha em percebê-lo como plural e heterogêneo, composto por regimes e subsistemas de acessos e modos de atuação variáveis, desiguais e multiníveis. As alternativas, no entanto, iluminam um
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aspecto importante do debate: a superação da crise democrática passa por uma transformação radical que se situa muito além do estrito aspecto institucional, requerendo uma atuação e mobilização social que logre disputar as composições de forças no Estado e reverter a seletividade da sua atuação, bem como as dinâmicas próprias da socialização e seus padrões de dominação. 1.2. Crise institucional A vertente da crise institucional, por sua vez, situa na transformação das instituições as raízes da crise democrática brasileira. Em linhas gerais, parte-se da compreensão de que o modelo de formação de maiorias governativas do presidencialismo de coalizão, aliado à ampla fragmentação partidária impõem severos custos de governança, o que culminou no desgaste da legitimidade do regime político ao longo dos anos. Além disso, as bases institucionais do presidencialismo de coalizão seriam em alguma medida contraditórias ao projeto participativo articulado no Brasil nas últimas décadas. A solução articulada pela vertente aponta para a necessidade de se promover reformas políticas. É nessa perspectiva que se insere o Decreto 8.243, de 8 de maio de 2014, cujos desdobramentos constituem o foco deste artigo. Em termos gerais, o arranjo institucional brasileiro efetivamente concede prerrogativas legislativas ao Poder Executivo, embora não ao ponto de estabelecer um predomínio absoluto sobre o Legislativo, que também possui uma série de poderes de agenda e veto (Figueiredo e Limongi, 1999; Freitas, 2016). Esse arcabouço favorece o estabelecimento de uma base de cooperação entre o executivo e o legislativo, a partir das negociações entre os dois lados. Tal arranjo, a despeito de ter assegurado grande estabilidade no sistema político pós-1988, apresenta alguns limites institucionais como: (i) a ampliação da fragmentação partidária que eleva permanentemente os custos dos ativos e bens de coalizão requeridos para estabelecer uma maioria governativa; (ii) a desorganização administrativa no interior do Executivo, gerada pela necessidade de se distribuir cargos para manutenção da coalizão; e (iii) certa propensão à corrupção, decorrente da própria lógica
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inerente à distribuição dos cargos e o consequente uso destes para direcionar recursos para bases eleitorais de partidos e lideranças congressuais (Avritzer, 2016). Freitas e Silva (2019) identificam ainda uma mudança gradativa no modelo do presidencialismo de coalizão, que acelerou a fragmentação partidária do sistema político. Segundo os autores, é fundamental incorporar às análises tradicionais da relação entre executivo e legislativo a atuação do poder judiciário enquanto instância indutora de mudanças institucionais, construindo uma concepção ampliada do arranjo institucional brasileiro para que este incorpore também o que vem sendo chamado de “política constitucional” (Arantes e Couto, 2019). Nesse sentido, a proibição da migração partidária pelo Tribunal Superior Eleitoral, em 2007, contribuiu para a criação de novos partidos políticos. A explosão da fragmentação, no entanto, tem o efeito de diminuir o peso relativo de cada liderança partidária, forçando o executivo à ampliação de sua base, amplificando os custos de governança e as consequências não pretendidas de desorganização administrativa e de corrupção já apontadas. Instituições participativas, por seu turno, são espaços formais que envolvem diferentes maneiras de incorporar a sociedade civil nas deliberações sobre políticas públicas (Avritzer, 2009). Em suas várias manifestações, as instituições participativas podem assumir formatos obrigatórios ou consultivos e têm funções quase sempre cumulativas de formulação e controle de políticas públicas. Sem embargo, se o desenvolvimento brasileiro de tais instituições nos permite falar de um “sistema participativo original” (p. 566), um balanço crítico de sua operacionalidade na democracia – no que diz respeito a suas interações com outras formas deliberativas e representativas – bem como sua eficácia como influência concreta no ciclo de políticas públicas carecem de mais pesquisas empíricas e contornos teórico-interpretativos (Avritzer, 2007). Em linhas gerais, apesar dos inegáveis avanços na construção nas últimas décadas de uma ampla infraestrutura participativa no país (Avritzer, 2016), têm sido apontados limites e desafios à efetividade das instituições participativas em ao menos quatro aspectos: (i) efetividade das dinâmicas interna participativa e deliberativa; (ii)
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efetividade de representação; (iii) efetividade decisória e implementação das políticas; e (iv) efetividade sistêmica dos atores e mecanismos com o Estado e a sociedade (Almeida, 2017, pp. 650-651). Em breve síntese, as dinâmicas internas apontam para a importância dos elementos (i) desenho organizacional, tais como participação paritária entre Estado e sociedade, mecanismos de escolha da presidência, definição das entidades que possuem assento e localização do conselho na estrutura administrativa; (ii) discussão interna, tais como igualdade de expressão e definição da pauta, presença de debate e contestação, redução dos aspectos burocráticos e tipos de discussão produzidas; e (iii) capacidade de inclusão dos grupos. Neste último ponto, diversos estudos empíricos têm constatado que, embora as instituições participativas sejam em geral mais abertas à participação de grupos que geralmente estão fora do sistema político tradicional, desigualdades ainda permanecem (Almeida, 2017; Gaspardo, 2018; IPEA, 2013). No que diz respeito à efetividade da representação, aponta-se a ausência de mecanismos de autorização e de accountability, entendida como prestação de informações e justificação das decisões tomadas entre os participantes e as suas respectivas bases. A predominância dos estudos sobre a questão da accountability mostra que o aspecto autorizativo da participação social encontra grandes dificuldades de articulação teórica adequada, sendo geralmente reduzido ao reconhecimento de outras formas de autorizações para além das eleições, evidenciadas na relação reflexiva entre representante e representado, mas ainda sem grandes considerações acerca de critérios como legitimação, igualdade de acesso e de voz (Almeida, 2012; 2014a; 2014b; Miguel, 2017b). Nesse ponto, é razoável aceitar que sem uma articulação clara da relação entre autorização e legitimação da participação social tais categorias acabam emanando não dos representados, mas sim do Estado, a quem cabe o ato formal de instituição da instância participativa (Teixeira, Souza e Lima, 2012). No que tange à efetividade decisória, diversas são as propostas de mensuração de suas principais variáveis e indicadores, sem que ainda se aponte para um consenso da literatura. Para efeitos da presente análise, importa apenas relatar que pouco se avançou
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na compreensão da “complexa teia relacional entre Estado e sociedade” (Almeida, 2017, p. 656) e em formulações teóricas e empíricas capazes de apreender o efeito da participação no âmbito dos processos de formulação e implementação de políticas públicas (Almeida, Cayres e Tatagiba, 2015). Importante mencionar que o impacto das instituições participativas geralmente é avaliado como adequado em relação ao órgão gestor das políticas públicas, porém insuficiente em relação aos demais órgãos executivos relevantes, ao legislativo e à sociedade (IPEA, 2013). Cabe ainda destacar que as instituições participativas não foram adotadas por todas as áreas de políticas públicas, sendo notoriamente ausentes em áreas como o desenvolvimento econômico e infraestrutura, assim como planejamento e finanças (Avritzer, 2016). Isso nos leva à última dimensão de legitimidade analisada, a saber, a legitimidade sistêmica. Em larga medida, a despeito de algumas evidências de conexão (Pogrebinschi e Santos, 2011), também aqui os estudos8 apontam para a necessidade de conhecer melhor a complexa rede de interações e intersetorialidades inerentes às políticas públicas, bem como às dinâmicas de construção de capacidades estatais e capacidades das organizações da sociedade civil, ponto a que voltaremos adiante. Cumpre destacar a necessária ampliação do debate das instituições participativas à sociedade em geral, que muitas vezes carece de informações a respeito das deliberações e decisões realizadas (Romão, 2014). Como já mencionado, a vertente da crise institucional aponta como solução a reforma das instituições, indicando novos arranjos, formatos e mecanismos para superação das dificuldades existentes. Nesse esteio inseriu-se o Decreto 8.243, de 8 de maio de 2014, que institui o PNPS e SNPS. Em sua análise sobre como o instrumento busca superar as dificuldades apontadas pela literatura da efetividade, Almeida (2017) demonstra como o texto do decreto investe fortemente nas diferentes dimensões. O decreto, no entanto, é tímido no que diz respeito tanto aos mecanismos de autorização e accountability, quanto em assegurar os efeitos de ampliação da capacidade decisória e de articulação sistêmica. Em 8
Para uma síntese dos estudos, ver Almeida, 2017.
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relação ao primeiro ponto, embora o decreto tenha a intenção de oxigenar e pluralizar os espaços participativos, ele não avança para a obrigatoriedade de eleição dos participantes9. No caso da capacidade decisória, ainda que o decreto preveja compromissos de resposta e reconheça a normatividade de algumas decisões, o impacto das deliberações é fragilmente abordado. O texto também é omisso quanto à articulação com o poder legislativo (Almeida, 2017). Importante notar que a dificuldade no avanço em relação a tais questões pode reforçar a ideia (veiculada nos debates e repercussões do decreto) de certa incompatibilidade entre os arranjos institucionais do presidencialismo de coalizão e do sistema participativo, uma vez que a garantia de uma legitimação social da participação, bem como a maior influência das decisões participativas nos resultados das políticas públicas podem ser lidos como uma “usurpação” das competências do legislativo ou mesmo como uma apreciação indevida de questões técnicas inerentes à burocracia. Essa leitura, contudo, é no mínimo contraditória considerando o contexto brasileiro pós-1988, no qual foram elaboradas e promulgadas no legislativo inúmeras leis que instituíram ou mesmo exigiram a criação de instituições participativas. Sem embargo, a perspectiva de “usurpação” ilustra uma contradição inerente às soluções de reforma institucional, cuja centralidade muitas das vezes é pouco explorada pelas vertentes da crise institucional, a saber: o sucesso das reformas depende de sua aprovação pelos poderes instituídos, o que implica em uma barreira a mudanças mais estruturais. Em que pese a crítica, as soluções de superação da crise por meio da mudança institucional chamam atenção para a possibilidade de transformação gradativa ou mesmo setorial das instituições por meio incorporação de novos arranjos, regras e repertórios de atuação. Finalmente, mostram-se importantes os esforços de sustentação desses arranjos. 9
Ou outro mecanismo equivalente. O decreto, embora mencione eleições, segue permitindo a indicação dos participantes pelo poder executivo tanto em conselhos como conferências, o que a nosso ver não resolve os problemas decorrentes da legitimação da participação originar-se do aparato estatal, e não da sociedade, como expusemos anteriormente.
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1.3. Crise política Finalmente, a vertente da crise política ampara-se na dimensão da agência, chamando a atenção para a capacidade de transformação das estruturas por meio da formação de coalizões e atuação de atores à margem da institucionalidade. De maneira geral, argumenta-se que a variável contextual da conjuntura política atuou como uma espécie de “janela de oportunidades” para que oportunismo, aventuras ou ainda ações de proteção a grupos espúrios fossem conjugadas, produzindo um desequilíbrio inimaginável a partir do arcabouço institucional vigente (Limongi e Figueiredo, 2017; Santos e Szwako, 2016). Importante notar que a perspectiva apontada por Avritzer (2016) em sua discussão sobre os impasses da democracia, já mencionada no âmbito da vertente da crise institucional, continha elementos que chamavam atenção para a atuação política de atores e coalizões, podendo mais bem ser identificada como uma perspectiva político-institucional. Isto posto, os principais aspectos conjunturais identificados pelos autores são: (i) a polarização política estabelecida no país após as manifestações de junho de 2013, que como vimos abriram uma disputa de enquadramento simbólico na qual gradativamente fez hegemônico o discurso de rechaço às instituições e ao Partido dos Trabalhadores; (ii) o resultado das eleições de 2014, que, refletindo a polarização, não logrou estabelecer uma nova coalizão majoritária, sendo em seguida contestado pelo grupo perdedor; (iii) o avanço das investigações de corrupção revelando escândalos de grandes proporções e ameaçando grupos políticos de todos os espectros envolvidos nas denúncias; (iv) a inabilidade com que o governo de Dilma Rousseff lidou com as questões políticas e econômicas durante todo o seu mandato, mas sobretudo no contexto pós-201410; (v) o impeachment articulado sob frágeis bases institucionais por coalizões extrapartidárias que aliou, juntamente às vozes conservadoras e de rechaço das ruas, grupos em 10
Importante mencionar que há evidências que apontam para o machismo dispensado contra a Presidente da República Dilma Rousseff, cujas chances de triunfo jamais foram iguais às dos homens que ocuparam o cargo.
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busca de proteção contra o combate à corrupção e grupos que fizeram do afastamento do PT prioridade acima de todas as demais; e, finalmente, (vi) o governo ilegítimo – ou pouco legítimo – que foi instituído após o impeachment, impondo uma agenda de reformas econômicas que não havia sido eleita, e composto por grupos notadamente envolvidos nos esquemas de corrupção (Limongi e Figueiredo, 2017; Santos e Szwako, 2016). Embora partam de bases teóricas distintas, as análises de Limongi e Figueiredo (2017) e de Santos e Szwako (2016) coincidem na defesa do presidencialismo de coalizão enquanto arranjo institucional capaz de garantir estabilidade, como o fez nas primeiras duas décadas e meia de sua existência. Coincidem também na atribuição de responsabilidade ao “uso insidioso das instituições” (Szwako e Santos, 2016, p. 115) por meio de atores oportunistas ou aventureiros, solapando a legitimidade do sistema sem que fosse quebrada sua institucionalidade. Em maior ou menor medida, pode-se estabelecer um paralelo entre essas análises e a perspectiva de Levitsky e Ziblatt (2018) sobre como a ruptura de regras não escritas bem estabelecidas da democracia americana por meio da atuação de agentes em meio a um cenário de polarização acaba colocando esse sistema sob risco de colapso. A solução proposta pela vertente da crise política é o estabelecimento de coalizões que logrem estabelecer novos consensos políticos entre as elites, seja a despeito da polarização, seja por meio de sua superação (Levitsky e Ziblatt, 2018; Szwako e Santos, 2016). Segundo Szwako e Santos, tais consensos poderiam ser construídos a partir da transposição de “purismos ideológicos estanques” pelo estabelecimento de pontes com “todos os matizes de vozes democráticas comprometidas com valores minimamente civilizados e igualitários”, formando um novo centro que sirva de esteio para a reconstrução de arranjo institucional que conjugue e equilibre mecanismos de representação e participação (2016, p. 120). Embora Limongi e Figueiredo (2017) não articulem qualquer solução evidente, eles parecem indicar que a alternativa passe pelo compromisso e responsabilização dos agentes para com o sistema democrático vigente.
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A lente teórica da crise política complementa as demais visões ao colocar em relevo as consequências das atuações dos atores, situando a agência também como fonte de mudança institucional. Essa perspectiva dá contorno final às leituras da crise da democracia brasileira, indicando que sua superação passa tanto pelo campo institucional, quanto pelo campo não institucional. No âmbito não institucional, importante atentar para o estabelecimento de coalizão política que resgate os valores do sistema (aqui se inscrevem as resistências nos espaços representativos e participativos), mas também de mobilização social que desafie constantemente as instituições (ativismo, resistências, denunciando a seletividade das instituições, o caráter de dominação inerente a qualquer sistema). No âmbito institucional, destaca-se a capacidade de mudança introduzida por reformas pontuais ou estruturantes, atentando-se ainda para suas consequências não pretendidas. Na tentativa de articular esses aspectos, a seção seguinte explora a literatura da institucionalização, situando o debate no âmbito das interações socioestatais e analisando suas categorias analíticas como possíveis conectoras entre as dinâmicas do ativismo, da representação e da participação social. 2. INSTITUCIONALIZAÇÃO E DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL: UMA LEITURA RELACIONAL Analisar tanto a instituição da PNPS estabelecida pelo Decreto 8.243/2014, quanto a extinção das instâncias participativas promovida pelo Decreto 9.759/2019 requer analisar a participação social à luz do campo de estudos da institucionalização. Perceber ambos os instrumentos respectivamente como processos de institucionalização e desinstitucionalização do arcabouço participativo permite adotar uma perspectiva radicalmente relacional e mutuamente constitutiva das dinâmicas pelas quais interesses e valores dos agentes sociais e estatais cristalizam-se em instituições (Gurza Lavalle et al., 2019). Ademais, conforme ressaltam Szwako e Gurza Lavalle (2019), “(...) se a compreensão de processos específicos de institucionalização obedece a processos temporal e
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espacialmente delimitados, as questões analíticas são de relevância geral” (p. 415). Tal análise situa o campo da institucionalização nas arenas de interações entre Estado e sociedade, uma vez que reconhece que as capacidades de ação de atores sociais, as instituições políticas e as capacidades estatais são politicamente produzidas pelas disputas entre os atores. Nessa perspectiva, instrumentos de políticas públicas, leis, programas, instâncias, organizações (artefatos), mas também regras não escritas e enquadramentos estratégicos de dimensão simbólica (frames), resultantes de processos de interação socioestatal, podem constituir sedimentações institucionais específicas denominadas “encaixes”, mediante as quais determinados grupos de atores e seus repertórios de ação adquirem capacidade de agência por um determinado tempo ou, em outra chave analítica, ativam favoravelmente a seletividade das instituições (Gurza Lavalle et al., 2019; Szwako e Gurza Lavalle, 2019). Assim, é a articulação de diversos tipos de encaixe (variação horizontal) em diversos níveis hierárquicos (variação vertical) que produz os chamados “domínios de agência” (Gurza Lavalle et al., 2019, p. 52). Para os autores, a abordagem substitui o enfoque contextual e exógeno pelo enfoque dinâmico e relacional dos processos políticos, retratando as condições que incidem sobre tais processos como mecanismos, isto é, regularidades que promovem a sedimentação institucional e, consequentemente, a construção de domínios de agência, a um só tempo produtores e produtos das interações entre Estado e sociedade civil (p. 53). Os autores definem ao menos três tipos de mecanismos, a saber: (i) institucionais, relacionados às condições relativas às instituições políticas, tais como a permeabilidade do Estado, a composição partidária e eleitoral dos poderes legislativos – aqui entendida sob a ótica dos arranjos institucionais que afetam a relação executivo e legislativo – e as capacidades estatais, aqui entendidas como administrativas, relacionais e simbólicas (Pires e Gomide, 2016; Szwako e Gurza Lavalle, 2019); (ii) relacionais, relativas às estruturas de vínculos estabelecidos entre as redes da sociedade civil, que permeiam em maior ou menor medida o Estado por meio de protestos (ativismo contencioso), comunidades de policy, ativismo na burocracia ou
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ainda coalizões; e (iii) sociais, correspondentes à capacidade de ação dos atores da sociedade civil, em especial das organizações da sociedade civil (OSC) e dos movimentos sociais (MS) incluindo expertise, especialização e aprendizado em diferentes repertórios de ação coletiva e formas organizacionais diversas, tais como a mobilização social, a operacionalização de políticas públicas, a experimentação de formatos ou instrumentos e administração de diferentes tipos de organizações complexas. Importante mencionar que as capacidades sociais e estatais são percebidas tanto como mecanismos que atuam na institucionalização, quanto como produto dos próprios processos de institucionalização, corroborando a perspectiva radicalmente relacional e mutuamente constitutiva do modelo (Bichir et al., 2017; Gurza Lavalle et al., 2019). Abers, Tatagiba e Silva (2018), por sua vez, afirmam que a análise das relações entre movimentos sociais e políticas públicas pode ser compreendida a partir de duas ferramentas analíticas, os regimes políticos e os subsistemas de políticas públicas. Dialogando com a perspectiva relacional, essas ferramentas permitem descrever os processos de participação e explicar tanto as mudanças ocorridas nos movimentos como nas políticas públicas. Nesse sentido, os regimes políticos são entendidos a partir das “relações entre os atores politicamente relevantes que condicionam o acesso às discussões e decisões governamentais”, definindo oportunidades e/ou obstáculos para a atuação dos movimentos sociais. Por outro lado, os subsistemas estão relacionados “às configurações de poder específicas a cada setor de política pública, que conferem aos movimentos sociais diferentes condições de acesso a esses setores e influência sobre eles” (Abers, Tatagiba e Silva, 2018, p. 17). Portanto, de acordo com o seu posicionamento nas relações de poder nos regimes e subsistemas, os atores políticos acessam diferentes recursos materiais e simbólicos ao interagirem nessas estruturas relacionais, influenciando as políticas públicas e criando novas relações entre sociedade civil e a heterogeneidade do Estado, ou seja, as distintas oportunidades e/ ou constrangimentos para a inserção e atuação da sociedade civil em diferentes setores de políticas. Cumpre destacar que a perspectiva dos diferentes tipos de encaixes (variação horizontal) situados em distintos níveis no
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âmbito dos subsistemas e regimes (variação vertical) possui certa ressonância com elementos destacados pela literatura da crise da democracia no Brasil. Os limites da aposta institucional ressaltados pela vertente estrutural, por exemplo, conectam-se com o reconhecimento da sociogênese das instituições e com a noção de encaixes, produzidos em perspectiva relacional Estado e sociedade. Já a incompatibilidade do arranjo institucional híbrido representativo (presidencialismo de coalizão) e participativo (instituições participativas), por sua vez, leva-nos à reflexão de quais tipos de encaixes foram criados nos últimos anos no Brasil e onde se situam verticalmente, bem como quais as capacidades estatais e sociais geradas, seja no âmbito da participação, seja na relação executivo-legislativo. A noção de crise política, finalmente, remete às coalizões estabelecidas e às atuações dos diversos atores, que em chave analítica dos mecanismos e dos domínios de agência devem ser consideradas endogenamente ao modelo. Nessa perspectiva, as instituições participativas podem ser entendidas como encaixes criados historicamente em diversos subsistemas de políticas públicas (mas não em outros) que permitiram domínios de agência mais inclusivos do ponto de vista da participação da sociedade civil nas decisões. Esse processo certamente foi acompanhado pelo desenvolvimento de uma série de outros tipos de encaixe, notadamente a ocupação de cargos públicos por ativistas, a transformação de segmentos da burocracia, a criação de instrumentos de coordenação intersetorial, a ampliação do controle interno e externo, entre outros, com influência sobre as capacidades sociais e estatais dos órgãos, instâncias, MSs e OSCs, coalizões e redes (Abers e von Bülow, 2011; Abers, Silva e Tatagiba, 2018; Gurza Lavalle e von Bülow, 2014; Pires e Gomide, 2016). Ao menos até a mudança que começa a operar após 2013, no entanto, o regime político permaneceu mais ou menos indiferente à transformação dos subsistemas, mantendo sua lógica de atuação baseada nos mecanismos de formação de maioria inerentes ao presidencialismo de coalizão, sendo necessárias bases cada vez mais amplas para contrapesar o aumento do número de partidos, com os desdobramentos já discutidos nesse texto (Avritzer, 2016; Freitas, 2016).
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A iniciativa do PNPS, sobretudo no que se refere ao SNPS, parece ter buscado em alguma medida ampliar os encaixes participativos para outros subsistemas, elevando-os ainda que parcialmente ao âmbito do regime político. Nesse sentido, pode-se evocar o depoimento de Pedro Pontual, participante-chave na proposição da PNPS apontando para a participação como método de governo e para a perspectiva sistêmica: Apesar de toda a heterogeneidade, havia um número maior de conselhos criados em torno das políticas públicas, a gente tinha uma enorme diversificação da prática das conferências, a gente viu a ampliação das ouvidorias públicas, mas o governo tinha que dar um salto de qualidade em duas direções, apostar não só na consolidação desses canais de participação social já instituídos; o governo tinha que transformar a participação social em um método de governo (...) (Gurza Lavalle e Szwako, 2014, p. 98)
E mais adiante: (...) Trata-se de construir um conjunto de diretrizes, de orientações a serem institucionalizadas em algum momento e que deixem claro o compromisso do Estado em promover a participação social. Uma expressão desse compromisso é o arranjo das institucionalidades na forma de um sistema. (Idem, p. 101)
A proposta, no entanto, não se processou de maneira efetiva, tendo o Decreto 8.243 aberto conflitos (ou mesmo evidenciando conflitos mais amplos) entre diferentes atores no âmbito do executivo, do legislativo, da sociedade civil11 e da mídia, como se verá a seguir. O mesmo pode ser afirmado para a iniciativa da extinção das instâncias participativas produzida pelo governo Bolsonaro, que desde a perspectiva do regime político busca destruir encaixes no âmbito dos mais variados subsistemas de políticas públicas, encontrando resistência dos domínios de agência já estabelecidos. 11
Inclusive no campo de movimentos sociais, destaca-se que alguns movimentos organizados no âmbito nacional não apostavam nas instituições participativas e em sua efetividade, priorizando outros repertórios de ação e de interação com o governo (Gurza Lavalle e Szwako, 2014, p. 100).
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2.1. Trajetórias de institucionalização: instrumentos, apoios e resistências Em 23 de maio de 2014, o governo federal emitiu o Decreto 8.243 instituindo a PNPS e o SNPS. Assinado pela então presidente da república Dilma Rousseff, pela Secretaria-Geral da Presidência (SGPR), pelo Ministério de Planejamento e pela Controladoria Geral da União, o instrumento buscou ampliar, aprimorar e dar contorno sistemático e sistêmico12 ao conjunto de instituições participativas existentes na União. Em menos de dez dias da publicação do decreto, houve forte reação da mídia e do legislativo federal. Foram apresentados diversos projetos de lei visando a sustar o decreto (PDC nº 4.192/2014, PDC nº1.494/2014 e PDC nº 1.495/2014), e ainda dois projetos de decreto legislativo com a mesma finalidade: o PDL nº 117, do Senador Álvaro Dias, do PSDB, apresentado em 02/06/2014, e o PDL nº 1.491, dos Deputados Mendonça Filho e Ronaldo Caiado, do DEM, apresentado em 30/05/2014 e aprovado na Câmara em 28/10/2014, sendo encaminhado ao Senado, sem processamento posterior. Viana (2015) indica que o núcleo recorrente nas justificativas dos referidos projetos é o esvaziamento do legislativo. Na justificativa do projeto aprovado, tem-se que “o Decreto presidencial corrói as entranhas do regime representativo, um dos pilares do Estado democrático de direito” (p. 98). O exame dos argumentos dos projetos permite notar as fortes objeções de parlamentares à PNPS e ao SNPS. Outros argumentos mencionados foram a proximidade com o período eleitoral e certo incômodo com o estabelecimento do PNPS por meio de decreto, afastando a deliberação no âmbito do parlamento (Almeida, 2017; Magalhães, 2016). Endereçando essa crítica, destaca-se a apresentação do Projeto de Lei nº 8.048/2014, por parte de parlamentares do PSOL, que basicamente reedita o Decreto 8.243/2014. Do ponto de vista da discussão da mídia, essa se deu em torno sobretudo da disputa sobre a possível complementaridade entre 12
Sobre a análise do decreto sob a perspectiva dos sistemas participativos, ver a análise de Morgado (2017).
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participação e representação, sendo que alguns veículos expressamente posicionaram-se na defesa de que a participação social em uma democracia representativa dar-se-ia exclusivamente por meio de representantes eleitos (O Estado de São Paulo, 2019). Mais além, alguns veículos enquadraram o decreto como bolivarianista ou de inspiração chavista (Avritzer, 2014; Viana, 2015). A defesa circunscreveu-se às mídias progressistas e aos canais de comunicação de movimentos da sociedade civil. Contudo, é importante mencionar que, embora tenham defendido os avanços da PNPS, diversos movimentos manifestaram-se insatisfeitos com o processo de sua construção, rejeitando a tese de que o decreto havia sido construído conjuntamente com a sociedade civil (Magalhães, 2016). Noutro giro, fortalecido o discurso de rejeição às instituições em 2013, parcelas conservadoras da sociedade civil organizada também se manifestaram contra o PNPS. Representante da Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Audiência Pública realizada no Senado, em claro posicionamento reacionário, reforçou a tese sobre o caráter supostamente bolivarianista da iniciativa, a seu ver prejudicial à democracia. No âmbito da burocracia, tampouco havia consenso. Se é certo que o decreto contou com enorme esforço de elaboração e apoio da burocracia ativista estabelecida na Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR), o mesmo entusiasmo não pode ser atribuído a outros órgãos da Administração Federal, nem ao campo de conhecimento da Administração Pública, Políticas Públicas e afins. É o que demonstra a fala do Sr. José Matias Pereira, Professor da Administração Pública da Universidade de Brasília e ex-servidor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (1975-1995), na audiência pública realizada na CCJ do Senado Federal sobre o tema, que concluiu pela manifestação contrária ao PNPS por entender que a medida desorganizaria a administração pública naquele momento. A própria fala do ministro da SPGR Gilberto de Carvalho minimizou os efeitos da PNPS, indicando que se tratava tão somente de um instrumento organizador de instâncias já existentes.
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A disputa do decreto no legislativo, por sua vez, deu-se por mecanismos regimentais dispostos pelo presidencialismo de coalizão, como a obstrução de pauta, a qual recorreu algumas vezes a pequena parcela da base governista da Câmara. A já mencionada audiência pública, que se deu no Senado, foi por si só expressão da participação social vigente e de algumas de suas falhas. Contendo manifestações de defesa historicamente situadas e juridicamente embasadas como a do professor da Universidade de São Paulo Dalmo de Abreu Dallari, e manifestações teórica e empiricamente fundamentadas como a do professor da Universidade Federal de Minas Gerais Leonardo Avritzer, o momento materializou a disputa em chave instrutiva, porém com baixa efetividade no resultado do processo. Embora o Decreto 8.243/2014 nunca tenha tido seu trâmite concluído no Senado e, assim, efetivamente, seus efeitos sustados, a PNPS e o SNPS não chegaram a ser finalmente implementados, uma vez que a discussão política foi rapidamente transformada pelo período eleitoral e pela subsequente disputa pelo impeachment. O decreto permaneceu vigente até 11 de abril de 2019, quando foi revogado pelo Decreto 9.759, que extinguiu diversas instituições participativas (especificamente os órgãos colegiados) envolvidas na gestão das políticas públicas no âmbito federal. Chamado de “revogaço” por alguns movimentos da sociedade civil, o Decreto 9.759/2019 também gerou disputa midiática e legislativa considerável, embora de menor repercussão do que a PNPS. No âmbito do Congresso, a iniciativa foi alvo de dois Projetos de Decreto Legislativo visando sustar seus efeitos: o PDL 113, de 12 de abril de 2019, aprovado em uma comissão, mas aguardando designação de relator na CCJ, e o PDL 24, de 22/04/2019, que aguarda parecer da CCJ. Importante mencionar ainda que esse Decreto é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6.121), impetrada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), com participação ademais de movimentos e da Defensoria Pública da União. Há, na ação, decisão liminar que declara inconstitucional a extinção de colegiados instituídos em atos infralegais, porém mencionados em lei. Do ponto de vista da Administração Pública, a Procuradoria Geral
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da República e a Defensoria Pública da União manifestaram-se criticamente por meio de nota técnica. Já do ponto de vista da mídia, embora o Decreto tenha merecido uma nota de elogio por parte do Estadão, as manifestações foram em geral contrárias (O Estado de São Paulo, 2019b). Alguns protestos foram registrados, como a mobilização nacional promovida contra a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional chamada de “Banquetaço”, ato político com alimentação, que ocorreram em mais de 40 cidades brasileiras no dia 27 de fevereiro (Dias, 2019). Algumas moções foram emitidas por instâncias participativas, como a Nota Pública do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Ademais, algumas conferências de setores de políticas públicas estão sendo livremente organizadas pela sociedade civil, a despeito da convocação pelo Governo Federal, demonstrando reação extrainstitucional e certo legado dos processos anteriores. Diversas organizações da sociedade civil, incluindo a Transparência Brasil (2019), sindicatos e centrais sindicais, grupos de trabalhos e movimentos sociais emitiram notas e cartas de repúdio ou notas técnicas tecendo críticas e alertando para riscos. Podem-se notar também ações de coletivos e frentes de resistência como a campanha nas redes sociais “O Brasil Precisa de Conselhos”, organizada e mobilizada por acadêmicos que atuam nesse campo de pesquisa, bem como o monitoramento da situação na plataforma virtual “Democracia e participação”, constituída como reação ao desmonte dos órgãos colegiados. Finalmente, destaca-se o Projeto de Lei 128/2019 que reestabelece a PNPS e que em trâmite já teve sua aprovação na Comissão de Administração Pública e Serviço Público (Teixeira , Bezerra e Silva, 2019). Diante do exposto, percebe-se que as trajetórias de apoio e oposição à iniciativa de institucionalização da PNPS, de um lado, e do Decreto 9.759/2019, de outro, operaram-se no âmbito das instâncias representativa, participativa e ativista a partir de repertórios de ação mais ou menos institucionalizados. Resgatando a discussão sobre as vertentes da crise da democracia vivenciada no Brasil à luz das categorias analíticas do campo da institucionalização, destacam-se os seguintes pontos: (i) a construção participativa
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da PNPS foi um processo permeado de dificuldades que, no esteio de 2013, notadamente reflete dissonâncias entre governo e ativistas da sociedade civil, enfraquecendo tanto a qualidade, quanto a mobilização de defesa em torno ao instrumento final; (ii) o isolamento do Congresso das discussões, a proximidade das eleições, o enfraquecimento da base do governo pós-2013 e a ausência de consenso dessa base sobre o instrumento geraram um rechaço a PNPS e dificultaram a reação do governo na sustentação da medida; (iii) as iniciativas de resistência institucional a favor do PNPS foram suficientes para impedir seu cancelamento formal, mas não para garantir-lhe efetividade; (iv) por sua vez, as medidas de resistência contra o Decreto 9.759/2019, tanto institucionais quanto extrainstitucionais mostraram-se até o momento ineficazes para reverter seus efeitos; e (v), em ambos os casos, o papel da mídia refletiu a não apropriação da participação social por parte das elites e da população em geral. CONSIDERAÇÕES FINAIS É imperativo partir da constatação que o arcabouço participativo criado de forma inovadora no Brasil foi incapaz de impedir a desconstrução democrática pela qual passa o país, no que diz respeito tanto ao aspecto institucional, quanto ao simbólico. Por outro lado, o sistema participativo proliferou-se em tamanha medida que foi capaz de assegurar instâncias e narrativas de resistência, situadas na sociedade civil, mas também como plataformas políticas consolidadas no legislativo, ou ainda enquanto capacidades estatais que, tendo ampliado a permeabilidade do aparato estatal, hoje são barreiras resilientes para a desconstrução em curso. Nesse esteio, as instituições participativas brasileiras parecem ter se proliferado como encaixes parcialmente inclusivos nos âmbitos de alguns subsistemas de políticas públicas, ao passo que encontraram fortes impedimentos para se estabelecerem como encaixes no âmbito do regime político, reduzindo a abrangência de seus domínios de agência em termos efetivos. Essa perspectiva ilumina críticas substanciais à sociogênese das instituições participativas, sobretudo quando pretendem ir além das imediações de
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suas redes de atuação, clamando por efetividade decisória mais ampla e intersetorial. A viabilização de um projeto democrático, portanto, parece exigir a ação conjunta de diversos atores nas esferas institucional e extrainstitucional. Em outras palavras, pode-se dizer que a radicalidade pretendida pelo projeto participativo não pode ser plenamente realizada sem a constante interação de repertórios ativistas, institucionais e políticos. Analisar as instituições participativas como encaixes específicos pode ser uma forma produtiva de abordar tais fenômenos. REFERÊNCIAS Abers, Rebecca; von Bülow, Marisa (2011), “Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre o Estado e a sociedade?”, Sociologias, Ano 13, 18, Porto Alegre: pp. 52-84. Abers, Rebecca; Serafim, Lizandra; Tatagiba, Luciana (2014), “Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula”, Dados, 57(2), 325-357. https://doi.org/10.1590/0011-5258201411. Abers, Rebecca, Silva, M. K.; Tatagiba, Luciana (2018), “Movimentos Sociais e Políticas Públicas: Repensando atores e oportunidades políticas”, Lua Nova, 105, 15-46. Almeida, Carla; Cayres, Domitila Costa; Tatagiba, Luciana (2015), “Balanço dos estudos sobre os conselhos de políticas públicas na última década”, Lua Nova, (94), 255-294. https://doi. org/10.1590/0102-64452015009400009. Almeida, Débora Rezende (2012), “Representação política e conferências: os desafios da inclusão e da pluralidade”, Textos para Discussão n. 1750. Brasília: IPEA. Almeida, Débora Rezende (2014a), “Pluralização da Representação Política e Legitimidade Democrática: lições das instituições participativas no Brasil”, Opinião Pública, 20 (1). Campinas: 96-117. Almeida, Débora Rezende (2014b), “Representação como Processo: a relação Estado/sociedade na teoria política contemporânea”, Revista de Sociologia e Política. 22 (50), 175-199. Almeida, Débora Rezende (2017), “Os desafios da efetividade e o estatuto jurídico da participação: a Política Nacional de Participação Social”, Revista Sociedade e Estado, 32 (3), Setembro/ Dezembro. Alonso, Ângela (2012), “Repertório, Segundo Charles Tilly: História de um Conceito”, Sociologia & Antropologia. V. 02.03, pp. 21-41. Arantes, Rogério B.; Couto, Carla G. (2019), “1988‑2018: 30 anos de constitucionalização permanente”, in: Naercio Menezes Filho; André Portela Souza (orgs.). A Carta: para entender a Constituição brasileira. São Paulo: Todavia, v. 1, pp. 13‑52. Avritzer, Leonardo (2000),“Teoria democrática e deliberação pública”, Lua Nova, Nº 49, pp. 25-46. Avritzer, Leonardo (2007), “Sociedade Civil, Instituições Participativas e Representação: da autorização à legitimidade de ação”, Dados - Revista de Ciências Sociais, 50 (3), 443-464.
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Capítulo 4 Cidadania Social e a Crise da Democracia: Reforma do Estado de Bem-Estar Social a Partir de uma Perspectiva Radicalmente Democrática1 Emma Rose Álvarez Cronin 1. DEMOCRACIA, CIDADANIA SOCIAL E O ESTADO DE BEM-ESTAR KEYNESIANO Nas democracias liberais, ser cidadão é ser um membro legítimo de uma comunidade política, com direito a uma série de direitos e vinculado a uma série de deveres (Marshall e Bottomore, 1992). É um status baseado no princípio de que “todos os indivíduos nascem livres e iguais” (Mouffe, 1992, p. 83). No entanto, o conceito de cidadania tem sido constantemente enriquecido com o tempo, pois as lutas históricas têm forçado o Estado a reconhecer progressivamente uma gama mais ampla de direitos. Portanto, a evolução da democracia liberal tem andado lado a lado com a evolução da cidadania: os direitos ligados a esse conceito e o escopo das pessoas titulares desses direitos (Marshall e Bottomore, 1992). Em outras palavras, quem é considerado um cidadão e o que significa ser um. Os direitos civis reconhecem liberdades essenciais, tais como o direito à integridade física ou à liberdade de expressão, de pensamento e de fé. Os direitos políticos, por 1
Uma versão deste texto em inglês foi publicada no Cescontexto n. 27, que reuniu trabalhos discutidos no Workshop “A Crise e os Desafios da Democracia”, realizado em novembro de 2019 no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Portugal) e organizado pelo CES e pelo INCT – Instituto da Democracia (Brasil).
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outro lado, referem-se à participação ativa do cidadão na sociedade, e incluem o direito de reunião ou o direito ao voto. Os direitos sociais – ou direitos de terceira geração – são resultado da luta constante dos movimentos operários, juntamente com o medo do avanço do comunismo e o trauma da ascensão do fascismo (Duffy, 2016). Após a Segunda Guerra Mundial, as democracias ocidentais foram forçadas a buscar soluções reais para as desigualdades extremas que a economia capitalista estava criando. Como argumentou T.H. Marshall, a inclusão dos direitos sociais no status de cidadania significa enriquecimento geral da substância concreta da vida civilizada, uma redução geral do risco e insegurança, uma igualação entre os mais e os menos favorecidos em todos os níveis – entre o sadio e o doente, o empregado e o desempregado, o velho e o ativo, o solteiro e o pai de uma família grande. (1992, p. 56)
Isso nos levaria a uma nova forma de cidadania, a cidadania social, que passa a reconhecer que, para serem incluídos na sociedade, para serem livres e participarem como iguais, todos os cidadãos devem ter garantia de um certo nível de segurança econômica. Isso implica uma nova e muito próxima relação entre a democracia e o reconhecimento de certos direitos sociais e econômicos. Além disso, requer uma maior intervenção estatal na economia, o que resultará no desenvolvimento do que chamamos de “estado de bem-estar social”. O Estado de Bem-Estar keynesiano é o resultado do contrato social pós-Segunda Guerra Mundial, e está essencialmente ligado ao modelo fordista de produção, bem como à sua estrutura de mercado de trabalho. Anteriormente, durante a revolução industrial, o trabalho era simplesmente considerado outro fator de produção, sujeito à lei de oferta e demanda. Nesse sentido, os trabalhadores estavam à mercê das flutuações do mercado e dependiam completamente do trabalho assalariado para subsistirem. Foi um período de graves desigualdades e pobreza na classe trabalhadora, na qual o desemprego foi um fenômeno devastador (Esping-Andersen, 1990).
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No entanto, Esping-Andersen explica que o Estado de Bem-Estar keynesiano nasceu reconhecendo uma verdade essencial, de que “os trabalhadores não são mercadorias como as outras, porque eles devem sobreviver e reproduzir a si mesmos e à sociedade em que vivem” (1990, p. 37). Nesse sentido, ele defende que a “desmercadorização” (de-commodification) também é um conceito central no nascimento do estado de bem-estar social. Expressa a necessidade de assegurar um “padrão de vida socialmente aceitável independentemente da participação no mercado” (1990, p. 37). Além disso, Esping-Andersen entende um “padrão de vida socialmente aceitável” como um nível de renda acima do limiar de pobreza, o que significa além de 60% da renda média nacional. Como medir até que ponto o Estado de bem-estar social desmercadoriza o trabalho (de-commodifies) e garante o acesso igualitário aos direitos sociais e econômicos? O Estado de Bem-Estar Keynesiano está equipado com três principais instrumentos para isso: a política fiscal, que deveria ser progressiva; serviços públicos como educação, saúde ou serviços sociais; e transferências monetárias, incluindo benefícios previdenciários –compostos principalmente por benefícios de desemprego, pensões e políticas de renda básica. O Estado de bem-estar keynesiano pode usar e combinar esses instrumentos para alcançar três objetivos principais: pleno emprego, segurança econômica e redução das desigualdades (Serrano e García, 2014). Quando se trata de medir o tamanho do estado de bem-estar social, podemos usar o indicador de despesa social, que também nos permite comparar países. No entanto, Esping-Andersen (1990) ressalta que, para medir a eficácia das políticas sociais, devemos levar em conta mais três fatores. Primeiro, a acessibilidade dos benefícios que é determinada pela existência de medidas de condicionalidade e outras restrições. Segundo, o nível de reposição de renda; em outras palavras, se os benefícios permitem que os cidadãos atinjam um nível de renda socialmente aceitável. Terceiro, o escopo dos direitos fornecidos, se são universais, centrados no trabalho, se dependem de nacionalidade, etc.
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Por fim, o escopo do estado de bem-estar social também depende do nível de intervenção do estado no mercado de trabalho. Políticas econômicas expansivas permitem que o Estado keynesiano estimule a economia e crie empregos para garantir o pleno emprego. No entanto, a intervenção estatal também inclui a constituição de um regime específico de mercado de trabalho. Isso envolve proteção social em caso de desemprego ou incapacidade de trabalhar (em caso de doença, incapacidade física, velhice, etc.), mas também regulamentações do mercado de trabalho: estabelecer um salário-mínimo, horas de trabalho legais, tipologia de contratos, reconhecer o direito de organização, etc. (Del Pino e Ramos, 2015; Esping-Andersen, 1990). 1.1. Os quatro mundos do capitalismo do bem-estar2 Quando se trata do Estado de Bem-Estar keynesiano na Europa, não podemos falar de um modelo único. Na verdade, embora compartilhem bases e certas características semelhantes, podemos distinguir entre pelo menos três, e até quatro, regimes. Cada um deles é baseado em diferentes princípios ideológicos e está condicionado pela posição econômica regional do Estado. Mais importante, levam a diferentes consequências em termos de desmercadorização do trabalho e da previdência, por isso é essencial compreender as suas diferenças básicas. Nesse sentido, Esping-Andersen (1990) menciona três modelos principais: o modelo social-democrata, o modelo conservador e o modelo liberal. O modelo social-democrata, que tem maior impacto em termos de desmercadorização e redistribuição, baseia-se no princípio de que os direitos sociais têm um escopo universal, e a acessibilidade depende apenas do status de cidadania. O modelo conservador, associado às teses de Otto von Bismarck, baseia-se nos sistemas de seguridade social relacionados aos ganhos. Os direitos sociais não podem ser classificados como universais porque estão 2
A razão pela qual eu não estou incluindo países orientais pós-comunistas na análise é que, embora a maioria possua um estado bem-estar residual, a sua diversidade torna difícil falar sobre um modelo de bem-estar pós-comunista (Couceiro e Adelantado, 2017).
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vinculados à participação da pessoa no mercado de trabalho e, portanto, à sua classe e status social, em vez de seu status como cidadão. Além disso, altos níveis de regulação do mercado de trabalho e baixos níveis de desemprego são características centrais dos regimes de mercado de trabalho de ambos os modelos. Em terceiro lugar, o modelo liberal, cujo principal ideólogo é W.H. Beveridge, baseia-se principalmente na comprovação de necessidade (means tested assistance). As políticas sociais são voltadas para os mais pobres e vulneráveis, e famílias e indivíduos dependem fortemente do mercado quando se trata de bem-estar. No entanto, no Reino Unido, o escopo do Estado de Bem-Estar social é muito maior do que em outros modelos liberais, como os EUA ou a Austrália. Além disso, embora compartilhe baixos níveis de desemprego com os demais regimes de mercado de trabalho, é muito menos regulado. Por fim, há o modelo de bem-estar mediterrâneo, que se desenvolveu no calor do processo de democratização no sul da Europa durante as décadas de 70 e 80 (Adelantado e Gomà, 2000). Esping-Andersen não inclui esse modelo em sua categorização, nem outros autores, os quais afirmam que esses países desenvolveram essencialmente um modelo conservador de bem-estar. No entanto, creio que existem diferenças importantes que tornam essa distinção necessária e analiticamente útil. Esse modelo combina elementos social-democratas, como o escopo universal da educação ou da saúde, com elementos conservadores, como sistemas de seguridade social relacionados à renda. No entanto, como o desemprego é um problema estrutural nesses países, o bem-estar centrado no trabalho cria grandes desigualdades e exclusão social. Por fim, compartilha baixos níveis de desmercadorização e despesa social com modelos liberais, bem como um mercado de trabalho desregulamentado. 2. O ESTADO DE BEM-ESTAR KEYNESIANO EM CRISE: A REFORMA NEOLIBERAL E A CRISE DO TRABALHO ASSALARIADO Durante a era de ouro do Fordismo, o trabalho assalariado foi capaz de garantir padrões aceitáveis de vida na Europa graças a um contexto econômico de crescimento e uma estrutura estável
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do mercado de trabalho. As condições de trabalho foram padronizadas e houve grandes conquistas em termos de igualdade, uma vez que a faixa salarial havia sido reduzida e os salários cresciam no mesmo ritmo que a produtividade. Os empregos eram estáveis, os contratos permanentes eram a norma, e o trabalho era um canal efetivo de inclusão social, bem como um dos principais eixos da identidade individual (Dombois, 2002). No entanto, a crise da década de 1970 colocou em questão, primeiro, a produtividade das economias capitalistas avançadas e, mais tarde, o modelo fordista de produção como um todo. Além disso, o processo de globalização, revolução tecnológica e desenvolvimento de cadeias de suprimentos transnacionais resultou em um processo de desindustrialização nos países mais enriquecidos, acompanhado pela ascensão do setor de serviços e conhecimento. Principalmente, em um contexto econômico pós-industrial com economias predominantemente terciárias, o trabalho assalariado não se traduz mais em segurança econômica, nem fornece certeza alguma, uma vez que trabalhadores pouco qualificados entram e saem de empregos temporários, de meio período e com baixos salários (Esping-Andersen, 1990; Moscoso, 2003). Isso tem consequências óbvias e profundas para o Estado de Bem-Estar Keynesiano, o qual foi projetado com base em uma economia fechada, mudanças tecnológicas constantes e emprego industrial (Standing, 2017). Como afirma Guy Standing, “a razão mais importante para a degradação do sistema previdenciário é que a insegurança econômica atual é profundamente diferente, pelo menos em sua estrutura, daquela que prevaleceu em meados do século XX” (2017, p. 88). No entanto, embora tenha sido desencadeada pela crise dos anos 70 e pelas mudanças que esta última acarretou na estrutura da economia e do mercado de trabalho, a crise do Estado de Bem-Estar keynesiano acabou sendo alimentada pelas reformas que ocorreram sob o paradigma neoliberal. 2.1. O Workfare State Em economias enriquecidas, desde a década de 80, os governos optaram por realizar uma reformulação neoliberal do estado
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de bem-estar social como estratégia para adaptar as políticas sociais a uma ordem econômica pós-industrial. O paradigma do Workfare State promove o bem-estar orientado ao mercado, e sua premissa não é garantir a segurança econômica – nem o pleno emprego e a igualdade –, mas a empregabilidade dos trabalhadores. Portanto, como descreve Gilbert, houve uma mudança “da ênfase dos direitos sociais, para os deveres cívicos dos membros da comunidade” (2002, p. 5). Consequentemente, as reformas têm visado reforçar políticas voltadas para o trabalho, privatizando o bem-estar social, aumentando as políticas assistenciais e reduzindo a intervenção estatal no mercado de trabalho. Em primeiro lugar, isso se traduziu em reformas políticas para aumentar a flexibilidade do trabalho e reduzir os direitos trabalhistas, uma vez que a desregulamentação tem sido a principal receita para ganhar competitividade em uma economia global (Prosser, 2016). Em segundo lugar, houve importantes reformas estruturais nos sistemas de seguridade social. À medida que o investimento público caminha para políticas ativas de emprego, as políticas passivas foram cortadas: a duração do seguro-desemprego diminuiu, assim como seu nível de reposição de renda, a condicionalidade tornou-se mais rigorosa e, em muitos casos, os períodos de tempo empregado requeridos para acesso às políticas foram estendidos, dificultando a inserção dos trabalhadores que têm uma relação instável com o mercado de trabalho. Finalmente, a importância das prestações não contributivas de natureza assistencialista (means-tested assistance) aumentou. Isso inclui políticas como subsídios ao desemprego, benefícios de renda básica ou serviços sociais não contributivos, que são muito menos generosos do que os benefícios relacionados ao trabalho (Adelantado e Gomà, 2000). Embora as reformas tenham seguido em sua maioria na mesma direção, há diferenças essenciais dentro da UE. Para modelos conservadores e mediterrâneos de bem-estar, com sistemas de seguridade social relacionados à renda, as transformações no mercado de trabalho têm afetado fortemente os níveis de proteção social dos trabalhadores. Nesse contexto, países como a França instalaram benefícios de renda básica direcionados aos
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trabalhadores pobres, mas países do sul como Espanha ou Grécia centraram seus recursos para enfrentamento das altas taxas de desemprego e prestaram pouca atenção à pobreza no trabalho (Zalakain, 2014). Os regimes social-democratas também mudaram para políticas orientadas ao trabalho, mas ainda conservam altos níveis de proteção social (Moreno e Marí-Klose, 2016). Por fim, regimes liberais como o Reino Unido lideraram o processo de reforma neoliberal, insistindo ainda mais em políticas de bem-estar assistencialistas e na privatização de serviços como saúde e educação (Deeming, 2015). Todas essas reformas orientadas ao mercado transferem diretamente aos trabalhadores os riscos e incertezas criados pelos mercados globais. Em última análise, elas diminuem o poder redistributivo do Estado de bem-estar social e o transformam em um agente de estratificação social. Isso significa que, longe de reduzir as desigualdades sociais, as políticas de bem-estar estão reforçando-as (Emmenegger et al., 2012). 2.2. Dualização social na União Europeia O aumento da desigualdade na União Europeia, e em todas as democracias ocidentais, não é apenas uma consequência da Grande Recessão de 2008, mas uma tendência que começou na década de 1970 e continua até hoje. O relatório da OCDE de 2015, intitulado “In It Together: Why Less Inequality Benefits All” afirma que, hoje, nos países da OCDE, os 10% mais ricos ganham quase dez vezes mais do que os 10% mais pobres, enquanto na década de 1980 ganhavam 7 vezes mais. Isso significa que os ricos têm ficado mais ricos muito rapidamente, enquanto os pobres têm experimentado um crescimento de renda muito lento e estão cada vez mais vulneráveis a crises econômicas. Na UE, apesar de a desigualdade ter aumentado em todos os países – ainda que em menores proporções na França, na Bélgica e na Holanda3 – os indicadores de exclusão social também são extremamente preocupantes. Em 2017, 22,4% 3
OCDE (2015), In It Together: Why Less Inequality Benefits All, Editora OCDE, Paris. Consultado em 3.10.2019, em: https://doi.org/10.1787/9789264235120-en.
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das pessoas estavam em risco de exclusão social, e esse fenômeno afeta especialmente jovens entre 16 e 24 anos (29%), desempregados (33,2%), migrantes de países de fora da UE (44,1%) e famílias de pais solteiros (41%), em sua maioria chefiadas por mulheres.4 Além disso, as condições específicas em que esse aumento da desigualdade e da exclusão social estão ocorrendo levaram muitos a falar sobre um processo de dualização social entre quem está dentro, os insiders, e quem está fora, os outsiders, em termos de acesso a direitos. Enquanto o emprego para trabalhadores de baixa qualificação vem do setor de serviços, com baixos níveis de crescimento da produtividade, condições precárias de trabalho e escassa sindicalização, trabalhadores de alta qualificação têm visto sua renda aumentar, pois são altamente demandados em setores de economia baseada no conhecimento (OCDE, 2015). No entanto, a dualização social não é apenas um problema de desigualdade de renda. A divisão entre insiders e outsiders também está relacionada a um acesso desigual aos direitos sociais e econômicos, e isso é uma consequência direta da reforma política: [...] Políticas públicas cada vez mais diferenciam direitos, prerrogativas e serviços prestados a diferentes categorias de beneficiários. Assim, a posição dos insiders pode permanecer mais ou menos constante enquanto apenas a posição de outsiders se deteriora. (Emmenegger et al., 2012, p. 10).
Nesse sentido, a noção de “dualização” também vem para enfatizar a intenção política por trás desse processo. Governos e instituições internacionais poderiam ter escolhido outras estratégias de reforma e políticas públicas para adaptar regimes de bem-estar a um contexto econômico pós-fordista. Por fim, devemos também levar em conta que a exclusão social se apresenta de múltiplas formas, criando um contexto social bastante diferente daquele de meados do século XX: de trabalhadores pobres e desempregados, a mães e pais solteiros, imigrantes 4
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de países pobres e de jovens que sofrem condições precárias de trabalho e desemprego. A categoria outsiders também é cortada por desigualdades baseadas em raça, sexo ou idade, e é tudo menos um grupo homogêneo de trabalhadores homens brancos. No entanto, nem o Estado de Bem-Estar keynesiano, nem o Estado de Bem-Estar orientado ao mercado foram projetados para responder a essa realidade cada vez mais complexa e diversificada. O que vemos hoje é uma contradição essencial: as instituições estão remercadorizando a força de trabalho e criando políticas centradas no trabalho precisamente no momento em que o mercado de trabalho é menos capaz de garantir segurança econômica e estabilidade por meio do trabalho assalariado. Em essência, isso significa que nenhum agente, nem o mercado nem o Estado, está assumindo a responsabilidade de garantir padrões de vida socialmente aceitáveis a todos os cidadãos. A consequência final desse processo é que hoje, em nossas sociedades, existem cidadãos de primeira e segunda classe. Temos os insiders, que desfrutam plenamente dos seus direitos sociais e econômicos, e os outsiders, que têm um acesso limitado a esses direitos, estão sujeitos a constante incerteza e instabilidade e, portanto, são menos capazes de participar plenamente da sociedade ou exercer suas liberdades. Essa realidade, que representa o colapso do contrato social pós-Segunda Guerra Mundial, é um fator central para explicar a crise da democracia. 3. RUMO A UMA DEMOCRACIA RADICALMENTE INCLUSIVA As democracias liberais desenvolveram o Estado de Bem-Estar keynesiano com a premissa de que nenhum cidadão pode participar da sociedade como igual, ou ser verdadeiramente livre, sem segurança econômica básica. Portanto, no contexto atual, no qual o neoliberalismo criou níveis sem precedentes de desigualdade e quebrou os pilares de nossos Estados de Bem-Estar, podemos dizer que vivemos em sociedades verdadeiramente democráticas? Além disso, a noção de cidadania social ligada ao Bem-Estar keynesiano alguma vez garantiu o status igual de todas as pessoas?
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A verdade é que, embora não possamos ceder ao neoliberalismo – o que envolveria renunciar ao conceito de cidadania social e continuar a construir um Workfare State que não assume qualquer responsabilidade em garantir padrões básicos de segurança econômica –, também não podemos voltar atrás no tempo. Como Guy Standing declarou, “o sistema de distribuição do século XX quebrou” (2017, p. 84). No entanto, muitos também argumentam que o conceito e o conteúdo dos direitos sociais devem evoluir ainda mais, a fim de garantir a verdadeira igualdade e liberdade a todos os cidadãos (Powell, 2002; Mouffe, 2013; Duffy, 2016). Nesse sentido, parece necessário construir um novo modelo de bem-estar baseado em um conceito renovado de cidadania social. Isso implicaria na adaptação das políticas sociais e econômicas não apenas ao contexto de uma sociedade pós-industrial, mas também a uma realidade mais complexa e diversificada, de modo que as relações de poder baseadas em gênero, sexualidade, incapacidades ou cor/raça também sejam levadas em conta. Como explicarei mais adiante, isso envolve deslocar o homem heterossexual branco como o principal sujeito das políticas de bem-estar. Em outras palavras, precisamos de uma nova noção de cidadania social, que integre uma perspectiva radicalmente democrática. Citando a filósofa Chantal Mouffe, isso implicaria a construção de uma nova identidade política com “uma interpretação democrática radical dos princípios da liberdade e da igualdade”, centrais para qualquer regime democrático liberal. Isso significa que esses princípios devem ser compreendidos “de maneira que leve em consideração as diferentes relações sociais e posições de sujeito nas quais elas são relevantes: gênero, classe, raça, etnicidade, orientação sexual, e assim por diante” (1992, p. 71). Aqui, embora eu não possa dar uma resposta completa a essa pergunta, pretendo descrever algumas características essenciais que devem ser incluídas em um conceito radicalmente democrático de cidadania social. Mais especificamente, pretendo analisar três abordagens principais e propostas políticas que, creio eu, estarão no centro do debate nas próximas décadas: a proposta de uma Renda Básica Universal, uma visão feminista da democracia e da reforma do sistema de bem-estar social e, finalmente, o Green New Deal.
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3.1. Cidadania social e Renda Básica Universal Os sistemas de seguridade social são um aspecto fundamental do sistema de Bem-Estar social e também têm sido um tema essencial da reforma neoliberal. Sua efetividade na redistribuição de renda e desmercadorização do trabalho tem sido gravemente afetada pela transição para o paradigma do Workfare State, mas também pelas mudanças no mercado de trabalho, relacionadas à mudança tecnológica e à globalização. Como descrevi anteriormente, garantir a segurança de renda tornou-se um elemento central da cidadania e da democracia na Europa pós-Segunda Guerra Mundial. Isso aconteceu principalmente porque os governos reconheceram que exercer a liberdade e ser verdadeiramente igual depende da independência e segurança econômica. Portanto, se não queremos retroceder no processo de democratização renunciando aos direitos sociais, se ainda acreditamos que o Estado deve garantir padrões de vida socialmente aceitáveis a todos os cidadãos, precisamos de novas propostas políticas que possam permitir que nossos sistemas de seguridade social se adaptem ao mercado de trabalho pós-industrial. Nesse sentido, os defensores da Renda Básica Universal (RBU) argumentam que com vontade política ela é possível. A definição proposta pela Rede Mundial da Renda Básica (BIEN) nos ajuda a reconhecer a principal diferença entre essa proposta e nossos sistemas de seguridade social vigentes: “uma renda básica é uma renda incondicionalmente concedida a todos individualmente, sem necessidade de comprovação ou trabalho” (Raventós, 2007, p. 8). Em outras palavras, afasta-se do paradigma centrado no trabalho e em prestações não contributivas de natureza assistencialista, ao mesmo tempo em que avança em termos de universalização dos direitos sociais e econômicos em comparação com o antigo regime keynesiano. Essa mudança é essencial, pois a independência do mercado, em um contexto em que o trabalho assalariado não se traduz mais em inclusão social, é mais necessária do que nunca a fim de garantir liberdades democráticas e igualdade social. Standing (2017) explica como benefícios concedidos em políticas assistenciais,
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juntamente com obstáculos burocráticos destinados a dificultar as tentativas das pessoas para obter benefícios, criam “armadilhas de precariedade”. Quando a única opção que as pessoas têm é aceitar empregos de meio período, de curto prazo e mal remunerados, há pouco incentivo para que abandonem os benefícios a que têm direito, pois há muito pouco a ganhar em termos de estabilidade, segurança ou renda. Isso significa que, embora muitos economistas neoliberais argumentem que uma RBU agiria como um desincentivo para as pessoas trabalharem, é o sistema atual, que eles projetaram, que está criando esses tipos de problemas. Uma Renda Básica Universal, sem condicionalidade anexada, independentemente de outras fontes de renda, poderia realmente ser uma solução para as pessoas escaparem dessa armadilha. Em outras palavras, tirar o risco de perder benefícios sociais poderia incentivar as pessoas a trabalhar muito mais do que políticas sociais punitivas e restritivas. Nesse sentido, os resultados do experimento de renda básica finlandesa (2017-2018) fornecem evidências empíricas muito interessantes. O principal objetivo deste experimento foi estudar o impacto de uma renda básica na participação do mercado de trabalho. De uma amostra aleatória nacional de 175.000 pessoas que receberam seguro-desemprego básico, 2.000 receberam uma renda básica incondicional, enquanto o restante foi usado como um grupo de controle. O estudo revelou que, embora a renda básica não tivesse criado um maior incentivo ao trabalho, não houve diferenças significativas no comportamento do mercado de trabalho entre os cidadãos que a receberam e aqueles que receberam o seguro-desemprego. Além disso, a renda básica implicava em menor burocracia e maior satisfação pessoal e bem-estar para aqueles que a receberam.5 Finalmente, para garantir que todos os cidadãos tenham direito a padrões de vida socialmente aceitáveis, também é importante que uma política de RBU garanta um nível de renda 5
Kangas, Olli (2019). First results from the Finnish basic income experiment, ESPN Flash Report 2019/17, European Social Policy Network (ESPN), Bruxelas: Comissão Europeia. Acessado em: 12.10.2019. Disponível em: https://ec.europa.eu/social/BlobServlet?docId=20846&langId=en.
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suficiente. Nas últimas décadas, à medida que a instabilidade no trabalho e o desemprego aumentaram, também subiu o número de pessoas que recebem ou dependem de benefícios da seguridade social. No entanto, os níveis de reposição de renda raramente são capazes de garantir padrões de vida acima do limiar da pobreza (Emmenegger et al., 2012). É por isso que autores como Raventós (2007), Van Parijs e Vanderborght (2017) ou Standing (2017) argumentam que é necessário, e também possível, projetar uma RBU com um nível de reposição de renda acima do limiar de pobreza, que, por definição, erradicaria o fenômeno da exclusão social em toda a Europa. Nossas sociedades hoje são caracterizadas pela insegurança crônica. Se os cidadãos não têm garantia de inclusão social, nem por meio do trabalho assalariado, nem através do sistema de bem-estar, nós os condenamos à incerteza – especialmente trabalhadores de baixa qualificação. Ainda assim, com medo, insegurança e privação econômica, é quase impossível participar da sociedade com liberdade. Ao entendermos que não há como voltar ao trabalho industrial, mesmo que os direitos trabalhistas essenciais sejam restaurados, o Estado de Bem-Estar pós-industrial deve adaptar-se, não retirando-se, mas insistindo ainda mais na desmercadorização do trabalho. Além disso, como argumentarei a seguir, nossos sistemas de seguridade social devem avançar e reconhecer que existem muitas formas de contribuição social, que não necessariamente pertencem à esfera produtiva da economia ou envolvem o trabalho assalariado. 3.2. Cidadania social e feminismo O feminismo tem muito a dizer sobre a definição de cidadania social, bem como sobre o desenho do Estado de Bem-Estar Keynesiano e sua atual crise. Por um lado, Pateman (1988) argumenta que a definição liberal de cidadania é em grande parte centrada no sexo masculino. A distinção público/privado, essencial desde o reconhecimento dos direitos civis, também tem sido um fator de exclusão e subordinação para as mulheres. Quando se trata de cidadania social, essa distinção significa que todas as ativi-
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dades que pertencem à esfera “doméstica”, tradicionalmente relacionadas às mulheres, são completamente ignoradas na definição de direitos sociais e na decisão do escopo do Estado de Bem-Estar Social. Portanto, não se trata de estender os direitos existentes às mulheres para que elas passem a ser consideradas cidadãs de primeira classe, mas trata-se de redefinir direitos sociais – bem como direitos cívicos e políticos – com uma perspectiva feminista. Por outro lado, Nancy Fraser (1994) tem discutido que a crise do estado de bem-estar social é em grande parte influenciada pela queda da ordem industrial de gênero. Essa ordem implicava que as pessoas fossem organizadas em unidades familiares heterossexuais, chefiadas por homens e com uma divisão sexual do trabalho na qual o homem era o provedor e as mulheres eram prestadoras de cuidados. Além disso, baseava-se na existência de um “salário familiar”, o que significava que uma família inteira poderia viver com apenas uma renda. No entanto, atualmente, o salário familiar não existe mais, pois pelo menos dois salários são necessários para manter uma família – e, às vezes, ainda são insuficientes. Em segundo lugar, as famílias têm se diversificado, de modo que o modelo tradicional não prevalece mais e tipos alternativos de família surgiram como famílias monoparentais, famílias com dois provedores, famílias sem filhos ou famílias não heterossexuais. Por fim, a incorporação das mulheres no mercado de trabalho tornou insustentável a definição tradicional de pleno emprego, já que, em sua origem, é centrada no sexo masculino. No entanto, a reforma neoliberal do estado de bem-estar social, longe de se adaptar a esse contexto e promover uma ordem de gênero mais igualitária, está pressionando para restaurar o modelo de família baseado no homem provedor e na mulher trabalhadora doméstica (Fraser, 1994). Consequentemente, uma vez que as mulheres entram no mercado de trabalho, elas não abandonam ou compartilham o trabalho assistencial, mas assumem uma dupla jornada. Além disso, à medida que o poder do mercado privado cresce e os benefícios sociais são cortados, as famílias – mais especificamente, as mulheres – são forçadas a retomar o trabalho assistencial que não é mais prestado pelo Estado (Luxton e Bezanson, 2006).
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A desregulamentação do mercado de trabalho também teve um grande impacto na vida das mulheres, uma vez que a dupla jornada as leva a aceitar com mais frequência do que os homens empregos de meio período, temporários e mal remunerados. Nos países da UE6, 30,8% das mulheres trabalhadoras têm um contrato de meio período, e esse número sobe para 73,8% nos Países Baixos e 46,7% na Alemanha. A diferença salarial entre os sexos é de 16% para a UE, 20% no Reino Unido e 21% na Alemanha. É claro que essas diferenças nos ganhos têm consequências em termos de acesso aos direitos sociais e econômicos, por exemplo, quando se trata de aposentadorias. Enquanto 16,8% dos aposentados correm o risco de exclusão social dentro da UE, 20,5% das mulheres aposentadas estão nessa situação. Em casos como a Suécia, um regime social-democrata, esse número ainda é de 20,6%, enquanto em países do Mediterrâneo, como a Grécia, sobe para 26,3%. Todos esses fatores devem nos fazer refletir sobre como o feminismo pode nos ajudar a analisar e repensar nossas sociedades e, principalmente, nossos regimes de bem-estar no século XXI. Além disso, como mais de 50% dos cidadãos da UE são mulheres, devemos considerar o gênero um conceito analítico fundamental e olhar para as nossas políticas sociais com uma perspectiva feminista interseccional. 3.3. Reconhecimento e redistribuição no Estado de BemEstar Pós-Industrial A feminista e filósofa Nancy Fraser (1995) também teorizou sobre a complexa, às vezes contraditória, mas necessária combinação de políticas de reconhecimento e redistribuição – que são as duas dimensões essenciais da justiça social – a fim de construir um Estado de Bem-Estar Pós-Industrial. Isso porque, embora a discriminação cultural e a socioeconômica possam ser distinguidas analiticamente, existe uma relação muito estreita entre as duas 6
Dados do ano de 2018. Comissão Europeia (2019) “Living conditions and welfare”. Acesso em: 23.09.2019. Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/data/database.
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formas de injustiça social, uma vez que se determinam e se afetam mutuamente em diferentes contextos. Portanto, se pretendemos construir um sistema de bem-estar radicalmente democrático e inclusivo, as instituições devem garantir direitos econômicos e sociais iguais, apesar de gênero, classe, cor/raça ou orientação sexual, ao mesmo tempo em que reconhecem e valorizam a diversidade social. Esse é, em última análise, um passo necessário para deslocar o trabalhador heterossexual, branco e masculino como o principal sujeito das políticas de bem-estar social, e deve ser central ao projetar os novos pilares dos regimes de bem-estar pós-industrial. Se considerarmos isso ao aplicar uma abordagem de economia política feminista, devemos entender que as políticas redistributivas só serão efetivas se, ao mesmo tempo, elas reconhecerem e reafirmarem a importância dessas esferas econômicas tradicionalmente relacionadas às mulheres, que se tornaram invisíveis pela teoria econômica convencional. No entanto, essa lógica funciona nos dois sentidos: reconhecer e valorizar socialmente essas atividades econômicas não se traduzirá em justiça social se não vier acompanhada de políticas de redistribuição. Um dos princípios fundamentais que as economistas feministas defendem é que, em vez de crescimento econômico, devemos colocar a satisfação das necessidades humanas e a reprodução da vida no centro das análises econômicas. Autores como Orozco (2014) argumentam que colocar a sustentabilidade da vida no centro significa reconhecer todas as atividades que sustentam a vida, ao mesmo tempo em que se lhes dá valor social. Isso tem muitas implicações quando se trata de projetar políticas de bem-estar e definir a realidade em que operam. Em primeiro lugar, destacar o trabalho não remunerado das mulheres, que visa sustentar e reproduzir a vida, nos dá a chance de redefinir o que entendemos pelo trabalho. Como afirma Nancy Fraser (1994), a definição atual de trabalho é “androcêntrica e inadequada”, pois não inclui a esfera reprodutiva da economia, o que é, de fato, essencial para fazer o mundo girar. Além disso, o reconhecimento dessa realidade pode ter efeitos redistributivos se for acompanhado pelo deslocamento do trabalho
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assalariado como eixo central na concepção de políticas de bem-estar. Isso beneficiaria não apenas as mulheres, mas também a sociedade como um todo, especialmente os trabalhadores pouco qualificados. Essencialmente, isso ocorre porque as políticas centradas no trabalho não apenas ignoram a contribuição social do trabalho reprodutivo e voluntário, mas também pelo fato de que os mercados de trabalho pós-industriais, com condições precárias de trabalho e baixos salários, não permitem mais que os cidadãos contribuam por meio do trabalho assalariado da maneira como costumavam fazer. Portanto, como também argumentam os defensores de uma RBU, a segurança econômica para todos os cidadãos só pode ser possível se os direitos sociais tiverem um escopo universal, em vez de estarem vinculados à participação no mercado de trabalho. Além disso, se o Estado de Bem-Estar não reconhecer o valor social do trabalho de cuidado, poderá empreender políticas que ainda insistam na divisão sexual do trabalho. É o caso do modelo Universal do Provedor, que se baseia na promoção da participação das mulheres no mercado de trabalho, ajudando-as a cumprir sua dupla jornada, oferecendo políticas de conciliação trabalho-família como a promoção de empregos de meio período ou licença maternidade. O novo regime previdenciário deve basear-se no modelo de Paridade do Cuidador, reconhecer o trabalho reprodutivo como responsabilidade coletiva, e assumir políticas redistributivas nessa esfera também (Morán, 2013; Fraser, 1994). Nesse sentido, as políticas de bem-estar devem promover a igualdade entre homens e mulheres – por exemplo, com igualdade de licenças maternidade e paternidade –, bem como a responsabilidade do Estado na reprodução social – por exemplo, cuidar dos idosos ou garantir a educação infantil. Por fim, deve haver mudanças na estrutura do mercado de trabalho para que o trabalho assalariado seja mais compatível com a reprodução social, incluindo uma redução geral da jornada de trabalho para homens e mulheres. 3.3. O Green New Deal e a cidadania social O conceito de Green New Deal nasceu nos EUA e faz referência ao projeto New Deal de Roosevelt no pós-Segunda Guerra
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Mundial (Hockett e Gunn-Wright, 2019). Os defensores argumentam que hoje estamos em uma situação semelhante à que estávamos naquele período: nossas democracias precisam promover alternativas políticas aos movimentos neofascistas e soluções para a crise social criada pelo capitalismo globalizado. No entanto, isso deve agora acompanhar um processo de modernização econômica baseado no princípio do desenvolvimento sustentável. O sistema capitalista funciona com base no princípio de que a terra – ou seja, o meio ambiente – é apenas mais um fator de produção disponível para criar crescimento econômico. Isso significa que os recursos naturais podem estar sujeitos às leis de oferta e demanda, e os limites da natureza são deixados de fora da equação (Carpintero, 2010). Consequentemente, até agora, o crescimento econômico e as mudanças tecnológicas têm sido baseados na exploração de recursos naturais não renováveis, como petróleo ou carvão. A capacidade do meio ambiente de absorver resíduos (emissões de CO2, plástico, resíduos tóxicos, etc.) também foi completamente ignorada pela teoria econômica convencional (Christensen, 1989). No entanto, a teoria econômica ecológica passou a reconhecer que o sistema econômico não pode ser considerado completamente autônomo do ecossistema em que opera, nem das suas leis e restrições (Carpintero, 2010). Reconhecer essa realidade é urgente porque, enquanto a superexploração está colocando o bem-estar das gerações futuras em risco, a poluição e o aquecimento global estão colocando em risco a sobrevivência do nosso planeta como um todo. O relatório Brundtland definiu o desenvolvimento sustentável como um modelo de desenvolvimento que “atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias necessidades” (1989, p. 15). Reconhecendo o vínculo histórico entre o Estado de Bem-Estar Social e um modelo específico de desenvolvimento, creio que os princípios do desenvolvimento sustentável também devem ser considerados na redefinição do Estado de Bem-Estar Social Pós-Industrial. Nesse sentido, a cidadania social deve dar um passo à frente ao incluir esse compromisso intergeracional: os direitos sociais e econômicos não podem ser baseados em
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um sistema econômico que não garanta esses direitos para as gerações futuras. Além disso, os direitos sociais e econômicos das economias desenvolvidas, que são as principais responsáveis pela atual crise climática, não podem existir em detrimento da capacidade de outros países de garantir o bem-estar de seus cidadãos. Países empobrecidos e em desenvolvimento sofrem as consequências dessa crise ambiental muito mais do que países enriquecidos, devido à escassez de recursos, poluição e até mesmo ao clima extremo ou desertificação (Medialdea e Palazuelos, 2015). Portanto, os países desenvolvidos devem promover um sistema econômico sustentável que não dependa mais da extração de recursos naturais de países empobrecidos, mas também devem assumir a responsabilidade pelos danos sociais e ambientais que causaram. Nesse sentido, o Green New Deal proposto pelos socialistas democráticos dos EUA, como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, é um passo na direção certa. Inclui uma série de reformas econômicas estruturais que combinam a luta contra a crise climática com a busca de justiça econômica e social. O relatório “New Consensus”, divulgado em fevereiro de 2019, resume o Green New Deal como uma proposta com “ambições gêmeas”: O Green New Deal é “Verde” no sentido de que seu objetivo é modernizar nossa economia de forma abrangente para que não tenhamos mais que envenenar nosso meio ambiente, subsidiar infraestrutura decadente e sacrificar comunidades pobres e da classe trabalhadora a todo tipo de poluição e degradação ambiental, simplesmente para produzir riqueza que beneficie uma pequena fração de americanos. É um “New Deal” no sentido de que funciona em uma escala não vista em nosso país desde as mobilizações do New Deal e da Segunda Guerra Mundial – série de projetos nacionais históricos cuidadosamente desenvolvidos e conduzidos em grande escala, que colocaram dezenas de milhões de americanos de volta em empregos produtivos e bem remunerados, e que transformaram nossa economia no maior motor de produção e prosperidade amplamente compartilhada que o mundo já conheceu.(Hockett e Gunn-Wright, 2019, p. 5)
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Na Europa, muitas vozes também se levantaram para promover uma proposta semelhante. Nesse sentido, a iniciativa Green New Deal for Europe, apoiada por numerosos organismos e pesquisadores, apresenta uma proposta ambiciosa composta por três eixos principais. Primeiro, o programa Obras Públicas Verdes (OPV) que seria um “programa histórico de investimento público” (2019, p. 12) voltado para democratizar a economia, promover os direitos dos trabalhadores e criar empregos decentes. Em segundo lugar, uma União Ambiental (UA) que estabeleceria um conjunto de regras para garantir uma transição ambiental justa. Em outras palavras, como em outros quadros da UE, seria “uma estratégia para vincular todos os Estados membros da UE a um sistema onde tanto os ganhos quanto os encargos da transição verde sejam compartilhados de forma equitativa” (2019, p. 34). Por fim, uma Comissão de Justiça Ambiental (CJA) para monitorar a transição verde que inclui “explorar mecanismos de responsabilização pelo papel histórico da Europa na extração de recursos no Sul Global” (2019, p. 6). Em última análise, ambas as propostas visam criar um novo grande consenso social para promover um modelo sustentável de desenvolvimento. Isso envolve reformas estruturais, como uma transição ecológica para fontes renováveis de energia ou investir em infraestrutura e inovações necessárias para tornar as indústrias mais sustentáveis. No entanto, eles também argumentam que essas mudanças devem ser apresentadas de forma justa, promovendo equidade e justiça social, criando empregos decentes, bem remunerados e verdes, especialmente para aqueles que mais sofrem as consequências tanto do capitalismo neoliberal quanto das mudanças climáticas. Uma nova definição radical de cidadania social deve acompanhar esses tipos de transformações, com o compromisso intergeracional de recuperar e ampliar os direitos sociais e econômicos. No entanto, o Green New Deal também deve incluir uma série de transformações que vão além da criação de empregos e que têm a ver com a seguridade social e o bem-estar. Como discuti anteriormente, as futuras políticas sociais devem deslocar o papel central do trabalho assalariado, porque em uma ordem
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econômica pós-industrial os países desenvolvidos não podem mais garantir pleno emprego ou condições de trabalho semelhantes às da era industrial. CONCLUSÃO Uma democracia não pode ter cidadãos de primeira e segunda classe. Todas as pessoas devem ter garantidos direitos civis, políticos e sociais iguais, independentemente de classe, sexo, cor/ raça, idade ou mesmo geração. É por isso que a desigualdade e a dualização social na União Europeia são elementos essenciais da crise democrática que estamos vivendo. Uma democracia radicalmente inclusiva, baseada no princípio da cidadania social, reconhece que a segurança econômica e a igualdade são essenciais para que os cidadãos exerçam suas liberdades e sejam tratados igualmente. Nesse sentido, as democracias contemporâneas devem contar com um sistema de bem-estar social que possa assegurar direitos sociais e econômicos a todos. No contexto atual, isso significa afastar-se dos sistemas de seguridade social baseados em políticas assistencialistas para promover políticas sociais que garantam o escopo universal do bem-estar e padrões de vida socialmente aceitáveis para todos os cidadãos. Para isso, o trabalho assalariado não deve estar no centro dos regimes de seguridade social e as políticas sociais devem ser projetadas para levar em consideração todas as formas específicas de exclusão social. Nesse sentido, elas também devem visar o reconhecimento e a redistribuição do trabalho assistencial, para garantir a igualdade plena e a liberdade para as mulheres. Finalmente, nossas democracias devem basear-se em um modelo sustentável de desenvolvimento e promover uma transição ecológica para garantir que os direitos das gerações futuras também sejam respeitados. Em última instância, o Estado de Bem-Estar social do século XXI não deve recuar de seu propósito essencial, mas insistir ainda mais em garantir aos cidadãos a sua independência do mercado e sua lógica, desmercantilizando o trabalho, o bem-estar, o meio ambiente e a vida como um todo.
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Capítulo 5 A Democracia Espanhola Diante do Desafio do Coronavírus Alfredo Ramos Perez A ideia de crise das democracias tornou-se um dos temas fundamentais da agenda atual (Levitsky e Ziblatt, 2018; Forst, 2019). A perda de legitimidade das democracias, o aumento do descontentamento dos cidadãos (em parte devido à falta de eficácia na resposta aos problemas contemporâneos), o aumento da polarização que reduz a esfera pública e corrói as capacidades deliberativas do sistema, a alteração dos sistemas de divisão de poderes, a discussão dos direitos de determinados grupos (mulheres, LGTBIQ +) e uma longa lista de fatores nos levam a apontar que, longe de sua suposta consolidação, as democracias atuais estão passando por um de seus períodos mais profundos de crise e possível reinvenção. A pandemia de Covid-19 aprofunda e acelera os questionamentos sobre o futuro das democracias. O desenvolvimento da pandemia e sua gestão estão implicando, de fato, em uma transformação significativa do contexto político e a saída dessa crise não implicará em uma restauração intacta do funcionamento das democracias atuais. Para além de alguns estudos que sugerem que as democracias deixaram de ser um fator diferencial na eficácia da proteção dos cidadãos e da garantia de seus direitos (Hayat, 2020), ou de um quadro de análise eminentemente institucional da crise das democracias atuais, este texto enfoca um dos conflitos fundamentais no que diz respeito à expansão do campo da política: o conflito sobre quem pode participar da política e em torno de quais temas, isto é, de quais atores e de quais questões
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formam parte da discussão no espaço público (Santos e Avritzer; 2004). Um espaço público que em sua dinâmica de expansão, multiplicação ou redução é constitutivo das democracias como regimes políticos nos quais a reinvenção dos direitos é possível pelos cidadãos (Lefort, 2011). Em um momento como o atual, tendem a sedimentar-se as perspectivas que isolam toda a cidadania da tomada de decisões políticas e legitimam a divisão de tarefas característica das democracias representativas (Ganuza e Mendiharat, 2020, p. 36), de modo que se torna mais comum a ideia da necessidade de um governo “de quem sabe” (Ganuza e Mendiharat, Op. cit., 23). Essa separação entre quem sabe e quem não sabe é um dos conflitos fundamentais na hora de determinar quem tem ou não tem legitimidade para participar do espaço público. Nesse sentido, encontramos o que poderíamos chamar de “abordagens epistocráticas da democracia” (epistocracia), que consideram que a legitimidade da democracia e sua eficácia passam pelo recurso a certos saberes especializados especialmente do campo científico e de certas disciplinas econômicas (Gunn, 2019). Contra essas abordagens encontramos outras que entendem que a legitimidade (e eficácia) das democracias se baseiam precisamente na defesa de procedimentos e instituições que reconheçam e articulem a diversidade cognitiva das sociedades em condições de igualdade; é o que podemos chamar de “justiça epistêmica” (Fricker, 2009). Esses debates terão resolução diferenciada dependendo do cenário nacional e internacional. Esse texto pretende analisar que tipo de dinâmicas estão ocorrendo na Espanha em relação a esse elemento crítico das democracias. Na Espanha, a gestão da pandemia coincidiu com a primeira edição de um governo de coalizão em nível nacional. Algo semelhante nunca havia acontecido em nível nacional, à diferença de alguns municípios ou em Comunidades Autônomas, onde governos de coalizão já haviam sido formados. O processo de reconfiguração do bipartidarismo iniciado com a crise de 2008, a mobilização do 15M (2011) e o surgimento de novos partidos em diferentes partes do espectro político (especialmente o Podemos e o Ciudadanos e, posteriormente, o Vox, na extrema direita) culmina, após convulsivas negociações e uma
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repetição eleitoral, com esse governo de coalizão entre o PSOE e o Podemos. Partimos da hipótese de que no caso espanhol há um fechamento da política à participação cidadã. Trata-se de um processo de redução de atores com lugar legítimo de enunciação na democracia e, portanto, diminuição de sua qualidade. Esse processo é coerente com a abordagem de José Luis Villacañas (2014), que, em sua história sobre o poder político espanhol, assinala que, sobretudo nos momentos em que tiveram de ser elaborados grandes acordos de coexistência (especialmente nos momentos constitucionais), a atitude do poder político foi de profunda desconfiança da cidadania. A gestão da pandemia não está apenas assumindo um importante teste para o recém-lançado governo de coalizão, mas também representa um cenário no qual esses grandes pactos de convivência são necessários. O quão plural e democrática é a criação desses acordos é a questão que este texto pretende responder. Para isso, apresentaremos alguns elementos sobre como o espaço democrático está se configurando no país. Atentando para alguns elementos tanto da primeira fase da chegada da pandemia na Espanha – o início da crise sanitária e do confinamento da população – como das fases subsequentes: a saída da primeira onda com o afrouxamento das medidas mais estritas e o início da nova normalidade; e a segunda fase de aumento dos casos e um novo estado de alerta. Este capítulo será dividido nas seguintes seções: 1) a masculinização da gestão ligada à forma como o espaço de gestão da pandemia se configura em termos discursivos; 2) a Espanha das varandas na qual são analisados os diferentes tipos de comunidade política que começam a se desenvolver na primeira fase; 3) a feminização da solidariedade (em contraposição à masculinização anteriormente descrita) que atenta para como a sociedade civil passa a criar dinâmicas de inovação social comunitária vinculadas à agenda do cuidado; 4) debates sobre a reconstrução pós-pandemia nos quais se analisa o papel dos cidadãos nas discussões sobre o futuro do país ou de algumas comunidades autônomas; 5) o compromisso de certas sociedades científicas com um quadro mais epistocrático; e 6) as conclusões sobre o modelo democrático que está se construindo no país.
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1. A “MASCULINIZAÇÃO” DA GESTÃO Durante o primeiro período de crise do Coronavírus na Espanha, antes da proclamação do estado de alerta1, a maior parte das informações sobre a evolução da situação ficou a cargo de Fernando Simón, diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências Sanitárias. Porém, com o estabelecimento do estado de alerta, essa responsabilidade passa ao Comitê Técnico de Gestão do Coronavírus, composto por alguns ministérios e autoridades como o Chefe do Estado-Maior da Defesa, o diretor-adjunto de Operações da Polícia Nacional, o diretor-adjunto de Operações da Guarda Civil e a secretária geral dos Transportes. Essas quatro pessoas, juntamente com Fernando Simón, serão responsáveis pela informação diária sobre a evolução da crise. É relevante deter-se nesse ponto na hora de pensar que tipo de comunidade política estava se instalando no país, pois aqui começou a ganhar força a ideia de que o país está em uma “guerra contra o vírus” e que essa guerra implica uma certa conformação do espaço público. Essa ideia de que “estamos em guerra”, repetida constantemente pelos políticos e pelos comandantes dos serviços de segurança do Estado, tem uma série de consequências na ordenação das prioridades: a) em um contexto de “guerra”, a autoridade da expertise e do comando são reforçados, assumindo como necessária a delegação de funções e responsabilidades a especialistas, políticos e militares; b) o conjunto de prioridades é reordenado e torna-se normal que os comandos militares e policiais informem cada dia sobre o número de prisões, multas ou sanções realizadas, reforçando a necessidade de ordem cidadã; c) a guerra facilita a aceitação de algumas medidas de restrição de liberdades e formas 1
Anteriormente, em uma democracia, apenas um estado de alerta havia sido decretado, também sob o governo do PSOE, para que os militares pudessem assumir o controle do tráfego aéreo em meio a uma greve de controladores. O segundo estado de alerta, já decretado para a gestão da pandemia, foi aprovado em março de 2020, com várias prorrogações (é necessária uma maioria no Congresso para a sua aprovação). Um terceiro estado de alerta começa em outubro de 2020 em resposta à segunda onda de expansão do coronavírus.
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autoritárias de política que poderiam ter réplicas no futuro; d) uma série de apelos ao orgulho patriótico e ao heroísmo dos profissionais do serviço público são mobilizados; e e), por último, e não por isso mais relevante, forma-se, em relação ao vírus, uma clara alteridade/antagonismo que pode se estender a própria cidadania. Esse tipo de narrativa mobiliza um conjunto de aspectos que podemos identificar com aqueles que a masculinidade hegemônica associa a suas práticas: uma ideia de eficácia técnica autossuficiente e triunfante; a demonização/eliminação da alteridade; a promoção de identidades autodefensivas; a belicosidade heroica como recurso defensivo próprio; e o respeito à hierarquia (Bonino, 2000, p. 46-49). Podemos, portanto, falar em masculinização da gestão técnico-política da pandemia. Uma hipótese que confirmamos se olharmos para como a literatura de políticas públicas define a masculinidade técnica. Kurian (2000) ou Kronsell et al. (2020) a definem como um processo de elaboração de políticas públicas marcadamente de cima para baixo, centralizado e em larga escala, onde a figura do especialista (como fonte de conhecimento legítimo) é garantidora do interesse coletivo e do equilíbrio entre os interesses. Esse tipo de masculinidade terá um papel preponderante na forma como as políticas de gestão da pandemia serão elaboradas a partir do estado de alerta. Esse contexto de “guerra contra o vírus” foi acompanhado por um conjunto de medidas e declarações polêmicas do governo ou do gabinete de gestão. Uma das mais destacadas foi protagonizada pelo chefe do Estado Maior da Guarda Civil, que em entrevista coletiva afirmou estar trabalhando para “minimizar o clima contrário à gestão governamental da crise”. Essas declarações suscitaram uma importante polêmica que aos poucos fez com que os responsáveis das forças e órgãos de segurança do Estado deixassem de participar nas conferências de imprensa da Comissão Técnica. No entanto, essa mudança não significou o abandono do ambiente de guerra. Nesse contexto, a política tornou-se uma esfera cada vez mais reservada aos especialistas e cada vez mais afastada da participação cidadã. A distância entre a classe política e os cidadãos não
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aumentou apenas com a gestão da pandemia, mas também, como veremos adiante, com a gestão da reconstrução do país. Coerente com a hipótese de que as elites políticas espanholas desconfiam dos cidadãos, nesses momentos de desafio, apesar dos apelos à responsabilidade cidadã, não foram abertos canais de interação Estado-sociedade civil para o desenvolvimento de políticas públicas de combate ao vírus e para o pós-vírus. Pelo contrário, tem havido um reforço das formas políticas de natureza epistocrática. Esse clima de desconfiança não só em relação ao conhecimento, mas também em relação às atitudes dos cidadãos, tem se refletido no comportamento dos cidadãos, embora tenha havido, principalmente durante o confinamento, certas experiências que servem de contrapeso a essa tendência. Isso é o que podemos chamar de “natureza contraditória da Espanha das varandas”. 2. A ESPANHA DAS VARANDAS A expressão “Espanha das varandas” é uma construção dos partidos conservadores espanhóis. Surge após a proliferação de bandeiras da Espanha nas varandas do país em resposta ao conflito pela independência da Catalunha. Por exemplo, o atual líder do Partido Popular, Pablo Casado, reivindicava ser o representante da Espanha das varandas na disputa com Soraya Sáez de Santamaría pela liderança do partido. A Espanha das varandas foi também o tema reivindicado na manifestação em defesa da unidade do país, em fevereiro de 2019, que culminou com a famosa fotografia da Plaza de Colón, em Madrid, na qual o Partido Popular, o Ciudadanos e o VOX se retrataram como defensores da unidade da Espanha. Essa referência também foi usada por parte da direita e da extrema direita durante as eleições realizadas em 2019 (municipais, das regiões autônomas, e nacionais). No entanto, com a eclosão da crise do Covid-19, a Espanha das varandas tornou-se um termo disputado, pois está agrupando diferentes atitudes e comportamentos que ilustram as tensões que este texto analisa. Em um ambiente de guerra como o mencionado acima, os antagonismos amigo-inimigo também minam a relação com os outros e outras. Durante a primeira onda da pandemia, na
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Espanha, frequentemente testemunhamos comportamentos de confronto e punição entre os cidadãos. Esse aspecto da Espanha das varandas pode ser ilustrado pelos diferentes depoimentos de pessoas insultadas nas varandas (por exemplo, muitas crianças com transtornos mentais que tinham a possibilidade de sair para passear foram insultadas e por isso passaram a usar um bracelete que atestasse sua situação), pelas pessoas expulsas do apartamento ou quarto que alugavam, ou pelas ameaças recebidas por pessoas que trabalhavam no setor da saúde ou em supermercados. Durante os meses de confinamento e depois, eram comuns os comportamentos sancionatórios, além de certa aleatoriedade nas ações das forças da ordem, de modo que o medo do outro como transmissor do vírus instalou-se como pano de fundo das relações entre cidadãos. Sánchez Cuenca (2020) apontou, referindo-se a dados que apareceram em algumas pesquisas, a existência de uma significativa falta de confiança dos cidadãos espanhóis quanto ao cumprimento das medidas de confinamento. Enquanto a maioria, questionada sobre a própria atitude, afirmava estar cumprindo as medidas, quando questionados se consideravam que o restante dos cidadãos estava sendo igualmente responsável, o índice de confiança caía2. A conclusão é evidente: confiamos em nós mesmos, não confiamos nos outros. Também encontramos atitudes por parte das forças de segurança que incitaram essa desconfiança pública. Por exemplo, em um tweet, a polícia nacional encorajou a população a relatar “comportamentos pouco solidários”. Mensagem problemática, pois não fica claro o que significam esses comportamentos não solidários e, fundamentalmente, instiga comportamentos que estão longe de melhorar as condições de convivência por parte da população. Comportamentos punitivos também ocorreram nas ruas, junto com outras cenas de abuso por parte das forças da ordem. Esse tipo de medo do outro, como portador do Covid-19, vem 2
Em uma escala de 1 a 10, cerca de 70% dos cidadãos se colocavam na escala mais alta em relação ao cumprimento das regulamentações governamentais, enquanto a percepção do comportamento do restante dos cidadãos estava entre 6 e 8, ou seja, em uma posição significativamente menor (40dB, 2020).
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se firmando como uma diretriz para o relacionamento entre os cidadãos. A desconfiança tornou-se uma das características mais fortes do cotidiano, principalmente a partir do momento em que começam a redução do isolamento e os processos de saída de casa. Por exemplo, a decisão de autorizar as crianças a sair por uma hora por dia não só não teve muito apoio público antes de ser implementada, mas também foi mal recebida por uma parte significativa da opinião pública. Além disso, deve-se destacar que, juntamente com esses tipos de atitudes em relação ao outro, pesquisas recentes mostram como as desigualdades de gênero estão se aprofundando dentro dos domicílios em decorrência do confinamento, principalmente no que se refere às tarefas de cuidado, que recaem ainda mais sobre as mulheres (Farré e González, 2020). No entanto, a Espanha das varandas mostrou outras caras. Em primeiro lugar, durante meses, todos os dias, foram convocadas ações para apoiar os trabalhadores e trabalhadoras da saúde pública. Essas foram as ações mais relevantes da outra face das varandas, aquela que serve de base para a ideia de uma feminização da solidariedade em tempos de pandemia. 3. A FEMINIZAÇÃO DA SOLIDARIEDADE Falamos de feminização por duas questões: a primeira diz respeito à presença majoritária de mulheres em determinados trabalhos e a segunda tem a ver com a relevância que adquiriram as lógicas de cooperação e solidariedade vinculadas à esfera do cuidado. Em primeiro lugar, os trabalhos que adquiriram maior relevância para a manutenção da vida cotidiana dos homens e das mulheres espanhóis estão, na sua maioria, executados por mulheres. No campo das profissões da saúde, o grau de feminização é muito alto. De acordo com a pesquisa de Profissionais de Saúde Registrados do Instituto Nacional de Estatística (2018), do total de 74.043 farmacêuticas registradas, 53.026 são mulheres (pouco mais de 70%), das 307.762 pessoas com graduação em enfermagem, 259.129 são mulheres (cerca de 85%) e dos 260.588 médicos, 133.142 são mulheres (quase 52% dentro de uma área na qual os percentuais se inverteram, pois em 2015 eram apenas 49%).
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O percentual em serviços de limpeza hospitalar ultrapassa 90% (percentual semelhante a hotéis ou residências) e, por fim, as funcionárias de supermercados (principalmente operadoras de caixa) oscilam entre 80 e 85 %. Temos, portanto, uma grande concentração de mulheres em empregos ativos que estão permitindo a subsistência e o cuidado de espanhóis e espanholas. Porém, o que mais nos interessa, no que diz respeito ao avanço ou retrocesso democrático, é o desenvolvimento de iniciativas comunitárias de inovação social associadas à lógica do cuidado e da cooperação, um conjunto de iniciativas que podemos qualificar como feminização da sobrevivência, pela centralidade da agenda do cuidado. Sobrevivência que se constitui “através da construção de redes de solidariedade, manutenção e cuidado (...) permitindo que essas atividades se tornem um elemento de agência política” (Majewska e Reed, 2018, p. 224). A Espanha das varandas, nesse caso, é transferida não só para a frágil esfera pública de aplausos ao pessoal de saúde, mas esse espírito de cooperação se traduz nos seguintes elementos: A reconstrução de comunidades de proximidade: distância física e confinamento tornaram-se, durante algum tempo, em dinamizadores da interação social. Desde os primeiros dias, era possível ver imagens de anúncios em portais ou caixas de correio de casas de pessoas que se ofereciam para fazer as compras de quem não pudesse, para cuidar de crianças ou para realizar atividades de cuidado de outra natureza. Por outro lado, testemunhamos a proliferação de atividades comuns realizadas desde as varandas: jogos de azar, festas com vizinhos tocando música de suas casas, brincadeiras, enfim, atividades de todos os tipos que fizeram a Espanha das varandas uma plataforma para os vizinhos se conhecerem e estreitarem os laços. O desenvolvimento de iniciativas comunitárias: também pudemos testemunhar uma proliferação significativa de iniciativas comunitárias. Desde o início do confinamento, uma grande crise social foi desencadeada como resultado da crise da saúde, o que fez com que os serviços sociais estivessem sobrecarregados com pedidos de ajuda da população necessitada ou que os bancos de alimentos existentes não pudessem atender à alta demanda. Nesse
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contexto, algumas das redes sociais existentes com origem em movimentos sociais surgidos da crise de 2008 (em cooperação com outros de história mais longa) têm lançado iniciativas que visam a melhoria das condições de vida dos cidadãos. Foram criadas redes que atendiam pessoas idosas ou que sofrem de solidão (fazendo suas compras, pegando remédios na farmácia, oferecendo ajuda e atendimento emocional ou, simplesmente, cuidando da sua saúde), redes que prestavam assistência a grupos em situação de exclusão social (algumas hortas urbanas distribuíam suas colheitas) ou redes de troca de conhecimentos para desenvolver atividades com crianças3. Algumas dessas iniciativas, que ultrapassam 400 em todo o território, são de responsabilidade exclusiva de organizações sociais, outras surgem da cooperação entre as administrações públicas e a sociedade civil. Um exemplo dessa última ocorreu em Madrid com as hortas urbanas. Embora fechados, em alguns bairros conseguiu-se que, por meio da cooperação com serviços de Assistência Social, fosse possível continuar os cultivos e que a sua produção fosse distribuída entre as famílias mais carentes. Também encontramos novas formas de mobilização em tempos de isolamento. A mais relevante foi a greve de aluguéis promovida pelos Sindicatos de Inquilinos. Essa greve urgia a parar de pagar aluguel durante os meses do estado de alerta e atualmente tem mais de 16.000 adeptos. Iniciativas de ciência cidadã: foram desenvolvidas plataformas que buscavam compartilhar conhecimentos/recursos para desenvolver materiais que possibilitassem atender às necessidades mais relevantes do sistema de saúde (por exemplo, respiradores para UTIs ou máscaras e equipamentos de proteção para profissionais de saúde). Tratava-se de plataformas muito diversas entre si. Podemos encontrar algumas estimuladas principalmente por makers que já estavam reunidos em redes anteriores de centros sociais autogeridos, outras estimuladas por instituições universitárias ou por empresas. Todas elas coordenam profissionais de diferentes modalidades com profissionais de saúde e compartilham seus saberes para intervir em: a) como reaproveitar instrumentos exis3
Algumas dessas iniciativas podem ser consultadas em: https://www.solivid.org/noticies/.
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tentes para outros usos em saúde por meio de pequenas adaptações; b) projetar novos dispositivos; c) otimizar os mecanismos de produção das fábricas ou empresas que já fabricam material sanitário; d) criar novos canais para a fabricação de dispositivos médicos com impressoras 3D. Por meio da socialização do conhecimento, iniciativas de ciência cidadã, como a plataforma AIRE4, foram capazes de desenvolver mecanismos mais baratos que se espalham em código aberto para que os respiradores pudessem ser fabricados de forma mais rápida e barata. Também existem iniciativas a nível de bairros, como é o caso do Laboratório Tecnológico Nodo de Carabanchel (bairro popular de Madrid), onde são fabricados equipamentos sanitários, como máscaras. Outro exemplo, em termos de escala, é o recente programa COVID-PHYM, desenvolvido pelo Centro Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), que visa permitir aos cidadãos utilizarem os seus computadores numa plataforma online para melhorar a capacidade de cálculo das instituições científicas nos testes de medicamentos para tratamento da Covid. Essa segunda face da Espanha das varandas, que remete para a ativação de redes de proximidade nos bairros, por meio do desenvolvimento de eventos partilhados de diferentes dimensões ou através da implementação de iniciativas sociais, constituiu um contrapeso específico à masculinização da gestão. Essas ações possibilitaram ampliar o debate sobre a gestão da pandemia ao incorporar a agenda de cuidados em um possível esquema de reelaboração de políticas públicas. No entanto, iniciativas desse tipo não tiveram continuidade ou acolhimento por parte dos governos nas diferentes esferas administrativas para trazer essas inovações para as políticas públicas. A prática mais comum, na verdade, tem sido o oposto, ignorar suas necessidades. Por exemplo, muitos dos bancos de alimentos estão em crise e não podem atender às demandas da cidadania. Tiveram certo eco apenas as demandas de alguns coletivos, como ajuda para transferência de renda, por exemplo, para setores específicos da área da cultura, após numerosas 4
Disponível em: https://foro.coronavirusmakers.org/.
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mobilizações. Essas iniciativas apresentavam uma diversidade importante de conhecimentos postos em prática: saberes científicos, saberes políticos derivados da experiência de mobilização cidadã ou saberes locais que permitem adaptar as iniciativas de cooperação social às necessidades específicas dos territórios. No entanto, praticamente não houve uma estrutura de colaboração público-comunitária que tenha levado a inovações nas políticas públicas em face da pandemia. 4. CIÊNCIA SIM, POLÍTICA POUCA, MENOS DEMOCRACIA: O MANIFESTO “NA SAÚDE VOCÊS MANDAM, MAS NÃO SABEM” O processo de masculinização da gestão política, analisado anteriormente, foi recentemente aprofundado por um exemplo importante do que podemos considerar uma abordagem epistocrática da gestão da pandemia. O manifesto “Na saúde vocês mandam, mas não sabem” foi lançado em outubro de 2020 por 55 sociedades médicas (Manifesto..., 2020), um manifesto dirigido à classe política espanhola e contendo 10 critérios sobre como deve ser gerida a crise da saúde a partir do primado do conhecimento científico-sanitário. Em primeiro lugar, esse manifesto insiste no lugar hegemônico da classe política e da elite científica como atores que têm capacidade de tomar decisões sobre a situação atual. Capacidade compreendida de duas formas: possibilidades de agir e conhecimento para fazê-lo. Todos os cidadãos, incluindo outras sociedades científicas, estão fora dessas capacidades. Vemos, portanto, que se reforça a divisão de tarefas que a masculinização da gestão já gerava. Um dos elementos mais relevantes desse manifesto é a separação estabelecida entre ciência e política, com afirmações como: “Estas sociedades científicas, que reúnem mais de 170.000 profissionais de saúde, fazem um decálogo em que insistem em como deve ser enfrentada a pandemia na Espanha, sempre com base nas melhores evidências científicas disponíveis, totalmente desvinculada do contínuo confronto político” ou que “só deveriam ser as autoridades sanitárias”, “sem qualquer ingerência
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política”, as que estabelecem as “prioridades de ação em relação às demais doenças”. A ideia de uma verdade objetiva, longe do conflito da política, é um dos fundamentos das abordagens epistocráticas da democracia. No entanto, esse manifesto parece não só esquecer a existência de polêmicas internas no próprio campo científico-sanitário, mas também as relações existentes entre conhecimento, ciência e poder – e política, portanto (Pestre, 2016). Além disso, o Manifesto traz problemas importantes em termos da redução de quem pode participar da gestão política. Em primeiro lugar, um conjunto de conhecimentos (científicos-sanitários) prevalece sobre outros, tornando-os irrelevantes para o manejo da pandemia. No entanto, são justamente esses outros tipos de saberes (que não precisam fazer parte do campo científico) que agregam complexidade, eficiência e capacidade de adaptação ao território das decisões políticas. É esse conhecimento que ajuda a evitar a geração de problemas relacionados à mobilidade, à economia, que não gera novos padrões de exclusão social, etc (Timmermann, 2020). A gestão da pandemia, como apontam certas correntes da epidemiologia social ou da saúde comunitária, requer participação e diversidade cognitiva (Segura, 2020) e, poderíamos acrescentar, justiça epistêmica na consideração dessa diversidade, pautas que as sociedades científicas espanholas de saúde não consideram relevantes. A ideia de epistocracia não se baseia apenas no fato de haver distinções marcadas entre as decisões políticas baseadas em questões verdadeiras ou falsas, mas também em “que o povo não é o mais politicamente competente” (Girard, 2019: 211). Ambas as questões são vistas nesse manifesto, que vai além, ao considerar que a classe política também não tem competência no assunto, pelo menos não para elaborar o quadro geral em que as decisões são tomadas. Temos, portanto, uma aparente vontade, majoritária no campo das sociedades científico-sanitárias, de reduzir a possibilidade do debate democrático à identificação de uns poucos que sabem e outros que têm de administrar. Nessa separação, há pouco espaço para outros saberes e para os cidadãos que os possuem.
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5. DEBATES SOBRE A RECONSTRUÇÃO PÓS-PANDEMIA: PRESENÇA SELETIVA E REFORÇO DA EXPERTISE Uma das medidas mais relevantes anunciadas pelo governo é a implementação, na Câmara dos Deputados, da Comissão de Reconstrução Social e Econômica. Uma Comissão destinada a estabelecer os consensos parlamentares mais relevante sobre as propostas que devem permitir ao país sair da crise provocada pela pandemia. Essa comissão, que começou a funcionar em maio, era composta por 46 deputados e deputadas e estruturava-se em quatro grandes linhas de trabalho: Saúde, União Europeia, Reativação Econômica e, por fim, Políticas Sociais e Sistema de Cuidados. Para a elaboração dessas propostas, a Comissão contava com a possibilidade de convidar participantes, possibilidade comum nesse tipo de comissão. Essa Comissão teve mais de 150 participações entre membros do governo, altos funcionários, representantes de diferentes tipos de organizações sociais (desde sindicatos a movimentos sociais pelo direito à moradia, passando por ONGs contra a pobreza ou diferentes associações empresariais) e especialistas de universidades ou centros de pesquisa. Embora seja verdade que, em tão curto espaço de tempo, poderíamos considerar que o número de participantes é muito grande e esse processo poderia ser interpretado como um processo participativo, não é bem assim. Em primeiro lugar, a presença da sociedade civil é determinada pelos critérios de seleção dos partidos (que são os proponentes), ou seja, não participou ninguém que não tenham querido convidar. Convidados e convidadas não participam da deliberação (podem simplesmente apresentar propostas e argumentos). Encontramo-nos com um sistema clássico de presença e escuta seletiva no qual o “fora” dos partidos políticos só é considerado como possuidor de uma determinada expertise que se interpreta como valiosa, mas que não poderá participar da deliberação. Por último, não existe um sistema de prestação de contas. Cabe, por fim, apontar que as conclusões de cada um dos grupos de trabalho foram submetidas à posterior aprovação do Congresso. As deliberações da Comissão foram concluídas com a votação das
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propostas em julho. As propostas de Economia, Saúde e União Europeia foram acatadas e as do bloco socia, rejeitadas. O debate em escala nacional não foi o único desse tipo a ter sido levado a cabo. Discussões semelhantes ocorreram em algumas Comunidades Autônomas ou nos governos municipais. Na cidade de Madrid foram desenvolvidos os Pactos para a Reconstrução de Madrid, com 352 medidas acordadas entre os diferentes partidos políticos. Essas 352 medidas foram pactuadas em formato semelhante ao da mesa de reconstrução nacional, ou seja, por meio de mesas ou comissões temáticas nas quais participaram representantes dos partidos com representação na Câmara Municipal5. Nesse caso, a abertura do debate à sociedade civil seguiu formato semelhante ao nacional. Apenas existe a possibilidade de que algumas organizações ou especialistas venham como palestrantes, para que, posteriormente, os partidos políticos defendam uma série de propostas que podem ou não estar relacionadas com as ideias defendidas por essas organizações ou personalidades. No caso de Madrid, de fato, os partidos do governo municipal não queriam a participação da sociedade civil, a pretexto de que a sua opinião já era conhecida (mediada pela leitura que esses partidos fizeram dela) e que, portanto, sua presença não contribuiria em nada. Alguns partidos, especialmente o Más Madrid, que já havia consultado organizações sociais, pressionaram para que grupos e especialistas tivessem esse espaço para apresentar análises e propostas, o que acabou sendo admitido. Como podemos ver, esse tipo de processo tem uma semelhança fundamental com as mesas de reconstrução a nível nacional: o sistema de “inclusão” dos atores que não são partidos políticos. Ou seja, a seleção pelas partes e a escuta seletiva. A diferença mais relevante com o processo em nível nacional é que se escolhe um sistema no qual prevalece o consenso quanto à seleção das propostas. Por iniciativa do governo catalão foi lançado o grupo de trabalho Catalunha 2022. Esse grupo apresenta uma proposta 5
Ao contrário do que acontece com a Comissão para a Reconstrução a nível nacional, no caso da cidade de Madrid, não conseguimos encontrar as atas das deliberações.
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diferente das anteriores, por se tratar de um grupo distinto dos partidos políticos e constituído por “especialistas”. Os 30 especialistas de diferentes disciplinas, 15 homens e 15 mulheres, terão de imaginar quais serão os cenários pós-pandêmicos para essa comunidade autônoma. Essa separação da deliberação política, que valoriza uma aparente autonomia de “expertise”, talvez seja o modelo de epistocracia implementado de forma mais contundente, até agora, para imaginar cenários futuros. CONCLUSÕES Se pensarmos na possibilidade de reinventar a democracia por meio da possibilidade de expandir o espaço público para incorporar o conjunto da cidadania ao debate político, poderíamos afirmar que a situação no caso espanhol não é muito promissora. Em primeiro lugar, as várias iniciativas de reconstrução de laços de proximidade ou de inovação social diminuíram. Muitas delas estavam mais orientadas para a assistência social e atualmente sofrem com uma significativa escassez de recursos, o que, unido ao aprofundamento da crise socioeconômica no país, vem agravando a situação. Embora não seja o objetivo fundamental deste artigo, a pandemia também aprofunda a crise de outro dos aspectos constitutivos das democracias: sua pretensão de se estabelecer como um regime de equidade (Rosanvallon, 2012). Nesse sentido, a pandemia gerou novos processos de exclusão e afetou muito mais as populações desfavorecidas. É verdade que o governo de coalizão fez esforços significativos nesse nível, mas com resultados muito diversos. Embora a aposta em certas formas de regulamentação do emprego tenha conseguido desacelerar o crescimento do desemprego (os Procedimentos de Regulação Temporal do Emprego, que evitaram inúmeras demissões), outras, como a Renda Básica (Ingreso Mínimo Vital), estão tendo um impacto muito limitado6. 6
O Ingreso Mínimo Vital é uma política de transferência de renda que o governo aprovou em maio de 2020. É uma novidade no contexto espanhol, já que são as Comunidades Autônomas que se encarregam de desenvolver políticas desse tipo, com diferenças
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Vimos como a gestão da pandemia revelou a continuidade da tradição de desconfiança das elites políticas em relação à cidadania. Porém, essa desconfiança também se deu na direção oposta, já que, segundo o Centro de Investigações Sociológicas (CIS), a desconfiança nas ações do governo passou de 48% em abril para 57% em setembro. Contudo, um dos elementos mais críticos é que essa desconfiança está se espalhando na sociedade. Anteriormente, citamos um estudo do 40db, no jornal El País, que indicou que o grau de confiança do público era menor ao perguntar sobre como as outras pessoas respeitavam as regras do que quando se tratava de si mesmas. No entanto, em setembro, essa confiança caiu ainda mais. Em abril de 2020, o barômetro de opinião do CIS considerou que 93,5% dos cidadãos agiram de forma cívica em comparação com 5,5% que não o fizeram. Em setembro esses números haviam mudado e apenas 48,3% considerava que os cidadãos estão agindo de forma cívica contra 43,1% que entendiam que não. A desconfiança, portanto, está se tornando o quadro mais relevante para a relação entre cidadãos e instituições. Entretanto, fundamentalmente, nessa crise, uma certa divisão do trabalho foi reforçada no interior da democracia. Seja nas formas de masculinização da gestão, seja na epistocracia, o espaço público de discussão sobre o que fazer em relação à pandemia, nos diferentes níveis administrativos, foi reduzido à presença da classe política e de certas elites científicas. O apelo à responsabilidade cidadã não foi acompanhado da possibilidade de entrar na discussão sobre o que poderia ser feito e de que maneira. Na verdade, as poucas propostas existentes têm oscilado entre uma certa presença seletiva nas comissões deliberativas parlamentares e os apelos epistocráticos da classe científica. Os processos de inovação desenvolvidos pela cidadania, aliados ao apelo a uma certa lógica de cuidado na reconstrução dos laços de proximidade (especialmente na primeira fase da importantes entre territórios. A aprovação da medida, com polêmica entre os parceiros governamentais, teve como objetivo melhorar as condições de vida da população face ao rápido aprofundamento da exclusão social. No entanto, em agosto-setembro de 2020, apenas cerca de 10% dos pedidos (cerca de 80.000 de aproximadamente 800.000) foram admitidos.
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pandemia), não tiveram um correlato na concepção das políticas públicas. Lembremos que o único eixo da Comissão de Reconstrução que não foi aprovado foi o das Políticas Sociais e do Sistema de Cuidados. REFERÊNCIAS 40db (2020), “Estudio sobre la crisis del Coronavirus para el periódico El País, Marzo 2020”. Consultado em 19.out.2020, em https://40db.es/wp-content/uploads/2020/03/Estudio-sobre-la-crisis-del-coronavirus-El-Pa%C3%ADs-1.pdf. Bonino, Luis (2000), “Varones, género y salud mental: deconstruyendo la “normalidad” masculina”, in Segarra, Marta; Carabi, Àngels (orgs.) Nuevas Masculinidades. Barcelona: Icaria, 41-64. CIS (Centro de Investigaciones Sociológicas) (2020), “Barómetro de abril 2020”. Consultado em em 02.nov.2020, em http://www.cis.es/cis/export/sites/default/-Archivos/Marginales/3260_3279/3279/es3279mar.pdf, CIS (Centro de Investigaciones Sociológicas) (2020), “Barómetro de Septiembre 2020”. Consultado em 02.nov.2020, em http://www.cis.es/cis/export/sites/default/-Archivos/Marginales/3280_3299/3292/Es3292mar.pdf,. Farre, Lidia; González, Libertad (2020), “Las tareas domésticas y el cuidado de los hijos durante el confinamiento, una labor asumida principalmente por las mujeres”. Consultado em 02.nov.2020, em https://observatoriosociallacaixa.org/-/las-tareas-domesticas-y-el-cuidado-de-los-hijos-durante-el-confinamiento-una-labor-asumida-principalmente-por-las-mujeres. Forst, Rainer (2019), “Two bad halves don’t make a whole: On the crisis of democracy”, Constellations, 26: 378-383. Fricker, Miranda (2009), Epistemic Injustice. Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press. Ganuza, Ernesto; Mendiharat, Arantxa (2020), La democracia es posible. Sorteo cívico y deliberación para rescatar el poder de la ciudadanía. Consonni: Bilbao. Girard, Charles (2019), Délibérer entre égaux, enquête sur l’idéal démocratique. Paris: Vrin. Gunn, Paul (2019), “Against Epistocracy”, Critical Review, 31: 26-82. Hayat, Samuel (2020), “La démocratie à l’épreuve du coronavirus”. Consultado em 06.nov.2010, em https://samuelhayat.wordpress.com/2020/03/23/la-democratie-a-lepreuve-du-coronavirus/,. Kronsell, Annica; Dymén, Christian; Smidfelt Rosqvist, Lena; Winslott Hiselius, Lena (2020), “Masculinities and femininities in sustainable transport policy: a focus on Swedish municipalities”, NORMA International Journal for Masculinity Studies, 15: 128-144. Kurian, Priya (2020), Engendering the environment? Gender in the World Bank’s environmental policies. Aldershot: Ashgate. Lefort, Claude (2011), Democracia y Representación. Buenos Aires: Prometeo. Levitsky, Steven, Ziblatt, Daniel (2018), How democracies die. New York: Crown. Manifiesto de 55 sociedades científicas dirigido a la clase política por la gestión de la COVID-19: “En salud, ustedes mandan pero no saben” (2020). Consultado em 26.nov.2020, em https://www.fesemi.org/informacion/prensa/semi/manifiesto-de-55-sociedades-cientificas-dirigido-la-clase-politica-por-la.
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PARTE II CRISE E TECNOLOGIA: INTERNET E IMPACTOS NA DEMOCRACIA
Capítulo 6 Google e as Eleições Brasileiras de 2018 Lorena Vilarins Max Stabile Marisa von Bülow Teógenes Moura Alexandre Arns Alexandre Gomes Beatriz Franco Alana Fontenelle 1
INTRODUÇÃO Este artigo aborda um tema pouco estudado na Ciência Política: o papel dos motores de busca na Internet como provedores de informação em contextos eleitorais. Ele representa um esforço exploratório sobre o tema, propõe uma metodologia inovadora de coleta de dados e possui a intenção de levantar hipóteses. Um dos aspectos críticos da digitalização da vida política é a mudança na distribuição da informação. Apesar dos potenciais impactos de tal mudança, poucos estudiosos se empenharam em melhor compreender como funcionam os motores de busca e suas consequências na vida política, especialmente em contextos eleitorais (Pan et al., 2007; Epstein e Robertson, 2015; Epstein, 2015, 2016; Robertson, 2018). O trabalho analisa as páginas de resultados do motor de busca (SERP2) do Google durante um evento decisivo: as eleições 1
2
Uma versão deste texto em inglês foi publicada no Cescontexto n. 27, que reuniu trabalhos discutidos no Workshop “A Crise e os Desafios da Democracia”, realizado em novembro de 2019 no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Portugal) e organizado pelo CES e pelo INCT – Instituto da Democracia (Brasil). Sigla proveniente do inglês “Search Engine Result Page”.
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presidenciais brasileiras de 20183. O Google foi o motor de busca mais acessado durante as eleições e é a página de Internet mais acessada no Brasil (Alexa, 2019). De acordo com um ranking dos 50 sites mais acessados no País, as URLs4 e ocupam a primeira e terceira posições. O segundo motor de busca citado, , aparece apenas na décima primeira posição (Alexa, op. cit.). A eleição de 2018 representou um processo disruptivo na política brasileira (Abranches, 2018). Ela pôs fim a um ciclo de vinte e quatro anos em que o vencedor da disputa pelo maior cargo do sistema político nacional ficava nas mãos do Partido dos Trabalhadores – PT ou do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. O Presidente eleito, Jair Bolsonaro, elegeu-se apesar de contar com apenas 8 segundos de tempo no horário eleitoral gratuito da televisão. O uso de estratégias digitais foi particularmente importante em 2018, tanto por causa das novas possibilidades legais de uso das plataformas – essa foi a primeira eleição no Brasil em que a Justiça Eleitoral autorizou a propaganda eleitoral por meio de plataformas digitais (TSE, 2017) – como pelas possibilidades de uso – em especial, a difusão massiva de mensagens pelo WhatsApp – e pela relevância do fenômeno da desinformação em mídias sociais, não apenas contra candidaturas, mas também contra as instituições eleitorais (Bonzanini apud UFRGS, 2020, pp. 37:00-47:50). Consequentemente, as eleições presidenciais de 2018 têm suscitado um amplo debate sobre a relevância e implicações das mídias digitais em processos eleitorais (e.g. Ituassu et al., 2019; Santos e Varon, 2018; Machado e Konopacki, 2018; Evangelista e Bruno, 2019; Resende et al., 2019; Cesarino, 2020). Este artigo contribui para os debates sobre os impactos das tecnologias digitais em processos eleitorais, por meio do desenvolvimento de um método inovador de coleta de dados que permite entender o papel desempenhado pelo Google como provedor de 3
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O primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras foi realizado em 7 de outubro, e o segundo turno em 28 de outubro de 2018. De forma simplificada, URLs (Uniform Resource Locator) podem ser entendidas como endereços na Internet.
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informações. O desenho de pesquisa foi organizado em três etapas consecutivas. Primeiro (etapa 1) foram criadas quinze contas no Google que simulavam perfis de usuário de diferentes gêneros e espectros ideológicos. Entre 17 de agosto e 28 de outubro de 2018, cada uma dessas contas visitou uma lista de sites, de forma automatizada por meio de código de computador, e realizou buscas por diferentes palavras-chave relacionadas ao processo eleitoral através do buscador do Google (etapa 2). Os resultados de tais buscas foram todos coletados e resultaram em uma base de dados com mais de 235 mil links de URLs. Por fim, os conteúdos desses links foram acessados e baixados (etapa 3), resultando em uma base de dados de aproximadamente 2 milhões de palavras. A análise mostra que os resultados exibidos pelo Google para as contas criadas estiveram altamente concentrados em um pequeno número de fontes tradicionais de mídia online. Enquanto isso, links de mídias sociais e fontes de mídias alternativas eram, em comparação, muito menos visíveis. A exceção parcial é o caso da Wikipédia. Em paralelo, a análise de conteúdo textual dentro das URLs ressalta o fato de que a retórica violenta dominou os debates eleitorais. Este artigo está organizado em quatro seções. A primeira oferece uma introdução à discussão sobre os motores de busca na internet e seus impactos políticos. Na segunda colocamos o objeto de estudo em seu contexto e descrevemos as tentativas das instituições eleitorais em regulamentar mecanismos como o “impulsionamento de conteúdo” em plataformas digitais. A terceira seção apresenta a análise da base de dados dos resultados de busca por palavras-chave consultadas no Google. A seção de conclusão identifica alguns dos principais desafios enfrentados durante o trabalho, e propõe uma agenda de pesquisa a ser desenvolvida em trabalhos futuros 1. MOTORES DE BUSCA E POLÍTICA Uma pesquisa publicada pelo Reuters Institute em 2019 verificou que a principal forma de os brasileiros se informarem é online, sendo que 87% da população indicam que obtêm informações por
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esse meio (Reuters Institute, 2019). A maneira como consumimos as informações mudou e o meio digital ultrapassou a mídia impressa e a TV que, apesar de ainda apresentar relevância, ocupa uma posição bem abaixo em comparação com a informação obtida através da Internet5 (Baccarin, 2019). Santos Jr. e Albuquerque (2019) afirmam que o sistema de comunicação política estava antes centralizado nos meios de comunicação de massa tradicionais (imprensa, rádio e televisão), que eram os “agente[s] responsáve[is] pela produção de informações, a visibilidade e a formação da opinião púbica” (Santos Jr. e Albuquerque, 2019, p. 8). Os meios tradicionais tinham o poder de centralizar o fluxo de distribuição de visibilidade. Segundo os autores, esse tipo de comunicação possuía características elitistas, pois as mídias priorizavam o posicionamento de elites políticas e econômicas já estabelecidas. Apesar de sempre ter havido meios alternativos de informação, como as rádios comunitárias, e do estabelecimento do sistema de TV a cabo com suas novas fontes de informação, foi com a Internet que a diversificação das fontes tomou grande fôlego. Para muitos autores, a expansão da Internet teria o potencial de equilibrar a distribuição de recursos de poder na sociedade e, assim, fortalecer a democracia (Castells, 1996; Negroponte, 1996). Já outros alertavam para o fato de que as elites que contavam com mais recursos de poder poderiam, uma vez mais, dominar a distribuição da informação (Morozov, 2009; Pasquale, 2011). Investigando para onde a atenção dos cidadãos é distribuída nas buscas realizadas online, Mathew Hindman (2009) aponta que a estrutura de links da Internet é um ponto importante para a análise da atividade política na rede. Ao contrário de autores como Benkler (2006) e Lessig (2001), que inserem os hyperlinks na “camada de conteúdo” da internet, Hindman entende que os links se tornaram, na prática, uma espécie de espinha dorsal (backbone) da arquitetura da rede. Às “camadas” de hardware, às de protocolos e à de conteúdo assumidas por Benkler (2006) e Lessig (2001), Hindman (2009) 5
Na mesma pesquisa do Reuters Institute, 73% das pessoas afirmam se informar por meio da TV e apenas 27% pela mídia impressa.
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acrescenta uma “camada de buscas”, constituída pelos meios a partir dos quais os usuários podem localizar e classificar as informações online. Para Hindman, as ferramentas e os métodos de busca se tornaram tão importantes quanto os conteúdos, pois, como argumenta o autor, mesmo que o conteúdo não se modifique, mudanças na forma como as camadas de busca operam podem trazer grande impacto para a vida dos usuários (Hindman, 2009, p. 40). Em sua pesquisa sobre motores de busca e hyperlinks, Hindman (2009) destaca dois achados. O número de sites para os quais os motores de busca “apontam” é reduzido e eles contam com grande visibilidade. Os sites no topo da distribuição recebem mais links do que a soma dos mais relevantes restantes. Em segundo lugar, a visibilidade cai de forma brusca quando se afasta do grupo de sites no topo da distribuição. Para Hindman, há um nível significativo de correlação entre os principais resultados apresentados pelos motores de busca, os meios de comunicação e elites historicamente estabelecidos. O autor pontua ainda que esses resultados cooperam para que a dominância dos sites com maior visibilidade se perpetue. Assim como Hindman (2009), Halavais (2009) também expressa preocupação com a tendência de o Google favorecer fontes de informação tradicionais, operando um modelo no qual eles “tanto contribuem para a seleção de sites mais proeminentes, quanto, por sua vez, são mais influenciados por eles” (p. 59)6. Os primeiros estudos sobre o Google buscaram entender o impacto do ranking no comportamento dos usuários. Granka, Thorsten e Gay (2004) descobriram que a maioria dos usuários tende a clicar apenas nas três primeiras URLs da primeira página de resultados da busca. Resultados semelhantes foram encontrados por Pan et al. (2007), que argumentam que a preferência pelos 6
No entanto, outros estudos se concentraram não no que o Google oferece, mas no que os usuários demandam. Com base nos dados do Google Trends (uma ferramenta que fornece registros arquivados de pesquisa, mostrando flutuações na popularidade de palavras-chave), Trevisan et al. (2018) mostram que, tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, eventos mediados de alto perfil, como debates presidenciais televisionados, constituem os principais fatores de buscas na Internet durante as eleições.
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primeiros resultados da busca é explicada pela confiança que os usuários têm nos critérios utilizados pela empresa para fornecer as melhores informações de forma rápida e eficiente. Em 2015, Epstein e Robertson (2015) cunharam o termo “efeito de manipulação dos motores de busca” (SEME7) a fim de chamar a atenção para os possíveis impactos dos rankings de busca nas eleições. Com base nos resultados de cinco experimentos realizados nos Estados Unidos e na Índia, os autores defendem que rankings de busca tendenciosos podem alterar as preferências de eleitores indecisos. Embora essa pesquisa não tenha utilizado dados de buscas reais realizadas durante as eleições, suas descobertas chamaram a atenção para os potenciais impactos perigosos da manipulação de motores de busca. Essa manipulação pode ser sutil, derivando, por exemplo, de uma mudança na ordem em que os resultados aparecem. Essas alegações provocaram reações públicas de representantes do Google em algumas ocasiões. Em 2015, Amitabh Kumar “Amit” Singhal, então vice-presidente e chefe do grupo de pesquisa do Google8, publicou um editorial no qual negava veementemente que o Google manipulasse os resultados de busca, chamando os argumentos de Epstein de “falsa teoria da conspiração eleitoral”. Buscando compreender melhor como funciona a personalização da entrega do Google e a potencialização do efeito bolha no comportamento de consumo informacional de diferentes espectros ideológicos, Hannak et al. (2013) não encontraram diferenças nos resultados de buscas por perfil de usuário, mas sim por localização geográfica. Em 2018, Robertson et al. se dedicaram a estudar se havia algum viés na entrega do Google para buscas relacionadas a temas políticos e concluíram que não havia diferenças substanciais (Robertson et al., 2018). A literatura publicada até o momento mostra que ainda não há resultados conclusivos sobre o papel de motores de busca na provisão de informação sobre política 7 8
Sigla proveniente do inglês. Originalmente “Search engine manipulation effect”. Singhal trabalhou no Google até 26 de fevereiro de 2016.
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em boa medida, porque não temos informações suficientes sobre como funciona a lógica algorítmica de entrega das informações e como esta muda – ou não – ao longo do tempo ou em contextos específicos. De fato, a lógica pela qual os motores de busca ordenam e apresentam os resultados envolve um conjunto complexo de processos. Cinco aspectos são considerados quando se exibe um resultado pelo Google, segundo documentação disponibilizada pela própria empresa9. Primeiro, os algoritmos analisam o significado da busca utilizando modelos linguísticos “para entender o tipo de busca que você inseriu, aplicando algumas das pesquisas mais recentes sobre o entendimento da linguagem natural”10. Em seguida, algoritmos analisam a correspondência entre palavras-chave e sites, verificando a relevância deste último para a pesquisa. Segundo o Google, conceitos subjetivos não são considerados na operação: É importante notar que, embora os nossos sistemas busquem esses tipos de sinais quantificáveis para avaliar a relevância, eles não foram projetados para analisar conceitos subjetivos tais como o ponto de vista ou as tendências políticas do conteúdo de uma página11.
Os próximos passos são “classificar páginas úteis” – a avaliação de um site sobre determinado assunto em relação a outros sites que oferecem conteúdo semelhante – e “Usabilidade das páginas”, ou seja, analisar se as configurações permitem uma experiência adequada: “se o site aparece corretamente em navegadores diferentes; se é projetado para todos os tipos e tamanhos de dispositivos, incluindo desktops, tablets e smartphones; e se os tempos de carregamento da página funcionam bem para usuários com conexões de Internet lentas.” Por último, 9
10 11
Documentação disponível em: https://www.google.com/search/howsearchworks/algorithms/. Acesso em: 14 de fevereiro de 2020. Os próximos dois parágrafos contam com essa fonte. Op. cit. Op. cit.
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os algoritmos usam as informações dos usuários, como país, localização e atividade de pesquisa recente, que, supostamente, podem ser controladas e restringidas por cada usuário nas configurações de privacidade. Ademais, parte dos resultados da busca é orientada pela lógica de venda de espaços publicitários pela empresa. Esse serviço de publicidade, segundo o Google, pretende melhorar o seu próprio serviço de busca ao coordenar dois interesses – a partir da “venda” das palavras-chave utilizadas na pesquisa: o do usuário, que procura informação, e o do anunciante, que possui informações de interesse do usuário (Vogel; McCaffrey, 2000). A coordenação desses interesses depende, em parte, do processamento das informações pelo Google e da sua visão sobre os interesses do usuário. O presente artigo contribui para o debate sobre os potenciais impactos dos resultados de busca do Google durante processos eleitorais, ao propor uma metodologia que complementa os estudos citados, a partir do caso das eleições presidenciais de 2018. 2. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS BRASILEIRAS DE 2018 No final de 2018, os eleitores brasileiros escolheram novo presidente, vice-presidente, novos representantes da Câmara e dois terços do Senado, bem como novos governadores, legisladores estaduais e, no caso do Distrito Federal, deputados distritais. Os resultados dessa eleição foram caracterizados por cientistas políticos como “disruptivos” (Abranches, 2018, p. 7; Moura; Corbellini, 2019, p. 30), porque representaram uma ruptura na forma como a correlação de forças entre os principais partidos políticos se configurava há duas décadas e meia. A eleição de 2018 é caracterizada pela ascensão de Jair Bolsonaro, candidato do Partido Social Liberal – PSL, partido que até então contava com apenas um único parlamentar eleito no Congresso Nacional brasileiro. O candidato do PSL, ex-deputado eleito pelo estado do Rio de Janeiro, não apenas chegou ao segundo turno das eleições, como venceu a disputa altamente
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controversa contra Fernando Haddad, candidato da coalizão liderada pelo Partido dos Trabalhadores. Os resultados também mostraram altas taxas de rotatividade na composição do Congresso Nacional e um aumento do já bastante fragmentado sistema de partidos políticos. Não se pretende analisar aqui as causas complexas e múltiplas que levaram a esses resultados, mas é importante ressaltar que não podemos entender os impactos disruptivos das eleições de 2018 sem considerar o papel das tecnologias digitais12. Nas eleições de 2018 entrou em vigor um novo conjunto de regulamentos que, aliado ao aumento do acesso à Internet (IBGE, 2018), ajudou colocar as arenas digitais em maior evidência. Pela primeira vez, os candidatos puderam legalmente pagar por publicidade eleitoral online. A legislação eleitoral, aprovada pelo Congresso Nacional em 2017, tipificou essa prática de publicidade por meio dos serviços de plataformas de mídia social como “impulsionamento de conteúdo” (Lei 13.488). Nos termos da Resolução 23.551 do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, impulsionamento de conteúdo consiste no “mecanismo ou serviço que, mediante contratação com os provedores de aplicação de Internet, potencializem o alcance e a divulgação da informação para atingir usuários que, normalmente, não teriam acesso ao seu conteúdo”13 (Op. cit.). Além das plataformas de mídias sociais, a Justiça Eleitoral incluiu na definição de pagamento de “impulsionamento de conteúdo” (Op. cit.) os “conteúdos resultantes de aplicações de busca na Internet [ex Google]” (Op. cit.). Para as estratégias eleitorais dos candidatos, o “impulsionamento de conteúdo” na ferramenta de busca do Google foi 12
13
Há uma ampla literatura que discute os usos e impactos das tecnologias digitais nas campanhas presidenciais de 2018. Ver, por exemplo, estudos sobre a centralidade do uso do WhatsApp e a ascensão da direita (e.g. Cesarino, 2020), sobre a difusão de desinformação e discurso de ódio na Internet como estratégias eleitorais (e.g. Santos et al., 2019; Brito Cruz et al., 2019), e sobre o uso de estratégias de segmentação (e.g. Evangelista; Bruno, 2019). O que a Lei 13.488 e a Resolução 23.551 do TSE definem como “provedores de aplicação de Internet”, neste artigo, denominamos de “plataforma de mídia social”.
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importante em dois sentidos: para a divulgação dos sites da campanha e das páginas oficiais de mídias sociais, e para apresentar contrainformação sobre determinada notícia ou ataque que o candidato estivesse enfrentando14. Segundo dados oficiais de gastos de campanha (apresentados pelas candidaturas), 571 candidatos pagaram ao Google o valor total de R$6.910.013,86 – cerca de US$1,7 milhão – para “impulsionar conteúdo” durante o período eleitoral (TSE, 2019). Candidatos também se esforçaram em tentar influenciar o ranking de resultados de busca, e em tentar alterar conteúdos editando sites, como as entradas da Wikipédia15. Tais esforços são justificados pela importância do Google como o motor de busca mais popular do Brasil. Mais especificamente, o Google cumpriu papel-chave em termos de buscas relacionadas às eleições de 2018. Segundo o Google Keyword Planner (Gráfico 1), ao longo de três meses do período eleitoral – entre agosto e outubro de 2018 –, houve mais de 64 milhões de buscas relacionadas aos nomes dos candidatos à presidência. O nome mais pesquisado foi o de Jair Bolsonaro, então candidato pelo PSL, com 56% do total (36,5 milhões de buscas); o segundo nome mais procurado foi o do candidato pelo PT, Fernando Haddad, com cerca de 12% do total de buscas (7,6 milhões)16.
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Informações obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas com atores envolvidos em campanhas locais e nacionais, realizadas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo entre outubro de 2018 e janeiro de 2019. Op. cit. Os outros candidatos à Presidência obtiveram os seguintes resultados: “Ciro Gomes”, 11,63% (7,55 milhões de buscas); “Cabo Daciolo”, 4,9% (3,1 milhões de buscas); “Joao Amoedo”, 3,9% (2,6 milhões de buscas); “Marina Silva”, 2,8% (1,8 milhões de buscas); “Álvaro Dias”, 2,5% (1,6 milhões de buscas); “Guilherme Boulos”, 1,6% (1 milhão de buscas); “Boulos”, 1,6% (1 milhão de buscas); “Alckmin”, 1,59% (cerca de 1 milhão de buscas); e “João Amoedo”, 1,2% (779 mil buscas).
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GRÁFICO 1 Quantidade de vezes que os nomes dos candidatos foram buscados no Google (agosto a outubro de 2018) (em 1.000) Total
64.880
bolsonaro
36.550
haddad
7.608
ciro gomes
7.550
cabo daciolo
3.173
joao amoedo
2.593
marina silva
1.823
alvaro dias
1.673
guilherme boulos
1.052
boulos
1.042
alckmin
1.037
joão amoedo
779 0
10000
20000
30000
40000
50000
60000
70000
Fonte: Dados disponibilizados pelo Google Keyword Planner coletados em junho de 2019.
Ainda segundo as estatísticas do Google, dados do Google Trends indicam que os nomes de três candidatos à presidência estiveram entre os termos mais pesquisados naquele ano: “Lula” (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, impedido de concorrer por dirigentes eleitorais), “Fernando Haddad” e “Jair Bolsonaro”. Além desses, o termo “Eleições 2018” foi um dos mais pesquisados no ano, junto com questões relacionadas ao processo eleitoral: “Por que votar no Bolsonaro?”, “Por que não votar no Bolsonaro?”, “Prisão do Lula” e “Julgamento do Lula”17. Nesse contexto, funcionários do Facebook e do Google firmaram um memorando de entendimento com a Justiça Eleitoral Brasileira, no qual se comprometeram a “combater a desinformação gerada por terceiros” (TSE, 2018, p. 1). Essas plataformas deveriam atender às exigências das autoridades brasileiras quanto à constituição de mecanismos de publicidade dos contratos de 17
Veja mais no Google Trends Brasil, “Pesquisas do Ano 2018”, em “Busca”, e “Acontecimentos”. Disponível em: https://trends.google.com.br/trends/yis/2018/BR/.
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seus serviços durante o processo eleitoral. Enquanto Facebook, Instagram e Google concordaram em atender a essas demandas, o Twitter decidiu não fornecer serviços de publicidade para campanhas, pois não poderia oferecer as “ferramentas adequadas para facilitar essa transparência” (Twitter, 2018 apud Wakka, 2018, p. 1) exigida pela legislação brasileira. 3. COLETA E ANÁLISE DOS DADOS A metodologia desenvolvida para analisar o papel do Google como provedor de informações durante as eleições permitiu coletar sistematicamente e comparar os resultados de busca para diferentes perfis de usuários da Internet durante o período pré-eleitoral da campanha presidencial brasileira de 2018. Essa tarefa foi realizada com a: 1) criação e treinamento de quinze contas que simulavam diferentes tipos de usuários do Google e 2) coleta de dados de pesquisas feitas por meio dessas contas no buscador do Google. Uma segunda etapa do processo de pesquisa consistiu em visitar cada uma das URLs presentes nos resultados de busca apresentados pelo Google e coletar seu conteúdo, criando um banco de dados com mais de 2 milhões e 700 mil palavras. 3.1. Resultados de buscas a partir de quinze contas Doze contas do Google foram criadas para esta pesquisa e variaram em termos de ideologia e gênero. Para esses dois grupos, subdividido em esquerda, direita, mulher e homem, foi gerada uma lista de sites e termos de busca específicos ao perfil, que foram usados para registrar um “histórico” de navegação. O propósito desse treinamento era induzir os algoritmos do Google a classificarem cada conta conforme seus estereótipos políticos18. Adicionalmente, foram criadas três contas de controle que não tiveram nenhum histórico prévio de navegação na Internet. 18
Estereótipos, pois compreendemos a complexidade da composição de um perfil de preferências político-ideológicas. Entretanto, assumimos a premissa de que os algoritmos do Google não têm essa consciência e realizam o processo de caracterização primária de seus usuários a partir de heurísticas superficiais e caricaturizadas.
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O processo de “treinamento” das contas ocorreu entre 21 de junho e 26 de julho de 2018. Para sua realização, foi desenvolvido um script na linguagem Python que, de forma automatizada, em vários momentos pré-programados do dia, abria o navegador Chrome, autenticava-se com cada uma das contas, visitava cada site de sua lista e realizava no buscador do Google pesquisas com as palavras-chave definidas para aquela conta. Para a coleta dos resultados de buscas, foi construído um segundo script que raspava os dados da página de resultados do Google. Esse script, programado para se autoexecutar múltiplas vezes ao dia, foi aplicado com Selenium, um programa que automatiza a navegação no browser e é usado para emular a interação do usuário com o serviço de busca do Google19. O procedimento lógico que o algoritmo executou é mostrado na Figura 1. FIGURA 1 Procedimento de captura de resultados de buscas do Google 1. Para cada conta de usuário: 1.1. Acessar https://accounts.google.com 1.2. Autenticar com login e senha 1.3. Para cada palavra-chave: 1.3.1. Digitar palavra-chave na caixa de pesquisa 1.3.2. Esperar pelo resultado, fazer uma captura de tela e salvar o HTML da página 1.4. Logout Fonte: Elaboração dos autores.
O procedimento da Figura 1 foi executado entre 17 de agosto e 28 de outubro de 2018. Ele resultou em 10.396 buscas e 235.570 URLs. Cada uma dessas URLs fornece um link para uma página específica, para uma consulta de busca específica, e para cada uma das 15 contas criadas. Desse corpo de URLs, 8.883 foram classificadas como únicas. Essa distinção é importante para que não seja coletado conteúdo duplicado ao recuperar informações textuais dessas páginas, o que será feito em partes subsequentes do texto. 19
Para mais informações sobre o método de pesquisa, ver Stabile et al., 2019.
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Uma parte relevante das URLs, porém, estava off-line ou exibiu mensagem de erro quando se tentou acessar o endereço. Depois da limpeza, a base de dados contava com 5.199 URLs únicas. O texto coletado nessas páginas (procedimento da Figura 2) resultou em 2.734.999 palavras, das quais 160.756 eram únicas. FIGURA 2 Procedimento de captura de conteúdo textual 1. Para cada URL armazenada: 1.1. Recuperar o conteúdo HTML da página 1.3. Para cada tag de parágrafo na página HTML: 1.3.1. Extrair o conteúdo textual da tag
. 1.3.2. Armazenar dados em arquivo separado por vírgulas Fonte: Elaboração dos autores.
Os termos de busca “Haddad”, “Bolsonaro”, “Lula”, “Alckmin”, “Marina Silva”, “Cabo Daciolo”, “Ciro Gomes”, “João Amoêdo”, “Álvaro Dias” e “Boulos” referem-se aos nomes dos candidatos à presidência. Os demais termos são instrumentais, relacionados ao processo eleitoral, tal qual “Lugar de votação”, “Eleições 2018”, “Candidatos à Presidência”. Também foram incluídas buscas relacionadas a um assunto que foi fonte de notícias falsas durante o processo eleitoral: “fraude nas urnas” (para o total de buscas por palavra-chave, ver Apêndice Tabela A1). 3.2. Análise do conteúdo das URLs A fim de melhor compreender que informações o Google exibiu para seus usuários durante o período eleitoral, realizamos a análise do conteúdo dos textos dos links mostrados para as 15 contas criadas nesta pesquisa. Para fazê-lo, foi gerada uma segunda base de dados: visitamos cada URL única e salvamos seu conteúdo textual em um banco de dados do tipo chave-valor. Essa etapa gerou um corpo de texto de mais de 2,7 milhões de palavras. Foi utilizado o algoritmo Word2Vec para entender quais termos
151
Crises na Democracia
mais se aproximaram dos candidatos que alcançaram o segundo turno da eleição presidencial: Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. Em primeiro lugar, foi criado um scraper para as páginas listadas. Esse scraper visitou cada página e procurou nelas elementos HTML referentes a parágrafos (Figura 3). Ao encontrá-los, baixava seu conteúdo para um novo banco de dados contendo a URL visitada e o conteúdo textual. Embora essa seja uma heurística relativamente frágil – já que proprietários das páginas poderiam armazenar texto em diferentes tags HTML ou alterar a estrutura da página enquanto era executada a raspagem –, foram visitados manualmente os 15 nomes de domínio únicos mais frequentes nos resultados do Google e certificamos que estavam armazenando seu conteúdo de forma disponível para acesso e download. Uma vez que representavam aproximadamente 65% de todos os resultados, acreditamos ter sido possível estabelecer uma base de dados representativa de conteúdo textual, constituída por mais de 2,7 milhões de palavras. FIGURA 3 Exemplos de dados coletados, por tipo de resultado, endereço URL e título do resultado
Fonte: elaboração dos autores.
Para analisar os textos utilizamos um algoritmo de processamento de linguagem natural específico, o Word2Vec (ver Apêndice Figura A1), que permite construir relações de proximidade entre as palavras considerando o contexto. O conceito de “n-gramas” torna possível ir além da simples contagem de palavras e é uma das ideias fundamentais por trás do Word2Vec. Um n-grama representa um conjunto de palavras propensas a estarem juntas num corpo de texto, em que N é o número total de palavras. Por exemplo: “como um bebê” é um 3-gramas.
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
O algoritmo Word2Vec também considera o contexto em que uma palavra ou frase ocorre em um corpo textual, determinando a distância entre essas palavras ou n-gramas em relação ao restante do texto, gerando um coeficiente de distância vetorial numa escala em que -1 representa completa oposição entre as palavras comparadas em determinado corpo de texto (o que significa que nunca aparecem juntas ou próximas uma da outra) e 1 representa a total semelhança. Isso, por sua vez, permite a compreensão da semântica de uma linguagem melhor do que se poderia fazê-lo, contando apenas com a análise de frequência ou tentando construir uma implementação das regras gramaticais de cada linguagem programaticamente. A capacidade de operar sobre palavras como vetores em um espaço N-dimensional possibilita o entendimento de aspectos subjetivos de uma dada linguagem (assumindo que se dispõe de um conjunto de dados grande o suficiente). 4. ACHADOS DE PESQUISA Nesta parte do artigo, apresentamos os resultados das buscas realizadas pelas contas que criamos a partir de uma tipologia de fontes de informação. Além disso, comparamos os resultados das pesquisas usando os nomes dos dois candidatos presidenciais do segundo turno, “Bolsonaro” e “Haddad”. 4.1. Para onde o Google leva os usuários? Nossos achados tendem a confirmar os resultados da pesquisa de Hindman (2009), que contesta as hipóteses sobre narrowcasting e a teoria da cauda longa para os campos do discurso político e da audiência dos veículos de comunicação (Hindman, 2009, p. 99). Essas hipóteses postulam que a lógica de funcionamento da Internet traz relevância para inúmeros sites “pequenos” em detrimento dos gatekeepers tradicionais. Pelo contrário, os resultados das buscas realizadas no contexto das eleições presidenciais brasileiras de 2018 mostram que as mídias mainstream continuam sendo importantes mediadores da informação. Há
153
Crises na Democracia
uma considerável concentração das fontes de informação nessas mídias e não há diversidade de fontes apresentada pela teoria da narrowcasting. As Tabelas 1 e 2 mostram as fontes de informação entregues pelo Google às quinze contas no âmbito desta pesquisa, a partir das buscas realizadas com base em palavras-chave específicas relacionadas às eleições. Para análise dos resultados das buscas, as URLs foram classificadas em uma tipologia de mídia definida por Valente e Franco (2019), que possui cinco categorias, e que podem ser consultadas no Apêndice (Quadro A1). As mídias tradicionais foram responsáveis por 56,7% das URLs. Os dados da Tabela 1 confirmam duas hipóteses do trabalho de Hindman (2009). As “mídias tradicionais” aparecem com maior proeminência nos resultados de busca, afastando a percepção de que motores de busca da Internet, necessariamente, apresentam resultados mais plurais quanto a fontes de informação. Contudo, em segundo lugar, há uma queda brusca ao nos afastarmos dos grupos de sites do topo da distribuição. “Página de mídia social”, a segunda categoria mais recorrente, é responsável por apenas 7,6% dos resultados. TABELA 1 Tipos de domínios mais frequentes nos resultados de busca N
%
Mídia tradicional/mainstream
124.096
56,7
Página de mídia social
16.648
7,6
Wikipédia
16.193
7,4
Blog jornalístico
12.331
5,7
Portal público
2.741
1,3
Outro
46.674
21,3
218.383
100,0
Tipo de Domínio
Total
Fonte: Elaboração dos autores.
154
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
Esses resultados mostram que, ao menos no caso das contas criadas para este estudo no contexto das eleições brasileiras de 2018, o Google tendia a direcionar os usuários a obterem mais informações sobre as eleições aos meios de comunicação tradicionais. Os domínios associados a dois veículos de mídia, G1 e Veja, foram os mais comuns. Juntos, eles concentraram quase 22% de todas as URLs exibidas no banco de dados. Embora as estratégias de otimização de resultados em motores de busca possam configurar um dos indícios que influenciam os resultados de oferta do Google, outras hipóteses são possíveis. A primeira hipótese formulada neste trabalho – baixa diversidade – é de que o Google apresenta viés favorável a mídias tradicionais (conforme definidas neste artigo) independentemente do perfil de usuário. O favorecimento de algumas fontes em detrimento de outras pode levar à formação de bolhas de opinião, produzindo um efeito de viés de confirmação. Se o Google busca entregar aquilo que é relevante para os consumidores, Pariser alerta para o fato de que o que é bom para os consumidores não é necessariamente bom para os cidadãos (Pariser, 2012, p. 92). Ou seja, mesmo que os resultados sejam influenciados pela entrega do motor de busca ou pela demanda dos usuários, existe na literatura uma preocupação com a diversificação de fontes dos resultados. Os meios de comunicação tradicionais são as URLs mais frequentes para todas as contas cadastradas, sem variação significante de acordo com a ideologia ou o gênero (Tabela 2)20, no entanto a proporção em que esse tipo de mídia aparece para cada termo de pesquisa varia. Entre os termos de busca ligados a eleição, mas que não se referem aos nomes dos candidatos, a proporção de resultados de mídia tradicional é alta, chegando a 86% para o termo “candidatos à presidência”. A exceção esperada é para o termo “lugar de votação” que surge com 54,3% de resultados referentes a domínios públicos de instituições públicas, notadamente os Tribunais Regionais Eleitorais. 20
Para uma análise mais detalhada desses dados, ver Valente e Franco, 2019.
155
Crises na Democracia
Há grande diferença de mídias tradicionais como resultado de busca para termos ligados à eleição e ao nome dos candidatos. Para esses últimos, os resultados apresentam diferenças inferiores em cerca de 20 pontos percentuais. Para candidatos como Ciro Gomes (69%), Marina Silva (68%) e Alckmin (67%), o resultado de mídias tradicionais ainda é elevado, mas bem abaixo que para os demais termos de busca. Por outro lado, para alguns candidatos, a proporção de resultado de mídias tradicionais se aproxima da média geral da base de dados. É o caso de João Amoedo (54%), Cabo Daciolo (56%) e Lula (56,6%).
Domínios Públicos
Outros
Páginas ou Blogs Associados a Partidos Políticos
Wikipédia
Páginas de mídia social
Blogs ou páginas jornalísticas
Mídia Tradicional
Termos de Busca
TABELA 2 Proporção média da presença dos tipos de domínios de mídia por palavra-chave de busca (%)
Alckmin
67,0
10,0
5,0
9,0
4,0
--
5,0
Álvaro Dias
57,0
16,0
10,0
8,0
--
7,0
2,0
Bolsonaro
62,7
8,8
8,8
7,8
5,9
--
5,9
Boulos
58,4
20,8
7,9
9,9
1,0
--
2,0
Cabo Daciolo
56,0
13,0
9,0
10,0
--
7,0
5,0
Ciro Gomes
69,0
8,0
11,0
8,0
2,0
--
2,0
Haddad
60,6
19,2
7,1
7,1
--
--
6,1
João Amoedo
54,0
8,0
14,0
8,0
7,0
1,0
8,0
Lula
56,6
16,2
9,1
10,1
6,1
--
2,0
Marina Silva
68,0
7,0
8,0
9,0
6,0
--
2,0
Nomes dos candidatos
156
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
Outros termos de busca Candidatos à Presidência
86,0
5,0
--
--
--
7,0
2,0
Eleições 2018
75,2
8,9
3,0
--
--
10,9
2,0
Fraude nas urnas
76,8
13,1
8,1
--
--
--
2,0
Lugar de votação
23,8
1,0
--
--
--
74,3
1,0
Fonte: Elaboração dos autores.
O segundo tipo de mídia mais frequente varia. Para sete dos dez potenciais candidatos ao primeiro turno do processo eleitoral, blogs e páginas jornalísticas aparecem entre as fontes de informação nos resultados. Páginas de mídias sociais, como Facebook ou Twitter, formam o segundo tipo mais frequente para dois desses candidatos. Nas buscas por Jair Bolsonaro, as páginas nas mídias sociais empatam com as páginas jornalísticas como o segundo meio de comunicação mais frequente. Em um caso, o de Marina Silva (candidata do partido Rede Sustentabilidade), o segundo tipo de mídia mais frequente foi o site de enciclopédia colaborativa, Wikipédia. Por fim, cabe destacar que alguns veículos tiveram uma proporção de exibição nos resultados diferentes para as buscas. Como mostra a Tabela 3, o portal Brasil247, conhecido por ser uma página à esquerda do espectro ideológico, entregou mais resultados em buscas de informação por candidatos de esquerda como “Haddad”, “Lula” e “Boulos”, sendo que, no caso do candidato Fernando Haddad, as entregas se equipararam aos resultados oriundos do G1. Já o InfoMoney, site especializado em investimentos e educação financeira, entregou mais resultados em pesquisas pelo candidato do partido Novo, João Amoedo, alinhado a pautas do liberalismo econômico. Também é interessante notar que o candidato Cabo Daciolo – que ficou conhecido como o que menos gastou dinheiro na campanha presidencial – obteve mais visibilidade fora da lista dos principais veículos acima anteriormente mencionados.
157
Crises na Democracia
Especificamente sobre o portal Brasil247 e o InfoMoney, a identificação de uma possível relação ideológica entre os termos buscados e os respectivos portais suscita indagações sobre a lógica de entrega de resultados da busca: a maior proporção de exibição do portal Brasil247 para as buscas por “Haddad”, “Lula” e “Boulos” e do portal InfoMoney para as buscas por “Joao Amoedo” se deve à produção de conteúdo desses portais sobre os respectivos termos ou se deve à predileção de quem busca esses termos pelos conteúdos produzidos por esses sites? Isso nos leva à formulação da segunda hipótese, a de reforço de demanda: o resultado apresentado pelo Google é influenciado pela demanda de informação por parte dos usuários (isto é, pela predileção dos usuários em acessar determinados portais), mas não pela oferta de informação por parte do buscador (ou seja, pela forma de produção dos portais em relação a determinados termos). TABELA 3 Proporção média da presença dos domínios na busca por termo (%)
Domínio
Alckmin
Álvaro Dias
Bolsonaro
Boulos
Cabo Daciolo
Ciro Gomes
Haddad
João Amoedo
Lula
Marina Silva
Termos de busca
g1
15
16
16
13
5
14
12
12
10
14
uol
8
5
10
7
6
8
9
4
11
9
veja
9
6
7
5
5
7
7
6
8
9
estadao
11
5
6
5
3
9
7
6
7
8
folha
10
2
9
3
2
8
8
7
7
8
brasil247
5
1
4
12
1
4
12
1
12
4
infomoney
6
2
6
1
2
3
6
9
3
3
exame
2
3
4
2
3
3
3
6
2
2
elpais
2
1
4
1
2
2
4
0
3
3
158
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
bbc
0
0
1
0
0
1
0
0
1
0
Outros
31
58
33
51
72
41
33
49
36
39
Total
100
100
100
100
100
100
100
100
100
100
Fonte: Elaboração dos autores.
A análise a seguir sobre o conteúdo apresentado pelas URLs resultantes das buscas lança novas evidências para a compreensão das diferenças de entrega de informação a partir dos nomes dos candidatos e a relevância da ideologia dos usuários. 4.2. A linguagem de uma eleição disruptiva A pesquisa também analisou a proximidade entre palavras nos textos resultantes das buscas pelos nomes dos dois candidatos presidenciais que chegaram ao segundo turno das eleições: Bolsonaro (Jair Bolsonaro) e Haddad (Fernando Haddad). O coeficiente apresentado na Tabela 4 representa a distância vetorial entre os nomes dos candidatos e palavras que aparecem na base de dados, em uma escala na qual -1 indica que nunca aparecem juntas ou próximas uma da outra e 1 representa a total proximidade. Há palavras negativas e positivas associadas aos dois candidatos. “Nazista” e “autoritarismo” estão proximamente associadas a Bolsonaro, enquanto “incompetente” e “corruptor” estão proximamente associadas a Haddad. Paralelamente, Bolsonaro se aproxima do termo “pragmatismo” (traço que o candidato supostamente possuía, segundo seus partidários), e Haddad se aproxima do termo “escolarizar” (que pode ser explicado pelo fato de o candidato ser acadêmico há 35 anos e ex-Ministro da Educação).
159
Crises na Democracia
Tabela 4 Palavras mais próximas de “Bolsonaro” e “Haddad” (todas as contas) Palavras próximas a “Bolsonaro”
Palavras próximas a “Haddad”
Palavra
Coeficiente
Palavra
Coeficiente
Descumprir
0,9965
incompetente
0,9829
Capaz
0,9935
doleiro
0,9813
Solidarizar
0,9902
ideologia
0,9773
Inimigo
0,9768
correios
0,9769
Dirceu
0,9737
hebraico
0,9758
Kim
0,9618
alencar
0,9449
Mente
0,9257
maluf
0,9310
Pragmatismo
0,9217
escolarizar
0,9265
Indenizar
0,9182
dória
0,9257
Nazista
0,9169
corrupto
0,9225
Rato
0,9145
enriquecer
0,9220
Museu
0,9032
buarque
0,9192
Gadelha
0,9019
estuprador
0,9115
Rouco
0,9007
diesel
0,9087
Autoritarismo
0,8991
prepotente
0,9086
Desequilibrado
0,8966
disperso
0,9074
Fonte: Moura, 2019.
Foi realizada uma análise mais aprofundada para entender se os resultados variavam de acordo com o perfil ideológico das contas do Google criadas para esta pesquisa: usuários de esquerda e de direita (ver Tabelas 5 e 6).
160
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
TABELA 5 Proximidade de palavras com “Bolsonaro” e “Haddad” (contas de esquerda) Contas de esquerda Palavras próximas a “Bolsonaro”
Palavras próximas a “Haddad”
Palavra
Coeficiente
Palavra
Coeficiente
Projeto
0,9054
levantar
0,9681
Jobim
0,8635
covarde
0,9680
ironizar
0,8536
receio
0,9613
manipular
0,8408
disseminar
0,9549
teatro
0,8380
boneco
0,9529
telejornal
0,8316
propriedade
0,9372
homenagear
0,8174
aliar
0,9197
progresso
0,8155
despudor
0,9185
mole
0,7827
obra
0,9178
correio
0,7787
protesto
0,9039
0,7760
ministerial
0,8894
indiciar
Fonte: Elaboração dos autores.
Como mostram as Tabelas 5 e 6, o antagonismo caracterizou ambos os lados da discussão com recorrentes ataques violentos entre eles. A respeito dos eleitores de esquerda, os termos associados a Bolsonaro sugerem em geral uma discussão em torno das características mais fracas do candidato adversário, exemplificadas por palavras como “ironizar” e “manipular”.
161
Crises na Democracia
TABELA 6 Proximidade de palavras com “Bolsonaro” e “Haddad” (contas de direita) Contas de direita Palavras próximas a “Bolsonaro”
Palavras próximas a “Haddad”
Palavra
Coeficiente
Palavra
Coeficiente
presidenciável
0,9997
tranquilão
0,9869
odebrecht
0,9989
ironia
0,9606
processo
0,9988
hitler
0,9568
unir
0,9984
hipocrisia
0,9329
privatizar
0,8663
mamar
0,8936
caos
0,8695
ensino
0,8795
mito
0,8652
saneamento
0,8717
desenvolvimentista
0,8203
renovar
0,8519
-
assertivo
0,8424
-
Fonte: Elaboração dos autores.
A análise das contas de direita mostra que as palavras relacionadas a Bolsonaro são, em sua maioria, em apoio ao candidato. Palavras como “presidenciável”, “mito” e “desenvolvimentista” sugerem uma atitude favorável a ele. Há, também, palavras que suscitam questionamentos, tais como “caos” e “petismo” (palavra ligada ao Partido dos Trabalhadores). Pesquisas prévias sugerem21 que um dos principais tópicos de discussão dos apoiadores de Bolsonaro era o partido oposto. Outra palavra que chama a atenção é “algoritmo”. Bolsonaro é acusado de ter usado postagens automatizadas nas mídias sociais22, e de ter usado bots 21
22
Disponível em: https://institutodademocra.wixsite.com/meusite/feed-de-posts/o-debate-sobre-a-seguran%C3%A7a-da-urna-eletronica-brasileira-no-youtube. Acesso em: 17 de outubro de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/apos-eleicao-perfisfalsos-e-robos-pro-bolsonaro-continuam-ativos-aponta-estudo.shtml. Acesso em: 13 de outubro de 2019.
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
do WhatsApp23, ambos para sustentar sua campanha presidencial. O conteúdo dessas acusações está fortemente associado às discussões mundiais em torno da desinformação e de seus efeitos sobre as democracias. Em paralelo, para as contas de direita, palavras associadas a “Haddad” colocam o candidato sob um contexto desfavorável: “ironia”, “Hitler”, “hipocrisia”’, “mamar” (termo pejorativo usado pelos partidários de Bolsonaro a respeito da relação entre o Partido dos Trabalhadores e a administração governamental, no sentido de que o Partido dos Trabalhadores teria se aproveitado da máquina pública), todas exemplificam o discurso violento notado no período eleitoral. Há termos nessa lista, como “ensino”, “saneamento”, “renovar” e “assertivo”, que seriam supostamente positivos, mas que necessitam de uma maior investigação para que seja possível determinar se eles realmente estão associados a “Haddad” de maneira positiva, ou se estão num contexto negativo. CONCLUSÃO Este artigo representa um esforço exploratório de pesquisa a respeito do papel dos motores de busca da Internet como provedores de informação em contextos eleitorais. A pesquisa desenvolveu uma metodologia inovadora para a coleta de dados e apresenta resultados que deverão ser confirmados ou refutados em trabalhos futuros. O motor de busca objeto deste trabalho foi o do Google, que é também o site mais acessado no Brasil. Os resultados apontam, ao menos preliminarmente, para duas hipóteses: H1 (baixa diversidade) – o Google apresenta viés favorável a um conjunto seleto de mídias tradicionais (conforme definidas neste artigo) independentemente do perfil de usuário; H2 (reforço de demanda) – o resultado apresentado pelo motor de busca do Google é influenciado pela lógica da demanda de informações, isto é, pelo histórico de predileção dos usuários, e não pela lógica de oferta do motor de buscas. 23
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/estudo-aponta-para-automacao-no-envio-de-mensagens-e-orquestracao-entre-grupos-de-whatsapp-pro-bolsonaro.shtml. Acesso em: 13 de outubro de 2019.
Crises na Democracia
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Essas hipóteses, se confirmadas, têm efeitos potencialmente relevantes para os debates acadêmicos sobre democracia e tecnologia em geral e, mais especificamente, para a definição de regras sobre o funcionamento de plataformas digitais em contextos eleitorais. O Google atua como uma ponte entre os usuários da Internet e as fontes de informação, uma espécie de gatekeeper dos gatekeepers. Apesar dessa relevância, seu papel ainda é pouco estudado. A literatura tende a privilegiar a análise de plataformas de mídia social como Facebook, Twitter ou YouTube. A análise das páginas de resultados de busca para as contas criadas por esta pesquisa mostra que, durante os meses que antecederam e durante as eleições brasileiras de 2018, o Google privilegiou os conteúdos oferecidos por meios de comunicação tradicionais. Mais especificamente, é interessante perceber que os resultados foram altamente concentrados em apenas poucos desses meios de comunicação. Por um lado, isso pode ser considerado um resultado positivo devido à ausência de uma infinidade de novos meios de comunicação alternativos, muitos dos quais foram criados durante a eleição para canalizar campanhas de desinformação (Evangelista e Bruno, 2019, p. 7; Resende et al., 2019, p. 2; Ribeiro, 2019, s/p). Por outro, esse resultado ecoa preocupações de pesquisadores de que os motores de busca favorecem as fontes de informação dominantes e não apresentam uma pluralidade de opiniões (Hindman, 2009; Halavais, 2009). A diferença nos resultados entre buscas diversas também levanta questões futuras para os próximos trabalhos. O que explica o portal de mídia Brasil247 estar melhor posicionado nos resultados de buscas de nomes de candidatos do espectro ideológico de esquerda? Os resultados são reflexo da oferta de conteúdo do Brasil247 para esses candidatos ou são um reflexo da demanda dos usuários que buscam mais informações nesse portal? Essas perguntas sugerem uma agenda de pesquisa que aprofunde a análise dos impactos políticos de motores de busca como o Google. Se a função do ranking for respondida pela oferta, será possível identificar quais grupos noticiosos estão abordando determinada temática (ou candidatura) em maior ou menor medida. Se a função for uma resposta da demanda, o ranking do Google pode ser
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uma proxy para entender preferências no consumo informacional de determinadas temáticas. A fim de melhor entender o tipo de informação que os usuários do Google acessam, foi feita uma análise de conteúdo textual dos links que apareciam nos resultados de busca para as contas cadastradas. A análise de mais de 2,7 milhões de palavras retrata um processo eleitoral delineado por uma narrativa de polarização violenta, onde não há espaço claro para a construção do diálogo entre os diversos partidos envolvidos na eleição. A análise de conteúdo também mostra que o motor de busca apresenta resultados diferentes para usuários provenientes de tendências políticas variadas (de acordo com o treinamento de contas, que buscou diferenciar usuários de esquerda e de direita). Esse achado é relevante, considerando que outros estudos não encontraram diferenças significativas nos resultados de busca do Google entre usuários com diferentes hábitos de acesso (Hannak et al., 2013). Estudos futuros devem avançar no exame dos efeitos potenciais do acesso restrito à informação de acordo com a ideologia, com base não apenas no tipo de mídia que aparece nos resultados da busca, mas também no conteúdo dos textos nos links. Essa abordagem metodológica permitirá contribuir para as discussões mais amplas da literatura sobre polarização e o “efeito bolha” em plataformas digitais. Ao reunir sistematicamente as páginas de resultados de busca ao longo de várias semanas, houve diversos obstáculos. Especificamente, em trabalhos futuros, faz-se necessário o investimento em uma infraestrutura computacional robusta para a coleta de dados e execução da análise. Apesar das limitações descritas, este trabalho representa uma importante conquista. Ele indica que é possível, além de desejável, desenvolver técnicas para analisar os efeitos potenciais dos buscadores em eleições democráticas. Entende-se que a construção do conhecimento neste campo de pesquisa pode aumentar o interesse e estimular novos estudos. É importante destacar que a análise se situou no Brasil durante o período eleitoral de 2018. Como Hannak et al. (2013) apontaram na discussão sobre seus achados, os resultados da pesquisa são representativos deste período, mas
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podem não ser no futuro, devido às características intrinsecamente dinâmicas dos algoritmos de busca. Estudos futuros terão que considerar as dificuldades em analisar as mudanças estruturais no motor de busca do Google. Essa falta de transparência representa um desafio constante para entender como funciona o seu serviço. REFERÊNCIAS Abranches, Sérgio. (2018), “Polarização radicalizada e ruptura eleitoral”, em Abranches, Sérgio (Orgs.), Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 07-26. Alexa. (2019), “Top Sites Brazil”, Consultado em 27.nov.2019, em https://www.alexa.com/ topsites/countries/BR. Baccarin, Matheus. (2019), “Diplomatic crisis: Amazon fires, misogyny and online disinformation”. Paper apresentado no Workshop The Crisis and the Challenges of Democracy, Coimbra, Portugal, November 4-6. Benkler, Yochai. (2006), The Wealth of Networks. New Haven: Yale University Press. Brito Cruz, Francisco (coord.), Massaro, Heloísa; Oliva, Thiago; Borges, Ester. (2019), Internet e eleições no Brasil: diagnósticos e recomendações. Internet Lab, São Paulo. Castells, Manuel. The Rise of the Network Society. Oxford: Blackwell, 1996. Cesarino, Letícia. (2020), “Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil”, Internet & Sociedade 1(1), 91-120. Epstein, Robert; Robertson, Ronald E. (2015), “The search engine manipulation effect (SEME) and its possible impact on the outcomes of elections”, PNAS, Consultado em 12.dez.2019, em https://www.pnas.org/content/early/2015/08/03/1419828112?sid=2096de02-a382-4aeb-89e0df794a4ca03a. Epstein, Robert. (2015), “How Google Could Rig the 2016 Election”, Politico Magazine. Consultado em 13.mar.2019, em https://www.politico.com/magazine/story/2015/08/how-google-could-rig-the-2016-election-121548. Epstein, Robert. (2016), “The new mind control”, Aeon. Consultado em 13.mar.2019, em https://aeon.co/essays/how-the-internet-flips-elections-and-alters-our-thoughts. Evangelista, Rafael; Bruno, Fernanda. (2019), “WhatsApp and political instability in Brazil: targeted messages and political radicalisation”, Internet Policy Review, 8(4), 1-23. Doi: 10.14763/2019.4.1434 Granka, Laura; Thorsten, Joachims; Gay, Geri. (2004). “Eye-tracking analysis of user behavior in WWW search”, Proceedings of the 27th Annual International ACM SIGIR Conference on Research and Development in Information Retrieval. New York: ACM Press, 478-479. Halavais, Alex. (2009), Search engine society. Cambridge: Polity Press. Hannak, Alex et al. (2013), “Measuring personalization of Web search”, proceedings of the 22nd International Conference on the World Wide Web, 527-537. Hindman, Matthew. (2009), The myth of digital democracy. Princeton: Princeton University Press. IBGE. (2018), “Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal”, PNAD Contínua 2018 – Análise dos Resultados. Disponível em ibge.gov.br.
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APÊNDICE TABELA A1 Número de pesquisas de acordo com palavras-chave, 17 de agosto a 28 de outubro de 2018 Termos de Busca
Primeiro Turno
Segundo Turno
Total
Nomes dos candidatos Alckmin
852
-
852
Álvaro Dias
726
-
726
Bolsonaro
832
78
910
Boulos
634
-
634
Cabo Daciolo
805
-
805
Ciro Gomes
798
-
798
Haddad
844
75
919
João Amoedo
783
-
783
Lula
865
-
865
Marina Silva
829
-
829
Termos instrumentais Candidatos à Presidência
785
62
847
Lugar de votação
662
36
698
Eleições 2018
613
57
670
Fraude nas urnas
-
60
60
Fonte: Elaboração dos autores.
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QUADRO A1 Tipologia de Mídia Tipo de mídia
Critérios de classificação
Mídia tradicional ou mainstream
Nesta categoria foram colocados todos os resultados com mídias de grande repercussão, e legitimadas pelo seu trabalho, tanto a nível regional como a nível nacional. São os principais meios de informações políticas. Possuem ampla estrutura, cobertura e “credibilidade”.
Página de mídia social
Links advindos de perfis ou páginas de sites de mídias sociais.
Blog jornalístico
Links oriundos de blogs jornalísticos, podendo ser independentes ou vinculados a mídia tradicional ou mainstream.
Wikipédia
Inclui todas as URLs da plataforma de pesquisa colaborativa.
Portal público
São links de sites oficiais do governo em todos os níveis, federal, estadual e municipal
Outro
Nesta categoria estão links de sites que não são jornalísticos ou com o viés político. Fonte: Valente e Franco, 209, p. 10.
FIGURA A1 Algoritmo Word2Vec aplicado ao banco de dados
Fonte: Moura, 2019.
Capítulo 7 Crise da Democracia Liberal e as Novas Tecnologias: Um Estudo de Caso do Movimento Brasil Livre1 Pedro Abelin
INTRODUÇÃO A crise da democracia é um objeto constante no debate acadêmico (Crozier et al., 1975; Habermas, 1975; Offe, 1994; Poulantzas e Balibar, 1981; Tocqueville, 1982) e recentemente ganhou lugar central na agenda política (Levitsky e Ziblatt, 2018; Mounk, 2018; Norris e Inglehart, 2018), especialmente com a ascensão de regimes e movimentos autoritários e populistas ao redor do mundo. O presente artigo é baseado nos debates recentes sobre as relações entre a crise da democracia liberal, a crise do capitalismo e a ascensão do populismo. Segundo pesquisadores como Rodrik (2018) e Gerbaudo (2013), o populismo surge no contexto de crise no capitalismo e, portanto, pode ser mais um sintoma de falha sistêmica do que sua causa. Este artigo defende a necessidade de uma análise que vá além das causas locais da crise nacional, a fim de entender o surgimento de movimentos e atores populistas como um problema sistêmico do capitalismo global. 1
Uma versão anterior deste artigo foi apresentada no Workshop Internacional “The Crisis and the Challenges of Democracy”, realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, de 4 a 6 de novembro de 2019. Agradeço as sugestões e comentários de Marisa von Bülow, Danniel Gobbi, Vinicius Januzzi, Victor Varella e Priscila Carvalho às versões anteriores deste artigo. Também agradeço os comentários feitos pelo revisor anônimo. O presente trabalho foi apoiado pelo INCT – Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação. Agradeço também a Tayrine Dias e Danniel Gobbi por terem disponibilizado a base de dados de publicações do Facebook.
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Mais especificamente, o artigo analisa a ligação entre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e os atores populistas. Essa relação tem sido objeto de vários estudos que analisam como os diferentes usos da tecnologia têm impactado a comunicação política (Allcott; Gentzkow, 2017; Bastos e Mercea, 2018, Bessi; Ferrara, 2016; Pariser, 2011; Shao et al., 2017). Os debates teóricos sobre os potenciais impactos democráticos da utilização das TIC para contornar os gatekeepers tradicionais, especialmente entre os partidos políticos, são de especial interesse. Nesse sentido, assumo a interpretação de Shoemaker e Vos (2009), que definem gatekeeping como: [...] o processo de escolha e fabricação de inúmeros pedaços de informação em um número limitado de mensagens que atingem as pessoas todos os dias [...] as pessoas dependem de mediadores para transformar informações sobre bilhões de eventos em um determinado subconjunto de mensagens na mídia (Shoemaker e Vos, 2009, p. 1. Tradução livre).
Este artigo apresenta uma estratégia de codificação de textos das mídias sociais que nos permita entender como os atores populistas se relacionam com os partidos políticos. Analisaremos como o Movimento Brasil Livre (MBL) conceitua a instituição do partido político e justifica sua relação com os partidos já existentes. A análise é baseada nas publicações do MBL em sua página do Facebook, entre 2014 e 2017, e em debates sobre a validade dos partidos políticos como instituições, que ocorreram no fórum do MBL na Reddit. O MBL, uma das mais importantes organizações de direita da sociedade civil brasileira, foi escolhido para este estudo de caso por sua posição como uma organização que questiona o establishment político e que vem sendo caracterizada por alguns autores como tipicamente populista (Ortellado et al., 2017). O Movimento tem sido protagonista de disputas políticas no Brasil desde as manifestações de junho de 20132. O MBL vem utilizando 2
Os protestos de junho de 2013, conhecidos como “Jornadas de Junho”, foram uma série de manifestações políticas que ocorreram no Brasil. Os protestos começaram em reação ao aumento das tarifas de ônibus em São Paulo, mas se espalharam por todo
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as TICs de forma intensa e eficaz para aumentar ainda mais o seu poder de ação e mobilização (Machado, 2017, p. 48). Isso talvez confirme o que é argumentado por Gerbaudo (2018), ou seja, que as organizações populistas têm, em geral, uma grande compreensão do modo de funcionamento das redes sociais e, portanto, de como empregá-las para suas necessidades. Além disso, a análise de como o MBL interagiu com os partidos políticos irá destacar aspectos-chave da crise contemporânea das democracias liberais. Finalmente, o caso ilumina a crescente relevância do populismo para o sul global. O presente artigo é organizado em sete seções. Nas três primeiras seções do texto, revisamos algumas conceituações diferentes de populismo, bem como o debate sobre a relação entre a ascensão dos atores populistas e a crise da democracia liberal. Nas duas seções seguintes, analisamos a abordagem metodológica proposta pelo artigo. Na sexta seção, apresentamos uma análise de conteúdo das publicações do MBL nas redes sociais. Por último, concluímos o artigo com breves considerações sobre o argumento aqui sustentado. 1. O QUE É POPULISMO? Muitos analistas políticos e acadêmicos já se debruçaram sobre a conexão entre a crise da democracia e a ascensão do populismo (Engesser et al., 2017; Gerbaudo, 2013; Mounk, 2018, Müller, 2017, Norris; Inglehart, 2018, entre outros). O populismo tornou-se um tema central nas agendas tanto da academia quanto dos meios de comunicação de massa. Como é argumentado por Abelin e Gobbi (2019), a literatura recente sobre o populismo vem contribuindo para irmos além da conotação negativa historicamente associada ao conceito (Canovan, 1999; Laclau, 2005; Mudde e Kaltwasser, 2017). Ainda assim, muitos críticos do populismo conferem um significado pejorativo ao conceito, argumentando que o termo é vago e indeterminado para o público o Brasil com agendas extremamente diversas, sendo disputados pela direita e pela esquerda. Ver Maricato et al, 2013.
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que aborda, além de pouco claro quanto ao seu discurso e seus postulados políticos (Laclau, 2005, p. 67). Laclau responde que essa imprecisão é constitutiva da realidade da qual emerge o próprio discurso. O populismo é uma lógica política que não é inerentemente negativa nem positiva (Laclau, 2005). De acordo com essa perspectiva, o populismo não se opõe à democracia, mas pode se expressar como sua variante radical. A posição de Laclau contrasta com a de outros autores, que argumentam que o populismo se afasta do horizonte normativo liberal (como Cox, 2017; Müller, 2017; Norris; Inglehart, 2018). Apesar dos desafios na definição e compreensão do conceito de populismo, consideramos que o conceito é importante para ajudar a explicar muitos dos recentes resultados políticos e movimentos sociais e políticos em todo o mundo. Além disso, o termo parece apresentar algumas características que aparecem repetidamente no decorrer das discussões sobre diferentes movimentos populistas e que ajudam a formar algum tipo de consenso sobre sua definição. Com base na literatura atual, entendemos que populismo pode ser melhor definido como sendo tanto um estilo político de comunicação (Bos, Van der Brug, De Vreese, 2013; Engesser et al., 2017; Jagers e Walgrave, 2007, Moffitt, 2017) quanto uma estratégia de ação política (Betz, 2002, Weyland, 2017). Acreditamos que essa é uma definição mais específica do que a de populismo como ideologia (ver, por exemplo, Macrae, 1969; Mudde, 2004). Betz (2002, p. 198), por exemplo, concebe o populismo principalmente como uma estratégia política, baseada em retórica e que evoca ressentimentos latentes e apela às emoções dos sujeitos. Portanto, a retórica populista é concebida para causar sentimentos de descontentamento e explorar politicamente esses sentimentos. Como afirma o autor (2002, p. 199), a estratégia da ação populista é a de se afirmar como porta-voz das opiniões, demandas e necessidades desordenadas das pessoas comuns, ou seja, ser quem dá voz ao povo. A concepção de estilo político de Moffitt (2017) apresenta diversas características performativas, incluindo o uso da linguagem, da fala, de textos escritos, entre outros. O autor também cita vários elementos estéticos e performativos relacionados a
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imagens, formas de se apresentar, linguagem corporal e design – aspectos que são normalmente ignorados pela abordagem performativa (Moffitt, 2017, p. 48). Como Moffitt (2017, p. 33) demonstra, o termo “estilo político” não é nada novo na literatura sobre populismo, sendo usado especialmente para entender a comunicação política dos atores populistas, embora o termo não tenha sido suficientemente desenvolvido. Na visão de Moffitt (2017, p. 46), o estilo político deve ser concebido como repertórios de performances encarnadas, que são simbolicamente mediadas e idealizadas para públicos que “[...] são usados para criar e navegar os campos de poder que compõem o campo político, estendendo-se do domínio do governo até a vida cotidiana” (Moffitt, 2017, p. 46. Tradução livre.). Nesse sentido, Moffitt (2017, p. 48) estabelece uma concepção de estilo político que se distancia das abordagens habituais do populismo como ideologia. Com base nessa escolha conceitual, propomos que o estilo de comunicação populista seja examinado em duas dimensões: (1) sua estrutura narrativa, que abrange um apelo ao “povo” – unido para derrotar os antagonistas que comandam ou são protegidos pelo establishment, responsável pelo ser socialmente “deficiente” (Laclau, 2005); e (2) seu estilo narrativo (Engesser et al., 2017). Como é demonstrado por Panizza e Morelli (2009, p. 40), “o apelo ao povo” e, especialmente, aos sujeitos historicamente excluídos dos direitos políticos e sociais pode ser entendido como a base normativa do populismo, fundada numa promessa emancipatória. Do ponto de vista desses autores, o populismo representa uma ruptura com a estrutura social injusta existente. Como resposta a esse cenário injusto, ele propõe a reconstrução de uma nova ordem verdadeiramente democrática, na qual as pessoas comuns, após derrotarem seu dominador, comporiam o novo demo – e se tornariam, portanto, os legítimos detentores da soberania. Os movimentos populistas afirmam falar pela massa esquecida de pessoas comuns, transmitindo a verdadeira fonte de poder legítimo no próprio povo – pessoas cujas demandas têm sido sistematicamente ignoradas pelos políticos profissionais, pela mídia e pelos intelectuais “politicamente corretos” (Canovan, 2004, p. 242).
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Por outro lado, Müller (2017) argumenta que, apesar de os populistas afirmarem ser antiestablishment, eles são frequentemente encontrados ao lado das elites (2017, p. 34) e defendendo suas demandas. A polarização da sociedade, estruturada em termos antagônicos entre pessoas e elites, é um elemento central para a teorização de populismo como um estilo de comunicação (Bennich-Björkman et al., 2017, p. 6). Uma visão de mundo antagônica é sua condição prévia, e sua mensagem fundamental é a animosidade – muitas vezes interpretada em linguagem agressiva (Bennich-Björkman et al., 2017). No entanto, as elites ricas e poderosas não são os únicos alvos possíveis do antagonismo populista. Na verdade, em vários países (Ostiguy e Casullo, 2017), o populismo atacou outros grupos como imigrantes de baixa renda. Para Ostiguy e Casullo (2017), os populistas têm uma grande aversão não só ao establishment político e às elites, mas também ao que os autores chamam de “outro social” (2017, p. 6) – mesmo que esse “outro” não faça parte da elite social. Segundo os autores, esse seria um atributo fundamental do populismo. O importante papel do discurso contra as elites políticas e o chamado “establishment político” é praticamente consenso na literatura sobre as características do estilo de comunicação populista (Barr, 2009). Uma abordagem antiestablishment, conforme entendida aqui, é caracterizada por culpar o antagonista pelas situação de “degeneração social” . Caso suas instituições e estruturas de poder estejam corrompidas, ou não sejam como “devem ser”, a culpa é atribuída àqueles que são considerados os criadores e/ ou os mantenedores dessa situação. Esses atores seriam, portanto, considerados os alvos preferenciais das disputas e a sua derrota é vista como uma condição sine qua non para um mundo melhor. 1.1. Crise, falta de representação e o estilo de comunicação populista Bos e Brants (2014, p. 706) argumentam que o uso de mensagens “altamente emocionais” é uma característica importante da comunicação populista. Guasti e Almeida (2019, p. 153) afirmam que a crise da representação tem um forte apelo no contexto social
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e cultural contemporâneo e que a literatura sobre o populismo tende a destacar discursos e estratégias antipolíticas, antipartidárias e antiestablishment. Esse aspecto é oportuno para discutirmos os desafios que a falta de representação (misrepresentation) apresenta para a democracia representativa. Para Guasti e Almeida (2019, p. 153), afirmações sobre falta de representação expressam não só a insatisfação dos eleitores, mas também representam uma estratégia e estilo políticos projetados para desacreditar seus adversários e persuadir o público de sua posição. Tais afirmações têm o potencial de afetar diretamente o sistema político e cultivar uma crise política; nesse sentido, discursos sobre falta de representação muitas vezes expõem uma crise para mobilizar apoio político e exigir ação imediata. As soluções apresentadas pelo populismo incluem a remoção do adversário, novos tipos de representantes e políticas participativas e a adoção de uma ligação mais direta entre os líderes (populistas) e o povo. Esse tipo de retórica, por sua vez, nos conduz a um dos traços estilísticos do discurso populista: a emocionalização (Engesser et al., 2017). Em outras palavras, um estilo populista de comunicação cria narrativas, por vezes verdadeiramente cataclísmicas, a partir de situações de crise (Bos e Brants, 2014). Os atores populistas podem eventualmente criar uma linguagem de “profetas do caos”. Para Guasti e Almeida (2019, p. 155), a crise é usada como uma ferramenta antistatus quo, ou seja, a crise surge como resultado de um desfasamento entre o sistema político e as demandas políticas do povo. É também um produto de alegações de falta de representação, que enfatizam excessivamente o vazio entre os representantes e os representados, a fim de ganhar atenção política. É importante notar que a narrativa negativa não implica, objetivamente, uma situação negativa. No entanto, uma condição negativa objetiva é necessária para que uma narrativa populista ganhe adesão. No entanto, dada a grande imprecisão em torno da definição do conceito de crise (Roitman, 2016), pode ser difícil distinguir quando uma crise de fato existe. Roitman (2016, p. 20) define crise como uma condição que requer um julgamento decisivo entre alternativas. Crise significa mudança; Roitman a concebe como uma lacuna entre as
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expectativas das populações e desenvolvimentos históricos contrastantes. A autora não propõe invalidar o conceito ou negar a sua existência, mas apenas observá-lo como um “ponto cego” e, consequentemente, considerar as formas como suas construções narrativas são reguladas – como também é indicado por Guasti e Almeida (2019). A noção de crise levanta uma posição que presume artificialmente uma realidade anterior, na qual uma suposta normalidade operava. Seu efeito é suprimir questões sobre as estruturas de longo prazo e as condições sistêmicas de um dado problema. Em outras palavras: assim como as crises legitimam o Estado, também podem justificar um hipotético estado de emergência. A literatura tem associado a ascensão do populismo à crise da globalização (Cox, 2017). Cox (2017, p. 16), por exemplo, argumenta que essa ascensão está intimamente ligada a uma ideia generalizada e exagerada de reconfiguração do poder na ordem internacional, o que, por sua vez, levaria a um sistema pós-EUA, pós-liberal e pós-Ocidental. Segundo o autor, essa ideia se tornou a verdade da nossa época, o que, por sua vez, teve importantes consequências políticas: [...] Uma delas foi fazer com que muitas pessoas que vivem no Ocidente se sintam profundamente inseguras sobre o seu futuro. Isso, por sua vez, fez com que muitas dessas pessoas olhassem para aqueles políticos e movimentos que dizem que irão defender o Ocidente; ou, no contexto americano, “make America great again” (ou “tornar a América grande novamente”, em português). O ponto de vista de que uma mudança de poder estava ou está em curso também ajudou os defensores do Brexit no Reino Unido. De fato, no Reino Unido, o argumento de que a UE estava em declínio terminal e que era preciso olhar para outras partes da economia mundial – como a China e a Índia – claramente desempenhou um papel importante na mobilização pró-Brexit. (Cox, 2017, p. 16. Tradução nossa).
Cox assume a ideia de que a crise como conceito está ligada a um futuro imprevisível e obscuro. Nesse sentido, o autor se relaciona com as ideias de Koselleck (1988) sobre como a noção
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de progresso – o foco do discurso populista – é instrumentalizada por determinados programas com o objetivo de alcançar esse futuro contingente. A própria noção de progresso é uma narrativa da eventualidade e a batalha pela concepção de um futuro novo ou diferente é a própria crise. Roitman (2016, p. 28), por outro lado, propõe que nos interroguemos sobre uma questão fundamental: a ideia de crise faz sentido se comparada ao quê? Enfatizamos que não é nossa pretensão abandonar a noção de crise como uma importante chave explicativa. No entanto, como há quase um consenso no debate acadêmico e público sobre o fato de que atualmente vivemos uma crise da democracia, é essencial iluminar os fatores que mediam e interpretam essa percepção. É importante investigar as raízes de tais condições sistêmicas e causadoras de crises. Para entender o estilo populista do MBL, também tentamos desenvolver uma análise empírica de como o grupo enquadra a ideia de crise em seu discurso. 1.2. O populismo como causa da crise? A noção de crise da democracia é constantemente associada à ideia de que forças disruptivas externas degeneram as instituições democráticas. A ideia de que o populismo opera como uma força externa que causa a própria crise se tornou hegemônica dentro da Ciência Política e nos debates sobre a ascensão do populismo. Por exemplo, no livro Cultural Backlash: Trump, Brexit and the Rise of Authoritarian Populism (2018), Pippa Norris e Ronald Inglehart veem o crescente apoio aos líderes populistas como a causa do colapso de “[...] padrões antigos de competição partidária em muitas sociedades ocidentais contemporâneas”. (Norris e Inglehart, 2018, p. 4. Tradução livre). No entanto, esse argumento não aborda as causas da crise política num sentido mais amplo. Os autores tendem a simplificar o debate sobre as origens do populismo (Abelin e Gobbi, 2019) como uma competição geracional e moral de valores, em que clivagens políticas, dominadas por conflitos sociais e distributivos, seriam eventualmente superadas (Norris e Inglehart, 2018, p. 445). Norris e Inglehart (2018) argumentam
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que o populismo autoritário é uma reação materialista, enquanto a adesão à democracia liberal, por outro lado, seria explicada pelo conceito de pós-materialismo. Inglehart cunhou este último conceito em 1971; para o autor, o apoio ou rejeição da democracia liberal pode ser explicado pela diferença entre as gerações, no sentido de que aqueles que vivem em tempos de maior prosperidade seriam pós-materialistas, enquanto aqueles que vivem em períodos de maior dificuldade seriam materialistas. Em sua contribuição para a investigação sobre as raízes do populismo, Müller (2017) argumenta que a possibilidade de um ator social falar em nome das “pessoas reais” como uma forma de desafiar as elites está sempre presente. Nessa perspectiva, o crescimento do populismo dependeria mais da existência de atores políticos dispostos a encarnar as promessas não cumpridas da democracia do que da abertura da população a tais ideias. No entanto, isso não explicaria, por exemplo, por que Bolsonaro, o presidente do Brasil – um político autoritário da extrema-direita populista –, se tornou tão popular nos últimos anos, após mais de vinte e cinco anos de carreira política (Abelin e Gobbi, 2019, p. 8). Além disso, o argumento não aborda as causas mais amplas da crise política. Portanto, o presente artigo propõe que compreendamos melhor as raízes do populismo, começando por analisar as contradições e os limites da própria democracia liberal. Em vez de considerar o populismo como causador da crise da democracia, é mais produtivo considerá-lo como um sintoma ou uma reação a essa crise (Volk, 2013). Além disso, a concepção histórica negativa de populismo é extremamente impactada por noções superficiais de democracia, que idealizam a democracia liberal como universal. Grande parte das pesquisas recentes sobre populismo quase exclusivamente abordam casos do hemisfério norte, uma tendência que implica um forte viés regional. Esse é um grande problema, visto que as experiências populistas do hemisfério norte são universalizadas, e a longa trajetória de discussões sobre o populismo na América Latina é ignorada. Na verdade, o populismo latino-americano é geralmente analisado a partir de uma perspectiva altamente estigmatizada (ver, por exemplo, Mounk, 2018; Müller, 2017; Norris
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e Inglehart, 2018; Todorov, 2014) como uma experiência “falha” em comparação ao que é considerado universal, isto é, as democracias liberais europeia e americana. No entanto, alguns autores (como Collins, 2014; de la Torre, 2013; Roberts, 95; Weyland, 2001) chegaram a distinguir o populismo clássico do que eles chamam de “neopopulismo” com base em experiências latino-americanas. De acordo com Collins (2014), o neopopulismo é diferente da forma clássica, pois apresenta um modelo econômico mais exclusivo. Nesse sentido, o neopopulismo é o populismo para a aplicação de políticas neoliberais. 1.3. Populismo e os novos gatekeepers A ascensão do populismo na Ciência Política e em outros campos tem sido comumente associada ao surgimento das novas tecnologias de comunicação. O populismo latino-americano clássico teve o rádio e, mais tarde, a televisão como seus maiores instrumentos (Haussen, 2005). O populismo clássico aproveitou as novas possibilidades criadas por essas tecnologias para promover um modo mais direto de comunicação com a população do país. Faro (1981, p. 89), por exemplo, argumenta que o uso do rádio cresceu muito no Brasil durante a década de 1930 devido à intensa propaganda populista promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Pela primeira vez, as populações isoladas dos centros urbanos tiveram acesso aos noticiários nacionais. Para Morán (1981, p. 82), o estilo de comunicação populista de Getúlio Vargas3 era semelhante ao estilo adotado pela Alemanha nazista. Segundo Morán, o DIP guardava semelhanças gritantes ao Conselho Nacional da Cultura Nazista de Goebbels. O estilo dos discursos para o rádio de Getúlio Vargas, que o elevaram ao papel do líder dos trabalhadores, também seria comparável à estratégia nazista. Seguindo o raciocínio de 3
Getúlio Vargas foi o 14º presidente da história do Brasil. Líder da Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República do país, ele governou de forma autoritária até 1945, quando foi deposto. Eleito presidente em 1950, liderou um governo marcado por um forte desenvolvimento nacionalista. Ele cometeu suicídio em 1954, no meio de uma grave crise política que ameaçou novamente a sua deposição.
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Morán, pode-se dizer que o argumento de que as TIC promovem a comunicação populista não é, portanto, completamente original (Tracey e Redal, 1995). Welp e Wheatley (2009) argumentam que o uso das TIC e de outros tipos de meios de comunicação para propagar “chavões” em resposta a uma crise pode levar a discursos populistas que beneficiam líderes carismáticos em detrimento dos líderes políticos tradicionais. Segundo os autores, democracias recentes ou recém-estabelecidas são mais vulneráveis ao populismo porque a informação é menos regulada pelo Estado e pela sociedade civil nesses contextos. Nesses cenários, os populistas podem manipular a mídia e ganhar o monopólio do discurso público mais facilmente. Além disso, os autores argumentam que partidos políticos já pouco institucionalizados seriam adicionalmente prejudicados pela consolidação de poder dos líderes populistas. No entanto, apesar de ser uma análise interessante – e de ter feito as primeiras ligações conceituais entre populismo, novas tecnologias e a crise da democracia –, o argumento de Welp e Wheatley não previu a ascensão do populismo e a crise da democracia em democracias liberais consolidadas, como nos Estados Unidos. No celebrado The People versus Democracy, Mounk (2018) argumenta que, nos últimos anos, os populistas têm sido os atores mais bem-sucedidos em usar as redes sociais para minar os fundamentos básicos da democracia liberal. O autor afirma que: Livres das restrições do velho sistema de meios de comunicação, os populistas estão dispostos e capazes de dizer qualquer coisa. Talvez a sua retórica se revele imparável [...] é difícil para um político racional ganhar um debate com uma resposta de trêsfrases quando seu rival está oferecendo uma resposta de umafrase, especialmente quando ele é capaz de popularizar sua opinião simplista no Twitter e no Facebook. (Mounk, 2018, p. 150).
Mounk (2018) aponta para uma grande reconfiguração da comunicação com o surgimento das mídias sociais, e ao mesmo tempo declara que os populistas tendem a usar essas ferramentas de forma mais favorável do que seus adversários. No entanto,
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Mounk não menciona as novas e profundas relações de poder que foram inauguradas com o surgimento das mídias sociais, relações essas que são controladas principalmente por grandes corporações. Nesse sentido, o autor parece propor o fim da capacidade de manter o controle das narrativas – e, acima de tudo, de limitar e definir o fim dos gatekeepers – dos grandes conglomerados de comunicação. Como veremos a seguir, esse processo não é tão simples e transparente como pode parecer. Garimella, Morales, Gionis et al. (2018, p. 3) definem os gatekeepers como usuários que recebem conteúdo de ambas as tendências políticas – a esquerda e a direita –, mas produzem conteúdo a partir de um único lado, “filtrando” assim a informação. As TIC mudaram a paisagem global dos meios de comunicação enquanto gatekeepers. Embora tenham influenciado as interações entre instituições, pessoas, rotinas, pressões, ideologias e tecnologias sem fio (Cossiavelou e Bantimaroudis, 2009), as TIC não acabaram com os gatekeepers tradicionais do establishment político, como os partidos políticos e a mídia corporativa. No entanto, várias novas formas de gatekeeping acabaram surgindo. Tenney e Sieber (2016), por exemplo, mostram como a restrição do acesso à informação é realizada pelos algoritmos; Ristow (2013, p. 6) também adverte sobre o grande poder operado pelas empresas gatekeepers do Vale do Silício. No entanto, os atores populistas parecem ser capazes de atravessar esses mecanismos de gatekeeping. O fenômeno é resultado das capacidades das mídias sociais e das mídias de massa, que envolvem bilhões de pessoas e criam espaço para políticas e discursos de massa típicos do populismo. De acordo com Gerbaudo (2018, p. 746), líderes e movimentos populistas utilizam as redes sociais em uma escala intensa. O autor argumenta que as plataformas virtuais nas redes sociais se tornaram essenciais para a atividade política em larga escala, sendo instrumentalizadas por ativistas como um recurso expansivo de mobilização das massas (Gerbaudo, 2013). As mídias socais construíram uma massa digital de políticas antiestablishment que o autor chama de “populismo 2.0”. Gerbaudo (2018) também argumenta que os candidatos e movimentos populistas da direita e da esquerda possuem um amplo know-how das mídias sociais,
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que emerge como uma característica importante em sua caracterização. Estudos recentes mostraram, por exemplo, como os bots sociais foram mobilizados por atores populistas nas eleições norte-americanas e na campanha pró-Brexit (Bastos e Mercea, 2018; Bessi e Ferrara, 2016). Gobbi (2016, p. 69), por exemplo, demonstra que o MBL usou a Reddit como plataforma para seus debates virtuais, incluindo as discussões sobre sua relação com o sistema partidário político. O Movimento discutiu três possibilidades de estratégia eleitoral nesses fóruns: a fundação de seu próprio partido, a união de vários atores diferentes dentro do espectro da direita, ou ingressar em um único partido alternativo – o Partido Novo, o Democratas ou o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), por exemplo. A decisão dominante, pelo menos a curto prazo, foi a colonização4 de vários atores (Gobbi, 2016). A discussão pública sobre a relação com os partidos políticos mostra como o movimento lança a mão do humor em seus debates. Conforme visto no exemplo a seguir: Definição do Partido em que os Militantes do MBL iriam. Ou até a criação de um. Talvez um Partido do Movimento Brasil Livre (PMBL). Embora lembre PMDB5 (haaahahha6) (Valadão, 2015)
Várias posições contrastantes sobre a questão foram discutidas na seção de comentários das postagens. Renan Santos, coordenador do MBL, participou dessa discussão. Em seu comentário, ele afirma que o estatuto do movimento proíbe os membros de ingressarem em partidos de esquerda, com a possibilidade de expulsão. A seguinte citação é tirada inteiramente da seção de discussão do tópico. 4
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Apesar de ser incomum, empregamos aqui a ideia de “colonização partidária” como uma estratégia política de ocupação de partidos políticos. O PMDB, atualmente chamado “MDB” (Movimento Democrático Brasileiro), é um dos maiores e mais tradicionais partidos políticos brasileiros. O ex-presidente, Michel Temer, é membro do partido e um de seus líderes. Uma das formas mais populares que os brasileiros utilizam para expressar a risada por escrito.
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Em nosso manual: MOVIMENTO BRASIL LIVRE VINCULAÇÃO PARTIDÁRIA: REGRAS O Movimento Brasil Livre não possui relação formal com partido político algum, agindo de forma livre e independente para a plena consecução de seus objetivos. Assim, sendo, pelo caráter absolutamente político deste movimento, estabelece-se as seguintes regras acerca da vinculação partidária aos diferentes perfis de membros do grupo: Coordenador: Caso seja filiado a partidos considerados “neutros” (PSDB, DEM, PMDB, PV, PSC, NOVO, PRP, PSB, PPS, PTdoB, PRTB ), deverá apresentar justificativa para a manutenção de sua filiação – baseada, principalmente, em argumentos eleitorais e estratégicos. Membros efetivos: Os membros efetivos vêm a ser aqueles que pertencem a Diretoria da Filial municipal. Eles poderão possuir filiação a partidos considerados “neutros”, não podendo haver, porém, mais que um por partido. Dá-se preferência a membros efetivos desfiliados ou filiados ao Partido Novo, e os demais citados no exemplo do coordenador. Apoiadores e Colaboradores: Podem possuir filiação a partidos diversos, excluindo-se as tradicionais siglas de esquerda (PT, PSOL, PCB, PCdoB, PSTU, PCO). O descumprimento a tais regras acarretará na cassação do coordenador municipal, e, em casos extremos, no encerramento da filial.
A plataforma Reddit é importante para o Movimento. Apesar de qualquer um poder se registrar, ela é um veículo para debater as estratégias políticas e a agenda da organização. A literatura mostra que os fóruns da Reddit têm sido amplamente utilizados por movimentos de direita em várias partes do mundo (Dal Bosco, 2018; Grover; Mark, 2019; Mihailidis; Viotty, 2017). A Reddit tornou-se ainda mais importante depois que outras redes começaram a banir contas ou fóruns da direita alternativa por incitarem a violência (Dal Bosco, p. 55). No caso exemplificado, o tema discutido pelo MBL na Reddit demonstra como o movimento incorporou debates na internet sobre questões de organização interna. Esse é um exemplo de como as mídias sociais e as novas tecnologias reconfiguram os impactos dos meios de comunicação e dos gatekeepers tradicionais, como os partidos políticos, criando novas oportunidades para desafiar a hegemonia. Esse desafio
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pode representar tanto uma ameaça quanto uma oportunidade para o exercício da democracia. 2. O MOVIMENTO BRASIL LIVRE (MBL) A história do MBL é de rápida e constante transformação. O movimento, que teve origem em 2013 a partir da filial brasileira da organização transnacional “Estudantes pela Liberdade” (fundada em 2008, nos Estados Unidos), foi inicialmente criado com a intenção de massificar os valores do libertarianismo e do anarcocapitalismo (Gobbi, 2016). No entanto, como apontado por Gobbi e Dias (2017), o MBL mais tarde assumiria a missão de “liderar as massas” durante o impeachment de Dilma Rousseff. Para isso, adaptaram seu discurso a uma estética mais popular, evitando questões sensíveis que poderiam ofender o “senso comum” – como a regulamentação do aborto e o casamento LGBT, políticas apoiadas por alguns setores liberais. Após o impeachment de Rousseff, o MBL se afastou de sua gênese libertária e estabeleceu sua identidade firmemente no campo conservador (atualmente, na direita radical). No entanto, o discurso de privatização do MBL (Dias, 2017; Tatagiba, 2018) contrasta com a postura nacionalista apresentada pela organização. De fato, embora a priori possa parecer uma contradição, a organização conservadora defende a venda de todas as empresas estatais brasileiras ao mesmo tempo em que expressa um discurso nacionalista agressivo. Como é indicado por Machado (2017, p. 48), os esquemas de corrupção disseminados pela Operação Lava Jato7 e pela grande mídia serviram como força motriz para justificar, e até mesmo para idealizar, um novo Brasil. Em seus discursos, o MBL denuncia um establishment completamente 7
Conforme apontado por Gonçalves e Moreira (2018, p. 50), a chamada “Operação Lava-Jato” é um conjunto de investigações realizadas pela Polícia Federal, que revelou um esquema em que grandes empresas de construção, grandes empresários, políticos dos poderes executivo e legislativo e partidos políticos integravam uma organização que comandava um esquema de corrupção envolvendo desvio de recursos e lavagem de dinheiro. Para mais informações, ver: http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso. Acesso em: 6 de junho de 2020.
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dominado por socialistas, comunistas e esquerdistas, que devem ser responsabilizados pela “deficiência” da sociedade atual. A identidade do movimento é construída em oposição à ideologia de esquerda, especialmente ao Partido dos Trabalhadores, que o movimento identifica como sendo responsável pela corrupção de todo o sistema. Essa oposição é a prova de um discurso profundamente antiliberal. O MBL parece agir como outros novos grupos populistas de direita, propensos a atacar instituições supranacionais, meios de comunicação e tribunais, assumindo uma posição antiestablishment. O movimento é conhecido por realizar repetidos ataques aos principais meios de comunicação, instituições políticas e serviços públicos. Recentemente, o MBL levantou a bandeira da preservação dos valores cristãos da sociedade ocidental. Segundo Tatagiba (2018, p. 119), no contexto dos movimentos sociais brasileiros, o MBL é a organização que ganhou a maior capacidade de combinar ações nas ruas com investimentos em instituições, especialmente depois da organização de suas candidaturas. O MBL se definiu como não partidário em 2013, mas reavaliou sua posição em 2015 com o objetivo de lançar a candidatura de Fernando Holiday (Dias, 2017, p. 46) como vereador de São Paulo (a maior cidade do Brasil). O Movimento vem lançando candidaturas para as câmaras de vereadores de todo o país desde as eleições municipais de 2016, quando oito dos seus quarenta e cinco candidatos foram eleitos. Na época, o movimento conseguiu eleger Holiday (DEM-SP), um de seus líderes nacionais, com mais de 45.000 votos. Um candidato negro e gay, Holiday é conhecido por sua oposição às agendas dos movimentos negro e LGBT brasileiros. Ele tornou-se o mais jovem vereador de São Paulo, com apenas 20 anos de idade. A estratégia eleitoral adotada nas eleições de 2018 resultou na eleição de cinco deputados federais, que foram, então, distribuídos em quatro partidos diferentes: o Partido Republicano da Ordem Social (PROS), o Democratas (DEM), o Partido Progressista (PP) e o Partido Social Cristão (PSC) (Ramos, 2018) . Kim Kataguiri (DEM), fundador do MBL e principal figura pública do movimento, recebeu mais de 460.000 votos e tornou-se, na época, o quarto congressista mais votado do estado de São Paulo.
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No dia 27 de dezembro de 2015, o MBL fez a seguinte publicação, cobrindo mais de uma das categorias de sua estratégia política que pretendemos propor em nosso quadro analítico: A natureza petista é a mesma natureza dos piores ditadores que o mundo já viu. A mentalidade estatista vai contra os ideais da liberdade que o MBL defende. Quanto menos poder os burocratas engravatados tiverem, melhor para o povo. Menos estado, mais liberdade8. IMAGEM 1 Publicada em 27 de novembro de 2015, na página oficial do MBL
A imagem acima compara Benito Mussolini ao então líder do governo do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados. Assim, de acordo com o MBL, a essência do Partido dos Trabalhadores é o mal e o totalitarismo, a nacionalização e o “coletivismo”. Pode-se ver como a própria noção do Estado é concebida pelo movimento como sendo um problema ou uma ameaça. 8
Disponível em: https://www.facebook.com/mblivre/photos/335013406622809. Acesso em: 14 de março de 2020.
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Essa publicação revela as concepções ultraliberais que definem a agenda básica da organização: a ideia de que o mercado é a própria antítese do Estado. Para o Movimento, enquanto o mercado representa a liberdade, o Estado é a materialização da opressão. Afinal, de acordo com o ponto de vista defendido pelo movimento, o Estado foi infiltrado e é dominado pelos socialistas. 2.1. Metodologia – Uma Abordagem Hermenêutica à Comunicação Social Populista A fim de contribuir para o debate sobre a forma como os atores populistas processam a instituição do partido político através das mídias sociais, o presente artigo utiliza uma abordagem hermenêutica para codificar os textos dos diferentes atores políticos –movimentos sociais, partidos e políticos. Pretendemos identificar a presença de características típicas na comunicação populista. A lista de características e mecanismos populistas proposta por este artigo não é exaustiva. Ela deve ser constantemente atualizada, pois a construção de narrativas e significados através de estratégias discursivas é interativamente reconstruída e ressignificada em um processo onde os atores políticos respondem a constrangimentos sociais e institucionais que os levam a reformular seus comportamentos e discursos. Nossa análise foi pautada em 499 mensagens publicadas pela página do MBL no Facebook entre novembro de 2014 e novembro de 2017.9 Esse enfoque temporal nos permitiu observar certas mudanças nas interações entre o MBL e os partidos políticos, incluindo uma mudança dos argumentos entre a negação e a necessidade. Realizamos, primeiramente, uma leitura indutiva das mais de 15 mil postagens coletadas, com base nas quais as categorias de codificação foram criadas. Devido a restrições de tempo10, coletemos uma amostra aleatória de 499 postagens que cobrem todo o período. A intenção foi evitar uma simples análise lexical. Ao invés de contar quantas vezes a palavra “elite” foi mencionada, por 9
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Os dados foram acessados através da plataforma Netvizz. É nossa intenção trabalhar com todos os dados coletados futuramente.
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exemplo, a metodologia utilizada nos permite analisar composições textuais mais amplas. Essas construções poderiam expressar o significado de elite – aqui entendido como “antagonistas do povo” – e codificá-lo em uma forma de variável dummy (por exemplo, sim ou não para a categoria “partidos como pilares da democracia liberal”). A figura seguinte explica como as variáveis dummy funcionam. Como podemos ver, as categorias podem se sobrepor; isto é, uma postagem pode se enquadrar em mais de uma categoria.
post publicado
Partido como modelo da corrupção
Partidos como representantes das elites
Partidos controlam o establishment
Partidos são autoritários | totalitários | fascistas
Partidos são clientelistas
Partidos são coletivistas
Partidos são irresponsáveis com as contas públicas
Partidos como pilares da democracia liberal
Partido como instrumento para boas pessoas
Partido como a incorporação de uma agenda positiva
Os partidos lutam contra o coletivismo
FIGURA 1 Exemplo de variáveis dummy
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Fonte: Elaborado pelo autor
O Facebook foi escolhido para a análise porque é a plataforma de mídia social com o maior número de usuários – mais de 2 bilhões de membros em todo o mundo, e cerca de 127 milhões de membros no Brasil (Clement, 2014). Portanto, o Facebook é mais popular do que suas plataformas concorrentes e, apesar da importância do YouTube, o Facebook foi o canal de comunicação mais relevante para o MBL. Em março de 2020, o MBL foi a organização de direita com o maior número de curtidas no Facebook – mais de 3 milhões.
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2.2. O quadro analítico A codificação de dados foi baseada em catorze categorias, que refletem os diferentes discursos sobre os partidos políticos: sete delas são positivas – ou seja, enquadram os partidos políticos em uma luz favorável – e sete são negativas. A seguir, explicamos cada um desses agrupamentos os relacionando com características específicas ao populismo, tal como estabelecido pela literatura. Categorias negativas Partidos como modelo de corrupção Cass Mudde (2004) considera o populismo como uma ideologia que entende a sociedade como sendo dividida entre dois grupos homogêneos e antagônicos: a “população pura” contra a “elite corrupta”. Segundo Mudde (2004), os populistas argumentam que a política deve ser uma expressão da vontade geral da população, sendo, portanto, mais moralista do que programática. De acordo com o autor, a diferenciação normativa entre “elite” e “pessoas” é essencial para a perspectiva moralista do populismo. Seus oponentes não seriam apenas pessoas com valores diferentes, mas consistiriam em representações do verdadeiro mal. A corrupção desempenha um papel fundamental na literatura sobre o populismo, quer ele seja definido como uma ideologia ou como uma estratégia política. Müller (2017), autor que tem uma visão bastante negativa do populismo, argumenta que seus adeptos justificam o seu comportamento ao alegar que só eles representam o povo, o que lhes permite confessar seus atos negativos abertamente. De acordo com o autor, isso explicaria por que as revelações de corrupção raramente parecem prejudicar os líderes populistas: na perspectiva de seus seguidores, os populistas estariam se engajando na corrupção para o benefício do povo autêntico. Roberts (1995, p. 98), ao analisar a experiência de Alberto Fujimori11 no Peru, mostra como esse líder populista procurou 11
Alberto Fujimori foi o 90º Presidente do Peru, cargo que ocupou de 1990 a 2000. Conforme apontado por Burt (2009, p. 386) em 1992, Fujimori realizou um autogolpe,
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mobilizar a opinião pública contra o que Fujimori chamou na época de “partidocracia”, afirmando que a corrupção das elites dos partidos havia levado o Peru a um colapso econômico. No quadro analítico utilizado neste artigo, a ideia de “partidocracia” pode ser traduzida como a noção de que os partidos políticos são a expressão do “outro social” por excelência, a encarnação da corrupção e da imoralidade. Portanto, usaremos esse termo a partir de agora ao nos referirmos à concepção essencialista dos partidos políticos como desonestos e alinhados ou sempre em defesa de antagonistas degenerados. Partidos como representantes das elites O discurso populista apresenta atores sociais específicos como sendo responsáveis pela caracterização de uma sociedade como um “ser deficiente”. Esses atores ou antagonistas são muitas vezes identificados como as elites – aqueles que controlam as instituições e usam seu poder e influência para benefício próprio – ou como minorias sociais marginalizadas que se tornaram um fardo para o resto da sociedade. Como exemplos mais específicos, podemos apontar o lumpenproletariado ou agentes externos – subclasse ou países estrangeiros (Antagonistas Externos) em uma posição privilegiada, respectivamente. Em todos os casos, o discurso representa os antagonistas como grupos ou atores privilegiados pelo establishment. No entanto, apenas no etnopopulismo12 a ideia de antagonistas externos ou grupos étnicos aparece como uma característica recorrente. Nesse caso, conforme é apontado por Laclau (2005), uma fronteira clara é traçada entre as pessoas – a comunidade – e seus adversários. Esses outsiders podem nunca ser reconhecidos como parte do coletivo social, pois os critérios para
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fechando o Congresso, suspendendo a constituição e assumindo o poder judiciário com o apoio das forças armadas e elites peruanas. Em 2009, o Tribunal Criminal Especial da Suprema Corte do Peru condenou o ex-presidente a 25 anos em regime fechado, a pena máxima permitida pela lei peruana. Fujimori foi condenado por graves violações dos Direitos Humanos (Burt, 2009, p. 384). Jenne (2018, p. 5) define “etnopulismo” como o discurso que iguala ‘o povo’ com ‘a nação’, e que defende que a soberania deve ser uma expressão da vontade do ‘povo-nação’.
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definir quem pertence a uma determinada identidade étnica já estão cristalizados. Nessa perspectiva, os antagonistas são representados por partidos políticos, as elites do establishment político que controla as instituições. Os partidos controlam o establishment Como o establishment é controlado pelas elites, ele também representa a vontade aristocrática, que é geralmente colocada em oposição aos interesses do povo. Essa operação de contestação do establishment é o que definimos como uma abordagem antiestablishment. Ela critica uma ou mais instituições – os meios de comunicação, a política, os valores culturais, a intelectualidade, o sistema jurídico ou o Estado – por fornecerem a estrutura de regras, hábitos ou poderes que regulam o “ser deficiente” do povo. Reconhecemos que, para compreender melhor como se realiza a construção do sentido no caso de um discurso antiestablishment, é importante identificar as instituições que estão sendo criticadas. Afinal de contas, a abordagem antiestablishment pode se manifestar de diferentes maneiras: discurso antimídia, antipolítica, anticultura, anti-intelectualidade, antijustiça e antiEstado. Os partidos são autoritários Para Müller (2017), os populistas não poupam esforços para reprimir sistematicamente a sociedade civil. O autor argumenta que os partidos populistas são particularmente propensos ao autoritarismo interno, pois a discordância interna não é permitida em um partido que afirma ser o único representante legítimo do bem comum. Para o autor, o populismo distorce o processo democrático; de fato, se o partido governante tem uma maioria, pode então justificar a criação de uma nova constituição com base no esforço de retomar o Estado para os “verdadeiros cidadãos” de um país – os “verdadeiros húngaros”, ou os “verdadeiros poloneses”, por exemplo. Para Müller, os populistas são sempre protoautoritários e tem alta probabilidade de causar sérios danos aos sistemas democráticos. Gandhi (2008) argumenta que as instituições nominalmente democráticas, como partidos políticos e legislaturas, têm uma
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função importante em regimes não democráticos. Em seu estudo transnacional, a autora analisou como os líderes autoritários fazem uso de instituições partidárias e das legislaturas políticas, e concluiu que essas estruturas são fundamentais para a sobrevivência de regimes ditatoriais, uma vez que os líderes autocráticos as usam para organizar concessões a serem feitas a potenciais oposições. Nessa perspectiva, o populismo pode utilizar os partidos políticos como instrumentos para o seu autoritarismo. Os partidos são clientelistas De acordo com Müller (2017), o governo populista tem três características principais: sua tentativa de sequestrar o aparelho do Estado; a corrupção; e o “patrocínio em massa”, uma troca de bens materiais ou favores burocráticos para o apoio político dos cidadãos que se tornam “clientes” dos populistas. O fato é que o populismo tem sido historicamente associado ao clientelismo (Laclau, 2005). No entanto, conforme indicado por Carvalho (1997), o conceito de clientelismo é também alvo de muita confusão. Segundo o autor, apesar de seu emprego teórico-negligente, o clientelismo geralmente consiste em “um tipo de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto” (Carvalho, 1997). Para o autor, o clientelismo é um atributo variável dos sistemas macropolíticos. No entanto, para Hicken (2011, p. 291), o clientelismo funciona como ferramenta na construção de uma rede leal de apoiadores; no caso das autocracias, envolve a criação da dependência socioeconômica do regime e da subserviência política. Nesse cenário conceitual, o partido político se posiciona como representação dessas “velhas instituições”, que sobrevivem de trocas espúrias de favores. Como estamos cientes de que o conceito de clientelismo, bem como o de populismo, é alvo de várias disputas, somos da opinião de que a mobilização dessa noção em debates públicos e políticos pode ser profundamente depreciativa, visto que ela é comumente associada e confundida com a ideia de coronelismo.
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Os partidos são coletivistas A concepção do coletivismo utilizada em nossa interpretação é baseada no conceito cunhado por Hayek (2014). De acordo com o autor austríaco e cânone do pensamento liberal: [...] devemos sempre lembrar que o socialismo é uma espécie de coletivismo e que, portanto, tudo o que é verdadeiro para coletivismo como tal deve também ser aplicado ao socialismo. Quase todos os pontos que são disputados entre socialistas e liberais dizem respeito a métodos comuns a todas as formas de coletivismo e não às finalidades específicas para as quais os socialistas querem usá-los; e todas as consequências que iremos analisar no presente livro derivam dos métodos do coletivismo, independente dos fins para os quais tais métodos são utilizados. Também não deve ser esquecido que o socialismo não é apenas de longe a mais importante espécie de coletivismo ou “planejamento”; mas que é o socialismo que tem persuadido pessoas de inclinação liberal a se submeterem, mais uma vez, a arregimentação de vida econômica que eles haviam derrubado, pois, nas palavras de Adam Smith, ele coloca os governos em uma posição onde, “para sustentar a si mesmos, eles são obrigados a serem opressores e tirânicos” (Hayek, 2014, p. 35. Tradução nossa).
Hayek explica que os vários segmentos do coletivismo diferem no propósito para o qual visam liderar os esforços de uma determinada sociedade. No entanto, todos esses segmentos diferem do individualismo e do liberalismo, na medida em que aspiram ordenar toda a sociedade e seus recursos como um todo. Em suma, Hayek classifica o coletivismo como totalitário. A chave explicativa do coletivismo é constantemente reivindicada pela extrema-direita para tentar, por exemplo, igualar a experiência do comunismo com o nazismo. Em outras palavras, esses regimes são ditos semelhantes devido ao importante papel do Estado em suas respectivas economias. De acordo com esse conceito, o partido político é também uma expressão coletivista enquanto representante do Estado.
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Os partidos são irresponsáveis com as contas públicas A instabilidade econômica na América Latina nas últimas décadas tem sido historicamente associada a uma macroeconomia populista. Embora essa discussão seja muitas vezes despolitizada, vários economistas argumentam que a América Latina viveu e viverá ciclos econômicos catastróficos devido a más escolhas políticas. Dornbusch e Edwards (1991), por exemplo, argumentam que o fracasso da América Latina é marcado por políticas macroeconômicas populistas com objetivos distributivos. Para os autores, os países latino-americanos escolheram programas econômicos que dependiam fortemente de políticas fiscais, bem como crédito expansivo e uma moeda sobrevalorizada para acelerar o crescimento e redistribuir a renda – sem se preocupar com restrições cambiais. O resultado dessas experiências foi a inflação e o colapso do sistema econômico, enquanto para de Castro e Ronti (1991, p. 167) a principal característica do populismo seria seu subdesenvolvimento institucionalizado. Segundo os autores, o populismo lutaria contra instituições de Estado fortes que buscam limitar o poder dos governantes. A consequência natural disso seriam organizações financeiras fracas. Nesse sentido, os partidos políticos representariam um atraso econômico que incorpora o desejo de controlar as instituições financeiras. Categorias positivas Partidos como pilares da democracia liberal Conforme argumentado por Kinzo (2004, p. 23), é um consenso na academia que os partidos políticos são instrumentos fundamentais no regime democrático e que a ocorrência de eleições justas e livres em que os partidos competem por cargos públicos é essencial para identificar se um sistema político é uma democracia. Para a autora (2004, p. 28), os partidos têm papéis importantes na arena eleitoral e na tomada de decisões, especialmente na formulação, planejamento e implementação de políticas públicas, atuando como atores legítimos em processos de negociação política e de poder. Esse argumento tem certas
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semelhanças com a concepção de poliarquia proposta por Robert Dahl (1997). Para esse autor (1997, p. 26), a fim de estabelecer uma verdadeira democracia, todos os cidadãos, necessariamente, possuiriam ampla oportunidade para formular suas preferências; poderiam expressar essas preferências para todos e para o governo, por meio de ações individuais e coletivas (que também poderiam ser expressas por partidos políticos); e, finalmente, as preferências dos cidadãos seriam consideradas de forma igualitária pelo governo. Nesse sentido, entendemos que a presente categoria se refere aos partidos como instrumentos democráticos que salvaguardam a democracia liberal. Partidos como instrumentos para boas pessoas De acordo com Dahl (1997, p. 29), a democratização tem ao menos duas dimensões: a contestação pública e o direito de participar em eleições e cargos públicos. Existe a percepção de que o “partido” como instituição só pode ser colonizado por pessoas boas e dignas; mais do que isso, que as pessoas qualificadas precisam e devem concorrer a cargos públicos. Nesse sistema teórico, emerge uma separação entre partidos e candidatos. O partido é um instrumento para pessoas bem-intencionadas e capazes de se envolver na política e avançar suas agendas. No entanto, é possível que o indivíduo possa ser separado do partido. O partido como a incorporação de uma agenda positiva Como mencionado acima, os partidos fazem parte do sistema democrático e ajudam o país a implementar uma agenda positiva. Em outras palavras, conforme demonstrado por Kinzo (2004, p. 25), a obtenção de poder político legítimo só foi possível através da organização de partidos políticos. A representação democrática se tornou viável quando os partidos modernos assumiram as tarefas de estruturar disputas eleitorais e mobilizar o eleitorado. Entendemos, portanto, que o partido político também pode ser concebido como a incorporação de uma agenda, ou de um plano de ação, que permita ao país sair de uma crise econômica e política.
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Os partidos lutam contra o coletivismo De acordo com Hayek (2014, p. 104), a liberdade política não tem sentido se não for acompanhada pela liberdade econômica. Para o autor, isso é um pré-requisito para qualquer outro tipo de liberdade – o oposto do que é prometido pelo socialismo. Para Hayek, a prerrogativa da ação econômica vem antes de outras liberdades de escolha, mas também carrega outros riscos e responsabilidades únicas. Hayek exprime a essência do individualismo: o reconhecimento do indivíduo como juiz supremo de seus próprios objetivos, juntamente com o conceito de que o pensamento individual deve governar. Para ele, os fins sociais são análogos às intenções de vários indivíduos que contribuem para a satisfação de seus desejos. O Estado tem sua própria esfera, limitada pelo consenso do sujeito. Quando o Estado exerce controle sobre temas muito disputados e que causam discordância, ele suprime as liberdades individuais. Para Hayek, o partido político deve ser um bastião da luta pela liberdade econômica, devendo defender todos contra a opressão do Estado e a tática coletivista. Os partidos são honestos e racionais De acordo com Faria (2000, p. 49), Habermas ilustra os processos de comunicação e tomada de decisão do sistema político por meio de uma relação centro-periferia. A autora argumenta que Habermas coloca a administração, o poder judiciário e a formação democrática da opinião e da vontade (tais como o parlamento e os partidos) no “centro” do sistema político e coloca a esfera pública formada por formadores de opinião, grupos de interesse e associações na periferia. Por outro lado, Urbinati (2013, p. 102) indica que o argumento deliberativo habermasiano é essencialmente moral e ético. Segundo a autora, nessa argumentação a universalidade dos argumentos racionais é um princípio legitimador. Conforme apontado por Urbinati, o raciocínio de Habermas é “em nome dos princípios de agregação das preferências e troca periódica dos eleitos como as únicas vias pragmáticas para resolver a carência de racionalidade contida nas opiniões políticas sem
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renunciar à liberdade, ou melhor, ao consenso eleitoral” (Urbinati, 2013, p. 102). Nesse sentido, os partidos são entendidos não só como atores coletivos essenciais, desempenhando um papel dentro da relação entre o sujeito e a política institucional, mas também como importantes veículos para filtrar a opinião pública em benefício das instituições de tomada de decisão. Os partidos operam de forma ética e racional, resolvendo antagonismos sobre os quais não é possível chegar a um acordo na esfera pública. O partido como ferramenta de resistência diante das elites Como já foi dito, o discurso populista identifica os antagonistas que governam as instituições e o sistema político. Os antagonistas, protegidos pelo establishment, são considerados responsáveis pela deterioração social. O partido político representa os interesses do povo e luta contra os antagonistas que ocupam o establishment político e financeiro. Os partidos lutam contra ditaduras Os partidos políticos desempenharam um papel importante como líderes de movimentos sociais que se opuseram à ditadura militar no Brasil (Keck, 1991). Com base em um exemplo de outro país latino-americano que também experimentou uma ditadura militar, Carruthers (2001, p. 346) argumenta que, embora o apoio aos partidos tenha declinado com a restauração do domínio civil, a política partidária incorporou as preocupações dos círculos eleitorais que haviam desafiado a ditadura militar, como a agenda de direitos humanos. Segundo o autor (2001, p. 346), “[...] para melhor ou para pior, os partidos políticos serão, em última análise, a influência decisiva sobre o potencial de um movimento social popular emergir, sob qualquer forma”.
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TABELA 1 Codificação de concepções positivas em relação aos partidos políticos CATEGORIAS POSITIVAS
DEFINIÇÃO
Partidos como pilares da democracia liberal
Os partidos são instrumentos democráticos e salvaguardam a democracia liberal. São fundamentais para a garantia do federalismo.
Partidos como instrumentos para boas pessoas — partidos como instrumento de cidadania
As pessoas capacitadas precisam de colonizar partidos e competir por cargos públicos. O partido é um instrumento para as pessoas bem intencionadas e com poder para se envolverem na política. É um instrumento de cidadania.
O partido como a incorporação de uma agenda positiva
O partido político como modelo de uma agenda econômica e social que permitirá ao país sair da crise econômica e política.
Partidos lutam pela liberdade econômica (contrários a nacionalização) | Partidos defendem liberdades individuais | Os partidos lutam contra o coletivismo
Partido político como bastião da luta pela liberdade econômica, contra a opressão do Estado e o coletivismo. Defensor da desregulamentação do Estado e do mercado livre.
Partidos são honestos e racionais
Partidos são atores coletivos essenciais na relação entre o sujeito e a política institucional. Desempenham um papel importante na captação e filtragem da opinião pública para a tomada de decisões das instituições. Os partidos atuam eticamente e racionalmente como um meio de resolver antagonismos que carecem de racionalidade na esfera pública.
O partido como ferramenta de resistência diante das elites
O partido representa os interesses do povo e luta contra os antagonistas e elites que ocupam o establishment e as instituições políticas.
Os partidos lutam contra ditaduras
Os partidos políticos são fundamentais na emergência de movimentos sociais e na representação da sociedade civil. Eles defendem a liberdade de organização. São atores que lutam contra as ditaduras dentro e fora do país.
Fonte: Elaborado pelo autor
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TABELA 2 Codificação de concepções negativas em relação aos partidos políticos CATEGORIAS NEGATIVAS
DEFINIÇÃO
Partido como modelo da corrupção
Partidos são essencialmente ruins. Representam as más práticas e a corrupção. São a expressão do “outro social” e da imoralidade, desonestos e defendem os degenerados antagonistas
Partidos como representantes das elites
Os partidos representam os antagonistas, que são as elites do establishment político, que controlam as instituições
Partidos controlam o establishment
Os partidos representam o corrupto establishment político, econômico e social. A abordagem antiestablishment pode se manifestar em diferentes formas: como o discurso antimídia, antijudiciário, antipolítica, anticultura, anti-intelectualidade, antijustiça, antiestado.
Partidos são autoritários | totalitários | fascistas
Os partidos são instituições autoritárias. Não respeitam a diversidade do debate, impõem seus desejos autoritários à população. Defendem ditaduras.
Partidos são clientelistas
Partidos são instituições clientelistas, oligarcas e coronelistas. São a representação dessas instituições velhas, que sobrevivem de trocas de favores espúrias.
Partidos são coletivistas | Partidos são estatizantes
Como representante do Estado, o partido também é uma expressão “coletivista”. Atua contra as liberdades econômicas e o livre mercado, sempre busca a regulamentação e a estatização.
Partidos são irresponsáveis com as contas públicas
Os partidos são contrários a instituições sólidas que limitariam o poder dos governantes Defendem instituições fracas e a inexisténcia de um Banco Central independente. Representam o atraso e o subdesenvolvimento econômico.
Fonte: Elaborado pelo autor
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2.3. O MBL e os partidos políticos: entre a negação e a necessidade Embora os membros do MBL tenham passado a se filiar a vários partidos políticos ao longo do tempo (como já foi mostrado aqui), sua retórica populista antiestablishment – em que os partidos são concebidos como um obstáculo ao avanço democrático – continua presente nos últimos anos. Os números a seguir buscam explicar essa complicada relação. Nesta seção, discutiremos as prováveis causas da predominância de uma visão negativa sobre o sistema partidário dentro do MBL.
FIGURA 2 Número de postagens do Facebook com pontos de vista negativos sobre os partidos políticos (2014-2017), agrupadas por categoria
219
1. Partido como modelo da corrupção 2. Partidos são irresponsáveis com as contas públicas
89
3. Partidos controlam o establishment
72
4. Partidos são coletivistas | estatizantes
69
5. Partidos são clientelistas
69
6.Partidos são autoritários | totalitários | fascistas
68
7. Partidos como representantes das elites
47
Fonte: Elaboração do autor, com base na página do MBL no Facebook
A Figura 2 apresenta o número de publicações que possuem uma visão negativa sobre os partidos políticos postadas na página do Facebook do MBL, agrupadas por categoria. A
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primeira categoria da imagem é a mais emblemática: duzentos e dezenove postagens associam partidos políticos à corrupção. No entanto, é importante notar o contexto político em que esses dados foram produzidos. Especialmente antes do impeachment de Dilma Rousseff (2016), a maioria das postagens citando partidos políticos também abordava o Partido dos Trabalhadores (PT). Portanto, a base de dados no primeiro ano do MBL (2015) indica que o discurso antipartido era, de fato, um discurso “antiPartido dos Trabalhadores”. Através do serviço de análise Power BI13, fomos capazes de identificar o número de menções ao PT nas postagens investigadas. O software realizou uma contagem de palavras e essa informação foi cruzada com o conteúdo analisado; o resultado foi um número de oitenta e oito menções. Voltando à Figura 2, a Categoria 2 mostra, por sua vez, que 18% das postagens do MBL afirmam que os partidos políticos são irresponsáveis economicamente e/ou com o orçamento público. Essa afirmação está intimamente relacionada com a contida na Categoria 4, que os partidos são “coletivistas” – mesmo caso do argumento de Hayek em The road to serfdom (O Caminho da Servidão). O movimento acredita que o país está passando por uma crise fiscal devido a uma cultura brasileira de estatização, uma mentalidade que supostamente se coloca contra a iniciativa privada e que criminaliza o empreendedorismo. De acordo com esse ponto de vista, o Estado controla toda a economia e não proporciona liberdade econômica à população. Acima de tudo, argumentamos que esse grupo possui uma concepção filosófica da liberdade. Respaldados por von Mises, um ícone da direita liberal, os membros do MBL argumentam que a minoria mais relevante é o próprio indivíduo. O Estado coletivista é autoritário. Como mostrado na Categoria 6 da Figura 2, em 14% de suas postagens, a organização acusa os partidos de autoritarismo, de não respeitar a liberdade e a diversidade, de ignorar a maioria conservadora e de manter uma 13
Power BI é um serviço de análise de negócios da Microsoft.
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estreita e irresponsável relação com países ditatoriais, como a Venezuela e Cuba. A terceira categoria negativa, “Os partidos controlam o establishment”, indica que 14% das publicações analisadas sugerem que os partidos controlam o establishment político, especialmente os partidos de esquerda e o Partido dos Trabalhadores. Foram encontradas 72 postagens que argumentavam que o PT tem influência poderosa ou controle total sobre os meios de comunicação, bem como sobre os valores culturais brasileiros, a intelectualidade, o sistema jurídico e o Estado em geral. A passagem mostrada abaixo, por exemplo, indica a crença de que o Grupo Globo – maior conglomerado de imprensa do Brasil – é controlado pelo Partido dos Trabalhadores. A Imagem 2, postada na página do Facebook do movimento, funde os logotipos do jornal O Globo e do PT, e afirma que “O Globo mente sobre o MBL”. POR QUE O GLOBO INSISTE EM MENTIR SOBRE O MBL? Mais uma vez O GLOBO se mostrando governista e tendo que MENTIR sobre o MBL. Disseram que o cara que foi preso ontem em Brasília portando armas era do MBL SEM PROVA ALGUMA. ESSE GOVERNISMO SAFADO NÃO PODE PASSAR! Mandem emails para os responsáveis por mais uma mentira a favor do governo Dilma.14
14
Disponível em: https://www.facebook.com/mblivre/photos/por-que-o-globo-insiste-em-mentir-sobre-o-mblmais-uma-vez-o-globo-se-mostrando-g/326802794110537/. Acesso em: 14 de março de 2020.
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IMAGEM 2 Jornal “O Globo” mente sobre o MBL. Da página oficial do MBL no Facebook. Publicado em 13 de novembro de 2015, na página oficial do MBL15
A Figura 2 também revela que os partidos são considerados clientelistas em quase 14% das publicações. O MBL argumenta que os partidos políticos são instituições falidas que servem outros propósitos, por exemplo, deixar os chefes dos partidos ricos com os fundos eleitorais e partidários16. 15
16
Disponível em: https://www.facebook.com/mblivre/photos/por-que-o-globo-insiste-em-mentir-sobre-o-mblmais-uma-vez-o-globo-se-mostrando-g/326802794110537/. Acesso em: 18 de março de 2020. O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, mais conhecido como Fundo Partidário é uma concessão mensal aos partidos políticos, que consiste em uma forma de financiamento público. O Fundo Especial de Campanha, mais conhecido como Fundo Eleitoral, também é uma forma de financiamento público dos partidos políticos brasileiros, destinado a financiar campanhas eleitorais. As quantias são alocadas aos partidos nos anos eleitorais para ajudar a pagar as despesas de campanha.
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Finalmente, a categoria “partidos como representantes das elites” remete à ideia de que o establishment é a personificação da vontade aristocrática, que se opõe aos interesses do povo e dos “verdadeiros brasileiros”. Nesse sentido, o MBL convoca as pessoas a se organizarem, inclusive pedindo que se unam ao movimento como forma de disputar a hegemonia esquerdista nas instituições brasileiras. Em outros momentos, esse argumento também será utilizado para justificar o lançamento de candidatos do movimento por meio de vários partidos.
FIGURA 3 Número de postagens do Facebook com pontos de vista positivos sobre os partidos políticos (2014-2017), agrupadas por categoria 1. Partido como a incorporação de uma agenda positiva
80
2. Partido como instrumento para boas pessoas
71
3. Partidos como pilares da democracia liberal
71
4. Partidos lutam pela liberdade econômica
60
5. Partidos são honestos e racionais
61
6. O partido como ferramenta de resistência diante das elites 7. Os partidos lutam contra ditaduras
49 17
Fonte: elaboração do autor, com base na página do MBL no Facebook
Por outro lado, o número de publicações com uma visão positiva sobre os partidos confirma que o MBL faz poucos elogios a essa instituição, embora o movimento tenha passado a lançar candidatos por meio dela desde as eleições municipais de 2016.
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Os gráficos abaixo mostram as mudanças na relação entre o MBL e os partidos políticos através do tempo:
FIGURA 4 Porcentagem de postagens no Facebook com pontos de vista negativos sobre os partidos políticos (2014-2017)
Fonte: Elaboração do autor, com base na página do MBL no Facebook
FIGURA 5 Porcentagem de postagens no Facebook com pontos de vista negativos sobre os partidos políticos (janeiro-agosto de 2016)
Fonte: Elaboração do autor, com base na página do MBL no Facebook
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O gráfico mostra que as percepções negativas do MBL sobre os partidos políticos atingiram seu pico em 2015 e foram caindo posteriormente. As concepções negativas sobre os partidos políticos nas publicações do MBL no Facebook diminuíram acentuadamente em 2016, especialmente em agosto, quando Dilma Rousseff foi destituída. O MBL não só apoiou o impeachment, como também declarou seu apoio ao governo de Michel Temer. Além disso, áudios vazados revelaram que os partidos políticos que se opunham a Rousseff apoiavam as manifestações do MBL financeiramente. Conforme já mencionado, a partir de 2016, o MBL começou a lançar suas próprias candidaturas através de vários partidos que também formavam a base do governo de Michel Temer (muitos dos quais haviam financiado a organização). Durante a presidência de Temer (2016-2018), o grupo foi chamado pelo próprio governo para apoiar publicamente as políticas de reforma econômica (Bergamo, 2016), que consistiam em pacotes de austeridade e privatizações (Agência Senado, 2016). Nesse sentido, é possível ver que o discurso inconsistente e contraditório do MBL sobre os partidos políticos foi profundamente estratégico. Em outras palavras, entre a negação e a necessidade de uma relação com os partidos, a opinião da organização em relação aos partidos se tornou mais positiva a partir do momento em que o Partido dos Trabalhadores foi removido da presidência, bem como quando MBL começou a lançar candidatos que (não por acaso) formavam a base dos seguintes governos. Também é interessante notar como o conceito de “povo” do MBL mudou ao longo do tempo. Aqueles considerados “privilegiados” e responsáveis pelo déficit de bem-estar, já que recebiam altos salários pagos pelos contribuintes – funcionários públicos, por exemplo –, se tornaram antagonistas do povo brasileiro após o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Recentemente, o movimento começou a chamar cubanos que se opunham ao regime de Castro de “cubanos de verdade”, indicando que o MBL também aplica essa mentalidade além das fronteiras brasileiras. Esta também pode ser uma tentativa de chamar a atenção para o
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que o Brasil poderia ser se não fosse a intervenção do movimento e o impeachment. Ou seja, o movimento afirma que o Brasil teria se tornado Cuba ou Venezuela e teria sofrido o destino de grave agitação social desses países se não fosse por eles – embora o governo do Partido dos Trabalhadores na época fosse guiado pela social-democracia. A noção de “antagonistas externos” exemplifica como a extrema direita populista considera que uma espécie de coalizão internacional de esquerda está ameaçando os valores ocidentais. Eatwell e Goodwin (2019, p. 60), por exemplo, demonstram como parte dos seguidores de Trump promoveram uma teoria da conspiração na qual uma rede de burocratas de Washington estava supostamente associada ao “marxismo cultural” e promovia ideias inspiradas em Gramsci, com o objetivo de espalhar valores liberais de esquerda pelas instituições dos EUA. Uma obsessão com essa teoria da conspiração também é percebida na direita brasileira, especialmente nas postagens do MBL. Uma análise das categorias “negativas” anteriormente discutidas mostra como o MBL construiu um estilo populista de comunicação, especialmente em seu discurso antissistêmico, que vê os partidos políticos como parte de uma estrutura podre e corrupta. Além de nos ajudarem a entender as mudanças conceituais do MBL com o tempo, as Figuras 5 e 6 também indicam como o movimento, bem como outros atores populistas podem criar ou promover cenários de crise (BOS e Brant, 2004; Guasti e Almeida, 2019). O discurso antipartidário da organização, especialmente antes de 2016, pode acabar sendo uma estratégia para desacreditar o sistema político. Como argumentado corretamente por Guasti e Almeida (2020), os populistas muitas vezes expõem a crise para mobilizar apoio político e exigir ação imediata, o que pode incluir a remoção do seu adversário. Como retratado nas figuras, o MBL adotou posições diferentes antes e depois do impeachment de Dilma Rousseff. Antes de 2016, a crítica ao sistema partidário era muito mais fervorosa. Esse caso é um exemplo de como os atores populistas enquadram as crises políticas a seu favor.
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FIGURA 6 Tipos de postagens no Facebook
Fonte: Elaboração do autor, com base na página do MBL no Facebook
A figura 6, acima, ilustra outra variável importante na comunicação populista: como o número de fotos ou vídeos está intimamente relacionado à simplicidade do discurso. Abaixo, apresentamos uma breve escala do que consideramos como um discurso de estrutura argumentativa complexa (0) até um discurso muito simples (4), como forma de apoiar nossa pesquisa.
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FIGURA 7 Nível de simplicidade
Fonte: Elaborado pelo autor
A simplificação como elemento central do discurso populista é amplamente discutida na literatura (CANOVAN, 2004; ENGESSER et al., 2017; ŽIŽEK, 2017). O uso de jargão e linguagem especializada é uma forma de apelo de autoridade, mas falar de forma diferente do público e com ideias complexas e estruturadas é exatamente o oposto do que a comunicação populista tende a buscar. A simplificação, nesse caso, é notada não só pela utilização do léxico e da estrutura simples, mas também pelo apelo aos
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recursos audiovisuais, que tornam o texto mais fácil de compreender e reforçam o processo de conectar o remetente da mensagem com o público. Para se ter uma ideia, a relação entre memes e populismo já foi identificada por Milner (apud Chagas, 2018, p. 8) que argumenta que memes são dispositivos simbólicos multimodais que reúnem referências da cultura popular e suscetíveis a serem utilizados como comentário político populista. Fazer com que questões complexas pareçam simples é um objetivo do populismo em geral. Em nossa opinião, textos que são especialmente simples, visuais, curtos e humorísticos – facilmente replicados e instantaneamente “legíveis”, textos meméticos, como os postados nas mídias sociais – podem ser considerados um ideal da simplificação buscada. OBSERVAÇÕES FINAIS Primeiramente, consideramos que o quadro analítico proposto pode ser muito útil para compreender como funciona o estilo populista de comunicação. A direita radical parece estar usando o estilo de comunicação populista com grande sucesso, o que pode explicar seus recentes avanços no campo político, bem como seu domínio da arena virtual e, acima de tudo, a ascensão do populismo de direita antiestablishment no Brasil. A abordagem antipetista se mostrou um elemento constitutivo essencial do movimento MBL – um movimento que vê o PT como o principal ator do establishment partidário degenerado. Nesse sentido, para o MBL, o discurso antipetista parece ser equivalente a um discurso antiestablishment. O MBL é um exemplo de como, no Brasil, houve uma ligação entre a direita radical – que desenvolveu narrativas antissistêmicas atrativas – e um estilo populista de comunicação. Esse pode ser um fator importante para entender o sucesso eleitoral e o avanço da extrema-direita na política brasileira. Este artigo procurou discutir a base teórica da relação entre as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), a crise da democracia e o populismo. Argumentamos que o populismo atua como uma reação à crise da democracia liberal e não como a causa dela. Isso porque o aumento da desigualdade social precede o
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descrédito das instituições, pelo menos aos olhos da população. O crescimento do desapontamento popular com as falsas promessas dos políticos gera novas possibilidades de representação popular e de redução do Estado. Há um aumento na percepção de injustiça e desigualdade promovida pela estrutura do Estado, que por sua vez é o resultado de uma influência cada vez mais mediada entre o capital financeiro e as decisões políticas. As mídias sociais e as TIC têm um papel fundamental nesse processo, reconfigurando as relações de gatekeeping e, consequentemente, criando novas oportunidades para desafiar a hegemonia (Abelin e Gobbi, 2019, p. 23). Como esperamos que o presente artigo tenha mostrado, as TIC apoiam o surgimento de uma lógica populista nos debates políticos e, embora ofereçam oportunidades democráticas, também podem aprofundar a crise da democracia liberal. Grupos e líderes populistas têm uma afinidade pelo uso das mídias sociais. O MBL, que utiliza estratégias típicas da comunicação populista, representa um caso bem-sucedido do uso de novas tecnologias para ganho político. Essa organização de direita tem usado extensivamente as mídias sociais para defender opiniões profundamente contraditórias sobre os partidos políticos como sendo instituições válidas – o que, conforme argumentado, provou ser estratégico. Antes do impeachment de Dilma Roussef, os partidos eram demonizados e associados com a esquerda e um Estado coletivista, mas após o impeachment o movimento passou a defender concepções positivas de partido. Consideramos que esse fenômeno está associado ao apoio do MBL aos governos subsequentes e ao lançamento de candidaturas que colonizaram os partidos que constituiriam a nova base de governo. Ao utilizar toda essa experiência em novas tecnologias, o MBL também exemplifica a forma como os atores populistas contornam os gatekeepers. Finalmente, ao defender uma agenda de reformas profundamente neoliberal e a austeridade econômica, o MBL também se mostra um exemplo de grupo neopopulista. O presente artigo avança o debate teórico sobre o significado de populismo. O populismo é um conceito profundamente controverso sobre o qual não existe real consenso na academia. Dentro dessas disputas, surge um problema significativo: o do
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colonialismo epistêmico, onde o norte global aplica conceitos, visões e experiências específicas da democracia liberal a uma gama mais ampla de questões, considerando essa visão como universal. No entanto, quando a democracia liberal é o horizonte supremo, quaisquer concepções diferentes aparecem como ameaças a esse modelo e são vistas como algo que precisa ser combatido. Isso é evidente no caso do populismo, como continua a ser mostrado nos estudos sobre a América Latina. O tema é campo fértil para maiores análises e deve aparecer em pesquisas futuras. REFERÊNCIAS Abelin, Pedro Henrique; Gobbi, Daniel (2019), “Crise da Democracia Liberal: Midiatização, Novas Tecnologias da Comunicação e populismo”, Anais do 8º Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política. Consultado em 28.ago.2020, em http://ctpol.unb.br/ compolitica2019/GT1/gt1_Teixeira_Gobbi.pdf. Allcott, Hunt; Gentzkow, Matthew (2017), “Social media and fake news in the 2016 election”, Journal of economic perspectives, 31(2), 211-36. Barr, Robert R. (2009), “Populists, Outsiders and Anti-Establishment Politics”, Party Politics, 15(1), 29–48. Bastos, Marco; Mercea, Dan (2018), “Parametrizing Brexit: mapping Twitter political space to parliamentary constituencies”, Information, Communication & Society, 21 (7), 921-939. Bennich-Bjorkman, Li; Bågenholm, Andreas; Johansson Heino, Andreas (2017), “In the Absence of Antagonism? Rethinking Eastern European Populism in the Early 2000s”, East European Quarterly, 45(1-2), 1-25. Bergamo, Mônica (2016), “Temer chama MBL para pensar como tornar reformas mais palatáveis”. Folha de S. Paulo, Colunistas, 24.set.2016. Consultado em 24.jan.2021, em https://www1. folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2016/09/1816377-temer-chama-mbl-para-pensar-como-tornar-reformas-mais-palataveis.shtml. Bessi, Alessandro; Ferrara, Emilio (2016), “Social bots distort the 2016 US Presidential election online discussion”, First Monday, 21(11), 1-14. Betz, Hans-Georg (2002), “Conditions favoring the success and failure of radical right-wing populist parties in contemporary democracies”, in Yves Meny e Ives Surel (orgs.), Democracies and the populist challenge. London: Palgrave Macmillan, 197-213. Bos, Linda.; Van Der Brug, Wouter.; De Vreese, Claes. H (2013), “An experimental test of the impact of style and rhetoric on the perception of right-wing populist and mainstream party leaders”, Acta Politica, 48(2), 192-208. Bos, Linda; Brants, Kees (2014), “Populist rhetoric in politics and media: A longitudinal study of the Netherlands”, European Journal of Communication, 29(6), 703-719. Burt, Jo-Marie (2009), “Guilty as charged: The trial of former Peruvian president Alberto Fujimori for human rights violations”, International Journal of Transitional Justice, 3(3), 384-405. Canovan, Margaret (1999), “Trust the people! Populism and the two faces of democracy”, Political studies, 47(1), 2-16.
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PARTE III A CRISE NAS INSTITUIÇÕES E NA OPINIÃO PÚBLICA
Capítulo 8 Renúncia: Uma Nova Estratégia dos Partidos Políticos Dominantes na África Para Manter O Poder? Alem Asmelash Werede INTRODUÇÃO Entre 2016 e 2018, o continente africano testemunhou uma onda de renúncias de seus líderes (Chefes de Estado ou de Governo), um fenômeno atípico na região. No que parecia ser um efeito dominó, líderes de longa data apresentaram cartas de renúncia diante de protestos populares e escândalos. Presidentes do Zimbábue, África do Sul, Seychelles, Angola e o primeiro-ministro da Etiópia renunciaram durante aqueles dois anos. De maneira peculiar, todos os países que passaram pelo processo de renúncia são estados dominados por um único partido, o qual governou por décadas sem qualquer descontinuidade. Partindo dessa perspectiva e tomando os casos mencionados acima como um quadro de referência, este artigo discute a atual onda de renúncias na África argumentando que poderia ser mais uma abordagem com a qual esses partidos dominantes estão buscando se perpetuar no poder. Ao fazê-lo, o artigo destaca as circunstâncias históricas e políticas que levaram à ascensão desses partidos e analisa mais profundamente os fatos que levaram à sua recente transformação tática para manter o poder. O Partido Popular (Parti Lepep, PL) em Seychelles controlava o poder desde 1974, governando como o único partido político até 1992. Mesmo com a adoção do sistema multipartidário em 1992, continuou sendo o partido dominante até 2016.
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Como vencedora da luta pela independência do Zimbábue, a União Nacional Africana – Frente Patriótica do Zimbábue (ZANU-PF) conseguiu manter um firme controle sobre o poder desde a independência do país. Robert Mugabe, presidente de longa data, viu seu apoio no partido diminuir, levando à sua renúncia em 2017. Outro vitorioso de um processo de independência, o Congresso Nacional Africano da África do Sul (CNA) manteve seu domínio desde 1994, depois de vencer a primeira eleição na história pós-apartheid do país. Jacob Zuma ocupou o cargo de presidente da África do Sul e de seu partido por nove anos (2009-2018) antes de renunciar. O Movimento Popular pela Libertação (MPLA) de Angola liderou o movimento de independência angolano em colaboração com outros grupos rebeldes. Após a independência, o MPLA conseguiu ter a vantagem de formar um governo, mas uma guerra civil, em grande parte alimentada pela Guerra Fria, eclodiu entre o MPLA e os outros grupos de libertação. A guerra terminou em 2002 com o triunfo do MPLA, permitindo-lhe retomar sua posição como o partido dominante da Angola até o presente. A Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE) ganhou o poder em 1991, após duas décadas de guerra civil. Desde então, conseguiu governar o país com total controle sobre o espaço político. Certos desenvolvimentos no continente – incluindo o aumento da juventude na África, acesso à internet e novas abordagens aos movimentos sociais – estão cada vez mais forçando os partidos políticos dominantes a adotar novas formas de se manter no poder. Esses novos desenvolvimentos não apenas reorientam a participação política, mas também forçam os partidos políticos dominantes a encontrar novas formas de prolongar seu governo. 1. PARTIDOS POLÍTICOS DOMINANTES Um partido político dominante geralmente pode ser definido como um partido que consegue manter o poder através de eleições por um longo período de tempo. Giovanni Sartori (1976) fornece uma perspectiva sobre a duração do governo,
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argumentando que um partido deve ganhar pelo menos três eleições consecutivas para ser considerado dominante. Os partidos dominantes são capazes de prosperar tanto em sistemas democráticos como em não democráticos. A principal diferença entre os sistemas é que, nos primeiros, existe uma competição efetiva entre os partidos – nele, por sua popularidade, agenda política ou natureza da oposição, o partido dominante vence eleições consecutivas exclusivamente por meios democráticos. No segundo caso, porém, o partido dominante consegue vencer as eleições de forma antidemocrática, o que pode incluir manipular as eleições, usar o poder do governo para enfraquecer a oposição, sufocar a mídia, e assim por diante. Outro ponto de diferença entre partidos dominantes em sistemas democráticos e autoritários está relacionado ao controle dos meios econômicos. Partidos dominantes geralmente mantêm o poder por meio de influências econômicas que se desdobram na distribuição de recursos estatais para elites e outros grupos influentes (Ora, 2017). Nos sistemas democráticos, o partido dominante tem menos possibilidades de empregar recursos estatais para seus ganhos políticos, principalmente devido à existência de instituições fortes que efetivamente fornecem freios e contrapesos. Por outro lado, em estados autoritários, o partido político dominante pode usar recursos estatais à vontade para sua causa política sem qualquer responsabilização (Doorenspleet e Nijzink, 2013). Em outra definição que reflete os atributos de um partido dominante, Maurice Duverger (1959, p. 308-309) afirma: Um partido é dominante quando é identificado com uma época; quando suas doutrinas, ideias, métodos, seu estilo, por assim dizer, coincidem com os da época.... A dominação é uma questão de influência e não de força: também está ligada à crença. Um partido dominante é o que a opinião pública acredita ser dominante... Mesmo os inimigos do partido dominante, mesmo os cidadãos que se recusam a dar seu voto, reconhecem seu status superior e sua influência; eles lamentam, mas admitem.
Os partidos dominantes alinham-se principalmente a algum período ou acontecimento considerado pelos cidadãos como um
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importante ponto de partida histórico, o que lhes oferece a legitimidade necessária para alavancar seu domínio no sistema político. Tratar esse período ou acontecimento como uma causa política também lhes dá a base para dominar o cenário político. Isso está bem documentado na ascensão dos partidos políticos em Israel no final da década de 1960 e nos partidos políticos pós-coloniais na África e no leste da Ásia (Doorenspleet e Nijzink, 2013). Uma abordagem institucional sobre o tema dos partidos dominantes, liderada principalmente por Ora (2017), sugere que os partidos dominantes são geralmente criados pela decisão consciente das elites e líderes. Tais partidos só podem ser concebidos em sistemas políticos nos quais elites e líderes compartilham um poder comparável. Ora (2017) sugere que os partidos políticos dominantes se mostraram mais estáveis principalmente onde houve um consenso criado entre as elites, o que torna a deserção menos provável. O consenso requer negociação, e isso só pode ser feito entre partes que têm um poder de negociação considerável. Ele argumenta que é improvável que um partido dominante prospere em situações nas quais ou líder ou a elite sejam mais poderosos. Outra pesquisa sobre sistemas políticos partidários dominantes inclui o trabalho de Arian e Barnes (1974). Os autores conectam a força desses sistemas ao partido dominante argumentando que “enquanto o partido dominante tiver um desempenho inteligente, a oposição pode fazer pouco que seja eficaz. Mesmo decisões ruins não serão desastrosas a menos que a oposição esteja numa posição privilegiada para tirar vantagem delas, e raramente é o caso”. Levite e Tarrow (1983), por outro lado, argumentaram que as tentativas dos partidos de oposição de recuperar a legitimidade, particularmente após crises nacionais, poderiam potencialmente levar ao declínio dos partidos políticos dominantes. Em Uncommon Democracies (1990), T.J. Pempel descreve os ciclos que um partido dominante precisa superar para afirmar seu domínio. O “ciclo de mobilização” inicial para manter o domínio, independentemente das crises que possam ocorrer, requer o emprego de estratégias políticas funcionais e circunstâncias históricas que conferem vantagem ao partido dominante. No entanto, a incapacidade de o partido preservar sua base ou
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superar uma crise leva ao fim de seu domínio. Pempel acredita que os partidos políticos dominantes são raros e que são o resultado do esforço e da sorte. Assim, o grande número de partidos dominantes no continente africano torna essa conexão um caso interessante a ser investigado. 1.1. Partidos dominantes da África O conceito de partidos dominantes está fortemente ligado às realidades políticas da África. Na verdade, o termo “partido dominante” foi cunhado pela primeira vez na década de 1960 para capturar o fenômeno político do continente, quando numerosos partidos fortes estavam emergindo, na esteira da descolonização (Doorenspleet e Nijzink, 2013). Sua ascensão foi compreendida inicialmente sob duas perspectivas: as teorias da modernização e da integração nacional. A teoria da modernização argumentou que os partidos dominantes são as consequências das exigências de reorganização social da época. Assim, “à medida que a sociedade abandonou as estruturas tradicionais de autoridade, os cidadãos desenvolveram atitudes políticas mais complexas e à medida que a participação se tornou massiva, os partidos tornaram-se necessários para a mobilização e vinculação política” (Ora, 2017). Pensava-se que a reorganização social seria realizada por um órgão dominante que seria capaz de entregar a transformação necessária. Por outro lado, a teoria da integração nacional entendeu o fenômeno como consequência da decisão de uma elite de unir os estados recém-independentes que estavam altamente divididos em clivagens étnicas (Ora, 2017). Os partidos dominantes forneceriam a base para a integração nacional, reduzindo as “tensões e descontinuidades culturais e regionais” (Ora, op. cit.). Entre 1970 e 1990, o continente passou por diferentes estágios de desenvolvimento político. As décadas infestadas de golpes e a regressão econômica do final dos anos 70 e 80 foram seguidas pela terceira onda de democratização no início dos anos 1990, que viu a transformação de sistemas unipartidários para democracias multipartidárias. A transformação também resultou no
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nascimento de novos partidos políticos dominantes, que surgiram das cinzas das guerras civis induzidas pela Guerra Fria. Esses partidos dominantes recém-criados incluem a FDRPE da Etiópia, o Partido Democrático Popular da Nigéria e a Frente Patriótica do Ruanda. Eles tornaram-se acréscimos aos partidos dominantes preexistentes, incluindo ZANU-PF do Zimbábue, MPLA de Angola e o Partido Democrático do Botswana, os quais já haviam cimentado seu domínio desde a independência. O CNA da África do Sul foi resultado de um processo de descolonização tardio que só permitiu que o partido assumisse o poder depois que a África do Sul obteve sua independência em 1994. O argumento de Huntington (1968) de que a estabilidade dos partidos dominantes na África reside na intensidade da luta pelo poder e no compromisso ideológico do partido permanece relevante para os partidos dominantes da pós-independência e do pós-1990. Se lermos o argumento em conjunto com a definição de Duverger (1959) de partidos políticos dominantes acima referida, podemos admitir que a ascensão dos partidos políticos dominantes no período pós-independência da África teve sua “época” na luta pela independência, enquanto, para o pós-1990, as décadas de luta armada em guerras civis proporcionaram a racionalidade necessária1. Outras teorias que explicam a ascensão dos partidos políticos dominantes na África baseiam seus casos em argumentos de estabilidade geral e econômica. O argumento econômico insiste em que é necessário um único partido forte para instituir políticas econômicas adequadas e reunir recursos financeiros para redistribuição. No entanto, basear a relevância dos partidos dominantes apenas em argumentos econômicos não é totalmente preciso, a menos que outros fatores o apoiem, como argumenta Finer (1964). Esta pesquisa testou diferentes hipóteses para a for1
Tanto a FDRPE quanto a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) travaram guerras civis contra governantes que eram autocráticos e altamente repressivos. Na Etiópia, o regime de Derge (1974-1987) matou e prendeu milhares, tornando-se o regime mais assassino da história do país. Por outro lado, no Ruanda, a FPR derrubou um governo responsável por instigar e liderar o genocídio de mais de 800.000 tutsis e hutus moderados.
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mação de partidos políticos dominantes na África, incluindo o argumento da integração nacional, o argumento da estabilidade e o argumento do consenso nacional, mas concluiu que nenhum deles se sustenta sozinho para explicar o fenômeno. A ascensão de um grande número de partidos políticos dominantes na África pós-colonização é resultado da transição para a independência e da questão de construir nações a partir de sociedades multiétnicas e fronteiras mal demarcadas que desafiavam as elites da época (Finer, op. cit.). 2. DESAFIOS DE GOVERNANÇA DA ÁFRICA Atualmente, a África enfrenta inúmeros desafios de governança que se manifestam de diferentes formas. Mencionar todos esses desafios não é a intenção deste artigo. No entanto, a alusão a alguns deles pode refletir a profundidade e a imperatividade da questão da governança à luz do foco do artigo. O objetivo é retratar alguns dos desafios políticos que têm gerado protestos, por sua vez levando a renúncias de partidos dominantes. 2.1. Mudança inconstitucional de governos Desde a independência do continente, uma das questões de governança que determinou os equilíbrios de poder tem sido a mudança inconstitucional dos governos historicamente associados a golpes de Estado e, mais recentemente, com governos de terceiro mandato. A mudança inconstitucional de governo está relacionada ao acesso ou manutenção do poder por meios ilegais (AU, 2007, art. 23). A African Charter on Democracy, Elections and Governance articula os diferentes motivos que são denominados como meios ilegais para alcançar ou manter o poder. São previstos como base de mudança inconstitucional o golpe de Estado, a intervenção de mercenários para substituir um governo democraticamente eleito, a substituição de governos democraticamente eleitos por dissidentes armados ou rebeldes, a recusa do governo em renunciar ao poder após eleições e a alteração ou revisão de instrumentos
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jurídicos ou da constituição que violam a mudança democrática (AU, 2007, art. 23). Entre 2003 e 2012, 12 golpes de Estado ocorreram na África (Vines, 2013, p. 91). Nesse período, a União Africana (UA) suspendeu a filiação da República Centro-Africana (RCA), Comores, Costa do Marfim, Guiné, Guiné-Bissau, Madagascar, Mali e Níger. Em 5 de julho de 2013, a UA também declararia a remoção do presidente egípcio Mohammed Mursi pelos militares, uma “mudança inconstitucional de governo”, suspendendo a filiação do Egito. Além disso, a UA impôs sanções a seis membros – RCA, Comores, Guiné, Madagascar, Mauritânia e Togo. Também emitiu fortes condenações a 16 países (Burundi, RCA, Comores, Costa do Marfim, República Democrática do Congo (RDC), Guiné, Guiné-Bissau, Quênia, Madagascar, Mali, Mauritânia, São Tomé e Príncipe, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Togo). Os golpes na África são devidos a diferentes fatores que requerem uma avaliação política, econômica e social. Diferentes escritores desde a década de 1970 tentaram propor teorias pensadas para descrever a principal razão por trás da proliferação de golpes no continente. Em 1978, Jackman chegou à conclusão de que mobilização social e um grupo étnico dominante foram fatores desestabilizadores para a pós-independência na África Subsaariana (Jackman, 1978). Segundo Jackman, havia uma necessidade imediata de transformar o continente do domínio de autocracias para o de democracias, a fim de salvá-lo de golpes. Em 1984, Johnson, Slater e McGown afirmaram que “estados com economias relativamente dinâmicas, cujas sociedades não estavam muito mobilizadas socialmente antes da independência e que mantiveram ou restauraram algum grau de participação política e pluralismo político, experimentaram menos golpes militares, tentativas de golpes e conspirações de golpes do que estados com o conjunto oposto de características” (Johnson, Slater e McGown, 1984, p. 622-640). Isso significa que estados com forte desempenho econômico, emprego no setor produtivo e exportações diversificadas se mantiveram estáveis. Em 2007, Collier e Hoffler atribuíram as causas da interferência militar à ganância, pela qual os militares conduzem golpes antecipando o controle sobre as diferentes “rendas” de um país.
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Essas rendas dizem respeito principalmente aos recursos naturais que o país possui (Collier e Hoffler, 2007). Além Disso, Collier e Hoffler também associaram o risco de golpes aos gastos militares na África e concluíram que, em países com baixo risco de golpe, os governos tendem a responder reduzindo os gastos militares, enquanto, em países com alto risco de golpe, os governos tendem a aumentar os gastos militares (Collier e Hoffler, op. cit.). Recentemente, a recorrência de golpes é atribuída em grande parte a questões de desempenho econômico e governança. O Banco Africano de Desenvolvimento informou que os golpes realizados entre os anos de 2002-2012 têm certas semelhanças entre eles (AfDB, 2012). O relatório sugere que, mesmo que os países tenham desfrutado de algum grau de realização econômica e estabilidade no início dos anos 2000, eles tiveram, no entanto, um desempenho inferior em termos de governança e PIB real (AfBD, 2012, p. 10-13). Nesse sentido, o relatório mostrou que no Chade (2006), Guiné Bissau (2003), Madagascar (2009) e Mauritânia (2008), os golpes militares coincidiram com um declínio no desempenho da governança (AfDB, 2012, p. 11). Além disso, em relação ao desempenho real do PIB, os golpes só ocorreram depois que os países se encontraram em problemas econômicos. O golpe bem-sucedido na Guiné-Bissau em 2003, por exemplo, ocorreu após uma recessão com uma taxa de PIB de -7,1% em 2002 (AfDB, 2012, p. 13). Da mesma forma, Chade, Mauritânia e Níger, em 2006, 2008 e 2010, respectivamente, sofreram golpes um ano após o declínio do desempenho econômico (AfDB, op. cit.). Collier e Hoffler (2005) também concordam com esse ponto e concluem que o fraco desempenho econômico refletido em termos de baixa renda e falta de crescimento são fatores que levam a golpes. Collier e Hoffler argumentam ainda que esses fatores causam “armadilhas de golpes” (Collier e Hoffler, op. cit.). A noção refere-se à ideia de que, uma vez que um golpe bem-sucedido ocorre em um país, a probabilidade de outro golpe ali acontecer é maior, visto que o primeiro golpe legitima os futuros. A maneira inconstitucional de manter o poder na África também se manifesta através da tendência recente a terceiros mandatos presidenciais. Diferentes líderes do continente vêm
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emendando as disposições constitucionais relativas aos limites de mandato, na maioria das vezes com a intenção de estender os limites já existentes de dois mandatos. Líderes no Ruanda, Burundi, Burkina Faso, Uganda, Senegal e República Democrática do Congo seguiram essa abordagem em momentos diferentes. No entanto, a extensão dos limites de mandato tem enfrentado principalmente denúncias ferozes da comunidade internacional e das instituições continentais. A União Africana (UA), em particular, sempre invocou sua Carta sobre Democracia, Eleições e Governança para declamar tais movimentos. No entanto, os Estados continuaram a estender os limites de prazo, com o Burundi sendo o último país a fazê-lo em 2018. Pesquisas realizadas pelo Afrobarômetro sugerem que a esmagadora maioria dos cidadãos no continente está a favor dos limites de mandato. Incidentes em Burkina Faso e Burundi mostraram como os cidadãos estão dispostos a realizar protestos de rua quando os líderes tentam estender tais limites (Boniface Dulani, 2015). 2.2. Violência pós-eleição Outro desafio de governança que este artigo discute brevemente são as eleições e tendências nos conflitos pós-eleitorais. Mesmo que as eleições não possam retratar um quadro completo da democracia em um determinado país, elas são parte integrante dos processos de democratização. As eleições proporcionam a oportunidade para os cidadãos elegerem os líderes que desejam no poder, e dão a oportunidade tanto para a seleção de políticas quanto para a participação da cidadania no processo de governança. No entanto, muitas eleições realizadas na África estão associadas à violência pós-eleitoral. Isso, por vezes, lançou dúvidas sobre a prontidão do continente para realizar eleições democráticas. A democratização vem se espalhando pela África desde a década de 1980. Com o fim da Guerra Fria, o número de sistemas políticos multipartidários também aumentou. De fato, entre 1989 e 1995, o número de países em um sistema político multipartidário cresceu de cinco para trinta e cinco (Vines, 2013, p. 94). No mesmo período, trinta e oito países africanos realizaram
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eleições (AU, 2010, p. 15). O número chegou a 49 em 1997 (AU, op. cit.). No entanto, as eleições realizadas carecem da qualidade necessária; na maioria dos casos estavam associadas à violência, corroendo a confiança das pessoas na democracia e nos processos eleitorais. O Instituto Norte-Americano da Paz (USIP) informou que 19% a 25% das eleições na África são afetadas pela violência (USIP, 2010, p. 1). O National Elections Across Democracy and Autocracy (NELDA) revela que, entre 1945 e 1989, dos 352 eventos eleitorais ocorridos no continente, 18,5% foram marcados por violência resultando em morte de civis. Entre 1990 a 2006, em um total de 330 eleições, o percentual de eleições marcadas pela violência cresceu para 28,18% (Meriläinen, 2012, p. 10). A violência pós-eleitoral presente na Costa do Marfim (2010), Quênia (2007), Nigéria (2003 e 2007), Zimbábue (2008), Guiné Bissau (2012) e Mali (2012) exemplifica episódios de violência eleitoral no continente. A violência eleitoral, no entanto, raramente é espontânea. Em vez disso, nas palavras de Kambudzi, é “resultado de questões há muito negligenciadas, mas muito importantes” (Kambudzi, 2008, p. 5). A violência eleitoral é produto de uma “má gestão política prolongada em um país – quer isso envolva tirania, ditadura, falta de responsabilização e corrupção, etc.” (Kambudzi, op. cit.). Esses problemas se acumulam em uma sociedade por algum tempo antes de explodirem em períodos eleitorais. No entanto, questões estruturais que demoram a explodir não são os únicos fatores que instigam a violência eleitoral. Problemas associados ao processo eleitoral em si também geram tais resultados no período pós-eleitoral, servindo principalmente como gatilhos. A seriedade do assunto e a extensão de seus efeitos foram especialmente testemunhadas na brutalidade pós-eleitoral de 2007 no Quênia. Dado o fato de que o Quênia é considerado um país relativamente pacífico, atualmente desempenhando um papel importante na África Oriental, foi um tanto imprevisto vê-lo sucumbir a tais acontecimentos. A violência tirou a vida de cerca de 1.500 pessoas e deixou outras 300.000 deslocadas (Roberts, 2009). O incidente mostrou que mesmo as nações mais estáveis do continente não estão imunes à violência eleitoral enquanto as
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insatisfações não forem solucionadas. Até o momento, o Quênia encontra-se em um período eleitoral desconfortável, no qual as eleições altamente disputadas poderiam facilmente levar à violência em momentos de anúncios de resultados eleitorais. A violência eleitoral também está amplamente associada à fragilidade política dos países africanos; esta não apenas contribui para a violência pós-eleitoral, mas também ocorre como resultado dela. Se um Estado com sistemas políticos, econômicos e sociais fracos se encontrar em uma situação de violência eleitoral, a violência irá rebaixar e exacerbar ainda mais a fragilidade daquele país (Roberts, op. cit.), criando assim um ciclo que só pode ser quebrado enfrentando as razões básicas por trás da fragilidade do Estado. As consequências da violência eleitoral são multifacetadas. Eles vão desde cancelar ou contestar o resultado da eleição até a morte de civis e, em casos graves, também podem levar a guerras civis. A violência eleitoral pode levar facilmente a um grande deslocamento populacional, crises humanitárias e um aumento no contrabando de armas. Essas ramificações não só perturbam a paz e a estabilidade de um país, mas também transcendem para os países vizinhos. 2.3. Crime organizado transnacional O Crime Organizado Transnacional (COT) na África é uma das ameaças com sérias implicações para a paz e a segurança do continente. Ele inclui tráfico de drogas, tráfico de pessoas, proliferação de armas leves, lavagem de dinheiro, contrabando de petróleo, caça ilegal, pirataria, entre outros. O escopo do COT no continente está crescendo atualmente e envolvendo centenas de milhões de dólares. Tendo em conta o fato de que o COT envolve muitos atores e diversifica cada vez mais seus compromissos, ele representa uma ameaça iminente à paz, segurança e governança da África (Gastrow, 2013, p. 3). O COT tende a cruzar fronteiras entre os países, envolvendo assim diferentes nações de uma única região. Além disso, a natureza do COT na África não se limita a uma região, mas conecta várias regiões do continente. Por exemplo, o envolvimento da
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África Ocidental no tráfico de drogas não envolve apenas os países da região, mas também o Saara Central e a África Oriental. O tráfico de pessoas da África Oriental abrange também países do Norte da África, já que a rota de tráfico geralmente encontra seu destino no Oriente Médio. O COT dificulta as capacidades do Estado ao corroer seus recursos. Isso fica mais evidente quando se olha para a extensão do crime e a quantidade de dinheiro envolvida na atividade. Na Nigéria, 300.000 barris de petróleo bruto são desviados do país todos os dias (Sieff, 2008, p. 188). Na África Oriental, de 100.000 migrantes somente da Etiópia e da Somália, em 2012, cerca de 15.000.000 dólares foram supostamente pagos aos contrabandistas (UNDOC, 2013, p.17). Em 2011, a quantidade de marfim contrabandeado para a Ásia somente da África Oriental valia 31,5 milhões de dólares (UNDOC, 2013, p. 33). O número de elefantes no continente diminuiu para 450.000, ou seja, menos de um por cento do número na década de 1930 (Gastrow, 2013, p. 3). Piratas na Somália já haviam arrecadado cerca de 150 milhões de dólares em 2011 (UNDOC, 2013, p. 40). Os efeitos do COT não se limitam a obstáculos econômicos; eles também se infiltram nas instituições democráticas de um país (judiciário, executivo e parlamento). A esse respeito, vários líderes de partidos políticos e funcionários públicos na África são acusados de ter afiliações com traficantes de drogas e adquirir milhões de dólares por essa via (Aning, 2009, p. 5). A outra face importante do COT na África é a sua ligação com o terrorismo. Os COTs conduzidos no continente são, por vezes, ligados a grupos terroristas. Em particular, na região central do Sahel, foi reportado que o grupo afiliado ao Al-Qaeda que opera na área – também conhecido como Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI) – financia suas atividades por meio do tráfico de drogas (Foster e Sanders, 2012, p. 6). A AQMI buscou capitalizar a confluência de drogas através da África Oriental e através do Chade, Níger e Mali, fornecendo apoio logístico e de transporte aos traficantes de drogas, permitindo assim que o grupo terrorista tivesse um fornecimento financeiro contínuo para suas atividades (Foster e Sanders, op. cit.).
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Além disso, há evidências de uma ligação entre os piratas somalis e o Al-Shabab, um grupo terrorista do mesmo país. Os piratas buscam ajuda do grupo terrorista sob a forma de proteção, treinamento e finanças, e depois pagam uma certa quantia dos dividendos ao grupo. A parte dos ganhos de resgate pagos ao Al-Shabab varia de acordo com seu nível de envolvimento na tentativa de pirataria: 5 a 10% para proteção, 20% para treinamento com armas, 50% para financiamento são supostamente pago ao Al Shabab (Foster e Sanders, 2012, p. 7). Mesmo que as transações sejam feitas estritamente para negócios, sem similaridade ideológica entre os piratas e o grupo terrorista, o pagamento pelos serviços acaba financiando a atividade terrorista. As razões subjacentes para a proliferação dos COTs na África são multidimensionais. As operações buscam fragilidades institucionais nas estruturas estatais e utilizam essas fragilidades para sua própria vantagem (Aning, 2009, p. 6). Ao explicar as raízes do crime organizado na África Ocidental, Pape articulou como “governos [...] são muito fracos, muito corruptos ou muito consumidos por seus próprios problemas para fazer cumprir as leis ou monitorar adequadamente suas costas e aeroportos. Soma-se a isso a existência de dezenas de milhões de pobres ‘mulas’ potenciais e o quadro se torna muito claro” (Pape, 2005). O UNDOC, por sua vez, atribuiu a causa do crime organizado na África Oriental à, por um lado, a existência de mercados ilícitos em outras regiões, utilizando assim a rota da África Oriental para chegar a esses mercados, por outro lado, a fraqueza do Estado de Direito da região (UNDOC, 2013, p. 7). Naturalmente, há também algumas causas peculiares para alguns dos COTs na África. Por exemplo, de acordo com narrativas locais, o fator desencadeante para o surgimento da pirataria somali ao redor do Golfo do Éden foi o tsunami de 2005, que levou contêineres tóxicos para as praias locais, evidenciando assim o boato de que outros países estavam usando as costas da Somália como área de despejo (UNSC, 2011). Nesse caso, o ato de pirataria começou como um ato de retribuição com certo apoio local (UNDOC, 2013, p. 35). Com o aumento do crescimento econômico e populacional na África, não há dúvida de que o continente será, no futuro, um
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alvo para grupos engajados no COT. Por exemplo, o percentual de usuários de drogas no mundo deve chegar a 25% até 2050 – a maior parte desse aumento sendo atribuída ao aumento da população urbana nos países em desenvolvimento (Gastrow, 2013, p. 2). Com fracas capacidades institucionais em nível estatal para lidar com esses problemas, o efeito do COT sobre a paz, a segurança e a governança na África podem ser cada vez mais difíceis de controlar. 3. 2016-2018: RENÚNCIA DE LIDERANÇAS NA ÁFRICA O período entre 2016 e 2018 presenciou um despertar dos partidos políticos dominantes africanos para recorrer a uma nova estratégia: a renúncia. Desde a terceira onda de democratização no continente, isso tem de fato anunciado uma nova tática política, colocando novas oportunidades e desafios. O fenômeno situou países em uma encruzilhada entre a adoção de uma democracia plena ou o renascimento de partidos dominantes mais fortes e astutos. A tendência começou em 2016, quando o presidente de Seychelles, James Alix Michel, anunciou sua renúncia, após a vitória esmagadora dos partidos de oposição nas eleições parlamentares do país. Os resultados da eleição marcaram um abalo no cenário político após décadas de controle pelo partido de Michel, o Parti Lepep (PL). De fato, desde sua independência em 1976, Seychelles viu quatro presidentes do PL governarem alternadamente. Após uma emenda constitucional, o país só adotou um sistema multipartidário em 1991. No entanto, mesmo assim, o domínio do PL nunca mostrou sinais de desgaste – isto é, até 2016. O ano seguinte (2017) testemunhou renúncias ainda mais surpreendentes, quando renunciaram ao cargo dois dos três presidentes mais longevos da África, o presidente Eduardo dos Santos de Angola e o presidente Robert Mugabe do Zimbábue. Eduardo dos Santos foi presidente por quase quatro décadas na Angola rica em petróleo. Sua renúncia, influenciada principalmente por problemas de saúde pessoal, levou à ascensão à presidência de
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João Lourenço, ministro da defesa e fiel a dos Santos. O MPLA governou a Angola desde a independência em 1974, altura em que o país se viu numa guerra civil pós-independência entre grupos que lideravam o movimento de emancipação. Em 2002, o MPLA, liderado por dos Santos, saiu vitorioso e pôs fim à guerra civil, mantendo assim o governo do partido. Eduardo dos Santos adquiriu seu poder em 1979 e continuaria governando por mais de 40 anos (até 2017). O presidente de longa data do Zimbábue, Robert Mugabe, foi literalmente forçado a renunciar depois que os militares assumiram o país. Mugabe foi presidente por 37 anos. No entanto, seu governo levou o Zimbábue a obstáculos econômicos e políticos. Sua popularidade entre os cidadãos e em seu próprio partido ZANU-PF deteriorou-se ainda mais quando ele favoreceu sua esposa, Grace Mugabe, para sucedê-lo, em detrimento do vice-presidente Emmerson Mnangagwa. Em 14 de novembro de 2017, os militares prenderam Mugabe e negociaram com ele para renunciar ao poder. Mais tarde, ele concordou em renunciar ao cargo e o Sr. Mnangagwa foi empossado presidente. A onda de renúncias continuou em 2018, quando os dois partidos mais fortes do continente – o CNA e o FDRPE – viram seus líderes enviarem cartas de renúncia. Em fevereiro de 2018, o líder e presidente do CNA da África do Sul, Jacob Zuma, anunciou que renunciaria. Seu mandato foi marcado por escândalos de corrupção e protestos que finalmente obrigaram o CNA a forçá-lo a renunciar. O partido foi então rápido em anunciar Cyril Ramaphosa, outro veterano e um rico empresário, para o posto. Poucos dias após a renúncia de Zuma, o primeiro-ministro da Etiópia e líder/presidente da FDRPE, Hailemariam Desalegn, anunciou seu próprio plano de renunciar. Seu partido sucumbiu à pressão de um protesto de três anos do grupo étnico Oromo2 que havia levantado queixas relacionadas à marginalização econômica e política. No que se seguiu como uma eleição ferozmente 2
Mais de 80 grupos étnicos compõem a Etiópia. O Oromo é o maior grupo étnico constituindo mais de um terço da população.
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competitiva dentro do partido, o FDRPE elegeu Abiy Ahmed, um jovem tecnocrata da região de Oromia. Ao contrário dos partidos mencionados acima, no entanto, a FDRPE não é um partido pós-colonial. É uma coalizão que só surgiu em 1991, depois que um movimento rebelde, que havia começado no norte do país, triunfou após uma guerra civil de 17 anos. Quatro eleições foram realizadas na Etiópia desde 1995, e em todas elas a FDRPE venceu. Sua infame vitória na eleição de 2015 expulsou todos os partidos de oposição do parlamento, refletindo a ameaça que o partido representava à política multipartidária. 3.1. Tendências pós-renúncia As renúncias dos chefes de estado nos países acima mencionados caracterizaram os eventos que se seguiram dentro da dinâmica política e socioeconômica interna de cada país. Suas experiências foram definidas pelos motivos que levaram a cada renúncia e pela forma como cada processo foi planejado e executado. Enquanto uma transição relativamente suave ocorreu em Angola, África do Sul e Seychelles, interrupções mais turbulentas se deram na Etiópia e no Zimbábue. No entanto, uma série de traços comuns podem ser identificados em todos eles. Por exemplo, um aspecto comum no processo é o efeito inicial calmante que as renúncias tiveram dentro de cada um dos países. Em um continente onde alguns líderes podem mudar prontamente as constituições para estender os limites de mandato, as renúncias foram vistas como passos progressistas. Após sua ocorrência, protestos e campanhas implacáveis nas redes sociais se acalmaram, como foi mais notável no Zimbábue, Etiópia e África do Sul. A reação dos sucessores no processo pós-renúncia também mostrou algumas semelhanças. Por exemplo, o sucessor de dos Santos, João Lourenço, foi rápido em enquadrar as preocupações políticas dos cidadãos considerando as duas questões mais pertinentes em Angola: corrupção e nepotismo. Ele lançou uma campanha de limpeza que começou com a demissão de Isabel dos Santos, filha bilionária de Eduardo dos Santos e até então presidente da petrolífera estatal Sonangol. Seu irmão, José Filomeno dos Santos,
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também foi demitido do Fundo Soberano de Angola (FSDEA) cuja dotação inicial era de 5 bilhões de dólares (Bloomberg, 2018). Além disso, funcionários de alto escalão – incluindo o governador do Banco Central – foram removidos do cargo. Embora os cidadãos tenham apreciado os movimentos políticos, pode-se ver – especialmente considerando as respostas menos dramáticas e relativamente passivas dos membros da família dos Santos – que haviam sido negociadas medidas anteriores para implementar mudanças no nível partidário antes que ocorresse a exposição pública das pessoas demitidas, com concessões sendo feitas entre as antigas e novas forças no poder. Um fenômeno relativamente semelhante foi testemunhado na Etiópia. Desde que chegou ao cargo de primeiro-ministro, Abiy Ahmed tomou medidas que vão desde a libertação de todos os presos políticos até a remoção de funcionários importantes de seus cargos e o engajamento com grupos políticos de oposição. Nessa transição, ele enfrentou pouca oposição do grupo perdedor, que estava disposto a ver a maioria de seus funcionários removidos e suas conexões com benefícios econômicos encerradas. Em tudo isso, os cidadãos demonstraram apoio às ações do primeiro-ministro, reconhecendo-as como movimentos positivos em direção a uma governança participativa e inclusiva. No Zimbábue, o sucessor de Mugabe, Mnangagwa, se viu diante de uma eleição com menos de um ano de mandato. Uma vez que a eleição de julho de 2018 foi a primeira após a renúncia de Mugabe, foi considerado um momento oportuno para o país realizar eleições livres e justas e abrir novas esperanças de democracia. No entanto, após um processo de votação com alta incidência de irregularidades eleitorais, a violência pós-eleitoral eclodiu na capital Harare. Apoiadores do partido de oposição, Movimento para a Mudança Democrática (MMC), acusaram o governo de fraude, o que levou a uma forte repressão por parte das forças do governo. A violência no Zimbábue mostra até que ponto o ZANU-PF estava relutante em acomodar vozes dissidentes no país para inaugurar um sistema democrático multipartidário. Há relatos de que o governo de Mnangagwa está atualmente contemplando uma emenda constitucional para elevar o limite
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de idade presidencial para 55 anos, depois de alegar que o líder do MMC, Nelson Chaimsa, de 40 anos, havia sido “imaturo” ao lidar com a derrota eleitoral. No caso da África do Sul, o recém-eleito presidente Cyril Ramaphosa tinha dois problemas que exigiam ação: corrupção e medo de captura do Estado. Ramaphosa respondeu demitindo chefes de importantes empresas estatais e ministros que tiveram um papel na facilitação da captura do Estado. Houve uma atitude geral positiva por parte do público em relação às suas ações. 3.2. A renúncia é a nova estratégia para manter o poder? Nos últimos anos, a África viu duas tendências de manutenção do poder: permissão de terceiros mandatos e renúncia. Essas duas tendências contraditórias mostram que líderes e partidos políticos entendem os comportamentos políticos de forma diferente. Elas ainda retratam que as realidades políticas no continente são bastante diversas, exigindo diferentes táticas de intervenção por parte dos incumbentes para manter o poder. Emendas constitucionais para estender os limites de mandato – também conhecidas como “golpes constitucionais” – são um reflexo do amplo poder que um líder de governo detém. Principalmente iniciadas por um líder que tem o domínio político necessário, as emendas constitucionais destinam-se principalmente a prolongar o mandato do líder, tipicamente representando sua vontade e sua manobra para permanecer no poder. De certa forma, também são reflexos da ideia do “grande homem” na política africana, em que um líder é visto como protetor de uma nação e exerce um poder inigualável em um Estado sem ser questionado por qualquer instituição democrática. Curiosamente, todos os líderes que buscaram estender seus limites de mandato tiveram sucesso, exceto o Presidente Compaore de Burkina Faso3. 3
Presidente Compaore tentou alterar a Constituição para estender os limites de mandato em 2014. No entanto, uma revolta popular eclodiu logo após e o forçou a fugir do país. Após a destituição do presidente, uma nova emenda da Comissão Constitucional
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Em todo o quadro, os países que experimentaram a busca pelo terceiro mandato são caracterizados por forças de oposição fracas, checks and balances inexistentes e espaços políticos mais estreitos. Os políticos com cargos nesses países também têm certeza de que, se seu eleitorado for às urnas, eles serão capazes de vencer a eleição, por meios democráticos ou não. O único obstáculo que eles veem são as restrições constitucionais aos mandatos. A reação tanto da União Africana quanto da comunidade internacional ao terceiro mandato foi bastante agressiva. A UA invocou sua Carta sobre Democracia, Eleições e Governança, que afirma que emendar constituições para estender limites de mandato equivale a um golpe de Estado, produzindo efetivamente governos ilegais que não são eleitos pela vontade do povo (AU, 2007). Embora a UA continuasse a expressar seu descontentamento em relação aos terceiros mandatos, proibindo posteriormente os Estados-membro que passaram por tais processos de participar em suas reuniões anuais, vários países continuaram a alterar suas constituições. A incapacidade da UA em lançar qualquer forma de sanção eficaz aos Estados que transgridem claramente as suas regras reflete as limitações do alcance dessa organização continental. Por outro lado, a tendência de renúncias de chefe de estado entre os partidos dominantes é caracteristicamente uma tática político-partidária que reflete uma transição no entendimento da política no continente. É uma mudança da regra do “grande homem” para a regra do “grande partido”, pelo menos no nível do partido dominante. Em tal compreensão da política, o partido político está disposto a ver seu líder renunciar se seu objetivo final de manter o domínio exige que o faça. Essa mudança tem sua base em diferentes novos desenvolvimentos no continente, que estão forçando os partidos dominantes a procurar novas abordagens de retenção do poder. Com base nos países referidos neste artigo, pode-se argumentar que a ascensão de novas elites, o ativismo nas mídias sociais e o aumento da juventude reesde Burkina Faso restabeleceu a possibilidade de exercer dois mandatos de 5 anos na Constituição em 2017.
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truturaram a abordagem que os partidos políticos geralmente adotam na África. 3.3. Ascensão das novas elites Novas elites em partidos dominantes conseguiram recentemente adquirir o capital político necessário para desafiar antigos líderes. As razões para a ascensão dessas elites diferem cada país. No Zimbábue, pode-se argumentar que um péssimo desempenho político e econômico e a fragilidade devido à idade do presidente foram responsáveis por degradar a credibilidade de Mugabe. Isso deu o espaço necessário para que Mnangagwa e generais do exército ganhassem aceitação dentro do partido e entre os cidadãos. Em suas aventuras à presidência, Mnangagwa foi muito auxiliado por suas conexões nas Forças Armadas – as quais deram o primeiro passo para prender Mugabe em casa e conduzir Mnangagwa ao posto de presidente. No caso etíope, por outro lado, uma economia em rápido crescimento aliada a conflitos internos dentro do partido em exercício deu a chance para o surgimento de novas elites. As conexões de Abiy Ahmed com grupos de oposição e ativistas, bem como sua aliança com o MNDA4 ajudaram significativamente a angariar o capital político necessário para obter o domínio em seu partido. A outrora toda-poderosa Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT) que projetou o estabelecimento da FDRPE e teve uma voz dominante no partido nos últimos 27 anos foi efetivamente derrubada de sua posição preeminente. O caso sul-africano é um pouco diferente, principalmente porque o CNA e as elites do partido sempre mantiveram uma posição forte em relação ao Presidente. A renúncia de presidentes não é um fenômeno novo no país. Jacob Zuma é o segundo a renunciar, depois que seu antecessor, Thabo Mbeki, enfrentou o mesmo destino em 2008, após alegações de que ele havia usado o 4
MNDA: O Movimento Democrático Nacional Amhara é um dos partidos que compõem a FDRPE. Representa o grupo étnico Amhara com 27 milhões de habitantes na Etiópia.
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sistema legal do país para minar as chances de sucessão de Zuma (Lindow, 2008). 3.4. Participação política baseada em mídias sociais Ações individuais ou coletivas para melhorar o bem-estar das comunidades ou nações sempre ocorreram na história da humanidade. Contudo, as formas e orientações desses movimentos têm sido dinâmicas, dependendo principalmente dos valores da época, da sociedade em questão e do tipo de temas que exigem mudanças. Recentemente, esses movimentos têm sido amplamente retratados como sendo, entre outras coisas, mais personalizados, geralmente envolvendo tecnologias de comunicação e conduzidos por pessoas vagamente conectadas. Além disso, como observou Benett (2012), as políticas identitárias que surgiram após a década de 1960 – centradas na identidade de grupos específicos (mulheres, minorias, imigrantes e povos nativos) ou em causas (antinuclear, conservação ambiental e direitos específicos) – estão continuamente sendo erodidas e substituídas por questões como justiça econômica, proteção ambiental, guerra e paz, entre outros. Os jovens, é claro, estão no centro desse processo. Desde aqueles que lideraram a Primavera Árabe até os participantes dos movimentos Occupy e dos indignados, eles estão incansavelmente engajados em defender suas causas. No entanto, um olhar mais atento mostra que a tendência atual no engajamento cívico juvenil é menos inclinada politicamente e mais interessada em escolhas personalizadas do tipo “faça você mesmo”. De acordo com o European Social Survey, em 2010, 61% dos jovens entrevistados entre 22 e 29 anos disseram ter votado nas últimas eleições nacionais em oposição aos 78,1% dos indivíduos com mais de 30 anos (CE, 2010). O engajamento político em plataformas convencionais atingiu seu auge na década de 1970 nos EUA, e vem em queda desde então (Theocharis, 2014). Na África, o estudo do Afrobarômetro em 2016 mostrou que 65% dos entrevistados de 18 a 35 anos votaram na última eleição nacional em comparação com 79% dos cidadãos acima dos 35 anos (Lekalake e Gyimah-Boadi, 2016).
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As mídias sociais estão, sem dúvida, mudando a arena política do continente africano. Os partidos políticos dominantes são conhecidos por controlar os principais meios de comunicação de massa dos países para transmitir suas ideologias e políticas aos cidadãos (Doorenspleet e Nijzink, 2013). Ao fazer isso, eles controlam a agenda e a forma como as informações são transmitidas. Como resultado, as corporações nacionais de mídia de massa são menos receptivas aos grupos de oposição, que já enfrentam o problema de escassos recursos para promover suas agendas. Com o advento das mídias sociais, a ampliação das infraestruturas de telecomunicações e a ascensão de jovens que os manejam bem, os governos estão encontrando dificuldades para controlar o fluxo de informações. Diante de um regime que não está pronto para lidar com diferentes pontos de vista, discursos políticos dominantes se deslocaram para as plataformas de internet e mídias sociais. A internet também é cada vez mais utilizada para a participação política ativa na forma de protestos. Facebook e Twitter facilitaram a organização e a execução de protestos pelos jovens. No entanto, os governos africanos em geral não parecem estar prontos para a era de comunicação das mídias sociais. Enquanto alguns responderam bloqueando completamente a internet, outros estão introduzindo impostos de mídia social (VOA, 2018). O ativismo baseado na internet tende a ser organizado de forma solta, permitindo que indivíduos que nunca se viram antes unam-se pela mesma causa. Esses indivíduos também podem não pertencer a um partido político ou compartilhar a mesma ideologia. Sua associação é baseada em uma certa causa, fornecida a eles por meio da internet. Nesse cenário, a velha tática pela qual os partidos dominantes visam os partidos políticos e microgerenciam seus membros parece ser irrelevante. Sem partidos políticos organizando-os, os indivíduos (principalmente ativistas) são os que tomam a iniciativa de avançar as causas e trazer outros a bordo. O alcance das mídias sociais vai além da cobertura nacional. Com mecanismos de promoção simples, oferece a oportunidade de divulgar uma determinada causa para milhões na internet. Isso
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prejudica a reputação dos chefes de Estado e dos partidos em exercício e os impede de negar ou reprimir maciçamente os protestos. Movimentos baseados em mídias sociais na África, como o #OromoProtests na Etiópia, e #ThisFlag no Zimbábue, mostraram a eficácia da participação política baseada nas mídias sociais contra regimes repressivos. Com duração de dois anos entre 2015 e 2017 e liderado principalmente por ativistas oromo sediados no exterior, o movimento #OromoProtests conseguiu mobilizar milhões de jovens oromo em protestos pacíficos e, às vezes, violentos. O movimento utilizou principalmente o Facebook e foi capaz de chamar atenção para si e de mobilizar os jovens para a ação. Os dois anos de engajamento implacável finalmente conseguiram colocar um dos governos mais fortes da África de joelhos e preparar o palco para uma negociação intrapartidária, levando à eleição de um primeiro-ministro oromo pela primeira vez na história do país. Os jovens em Zimbábue também usaram as redes sociais, especificamente Facebook e Twitter, para se posicionar contra Mugabe e trocar informações. A mobilização foi realizada em grande parte pelo WhatsApp, convocando os jovens para protestos de rua. O movimento #ThisFlag iniciado por Evan Mawarire (um pastor de profissão) no Facebook representou um marco para o movimento de protestos baseados nas redes sociais em Zimbábue. Centenas de milhares de jovens participaram do movimento online, criando o ímpeto para a intervenção do exército em derrubar Mugabe. No entanto, uma das desvantagens do ativismo baseado na mídia social é dificuldade de gerar institucionalização. Os movimentos tendem a definhar quando seus apelos por ações são atendidos. Pode ser precisamente por essa natureza que os governos estão prontos para fazer concessões sob a forma de renúncias. Quando os líderes renunciarem, os manifestantes serão apaziguados, interrompendo assim o ímpeto dos movimentos baseados nas mídias sociais. O sucessor segue para introduzir mais algumas mudanças, definindo-se como reformista. Embora toda a situação dê uma ilusão de transformação, ela finalmente deixa o domínio do partido intacto.
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3.5. População jovem Cerca de 60% da população na África está abaixo dos 25 anos de idade. A idade média do continente é de apenas 19 anos. Considerando que o aumento da juventude na África possivelmente poderia desbloquear os potenciais de desenvolvimento do continente, maximizando o dividendo demográfico, os governos africanos parecem estar mal preparados para atender às demandas dessa parcela da população. A UNECA (2017) relata que o desemprego entre os jovens na África é até três vezes maior do que entre os adultos. Além disso, os jovens africanos com ensino superior têm duas ou três vezes mais chances de estar desempregados do que aqueles com ensino fundamental, em contraste com os países de alta renda (op. cit.). Dos 450 milhões de jovens de 15 a 35 anos, um terço está desempregado, outro terço está vulneravelmente empregado e apenas um sexto possui empregos remunerados (op. cit.). Cerca de 90% dos jovens africanos vivem em países de renda baixa e média baixa, e o maior desafio que enfrentam é a falta de empregos formais (op. cit.). As estatísticas indicam que as economias africanas falharam em criar a quantidade e a qualidade dos empregos exigidos por sua juventude. A transformação estrutural das economias parece ser a única maneira de o continente criar as oportunidades que os jovens esperam ansiosamente, visto que depender da produção e exportação de recursos naturais não processados não é suficiente para atender às suas demandas de emprego. No entanto, isso provou ser mais fácil de dizer do que fazer, e atualmente existem inúmeros fatores que impedem o continente de tal renovação. O Investimento Estrangeiro Direto (IED) é a opção mais plausível para o continente fomentar sua transição para a industrialização. No entanto, mesmo com uma grande força de trabalho e um custo de mão de obra relativamente mais barato, a África não é capaz de atrair tanto IED. Entre as razões que levam a isso estão os desafios de paz e segurança que o continente enfrenta, o que representa um risco iminente para qualquer investimento. Além disso, os desafios infraestruturais – incluindo a oferta inadequada de transporte, energia e comunicação – são outros
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obstáculos que desestimulam o IED. Finalmente, complicações burocráticas associadas à má governança, incluindo corrupção, fazem com que a África seja menos atraente para os investidores globais. A pressão demográfica acaba se refletindo na política e na governança. À medida que o número de jovens desempregados cresce, a instabilidade política aumenta. Infelizmente, a oferta de empregos para os jovens parece exigir a implementação de anos de programas de desenvolvimento eficazes. O impacto do desemprego na estabilidade política, no entanto, já começou a se manifestar. O desemprego posiciona os jovens em pelo menos duas situações comprometedoras. Em primeiro lugar, eles ficam cada vez mais frustrados, portanto, dispostos a protestar com frequência. O risco de protestar e se envolver em uma escalada de desobediência e violência é muito maior. Em segundo lugar, eles também são facilmente mobilizados por ativistas e redes paternalistas que geralmente operam para apoiar elites políticas e econômicas. Muitos são facilmente persuadidos a se tornarem soldados de ativistas locais que os manipulam para minar processos políticos. As mídias sociais e as portas que estas abriram para a participação política beneficiaram em grande medida os jovens, pois são eles que têm a sagacidade de utilizar as plataformas ao máximo. A existência de ativismo baseado na internet tornou tudo muito fácil para uma forma de participação política que também pode assumir a forma de protestos. Desde os jovens da África do Sul até os da Etiópia e do Zimbábue, todos se posicionaram contra regimes e líderes nos últimos anos e levantaram queixas políticas e econômicas fundamentais. 3.6. Renúncias e democracia As renúncias de chefes de estado nos últimos anos mostraram um vislumbre de esperança entre os cidadãos africanos, sugerindo que os países sob partidos políticos dominantes começaram a ouvir as preocupações do povo. O fato de que em todos os países em questão a renúncia teve um efeito calmante sobre os protestos é uma prova disso. A renúncia, porém, não garante necessariamente uma mudança para a democracia. Para que partidos
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dominantes levem essa tendência de renúncia a uma democracia duradoura, deve haver mudanças tangíveis no Estado de Direito, separação de poderes, presença de oposição forte e mídia livre. A institucionalização parece ser a chave desse processo. A proteção contra o autoritarismo só pode ser garantida se houver instituições democráticas que possam proteger os direitos e assegurar o Estado de Direito. Novos líderes que alcançaram o poder após as renúncias precisam trabalhar nisso. A menos que haja sinais claros de partidos dominantes construindo tais instituições, essas renúncias servirão apenas como novas estratégias para que antigos regimes se mantenham no poder. A renúncia na Etiópia, por exemplo, apesar de ter mostrado sinais iniciais promissores, eventualmente redirecionou seu caminho e levou o país a uma segurança mais débil e um espaço político ainda mais restrito. Uma das razões para isso é a falta de institucionalização na reforma realizada após o processo de renúncia pelo qual o país passou. Dois anos após a renúncia, a Etiópia encontra-se em situação comprometedora. A estabilidade política no país rapidamente se degradou, levando a migrações internas em larga escala. Além disso, conflitos entre grupos de diferentes identidades étnicas proliferaram resultando em assassinatos em massa em algumas regiões do país. O confronto político entre as elites do país atingiu seu auge depois que o governo decidiu adiar a eleição nacional em maio de 2020 e prorrogar seu mandato. Enquanto o governo argumentava que a pandemia do Covid-19 foi a principal razão para adiar o pleito, partidos políticos opositores discordaram e sustentaram que a decisão contrariava a Constituição e só servia ao interesse do governo. O governo regional do estado de Tigrai, por sua vez, decidiu realizar uma eleição regional em setembro de 2020 sem a aprovação e o apoio do governo federal. O confronto levou a Etiópia a uma crescente instabilidade, transformando desacordos políticos em disputas militares. No início de novembro de 2020, o governo federal travou uma operação militar contra o governo regional de Tigrai, acusando o estado de atacar uma base militar na região. O conflito armado resultou no deslocamento de dezenas de milhares de cidadãos, levando a uma imensa crise humanitária.
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Uma das razões que contribuíram para isso foi a inclusão inadequada de instituições políticas na orientação do período pós-renúncia na Etiópia. O partido político no poder, que mudou de líderes após protestos populares, apresentou-se novamente como legítimo para guiar o país nas reformas. Infelizmente, pode-se afirmar agora, com segurança, que a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope não conseguiu realizar plenamente as demandas públicas que iniciaram a mudança no país. A inclusão de instituições inadequadas no país resultou na diminuição do apoio público ao processo de reforma, levando o país à insegurança. Os líderes na África precisam reconhecer que não têm o conforto dos países do Leste Asiático dos anos 1970, onde as economias foram empurradas para um rápido crescimento em detrimento da democracia. A realidade africana atual exige que os Estados atendam simultaneamente à democracia e ao desenvolvimento econômico. De fato, os tempos mudaram; formas de mobilização social, protestos e participação política tornaram-se mais digitalizadas e menos ideologicamente orientadas. Isso significa que os cidadãos são mais propensos a protestar sobre questões com efeitos em nível individual, mas também compartilhados em grupos. O único senso de comunalidade que precisa existir pode ser o zelo de expressar essa questão como uma preocupação. No cenário africano, dada a dinâmica populacional, não restam dúvidas de que nos próximos anos haverá mais demandas por empregos e por uma ampliação do espaço político pela juventude. Isso requer não apenas um esforço engenhoso, mas também genuíno dos governos para responder às questões econômicas e políticas da sua juventude. Espera-se que esse seja um processo lento e frustrante para a parcela mais jovem da população. Não só os Estados africanos ainda não têm a infraestrutura que lhes permite competir globalmente para atrair o IED e potencialmente empregar mais pessoas, mas há também problemas de segurança em muitos estados africanos que os deixam pouco atraentes para os investidores. Nesse cenário, os jovens poderiam potencialmente exigir mudanças e uma melhor governança. As renúncias poderiam, naturalmente, servir como um potencial movimento engenhoso dos incumbentes para,
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pelo menos, evitar a violência e protestos prolongados. No entanto, a preocupação é mais estrutural e exige esforços genuínos dos incumbentes para governar melhor, criar empregos e garantir aos seus cidadãos os benefícios previstos em lei. A abordagem orientada ao desenvolvimento de Ruanda e Etiópia teve um resultado promissor em termos de sustentação do crescimento contínuo por anos, conseguindo tirar milhões da pobreza. No entanto, os registros dos dois governos em relação à democracia são sombrios. Curiosamente, as abordagens dos dois governos na manutenção do poder também são diferentes. Enquanto o presidente do Ruanda, Paul Kagame, recorreu à alteração da Constituição para estender seu mandato, a FDRPE da Etiópia viu seu primeiro-ministro renunciar. Dado o fato de que a busca pelo terceiro mandato – esforço que permite que um líder permaneça no poder – é um movimento calculado para aprovar requisitos constitucionais de limites de mandato, o forte controle de Kagame sobre a política de Ruanda e sua expectativa de apenas atender a protestos negociáveis e que pudessem ser facilmente esmagados ficaram claros. Por outro lado, as renúncias são realizadas quando os partidos dominantes enfrentam protestos populares que comprometem seu governo e o controle estrito do poder. Assim, é uma resposta ao seu apoio popular decrescente que lhes permite renovar a si mesmos e manter o seu domínio. CONCLUSÃO Estados dominados por um partido único na África existem desde a independência dos países africanos. Após a terceira onda de democratização na década de 1990, esses partidos empregaram diferentes estratégias para manter seu domínio intacto, incluindo a diminuição do espaço político por meio da opressão das vozes da oposição e do uso de recursos estatais para comprar lealdades. No entanto, os recentes desenvolvimentos no continente alteraram totalmente o ambiente político. A ascensão de novas elites, a participação política baseada na internet e uma população jovem tornaram as velhas estratégias irrelevantes.
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Os partidos dominantes parecem adaptar-se às mudanças dos tempos. A renúncia de lideranças parece ser uma abordagem calculada por alguns partidos para apaziguar a crescente frustração e os protestos. As renúncias estão associadas principalmente à mudança e à reforma, dando a impressão de um novo sistema em vigor. Essa impressão acalma os protestos e dá esperança aos cidadãos, embora não altere o domínio do partido. Em um continente onde emendar constituições para estender os limites de mandato de chefes de estado é uma tendência, a renúncia parece ser um movimento positivo. No entanto, está longe de ser uma prática democrática. Para que a democracia se enraíze no continente, as liberdades e os direitos institucionais e pessoais devem ser respeitados, os tribunais precisam permanecer livres de influência política, e um espaço adequado para a mídia e a sociedade civil deve existir. Sem a institucionalização desses atributos fundamentais da democracia, a renúncia por si só será apenas mais uma estratégia de manutenção do domínio. Ações em períodos pós-renúncia – que incluem a libertação de presos políticos e a ampliação do espaço político – sugerem uma abordagem na direção correta. Contudo, os períodos pós-renúncia só podem ser considerados como períodos de transição para eleições mais justas quando as vozes e preocupações que levaram à renúncia são atendidas de forma institucionalizada. Outros arranjos aquém disso só podem ser considerados como uma manobra política que planeja estender o domínio por meio de uma ilusão de mudança. REFERÊNCIAS African Development Bank (2012), “Political Fragility in Africa: Are Military Coup d’état a Never-Ending Phenomenon?”, Chief Economist Complex. Acesso em 04.02.2020, em https:// www.afdb.org/en/documents/document/economic-brief-political-fragility-in-africa-are-military-coups-detat-a-never-ending-phenomenon-29430. African Union (2007), African Charter on Democracy, Elections and Governance. Acesso em 04.02.2020, disponível em http://archive.ipu.org/idd-E/afr_charter.pdf. Arian, Alan; Barnes, Samuel H. (1974), “The Dominant Party System: A Neglected Model of Democratic Stability”, The Journal of Politics. 36 (3). University of Chicago Press Journals. Almeida, Henrique; Bax, Pauline (2018), “Lourenco Proves He’s No One’s Puppet in Angola.”, Bloomberg. Acesso em 26.05.2020, em https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-01-17/-terminator-lourenco-proves-he-s-no-one-s-puppet-in-angola.
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Capítulo 9 Instituições Judiciais e Crise da Democracia no Brasil Leonardo Assis Silva INTRODUÇÃO A atuação das instituições de controle nas democracias modernas há muito tempo gera preocupações por parte dos democratas. A enorme capacidade de influenciar o debate político sem passar por eleições traz tensões para a democracia, algumas das quais não podem ser sanadas, ainda que sejam justificáveis. O maior exemplo dessa tensão talvez seja o controle de constitucionalidade das normas e atos oriundos dos demais poderes. Inaugurada pela Suprema Corte dos Estados Unidos no início do século XIX, atualmente essa modalidade de atuação judiciária se espalhou pelo mundo e está presente em diferentes contextos e em variadas formas. A tensão com a administração pública democrática advém principalmente do fato de que juízes não são eleitos, mas podem ter grande influência na tomada de decisões governamentais. Esse fator os diferencia de outros atores, como a burocracia presente nos outros poderes, que está sob controle direto dos chefes eleitos por voto popular. Nos últimos anos, parte considerável da literatura em Ciência Política vem apontando uma crise da democracia em diferentes países, incluindo alguns que até pouco tempo atrás eram considerados democracias consolidadas. Os fatores explicativos do retrocesso são múltiplos e incluem a cultura política e a organização do sistema partidário. Nesses trabalhos, as instituições judiciais raramente aparecem como variável explicativa
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relevante no processo de degradação; ao contrário, são tratadas como variáveis dependentes, com foco sobretudo na sua perda de autonomia. Qualquer que seja a variável explicativa, a atuação das instituições judiciais costuma ser citada somente como um dos resultados e evidências de um processo amplo. Levitsky e Ziblatt (2018), por exemplo, tratam do assunto em vários pontos ao discorrer sobre a Hungria sob Viktor Orbán, sobre o Peru durante o governo de Alberto Fujimori, a Argentina de Juan Perón, a Venezuela chavista e sobre a Polônia do Partido Lei e Justiça. Em todos os casos, o foco reside no comportamento iliberal dos chefes de governo e nas investidas contra a autonomia das instituições judiciais, que passam a ser utilizadas para legitimar o regime ou são afastadas do cenário político. A única menção a um comportamento antidemocrático por parte dos juízes ocorre ao tratar de governo dividido, em que o Judiciário se alinha à oposição: Sob um governo dividido, em que o Legislativo ou o Judiciário estão nas mãos da oposição, [...] os cães de guarda legislativos e judiciários se tornam cães de ataque sectários. Sob um governo unificado, em que as instituições legislativas e judiciárias estão nas mãos do partido do presidente, o risco não é de confrontação, mas de abdicação. (Levitsky e Ziblatt, 2018, e-book)
Essa forma de entender o Poder Judiciário enquanto medida de desdemocratização a serviço do governo ou da oposição torna difícil compreender o caso brasileiro, em que Ministério Público e Judiciário são protagonistas na construção da crise. Ao longo do trabalho, argumento que parte da dificuldade da literatura se deve à necessidade de trabalhar melhor a capacidade dessas instituições em desempenhar múltiplos papéis, transitando entre a defesa e a deslegitimação da democracia. Este trabalho tem três partes, além da introdução e da conclusão. Na primeira, segue uma breve explicação do fenômeno da judicialização da política e algumas de suas consequências. Na segunda parte, trato de forma mais detalhada da literatura sobre crise da democracia para, depois, analisar o caso brasileiro. Esse percurso ajuda a entender as perguntas que o contexto brasileiro
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suscita e que ainda não recebem resposta satisfatória da literatura específica sobre desdemocratização. 1. INSTITUIÇÕES JUDICIAIS E A TENSÃO COM A SOBERANIA DEMOCRÁTICA Ainda que, do ponto de vista do liberalismo clássico, seja preocupante a atuação de controle do Poder Judiciário sobre os outros poderes, por muito tempo o debate em torno do papel do Judiciário em questões politicamente sensíveis esteve restrito a casos pontuais. Analisando o caso dos EUA, por exemplo, Robert Dahl conclui, na década de 1950, que até então a Suprema Corte havia mobilizado poucas vezes o instrumento de declaração de inconstitucionalidade, quase todas elas em questões de baixo impacto político (Dahl, 1957). Ao longo do século XX, contudo, e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, democracias de todo o mundo ampliaram o rol de direitos sociais reconhecidos, retirando da lógica de mercado e passando para o âmbito estatal o acesso a bens e serviços considerados básicos (Esping-Andersen, 1991; 1995). Esse movimento em direção à ampliação da cidadania, somado a outras questões como inefetividade das instituições majoritárias e maior abertura dos tribunais às demandas da sociedade (Tate, 1995), levou a um aumento da importância do Poder Judiciário, que passou a ser fundamental para garantir o cumprimento de direitos que porventura fossem violados. Enquanto, por um lado, o acesso à justiça e a ampliação da cidadania eram exaltados, por outro lado, criticava-se a supervalorização do tecnicismo e o recrutamento de juízes e promotores, capazes de alterar significativamente o balanço de forças políticas por meio de processos judiciais. Durante os anos 1990 e início dos anos 2000, questionava-se também a adequação de evocar artigos abstratos da Constituição para lidar com questões do cotidiano como, por exemplo, alegar direito à educação para obrigar prefeituras a atender imediatamente toda a lista de espera da educação infantil (Casagrande, 2008). Ao longo da década de 2000, a literatura sobre judicialização avançou no sentido de reconhecer a complexidade do tema, que
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não permitia opiniões dicotômicas em relação à existência do fenômeno em si. Ainda que fosse necessário muito debate em torno do formato específico de judicialização e de suas consequências para o sistema político, era preciso reconhecer que o movimento que se aproveitava da baixa confiança nas instituições representativas era o mesmo que ampliava o acesso à justiça para resolução de conflitos. No Brasil, esse movimento da literatura se deu enquanto pontos importantes do funcionamento do sistema de justiça estavam sendo alterados. Vale citar, nesse quesito, o julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão) pelo STF, em 2012, as inovações legislativas no campo penal em 2012 e 2013 e os trabalhos da Força Tarefa da Operação Lava Jato. A soma dessas alterações resultou no protagonismo das instituições judiciais, em um processo que contribuiu com a crise política e o retrocesso democrático verificados posteriormente no país (Marona e Barbosa, 2018). O debate nacional em relação ao tema parece ter se dado conta de que há tipos diferentes de judicialização, e cada um deles traz problemas de natureza e grau diferentes para a democracia, como argumento nas próximas seções. 2. CRISE DA DEMOCRACIA A forma democrática de governo nunca foi universal. Qualquer que seja a classificação adotada, percebe-se que alguns países estão estanques na condição de não democráticos, enquanto outros há muito tempo pareciam estar consolidados como plenamente democráticos. Outros grupos de países são compostos por aqueles cuja história política apresenta mais nuances ou mais descontinuidades. Em alguns deles, impulsos democráticos surgiram, mas não foram suficientes para que uma democracia plena fosse atingida. Outros países têm forte tradição em rupturas, com golpes de estado e renúncias (Harbeson, 2017; Diamond, 2002). Apesar de nunca ter se estabelecido como forma vigente em todos os países, a democracia foi fortemente ampliada após a Segunda Guerra, expansão que continuou após a queda da União Soviética e com a afirmação dos Estados Unidos como maior potência mundial. O número de países que adotam eleições para
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selecionar seus governantes chegou a seu ápice no início do século XXI. Por outro lado, muitos deles não cumpriam com requisitos substantivos mínimos, como liberdade ou justiça na competição por cargos públicos. Segundo Larry Diamond (2002), a literatura de classificação de regimes precisou lidar com uma questão central do autoritarismo contemporâneo: a presença de muitas características democráticas que, contudo, não eram suficientes para afirmar que havia ali uma democracia. O autor chega a afirmar que, durante a terceira onda de democratização, “a tendência em direção à democracia veio junto a uma tendência ainda mais dramática em direção à pseudodemocracia” (p. 27). Essas correntes teóricas estavam atentas a evitar a “euforia” da Ciência Política em ver democratização onde o fenômeno não existia (Ihonvbere, 1996), e o foco, evidentemente, eram os países que tiveram algum tipo de transição política que rompia com governos autoritários. Durante toda essa discussão ocorrida na virada do século, contudo, as democracias mais consolidadas se mantinham estáveis, fenômeno explicado de diferentes maneiras, de cultura política a desenvolvimento econômico, passando pelo clássico esquema de desenvolvimento gradual de poliarquias proposto por Robert Dahl (1997). Recentemente, a literatura vem mostrando o fenômeno de crise mesmo nesses países. Na Europa, movimentos e partidos de extrema-direita estão ganhando espaço e promovendo políticas iliberais e antidemocráticas. Nos EUA, Donald Trump foi eleito dando voz a essas pautas. Para compreender o atual cenário, não é suficiente mobilizar as teorias céticas do processo de democratização, pois trata-se de países que cumpriram todo esse percurso e para os quais a inércia significaria a manutenção da ordem democrática. De forma parecida, as teorias clássicas sobre rupturas também não podem ser aplicadas diretamente, pois no atual processo de erosão democrática a situação é diferente: ainda existem os golpes no mundo contemporâneo, mas a principal novidade é que as democracias também se consomem por dentro, com ataques vindos dos governantes. O caso norte-americano mostra bem como atualmente as rupturas vêm de dentro: após seguir todo o processo de nomeação pelo Partido Republicano, Donald Trump venceu as eleições e passou a utilizar a estrutura
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da presidência para promover teorias da conspiração e políticas que atentam contra os direitos humanos, além de desrespeitar regras informais que balizam a relação entre o governo e demais forças políticas, como a oposição ou a Suprema Corte. Segundo Levitsky e Ziblatt, Trump preencheu, ainda como candidato, todos os critérios indicadores de comportamento autoritário: rejeição das regras democráticas do jogo, negação da legitimidade dos oponentes políticos, propensão a restringir liberdades civis de oponentes e encorajamento à violência (Levitsky e Ziblatt, 2018). Os tipos de ataques antidemocráticos que um governante pode fazer variam muito. Um dos principais é cooptar instituições judiciais, minando sua autonomia, comportamento evidente nos casos da Venezuela e da Hungria. Na Venezuela, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) chegou a exercer seu papel no sistema de freios e contrapesos no início do governo Chávez. Em 1999, por exemplo, Chávez convocou uma Assembleia Constituinte e, após ver sua coalizão ganhar 90% dos assentos, propôs que o colegiado tivesse poderes plenos, incluindo o de dissolver a Assembleia Nacional e o TSJ. Na ocasião, o TSJ afirmou que a autoridade dos constituintes se restringia à elaboração do novo texto constitucional, não lhes cabendo dissolver os demais poderes. Assim que foi promulgada a nova Constituição, contudo, um órgão derivado da Assembleia Constituinte nomeou por decreto novos membros para o TSJ (Frois, 2019). Em 2003, enquanto governo e oposição travavam um embate na Assembleia Nacional para decidir os membros do Conselho Nacional Eleitoral, o TSJ chavista declarou a perda de prazo e decidiu por conta própria a composição do colegiado1 (Folha de São Paulo, 2004). O novo CNE colocou entraves ao plebiscito que a oposição vinha organizando com a pretensão de pressionar pela saída de Chávez da presidência. A parcialidade do Judiciário, contudo, ainda não era absoluta. Em 2002, o TSJ havia absolvido os responsáveis por uma tentativa de golpe de Estado, ocasião em que Chávez prometera um “contra-ataque revolucionário” (ABC, 2002). O governo ordenou que o 1
Desde então, o mesmo procedimento foi adotado outras quatro vezes, retirando da oposição a capacidade de influenciar a composição do CNE (Brasil de Fato, 2020).
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Parlamento discutisse as possibilidades de destituição de membros do TSJ e, em 2004, foi publicada uma lei que previa, entre outras coisas, a ampliação do número de magistrados de 20 para 32. Com o ato, o governo foi capaz de diluir a pouca resistência que ainda encontrava no Tribunal. Quando a oposição obteve maioria qualificada no Parlamento, em 2015, as forças chavistas aproveitaram o restante da legislatura anterior para designar novos membros do TSJ, garantindo, mais uma vez, que o Judiciário funcionasse como um ponto de apoio do governo contra a Assembleia oposicionista. De fato, no início da legislatura controlada pela oposição, o presidente Nicolás Maduro utilizou o Tribunal Supremo de Justiça para destituir quatro deputados, desfazendo a maioria de dois terços que a oposição havia conseguido. Enquanto o Tribunal avançava pela via jurídica, o governo ameaçou fechar a Assembleia Nacional por desacato, caso os deputados não fossem destituídos. Meses depois, quando a oposição coletava assinaturas para realizar um referendo revogatório, o Conselho Nacional Eleitoral e o TSJ suspenderam o processo. Em 2017, o TSJ revogou a imunidade parlamentar dos deputados alegando desacato e, pelo mesmo motivo, afirmou que o trabalho da Assembleia Nacional estava suspenso, sendo substituído pelo próprio TSJ, que também tomaria decisões legislativas a partir daquele momento. Ainda que essas decisões tenham sido revistas semanas depois, o episódio mostrou a disposição do Judiciário em fomentar a concentração de poder do presidente, utilizando inclusive instrumentos não previstos na legislação (López Maya, 2018). Na Hungria, o governo de Viktor Orbán também aproveitou a supermaioria no Parlamento para atacar a autonomia do Poder Judiciário, mas, diferentemente do cenário venezuelano, o resultado foi um menor protagonismo dos magistrados húngaros. Ainda no primeiro ano do mandato, em 2010, o governo alterou a Constituição para eliminar a necessidade de acordos multipartidários na seleção de juízes da Corte Constitucional, o que facilitou a nomeação de juízes alinhados com o governo. Mesmo assim, a Corte declarou inconstitucional a tentativa do governo de instituir um imposto retroativo. Em resposta, o governo definiu que a Corte
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não tinha prerrogativa de rever atos ligados ao orçamento, nem mesmo quando o debate envolvesse questões mais amplas, como o direito à propriedade ou a proibição de legislação retroativa. Por fim, o número de juízes foi ampliado, dando ao governo a condição de nomear metade do colegiado. Desde então, com poderes reduzidos e politicamente alinhada tanto ao Parlamento quanto ao Poder Executivo, a Corte Constitucional teve menor participação no debate político, autorizando (ou deixando de barrar) sucessivos atos antidemocráticos puxados por Orbán e seu partido, Fidesz (Bánkuti, Halmai e Scheppele, 2015). No Brasil, o Judiciário ocupou papel de destaque nos últimos anos, assim como na Venezuela. A forma como isso aconteceu, contudo, é substancialmente diferente, como analisamos na próxima seção. 3. INSTITUIÇÕES JUDICIAIS E CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL Assim como em outros países, e de forma condizente com a literatura, o retrocesso democrático no Brasil não pode ser atribuído a um único fator. O país passou por um período de expansão da democracia até 2013 para depois regredir. Mesmo quando os países mais ricos do mundo enfrentaram uma recessão econômica forte após 2008, o Brasil manteve e incrementou suas políticas de ampliação da cidadania (Avritzer, 2016). Em 2010, quase 45% dos brasileiros se declaravam satisfeitos ou muito satisfeitos com a democracia no país. No mesmo ano, quase 80% declaravam preferir a democracia a qualquer outra forma de governo. Quando questionados sobre a Justiça, mais da metade dos brasileiros afirmava confiar, um número que até então variava junto à satisfação com a democracia (Marona e Araujo, 2018). Em 2013, manifestações de caráter plural, mas inicialmente bastante progressistas, potencializaram discursos antipolíticos e anti-institucionais. Em 2015, a intolerância política se aprofundou com manifestações conservadoras contra o governo. No ano seguinte, o processo de impeachment de Dilma Rousseff foi conduzido de forma contestável e baseado em alegações frágeis. Seu sucessor,
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Michel Temer, abriu mão dos compromissos assumidos pela chapa no momento das eleições e implementou uma agenda reversa à tradição de ampliação de direitos vigente desde 1988 (Avritzer, 2019). Em 2018, o candidato eleito para a Presidência da República era o único a defender abertamente a ditadura, a tortura, o aniquilamento de adversários e a subordinação das minorias às vontades da maioria. Todos esses acontecimentos tinham como pano de fundo uma profunda desconfiança e ataque às instituições representativas e ao sistema eleitoral. Por meio da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, o Congresso reviu a classificação de organização criminosa, ampliou o rol de instrumentos investigativos disponíveis e regulamentou o instrumento de colaboração premiada. O novo marco normativo serviu de base à Operação Lava Jato, cujas consequências incluem, além de outros episódios, a interceptação e divulgação ilegal de telefonemas da Presidência da República; a suspensão do mandato de um presidente da Câmara dos Deputados, sem previsão legal; a prisão de um senador, também sem previsão legal; a violação do direito constitucional ao sigilo de fonte; a vedação, pelo STF, de posse de ministro de Estado, cuja nomeação cabe exclusivamente ao presidente da República. Soma-se a essas consequências a reação do Congresso, que tentou responder às mobilizações de 2013 apresentando uma reforma política que, entre outras coisas, diminuiu o tempo de campanha e o financiamento disponível. Ambos, segundo Feres Jr. e Gagliardi (2019), são “um desserviço à qualidade deliberativa do processo eleitoral” (p. 101) e teriam sido fatores decisivos para eleição de Jair Bolsonaro. O atual contexto brasileiro nos permite afirmar que houve uma reversão na tendência à democratização que vinha se mantendo desde 1988. Entre os fatores apontados como causa dessa desdemocratização, há aqueles históricos (como o déficit republicano na formação da cidadania brasileira), aqueles mais globais (como o impacto da internet no debate público e na visibilidade de atores políticos não democráticos) e outros mais conjunturais (como as inovações legislativas no campo penal). Não se pode entender a atual situação do país sem inserir, entre essas causas, a atuação do Poder Judiciário, que, diferentemente do que mostra a
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literatura em outros países, no Brasil parece ter sido mais algoz do que vítima, pelo menos até o início do governo Bolsonaro. Por esse motivo, as análises existentes sobre a atual crise dão espaço relevante à atuação judicial, seja de forma ampla, seja focando na Operação Lava Jato. No entanto, se há quase unanimidade em torno do papel recente do Judiciário, menos consensual é o enquadramento desse fator enquanto histórico-estrutural, global ou conjuntural, em parte porque o Judiciário tem características problemáticas nos três sentidos. Do ponto de vista histórico, “o sistema judicial é completamente independente de vontade ou participação popular e alinha-se com as necessidades ou crenças das elites desde o império” (Avritzer, 2019, p. 28). Ainda que a quantidade de bacharéis em Direito tenha aumentado nos últimos anos e incluído diferentes camadas sociais, o topo da pirâmide do sistema judicial é ocupado majoritariamente por aqueles com histórico familiar de alta renda, alta escolaridade e alta influência no Poder Judiciário (Almeida, 2010). Essa classe relativamente uniforme sustenta o que Lynch (2017) chama de “judiciarismo”: um “fenômeno doutrinário-ideológico” que considera ser o sistema de justiça o responsável por agir em nome da sociedade e regenerar a “atividade política, corrompida por representantes ‘carcomidos’ pela corrupção” (p. 160). Expressões desse judiciarismo podem ser vistas desde a fundação da República: sem poder contar com o Poder Moderador vigente no Império, e inspirados pela descrição que se fazia da Suprema Corte dos Estados Unidos à época, os republicanos de 1889 encarregaram o recém-criado Supremo Tribunal Federal da mediação dos conflitos políticos. A partir dali, a elite jurídica nacional passou a se considerar o grupo responsável pela defesa do Estado de direito democrático, opondo-se à ditadura de Floriano Peixoto e, na década de 1910, a todo o modelo político sobre o qual se sustentava a República Velha. É esse grupo social, de formação universitária e autoproclamado progressista e iluminado, que sustenta a Revolução de 1930 e a derrocada do regime oligárquico anterior. Apesar da grande influência do judiciarismo, porém, até os anos 1980 o papel de Poder Moderador também era disputado pelas Forças Armadas, que conseguiam ocupar esse
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espaço de forma hegemônica. Com o fim da ditadura de 19641985 e o declínio do poder dos militares, o discurso judiciarista conseguiu ultrapassar as barreiras do campo do Direito e ganhar setores da opinião pública, dando aos juristas um status de Poder Moderador moderno. Inicialmente focado na garantia de direitos e na judicialização da política, esse judiciarismo entendeu que poderia ir além, propondo, mais uma vez, a refundação da República, abrindo espaço para práticas políticas que fossem mais alinhadas ao texto constitucional (Lynch, 2017). Do ponto de vista global, a Constituição de 1988 segue uma tendência de ampliar e fortalecer os poderes contramajoritários. Por um lado, a Constituição traz muitos elementos soberanos, incluindo as prerrogativas dos representantes, espaços de participação popular e instrumentos de democracia direta. Por outro lado, ampliou a importância das instituições e dos mecanismos de controle2. De acordo com o texto constitucional, o Poder Judiciário pode rever os atos dos demais poderes de forma difusa ou concentrada, sendo que, nesta última, foi ampliado o rol de legitimados ativos, de forma a inserir entidades de classe e confederações sindicais. Em 1993, foi criada a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), o que aumentou a demanda por posicionamentos do Supremo Tribunal Federal. Atos governamentais anteriores à Constituição também podem ser questionados com base no texto de 1988, por meio de uma Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF). Para o Ministério Público, além da atribuição clássica de propositura de ações penais, foi garantida autonomia administrativa e financeira, o poder de instaurar inquéritos civis e de propor Ação Civil Pública (ACP) em defesa de direitos homogêneos, coletivos e difusos. Somam-se à lista a criação e o fortalecimento de outras instituições de accountability, como a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). Esses movimentos parecem ser um bom indicador para 2
Essa ampliação é resultado de um diagnóstico segundo o qual havia uma grande fragilidade dos mecanismos de accountability na América Latina, cujo fortalecimento era uma condição necessária para a normalidade democrática e republicana (O’Donnell, 1998).
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afirmarmos que temos, no Brasil, o que Rosanvallon (2015) chama de “sociedade da desconfiança”. O padrão de vigilância e de desconfiança que se estabeleceu desde a Operação Lava Jato consolida problemas históricos, globais e ainda adiciona outros elementos perigosos, notadamente a adoção do aparato penal como base legal e moral do controle exercido sobre os poderes políticos, produzindo uma estigmatização da elite política entre os cidadãos. O caso brasileiro mostra que, talvez de forma contraintuitiva, o caráter contramajoritário pode ser fundamental para a construção de elementos centrais do populismo: a descrença nos poderes eleitos e a busca por outsiders. Seguindo a linha de Rosanvallon, deve-se fazer uma ressalva: a causalidade entre o elemento contramajoritário e a degradação democrática não é direta. A democracia é capaz de carregar a tensão entre sua base eleitoral e os elementos de controle e, a depender do formato como ocorre, o fortalecimento das instituições de controle pode até ser visto como sinal de maior democratização, ao ampliar o acesso à justiça e garantir direitos a setores da população historicamente desconsiderados pelo Estado. Como mostram Marona e Barbosa (2018), a questão se torna preocupante quando, de um padrão democrático, deriva uma atuação de deslegitimação das instituições políticas. Desde 2014, está em curso no Brasil a Operação Lava Jato, uma investigação de desvio de dinheiro na Petrobras e em contratos públicos que condenou e prendeu personagens importantes da vida política brasileira, incluindo um senador em exercício e um ex-presidente da República. Nos últimos anos, a Lava Jato foi pauta em todas as esferas políticas do país, de manifestações de rua a votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), passando ainda pelos debates eleitorais de 2018 e pela indicação de Procurador-Geral da República (PGR) em 2017 e 2019. O juiz Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato que tramitavam em Curitiba, acabou tornando-se ministro da Justiça do presidente Jair Bolsonaro. Os procuradores que atuam no caso ganharam visibilidade com livros, palestras e entrevistas, e a Operação ficou conhecida como a maior iniciativa de combate à corrupção e lavagem de dinheiro da história do Brasil. Todo esse
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sucesso, porém, foi construído sobre bases no mínimo heterodoxas, do ponto de vista do Estado democrático de direito: desde o início, a operação é criticada por advogados que reclamam do cerceamento ao direito de defesa (Supremo Tribunal Federal, 2019), por juristas que discordam do uso massivo de instrumentos invasivos como condução coercitiva e prisão preventiva (Moura, 2019), por militantes partidários apontando falta de isenção na condução das investigações e julgamentos (Galhardo, 2019), por cientistas políticos que veem riscos à soberania popular democrática no “pretorianismo judicial” que teria se estabelecido no Brasil (Avritzer e Marona, 2017). Desde o vazamento de mensagens telefônicas dos membros da operação, sabe-se que os procuradores responsáveis pelo caso buscavam ativamente o apoio da opinião pública para contrabalançar a falta de provas em alguns processos; a depender de quem fosse o réu, os processos tinham tratamento diferente (Martins et al., 2019a). Além disso, o juiz Sérgio Moro trabalhava como assistente de acusação (Martins et al., 2019b); decisões importantes eram reservadas para momentos politicamente mais relevantes, como a votação do impeachment de Dilma Rousseff ou as eleições presidenciais de 2018 (Hofmeister et al., 2020; Balthazar e Martins, 2019). Por vezes, políticos da oposição foram poupados das investigação, ao menos em um primeiro momento (Martins et al., 2019c). Sob orientação do juiz Moro e contra determinação do STF, os procuradores vazaram informações com o propósito de enfraquecer politicamente o governo venezuelano (Balthazar e Audi, 2019). A lista de feitos da Lava Jato poderia se estender, mas, para os fins deste trabalho, vale a pena repassar alguns pontos relativos especificamente ao processo de impeachment de Dilma Rousseff. No início de 2016, vendo sua base de apoio diminuir a cada dia e com o processo de impeachment já em andamento, a presidenta Dilma Rousseff decidiu chamar para o governo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hesitou, mas acabou cedendo após pressão de aliados. No dia 16 de março, o juiz Sérgio Moro retirou o sigilo de um áudio de interceptação telefônica em que Lula e Dilma combinavam os detalhes da posse do ex-presidente,
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que ocorreria no dia seguinte. No telefonema, Dilma afirma que enviaria o termo de posse com antecedência para que Lula pudesse assinar em casa, se fosse necessário. Após a divulgação, o diálogo foi tratado como evidência de que a nomeação no ministério seria, na verdade, uma articulação para salvar Lula da prisão. Nos dias que se seguiram, manifestantes contra Lula foram às ruas, foi instaurada a comissão de análise do processo de impeachment na Câmara dos Deputados e o STF ordenou a suspensão da posse de Lula, ambos os eventos fortemente influenciados pela repercussão negativa do áudio divulgado por Moro. Nem o STF nem os grandes jornais que se apressaram para reproduzir a ligação consideraram a lista de ilegalidades da atuação da Lava Jato no caso: não havia autorização para grampear a Presidência da República; o telefonema divulgado foi feito fora do período autorizado judicialmente e anexado por engano aos autos; o conteúdo do áudio não tinha nenhuma relação com a investigação e, assim, o material deveria ter sido descartado. A própria Lava Jato tinha, sob sua custódia, ligações que desfaziam a tese do desvio de finalidade da nomeação de Lula, mas estes últimos foram mantidos em sigilo (Balthazar et al., 2019). Após a conclusão do processo de impeachment, até mesmo políticos importantes da oposição reconheceram que a atuação da Lava Jato no episódio estava diretamente voltada à derrubada do governo (Marques e Bächtold, 2019). Além da interferência explícita nos assuntos de governo e na definição do rumo político do país, a Lava Jato adotou uma postura policialesca no limite da legalidade, com objetivo de pressionar o sistema político e ignorando a tradição jurídica do devido processo legal. Se tomarmos os indicadores de comportamento autoritário descritos por Levitsky e Ziblatt (2018), percebe-se que pelo menos três dos quatro critérios se aplicam de forma direta à atuação do Poder Judiciário no Brasil nos últimos anos: rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas), negação da legitimidade dos oponentes políticos e propensão a restringir liberdades civis de oponentes3. 3
O critério de tolerância ou encorajamento à violência é preenchido de forma mais ambígua e indireta do que os demais.
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Se esse fato em si já causa certa preocupação, torna-se ainda mais impressionante quando consideramos que o esquema analítico foi montado para analisar candidatos políticos que, por definição, atuam em um campo de competição eleitoral na busca por mais poder. Por isso, a questão é colocada em termos como rivais, oponentes e inimigos, o que é compreensível – mesmo que indesejável –, dados os objetivos dos candidatos, mas muito instigante quando estamos analisando o Poder Judiciário, que deveria cumprir papel de julgador imparcial. É verdade que, em outros países, como Venezuela, os indicadores de autoritarismo também se aplicam à atuação do Judiciário, mas no Brasil isso não acontece a serviço dos governantes nem completamente a serviço da oposição, ainda que a Lava Jato tenha tratado esquerda e direita de forma diferente. Temos, portanto, instituições que se comportam como partes de um conflito político extremamente polarizado, mas que não se alinham com nenhum dos lados do espectro político. Isso se explica pelo fato de que, tal qual acontece com líderes populistas, as instituições judiciais brasileiras geram um conflito que se dá entre o campo político como um todo, de um lado, e a antipolítica, de outro. Alguns teóricos argumentam que teria faltado, aos poderes Executivo e Legislativo, disposição para exercer o papel de freio e contrapeso, limitando desde o início as aspirações do Judiciário e do Ministério Público (Kerche e Marona, 2018). A questão é sempre complicada, pois autonomia entre os poderes impede que haja controle estrito de um sobre o outro. Nesse balanço de forças, o Poder Legislativo conta com uma prerrogativa importante: a capacidade de alterar as leis, explicitando textualmente a aplicabilidade das normas, o que diminui o espectro das interpretações que o Judiciário pode fazer. Ao mesmo tempo, o Executivo conta com um mecanismo mais direto (e potencialmente mais perigoso): o poder de enforcement (Clark, 2010). O corpo de funcionários do Judiciário quase sempre se resume aos bacharéis em Direito e ao apoio administrativo, o que faz com que suas decisões sejam materializadas por meio do Poder Executivo, que pode, em última instância, fazer uso da força. Sendo assim, em uma situação de forte oposição aos poderes eleitos, as decisões da magistratura
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podem sofrer oposição do Executivo, caso se recuse a utilizar sua estrutura no cumprimento de decisões que julgar ilegítimas. Se, por um lado, trata-se de remédio constitucional ao abuso de poder dos juízes, a possibilidade de descumprir uma ordem judicial, por outro lado, é preocupante quando o mandatário é antidemocrático e ameaça utilizar essa prerrogativa para atacar a autonomia das instituições judiciais. É o que acontece atualmente no Brasil: o presidente Bolsonaro indicou para a chefia do Ministério Público alguém que ele poderia controlar; já sinalizou que fará a mesma coisa com as vagas que surgirem no Supremo Tribunal Federal; ameaçou, por diversas vezes, descumprir ordens do STF e chegou a cogitar uma intervenção, com a nomeação de ministros substitutos (Gugliano, 2020). Em quase todas as vezes que o presidente da República ameaçou romper explicitamente a linha que separa a democracia do autoritarismo, houve reação por parte do STF, algumas por meio de decisões, outras em pronunciamentos oficiais, notas de repúdio ou manifestações na imprensa, transformando em fiador democrático a instituição que, em outros momentos, atua de forma a desestabilizar o sistema político. CONCLUSÃO Neste trabalho, tentou-se analisar o retrocesso democrático no Brasil a partir de um elemento específico, mas central: a atuação das instituições judiciais. Mostramos que a prática dessas instituições combina elementos perigosos para a ordem democrática. Alguns deles também estão presentes em outras democracias ocidentais e demandaram adaptações institucionais que, contudo, não desmancharam os princípios democráticos. No contexto brasileiro, esses elementos foram combinados a outros, e a interação entre todos esses fatores contramajoritários permitiu um forte ataque à legitimidade da atividade política. Do ponto de vista da discussão teórica levantada na terceira seção deste capítulo, sobre desdemocratização, é interessante notar que a literatura faz um esforço considerável para explicar a ascensão de outsiders em função de diferentes fatores, como o sistema partidário, apoio da opinião pública e crises econômicas. O
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papel das instituições judiciais na viabilização de um candidato outsider, porém, é pouco ou nada discutido. É curioso observar, ainda, que os atores que corroem a democracia por dentro podem ser alvos de interesses que ameaçam derrubar a democracia de uma só vez. Se é verdade que devemos reconhecer as diferenças entre democratic backslash e golpe de estado, para compreender a desdemocratização também é necessário entender como esses fenômenos se relacionam. Em países como a Hungria, o iliberalismo sistemático do governo parece ter tornado desnecessária a adoção de medidas que derrubem a democracia de um só golpe4. Como afirma Yascha Mounk, Não houve decisão revolucionária, nenhuma medida isolada que assinalasse nitidamente que as velhas normas políticas haviam sido varridas do mapa. Qualquer uma das medidas de Orbán podia ser defendida de uma maneira ou de outra. Mas, tomadas em conjunto, seu efeito pouco a pouco se tornou inconfundível: a Hungria não é mais uma democracia liberal (Mounk, 2019, e-book).
De forma oposta, outros países podem deixar de ser democráticos após um evento discreto, como um golpe militar. No meio do caminho, porém, há aqueles países que passam por processo de desdemocratização gradual que, ao contrário de impedir, aumenta a possibilidade de um golpe. Esse processo ficou explícito na Bolívia, em que o ex-presidente Evo Morales agiu no limiar da legalidade democrática por muito tempo e depois foi deposto. De forma parecida, como argumentamos nas seções acima, no Brasil as instituições judiciais inovaram muito e em uma direção que levou à queda da legitimidade da classe política e do próprio sistema de governo. Agora, quando ameaçadas por um governo não democrata, se apressam para impedir que a linha do autoritarismo seja cruzada. Os papéis radicalmente opostos que as mesmas instituições cumprem em dois momentos de desdemocratização são um 4
A afirmação demanda certa cautela após as medidas tomadas em função da pandemia de covid-19 em 2020, fenômeno sobre o qual a literatura sobre o assunto ainda deverá se debruçar.
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sinal de que, ao tratar das novas formas de queda de democracia, é preciso atentar-se para a permanência das formas clássicas do estabelecimento de ditaduras. O resultado dessa relação ainda precisa ser mais bem estudado, assim como ainda devemos avançar, no sentido normativo, para estabelecer qual tipo de reação poderíamos esperar das forças democráticas quando não se pode distinguir bem quem é vítima e quem é algoz nos processos de desdemocratização. REFERÊNCIAS ABC (2002). “Chávez anuncia una marcha contra el fallo del Supremo que exculpó a los militares golpistas”, ABC, 18 de agosto. Consultado em 25.08.2020, em https://www.abc. es/ internacional/abci-chavez-anuncia-marcha-contra-fallo-supremo-exculpo-militares-golpistas-200208180300-122071_noticia.html. Almeida, Frederico Normanha Ribeiro (2010), A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. Tese (doutorado) em Ciência Política. Universidade de São Paulo. Avritzer, Leonardo (2016), Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Avritzer, Leonardo (2019), “O pêndulo da democracia no Brasil: uma análise da crise (20132018)”, in Leonardo Avritzer; Heloisa Murgel Starling; Pauliane Braga; Priscila Zanandrez (org.), Pensando a democracia, a república e o estado de direito no Brasil. Belo Horizonte: Projeto República. Balthazar, Ricardo; Audi, Amanda (2019), “Lava jato e Moro atuaram para expor dados sigilosos sobre Venezuela, mostram mensagens”, Folha de São Paulo, 07 de julho. Consultado em 26.11.2020, em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/lava-jato-e-moro-atuaram-para-expor-dados-sigilosos-sobre-venezuela-mostram-mensagens.shtml?origin=folha. Balthazar, Ricardo; Bächtold, Felipe; Lara, Bruno; Bianchi, Paula; Demori, Leandro (2019), “Conversas de Lula mantidas sob sigilo pela Lava Jato enfraquecem tese de Moro”, Folha de São Paulo, de 08 de setembro. Consultado em 26.11.2020, em https://www1.folha.uol.com.br/ poder/2019/09/conversas-de-lula-mantidas-sob-sigilo-pela-lava-jato-enfraquecem-tese-de-moro. shtml. Baltazar, Ricardo; Martins, Rafael Moro (2019), “Moro achava fraca delação de Palocci que divulgou às vésperas da eleição, sugerem mensagens”, Folha de São Paulo, de 29 de julho. Consultado em 27.11.2020, em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/moro-achava-fraca-delacao-de-palocci-que-divulgou-as-vesperas-de-eleicao-sugerem-mensagens.shtml. Bánkuti, Miklós; Halmai, Gábor; Scheppele, Kim Lane (2015). “Hungary’s illiberal turn: disabling the Constitution”, in Péter Krasztev; Jon Van Til (org.), The Hungarian patient: social opposition to an illiberal democracy. Budapeste e Nova Iorque: Central European University Press. Brasil de Fato (2020), “Acordo entre governo e oposição define novo conselho eleitoral na Venezuela”, Brasil de Fato, de 15 de junho. Consultado em 25.08.2020, em https://www.brasildefato.com.br/2020/06/15/acordo-entre-governo-e-oposicao-nomeia-novo-conselho-eleitoral-na-venezuela. Casagrande, Cássio (2008), Ministério Público e a Judicialização da Política: estudos de caso. Porto Alegre: Antonio Fabris Editor. Clark, Tom S (2010), The limits of judicial independence. Cambridge: Cambridge University Press.
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Capítulo 10 Confiança na Democracia e em Instituições Políticas: Uma Análise das Percepções dos Deputados Federais Brasileiros Ciro Antônio da Silva Resende INTRODUÇÃO A erosão da confiança na democracia e nas instituições políticas é temática corrente em estudos da Ciência Política. Nessa esteira, diante das inúmeras críticas direcionadas aos regimes democráticos por todo o mundo (Rosanvallon, 2015), este capítulo se insere no debate sobre legitimidade e confiança. Objetiva-se analisar as percepções relativas à democracia e às instituições políticas entre os deputados federais brasileiros das 55ª e 56ª legislaturas, que englobam os períodos 2015-2019 e 2019-20231. Com isso, procura-se identificar possíveis mudanças nas percepções, tendo em vista as características peculiares das eleições de 2018, marcadas por intensa polarização e por um desalinhamento partidário (Abranches, 2019). Nesse sentido, são também realizadas, considerando a atual legislatura, comparações entre as posições dos parlamentares das maiores bancadas, as quais expressam uma das facetas da polarização no Legislativo. Além disso, almeja-se realizar comparações entre as percepções dos deputados federais e a opinião pública. Diante de intensos debates sobre a legitimidade da representação, de movimentos 1
A 55ª legislatura vai de 01 de fevereiro de 2015 a 31 de janeiro de 2019 e 56ª dura de 01 de fevereiro de 2019 a 31 de janeiro de 2023.
274
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
com a bandeira da antipolítica e de baixos níveis de confiança atribuídos ao Congresso Nacional, é fundamental analisar e comparar as posições de representantes e representados sobre a democracia e as instituições políticas. Entre os resultados encontrados, vale adiantar a existência de uma ampla dissociação entre as percepções de deputados e do eleitorado quando o assunto é a satisfação com a democracia. Assim como muitas abordagens acerca do apoio à democracia, este capítulo lança mão de resultados de surveys. A primeira pesquisa mobilizada (“Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina”) foi realizada pelo Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (CEL-UFMG), em parceria com a Universidade de Salamanca, Espanha. A segunda (“A Cara da Democracia no Brasil”) integra o conjunto de investigações sobre representação, participação e opinião pública no âmbito do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT-IDDC). Além desta introdução e das considerações finais, o texto se divide em três seções. Inicialmente, busca-se ressaltar os principais elementos presentes na literatura recente que tem como objeto a crise da democracia. Na sequência, são apresentados alguns apontamentos da literatura especializada acerca de recentes acontecimentos políticos no Brasil. A terceira seção apresenta e discute os dados dos mencionados surveys. 1. CONFIANÇA E DEMOCRACIA: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A CRISE DO REGIME Os regimes democráticos têm suscitado inúmeras críticas em muitas partes do mundo, tornando-se a erosão de confiança nas instituições políticas um fenômeno intensamente estudado pela Ciência Política (Rosanvallon, 2015). Este capítulo também dirige sua atenção a esse processo, procurando, inicialmente, ressaltar elementos presentes na literatura que trata da crise da democracia. Nesse sentido, Przeworski (2019) procura examinar se os colapsos e a sobrevivência da democracia são associados a determinadas diferenças observadas entre países que experimentaram esses re-
Crises na Democracia
275
sultados. Sua abordagem tem a variável econômica como central e assume a perspectiva de que uma crise não pode durar indefinidamente. Ao comparar os padrões de democracia estudados, Przeworski (2019) toma como lições a relevância explicativa da economia, da desigualdade, do presidencialismo e dos protestos violentos. O autor ressalta, ainda, os efeitos dos diferentes tipos de crise – econômica, cultural ou política – nos processos de ruptura e manutenção da democracia. A análise, entretanto, concentra-se, em grande monta, na dimensão econômica. Já Levitsky e Ziblatt (2018) procuram verificar se democracias tradicionais entram em colapso. Os autores apontam que as regras são importantes, entretanto sozinhas não bastam, razão pela qual atribuem um papel primordial às regras informais. Entre elas, duas são apontadas como decisivas para o funcionamento de uma democracia: a tolerância mútua e a reserva institucional. Dessa forma, é fundamental que a democracia conte com líderes que conheçam e respeitem sua dimensão informal. Levitsky e Ziblatt (2018), citando as experiências italiana, com Mussolini, e alemã, com Hitler, destacam a existência de um tipo de “aliança fatídica” que leva lideranças autoritárias ao poder. Nesse contexto, afirmam que os partidos políticos são os guardiões da democracia, cabendo-lhes isolar e derrotar as forças extremistas. Assim, “sempre há incerteza sobre como um político sem histórico vai se comportar no cargo, mas [...] líderes antidemocráticos são muitas vezes inidentificáveis antes de chegarem ao poder” (Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 51). Sobre esse aspecto, os autores apresentam quatro indicadores que podem ajudar a reconhecer um autoritário: rejeição das regras democráticas; negação da legitimidade dos oponentes políticos; tolerância ou encorajamento à violência; propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia. No entanto, alguns nomes conseguem chegar às disputas eleitorais, e, segundo Levitsky e Ziblatt (2018), quando populistas vencem as eleições, geralmente investem contra as instituições democráticas. Logo, mudanças nas dimensões institucional e normativa da democracia, corroendo suas dimensões públicas e comprometendo seus requisitos básicos, são vistas como sinais de desdemocratização. Trata-se, então, de um fenômeno de autoritarismo eleitoralmente
276
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
competitivo, com autoritários ascendendo ao poder pela via eleitoral e passando a manipular as instituições existentes. Fukuyama (2020), por sua vez, indagando o que mudou no mundo político nos últimos trinta anos, identifica duas tendências opostas: a fragmentação social associada ao declínio da autoridade de instituições mediadoras em democracias estabelecidas, e o aparecimento de novas hierarquias centralizadas em estados autoritários. Para o autor, “sobreviver ao presente significa reconstruir a autoridade legítima das instituições da democracia liberal, enquanto resistimos aos poderes que aspiram a tornar centrais as instituições não democráticas” (Fukuyama, 2020, p. 21, tradução minha). Runciman (2018, p. 20) também investiga o que leva as democracias ao fim. O autor parte de uma definição mínima de democracia, a qual “afirma simplesmente que, numa eleição, os perdedores aceitam a derrota, entregam o poder sem recorrer à violência”. Dessa forma, o fracasso dos regimes democráticos se encontra na transformação das batalhas simbólicas em combates verdadeiros. Ao tratar do fracasso de democracias, Runciman (2018) afirma que, geralmente, espera-se um evento espetacular. Nesse contexto, insere-se a discussão relativa aos golpes, destacando o autor que um golpe de Estado bem-sucedido é claramente separado por um antes e um depois, com uma diferença inequívoca entre esses dois momentos. Runciman (2018) aponta, ainda, a existência de um declínio no arranjo institucional, chamando a atenção para o fato de que a democracia pode ser subvertida sem golpes. Observa-se, portanto, que o regime democrático não está funcionando bem, o que pode ser constatado, por exemplo, pela presença de lideranças populistas que indicam retrocessos na democracia. O tamanho do desafio que se coloca é expresso pelo autor nas seguintes palavras: A derrubada violenta de uma democracia cria as condições nas quais a democracia pode ser defendida: torna a situação clara. Sem essa perspectiva, a democracia simplesmente persiste e as frustações que as pessoas sentem em relação a ela crescem e são canalizadas para formas de desconfiança mútua. As nossas democracias não são as primeiras da história a se verem presas num atoleiro de teorias da conspiração e notícias falsas. Mas nosso caso é o primeiro sem uma saída óbvia (Runciman, 2018, p. 88).
277
Crises na Democracia
A erosão da confiança na democracia e nas instituições políticas é um importante elemento que perpassa os estudos sobre a crise do regime. Nessa direção, dados do Latinobarómetro, apresentados por Mainwaring e Pérez-Liñán (2005), registram uma grande insatisfação com relação à democracia, apontando para um menor envolvimento dos cidadãos no compromisso com o regime. Os autores apontam que o principal problema enfrentado pela democracia, em muitos países, não se refere, simplesmente, à durabilidade do regime, mas a um conjunto de elementos envolvendo o mau desempenho econômico e social, as altas taxas de criminalidade e o descontentamento dos cidadãos. A Tabela 1 apresenta o percentual de respondentes que concordaram com a afirmação a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, que é uma das opções de resposta a uma questão do Latinobarómetro relacionada ao apoio à democracia2. Mainwaring e Pérez-Liñán (2005), com dados de 1996 a 2003, observam que, em 14 países, entre 17 analisados, ocorreu uma redução do percentual de cidadãos que acreditam que a democracia é preferível a outra forma de governo. Segundo os autores, os cidadãos latino-americanos, ao que parece, têm valorizado, desde o final da década de 1990, resultados concretos em detrimento da democracia. TABELA 1 Apoio à democracia, entre 1996 e 2018 (%)
2
País
1996
2003
2005
2010
2015
2018
Variação 19962003
Variação 20052018
Variação 19962018
Uruguai
80
78
77
75
76
61
-2
- 16
- 19
Costa Rica
80
77
73
72
57
63
-3
- 10
- 17
Argentina
71
68
66
66
70
58
-3
-8
- 13
Venezuela
62
67
76
84
83
74
5
-2
12
Honduras
42
55
33
53
40
34
13
1
-8
Outras duas afirmações são apresentadas nessa questão do survey: (1) Em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um democrático; (2) Para mim, não importa se o regime é democrático ou não.
278
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.) País
1996
2003
2005
2010
2015
2018
Variação 19962003
Variação 20052018
Variação 19962018
México
53
53
59
49
48
38
0
- 21
- 15
Peru
63
52
40
61
56
43
- 11
3
- 20
Nicarágua
59
51
57
58
48
51
-8
-6
-8
Panamá
75
51
52
61
44
42
- 24
- 10
- 33
Chile
54
50
59
63
65
58
-4
-1
4
Bolívia
64
50
49
68
64
52
- 14
3
- 12
Equador
52
46
43
64
71
50
-6
7
-2
Colômbia
60
46
46
60
55
53
- 14
7
-7
El Salvador
56
45
59
59
41
28
- 11
- 31
- 28
Paraguai
59
40
32
49
44
40
- 19
8
- 19
Brasil
50
35
37
54
54
34
- 15
-3
- 16
Guatemala
51
33
32
46
33
28
- 18
-4
- 23
República Dominicana
–
–
60
63
63
43
–
- 17
–
Fonte: Adaptada a partir de Mainwaring e Pérez-Liñán (2005, p. 50) e de dados do Latinobarómetro (2005, 2010, 2015 e 2018).
Analisando essa questão para um período mais recente, com a inclusão de dados para 2005, 2010, 2015 e 2018, é possível verificar que, entre 2005 e 2018, ocorreu, em 12 países3, uma redução do percentual de cidadãos que consideram a democracia preferível a qualquer outra forma de governo. Ao se ampliar o horizonte de comparação, verifica-se que, entre 1996 e 20184, ocorreu uma redução do percentual em 15 países entre 17 analisados5. Ademais, considerando-se todos os respondentes do Latinobarómetro, observa-se, 3
4
5
Mainwaring e Pérez-Liñán (2005) trabalham com dados para 17 países. Aqui, a referência são 18, uma vez que foram incluídos dados para a República Dominicana, os quais estão disponíveis a partir de 2004. 1996 e 2018 correspondem ao primeiro ano e ao último ano para os quais há dados disponíveis do Latinobarómetro acerca do apoio à democracia para um maior número de países. Na comparação entre 1996 e 2018, o número de países de referência volta a ser 17, uma vez que não há dados para a República Dominicana, em 1996.
Crises na Democracia
279
em 2018, a taxa de 48% de apoio à democracia, sendo a variação entre países extremamente elevada. Os dados apontam, portanto, para uma ambivalência nas posições acerca da democracia, refletindo um cenário instável nas atuais democracias latino-americanas, caracterizado, entre outros fatores, por elevada instabilidade governamental, presença de outsiders e contestação à democracia representativa. Nesse sentido, Mainwaring et al. (2006, p. 18, tradução minha) afirmam concordar que “uma erosão da confiança nas principais instituições da democracia representativa é uma ameaça mais séria à democracia que a perda de confiança em outros cidadãos ou políticos”. Chega-se, assim, no debate sobre legitimidade e confiança. Vale mencionar que existem diferentes abordagens acerca do apoio à democracia, muitas delas lançando mão de pesquisas de opinião. Norris (1999), por exemplo, fala em “cidadãos críticos”. Para a autora, diante da experiência institucional vivenciada pelos cidadãos, os sentimentos gerados referem-se ao jogo proporcionado pelas regras vigentes. A partir de pesquisas empíricas em diferentes democracias, observa que a desconfiança em instituições democráticas está associada ao funcionamento inadequado de regras institucionais, liberdades civis e direitos políticos. Já Mounk (2019) aborda o crescimento na descrença em relação à democracia e à ascensão de um maior número de líderes populistas. Esses, de diferentes perfis, estão tendo sucesso em democracias relevantes, em geral apresentando discursos no sentido de que os problemas políticos são simples. Assim, diante da incapacidade do regime em oferecer respostas, cidadãos estão desencantados e mais abertos a alternativas autoritárias. Sobre isso, afirma: A desilusão do cidadão com a política é coisa antiga; hoje em dia, ele está cada vez mais inquieto, raivoso, até desdenhoso. Faz tempo que os sistemas partidários parecem paralisados; hoje, o populismo autoritário cresce no mundo todo, da América à Europa e da Ásia à Austrália. Não é de hoje que os eleitores repudiam esse ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si (Mounk, 2019, p. 16).
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
Para o autor, a desconfiança é um relevante indicador de que a democracia vai mal. Rosanvallon (2015) apresenta um contraponto a essa ideia, afirmando que a questão da confiança é muito mais complexa. Assim, a desconfiança tem seus elementos próprios e a sua institucionalidade. Junto com as instituições da democracia, tem-se a contrademocracia. Isso torna necessário que, para uma adequada compreensão do movimento das experiências democráticas, leve-se em conta, por um lado, as instituições eleitorais e representativas e, por outro, o universo da desconfiança. Ademais, Rosanvallon (2015), ao analisar a associação entre desconfiança democrática e desconfiança estrutural, usa a expressão “sociedade da desconfiança generaliza” para qualificar o mundo contemporâneo. Butzlaff e Messinger-Zimmer (2019), também preocupados em compreender o declínio dos níveis de confiança, analisam como distintas manifestações de desconfiança se relacionam com a aceitação da democracia e de suas instituições. Com dados para a Alemanha, observam que o papel desempenhado pela desconfiança na representação dos interesses políticos e na aceitação da democracia representativa liberal é afetado pelas crescentes divisões sociais. Já Moisés (2005, p. 91), ao apresentar um conceito multidimensional para pensar cidadania, confiança e instituições democráticas, destaca que as experiências dos cidadãos que influem sobre a confiança política estão associadas com a vivência de regras, normas e procedimentos que decorrem do princípio de igualdade de todos perante a lei. Mas elas também mostram que a avaliação dos cidadãos sobre as instituições depende do aprendizado propiciado a eles pelo funcionamento daquelas.
Apresentados, então, esses elementos teóricos, a próxima seção lança luz sobre a literatura especializada que trata dos últimos acontecimentos políticos no Brasil. 2. BRASIL E AS ELEIÇÕES DE 2018 Considerando que a análise se dirige, em grande monta, às percepções dos parlamentares brasileiros acerca da democracia e
281
Crises na Democracia
das instituições, faz-se necessário pensar o caso do Brasil a partir do debate concernente à crise da democracia, destacando-se as contribuições da literatura que tem esse objeto. Para tanto, inicialmente, é fundamental observar as eleições de 2018, caracterizadas por intensa polarização. Entre os resultados do pleito, além da vitória de Jair Bolsonaro, destaca-se o elevado índice de renovação na Câmara dos Deputados: 47,37% dos deputados federais que tomaram posse em 2019 estavam em seu primeiro mandato naquela casa6. O Gráfico 1 registra esse índice, considerando as eleições a partir da publicação da Constituição de 1988. Gráfico 1 – A renovação na Câmara dos Deputados (%)
GRÁFICO 1 A renovação na Câmara dos Deputados (%) 47
46
38
1990
36
36
36
1994
1998
2002
2006
39 37
2010
2014
2018
Fonte: Agência Câmara de Notícias (2019). Fonte: Agência Câmara de Notícias (2019).
No que se refere à renovação, sobressai-se o Partido Social Liberal (PSL), sigla pela qual Bolsonaro se elegeu: em uma bancada de 52 parlamentares, 47 assumiram o primeiro mandato. Por outro lado, o Partido dos Trabalhadores (PT) foi a sigla que mais reelegeu: em uma bancada de 56 parlamentares, 40 foram reeleitos (Agência Câmara de Notícias, 2019). 6
Em 2019, tomaram posse 243 deputados federais novatos e 19 ex-deputados; 251 foram reeleitos.
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
Diante desse quadro, Abranches (2019) afirma que a eleição foi disruptiva, encerrando um ciclo político que organizou o presidencialismo de coalizão. Entre as rupturas observadas, o autor destaca a aceleração do desalinhamento partidário e a vitória, na eleição presidencial, de um candidato filiado a um partido sem expressão e que não contava com estrutura política de campanha. Abranches (2019) ressalta a importância que tiveram as redes sociais no processo eleitoral e como isso está associado à campanha polarizada e radicalizada. Essa polarização contou com muitos rótulos políticos, com pouco conteúdo programático e muito conteúdo emocional, a citar: “amo a nós, logo odeio a eles”. Nas palavras do autor: Foi nossa primeira campanha efetivamente digital. A principal característica desse tipo de campanha, no estágio de incipiente digitalização da política em que nos encontramos, é que não permite controle da trajetória, conteúdo e intensidade das mensagens disseminadas. A disseminação, que tem origem organizada, com impulsões por agências profissionais usando bots e sockpuppets, avança de forma descentralizada e independente, espalhando-se por contágio. Mesmo que o centro da campanha queira mudar o tom, ou deter fake news específicas que tiveram efeito bumerangue, não consegue. O contágio só cessa quando não houver mais receptores que possam ser infectados. Não há vacina prévia, nem forma de combate eficaz dessas epidemias de memes e fake news (Abranches, 2019, p. 13-14).
A relação entre internet e crise da democracia é, portanto, uma das dimensões centrais para uma melhor compreensão do momento vivenciado pelo Brasil. É evidente o importante papel que tiveram as redes sociais nas eleições de 2018, quando, entre outros fenômenos, robôs colocaram-se como humanos visando influenciar o processo em curso. Nessa direção, Feres Jr. e Gagliardi (2018) apontam que, em 2018, ocorreu uma quebra de paradigma em relação às eleições anteriores. A já mencionada taxa de renovação do Congresso é apontada pelos autores como uma forte evidência relativa à decadência dos partidos tradicionais. Para Feres Jr. e Gagliardi (2018), aquele pleito foi caraterizado pela adição de um quarto canal de campanha: as redes sociais juntaram-se à campanha direta, ao horário gratuito de propaganda eleitoral e à mídia tradicional. Outros aspectos
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relevantes referem-se à desestruturação dos partidos políticos, que perderam poder relativo e influência, e às mudanças no padrão de recrutamento de candidatos. Os autores observam também que o encurtamento do período de campanha teve impactos na utilização dos canais tradicionais, acrescentando que “a imprensa perdeu capacidade relativa de influenciar o pleito devido a sua adesão radical ao discurso de criminalização da política” (Feres Jr. e Gagliardi, 2018, p. 105). Assim, a grande mídia, mesmo mantendo sua função de partido, perdeu sua função de meio assumida pela internet. Nas redes sociais, portanto, a nova direita conseguiu implantar uma guerra cultural, e a demonização do PT foi o elemento unificador de grupos da nova direita e de evangélicos, com vasto número de seguidores. Aqui, vale mencionar o aspecto moral associado ao discurso eleitoral. Alonso (2019, p. 41) fala da existência de uma comunidade moral bolsonarista, que se estrutura na crença compartilhada em códigos binários, que divide o mundo em bem e mal, sagrado e profano, gente de família e indecentes, cidadãos de bem e bandidos, éticos e corruptos, nacionalistas e globalistas. Essas clivagens simbólicas simplificam a realidade, reduzindo sua complexidade a estereótipos administráveis, e ativam sentimentos coletivos de alta voltagem – o afeto, o medo, o ódio. Seu manejo reforça o senso de pertencimento a uma comunidade de semelhantes e estigmatiza os diferentes. A violência – física, simbólica ou política – protege o grupo, que se sente ameaçado desde o início dos governos petistas.
Feres Jr. e Gagliardi (2018) destacam, ainda, o papel desempenhado pelo WhatsApp, por meio do qual inúmeras fake news foram disseminadas, e atuação ativa na campanha de 2018 de instituições da sociedade civil, com preponderância das igrejas evangélicas. Sobre esse aspecto, Biroli (2020) chama a atenção para o protagonismo assumido por evangélicos, especialmente por grupos pentecostais, que passaram a disputar debates públicos e eleições. Na mesma linha, Miskolci e Campana (2017) lançam luz sobre a atuação das igrejas, associada a uma moralização da vida política e à ocupação de diversos cargos. Os autores destacam a existência de “empreendedores morais” que agem dentro do campo discursivo.
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Outros elementos precisam ser analisados para uma melhor compreensão da crise da democracia no Brasil, e grande parte deles remonta ao período que antecede as eleições de 2018. Singer (2018), por exemplo, ressalta o protagonismo da Operação Lava Jato, considerando-a extremamente contraditória, com aspectos tanto facciosos quanto republicanos. Como exemplo de aspecto faccioso, destaca o fato de o juiz Sérgio Moro, principal nome no âmbito da operação, assumir o Ministério da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, eleito com uma plataforma antipetista. Singer (2018, p. 253) também chama a atenção para o papel decisivo da Lava Jato no contexto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff: Os analistas se dividem a respeito de a operação ter sido pensada para derrubar o lulismo ou ter apenas causado esse efeito objetivo. Poucos duvidariam da sua eficácia nos meses que precederam o 17 de abril de 2016, quando ocorreu a votação decisiva para o impedimento na Câmara dos Deputados. A Lava Jato, com a participação fundamental dos meios de comunicação, criou fatos que mobilizaram e radicalizaram a classe média em torno da acusação de que Lula, Dilma e o Partido dos Trabalhadores (PT) formavam uma organização criminosa que precisava ser extirpada da vida política. A mobilização criada pela Lava Jato assegurou a maioria parlamentar que derrubou Dilma, passo sine qua non para despedaçar o lulismo.
Diante desse contexto, Singer (2018) fala do “Partido da Justiça”, que teria nascido a partir do julgamento do mensalão e se fortalecido com a Lava Jato, tornando-se líder de audiência na imprensa brasileira7. A temática do protagonismo judicial no Brasil é abordada por outros autores. Marona e Barbosa (2018), por exemplo, apontam a centralidade das instituições jurídicas e judiciárias na democracia brasileira, registrando a construção do discurso da criminalização do combate à corrupção. Mendes (2018, p. 164), 7
Em Reis (2018, p. 72), encontra-se uma reflexão acerca da relação entre a dita “opinião pública” e a imprensa: “a opinião pública é constituída, em ampla medida, por gente de melhor posição socioeconômica e mais altos níveis educacionais – as classes ‘média’ e ‘alta’ –; é ligada num movimento de mão dupla com o mundo da imprensa e da ‘opinião publicada’, exercendo papel de protagonista, assim, na própria criação ou formulação da opinião pública, papel de que os estratos populares se acham excluídos”.
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por sua vez, ao analisar as imagens do Supremo Tribunal Federal (STF), questiona o comportamento da Corte, citando exemplos e apresentando questões que permanecem sem respostas: Se os parlamentares Delcídio do Amaral, Eduardo Cunha, Renan Calheiros e Aécio Neves detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso? Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff em nomear Lula como ministro, por que não teria havido o mesmo na conversão, pelo presidente Michel Temer, de Moreira Franco em ministro? Se lá chegam tantos casos centrais da agenda do país, como pode um ministro, sozinho, manipular a pauta pública ao seu sabor?
Por fim, vale mencionar o trabalho de Avritzer (2018), que, ao analisar a crise no período de 2013 a 2018, ressalta que o caso brasileiro tem suas especificidades. Para o autor, o país conta com uma tradição liberal fraca associada a uma experiência democrática instável. Trata-se, assim, de um problema estrutural e não conjuntural, com instituições políticas instáveis e valores democráticos frágeis. Diante das abordagens e análises apresentadas, torna-se necessário enfrentar o objetivo que norteia este capítulo. A partir da próxima seção, serão discutidos os resultados de surveys que abordaram a confiança na democracia e em instituições políticas. 3. DEMOCRACIA E CONFIANÇA: AS PERCEPÇÕES DE PARLAMENTARES BRASILEIROS E A OPINIÃO PÚBLICA Com vistas a discutir aspectos concernentes ao debate teórico apresentado, são utilizados dados oriundos de duas pesquisas, que consistiram na realização de surveys. A primeira, denominada “Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina”, foi realizada pelo CEL-UFMG, em parceria com a Universidade de Salamanca. Foram realizadas pesquisas de opinião com os deputados federais brasileiros da 55ª legislatura, cuja aplicação ocorreu em 2018, e da 56ª legislatura, cuja aplicação ocorreu em 2019. Os números de respondentes em cada
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edição foram, respectivamente, 109 e 125. A segunda pesquisa, de nome “A Cara da Democracia no Brasil”, integra o conjunto de investigações sobre representação, participação e opinião pública no âmbito do INCT-IDDC. São utilizados dados dos surveys aplicados a uma amostra nacional nos anos de 2018, 2019 e 20208. Informado pelas questões colocadas nas seções anteriores, este capítulo objetiva analisar as percepções dos parlamentares brasileiros acerca da democracia e das instituições, traçando também comparações com resultados de pesquisas de opinião pública. Nesse sentido, a análise empírica é realizada a partir das seguintes dimensões: estabilidade da democracia no país, satisfação com o regime democrático, papel dos partidos, confiança nos processos eleitorais e confiança nas instituições. Vale ressaltar que as eleições de 2018 implicaram em um alto índice de renovação na Câmara dos Deputados, alterando o perfil dos parlamentares. Conforme dados do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (2018), 30 partidos passaram a ter representação no Legislativo. Grande parte dos deputados eleitos eram empresários (133) e a direita aumentou sua representação. No que tange às bancadas informais, vale mencionar alguns fatos: a da segurança se ampliou, a ruralista e a evangélica se mantiveram, e a sindical se reduziu. Diante desse perfil, passa-se à discussão dos dados. O primeiro refere-se à percepção dos parlamentares sobre estabilidade da democracia no Brasil, conforme Gráfico 2. Nas duas rodadas da pesquisa, a maioria dos respondentes considerou a democracia brasileira estável: 56,9% na 55ª legislatura e 58,4% na 56% legislatura. O que chama a atenção na comparação entre os surveys é a ampliação da percepção de estabilidade, ou seja, os atuais deputados federais consideram a democracia mais estável do que os deputados entrevistados na legislatura anterior. As respostas à opção 8
Em 2018, foram entrevistadas, presencialmente, 2.500 pessoas, entre os dias 15 e 23 de março, com margem de erro de 2% e intervalo de confiança de 95%. Em 2019, as 2.000 entrevistas presenciais foram realizadas entre os dias 08 e 11 de novembro, com margem de erro de 2% e intervalo de confiança de 95%. Em 2020, a pesquisa realizou 1.000 entrevistas por telefone, entre os dias 30 de maio e 05 de junho, com margem de erro de 3,1% e intervalo de confiança de 95%. O survey de 2020 foi realizado já durante as medidas de isolamento social em diversas cidades, em função da pandemia da Covid-19.
287
Crises na Democracia
Nada estável passaram de 8,3% a 1,6%, ao passo que as respostas à opção Muito estável passaram de 14,7% a 20,8%. GRÁFICO 2 Percepção dos deputados acerca da estabilidade da democracia (%) Gráfico 2 – Percepção dos deputados acerca da estabilidade da democracia (%) 70 56,9 58,4
60 50 40 30
10 0
20,8
20,2 19,2
20
14,7
8,3 1,6 Nada estável
Pouco estável 55ª legislatura
Estável
Muito estável
56ª legislatura
Fonte: Dados do survey “Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina” (CEL-UFMG; Universidade de Salamanca). Elaboração própria. Nota: N 55ª legislatura: 109; N 56ª legislatura: 125.
A rodada de 2018 ocorreu na última sessão legislativa da legislatura, enquanto a de 2019 aconteceu na primeira sessão legislativa, o que deve ser considerado na análise. Além disso, a 55ª legislatura foi marcada pelo processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, fato relevante em uma avaliação concernente à estabilidade do regime. Por outro lado, o elevado índice de renovação pelo qual passou a Câmara dos Deputados nas últimas eleições, estando muitos dos deputados novatos associados à “onda bolsonarista”, pode ajudar na compreensão do aumento na percepção da estabilidade. Ainda no que se refere às percepções sobre a democracia, vale analisar quão satisfeitos estão os parlamentares com
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o regime. É sobre isso que trata o Gráfico 3. Esses dados serão analisados a partir de três perspectivas: (i) comparando-se os resultados nas duas legislaturas; (ii) comparando-se as percepções de deputados de partidos específicos no atual mandato; e (iii) comparando-se os achados do Legislativo com os dados de opinião pública. Em primeiro lugar, pode-se observar, assim como se deu na avaliação da estabilidade, que, na comparação entre as legislaturas, é maior a satisfação dos atuais deputados federais com o funcionamento da democracia. Duas alterações nos percentuais podem ser destacadas: as respostas à opção Insatisfeito passaram de 22,9% a 10,4%, ao passo que as respostas à opção Muito satisfeito passaram de 11,9% a 16,8%. As mesmas reflexões apresentadas aos resultados sobre estabilidade podem ser aplicadas aqui. GRÁFICO 3 Satisfação dos com deputados com o da democracia (%) Gráfico 3 – Satisfação dos deputados o funcionamento funcionamento da democracia (%) 70 56
60
59,2
50 40 30
22,9
20 10 0
8,3
11,9
10,4
16,8
4
Muito insatisfeito
9,6 0,9
Insatisfeito
Satisfeito
55ª legislatura
Muito Satisfeito
NS/NR
56ª legislatura
Fonte: Dados do survey “Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina” (CEL-UFMG; Universidade de Salamanca). Elaboração própria. Nota: N 55ª legislatura: 109; N 56ª legislatura: 125.
Crises na Democracia
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Interessante observar que a clivagem partidária tem reflexos nas percepções sobre a satisfação. Considerando os parlamentares respondentes das duas maiores bancadas da 56ª legislatura9, verifica-se que todos os filiados ao PSL estão satisfeitos com o funcionamento do regime democrático: 5 disseram-se muito satisfeitos e 9, satisfeitos. Por outro lado, no maior partido de oposição ao governo Bolsonaro, o PT, há mais insatisfeitos do que satisfeitos: 3 disseram-se muito insatisfeitos; 7, insatisfeitos; 6, satisfeitos; e 1, muito satisfeito. Há, portanto, um indício, a ser melhor investigado, de que a percepção relativa ao funcionamento da democracia é perpassada pelo alinhamento (ou não) ao atual governo. Para se comparar esses achados com a opinião pública, apresenta-se o Gráfico 4, que trata da satisfação dos cidadãos brasileiros com a democracia em três momentos. A terceira rodada da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil” (2020) traz alguns resultados importantes, como o aumento do prestígio de algumas instituições políticas e a elevação da repulsa à ideia de golpe. A despeito dessas alterações, não se observa um aumento da satisfação com a democracia. Pelo contrário: em 2019, 32,9% dos respondentes afirmavam estar satisfeitos ou muito satisfeitos com o regime; em 2020, 25,1% têm a mesma posição. Segundo Avritzer, em entrevista ao jornal Valor Econômico, isso se dá em função da associação feita, por grande parte da população, entre a democracia e o funcionamento do governo, incluindo sua capacidade de prover serviços públicos como educação ou saúde (Mendonça, 2020). No entanto, quando a comparação ocorre entre as rodadas da pesquisa em 2018 e 2019, constata-se uma ampliação da satisfação com a democracia.
9
Em ambas as bancadas, 17 deputados responderam ao survey. Variações nesses números se devem ao fato de que alguns parlamentares optaram por não responder determinadas questões ou afirmaram não saber.
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
GRÁFICO 4 Gráfico 4 – Satisfação dos cidadãos a democracia (%) Satisfação dos cidadãos com acom democracia (%) 90 80
80 65,3
70
72,6
60 50 40 30 20 10 0
32,9 25,1
18,4 1,6
1,8
2,3
2018
2019
2020
Muito insatisfeito ou insatisfeito
Satisfeito ou muito satisfeito
NS/NR
Fonte: Dados do survey “A Cara da Democracia no Brasil” (INCT-IDDC).
De toda forma, quando contrapostos esses números aos da pesquisa com deputados federais, é expressiva a diferença relativa à satisfação com a democracia. Comparando-se os resultados da segunda rodada do INCT-IDDC (2019), quando se registrou no eleitorado a maior satisfação com o regime, com os resultados da pesquisa com os atuais deputados federais, chega-se aos seguintes números: 32,9% dos cidadãos respondentes afirmaram estar satisfeitos ou muito satisfeitos com a democracia, enquanto 76% dos deputados têm a mesma avaliação. Há, portanto, uma ampla dissociação entre as percepções de representados e representantes quando o assunto é a satisfação com a democracia. 3.1. Percepções sobre partidos e processos eleitorais Os regimentos democráticos são perpassados pela atuação de partidos políticos e por processos eleitorais, os quais também despertam confiança e desconfiança nas pessoas. Na pesquisa “Representação Política e Qualidade da Democracia”, algumas questões relacionadas ao tema foram apresentadas aos parlamentares. Uma
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Crises na Democracia
delas, cujos resultados são apresentados no Gráfico 5, refere-se à concordância ou não com a seguinte afirmação: “sem partidos não pode existir democracia”. GRÁFICO 5 Concordância, entre os deputados, com a afirmação: Gráfico 5 – Concordância, entre os deputados, com a afirmação: “sem partidos “sem partidos nãoexistir podedemocracia” existir democracia” (%) não pode (%) 80
73,4
70 60
54,4
50 40 26,4
30 20 10 0
14,4 6,4 Discorda
8,3
11,9 4
Concorda pouco
0,8 Concorda mais Concorda muito ou menos
55ª legislatura
NS/NR
56ª legislatura
Fonte: Dados do survey “Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina” (CEL-UFMG; Universidade de Salamanca). Elaboração própria. Nota: N 55ª legislatura: 109; N 56ª legislatura: 125.
Tanto na 55ª quanto na 56ª legislatura, a maior parte dos deputados respondentes afirmou concordar muito com a afirmação, apontando a necessidade de partidos políticos para a existência da democracia: os percentuais de resposta à referida opção foram, respectivamente, 73,4% e 54,4%. No entanto, esses números já sinalizam para uma importante diferença entre as duas legislaturas em análise: reduziu-se, substancialmente, a adesão à ideia de que os partidos são necessários ao regime democrático. Isso vai de encontro ao consenso apontado por Kinzo (2004, p. 23): “partidos políticos e eleições são componentes necessários de um regime democrático. Eleições livres e justas, nas quais os partidos competem
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Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.)
por cargos públicos, são um critério crucial para identificar se um sistema político é uma democracia”. Conforme apontaram Feres Jr. e Gagliardi (2018), as eleições de 2018 foram marcadas por uma acentuação da desestruturação dos partidos e essa mudança de percepção pode estar fortemente associada a esse processo. Acresce-se a isso a mencionada renovação ocorrida na Câmara dos Deputados, com muitos parlamentares novatos atrelados às ideias do presidente Jair Bolsonaro, o qual se encontra, atualmente, sem filiação partidária. Outra questão presente no survey refere-se ao grau de confiança que os parlamentares têm nos processos eleitorais pelos quais foram eleitos. O Gráfico 6 apresenta os resultados em uma escala que vai de 1, que significa mínima confiança, a 10, que significa máxima confiança. GRÁFICO 6 Grau de confiança dos deputados nosnos processos eleitorais Gráfico 6 – Grau de confiança dos deputados processos eleitorais (%)(%) 35
32,1 28,8
30 25 20
17,4
15
5 0
15,6 10,1
10 0,8 2
1,8
2,8
3
4
22,4
20
11,2
10,1
10,1
5,6
5
8 3,2
6
55ª legislatura
7
8
9
10
NS/NR
56ª legislatura
Fonte: Dados do survey “Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina” (CEL-UFMG; Universidade de Salamanca). Elaboração própria. Nota: 1 significa mínima confiança e 10, máxima confiança. N 55ª legislatura: 109; N 56ª legislatura: 125.
De maneira semelhante ao que se observou na questão sobre a necessidade dos partidos, os percentuais de respostas aos pontos
293
Crises na Democracia
mais altos na escala de confiança nos processos eleitorais também se reduziram na comparação entre as duas legislaturas. A escolha do ponto 9 passou de 10,1 % a 8%, enquanto a escolha do ponto 10, máxima confiança, passou de 32,1% a 22,4%. Isso indica, portanto, que menos parlamentares confiam nos processos eleitorais pelos quais foram eleitos, o que também pode ser ressonância de algumas ideias de Jair Bolsonaro, que, por diversas vezes, questiona os processos eleitorais. Sobre isso, recentemente, afirmou: “Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude.” (Orte, 2020). 3.2. Confiança nas instituições O debate relativo à confiança na democracia remete, ainda, à análise da confiança nas instituições. A Tabela 2 apresenta as percepções dos deputados federais das 55ª e 56ª legislaturas em um conjunto de instituições que perpassam o funcionamento do regime democrático no Brasil. TABELA 2 Confiança dos deputados em instituições (%) Confia pouco
Não confia
Confia mais ou menos
Confia muito
NS/NR
55ª
56ª
55ª
56ª
55ª
56ª
55ª
56ª
55ª
56ª
Poder Judiciário
6,4
4,8
22,9
19,2
47,7
52,8
20,2
22,4
2,8
0,8
Partidos políticos
2,8
4
33
18,4
48,6
54,4
13,8
22,4
1,8
0,8
Organizações empresariais
7,3
9,6
27,5
18,4
50,5
51,2
11,9
20
2,8
0,8
Sindicatos
8,3
18,4
27,5
18,4
40,3
40,8
20,2
20,8
3,7
1,6
Forças Armadas
6,4
2,4
18,3
5,6
41,3
34,4
31,2
56
2,8
1,6
Igreja Católica
1,8
3,2
22
12
42,2
45,6
30,3
38,4
3,7
0,8
Igreja Evangélica
-
3,2
-
16
-
44,8
-
35,2
-
0,8
Congresso Nacional
3,7
1,6
28,4
15,2
40,3
52
24,8
30,4
2,8
0,8
Presidente da República
17,4
12,8
20,2
11,2
34
35,2
26,6
39,2
1,8
1,6
294
Leonardo Avritzer / Priscila Delgado de Carvalho (Orgs.) Confia pouco
Não confia
Confia mais ou menos
Confia muito
NS/NR
55ª
56ª
55ª
56ª
55ª
56ª
55ª
56ª
55ª
56ª
Funcionários públicos
4,6
0,8
23,9
7,2
48,5
63,2
20,2
28
2,8
0,8
Meios de comunicação
17,4
8
37,6
29,6
33,1
48
10,1
12,8
1,8
1,6
Polícia Federal
-
3,2
-
5,6
-
34,4
-
55,2
-
1,6
Ministério Público
-
4
-
12,8
-
48,8
-
32
-
2,4
Supremo Tribunal Federal
-
6,4
-
16
-
52,8
-
23,2
-
1,6
Tribunal Superior Eleitoral
5,5
2,4
23,9
16,8
42,1
51,2
25,7
27,2
2,8
2,4
ONGs
7,3
13,6
22
24
53,2
44,8
14,7
15,2
2,8
2,4
Polícia Militar
5,5
-
21,1
-
51,4
-
20,2
-
1,8
-
Polícia Civil
7,3
-
24,8
-
45,9
-
20,2
-
1,8
-
Banco Central
4,6
-
20,2
-
40,4
-
33
-
1,8
-
Fonte: Dados do survey “Representação Política e Qualidade da Democracia: Um estudo das elites parlamentares da América Latina” (CEL-UFMG; Universidade de Salamanca). Elaboração própria. Nota: N 55ª legislatura: 109; N 56ª legislatura: 125. Algumas instituições não apareceram nas duas pesquisas, razão pela qual alguns percentuais não são indicados.
Atendo-se às respostas à opção Confia muito, é possível observar, em primeiro lugar, que os percentuais aumentam para todas as instituições elencadas. No entanto, para algumas, a alteração é pouco expressiva, como acontece com as Organizações não governamentais (ONGs) e Sindicatos, federações e confederações. No primeiro caso, verifica-se uma diferença de 0,5 ponto percentual e, no segundo, de 0,6 ponto percentual. Vale acrescentar que a desconfiança em sindicatos, registrada pelas respostas à opção Não confia, é a que mais se amplia na comparação entre as duas legislaturas, passando de 8,3% a 18,4%. Por outro lado, as maiores alterações na elevada confiança (opção Confia muito) se dão com o Presidente da República, ampliando-se em 12,6 pontos percentuais, e com as Forças Armadas, ampliando-se em expressivos 24,8 pontos percentuais. É interessante observar como, na atual legislatura, são diferentes as percepções de parlamentares do PSL e do PT no que
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concerne a algumas instituições. No PSL, 3 parlamentares afirmaram confiar mais ou menos nas Forças Armadas e 14, confiar muito; no PT, 3 não confiam, 3 confiam pouco, 9 confiam mais ou menos e apenas 2 confiam muito. Comportamento distinto é observado na atribuição de confiança a sindicatos, federações e confederações: no PSL, 8 não confiam, 1 confia pouco, 7 confiam mais ou menos e apenas 1 confia muito; já no PT 7 confiam mais ou menos e 9 confiam muito. Esses resultados estão associados ao perfil do novo Congresso, eleito em um processo marcado pela polarização e por uma desestruturação do sistema partidário, como discutido anteriormente. A ampliação, por exemplo, da confiança nas Forças Armadas pode estar relacionada ao papel assumido pelos militares, que assumem grande protagonismo no governo de Jair Bolsonaro. Chama a atenção também a elevada confiança atribuída às Igrejas Católica e Evangélica: na pesquisa com os atuais deputados, 38,4% afirmaram confiar muito na primeira (na 55ª legislatura, eram 30,3%) e 35,2% disseram o mesmo com relação à segunda. À frente das Igrejas, com maiores percentuais de respostas à opção Confia muito, aparecem apenas as Forças Armadas, a Polícia Federal e o Presidente da República. Essa percepção, especialmente com relação à Igreja Evangélica, está fortemente associada à super-representação dos neopentencostais no Congresso Nacional. Outro aspecto importante refere-se ao protagonismo que instituições jurídicas e judiciárias assumiram na democracia brasileira. Nesse sentido, destaca-se a Polícia Federal, que não está no escopo do Poder Judiciário, mas consiste em um ator relevante no processo de criminalização do combate à corrupção (Marona e Barbosa, 2018). Entre os atuais deputados federais, 55,2% afirmaram confiar muito nessa instituição. O Ministério Público recebeu 32% de respostas à mesma opção e o STF, alvo de críticas e manifestações por parte de apoiadores do Presidente da República, 23,2%. Pode-se mencionar, ainda, que os meios de comunicação contabilizaram, entre todas as instituições elencadas, o menor percentual de respostas à opção Confia muito (12,8%). A comparação de alguns desses resultados com pesquisas de opinião pública traz reflexões interessantes. Sobre as Forças
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Armadas, a pesquisa do INCT-IDDC aponta uma redução no número de respondentes que disseram confiar muito nessa instituição: eram 33,9% em 2018, 19,1% em 2019 e 27% em 2020. O mesmo se observa com as Igrejas: o percentual de respostas à opção Confia muito passou de 35,2% para 32%, chegando a 29,7% na última rodada. Considerando os dados de 2020 da pesquisa do INCT-IDDC e a pesquisa com os atuais deputados federais, verifica-se que a elevada confiança em Igrejas e, principalmente, nas Forças Armadas é maior entre os parlamentares. Avaliando os números, Avritzer afirma que “o eleitorado começa a se afastar dos temas mais clássicos do bolsonarismo. O brasileiro tinha muita confiança nas Forças Armadas e nas igrejas. Já não tem mais tanto assim. A confiança não desabou, mas há sinais de deslocamento” (Mendonça, 2020). Nesse contexto, é necessário refletir sobre a pandemia, que pode estar possibilitando um espaço de recomposição política. Ademais, avaliando os dados sobre as Forças Armadas, Carvalho (2020) afirma que o Brasil de 2020 tem menos abertura para ampliação do espaço das forças armadas na política do que nos anos anteriores - essa pode ser uma das consequências imprevistas da alta exposição pública dos militares e de seu retorno a cargos-chaves do governo federal, algo que não se via no país há algumas décadas.
Dois outros dados merecem ser observados: a confiança no Congresso Nacional e a confiança nos partidos. Entre os parlamentares, a forte confiança no próprio Congresso Nacional passou de 24,8% a 30,4%. No eleitorado, o percentual de pessoas que confiam muito praticamente não se alterou: passou de 4,6% a 4,4%, chegando a 5,1% em 2020. Observa-se, portanto, uma ampla diferença entre as percepções da opinião pública e dos parlamentares. No entanto, as respostas do eleitorado à opção Não confia apresentaram queda expressiva: eram 56,3% em 2018, 50,2% em 2019, e 37,2% em 2020. No que se refere aos partidos políticos, o movimento observado é semelhante. Entre os parlamentares, a confiança (Confia muito) passou de 13,8% para 22,4%. No eleitorado, os que confiam muito eram 1,1% em 2018, 1% em
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2019, e 1,6% em 2020. Já a desconfiança se reduziu, passando de 76,9% a 71,3%, chegando a 66,9% na última rodada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo objetivou analisar as percepções relativas à democracia e às instituições entre os deputados federais brasileiros das 55ª e 56ª legislaturas, procurando-se identificar possíveis mudanças nessas percepções, tendo em vista as características peculiares das eleições de 2018. Buscou-se também realizar comparações, considerando a atual legislatura, entre as posições dos parlamentares das maiores bancadas, as quais expressam uma das facetas da polarização no Legislativo. Ademais, diante de debates sobre a legitimidade da representação, de movimentos antipolítica e de baixos níveis de confiança atribuídos ao Congresso Nacional, almejou-se comparar as posições dos deputados com a opinião pública. Antes, entretanto, de se enfrentar essas tarefas, foram ressaltados os principais elementos presentes na literatura recente que tem como objeto a crise da democracia, especialmente no que diz respeito ao debate sobre legitimidade e confiança. Nesse sentido, destacou-se a existência de diferentes abordagens acerca do apoio à democracia e o fato de que muitas delas lançam mão de pesquisas de opinião. Além disso, foram apresentados alguns apontamentos da literatura especializada acerca de recentes acontecimentos políticos no Brasil, como as características das eleições de 2018, marcadas por intensa polarização, por um desalinhamento partidário e pela vitória de Jair Bolsonaro. No que se refere à parte empírica do capítulo, foram mobilizados dados de surveys. Entre os resultados, pode-se destacar que os atuais deputados federais consideram a democracia mais estável do que os deputados entrevistados na legislatura anterior. O mesmo se verifica com relação à satisfação quanto ao funcionamento da democracia, observando-se, ainda, que essa percepção é perpassada pelo alinhamento (ou não) ao atual governo. Há também uma ampla dissociação entre as percepções de representados e representantes quando o assunto é a satisfação com a democracia.
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No que tange à confiança nas instituições, observou-se, entre os deputados federais, que as maiores ampliações na confiança se deram com o Presidente da República e com as Forças Armadas. A comparação desses achados com pesquisas de opinião pública apontou importantes diferenças. No eleitorado, reduziu-se o número de respondentes que disseram confiar muito nas Forças Armadas, observando-se o mesmo com relação às Igrejas. Assim, na comparação entre as posições de representantes e representados, observou-se que a elevada confiança em Igrejas e, principalmente, nas Forças Armadas é maior entre os parlamentares. Certamente, esses elementos são importantes para uma melhor compreensão do momento político pelo qual o Brasil passa e do debate ampliado acerca da erosão da confiança na democracia e nas instituições políticas. Permanecem, entretanto, muitas indagações associadas a essa temática tão cara à Ciência Política. REFERÊNCIAS Abranches, Sergio (2019), “Polarização radicalizada e ruptura eleitoral”, in Carlos Melo et al. (org.). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 7-26. Agência Câmara de Notícias (2019), “Câmara tem renovação de quase 50% na nova legislatura”. Consultado em 11.set.2020, em https://www.camara.leg.br/noticias/550932-camara-tem-renovacao-de-quase-50-na-nova-legislatura/. Alonso, Angela (2019), “A comunidade moral bolsonarista”, in Carlos Melo et al. (org.). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 41-55. Avritzer, Leonardo (2018), “O pêndulo da democracia no Brasil: uma análise da crise (20132018)”, in Leonardo Avritzer et al. (org.). Pensando a democracia, a república e o estado de direito no Brasil. Belo Horizonte: Projeto República, 17-38. Biroli, Flávia (2020), “The Backlash against Gender Equality in Latin America: Temporality, Religious Patterns, and the Erosion of Democracy”, Lasa Forum, 51(2), 22-26. Butzlaff, Felix; Messinger-Zimmer, Sören (2019), “Undermining or defending democracy? The consequences of distrust for democratic attitudes and participation”, Critical Policy Studies, 14(3), 1-18. Carvalho, Priscila Delgado de. Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT-IDDC) (2020), “Forças armadas: pesquisa avalia confiança e visões sobre militares na política”. Consultado em 11.set.2020, em https://www.institutodademocracia.org/post/ for%C3%A7as-armadas-pesquisa-avalia-confian%C3%A7a-e-vis%C3%B5es-sobre-militares-na-pol%C3%ADtica. Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (2018), “Novo Congresso Nacional em números: 2019-2023”. Consultado em 11 set.2020, em: https://static.poder360.com. br/2018/10/Novo-Congresso-Nacional-em-Numeros-2019-2023.pdf.
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Capítulo 11 Sentidos do Autoritarismo no Brasil de 2019: Um Regime Reabilitado? Priscila Delgado de Carvalho As pesquisas de opinião vêm mostrando que, no Brasil, a democracia não é o único regime aceitável para cerca de um terço a um quarto dos cidadãos. Em 2018, 21% dos brasileiros concordavam com a afirmativa de que, em algumas circunstâncias, uma ditadura pode ser preferível a um governo democrático e outros 12,3% achavam que tanto faz um regime democrático ou não democrático. Em 2019, os percentuais mudaram um pouco: houve uma queda de 10% entre os que consideravam ditaduras preferíveis em algumas circunstâncias e um leve aumento para o “tanto faz”, segundo dados do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Democracia e Democratização da Comunicação (INCT-IDDC)1. As taxas de apoio à democracia nunca foram especialmente altas no Brasil, mas os números se acentuaram nos últimos anos (para uma comparação com dados de outros países, ver o texto de Ciro Resende, neste livro). Por algum tempo, após a terceira onda de democratizações, regimes autoritários pareceram ser parte do passado no Brasil e em boa parte da América Latina. Se, de fato, setores da sociedade mantinham preferência por regimes autoritários, como mostravam as pesquisas de opinião, esse discurso encontrava pouca guarida nos debates públicos e nas elites políticas – indicando consistência nos regimes democráticos (Linz e Stephan,1978). 1
As duas pesquisas do INCT-IDDC têm margem de erro de 2% e índice de confiança 95%.
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Esse quadro, entretanto, sofreu alterações no Brasil contemporâneo, onde houve um retorno de expressões públicas de defesa de regimes autoritários. Em 2014, na data que marcava os 50 anos após o golpe de 1964, assessores do então deputado federal Jair Bolsonaro colocaram uma faixa no Congresso Nacional parabenizando militares pelo golpe. Pouco depois, discursos de simpatia ao regime militar ou solicitando intervenção militar foram vistos nas ruas, nos protestos a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2015, na greve dos caminhoneiros em maio de 2018, ou em manifestações que, entre outras pautas, questionavam instituições democráticas ao longo de 2020. Face a esse cenário, o presente texto analisa sentidos e práticas associados, por cidadãos e cidadãs, a termos como autoritarismo, ditadura militar e regimes não democráticos. Trata-se de temas amplos e contestados, teórica e empiricamente, cujos sentidos podem variar entre países, grupos e ao longo do tempo. Os dados são oriundos de grupos focais realizados ao longo de 2019 pelo INCT-IDDC, com o objetivo de observar a questão da adesão à democracia a partir de um olhar qualitativo. Neste capítulo, explora-se especificamente os diálogos e falas sobre regimes autoritários captados nos grupos focais. Os resultados reforçam a literatura sobre autoritarismo no Brasil no sentido de que regimes não democráticos ganham legitimidade no país associados a ideias positivas sobre segurança e ordem. Os dados trazem, ainda, um conjunto de sentidos associados à inevitabilidade de regimes não democráticos em casos de desordem, corrupção e uma sensação de que os problemas que não podem ser solucionados “na política” poderiam encontrar resoluções por outras vias. O texto divide-se em cinco seções. Primeiro, revisita debates sobre autoritarismo. Em seguida, apresenta a metodologia da pesquisa para, depois, apresentar uma síntese das discussões sobre regimes não democráticos. Volta-se, por fim, a uma análise das razões contrárias aos regimes não democráticos apresentadas por participantes dos grupos focais para terminar com breves considerações.
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1. AUTORITARISMO: NA SOCIEDADE E NO SISTEMA POLÍTICO A democracia é o grande tema contemporâneo da Ciência Política, mas seu outro – o autoritarismo – segue no horizonte, empírico e teórico. Em um continuum, totalitarismo e democracia estariam situados em opostos. No primeiro, a autoridade penetra e mobiliza praticamente toda a sociedade, qualquer pluralismo partidário é suprimido e grupos tendem a ser incorporados à estrutura de poder. Já nos regimes autoritários, o poder ainda é mantido sob alguns limites. Na tipologia de Linz, trata-se de “sistemas políticos com um pluralismo político limitado e não responsável; sem uma ideologia elaborada e propulsiva, mas com mentalidade característica; sem uma mobilização política intensa ou vasta, exceção feita em alguns momentos de seu desenvolvimento; e onde um chefe, ou até um pequeno grupo, exerce o poder dentro dos limites que são formalmente mal definidos mas de fato habilidosamente previsíveis” (Linz, 1964, apud Stoppino, 2007, p. 101). Linz (1964) incluiu os autoritarismos do Brasil e da Argentina no tipo burocrático-militar, difundido no século 20. O’Donnell (1972) diferenciou as ditaduras latino-americanas anteriores dos autoritarismos burocráticos que substituíram generais ou caudilhos por corporações militares com discurso econômico ortodoxo e, não raro, técnico. Militares angariaram apoio de setores empresariais e classes médias que deram suporte à reação ao que viam como subversões de esquerda (Wanderley, 2012, p. 144). Mais tarde, ganhou força o tema das transições (O’Donnell et al., 1988). No debate sobre a construção democrática, o projeto autoritário foi considerado latente enquanto a disputa se deslocou para os projetos democrático-participativo e neoliberal (Dagnino, Olvera, Panfichi, 2006). Essa literatura trata do autoritarismo enquanto regime e enquanto padrão de sociabilidade. No primeiro sentido, o cerne reside nas suas características de anulação da operação das instituições democrático-liberais; um estado forte, frequentemente personalista, pouco afeito às expressões da sociedade civil e a direitos políticos e seletivo em relação a direitos sociais (Dagnino, Olvera, Panfichi, 2006, p. 45-6). Como padrão de sociabilidade,
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tem raízes culturais no conjunto de códigos que hierarquizam classes e grupos na sociedade. O desafio da democratização passa tanto pela construção de instituições democráticas como pela superação do autoritarismo que permeia a sociedade. O debate sobre o autoritarismo social aproxima a ciência política de outras disciplinas, como a história, a sociologia, e a antropologia – mais atentas à presença de traços autoritários no tecido social e ao autoritarismo como ideologia – e a psicologia – que parte de aspectos individuais, mas dialoga com seus impactos na sociedade e na política. A síntese recente de Schwarcz (2019) sobre as características duradouras do autoritarismo no Brasil mantém a ênfase na identificação do autoritarismo na sociedade, por vezes apontando impactos institucionais. Escravidão e racismo estão na base do fenômeno e a violência que os constitui persiste, seja no racismo que marca a atuação das instituições no país, seja na permanente aceitação da violência e exclusão pela cor da pele. Para os propósitos desse artigo, cabe destacar o lugar que a violência ocupa no modelo de Schwarcz. Ela expressa-se no elevado número de homicídios violentos – em torno de 70% deles causados por armas de fogo – e pela presença tanto no campo como nas cidades, especialmente nas periferias. Boa parte das armas são privadas, mas o medo de sofrer agressão pela polícia assolava, em 2016, 62% da população. Medo, violência e demanda por segurança, lembra a autora, foram temas das eleições de 2018 no Brasil e vieram associados a propostas de recrudescer o policiamento e armar a população. Raça e gênero aparecem como marcadores sociais de diferença importantes no país e que condicionam a menor possibilidade de inclusão e a maior exposição à violência. Outros elementos elencados por Schwarcz são o mandonismo, que trata da força dos senhores de terras e de suas famílias que seguem com influência desproporcional na política nacional, e o patrimonialismo, que fala da apropriação do público pelo privado. Corrupção, desigualdade social e intolerância também são destacados pela autora. A psicologia enfatiza valores e crenças que embasam as preferências e propensões de cidadãos por regimes autoritários. Trabalhos recentes vêm analisando o apoio da população brasileira
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a posições autoritárias e suas relações com a crise na democracia usando a escala de mensuração de propensões individuais ao autoritarismo proposta por Adorno, a escala F. Nessa linha, e por meio de um olhar interseccional a partir de cor/raça e classe, identifica-se o medo da violência como propulsor da ativação de tendências autoritárias na opinião pública nacional (Lima et al., 2020; Filho et al., 2018). De modo geral, os debates sobre autoritarismo têm retornado por meio das análises sobre as crises democráticas. Nos anos 2000, os problemas das democracias da terceira onda geraram questionamentos às teorias lineares da transição e aprofundaram a noção de regimes híbridos, entre eles o autoritarismo competitivo – formato de degradação democrática que mantém eleições, mas não garante sua lisura (Levitsky e Way, 2010). A literatura recente sobre crise democrática segue essa linha e tem se preocupado especialmente com os processos de degradação de instituições. Levitsky e Ziblatt (2018) destacam o papel dos líderes políticos populistas na erosão democrática e é a eles que se referem os parâmetros de comportamento autoritário que podem comprometer a democracia: rejeitar as regras democráticas do jogo (ou se comprometer fracamente com eles), negar a legitimidade dos adversários políticos, retratando os rivais como uma ameaça – seja à segurança, a certos modos de vida, ou à soberania nacional –, tolerando ou encorajando a violência e, finalmente, mostrando propensão a restringir as liberdades civis dos opositores, incluindo a mídia. Mounk (2019), por sua vez, está mais preocupado com a questão dos valores democráticos: a insatisfação dos cidadãos com governos e com a performance das instituições, incluindo a erosão do apoio à democracia relacionada aos maus resultados econômicos dos países democráticos nas últimas décadas. Esse autor discute razões pelas quais cidadãos estão cada vez mais abertos a alternativas autoritárias à democracia e aponta como central a estagnação dos padrões de vida.2 Em um cenário de crescentes 2
O autor também situa como origens do mal-estar contemporâneo e fontes de instabilidade a internet – que diminui o custo de expressão e de organização política – e a
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desigualdades econômicas, as pessoas ficam em dúvida sobre seu futuro e propensas a culpar outros – imigrantes, minorias raciais – por seus problemas. Paralelamente, Mounk encontra as raízes da crise na “lenta divergência entre liberalismo e democracia”, ou entre a vontade popular, expressa através das eleições, e o Estado de Direito. Em sua abordagem, a crise das democracias liberais poderia levar tanto às democracias sem direitos quanto a direitos sem democracia. Essa abordagem, em suma, dialoga com a questão dos valores, enfatizando o enfraquecimento da adesão à democracia. Na recente literatura sobre a crise, o tema dos regimes não democráticos ganha espaço sobretudo na literatura de base crítica e feminista. Brown (2020) relaciona a crise democrática à expansão do neoliberalismo como uma racionalidade, muito mais do que como conjunto de políticas econômicas. Trata-se de racionalidade que valoriza soluções privadas para problemas coletivos. Individualizante, ela tende a corroer a cidadania e a estreitar o espaço da política até estrangulá-la, minando a possibilidade de debates democráticos. Essa racionalidade atravessa a economia, as práticas cotidianas dos sujeitos – nas escolas, empresas, hospitais, relacionamentos afetivos. Na introdução do livro “Authoritarianism: three inquiries in critical theory”, Brown, Gordon e Pensky (2019, p. 2) falam em uma “era autoritária”, ou uma “era de políticas antidemocráticas com características autoritárias”, marcada por populismos reacionários, nativismos, racismo e xenofobia, e pela demanda por políticas de exclusão. Nessa leitura sobre o autoritarismo contemporâneo, o fenômeno na sociedade tem impactos sobre a política e sobre o político-institucional na medida em que movimentos de extrema-direita demandam políticas que minam o constitucionalismo e o Estado de Direito: “A presença crescente e a legitimidade desses movimentos aumenta o risco de líderes políticos autoritários, e da erosão de elementos centrais de sociedades liberal-democráticas – igualdade, pluralismo e imprensa livre – que por longo tempo pareceram mais estáveis e duráveis do que parecem agora” (Brown, Gordon e Pensky, op. cit., p. 4). erosão da ideia de que os países eram compostos por grupos étnico-raciais mais ou menos estáveis.
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Rosanvallon (2017) percorre outro caminho teórico, mas também identifica processos que, levando a uma desconfiança negativa sobre a política, podem contribuir para a corrosão da democracia. Seu foco reside no modo como críticas de cidadãos à democracia produzem o fenômeno da contrademocracia, definida como um conjunto de poderes indiretos, disseminados no corpo social, gerando uma forma política que organiza a desconfiança por meio de poderes de controle, de sanção ou obstrução e da judicialização da política. A contrademocracia não é necessariamente um problema para a democracia, podendo contribuir para seu aprofundamento, mas pode vir a sê-lo quando se torna uma “desconfiança puramente negativa” que se desloca para o que o autor denomina “impolítica” e contribui para o apoio a regimes não democráticos na medida em que leva a uma “falta de apreensão global dos problemas de organização do mundo comum” (Rosanvallon 2015, p. 38). O termo “impolítica” é empregado por Rosanvallon para se afastar da ideia de que o risco à democracia está na despolitização ou a passividade dos cidadãos. Ao contrário, os cidadãos são ativos o suficiente para organizar a desconfiança na democracia em poderes de controle; isso só passa a ser problemático quando a distância entre sociedade civil e instituições torna-se tão ampla que chega a “dissolver as expressões de pertencimento a um mundo comum” (Rosanvallon, op. cit., p. 39). Em paralelo, um conjunto crescente de trabalhos vem buscando compreender como, em seus próprios termos, cidadãos discutem temas relativos à democracia. Saunders e Klandermans (2020) usaram grupos focais em oito países para entender em que termos os cidadãos discutem política. Vinculados ao mesmo projeto, Penna, Rosa e Pereyra (2020) discutem como voto e protesto são articulados por cidadãos e cidadãs do Brasil e da Argentina. Os sentidos em torno do autoritarismo e dos regimes não democráticos, porém, são menos estudados. Esse texto busca, justamente, contribuir para preencher essa lacuna. 2. METODOLOGIA: GRUPOS FOCAIS A realização de grupos focais no interior da pesquisa A Cara da Democracia no Brasil, do INCT-IDDC, insere-se no esforço de
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compreender os desafios da democracia brasileira e busca, especificamente, produzir dados sobre os usos, sentidos, justificativas e insatisfações em torno da democracia e seu funcionamento. A partir desses dados, pretende-se obter modos de abordar a partir de ângulos qualitativos as grandes linhas apontadas pelas pesquisas de opinião pública realizadas pelo instituto. Não se trata de sobreposições diretas entre dados produzidos sob pressupostos teórico-metodológicos distintos, mas da reunião de abordagens diferentes para o mesmo problema que contribuam para a qualificação e interpretação de dados provenientes de outros métodos. Em pesquisas de métodos mistos, os grupos focais podem prover interpretações para os achados quantitativos (Bloor et al., 2001, p. 11-12). A análise aqui apresentada busca articular falas individuais dos participantes com interações por meio das quais as pessoas explicitam pontos de vista, constroem explicações e, por vezes, negociam sentidos e chegam a redefinições. O artigo analisa trechos de 13 grupos focais realizados no Brasil entre maio e dezembro de 2019. Trata-se de cinco grupos de perfil participativo (participação em conselhos, movimentos sociais e associações assistenciais), cinco grupos de pessoas sem histórico de participação, e dois grupos mistos. Os grupos trazem ainda variações de idade (maioria ou totalidade de participantes jovens ou adultos) e renda (média alta e média baixa). Dentro das possibilidades e recursos de pesquisa, buscou-se ampliar as fontes de dados regionalmente com a inclusão de uma cidade de porte médio do Norte de Minas Gerais (Montes Claros) e de capitais do Sul (Porto Alegre) e Sudeste do país (São Paulo e Belo Horizonte). Os critérios buscaram garantir heterogeneidade entre os grupos, mas manter alguma homogeneidade interna, com vistas a facilitar um ambiente de confiança no qual se sentissem à vontade para expressar opiniões. O caráter não amostral, aliado ao perfil interpretativo do trabalho possibilitam a construção de hipóteses a partir de lógica abdutiva, que parte do conjunto de dados para observar a multiplicidade do fenômeno em questão (Yanow e Schwartz-Shea, 2014). Trata-se de produzir “insights empiricamente informados” que, mesmo incapazes de produzir generalizações, permitem
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compreender sentidos que podem subsidiar outros esforços de pesquisa(Mendonça, 2018, p. 11-12). Ainda entoadas com as preocupações metodológicas de pesquisas interpretativas, cabe explicitar as condições de realização dos grupos. No Brasil, a pesquisa foi apresentada como iniciativa do INCT, com sede na UFMG. A equipe de mobilização recebeu negativas dos convites por pessoas que afirmaram identificar a universidade como local “da esquerda”. Face a isso, buscamos estratégias para acesso a grupos de diferentes perfis ideológicos a partir de convites realizados por pessoas intermediárias que abriram portas para alguns convites. Assim, os grupos foram realizados em universidades pública (Belo Horizonte) e privada (São Paulo), na sede de um grupo de pesquisa fora do campus universitário (Porto Alegre), em hotel (Montes Claros) e na sede de uma organização comunitária a 20km do centro (São Paulo), o que nos garantiu acesso a jovens de renda baixa. Todos os debates foram transcritos e codificados. O corpus analisado no presente trabalho refere-se a trechos categorizados como “apoio a regime não democrático”, que agrupou falas e debates nos quais se discutia possibilidades e justificações para tal. Na próxima seção, discute-se alguns dos resultados da pesquisa desenhada com tal metodologia. O estímulo aos debates sobre o tema que nos interessa nesse artigo ocorreu em dois momentos. Na primeira parte, voltada a definições gerais de democracia, perguntou-se o que achavam da afirmação que, “em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um democrático”, e em que circunstâncias. Na segunda parte, o debate voltava-se para o funcionamento da democracia no Brasil e a questão referia-se a justificativas para um golpe militar, agora com detalhamento de circunstâncias (corrupção, crise econômica, crise política, alto desemprego, protestos sociais, insegurança). 3. DISCUTINDO REGIMES NÃO DEMOCRÁTICOS Esta seção tem como objetivo discutir em que termos cidadãos e cidadãs comuns trataram, nos grupos focais, de regimes
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alternativos à democracia, sejam eles definidos como regimes autoritários, militares ou não democráticos. Que sentidos e práticas são associados a eles? Em todos os grupos, a maioria das reações foi negativa à possibilidade de renunciar à democracia. A grande maioria das respostas foram taxativas no sentido de que não trocariam nem em condições hipotéticas, nem considerando a situação brasileira especificamente. As perguntas detalhadas sobre as circunstâncias, porém, permitiram – como se esperava3 – um debate mais solto sobre o tema e nelas participantes apontaram características, vantagens e desvantagens de regimes não democráticos, ou condições em que ele lhes parecia inevitável, por vezes concordando diretamente com elas, por vezes apresentando argumentos de pessoas conhecidas. Neste texto, analisa-se quais termos os participantes dos grupos focais mobilizaram para se referir a regimes não democráticos. Três temas se destacaram nos debates pela recorrência – é neles que nos concentramos. Segurança e ordem foram o principal, seguido por referências à capacidade de regimes autoritários de resolver impasses ou problemas complicados – que aqui denominamos “resolutividade”. Por fim, aparece a ideia de que em certas situações regimes não democráticos são inevitáveis, inexoráveis. Esse conjunto de argumentos compartilha de uma raiz comum, a percepção de que algumas questões não podem ser resolvidas na política – nas negociações, mas também pelas instituições democráticas –, seja porque os canais não funcionam, seja porque se requer força e autoridade para repor a ordem ou tomar decisões incisivas. Estão conectados, portanto, às questões da impolítica. Trata-se, como apresentado na seção teórica, da percepção de que os problemas do mundo comum, não podendo ser resolvidos pelos caminhos das instituições democráticas, podem 3
Boa parte dessas conversas foi propiciada não pela pergunta direta sobre se trocariam o regime democrático por outros, mas por questões que especificavam em quais condições isso poderia acontecer. Confirmam, assim, a relevância do conceito de compromisso democrático (Casalecchi, 2016), para além das perguntas diretas sobre preferência que, não raro, esbarram numa percepção da população sobre a desejabilidade do discurso sobre a democracia.
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abrir caminhos para a aceitação de regimes não democráticos que, por sua vez, são associados à força e à capacidade de tomar e implementar decisões. Por outro lado, dada a resistência expressa por boa parte dos participantes dos grupos a regimes autoritários, também serão analisados falas e diálogos que apresentam razões para a não aceitação de regimes não democráticos. A comparação entre os dois conjuntos é útil porque indica como, ao defender a democracia, suas instituições são mobilizadas (em contraste, quando se fala de autoritarismo elas estão ausentes ou subentendidas, indicando que as justificativas passam por outras redes de sentidos). Como registro de outros debates, ainda, cabe elencar outros temas menos recorrentes: corrupção foi mencionada algumas vezes como um fato sem que tivesse gerado grandes debates sobre porque ocorre e como funciona, e aparecerá nessa análise vinculada aos temas acima. Ela aparece também identificada com justificativas “dos outros” para apoiar regimes não democráticos. Quando mencionavam as justificações de outras pessoas para apoiar regimes não democráticos, houve menções à falta de compromisso dos políticos em manter conexões contínuas com o eleitorado, que acaba transferindo problemas como esse a sua percepção sobre o regime democrático. Ambos reforçam, então, as falhas da democracia. Outros itens mais pontuais passaram pela crítica ao apoio à ditadura, considerada falta de informação ou saudosismo – este um termo repetido em vários grupos. 3.1. Inexorável A ideia de regimes não democráticos como algo inevitável foi repetida em alguns grupos – ou tratando do autoritarismo como algo já em curso, ou como algo inexorável. Trata-se de falas que apontam para situações em que regimes autoritários ganham vez não pela vontade das pessoas – pois o ideal é a democracia, afirmam –, mas pela percepção de que não há outra solução, dado o conjunto de problemas da democracia, incluindo a corrupção e as dinâmicas dos partidos. Nessas falas há uma certa crítica aos problemas de funcionamento das instituições democráticas
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– com menções a partidos, à influência econômica ou a desigualdades de condições para a participação nas eleições. Porém, a abertura para regimes não democráticos não chega a mencionar a ruptura com instituições da democracia. Aponta-se o mau funcionamento das instituições, mas não se deriva daí o argumento por outro regime; ao contrário, constrói-se uma ideia de que “outra saída” é inevitável. Também de modo dissonante em relação à literatura especializada na área, não está presente nas conversas captadas nos grupos focais qualquer ideia de anulação da operação das instituições democráticas, nem de rompimento com liberdades individuais. 01: Eu também entendo que é o melhor sistema de governo é o democrático, eu não tenho dúvida disso. O problema é a prática dessa democracia, é um problema político que eles vão dominando, e todo mundo fala que o Brasil ainda é uma criancinha, a democracia começou há tão pouco tempo. Mas a bandalheira que tem dentro dessa democracia é muito alta, se não tiver um basta nisso vai chegar um ponto que não tem mais solução. E vamos esquecer o lado partidário, PT, PMDB, o todo é uma corja de bandidos, todos querem levar vantagem, todo seja do PT, PSDB, eu entrei ali eu vou levar vantagem. É muito simples a gente fazer uma conta, quanto fica uma campanha de um deputado, vocês já fizeram as contas? (BH3)
Temos nesse trecho alguém que tem engajamento em organizações assistenciais, tem interesse na política e tentou candidatar-se, mas, tendo visto a força do poder econômico sobre o processo eleitoral e com uma visão bastante negativa dos políticos – uma corja –, chega a duvidar da possibilidade de se encontrar soluções democráticas para os problemas. Aqui, usando os termos de Rosanvallon, a desconfiança da democracia ganha contornos negativos tão fortes que acaba corrompendo o apoio ao regime. A afirmação guarda semelhanças com o diálogo a seguir, no qual um membro do grupo focal afirma que a corrupção desestabiliza a democracia a ponto de a população ter de aceitar um governo militar – não por preferência, mas porque não há outro caminho. No mesmo diálogo, outras possibilidades emergem em
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torno da ideia de que uma eventual sublevação popular (em contexto de fortes desigualdades na vida “do povo”) gere tanta instabilidade que seja necessário um regime autoritário para contê-la. NÃO IDENTIFICADO 2: está sendo obrigado a aceitar... mas tá acontecendo isso, já tem muita corrupção de mais, de mais e já tá vindo um governo militar e a gente tem que aceitar e viver. Infelizmente. NÃO IDENTIFICADO 2: Eu não concordo, mas não abriria mão [da democracia], porém pode chegar um dia de ter um caso extremo de ter mesmo na política. Mediadora: Tipo o que? NÃO IDENTIFICADO 2: Sei lá, talvez muita desigualdade, muita guerra. Porque um dia o povo vai se revoltar, um dia vai. Pode demorar muitos anos, mas um dia vai se revoltar. Isso vai causar uma confusão do caramba. Aí eu acho que eles vão ter que tomar uma providência, e a providência é isso, colocar um governo autoritário que serão eles mesmo. Mas eu não concordo. Mediadora: Tá, deixa eu ver se eu entendi, então você também acha isso? Se chegar nesse extremo, seria uma solução um governo militar? 03: Não, pra mim só se acontecer alguma coisa que eles possam resolver e política, eles não resolvem política. Não tem nada a ver com eles. Pelo menos eu penso assim, eu acho que se for alguma coisa de guerra assim, deveria entrar. Mas fora isso, eu acho que não. (SP3)
Esse diálogo traz um entendimento de que alguns temas podem não conseguir ser resolvidos “na política” – nas negociações, nos espaços da política –, o que abre espaço para soluções não democráticas, sobretudo em situações de desigualdade e guerra ou sublevação popular. No diálogo, associa-se uma ruptura com a democracia com uma enorme insatisfação com a desigualdade que levaria a uma reação popular, mas também a coisas que a “política” não possa resolver. Estão presentes em conversas desse
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tipo alguns dos elementos centrais do autoritarismo social: a desigualdade que deságua em violência, mas sobretudo a violência em si – “muita guerra”. A ideia de que regimes não democráticos são inexoráveis – seja pelos problemas da democracia, seja para conter situações de insurreição popular, seja pela omissão dos cidadãos – pode ser entendida como uma percepção de que a democracia é de fato desejável, mas não factível, ou como um modo de se afastar de afirmações diretas (e socialmente indesejáveis) de apoio a um regime não democrático. De uma ou outra maneira, importa o fato de serem permeadas pela ideia – exposta com nitidez acima por um jovem – de que tais soluções implicam uma saída do campo da política, no sentido de Brown e de Rosanvallon. A julgar pela relevância do tema da segurança nesses diálogos, a saída da política abre espaço justamente para a força. Esse é o tema da próxima seção. 3.2. Segurança e ordem A ideia de segurança foi recorrente, e o termo foi usado em dois grandes sentidos: no mais comum, associada à segurança pública que garante baixa criminalidade e gera segurança individual, por sua vez atrelada à possibilidade de ir e vir sem medo. A segurança foi, paralelamente, associada à percepção de estabilidade, de proteção por uma instituição tradicional como a militar. A ideia de ordem é correlata, mas não idêntica, sendo relativa à presença de líderes fortes ou à instituição militar, identificados com a capacidade de restaurar o funcionamento correto da sociedade. Em um grupo de jovens de classe média baixa, o tema da ordem foi amplamente debatido. A ideia central de um dos jovens repetia a questão da inexorabilidade, mas a associava ao problema da violência. Em caso de problemas insolúveis, em especial de ameaça à vida, criminalidade ou corrupção generalizadas, um governo militar seria aceitável. Porém, apenas se fosse temporário, para evitar que se perdesse a liberdade conquistada com a democracia, e valorada como positiva. Seria, a partir dessa ruptura, possível “começar do zero, construir a democracia”. Tem-se aqui uma narrativa que merece atenção e que pode estar na base do
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crescimento do apoio a regimes autoritários: a de que governos não democráticos poderiam vir para colocar a casa em ordem, para depois, simplesmente se retirarem de cena. No mesmo diálogo, surgiu a ideia da necessidade de um dirigente que demonstrasse força, à altura do desafio de retomar a ordem, em um tipo de comentário que reproduz a associação de regimes autoritários com o uso da força e o domínio da violência. O tema, porém, causou controvérsia, e outros participantes argumentaram contra, duvidando da concentração do poder em uma pessoa, levando aquele que havia proposto o tema a mudar de ideia. Em outro debate entre jovens, nesse caso universitários, o tema da força também esteve presente, agora no contexto de tentarem entender por que outras pessoas preferem governos não democráticos. 08: É a história do mundo, ela foi pautada no militarismo, eu acredito, sabe? Eram guerras o tempo todo... naquela época era necessário, de certa forma. Antigamente, muito antigamente... o mundo começou, as sociedades, elas se instituíram na base da espada mesmo. Mas, criou-se uma ideia de heroísmo nas forças armadas que não vem de hoje, por exemplo, sei lá, Esparta, que era uma cidade de guerreiros, depois conseguiu dominar Atenas, e tal. Então, essa ideia de ser guerreiro sempre foi algo muito aclamado por todos, em todas as épocas. Quando a República brasileira, ela foi instaurada, era até chamada de república da espada. Foram militares que fizeram isso, totalmente sem proposta, simplesmente é... a gente pode ter os primeiros anos da república como algo sem [inaudível], mas que por ser por militares, por figuras... a gente criou é... imagens, imagens, a gente criou imagens, ídolos, ídolos, essa palavra que eu queria, a gente criou ídolos, de que o militar é um ídolo. Então essa imagem de ídolo, ela vem desde o início da República brasileira, e vem desde muito antes em todos os governos. Então assim, a ideia do militar como algo pra aumentar território, é... construir uma nação forte, antigamente uma nação forte era uma nação com poderio militar, e isso veio, a gente teve uma república pautada nisso, e atualmente quando... toda vez que uma estrutura se abala, a intenção das pessoas é sempre remeter ao passado que tinha antes de... guerra. (MC2)
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Engajando-se no argumento, nesse grupo um diálogo associou uma visão positiva dos militares ao patriarcado à ideia de virilidade e de que são “homens de verdade”. Os participantes demonstravam não concordar com essa ideia, mas um deles relatou tê-la ouvido de colegas de trabalho. 09: (...) igual eu vejo esses caras que eu falei que trabalharam comigo, eles falavam, falavam assim “não, porque lá tinha homem de verdade. Geisel, Geisel era homem de verdade! Tinha que resolver um negócio, se precisava ele pegava um fuzil e ia pra lá...”. Ele nem fazia isso, porque eles eram generais, general não vai ficar lá dando tiro, isso é... viajou. Mas na cabeça deles era assim, tipo assim, os caras era[m]... sabe? 10: Viril (MC2)
No segundo sentido, a segurança passa pela sensação de controle por lideranças fortes e capazes de oferecer a sensação de que têm domínio da situação e de representarem “a ordem, a hierarquia e a disciplina”, como mostra o trecho a seguir. 10: Eu acho o seguinte pelo que eu percebo, essa escolha de ditadura, tanto civil como militar, ela cai num sentido assim de que muitas pessoas tem essa necessidade de um certo paternalismo em relação ao governo, o governo tem que resolver os problemas, tem que ser eficiente, e elas centralizam na figura de um ditador, de um ditador de direita ou de esquerda, a solução para o problema delas, a solução para o pobre, para o que ele quer trabalhar pra ganhar e sobreviver, mas a política é um privilégio ainda. As pessoas que tratam de política parecem que a política não é algo feita para os mais pobres, ela é feita para ser debulhada entre a elite, e de certa forma isso ainda se manifesta. Mas o que eu penso é o seguinte, que a ditadura ele é um reflexo dessa necessidade das pessoas terem sob controle suas vidas e o governo num alinhamento certo pra resolver o problema das pessoas. Porque por exemplo, eu tenho amigos e familiares que apoiam diretamente que ditadura volte, que a ditadura militar volte, porque elas têm confiança na instituição militar, a instituição militar tem muitos adeptos, muita confiança porque ela é símbolo de ordem, de hierarquia de disciplina, isso faz com que elas enxerguem essas instituições como fontes de se apegar,
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porque isso faz com que elas confiem nessas instituições, elas são tradicionais, entendeu. Então o que acontece, a crise das instituições políticas, dos partidos, ela reflete na santicidade dos militares começarem a avançar. [...] (POA 4)
Os diálogos e falas dos grupos focais que aproximam regimes autoritários com o tema da segurança reforçam um dos elementos centrais da literatura sobre autoritarismo, seja entendendo o Brasil como uma sociedade inerentemente violenta (Schwarcz, 2019), seja porque o medo da violência aparece como propulsor de tendências autoritárias na opinião pública nacional (Lima et al., 2020; Filho et al., 2018). Nos estudos da psicologia política, trata-se de uma troca entre liberdade e segurança (Bernal, 1982, apud Lima et al., 2020). Na ciência política, há apontamentos sobre como desigualdade social acirra a insegurança e, na medida em que o Estado mostra-se incapaz de garantir a segurança, “coloca em risco seu monopólio sobre a violência e promove a alienação daqueles já desprovidos dos direitos de cidadão” (Reis e Cheibub, 1993). Essa última análise do início dos anos 1990 falava de um país de recente transição democrática e em forte crise econômica, mas associa certa diminuição da esfera pública e a dificuldade do Estado em manter a ordem, prover segurança e promover coesão social como elementos importantes do descompasso entre sistema político e sociedade (p. 237). Essa articulação, que ali aparecia quase incidentalmente, ganha centralidade quando o ponto de partida são as associações apresentadas pelas pessoas comuns. 3.3. Resolutividade A citação acima trata do controle, mas aponta também a ideia de que regimes não democráticos podem ser capazes de tomar decisões e efetivá-las de forma mais rápida (“resolver o problema das pessoas”), pois passam por menos níveis de controle e supervisão. A questão da resolutividade está associada à capacidade de um regime autoritário oferecer soluções céleres a problemas, sejam
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individuais ou coletivos. A capacidade de resolução apareceu atrelada à existência de pessoas com autoridade mais forte (“manda e obedece”) ou de uma menor burocracia (um sistema de controles que torna as decisões mais lentas). Sem os controles democráticos, as decisões podem ser tomadas mais rapidamente. Aqui, então, as instituições democráticas aparecem mais diretamente, mas são associadas à lentidão e à ineficiência. No contexto de algumas das falas, isso não significa que os participantes aprovam tais ideias, dado que apontam possíveis problemas nessas saídas, porém eles deixam visível um argumento repetido em alguns grupos sobre a capacidade de decisão quando é centralizada. 11: Facilidade de fazer as coisas, quando alguma coisa acontece, ao contrário da forma como a gente tem ela é demorada. Eu trabalhei com licitações e são muitas amarras até tu conseguir viabilizar uma compra, um contrato, um serviço, porque se tu não tem as amarras o cara vai lá e contrata o melhor amigo dele e paga um caminhão de dinheiro, pega um pouco para ele. No autoritarismo é simples, manda e a coisa acontece. A democracia tem essa série de controles, e contrapesos, enfim. Mas, mais uma vez, tu está supondo que quem está no poder é do bem e te representa e é bom que ele faça tudo rápido, mas e se não for. (POA1) [...] 12: Fazendo uma de advogado do diabo, teoricamente teria menos burocracia, mas teoricamente, mas foi o que vocês falaram, menos burocracia para quem? Você vê na Rússia que não é uma, teoricamente é uma democracia, mas o Putin é os amigos dos amigos dos amigos que ficam mais ricos e tem os grandes fazendeiros e tudo mais e o cara está tendo uma aprovação máxima, todo mundo está sempre feliz. E você vê que de em quando tem um protesto pelos direitos dos gays, os direitos jornalistas, jornalista lá some como se fosse uma beleza né. E é complicado, e eu acho que não tem motivo, você vê agora com Brexit que o Boris Johnson tentou tirar o parlamento para poder passar o Brexit na marra, caramba, não tem sentido isso, sabe. (POA1)
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No debate do grupo, a ideia de que uma das bases para o apoio a um regime autoritário é a sua capacidade de tomar decisões e de dar ordens, sem passar por um sistema de contrapesos, ecoou em outras falas, de participantes que se empenharam em destacar como a falta de freios democráticos pode levar a práticas de corrupção, de repressão e violência. Assim como no caso da percepção de regimes autoritários como inexoráveis, também aqui há elementos que apontam para a associação desses regimes com soluções que passam ao largo da política – das negociações, da necessidade de ouvir argumentos e passar por controles –, mas que exatamente por isso podem ser mais céleres. Esse diálogo aponta, ainda, outra tendência visível nos grupos que discutiremos a seguir: até aqui pouco se associa o autoritarismo diretamente à ruptura das instituições democráticas e a direitos, temas que aparecem com força quando se busca motivos para defender a democracia. É disso que tratará a última seção desta análise. 4. RAZÕES CONTRA REGIMES NÃO DEMOCRÁTICOS Quando nas interações participantes apresentaram argumentos contra os regimes não democráticos, emergiram três grandes temas: a falta de instituições que impeçam diversas formas de abuso de poder, a falta de instituições que evitem a violência que acompanha regimes autoritários, e a falta de liberdade de opinião. Trata-se, ao contrário do que se viu no item anterior, de justificações relacionadas diretamente à institucionalidade democrática. Questões relativas a instituições democráticas que foram mencionadas especialmente em Porto Alegre apareceram sobretudo em grupos de pessoas sem histórico de participação. Foram citados, nessas conversas, temas como a existência de eleições regulares – que aparecem sobretudo como possibilidade de escolher os candidatos via voto e aceitar os resultados mesmo que sejam contrários à própria preferência – e a própria existência de partidos: 13:Por pior que seja a democracia, é melhor ter um outro partido que qualquer fim [da democracia]. (POA4)
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No trecho a seguir, tem-se um exemplo da articulação entre um regime ditatorial e a apropriação do Estado por uma liderança autoritária, que mina tanto as práticas cidadãs como a democracia como um todo. 17: E o problema que eu vejo também da ditadura é uma questão de apropriação do Estado, de patrimonialismo, porque o governante ele vai tratar o Estado como um bem particular dele, e eles acabam com a ideia de coisa pública, de cidadania, de construção do Estado, da sociedade como uma coisa. A sociedade e o Estado se tornam algo pertencentes àquele ditador, e tu acaba com noção de democracia, o ditador tem autoridade sobretudo e a democracia nesse sentido... tu pode escolher um outro governador como acontecia na época da ditadura, mas tu não tem uma construção sólida de democracia, aí. Tu tem a apropriação do estado. (POA2)
A questão da violência aparece nos diálogos com dois sentidos, o principal deles relativo à violência perpetrada pelo Estado, reforçando a imagem de governos autoritários como violentos. Mesmo quando se considera a violência policial sob as democracias, em regimes autoritários ela tenderia a ser mais forte – entende-se que pela anuência dos governantes a tais práticas. Outro sentido, ainda, é o da reação à ideia de que haveria maior segurança em regimes autoritários. 18: Porque lá se tu não faz nada errado tu está seguro, mas quem define o que é certo e o que errado? [todos concordam] (POA1)
Por fim, o tema mais levantado entre os grupos de pessoas com histórico de participação foi a questão da liberdade de opinião sob regimes autoritários. Enquanto a democracia precisa lidar com a dificuldade de “ouvir” e “pesar” os argumentos, em um governo autoritário isso não ocorre. 19: É até por que nós aqui somos pessoas participativas, contestadoras, opiniáticas. Eu jamais ia querer viver em uma ditadura, porque eu não ia poder falar nada, (POA4).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS As definições de regimes autoritários passam pela falta de instituições democráticas, restrições aos direitos sociais, civis e políticos, enquanto as análises sobre o autoritarismo disperso na sociedade e as propensões autoritárias focam em códigos culturais que dão suporte ao autoritarismo. No entanto, quando os cidadãos e cidadãs discutem o tema, ele aparece associado a sentidos que apontam sobretudo para questões da segurança e da ordem, da capacidade de tomar decisões e dar resolução a problemas difíceis. Nessas falas, elementos propriamente institucionais por vezes aparecem na menção a normas, a partidos políticos e a eleições, mas não esteve presente, nos grupos focais analisados aqui, uma percepção de que se trata de rupturas incisivas com as instituições democráticas, ou que impõem limites às expressões da sociedade civil. Regimes autoritários aparecem relacionados a líderes fortes, mas a força aqui tem uma conotação positiva. Em contraste, quando pessoas comuns apresentam razões contrárias a regimes não democráticos, a falta das instituições básicas da democracia se mostra importante, contendo diversos aspectos. Um deles foi a ausência de eleições, relacionado à impossibilidade de alternância no poder e da concorrência entre partidos – que impelem políticos a realizar boas administrações e evitam o acúmulo de poder “na mão de poucos”, como disse um participante de Porto Alegre. Outro eixo, dentro do mesmo tema, foi a possibilidade de apropriação do Estado por grupos específicos, abuso de autoridade e, em relação aos militares, tendência à burocratização e à falta de mecanismos de prestação de contas. Em um único grupo, de jovens participativos, apareceu o fechamento do congresso como uma característica de líderes autoritários. As justificações para regimes não democráticos passam pela ideia geral de que são aceitáveis – ou inevitáveis – em situações nas quais problemas não conseguem ser superados “na política” – no diálogo e negociação, mas também pelos atores políticos tradicionais. Há elementos visíveis da associação entre percepções de espaços da política como restritos, uma percepção da corrosão do mundo comum, e sua relação com a abertura a elementos de
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força e violência – reforçando o que diz a literatura sobre como as bases do autoritarismo se espalham na sociedade. Se os problemas do mundo comum aparentam ser insolúveis nas negociações e nos espaços da política, o autoritarismo volta a se apresentar como uma solução possível. Pelo menos desde a década de 1980, no Brasil, o autoritarismo vinha sendo associado à ruptura com direitos políticos, à ameaça às liberdades pessoais e à violência impetrada pelas forças do Estado contra quem questionava o governo. As falas das pessoas participantes dos grupos focais aqui analisados mostram que, em 2019, essa associação está – no mínimo – em disputa, na medida em que, nos diálogos, emergem sentidos positivos relacionados ao autoritarismo. Regimes autoritários aparecem como capazes de mobilizar a força e a autoridade incontestada para restaurar a ordem perdida – um tema clássico do autoritarismo como ideologia – ou devolver a tranquilidade a pessoas que se sentem inseguras. Também é apresentada como positiva sua capacidade de tomar decisões e de impô-las. Mais preocupante ainda talvez seja a visão de alguns jovens de que um regime não democrático pode vir, colocar o país em ordem e se retirar em seguida. Os dados, ainda que limitados, apontam para a hipótese de uma mudança no conjunto de valores associados ao termo. Algo que precisa ser tratado de forma direta e incisiva para forças interessadas em resguardar valores e instituições democráticas. REFERÊNCIAS Barbour, Rosaline; Kitzinger, Jenny (1998), Developing focus group research. Politics, Theory and practice. London: Sage. Bloor, Michael; Frankland, Jane; Thomas, Michelle; Robson, Kate (2001), Focus groups in social research. London: SAGE Publications. Brown, Wendy (2019), Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politeia. Casalecchi, Gabriel Ávila (2016), Legado democrático e atitudes democráticas na América Latina: efeitos diretos, indiretos e condicionais. Tese (Doutorado). Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Dagnino, E.; Oliveira, A. J.; Aldo Panfichi (2006), A disputa pela construção democrática na América Latina. Campinas e São Paulo: Unicamp e Paz e Terra. Lavor Filho, Tadeu et al. (2018), “Análises Interseccionais a Partir da Raça e da Classe: Medo do Crime e Autoritarismo no Brasil”. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), p. 223-237.
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