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Portuguese Pages [568] Year 2021
Contra o mundo moderno
TROTZDEM
Against the modern world
Mark Sedgwick
© Editora Âyiné, 2020
© Oxford University Press 2004
Todos os direitos reservados
Tradução: Diogo Rosas G.
Preparação: Ana Martini
Revisão: Andrea Stahel
Projeto gráfico: Luísa Rabello
Conversão para epub: Cumbuca Studio
ISBN: 978-65-86683-43-1
Âyiné Belo Horizonte, Veneza
Direção editorial: Pedro Fonseca
Assistência editorial: Érika Nogueira, Luísa Rabello
Produção editorial: André Bezamat, Rita Davis
Conselho editorial: Simone Cristoforetti, Zuane Fabbris
Praça Carlos Chagas, 49 – 2º andar
30170-140 Belo Horizonte – mg
+55 31 3291-4164
www.ayine.com.br
[email protected]
Gira e gira no vórtice crescente Não escuta o falcão ao falcoeiro; As coisas vão abaixo; o centro cede; Mera anarquia é solta sobre o mundo, Solta a maré de sangue turva, afoga-se Por toda parte o rito da inocência; Falta fé aos melhores, já os piores Se enchem de intensidade apaixonada. William Butler Yeats, «A segunda vinda»I
I Turning and turning in the widening gyre/ The falcon cannot hear the falconer;/ Things fall apart; the centre cannot hold;/ Mere anarchy is loosed upon the world,/ The blooddimmed tide is loosed, and everywhere/ The ceremony of innocence is drowned;/ The best lack all conviction, while the worst/ Are full of passionate intensity. William Butler Yeats, «The Second Coming». Tradução de Adriano Scandolara in Eutomia, Revista de Literatura e Linguística vol. 1, n. 11 (jan./ jun. 2013), p. 548. [N. T.]
PREFÁCIO
Este livro é uma biografia de René Guénon e uma história do movimento Tradicionalista fundado por ele, dois temas quase desconhecidos no mundo exterior. Em janeiro de 1996, quando comecei a pesquisa em que se baseia este livro, eu tinha lido um dos livros de Guénon, mas não fazia ideia da importância do autor, ou de que existia algo como um movimento Tradicionalista. A fim de ajudar a orientar o leitor, o livro começa com um prólogo que compartilha partes de minha própria jornada de descoberta de maneira mais ou menos impressionista e com algumas das identidades ocultadas. O restante do livro conforma-se aos padrões normais da academia e responde à maior parte das questões levantadas no prólogo. O próprio Tradicionalismo é definido no capítulo 1. Uma vez que este livro é uma história de René Guénon e dos Tradicionalistas, ele segue os eventos a partir do ponto de vista deles. Em primeiro lugar, o próprio Guénon é colocado no centro do palco, acompanhado daqueles que, de uma maneira ou de outra, vieram a segui-lo. Essa posição central pode dar a impressão de exagerar a importância histórica dos Tradicionalistas, mas são eles próprios que constituem o objeto deste livro, não os períodos e países em que viveram. O movimento Tradicionalista nunca foi estudado de maneira sistemática antes. Assim, meu primeiro objetivo foi o de estabelecer o que era, quem pertencia a ele, além de como e o que faziam essas pessoas. Há uma certa avaliação da importância do Tradicionalismo em contextos mais amplos, mas esse não é o meu principal objetivo. Um estudo de um movimento tão amplo quando o Tradicionalismo apresenta algumas dificuldades organizacionais para um historiador, especialmente porque ele se dividiu em vários ramos e, depois, subramos, todos prosseguindo de maneira mais ou menos independentes uns dos outros. A necessidade de seguir
desenvolvimentos em várias esferas diferentes torna impossível a adoção de uma ordem estritamente cronológica. Meu princípio, portanto, foi com frequência o de adotar uma abordagem parcialmente temática, seguindo os desenvolvimentos até suas conclusões, mesmo quando isso exigiu mais tarde uma volta no tempo para retomar acontecimentos anteriores de outro tipo. Essa abordagem causará, por vezes, algumas sacudidas na cronologia, mas espero que o leitor se mantenha firme. Algumas outras advertências são necessárias. Toda história é, em certo grau, uma obra de reconstrução. No entanto, devido à novidade do tema, ao caráter sigiloso envolvendo a maior parte da atividade Tradicionalista e à necessidade de algumas pessoas de manter silêncio a respeito de suas atividades durante o período do fascismo europeu, algumas seções deste livro dependem mais de conjecturas do que seria normal. As bases para minha reconstrução são sempre fornecidas nas notas, mas o texto principal geralmente apresenta a conclusão dessa reconstrução, e não o processo para chegar até ela. Algumas das jornadas feitas para este livro conduziram-me a um território intelectual considerado por muitos como além do aceitável, a paisagens marcadas por características como antissemitismo, terrorismo e fascismo. Chegaremos até mesmo a visitar brevemente as SS na Alemanha nazista. À medida que os leitores me acompanham por semelhante território, peço-lhes que se recordem de que o fato de não condenar explicitamente uma ideia ou prática não significa que eu a aprove. Na maioria das obras de história, isso nem precisaria ser dito. Ninguém suporia que escrever sobre Robespierre implica apoio ao Terror, e é possível escrever sobre teoria marxista sem a expectativa de que se condenem repetidamente as atividades da OGPU e da NKVD. Não vejo razão para que não se escreva sobre outras teorias nas mesmas bases, e é isso o que faço aqui. Quando visitarmos as SS, estaremos na companhia do barão italiano Julius Evola, um importante Tradicionalista, e veremos a organização através de seus olhos — como uma corporação com possibilidades interessantes. Tal abordagem não deve dar a entender que eu enxergo as SS do mesmo modo. Eu não as enxergo assim.
Dado que uma das mais importantes fontes de informação usada neste livro é a internet, é apropriado que haja um site a acompanhar o livro, traditionalist.org, que traz informações atualizadas, fotografias, cópias de alguns documentos originais, bibliografias Tradicionalistas e links para sites Tradicionalistas. Qualquer leitor capaz de expandir, elucidar ou corrigir algum aspecto do livro está convidado a visitar o site e me enviar um e-mail. O site contém também material voltado primariamente para pesquisadores. Ao escrever um livro com um escopo tão amplo quanto este, tive de entrar em diversas áreas onde, academicamente, não tenho muito direito de estar. Fiz o possível para compreender o pano de fundo das atividades Tradicionalistas em diversas áreas e eras, mas não alego ser um especialista em todos os lugares e períodos cobertos no livro. Além disso, tenho uma dívida maior do que a normal com diversos colegas por suas sugestões, ajuda e comentários. Em especial, gostaria de agradecer a Boris Falikov, H. T. Hansen, Klaus Kreiser, Jean-François Mayer, Shahram Pazuki, Bryan Rennie, Ottavia Schmidt, Stephen Shenfield e Pier Luigi Zoccatelli, além dos acadêmicos franceses que me ajudaram, especialmente Jean-Baptiste Aymard (que foi muito prestativo a despeito de seu desacordo com muitas de minhas interpretações), Jean-Pierre Brach, Stéphane Dudoignon, Antoine Faivre, Jean-Pierre Laurant, Bernadette Rigal-Cellard e Thierry Zarcone. Gostaria de agradecer igualmente a todos os outros que ajudaram este projeto com sugestões, entusiasmo ou ambos: a Universidade Americana no Cairo, por uma bolsa que possibilitou minha pesquisa no Marrocos e no Irã; a Russel Sender, advogado do escritório Goldman Sender, e a Cynthia Read, minha editora na Oxford University Press, por seu apoio e senso de humor diante da adversidade. Gostaria de agradecer também aos meus entrevistados: este livro nunca poderia ter sido escrito sem o seu tempo, paciência e generosidade. Por fim, gostaria de agradecer à minha esposa Lucy por muitas coisas, incluindo seus comentários penetrantes sobre o manuscrito. Muitas pessoas neste livro foram conhecidas por mais de um nome. Minha regra geral foi me referir a elas pelo nome mais
frequentemente usado em minhas fontes. Nomes alternativos, bem como data de nascimento e morte, são apresentados no índice. Em geral, traduzo livremente, em busca do sentido, tentando, por exemplo, fazer com que o título em inglês de um livro publicado em outra língua soe como um título de verdade. Em geral, usei as aproximações mais apropriadas em inglês de termos técnicos islâmicos, em lugar do original em árabe. Nos raros casos em que o original foi mantido, uma explicação mais longa é dada no glossário (junto com breves definições de certos termos técnicos em inglês). Ao transliterar do árabe, usei o sistema padrão do International Journal of Middle East Studies, mas omiti os diacríticos. O leitor que souber árabe não terá dificuldades em reconstruí-los; ao leitor que não souber, eles não fariam sentido e seriam uma fonte de distração. Ao transliterar do persa ou do russo nomes de origem árabe, transliterei o original em árabe para fins de consistência: assim, «Jamal», em lugar de «Dzhemal».
PREFÁCIO À EDIÇÃO ALEMÃ
Na conclusão da edição original em inglês do livro Contra o mundo moderno, escrita no Cairo em 2003, apontei que, em sua maior parte, os grupos Tradicionalistas no Ocidente eram pequenos e isolados, que o Tradicionalismo permanecia marginal, e me perguntei se o Tradicionalismo no Ocidente não havia se esgotado. Muita coisa mudou desde 2003. Em 2007, quando deixei o Oriente Médio e retornei à Europa, onde havia morado pela última vez vinte anos antes, precisei de um tempo para me readaptar: coisas que ninguém sonharia em dizer em público quando fui embora em 1987 eram ouvidas diariamente no rádio, e muitas pessoas da minha geração estavam confusas, incapazes de explicar o que estava acontecendo. Agora, em 2019, um certo grau de consenso parece ter emergido: estamos atravessando uma enorme transformação na vida política, uma vez que os partidos que dominaram por muito tempo a centroesquerda e a centro-direita estão perdendo seu eleitorado, e novos partidos e forças políticas vêm emergindo, por vezes à esquerda, mas, em sua maioria, à direita. Ou talvez isso esteja errado, e a velha distinção entre esquerda e direita não se sustente mais. Talvez a transformação seja ainda mais dramática. No entanto, é possível que muito disso não seja tão novo quanto parece. O colapso da filiação aos sindicatos que durante tanto tempo apoiaram os partidos de centro-esquerda é certamente novo, e reflete mudanças na maneira como a indústria opera. Mas a insurreição contra o liberalismo e os valores do Iluminismo não caiu do céu na nossa cabeça há uns poucos anos. Os valores do Iluminismo vêm sendo questionados desde que foram propostos pela primeira vez, e o liberalismo sempre teve seus adversários. O que parece ter acontecido é que, durante muitas décadas, a resistência ao liberalismo e aos valores do Iluminismo foi ignorada. Pensava-se que, desde a queda do primeiro fascismo italiano e do nazismo após
desastres e sofrimentos sem igual, os valores do Iluminismo nunca mais poderiam ser questionados outra vez, e o liberalismo seria dominante para sempre. Isso era apenas parcialmente verdadeiro. É verdade que ninguém está propondo seriamente a volta do fascismo ou do nazismo em suas formas históricas. Mas o domínio absoluto do consenso liberal-iluminista aparentemente acabou. Como resultado, o Tradicionalismo, objeto deste livro, já não é marginal; ao contrário, está se transformando cada vez mais na vanguarda. O Tradicionalismo não é responsável pela ascensão do populismo ou da Nova Direita, que pode ser explicada de forma mais satisfatória por outros fatores, como a globalização. O Tradicionalismo não é uma ideologia de massa que pode ser aplaudida em comícios. Algumas pessoas que ajudam e organizam esses comícios, no entanto, são, em maior ou menor medida, inspiradas pelo Tradicionalismo. A conclusão de Contra o mundo moderno, escrita em 2003, é intitulada «Contra a corrente»; desde 2003, a corrente virou. Às vezes penso que é hora de uma nova edição de Contra o mundo moderno, mas, por um lado, os acontecimentos ainda estão se movendo rápido demais e, por outro, o livro é, no fim das contas, uma história, e as décadas de 1920 e 1960 não estão mudando. A importância do que aconteceu naquelas décadas pode parecer diferente visto que a luz lançada sobre elas pelo presente muda uma vez mais, mas os acontecimentos em si não mudaram. Eles só ficaram mais interessantes. Os grupos Tradicionalistas no Ocidente continuam pequenos, mas já não estão isolados. Agora, se algo parece ter se esgotado no Ocidente é o liberalismo do fim do século XX, não o Tradicionalismo. Como indiquei, o manuscrito deste livro foi finalizado em 2003, e a primeira edição em inglês foi publicada em 2004. Certos erros detectados logo após a publicação foram corrigidos na edição inglesa publicada em brochura em 2009. Um capítulo completamente novo foi escrito em 2006 para a edição russa, que, por razões complexas, só veio à luz em 2014. Esta edição alemã incorpora as correções feitas para a edição inglesa em brochura, o capítulo extra escrito para a edição russa e algumas observações mais recentes sobre alguns pontos que precisavam ser atualizados. Outras atualizações podem
ser encontradas no blog em língua inglesa que comecei em 2006, traditionalistblog.blogspot.com, no qual, ao longo dos anos, fiz postagens sobre novos desenvolvimentos do mundo Tradicionalista e do mundo acadêmico, em que uma série de publicações lançando luz sobre diferentes aspectos do fenômeno continua a crescer. Mark Sedgwick Aarhus, 20 de julho de 2019.
SUMÁRIO
1. Capa 2. Folha de Rosto 3. LISTA DE PERSONAGENS PRINCIPAIS 4. PRÓLOGO 5. PARTE I O DESENVOLVIMENTO DO TRADICIONALISMO 6. 1. Tradicionalismo 7. 2. Perenialismo 8. 3. Gnósticos, taoIstas e sufis 9. PARTE II O TRADICIONALISMO NA PRÁTICA 10. 4. Cairo, Mostaganem e Basileia 11. 5. Fascismo 12. 6. Fragmentação 13. PARTE III A EXPANSÃO DO TRADICIONALISMO 14. 7. A Ordem Maryamiyya 15. 8. América 16. 9. Terror na Itália
17. 10. Educação 18. PARTE IV O TRADICIONALISMO E O FUTURO 19. 11. A Europa após 1968 20. 12. O Tradicionalismo na Rússia 21. 13. Neoeurasianismo 22. 14. O Mundo Islâmico1 23. 15. Contra a corrente 24. NOTAS 25. GLOSSÁRIO 26. ENTREVISTADOS 27. BIBLIOGRAFIA
Landmarks
1. Capa 2. Página de Créditos 3. Folha de Rosto 4. Epígrafe 5. Prefácio 6. Sumário 7. Prólogo 8. Glossário 9. Bibliografia
LISTA DE PERSONAGENS PRINCIPAIS
Os sete tradicionalistas mais importantes (listados por data de nascimento) Coomaraswamy, dr. Ananda Kentish (1877-1947). Britânico, depois americano. Historiador da arte. Guénon, René (1886-1951). Francês, depois egípcio. Desenvolveu o Tradicionalismo. Evola, barão Julius (1896/8-1974). Italiano. Desenvolveu o Tradicionalismo político. Eliade, dr. Mircea (1907-86). Romeno, depois norte-americano. Estudioso da religião. Schuon, Frithjof (1907-98). Alemão, depois francês e mais tarde suíço. Por fim, residente nos Estados Unidos. Desenvolveu o sufismo Tradicionalista e fundou a ordem sufi Alawiyya (depois Maryamiyya). Nasr, dr. Seyyed Hossein (1933-). Iraniano, depois norteamericano. Introduziu o Tradicionalismo islâmico no Irã e em outras partes do mundo islâmico. Dugin, Alexander (1962-). Russo. Desenvolveu o Neoeurasianismo.
Outros personagens importantes (por data de nascimento) Ficino, Marsílio (1433-99). Padre italiano e neoplatônico. Burrow, Reuben (d. 1799). Historiador das religiões amador, britânico. Emerson, Ralph Waldo (1803-82). Transcendentalista norteamericano. Blavatsky, Helena (1831-91). Teosofista russa.
Wirth, Oswald (1860-1943). Reformador maçônico e colaborador de Guénon. Pouvourville, Albert de (1861-1939). Imperialista taoista e segundo mestre importante de Guénon. Encausse, Gérard (1865-1916). Fundador da Ordem Martinista e primeiro mentor de Guénon. Aguéli, Ivan (1869-1917). Sufi sueco e pintor. Charbonneau-Lassay, Louis (1871-1946). Antiquário católico, amigo e benfeitor de Guénon. Primeiro mestre da Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paráclito. Sebottendorff, Rudolf von (1875-1945). Ocultista e maçom alemão. Fundador do partido que Adolf Hitler transformou no Partido Nazista. Eberhardt, Isabelle (1877-1904). Sufi franco-russa e escritora. Maritain, Jacques (1882-1973). Filósofo católico, antigo benfeitor de Guénon. Chacornac, Paul (1884-1964). Editor de Guénon. Thomas, Alexandre (1884-1966). Segundo mestre da Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paráclito. Séligny, Paul de (1903-?). Mauriciano, residente na França. Líder de seita e guru. Reyor, Jean (1905-88). Discípulo devotado de primeira hora de Guénon, editor de Études traditionnelles até 1961. Vâlsan, Michel (1907-74). Romeno, depois residente na França. Primeiro muqaddam de Schuon em Paris e depois xeique de uma ordem sufi Alawiyya independente. Editor de Études traditionnelles de 1961 até sua morte. Burckhardt, Titus (1908-84). Suíço. O primeiro e mais próximo colaborador de Schuon. Seu muqaddam na Basileia. Lings, Martin (1909-2005). Inglês. Primeiro colaborador de Guénon no Cairo, depois muqaddam de Schuon em Londres. Pauwels, Louis (1920-97). Escritor e editor francês especializado em ocultismo. Hartung, Henri (1921-88). Francês, depois residente na Suíça. Seguidor de Schuon por um breve período, em seguida, intelectual público progressista.
Pallavicini, Felice (1926-2017). Italiano. Xeique italiano de uma ordem sufi Tradicionalista em Milão, derivada da Idrisi Ahmadiyya. Freda, Franco. Político italiano tradicionalista. Jamal, Gaydar (1947-). Islamista russo.
PRÓLOGO
Estava escuro, exceto pelo feixe de luz da lanterna alguns andares acima. A umidade havia se misturado à fumaça, e a água ainda corria e pingava. Um bombeiro passou por mim enquanto eu subia ansiosamente as escadas, mas deixei-o seguir sem interpelá-lo, uma vez que o meu russo é fraco. Antes de entrar no edifício em que estava hospedado, eu já tinha percebido que o fogo começara no telhado. Mendigos, disseram, da estação de trem Kurskaya, que ficava próxima. Torci para que fosse isso mesmo e nada mais sinistro. Meu russo é fraco, mas os russos que eu viera entrevistar em Moscou eram todos pessoas educadas, que falavam diversos idiomas. «Dugin é incrivelmente erudito, brilhante à sua própria maneira… O mais importante é lembrar que toda essa gente é 100% insana», dizia um adendo à minha apresentação a um desses líderes, em um e-mail enviado por um acadêmico norte-americano, sovietólogo quando existia uma União Soviética, depois colecionador de monarquistas, fascistas e «patriotas» das periferias da política russa. Dugin aprendeu sozinho um francês perfeito e um inglês bastante razoável, mais duas ou três línguas europeias, enquanto trabalhava como varredor de rua durante os anos finais da União Soviética. Seu antigo colega Edvard Limonov havia aprendido seu inglês quase perfeito morando em Nova York como emigrado soviético e romancista dissidente. E fazendo o que mais? O livro mais famoso de Limonov, It’s me, Eddie, é claramente autobiográfico, mas também ficcional. Um exemplar nunca lido continuava na minha biblioteca no Cairo desde que eu o havia deixado de lado após folhear algumas páginas um tempo atrás, pouco antes de me mudar para o Egito pela primeira vez. Mais tarde, quando finalmente me dei conta de por que o nome de Limonov me soava familiar, encontrei novamente seu livro e o li, hipnotizado. Ele descrevia a desorientação e o desencanto do emigrado soviético, respeitado como poeta em seu próprio país,
mesmo rejeitado pelo sistema, mas que não era necessário nem respeitado no Ocidente. Limonov também descrevia a experiência de todo emigrado no Ocidente, uma experiência que eu agora reconhecia em alguns de meus amigos egípcios, e a experiência de todo dissidente, não apenas os soviéticos. Alexander Soljenítsin não gostou muito do livro, como descobri mais tarde (ele descreveu Limonov como «um pequeno inseto que escreve pornografia»). O som da água caindo diminuía à medida que eu me aproximava do topo das escadas. O apartamento no qual eu me hospedava estava mais ou menos intacto. O gesso havia caído do teto da cozinha e o chão estava coberto por quase dois centímetros de água, mas isso era tudo. O gatinho da namorada do meu anfitrião estava vivo, ainda que apavorado, e as notas das entrevistas que eu havia feito tinham sido protegidas pela pasta de plástico transparente na qual estavam guardadas. Tudo continuava legível, exceto por uma única folha de material de apoio sobre comunistas conservadores e democratas radicais. Naquela noite, o gato arrastou-se para a cama comigo e se aninhou debaixo das cobertas, leve e macio como um pássaro apoiado no meu estômago. Provavelmente foram mesmo os mendigos da estação Kurskaya, apesar de meus temores. Moscou estava linda naquele verão, mas ainda muito distante de casa e de qualquer ajuda; e eu vinha encontrando algumas pessoas estranhas. Dugin fora, de fato, erudito e também cativante. Mas nunca passei de um rápido telefonema com Limonov, e até isso levou dias para ser combinado. Sua relutância em me ver provavelmente estava ligada ao fato de que jornalistas e acadêmicos ocidentais invariavelmente escreviam a respeito dele e de Dugin como ameaças à paz mundial, líderes de um assustador grupo de seguidores composto de skinheads e punks, a personificação do pesadelo de um Terceiro Reich com armas nucleares. Naturalmente, qualquer russo que alegue que seu partido — o Partido NacionalBolchevique, fundado por Dugin e Limonov — combina os melhores elementos do nazismo e do estalinismo vai ter dificuldades no campo das relações públicas com o público ocidental. «Gosto de gente assim», disse Natalya, a autora da maioria das matérias recentes publicadas sobre Dugin e Limonov no Moscow
Times. «Eles são divertidos, diferentes. Nada a ver com os outros políticos.» Natalya havia me levado a um dos clubes de Moscou, um restaurante cheio de estilo mas praticamente vazio em estilo retrô, com música e decoração do início da era Brezhnev. Acesso restrito a membros, por uma porta de aço sem identificação, aberta por um exKGB de terno escuro. Natalya progredira de ajudante ocasional de jornalistas americanos em Leningrado, passando pela Universidade da Califórnia e um estágio no Los Angeles Times, até chegar a ser a personificação dos melhores aspectos da Nova Rússia. Irrepreensivelmente liberal, cheia de luz e esperança, escrevendo e indo a festas com o mesmo entusiasmo, ela não tinha nada de fascista. Mas exploradora de alternativas? Sim. Quando deixávamos o clube, ela pegou um adesivo colorido: «Hoje em dia, podemos encontrar todo tipo de gente estranha… e eu gosto disso». A referência não era a Dugin, mas ao crescente número de pessoas vivendo em Moscou sem permissão de residência, o equivalente moscovita ao problema ocidental da imigração. No centro de Moscou, outro antigo colega de Dugin — Gaydar Jamal — vivia atrás de outra porta de aço, a de um apartamento em um prédio chique próximo à Embaixada dos Estados Unidos. A porta de Jamal não foi aberta por um ex-KGB, mas sim por um jovem tártaro com a cabeça raspada, que depois nos serviu café em xícaras rachadas com pires que não combinavam. No apartamento quase sem mobília havia diversos outros jovens do mesmo tipo, que não faziam nada em geral, ou que não faziam nada enquanto eu estive lá. Jamal e eu conversamos sobre Dugin, o Islã, nossos avós, jihad, os contatos de Jamal com o Talibã, modernidade e tradição. Apesar de poder imaginar aqueles jovens tártaros fazendo todo tipo de coisa, Jamal e eu nos demos bem. Ele até prometeu me procurar na próxima vez que passasse pelo Cairo — algo que não me entusiasmava, tanto pelas consequências da visita de um islamista estrangeiro de renome para minha ficha nos serviços de segurança egípcios, quanto pela reação de minha esposa, que eu podia imaginar, caso Jamal e seu grupo aparecessem de surpresa. Dugin e eu também nos demos bem. Não havia nenhum skinhead em seu escritório, só uma secretária esperando a hora de voltar para casa, o
inevitável zelador russo cinquentão e impassível e um homem com a aparência de livreiro, sentado no sofá e folheando o catálogo de publicações de Dugin. O próprio Dugin, como me dei conta mais tarde, já tinha deixado os Nacionais Bolcheviques para trás naquela época para embarcar no caminho que o levaria a uma aliança ainda mais assustadora com o Kremlin. Limonov, por outro lado, terminou na prisão. Apesar de quase todas as minhas notas permanecerem legíveis a despeito do fogo e da água no meu apartamento emprestado, precisei conseguir um novo exemplar de Cavalgando o Tigre, o livro de Evola que eu havia trazido comigo para ler enquanto esperava que as entrevistas se materializassem. Evola, barão Julius. Oficial de artilharia, pintor de vanguarda, mago. Morto em Roma em 1974. Seus livros foram descobertos na Biblioteca Lênin em Moscou por Jamal e alguns outros dissidentes pouco depois da crise dos mísseis de Cuba. É impossível que os bibliotecários que permitiram que os livros de Evola permanecessem nas prateleiras tenham visto seu conteúdo sem notar a dimensão do perigo que representavam. Na Itália da década de 1970, conta-se que era pior para você se a polícia encontrasse livros de Evola durante uma revista em seu apartamento do que se encontrasse explosivos plásticos. Evola foi julgado na Itália em 1951 por «conspirar para restabelecer o fascismo», mas foi absolvido. Tratava-se de uma acusação ridícula: o simples fascismo sempre fora algo excessivamente suave para Evola. É verdade que ele havia colaborado com Mussolini no tema das leis raciais da Itália, mas os fascistas terminaram por convocá-lo de Berlim para retornar à Itália e confiscaram seu passaporte. Seus pontos de vista eram demasiado extremistas para eles. Evola estava para Mussolini como Trótski estava para Stálin — mas quem havia ouvido falar dele? Bem, a polícia antiterrorismo italiana, para começar. Agora mesmo, Evola tem 12.600 resultados numa busca no Google; Trótski ganha, é verdade, com 137 mil resultados. Eu mesmo nunca tinha ouvido falar de Evola até perguntar ao xeique Abd al-Wahid Pallavicini como ele havia se tornado muçulmano. Foi assim que minha pesquisa sobre o Tradicionalismo
começou, em Milão, no verão de 1995-96, enquanto entrevistava o xeique italiano de uma ordem sufi composta exclusivamente de convertidos italianos ao Islã. A primeira vez que ouvi falar de Pallavicini e dos sufis italianos foi em uma conferência em Cartum, conversando com um colega da Itália do lado de fora do salão de conferências, onde nos aquecíamos entre as sessões. Aquele salão era um dos poucos lugares no Sudão com ar-condicionado, e os organizadores da conferência estavam determinados a usá-lo ao máximo. O sol quente, a areia e o silêncio do Sudão conferiam um alívio pontual entre as tediosas sessões no interior daquela geladeira. Enquanto tremíamos na penumbra, acadêmicos sudaneses apresentavam artigos e mais artigos sobre assuntos pelos quais não tinham muito interesse, mas que achavam que poderiam interessar a um estrangeiro e abrir as portas para a mina de ouro de uma bolsa de pesquisas no exterior. «Se você está trabalhando com os Idrisis», disse meu colega italiano, «nós temos alguns em Milão.» Um dos aspectos da ordem sufi Idrisi que me interessavam naquele momento era como ela havia se espalhado. Assim, alguns meses depois, durante o frio janeiro de 1996, tomei um avião do Cairo para Milão. Alguns seguidores do xeique me encontraram no aeroporto, tratando-me com grande respeito por eu vir do Oriente. Bem, na verdade, eu tinha recémchegado do Oriente, pois nasci em Londres, com um sobrenome que sugere ancestrais vikings distantes. De minha parte, tratei igualmente o xeique Pallavicini com profundo respeito. É assim que se trata um xeique sufi, e entrevistar xeiques sufis era parte do meu trabalho como historiador do Islã. Eu nunca havia encontrado um xeique italiano antes, mas me pareceu mais seguro abordá-lo antes como xeique do que como italiano. Durante nossa entrevista, Pallavicini me contou que ele havia se tornado muçulmano na Suíça em 1952, tendo sido enviado por Evola para encontrar um xeique sufi que vivia lá. Ele havia contatado Evola na qualidade de tradutor para o italiano das obras de um autor francês, René Guénon, que ele andava lendo. Assim, talvez a minha pesquisa não tenha começado de verdade naquele inverno, pois eu já tinha ouvido falar de René Guénon, apesar do nome Evola não me dizer nada. Talvez minha pesquisa
tenha começado dez anos antes, em 1986, no segundo dia de minha primeira viagem ao Cairo. Eu estava visitando um amigo de escola que havia conseguido um emprego dando aulas de redação para alunos de primeiro ano na Universidade Americana do Cairo (UAC), e ele me levou para almoçar na cafeteria da universidade. Carregamos nossas bandejas do caixa até uma mesa vazia e nos sentamos. «Aqueles ali são os convertidos», disse meu amigo, divertindo-se com o papel de guia e indicando uma mesa na direção oposta do refeitório. Quatro homens estavam sentados ao redor de uma pequena mesa, todos com barbas cheias e vestidos com roupas escuras — ou será que elas só pareciam escuras? Passados apenas dois dias no Cairo, eu provavelmente ainda associava o Islã à escuridão. Como era possível que um ocidental se convertesse ao Islã? Terminada sua refeição, os quatro conversavam em voz baixa, inclinando-se para a frente. Sobre o que poderiam estar conversando? Um ano depois, eu mesmo havia me mudado para o Cairo e me tornado professor da UAC, quando vim a conhecer um daqueles convertidos, um cidadão dinamarquês cuja língua materna era o alemão e que geralmente era tomado por norte-americano. Ele havia sido motorista de ambulância em Hamburgo, buscador espiritual no Sri Lanka e professor de inglês na Universidade Americana de Beirute, onde conheceu um xeique sufi turco e se converteu ao Islã no ato. Olhando de perto, ele não era tão escuro. Ao contrário, era um homem com olhos brilhantes e um senso de humor irreverente, que rapidamente tornou-se meu amigo e que continua sendo até hoje. Um dia, na década de 1980, ele me emprestou um livro de René Guénon e me disse que se tratava de um francês convertido ao Islã que vivera no Cairo durante muitos anos. O livro parecia inocente — um volume de bolso da Penguin com a marca da biblioteca da UAC na lombada. A data carimbada na folha de rosto indicava que o livro estava mais ou menos doze anos atrasado, como mostrei a ele. O convertido sorriu: «Esse livro é valioso demais», disse ele, «para ser confiado à biblioteca. Trate de devolvê-lo para mim». Era um livro estranho e difícil, que não tratava de modo algum do Islã. Em vez disso, falava do tempo, da quantidade, da qualidade, de
Aristóteles, de Gog e Magog e do fim do mundo que se aproximava. Era um livro preocupante e me pareceu difícil fazer pouco caso dele. «Como você pode ler esse tipo de coisa?», perguntou-me o amigo de escola que havia apontado a mesa com os convertidos no outono do ano anterior. «Guénon?», disse outro professor da UAC. «Leia isso», e me deu um livro de Frithjof Schuon. Um suíço dessa vez, e outro xeique, disseram-me. Um autor diferente de Guénon, emprestado por um homem de outro tipo, Alan Gould. Gould havia sido poeta beat e irradiava energia em vez de humor, entrando e saindo da Arábia Saudita e falando — depois de décadas no Oriente Médio — o árabe mais atroz que já ouvi. Foi assim que as coisas começaram, com dois convertidos ao Islã dando aulas na UAC, e com dois autores, ambos europeus, de quem se dizia serem xeiques sufis, mas nenhum dos dois, paradoxalmente, escrevendo muito sobre o Islã. Apesar de eu não conseguir perceber o porquê, as relações entre o convertido-que-lia-Guénon e o convertido-que-lia-Schuon pareciam mais frias do que eu esperava. Seja como for, quando ambos os nomes surgiram em Milão — Schuon era o xeique suíço a quem Pallavicini fora enviado após ler Guénon —, fiquei intrigado. Guénon e Schuon claramente eram importantes para um aspecto do encontro entre o Ocidente e o Islã: não o encontro «choque de civilizações», mas o seu oposto — a deserção. Os livros de Guénon eram uma importante causa de conversões ao Islã na Itália, de acordo com o proprietário de um dos maiores centros islâmicos de Milão que entrevistei. Ali Schutz administrava um restaurante que servia culinária do Oriente Médio e que também fazia as vezes de espaço de exibições e salão de conferências ocasional. O lugar estava ligado a uma movimentada loja que vendia tapetes de oração, xales para mulheres muçulmanas, incensórios, fotos emolduradas da Caaba em Meca, Alcorões e outros livros, incluindo uma prateleira das obras de Guénon no original em francês e em traduções italianas. O próprio Ali não era um grande fã de Guénon, «mas é isso que as pessoas querem ler, e é algo útil, traz elas para o Islã».
Assim, era um quadro bastante simples, exceto pelo fato de que Evola não se encaixava nele. «Uma espécie de filósofo fascista», disse um acadêmico italiano que visitei, «que pensava que o Islã era uma raça espiritual.» Não aprendi grande coisa além disso; o acadêmico estava com uma gripe severa, mostrou-se relutante em encontrar-me em seu apartamento no fim de semana e claramente queria acabar com aquilo o mais rapidamente possível. Ao levantarme para ir embora, avistei, em um panfleto mal impresso aberto sobre sua escrivaninha, uma fotografia fora de foco de homens sorrindo, vestidos com uniformes das SS. Olhei mais de perto, questionando-o. «Um contingente muçulmano nas SS», respondeu meu relutante anfitrião. «Eu pesquiso esse tipo de coisa também.» Em seguida, eu estava na rua, procurando uma loja de conveniência onde pudesse comprar algumas guloseimas para levar para o Cairo. Dois panetones pelo preço de um (quinze dias depois do Natal) e cogumelos porcini. Missão cumprida. Eu tinha um capítulo a acrescentar ao meu livro sobre a difusão da ordem sufi Idrisi, e alguns troféus comestíveis da viagem. A minha imagem de Guénon e de Schuon como autores islâmicos sobreviveu por algum tempo. Naquele avião voltando de Milão, li uma curta biografia de Guénon que um dos seguidores de Pallavicini havia me dado. Ele mencionava brevemente a juventude inconsequente de Guénon, sua participação em diversos grupos ocultistas em Paris, e, em seguida, sua conversão ao Islã em 1910, aos 24 anos de idade. O guénonismo, como eu já começava a chamá-lo, parecia dizer respeito ao Islã no Ocidente. Schuon havia sido um leitor e seguidor de Guénon. Havia também Martin Lings, que primeiro seguiu Guénon e depois Schuon. Eu havia me encontrado com Lings uma vez quando veio ao Cairo para receber um prêmio do presidente Hosni Mubarak por uma biografia do Profeta Maomé; escrever sobre o profeta do Islã, ser traduzido ao árabe e chegar ao ponto de ganhar um prêmio era um grande feito para um inglês. Quintessencialmente inglês ao manejar uma leiteira e um bule de chá, falando no sotaque entrecortado de sua geração, Lings falou sobre arquitetura moderna e tradicional. O Nilo corria afora; Lings usava uma túnica jallabiyya e
seus convidados estavam sentados numa cama de hotel; não fosse por isso, poderíamos estar em Surrey. Além de Lings, havia Seyyed Hossein Nasr, como vim a saber; outro nome conhecido, autor de Ideais e realidades do Islã, publicado pela editora da UAC, que eu havia recebido de presente de Rana, outra professora da UAC, com suas margens cheias de notas. Rana era bela e trágica, torturada por todo tipo de problemas. O que vinha primeiro, a feminista ou a patriota árabe oponente do imperialismo cultural do Ocidente? Ela era uma filha do Nilo ou uma aluna do Emmanuel College, Cambridge? Oprimida como mulher e pertencente a uma raça desde sempre subjugada, ou patroa rica de diversos empregados em sua esplêndida casa de campo? Muçulmana ou livrepensadora? Acadêmica ou escritora? Casada ou livre? Não sei que papel o livro de Nasr desempenhava nos conflitos de Rana. Anos depois, quando encontrei-a na rua e tomamos um difícil café, tentando e não conseguindo quebrar uma década de silêncio para redescobrir a intimidade que havíamos compartilhado no passado, ela era uma romancista divorciada, escrevendo não em inglês, mas em árabe, vencedora de uma prestigiosa medalha de ouro naquele ano. Quando o xeique Pallavicini revelou-me que Schuon liderava uma ordem sufi, foi fácil encontrá-la. A ordem de Schuon havia sido secreta durante a maior parte de sua existência, mas é difícil manter inteiramente em segredo qualquer coisa que envolva centenas de pessoas ao longo de mais de setenta anos. O segredo era guardado com mais afinco dos «profanos», dos ocidentais modernos irreligiosos. Vivendo no Cairo e conhecendo o sufismo e o Islã, eu me aproximava dele por uma retaguarda descoberta. Fragmentos que eu ouvira aqui e ali começavam a fazer sentido. Rumores acerca de uma dúzia de pessoas conhecidas, pessoas que se pareciam com sufis, mas que não reconheciam sua filiação a nenhuma ordem conhecida, passavam a se encaixar. Eu me dei conta da razão por que um brilhante acadêmico dos Países Baixos que entrara em uma ordem sufi egípcia em Alexandria a havia abandonado pouco depois e seguido para um destino desconhecido. Agora eu entendia o que unia certos indivíduos que conhecia ou de quem tinha ouvido falar, que sempre me pareceram mais do que simples bons amigos: tratava-se
de uma ordem sufi ocidental e secreta que, por três quartos de século, não havia admitido sequer o seu nome, a Maryamiyya. Lentamente, comecei a unir os elos entre Guénon, Schuon e um número cada vez maior de autores ocidentais sobre o Islã, a maioria deles convertidos abertos ou secretos ao islamismo. Catálogos de livrarias revelavam livros, editoras e periódicos. Um interessante artigo já estava quase finalizado quando alguém mencionou Andrew Rawlinson, um acadêmico inglês aposentado que morava na França, e seu livro a ser publicado, Western Masters in Eastern Traditions [Mestres ocidentais em tradições orientais]. Rawlinson enviou-me as partes mais importantes do manuscrito, do qual emergia uma imagem muito diferente de Schuon. Rawlinson via Schuon não como um sufi piedoso, mas como um charlatão, possivelmente em autoengano e certamente enganando os outros. Ele dava a impressão de acreditar que qualquer ocidental convertido ao Islã era, de algum modo, louco, algo que, àquela altura, eu já sabia não ser verdade. Educadamente, questionei os pontos de vista de Rawlinson sobre Schuon. Certa manhã, deparei-me com um gordo envelope na minha caixa de correio. Enviado por Rawlinson, ele continha cópias de algumas fotografias. Sentei-me em minha escrivaninha, ora escondendo as fotos entre meus papéis, ora retirando-as outra vez, fascinado e horrorizado. Nelas, via-se Schuon vestido como um cacique indígena dos Estados Unidos, cercado por mulheres de biquíni, Schuon completamente nu, exceto pelo que aparentava ser um elmo viking. Havia uma pintura feita por ele, da Virgem Maria, também nua, sua genitália desenhada com clareza. Meu artigo precisaria de revisões substanciais, assim como diversas das conclusões às que eu havia chegado. Esse foi meu primeiro quebra-cabeça. Alguns dos principais autores ocidentais que escreviam sobre o Islã eram seguidores de um homem que andava com um cocar, ou sem roupa alguma, e que pintava certos quadros bastante fora do comum. No mínimo, eu deveria levar mais a sério os relatos de outras irregularidades na ordem sufi Maryamiyya — irregularidades de um ponto de vista islâmico, ao menos. Fui conversar com Gould, o leitor de Schuon, em sua sala na UAC. Ele mencionou as fotos antes de mim, adivinhando corretamente
que eu deveria tê-las visto. Elas tinham sido roubadas, parte de uma história sórdida na qual ele não desejava entrar, disse-me. Qualquer interesse nelas era fruto da lascívia. Elas eram irrelevantes. Se eu escolhesse, equivocadamente, fixar-me nas fotos, isso era problema meu. Quanto às supostas irregularidades, elas não eram irregulares: meu entendimento do que era regular é que era deficiente. Eu tinha um problema ético a confrontar, e não o estava confrontando corretamente. Esse foi o fim de uma amizade com um homem de quem eu gostava, mesmo sem nunca tê-lo entendido por completo, um homem cuja bondade era tão visível e cativante quanto suas excentricidades. Em uma visita aos Estados Unidos, fui a Washington, D.C., para encontrar-me com Nasr, o autor do livro todo anotado de Rana sobre os Ideais e realidades dos Islã, bem como de muitos outros volumes. Seu título é University Professor of Islamic Studies, explicou-me um aluno de pós-graduação que eu conhecia do Cairo antes de minha partida de Princeton para Washington. «Não sei o que isso significa, mas é algo muito mais grandioso do que simplesmente ‹Professor›, e não se esqueça disso.» Seja lá o que fosse, dava a Nasr o direito de ter uma secretária e uma suíte, em lugar de uma simples sala. Foi deixado claro (ainda que não pelo próprio Nasr) que eu tinha muita sorte por ter acesso ao grande homem. Não ousei mencionar as fotos. Nasr assumiu a mesma linha de Gould com relação às irregularidades. Entendidas de maneira correta, explicou-me, não havia nada de irregular. Quem era eu para discutir com um University Professor of Islamic Studies? Nem tentei. E, ainda assim, eu não estava nem um pouco convencido. Dois anos depois, quando fui ao Irã durante outro inverno frio e visitei o que restava da esplêndida Academia Tradicionalista pela qual Nasr havia sido responsável, percebi que eu realmente tinha tido sorte ao encontrar o grande homem. Seja lá o que for um University Professor, no Irã Nasr fora muito mais importante do que se tornaria mais tarde nos Estados Unidos, e ele continuou importante no Irã mesmo depois da Revolução. Rana, vim a descobrir, havia sido apenas um dos inúmeros muçulmanos que, na incerteza a respeito de como integrar sua própria modernidade com a religião e a cultura
em que nasceram, tiveram a esperança de que Nasr poderia ajudálos a encontrar uma resposta. Meu segundo quebra-cabeça foi a conexão Evola. Eu começava a compreender a base da filosofia desenvolvida por Guénon, uma filosofia que Nasr me convencera que deveria ser chamada de Tradicionalismo, e não de guénonismo. Evola e Schuon haviam-na desenvolvido ainda mais. Mas Evola não se encaixava de modo algum, nem com a imagem de piedade sufi nem com a imagem alternativa de uma seita influente. Já existia, como vim a saber, uma literatura acadêmica a respeito de Evola, mas em lugar algum mencionava-se Guénon ou a religião. Em vez disso, Evola era inevitavelmente retratado como a inspiração intelectual para o terrorismo de extrema direita na Itália durante os chamados «anos de chumbo», a década de 1970, quando balas de metralhadora voavam com uma frequência muito maior do que seria sadio numa democracia ocidental. Claramente, algo estava faltando. Evola veio de um movimento religioso. Deveria haver um aspecto religioso nele. A chance de descobrir o que poderia ter sido esse aspecto me foi dada por Friedrich Müller, professor de Estudos Religiosos numa universidade europeia. Müller abordou-me em uma conferência em que eu havia apresentado um artigo sobre «Sufismo Tradicionalista». Disse-me que estava interessado em Guénon e, portanto, em meu trabalho sobre ele. Conversamos, e Müller se ofereceu para conseguir-me uma entrevista com um muçulmano seguidor de Evola, «se você não se importar com seu nome numa ficha policial em algum lugar», acrescentou. Como residente havia muito no Egito, com uma ficha policial egípcia de uns trinta centímetros de espessura, eu não estava muito preocupado com a ideia de uma pasta fininha e elegante nos arquivos da polícia italiana. Encontrei-me com Müller na Alemanha e seguimos juntos de trem para a cidade de Parma, no norte da Itália. Ainda que eu não estivesse preocupado com arquivos na polícia, Müller evidentemente estava. Cada vez que trocávamos de trem, ele pedia desculpas por me deixar na plataforma e desaparecia numa cabine telefônica. Após uma série de ligações, anunciou que o encontro aconteceria.
O escritório de Claudio Mutti ficava num bloco de apartamentos banal e genérico na periferia de Parma, num bairro operário com ruas silenciosas, carros em mau estado estacionados sob árvores e gatos adormecidos. O escritório de Mutti era um quarto no pequeno apartamento de sua mãe, não de todo isolado dos apetitosos odores da culinária italiana. Havia uma pequena escrivaninha que, com sua prateleira de carimbos, parecia pertencer a um atarefado burocrata. As paredes eram decoradas com kitsch islâmico — citações do Alcorão impressas em papel metálico decorado com purpurina, fotografias de lugares em Meca e Medina emolduradas em plástico barato. Atrás de um armário de arquivo que não combinava com a temática islâmica, via-se encostado um mastro do qual pendia uma bandeira, uma cruz negra com bordas brancas num campo vermelho, uma Cruz de Ferro na parte superior esquerda e uma suástica no centro. Mais tarde, identifiquei-a como a Reichskriegsflagge, a insígnia de combate nazista. Mutti estava sentado numa cadeira de cozinha de madeira, e não em sua escrivaninha. Após conversar amigavelmente com Müller num excelente francês, Mutti virou-se para mim e respondeu a minhas perguntas de maneira prestativa. Todo leitor sério de Evola, disse, conheceria Guénon, mas nem todo leitor de Guénon chegaria a descobrir Evola. Discutimos as possíveis práticas espirituais de Evola, e Mutti me deu uma cópia de um artigo em que ele explicava a si mesmo: «Por que escolhi o Islã». Passamos disso à influência de Evola em outros países. Haviam me contado que Mutti deu aulas de romeno e de húngaro em uma universidade italiana até ser demitido por suas atividades políticas, e ele continuava em contato com romenos e húngaros interessados em Evola. Você se lembra das imagens de televisão do julgamento de Ceausescu?, perguntou-me Mutti. O juiz ao fundo, de farda e com uma barba branca? Um grande fã de Guénon, disse Mutti. Será que eu gostaria de uma cópia do livro de Mutti sobre Evola no front oriental? Uma cópia foi providenciada, dedicada e recebida com um agradecimento. Foi só mais tarde que descobri o que deveria ter sido objeto de minhas perguntas a Mutti: não o kitsch islâmico, mas a Reichskriegsflagge. Antes de deixar a Itália, fui a uma grande livraria
e perguntei por livros sobre os terroristas de direita. O vendedor pareceu surpreso. Havia muitos livros sobre a violência «vermelha», disse ele, quase esperançoso, se eu desejasse um. Era a violência direitista que me interessava de verdade? Bem, talvez houvesse algo. Ele encontrou para mim o grosso livro de Franco Ferraresi sobre Threats on democracy [Ameaças à democracia]. A academia italiana é altamente politizada, e Ferraresi era evidentemente de esquerda, mas, entre tentativas de colocar a culpa pelo terrorismo de direita em um sistema corrupto e falido, o livro fornecia uma extensa cobertura da extrema direita nas décadas de 1960 e 1970. Quando finalmente consegui lê-lo, já de volta ao Cairo, descobri, entre os muitos grupos que se inspiravam em Evola, um realmente assustador em seu niilismo, o grupo liderado por Franco Freda. E entre os seguidores de Freda estava Mutti, meu solícito anfitrião em Parma. Fiquei imaginando para quem o professor Müller teria ligado para acertar aquele encontro. O que mais seriam esses Tradicionalistas? Piedosos sufis ou uma seita, religiosos ou políticos? Logo as pessoas começaram a confrontar minha visão inicial do Tradicionalismo como um fenômeno islâmico ou islamo-ocidental. O problema começou numa conferência sobre novos movimentos religiosos em Amsterdã, onde apresentei um artigo sobre «Sufismo Tradicionalista». Foi ali que Müller me procurou e me convidou para ir com ele a Parma. Foi ali que recebi o convite para ir a Moscou. Foi ali também que chamei a atenção dos franceses pela primeira vez. Eu descobrira a conferência de Amsterdã na internet, tentando me informar sobre Madame Blavatsky e a Sociedade Teosófica. Xeiques sufis têm tanto orgulho de suas genealogias quanto grão-duques austríacos costumavam ter de sua linhagem de sangue, e, como pesquisador, eu não podia simplesmente deixar de lado a juventude inconsequente de Guénon. A figura-chave num primeiro momento parecia ser alguém chamado, sempre entre aspas, de «Papus», cujos livros sobre tarô, astrologia e reencarnação continuavam em catálogo. As leituras sobre «Papus» me levaram aos teosofistas, e à memórias da minha primeira adolescência. Aos quinze anos, li as obras de Paul Gallico, famoso por seu Snow Goose [Um milagre de
Natal], um livro fora de catálogo havia anos. Perto da minha escola havia uma empoeirada livraria que vendia mais canetas e papel do que propriamente livros, e em suas prateleiras encontravam-se primeiras edições encalhadas dos romances de Gallico, em ofertas irresistíveis com preços da década de 1960 em plena década de 1970. Eu gostei em especial de The Hand of Mary Constable [A mão de Mary Constable] (1964): «Alexander Hero [...] é enviado a Nova York, onde um cientista está convencido de estar em contato com sua filha falecida por intermédio de um médium. A prova é o molde de uma mão com as impressões digitais da garota morta». Ectoplasma, espiões comunistas, tudo. Ao final de minha pesquisa sobre o Tradicionalismo, eu havia encontrado um cientista nuclear e até mesmo espiões comunistas (aposentados), mas nenhum ectoplasma. Eu também havia descoberto que, apesar de haver tantos truques ao redor de Blavatsky quanto num romance de Paul Gallico, havia uma seriedade na Teosofia também — seriedade das consequências hoje, como dos propósito no passado. Na conferência de Amsterdã, ouvi com fascínio crescente a apresentação dos artigos. Eu sabia que a religião era algo importante no Oriente Médio contemporâneo, que os desenvolvimentos políticos e culturais na região não podiam ser estudados sem referência ao Islã, mas sempre pensei que essa era uma das características especiais da região onde eu vivia e que era meu objeto de trabalho. O Ocidente era diferente, acreditava eu: exceto por alguns bolsões de resistência nos Estados Unidos, tratavase de um mundo pós-religioso, de uma sociedade secular. No entanto, terminei por descobrir que a maioria dos suecos acredita que a Terra é visitada por seres alienígenas, bem como ao menos um terço dos norte-americanos. De acordo com uma pesquisa, mais de um quarto dos franceses acredita em reencarnação. O professor Wouter Hanegraaff, da Universidade de Amsterdã, sustenta que, apesar do esoterismo ocidental ter sido sempre ignorado por acadêmicos que se envergonham de sua sobrevivência desde os tempos antigos, a emergência da própria modernidade está ligada à história do esoterismo. A Teosofia, vim a saber para meu espanto, estava até mesmo na origem da loja especializada no bairro chique
de Zamalek no Cairo, onde minha esposa e eu compramos vegetais orgânicos. Amsterdã foi onde encontrei a comunidade de acadêmicos que estudam novos movimentos religiosos no Ocidente, e também onde fui descoberto por uma parte daquela comunidade. Logo após a conferência, o editor de um periódico francês do qual eu nunca tinha ouvido falar enviou-me um e-mail no Cairo, pedindo para publicar meu artigo sobre o «Sufismo Tradicionalista». Quando apresentei o texto, um revisor da Sorbonne questionou minha visão de Guénon como puramente muçulmano. Na Sorbonne, descobri, Guénon era visto como católico, como parte da história do esoterismo francês e como maçom; seu Islã era considerado quase secundário. E assim a conferência de Amsterdã levou-me a Paris, a cidade de Guénon. René Guénon apresentara uma tese de doutorado à Sorbonne, que a rejeitou. Mas, mesmo que Guénon nunca tenha perdoado a Sorbonne, no fim do século XX a Sorbonne havia reabilitado Guénon. Marquei um encontro no departamento de ciências religiosas da Escola de Altos Estudos com Jean-Pierre Laurant, a principal autoridade na academia francesa sobre Guénon e o revisor mais crítico do meu «Sufismo Tradicionalista». Um porteiro indicou-me a biblioteca, um minúsculo cômodo com painéis de madeira, estantes com portas de vidro e tábuas rangendo no chão, onde encontrei um senhor de cabelos brancos debruçado sobre um manuscrito coberto com desenhos e diagramas cabalistas. Após o manuscrito ser devidamente enrolado e guardado, seguimos para um café próximo, sob o sol; logo eu viria a descobrir que a maior parte da conversação acadêmica na França acontece em cafés. A cortesia de Monsieur Laurant era equivalente aos veneráveis painéis de madeira da biblioteca; ele fazia perguntas sobre o progresso de minhas pesquisas como se indagasse sobre a saúde de um amigo em comum. Ofereceu algumas sugestões, quase pedindo desculpas. Cada uma delas, naturalmente, veio a abrir um novo e amplo campo de investigações. Um dos centros da vida de Guénon em Paris havia sido sua editora, chamada inicialmente «Chacornac Irmãos» e depois renomeada «Edições Tradicionais» (Éditions traditionnelles), em homenagem ao
movimento fundado pelo campeão de vendas de Chacornac. Seu endereço aparecia impresso em um sem-número de livros que eu havia visto: II, quai Saint-Michel, uma pequena caminhada da Sorbonne. Mas, quando cheguei ao quai Saint-Michel, as Edições Tradicionais não estavam mais lá. Apenas uma livraria esotérica sobrevivia no bairro, a «Table D’Émeraude», na rue de la Huchette (a «medieval rue de la Huchette», de acordo com o guia turístico), localizada atrás do rio Sena. Exceto pela livraria, a área estava tomada por turistas e por vendedores de cartões-postais, além de um restaurante onde se ouviam todas as línguas menos o francês. A livraria Table D’Émeraude estava em mau estado, os vendedores claramente desmotivados até para abrir a caixa registradora. Três dias depois, precisei sugerir um lugar para um encontro com um xeique sufi Tradicionalista que vinha da Borgonha a Paris para fazer negócios vendendo cavalos (ele possuía uma fazenda de garanhões). Apesar de minha recepção anterior, escolhi a calçada em frente à Table D’Émeraude, pensando que pelo menos poderia ganhar algo dando uma espiada nos livros caso o xeique se atrasasse. Ele realmente se atrasou, enviando por celular os detalhes do engarrafamento em que estava preso, mas acabei não ganhando nada com a espera. Desde a minha visita anterior, a livraria havia fechado. «E reaberto como um restaurante grego?», perguntou-me Monsieur Laurant em nosso encontro seguinte. Seguindo as indicações de Monsieur Laurant, acumulei listas cada vez maiores de nomes, que investiguei a princípio na ultramoderna Biblioteca Nacional da França, uma monstruosidade nova em folha, com seu próprio metrô e um sistema de computadores que derrotava empregados e usuários praticamente com a mesma frequência. Da Biblioteca Nacional a mais encontros em mais cafés. «Então foi você que pediu o livro», disse um jovem acadêmico católico. «Fiquei pensando quem poderia ter sido.» O jovem acadêmico, ao que tudo indicava, trabalhava meio período na Biblioteca Nacional. Nunca estava claro em que medida esses acadêmicos franceses estudavam o movimento Tradicionalista e em que medida faziam parte dele, o quanto eu estava recebendo ajuda ou sendo monitorado.
Mais detalhes dos interesses e influências de Guénon vieram dos maçons, especialmente do arquivista da Grande Loja Nacional Francesa, que encontrei não num café, mas num escritório ao lado da biblioteca da Grande Loja. Não havia atmosfera alguma de segredo maçônico ali, apenas as pilhas de livros e papéis que se acumulam no escritório de qualquer acadêmico ativo, mas um pouco desorganizado. Obtive ainda mais detalhes com um monge jovial, de cachimbo e terno com colete, que pediu cuscuz para nosso almoço no restaurante norte-africano ao lado. Mais notas vieram de uma entrevista com um acadêmico franco-muçulmano, que marcou encontro no café ligado ao Instituto do Mundo Árabe, onde o chá nos foi servido em bules marroquinos de prata, em lugar das xícaras de café de costume. Ao sair do Instituto do Mundo Árabe, parei em diversas livrarias árabe-islâmicas, tentando verificar a proporção entre livros Tradicionalistas e não Tradicionalistas à venda. Depois de três livrarias desse tipo, vi-me diante das Éditions Traditionnelles, milagrosa e inesperadamente reaberta em uma vizinhança mais hospitaleira do que as ruas cheias de restaurantes gregos e turistas que haviam inundado seu bairro original. Comprei alguns livros e entrevistei o proprietário, que claramente tinha a esperança de que eu comprasse uma das coleções completas das Études traditionnelles, a revista de Guénon (recomendo de todo o coração às bibliotecas de pesquisa do mundo inteiro aquelas coleções que restavam). Na saída da loja, detive-me sobre uma pilha de panfletos amarelados e em mau estado. «Pegue um, se quiser», disse o proprietário, e foi o que fiz. Era O Véu de Isis, de 6 de maio de 1891, com o subtítulo O órgão semanal do Grupo Independente de Estudos Esotéricos de Paris, preço 10 centavos, «editado por Papus». Papus, descrito por um biógrafo entusiasmado como «o Balzac do ocultismo», havia sido o primeiro contato conhecido de Guénon com o meio ocultista. Ali, junto com um anúncio da próxima conferência de «Papus» (sobre «A Missa Negra ao longo dos tempos»), estavam artigos nos quais, anos antes de o movimento existir, tive a impressão de estar lendo Tradicionalistas. Ou, invertendo as coisas, algo muito parecido com o Tradicionalismo havia evidentemente existido antes de Guénon.
Ao deixar Paris, tive de admitir que havia em Guénon algo além do Islã, que a visão dominante a seu respeito em Paris era tão válida quanto aquela dominante no Cairo. E a coisa não acabava aí. Após a publicação de meu artigo sobre «Sufismo Tradicionalista» e da postagem on-line pelos organizadores do texto de outra apresentação que fiz sobre «Tradicionalistas na Internet», as pessoas passaram a entrar em contato comigo. Fiquei sabendo de ocultistas Tradicionalistas no Brasil, de filósofos Tradicionalistas no Irã e de uma escola de arte Tradicionalista na Grã-Bretanha. E a escola de arte britânica acabou revelando-se que funcionava sob os auspícios do príncipe Charles e dividia suas instalações com algo chamado Academia Temenos. A Academia Temenos, descobri, fora fundada por uma das poetisas mais conceituadas da Grã-Bretanha, Kathleen Raine, e foi em correspondência com ela que me deparei pela primeira vez com o nome de Marsílio Ficino. Esse nome me levou à Itália renascentista e às origens primeiras do Tradicionalismo. O professor Hanegraaff, o acadêmico especializado em esoterismo, parecia estar certo. O Tradicionalismo se apresenta contra o mundo moderno, mas o movimento nasceu com a modernidade, no Renascimento. Kathleen Raine e o príncipe Charles não eram os únicos nomes conhecidos que começavam a aparecer em minhas notas. Em certos momentos, tive a impressão de estar descobrindo a história intelectual secreta do século XX. Ali estavam Aldous Huxley, André Gide e T. S. Eliot. «Como você conheceu o Tradicionalismo?», perguntei a um professor universitário norte-americano por e-mail. Pelas obras de E. F. Schumacher, respondeu ele. Schumacher? Quem mais? Mircea Eliade, por que não? Reclamado como Tradicionalista por Mutti em seu livro sobre Evola no front oriental, condenado como fascista e antissemita por seus inimigos e por Saul Bellow, marcado para sempre, concluí, por seu encontro precoce com Guénon e Evola. Huston Smith? Thomas Merton? É claro — eu já não me surpreendia com nada. Jung? Por que não Sartre também? Há limites. Sartre nunca, e, examinando mais de perto, Jung revelou-se ligado a uma escola por vezes parecida, mas, no fim, bastante diferente.
Muitos dos que entraram em contato comigo ao longo dos dois anos seguintes eram membros antigos ou atuais da Maryamiyya, a ordem sufi secreta de Schuon, que havia desembocado nas «irregularidades» que primeiro me alertaram para o fato de que o Tradicionalismo era mais do que aparentava. «Você quer saber a verdade sobre Schuon?», perguntava um e-mail. Sim, por favor, respondi — e me vi em seguida envolvido numa difícil correspondência ao longo de várias semanas, no curso da qual finalmente consegui convencer meu tímido voluntário de que eu era mesmo um acadêmico objetivo, e não um criptofascista. Meu artigo exigia alguns esclarecimentos, explicou-me outra pessoa de maneira polida, por meio de um intermediário. Cartas, faxes e e-mails se seguiram, assim como entrevistas de Chicago a Genebra, bem como fotocópias de centenas de documentos de um tipo ou de outro. Todos esses informantes diziam desejar esclarecer as coisas ou que a verdade fosse contada, mas comecei a perceber que a maioria buscava respostas, e esperava que eu pudesse fornecê-las. «O que havia dado errado?», perguntavam-se todos. Um senhor idoso e distinto convidou-me para almoçar em sua casa de campo nas montanha suíças, apresentou-me a seus netos e, por fim, pareceu relutar em ficar a sós comigo. Por fim, dirigi-lhe algumas perguntas na presença de seu genro, que também havia sido discípulo de Schuon, e recebi apenas respostas defensivas e evasivas. Voltamos às generalidades, à medida que a entrevista marcada se transformava em uma visita social um tanto desconfortável. Já no fim, quando eu me preparava para sair e pegar meu trem, o senhor idoso me procurou. «Peço desculpas, por favor, perdoe a minha reação agora há pouco. Você tem de entender que… todos esses anos… tudo é tão… doloroso.» Saí sem ter nada a acrescentar às minhas notas, mas sentindo uma grande compaixão por aquele triste cavalheiro. Um ano depois, fiquei triste ao saber de sua morte. Àquela altura, eu começava a entender o que estava por trás do Tradicionalismo. As conexões fascistas de Evola eram interessantes, mas não o centro da questão. W. B. Yeats era mais importante do que Mussolini: o próprio Yeats não era um Tradicionalista, mas definitivamente um precursor, junto com William Blake. «As coisas
vão abaixo…», escrevera Yeats. O seu centro era o temenos de Raine, o centro sagrado, o divino e o espiritual, aquele aspecto essencial da vida humana que parecia haver desaparecido do Ocidente. Em sua ausência, tudo desmoronava, e a anarquia ameaçava — não a mera anarquia política, mas uma anarquia mais séria e mais profunda. O Tradicionalismo era a arrebatadora tentativa de restaurar uma ordem divina, a resposta de indivíduos inteligentes e sensíveis a um mundo estranho, a um Ocidente no qual eles eram tão dissidentes quanto Dugin havia sido na União Soviética tardia. O enigma Schuon foi, no fim, o mais difícil de todos, e parte do problema foi descobrir quando as «irregularidades» haviam começado a se manifestar. Elas estavam claramente lá na década de 1990, mas haviam começado na década de 1980 ou de 1970? Uma fonte bem informada e não Tradicionalista falou de boatos já na década de 1960. Em seguida, outro senhor de idade, de quem sempre me lembrarei com afeto e respeito, entrou em contato comigo. Ele me convidou para um almoço nas margens de um lago, levou-me para uma caminhada e emprestou-me um livro, um volume de bolso, a capa creme contendo simplesmente o título Erinnerungen und Betrachtungen, ou «Memórias e Reflexões», além do nome do autor: Frithjof Schuon. Impresso de maneira privada apenas para assinantes em circulação restrita, aquela era a própria autobiografia de Schuon, quase incrivelmente franca, e ela respondia a todas as questões que me restavam. As «irregularidades» haviam começado na década de 1940, ou no comecinho da década de 1930, ou, talvez, na infância de Schuon. E aquela tragédia por fim tinha explicação. As memórias de Schuon forneceram uma explicação em nível pessoal, e meus contatos com tantos outros Tradicionalistas, cara a cara ou por meio de seus escritos, seguidores de Schuon ou independentes dele, deram-me outras explicações. No entanto, uma explicação mais geral do Tradicionalismo ainda era necessária: uma explicação da razão por que ele se espalhara daquela maneira, por que era tão importante para tanta gente, e por que atraíra algumas das mentes mais importantes do pensamento moderno. Como historiador, estou convencido de que uma história bem contada é, em si mesma, um caminho para a compreensão, e essa convicção
perpassa o livro que se segue a este prólogo. Além disso, uma análise com fundações mais teóricas será encontrada no capítulo 14. As questões discutidas aqui incluem a relação entre o Tradicionalismo e o Orientalismo, correntes e contracorrentes históricas, globalização e deslocamento cultural, bem como a tática do entrisme. Essas são questões que a escrita deste livro me ajudou a entender melhor, mas, no fim das contas, não era esse o centro da questão. Este livro não está dedicado a problemas abstratos, mas às pessoas cujas esperanças e aspirações, energias e — por vezes — erros compuseram a história do Tradicionalismo.
PARTE I O DESENVOLVIMENTO DO TRADICIONALISMO
1. TRADICIONALISMO
Existem muitos tipos de «tradicionalistas» e muitos movimentos «tradicionalistas». No sentido mais amplo da palavra, um «tradicionalista» pode não passar de um conservador, provavelmente uma pessoa nostálgica com o desejo de retomar os costumes de sua juventude. Um «tradicionalista» pode ser também alguém que prefere alguma prática estabelecida em detrimento de algo que veio a substituí-la, como no caso de Marcel Lefebvre, o arcebispo católico que rejeitou as conclusões do Concílio Vaticano II e formou uma igreja cismática seguindo o antigo rito tridentino. Ele e seus seguidores são geralmente descritos como «tradicionalistas católicos». Este livro conta a história de um movimento que é «tradicionalista» em um sentido mais preciso. A palavra «tradição» deriva do verbo latino tradere, entregar ou passar, e, em seu sentido etimológico, uma tradição é uma «declaração, crença ou prática transmitida (especialmente de maneira oral) de geração em geração».1 O movimento Tradicionalista objeto deste livro toma a tradição primariamente nesse sentido, como crença e prática transmitidas desde os tempos imemoriais — ou a crença e a prática que deveriam ter sido transmitidas mas que foram perdidas pelo Ocidente durante a segunda metade do segundo milênio d.C. De acordo com os tradicionalistas, o Ocidente moderno está em crise devido à perda da transmissão da tradição, como explicado em 1927 no livro A crise do mundo moderno. A solução? Na maior parte dos casos, A metafísica oriental (1939), mas, por vezes, Revolta contra o mundo moderno (1934). A crise do mundo moderno e A metafísica oriental são obras de René Guénon, que será analisado principalmente nos três primeiros capítulos deste livro; Revolta contra o mundo moderno é uma obra de Julius Evola, que encontraremos mais tarde.2
Os Tradicionalistas discutidos neste livro formam um movimento no sentido mais fraco do termo. O movimento Tradicionalista não possui estrutura formal, e, desde o fim da década de 1940, deixou de possuir um comando centralizado. Ele é composto de um certo número de grupos e indivíduos, unidos por sua dívida comum para com a obra de René Guénon. Apesar de o movimento ser algumas vezes chamado de «tradicionalismo guénoniano», a maior parte dos envolvidos rejeita o título e prefere chamar a si mesmos de «tradicionalistas», em geral com um «t» minúsculo. Eu utilizo o título que eles dão a si mesmos, mas, para fins de clareza, emprego sempre um «T» maiúsculo. A história do Tradicionalismo se sucede em três fases, refletidas nas três partes em que este livro está dividido. Durante a primeira fase, que vai até a década de 1930, Guénon desenvolveu a filosofia Tradicionalista, escreveu diversos artigos e livros e reuniu um pequeno grupo de seguidores. Durante a segunda fase, foram feitas tentativas de colocar a filosofia Tradicionalista em prática, principalmente em dois contextos bastante diferentes: o Islã sufi, como exemplo de metafísica oriental, e o fascismo europeu, como forma de revolta. Durante a terceira fase, após a década de 1960, as ideias Tradicionalistas começaram a penetrar, sem serem notadas, na cultura ocidental mais ampla, passando dali ao mundo islâmico e à Rússia.
AS OBRAS DE GUÉNON Guénon publicou seu primeiro artigo em 1910 e seu primeiro livro em 1921. Ele continuou a publicar novos livros até 1946, bem como artigos suficientes para encher dúzias de compilações póstumas. Os traços essenciais da filosofia Tradicionalista, no entanto, podem ser encontrados em quatro livros publicados entre 1921 e 1924.3 O primeiro dos quatro foi L’introduction générale à l’étude des doctrines hindoues [Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus], publicado em 1921.4 A Introduction générale foi controversa desde o princípio. O livro foi recomendado para publicação por um
importante filósofo católico francês então em início de carreira, Jacques Maritain, figura importante na história inicial do Tradicionalismo, mas havia sido rejeitado como tese de doutorado por um igualmente importante indólogo francês então no auge da carreira, Sylvain Lévi. Lévi rejeitou a Introduction générale (sob a forma de tese) por três motivos principais. Em primeiro lugar, ela «minimizava a história e a crítica histórica»,5 uma crítica da metodologia de Guénon que se mostrava justa sob muitos aspectos. Guénon não tinha nenhuma pretensão de seguir os padrões metodológicos da disciplina acadêmica da indologia. Por razões que serão examinadas mais tarde, a sua abordagem era teológica, e não antropológica ou sociológica. Para Guénon, o hinduísmo era um repositório de verdade espiritual, não o corpo de crenças e práticas modificado ao longo do tempo tal como reconhecido pela academia ocidental no final do século XIX. Enquanto essa abordagem obviamente desqualificava a obra de Guénon para os propósitos de Lévi, o mesmo não acontecia para o filósofo católico Maritain. A segunda objeção de Lévi à tese era que ela excluía tudo o que não se encaixava na teoria de Guénon de que o hinduísmo podia ser reduzido ao Vedanta.6 O Vedanta é um dos seis darshanas ou escolas filosóficas do hinduísmo, e baseia-se especialmente nos Upanixades como o fim dos Vedas, as escrituras hindus mais importantes ao lado do Bhagavad Gita e dos Brahma-sutras. Esses foram alguns dos primeiros textos hindus a serem traduzidos ao francês, e o Vedanta tornou-se amplamente conhecido devido à inclusão de dois capítulos do Bhagavad Gita no Cours de philosophie [Curso de filosofia] do popular filósofo francês Victor Cousin, publicado em 1828.7 O Vedanta era amplamente apreciado no Ocidente durante o século XIX, em grande parte por «não reconhecer outra realidade além do Ser Universal, único e sem qualificação limitante»,8 uma característica que apresentava um apelo óbvio aos criados numa tradição monoteísta. Para Lévi e indólogos posteriores, no entanto, existem diversas variedades de hinduísmo além do Vedanta. O fato de Guénon escolher ignorar tais variedades foi consequência do contexto
no qual ele travou seu primeiro contato com o Vedanta, o que será discutido mais adiante. Como filósofo, Maritain não teria nada a dizer sobre essa omissão: o status do Vedanta na cultura hindu encontrava-se fora de seu campo. A terceira objeção de Lévi à tese era que Guénon estava «pronto a crer numa transmissão mística de uma verdade primeira (une vérité première) que aparecera à humanidade nas primeiras eras do mundo»,9 uma crença ridícula em si mesma para Lévi, mas que Maritain evidentemente não via como particularmente objetável.10 Aquilo que Lévi chamou de «verdade primeira» é mais conhecido como «Filosofia Perene», e a crença na existência da Filosofia Perene — crença que chamarei de «perenialismo» — é um dos três elementos centrais da filosofia Tradicionalista desenvolvida por Guénon. O termo philosophia perennis (filosofia perene) foi cunhado em 1540 por um erudito católico11 para descrever um dos insights centrais de Marsílio Ficino, uma figura importante para as origens do Tradicionalismo. Ficino foi um padre que presidiu a Academia Platônica de Florença durante o século XV, e uma das figuras centrais do Renascimento italiano.12 Ele considerava a renovação do interesse em Platão no século XV uma dádiva de Deus a fim de fornecer os argumentos filosóficos para embasar o Cristianismo, e enxergava Platão e o Cristianismo como possuindo o mesmo grau de autoridade, pois ambos eram a mesma coisa: «a religião legal não difere da verdadeira religião; e a religião legal não difere da verdadeira filosofia».13 Enquanto um ocidental moderno poderia justificar a religião conferindo-lhe uma coloração filosófica, Ficino fez o contrário, dando à filosofia platônica uma coloração religiosa. Para Ficino, Deus estava por trás tanto de Cristo quanto de Platão, e a Filosofia Perene precedia (e, portanto, unia) ambos. Todas as religiões compartilhavam uma origem comum em uma única religião perene (ou primeva, ou primordial) que havia posteriormente assumido uma variedade de formas, incluindo zoroastrista, faraônica, platônica e cristã.14
Durante um século e meio após Ficino, a ideia de que existia uma Filosofia Perene passou a ser cada vez mais aceita. O perenialismo, no entanto, foi desacreditado no início do século XVII 15 e, a partir de então, sobreviveu apenas na periferia da vida intelectual do Ocidente. No século XIX, o perenialismo foi revivido sob uma forma ligeiramente modificada, com os recém-descobertos Vedas sendo tomados como uma expressão textual remanescente. Foi sob essa forma, como veremos, que Guénon encontrou o perenialismo, e essa é a forma apresentada na Introduction générale, rejeitada por Lévi e central para a filosofia Tradicionalista. Os dois livros seguintes de Guénon, lançados após a Introduction générale, acrescentaram o segundo dos três elementos centrais da filosofia Tradicionalista (o primeiro sendo aquilo que se pode chamar de perenialismo-Vedanta). Assim como a Introduction générale, esses dois livros surgiram sob auspícios católicos, tendo sua origem em artigos encomendados originalmente em 1921 pelo padre Émile Peillaube, um colega de Maritain, para a Revue de Philosophie [Revista de Filosofia] por ele editada.16 O primeiro artigo atacava a Teosofia (movimento religioso discutido mais adiante neste livro) e foi a base do segundo livro de Guénon, Le Théosophisme, histoire d’une pseudo-religion [O Teosofismo, história de uma pseudorreligião] (1921). A este se seguiu uma obra similar em 1923, L’erreur spirite [O erro espírita].17 Ambos eram sofisticadas demolições da Teosofia, do espiritualismo e do ocultismo, derivadas de uma familiaridade com os meios ocultistas adquirida por Guénon entre 1906 e 1912, um período de sua vida abordado nos próximos dois capítulos deste livro. A principal importância desses dois livros para a filosofia Tradicionalista é que eles apresentavam dois conceitos interligados, «contrainiciação e «inversão». No uso Tradicionalista, «contrainiciação» é o oposto não de iniciação em si mesma, mas da iniciação em uma tradição válida e ortodoxa, tal como representada pelo Vedanta. «Contrainiciação» é a iniciação em pseudotradições como a Teosofia, que são, na realidade, inversões da verdadeira tradição. Em vez de conduzir à Filosofia Perene, a contrainiciação afasta dela. O lugar da iniciação na filosofia Tradicionalista (o último dos três elementos centrais) será considerado mais adiante.
Mais importante do que a «contrainiciação» é o conceito relacionado de «inversão». Guénon não inventou esse conceito, que está presente nos relatos escatológicos do Anticristo (que é a inversão do verdadeiro Cristo), mas ele viria a se tornar um elemento central do Tradicionalismo. A contrainiciação é a inversão da iniciação, mas a inversão não se restringe a questões iniciáticas. Em sua forma guénoniana plenamente desenvolvida, a inversão é vista como uma característica que pervade toda a modernidade. Enquanto tudo o que realmente importa está, na realidade, em declínio, as pessoas supõem, de maneira insensata, enxergar o progresso. Inversão, o segundo conceito apresentado nesses dois livros, é um dos mais poderosos elementos na filosofia Tradicionalista, dando a muitos leitores de Guénon e a Tradicionalistas posteriores uma explicação persuasiva acerca de grande parte do que parecia mais desconcertante no século XX. Para tomarmos alguns exemplos contemporâneos, fenômenos que podem ser explicados como inversões incluem as modas juvenis de feiura aparente, a pregação de valores de «colocar tudo para fora» como superiores ao autocontrole, a existência de padres pedófilos e as fotografias de Andres Serrano.18 Nas palavras de um Tradicionalista contemporâneo — um jovem e talentoso acadêmico pesquisador do Islã —, quando o mundo moderno é entendido em termos de declínio em lugar de progresso, quase tudo o mais muda, e não sobram muitas pessoas com quem conversar.19 Obviamente, é possível que não Tradicionalistas respondessem que exemplos comparáveis de inversão podiam ser encontrados no século XV tanto quanto no início do século XX, mas essa não é a questão. O livro seguinte de Guénon completou o essencial da filosofia Tradicionalista. Tratou-se de Orient et Occident [Oriente e Ocidente] (1924), um chamado à salvação do Ocidente do colapso por meio da tradição oriental. Na primeira metade do livro, Guénon ataca sistematicamente a ilusão do materialismo e as superstições do progresso, da razão, da mudança (como algo desejável em si mesmo) e do moralismo sentimental (uma especialidade anglo-saxã):
A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia entre todas as que conhecemos; essa civilização é a única desenvolvida em uma direção puramente material, e esse desenvolvimento monstruoso, cujo começo coincide com o que se costuma chamar de Renascimento, foi acompanhado por uma regressão intelectual correspondente, que chegou a um ponto em que os ocidentais de hoje não sabem o que pode ser a pura intelectualidade — daí o seu desdém não apenas pelas civilizações orientais, mas também pela Idade Média europeia.20 Por «pura intelectualidade», Guénon entende algo próximo da metafísica, espiritualidade ou religião, substituída por um culto supersticioso da razão, que valora apenas aquilo que, na realidade, não tem valor, um exemplo de inversão. Dada a identificação do Oriente com a tradição e do Ocidente com a modernidade, o título «Oriente e Ocidente» poderia muito bem ser «Tradicional e Moderno»; o segundo par de termos, e não o primeiro, viria a se tornar o padrão no discurso Tradicionalista. A oposição de Guénon não se dirige ao Ocidente, mas ao mundo moderno, e o que ele deseja não é o triunfo do Oriente, mas «a restauração do Ocidente como uma civilização tradicional adequada».21 O Ocidente, argumentava Guénon em Orient et Occident, corria um grave perigo — não por causa de «terrores quiméricos» como o bolchevismo ou o «perigo amarelo» (uma expressão que ele usa entre aspas, referindose ao militarismo chinês e japonês), mas por não estar baseado em nada mais substantivo do que a superioridade industrial. Na ausência de qualquer fundação real — isto é, espiritual — a civilização ocidental encontrava-se sob o risco imediato de um colapso cataclísmico no barbarismo e da consequente extinção pela assimilação por uma civilização ancorada em princípios mais sadios.22 Guénon não foi o único a escrever sobre o colapso iminente do Ocidente na década de 1920: o famoso e amplamente lido livro de Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes [A decadência do Ocidente], foi publicado em dois volumes entre 1919 e 1922.23 O fato de o Ocidente ainda não ter entrado em colapso não era razão
suficiente para tratar Guénon como um excêntrico marginal: ainda hoje existem vozes sóbrias alertando para tal colapso. Uma vez mais, um não Tradicionalista pode responder que uma sensação de declínio e o medo do colapso iminente, assim como a inversão, podem ser encontrados em muitas eras e lugares, sendo um traço humano padrão, mas, novamente, essa não é a questão. Guénon desejava evitar a extinção do Ocidente, e dedicou a segunda parte de seu livro a explicar como ela poderia ser evitada. Uma «elite intelectual» era necessária — o termo «intelectual» sendo empregado em um sentido especial guénoniano como espiritual, metafísico — para receber «ensinamentos tradicionais» por meio de uma «assimilação [...] de doutrinas orientais» (a menos que doutrinas ocidentais sobreviventes pudessem ser encontradas, o que Guénon achava pouco provável) a fim de empurrar o Ocidente em direção à restauração de uma civilização tradicional.24 Guénon acreditava que esse plano possuía limitadas possibilidades de sucesso, mas que valia a pena tentar, uma vez que, no mínimo, ele beneficiaria os membros da própria elite, e, Se a elite não tivesse tempo para atividades generalizadas o bastante a ponto de modificar profundamente a mentalidade ocidental como um todo, essa mesma elite seria uma «arca» simbólica flutuando sobre as águas do dilúvio e poderia, portanto, servir como ponto focal para atividades por meio das quais o Ocidente — apesar de provavelmente vir a perder sua existência autônoma — viria a receber as bases de um novo desenvolvimento, dessa vez regular e normal. No entanto, problemas complexos persistiriam: as revoluções étnicas certamente seriam muito graves. Seria altamente preferível que o Ocidente adquirisse uma civilização apropriada a suas próprias condições, poupando-o de ser assimilado, de maneira mais ou menos agradável, a formas que não foram feitas para ele.25 A elite proposta por Guénon não precisaria, a princípio, ser muito grande, organizada ou secreta, uma vez que suas atividades permaneceriam «por sua própria natureza, invisíveis às pessoas
comuns, não por estarem escondidas, mas porque elas seriam incapazes de compreendê-las». De fato, uma tentativa prematura de organização, especialmente em uma grande organização, seria não apenas inútil, mas perigosa, devido «aos desvios que naturalmente viriam a ocorrer», e devido às tentações de «ação social imediata, talvez mesmo ação política». No entanto, não haveria mal na criação de «grupos de estudos», apesar de seus membros necessitarem toda cautela, pois eles viriam a ameaçar «poderes inferiores insuspeitos». Somente após o terreno estar devidamente preparado, uma «organização solidamente constituída» seria necessária e possível.26 Com Orient et Occident, ficava estabelecido o essencial da filosofia Tradicionalista. Apesar de essa ideia não estar explícita em Orient et Occident, a doutrina tradicional adequada a ser assimilada pelo Ocidente a fim de garantir sua sobrevivência seria alguma expressão da Filosofia Perene, tal como descrita na Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, livro que é, na realidade, mais uma introdução ao entendimento guénoniano do que seria a «metafísica oriental» do que propriamente ao hinduísmo. Os «poderes inferiores insuspeitos» que se opunham a esse projeto incluíam organizações contrainiciáticas, apesar de não haver referências explícitas em Orient et Occident a Le Théosophisme ou a L’erreur spirite. Este livro é a história das diversas tentativas, ao longo do restante do século XX, de colocar o projeto de Guénon em execução, de formar a sua elite e de restaurar a «civilização tradicional» no Ocidente. «Poderes inferiores insuspeitos» acabaram se revelando um problema menor do que Guénon temia, eles mal aparecem nos capítulos seguintes. Existiram, no entanto, diversas organizações Tradicionalistas que, em retrospecto, mostraram-se prematuras — algumas delas especificamente orientadas para a «ação social e política» —, e vários «desvios» de fato resultaram disso. Antes de continuarmos, é necessário dar um melhor exemplo do estilo de Guénon do que o que foi apresentado nas citações anteriores, que foram editadas para deixá-las mais diretas. O estilo de Guénon é, em geral, nada direto, apesar de ser um pouco mais claro em francês do que em inglês. Por exemplo, Guénon introduz esta declaração: «Se algumas pessoas, em lugar de trabalhar
isoladamente, preferirem se encontrar para formar uma espécie de ‹grupo de estudos›, não é aí que vemos perigo, nem mesmo dificuldade», com o seguinte: «No entanto, não desejamos fechar as portas a nenhuma possibilidade, por esse motivo ou por qualquer outro, nem desencorajar nenhuma iniciativa, por menor que seja sua probabilidade de produzir resultados valiosos e de evitar um simples desperdício de esforços; desejamos apenas alertar contra falsos pontos de vista e conclusões apressadas».27 O estilo de Guénon, apesar de invariavelmente elogiado pelos Tradicionalistas, dificilmente foi calculado para ter algum apelo entre as «pessoas comuns», a contraparte da elite guénoniana, um grupo que ele claramente não levava em conta. Guénon não fez esforço nenhum para se comunicar com quem ele acreditava que não entenderia nem apreciaria seu trabalho — no entanto, como veremos, alguns Tradicionalistas posteriores escreveram para o público mais amplo com sucesso. Guénon publicou mais seis livros na década de 1920, dos quais os mais importantes são L’homme et son devenir selon le Védânta [O Homem e seu devir segundo o Vedanta] (1925) e La Crise du monde moderne [A crise do mundo moderno] (1927).28 O primeiro é um desenvolvimento da Introduction générale, o segundo, um desenvolvimento da primeira parte de Orient et Occident, abordando a questão da natureza e do papel da elite de maneira breve num pósescrito. La crise du monde moderne é a obra-prima de Guénon. Um de seus livros mais traduzidos, ele permanece em catálogo e disponível desde sua publicação, sendo atualmente parte da popular e prestigiosa série «Folio» da editora Gallimard (o equivalente francês da série «Modern Classics» da Penguin). Trata-se provavelmente do melhor ponto de partida para o leitor interessado em investigar os textos originais do Tradicionalismo. Entre os refinamentos introduzidos em La crise du monde moderne está uma terminologia mais palatável, com a expressão «ciência sagrada» substituindo a «intelectualidade pura» de Orient et Occident, e «profano» substituindo «comum». O estilo também foi muito aprimorado. O que resta da discussão sobre a «elite
intelectual», por exemplo, é introduzido da seguinte maneira: «Se todos entendessem o que o mundo moderno é na realidade, ele deixaria imediatamente de existir, uma vez que sua existência, como a de todas as limitações, é puramente negativa. Ele existe apenas pela negação da verdade tradicional e super-humana».29 O estilo aprimorado, a clareza e a força de La crise du monde moderne podem muito bem ser o resultado das condições em que o livro foi escrito — com pressa. Muitos autores percebem que o que se escreve quase sem pensar sobre um assunto bem digerido é melhor que o que é escrito cuidadosamente, com extensas revisões, e esse parece ter sido o caso. A origem do livro veio de uma sugestão de Gonzague Truc, editor e amigo de Guénon, para que este escrevesse um livro resumindo suas diversas conversas. Guénon escreveu-o, produzindo o que Truc chamou de «uma obra de inspiração».30 Além de aprimorar as obras anteriores do ponto de vista do estilo e da organização, La crise du monde moderne redefine o conceito Tradicionalista de «inversão». Para além de um capítulo sobre o caos social, há uma discussão do individualismo tanto como superstição quanto como ilusão moderna. Guénon explica como o «individualismo» moderno na realidade destrói a verdadeira «individualidade». Tanto o caos social quanto o individualismo eram questões importantes em 1927 e permanecem hoje. Mais importante, La crise du monde moderne se inicia com uma discussão do conceito hindu de tempo cíclico, na qual a idade final, a kali yuga (literalmente «quarta idade», chamada por Guénon de «idade sombria»), é um período de 6 mil anos de declínio. É na kali yuga que nos encontramos atualmente (de acordo tanto com Guénon quanto com os autores hindus). A teoria do tempo cíclico e da kali yuga completam um aspecto da filosofia Tradicionalista ao fornecer a explicação para o estado de coisas explorado alhures por Guénon: a inversão é uma característica da kali yuga.
GUÉNON E OS CATÓLICOS
Apesar de a filosofia Tradicionalista não ser católica, foi o apoio católico — sob a forma da recomendação de Maritain da Introduction générale e da encomenda de Peillaube de artigos de Guénon para a Revue de Philosophie — que ajudou o Tradicionalismo a emergir na esfera pública a partir de suas origens, que, como veremos, encontram-se nos meios ocultistas da Belle Époque. Os contatos de Guénon com os católicos começaram em 1909, quando ele foi publicado pela primeira vez em La France chrétienne [França cristã], um periódico discutido mais adiante, especializado em ataques contra maçons e ocultistas. Apesar de La France chrétienne ser um tipo de periódico muito diferente da Revue de Philosophie de Peillaube, Guénon escrevia sobre assuntos semelhantes em ambas as publicações: contra o que ele via como «contrainiciação» e o que os católicos viam como inimigos da Igreja. Os contatos entre Guénon e os católicos se aprofundaram em 1915, quando Guénon começou a frequentar conferências no Institut Catholique (Instituto Católico),31 uma instituição privada de educação superior fundada após a Lei de Separação entre a Igreja e o Estado de 1905 tornar impossível o prosseguimento do ensino de teologia católica na Sorbonne (universidade pública). A maior parte dos membros do antigo departamento de teologia da Sorbonne deixou a universidade para fundar o Instituto Católico, onde Peillaube era catedrático do departamento de filosofia, e onde Maritain era professor da mesma disciplina. Guénon parece ter se encaixado no Instituto Católico como um companheiro antissecularista e antimaterialista. Após 1916, ele proferiu algumas palestras no Instituto, a maioria delas sobre hinduísmo. A visão geral era que ele se ocupava do que hoje seria chamado de religião comparada, e usava ideias e terminologia de origem não cristã em suas conferências a fim de descrever realidades espirituais, realidades obviamente cristãs, da mesma maneira que outros empregavam ideias e terminologia da filosofia grega pré-cristã com o mesmo fim. Reconhecidamente, talvez algumas de suas opiniões precisassem se aproximar das doutrinas da Igreja.32 Se essa visão estava equivocada, Guénon nunca a corrigiu, e, mais tarde, algumas pessoas sentiram-se enganadas, se não traídas, mas não
está claro que elas estivessem erradas em enxergar Guénon, naquela época, como católico em um sentido mais ou menos convencional. Possuímos poucas informações sobre suas práticas religiosas na década de 1920, mas ele provavelmente levava sua esposa — católica devota — à missa no domingo. Além de ajudá-lo a publicar suas obras, os amigos católicos de Guénon parecem também tê-lo ajudado em sua carreira. A educação formal de Guénon havia sido interrompida em 1906, como veremos, mas em 1914 ele a retomou, obtendo uma licence (equivalente ao bacharelado) em filosofia na Sorbonne em 1915, perto dos trinta anos de idade. Em seguida, conseguiu seu primeiro emprego, como professor substituto em uma escola em Saint-Germain-en-Laye, próximo de Paris. Quando o professor que ele substituía retornou, Guénon passou a seu segundo emprego como professor de filosofia, no liceu de Sétif, na Argélia, durante o ano 1917-18.33 Em 1919, Guénon apresentou-se para a agrégation em filosofia na Sorbonne. A agrégation é uma prova abrangente exigida para ensinar a maioria das matérias em liceus e universidades franceses. Naquela época, ela era realizada em duas partes. Guénon passou na prova escrita, mas foi reprovado na oral. Regras introduzidas havia pouco impediram-no de apresentar-se novamente à agrégation devido à sua idade. Assim, Guénon começou a pensar em um doutorado. Após a recusa de sua tese por Lévi, no entanto, ele teve de abandonar qualquer esperança de uma carreira acadêmica regular.34 O Instituto Católico passou a ser, então, o único espaço sério que lhe restava aberto. Seus amigos ajudaram-no a conseguir um emprego de professor de filosofia na École des Francs-Bourgeois (uma escola católica, na qual a agrégation não era requerida) em 1922.35 A aliança entre o Instituto Católico e Guénon não podia durar, porém. Mesmo a Introduction générale preocupou Maritain, que inseriu na resenha que outra pessoa escrevera do livro o seguinte aviso: «A metafísica de Guénon é radicalmente incompatível com a fé (católica)», adicionando um parágrafo final — «O remédio (para os problemas contemporâneos) proposto pelo sr. Guénon — francamente, uma restauração hindu da antiga gnose, mãe das
heresias — só pioraria as coisas».36 O fato de Maritain recomendar para publicação um livro com o qual ele obviamente discordava é um paradoxo explicável, por um lado, em termos de suas relações amistosas com Guénon na época, e, por outro, porque, na qualidade de filósofo acadêmico, ele era capaz de ver o interesse de pontos de vista que, como fiel católico, era obrigado a rejeitar. A publicação de Orient et Occident afastou Guénon ainda mais de seus simpatizantes católicos. Uma resenha na Revue de Philosophie perguntava-se como Guénon podia «estar satisfeito com uma simples trégua filosófica com o mundo oriental e perder toda a esperança de ver esses povos [orientais] entrarem na unidade católica».37 Um dominicano foi além, alertando contra tomar Guénon como aliado do catolicismo baseado na força de sua «brilhante execução da Teosofia [...], seu horror ao protestantismo e à moral secular e cientificista». O dominicano concluía: «Nossa ingenuidade [...] tem limites»; Guénon estava claramente do outro lado, do lado oriental.38 Não se conhece a reação do próprio Maritain a Orient et Occident, mas as relações entre Guénon e o Instituto Católico esfriaram até que, finalmente, cessaram por completo. Existe uma história (não confirmada) de que Maritain teria depois tentado (sem sucesso) que as obras de Guénon fossem colocas no Índex de Livros Proibidos da Igreja Católica.39 Em 1921, Guénon já havia sido dispensado de seu posto na École des Francs-Bourgeois devido a suas opiniões heterodoxas, para decepção de seus alunos, muitos dos quais apreciavam os cursos de filosofia dados sem livros-texto (Guénon dizia que nenhum era bom), que tendiam a se concentrar no esoterismo medieval.40 Pelos anos seguintes, Guénon parece ter se sustentado com a magra renda obtida como professor particular de filosofia. Em 1925, no entanto, ele encontrou um novo aliado católico em Louis Charbonneau-Lassay, uma figura importante nos primeiros tempos do Tradicionalismo. Charbonneau-Lassay era um antiquário ultracatólico dedicado ao estudo do simbolismo cristão, a quem Guénon foi apresentado por um amigo comum ligado à France chrétienne.41 Desde 1922, ele vinha contribuindo com Regnabit, revue universelle du Sacré-Couer [Regnabit, revista universal do
Sagrado Coração], fundada no ano anterior pelo padre Félix Anizan com o apoio do cardeal Louis-Ernest Dubois, arcebispo de Paris. Por sugestão de Charbonneau-Lassay, Guénon passou a contribuir com artigos para Regnabit em 1925, escrevendo sobre a lenda do Santo Graal e buscando demonstrar a unidade de diversas formas tradicionais. Assim, ele comparou o Sagrado Coração ao terceiro olho de Xiva, causando apreensão em alguns. Anizan defendeu Guénon a princípio, respondendo que Regnabit era uma revista séria, não uma obra de piedade.42 Guénon não era o único colaborador incomum de Anizan. Este também havia pedido textos a Georges-Gabriel de Noillat, líder do Centro de Estudos Hiéron du Val d’Or, fundado em 1873 por um jesuíta e um barão espanhol com uma série de objetivos peculiares, incluindo dois que prefiguravam o Tradicionalismo: uma tentativa perenialista de «reconstrução de uma tradição sacra universal» e a fundação de uma «maçonaria Cristã do Grande Ocidente» a fim de combater a maçonaria anticristã do Grande Oriente, a mais ateísta das três «Obediências Maçônicas» (denominações ou órgãos supremos) da França.43 A publicação de La crise du monde moderne em 1927 marcou o fim das relações entre Guénon e a Igreja Católica; ironicamente, a passagem que causou mais confusão é a mais explicitamente prócatólica escrita por Guénon. O pós-escrito ao qual a segunda parte de Orient et Occident havia sido reduzida termina com uma discussão otimista (para Guénon) do possível papel da Igreja, uma discussão ausente em Orient et Occident, na qual as referências ao Cristianismo se restringiam a condenações do protestantismo. Na Crise du monde moderne, após notar sinais de que uma recuperação da ciência sagrada já tinha começado, Guénon identificava a Igreja Católica como o órgão natural para colocar-se à frente de tal movimento, e aconselhava a Igreja a agir dessa forma caso não quisesse ser atropelada pelos acontecimentos.44 Depois da comparação entre o Sagrado Coração e o terceiro olho de Xiva, essa afirmação foi demais para muitos católicos, que voltaram a se queixar ao editor de Regnabit. O próprio Anizan permaneceu um tanto inclinado a favor de Guénon, já que lhe deu uma última chance, pedindo que esclarecesse sua posição em relação
à obrigação de todos os católicos «de crer e afirmar que a doutrina [católica] é a mais completa expressão terrestre da verdade religiosa». Guénon declinou do convite, não desejando mentir ou fazer uma declaração pública de apostasia.45 Sua participação em Regnabit foi, assim, interrompida. Os sinais da esperada recuperação entrevistos por Guénon eram, ao que parece, o grupo de Tradicionalistas que começara a se formar a seu redor. Alguns serão abordados mais adiante neste capítulo, diversos outros serão abordados em capítulos posteriores. A maioria desses Tradicionalistas descobriu Guénon em 1927, o ano da publicação de La crise du monde moderne.
TRADICIONALISTAS NA DÉCADA DE 1920 O Tradicionalismo na década de 1920 não era ainda um movimento religioso — não havia práticas comuns nem mesmo crença — mas sim um movimento filosófico, com uma diferença, porém: a convicção de que, «se todos entendessem o que o mundo moderno é na realidade, ele deixaria imediatamente de existir». Um membro do pequeno círculo de Tradicionalistas naquela época era Jean Reyor (também conhecido como Marcel Clavelle), uma figura importante na história do Tradicionalismo e cujas origens são pouco conhecidas. Reyor recordou mais tarde que a maioria acreditava que o objetivo era chegar ao conhecimento — à sabedoria, talvez — por meio do estudo de textos, sejam fontes originais, como os Vedas, ou os escritos de Guénon, e afastar-se do mundo moderno. Na época, «a participação integral em uma forma tradicional em particular não parecia imperativa».46 Essa opinião viria a mudar após 1930, como veremos.
Tradicionalistas em Paris O ponto central ao redor do qual girava o Tradicionalismo na década de 1920 era a revista Le Voile d’Isis [O Véu de Isis], publicada
pelos irmãos Chacornac, os mais importantes editores e livreiros de ocultismo de Paris. Guénon havia conhecido Paul Chacornac, sócio da empresa Chacornac Irmãos, em 1922, quando vendeu grande parte de sua biblioteca de livros sobre ocultismo após a publicação de L’erreur spirite.47 Chacornac, uma figura importante na história do Tradicionalismo, descreveu (talvez de modo excessivamente dramático) seu encontro com Guénon da seguinte maneira: Certa manhã — era o dia 10 de janeiro de 1922 — vimos entrar em nossa loja no quai Saint-Michel um homem muito alto, magro, de cabelos castanhos. Próximo dos trinta, vestido de preto, com a aparência clássica de um acadêmico francês. Sua longa face, cruzada por um pequeno bigode, era iluminada por um par de olhos estranhamente claros e penetrantes, que davam a impressão de enxergar para além das aparências. Com uma polidez perfeita, ele nos pediu que fôssemos buscar alguns livros e panfletos neoespiritualistas dos quais queria se livrar… O interior [de seu apartamento] era de uma simplicidade extrema, que combinava perfeitamente com a simplicidade do próprio homem. No salão em que nos recebeu, uma fotografia atraiu nossa atenção: um retrato em tamanho real de uma mulher indiana, pele marrom, cabeça descoberta, usando um vestido de veludo vermelho, com brincos nas orelhas e cuja face se destacava de forma luminosa. Sobre a lareira, vimos um relógio maçônico fora do comum, do fim do século XVIII; um piano e uma grande estante, repleta de livros, completavam a decoração.48 Chacornac permaneceu em contato com Guénon e, em 1928, decidiu transformar La Voile d’Isis (uma revista ocultista que os irmãos Chacornac vinham publicando desde 1890) em uma revista Tradicionalista, editada — mas não dirigida — por Guénon. O motivo principal foi o desejo de reviver um título falido, e não algum entusiasmo verdadeiro pelo Tradicionalismo, apesar de tal entusiasmo por Guénon e pelo Tradicionalismo ter se desenvolvido mais tarde.
Essa transformação completou-se em 1933, com a troca do nome da revista para Études traditionnelles [Estudos Tradicionais].49 La Voile d’Isis/ Études traditionnelles foi, durante muitos anos, o ponto principal ao redor do qual os Tradicionalistas se reuniram, bem como o lugar onde Guénon e a maioria de seus colaboradores publicaram sua obra. A revista foi a peça central de um projeto de pesquisa Tradicionalista: o estudo de uma ampla variedade de tradições iniciáticas, no Ocidente pré-renascentista assim como no Oriente, seguindo as linhas indicadas por Guénon em suas próprias obras. A decisão de Chacornac de confiar sua revista aos Tradicionalistas, tomada por razões puramente comerciais, auxiliou na difusão do Tradicionalismo da mesma maneira que o apoio do Instituto Católico havia feito anteriormente. Na década de 1920, os irmãos Chacornac estavam estabelecidos como um dos quatro editores em Paris que trabalhavam com livros religiosos alternativos e ocultistas, publicando cerca de trezentos títulos por ano de um total de 1.100 lançamentos anuais.50 Sua posição dominante tornou a conexão de Guénon com Paul Chacornac particularmente útil. Além da Le Voile d’Isis, havia outros pontos focais para os seguidores de Guénon, especialmente o salão semanal que tinha como anfitriã Geneviève Jourd’Heuil, uma musicista em quem Guénon havia causado uma profunda impressão durante um encontro no Instituto Católico.51 Foi talvez devido a seus esforços em Roma durante a década de 1930 que as obras de Guénon não foram colocadas no Índex de Livros Proibidos. Ela estava convencida de que não havia contradição entre seu catolicismo e sua admiração por Guénon, uma opinião que muitos não compartilhavam. Apesar do insucesso em seus esforços de levar as obras de Guénon à atenção do cardeal Pacelli (que viria a se tornar o papa Pio XII), ela contaria mais tarde que havia tido longos encontros com um influente cardeal explicando a ele o Tradicionalismo.52 Entre os nomes que publicavam regularmente na Voile d’Isis estavam Reyor, dois seguidores de Guénon de seu primeiro período ocultista (Patrice Genty e Georges-Auguste Thomas), alguns amigos de Chacornac e algumas pessoas que haviam entrado em contato
com Guénon depois de ler sua obra. Um exemplo típico dessa última categoria era um tal de dr. Probst-Biraben,53 professor em uma escola em Constantine, Argélia, que visitava Paris com frequência e era maçom e sufi.54 O autor mais importante, depois do próprio Guénon, era Ananda Coomaraswamy.
Coomaraswamy O principal colaborador de Guénon nessa fase inicial foi Ananda Kentish Coomaraswamy, curador do Departamento de Arte Indiana no Museu de Belas Artes de Boston, já estabelecido como um importante historiador da arte quando encontrou a obra de Guénon no fim da década de 1920. Coomaraswamy passou a crer rapidamente que «nenhum escritor vivo na Europa é mais importante do que René Guénon, cuja tarefa tem sido a de expor a metafísica tradicional universal que foi a fundação essencial de todas as culturas do passado».55 A considerável reputação de Coomaraswamy como erudito estava baseada em obras como os cinco volumes de seu Catalogue of the Indian Collections in the Museum of Fine Arts [Catálogo de coleções indianas no Museu de Belas Artes] (1923-1930) e sua History of Indian and Indonesian Art [História da arte indiana e indonésia] (1927)56 e fundava-se em seu conhecimento quase enciclopédico de arte indiana, bem como em sua abordagem radical para a época, a de entender as obras de arte colocando-as em seu contexto, o que, na prática, significava o seu contexto religioso.57 Essa abordagem refletia uma compreensão da religião, discutida a seguir, que se mostraria facilmente compatível com o Tradicionalismo. Não há registro do que conduziu Coomaraswamy a Guénon pela primeira vez; é possível que o primeiro tenha encontrado os livros do segundo no círculo dos frequentadores de uma livraria «progressista», a Sunwise Turn, círculo que incluía Eugene O’Neill, Ernst Hemingway e Havelock Ellis, com interesses que iam de grafologia a Gurdjieff — e assim, possivelmente, Guénon. Alguém poderia se perguntar o que um curador de museu de cinquenta anos
de idade fazia em tais círculos de Nova York. Existem duas respostas para essa pergunta: que Coomaraswamy não era, para começar, um curador de museu como outro qualquer (como veremos) e que ele estava tendo um caso com uma jovem dançarina, Stella Bloch, que continuou vivendo em Nova York mesmo durante seu casamento subsequente com Coomaraswamy entre 1922 e 1930.58 A relação entre Coomaraswamy e Guénon, conduzida inteiramente por via postal, poliu e deu estofo à filosofia Tradicionalista. Guénon forneceu as grandes ideias, Coomaraswamy, a erudição, algumas vezes refletida em mudanças de opinião do próprio Guénon, outras, nas obras tardias dos dois autores.59 Coomaraswamy foi o primeiro de muitos acadêmicos a se tornar um Tradicionalista «duro». O Tradicionalismo transformou a escrita de Coomaraswamy. Em 1928, ele começou um trabalho sobre os Vedas e, em 1933, publicou sua primeira obra puramente religiosa: A New Approach to the Vedas: An Essay in Translation and Exegesis [Uma nova abordagem aos Vedas, um ensaio de tradução e exegese].60 A nova abordagem em questão, explicava Coomaraswamy na introdução, era uma abordagem perenialista: «uma tradução e comentário em que os recursos de outras formas de tradição universal são tomados como dados».61 A partir de então, Coomaraswamy escreveu cada vez mais sobre a religião subjacente à arte e cada vez menos sobre as representações artísticas da religião. Para alguns, tal mudança de orientação em Coomaraswamy foi desapontadora. Eric Schroeder, que viria a se tornar um historiador da arte persa, recorda sobre seu período como assistente de Coomaraswamy: Estávamos constantemente discutindo, pois eu tentava reviver o historiador da arte que havia se extinguido no filósofo, e ele estava determinado a evocar o filósofo em um historiador da arte imaturo. [...] Apesar de perfeitamente generoso e comunicativo em questões históricas, ele já não tinha interesse nelas. Ele se sentia interessado pela história contemporânea, pelo estupro industrial da Ásia e pela prostituição do intelecto ocidental ao contingente, mas seu deleite estava na metafísica. Todas as ondas de argumentos históricos quebravam-se contra
ele em vão. Persistentemente, ele desviava a história para categorias eternas, as únicas que estava disposto a admitir.62 As grandes obras do período Tradicionalista de Coomaraswamy são The Transformation of Nature in Art [A transformação da natureza em arte] (1934), comparando conceitos orientais a conceitos do Ocidente medieval, e outra obra comparativa, Hindhuism and Buddhism [Hinduísmo e budismo] (1941). A tese básica de Coomaraswamy é, obviamente, de unidade perenialista — que o hinduísmo e o budismo eram ambos expressões da Filosofia Perene original.63 Ele também escreveu diversos artigos Tradicionalistas, alguns publicados na Le Voile d’Isis/ Études traditionnelles, e alguns (o que era mais importante para ele) em periódicos acadêmicos tais como o Journal of the American Oriental Society e o Harvard Journal of Asiatic Studies.64 Como escreveu a outro Tradicionalista já no fim da vida: «Minha obra está voltada para professores universitários e especialistas, aqueles que minaram nossos valores em tempos recentes, mas cuja alardeada erudição é, na verdade, superficial. Sinto que a retificação deve começar na ‹ponta› que detém a reputação, e apenas assim chegará aos livros escolares e enciclopédias».65 A primeira tentativa de levar o Tradicionalismo a um público acadêmico e daí à cultura mais ampla do Ocidente não foi um sucesso. A reputação e a estatura de Coomaraswamy eram tamanhas que seus interesses não podiam prejudicar sua carreira, mas, apesar de «ser geralmente percebido que ele tinha algo importante a dizer, e que seria inteligente ouvi-lo [...], pouquíssimas pessoas acharam inteligente levá-lo a sério».66 Assim, quando o seu Hindhuism and Buddhism foi resenhado no Harvard Journal of Asiatic Studies, o texto não foi nem um pouco favorável. Após atribuir corretamente a Guénon a origem da tentativa de Coomaraswamy de demonstrar a unidade do budismo e do hinduísmo, o resenhista observava que «qualquer interpretação motivada por tal ideia fixa tende a forçar etimologias e significados sobre palavras e trechos, com o objetivo de fazer com que se conformem a ideias preconcebidas». Depois de
fornecer diversos exemplos de interpretações duvidosas que esperava encontrar, e que de fato encontrou, o resenhista concluiu: «Coomaraswamy minimiza as dificuldades. [...] Não há descrições do budismo e do hinduísmo tardios como religiões históricas e institucionalizadas. [...] O livro tem algumas coisas boas, mas [...] o autor ignora completamente um volume de evidências que não se encaixam na teoria».67 Essas críticas são surpreendentemente parecidas com as apresentadas por Sylvain Lévi vinte anos antes a respeito da Introduction générale de Guénon. É claro que a reputação acadêmica de Coomaraswamy estava baseada em seus conhecimentos de história da arte; como Maritain, ele não possuía estudos de filologia ou história das religiões. Em 1933, como resultado de uma reorganização interna no Museu de Belas Artes, Coomaraswamy tornou-se pesquisador associado, uma mudança que lhe deu mais tempo para dedicar-se a suas pesquisas.68 Ele permaneceu nessa posição até sua aposentadoria, em 1947, aos setenta anos de idade. No jantar comemorativo de sua aposentadoria, anunciou que iria seguir a tradição hindu e recolher-se a uma vida de contemplação na Índia, mas veio a falecer antes que pudesse deixar os Estados Unidos. Sua quarta e última mulher, Luisa, fez com que os ritos fúnebres fossem conduzidos por um padre ortodoxo grego. Em seguida, Coomaraswamy foi cremado, e suas cinzas, espalhadas no Ganges,69 uma expressão prática do perenialismo. O público principal de Coomaraswamy foi, no fim das contas, em grande medida o mesmo de Guénon, apesar de um pouco mais amplo. Ele se tornou parte do cânone Tradicionalista, atrás em importância apenas do próprio Guénon por muitos anos.
Os simpatizantes de Guénon Assim como havia um salão para seguidores de Guénon, havia também outro salão frequentado por simpatizantes menos dedicados e pelos demais, a cargo de François Bonjean, um romancista que
escrevia sobre o Marrocos, mas que era mais conhecido por uma trilogia intitulada Histoire d’un enfant du pays d’Egypte [História de uma criança das terras do Egito] (1924).70 Bonjean e Guénon foram apresentados em 1924 por um conhecido em comum, um jornalista literário. Eles descobriram que sua visão do Oriente era parecida, e passaram a se encontrar com frequência durante um tempo,71 mas Guénon não parece ter exercido um impacto importante sobre a obra de Bonjean. Os encontros organizados por ele tinham por público sobretudo pessoas interessadas nas relações entre Oriente e Ocidente. Eles eram realizados nas noites de sexta-feira, juntando franceses e «orientais» que viviam em Paris. Bonjean escreveu em 1951: Ainda posso ver Guénon, alto, magro, exsudando boa-fé, encarando seus oponentes. A imagem desse ocidental fazendo uma defesa apaixonada do legado do Oriente contra orientais jocosos tinha algo de picante e de grandioso ao mesmo tempo. Com paciência inesgotável, ele tentava convencer seu público da existência, em várias partes do Oriente, de centros capazes de conduzir discípulos pelos caminhos difíceis e, por vezes, perigosos da «purificação».72 Não parece que Guénon tenha tido muito sucesso em atrair os orientais de Bonjean para seus pontos de vista sobre o Oriente. Ele teve mais sucesso nos círculos artísticos franceses. Entre aqueles identificados como admiradores de Guénon durante a década de 1920 estavam um pintor cubista, dois surrealistas e mais um romancista. Pelo que se sabe, o cubista Albert Gleizes encontrou-se apenas duas vezes com Guénon, em 1927, sem conhecer sua obra anteriormente, mas os dois descobriram muitas coisas em comum.73 Os interesses de Gleizes em questões sobre modernidade, tradição e simbolismo estavam subordinados a seus interesses sobre a natureza e o objetivo da pintura, e, dada a distância entre os objetivos últimos dos dois homens, não surpreende que eles pareçam ter tido pouco impacto um sobre o outro.74
O surrealista André Breton chegou até a citar a obra de Guénon com aprovação, mas seus interesses, como os de Gleizes, diferiam dos de Guénon.75 Outro surrealista, o poeta René Daumal, estava comprometido com uma busca espiritual mais específica do que Breton, uma busca que começou com uma experiência do divino induzida por produtos químicos, enquanto fazia experiências com tetracloreto de carbono em 1924.76 Apesar de seu destino espiritual último não ter sido o Tradicionalismo, mas sim Gurdjieff,77 após ler o livro de Guénon L’homme et son devenir selon le Védânta em 1928, Daumal anotou com aprovação em seu diário que Guénon era o único escritor ocidental sobre o hinduísmo cujas mãos não transformaram ouro em chumbo. «Mas temo», prosseguiu ele, dirigindo-se a Guénon em seu diário, «que a alegria de pensar possa desviá-lo daquela lei — histórica em seu sentido mais amplo — que necessariamente empurra para a revolta aquilo que há de humano em nós.»78 Daumal tinha razão: Guénon não estava interessado em revolta. Evola, artista como Daumal e antigo pintor dadaísta convertido em ocultista neopagão em 1928, estava interessado em revolta. Evola foi um Tradicionalista posterior, menos importante apenas do que o próprio Guénon. Um dos amigos de Daumal naquela época era Louis Dumont. Filho de um executivo de estradas de ferro, sua revolta pessoal — abandonar a escola e sustentar-se com diversos empregos de ocasião — causara muito sofrimento a sua mãe viúva. Dumont foi apresentado à obra de Guénon por Daumal, obra que provocou seu fascínio pela Índia. Poucos anos depois, Dumont conseguiu um emprego de datilógrafo no importante Museu de Arte e Tradições Populares de Paris, um ambiente que desempenhou papel importante em sua decisão de completar seus estudos.79 Na década de 1960, Dumont foi um dos principais sociólogos da França; as consequências de suas leituras juvenis de Guénon na companhia de Daumal serão analisadas em capítulos posteriores. O romancista Henri Bosco, cuja obra se tornaria popular na França após a Segunda Guerra Mundial e seguiria bastante conhecida até o fim do século, foi apresentado à obra de Guénon por Bonjean um
pouco mais tarde, em 1938. Naquela época, Bosco estava escrevendo Hyacinthe, que viria a descrever mais tarde como o seu livre clef, um cuidadoso exame (como a maioria de suas obras) de uma jornada espiritual interna.80 Guénon, escreveu Bosco a Bonjean, destravou a conclusão do livro, de que «a salvação só pode vir do sopro, ou seja, de uma influência superior, anterior a nós».81 Essa conclusão não pode ser descrita exatamente como «Tradicionalista» — na verdade, outro amigo de Bosco enxergou-a como católica.82 Vinda de um escritor que, em suas próprias palavras, leu e releu toda a obra de Guénon com dedicação,83 ela serve para nos recordar o quão difuso e indireto pode ser o efeito até mesmo de uma influência importante. Se não fosse pela sobrevivência da correspondência entre Bosco e Bonjean e por uma referência publicada, ninguém suspeitaria que o Tradicionalismo foi importante para Bosco. Henri Bosco foi o primeiro Tradicionalista «suave», alguém para quem o Tradicionalismo foi claramente importante, mas não uma influência determinante, e para quem teve poucas consequências visíveis. Deve ter havido muitos outros, mesmo na década de 1920, para quem os livros de Guénon foram importantes de maneiras ainda desconhecidas. O antiquário católico Charbonneau-Lassay foi também um colaborador próximo de Guénon, mantendo sua amizade com ele mesmo depois de sua exclusão de Regnabit. Charbonneau-Lassay também continuou amigo de Tradicionalistas como Reyor, e contribuiu para Le Voile d’Isis/ Études traditionnelles.84 No entanto, sua associação com Guénon teve pouco impacto em sua própria obra, e ele não pode ser descrito sequer como um Tradicionalista «suave». Charbonneau-Lassay era, ao que parece, simplesmente um católico. Talentoso filho de dois criados, ele fora educado localmente pelos Irmãos de São Gabriel, uma irmandade laica, da qual chegou a tornar-se membro, mas que abandonou em 1903, quando ela foi dissolvida. Charbonneau-Lassay passou o resto de sua vida como escultor, arqueólogo local e historiador, tornando-se secretário da Revue du Bas-Poitou (uma revista local) em 1913. Sua obra maior foi o Bestiaire du Christ [Bestiário do Cristo], um trabalho monumental sobre o simbolismo cristão, no qual ele investiu quinze anos, e que
fora encomendado pelo cardeal Dubois, o patrono de Regnabit.85 Seus interesses em simbolismo faziam com que ele tivesse muito em comum com os Tradicionalistas, mas isso era tudo. Como veremos, em pontos importantes Charbonneau-Lassay divergia deles de modo fundamental.
2. PERENIALISMO
A vida de René Guénon se sucede em três fases (diferentes daquelas da história do Tradicionalismo). A fase «católica», que acabamos de analisar, foi a segunda delas. A primeira, abordada neste capítulo e no seguinte, foi a fase «ocultista», durante a qual Guénon encontrou a maior parte das fontes a partir das quais desenvolveu a filosofia Tradicionalista. Nossas considerações sobre essa fase envolverão diversos desvios por vielas pouco conhecidas da história intelectual e religiosa do Ocidente. A terceira fase da vida de Guénon (passada como sufi no Cairo) começou na década de 1930 e é analisada na parte II deste livro. A partir daquele ponto, haverá menos desvios.
RENÉ GUÉNON René Jean-Marie Joseph Guénon era filho único de um casal católico que levava uma vida confortável em Blois, uma importante cidade no Loire conhecida por seu belo castelo. Seu pai, avaliador de perdas para a companhia de seguros local, tinha 56 anos no momento do nascimento de seu primeiro e único filho; a mãe de René tinha 37 anos. Ela era a segunda esposa do pai do garoto (a primeira havia morrido sem filhos). A juventude de René correu sem incidentes. Apesar da saúde um tanto delicada, ele foi um bom aluno, especializando-se em matemática. Em 1904, aos dezoito anos, seus ambiciosos pais enviaram-no ao Collège Rollin em Paris para prosseguir os estudos de matemática com o objetivo de entrar na prestigiosa École Polytechnique.1 Em 1906 Guénon deixou o Collège Rollin, no qual não ia bem. Em lugar dos estudos, o jovem mergulhou no mundo do ocultismo parisiense até pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Não se sabe
o que atraiu a atenção de Guénon para o ocultismo, mas ele claramente precisava de novos interesses após seu fracasso nos estudos de matemática. Tampouco se conhece a reação de seus pais idosos a tudo isso. É possível que, ao atingir a maioridade em 1907, Guénon tenha adquirido uma renda independente, já que não dava a impressão de precisar ganhar a vida até o começo da Primeira Guerra Mundial. O grupo ocultista a que Guénon se associou em 1906, e do qual ele derivou seu «Perenialismo-Vedanta», foi a Ordem Martinista. Ela havia sido fundada por volta de 1890 por Gérard Encausse (famoso como «Papus»), uma figura central no desenvolvimento inicial do Tradicionalismo. Encausse foi médico e filho de um praticante de medicina alternativa, inventor do «Gerador Encausse»,2 uma máquina patenteada para passar remédios pela pele por meio de água quente e que nunca teve o sucesso que o seu inventor esperava.3 Encausse tornou-se médico formado, ao contrário de seu pai, mas continuou com os interesses da família em terapias alternativas, tais como a homeopatia e o mesmerismo. Em 1887, enquanto estudava na Faculdade de Medicina de Paris, Encausse tornou-se membro da Isis, a loja parisiense da Sociedade Teosófica, uma importante fonte do perenialismo da Ordem Martinista, e, assim, do perenialismo Tradicionalista.
O PERENIALISMO E A SOCIEDADE TEOSÓFICA A Sociedade Teosófica é geralmente conhecida hoje como um «novo movimento religioso» (aquilo que o grande público chama de «seita»), mas foi estabelecida em Nova York em 1875 com propósitos completamente sérios, com estatutos inspirados nos da Sociedade Americana de Geografia e Estatística. Ela foi fundada por um respeitável advogado e jornalista na casa dos quarenta anos de idade, o coronel Henry Olcott.4 O coronel Olcott queria que a Sociedade Teosófica conduzisse pesquisas em religiões comparadas, além de que encontrasse a «sabedoria antiga», especialmente «nas fontes primeiras de toda a religião, os livros de Hermes e os Vedas»5
— em outras palavras, a Filosofia Perene. Como Guénon, Olcott supunha que a Filosofia Perene podia ser encontrada nos Vedas. Ao acreditar que também podia ser encontrada nos livros de Hermes, ele estava seguindo o perenialismo original do erudito renascentista Marsílio Ficino. Os Vedas não eram conhecidos durante o Renascimento; em seu lugar, Ficino tomou como a expressão mais antiga da Filosofia Perene o Corpus Hermeticum, atribuído ao provavelmente mítico Hermes Trimegisto. O Corpus Hermeticum foi produzido entre os séculos I e III d.C., e demonstra as influências cristãs, estoicas e neoplatônicas do seu tempo, bem como algumas do antigo Egito. No século XV, no entanto, ele foi datado de maneira bastante equivocada, acreditando-se que fosse do tempo de Moisés, ou talvez anterior. Como resultado desse erro de datação, o Corpus Hermeticum pareceu prefigurar de maneira profética tanto o Cristianismo quanto Platão (o que, na realidade, acontece por ele ter sido escrito depois de ambos), dando lugar assim à concepção original da Filosofia Perene. Quando um filólogo de Genebra, Isaac Casaubon, demonstrou de maneira conclusiva em 1614 que o Corpus Hermeticum não era de origem mosaica, mas pós-cristã,6 o perenialismo foi amplamente desacreditado. No entanto, ele sobrevive e é visível, por exemplo, na França do fim do século XVIII entre os maçons agrupados em torno de uma loja que operou entre 1761 e 1781, a Les Élus Coëns. Um membro dessa loja era LouisClaude de Saint-Martin, que serviu de inspiração para Encausse ao batizar sua Ordem Martinista. De Saint-Martin, oficial reformado do exército e maçom com diversos interesses místicos e alguns interesses herméticos,7 acreditava que «todas as tradições da Terra devem ser vistas como derivadas de uma tradição-mãe fundamental, que, desde o princípio, fora confiada ao homem pecador e a seu primeiro descendente».8 Sentimentos parecidos foram manifestados pelo quase contemporâneo de Saint-Martin, o conde Joseph de Maistre, que pertencia a uma loja dirigida por Jean-Baptiste Willermoz, anteriormente membro da Les Élus Coëns e, por um período, colaborador próximo de Saint-Martin.9 «A verdadeira religião
[...] nasceu no dia em que nasceram todos os dias [...], as concepções vagas [dos antigos] não passavam dos resquícios mais ou menos frágeis da tradição primitiva.»10 O perenialismo, portanto, ainda florescia — ao menos nos círculos maçônicos franceses — no início do século XIX. A combinação de perenialismo com hinduísmo para produzir o Perenialismo-Vedanta parece ter acontecido mais ou menos na mesma época. Ela é visível pela primeira vez na obra de Reuben Burrow, uma figura importante nas origens do Tradicionalismo. Burrow era um desconhecido que escrevia para a Asiatik Researches, a revista da Sociedade Asiática de Bengala. Essa sociedade, a primeira associação erudita ocidental dedicada ao estudo do Oriente, foi fundada em Calcutá em 1784 sob a presidência do homem conhecido como «Oriental Jones» — sir William Jones, funcionário britânico da Companhia das Índias Orientais, talentoso linguista e juiz da Suprema Corte de Calcutá.11 Apesar de a obra do próprio «Oriental Jones» ainda ser respeitada, o trabalho de alguns de seus colegas seria menos bem recebido hoje em dia do que no final do século XVIII. Em seu artigo «Uma prova de que os hindus possuíam o teorema binomial», publicado na Asiatik Researches em 1799, Reuben Burrow tentou demonstrar o estado avançado do conhecimento indiano antigo de matemática, argumentando retroativamente a partir do estado da astronomia indiana posterior. Essa ideia conduziu-o a sugerir uma provável origem indiana para as ciências europeias. Após algumas especulações a respeito da localização provável do «Paraíso de Moisés», Burrow observou: Do supramencionado país [o Paraíso de Moisés], a religião hindu provavelmente se espalhou por toda a Terra; há sinais dela em todos os países setentrionais e em quase todos os sistemas de culto. Na Inglaterra, é óbvio; Stonehenge é evidentemente um dos templos de Boodh. [...] As cerimônias religiosas dos papistas parecem em diversas partes serem uma mera cópia servil daquelas dos Goseigns e dos Fakeers; os ascetas cristãos diferiam muito pouco de seus imundos originais, os Braggys [...] Que os Druidas da Bretanha eram Brâmanes é algo que está
além de qualquer dúvida; mas que eles tenham sido todos assassinados e que sua ciência tenha se perdido está fora dos limites da probabilidade; é muito mais provável que eles tenham se tornados mestres escolásticos, maçons e videntes, e que, dessa maneira, parte de suas ciências possa ter passado facilmente à posteridade, como percebemos que passaram.12 Burrow subscreve aqui uma forma de perenialismo que favorece o hinduísmo sobre Hermes, apesar de também ligar o hinduísmo a Moisés. Sua suposição de que as ciências dos brâmanes e dos druidas sobreviveu entre os maçons sugere que ele próprio pode ter pertencido à maçonaria. Se esse foi o caso, Burrow pode ter encontrado o perenialismo em círculos maçônicos similares àqueles reunidos em torno da loja francesa Les Élus Coëns. Isso, no entanto, é especulação. O que está claro é que, desde o princípio da descoberta ocidental dos textos hindus, algumas pessoas viram o hinduísmo como a «fonte primordial» de todas as religiões. Apesar das teses de Burrow terem interessado alguns acadêmicos britânicos posteriores,13 não existem indícios de nenhuma ligação direta entre sua obra e a convicção de Olcott de que os Vedas continham a Filosofia Perene. A origem mais provável do interesse de Olcott nos Vedas é a crescente disponibilidade de — acompanhada do crescente interesse por — traduções de textos hindus a línguas ocidentais, algumas feitas por outros membros da Sociedade Asiática de Bengala. Um dos primeiros intelectuais ocidentais a empregar de maneira importante tais traduções foi o filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson, figura importante nas origens do Tradicionalismo. Emerson, que havia sido pastor da Igreja Unitária, foi, junto com Henry D. Thoreau, um dos líderes do Movimento Transcendentalista. Em 1831, Emerson leu a recém-publicada tradução ao inglês do Cours de Philosophie de Cousin, que continha dois capítulos do Bhagavad Gita [Canção do Senhor]. O Bhagavad Gita havia sido traduzido ao inglês entre 1824 e 1827 na revista da entidade irmã da Sociedade Asiática de Bengala, chamada Transactions of the Asiatic Society of London, e foi nessa tradução que Cousin se baseou.14
Os Vedas e o Vedanta exerceram uma importante influência sobre Emerson, e, portanto, sobre o Transcendentalismo. Por meio de publicações transcendentalistas como Western Messenger e The Dial eles atingiram um público mais amplo nos Estados Unidos.15 Esse pode ter sido o canal pelo qual Olcott encontrou-os. Emerson também subscrevia uma forma de perenialismo, escrevendo em seu diário em 1839 que, para ele, «Bíblia» significava «a revelação ética considerada de maneira geral, incluindo os Vedas, os Escritos Sagrados de todas as nações e não apenas dos hebreus». Nisso e em sua ênfase no Oriente como fonte de sabedoria («A Europa sempre deveu seus impulsos divinos ao gênio oriental», como disse, em 1838, em seu festejado discurso à escola de Divindade de Harvard),16 Emerson prefigura Olcott e, desse modo, também Encausse e Guénon. O perenialismo tal como entendido por Emerson e Cousin continuou de maneira independente durante o século XX, de modo talvez mais conhecido no livro de Aldous Huxley intitulado The Perennial Philosophy [A filosofia perene] (1944).17 Olcott poderia ser tão respeitado quanto Huxley hoje em dia, se não fosse pelas atividades de uma nova amiga sua, Helena Petrovna Blavatsky (nascida baronesa von Hahn), uma aventureira russa com um passado duvidoso e figura importante nas origens do Tradicionalismo. Filha de um oficial do exército russo e de uma romancista protofeminista (seu sobrenome alemão refletia as origens bálticas de seu pai),18 quando jovem Blavatsky casou-se com e depois abandonou um funcionário público russo chamado Nikifor Blavatsky, vice-governador de Yerevan, na Armênia russa. Blavatsky chegou em Nova York em 1873, após diversas aventuras, a mais recente sendo o colapso — em meio a acusações de fraude — da Sociedade Espiritista por ela liderada no Egito, onde havia se estabelecido brevemente após viagens pela Europa e pelo Oriente Médio.19 Olcott a encontrara, e, obviamente caíra sob seus encantos, em 1874, em uma viagem a Vermont para visitar a famosa fazenda dos irmãos Eddy, onde havia relatos de diversos fenômenos paranormais.
A Sociedade Teosófica originalmente tinha Olcott como presidente, um jovem advogado como secretário e dezesseis outros membros, incluindo Blavatsky. Passado um mês da fundação, Blavatsky foi eleita «secretária correspondente». A partir dessa posição, ela redirecionaria a Sociedade para seus próprios objetivos. Algo do que viria a seguir poderia ser previsto por uma das muitas comunicações que Olcott recebeu pouco depois de conhecer Blavatsky, escrita com tinta de ouro em papel verde e assinada por um certo Tuitit Bey imaginário de Luxor, no Egito.20 Tuitit Bey, identificando-se como grão-mestre da igualmente imaginária Fraternidade Mística de Luxor, abriu a correspondência garantindo a Olcott que «a irmã Helena [Blavatsky] é uma serva valorosa e confiável». Numa carta posterior, ele pediu a Olcott que encontrasse um apartamento em Nova York para Blavatsky e que cuidasse dela.21 Dado que Olcott havia passado um período investigando fraudes no início de sua carreira (como comissário especial no Departamento de Guerra), é difícil entender como ele não chegou à conclusão óbvia de que Blavatsky precisava de alguém que pagasse seu aluguel, mas, claramente, esse não foi o caso. A Sociedade Teosófica expandiu-se de seus dezoito membros originais em Nova York para uma organização mundial, com sede na Índia a partir de 1879 (desde 1882 em Adyar, Madras). Ela chegou a ter mais de quinhentas «lojas» (filiais) em mais de quarenta países na Ásia e no Ocidente, incluindo a loja em Paris à qual Encausse se filiou em 1887.22 O sucesso da Sociedade Teosófica na Ásia deveu-se provavelmente ao valor do apoio ocidental aos renascimentos culturais e religiosos então em curso, parte da reação nacionalista ao imperialismo europeu (em 1967, o Sri Lanka comemorou o sexagésimo aniversário da morte de Olcott com um selo especial).23 A expansão da Sociedade Teosófica no Ocidente, por outro lado, deveu-se sobretudo a dois fatores: o ambiente da época e a alta qualidade (em sua forma final) dos escritos de Blavatsky. A difusão da Teosofia deveu muito ao sucesso extraordinário de dois livros, Isis Unveiled [Isis sem véu] (1877) e The Secret Doctrine [A doutrina secreta] (1888).24 A autoria de ambos foi atribuída a
fontes etéreas, mas os dois foram rascunhados por Blavatsky e depois receberam sua forma final por «ghost writers» humanos — Olcott no caso de Isis sem véu; já no caso de A doutrina secreta, por dois irmãos ingleses que assumiram a tarefa após o editor escolhido por Blavatsky ter recusado a tarefa ao ver a desorganização do primeiro manuscrito.25 Ambos os livros refletiam, em certo sentido, a intenção original da Sociedade Teosófica de pesquisar «os livros de Hermes e nos Vedas», mas sem nenhum espírito científico. Isis sem véu foi amplamente plagiado de uma série de obras padrão sobre ocultismo e hermetismo (134 páginas de Sōd, the Son of Man [Sod, o filho do homem], de Samuel Dunlap; 107 páginas da History of Magic [História da magia] de Joseph Ennemoser, e assim por diante), enquanto A doutrina secreta baseava-se amplamente no Classical Dictionary of Hindu Mythology and Religion [Dicionário clássico de mitologia hindu], de John Dowson, na tradução anotada do Vishnu Purana feita por Horace Wilson e em outras obras do mesmo tipo.26 Esse plágio era parte de uma série: das cartas de Tuitit Bey para Olcott, da alegação de Blavatsky de estar ligada com mahatmas (adeptos iniciados) tibetanos imaginários de uma «Grande Fraternidade Branca», claramente inspirada nos romances de sir Edward Bulwer Lytton, Secretário Colonial Britânico no período 185866 e ocultista amador, e da falsificação quase compulsiva de fenômenos paranormais durante sessões espiritistas.27 Essas atividades fraudulentas foram expostas em 1884, primeiro em uma investigação realizada pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres (uma organização séria, um pouco como a própria Sociedade Teosófica poderia ter sido caso tivesse sido deixada nas mãos de Olcott; ela contava entre seus membros o filósofo Henry Sidgwick, o primeiro-ministro William Gladstone e o poeta Alfred Lord Tennyson). O impacto do relatório negativo dessa investigação foi ampliado por uma teosofista descontente que revelou detalhes de como certos fenômenos paranormais eram produzidos na realidade, chegando até mesmo a demonstrar o funcionamento de um painel falso em um aposento na sede da Sociedade em Aydar.28
Ironicamente, os plágios de Blavatsky podem ser o segredo do sucesso de seus livros. Truques como usar hastes de bambu para deixar cair cartas que «se materializam» não explicam a popularidade da Teosofia, mas sim a expressão em termos contemporâneos (e, com frequência, pseudocientíficos) de ideias religiosas clássicas, editadas por escritores competentes como Olcott. É possível que, caso Blavatsky tivesse resistido à tentação de continuar com o tipo de truques que ela desenvolvera para ganhar a vida antes de conhecer Olcott, evitando assim o escândalo, a Teosofia expressa em seus livros (plagiados) poderia ter se tornado uma grande religião mundial, em lugar de desaparecer lentamente ao longo do século 29 XX.
A ORDEM MARTINISTA Imediatamente após se filiar à loja teosófica Isis em Paris, Encausse, o primeiro mestre de Guénon, começou a escrever para uma revista teosófica francesa — Le Lotus, revue des Hautes Études Théosophiques — não tanto sobre teosofia, mas sobre seu outro grande interesse, iniciação, o terceiro dos elementos centrais da filosofia Tradicionalista. De acordo com Encausse, enquanto a Teosofia transmitia a iniciação da Índia, onde «a verdade antiga ainda sobrevive», a maçonaria contemporânea havia permitido que interesse políticos e materiais expulsassem os espirituais, apesar de seus rituais derivarem de iniciações antigas.30 Este, sob uma forma levemente modificada, veio a se tornar o conceito Tradicionalista de iniciação. Em geral, a iniciação possui dois aspectos, que podem ser descritos como exotérico e esotérico. A iniciação cristã clássica é o batismo. Seu significado exotérico é marcar a entrada de uma pessoa na comunidade cristã, enquanto o significado esotérico (na teologia católica) é que ele confere ao novo cristão acesso à graça divina e, assim, à possibilidade de salvação, de outro modo ausente.31 Foi o aspecto esotérico das iniciações não cristãs, tais como as maçônicas,
que interessou Encausse, e, a partir daí, Guénon e os Tradicionalistas. As origens da maçonaria, uma prática que, por intermédio de Encausse, contribuiu para o Tradicionalismo e foi, por sua vez, alterada por ele mais tarde, são obscuras. A explicação mais provável para sua emergência é a inserção de elementos de hermetismo em guildas comerciais preexistentes na Escócia durante os séculos XVI e XVII. Os pedreirosI escoceses do século XVI organizavam-se em guildas, como outros artesãos da época, mas as guildas de pedreiros desenvolveram características especiais devido à natureza de seu trabalho. Enquanto a maior parte dos ofícios e das guildas eram sedentários, o que tornava sua organização em qualquer cidade relativamente simples, os grandes projetos de construção exigiam o uso de numerosos pedreiros vindos de diversos lugares, e que, com frequência, moravam no local da obra durante o projeto. Essa situação gerou duas modificações no sistema padrão de guildas. A primeira foi a criação, no próprio local das obras, de «lojas» — organizações temporárias paralelas às guildas permanentes, o primeiro registro de uma datando de 1483. A segunda foi o desenvolvimento de sinais secretos de reconhecimento para identificar os pedreiros qualificados — os «pedreiros livres»,II aqueles que tinham sido admitidos a uma guilda, ou «libertos» de uma. Em uma cidade, todos os membros de uma guilda sabiam quem pertencia a ela; não era o caso num projeto de construção que trazia pedreiros de longe, alguns dos quais podendo não ser qualificados.32 Como outras guildas, os maçons possuíam o que poderia se chamar de «mitos fundacionais», bem como outros segredos profissionais. Entre eles, estava o mito do desenvolvimento da maçonaria antes do Dilúvio por Jabal, filho de Lamech, e a posterior redescoberta dos segredos de Jabal por Hermes Trimegisto, a passagem desses segredos a Jerusalém, por meio do Antigo Egito, na época da construção do Templo, com sua a transmissão posterior para a Europa. As referências a Hermes entre os maçons foram obviamente notadas com interesse por cavalheiros familiarizados com o papel atribuído a ele por Ficino e seus sucessores. O primeiro
destes foi provavelmente William Schaw, grande-mestre das Obras para o Reino da Escócia, que, em 1598-99, reorganizou a maçonaria escocesa. Schaw era um cortesão de uma família de cortesãos, havia viajado à França em 1584, e mantinha contato com alquimistas e hermetistas.33 Por meio ou não de Schaw, no fim do século XVII, lendas simbólicas e herméticas características do Renascimento transformaram a maçonaria inglesa e a escocesa. A partir da década de 1630, um número crescente de cavalheiros (conhecidos como «não operativos») filiaram-se a lojas inglesas e escocesas. Em 1723 e 1738, as Constituições de James Anderson, um escocês que havia se mudado para o Sul, foram promulgadas na Inglaterra, marcando o início da maçonaria tal como ela existe hoje.34 As primeiras lojas foram abertas na França em 1736.35 Os maçons podem debater a respeito do verdadeiro propósito e natureza da maçonaria; na prática, porém, é possível observar que diferentes grupos vieram a perseguir objetivos muito diferentes durante o século XIX. Um historiador descreveu com precisão a maçonaria como «uma instituição multifacetada, que muda de forma e conteúdo de acordo com as circunstâncias e a composição de seus membros. Ela é capaz de fornecer uma estrutura institucional para praticamente qualquer crença política ou religiosa».36 Na década de 1880, algumas lojas francesas eram primariamente políticas e, com frequência, violentamente ateístas; algumas dedicavam-se à filantropia e à camaradagem, e algumas estavam dedicadas ao desenvolvimento espiritual. Encausse se dirigia a todos esses grupos, mas apelava principalmente àqueles interessados no desenvolvimento espiritual. Um ano após filiar-se à loja teosófica Isis, Encausse se envolveu em uma discussão com um teosofista francês de alto escalão, o que levou à intervenção pessoal do coronel Olcott, à dissolução da Isis e à formação de uma nova loja teosófica, a Hermès, da qual Encausse foi nomeado secretário correspondente (a mesma posição de poder que ocupava Blavatsky na própria Sociedade Teosófica). Durante esses eventos, Encausse e alguns seguidores fundaram uma revista
mensal chamada L’initiation.37 Em seu primeiro número, Encausse continuou seu ataque aos maçons contemporâneos, queixando-se de sua ignorância do simbolismo contido em seus próprios ritos. Logo depois, ele fundou sua Ordem Martinista, que tinha o objetivo de ser uma nova maçonaria, «em bases mais sadias»,38 e não estava afiliada a nenhuma das três obediências maçônicas rivais então presentes na França. Como complemento à neomaçônica Ordem Martinista, Encausse também fundou, em 1889, um Grupo Independente para Estudos Esotéricos, cujo propósito declarado incluía preparar pessoas para entrar na Ordem Martinista e na Sociedade Teosófica, além de divulgar o perenialismo, proclamando «que a verdade é Una, e que nenhuma escola, nenhuma religião pode arrogá-la somente para si. [...] Em todas as religiões podem ser encontradas manifestações da verdade única».39 Mais tarde, Guénon participou tanto do grupo de estudos quanto da ordem. Apesar de os objetivos do Grupo Independente para Estudos Esotéricos serem compatíveis com as ideias da Teosofia, a Ordem Martinista não o era. Os adeptos tibetanos imaginários em quem Blavatsky tentava basear sua autoridade eram descritos como iniciados; por implicação, a própria Blavatsky fora iniciada em alguns de seus mistérios, mas transmitir essa iniciação a outras pessoas por intermédio de ordens neomaçônicas como a Ordem Martinista nunca fez parte de seus planos.40 Tanto a Ordem Martinista quanto o Grupo Independente de Estudos Esotéricos representavam também ameaças à autoridade de Blavatsky — grupos derivados eram um problema frequente para a liderança teosófica naquela época. Blavatsky organizou assim a fundação de uma nova revista, La revue théosophique, na qual atacava Encausse por se afastar da teosofia e se aproximar da maçonaria. Em resposta, Encausse fundou uma segunda revista, Le Voile d’Isis [O véu de Isis], uma referência sarcástica a um dos principais livros de Blavatsky, Isis sem véu, inicialmente para dar continuidade à polêmica contra ela e os teosofistas. Como vimos, Le Voile d’Isis tornou-se mais tarde a principal revista Tradicionalista. Ela foi publicada durante pouco mais
de um século, até 1992. O editor original de Le Voile d’Isis era Henri Chacornac, cujo filho Paul transformou a revista em Études traditionnelles em 1933. Henri Chacornac se casara com MariePauline Lermina, a filha de Jules Lermina, um bem-sucedido romancista popular que trabalhava com temas ocultistas e era um dos mais conhecidos autores publicados na revista L’initiation, de Encausse. Henri Chacornac foi estabelecido por seu novo sogro como editor-livreiro (atividades frequentemente combinadas na época). Além de Jules Lermina, Chacornac publicou o famoso poeta Paul Verlaine e diversos outros autores, e foi provavelmente graças a Lermina que Chacornac terminou escolhido como editor de Le Voile d’Isis. Após sua morte, o negócio foi herdado por seus dois filhos, Paul e Louis, o primeiro como editor, o segundo como administrador.41 Quando as hostilidades entre Encausse e Blavatsky vieram à tona, um grupo de teosofistas trocou a loja teosofista Hermès pela Ordem Martinista, e os que ficaram dissolveram a Hermès pouco depois. Encausse expandiu sua própria organização na França e no exterior, até que, por volta de 1900, havia centenas de lojas martinistas e órgãos relacionados, dos Estados Unidos até o Império Russo.42
A ORDEM DO TEMPLO Em 1906, Guénon entrou na Escola Livre de Ciências Herméticas (o novo nome do Grupo Independente de Estudos Esotéricos) criada por Encausse, e associou-se à Ordem Martinista e a uma ordem maçônica irregular chamada Humanidad, localizada na França mas licenciada por uma obediência espanhola, e não francesa. Naquela época, todas essas organizações haviam se tornado corpos ocultistas. A Escola Livre de Ciências Herméticas estava dividida em uma série de seções e grupos, indo de uma Seção de Estudos Iniciáticos (a mais próxima do coração de Encausse) a um Grupo para o Paranormal e um Grupo para a Ação em Centros da Intelectualidade Feminina.43 A seção paranormal era dada a truques como aqueles praticados por Blavatsky — «materialização» de cartas, cabelo e coisas do tipo.44
Em Paris, a Ordem Martinista tinha quatro lojas: Sphinx (para estudos gerais), Hermanubis (para a tradição oriental), Velléda (para a maçonaria e simbolismo) e Sphynge (artística).45 As lojas no exterior eram deixadas por sua própria conta, algumas fundadas por pessoas que não conheciam Encausse, mas que haviam apenas se correspondido com ele.46 Um grande mestre posterior da Ordem Martinista, Constant Chevillon, escreveu que o martinismo de Encausse «era vítima de um ecletismo demasiado vasto [...] ele representava no mundo espiritual aquilo que no mundo animal é representado pela classe dos invertebrados».47 As atividades de Encausse estiveram ligadas aos primórdios do feminismo desde o princípio, quando havia muitos membros em comum entre teosofistas próximos de Encausse e os seguidores de Anna de Wolska, a organizadora polonesa do Congresso Internacional de Obras e Instituições Femininas de 1889, realizado em Paris. As primeiras reuniões do Grupo Independente de Estudos Esotéricos foram realizadas na Biblioteca Wolska, e De Wolska foi amante de Encausse até 1895, quando ele contraiu um matrimônio respeitável.48 Encausse e o martinismo estiveram ligados não apenas ao feminismo, mas também à maioria das demais causas relacionadas à espiritualidade alternativa — maçonaria, ocultismo hermético, Vedanta, Baha’ismo, ciência alternativa; quase qualquer coisa, na verdade, exceto o catolicismo romano. O conceito de «ambiente sectário», tal como desenvolvido pelo sociólogo Bryan Wilson, é muito útil para identificar esse conglomerado de alternativos. De acordo com Wilson, existe nas sociedades modernas ocidentais um ambiente que ele chama de «sectário», em que se acumula muito do que é rejeitado pela cultura dominante — terapias alternativas, crenças alternativas e, em certa medida, estilos de vida alternativos. Tanto as ideias quanto as pessoas pertencem mais ao ambiente do que a qualquer grupo específico em seu interior. Indivíduos mudam facilmente sua lealdade de grupo para grupo, de ideia para ideia, ideias e grupos estando ligados entre si por uma rede compartilhada de publicações e espaços.49 Wilson descrevia os últimos trinta anos do século XX,
quando desenvolveu seu famoso conceito, mas seu modelo se aplica igualmente bem ao fim do século XIX. Os objetivos originais do Grupo Independente de Estudos Esotéricos não foram esquecidos, e Guénon parece tê-los levado a sério, mesmo que, quando mais velho, Encausse não pareça ter seguido esse mesmo caminho. Esses objetivos tinham sido definidos como a descoberta da Filosofia Perene, que Encausse chamava de «luz original». Ignorando o trabalho de Casaubon sobre a datação do Corpus Hermeticum, Encausse e seus seguidores mais sérios acreditavam que a Filosofia Perene havia sido transmitida por Hermes a partir de fontes do Antigo Egito, e viam nessa transmissão a fonte da iniciação. Encausse também seguia Blavatsky, e até mesmo Burrow, ao voltar-se para os hindus, considerando «a tradição Indiana» «o exemplo histórico mais duradouro da continuidade de um exoterismo religioso». A tarefa de seu Grupo Independente de Estudos Esotéricos, portanto, era «reagrupar esses resíduos exotéricos» do hinduísmo «à luz da tradição transmitida de maneira incessante» — a tradição iniciática de Hermes.50 Assim, Guénon mergulhou no estudo do hinduísmo e na busca separada, porém complementar, por uma tradição iniciática ininterrupta. Ele foi o primeiro de muitos Tradicionalistas a seguir esse caminho. Um mistério que ocupou muitos dos biógrafos Tradicionalistas de Guénon é a fonte de seus conhecimentos a respeito do hinduísmo. Dada a ênfase conferida posteriormente pelo Tradicionalismo à transmissão «autêntica» do mestre ao discípulo, os Tradicionalistas buscaram os mestres hindus de Guénon, sem encontrar nada de substantivo, embora ele uma vez tenha se referido a «ideias sugeridas por alguns hindus». O mais provável, apesar de isso não poder ser comprovado ao certo, é que esses mestres nunca tenham existido e que o entendimento que Guénon tinha do hinduísmo viesse exclusivamente de seus estudos e de leituras dos textos então disponíveis em Paris.51 Guénon nunca alegou nada diferente, além de nunca ter visitado a Índia, apesar de ter se referido em uma ocasião a «ideias [...] sugeridas por alguns hindus». Ainda que tal conclusão possa parecer inaceitável para Tradicionalistas posteriores, não há razão para o Guénon daquela época não acreditar que tinha o direito
de escrever sobre o hinduísmo sem uma experiência de primeira mão dessa tradição. Ao fazê-lo, ele estaria apenas seguindo o exemplo de muitos eminentes orientalistas antigos, que também trabalhavam quase que exclusivamente a partir de textos. No entanto, em alguns casos, Guénon chegou a se basear em textos considerados espúrios por acadêmicos.52 Foi a busca de Guénon pela iniciação que o fez entrar em conflito com Encausse pela primeira vez. Ele evidentemente perdera as esperanças na iniciação martinista, e, passados dois anos, encontrou de maneira independente uma iniciação melhor — vinda do falecido Jacques de Molay (1243-1314), o último grão-mestre da Ordem dos Cavaleiros do Templo, uma ordem de cavalaria cruzada que muitos supunham ter recebido segredos iniciáticos adquiridos em Jerusalém e em seus arredores. As instruções de Jacques de Molay, comunicadas a Guénon durante uma sessão espiritista em 1908, eram as de restabelecer a Ordem do Templo. Guénon fundou então a Ordre du temple rénové (Ordem do Templo Renovado) com a ajuda de cinco outros martinistas, um deles tendo lhe facilitado a lista de contatos da Ordem Martinista. Outros dois desses martinistas tornaram-se seguidores próximos de Guénon, permanecendo a seu lado ao longo da década de 1920. Eram eles Alexandre Thomas, um engenheiro marítimo que havia abandonado, descontente, a Sociedade Teosófica, e importante figura do início do Tradicionalismo,53 e Patrice Genty, membro da loja maçônica irregular de Encausse, Humanidad. O excêntrico Genty era um funcionário da companhia municipal de gás que passava as manhãs lendo gasômetros e as tardes na Biblioteca Nacional, vivendo em um apartamento tão cheio de livros a ponto de mal haver espaço para visitantes.54 A Ordem do Templo Renovada reunia-se no espaço da Escola Livre de Ciências Herméticas sob a forma de uma Sociedade para Altos Estudos Filosóficos e Religiosos. Não se sabe ao certo o que ocorria durante esses encontros; o episódio da Ordem do Templo Renovada era algo que, no futuro, Guénon viria a considerar constrangedor e que evitava discutir.55
Como era de esperar, quando Encausse ficou sabendo dessas atividades e da perda de sua mala direta, tomou-as como uma ameaça à sua autoridade. Ele deve ter se recordado do efeito que a fundação de sua Ordem Martinista teve na Teosofia francesa. Guénon e alguns outros (incluindo Thomas e Genty) foram devidamente expulsos da Ordem Martinista e da loja Humanidad. Os neotemplários remanescentes foram reintegrados sob a autoridade de Encausse. A Ordem do Templo Renovada parece ter deixado de operar, apesar de ter sido formalmente dissolvida apenas em 1911.56
OUTROS PERENIALISTAS O Tradicionalismo tem suas primeiras origens diretas no Martinismo e na Teosofia, mas ele viria a se desenvolver de maneira bastante diferente. Enquanto o Martinismo e a Teosofia foram ambos organizações de massa de sucesso, cuja popularidade se devia em parte a sua inclusividade, o Tradicionalismo nunca foi inclusivo e aberto a todos, e nunca desejou um público de massa, apesar de buscar influenciar as massas. Outra importante diferença entre o Tradicionalismo e suas origens no século XIX foi a sua total ausência de otimismo evolucionário. Blavatsky acreditava que «terminamos nosso arco descendente e começamos nosso retorno à Deidade, tanto o globo quanto a família humana nele presente. Exilados de Deus, filhos pródigos em terra estrangeira, começamos nossa jornada rumo à casa».57 De maneira similar, Emerson difere de Guénon ao incluir dois importantes aspectos, ambos derivados do movimento romântico: a espiritualidade da natureza e a reverência pela originalidade, em oposição à tradição (que Emerson entendia em um sentido mais geral do que Guénon). Ecos da espiritualidade da natureza podem ser encontrados no Tradicionalismo posterior, mas a reverência pela originalidade é a própria antítese do Tradicionalismo. Em 1836, Emerson escreveu: As gerações passadas observavam Deus e a natureza face a face; nós, por meio de seus olhos, por que não podemos
desfrutar uma relação original com o universo? Por que não podemos ter uma poesia e uma filosofia do insight, e não da tradição? Uma revelação religiosa para nós, e não a história da deles? [...] Nos bosques está a juventude perpétua. No interior dessas plantações de Deus [...] Eu me transformo num globo ocular transparente; não sou nada, tudo vejo; todas as correntes do Ser Universal circulam através de mim; sou parte de Deus.58 Guénon seria muito mais pessimista. Essas, portanto, foram as origens do perenialismo de Guénon. Passarei a considerar brevemente agora as origens do perenialismo de seu colaborador, Ananda Coomaraswamy. Apesar de seu nome, Coomaraswamy era inglês. Seu pai, Mutu, vinha da comunidade tamil indiana do Ceilão,III mas era um tamil bastante anglicizado, que viajava com frequência à Inglaterra. Primeiro indiano a se tornar advogado britânico na década de 1860, Mutu foi ordenado cavaleiro em 1874 e casou-se com uma inglesa em uma cerimônia celebrada pelo arcebispo de Canterbury em 1876. Ananda Coomaraswamy nasceu no Ceilão, mas ao dois anos de idade do menino, sir Mutu decidiu mudar-se para a Inglaterra para concorrer nas eleições ao Parlamento Britânico, um plano encorajado pelo primeiro-ministro Benjamin Disraeli. No entanto, sir Mutu faleceu antes de chegar à Inglaterra e Ananda foi criado em Kent por sua família materna.59 Ele não podia ter tido nenhuma memória de seu pai ou do Ceilão. A criação e a educação de Coomaraswamy foram, até onde se sabe, completamente inglesas, apesar de que as prováveis reações dos outros garotos do Wycliffe College, o colégio interno que ele frequentou, a seu sobrenome e tom da pele devem tê-lo deixado se sentindo menos inglês do que quando criança. Na universidade, ele estudou geologia e botânica, e, em 1903, foi nomeado para uma vaga de professor-assistente («Fellowship») no University College de Londres. Em 1902, casou-se com Ethel Partridge, e, em 1905, herdou uma fortuna considerável.60 A jornada de rico geólogo inglês a historiador da arte norteamericano e Tradicionalista foi longa, passando pelo nacionalismo anticolonialista. Pouco depois de seu casamento, Coomaraswamy
candidatou-se ao posto de diretor do Serviço de Inspeção Geológica do Ceilão, que passou a ocupar a partir de 1903. Mais tarde, ele mencionaria com frequência uma manhã em 1904 quando, ao tomar café da manhã em um vilarejo remoto, viu uma mulher local com seu filho, ambos vestidos com roupas ocidentais «imundas e esfarrapadas», que sugeriam uma conversão ao Cristianismo. «Eles eram convertidos locais a uma religião e a uma vestimenta estrangeiras», refletiu ele, «igualmente artificiais e mal compreendidas.» Dois anos depois, Coomaraswamy falou a um público cingalês em Jaffna em termos muito parecidos: «É difícil para qualquer um de nós, que não foi criado na Inglaterra, dar-se conta de quão inadequados são nossos esforços de imitação. Aos ingleses, o absurdo é óbvio, mas a nós ele não é revelado».61 Obviamente, o absurdo havia sido revelado a Coomaraswamy, e tem-se a impressão de que um constrangimento bastante inglês com a imitação depauperada que o povo de seu pai fazia dos modos ingleses teve muito a ver com sua conversão ao nacionalismo cingalês. Outro fator provável foi a influência de seus primos Ponnambalam Ramanathan e sir Ponnambalam Arunachalan, ambos ativos no movimento nacionalista.62 Em 1906, Coomaraswamy fundou a Sociedade do Ceilão para Reforma Social, cujo objetivo era um reavivamento cultural e nacional. Aquela manhã de 1904 permaneceu com ele: adotar «um verniz de hábitos e costumes ocidentais, ao mesmo tempo que os verdadeiros elementos de superioridade na cultura ocidental eram negligenciados quase por completo», havia conduzido «ao descaso com os elementos de superioridade na cultura e na civilização do Oriente», um descaso que Coomaraswamy desejava remediar. Entre os objetivos específicos da Sociedade do Ceilão para Reforma Social estavam: a) a união das «raças orientais do Ceilão»; b) a educação em línguas locais, em lugar do inglês; c) «a revitalização das artes e ciências locais»; e, finalmente, d) «a proteção de edifícios e obras de arte antigos».63 Pouco mais se ouviu a respeito da Sociedade do Ceilão para Reforma Social, e Coomaraswamy começou a concentrar os seus esforços em edifícios e obras de arte antigos. É provável que sua
atenção para essa área tenha sido atraída por sua mulher, Ethel, uma fotógrafa cujo irmão, Fred Partridge, esteve envolvido com o movimento de Arts and Crafts de William Morris. Em 1906, Coomaraswamy organizou uma exibição de artesanato no Ceilão. Em 1907, ele voltou à Inglaterra, onde, em 1908, publicou um livro sobre Arte medieval cingalesa64 e apresentou um artigo sobre «A relação entre a arte e a religião na Índia» no Terceiro Congresso Internacional de História das Religiões. Em 1910, Coomaraswamy envolveu-se em uma controvérsia pública, que teve lugar na seção de cartas dos leitores do jornal The Times, bem como em outros meios, sobre o status da arte indiana. A controvérsia começara quando sir George Birdwood, ao presidir a seção indiana do encontro anual da Royal Society of Arts, afirmara não haver «belas-artes» na Índia, além de responder sem muito tato à sugestão de que uma estátua de Buda em particular seria um exemplo de belas-artes, dizendo «Essa similitude sem sentido, em sua pose fixa imemorial, não passa de uma imagem de lata sem inspiração. [...] Um pudim de banha cozido serviria tão bem quanto ela como símbolo de pureza e serenidade da alma liberta das paixões». Esse debate culminou na fundação da Sociedade da Índia, mais tarde chamada de Sociedade Real da Índia, a fim de combater as opiniões dos Birdwoods deste mundo. Coomaraswamy desempenhou um papel importante nessa empreitada.65 A despeito da mudança da geologia e do nacionalismo cingalês para o estudo da arte, Coomaraswamy continuou interessado em política. No início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, ele se opôs publicamente à participação da Índia ao lado da Grã-Bretanha no conflito, e, quando o serviço militar obrigatório (ao qual ele estaria sujeito) foi instituído, Coomaraswamy deixou a Inglaterra e mudou-se para os Estados Unidos. Em 1916, foi nomeado curador do Departamento de Arte Indiana do Museu de Belas Artes de Boston, a pedido de um associado que comprou a importante coleção de arte indiana e cingalesa de Coomaraswamy e doou-a ao museu. Foi provavelmente essa compra que o levou a viver nos Estados Unidos em lugar da Índia, onde ele não havia conseguido encontrar um
patrocinador para o projeto de usar sua própria coleção como base para um museu nacional de arte indiana.66 Durante esses acontecimentos, Coomaraswamy seguiu uma jornada intelectual que por volta do ano de 1914 fez dele um perenialista. Sua primeira influência intelectual foi o movimento de Arts and Crafts de William Morris. O entusiasmo de Coomaraswamy por Morris levou-o a aprender islandês (Morris era um devoto da literatura nórdica),67 e, ao retornar à Inglaterra em 1907, ele gastou somas consideráveis apoiando a «Guilda e Escola de Artesanatos» de Charles Asbee. O livro Arte medieval cingalesa foi impresso na gráfica Kelmscott, a mesma que Morris criara para imprimir sua edição de Chaucer, que Coomaraswamy comprara de Asbee.68 Morris preparou Coomaraswamy para o elemento antimodernista do Tradicionalismo. A preparação mais importante para o Tradicionalismo, porém, veio sem dúvida de suas leituras de William Blake, o grande poeta e pintor inglês do fim do século XVIII e início do XIX, que conhecia o perenialismo renascentista original de Ficino e de outros por intermédio de um contemporâneo, o neoplatonista inglês Thomas Taylor.69 Antes de sua partida para os Estados Unidos, Coomaraswamy mantinha uma amizade com William Butler Yeats, poeta irlandês, ocultista e estudioso de Blake. Em 1914, Coomaraswamy claramente já tinha descoberto o perenialismo. Aquele foi o ano de publicação do artigo «As bases religiosas da vida e da arte», no qual ele escreveu que a obra de Blake continha «o essencial da religião, já escrito em hieróglifos e nos Vedas, já ensinado por Cristo, Orfeu e Krishna, Lao-Tsé, Eckhart e Rumi».70 Em 1914, Coomaraswamy era já perenialista, mas ainda não Tradicionalista. No mesmo artigo, ele escreveu, confiante: «a religião do futuro anunciará como objetos, deveres e sentido da vida a liberdade tanto do corpo quanto da mente para exercitar as artes divinas da imaginação».71 Aqui, ele soava próximo de Emerson (também entre suas leituras).72 Coomaraswamy talvez estivesse se movendo na direção do ocultismo de Aleister Crowley, ao qual estava ligado por meio de Yeats. Havia também outra ligação com Aleister Crowley: comentava-se que a esposa de Coomaraswamy, Ethel, havia
engravidado de Crowley em 1916. O casal se divorciou em seguida.73 É de presumir que esse incidente tenha ajudado a diminuir o entusiasmo de Coomaraswamy pelo ocultismo, tornando-o mais receptivo ao Tradicionalismo de Guénon e à ideia de que o importante não era a religião do futuro, mas a do passado. Coomaraswamy manteve, no entanto, algo de suas opiniões anteriores depois de ter se tornado um Tradicionalista, e foi isso que lhe permitiu fazer uma importante contribuição à filosofia Tradicionalista: introduzir nela uma ênfase na estética que deriva, em última instância, de Blake e Morris.
I «Mason» (em inglês) e «maçon» (em francês) [port. maçom] designavam originalmente os pedreiros especializados organizados em guildas. [N. T.] II Novamente, em inglês e francês, os maçons contemporâneos são chamados de «pedreiros livres» (Freemasons, Franc-maçons). [N. T.] III Atual Sri Lanka [N. T.]
3. GNÓSTICOS, TAOISTAS E SUFIS
Separado de seu primeiro mestre, Gérard Encausse, após o episódio da Ordem do Templo, Guénon não estava ainda de todo preparado para seguir um caminho independente. Em 1909, ele se filiou à Igreja Gnóstica Universal, uma organização diretamente ligada ao ambiente ocultista. Foi ali que conheceu uma figura central no desenvolvimento inicial do Tradicionalismo, o conde Albert-Eugène Puyou de Pouvourville, um taoista. Guénon tomou de Pouvourville o segundo elemento básico da filosofia Tradicionalista, a inversão, que inicialmente expressou-se como hostilidade ao catolicismo contemporâneo. A primeira revista de Guénon, La Gnose, estava ligada à Igreja Gnóstica Universal; foi em La Gnose que os primeiros escritos reconhecíveis como Tradicionalistas foram publicados, por Guénon e por outro seguidor de Pouvourville, o sufi Ivan Aguéli, uma figura importante na história do sufismo no Ocidente.
NEOGNOSTICISMO A Igreja Gnóstica Universal foi fundada por volta de 1888 por Jules-Benoît Doinel, um arquivista de Orléans. A Igreja de Doinel inspirava-se em referências ao gnosticismo encontradas em dois textos do século II d.C (os Philosophoumena de Hipólito, e o Adversos Haereses do bispo Irineu de Lyon), bem como em diversas visões, diferindo substantivamente do verdadeiro gnosticismo do século II. Este havia sido mais uma tendência teológica (depois condenada sob a forma da heresia gnóstica) no interior da Igreja, principalmente no Egito, do que um grupo definido. Os gnósticos do século II acreditavam numa espécie de revelação contínua e no acesso a uma experiência direta e pessoal de Deus a uma elite gnóstica (portadora do conhecimento). Eles divergiam de muitas outras maneiras daquilo que mais tarde se desenvolveu até se tornar a Igreja Católica, mas
essas diferenças não eram conhecidas até a descoberta, em 1945, dos textos coptas do século III de Nag Hammadi.1 No século XIX, os gnósticos eram conhecidos principalmente por meio de referências hostis nos escritos de seus oponentes, os padres da Igreja, entre os quais estavam os dois textos utilizados por Doinel. Sem fontes para os rituais gnósticos, Doinel adaptou ritos retirados dos cátaros e de outras fontes que ele acreditava derivar do gnosticismo original.2 Após obter uma consagração de três bispos cátaros e de um bispo católico verdadeiro em Utrecht, Doinel fundou a Igreja Gnóstica Universal, da qual era o patriarca (sob o nome de Valentino II).3 Doinel foi apresentado aos círculos teosóficos e martinistas, e sua Igreja teve como membros diversos martinistas de primeira hora, incluindo o próprio Encausse e Léonce Fabre des Essarts, um poeta que trabalhava com Encausse em L’initiation e que era funcionário do Ministério da Educação da França.4 Em 1891, o Santo Ofício em Roma condenou formalmente o ressurgimento da heresia gnóstica, colocando ao mesmo tempo a revista L’initiation no Índex de Livros Proibidos.5 A Igreja Gnóstica Universal atravessou uma crise em 1894, quando, como resultado de uma visão em que São Estanislau Kostka apareceu para Doinel, este abandonou o gnosticismo e retornou à Igreja Católica. Como ato de contrição, ele escreveu um livro intitulado Lucifer démasqué [Lúcifer desmascarado], denunciando a Igreja Gnóstica Universal, o martinismo e a maçonaria como obras de Satanás.6 O livro foi uma das muitas obras de denúncia publicadas na época,7 um gênero para o qual Le Théosophisme e L’erreur spirite de Guénon também vieram a contribuir. Nesse ponto, a Igreja Gnóstica Universal dividiu-se em dois, com um grupo martinista formando uma Igreja Católica Gnóstica, e Fabre des Essarts assumindo a Igreja original como patriarca Synésius, afastando-se de Encausse.8 Foi Fabre des Essarts que, em 1909, consagrou os fiéis colaboradores de Guénon da Ordem do Templo, Alexandre Thomas e Patrice Genty.9 Essa foi, assim, a terceira «iniciação» de Guénon, seguindo-se à dos martinistas e à dos neotemplários.
DE POUVOURVILLE Outro membro da Igreja Gnóstica Universal à qual Guénon se uniu em 1909 era o conde Albert de Pouvourville, ainda reconhecido por aquele como «um de meus mestres» em 1918.10 Nascido em uma família militar aristocrática, De Pouvourville havia sido enviado à academia militar de elite em Saint Cyr, mas rebelou-se contra o caminho bem definido já mapeado para ele e, em 1884, renunciou a seu posto no exército francês e alistou-se na Legião Estrangeira. Enviado à Indochina francesa, entrou em combate nas guerras coloniais da região. Em algum lugar do Vietnã do Sul, desertou da Legião e foi provavelmente como fugitivo que se uniu a duas Tríades (sociedades secretas), a T’ien-ti hui e a Bac Lieu. As Tríades se opunham fortemente à ocupação francesa, o que pode ter feito com que simpatizassem com um desertor. Como todas as Tríades, a T’ien-ti hui era de origem chinesa, tendo chegado ao Vietnã no século XVIII. A partir de 1875, um grande número de vietnamitas associou-se a ela (as origens da Bac Lieu são desconhecidas).11 Nessa época, as Tríades vietnamitas eram menos filosóficas e baseadas em textos do que seus protótipos chineses, desempenhando um papel econômico e social, além de religioso, com uma semelhança com a maçonaria que fascinou os primeiros acadêmicos ocidentais a estudá-las. Seus ritos, incluindo elaborados rituais de iniciação, vinham de fontes taoistas, budistas e, em menor medida, confucionistas, mas eram descritos simplesmente como «taoistas» tanto pelos vietnamitas quanto pelos estrangeiros.12 Assim, De Pouvourville descreveu sua participação nas Tríades como uma «iniciação taoista». De Pouvourville foi resgatado das consequências negativas de sua deserção da Legião Estrangeira por seu pai, um oficial de alta patente com bons contatos. Tendo aprendido vietnamita, o jovem De Pouvourville foi designado para tarefas especiais, primeiro como intérprete e depois como inspetor do Ministério de Relações Exteriores. Depois de ser ferido durante a campanha de Tonkin (1890-91), ele retornou à França e publicou seu primeiro livro, Le
Tonkin actuel [O Tonkin atual].13 Tratava-se de uma violenta condenação da política colonial francesa, na qual atacava a ignorância dos colonizadores sobre a língua local e sobre a verdadeira situação.14 Após uma missão que o levou de volta à Indochina em 1892 sob os auspícios do Ministério de Belas-Artes, De Pouvourville deu início à sua segunda carreira, como escritor e jornalista em Paris. Ele escrevia sobre temas coloniais em publicações como o Journal des sciences militaires, La dépêche coloniale e Le courrier de Saigon. Sua produção era prodigiosa; além do jornalismo, de 1894 a 1911 De Pouvourville publicou cerca de um livro por ano, inicialmente sobre arte chinesa e história da Indochina.15 O mais bem-sucedido deles, De l’autre côté du mur: récits chinois des guerres de 1883 [Do outro lado do muro, relatos chineses das guerras de 1883], teve 45 edições entre 1887 e 1935.16 Em 1898, ele se filiou ao Instituto Colonial Francês, tornando-se em seguida presidente da Associação de Veteranos da Legião Estrangeira,17 com sua deserção juvenil esquecida ou jamais conhecida. A partir da década de 1890, De Pouvourville passou a escrever mais e mais sobre temas espirituais, além de publicar traduções do Tao Te Ching de Lao-Tsé.18 Assim como Guénon, ele frequentou o círculo de Encausse por um tempo, publicando em L’initiation, mas (como Guénon) rompeu com este. Em 1904, De Pouvourville lançou uma revista própria, competindo com Encausse, e associou-se à (não martinista) Igreja Gnóstica Universal.19 Em três livros publicados entre 1904 e 1907,20 ele se revelou um perenialista anticatólico, fazendo uma distinção entre «religião» e «religiões» (ame a religião, desconfie das religiões) e argumentando que os padres da Igreja destruíram os ensinamentos que receberam,21 numa justificação indireta da Igreja Gnóstica Universal, que se baseava em uma tradição cristã anterior aos padres. Um dos primeiros artigos de Guénon, «La religion et les religions», de 1910, não apenas toma seu título da distinção feita por De Pouvourville, mas reconhece-o (descrevendo-o como «nosso mestre e colaborador») especificamente como a fonte da ideia de que «a doutrina primordial» só pode ser una e que «a vegetação parasítica
não pode ser confundida com a própria Árvore da Tradição». A despeito de tal reconhecimento, existiam (como vimos) outras fontes, e mais importantes, para o perenialismo de Guénon. O que ele tomou principalmente de De Pouvourville não foi tanto o perenialismo, mas a ênfase em evitar a «vegetação parasítica», a Igreja Católica.22 Essa é uma origem indireta do conceito de «inversão» na filosofia Tradicionalista. De Pouvourville foi também a fonte de outra importante convicção de Guénon, a de que o Ocidente encontrava-se ameaçado. De Pouvourville preocupava-se com a necessidade de defender as «raças brancas» da «raça amarela», então percebida como despertando do seu sono. A necessidade de defesa ficou ainda mais clara pela deplorável Guerra Russo-Japonesa de 1905 (quando os russos foram derrotados com uma rapidez vergonhosa) e pelos pouco conhecidos feitos sociológicos e filosóficos da «raça amarela».23 A defesa das «raças brancas» tinha duas frentes: por um lado, estava a entente franco-germânica, promovida por De Pouvourville em um jornal bilíngue mensal, Le continent, fundado em 1906 e editado conjuntamente por ele e por um não identificado dr. Hans Richter em Berlim;24 por outro, estava o projeto de garantir o controle ocidental dos recursos filosóficos e sociológicos da filosofia chinesa, do mesmo modo que imperialistas posteriores desejavam garantir o controle ocidental do petróleo árabe. É provável que essa não tenha sido a principal motivação de De Pouvourville quando se uniu às Tríades como desertor da Legião Estrangeira, mas, em 1906, esse era o seu objetivo. É interessante notar, apesar de ser um detalhe de menor importância, que De Pouvourville considerava o ópio um dos recursos chineses de que o Ocidente deveria fazer uso. Uma de suas obras intitulava-se L’opium, sa pratique [O ópio, sua prática],25 um tema sobre o qual ele também escreveu em Le continent em 1906 e conferenciou na Escola de Estudos Comerciais Superiores em 1908 (o texto dessa conferência foi publicado mais tarde pelo Comitê de Congressos Coloniais Franceses). De acordo com o sobrinho de De Pouvourville, este chegou até o a convencer o ministro para as
Colônias, Albert Sarraut, a fumar ópio com ele (foi só após o fim da Primeira Guerra Mundial que os países europeus começaram a restringir e, por fim, criminalizar o uso de opioides). Parece provável, portanto, que tenha sido com De Pouvourville que Guénon aprendeu a usar ópio.26
IVAN AGUÉLI O grupo em torno De Pouvourville e La Gnose incluiu mais um importante seguidor da versão do perenialismo apresentada pelo exmilitar francês, o pintor sueco Ivan Aguéli.27 Aguéli uniu-se a De Pouvourville e Guénon em 1910, após conhecer Alexandre Thomas em uma livraria esotérica que ele ajudava a administrar, La Librairie du Merveilleux. Thomas era um dos martinistas que haviam seguido Guénon pela Ordem do Templo até a Igreja Gnóstica. Aguéli entrou para a Igreja Gnóstica Universal e começou a escrever para La Gnose.28 La Gnose se apresentava como a revista da Igreja Gnóstica Universal e foi fundada e editada conjuntamente por Guénon e Thomas. Foi em La Gnose que o artigo de Guénon discutido anteriormente, «La religion et les religions», foi publicado. La Gnose era, na realidade, a revista de Guénon, e ele a utilizava como plataforma para conduzir uma vendeta pessoal contra Encausse, mais ou menos do mesmo modo que o jovem Encausse havia usado Le Voile d’Isis para suas polêmicas contra Blavatsky. Assim, a revista se tornou a base para uma série de artigos que continham o essencial do que viria a ser o Tradicionalismo. Os artigos que mais tarde se tornariam o primeiro livro de Guénon, a Introduction générale, foram publicados pela primeira vez em La Gnose. A maioria era sobre o hinduísmo, escritos por Guénon, mas Aguéli também escreveu uma série sobre o sufismo e o Islã. Vinte anos depois, tanto o sufismo quanto o Islã seriam de suma importância para Guénon e outros Tradicionalistas. O sufismo de Aguéli assumiria uma importância que não possuía em 1910.
La Gnose não era o único periódico para o qual Guénon escrevia naquela época. Em 1909, ele, Thomas e outro ex-martinista escreveram uma carta conjunta a Abel Clarin de la Rive, editor de La France chrétienne [A França cristã], na qual atacavam Encausse. La France chrétienne era uma revista católica que havia começado uma campanha contra Encausse e o martinismo em 1894-95 sob seu antigo diretor, Léo Taxil.29 Quando Guénon publicou um artigo em La Gnose criticando a falta de lógica do que era então o sistema padrão de altos graus da maçonaria («Les hautes grades maçonniques» [Altos graus maçônicos], Clarin de la Rive ficou muito feliz ao republicá-lo em La France chrétienne no ano seguinte. Ele também aceitou um convite de Guénon para assistir a uma cerimônia Gnóstica Universal, que o deixou claramente impressionado. Clarin de la Rive e Guénon se tornaram amigos e La France chrétienne passou a atacar a Igreja Católica Gnóstica de Encausse, mas não a Igreja Gnóstica Universal à qual pertencia Guénon. Este passou a contribuir regularmente com cartas e, mais tarde, com artigos para a revista de Clarin de la Rive, que, em 1913, havia sido renomeada, com maior precisão, La France anti-maçonnique [A França antimaçônica].30 A participação de Guénon em La France chrétienne/La France antimaçonnique não significa que ele tivesse se tornado católico, ou antimaçom — como veremos, ele era membro praticante de uma loja maçônica durante esse período, e tinha uma opinião pouco positiva da Igreja Católica —, mas apenas que via a revista de Clarin de la Rive como uma plataforma útil contra martinistas, maçons ateus e outros que, segundo sua convicção, espalhavam um ponto de vista perigosamente equivocado sobre espiritualidade e religião. Em 1911, Guénon foi iniciado por De Pouvourville em sua Tríade, possivelmente acompanhado de outros membros desse grupo. Guénon e outro gnóstico, Leon Champrenaud, foram também iniciados por Aguéli na ordem sufi Shadhiliyya Arabiyya (discutida mais abaixo), recebendo os nomes muçulmanos de Abd al-Wahid e Abd al-Haq. Esses eventos não foram (como às vezes são apresentados) conversões no sentido normal da palavra. Não há absolutamente nada sugerindo que Guénon praticasse o islamismo
ou seguisse os preceitos do taoismo ou do budismo em 1911, ou mesmo antes de sua chegada ao Egito em 1930.31 Dada a importância do sufismo e do Islã para Guénon após 1930, e depois para o Tradicionalismo como um todo, passarei agora a considerar como Aguéli chegou à posição de admitir pessoas a uma ordem sufi, para, em seguida, discutir a natureza do Islã de Aguéli, bem como a de outros dois sufis ocidentais contemporâneos. Apesar de Aguéli ter nascido na Suécia, ele passou a maior parte de sua vida adulta na França e no Egito, tendo abandonado seu país natal aos 21 anos de idade por razões artísticas, e talvez também por razões pessoais, já que havia sido expulso de três escolas em Sala, sua pequena cidade natal no centro da Suécia, e enfrentado a oposição de seus pais à sua escolha de seguir carreira como pintor.32 Durante a «Belle Époque», Paris era praticamente o único destino possível para um artista sério, e foi para lá que Aguéli se mudou em 1890. Ele estudou e trabalhou no ateliê de Émile Bernard, um talentoso pintor e escultor que ajudou a lançar as carreiras de Paul Gauguin e Paul Cézanne. Aguéli também se envolveu com muitos outros interesses que permeavam os meios artísticos e alternativos de Paris, especialmente o anarquismo, o feminismo e a Teosofia, apresentada por Bernard em 1891 e que ele nunca rejeitou de todo.33 Logo após entrar na Sociedade Teosófica, Aguéli desenvolveu uma relação próxima com uma teosofista casada, um pouco mais velha do que ele, Marie Huot. Huot era anarquista, vegetariana e ativista dos direitos dos animais; certa vez, ela interrompeu uma demonstração de Louis Pasteur na Sorbonne e foi salva da fúria dos seguidores de Pasteur apenas pela intervenção de Ferdinand de Lesseps. Ela foi também secretária da Liga Popular contra a Vivissecção, além de ter fundado o primeiro abrigo para animais da França.34 Ademais, foi também uma poetisa que a passagem do tempo permite qualificar, no máximo, como medíocre.35 Não está claro se a relação de Aguéli com Huot foi de natureza romântica ou não, mas ela se estendeu por muitos anos.
Huot foi responsável, de maneira indireta, por apresentar Aguéli ao sufismo. Sua ligação com anarquistas, por intermédio dela, levou-o a uma breve temporada na prisão em 1894, durante a qual ele começou a ler o Corão. Além disso, foi o marido de Huot que pagou a passagem do navio que levou Aguéli ao Egito após sua libertação.36 Não está claro por que Aguéli escolheu o Egito; a África do Norte teria sido um destino mais óbvio para um parisiense interessado no Islã, tanto por razões geográficas quanto linguísticas. Talvez Aguéli pensasse em seguir até a Índia, devido a um interesse no hinduísmo. Na época, a rota padrão da Europa para a Índia passava pelo Egito.37 Após uma primeira visita ao Egito em 1894-95, Aguéli abandonou a pintura durante alguns anos e voltou a Paris para estudar árabe na principal instituição para tal fim, a École des Langues Orientales, bem como para estudar sânscrito com Sylvain Lévi, o indologista que viria a rejeitar a tese de Guénon. Aguéli tornou-se também muçulmano e retornou ao Egito.38 Ele ficou famoso por um breve período na França durante uma visita em 1900, como resultado da determinação de Huot de resistir à introdução das touradas ao estilo espanhol no país. Aguéli acompanhou-a até a praça de touros e atirou no toureiro. Esse foi o primeiro registro do que se poderia chamar de terrorismo Tradicionalista (ou prototradicionalista), motivado mais pela relação de Aguéli com Huot do que por considerações teóricas. O toureiro sobreviveu, e devido à simpatia do público pela causa de Huot, Aguéli recebeu uma sentença suspensa. Os promotores das touradas ao estilo espanhol abandonaram sua tentativa de introduzi-las na França.39 De volta ao Cairo em 1902, Aguéli envolveu-se com a política anticolonial, colaborando estreitamente com um italiano chamado Enrico Insabato. Este, como Aguéli, tinha um passado anarquista. Insabato era também maçom, mas não, até onde se sabe, teosofista. Além disso, era também um agente de Giovanni Giolitti, primeiroministro da Itália entre 1903 e 1905, com quem se correspondia diretamente. Insabato não tinha aliados no Ministério das Relações Exteriores ou na Legação Italiana no Cairo, onde era detestado. Seu objetivo era unir o nascente imperialismo italiano ao Islã.40 Assim
como ocorreu com a entente franco-germânica de De Pouvourville, esse objetivo nunca se realizou, e toda a esperança foi perdida com a guerra ítalo-otomana de 1911-12. Antes desse desastre, os projetos bem-sucedidos de Insabato incluíam a fundação de um riwaq (faculdade) para nativos de Trípoli na Universidade de Al Azhar do Cairo, bem como uma mesquita sob patrocínio italiano no Cairo, nomeada em honra do rei Umberto I, finalizada em 1906.41 Mais importante para o Tradicionalismo, ele publicou uma revista islamista bilíngue árabe-italiano, Al nadi/ Il Convito, na qual escreveram tanto Aguéli quanto o principal colaborador egípcio de Insabato, Abd alRahman Illaysh. Abd al-Rahman Illaysh era filho de um importante erudito, Muhammad Illaysh, que ocupava o cargo de mufti Maliki desde 1854, um dos doze mais importantes na hierarquia islâmica do Egito. Abd al-Rahman fugiu do Egito para Damasco após a morte de seu pai na prisão (para onde havia sido enviado por razões políticas),42 e lá tornou-se um colaborador próximo de Amir Abd al-Qadir, o líder da resistência argelina, que, nos anos finais de sua vida, recebeu honrarias dos franceses por suas qualidades de estadista, e dos sírios por seus conhecimentos a respeito do grande sufi medieval Muhyi al Din ibn al-Arabi.43 A associação de Abd al-Rahman com Insabato pode ser vista, portanto, como uma continuação das atividades antibritânicas de seu pai; também é possível que a maçonaria de Insabato tenha desempenhado algum papel nisso, já que o próprio Abd al-Qadir era maçom.44 Illaysh desapontou-se mais tarde com Insabato, recusando a oferta deste de conseguir sua nomeação como Xeique al-Islã (decano dos eruditos islâmicos) da Etiópia. Em 1909 ele abandonou os planos de Insabato, voltando suas energias para uma tentativa de aproximação franco-islâmica.45 Illaysh introduziu uma ênfase em Ibn al-Arabi nas páginas da revista Al nadi/ Il Convito, que anunciou a formação de uma Sociedade para o Estudo de Ibn al-Arabi na Itália e no Oriente.46 No entanto, nada mais se sabe sobre esse projeto. Ele também estimulou o interesse de Aguéli em Ibn al-Arabi, em cujos ensinamentos o sueco viria a enxergar a doutrina essencial ou
secreta do Islã. Ibn al-Arabi é importante para sufis no mundo islâmico; para a maioria dos Tradicionalistas, que seguiriam Aguéli, ele veio a se tornar esmagadoramente importante. Assim, a ênfase posterior dos Tradicionalistas em Ibn al-Arabi vem, em última instância, de Amir Abd al-Qadir. Aguéli também entrou em uma ordem sufi — a Shadhiliyya Arabiyya — pelas mãos de Illaysh. Centenas de ordens sufis como essa existiam no Egito, algumas fazendo pouco mais do que fornecer um contexto simpático para a prática religiosa de muçulmanos piedosos, enquanto outras levavam alguns poucos crentes pelo caminho da experiência mística de Deus. O Islã, como o Tradicionalismo, faz uma distinção entre exoterismo (zahir) e esoterismo (batin), e os sufis por vezes descrevem a relação entre o sufismo e o Islã mainstream, não sufi, nesses termos. O Islã mainstream se atém ao zahir, ao exotérico; o sufismo dá acesso ao esotérico, batin, à espiritualidade pura. O caminho sufi, como se costuma enfatizar, é um caminho dentro do Islã: a prática escrupulosa do Islã mainstream é uma condição prévia ao acesso ao batin. A ordem sufi de Illaysh, a Shadhiliyya Arabiyya, datava do século XVII e havia florescido no fim do século XVIII. Sua liderança havia sido herdada pelo pai de Illaysh, Muhammad, após a morte de seu próprio pai, mas, na época, a ordem já estava em declínio. Não era incomum que um erudito combinasse postos, como o de Mufti e o de líder de uma ordem sufi, como fazia Muhammad Illaysh. Para ele, no entanto, os papéis dominantes eram os de erudito e ator político, não o de sufi. Ao longo da vida do filho de Muhammad Illaysh, Abd al-Rahman, a ordem Shadhiliyya Arabiyya parece ter deixado de ter membros ativos.47 Em termos sufis, não importava que a Shadhiliyya Arabiyya já não possuísse existência organizacional. É perfeitamente correto «dar» a outra pessoa qualquer ordem que se tenha recebido, desde que se possua a permissão — uma ijaza — para tanto, existam ou não seguidores em atividade. É claro que uma ordem sem seguidores não pode ser descrita como importante ou bem-sucedida. Illaysh não apenas deu a Shadhiliyya Arabiyya a Aguéli, mas também uma ijaza que permitia a este transmiti-la, por sua vez.
Em 1909, Aguéli voltou a Paris, onde ficou conhecido por seu comportamento extravagante. Irascível e dado a fazer longos discursos sobre assuntos impopulares, como a excelência do anarquismo, ele usava com frequência um turbante ou vestimentas árabes.48 Tal comportamento era quase esperado dos artistas da Belle Époque, que haviam «desenvolvido uma técnica sistemática para escandalizar as pessoas, para manter suas ideias à vista do publico». Alfred Jarry, o contemporâneo mais famoso de Aguéli, andava pelas ruas de Paris vestido de ciclista e carregando pistolas na cintura.49 Foi nesse momento que Aguéli conheceu De Pouvourville e usou sua ijaza para dar a Shadhiliyya Arabiyya a Guénon e Leon Champrenaud. Aguéli não foi o único sufi ocidental no início do século XX, mas foi o primeiro que se conhece a fundar um ramo autêntico de uma ordem sufi, por menor que fosse, na Europa. A mais conhecida sufi ocidental da época talvez fosse Isabelle Eberhardt, uma jornalista e romancista francesa nascida em Genebra de pais russos (seu sobrenome era de origem alemã porque seu avô materno era alemão, e tanto ela quanto sua mãe eram filhas ilegítimas).50 Os escritos de Eberhardt apresentavam uma visão romântica do deserto e da vida árabe que se mostrou muito popular na França; eles eram o equivalente argelino dos romances de sucesso de Pierre Loti, que retratavam a vida no Império Otomano. A própria vida de Eberhardt também é frequentemente interpretada de maneira romântica, e a imagem de uma intrépida mulher francesa enfrentando o perigo e a desaprovação vestida como um homem árabe possui um apelo perene. Por causa disso, Eberhardt tornou-se algo como um ícone feminista e, em menor medida, anticolonial.51 O pai de Eberhardt, Alexander Trofimóvski, servo de nascimento, havia sido empregado como tutor pelo primeiro marido da mãe de Eberhardt, um oficial do exército. Trofimóvski, a mãe de Eberhardt e seus primeiros três filhos partiram juntos da Rússia para a Suíça, onde a própria Eberhardt nasceu. Trofimóvski era um radical socialista e ateu, seguidor de Tolstói e Bakunin. A educação dada a sua filha, Isabelle, foi igualmente radical; ele não apenas ensinou-lhe
latim e grego (geralmente reservado a meninos), mas também encorajou-a a vestir-se como um garoto.52 Eberhardt também aprendeu árabe, possivelmente com seu pai, um entusiasta do Islã como força anticolonial. Entre os amigos de seu pai, encontrava-se James Sanua, um judeu egípcio de origem italiana que se mudara para Paris em 1878.53 Sanua tornou-se um grande amigo de Eberhardt, principalmente por meio de uma correspondência iniciada em 1896, e apresentou-a a diversos tunisianos, um dos quais se tornou seu correspondente sobre assuntos religiosos.54 O lar dos Trofimóvski ruiu, e, aos vinte anos de idade, Eberhardt e sua mãe mudaram-se para a Argélia, em 1897. Um de seus meiosirmãos permaneceu na Suíça, os outros dois retornaram à Rússia, onde, mais tarde, ambos se suicidaram. Na Argélia, Eberhardt sustentou a si e sua mãe por meio do jornalismo, parcialmente baseado no de Pierre Loti. Ao mesmo tempo, chocou a sensibilidade da colônia francesa local com seu comportamento — vestindo-se não apenas de homem, mas de árabe, fumando haxixe, aparecendo embriagada em público e dormindo com diversos homens argelinos. Ela também chocou os franceses ao descrever-se como muçulmana e sufi.55 Não está claro como ou quando Eberhardt tornou-se muçulmana; aparentemente, seu pai converteu-se ao Islã antes de falecer, provavelmente mais por simpatias políticas do que por convicção espiritual,56 e a própria Eberhardt pode ter se tornado muçulmana na Europa antes de partir para a Argélia. A conversão ao Islã é, tecnicamente, um processo simples: não é necessário nenhum período de instrução ou formalidade. Somente se exige a enunciação diante de duas testemunhas — adultas, muçulmanas e sãs — da Profissão de Fé, as palavras (em árabe): «Dou testemunho de que não há outro deus senão Deus e Maomé é seu profeta». A pessoa que diz essas palavras torna-se então muçulmana e, como tal, é obrigada a respeitar a xaria, o código do Islã — que, entre outras coisas, proíbe vestir-se com as roupas do sexo oposto, desencoraja o consumo de haxixe, proíbe o consumo do álcool e proíbe o sexo fora do casamento. Assim, Eberhardt não parece ter sido uma boa
muçulmana, ou — dizendo de outro modo — sua compreensão do que significava ser muçulmano não incluía a observância cuidadosa das proibições da xaria. Não está claro se Eberhardt observava a xaria em outros aspectos. O código do Islã não consiste apenas de proibições, mas também de práticas religiosas específicas exigidas ou encorajadas: oração ritual, jejuns periódicos, esmolas e afins. As esmolas provavelmente não eram um problema, uma vez que o que se sabe da situação financeira desesperadora de Eberhardt sugere que ela estaria dispensada desse dever devido à pobreza, mas a oração e o jejum são exigidos de todos. Muitos muçulmanos de nascimento não rezam regularmente, é claro, apesar de quase todos jejuarem no Ramadã. Infelizmente, não há relatos confiáveis confirmando se Eberhardt rezava e jejuava. No entanto, ela levava a sério as práticas sufis, ainda que não as proibições da xaria. Eberhardt estava em contato com duas ordens sufis diferentes, a Qadiriyya e a Rahmaniyya.57 Ela filiou-se à Qadiriyya em 1899 ou 1900, dois anos após sua chegada à Argélia, e, em 1901, partiu em um retiro (khalwa), uma prática sufi que pouco difere de seu equivalente católico. Em 1902, realizou a difícil jornada a Bu Sada, no sul da Argélia, para encontrar-se com uma xeica (líder de uma ordem sufi) da ordem Rahmaniyya chamada Zaynab bin Muhammad ibn Abi’l-Qasim. Zaynab era famosa por ser a sucessora de um dos xeiques argelinos mais famosos do século XIX, Muhammad ibn Abi’l-Qasim, seu pai, e também por ser uma xeica (algo que era e continua sendo muito raro).58 Em 1903, Eberhardt voltou ao sul para encontrar-se com Zaynab, e, em 1904, fez um segundo retiro, dessa vez com um xeique da ordem Qadiriyya em Kenadsa, novamente no sul do país. Tais visitas seriam o esperado de um sufi argelino comum; os dois retiros, no caso de um argelino, indicariam verdadeira dedicação ao caminho sufi. Logo após seu segundo retiro, no fim de 1904, Eberhardt morreu (junto com diversas outras pessoas) numa inundação. Ela tinha apenas 27 anos de idade, mas sofria de malária e, provavelmente, sífilis, tendo perdido todos os dentes. A despeito de sua postura anticolonial, no momento de sua morte ela transmitia informações de
inteligência sobre a resistência argelina ao general francês Hubert Lyautey, com quem também é possível que mantivesse um caso amoroso.59 O fato de ser uma convertida ao Islã que ignorava grande parte da xaria, mas que visitava xeiques sufis e participava de retiros fazia de Eberhardt um tipo especial de muçulmano — mais sufi do que propriamente muçulmana, aparentemente. Durante o século XX, a ideia do sufismo como algo separado do Islã generalizou-se no Ocidente, mas é importante ter em mente que se trata de uma ideia puramente ocidental e que a multiplicidade do neosufismo não islâmico que surgiu na Europa e nas Américas é um fenômeno exclusivamente ocidental.60 Na Argélia e em outras partes do mundo muçulmano, o Islã e o sufismo foram e permanecem inseparáveis. Sufis são, por definição, muçulmanos, e as práticas religiosas de um sufi estão baseadas na cuidadosa observação da xaria. A abordagem que Eberhardt tinha da religião seria incompreensível para a maioria dos muçulmanos, ainda que talvez não para seu xeique, já que os grandes xeiques são especialistas nos muitos caminhos do coração humano. A verdadeira natureza da conversão de Eberhardt ao Islã seguirá desconhecida, mas pode ter se tratado menos de um ato religioso do que de um meio de identificação com o mundo argelino, que ela claramente amava, e de uma rejeição ao mundo francês, que ela claramente detestava. Também é possível que ela tenha encontrado consolo espiritual no Islã sufi, mas que, ao mesmo tempo, não quisesse, ou não pudesse, abandonar os elementos de seu estilo de vida incompatíveis com o caminho sufi. Um terceiro sufi ocidental do mesmo período foi Rudolf Freiherr von Sebottendorff (nascido Adam Glauer), cujo sufismo, assim como o de Eberhardt, era parcial, mas que, como o de Aguéli, parece ter sido baseado no ocultismo ocidental. Von Sebottendorff é uma figura notável na história do sufismo ocidental. Seus interesses espirituais estavam centrados primariamente em alquimia e maçonaria, e ele aderia a uma forma de perenialismo vagamente emersoniana, além de possuir uma convicção semelhante à de Blavatsky e à do próprio
Emerson a respeito da utilidade da espiritualidade oriental para o Ocidente materialista.61 Von Sebottendorff era filho de um engenheiro ferroviário alemão e obteve o nome Sebottendorff, bem como seu título de nobreza (Freiherr von), em circunstâncias controversas.62 Após abandonar o ensino secundário, ele foi ao mar para ganhar a vida. Abandonando o barco na cosmopolita cidade portuária de Alexandria, encontrou emprego como engenheiro com um proprietário de terras local. Como a maior parte da alta aristocracia egípcia da época, esse proprietário era um turco otomano, que levou Von Sebottendorff consigo para a Turquia. Von Sebottendorff passou quase todo o resto da vida na Turquia, recebendo a cidadania otomana em 1911.63 Naquele país, estudou primeiro cabala (a tradição esotérica judaica) com um cabalista judeu em Brussa, que o apresentou a uma loja maçônica na cidade na década de 1890.64 Depois disso, passou a estudar um tipo pouco comum de sufismo com alguns sufis bektashis que também eram maçons.65 Com eles, Von Sebottendorff aprendeu mais numerologia (ciência espiritual na qual os bektashis sempre se destacaram) do que sufismo.66 Até onde se sabe, Von Sebottendorff não chegou a seguir um caminho sufi, tal como Eberhardt o fez, ainda que parcialmente; no entanto, é provável que tenha se tornado muçulmano.67 Em lugar disso, ele tentou misturar tudo o que havia aprendido e criar um novo sistema. Após muitos anos, em 1910 Von Sebottendorff atingiu seu objetivo, ao menos segundo sua própria avaliação. Tendo encontrado o que ele entendia ser «a chave da realização espiritual», Von Sebottendorff decidiu transmitir sua descoberta aos que precisavam dela, não aos muçulmanos (para quem o sufismo já estava disponível e bastava) nem mesmo aos cristãos, mas aos materialistas que não conseguiam mais acreditar em coisa alguma, especialmente os da Alemanha.68 Assim, em 1913, Von Sebottendorff retornou à sua terra natal onde, passados alguns anos e muitas frustrações, publicou sua descoberta em 1924, sob o título de Die Praxis der alten Turkischen Freimauerei [A prática da antiga maçonaria turca]. Esse breve livro fornece instruções detalhadas para
um conjunto de exercícios de meditação numerológica que guardam pouca semelhança com o sufismo ou com a maçonaria; eles não parecem ter impressionado aqueles que tentaram praticá-los, porém, e, não fosse por seu envolvimento posterior na política, Von Sebottendorff teria sido esquecido junto com seu livro de 1924. Von Sebottendorff, assim como Eberhardt e Aguéli (a julgar por suas pinturas), tinha um apego romântico ao seu país de adoção, apesar de esse apego pertencer a uma variedade um pouco diferente. As histórias de Eberhardt revelam um amor pelo deserto e seus habitantes, enquanto Von Sebottendorff retrata a civilização muçulmana do Império Otomano como mais bem-sucedida do que a Alemanha durante e após a Primeira Guerra Mundial.69 Para ambos, a rejeição da civilização burguesa ocidental, ou, ao menos, de sua visão dessa civilização, foi um motivo para a adoção de uma alternativa oriental. Essa motivação romântica está ausente em Guénon. Em cartas escritas de Sétif, na Argélia, onde dava aulas de filosofia no liceu local em 1917, Guénon se queixa do clima argelino, do excesso de trabalho no liceu, de alunos sem talento e, sobretudo, da «ausência de qualquer ambiente intelectual».70 Eberhardt não teria aprovado. Mais tarde, Guénon tornou-se um sufi ocidental integrado no mundo árabe e islâmico, mas em 1917 sua reação à Argélia foi pouco entusiasmada. A experiência religiosa de Eberhardt com o sufismo deve permanecer no terreno da conjectura. A abordagem de Von Sebottendorff à prática sufi é mais clara: ela não teve nada a ver com o que os próprios sufis chamariam de sufismo e tudo a ver com suas experiências anteriores com a maçonaria e o ocultismo europeu. É difícil dizer qual foi a abordagem de Aguéli. Sua conversão ao Islã parece ter tido pouco impacto em seu dia a dia. Ele continuou pintando figuras humanas e desenhando nus femininos, violações da xaria (apesar de muito menos sérias do que as de Eberhardt) que um muçulmano piedoso normalmente evitaria. Por outro lado, a julgar por seus escritos, sua compreensão do Islã, do sufismo e do árabe era excelente e, ao menos em comparação com a de Von Sebottendorff, completamente ortodoxa.71
Aguéli aparece como o mais sério e ortodoxo desses três sufis ocidentais, mas, mesmo assim, sua conversão ao Islã, como a de Eberhardt e Von Sebottendorff, representou um tipo especial de conversão, algo inédito antes do século XIX. Outros ocidentais haviam se convertido, de tempos em tempos, desde o surgimento do Islã, e vários paxás otomanos tinham origem na Europa ocidental. Esses convertidos abandonaram suas identidades e nomes cristãos e europeus, trocando-os por identidades islâmicas, misturando-se às populações muçulmanas das áreas em que viviam, como fazem alguns convertidos ao Islã até hoje. Apesar do apego romântico ao seus países de adoção (Egito, Argélia e Turquia) e de seu compromisso com políticas nacionalistas ou anticoloniais, Aguéli e os outros sufis permaneceram ocidentais, retendo seus contatos originais e muito de suas identidades. O mesmo vale para Blavatsky e Olcott, ambos também «convertidos», Blavatsky ao hinduísmo, Olcott, ao budismo, ou ao menos a suas próprias versões de tais religiões.
A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL Em 1912, Guénon recebeu sua sexta e última iniciação, na loja maçônica regular Thébah. Ele foi apresentado a essa loja por Oswald Wirth,72 figura central na história do Tradicionalismo maçônico. Wirth, o personagem mais importante da maçonaria francesa no século XX, havia feito a mesma jornada do ocultismo à respeitabilidade que Guénon viria a fazer sob auspícios católicos. Associado inicialmente a Encausse e outros em círculos ocultistas,73 de que, tal como Guénon, retiraria seus objetivos básicos, Wirth voltaria suas atenções para a maçonaria regular e se afastaria de seus companheiros anteriores.74 Wirth e o aspecto maçônico do Tradicionalismo serão discutidos mais adiante. A introdução de Guénon à maçonaria regular foi o último evento importante da primeira fase de sua vida adulta, a fase ocultista. Apesar de a Primeira Guerra Mundial ter sido o evento que pôs fim a essas atividades que venho discutindo, pertencentes, em essência, à
Belle Époque, houve um período de calmaria preparatório em 1913. La Gnose havia interrompido suas atividades em 1912,75 provavelmente por falta de recursos e leitores, razão pela qual a maior parte dos periódicos ocultistas tinha uma existência breve. Outra explicação possível é que Guénon tinha outras coisas em mente, pois se casara, em 1912, com Berthe Loury, uma professora primária assistente de 29 anos, três anos mais velha do que ele. O casal havia se conhecido por meio de uma tia de Guénon em uma visita que ele fizera à sua cidade natal de Blois, no ano anterior. Foi nesse momento que Guénon deixou de consumir ópio e haxixe.76 Tal como exigido pela legislação francesa, a primeira cerimônia foi o casamento civil; na semana seguinte, eles se casaram numa cerimônia católica em Blois (como indicado anteriormente, a esposa de Guénon era católica devota).77 A Primeira Guerra Mundial completou a dispersão do grupo reunido ao redor de De Pouvourville. Fabre des Essarts, patriarca da Igreja Gnóstica Universal, faleceu em 1917. Genty pediu que Guénon se tornasse o novo patriarca, mas, diante de sua recusa, o próprio Genty assumiu o patriarcado. No entanto, como poucos outros gnósticos chegaram a reconhecê-lo, a Igreja Gnóstica Universal rachou e entrou em declínio.78 Aguéli, como Des Essarts, não viveu o bastante para ver o armistício de 1918. Ele retomou a pintura em 1911 e retornou ao Cairo em 1914. Como resultado de seus contatos com egípcios próotomanos, no entanto, foi expulso do país em 191579 sob a acusação de ser um estrangeiro subversivo e mudou-se para Barcelona, então território neutro. Em Barcelona, falido, Aguéli foi atropelado por um trem em 1917; houve suspeitas de suicídio.80 Seu talento como artista havia sido notado pelo irmão do rei da Suécia, o príncipe Eugène, também pintor, mas suas benesses financeiras chegaram apenas após a morte de Aguéli. No entanto, o príncipe Eugène resgatou as telas de Aguéli81 e seu trabalho foi cada vez mais valorizado na Suécia, até o ponto em que passou a ser considerado um dos principais pintores suecos do período, homenageado com diversas exibições, biografias, um museu, uma coleção de selos e, em
1981, um romance que se tornou um best-seller, chamando primeira vez a atenção do público sueco para o fato de que Aguéli havia sido muçulmano.82 De Pouvourville sobreviveu à guerra, mas foi transformado por ela. O conflito real com a Alemanha tomou o lugar de um possível conflito com a «raça amarela», e o antigo defensor de uma entente francogermânica voltou sua pena para a propaganda patriótica, publicando, em 1916, Jusqu’au Rhin, les terres meurtries et les terres promises [Até o Reno: terras feridas e terras prometidas], com seis edições até 1917.83 Seus escritos do pós-guerra foram dedicados a um jornalismo desse tipo, cada vez mais popular, culminando em Alerte sur Paris, le mur de lumière [Alerta sobre Paris: o muro de luz] (1934) seguido por cinco brochuras sobre La guerre prochaine [A guerra vindoura], seguidas, por sua vez, por 25 brochuras sobre L’héroique aventure [A aventura heroica], vendidas a um franco cada no período 1935-36.84 Não parece ter havido contato entre ele e Guénon durante esses anos. Após contribuir muito para o Tradicionalismo, De Pouvourville desaparece da história. As obras posteriores de De Pouvourville sugerem dificuldades financeiras, um problema certamente sofrido por Guénon em decorrência da guerra. Apesar de dispensado do serviço militar por razões médicas, ele percebeu que já não seria capaz de viver de seus investimentos, talvez também devido à necessidade de sustentar sua esposa. Em 1914, Guénon retomou sua educação formal, em preparação para seu primeiro emprego. A guerra marcou também o fim do primeiro campo de atividade de Guénon, o martinismo. Em 1914, Encausse foi convocado para o exército francês como médico, com a patente de major, vindo a falecer em 1916 de uma doença pulmonar contraída nas trincheiras.85 Seu sucessor como mestre da Ordem Martinista foi Charles Détré, um jornalista que havia vivido na Inglaterra durante alguns anos e comandado a loja maçônica irregular Humanidad,86 mas Détré faleceu em 1918. A Ordem se dividiu em diversas seções a partir de então, cada uma seguindo requerente diferentes, e entrou rapidamente em declínio. Uma tentativa do filho de Encausse,
Philippe, de reviver o martinismo em 1952 (após uma carreira na medicina e no jornalismo esportivo) falhou por completo.87 A Primeira Guerra Mundial, portanto, preparou o terreno para a ascensão, em primeiro lugar, da filosofia Tradicionalista e, em seguida (na década de 1930), do movimento Tradicionalista. Seus horrores destruíram também grande parte da fé implícita na modernidade tão característica da Belle Époque. Assim, a Grande Guerra produziu circunstâncias que contribuíram para uma recepção favorável do antimodernismo Tradicionalista.
PARTE II O TRADICIONALISMO NA PRÁTICA
4. CAIRO, MOSTAGANEM E BASILEIA
No fim da década de 1920, no momento em que o Tradicionalismo se tornava uma filosofia estabelecida, a vida de Guénon em Paris foi desfeita por uma série de golpes. Em consequência disso, ele se mudou para o Cairo em 1930, dando início à terceira e última fase de sua vida adulta. Foi também a fase mais longa, durante a qual o Tradicionalismo se tornou pela primeira vez um movimento, formado por grupos unidos de maneira pouco articulada, que ou seguiam uma prática religiosa ou se engajavam em atividades políticas. Os aspectos religiosos do início do movimento Tradicionalista serão analisados neste capítulo; os aspectos políticos, no capítulo 5. No início de 1927, Guénon tinha quarenta anos de idade, um casamento e uma vida razoavelmente confortável. Sua carreira de professor secundário de filosofia não podia ser descrita como bemsucedida; naquele momento, ele lecionava numa escola particular para meninas, o mais baixo que se podia chegar na hierarquia acadêmica francesa. No entanto, seus livros recebiam um reconhecimento crescente, ao menos em círculos restritos, e o número de seus admiradores crescia. O casal não tinha filhos, mas, desde 1918, eles criavam uma sobrinha, Françoise (de seis anos de idade), com a ajuda da tia favorita de Guénon, Madame Duru,1 a responsável por apresentá-lo a sua esposa em 1911. Em dois anos, Guénon havia perdido tudo, exceto seus admiradores. Em 1927, Berthe faleceu em uma mesa de cirurgia durante um procedimento para retirada do apêndice, com apenas 44 anos de idade. No mesmo ano, Guénon perdeu seu emprego na escola para meninas. Em 1928, Madame Duru faleceu. No ano seguinte, após desentendimentos entre Guénon e a mãe de Françoise (a irmã de Berthe), a sobrinha — então com dezesseis ou dezessete anos — foi afastada do tio.2
Essa série de desastres resultou nos primeiros sinais de uma leve paranoia em Guénon. Em março de 1929, ele escreveu a Charbonneau-Lassay, que, além de ser um amigo da época de Regnabit, conhecia a família de Berthe, que Françoise «estava fazendo jogo duplo», dizendo a Guénon que queria ficar com ele, e à mãe, que queria ficar com ela. Ele passou a desconfiar também que a garota permitia a entrada de pessoas em seu apartamento em sua ausência. «Posso dizer que alimentei uma víbora», escreveu Guénon. Ele alegava estar cercado por «uma verdadeira rede de espionagem e traição». «O principal objetivo das pessoas que causaram tudo isso», continuou, em outra carta a Charbonneau-Lassay, «é tornar impossível que eu continue [o meu trabalho].»3 Nunca ficou inteiramente claro quem seriam «as pessoas que causaram tudo isso», mas Guénon parecia estar se referindo aos «poderes inferiores insuspeitos» mencionados em Orient et Occident, organizações contrainiciáticas, incluindo os martinistas sobreviventes. Na realidade, o mais provável é que Françoise tenha sido retirada dos cuidados de seu tio viúvo porque o estilo de vida dele estava longe de fornecer o ambiente ideal para uma jovem, que podemos imaginar sentada em um quarto vazio enquanto Guénon saía para discutir a tradição com seus admiradores.4 É quase certo que Guénon e Françoise, que viria a se tornar freira, nunca mais voltaram a se encontrar.5 O trabalho de Guénon tinha de continuar, e assim aconteceu. Ele se mantinha atarefado com Le Voile d’Isis e seguiu em contato com seus admiradores. Foi na livraria de Paul Chacornac que, em 1929, ele conheceu Dina Shillito (nascida Mary Shillito), uma rica viúva norte-americana com um forte interesse por ocultismo e convertida ao Islã. Guénon e Shillito parecem ter estabelecido uma boa relação de imediato, e podem mesmo ter se tornado amantes.6 Eles planejaram uma série de livros Tradicionalistas, a serem editados por Guénon e financiados por Shillito. Após dois meses na Alsácia, sem que se soubesse a razão da viagem, eles partiram para o Egito em 1930 para passarem três meses reunindo textos para sua coleção. A ideia deve ter partido de Shillito, já que Guénon nunca havia demonstrado grande interesse em viagens ao exterior ou no efetivo
contato com o Oriente sobre o qual escrevia. A ideia do destino deve ter vindo também dela; seu falecido marido era egípcio, e é provável que ela mantivesse contatos no país.7 O encontro entre Guénon e Shillito, portanto, foi da maior importância para a história posterior do Tradicionalismo, que se tornou mais e mais dominado pelo Islã. Sem Shillito, é difícil conceber como esse desenvolvimento poderia ter ocorrido. Três meses depois da partida dos dois para o Egito, Shillito voltou sozinha para a França. Por alguma razão, Guénon e ela haviam rompido relações. A planejada série de livros nunca veio à luz, e Shillito não teve nenhum contato posterior com os Tradicionalistas.
GUÉNON, O EGÍPCIO Mesmo depois da partida de Shillito, Guénon pretendia passar apenas alguns meses a mais no Egito, mas seu retorno à França foi atrasado, depois adiado e, por fim, nunca aconteceu. A princípio, sua única fonte de renda eram os direitos autorais de suas publicações, o que se mostrou insuficiente. Guénon enviou uma carta desesperada a Reyor (que, em 1932, tornou-se o editor de Le Voile d’Isis/ Études traditionnelles e, assim, um de seus principais pontos de contato na França), pedindo-lhe que conseguisse de Chacornac algumas prestações atrasadas. Em resposta, um rico admirador de Guénon viajou de Paris ao Cairo para visitá-lo e encontrou-o vivendo «em um quarto miserável, visivelmente subnutrido». Um grupo de admiradores começou a enviar-lhe dinheiro como se fosse relativo a direitos autorais, que, na realidade, não existiam,8 mas Guénon nunca foi rico. Em 1939, John Levy, um rico Tradicionalista inglês que as obras de Guénon haviam convertido do judaísmo ao Islã e que estava visitando-o no Cairo, comprou a casa que o francês alugava e deu-lhe de presente,9 garantindo assim, em larga medida, o seu futuro financeiro. Com sua situação econômica mais ou menos estabilizada pelas doações vindas da França, em 1934 Guénon casou-se com Fatima Muhammad Ibrahim, uma devota egípcia de origem humilde.10 Em
1935, Guénon tomou providências para esvaziar seu apartamento em Paris, e, nos anos que se seguiram, ele e sua esposa egípcia tiveram a família que lhe faltou na França — duas filhas, um filho e um segundo filho nascido postumamente. Em 1948, ele recebeu a cidadania egípcia a fim de transmiti-la a seus filhos.11 É possível identificar quatro razões para a decisão de Guénon de ficar no Egito, e elas não incluem seu casamento, arranjado pelo pai da noiva, e que, portanto, foi uma consequência, e não uma causa, de sua permanência. A primeira razão provável é que Guénon sentia que não tinha para o que voltar em Paris. A segunda é que a vida no Cairo seria mais barata do que em Paris. A terceira era seu medo das «potências inferiores insuspeitas» na França. A quarta e mais importante foi a de que, no Egito, Guénon encontrou pela primeira vez o Islã e uma tradição viva.12 O Cairo de 1930 não podia ser descrito como uma cidade tradicional; não podia sequer ser descrito como uma cidade particularmente islâmica, mas entre seus habitantes havia muitos muçulmanos piedosos cuja vida não havia sido tocada pela modernidade e pela ocidentalização. Foi nessa classe que Guénon se casou e em meio à qual viveu, primeiro na área operária ao redor da antiga mesquita Husayn e, mais tarde, no subúrbio de classe média de Doqqi. O fato de Guénon estar sempre vestido com uma túnica gallabiyya sugere que ele evitava as áreas onde os europeus viviam por escolha própria. Em termos egípcios, usar a gallabiyya era algo mais arcaico do que propriamente tradicional, as classes médias e altas educadas haviam abandonado esse e outros costumes adotados por Guénon, substituindo-os por vestimentas e costumes de origem francesa. Guénon manteve, porém, alguns hábitos franceses, encerrando o jejum diário do Ramadã não com uma refeição, como é normal no Egito, mas fumando um cigarro e tomando café.13 No Cairo, Guénon vivia como um muçulmano piedoso e como um sufi. Todos os relatos indicam que ele seguia escrupulosamente não apenas os mandamentos da xaria, mas também as recomendações da sunna, as práticas voluntárias do Islã; por exemplo, ele sabia de cor as orações recomendadas para se despedir de alguém que vai
partir em viagem.14 Assim, nessa época Guénon divergia dos três sufis ocidentais analisados anteriormente, nenhum dos quais seguia a xaria de maneira escrupulosa, talvez mal a seguindo de todo. Havia, no entanto, um desvio da prática islâmica esperada de um sufi piedoso: Guénon nunca fez a peregrinação (Haje) a Meca. Tecnicamente, ele não estava obrigado a fazer a Haje por estar sustentando sua família. Contudo, a Haje não é apenas uma questão de obrigação, mas algo que todo muçulmano piedoso deseja fazer, e é difícil pensar em algum que recusasse a oportunidade de realizá-la caso isso lhe fosse oferecido. No caso de Guénon, a oportunidade foilhe oferecida de algum modo, já que sua esposa, Fátima, fez a Haje em 1946,15 e ele abriu mão da oportunidade de acompanhá-la.16 Além de observar a xaria, Guénon seguia uma ordem sufi. Os últimos traços da ordem Arabiyya Shadhiliyya que Aguéli havia recebido de Abd al-Rahman Illaysh parecem ter desaparecido com a morte de Illaysh em 1921 ou 1929. Em lugar dela, Guénon filiou-se à ordem Hamdiyya Shadhiliyya.17 Trava-se de uma ordem de origem recente, ainda liderada por seu fundador, Salama al-Radi, um dos xeiques sufis mais destacados de seu tempo. É de supor que foi a fama de al-Radi que levou Guénon a escolher a Hamdiyya Shadhiliyya, mas al-Radi é, sob certos aspectos, uma escolha levemente curiosa para um Tradicionalista. Os xeiques sufis podem, em geral, ser divididos em três categorias: «o rotineiro», «o carismático» e «o especialista». A maior parte dos xeiques são rotineiros, homens como Illaysh, que herdaram uma ordem de seus pais e que mantêm algo que, na realidade, não passa de uma extensão das práticas religiosas do dia a dia de um muçulmano piedoso. Alguns poucos xeiques, como al-Radi, são carismáticos, homens que reúnem um séquito entusiasta e numeroso que os vê como santos; com frequência, eles são o ponto de partida de uma nova ordem. Um xeique carismático costuma ser um antigo seguidor de um xeique especialista, ou seja, de um homem que lidera um pequeno círculo de seguidores dedicados no caminho sufi, frequentemente até a experiência da união mística com Deus. Um xeique especialista seria normalmente a escolha de um muçulmano que dedicasse toda a sua vida à religião; assim, seria de esperar que
Guénon seguisse um especialista. Al-Radi, no entanto, era um xeique carismático.18 Talvez Guénon não seguisse al-Radi como guia espiritual, mas simplesmente frequentasse dhikr coletivos periódicos. Sua opinião das ordens em geral não era muito elevada: «Todas são iniciáticas em princípio e origem», escreveu ele a um seguidor, dois anos após sua chegada ao Cairo, «mas, infelizmente, algumas perderam muito em matéria espiritual, seja por estarem excessivamente espalhadas, seja, sobretudo, pela intromissão de influências políticas.»19 É possível supor que as «influências políticas» a que Guénon se referia eram o engajamento de diversas ordens no movimento nacionalista anticolonial.20 Apesar de agir como um muçulmano piedoso em sua prática religiosa, Guénon manteve-se um Perenialista dedicado em suas crenças. Ele dizia que não havia se convertido ao Islã, mas «se mudado» para ele: «quem compreende unidade entre as tradições [...]», escreveu Guénon, «é necessariamente [...] ‹inconvertível› a qualquer coisa».21 A respeito de sua «mudança» para o Islã, ele também escreveu: «Não há nada nela que implique a superioridade de uma forma tradicional em si mesma sobre outra, mas apenas o que se poderia chamar de razões de conveniência espiritual».22 Guénon se manteve não apenas universalista em suas crenças, mas Tradicionalista, e não muçulmano, em seus escritos. Há algumas referências ao Islã em sua obra antes de 1930, e, apesar de um pequeno aumento após essa data, o Islã nunca se tornou uma fonte importante para ele, nem tampouco para suas leituras. Sua biblioteca pessoal continha cerca de 3 mil volumes no momento de sua morte, com quatro vezes mais livros sobre hinduísmo do que sobre o Islã, com poucos, ou talvez nenhum, em árabe.23 Quando Guénon desejava citar as obras do grande teórico sufi Ibn al-Arabi, ele escrevia pedindo referências a um seguidor em Paris que conhecia bem Ibn al-Arabi.24 Na realidade, é provável que Guénon não soubesse ler árabe. Com frequência, ele é descrito como fluente no idioma, e certamente o seria no dialeto egípcio (a única língua falada por sua esposa), mas a fluência em um dos dialetos do árabe não implica a habilidade de ler a forma clássica do idioma na qual estão
escritos os livros religiosos. São necessários anos de estudo dedicado para que um ocidental seja capaz de ler o árabe clássico com fluência, e, no momento em que se estabeleceu no Cairo, Guénon provavelmente não tinha tempo ou inclinação para tal aprendizado.25 Ele estava na casa dos cinquenta anos de idade; seus estudos haviam terminado; aquele era o tempo de ensinar. No Cairo, Guénon continuou a ler e a escrever livros e artigos, além de manter uma extensa correspondência, tal como o fazia em Paris, retirando-se a seu escritório para brincar com as crianças ou para sentar-se em uma poltrona e agradar os gatos. A correspondência consumia horas todos os dia, especialmente nos últimos anos; ele respondia todas as cartas com o mesmo cuidado, sem distinção de remetente ou assunto.26 Tal correspondência tornou-se o ponto focal para a organização de sua «elite» ocidental, e estendia-se da Índia ao Brasil.27 Guénon também recebia visitas ocasionais vindas da Europa, mas com relutância, à medida que sua paranoia crescia. Uma doença no fim de 1937 deixou-o acamado por alguns meses, resultado, acreditava ele, de um ataque mágico de um visitante europeu enviado por círculos contrainiciáticos da França.28 Havia também boatos de que a morte de sua primeira esposa, Berthe, fora devida a magia,29 boatos que podem ter se originado com o próprio Guénon. Após sua doença em 1937, ele tomou precauções não apenas de natureza ritual, mas também passou a manter seu endereço secreto, recebendo sua correspondência por meio de caixas postais. Os encontros com os europeus foram restritos apenas àqueles cuja identidade era conhecida, e, em seus anos finais, Guénon raramente saía de casa.30 Guénon não parece ter tido muitos amigos no Cairo, certamente nada comparável ao círculo que possuía em Paris. Sua amiga mais antiga era a condessa Valentine de Saint-Point, uma francesa residente no Cairo havia mais tempo do que ele próprio. Ela se convertera ao Islã no Marrocos em 1918, sete anos após o fim de uma carreira bem-sucedida como poeta e romancista na Paris da Belle Époque. Feminista de primeira hora, foi a primeira mulher a
cruzar o Atlântico num avião e havia posado nua como modelo para o escultor Auguste Rodin. Ela se mudou para o Cairo em 1924, onde passou a apoiar o movimento nacionalista, como Aguéli, ao mesmo tempo que experimentava a acupuntura. Para sua chegada ao Cairo, Guénon recebera uma carta de apresentação a ela.31 Os demais amigos de Guénon no Cairo parecem ter sido do mesmo tipo que a condessa Valentine de Saint-Point (apesar de possuírem passados menos espetaculares): convertidos ocidentais ao Islã e cosmopolitas, como o jovem Najm al-Din Bammate. De origem daguestanesa, Bammate era filho do embaixador do Afeganistão em Paris; após estudar na Suíça, ele passara os anos finais da vida dando aulas em uma universidade francesa, tornando-se uma figura importante entre os muçulmanos Tradicionalistas franceses nas décadas de 1970 e 1980.32 Havia também alguns egípcios ocidentalizados, como Muin al-Arab, diplomata aposentado convertido ao budismo e casado com uma inglesa (que, por sua vez, havia se convertido ao Islã).33 Assim como o Islã não é muito visível em seus escritos, Guénon parece ter tido pouco contato com eruditos muçulmanos no Cairo. Uma exceção foi Abd al-Halim Mahmud, um sufi e, entre 1973 e 1978, xeique de Al Azhar, a posição mais importante na hierarquia islâmica egípcia.34 Mahmud dedicou muitos esforços à defesa do sufismo num período em que ele estava claramente fora de moda entre os egípcios educados. Mais tarde, ele foi apresentado com frequência em círculos Tradicionalistas como um colaborador próximo de Guénon e até mesmo como um Tradicionalista. No entanto, os indícios para o Tradicionalismo de Mahmud não são convincentes.35 Na realidade, ele certa vez admitiu nunca ter lido nenhum livro de Guénon (o que poderia ter feito, caso desejasse, pois cursara seu doutorado em Paris).36 Mahmud, que conheceu Guénon ao entregar um livro enviado de Paris por um conhecido em comum, escreveu realmente um longo artigo elogiando o francês, mas seu elogio não estava dirigido aos escritos de Guénon, mas sim a sua piedade. O que estava implícito na mensagem era que, se esse francês brilhante podia se tornar um sufi, então não havia nada de errado com o
sufismo.37 Outra exceção à sua ausência de contatos com sábios islâmicos foi a participação de Guénon em Al-marifa (Iluminação), uma revista islâmica mainstream de inclinação sufi, logo após sua chegada ao Cairo. Por razões desconhecidas, essa participação durou pouco tempo.38 A influência de Guénon sobre o Islã egípcio parece ter sido insignificante; alguns de seus artigos foram traduzidos para o árabe, mas ele não deixou outros traços. A razão disso talvez tenha sido a ausência no Egito de algo equivalente a seu público na França. Os egípcios têm uma apetite voraz por livros religiosos, mas preferem títulos antigos e modernos sobre o Islã, não sobre o hinduísmo. Na realidade, qualquer egípcio piedoso ficaria escandalizado com a sugestão de que sua religião pudesse ter algo a ver com o hinduísmo, geralmente visto como uma variedade de idolatria pagã. O perenialismo guénoniano teria sido mal recebido: a visão dominante no Islã (a qual comporta, no entanto, exceções ocasionais) é que todas as outras religiões foram superadas pela revelação do Islã e só podem ser seguidas por ignorância ou maldade. As revelações anteriores foram apenas parciais e preparatórias da vontade de Deus, distorcidas posteriormente por seus seguidores, por exemplo pelos cristãos, que inventaram a impossível mentira de que Deus teve filhos. O abismo, portanto, entre os interesses de Guénon e aqueles dos muçulmanos egípcios «tradicionais» era amplo demais para qualquer comunicação verdadeira. O abismo entre Guénon e os intelectuais egípcios era ainda maior. Muin al-Arab certa vez levou Guénon para conhecer Taha Hussein, o principal intelectual egípcio do início do século XX. Um modernista secularizado, Taha Hussein era casado com uma francesa. Além do casamento multicultural, é difícil imaginar por que Muin al-Arab imaginou que haveria alguma razão para apresentar um ao outro. Como era previsível, conhecendo-se o projeto de Taha Hussein, sua reação ao Tradicionalismo de Guénon foi imediata e visivelmente hostil.39 «Não é verdade», escreveu Taha Hussein em outra ocasião, «que o ‹Ocidente é materialista› [...]; seus triunfos materiais são
produto de seu intelecto e espírito, e até mesmo os seus ateus estão dispostos a morrer por suas crenças.»40 Mesmo que Guénon tenha aprendido pouco ou nada com os eruditos muçulmanos do presente ou do passado durante sua estadia no Cairo, seus anos no Egito certamente ensinaram-lhe algo. Sua experiência das realidades da vida no Oriente tornaram mais realistas suas percepções sobre a região, completando assim a transição da idealização do Oriente, encontrada em Eberhardt e Aguéli, para a idealização da Tradição como conceito independente de localização. Essa transição encontra-se refletida no apêndice que Guénon acrescentou à edição de 1948 de Orient et Occident, na qual distinguiu entre o «Oriente místico» (a tradição) e o «Oriente geográfico»41 — o Egito e outros lugares, onde nem tudo é tradicional e onde nem todos são piedosos sufis. Apesar dessa mudança de opinião, a visão inicial (e idealizada) que Guénon tinha do Oriente permaneceu influente para muitos Tradicionalistas posteriores que — como o próprio Guénon antes de 1930 — com frequência tinham pouco ou nenhum contato direto com ele. Uma consequência mais importante da experiência direta de Guénon a respeito da vida e do culto dos muçulmanos piedosos foi sua apreciação crescente da importância da prática religiosa,42 uma apreciação especialmente islâmica, no sentido de que o Islã enfatiza mais a prática diária do que muitas outras religiões. Essa apreciação logo se viu refletida nos escritos de Guénon. Em geral, os artigos escritos por ele no Cairo são ajustes da filosofia Tradicionalista, e seus livros dessa fase são compilações de artigos anteriores, do período que vai de 1910 a 1915. A única área realmente nova sobre a qual ele escreveu foi a da iniciação, à qual dedicou uma série de artigos de 1932 até 1939, quando a Segunda Guerra Mundial cortou as comunicações entre o Egito e a Europa. Esses artigos, posteriormente reunidos e publicados sob o título Aperçus sur l’initiation [Apreciações sobre a iniciação] (1946), enfatizam a necessidade da iniciação pessoal em uma tradição religiosa ortodoxa.43
Tais artigos produziram uma torrente de cartas dirigidas a Guénon no Cairo. Tradicionalistas consternados que pensavam estar envolvidos em uma busca primariamente intelectual uniram-se a leitores novatos com a mesma pergunta: qual iniciação deveriam receber? Guénon nunca recomendou por escrito uma iniciação em particular, apesar de excluir organizações que via como desprovidas de validade iniciática: a Igreja Católica, diversos grupos neo-hindus no Ocidente e, é claro, qualquer coisa contrainiciática. Ele também indicava as dificuldades práticas que qualquer pessoa não nascida hindu encontraria ao seguir alguma forma de hinduísmo. Por extensão, deixava apenas duas escolhas: a maçonaria (discutida mais adiante) ou sua própria escolha pessoal, o caminho sufi no interior do Islã. No entanto, Guénon nem sempre recomendava o Islã a seus correspondentes, e nem sempre de imediato. Em Orient et Occident, ele tivera a esperança de evitar, ou, ao menos, de moderar, a «assimilação» do Ocidente pelo Oriente, e seu objetivo nunca foi algo tão simples quanto a islamização do Ocidente. Guénon sempre manteve um interesse na possibilidade de formas sobreviventes de iniciação ocidental. Por certo tempo, ele também teve grande interesse nas possibilidades representadas por uma organização iniciática ocidental remanescente, a Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paráclito.
A FRATERNIDADE DOS CAVALEIROS DO DIVINO PARÁCLITO A Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet (Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paráclito) foi descoberta por Reyor na França após a partida de Guénon para o Egito. Reyor, editor da revista Études traditionnelles e um dos principais admiradores de Guénon na França, relutava em tornar-se muçulmano e não tinha gosto pela maçonaria. Assim, ele se recordou com interesse de referências ocasionais a uma ordem cristã medieval não especificada que havia visto em artigos de Charbonneau-Lassay.44 O interesse de Reyor não era apenas para si mesmo: como editor de Études traditionnelles, ele
recebia frequentes perguntas de leitores a respeito de que iniciação deveriam receber. Assim, ele entrou em contato com CharbonneauLassay, que lhe disse que as referências diziam respeito à L’estoile internelle (A estrela interior), uma ordem católica formada no século XV e que mal havia sobrevivido à Revolução Francesa, mas que ainda existia, consistindo num grupo de doze pessoas. Alguns anos antes, um de seus membros, Canon Benjamin-Théophile Barbot, havia entrado em contato com Charbonneau-Lassay devido à sua obra sobre o simbolismo cristão para oferecer-lhe acesso a seus arquivos. Reyor estava interessado, mas a Estoile internelle não era a resposta a seu problema. Ela iniciava um novo membro apenas quando um de seus quadros morresse, e havia muito mais do que um ou dois Tradicionalistas buscando uma iniciação.45 Sob pressão, Charbonneau-Lassay admitiu que havia também outra ordem, a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet. O Divino Paráclito (do grego parakletos = intercessor) é geralmente entendido na teologia católica como a presença do Espírito Santo na ausência do Cristo. A Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet, afirmou Charbonneau-Lassay, estava em atividade desde o século XVI. Apesar de ter sido dissolvida em 1668, sua iniciação havia sido mantida viva no interior da Estoile internelle e havia sido passada a CharbonneauLassay por Canon Barbot. A princípio, Charbonneau-Lassay relutou em reviver a Fraternidade, mas consentiu quando Reyor chamou sua atenção para o fato de que, caso não o fizesse, diversos Tradicionalistas seriam obrigados a se converter ao Islã.46 Em 1938, a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet foi formalmente reconstituída por Charbonneau-Lassay, Reyor e Alexandre Thomas, o mesmo ex-martinista que havia sido membro da Ordem do Templo de Guénon. Alguns outros Tradicionalistas uniram-se à Fraternidade em 1939.47 Pouco depois, o início da Segunda Guerra interrompeu suas atividades. Do Cairo, Guénon havia seguido o assunto com interesse e concluído que, apesar da Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet parecer ortodoxa em si mesma, havia «lacunas» que a tornavam de pouca utilidade, ou seja, não havia o menor vestígio de práticas espirituais. Reyor sugeriu que as práticas poderiam ser
reconstituídas, talvez por meio de paralelismos com as práticas sufi, mas Guénon parece ter rejeitado tal possibilidade. Em 1943, na Paris ocupada pelos alemães, o ainda relutante Reyor deixou a Fraternidade e tornou-se muçulmano.48 Por volta de 1946, no entanto, Charbonneau-Lassay contou a Thomas (que o sucedeu como mestre da Fraternidade) que ele se recordara de uma série detalhada de práticas sobre as quais Barbot havia lhe contado, e cuja importância ele tardara vinte anos em perceber. Thomas transmitiu essas práticas a seus sucessores.49 A súbita lembrança por Charbonneau-Lassay das práticas da Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet é conveniente demais para ser crível, bem como o nível de detalhes com que foram lembradas. Alguns acreditavam que elas haviam sido um sonho de Thomas,50 mas é mais provável que tenham sido um sonho de CharbonneauLassay. Thomas não tinha motivos para enganar deliberadamente seus sucessores na Fraternidade, mas Charbonneau-Lassay sim: salvar almas da perdição. A despeito de sua colaboração inicial com Guénon em Regnabit, Charbonneau-Lassay havia sido irmão leigo e continuava um católico piedoso; ele havia concluído que, apesar de a obra de Guénon ser interessante e, por vezes, correta, seus livros podiam ser «perigosos» e, com frequência, tinham «resultados deploráveis»: conversões a uma «super-religião reservada a uma elite de iniciados capaz de passar, sem a menor dificuldade, de uma forma de adoração a outra segundo as regiões em que possam sucessivamente vir a morar»51, uma paráfrase desapontada dos comentários do próprio Guénon a respeito de sua «mudança» para o Islã. Charbonneau-Lassay teria assim todas as razões para inventar, com a consciência tranquila, quase qualquer coisa com o objetivo de manter os Tradicionalistas na Igreja Católica. Na realidade, Charbonneau-Lassay pode muito bem ter inventado a Fraternidade, para começar. As quatro pessoas mencionadas por ele como seus fundadores no século XVI de fato existiram, mas não há evidência que as reúna, exceto o seu próprio relato não documentado acerca da Fraternidade.52 Charbonneau-Lassay era antiquário de profissão, e não teria sido muito difícil para ele
encontrar quatro nomes e outros detalhes plausíveis. De fato, parece suspeito que os quatro nomes do século XVI pudessem ser identificados no século XX. Teria sido mais convincente se ao menos um dos fundadores não tivesse deixado vestígios. Se a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet era uma organização completamente forjada, inventada por um católico fiel a fim de evitar a apostasia ao Islã — o que continua sendo uma hipótese, mas bastante plausível —, esse seria o primeiro exemplo daquilo que, em 1924, Guénon havia chamado de «desvios». Não seria o último.
MAÇONARIA Apesar de a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet ter se revelado uma decepção, a maçonaria fornecia possibilidades iniciáticas que continuaram a interessar Guénon até sua morte.53 De fato, Reyor, com o acordo de Guénon, chegou a recomendar rotineiramente a maçonaria para aqueles que lhe escreviam pedindo um caminho iniciático, recomendando o sufismo apenas quando a maçonaria era rejeitada (como frequentemente o era, segundo ele).54 Como vimos, a principal associação de Guénon na maçonaria era com Oswald Wirth, que o apresentara à loja Thébah. Wirth e Guénon nunca chegaram a ser colaboradores; comenta-se, na realidade, que os dois tiveram uma briga.55 Guénon não parece ter frequentado as reuniões da Thébah após 1914. No entanto, suas opiniões permaneceram afinadas o bastante para que o Tradicionalismo participasse da reforma e do reavivamento da maçonaria francesa em grande parte creditado a Wirth. No início do século XX, a maçonaria francesa era, em certo sentido, vítima de seu próprio sucesso. Ela quase desaparecera durante a Revolução Francesa, revivendo sob Napoleão. O Grande Oriente (a principal obediência francesa) atraiu tanto apoio oficial56 que se tornou mais tarde parte do establishment republicano, daqueles que se opunham à monarquia e a outras alternativas iliberais à República.
Por volta de 1900, metade da Câmara de Deputados (como a Assembleia Nacional Francesa era conhecida até 1946) era composta de maçons, e a maçonaria era jocosamente conhecida como «A Igreja da República». As atividades sociais e políticas terminaram por eclipsar a maioria das outras, ou, como afirmou Wirth, «as questões essenciais eram cada vez mais negligenciadas em detrimento de desenvolvimentos de ordem profana», e o nível de instrução em assuntos espirituais na maioria das lojas «teria sido adequado a uma escola primária».57 Quando a sobrevivência da República e do republicanismo não estava mais sob risco, tanto um movimento republicano quanto uma Igreja da República tornaram-se mais ou menos supérfluos. O objetivo de Wirth era o de promover um retorno da maçonaria ao essencial, reformando tanto o ritual quanto a compreensão geral de seu significado e propósito. O seu próprio entendimento da função do ritual maçônico não era muito diferente do entendimento de alguns a respeito dos propósitos da prática religiosa, ainda que ele enfatizasse que o objetivo era imanente, e não transcendente.58 Segundo Wirth, corretamente entendido, o objetivo do ritual maçônico era o aperfeiçoamento moral e ético do indivíduo por meio do controle da vontade sobre as paixões animalescas. Os rituais dentro loja eram representações simbólicas de meios que podiam e deviam ser usados para tal fim fora dela. E eles só funcionariam na medida em que seu simbolismo fosse compreendido de maneira correta, na medida que em fossem purificados de todos os acréscimos irrelevantes que haviam se acumulado durante o século 59 XIX. Com esse fim, Wirth fundou uma revista chamada Le Symbolisme e escreveu uma série de livros de sucesso sobre a maçonaria. Seu trabalho era apreciado por maçons superiores na Grande Loja francesa, uma obediência rival ao Grande Oriente fundada na década de 1880, e menos política do que esta. O trabalho de Wirth chegou até a ser apreciado por alguns na Grande Oriente, que se tornou menos política durante a segunda metade do século XX. Wirth chegou a atingir algo da reforma da maçonaria francesa que desejava.60
Apesar de suas abordagens serem muito diferentes,61 o entendimento que Wirth tinha do ritual maçônico era próximo o suficiente do entendimento de Guénon a respeito da prática esotérica para que uma certa aliança se desenvolvesse. Enquanto Wirth era vivo, Guénon escreveu algumas vezes em Le Symbolisme62, e o sucessor de Wirth como editor da revista mencionava abertamente sua dívida para com a obra do francês, apesar de não poder ser descrito propriamente como um Tradicionalista.63 O trabalho dos Tradicionalistas sobre simbolismo deu um novo sopro de vida aos rituais de muitas lojas, causando um pequeno renascimento maçônico. Mais tarde, a filosofia Tradicionalista veio a ser bem conhecida em círculos maçônicos franceses, e, em menor grau, entre maçons italianos e espanhóis. A contribuição do Tradicionalismo à reforma da maçonaria viu-se refletida na existência, no fim do século XX, de lojas maçônicas com uma ênfase Tradicionalista, incluindo uma loja suíça chamada «René Guénon». O Tradicionalismo teve muito menos impacto na maçonaria britânica e norte-americana, um tanto afastadas de sua contraparte continental. No entanto, no fim do século XX, ele não era desconhecido entre elas. Tais desenvolvimentos, no entanto, ocorreram após a Segunda Guerra Mundial e devem aguardar o próximo capítulo.
SCHUON E OS ALAWIS Não foi a Fraternité dos Chevaliers du divin Paraclet, nem uma loja maçônica, que viria a ser a principal organização religiosa Tradicionalista, mas sim uma ordem sufi, a Alawiyya, mais tarde conhecida como Maryamiyya. Assim como a Fraternité dos Chevaliers du divin Paraclet, ela foi fundada no início da década de 1930 como resposta à nova ênfase de Guénon na iniciação e na prática religiosa. Dois suíços na casa dos vinte anos foram responsáveis por sua criação: Titus Burckhardt e Frithjof Schuon. Ambos eram amigos de escola da Basileia, na região de língua alemã da Suíça, e vinham de ambientes ligeiramente diferentes, ainda que ligados às artes. Burckhardt, filho de um escultor, nasceu em Florença mas foi criado
principalmente na Suíça.64 Membro de uma das famílias mais antigas e distintas da Basileia, ele era sobrinho-neto de Jakob Burckhardt, cuja obra Die Kultur der Renaissance in Italien [A cultura do Renascimento na Itália] (1860) é a expressão clássica da visão do Renascimento como o triunfo do espírito humano e o nascimento de uma modernidade gloriosa, visão rejeitada de maneira decisiva por Guénon. Schuon, por outro lado, era filho de imigrantes. Seu pai era um violinista alemão e sua mãe, francesa da Alsácia. Assim, a nacionalidade recebida por Schuon no momento de seu nascimento foi a alemã, e não a suíça.65 Pouco se sabe da vida de Burckhardt antes de seu encontro com o Tradicionalismo, mas a vida do jovem Schuon é conhecida com algum grau de detalhe como resultado de seu livro autobiográfico Erinnerungen und Betrachtungen [Memórias e reflexões] (1974). Trata-se de uma obra surpreendentemente franca e de um recurso inestimável para os historiadores.66 Schuon tinha dezesseis anos de idade quando leu pela primeira vez Orient et Occident, que lhe fora presenteado por Lucy von Dechend, uma amiga de infância alemã que conhecia seus interesses pelo Vedanta, adquirido nos livros da biblioteca de seu pai.67 A reação imediata de Schuon foi de entusiasmo.68 Em 1931, enquanto cumpria o serviço militar, ele escreveu a Guénon.69 Sua reação inicial à sugestão feita por Guénon do caminho do sufismo foi a mesma de Reyor, de extrema relutância. Como expressou em uma carta a um amigo: «Como você pode pensar que quero chegar a Deus ‹via Meca›, e assim trair Cristo e o Vedanta?»70 Após um período de angústia, certo dia em Paris em 1932, Schuon rogou a Deus pedindo um sinal. Pouco depois, ele saiu à rua e viu a cena pouco comum de um destacamento de cavalaria do Norte da África passando diante de seus olhos. Enxergando nesse acontecimento o sinal que havia pedido em oração, ele se tornou muçulmano e escreveu a Guénon pedindo que lhe recomendasse um xeique.71 Sinais e visões recorrentes como esse viriam a desempenhar um papel crucial na vida de Schuon, e, portanto, nas vidas de muitos outros que o seguiram. Até mesmo seu nascimento, segundo lhe
disseram, foi acompanhado de um sinal: o hospital onde sua mãe dava à luz foi atingido por um raio e todos os relógios pararam. Alguns poderiam ver isso como um mau começo, especialmente para alguém cujo primeiro nome significava, literalmente, «ladrão da paz». (Tratava-se de um nome norueguês, e não alemão ou suíço, escolhido por seu pai, que tinha amigos noruegueses.)72 Em sua autobiografia, o próprio Schuon enfatiza muito sua infância, que claramente o marcou pelo resto da vida. Sua felicidade foi destroçada aos treze anos de idade pela súbita morte de seu pai.73 Até aquele momento, ele havia tido uma vida razoavelmente confortável, em um ambiente artístico descontraído; indeciso sobre tornar-se pintor ou poeta, ele sabia que seria um ou outro. A morte do pai, no entanto, deixou a família numa situação financeira difícil, e, em 1920, sua mãe levou Schuon e seu irmão mais velho, Erich, para viver com a mãe dela em Mulhouse, cerca de trinta quilômetros do outro lado da fronteira francesa, na Alsácia. Schuon foi infeliz na Alsácia. Ele não apenas sentia saudades do pai e de sua antiga casa, mas era hostilizado por ser alemão — uma consequência da Primeira Guerra Mundial foi que ser alemão na França da década de 1920 equivalia a ser um pária. Considerações financeiras faziam com que a poesia e a pintura já não fossem viáveis; Schuon foi obrigado a abandonar a escola aos dezesseis anos de idade para trabalhar numa fábrica, como aprendiz de designer têxtil, para sustentar a família.74 Enquanto isso, suas relações com a mãe eram ruins; com a avó, inexistentes. Sua mãe desejava que o garoto se tornasse um bom burguês francês. Com esse objetivo em vista, logo após a chegada da família à França, ela batizou na Igreja Católica seus filhos protestantes e livre-pensadores.75 Schuon, por outro lado, desejava guardar o máximo possível do meio artístico de sua primeira infância.76 Em 1923, Erich saiu de casa para entrar num seminário; no futuro, ele se tornaria monge cisterciense («trapista»).77 Escrevendo em seu diário, Schuon expressou sua desolação ao ver-se privado de tudo o que amava: pai, irmão, casa e país, sua «casta social e espiritual».78
O jovem Schuon passava seu tempo livre lendo livros de filosofia e obras sobre o Oriente. Ele detestava a modernidade devido a sua «pequenez, mesquinharia e feiura», e vagava pelas ruas de Mulhouse sonhando com «nobreza, grandeza e beleza».79 Mesmo nessa fase, Schuon tinha pressentimentos de que sua própria grandeza seria de natureza religiosa. Em 1923 ou 1924, aos dezessete anos de idade, ele registrou em seu diário a expectativa de que, um dia, seria convocado como parakletos.80 O significado dessa passagem não é de todo claro; parakletos, como vimos no contexto da Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet, é um termo cristão, geralmente usado para se referir ao Espírito Santo. Para Schuon, ele deve ter tido outro significado; não há outras indicações de que, aos dezessete anos de idade, ele acreditasse fazer parte da Divindade.81 Assim que pôde deixar Mulhouse, em 1929, Schuon partiu para Paris, onde conseguiu um emprego como designer têxtil. À essa altura, ele estava um pouco mais feliz do que em Mulhouse. Em 1932, porém, perdeu o emprego devido à Grande Depressão e, em desespero, decidiu trocar a França pelo Oriente. O episódio da oração e do sinal recebido aconteceu pouco depois disso; ele então converteu-se ao Islã e retornou à Suíça, onde encontrou um jovem mulá iraniano que lhe ensinou o Fatiha (o capítulo inicial do Corão e o texto central da oração ritual).82 Schuon também fez uma série de visitas a um pequeno grupo na Basileia que, na época, realizava encontros regulares para discutir a obra de Guénon.83 Schuon alugou por um breve período um quartinho barato num sótão em Lausanne, na região de língua francesa da Suíça. Um amigo de escola não identificado que morava na cidade, com pena dele, visitava-o todos os dias para levar-lhe o café da manhã. Certo dia, quando esse amigo estava ocupado, ele mandou sua irmã de dezessete anos de idade em seu lugar. Seu nome era Madeleine (sobrenome desconhecido). Schuon ficou impressionado de imediato com sua beleza.84 De Lausanne, Schuon seguiu até o porto mediterrâneo francês de Marselha, onde encontrou-se com sua amiga Von Dechend. Ele ainda não havia recebido uma resposta de Guénon à sua carta com o
pedido da recomendação de um xeique. Em Marselha, Schuon e Von Dechend encontraram alguns marinheiros argelinos (ou, talvez, iemenitas) que lhes falaram do xeique Ahmad al-Alawi. Ahmad al-Alawi, um argelino, foi um dos mais famosos xeiques sufis do início do século XX. Do tipo carismático, al-Alawi viajara ao Marrocos, onde, durante quinze anos, seguira um xeique especialista da Ordem Darqawi, Muhammad Bu Zidi. Ao voltar a sua terra natal, a cidade portuária de Mostaganem, fundou sua própria ordem, chamada Alawiyya em homenagem a Ali (alawi é o adjetivo árabe formado a partir de Ali), o genro do profeta, que lhe havia aparecido em uma visão e dado esse nome para sua nova ordem (ele também adotou o sobrenome «al-Alawi»).85 Schuon, é claro, não era o único a receber sinais e visões, que sempre fizeram parte normalmente da vida espiritual da maioria dos sufis. A carreira de al-Alawi é típica de um xeique de sua categoria, assim como o tempo passado por ele no Marrocos; desde o princípio, o sufismo ignorou fronteiras nacionais. A ordem Alawiyya espalhou-se rapidamente para muito longe, auxiliada pelo grande número de marinheiros entre seus seguidores. Um marinheiro do Iêmen, por exemplo, estabeleceu-se em Cardiff em 1925 e fundou um ramo britânico da ordem que logo viria a dominar a vida religiosa da comunidade iemenita na Grã-Bretanha.86 Vivendo na Argélia francesa, al-Alawi tinha plena consciência da importância de manter boas relações com os europeus. As autoridades francesas da época viam o sufismo com grande desconfiança, uma vez que a maioria dos primeiros movimentos de resistência contra a ocupação francesa do Norte da África havia sido liderada por sufis.87 O emir Abd al-Qadir, colaborador de Illaysh mencionado acima, foi o mais famoso entre os diversos líderes sufis da resistência. No entanto, a luta contra os franceses havia sido claramente perdida naquele momento, e al-Alawi adotou uma abordagem conciliadora. Ele entendia bem o francês, apesar de relutar em falá-lo, e, em conversas com europeus, enfatizava os pontos em comum entre o sufismo e o Cristianismo, em lugar de suas diferenças. Como resultado, al-Alawi era bem-visto por muitos franceses, chegando a ser convidado para conduzir as primeiras preces coletivas na inauguração da nova mesquita de Paris em 1926.
Ele também contava com um pequeno número de seguidores franceses, entre eles Probst Biraben, um dos primeiros admiradores de Guénon em Paris.88 É possível que os argelinos que Schuon encontrou em Marselha tenham conseguido uma passagem grátis para Oran, na Argélia,89 para ele, mas não para Von Dechend (talvez por ela não ser muçulmana), o que a fez retornar à Basileia.90 No fim de 1932, Schuon chegou ao zawiya (complexo de mesquitas) da ordem Alawiyya em Mostaganem.91 Algum tempo depois de sua chegada, Schuon recebeu uma carta de Guénon, recomendando-lhe um xeique: Ahmad al-Alawi.92 Tal coincidência é facilmente explicável, já que Schuon falava alemão e francês e, provavelmente, pouco árabe, enquanto al-Alawi era o mais famoso xeique francófono vivo. Em 1932, al-Alawi era um homem velho e doente, e Schuon pouco o viu, apesar de ter sido levado a ele no começo de 1933 para a breve cerimônia que o admitiu à ordem Alawiyya.93 Em lugar disso, ele passou o tempo conversando com outros alawis, especialmente Adda Bentounès, um dos muqaddams (representantes) de al-Alawi. Um xeique com um grande número de seguidores (tal como al-Alawi) geralmente nomeia uma séria de muqaddams, principalmente para administrar zawiyas subsidiárias em locais próximos, ou, em certos casos, para auxiliar na administração da zawiya principal. Um muqaddam normalmente recebe uma ijaza (autorização), que lhe permite receber outras pessoas na ordem. Schuon passou três meses dessa maneira, vivendo num quarto da zawiya mobiliado apenas com um tapete de palha, um colchão e um cobertor. Além de conversar com outros membros da ordem, ele passava tempo caminhando na praia e, após as orações rituais do pôr do sol, permanecia no pátio exterior da mesquita para admirar a beleza da cena.94 Tal rotina é bastante normal para um recémchegado em uma ordem sufi, que, desse modo, torna-se parte da comunidade organizada ao redor do xeique. Assim, o novato aprende com a comunidade pelo exemplo e por meio de conversas casuais, com o tempo necessário para digerir e internalizar toda a experiência.
Ao final de três meses, Schuon deixou Mostaganem e retornou à Europa, em parte porque as autoridades locais francesas começaram a ficar curiosas com sua presença.95 Os amigos Tradicionalistas de Schuon na Basileia ficaram atônitos; ele parecia «um homem mudado».96 Sem se verem desde o início da adolescência, Burckhardt reencontrou Schuon à essa altura e, de imediato, quis ir também a Mostaganem, mas notícias da saúde frágil de al-Alawi e das dificuldades que Schuon tivera com as autoridades francesas terminaram por desencorajá-lo. Em lugar disso, ele decidiu ir para o Marrocos.97 Ainda que mudado, Schuon manteve o seu Tradicionalismo Perenialista. Mesmo durante sua estada na zawiya em Mostaganem, ele escrevera um artigo para Le Voile d’Isis sobre «L’aspect ternaire de la tradition monothéiste» [O aspecto ternário da tradição monoteísta], ou seja, sobre a unidade fundamental entre o Cristianismo, o Islã e o judaísmo.98 Ele também tivera uma discussão com outro membro da ordem, um marroquino, que o aborreceu muito ao defender que os cristãos não vão para o céu, algo com que o próprio al-Alawi podia ou não estar de acordo,99 mas que, de qualquer modo, certamente teria tato o suficiente para não mencionar a um convertido recente cujo irmão era um monge cristão.100 Burckhardt, em contraste com Schuon, parece ter se tornado mais islâmico e um tanto menos perenialista. Ele viajou a Fez, onde se converteu ao Islã e passou o verão aprendendo árabe. Na primavera de 1934, encontrou-se em Salé com alguns sufis da ordem Darqawiyya, ordem a que viria a se filiar pelas mãos de Ali ibn Tayyib al-Darqawi, de Fez,101 mas somente após uma experiência estranha na zawiya dos Darqawi em Salé. Burckhardt foi levado a um aposento onde estavam muitos outros Darqawis, e, ao entrar, sentiu que estava recebendo as boas-vindas de um pequeno grupo de múltiplos Schuons.102 Mais ou menos ao mesmo tempo, em Paris, Schuon teve sua primeira visão durante a leitura do Bhagavad Gita: «O Nome Supremo [Alá] ressoou e continuou vibrando poderosamente em
mim. Eu não conseguia fazer nada a não ser entregar-me a essa vibração». Schuon deixou o livro de lado e saiu de casa, caminhando por muito tempo ao longo do cais como que em transe, repetindo o Nome Supremo.103 Alguns dias após essa experiência, Schuon soube que sua visão havia ocorrido no mesmo dia da morte de al-Alawi. Ele decidiu que o significado de tal visão era que al-Alawi havia lhe dado permissão para usar o Nome Supremo em sua litania pessoal,104 algo concedido apenas a quem está muito avançado no caminho sufi. No entanto, a percepção de Schuon do Nome Supremo experimentaria um vaivém nos anos seguintes, e a consciência do Nome parece ter se tornado para ele uma marca de seu próprio progresso espiritual. Logo após esse acontecimento, Schuon voltou a Mostaganem, onde foi recebido por Adda Bentounès, antigo muqaddam de al-Alawi e seu sucessor como xeique. Passada cerca de uma semana, Bentounès enviou Schuon para um khalwa (retiro), um elemento padrão no treinamento espiritual sufi, durante o qual Schuon viu não apenas alguns dos profetas, mas também imagens douradas do Buda Amida,105 presumivelmente evocadas pelas estátuas japonesas do Buda que ele via no museu etnográfico da Basileia que tanto amava na infância.106 No fim do khalwa, segundo Schuon em Erinnerungen und Betrachtungen, Bentounès nomeou-o muqaddam dos alawis.107 Essa nomeação viria a se tornar mais tarde objeto de muitas discussões. Alguns alawis posteriores confirmaram-na, enquanto outros a negaram.108 Está claro que, uma vez que Schuon começou a agir como muqaddam, ele foi aceito como tal por Bentounès por um período,109 mas isso não significa que aquela havia sido a intenção original do xeique. Alguns dos seguidores mais tardios de Schuon possuem cópias do texto de uma ijaza sem data assinada por Bentounès. Sua tradução correspondente, mas posterior, ao francês tem o título de «Diploma de Moqaddem», mas esse documento apenas aumenta a confusão. Não há menção a receber pessoas na ordem Alawiyya. A frase crucial diz: «[Schuon] foi autorizado a propagar o Chamado ao Islã [...] [e] a aceitar as palavras de
Unidade, ‹la illaha ila Allah, Muhammadan rasul Allah›». As «palavras de Unidade», mais conhecidas em português como «Profissão de Fé» («Dou testemunho de que não há outro deus senão Deus, e Maomé é seu profeta»), são aquelas que devem ser pronunciadas por um não muçulmano a fim de tornar-se muçulmano. Em face disso, portanto, a ijaza de Schuon permite-lhe proselitizar em nome do Islã e aceitar conversões. No entanto, nenhuma permissão é exigida para isso: o proselitismo do Islã é dever de todo muçulmano, e qualquer muçulmano adulto e são pode testemunhar (e, portanto, aceitar) uma conversão. A explicação mais provável para esse texto fora do comum é que Schuon, ciente da necessidade de oferecer à elite Tradicionalista uma iniciação válida em uma tradição ortodoxa, sugeriu a Bentounès que uma ijaza poderia ser-lhe útil na Europa (assim como Reyor havia pedido a Charbonneau-Lassay para reviver a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet) e que Bentounès não queria nem aceitar o pedido implícito nem rejeitá-lo abertamente. Assim, deu a Schuon um tipo de ijaza que, na realidade, não lhe concedia permissão para receber pessoas na ordem Alawiyya, mas que servia como uma espécie de prêmio de consolação. Apesar de a ijaza de Schuon ter sido foco de discussões, mais importante do que o documento em si é o que está por trás dele. Uma ijaza é, ao mesmo tempo, uma técnica administrativa e uma honraria. Como técnica administrativa, é uma maneira de delegar alguns dos poderes e responsabilidades do xeique a fim de serem exercidos em seu nome. Schuon nunca deveria agir em nome de alAlawi. Como uma honraria, ela pode ser um certificado de mérito. Em termos gerais sufis, o mérito de Schuon naquele momento era o de ter completado o primeiro estágio de seu treinamento. O fato de ele não ter finalizado todo o treinamento é sugerido pela comparação entre o tempo que ele passou na zawiya alawi (alguns meses) e o tempo que al-Alawi havia passado com seu próprio xeique (quinze anos). Apesar de existirem dúvidas posteriores sobre a ijaza de Schuon, não havia dúvida alguma na Basileia da década de 1930 e o próprio Schuon não tinha dúvidas sobre sua capacidade de receber pessoas
na ordem Alawiyya.110 Inicialmente, ele recebeu diversos Tradicionalistas da Basileia — incluindo Burckhardt e Harald von Meyenburg, um amigo de Burckhardt e, mais tarde, seu cunhado —, todos já previamente convertidos ao Islã. Eles começaram a se encontrar de tempos em tempos para orar e realizar juntos o dhikr (oração repetitiva) em silêncio. Em seguida, Schuon inaugurou a uma reunião semanal para o dhikr em voz alta, conduzido por Burckhardt (quem passava mais tempo na Basileia) em um apartamento alugado para esse fim em um dos bairros menos chiques da cidades, «com comunistas no andar de baixo e prostitutas abaixo deles».111 A duração normal de um dhikr em voz alta é de cerca de uma hora, durante a qual os sufis sentam-se em círculo ou ficam de pé enfileirados (dependendo da ordem) e juntos repetem curtas orações, geralmente movendo a parte superior do corpo ao ritmo da oração. A sessões de dhikr da Basileia, no entanto, começavam às 20h e geralmente iam até a 1h ou 2h da manhã seguinte. Os movimentos que acompanhavam as orações eram tão entusiasmados que outros locatários certa vez subiram para reclamar que suas lâmpadas estava falhando e que os quadros na parede tremiam. Em outra ocasião, o teto dos Tradicionalistas caiu sobre eles; depois de uma pausa de cerca de três segundos, Burckhardt continuou o dhikr entre os escombros.112 Algum tempo depois, o prédio foi condenado e demolido, e as sessões de dhikr foram brevemente interrompidas até que Von Meyenburg encontrasse uma nova zawiya, um pequeno edifício de dois andares às margens do Reno, com um grande aposento em cada andar. Ali, Schuon impôs ordem e moderou o comportamento entusiasmado dos participantes. O dhikr foi reduzido à sua duração normal, sua forma foi regularizada e seus participantes foram instruídos a usar roupas «tradicionais»: vestimenta árabe e turbante. Mesmo nessa fase inicial, Schuon mostrava-se atento aos detalhes de como as coisas eram encenadas. O fato de Schuon ter sido capaz de assumir o controle do grupo de Tradicionalistas da Basileia com tanta facilidade provavelmente se deveu a vários fatores, desde uma questão de personalidade até a ijaza, passando pela experiência de Burckhardt em Salé, onde sentiu
uma multidão de Schuons na zawiya. O árabe de Burckhardt era bom — provavelmente melhor do que o de qualquer ocidental mencionado até agora desde Aguéli —, assim como sua compreensão do Islã e da cultura marroquina. Além disso, Schuon passou menos tempo com Ahmad al-Alawi do que Burckhardt com o seu xeique, e conhecia menos o árabe e o Islã. No entanto, foi Schuon, e não Burckhardt, que rapidamente se tornou o líder reconhecido. Ao mesmo tempo que impunha moderação na entusiasmada confraria da Basileia, Schuon também os instruiu a realizar as orações rituais fard (obrigatórias), e omitir as orações sunna (habituais, recomendadas).113 Enquanto muitos muçulmanos no mundo islâmico omitem habitualmente as orações sunna, e o classificado como sunna é, por definição, não obrigatório, a maioria dos sufis tem o cuidado de realizar os atos sunna sempre que possível. É algo quase inédito que um xeique sufi instrua alguém a omitir tal ato. A instrução de Schuon refletia a convicção de que o dhikr era o que importava, e não as orações rituais. O dhikr era o meio para «o caminho verdadeiramente iniciático» para «a união mística com Deus». «Há uma certa incompatibilidade», escreveu Schuon em 1939, «entre a prática desse meio supremo [...] e a multiplicação indefinida de prescrições rituais secundárias, cujo objetivo é a salvação individual, e não a fana (união mística) em Alá. É por isso que [...] devemos nos restringir ao indispensável no que diz respeito ao ritual devocional, cuja estrita necessidade, no entanto, reconhecemos.»114 Praticamente nenhum muçulmano sunita no mundo islâmico estaria de acordo com essa opinião, ou com a interpretação incomum da passagem do Corão (29:45) que muitos dos seguidores de Schuon empregam para embasá-la.115 Esse «desvio» da prática regular do mundo islâmico seria o primeiro de muitos ao longo dos cinquenta anos seguintes e parece ter se originado na convicção de Schuon de que o Islã não era um fim em si mesmo, mas um meio, cujo fim seria a Filosofia Perene ou a religio perennis (religião perene). Nesse ponto, Schuon voltou a encontrar Madeleine, a garota que certa vez havia levado café da manhã a seu sótão de Lausanne. O irmão de Madeleine combinou um encontro entre os dois às margens do espetacular Lago Leman, em cujas margens fica a cidade de
Lausanne. Por um tempo, os dois encontraram-se ocasionalmente, por vezes fazendo caminhadas nos bosques fora da cidade. Certa vez, Schuon viu Madeleine dançar, no bosque ou em seu quarto. E então, por razões que ele não explica, Madeleine pôs fim ao relacionamento.116 Schuon se apaixonara por Madeleine, e seu «amor infeliz» pela mulher a quem ele se referia como sua Freundin (em alemão, literalmente «amiga», mas que no uso contemporâneo significa «namorada». Daqui em diante, o termo será traduzido como «amada») assumiu proporções monumentais. Ele escreveu diversos poemas à amada (publicados mais tarde em uma antologia)117 e frequentava uma capela perto do lago onde se encontravam, para rezar pedindo que ela mudasse de ideia a seu respeito.118 Schuon chegou até a abandonar o uso do Nome Supremo em sua litania diária por estar distraído por seu «amor terreno».119 Ele exigiu que seus seguidores na ordem Alawiyya se unissem a ele nesse «amor infeliz». «Quem não ama Madeleine não pertence à ordem», costumava dizer.120 «A beleza», escreveu ele mais tarde, «e, na realidade, tudo o que amamos, pertence aos Céus; tudo o que é bom vem de Deus e pertence a Deus. A beleza terrena é boa se nos dá a chave do amor a Deus, se é a moldura de nossa oração ou meditação.»121 Schuon sentia claramente que Madeleine havia lhe dado a chave do amor a Deus, e desejava compartilhá-la com seus seguidores. Esse incidente é importante, já que a beleza e o amor, assim como o amor de belas mulheres, serão temas recorrentes na história posterior da ordem de Schuon. Os desenvolvimentos foram relatados a Guénon no Cairo, apesar de não se saber se tais relatos incluíam os detalhes extraislâmicos nas visões de Schuon.122 Guénon entusiasmou-se de imediato; aí estava a base iniciática para sua elite.123 Logo, ele e Reyor (em Paris, seguindo as instruções de Guénon) começaram a recomendar Schuon a Tradicionalistas, e a ordem Alawiyya cresceu.124 Ela também ganhou membros do círculo social de Schuon e Burckhardt. Louis Caudron, um Tradicionalista de Amiens, na França, empregou Schuon
em sua fábrica têxtil na cidade, e uma segunda zawiya foi aberta em Amiens, seguida de outra em Paris e mais outra em Lausanne, para onde Burckhardt havia se mudado para trabalhar em uma editora. Depois de Schuon conseguir um emprego que pagava melhor em Thann (na Alsácia), Caudron tornou-se seu primeiro muqaddam, para Amiens. Em 1939, o dhikr na zawiya da Basileia, a que Schuon assistia toda semana, vindo da Alsácia, era frequentado por trinta ou quarenta Tradicionalistas.125 Von Meyenburg descreveu mais tarde esse período como «a era de ouro», com uma «intensidade espiritual extraordinária». Desde o princípio, a existência da ordem Alawiyya foi, em grande medida, um segredo. Isso acontecia em flagrante contraste com as ordens sufis no mundo islâmico, onde elas são sempre organizações públicas,126 apesar de poderem se reunir de maneira privada em certas ocasiões. Parece ter havido diversas razões para esse segredo, algumas Tradicionalistas, outras práticas. Primeiro, todos os outros grupos religiosos discutidos até agora desde a Sociedade Teosófica foram, em alguma medida, secretos — lojas maçônicas, a Ordem do Templo, a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet. O segredo faz parte da concepção ocidental ou ocultista de iniciação, apesar de não desempenhar papel algum na concepção sufi. Segundo, em Orient et Occident, Guénon havia alertado para a necessidade de agir com discrição a fim de evitar a hostilidade de «poderes [...] insuspeitos», apesar de não se saber até que ponto essa preocupação influenciou a ênfase de Schuon no sigilo. Terceiro, o Islã era um meio para um fim, e não um fim em si mesmo. Quando Meyenburg — o terceiro membro da Alawiyya de Schuon — foi questionado durante uma entrevista sobre o segredo, sua reação inicial foi de surpresa: como poderia ter sido diferente? O que teria acontecido a seus empregos se as pessoas descobrissem que eles haviam se tornado muçulmanos? Na realidade, acrescentou, seu patrão (uma grande empresa suíça de produtos químicos) havia descoberto e nada acontecera. Outra consideração na época, de acordo com Von Meyenburg, é que havia pouco a ganhar ao se assumirem como muçulmanos. Praticamente não existia comunidade muçulmana na
Suíça, nem mesquitas onde fosse possível realizar as orações de sexta-feira, por exemplo. Em 1937, Schuon teve sua segunda visão, durante a qual a consciência do Nome Supremo retornou: «Acordei com a certeza de que tinha me tornado o xeique; senti como se deslizasse pelas ruas». Logo depois, ele «recebeu», de maneira não especificada, «seis temas de meditação: vida e morte, repouso e ação, e conhecimento e ser».127 As duas visões marcam a separação da Alawiyya de Schuon da Alawiyya argelina; se Schuon era o xeique, então deixara de ser um muqaddam, e não respondia a ninguém exceto a Deus. Os seis temas de meditação foram introduzidos na prática da ordem Alawiyya schuoniana (precisamente assim: como temas de exercícios de meditação), formalizando a separação. A Alawiyya schuoniana tinha agora sua própria prática. Após tais visões, Schuon passou a ter dúvidas, sobre si mesmo e sobre o Ocidente como âmbito adequado para suas atividades.128 Essas dúvidas se tornaram bem conhecidas entre seus seguidores,129 mas ele terminou por superá-las. Em 1938, Schuon encontrou-se com Guénon pela primeira vez, tendo viajado ao Cairo expressamente por esse motivo. Além de dizer que visitou Guénon quase todos os dias e que achou sua conversa um tanto desapontadora, Schuon guardou silêncio sobre essa visita, que durou apenas uma semana.130 Guénon, no entanto, parecia convencido àquela altura de que Schuon estava certo ao se separar de Mostaganem. Em 1936, ele havia manifestado uma leve preocupação de que Schuon estava indo rápido demais e que havia se separado muito cedo,131 mas, em 1938, concordou que as mudanças desde a morte de al-Alawi estavam «longe de serem satisfatórias. Tudo está sendo sacrificado a tendências propagandísticas e exotéricas que não podemos aprovar de maneira alguma».132 Em 1939, as atividades da ordem Alawiyya de Schuon — assim como as da Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet de Reyor — foram interrompidas pelo início da Segunda Guerra Mundial. Schuon chegava a Bombaim no momento em que a guerra foi declarada, e,
quase de imediato, embarcou num navio para a Europa, levando consigo uma cópia do Bhagavad Gita em sânscrito, não para lê-la, mas devido ao «poder de sua bênção».133 Seu companheiro de viagem, John Levy, o admirador que havia comprado a casa de Guénon e dado a ele de presente, ficou na Índia, alistou-se no exército britânico e se converteu mais tarde ao hinduísmo,134 tornando-se assim o primeiro Tradicionalista muçulmano que se soube ter abandonado o Islã. Mobilizado no exército francês, Schuon participou da catastrófica derrota da França em 1940 sem entrar em combate. A vitória alemã trouxe um novo perigo para ele, pois a Alemanha havia anexado ao Reich a disputada província da Alsácia, e começava a convocar os seus cidadãos para o exército alemão. Não apenas a mãe de Schuon era da Alsácia, mas seu pai era alemão. Não querendo servir no exército da Alemanha, ele fugiu para a Suíça. Como era normal na época, foi internado pelos suíços. Com amigos influentes entre seus seguidores locais, Schuon pediu a nacionalidade suíça (com base em seu nascimento no país), a qual foi concedida em 1941, graças à ajuda de Jacques-Albert Cuttat, um de seus seguidores, filho de um banqueiro de Berna e estrela em ascensão no serviço diplomático suíço.135 A fim de não prejudicar seu pedido de naturalização, Schuon deu ordens à zawiya da ordem Alawiyya da Basileia para que interrompesse suas operações. Apesar de um lento recomeço, a Basileia nunca mais voltaria a ser o centro do sufismo Tradicionalista.136 Ao que tudo indica, os seguidores suíços de Schuon ajudavam-no financeiramente.137 Ele alugou um pequeno apartamento em Lausanne, cidade onde viviam Burckhardt e Madeleine, a amada, mas Schuon descobriu que ela havia se casado. Eles se encontraram em 1943, e ela lhe mostrou seu bebê. Como resultado desse encontro, «todo o ambiente se transformou em minha amada». Essa mudança foi permanente; a partir de então, Schuon sentiu que havia «entrado, por assim dizer, no corpo cósmico da amada. Eu estava nela como no amor materno».138
Pouco antes desse acontecimento, Schuon foi às compras para mobiliar seu novo apartamento. Em uma vitrine, viu uma antiga estátua da Virgem Maria e ficou impressionado com sua beleza e com a incongruência do ambiente que a cercava. A despeito do preço elevado e de sua relativa pobreza, Schuon comprou a estatueta, levou-a para casa e colocou-a num lugar de destaque. Estátuas em geral são proibidas para muçulmanos pela xaria, e estátuas da Virgem estão geralmente associadas a igrejas católicas; consciente dessa restrição, Schuon explicou mais tarde: «Sempre fui estrito na questão dos santos mandamentos, mas, por outro lado, eu estava por cima de todos no terreno da Religio Perennis e não me permitia ser aprisionado por formas que, para mim, não podiam ter nenhuma validade; para mim, pois eu não podia permitir que outros violassem os mesmos mandamentos».139 Essa afirmação resume bem o status da ordem Alawiyya no fim da década de 1930: uma ordem Tradicionalista sufi cujos membros seguiam o Islã e a xaria, mas cujo xeique colocava-se, em privado, em um terreno mais universalista, incluindo entre seus bens mais preciosos uma cópia do Bhagavad Gita e uma estatueta da Virgem Maria.140 As consequências plenas da aquisição dessa estatueta por Schuon, no entanto, só ficariam claras mais tarde, quando ela se combinou com o amor de mãe experimentado ao ver o bebê de Madeleine. Essa questão será discutida num capítulo posterior.
5. FASCISMO
Antes do início da Segunda Guerra Mundial, as vidas de Guénon, Schuon, Burckhardt, Reyor e Thomas tinham sido pouco afetadas pela ascensão do fascismo na Europa, visto que eles viviam no Egito, na Suíça e na França. O desenvolvimento do Tradicionalismo na Itália e na Romênia, no entanto, aconteceu contra um pano de fundo muito diferente. Regimes fascistas1 foram instaurados na Itália em 1922 (com a Marcha sobre Roma de Mussolini), na Alemanha em 1933 (com a vitória eleitoral de Hitler) e na Romênia em 1940-41 (com a entrada de Horia Sima no governo romeno). Grupos ocultistas estiveram envolvidos (ainda que não de modo central) nos primeiros estágios de desenvolvimento dos regimes fascistas nesses três países. Na Itália e na Romênia, o Tradicionalismo envolveu-se com a política de uma maneira que nunca chegou a ocorrer na França e na Suíça.
A ORIGEM DO PARTIDO NAZISTA As origens do partido nazista alemão demonstram as conexões desde cedo entre o ocultismo e um regime fascista. Em 1913, Von Sebottendorff, um ocultista neossufi de origem alemã e nacionalidade otomana, voltou à Alemanha após quase um quarto de século na Turquia com a esperança de disseminar entre os materialistas alemães «a chave para a realização espiritual» que ele acreditava ter encontrado e de que eles tanto necessitavam. Von Sebottendorff ficou desapontado com a recepção que recebeu. Depois de tentar diversos grupos ocultistas e espiritualistas como veículos possíveis para divulgar sua mensagem, ele se aposentou em desânimo. Liberado do serviço militar durante a Primeira Guerra Mundial como resultado de sua nacionalidade otomana e de um
ferimento recebido combatendo pelo Império Otomano durante a guerra dos Bálcãs de 1912, ele passou os primeiros anos da Grande Guerra um tanto sem rumo, conseguindo apenas um seguidor, um jovem trabalhador cuja cunhada ele ajudara a resgatar quando a jovem entrou em serviço de parto durante uma caminhada nas montanhas. Em 1916, no entanto, enquanto visitava seu advogado, ele viu um anúncio de jornal ilustrado com runas, sobre um grupo então desconhecido, a Germanen-Orden (Ordem Germânica). Sempre esperançoso, Von Sebottendorff entrou em contato com o líder do grupo e, para sua satisfação, acreditou por fim ter encontrado o veículo apropriado para seus planos espirituais. Após receber a explicação de que a ordem trabalhava para o renascimento interior dos alemães e contra os judeus e sua influência, Von Sebottendorff respondeu que a ajudaria, já que «vocês, na Alemanha, carecem de unidade de fé. Se quiserem realizar algo, é necessário, portanto, criar outro tipo de unidade, a de raça».2 A opinião da Germanen-Orden sobre a chave da realização espiritual de Von Sebottendorff é algo que se ignora. A GermanenOrden estava vagamente ligada à Hoher Armanen-Orden (Ordem Superior Armanen), um grupo ocultista que se inspirava na teosofia e na maçonaria. A Hoher Armanen-Orden alegava descender dos Templários, que haviam interessado Guénon em certo momento, e desejava restabelecer a ciência das runas e o culto a Wotan, bem como um império dominado por arianos, vagamente inspirado pelos Cavaleiros Teutônicos. Os interesses da Germanen-Orden, no entanto, eram primariamente raciais,3 e é provável que seus líderes estivessem mais interessados na oferta de Von Sebottendorff de ajudá-los com seu tempo e dinheiro do que na chave para a realização espiritual. Von Sebottendorff foi nomeado Ordenmeister (mestre local da ordem) em Munique, na Baviera, onde a Germanen-Orden operava sob o nome de Thulegesellschaft [Sociedade Thule]. Von Sebottendorff discorreu aos membros da Thulegesellschaft sobre «astrologia, simbolismo e folclore rúnico» e fundou um periódico, Die Runen [As Runas]. Os líderes da Germanen-Orden ficaram desapontados, no entanto, e exigiram ações de natureza mais
política, o que levou Von Sebottendorff a adquirir um jornal semanal local, o Münchner Beobachter [Observador de Munique]. Após mudar seu título para Münchner Beobachter und Sportblatt [Observador de Munique e Jornal de Esportes] com a esperança de aumentar sua circulação, ele passou a editá-lo na linha desejada. Nesse ponto, Von Sebottendorff começou a refletir, surpreso, sobre o fato de que, mesmo sem nunca ter tido o desejo de se envolver com política, além de acreditar «nos direitos humanos de todas as pessoas», terminasse editando um jornal político antissemita.4 Ele também deu instruções a um jornalista esportivo chamado Karl Harrer, membro da Thulegesellschaft, para criar um grupo político voltado para trabalhadores comuns. Esse grupo, inicialmente chamado de Deutsche Arbeiterverein (Sindicato dos trabalhadores alemães), logo foi renomeado como Deutsche Arbeiterpartei (Partido dos trabalhadores alemães).5 Von Sebottendorff deixou a Thulegesellschaft logo após a queda da curta República Soviética da Baviera. Durante um breve confronto armado em 1919 entre o regime soviético da Baviera e seus oponentes, no qual um destacamento da Thulegesellschaft desempenhou um papel importante, dez reféns foram assassinados pelo governo soviético da Baviera, sete deles membros da Thulegesellschaft. De algum modo, os soviéticos bávaros haviam conseguido as listas de membros da Thulegesellschaft, e, por esse fato, bem como por suas consequências — a seleção dos reféns e sua morte —, Von Sebottendorff parece ter sido culpado pelos demais, e por si mesmo. Ele deixou Munique e partiu primeiro para Friburgo, depois para as Montanhas Harz e, em 1922, para a Turquia.6 Como é sabido, em 1919, Adolf Hitler filiou-se ao Deutsche Arbeiterpartei. Em 1920, ele expulsou Harrer, o jornalista esportivo, e tomou o controle. Mais tarde, acrescentou o adjetivo «Nationalsozialistische», criando o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nazista. O Münchner Beobachter und Sportblatt mudou de nome, passando a se chamar Völkische Beobachter, tornando-se o equivalente nazista do Pravda. No entanto, nenhum traço dos ensinamentos de Von Sebottendorff podem ser encontrados no Partido Nazista. Hitler não tinha simpatias
por nenhum tipo deocultismo. Seu pequeno interesse em Wotan e nos tempos teutônicos vinham puramente de Wagner.7 Von Sebottendorff não desempenhou nenhum outro papel nos acontecimentos que conduziram à vitória nazista em 1933. Ele voltou à Alemanha, no entanto, em 1933, publicando o livro Bevor Hitler kam: Urkundlichen aus der Fruhzeit der nationalsozialistischen Bewegung [Antes da chegada de Hitler: documentos dos primeiros dias do movimento Nacional-Socialista], que recordava seu papel nos eventos de 1918 e 1919.8 A primeira edição do livro vendeu bem, mas Hitler tomou conhecimento dela e, de maneira previsível, não ficou nem um pouco entusiasmado. A segunda edição foi confiscada; Von Sebottendorff, preso e enviado a um campo de concentração.9 Claramente, Von Sebottendorff ainda contava com a boa vontade de pessoas importantes de seu tempo em Munique. Ele foi libertado do campo de concentração e autorizado a retornar à Turquia, onde chegou até mesmo a receber uma pequena pensão sob a forma de pagamentos ocasionais por serviços prestados, realizados pela inteligência militar alemã. Herbert Rittlinger, o oficial alemão de inteligência que assumiu a responsabilidade por Von Sebottendorff durante a Segunda Guerra Mundial, escreveu: «como agente, ele era um desastre [eine Null]». Apesar disso, Rittlinger transformou os pagamentos ocasionais a Von Sebottendorff em um salário razoavelmente digno, em parte para garantir sua lealdade, e em parte por sentir pena desse homem estranho e sem um tostão, cuja história ele ignorava, que fingia entusiasmo pela causa nazista e admiração pela SS, mas que, na realidade, parecia pouco interessado nelas, preferindo conversar sobre os tibetanos.10 Logo após a derrota da Alemanha em 1945, o corpo de Von Sebottendorff foi encontrado flutuando no Bósforo. A causa da morte, ao que tudo indica, foi suicídio.11 Von Sebottendorff não foi responsável pelo Partido Nazista. Se o Deutsche Arbeiterpartei controlado por ele nunca tivesse existido, Hitler teria assumido o controle de outro partido, e, se o Münchner Beobachter und Sportblatt nunca tivesse existido, Hitler teria encontrado ou criado outro jornal. Talvez seja mesmo possível
acreditar nos protestos ocasionais de Von Sebottendorff de que ele não era particularmente antissemita ou ligado à política, já que eles foram feitos muito antes de servirem a seus interesses. Foi preciso uma ingenuidade política extraordinária para acreditar que a Germanen-Orden poderia ser usada como meio de difusão de uma chave para a realização espiritual. Von Sebottendorff, no entanto, não foi o único a tentar empregar organizações políticas nacionalistas e direitistas para seus próprios fins espirituais, como veremos.
EVOLA, MUSSOLINI E AS SS Uma tentativa idêntica fora feita, primeiro na Itália, depois na Alemanha, por Julius Evola. Muitos ligaram mais tarde o nome de Evola ao de Guénon, como um dos fundadores do Tradicionalismo. De fato, Evola foi provavelmente o colaborador mais importante de Guénon, mais importante até, em última instância, do que Coomaraswamy. O Tradicionalismo do italiano, como o de Coomaraswamy, revela a marca de suas influências intelectuais de juventude, só que de forma ainda mais marcada. Enquanto Coomaraswamy deu corpo ao Tradicionalismo, Evola levou-o por novos caminhos.12 Evola foi apresentado ao Tradicionalismo por volta de 1927, por Arturo Reghini, um matemático e maçom italiano, correspondente de Guénon. Na época, Evola e Reghini estavam envolvidos com uma revista mais ou menos ocultista chamada Ur. Evola já conhecia a Introduction générale de Guénon, mas não tinha ficado muito impressionado com ela. Foi apenas por volta de 1930, quando já havia rompido com Reghini, que passou a ver a importância da obra de Guénon, mais tarde descrito por ele como «o inigualável mestre de nossa época».13 Sua obra Tradicionalista mais importante foi a Rivolta contro il mondo moderno [Revolta contra o mundo moderno] (1934),14 que, junto com a Crise du monde moderne de Guénon, serviu como inspiração para o título do presente livro. A diferença entre os dois títulos é a chave para a diferença entre seus autores: enquanto
Guénon desejava sobretudo explicar a crise que via, Evola tinha uma consciência aguda daquilo que René Daumal, o surrealista simpatizante do Tradicionalismo, chamara de «a lei [...] que necessariamente empurra aquilo que há em nós, homens, para a revolta». Daumal e Evola tinham algo em comum como artistas de vanguarda interessados em filosofia — Espinosa no caso do primeiro, Nietzsche, no do segundo. Da mesma forma que Daumal provara tetracloreto de carbono, Evola havia experimentado éter.15 A carreira de Evola como pintor de vanguarda (com unhas pintadas de roxo) começou após a Primeira Guerra Mundial, na qual combateu como oficial de artilharia. Ele obviamente tinha uma fonte de renda privada, pois, aparentemente, nunca se viu forçado a trabalhar. Após a guerra, contribuiu para a revista dadaísta Revue Bleu e organizou duas exibições dadaístas, a primeira na Itália, a segunda, em Berlim. Escreveu também dois livros dadaístas, publicados na Suíça em 1920 por Tristan Tzara, um importante membro do movimento. Um deles era poético e teórico (Arte astratta [Arte Abstrata]), o outro, puramente teórico (La parole obscure du paysage intérieur [A palavra obscura da paisagem interior]).16 No entanto, assim como Aguéli anteriormente, Evola começou a se interessar por teosofia, e, como aquele, terminou trocando a pintura pela busca espiritual. Ao contrário de Aguéli, porém, Evola nunca voltou a pintar, além de ser pouco conhecido como artista, exceto por historiadores interessados no dadaísmo. Inicialmente, ele se filiou à Liga Teosófica Independente, fundada na Itália por Reghini e Decio Calvari. Por meio dessa Liga e de Calvari, Evola descobriu as religiões orientais.17 Por intermédio de Reghini, descobriu o esoterismo ocidental sob quase todas as suas formas. Os interesses de Reghini eram variados, incluindo — além da maçonaria — Pitágoras, os cátaros, paganismo romano e magia.18 Tudo isso e mais podia ser encontrado nas páginas de Ur, que teve Reghini como autor e Evola como editor durante o curto período de sua existência (1927-29). Além de publicar traduções de textos tântricos, herméticos e budistas, Ur moveu-se em uma nova direção, a do neopaganismo, publicando uma tradução de um ritual
mitraico.19 O paganismo romano também interessava a Guido de Giorgio, outro Tradicionalista admirador de Guénon com quem Evola mantinha contato. O Evola desse período foi imortalizado em uma obra de ficção intitulada Amo, dunque sono [Amo, logo existo] (1927) de Sibilla Aleramo, que ele conheceu em 1925 e de quem se tornou amante, apesar de ser 22 anos mais novo do que ela. Evola é a inspiração para o personagem de Bruno Tellegra, um mago que vive num velho castelo na Calábria.20 À luz da futura carreira política de Evola, é interessante notar que Aleramo — uma feminista famosa por seus diversos amantes, e por sua amizade com Máximo Gorki, Auguste Rodin e Guillaume Apollinaire — foi comunista por toda a vida.21 Como Evola explicou mais tarde, outros dois filósofos, além de Guénon, foram importantes para o Tradicionalismo desenvolvido em Rivolta contro il mondo moderno: Friedrich Nietzsche e Johann Jakob Bachofen. Do primeiro, veio o Übermensch (super-homem) nietzschiano; do segundo, uma tipologia binária menos conhecida, que opunha civilizações urânicas às telúricas.22 O principal apelo inicial da obra de Nietzsche para Evola, já durante sua adolescência, foi seu ataque aos valores cristãos burgueses, algo apropriado a um futuro dadaísta, já que o movimento dadá tinha por objetivo chocar a burguesia. O que mais interessava a Evola era o super-homem, o «indivíduo absoluto», interesse refletido em sua primeira obra pós-dadá, Teoria dell’individuo assoluto [Teoria do indivíduo absoluto], escrita em 1924. Nesse ponto, Evola havia abandonado a pintura e claramente contemplava a possibilidade de uma carreira filosófica mainstream, uma vez que escreveu a Teoria dell’individuo assoluto «com o aparato erudito necessário e no jargão acadêmico apropriado». No entanto, ele não foi capaz de encontrar uma editora para o livro23 e parece ter abandonado a essa altura a ideia de uma carreira acadêmica, como o fez Guénon após a rejeição de sua tese de doutorado. Apesar de o livro ter sido publicado mais tarde, em 1927,24 naquele momento a atenção de Evola já havia passado a outros temas. Apesar de haver perdido o interesse no mundo acadêmico, a maioria de suas obras posteriores aproximou-se
muito mais do que as de Guénon dos padrões acadêmicos tradicionais em termos de estilo, notas e qualidade das fontes. Bachofen, o outro filósofo de Evola, ocupou a cátedra de direito romano na Universidade da Basileia e foi um pioneiro filósofo da história, interessado nos fatores culturais, que lhe pareciam tão importantes quanto os econômicos ou políticos na determinação da história e dos sistemas legais. Com base em seus estudos de mitologia antiga, desenvolveu uma teoria evolutiva da história humana. Segundo Bachofen, a sociedade humana havia progredido de uma civilização inicial, matriarcal e «inferiormente sensual» para civilizações patriarcais «espiritualmente puras», como a sua.25 Essa tipologia foi a base não apenas do par telúrico/urânico de Evola, mas do par apolíneo/dionisíaco de Nietzsche. É interessante que a conexão de Nietzsche com Bachofen passe por Jakob Burckhardt, o historiador da Basileia de quem descendia o colaborador de Schuon. Bachofen também era apreciado por antropólogos do fim do século XIX e por Friedrich Engels (que o cita ao discutir a origem da família), mas a partir de 1900 sua tese central do matriarcado como forma original da sociedade humana havia sido desacreditada; desde então, sua obra caiu, em larga medida, no esquecimento.26 Como Tradicionalista, Evola inverteu a tese evolucionária de Bachofen. Apesar de as qualidades telúricas (femininas) e urânicas (masculinas) serem, em teoria, pares dinâmicos de oposições, na prática ele postula um declínio do urânico ao telúrico. Nietzschiano, ele enfatizava a ação, que via como uma qualidade urânica, associada, em termos hindus, com os xátrias ou casta guerreira. Guénon, em seu livro Autorité spirituelle et pouvoir temporel (1929) sustentava que, no estado primordial Tradicional, a autoridade espiritual era superior à temporal, ou seja, que os brâmanes eram superiores aos xátrias.27 Evola, no entanto, se recusava a subordinar a ação desse modo. Em lugar disso, defendia que brâmanes e xátrias formavam originalmente uma única casta, que se separou apenas durante o declínio da Tradição primordial. Tal declínio, segundo ele, produziu «a dessacralização da existência: primeiro o individualismo e o racionalismo, depois o coletivismo, o materialismo e o mecanicismo, até a abertura final a forças que pertencem não ao que está acima do
homem, mas ao que está abaixo». Simultaneamente, aquilo que Evola chamou de «lei de regressão das castas» estava em operação, com o poder passando da casta guerreira e sacerdotal para a classe comerciante (como nas democracias burguesas) e finalmente para a casta dos servos (o proletariado), como na União Soviética. A casta sacra primordial era urânica e pré-cristã; o catolicismo, com sua concepção supostamente não tradicional de um Deus pessoal , era telúrico e característico da modernidade.28 A análise evoliana da modernidade é uma variante reconhecível da filosofia Tradicionalista estabelecida. O ponto em que difere de maneira mais marcada de Guénon é em sua prescrição. Para Guénon, a transformação do indivíduo pela iniciação seria o meio para a transformação do Ocidente como um todo sob influência da elite. Evola nunca explicitou sua própria prescrição, talvez de maneira intencional, mas defendia a autorrealização pela reintegração do homem em um estado de centralidade como «Indivíduo Absoluto», o que deveria ser atingido pela ação urânica.29 Esse preceito foi interpretado de diversas maneiras. A julgar pelas próprias ações de Evola, no entanto, a transformação do indivíduo não seria tanto o meio, mas a consequência da transformação da sociedade. Ainda que, mesmo no fim da vida, Evola não tivesse certeza sobre os meios de autorrealização individual, suas opiniões sobre a transformação da sociedade parecem definidas desde o princípio. Essas opiniões estão claras na década de 1920, em seu envolvimento com o regime fascista que governava a Itália. Em tal envolvimento, Evola seguiu o exemplo de Reghini, que alimentara esperanças sobre a educação espiritual de uma nova elite política.30 Evola escreveu que ele havia simpatizado com Mussolini no fim da década de 1920 como o faria com qualquer um que se opusesse ao regime democrático surgido após a Primeira Guerra Mundial e à esquerda política, apesar de não gostar das origens duvidosas dos Camisas Negras, nem tampouco do nacionalismo dos fascistas. No entanto, ele perdoou as «origens proletárias e socialistas» de Mussolini quando este começou a falar no «ideal do Estado Romano e do Imperium», e em «dar à luz um novo tipo de italiano,
disciplinado, viril e combativo».31 Em lugar de «um novo tipo de italiano», poderíamos ler «Indivíduo Absoluto»; em lugar de «viril», «urânico». A primeira atividade conhecida de Evola ao se tornar um Tradicionalista foi tentar guiar a sociedade fascista na direção do Tradicionalismo. Era uma iniciativa menos absurda do que o envolvimento de Von Sebottendorff com a Germanen-Orden, mas um Evola maduro viria a admitir mais tarde que a empreitada careceu de senso tático e, na realidade, de bom senso.32 Em 1929, Ur deixou de ser publicada após uma desavença entre Evola e Reghini. O primeiro acusando o segundo de tentar usar a revista para fins maçônicos, enquanto o segundo acusava o primeiro de roubar suas ideias no livro Imperialismo pagano, publicado em 1928, e discutido mais adiante.33 Ambas as queixas eram justas.34 Em 1934, Evola fundou uma nova revista, La Torre , com o subtítulo de «Um veículo para as várias expressões da tradição única». Sob alguns aspectos, a revista se parecia com Études traditionnelles. Reghini não participou, mas o principal colaborador de Evola era mais próximo de Guénon do que de Reghini: Guido de Giorgio, que havia passado um período com sufis na Tunísia.35 Sob outros aspectos, La Torre era radicalmente diferente da revista de Guénon. No primeiro número da revista — que, segundo seu fundador, não era «um refúgio para uma fuga mais ou menos mística, mas um posto de resistência, de combate e de realismo superior» — Evola conclamou a tradição a entrar em todos os domínios da vida. «Na medida em que o fascismo segue e defende esses princípios [Tradicionalistas]», declarou ele, «é nessa medida que podemos nos considerar fascistas. Isso é tudo.» Numa edição posterior, Evola foi além, lançando um apelo por «um fascismo mais radical, mais intrépido, um fascismo verdadeiramente absoluto, feito de pura força, inacessível à transigência»,36 ou seja, um fascismo mais alinhado às suas próprias opiniões. A transigência feita pelo fascismo que Evola mais lamentava era aquela com a burguesia. Essa não fora sua primeira tentativa de participar do discurso fascista. A anterior ocorrera em 1926 ou 1927, antes de sua mudança
de opiniões por influência do Tradicionalismo. Em uma série de artigos numa revista chamada Critica Fascista, uma da mais intelectualizadas do Partido Fascista, ele defendeu que o paganismo romano, e não o catolicismo, seria a base mais apropriada para o fascismo. Tal opinião foi combatida com veemência pelo Vaticano e por muitos outros, tendo sido divulgada em uma publicação semioficial. Em pouco tempo, Evola desapareceu das páginas de Critica Fascista. Sem se abalar, ele escreveu Imperialismo pagano. Il fascismo dinnanzi al pericolo euro-cristiano [Imperialismo pagão. O fascismo perante o perigo eurocristão], um livro de 160 páginas que levou seu argumento ainda mais longe. Evola recomendava agora que a Igreja Católica fosse privada de toda sua autoridade e subordinada ao estado fascista. Ao contrário de seus artigos para Critica Fascista, Imperialismo pagano não trazia nenhum tipo de endosso oficial implícito, e foi recebido com pouco interesse no momento de seu lançamento em 1928.37 Em 1929, Mussolini firmou uma concordata com a Igreja Católica. O Partido Fascista recebeu as propostas Tradicionalistas do Evola de 1930 de maneira ainda menos favorável do que suas propostas pagãs de 1928. O primeiro número de La Torre foi saudado pela imprensa fascista com condenações, ameaças de morte a seu editor e uma sugestão da polícia de que seria uma boa ideia suspender a publicação. Evola ignorou a sugestão, mas, após o quinto número — em que lançou um apelo por «um fascismo mais radical e intrépido» —, a polícia proibiu a gráfica de produzir mais cópias de La Torre. Evola apelou ao Ministério do Interior, mas este recusou-se a ajudar e La Torre deixou de ser publicada.38 Evola afastou-se brevemente da política, começando a trabalhar no que descreveria como sua primeira obra Tradicionalista, La tradizione ermetica [A tradição hermética] (1931).39 De Giorgio, descrito por Evola como maníaco-depressivo, aposentou-se definitivamente em um presbitério em ruínas nos Alpes, onde morou até o fim da vida. Foi lá que ele passou a maior parte da Segunda Guerra Mundial, trabalhando no livro chamado La Tradizione romana [A tradição romana], no qual tentava reconciliar a religião romana, o Cristianismo, o Vedanta e aspectos do Islã. Quando De Giorgio
enforcou-se em 1959, La tradizione romana permanecia inédito, vindo a ser publicado postumamente em 1973.40 Em 1932, Evola publicou outra obra Tradicionalista, Maschera e volto dello spiritualismo contemporaneo. Analisi critica delle principali correnti moderne verso il «sovrannaturale» [Máscaras e faces do espiritualismo contemporâneo. Análise crítica das principais correntes modernas do «sobrenatural»].41 Baseado nas duas obras antiocultistas de Guénon — Théosophisme e Erreur spirite —, o livro, no entanto, ampliava o ataque guénoniano contra a teosofia para cobrir também a Antroposofia de Rudolf Steiner, bem como o ataque contra grupos «contrainiciáticos» para cobrir Krishnamurti. Evola acrescentou também uma nova seção, na qual criticava a psicanálise freudiana, que ele via como uma inversão que privilegiava falsamente «a base subpessoal e irracional do ser humano».42 O fato de as doutrinas de Freud dificilmente poderem ser descritas como sobrenaturais talvez tenha sido a razão para que, na edição seguinte, o termo «sovrannaturale» tenha sido alterado para «sovrasensibile» (suprassensível) no subtítulo. O maior interesse de Maschera e volto dello spiritualismo está no tratamento dado ao que vínhamos chamando de «ocultismo», definindo o occultismo como «uma mania pela linguagem obscura». Trata-se de uma definição muito mais estreita do que a de Guénon. Evola fazia uma distinção entre duas formas de magia, uma das quais ele chamava de «degenerada» e que condenava, e outra que não condenava — porque, é lícito pensar, era ele mesmo um praticante. A magia «degenerada», segundo Evola, caracterizava-se por um «cerimonialismo» excessivo e por «utilizar ritos e formas como uma objetificação quase realista das entidades e poderes».43 A questão da prática espiritual do próprio Evola não é tão importante quanto a de Guénon, uma vez que a prática deste era um exemplo para outros Tradicionalistas, algo que a de Evola nunca foi. Ela guarda, porém, algum interesse. É quase certo que tal prática incluía elementos herméticos, aquilo que Evola provavelmente contrastava com a magia «degenerada». A prática hermética que mais lhe interessava era a alquimia, que, segundo ele, não era o
estágio «infantil» da química, mas «uma ciência iniciática apresentada sob um disfarce químico-metalúrgico».44 Essa interpretação da alquimia seria popularizada mais tarde pelo escritor brasileiro Paulo Coelho em seu romance O Alquimista.45 Além da alquimia, certamente é possível acrescentar alguma forma de neopaganismo, além de magia sexual (a técnica de administrar estados surgidos durante o ato sexual a fim de manipular vários tipos de energia). Antes de se tornar Tradicionalista, Evola liderou um grupo secreto organizado em torno da revista Ur, com cerca de doze a quinze pessoas. Entre elas estava Maria de Naglowska, uma romancista de origens russa e judaico-polonesa que mais tarde se mudaria para Paris, onde liderou um grupo ocultista na década de 1930, tornando-se famosa por sua prática de magia sexual.46 Assim, parece provável que as práticas privadas do próprio Evola (ao menos antes do fim da Segunda Guerra Mundial) incluíssem a magia sexual.47 Além disso, seria estranho se o autor de Imperialismo pagano nunca tivesse se envolvido com nenhuma prática pagã, apesar de ter se referido mais tarde ao paganismo romano como «uma realidade puramente política e jurídica, sob uma capa de práticas e cultos supersticiosos».48 Em 1967, já no fim da vida de Evola, um muçulmano Tradicionalista de origem francesa chamado Henry Hartung (discutido mais adiante), interessado na pergunta sem resposta das práticas do italiano, perguntou-lhe como atingir a autorrealização. Evola respondeu que a iniciação era uma possibilidade, «mas qual, e sob que circunstâncias?».49 Em outro lugar, ele indicou acreditar que o caminho pessoal de Guénon «oferecia muito pouco» para as pessoas que «não querem se tornar muçulmanos ou orientais»,50 algo que Evola evidentemente não desejava. Com isso, ele se separou da principal corrente de prática espiritual Tradicionalista. Conversando com Hartung, Evola listou seis práticas alternativas à iniciação: o estudo, a lealdade (definida como «neutralidade interior, o oposto da hipocrisia»), a retração, a «energia viril», a «visualização simbólica» e a «concentração interior».51 Podemos presumir com segurança
que, em algum momento da vida, ele experimentou todas essas práticas. A importância de Evola não vem tanto de suas práticas espirituais pessoais, mas de seus livros e atividade política. Em 1933, ele retornou à sua malfadada tentativa de guiar o fascismo italiano por um caminho intelectual, quando lhe foi confiada a tarefa de editar uma página sobre «Os problemas espirituais na ética fascista» no importante jornal Regime Fascista. Seu editor, na opinião de Evola, havia sido um dos poucos antigos fascistas que resistiram à tendência geral de servilismo perante Mussolini. Quase todos os dias, até a queda do regime em 1943, um colaborador escolhido por Evola — por vezes o próprio Guénon — usava sua página no Regime Fascista para se dirigir ao público italiano. No entanto, a reação, quando havia alguma, era geralmente negativa, e Evola desiludiu-se cada vez mais com as possibilidades do fascismo italiano.52 Tempos depois, ele escreveu: «Algumas pessoas dizem que o fascismo arruinou os italianos. Eu diria que o contrário aconteceu [...] que os italianos arruinaram o fascismo, na medida em que a Itália parece ter sido incapaz de fornecer o material humano adequado para que as possibilidades superiores do fascismo [...] fossem desenvolvidas de modo adequado, e que as possibilidades negativas fossem neutralizadas».53 Apesar de ter abandonado as esperanças de tornar a Itália Tradicional por meio do fascismo, Evola acreditou por um tempo que se sairia melhor com a Alemanha. Em 1933, o ano em que Hitler chegou ao poder, uma versão alemã de Imperialismo pagano — Heidnischer Imperialismus — foi publicada em Leipzig.54 Heidnischer Imperialismus não era apenas uma tradução do original italiano, mas uma edição revisada e ampliada (uma edição «tradicionalizada», digamos), diferente o bastante para ser retraduzida para o italiano em 1991.55 O livro foi muito bem recebido na Alemanha, com resenhas favoráveis em jornais que iam do Die Literarische Welt [O mundo literário] a Völkische Kultur [Cultura Popular].56 Evola admitiu mais tarde que tal interesse veio da opinião equivocada na Alemanha de que ele seria o principal representante de uma interessante
tendência no fascismo italiano. Ou seja, do fato de os alemães não terem se dado conta de que ele era, em suas próprias palavras: «um capitão sem tropas».57 Qualquer que tenha sido sua origem, o interesse foi genuíno, e Evola recebeu um convite para ir à Alemanha. Seu principal anfitrião foi Ludwig Roselius, um rico empresário (filho do fundador da firma de café HAG, fabricantes do Kaffee- HAG descafeinado, conhecido até hoje na Europa).58 Em 1934, Evola chegou à Alemanha cheio de esperanças. Ele acreditava que o país era um lugar onde a «lei da regressão das castas» encontrava-se menos avançada, onde a casta militar (representada pela tradição militar prussiana, a classe dos Junkers, e pelo poder político da nobreza ainda remanescente) estava mais bem preservada do que em outras partes da Europa.59 Ele assistiu a uma reunião pagã nórdica organizada por Roselius chamada «A Segunda Thing Nórdica» (thing era a palavra em nórdico antigo que designava «assembleia»).60 Em seguida, falou para o Herrenklub (Clube de Cavalheiros) em Berlim, um importante grupo de inclinação ultraconservadora ao qual pertenciam empresários como Fritz Thyssen e Friedrich Flick, além de políticos como Hjalmar Schacht (o talentoso ministro da Economia de Hitler) e Franz von Papen, chanceler da Alemanha entre 1932 e 1934, que presidiu e auxiliou a ascensão de Hitler ao poder. A «Thing Nórdica» foi uma decepção, tanto para Evola, a quem pareceu excessivamente política e pouco espiritual, quanto para o movimento nórdico germânico em geral, que a descreveu como um erro a não ser repetido. O Herrenklub, no entanto, agradou muito a Evola: «ali eu viria a encontrar meu ambiente natural».61 Em 1935, uma tradução alemã da obra central de Evola, Rivolta contro il mondo moderno, foi publicada sob o título de Erhebung wider der moderne Welt. O livro também recebeu resenhas favoráveis, apesar de Hermann Hesse tê-lo descrito em uma carta a seu editor como «realmente perigoso». Em 1936, Evola voltou ao mundo germânico, dessa vez a Viena, para falar perante a Kulturbund (Liga Cultural) do príncipe Karl Anton von Rohan, a contraparte vienense do Herrenklub de Berlim, mas com uma ênfase
católica mais pronunciada e com um entusiasmo pelo nacionalismo pan-europeu. Entre seus membros estava um dos raros Tradicionalista austríacos de primeira hora, Walter Heinrich.62 Sob o patrocínio de membros da Kulturbund, Evola viajou então à Hungria e à Romênia, onde se encontrou com o líder da Legião do Arcanjo São Miguel (discutida mais adiante). Além dessas visitas, Evola e seus amigos alemães e austríacos publicavam-se mutuamente, com ultraconservadores da Alemanha e da Áustria aparecendo nas páginas de Regime Fascista e Evola nas da Europäische Revue do príncipe von Rohan.63 Apesar de muitos detalhes não serem claros, Evola nitidamente se associara a um movimento político de potencial importância que se mostrava bastante mais receptivo a suas ideias do que o Partido Fascista Italiano. Isso é confirmado pela oposição a tais contatos nos círculos fascistas na Itália, o que quase resultou no confisco de seu passaporte.64 Não existem provas diretas do que Evola buscava com tal aliança, mas é possível deduzir algo a partir de um livro publicado em 1937 (que se seguiu a Rivolta contro il mondo moderno. É possível presumir, portanto, que Evola estivesse trabalhando nele no momento de seus contatos austríacos e alemães), intitulado Il mistero del Graal e la tradizione ghibellina dell’Impero [O mistério do Graal e a tradição gibelina do império],65 que, apesar de publicado na Alemanha apenas em 1955,66 provavelmente refletia seu pensamento durante aqueles anos. Il mistero del Graal era um tratamento mais extenso de um tema abordado pela primeira vez em Rivolta contra il mondo moderno. O Graal era o Santo Graal, apesar de Evola não empregar a palavra «Santo», enxergando os elementos cristãos no mito como uma adição posterior a ser descartada. O Graal, defendia ele, «simboliza o princípio de uma força de transcendência e imortalidade ligada ao estado primordial e que permanece presente mesmo no período de [...] involução ou decadência. [...] O mistério do Graal é o mistério da iniciação guerreira».
Os Gibelinos são mais familiares a um público italiano do que a um de língua inglesa; tratava-se de uma aliança informal que representava um dos lados (o outro era representado pelos Guelfos) em uma guerra acirrada pelo controle do centro e do norte da Itália durante o século XIII. Os Gibelinos — predominantemente senhores feudais — eram partidários do imperador do Sacro Império RomanoGermânico, enquanto os Guelfos eram sobretudo comerciantes e defensores do papado.67 Evola via a vitória final dos Guelfos como um incidente na regressão das castas, com a casta dos comerciantes tomando o lugar da casta guerreira. Os Gibelinos, como adversários da Igreja Católica, eram tomados como representantes da «tradição oposta», a tradição iniciática celta e nórdica pré-cristã sobrevivente e representada no mito do Graal.68 Evola, portanto, contemplava nesse período uma aliança ítalogermânica (ou teuto-romana) tal como prefigurada pelos Gibelinos, representada em uma ordem que viria a ser o recipiente de uma iniciação nórdica. Tal situação recorda os objetivos da Hoher Armanen-Orden, da qual surgiu a Germanen-Orden de Von Sebottendorff, mas não se conhece nenhuma conexão entre as duas. Evola estava prestes a se desapontar. Apesar de o Partido Nazista ter mantido relações cordiais com seus novos amigos durante o período de sua ascensão, ao chegar ao poder os nazistas perderam interesse nesse tipo de aliança, no exato momento em que Evola provavelmente pensava estar fazendo progressos. Em 1934, o chanceler Von Papen fez um discurso em Marburg, redigido em sua maior parte por seu secretário privado, Edgar Julius Jung, um contato próximo de Evola do Herrenklub. Esse discurso continha referências aos Gibelinos e a um «Império do Espírito Santo» como uma espécie de novo Sacro Império Romano-Germânico, algo que só poderia ter vindo de Evola. No entanto, o discurso é lembrado principalmente pelas objeções do chanceler ao crescente totalitarismo nazista, sendo uma das causas diretas da «Noite dos Longos Punhais», que consolidou o poder nazista e forçou Von Papen a renunciar. Outra vítima da «Noite dos Longos Punhais» foi Jung, o responsável pelos discursos de Von Papen, que foi assassinado. O Herrenklub sobreviveu como instituição apenas porque mudou seu nome para
Deutsche Klub (Clube alemão), e sua importância decaiu. Os amigos vienenses de Evola, incluindo o Tradicionalista Heinrich, foram presos imediatamente após a Anschluss, em 1938. Em 1939, Von Papen foi exilado como embaixador na Turquia. Em 1944, o estado das relações entre os nazistas e colaboradores de Evola do período 193436 era tal que doze membros do Herrenklub estavam entre os executados após o atentado malsucedido contra Hitler no dia 20 de julho.69 A despeito dos reveses, Evola não desistiu. Aparentemente, ele voltou sua atenção para as SS e, em 1938, provavelmente falou em Wewelsburg, o Ordensburg (castelo, quartel-general cerimonial) das SS, propondo uma ordem secreta com o objetivo de trabalhar para a instauração de um império teuto-romano. Os detalhes dessa proposta não são conhecidos diretamente,70 exceto que a referida ordem deveria publicar um jornal, mas os objetivos de Evola eram claramente os mesmos de antes. Heinrich Himmler, o Führer das SS, encarregou Karl Maria Wiligut, Oberführer das SS, de realizar uma investigação das ideias de Evola. Wiligut era um protegido de Himmler no SS Rasse und Siedlungshauptamt (Departamento de raça e assentamentos) e um dos poucos nazistas sêniores com um histórico ocultista. É dele o design dos símbolos de raios (na realidade, uma runa) e da cabeça da morte das SS.71 O relatório de Wiligut não foi favorável, concluindo que «Evola trabalha com uma concepção basicamente ariana, mas ignora as instituições germânicas pré-históricas, bem como seu significado»,72 e recomendando a rejeição de suas propostas «utópicas». Tal rejeição foi aprovada numa reunião com a presença do próprio Himmler, em que também foi decidido proibir o acesso de Evola a «quadros de liderança [fuhrenden Dienststellen] do Partido e do Estado» e colocar um fim em suas atividades na Alemanha, ainda que, felizmente para Evola, «sem nenhuma medida especial».73 Ironicamente, o próprio Wiligut também perdeu acesso às SS no ano seguinte, quando se soube que ele havia passado os anos de 1924 a 1927 em um hospital psiquiátrico em Salzburg, sofrendo de
alucinações (ele acreditava ser o herdeiro de uma longa linha de reis alemães que descendiam de Deus).74 Num período de dez anos, portanto, Evola tentou influenciar em linhas Tradicionalistas três diferentes grupos. Os dois mais importantes — o Partido Fascista Italiano e as SS — rejeitaram suas ideias. Apenas um, os ultraconservadores, aceitou-o (apesar de não sabermos em que termos), e eles foram dissolvidos pelos nazistas. Em seguida, Evola parece ter voltado sua atenção para uma nova estratégia: a infiltração de um tema, e não de um grupo. O tema escolhido, a raça, era atual. Ele já havia publicado artigos e breves panfletos sobre o assunto, bem como um relato histórico (encomendado por uma editora de Milão) sobre o desenvolvimento da teoria racial durante os séculos XIX e XX. Em 1941, ele publicou uma grande obra sobre o tema, intitulada Sintesi di dottrina della razza [Síntese da doutrina racial].75 Apesar de superficialmente alinhada com a teoria racial dominante na Alemanha e na Itália na época, Sintesi di dottrina era, na realidade, um ataque radical contra aquela, defendendo uma definição espiritual de raça. Em geral, Evola acompanhava a condenação comum dos judeus, mas, ao mesmo tempo, argumentava que a raiz do problema era espiritual e não étnica. «Ariano» ou «judeu» não deveriam ser entendidos em termos biológicos, afirmava ele, mas denotando «atitudes típicas não necessariamente presentes em todos os indivíduos de sangue ariano ou judeu». O verdadeiro inimigo não era o judeu definido de maneira biológica, mas a «subversão global e as antitradições».76 Evola, por fim, encontrara um caminho de entrada. Mussolini leu o livro e gostou dele a ponto de convidar o autor para um encontro (em 1942). Segundo teria dito a Evola, Sintesi di dottrina della razza oferecia uma maneira de alinhar o racialismo italiano com o alemão e, ao mesmo tempo, manter uma diferença singular, o conceito de raça espiritual. Ele também gostou da sugestão apresentada no livro de que existia uma raça «ário-romana» de descendência nórdica. Seguindo as instruções de Mussolini, vários editores receberam a sugestão de dar publicidade a Sintesi di dottrina della razza. «Houve um dilúvio de resenhas, começando pelo pomposo Corriere della Sera e outros grandes jornais, que nunca tinham se dignado a dar atenção
a meus livros», recordou Evola. De maneira surpreendente, dada a distância entre as concepções de Evola e as dos nazistas, houve até mesmo uma edição alemã, ainda que publicada com o título mais cauteloso de Grundrisse der faschistischen Rassenlehre [Esboço das teorias racialistas fascistas (i.e. italianas, e não alemãs)] (1943).77 Evola aproveitou esse acesso a Mussolini para falar com seus contatos alemães e sugerir um periódico bilíngue italiano-alemão, intitulado Sangue e Espírito. Uma proposta detalhada foi elaborada em conjunto por Evola e por altos funcionários do Ministério da Cultura Popular e depois aprovada por Mussolini. Evola partiu então para Berlim, finalmente no papel que lhe haviam atribuído em 1935, como representante de uma corrente interessante no interior do fascismo italiano.78 Viajando sob os auspícios oficiais do governo da Itália, ele superou sua rejeição pelas SS em 1938. Mas então tudo começou a dar errado novamente. Em parte porque as verdadeiras diferenças entre as opiniões de Evola e as de Mussolini haviam sido postas às claras para o ditador, e em parte devido à preocupação gerada pelos discursos que Evola vinha fazendo em Berlim, onde supostamente afirmava que os italianos não podiam ser classificados racialmente nem como nórdicos nem como mediterrâneos, o Ministério de Relações Exteriores da Itália ordenou seu retorno antecipado; ao chegar, seu passaporte foi revogado.79 Nesse ponto, Evola parece ter finalmente desistido, começando a trabalhar num livro sobre o budismo.80 Um ano depois, o regime fascista na Itália caiu, e Evola — assim como muitos outros fascistas importantes — fugiu para a Alemanha. Ele retornou a Roma durante a ocupação alemã da cidade e partiu novamente pouco antes de sua tomada pelos aliados. Em 1945, ele estava em Viena, ajudando a SS a recrutar voluntários internacionais. Atingido por uma explosão pouco antes dos alemães tomarem a cidade, ficou paralítico da cintura para baixo e passou o restante da vida em uma cadeira de rodas.81 No fim, o Tradicionalismo não desempenhou um papel importante no fascismo italiano nem no nazismo alemão, a despeito dos esforços de Evola. Em parte, isso se deveu ao fato de que o Mussolini dos
últimos tempos não estava interessado em ideologias, e Hitler era seu próprio ideólogo; nenhum dos dois ou seus regimes precisavam de Evola. Uma razão ainda mais básica era que as concepções elitistas evolianas não eram compatíveis com o caráter de massa que o fascismo e o nazismo assumiram na prática, ainda que nem sempre em teoria. No entanto, o fato de o Tradicionalismo evoliano ter sido uma corrente minoritária e sem prestígio dentro do fascismo italiano fez com que ele voltasse a dominar o terreno quando a corrente majoritária foi finalmente descreditada pelo colapso dos Estados de Hitler e Mussolini. Evola é geralmente descrito como fascista, mas essa caracterização não é exata, ao menos no sentido original e preciso da palavra «fascista». Ele nunca pertenceu ao Partido Fascista e dificilmente poderia ser descrito como um seguidor de suas diretrizes. Ele e suas opiniões tampouco eram aprovadas pelos fascistas ou pelos nazistas, exceto naquele breve período de graça em 1942, que se encerrou com a revogação de seu passaporte. As atividades de Evola sob o fascismo se dividem em dois períodos. O primeiro vai de seu primeiro artigo sobre o paganismo em 1926 até sua visita à Kulturbund vienense de Roha dez anos mais tarde; o segundo período vai de seus prováveis contatos com as SS em 1938 até sua visita oficial a Berlim no papel de racialista italiano em 1942. Quase nada é sabido acerca de suas atividades no período 1943-45, mas é possível que, naqueles anos caóticos, ele estivesse preocupado principalmente com a própria sobrevivência. O primeiro período aparece como relativamente inocente quando comparado com o seguinte. Durante o segundo período, Evola penetrou voluntariamente nas duas áreas mais sombrias da história da Europa ocidental no século XX. Em 1938, as SS ainda não haviam começado as atividades homicidas pelas quais viriam a ser lembradas como uma rara encarnação do mal em estado puro. Não há provas de que Evola pudesse adivinhar o que estava por vir e é possível que ele nunca tenha visitado Wewelsburg — essa visita é uma reconstrução de minha parte. O benefício da dúvida se dissipa rapidamente a partir de 1942, no entanto. Será possível que qualquer pessoa envolvida com o
racialismo oficial em Berlim naquele ano, em qualquer posição, pudesse não ter ideia do que estava subentendido?
ROMÊNIA Para o último desenvolvimento do Tradicionalismo sob o fascismo temos de voltar ao período após a Primeira Guerra Mundial, e buscar ignorar o que se passou depois, a fim de entender os acontecimentos das décadas de 1920 e 1930 em seu próprio contexto, e não baseados em associações posteriores. O Tradicionalismo romeno não veio de Paris ou do Cairo, mas de Roma. O primeiro Tradicionalista identificável da Romênia, Mircea Eliade, era um seguidor distante do grupo Ur de Evola e Arturo Reghini em 1927, e foi apresentado à obra de Guénon por este último, como havia acontecido com o próprio Evola.82 Eliade tornouse uma figura de destaque na história do Tradicionalismo. Não está claro como ele entrou em contato com Reghini e o grupo Ur, mas provavelmente foi consequência de seus interesses juvenis pelo ocultismo. Aos dezesseis anos, ele lia obras teosóficas, bem como Louis-Claude de Saint-Martin (o maçom perenialista do século XVIII que emprestou seu nome ao martinismo de Encausse).83 Após conhecer os teosofistas, Eliade registrou em seu diário o desejo de ler os originais em sânscrito,84 do mesmo modo que Aguéli se mostrara determinado a aprender o idioma em 1895. O estudo do sânscrito era menos avançado em Bucareste do que em Paris, e, ao ser admitido na Universidade de Bucareste em 1925, Eliade foi estudar filosofia com Nae Ionescu, conhecido por seus vastos interesses, entre eles a religião. Depois, em 1928, Eliade mudou-se para Calcutá com o objetivo de estudar sânscrito e hinduísmo, com uma bolsa concedida pelo marajá de Kassimbazar. Eliade manteve uma relação próxima com Evola durante esses anos, a julgar pela reações registradas em seu diário ao saber da morte do italiano em 1974: «Soube hoje da morte de Julius Evola, […] memórias assomam em mim, dos meus anos na universidade, os livros que descobrimos juntos, as cartas que recebi dele em Calcutá».85
Em 1931, ele retornou à Romênia e, em 1933, defendeu e teve aprovada sua tese de doutorado. Em seguida, começou a dar aulas na Universidade de Bucareste86 e rapidamente se tornou uma figura familiar em países pequenos como a Romênia: um intelectual generalista, erudito, crítico cultural, jornalista e romancista. Por volta de 1933, um grupo informal de Tradicionalistas havia surgido na Romênia, mas ele não era liderado por Eliade, e sim por Vasile Lovinescu, mais comprometido, e que pode ou não ter encontrado o Tradicionalismo pelas mãos de Eliade.87 Vasile Lovinescu é a figura central do Tradicionalismo romeno. Havia pelo menos uma dúzia de Tradicionalistas em Bucareste, compondo o grupo mais numeroso fora da França e da Suíça. Um deles, Michel Vâlsan, aluno de Eliade na Universidade, foi também uma importante figura na história do Tradicionalismo.88 As atividades desse grupo foram inspiradas tanto por Evola quanto por Guénon. A inspiração evoliana é visível no envolvimento de Eliade e Lovinescu com a Legião do Arcanjo São Miguel, enquanto a inspiração guénoniana aparece na busca por uma iniciação válida empreendida por Lovinescu e Vâlsan (e, provavelmente, outros), mas não, até onde se sabe, por Eliade, o que sugere que, na época, ele era mais evoliano do que guénoniano. Alguns membros do grupo também se envolveram no projeto de pesquisa Tradicionalista organizado ao redor de Études traditionnelles. Após um artigo publicado em 1934 sobre o Santo Graal (objeto de um livro de Eliade de 1937), Lovinescu escreveu uma série de artigos sobre a «Dácia hiperbórea», publicados em Études traditionnelles em 1936 e 1937.89 Eles argumentavam que um centro espiritual supremo estava localizado na Dácia (a província romana da qual os romenos se consideravam descendentes), fazendo da Romênia um repositório de tradição primordial — uma ideia similar àquela popularizada no início do século por Vasile Parvan, um neopagão não Tradicionalista admirado por alguns membros da Legião do Arcanjo São Miguel e movimentos similares.90 Em 1934, os Tradicionalistas de Bucareste também fundaram sua própria revista, Studii de traditie ezotericâ [Estudos de tradição esotérica], editada por Marcel Avramescu, um
convertido do judaísmo ao Cristianismo ortodoxo.91 Studii durou apenas dois anos e foi a segunda imitação de Études traditionnelles após La Torre de Evola.92 Eliade não escrevia em Études traditionnelles (ainda que seja possível que tenha escrito em Studii de traditie), mas sim nos grandes jornais tradicionais, especialmente Vremea [O Tempo]. Ele também publicou livros acadêmicos e romances que se tornaram best-sellers. O fato de se dirigir a um público geral teve diversas consequências importantes para sua obra. A primeira é que autores Tradicionalistas raramente eram citados, ao menos depois de trabalhos iniciais,93 mesmo quando deveriam ter sido. Dois capítulos inteiros do livro Mitul reintegrârii [O mito da reintegração] (1942), por exemplo, são tomado quase palavra por palavra e sem atribuição, de um artigo de Coomaraswamy publicado em 1935, «Anjo e Titã».94 Em 1951, após ler uma nova edição do importante Traité d’histoire des religions [Tratado de história das religiões] (1948), Evola escreveu a Eliade dizendo que entendia perfeitamente que este tinha de se basear em «literatura acadêmica oficial» mas que — e ele esperava não ofendê-lo ao dizer isso — «não é possível encontrar nem sequer uma palavra sobre Guénon, além de outros autores cujo pensamento e obra é o que lhe permite manejar com tamanha facilidade o seu material».95 Não possuímos a resposta de Eliade, mas, em seu diário, ele deixou anotado o seguinte: Certo dia, recebi uma carta um tanto amarga [de Evola], na qual ele me reprovava por nunca citá-lo, nem Guénon. Respondilhe da melhor maneira possível, e um dia devo oferecer as razões e explicações que essa resposta exigia. Meus argumentos não podiam ser simples. Os livros que escrevo são dirigidos ao público de hoje, não a iniciados [Tradicionalistas]. Ao contrário de Guénon e seus emuladores, creio que não tenho nada a escrever que seja dirigido especialmente a eles [iniciados potenciais e reais].96
Eliade parece estar dizendo que está escrevendo para o público não especializado, não nas páginas de Études traditionnelles, e que um Tradicionalismo explícito terminaria por custar-lhe leitores.97 Guénon já havia chegado de maneira independente a uma conclusão parecida a respeito das motivações do romeno, ainda que esse não tenha sido o caso de Evola.98 Se essa era a opinião de Eliade, ele estava certo. Como veremos, há uma regra geral de que obras de Tradicionalismo «suave» — obras em que o Tradicionalismo não é explícito — podem se tornar populares, enquanto o Tradicionalismo «duro», aquilo que Guénon, Evola e «seus emuladores» publicavam em Études traditionnelles e em outros veículos, nunca ultrapassa um público bastante reduzido. Assim, Eliade é um Tradicionalista «suave», no sentido de que o Tradicionalismo em sua obra não é explícito. Ele também é um Tradicionalista «suave» por nunca ter se comprometido pessoalmente com tal corrente como o fizeram Lovinescu e Vâlsan. Para eles, Guénon era o escritor mais importante de seu tempo e o Tradicionalismo era uma explicação que abarcava tudo o que realmente importava. Para Eliade, ainda mais do que para Evola, outras fontes também eram importantes, e ele não via problema em divergir das opiniões Tradicionalistas em certos casos. Eliade tinha outros motivos para evitar mencionar os Tradicionalistas em sua obra. Ao menos desde 1943, ele estava plenamente consciente do problema geralmente apontado por acadêmicos: que os Tradicionalistas por vezes negavam «as evidências históricas e ignoravam completamente os dados factuais colhidos por pesquisadores».99 Aqui Eliade ecoa Sylvain Lévi escrevendo a respeito da tese de Guénon, bem como e a resenha sobre Hinduism and Buddhism publicada no Harvard Journal of Asiatic Studies, apesar de não incluir a obra de Coomaraswamy em suas críticas, referindo-se a ele como «um dos acadêmicos mais eruditos e criativos do século XX».100 Parece claro que Eliade percebeu que, caso desejasse seguir uma carreira na academia, não poderia admitir sua dívida para com autores que não eram sérios, ao menos em termos acadêmicos. Coomaraswamy era bastante aberto
acerca de seu Tradicionalismo, mas, em 1933 (quando publicou seu primeiro livro Tradicionalista), ele tinha 56 anos de idade e se encontrava em uma posição estabelecida; uma posição completamente segura, na realidade. Acadêmicos em situações assim podem fazer coisas muito piores sem sofrer consequências. Eliade, jovem professor, tinha de andar na linha com muito mais cuidado. Escavar o Tradicionalismo na obra de Tradicionalistas «suaves» é mais difícil do que investigar o pensamento de Tradicionalistas «duros» como Guénon. No caso de um escritor prolífico e por vezes sutil como Eliade, trata-se de algo extremamente complexo. Ao que parece, no entanto, o Tradicionalismo de Eliade pode ser encontrado não tanto nos detalhes (apesar de influências poderem ser identificadas aí também),101 mas em seus objetivos, bem como em seu método.102 Em lugar de tentar reconstituir a verdade primordial a partir dos escombros, com o objetivo de auxiliar a elite a evitar a implosão do Ocidente ou sua assimilação pelo Oriente, o projeto de Eliade era a construção de um modelo geral da religiosidade humana, expresso em símbolos e mitos de validade universal e definido como «a fundação da consciência e do ser tal como constituídos», um modelo que pode auxiliar o autoentendimento humano e assim «fornecer os meios de uma renovação cultural», uma renovação tanto mais necessária devido «à época histórica em que estamos entrando e onde estaremos não apenas cercados, mas dominados por ‹estrangeiros›, os não ocidentais».103 Isso é muito semelhante ao que Guénon escreveu em Orient et Occident. Em 1937, o próprio Eliade fizera a ligação entre o estudo do simbolismo e o projeto Tradicionalista quando descreveu a obra dos principais Tradicionalistas em termos academicamente respeitáveis. Guénon, Evola e Coomaraswamy, afirmou «estão tentando estabilizar a unidade das tradições e dos símbolos que se encontram na base das antigas civilizações ocidentais, orientais e ameríndias, bem como da ‹cultura etnográfica›».104 Seu modelo geral da religiosidade humana é, na realidade, a Filosofia Perene em trajes seculares. Sua esperança na renovação
cultural por meio da compreensão dos mitos e do simbolismo religioso era inteiramente aceitável na década de 1960, mais do que a renovação por meio da espiritualidade esotérica e infinitamente mais do que uma renovação religiosa. Uma vez organizado, um modelo geral para a religiosidade humana seria muito pouco diferente da Filosofia Perene. O que Eliade fez ao longo de toda a sua carreira foi explorar o projeto padrão de pesquisa Tradicionalista de «reconstituir os escombros» sob outro nome, empregando métodos mais acadêmicos. Seu tema era o mesmo encontrado em Études traditionnelles, mas, em lugar de chamá-lo de «tradição», ele o chamava de «religião arcaica» (apesar de também empregar, às vezes, a palavra «tradicional»).105 Um Tradicionalista padrão estudaria as diversas tradições como alguém que acreditava que todas eram expressões da Filosofia Perene; Eliade, por sua vez, estudava a religião arcaica «como se» acreditasse, «em seu próprio plano de referência». É impossível dizer em que medida ele acreditava que as «religiões arcaicas» que estudava eram aspectos de uma filosofia perene, mas, se realmente acreditava nisso, é algo que deve ter facilitado o exercício de se colocar na posição do fiel de uma religião após a outra. Eliade encontrou uma justificativa para sua ênfase quase que exclusiva na religião arcaica em uma teoria um tanto duvidosa sobre visões do tempo: que a visão moderna do tempo linear seria atípica em comparação com a visão arcaica do tempo cíclico, muito mais generalizada. Assim, a religião não arcaica também seria atípica. Esse princípio liberou-o, felizmente, da necessidade de fazer referências à kali yuga (a «quarta idade» do declínio terminal, discutida no capítulo 1) pois desde 1957 ele descobrira que o conceito era uma adição tardia ao pensamento hindu.106 No entanto, o mesmo princípio permitiu que ele rejeitasse a modernidade de maneira tão firme quanto Guénon — ainda que apenas em seu aspecto religioso, que era o que queria. Pouco antes de 1978, Eliade afirmou sobre a obra de Guénon: «aquilo que me irritava era seu lado excessivamente polêmico, bem como sua rejeição brutal da cultura ocidental moderna
como um todo, como se dar aulas na Sorbonne fosse o bastante para perder a possibilidade de entender qualquer coisa».107 Que o perenialismo Tradicionalista informou até mesmo as obras de maturidade de Eliade é algo sugerido pela experiência posterior de um de seus antigos alunos, quando tentou estabelecer uma identidade acadêmica independente. O aluno, naquela altura já professor de religião, leu com espanto o manuscrito de um livro que havia escrito sobre o taoismo: «A palavra ‹primordial›, ou alguma variante eliadiana, parecia surgir a cada dois parágrafos. Revisei as provas num frenesi, tentando livrar-me de toda essa contaminação de primordialidade».108 O livro, devidamente «desprimordializado», foi publicado em 1983. Não está claro se Lovinescu e Eliade foram membros da Legião do Arcanjo São Miguel, mas ambos apoiaram-na e estiveram em contato com seu líder, Corneliu Zelea Codreanu.109 A Legião (também conhecida como Guarda de Ferro) foi fundada em 1927 por Codreanu, anteriormente um seguidor de Alexandru C. Cuza, professor de economia política na Universidade de Bucareste e fundador da Liga Nacional de Defesa Cristã em 1923. A Liga era violentamente — «monomaniacamente», nas palavras de um historiador — antissemita, e foi sobre essa questão que Codreanu rompeu com Cuza. A razão da divergência não teve nada a ver com o fato de Codreanu não ser, ele mesmo, antissemita — ele o era, apesar de «não em um grau notavelmente mais extremo do que, ou em desacordo com, a sociedade romena» — mas porque ele sentia que culpar os judeus por tudo não bastava. O objetivo de sua Legião não era apenas a purificação da vida romena das influências judaicas, mas também o «rejuvenescimento moral» da Romênia em bases cristãs e nacionais, incluindo a eliminação da (então dominante) corrupção da vida pública.110 A Legião era muito diferente da Liga, sobretudo após 1932, o ano em que Cuza estabeleceu relações com o Partido Nazista em ascensão, declarou que os romenos eram de origem ariana e adotou uma suástica como símbolo de seu grupo. A Liga também tinha um movimento paramilitar, os Lancieri (Lanceiros), comparável à SA do
início do nazismo (os «camisas marrons»). As bases «camisas verdes» da Legião de Codreanu foram culpadas de diversos excessos, mas, em comparação com os Lancieri de Cuza, eles eram um modelo de bom comportamento.111 Em 1933, Nae Ionescu, antigo professor de Eliade e então chefe da universidade, uniu-se à Legião, no que foi seguido por muitos de seus alunos,112 incluindo, ao que parece, o próprio Mircea Eliade. Não há registros seus como membro, mas ele claramente apoiava a Legião, escrevendo material de propaganda nada sutil para ela. Assim, em 1937, ele publicou um artigo no jornal Vremea intitulado «Comentariu la un juramint» [Comentário a um juramento], no qual afirmava a respeito do juramento legionário: «A importância desse juramento é avassaladora. O grau em que ele será cumprido e que dará frutos irá provar a capacidade da Romênia para a renovação espiritual. [...] O sentido da revolução a que aspira o senhor Corneliu Codreanu é tão profundamente místico que o seu sucesso significará uma vez mais o triunfo do espírito cristão na Europa».113 No mesmo ano, Eliade escreveu também que «acreditava na vitória do movimento legionário» porque ele era parte do destino divino e histórico do povo romeno, e que não apenas salvaria a Romênia, mas também «criaria um novo tipo de homem». O movimento legionário, de acordo com Eliade, era diferente de todos os outros por ser espiritual, e não político. Enquanto o comunismo agia em nome da economia, o fascismo em nome do Estado e o nazismo em nome da raça, o movimento legionário agia em nome do Cristianismo.114 Não que Eliade descartasse completamente a raça. Em pelo menos duas ocasiões, ele escreveu no Vremea sobre a necessidade de purificar a raça romena das influências judaicas e húngaras, uma delas num artigo intitulado «Bucaresti Centru Viril» [Bucareste, centro viril].115 É possível identificar nesse artigo a influência do conceito evoliano de ação urânica, bem como em todo envolvimento de Eliade com a Legião. Apesar de não haver provas disso, é possível que Eliade estivesse tentando influenciar a Legião desde dentro, como Evola na Itália e na Alemanha. Quando este visitou a Romênia em 1937,116 foram
Lovinescu e Eliade que o apresentaram a Codreanu. Segundo Evola, o líder legionário era «uma das pessoas mais valorosas e bem orientadas espiritualmente que encontrei nos nacionalismos daquele tempo».117 Evola e Eliade seguiram para almoçar na casa de Nae Ionescu.118 No entanto, existiam atividades guénonianas, além de evolianas, em Bucareste. Em 1935, Lovinescu visitou os famosos mosteiros ortodoxos no Monte Athos em busca de uma iniciação. Ele relatou suas experiências a Guénon, que concluiu que ou nunca houvera nada lá, ou que já não havia, e apresentou Lovinescu a Schuon. Em 1936, Lovinescu viajou à Basileia e, após uma «preparação» feita por Burckhardt, dirigiu-se a Amiens e entrou na ordem Alawiyya de Schuon.119 Michel Vâlsan, o ex-aluno de Eliade, fez a mesma viagem, com as mesmas consequências, no mesmo ano. Em 1935, Vâlsan havia estado entre os milhares de romenos que viajaram a Maglavit (uma cidadezinha na margem romena do Danúbio) para visitar Petrache Lupu, cujas visões e curas miraculosas criaram «uma onda de exaltação religiosa que varreu todo o país» e que foi adotado pela Liga Nacional de Defesa Cristã de Cuza depois de ter curado um jornalista ligado ao movimento de seu problema de «piscar incontrolavelmente».120 Assim como Lovinescu relatara a Guénon o que havia visto no Monte Athos, Vâlsan relatou sobre Lupu, até o francês novamente concluir que não havia nada de interessante ali e mandar Vâlsan para a ordem Alawiyya. O efeito de Lupu sobre Vâlsan foi quase o oposto do que sobre o jornalista curado: Vâlsan sentia-se assombrado por Lupu, e Reyor — que encontrou-se com ele em Paris — descreveu-o como alguém «visivelmente aterrorizado». A ordem Alawiyya e o ato de jogar no Sena um relógio abençoado por Lupu restauraram o equilíbrio a Vâlsan, mas a memória do taumaturgo romeno permaneceria com ele ao longo dos anos.121 Com a ajuda de Vâlsan, Lovinescu fundou um ramo da ordem Alawiyya em Bucareste, mas não se conhecem mais detalhes a respeito. Não há indícios de que Eliade tenha sido membro, nem de que tenha embarcado na busca por uma iniciação. Muito anos depois,
ele sugeriu que a redescoberta de um «texto sagrado» por um «leitor competente» poderia substituir a iniciação por cadeia iniciática.122 Essa parece ter sido a «iniciação» que Eliade escolheu para si. Após 1938, grande parte do Tradicionalismo romeno desapareceu sob a pressão da tempestade que se formava sobre a Europa. Naquele ano, o rei Carol II da Romênia, que havia estabelecido uma forma de poder pessoal após sua ascensão ao trono em 1930, decidiu tomar o controle da Legião e ordenou a prisão de Codreanu e de diversos outros legionários, incluindo Eliade e seu amigo Nae Ionescu. Codreanu e doze de seus principais seguidores foram estrangulados na prisão («abatidos a tiros durante uma tentativa de fuga»), mas outros foram depois libertados.123 A liderança da Legião passou então a Horia Sima, que compartilhava a orientação nazista de Cuza e que transformou-a na Guarda de Ferro, conhecida pelos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial como o equivalente romeno do Partido Nazista. Nesse intervalo, Vâlsan havia conseguido uma lotação na legação romena em Paris (onde Lovinescu havia servido anteriormente), e, em 1939, Eliade foi lotado na legação romena em Londres.124 Em 1940, a Alemanha obrigou a Romênia a ceder uma grande fatia de seu território à Hungria, aliada alemã, e o rei Carol abdicou. O novo rei, Miguel, nomeou um governo aprovado pela Alemanha, liderado pelo amplamente respeitado marechal Ion Antonescu e que incluía, além de Sima, o — menos respeitado — novo líder da Guarda de Ferro, Nae Ionescu, amigo de Eliade. Ionescu, no entanto, morreu de causas naturais naquele mesmo ano.125 Em 1941, a Romênia se uniu ao Eixo e Eliade foi transferido do território inimigo de Londres para a legação romena no território neutro de Portugal. Tanto ele quanto Vâlsan permaneceram em seus postos diplomáticos até o fim da guerra. Lovinescu ficou na Romênia, onde exerceu brevemente o cargo de sindaco (prefeito) de sua cidade natal, Falticeni.126 A Romênia foi passada à União Soviética em Yalta e, apesar de não ter se transformado em uma República Popular até 1947, em 1945 já estava clara a direção em que as coisas se encaminhavam; Vâlsan e Eliade decidiram permanecer no exterior.
Vâlsan ficou na França após um breve retorno à Romênia em 1945, e Eliade se mudou primeiro para a França e depois para os Estados Unidos. Suas histórias subsequentes serão discutidas mais adiante, mas mencionarei aqui uma acusação feita contra Eliade, já no fim de sua vida, pelo filósofo Kelley Ross: a de que «o tipo de teoria da religião representada por Eliade», que privilegia religiões arcaicas e «moralmente não esquematizadas», «conduz lógica e diretamente ao amoralismo neopagão dos nazistas e que, ademais, Eliade promoveu diretamente esse tipo de coisa na Romênia durante ou antes da Segunda Guerra Mundial».127 Variantes dessa acusação estiveram por trás das críticas mais acaloradas lançadas contra Eliade no fim do século XX e podem ser respondidas de dois modos: primeiro, que reconhecer e estudar «o não racional e o amoral» não necessariamente encoraja atividades não racionais e amorais (e pode muito bem fazer o oposto), e, segundo, que Eliade passa no «teste de reconhecimento do mal» de Ross: Eliade pode ser acusado com justiça de ingenuidade política. Caso se tratasse meramente de ingenuidade, isso seria um tipo de defesa — um tipo de defesa oferecida frequentemente em favor de Heidegger ou de Werner Heisenberg. O problema está em [saber] se opiniões tolas ou ignorantes são malignas ou simplesmente bem-intencionadas mas desinformadas. A prova está em observar se essas opiniões se tornam desiludidas perante demonstrações conspícuas do mal. Se não existe desilusão em tais circunstâncias, então devemos nos perguntar se esse mal não é originado pelas opiniões e, assim, se as opiniões são realmente ingênuas ou, na verdade, bem informadas, deliberadas e perniciosas.128 Eliade demonstrou desilusão quando deixou a Romênia e partiu para Londres. Em comparação, Von Sebottendorff e, especialmente, Evola não reconheceram o mal. Como sugerido antes, o primeiro tinha mais justificativas do que o segundo.
O Tradicionalismo romeno sobreviveu à República Popular da Romênia, mas com pouco contato com o Tradicionalismo no resto do mundo. Assim, sua história posterior receberá aqui um breve resumo. A ordem Alawiyya de Lovinescu continuou a funcionar sob alguma forma até a década de 1970, com sete ou oito seguidores. Em 1958, ele fundou um círculo de estudos Tradicionalistas separado, a Irmandade de Hyperion, consistindo em dez pessoas que se encontravam semanalmente e que podem estar ligadas a uma ordem iniciática ortodoxa. Lovinescu começou a escrever em 1964 e publicou seu primeiro livro em 1981, intitulado A patrulea hagialic [A quarta peregrinação].129 O Tradicionalismo voltou a ser popular na Romênia após a queda de Ceausescu em 1989. A Irmandade de Hyperion se expandiu, transformou-se numa organização mais formal e começou a publicar as obras de Lovinescu, enquanto outros Tradicionalistas foram traduzidos e publicados por uma grande editora. O Tradicionalismo foi até tema de um programa semanal de rádio.130 A concentração de Tradicionalistas no Ministério de Relações Exteriores que aconteceu na década de 1930 repetiu-se na de 1990. O ministro de Relações Exteriores, o embaixador da Romênia em Paris e o embaixador na Tunísia eram Tradicionalistas. A Embaixada na Tunísia foi concebida como exílio honroso ao homem que foi vice-presidente do Conselho de Ministros por um breve período, após ter servido no tribunal que condenou Ceausescu à morte.131 Por razões puramente práticas, no entanto, um exame detalhado do Tradicionalismo romeno contemporâneo está fora do escopo deste livro.
6. FRAGMENTAÇÃO
Apesar de ter sido um período de atividade intensa para Evola, a Segunda Guerra Mundial foi um tempo de inatividade para o Tradicionalismo. Guénon estava no Egito, ocupado por tropas britânicas, enquanto a maior parte dos Tradicionalistas estava na França, ocupada pelos alemães. Schuon se encontrava em um país neutro, a Suíça, e havia indicado Michel Vâlsan como seu muqaddam em Paris. A correspondência que havia unido esses e outros Tradicionalistas pelo mundo foi interrompida pela guerra, apesar de a mala diplomática do Brasil, então neutro, permitir algum grau de comunicação até 1942.1 A revista Études traditionnelles teve sua publicação suspensa, e as obras de Guénon não estavam disponíveis na França. Todos os tipos de atividade maçônica foram interrompidos, e os maçons franceses foram perseguidos.2 Mesmo durante os anos de guerra, no entanto, Guénon encontrou novos seguidores. O mais importante deles foi Martin Lings, um jovem inglês que se tornaria um dos mais importantes sufis Tradicionalistas no fim do século XX. Lings, que havia se filiado à ordem Alawiyya em 1938 após ler Guénon num período em que dava aulas de inglês nos países bálticos, estava no Egito visitando o francês quando a guerra começou. Impossibilitado de voltar à Lituânia, ele conseguiu um emprego no departamento de inglês da Universidade do Cairo e, no curso da guerra, tornou-se um dos colaboradores mais próximos de Guénon, apesar de não ser exatamente íntimo.3 Guénon também ganhou novos leitores durante a guerra, incluindo Alain Daniélou, um músico francês convertido ao hinduísmo, que na época vivia em Benares, na Índia, e que começou a traduzir algumas de suas obras para o hindi. Seu irmão mais velho, Jean Daniélou — que viria a se tornar cardeal e membro da Academia Francesa —, interessou-se pelo Tradicionalismo a ponto de escrever artigos
ocasionais a respeito do assunto.4 O mais famoso dos novos leitores de Guénon, contudo, foi o romancista francês André Gide, que passou a maior parte da guerra no Marrocos. Foi ali que, em 1943, um sufi Tradicionalista francês emprestou-lhe alguns livros de Guénon. «O que teria sido de mim se eu os tivesse encontrado na juventude?», perguntou-se Gide em seu diário. Em 1943 era tarde demais para mudar: «meu espírito esclerótico se curva [...] com dificuldade», escreveu ele, e os livros fizeram-no recordar aquilo que chamou de sua «ocidentalidade», a razão pela qual estava ao lado de Descartes e Bacon.5 Ainda assim, Gide não conseguiu ignorar o desafio do Tradicionalismo, como é demonstrado por uma conversa dessa época, registrada por Henri Bosco (discutido anteriormente), também no Marrocos durante a guerra e recém-apresentado a Gide. Após repetir a Bosco e a um grupo de pessoas grande parte do que tinha escrito sobre Guénon em seu diário, Gide acrescentou: «Se Guénon estiver certo, bem, toda a minha obra desmorona…» Ao que alguém respondeu: «Mas então outras desmoronam junto, por exemplo, a de Montaigne». [Gide]: «Não há nada, absolutamente nada, a objetar ao que Guénon escreveu. É irrefutável». [Outro silêncio, e então]: «Agora é a hora da verdade, estou velho demais». [Acrescenta]: «Amo a vida com paixão — a vida múltipla. Não posso concordar em privar minha vida dos prazeres que esta maravilhosa diversidade do mundo lhe confere. E para quê? Para sacrificá-la a uma abstração, à Unidade, indefinível Unidade!… Seres limitados, criaturas perecíveis, somente eles me interessam e despertam meu amor. Não o Ser, o Ser Eterno, o Ser Ilimitado».6 Fica clara a preocupação de Gide de que Guénon pudesse estar certo, e ele, errado. Gide parece estar tentando justificar para si mesmo seu fracasso em agir, em seguir o exemplo do homem que tinha lhe dados os livros de Guénon e se tornado um sufi,
abandonando o mundo por Deus. Gide, é claro, nunca se tornou um sufi, mas suas reflexões mostram, de certa forma, como o exemplo de Guénon e, na realidade, o exemplo dos Tradicionalistas sufis, podem se apresentar aos demais: como um desafio, um poderoso chamado para algum tipo de vocação religiosa.
RENASCIMENTO A atividade Tradicionalista na França renasceu rapidamente após o fim da guerra, e logo continuou em novas direções. A primeira delas foi maçônica. Pouco depois do fim do conflito, Alexandre Mordiof, um Tradicionalista russo que vivia em Paris, escreveu para a Grande Loja Francesa. O grão-mestre, Michel Dumesnil de Gramont, bem como outros maçons importantes, claramente admirava a obra de Guénon, assim como a de Wirth, e autorizou a fundação de uma nova loja em linhas Tradicionalistas no ano de 1947. O nome dessa loja — La Grande Triade — veio do livro em que Guénon tratou de maneira mais explícita o tema da iniciação maçônica, La Grande Triade [A grande tríade] (1946).7 Isso exigia permissão especial porque vigorava na época uma proibição geral contra a fundação de novas lojas; a maçonaria mal havia sobrevivido à ocupação, e o número de membros ligados à Grande Loja Francesa caíra de 124 mil em 1939 para meros 3 mil em 1945.8 Havia uma necessidade premente de reviver antigas lojas, não de fundar novas. O experimento de reviver o ritual maçônico «tradicional» por meio do expurgo de acréscimos tardios, tal como defendido por Wirth e sob a direção da obra de Guénon, atraiu muito interesse em círculos da maçonaria. Além de um grupo de Tradicionalistas (incluindo Mordiof), os primeiros onze membros da Grande Tríade incluíam o então grão-mestre da Obediência (De Gramont) e um futuro grãomestre;9 no início, o número de visitantes da loja foi tão alto que não havia espaço para as pessoas se sentarem.10 Em 1948, um visitante deixou registrada sua impressão favorável tanto dos rituais quanto das discussões posteriores (as duas partes complementares de todo encontro maçônico):
O venerável Ivan Cerf dirigiu os trabalhos com maestria. [...] Do momento em que tomou seu lugar à mesa, tudo em sua atitude mudou, assumindo uma aparência que só pode ser descrita como hierática, sem nenhuma afetação [...] os ritos foram executados pontualmente, e de maneira inteligente, a circunvolução feita corretamente, na direção certa e com o ritmo apropriado. [...] A qualidade da obra estava à altura da do ritual. O nível intelectual médio dos membros era mais elevado do que o da maioria das lojas. Muitos irmãos possuíam uma sabedoria vasta e genuína. Os assuntos abordados foram quase sempre tratados de maneira inteligente, os debates que se seguiram foram pertinentes e polidos, graças também à perfeita disciplina observada.11 Assim como o retorno da paz tornou possível novas iniciativas como essa, ele também permitiu que outros Tradicionalistas retomassem seus afazeres interrompidos. Um deles foi Henri Hartung, uma figura importante na história do Tradicionalismo. Membro da pequena mas importante minoria protestante francesa e filho de um comandante da École militaire, Hartung havia sido apresentado à obra de Guénon em 1938 por Olivier de Carfort, pai de seu amigo Francis de Carfort. Ele passou a noite em claro lendo o livro que ganhou de presente (a Introduction générale), e teve sua vida «transformada» como consequência. A guerra, no entanto, atrasara as consequências dessa transformação. Depois de terminar a universidade, Hartung uniu-se à Resistência em 1942, fugiu para a Suíça com seu amigo Francis de Carfort em 1943, e, em 1944, voltou ao território francês para entrar no Exército da França Livre. Após ser ferido na Alsácia e condecorado por bravura, Hartung foi nomeado assistente do presidente De Gaulle. Foi apenas nesse momento que, durante uma viagem à Índia em 1945, ele pôde retomar sua busca Tradicionalista.12 Em 1947, novamente no sul da Índia, Hartung passou dez dias em Tiruvannamalai, o ashram (zawiya) de Ramana Maharshi, um dos gurus hindus mais famosos do século. A visita foi a experiência intelectual decisiva de sua vida. Ele descreveu Ramana Maharshi
como «a encarnação viva da realidade divina que está em todo ser humano, mas que ele havia redescoberto».13 A visita, no entanto, não satisfez sua busca pela iniciação. De volta a Paris, onde completou seu doutorado em geografia após deixar o exército,14 Hartung conheceu Vâlsan e, em fevereiro de 1949, começou a se corresponder com Guénon. De início, eles discutiram Ramana Maharshi e outros gurus hindus contemporâneos, bem como a tradução de uma obra de Maharshi que Hartung tinha a expectativa de publicar em Études traditionnelles. Encorajado por Vâlsan, Hartung escreveu para Guénon em maio — naquele tom excessivamente formal que, a um jovem, parece adequado para ser usado diante de um sábio de tal estatura — perguntando se, dadas as dificuldades que a prática do hinduísmo apresentava para um ocidental, «não seria possível voltar-me para um contexto exotérica à qual aspiro profundamente e que poderia — apesar de eu conhecer o Islã muito menos do que a Índia — oferecer-me influências e um enquadramento mais adaptados ao desenvolvimento da vida espiritual de um ocidental?». Quinze dias depois, Guénon respondeu que «aprovava completamente sua intenção», e, em junho ou começo de julho de 1949, Hartung e sua mulher tonaram-se muçulmanos e entraram na ordem Alawiyya.15 A ordem Alawiyya também estava tomando novos rumos. Suas práticas se tornavam mais elaboradas, com velas e incenso usados durante as cerimônias do dhikr, parte do que uma fonte hostil chamou de preocupação geral com a «encenação» (mise en scène).16 O que se seguiu a um dhikr por volta de 1947 foi descrito da seguinte forma: Após uma refeição simples — pão de centeio, queijos, frutas e chá — feita em silêncio, o xeique falava sobre doutrina e a vida espiritual, e respondia perguntas. Nessas ocasiões, eu sentia um poderoso sopro de bênção saindo de sua boca; era quase como se eu pudesse ver raios emanando de seu corpo. Ele estava sentado em seu divã, vestido com trajes marroquinos, assim como seus discípulos, sentados no chão em semicírculo, as mulheres na parte de trás. A vestimenta tradicional, insistência
do xeique, conferia dignidade a cada um. Duas lâmpadas marroquinas de cobre finamente entalhado lançavam padrões delicados em forma de laço no teto e nas paredes, e, enquanto realizávamos os ritos, o incenso enchia o ar. Tudo era beleza sagrada e paz, e eu voltava para casa após essas noites como que embriagado com o vinho da verdade.17 A preocupação de Schuon com a ambientação é visível até hoje nas casas de seus seguidores, quase todas belamente decoradas em um estilo «tradicional», que pode ter sua origem parcialmente traçada até Coomaraswamy. Tais casas invariavelmente possuem um espaço de oração com um Corão, uma vela e, geralmente, uma adaga.18 A beleza sempre foi um importante meio de acesso a Deus para Schuon e seus seguidores. Um segundo novo rumo para a ordem Alawiyya veio do antigo interesse de Schuon pelos povos indígenas americanos, que ele mesmo atribuía às histórias que sua avó paterna (que na juventude havia passado um período nos Estados Unidos) lhe contava na infância.19 Tal interesse ficou mais sério em 1946, quando Schuon escreveu a diversos seguidores e admiradores pedindo para ser colocado em contato com um «ancião» indígena. Em resposta, Joseph Epes Brown, antropólogo da Indiana University e membro da ordem Alawiyya, enviou a Schuon o livro de John Heihardt chamado Black Elk Speaks (1932).20 O livro é um best-seller e apresenta um relato em primeira pessoa — que, atualmente se sabe, foi profundamente editado — da vida de Black Elk [Alce Negro], um líder e pajé Sioux falante da língua Lakota que participou das batalhas de Little Big Horn e Wounded Knee.21 Black Elk Speaks impressionou muito Schuon; em 1948, foi um dos primeiros livros que ele deu a Catherine Feer, uma recém-chegada à ordem, e que viria a se tornar sua esposa.22 Após lê-lo, Schuon passou a discutir a espiritualidade dos indígenas americanos em sua correspondência com Guénon, além de recomendar que Brown entrasse em contato com Black Elk. Brown seguiu a recomendação e passou um ano com Black Elk por volta de 1947-48.23 O resultado desse ano de pesquisa foi publicado
em 1953, simultaneamente em inglês e francês, sob os títulos de The Sacred Pipe: Black Elk´s Acccount of the Seven Rites of the Oglala Sioux [O cachimbo sagrado: o relato do Alce Negro sobre os sete rituais dos Sioux Oglala] e Les rites secrets des Indiens Sioux [Os ritos secretos dos índios sioux].24 The Sacred Pipe foi, junto com Black Elk Speaks, um texto básico para o estudo da religião indígena da América, apesar de nunca ter atingido a popularidade extraordinária do livro de Neihardt.25 Grande parte do livro de Brown foi escrita em Lausanne, num período de seis meses, beneficiando-se do entendimento Tradicionalista de Schuon, transmitido em sessões semanais em que este revisava o manuscrito ao longo de sua composição.26 Dessa forma, The Sacred Pipe resultou na insuspeita passagem do Tradicionalismo «suave» para o interior da academia mais tradicional.
DISSENSÃO Essa retomada das atividades Tradicionalistas foi interrompida em 1948 por uma disputa cada vez mais pública entre Guénon e Schuon acerca da validade da iniciação cristã. Havia já algum tempo, Schuon sustentava de maneira privada que os sacramentos cristãos do batismo e da confirmação retinham uma forma de validade como iniciações esotéricas. Essa visão foi expressa no número de julhoagosto de 1948 de Études traditionnelles em um artigo intitulado «Mistères christiques» [Mistérios crísticos]. Guénon ficou menos preocupado com os pontos de vista expressos por Schuon — que ele, de certo modo, já conhecia, mas dos quais discordava com firmeza — do que irritado com o fato de o artigo ter sido publicado na revista que ainda via como sua.27 A ideia de que Schuon estava se preparando para desafiar a autoridade de Guénon seria ainda encorajada pelos relatos de Reyor que chegavam ao Cairo. Em 1948, este se queixou a Guénon de que os seguidores de Schuon estavam tentando assumir o controle da Grande Tríade, que muitos haviam cancelado suas assinaturas de Études traditionnelles e que só estavam encomendando edições antigas com os artigos de Schuon.28
Não há indícios de nenhuma tentativa de Schuon para assumir o controle da Grande Tríade, mas algum tipo de desafio à autoridade de Guénon era esperado. Existe um padrão geral para tais desafios: o próprio Guénon havia rejeitado a autoridade do Encausse maduro, enquanto o jovem Encausse rejeitara a autoridade de Blavatsky. A rejeição da autoridade de Guénon por Schuon a essa altura era ainda mais provável devido à interrupção das comunicações durante a guerra. Tal interrupção resultou numa independência maior dos seguidores de Schuon com relação a Guénon, da mesma forma que os seguidores de Vâlsan se tornaram mais independentes de Schuon. A disputa entre Guénon e Schuon em 1948 não foi apenas por autoridade, mas também acerca da natureza correta de uma ordem sufi Tradicionalista. A posição de Guénon era clara: não apenas a prática esotérica deve acontecer dentro de um contexto exotérico ortodoxo, mas os dois devem coincidir. Uma ordem sufi Tradicionalista na Europa não deveria ser diferente de uma ordem sufi no mundo islâmico, e o Islã exotérico de seus seguidores não deveria ser diferente do Islã ortodoxo.29 Qualquer outra coisa representaria uma «mistura de formas tradicionais», sincretismo. A opinião de Schuon era mais permissiva: ele acreditava que a prática esotérica era o que realmente importava e que o contexto exotérico era menos importante. Não se tratava de uma preocupação puramente teórica. A opinião de Schuon se refletia no relaxamento da xaria autorizado por ele a alguns de seus seguidores em Lausanne, que provavelmente começou nos anos finais da guerra. Não há sinais de semelhante relaxamento antes da guerra para além da omissão das orações sunna. Os primeiros relatos de relaxamento chegaram a Guénon em 1948, vindos de Reyor. Segundo ele, os seguidores de Schuon não estavam mais jejuando no Ramadã.30 Em 1950, esse relato vinha sendo corroborado de maneira independente por Vâlsan e Hartung. Segundo este, Schuon havia relaxado a xaria apenas para alguns seguidores, não para todos,31 o que parece realmente ter sido o caso.32 Na Basileia, Von Meyenburg e outros seguiam o jejum do Ramadã como sempre haviam feito.33
Segundo Vâlsan, esses e outros desvios da xaria eram justificados por Schuon como afastamentos das «formalidades exotéricas», necessários à «adaptação às condições de vida no Ocidente», uma justificativa que o próprio Vâlsan claramente rejeitava.34 O entendimento do romeno acerca da situação era mais ou menos acertado: em um documento posterior, Schuon escreveu a respeito das «simplificações» da xaria «legítimas não apenas nas condições específicas da vida nas dar al-harb (terras não islâmicas) em geral, mas também, e sobretudo, nas atuais condições cíclicas».35 Nas palavras de um schuoniano contemporâneo, «algumas prescrições religiosas obrigatórias foram estabelecidas para serem cumpridas com o apoio exterior de toda uma civilização tradicional. [...] A insistência em certas prescrições mais exotéricas arrisca comprometer a intenção original da religião devido às condições extraordinárias do mundo moderno. Tais prescrições podem se tornar até mesmo um fardo em vez de um apoio para a vida espiritual interior».36 Além da inobservância do jejum de Ramadã, Vâlsan também lamentava as orações rituais realizadas em horários irregulares e as abluções impróprias antes de rezar.37 Isso exige algumas explicações, além de comentários. O essencial da prática islâmica é descrito como seus cinco «pilares», o primeiro dos quais é a confissão de fé. O segundo é a oração ritual, a ser realizada cinco vez por dia em períodos específicos — entre a aurora e o nascer do sol, entre a hora do almoço e a metade da tarde, e assim por diante. Para a oração ritual, o muçulmano deve estar em estado de pureza ritual, adquirido ao lavar as extremidades do corpo, antebraços, boca e algumas outras partes numa ordem e de um modo específicos. Uma alternativa a tais abluções, tayammum (a realização de abluções limitadas e simbólicas usando areia ou poeira), é permitida quando não há água disponível. Segundo Vâlsan, os seguidores de Schuon estavam usando essa alternativa mesmo quando havia água à disposição. O terceiro pilar é o jejum de comida, bebida, tabaco etc. do amanhecer ao anoitecer durante o mês lunar do Ramadã.
Schuon tinha razões para querer «simplificar» (como afirmou mais tarde) esses pilares. O segundo e o terceiro pilar são simples de serem praticados no mundo muçulmano se alguém assim o desejar. As mesquitas possuem áreas de ablução e é esperado que a pessoa esteja menos atenta ao fim do dia durante o Ramadã. No Ocidente, no entanto, eles apresentam algumas dificuldades mesmo hoje em dia, e essas dificuldade eram ainda maiores na década de 1940, quando a imigração ainda não tinha, de certa forma, familiarizado o Ocidente com os muçulmanos. Não havia mesquitas onde rezar, e, caso as pessoas começassem a lavar os antebraços e pés em banheiros públicos, terminariam por atrair uma atenção indesejada. Alguém que adormecesse em sua escrivaninha numa tarde de Ramadã não seria tratado com compreensão. Além disso, na década de 1940, o Ramadã caiu no verão, e, embora o clima de julho e agosto seja normalmente mais fresco na Suíça do que no Cairo, o sol nasce muito mais cedo e se põe mais tarde, o que torna o período de jejum muito mais longo, apesar de haver maneiras de lidar com essa dificuldade sem abandonar o jejum por completo.38 Assim, é possível ver a razão por que Schuon permitiria alguns desvios da xaria nessas áreas, ainda que não esteja de todo claro por que autorizar o tayammum quando havia água disponível.39 Apesar de Vâlsan claramente não simpatizar com as «simplificações» de Schuon, e de Guénon aparentemente ter a mesma opinião, é interessante notar que, à medida que o Islã se tornava mais difundido no Ocidente, no fim do século XX, tornava-se mais comum que convertidos ocidentais recebessem a permissão de relaxar aspectos da xaria por razões puramente pragmáticas40 — é tolice pressionar alguém até o limite do que se pode suportar. No entanto, existe uma diferença sutil, mas importante, entre permitir que um convertido ao Islã atrase uma oração ritual para não perder o emprego41 e permitir tal atraso devido às «atuais condições cíclicas» ou porque a hora da oração não passa de uma formalidade «exotérica» que pode ser «essencializada».42 A maioria dos muçulmanos familiarizados com as condições no Ocidente demonstraria simpatia no primeiro caso. A segunda razão foi
rejeitada por Guénon e Vâlsan e escandalizaria praticamente qualquer muçulmano. Em alguns casos, essa traria à mente a conhecida história de um xeique em viagem pelo deserto com seus seguidores exaustos durante o Ramadã. De repente, um oásis com um pequeno lago límpido e fresco e com palmeiras repletas de tâmaras frescas surge do nada. «Sirvam-se», diz a voz de Deus. «Vocês são tão dedicados ao Meu caminho que não precisam mais se preocupar com formalidades.» «Eu me refugio em Deus contra Satã, o maldito», responde o xeique. «Como você sabia que era eu?», pergunta Satã (pois era ele mesmo). «Em parte pelo som de sua voz», responde o xeique, «e em parte porque sei que Deus não libera ninguém da observância da xaria.» Um dos desvios da xaria relatados por Vâlsan — o de permitir que os membros da ordem Alawiyya bebessem cerveja em jantares de negócios ou com a família43 — exige comentários . O objetivo da medida era, evidentemente, evitar suspeitas de que fossem muçulmanos. Existem paralelos com certas flexibilizações da xaria feitas por Schuon em outros lugares, mas não existe nenhum paralelo com essa.44 A xaria permite aos muçulmanos negar sua fé a fim de evitar a morte (apesar de ser melhor morrer como mártir, se possível), e convertidos recentes por vezes são aconselhados a não contar a todos sobre sua conversão até se sentirem prontos para lidar com a reação das pessoas. Não se conhece nenhum outro xeique, no entanto, que tenha autorizado atos proibidos a fim de reforçar uma ficção. Ademais, alguns membros da ordem logo passaram a tomar cerveja em privado, bem como em público.45 No entanto, Schuon não havia abandonado a xaria por completo, algo que nunca chegaria a fazer, apesar de novos desvios acontecerem nos anos seguintes. Ele ainda insistia o bastante na xaria a ponto de recordar seus seguidores que «relações sexuais fora do casamento são absolutamente proibidas» [ênfase no original]46 e de se recusar a receber Roger Maridort, um antigo amigo francês de Guénon, na ordem Alawiyya. Maridort, como outros de sua geração, havia encontrado as obras de Guénon em 1927- -28. Em 1930, ele visitou Guénon diversas vezes no Cairo e pode ter sido o rico
seguidor que resgatou-o da fome durante os seus primeiros anos. Indicado a Vâlsan por Reyor, ele buscava uma iniciação sufi, como outros o fizeram. O romeno recusou-o, no entanto, por estar vivendo com uma mulher casada que não podia se divorciar do marido. Schuon também recusou-o pelo mesmo motivo. Guénon evidentemente teve mais simpatia pelas dificuldades do amigo, e foi com o seu aval que Maridort viajou para o Marrocos e filiou-se à ordem Darqawiyya, a mesma de Burckhardt, apesar de ter sido recebido por outro xeique, chamado Muhammad al-Tadili. Al-Tadili posteriormente deu a Maridort um ijaza para transmitir a ordem Darqawiyya, e assim foi fundada uma segunda ordem sufi Tradicionalista.47 A contraparte da ênfase schuoniana na prática esotérica e de seu desdém por elementos da xaria exotérica era sua disposição em ver os sacramentos cristãos como iniciáticos, e, assim, aceitar seguidores cristãos. Ele nunca permitiu que não muçulmanos entrassem na ordem Alawiyya, mas sim que frequentassem a cerimônia do dhikr (ainda que sem participar ativamente dela).48 Por volta de 1950, Guénon levou a sério os relatos de que Schuon tinha seguidores cristãos, especialmente um padre católico que havia sido iniciado na Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paráclito. Em 1946, após a morte de Charbonneau-Lassay, o controle da Fraternidade passara a Thomas, o antigo colaborador de Guénon na Ordem do Templo.49 Apesar de a história da Fraternidade entre 1946 e seu «adormecimento» em 1951 ser obscura, os relatos que chegavam a Guénon aparentavam ser corretos, já que o padre utilizou os exercícios de meditação de Schuon — sobre os seis temas — até meados da década de 1960, quando visitou Lausanne pela primeira vez, não gostou do que viu e rompeu com Schuon.50 Guénon estava preocupado não apenas com Schuon e a Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paráclito, mas também com a Grande Tríade. A popularidade dessa loja começava a trazer seus próprios problemas. Não é permitido a nenhuma loja restringir seus membros a um grupo em particular (apesar de poder, dentro de certos limites, decidir a respeito de seus próprios rituais), e a Grande
Tríade logo se deparou com o problema de maçons pouco interessados no Tradicionalismo e que questionavam a necessidade de práticas exotéricas para acompanhar a prática esotérica da loja. Além disso, havia Tradicionalistas que não estavam muito interessados nas dificuldades adicionais criadas pela maçonaria. A Grande Tríade estava também obrigada a operar dentro da estrutura estabelecida pela Grande Loja Francesa, o que, segundo algumas pessoas, limitava suas possibilidades. Por volta de 1949, Guénon começava a manifestar dúvidas, apesar de continuar bastante interessado no desenvolvimento do ritual da loja até sua morte.51 Em 1950, Reyor, que havia se filiado à Grande Tríade no momento de sua criação por instrução de Guénon, causou furor e consternação ao usar sua vez como orador para condenar a loja por não conseguir atingir seus objetivos. Ele foi convidado a deixar a Grande Tríade, e assim o fez.52 Uma segunda tentativa Tradicionalista de criar uma prática esotérica maçônica aconteceu nesse momento (ou talvez um pouco antes), liderada por Reyor e por Jean Tourniac, outro correspondente Tradicionalista de Guénon.53 Juntos, eles fundaram a Trois Anneaux [Três Anéis], uma loja «selvagem» (que não respondia a nenhuma obediência). Como loja selvagem, ela estava menos restrita em suas atividades do que a Grande Tríade sob a Grande Loja Francesa, e teve seus rituais inspirados nos rituais maçônicos «operativos» de Clement Stratton, um inglês que alegava ter descoberto os rituais originais (anteriores ao século XVIII) da maçonaria, uma alegação que Guénon aceitara parcialmente, apesar de identificar parte dos rituais de Stratton como adições modernas. Esses rituais podem ter incluído também orações repetitivas similares ao dhikr sufi.54 Apesar de mais livre do que a Grande Tríade, a Trois Anneaux despertou muito menos interesse. Aparentemente, ela atraiu muito menos adeptos e sofreu com as tensões entre membros muçulmanos e católicos. Essas tensões provavelmente estiveram mais ligadas à personalidade das pessoas do que à religião, já que muçulmanos participavam sem dificuldade da Grande Tríade e cristãos e muçulmanos
compartilhavam as mesmas lojas (não Tradicionalistas) no Oriente Médio. As dificuldades com seus projetos maçônicos não eram o problema mais sério de Guénon. Ao longo de 1950, sua relação com Schuon se deteriorou ainda mais, e ele e Reyor (seguindo as instruções de Guénon) começaram a dirigir os que buscavam uma iniciação a Vâlsan em Paris ou diretamente a Maridort. Schuon, tentando evitar uma ruptura, enviou Jacques-Albert Cuttat (diplomata de profissão) até Reyor para sugerir que ele, Schuon, fosse ao Cairo encontrar-se pessoalmente com Guénon. Este, no entanto, anunciou que, caso Schuon fosse ao Egito, ele se recusaria a recebê-lo.55 Àquela altura, Guénon já havia decidido que os seguidores de Schuon estavam espionando-o — demonstrando assim a mesma paranoia sutil perceptível quando perdeu sua sobrinha, Françoise, em Paris — e que Lings lia sua correspondência a mando de Schuon, uma acusação que o inglês sempre negou.56 A tarefa de Lings era receber as cartas dirigidas a Guénon e levá-las até ele, e algumas dessas cartas tinham sinais de terem sido violadas. Se a correspondência de Guénon tiver sido realmente aberta, porém, é quase certo que não o foi por Lings, mas sim pela censura egípcia, intrigada com os símbolos maçônicos em muitas das cartas.57 Guénon e Schuon nunca mais voltaram a se encontrar. Em meados da década de 1950, Schuon começou a sofrer suas primeiras deserções. Entre elas estava seu emissário junto a Reyor, Cuttat, e seu amigo Hartung, que havia se filiado à ordem Alawiyya apenas um ano antes. Em julho de 1950, segundo as notas de Hartung, os dois já protestavam contra a desislamização da ordem, seu abandono de partes da xaria e a introdução de elementos de prática que, «na realidade, não passam de frutos da imaginação de Schuon, sem nenhum valor tradicional».58 Essa queixa supostamente se refere aos seis temas de meditação discutidos no capítulo 4; Reyor já havia reclamado a Guénon em 1948 que Schuon havia introduzido meditações sobre temas alheios ao Islã.59 Cuttat e Hartung abandonaram a ordem Alawiyya juntos, mas seguiram caminhos diferentes em seguida. Cuttat, cuja esposa
acompanhou-o ao deixar a ordem, começou a receber aulas de um padre ortodoxo em 1951, e, em 1955, o casal se converteu ao catolicismo quando ele servia como embaixador da Suíça na Colômbia. No entanto, Cuttat continuou interessado no Tradicionalismo, dando palestras sobre Guénon na Sorbonne em 1957.60 Como embaixador na Índia no início da década de 1960, ele fez grandes esforços para que a Suíça aceitasse refugiados budistas tibetanos que fugiam dos chineses.61 Hartung, por sua vez, deixou sua esposa na ordem Alawiyya (apesar de este não ter sido o único motivo para o seu divórcio), mas continuou muçulmano praticante até sua morte em 1988. Sua entrada na ordem havia ocorrido em segredo e seu Islã permaneceu secreto (exceto para sua família imediata) até quase o fim de sua vida. Mesmo então ele não foi anunciado, apesar de poder ser deduzido das orações feitas em seu enterro por alguns alawitas não schuonianos.62 Finalmente, em setembro de 1950, Guénon incentivou Vâlsan a escrever uma breve carta a Schuon separando a ordem Alawiyya de Paris, que o romeno vinha liderando desde 1940, da ordem original de Schuon.63 Guénon apresentou suas razões em uma carta escrita em outubro: «Em Lausanne, as práticas rituais foram reduzidas ao mínimo, e a maioria nem mesmo jejua no Ramadã». Ele acreditava que a ordem Alawiyya estava deixando de ser uma ordem sufi e se transformando em uma «vaga ‹organização universalista›».64 Os mesmos pontos foram levantados por Vâlsan de maneira muito mais extensa em novembro, numa carta aberta de 25 páginas dirigida a Schuon num tom extremamente severo, por vezes até sarcástico. Vâlsan acusou Schuon de se afastar do Islã em direção a «um universalismo fácil e superficial», conferindo a si mesmo «um papel universal fora do Islã», ignorando a necessidade de uma «fé genuinamente maometana» e substituindo o caráter islâmico da ordem Alawiyya por outro, «universalista».65 A distinção entre perenialismo e «universalismo», que eu mesmo passarei a adotar neste livro, reside no fato de que o primeiro encontra a unidade na Filosofia Perene primordial, enquanto o segundo agrupa as religiões de maneira indistinta.
Cuttat e Hartung também haviam criticado Schuon em julho devido à «divinização de um homem»,66 presumivelmente a do próprio Schuon. Essa acusação e o «papel universal fora do Islã» apresentam um enigma cronológico. Como veremos, segundo o seu Erinnerungen und Betrachtungen, Schuon veio a se enxergar como portador de um papel universal somente em meados da década de 1960, e parece ter se considerado uma espécie de manifestação divina apenas durante as décadas de 1980 e 1990. Nesse sentido, as críticas de Cuttat, Hartung e Vâlsan parecem ter vindo demasiado cedo. Talvez eles tenham detectado os primeiros sinais de um desenvolvimento posterior. Reyor claramente percebeu tais sinais em 1947, quando relatou a Guénon que um dos seguidores de Schuon o havia descrito como «meu divino mestre» e que outro havia dito: «Não é muito significativo que o homem que melhor entende o Cristianismo hoje tenha o nome de Jesus?» (Isa, a forma árabe de Jesus, era o nome muçulmano de Schuon). Reyor referia-se,67 é claro, à visão que os discípulos de Schuon tinham do mestre, e não ao modo como o próprio Schuon se enxergava. O fato de sufis desenvolverem ideias como essas a respeito de seus xeiques é algo que acontece — ainda que não com frequência — no mundo islâmico. Mesmo ali, há casos de xeiques que aceitam as opiniões de discípulos a seu respeito, e algo assim pode ter acontecido com Schuon. O rompimento com Schuon, aliado a outras dificuldades, cobrou um preço de Guénon. Valentine de Saint-Point, sua amiga mais antiga no Cairo, escreveu mais tarde a respeito de cartas «que o torturavam, relatando fofocas ridículas que faziam-no acreditar em uma perseguição e que terminaram por encurtar sua vida. [...] O escritor feliz, pacífico e agradável transformou-se em um homem nervoso e irritadiço que, apesar do sorriso, estava visivelmente triste».68 Claramente, De Saint-Pont não estava exagerando. A saúde de Guénon havia piorado a ponto de, em 1950, um jornalista (o primeiro de que se tem notícia a visitá-lo) notar que seu rosto estava emaciado, e suas mãos «diáfanas» (mas viu nesses traços um sinal de «grande espiritualidade»).69 No fim do outono de 1950, mais ou
menos ao mesmo tempo que Vâlsan escreveu sua carta de 25 páginas a Schuon, Guénon contraiu de seus filhos um dos muitos tipos de influenza que atormentam os habitantes do Cairo nessa época do ano e ficou acamado. Sua saúde nunca se recuperou, e, tarde da noite do dia 7 de janeiro de 1951, ele faleceu com apenas 64 anos de idade. Seu enterro, realizado no dia seguinte (como é a prática muçulmana), aconteceu no vasto e antigo Cemitério Sul do Cairo, acompanhado por Lings e por Whitall Perry, um membro americano da ordem Alawiyya que vivia na cidade desde 1946.70 Guénon deixou um filho, duas filhas e uma mulher grávida. Felizmente para sua família, a comunidade francesa no Cairo foi alertada para algo que não havia apreciado antes, isto é, que um francês notável vivia na cidade. Com isso, o Liceu franco-egípcio no subúrbio rico de Heliópolis ofereceu uma educação gratuita aos filhos de Guénon.71 Todos cresceram bilíngues, falando francês e árabe; o mais velho, Ahmad, emigrou para a França, onde trabalhou como médico, enquanto os outros três permaneceram no Cairo, vivendo uma vida mais ou menos comum de classe média egípcia.72 Pouco antes de morrer, Guénon pediu à esposa para deixar seu escritório intocado, dizendo que assim seria capaz de vê-la, bem como os filhos, após a morte, ainda que eles não pudessem vê-lo.73 Seu desejo foi respeitado (exceto por uma tentativa malsucedida de vender sua biblioteca em 1953), e, no fim do século XX, o escritório permanecia como ele o deixara, exceto pelo acréscimo de uma televisão.74 O Tradicionalismo no Cairo não durou muito tempo após a morte de Guénon. Lings foi forçado a deixar o Egito e mudar-se para a Inglaterra após a revolução de 1952, quando cidadãos britânicos foram demitidos em massa da Universidade do Cairo.75 O casal Perry decidira, pouco antes da revolução, que, sem Guénon não havia razão para permanecer no Cairo em meio a uma situação política que se deteriorava, e terminaram se mudando para Lausanne.76 Muin alArab, o colaborador egípcio de Guénon, que nunca havia sido propriamente um Tradicionalista, tornou-se seguidor do guru hindu Krishna Menon, cuja obra lhe fora apresentada por S. Katz, o médico
que cuidou do francês em sua doença final. Krishna Menon foi também o guru de John Levy, o convertido judeu ao Islã que comprou a casa de Guénon e que viajava com Schuon no início da Segunda Guerra Mundial. Katz, também de origem judaica, era um conhecido de Lings.77 Apesar de Menon ter conseguido um grande número de seguidores Tradicionalistas, ele não parece ter sido Tradicionalista sob nenhum aspecto, mas sim um modernista. A comunidade francesa que despertou tardiamente para a presença de Guénon no Cairo durante sua vida comemorou seu primeiro aniversário de morte com uma reunião em sua casa que contou com a presença de um segundo-secretário da Embaixada da França, leituras do Corão e discursos, feitos em sua maioria por pessoas que mal o conheceram. No segundo aniversário, as mesmas pessoas fundaram uma Associação dos Amigos de René Guénon no Egito, mas ela não daria muitos frutos, já que a comunidade francesa no país estava em seus últimos dias.78 Algumas pessoas parecem ter visto a Associação dos Amigos de René Guénon como um meio de melhorar as relações franco-egípcias após a Revolução de 1952,79 mas, se esse foi o caso, elas não entenderam a natureza da Revolução.80 Exceto entre alguns poucos cidadãos locais de educação francesa, Guénon foi logo esquecido no Egito. Por outro lado, os ensinamentos de Krishna Menon — disseminados inicialmente por al-Arab — atraíram um público que se estenderia até o século XXI. O Tradicionalismo foi uma conquista de Guénon, no sentido de que, sem ele e seus escritos, o movimento nunca teria existido — nenhum de seus colaboradores iniciais produziu nada capaz de atrair gente como Coomaraswamy, Evola, Eliade e Schuon. Essa conquista esteve baseada não apenas em seu trabalho, mas também na profunda seriedade com que se dedicava a ele, especialmente à sua correspondência. Essa seriedade e dedicação permaneceram como características do movimento Tradicionalista. No entanto, o Tradicionalismo herdou também duas características problemáticas de Guénon: sua tendência ao segredo e ao isolamento. Guénon escreveu sobre o hinduísmo sem ter tido nenhum contato com o
hinduísmo tal como vivido e praticado na Índia; do mesmo modo, escreveu sobre o Islã sem nenhum contato significativo com a erudição islâmica. Seu trabalho e o Tradicionalismo como um todo sofreram em consequência disso.
ORDENS INDEPENDENTES No momento da morte de Guénon, havia três ordens sufis Tradicionalistas independentes: a Alawiyya de Schuon, a Alawiyya de Vâlsan e a Darqawiyya de Maridort. Uma quarta, fundada por Abd alWahid Pallavicini, passou a existir no fim da década de 1970 como um ramo da ordem Ahmadiyya em Milão; a sequência cronológica não será respeitada neste capítulo para fins de completude. As quatro se desenvolveram em direções diferentes: a de Schuon (discutida nos dois capítulos seguintes) foi, de longe, a mais importante e tornou-se cada vez mais universalista. A de Vâlsan tornou-se cada vez mais islâmica, e a de Maridort, cada vez mais guénoniana. A de Pallavicini tornou-se a ordem Tradicionalista de maior visibilidade pública no Ocidente.
A Darqawiyya de Maridort Maridort era um Tradicionalista estabelecido, velho amigo de Guénon e membro da Grande Tríade, alguém que levava a sério a maçonaria, chegando a dizer a um amigo próximo que era a prática maçônica que lhe dava força para continuar com a prática islâmica. Para algumas pessoas na França, Maridort pareceu ter herdado o manto de Guénon. Foi para ele, portanto, que Reyor indicou um importante grupo de Tradicionalistas italianos em busca de uma iniciação esotérica durante a década de 1950, e foi a ele também que Chacornac recorreu em busca de um novo editor para a revista Études traditionnelles após dispensar Reyor do posto em 1960. Maridort, porém, declinou do convite e sugeriu Vâlsan, que editou Études traditionnelles de 1961 até sua morte, em 1974.81
Chacornac demitiu Reyor porque descobriu que este estava desviando fundos da revista para uso pessoal. Comenta-se que ele estava sempre sem dinheiro por não ter emprego fixo e por sustentar diversas esposas e vários filhos ilegítimos. Sua carreira Tradicionalista é triste: um dos primeiros admiradores de Guénon em 1928, ele era mais feliz com a filosofia Tradicionalista inicial do que com o movimento Tradicionalista posterior e sua ênfase na iniciação. Reyor participou de todos os grandes projetos do Tradicionalismo na França — Études traditionnelles, Fraternidade do Paráclito, ordem Alawiyya, Grande Tríade e Trois Anneaux —, mas de maneira relutante e sem contribuir significativamente para nenhum deles. Durante os últimos vinte anos de sua vida, foi praticamente esquecido pelo movimento Tradicionalista.82 Ao descobrir que possuía mais seguidores italianos do que franceses, Maridort mudou-se para a Itália por volta de 1961 e estabeleceu sua ordem Darqawiyya em Turim. Lá, eles lançaram um equivalente italiano de Études traditionnelles, chamado Rivista di Studi Tradizionali [Revista de Estudos Tradicionais] e outro da Éditions traditionnelles (como a editora de Chacornac era então conhecida), chamado Edizioni Studi Tradizionali. Ao longo dos anos, Edizioni Studi Tradizionali publicou traduções curtas de clássicos Tradicionalistas e textos islâmicos — Aguéli e Guénon, al-Tadili (o xeique do próprio Maridort) e Ibn al-Arabi. A editora também permaneceu fiel aos interesses originais de Guénon, publicando traduções de vários textos hindus. A ordem Darqawiyya de Turim passou a enxergar-se como a única defensora do Tradicionalismo original de Guénon, fiel até um ponto descrito por alguns Tradicionalistas franceses como «Guénolatria». Seus escritos tardios não apenas imitavam o estilo da prosa de Guénon, mas também sua paranoia: há referências ao «objetivo [...] de demolir a obra de René Guénon», explicando a ação de «forças entre as mais poderosas de nosso mundo». Além de defensivos, os escritos da ordem Darqawi são também, por vezes, ofensivos. Por exemplo, um Tradicionalista não pertencente à ordem, identificado como «o indivíduo de quem já falamos demais», é acusado de agir apenas «para mostrar seu pretenso conhecimento de técnicas
iniciáticas, numa tentativa desesperada de passar pelo que não é». Presume-se que todos os demais Tradicionalistas agem de má-fé. Assim, não apenas Schuon é acusado de «ódio manifesto» por Guénon, mas também a Vâlsan é imputada a acusação de «dissimulação, e de uma falsidade ainda mais perigosa».83 É possível que esse tom se deva, em parte, a uma longa e amarga disputa entre Maridort e outras pessoas, incluindo Vâlsan, a respeito dos direitos autorais de Guénon, sob o controle de seus filhos. O que estava sob disputa não era o dinheiro procedente das vendas, mas o controle editorial sobre os escritos de Guénon. A origem da controvérsia, que chegou a incluir uma ação judicial, remonta ao casamento de Ahmad Guénon — o filho mais velho de Guénon casouse com uma seguidora de Maridort e transferiu sua parte nos direitos autorais de seu pai para Maridort, morrendo em seguida num acidente de automóvel. Na década de 1990, a disputa ainda não havia sido resolvida de forma satisfatória para todas as partes.84 Quaisquer que sejam suas causas, uma das consequências da hostilidade da ordem Darqawiyya é que pouco se conhece de sua história posterior em círculos Tradicionalistas mais amplos. Quando tentei entrar em contato com seus membros, recebi uma resposta educada, porém firme, de que o que importava era a metafísica, e que as biografias não deviam ser levadas em conta. Nada mais, portanto, pode ser dito a respeito da ordem Darqawiyya.
A ordem Alawiyya de Vâlsan Por outro lado, a ordem Alawiyya de Vâlsan, sediada em Paris, aproximou-se cada vez mais do Islã sufi convencional. É emblemático que Vâlsan seja o único xeique Tradicionalista que, segundo descrições posteriores, apareça com uma imagem semelhante à de um xeique sufi no mundo islâmico — como uma espécie de santo. O único elemento ausente são as histórias de milagres geralmente reunidas no mundo árabe em torno da memória do grande xeique. Ele foi também o primeiro xeique Tradicionalista abertamente muçulmano e integrado em um ambiente islâmico mais geral. Desde
o início de sua vida em Paris, Vâlsan frequentou com regularidade a grande mesquita local, estabelecendo uma boa relação com o imã, um tunisiano, cuja filha viria a se tornar sua esposa. Ele passou a fazer visitas regulares a sufis de vida santa na Tunísia e vários sufis árabes visitaram seu dhikr, apesar de nenhum ter se filiado à sua ordem.85 Vâlsan foi, em termos islâmicos, ortodoxo e piedoso. Além de seguir a oração de sexta-feira na mesquita e de observar cuidadosamente as orações rituais e os jejuns, passava horas por dia fazendo orações suplementares e duas vezes realizou a peregrinação a Meca (o haje em 1965 e uma peregrinação umra em 1974). Ele seguia a interpretação mais estrita possível da xaria, fazendo com que seus filhos rezassem a partir dos sete anos de idade; seu filho Muhammad fez o jejum do Ramadã pela primeira vez com cinco anos de idade. Seus filhos eram proibidos até mesmo de desenhar, uma proibição um tanto surpreendente, já que, mesmo no mundo muçulmano, a condenação da xaria à criação de imagens é interpretada de maneira bastante liberal até pelas pessoas mais piedosas. Além de sua própria piedade, Vâlsan era também modesto e ascético. Ele se recusava a assumir o «papel» de xeique, vestindo-se com roupas ocidentais comuns, em lugar de «vestimentas chiques» (uma referência sarcástica à encenação de Schuon), nunca dava palestras públicas a despeito de diversos convites e vivia de maneira extremamente simples. Como diplomata romeno durante a Segunda Guerra Mundial, ele vivera com grande conforto; após abandonar o serviço diplomático, Vâlsan foi reduzido «à maior pobreza», com a qual parecia não se importar, morando primeiro em hotéis baratos e depois num conjunto habitacional do governo. Sua primeira esposa não conseguiu se adaptar a esse novo estilo de vida e o deixou; durante alguns anos, Vâlsan criou seu primeiro filho, Ahmad, sozinho e na pobreza. Ele voltou a se casar como o faria um xeique no mundo muçulmano: sua segunda esposa, Khadija, era filha de um de seus seguidores mais próximos, René Roty, e com ela Vâlsan teve doze filhos. Mais tarde, sua principal fonte de renda foram as allocations familiales (subsídios familiares), ajudas pagas pela
previdência social francesa proporcionalmente ao tamanho da família. Tais ajudas eram complementadas pela diminuta renda procedente da revista Études traditionnelles e por pequenas doações ocasionais de seus seguidores. Vâlsan também seguiu o padrão islâmico e foi um renomado erudito. Ele se esforçou muito com seu árabe, descrito por fontes confiáveis como excelente.86 Além disso, fez uma imersão nos textos de Ibn al-Arabi, de quem reuniu uma considerável coleção de manuscritos, e em cujos escritos baseou a maior parte de seus ensinamentos.87 Também editou e publicou diversos textos de Ibn alArabi em tradução francesa.88 A ordem de Vâlsan seguiu seu exemplo — piedoso e ortodoxo —, com uma certa ênfase na erudição para aqueles que tivessem capacidade para tanto. Nenhum desvio da xaria era permitido, e a maioria de seus seguidores frequentava um dhikr uma ou até mesmo duas vezes por semana.89 Em 1951, quando se separou de Schuon, Vâlsan tinha apenas cerca de uma dúzia de seguidores; no momento de sua morte, em 1974, seus seguidores eram talvez uma centena,90 um número respeitável, raramente ultrapassado por xeiques no mundo islâmico.91 Alguns dos primeiros seguidores de Vâlsan tinham se filiado originalmente à ordem Alawiyya pelas mãos de Schuon, tanto em Paris quanto na zawiya de Amiens administrada por Louis Caudron, o ex-patrão do suíço, que abandonou o Islã após o rompimento entre Guénon e Schuon. Roty era um desses Tradicionalistas da geração do pré-guerra, que se tornou muçulmano encorajado por Guénon, em 1932, e que, assim como muitos outros Tradicionalistas, vinha de um ambiente artístico. Oleiro, ele era neto de Oscar Roty, o famoso gravador do século XIX, cuja obra Semeuse [Semeadora] se tornara um dos símbolos de maior sucesso do mundo moderno: tratava-se da figura da República estampada na maioria das moedas francesas entre 1897 e 2002.92 Entre outros seguidores de primeira hora de Vâlsan estavam um marquês falido da nobreza pré-napoleônica e um jovem estudante francês chamado Michel Chodkiewicz.93 Filho de um magistrado,
Chodkiewicz leu La crise du monde moderne aos dezoito anos de idade enquanto fazia o serviço militar na base aérea de Tours, seguido do restante da obra de Guénon. Em 1950, tornou-se muçulmano após ser apresentado a Vâlsan pelo sobrinho do marquês falido. Chodkiewicz foi o primeiro Tradicionalista francês a dar início ao que pode ser chamado de «vingança Tradicionalista contra a Sorbonne». Seu projeto inicial de tese de doutorado sobre Ibn alArabi teve de ser abandonado devido à resistência de Louis Massignon, que dominava os estudos islâmicos na França durante a década de 1950 e não tinha a menor simpatia por Ibn al-Arabi, e também devido à necessidade de sustentar sua família. Chodkiewicz seguiu seu xeique em muitas coisas, mas não em seu estilo de vida espartano, conseguindo um emprego na grande editora francesa Éditions du Seuil e lá permanecendo até se aposentar em 1989, como presidente da empresa. Apesar de sua carreira, ele continuou estudando Ibn al-Arabi, publicando diversos trabalhos e traduções de alta qualidade sobre sua obra, bem como sobre a obra de seu seguidor moderno, o emir Abd al-Qadir (de cujo círculo em Damasco o xeique de Aguéli, Illaysh, participara). Os trabalhos de Chodkiewicz receberam o devido reconhecimento e, em 1982, ele começou a dar aulas na Sorbonne como professor adjunto,94 ao mesmo tempo que presidia a editora. Após sua aposentadoria das Éditions du Seuil, foi nomeado professor titular, cargo do qual se aposentou em 1994, reconhecido como uma das figuras mais importantes da França no campo dos estudos islâmicos. Outras figuras do mesmo tipo vieram da ordem de Vâlsan. Uma delas foi Charles-André Gilis, um acadêmico belga e Tradicionalista. Ainda outra foi Denis Gril, que se tornara muçulmano aos seis anos de idade, quando seus pais se filiaram à ordem Alawiyya. Ele completou seus estudos universitários em Meca e deu início a uma importante carreira acadêmica de estudos islâmicos na França, tornando-se professor de árabe e islamologia na universidade da Provença, o principal centro francês para o estudo do Islã. Gril seguiu Vâlsan e Chodkiewicz ao concentrar seus estudos nos textos de Ibn al-Arabi.
O Islã ocidental do fim do século XX, assim como o Islã no próprio Oriente Médio, é dominado não pelo sufismo, mas pelo movimento que o substituiu durante o século XIX como influência dominante: o salafismo, movimento modernista e reformista que possibilitou a ascensão do islamismo. No entanto, existe na Europa uma forte corrente sufi contrária a isso, pela qual a ordem de Vâlsan é parcialmente responsável. Chama a atenção o fato de que existam mais clássicos sufis traduzidos para o francês do que para o inglês, muitos deles obras de Vâlsan, Chodkiewicz, Gilis e Gril; a influência dos três últimos na academia francesa impulsionou ainda mais essa tendência.95 A influência de Vâlsan também é visível para além da academia. O filho de Roty, Yaqub, por exemplo, deu aulas na mesquita de Paris e publicou uma série de livros infantis sobre o Islã.96 Sob esse aspecto, a ordem de Vâlsan teve sobre a França um efeito semelhante ao que Guénon havia previsto para sua elite em Orient et Occident, no ano de 1924. Apesar de ser o mais próximo de um xeique sufi normal quanto é possível no Ocidente, Vâlsan permaneceu um Tradicionalista. Sob sua editoria, a revista Études traditionnelles desenvolveu uma clara ênfase no Islã, mas continuou a publicar material sobre outras religiões. Vâlsan manteve-se interessado na maçonaria, apesar de não ter sido maçom.97 Segundo seu filho Muhammad, sua principal motivação foi sempre o caminho esotérico que teve início na Romênia durante a década de 1930, mas sua prática esteve completamente fundada no exemplo do Profeta Maomé e nas obras de Ibn al-Arabi, a ponto de desenvolver a teoria de que as obras de Guénon também tinham seu fundamento em Ibn al-Arabi98 (o que, como vimos, não era o caso). Ele traçava uma distinção clara entre religião e metafísica: «A unidade esotérica das formas tradicionais [...]», escreveu, «diz respeito apenas aos princípios universais [...] e é real apenas para os aspectos mais elevados da metafísica».99 Essa abordagem, como veremos, é muito diferente da de Schuon. A explicação da razão por que Vâlsan, e seus seguidores, era tão diferente de outros sufis Tradicionalistas provavelmente se encontra em suas primeiras experiências, especialmente em seu período com
Petrache Lupu na Romênia. O movimento de Lupu era, em termos Tradicionalistas, um exemplo claro de «contrainiciação» e certamente imprimiu em Vâlsan uma aversão duradoura a tudo o que cheirasse a heterodoxia. Isso explica sua aversão à abordagem de Schuon, e sua experiência com este «vacinou-o» — nas palavras de seu filho Muhammad — contra a tentação de qualquer coisa que não fosse a mais estrita ortodoxia. O destino dos seguidores de Vâlsan após sua morte, porém, lança dúvidas sobre a estabilidade de sua mistura entre Tradicionalismo e Islã. Como costuma acontecer no mundo islâmico após a morte do xeique fundador nas ordens sufis recém-criadas, os seguidores de Vâlsan se dividiram em diversos grupos. Um deles foi liderado por Roty até sua morte; os demais, por outros seguidores. Um deles foi liderado pelo segundo filho de Vâlsan, Muhammad. No fim do século XX, três desses grupos sobreviviam em diversas partes da França, e os líderes de todos eles haviam se unido a ordens sufis regulares no mundo árabe: um deles a um ramo da ordem Alawiyya em Damasco, outro, à maior ordem da Síria na época (o ramo da ordem Naqshabandiyya liderada pelo mufti de Damasco), e o terceiro, a um ramo norte-africano da ordem Darqawiyya.100 No escritório de um desses sucessores de Vâlsan, as paredes estão cobertas de livros em árabe, bem como de livros sobre o Islã escritos por acadêmicos ocidentais. As obras de Guénon são relegadas a um espaço inacessível atrás de um sofá.
A ordem Ahmadiyya de Pallavicini Guénon e o Tradicionalismo são muito mais importantes para a ordem Ahmadiyya em Milão, ainda que sem chegar ao ponto da «Guénolatria». A mais visível das ordens Tradicionalistas foi fundada, como a Alawiyya de Vâlsan, por um antigo seguidor de Schuon, Abd al-Wahid Pallavicini, um italiano. Assim como Maridort, Pallavicini vinha de família rica. Ele leu Guénon em tradução italiana durante a Segunda Guerra Mundial, e, terminado o conflito, entrou em contato com Evola (o tradutor
italiano do francês). Evola lhe disse que seus interesses se concentravam mais no poder do que na espiritualidade e indicou-lhe Burckhardt. Pallavicini viajou a Lausanne e se filiou à ordem Alawiyya de Schuon em 1951.101 Pouco se sabe a respeito dos anos de Pallavicini como schuoniano, exceto que viajou longamente pelo Oriente e que se casou com uma japonesa praticante do zen. O próprio Pallavicini descreveu esses anos como «a vida de um vagabundo».I Em meados da década de 1960, porém, Pallavicini deixou a ordem de Schuon, que passara a ver como demasiadamente afastada do verdadeiro Oriente e como um Islã «romantizado» — claramente uma referência à paixão de Schuon pela «encenação». Mais tarde, Pallavicini também citaria como razão para sua ruptura a posição de Schuon contra Guénon na questão da validade dos sacramentos cristãos, algo estranho, dada a sua própria ligação com cristãos, além do tempo transcorrido entre a controvérsia e seu posicionamento sobre ela. Há também sugestões de que Pallavicini teria tido razões pessoais — que não o depreciam de maneira nenhuma — para se separar de Lausanne.102 Assim como Hartung, Pallavicini continuou muçulmano e Tradicionalista após deixar a ordem Alawiyya. Ele passou alguns anos sem uma ordem sufi própria, mas ainda em busca de algo. Em 1971, quando trabalhava como pianista em Singapura, Pallavicini ouviu falar de Abd al-Rashid ibn Muhammad Said, o mais importante xeique do país na época. Ele visitou sua zawiya e entrou em sua ordem sufi, a Ahmadiyya. A ordem era de origem árabe, mas a família do xeique Abd al-Rashid ibn Muhammad Said, nascido na Malásia, teve papel importante em sua difusão. Apesar do nome em comum, ela não tem nenhuma conexão com o controverso movimento originado na Índia britânica.103 Pallavicini passou algum tempo em Singapura com a ordem Ahmadiyya, mais com um dos muqaddams (que falava inglês fluente) do xeique Abd al-Rashid do que com o próprio, que falava apenas árabe e malaio (que Pallavicini não dominava) e que tinha muitas outras preocupações. Pallavicini recebeu uma boa base em sufismo, a despeito dessa falta de contato. Apesar de não ter interesse no
Tradicionalismo, o muqaddam, nativo de Singapura mas de origem malaia, conhecia bastante bem o sufismo e os dilemas da modernidade e do multiculturalismo — Singapura é um lugar muito moderno e os muçulmanos são uma minoria no país. Como Schuon antes dele, Pallavicini completou apenas a primeira fase da preparação sufi (ou, ao menos, da preparação da ordem Ahmadiyya). Apenas um problema maculou esse período: uma disputa sobre a unidade transcendente das religiões, a versão schuoniana do perenialismo. Foi essa mesma doutrina, caracteristicamente Tradicionalista, que criara dificuldades durante a estada do próprio Schuon em Mostaganem. Pallavicini recusou-se a aceitar a posição islâmica padrão ensinada por seu xeique, mesmo depois de este ter obtido uma fatwa (a opinião abalizada, mas não vinculante, de um importante estudioso) de Al Azhar no Cairo, o mais próximo que existe no Islã de um órgão supremo.104 Apesar dessa disputa, antes de Pallavicini deixar Singapura e retornar à Itália, o xeique Abd al-Rashid deu-lhe uma ijaza que o autorizava a transmitir a ordem Ahmadiyya. A existência dessa ijaza foi questionada desde então, mas fontes na ordem Ahmadiyya em Singapura e na Malásia confirmam-na. Essas mesmas fontes relatam que, posteriormente, o xeique Abd al-Rashid ficou «muito irritado» com Pallavicini, mas não sabem dizer a razão.105 A causa dessa irritação pode estar ligada ao perenialismo do italiano. Ao retornar à Itália, Pallavicini não tinha intenção de fundar sua própria ordem, o que aconteceu apenas em 1980 como uma consequência acidental de seu envolvimento no diálogo islâmicocristão durante a década de 1970. Tal diálogo foi resultado do Concílio Vaticano II (1962-65), que reconheceu que o Espírito Santo pode atuar fora da estrutura da Igreja e que todas as religiões contêm semina Verbi (sementes do Verbo). O Vaticano criou um Secretariado para não cristãos, renomeado depois Secretariado para Atividades Ecumênicas, que buscou a principal organização islâmica em Roma na época, o Centro Culturale Islamico d’Italia. O Centro possuía um conselho aparentemente grandioso, composto de embaixadores de diversos países islâmicos, mas poucos participantes ativos; em algumas ocasiões, as orações de sexta-feira eram
assistidas por pouco mais de cinco ou seis pessoas. Entre elas estava Pallavicini, e, dado seu excelente conhecimento da língua italiana, do Cristianismo e da cultura europeia, ele foi convidado a responder à abertura do Vaticano.106 Sua resposta foi entusiástica, antevendo a possibilidade de um front comum contra o que mais tarde chamou de «dessacralização da vida, reduzida ao simples bem-estar material»,107 ou seja, contra a modernidade e o materialismo. E poderia haver uma base melhor para o ecumenismo do que a doutrina da unidade transcendente? No entanto, a resposta da Igreja Católica foi desapontadora. A hierarquia não demonstrou interesse em discutir metafísica com Pallavicini e o Vaticano logo deixou de convidá-lo. A diocese de Milão (Pallavicini tinha residências tanto em Roma quanto em Milão) também não demonstrou interesse e nunca respondeu a sua proposta de construir uma «pequena Jerusalém» em parte de sua propriedade na cidade. Essa estrutura seria uma exemplo vivo da fé numa idade de trevas, uma zawiya construída ao lado de uma capela católica e talvez de uma sinagoga. Um rabino chegou a participar de uma reunião, mas o projeto foi abandonado e substituído por um Centro Studi Metafisici «René Guénon», um centro de estudos metafísicos para servir como «fórum para trocas fraternas, aberto a todos os que desejem aprofundar sua compreensão das doutrinas metafísicas tradicionais», cristãos e muçulmanos.108 Apesar de a hierarquia católica não ter demonstrado interesse em Pallavicini, diversas organizações católicas o fizeram. Ele foi frequentemente convidado pela Universidade Católica para falar em Roma, bem como por grupos como a Associação Católica dos Trabalhadores Italianos, além de ter sido publicado em revistas como Sagrado e Profano, o órgão de uma «associação de amigos» católica na Sicília.109 Alguns católicos também frequentaram as reuniões do Centro de Estudos Metafísicos, em que leram Guénon. Como resultado, alguns se converteram ao Islã e se filiaram à ordem Ahmadiyya. Em 1980, Pallavicini realizou a primeira cerimônia do dhikr da ordem em Milão.
Em meados da década de 1990, a ordem Ahmadiyya de Milão tinha cerca de trinta ou quarenta seguidores, quase todos na casa dos vinte e muitos ou trinta e poucos anos de idade, a maioria italianos, alguns franceses. Todos vinham de ambientes similares aos de Pallavicini, pessoas cultas e bem-educadas. Esses membros da ordem formaram uma comunidade coesa; alguns trabalharam juntos em empresas fundadas por Pallavicini, incluindo um estúdio de design e uma pequena editora. Os que viviam em Milão encontravam-se toda semana, os de fora, todo mês, para atividades que simbolizavam a natureza dual da ordem Ahmadiyya como sufi e Tradicionalista. Toda semana, eles rezavam juntos ao meio-dia a oração de sexta-feira e depois saíam para almoçar em uma pizzaria do bairro, cujo dono descreveu-os, no ano 2000, a um repórter de jornal como «boa gente» [brava gente] e excelentes fregueses.110 À noite, eles se encontravam para «discussões tradicionais», ou seja, discussões sobre o Tradicionalismo. Essas discussões eram seguidas por uma cerimônia do dhikr, muito semelhante àquela realizada pela ordem Ahmadiyya em Singapura.112 Apesar de Tradicionalista, a ordem Ahmadiyya era também muçulmana. Pallavicini evitou o universalismo de Schuon ou qualquer coisa que sugerisse sincretismo, ainda que de maneira menos escrupulosa que Vâlsan; ele e seus seguidores seguiam cuidadosamente a xaria. Exceto por seu perenialismo, não se conhece nada na ordem Ahmadiyya que se afaste do Islã encontrado no mundo muçulmano.111 Pallavicini, assim como Vâlsan, mas ao contrário de Schuon e do próprio Guénon, realizou a peregrinação haje a Meca nada menos do que três vezes.113 Apesar de muçulmana, a ordem Ahmadiyya permaneceu Tradicionalista — esperando a recuperação do esoterismo tradicional pelo catolicismo, e, em alguns casos, aparentando ser muçulmana mais devido ao Tradicionalismo do que por enxergar o Islã como a verdadeira religião da humanidade. A ordem é também Tradicionalista no sentido de fazer proselitismo do Tradicionalismo muito mais do que do Islã. Nas palestras de Pallavicini, não é ao Corão que se apela como autoridade suprema, mas a Guénon.114
Os membros da ordem dedicam uma quantidade considerável do tempo e da energia a um tipo mais direto de proselitismo do que se vê em qualquer outra parte do movimento Tradicionalista. Os seguidores de Pallavicini não escondem seu Islã — o próprio xeique tem uma longa barba e se veste de maneira imponente em uma túnica gallabiyya — e frequentam praticamente qualquer espaço onde possam ser ouvidos, de organizações católicas a conferências acadêmicas, de palestras públicas em que respondem a perguntas do público com discursos Tradicionalistas até — ao menos em uma ocasião — uma discoteca em Milão.115 Os efeitos dessa atividade são variados. Alguns acadêmicos italianos, por exemplo, gostariam de realizar conferências que não fossem interrompidas por Tradicionalistas.116 Muito mais efetivas na difusão da mensagem Tradicionalista têm sido as aparições de Pallavicini na imprensa italiana, que tiveram início em 1986, quando ele participou de um «Dia de Oração Pela Paz» em Assis, organizado pelo papa João Paulo II, como membro de uma das diversas delegações islâmicas. O encontro de Assis começou como uma reunião de doze religiões convidadas, mas, diante das crescentes críticas, o papa mudou a ênfase do evento para a paz, em lugar do ecumenismo.117 A despeito dessa mudança, Pallavicini emitiu uma nota à imprensa sobre o encontro entre as religiões, e foi entrevistado por diversos jornais. A imprensa italiana gostou de Pallavicini. Seu tom era conciliador, especialmente com o catolicismo. Ele falava bem, e muitos apreciaram suas opiniões «espiritual e intelectualmente muito elevadas», nas palavras de Il Giornale.118 Um italiano no comando de uma ordem sufi também era notícia, apesar do Corriere della Sera, um dos principais jornais sérios do país, ter ido longe demais ao descrevê-lo como o líder de «uma das mais importantes irmandades sufis».119 À medida que o interesse do público italiano pelo Islã crescia no início dos anos 1990 em resposta à Guerra do Golfo e à chegada de um número significativo de imigrantes de países muçulmanos, o interesse por Pallavicini crescia ainda mais. Em 1991 e 1992, ele foi o muçulmano mais entrevistado da Itália.120
O mesmo interesse pelo Islã que beneficiou Pallavicini — gerado pela chegada de um grande número de imigrantes muçulmanos no país — foi também a fonte de suas primeiras grandes dificuldades. Quando ele começou seu diálogo islamo-cristão na década de 1970, não havia uma comunidade muçulmana significativa na Itália. Na década de 1990, tal comunidade já existia, e muitos de seus líderes tinham profundas objeções ao que dizia Pallavicini. Esses líderes não tinham problemas com o fato de Pallavicini ser italiano — alguns deles também o eram, convertidos. A ofensa, segundo seu ponto de vista, era apresentar o sufismo e o Tradicionalismo como sendo o Islã. E Pallavicini era culpado de ambas as acusações. De uma perspectiva histórica, ele estava plenamente justificado em sua apresentação do sufismo: apesar de muitos muçulmanos contemporâneos — criados por uma educação salafista ou wahhabita — rejeitarem o sufismo como não islâmico, é impossível negar que, por pelo menos mil anos, ele foi parte integral do Islã. No entanto, sob qualquer ponto de vista, exceto o Tradicionalista, a apresentação feita por ele das posições Tradicionalistas e, mais importante, Perenialistas como sendo o Islã não pode ser considerada correta. Já em 1986 Pallavicini foi acusado por escrito de «preencher as lacunas em seu entendimento da doutrina islâmica com teorias pessoais, cuja enunciação é uma forma clara de kufr (apostasia)».121 Na década de 1990, a hostilidade contra Pallavicini tornou-se tão marcada que, certa vez, ele foi fisicamente expulso do centro islâmico mais importante de Milão. Em outra ocasião, uma manifestação foi organizada em frente a uma livraria em Roma onde ele dava uma palestra.122 Pallavicini respondeu na mesma moeda, acusando os convertidos entre seus oponentes de «incitarem a revolta e o terrorismo [...] e de, aparentemente, desejarem eliminar seu passado cristão, talvez não tanto por ser cristão, mas por ser seu passado».123 De fato, foram dois convertidos que causaram os maiores danos a Pallavicini, circulando um boletim que reproduzia uma carta do xeique Abd alRashid negando ter entregue uma ijaza a seu discípulo italiano.124
Apesar de ser quase certo que se tratava de uma falsificação,125 a carta recebeu amplo reconhecimento. No momento culminante dessa animosidade, em 1992, Pallavicini escreveu: «Se nas igrejas eles praticamente deixaram de falar de Deus, e falam apenas na paz, nas mesquitas só se fala em guerra. Por um lado, os muçulmanos parecem ter se esquecido até mesmo de sua Profissão de Fé, que afirma que ‹não há outro deus senão Deus› a fim de idolatrar sua própria religião, chegando quase ao ponto de afirmar que não existe deus nem verdade exceto no Islã».126 Essa afirmação resume bem o problema. Por um lado, não há nenhum «quase» aí: praticamente todos os muçulmanos não Tradicionalistas afirmariam sem hesitar que não existe acesso correto a Deus, nem verdade suprema, exceto no Islã. Por outro lado, havia uma disputa real entre Pallavicini e seus adversários a respeito do lugar ocupado pela guerra no Islã. Durante anos Pallavicini se esforçara para apresentar o Islã aos italianos como uma religião, e não como um credo político belicoso. Muitos de seus adversários, no entanto, eram islamistas radicais, para quem a sugestão de que o Islã pudesse excluir o político era pouco mais do que uma mentira. As relações entre Pallavicini e a comunidade muçulmana mais ampla na Itália tornaram-se muito ruins, mas seu filho Yahya e Bruno Guiderdoni, um astrofísico e polímata francês, dois de seus seguidores com habilidades diplomáticas mais refinadas, tiveram melhor sorte. Ambos vieram a manter relações razoáveis com a comunidade muçulmana na Europa e foram bem-sucedidos na difícil tarefa de apresentar o Islã sob uma ótica favorável ao público ocidental.127 Durante muitos anos, Guiderdoni até apresentou o único programa islâmico da televisão francesa, intitulado «Connaître l’Islam». Na década de 1990, ele se tornou cada vez mais conhecido como conferencista sobre o Islã, bem recebido por muçulmanos e não muçulmanos na França e no exterior. A despeito de suas dificuldades com outros muçulmanos na Itália, Pallavicini manteve boas relações com organizações oficiais muçulmanas no exterior, sendo convidado com frequência para conferências islâmicas com patrocínio estatal, apresentado a
ministros e assim por diante.128 Em parte como resposta a esses conflitos e contatos, alguns dos objetivos de Pallavicini começaram a mudar durante a década de 1990. Abandonando o diálogo islamocristão em nível oficial, ele começou a se concentrar cada vez mais no Islã, substituindo o projeto de construir uma «pequena Jerusalém» pelo de construir uma mesquita no terreno de sua propriedade em Milão. O «Centro de Estudos Metafísicos» tornou-se a «Associação Italiana para Informação sobre o Islã» e, por fim, em 1997, a Comunità Religiosa Islamica [Comunidade Religiosa Islâmica] ou CoReIs. A CoReIs entrou na acirrada competição para assinar uma intesa [acordo] com a República Italiana. A fim de equilibrar a concordata entre a Itália e o Vaticano, a República havia embarcado em uma série de acordos menores com outros grupos religiosos, concedendo diversos privilégios, incluindo verbas estatais para certos fins. Estava claro quem deveria negociar e se beneficiar do acordo para o judaísmo, por exemplo, e também para diversas igrejas cristãs não católicas hierarquicamente organizadas. Muito menos claro, porém, era quem podia alegar ser o representante do Islã. Apesar de os muçulmanos poderem se organizar de várias maneiras para diversos propósitos, o Islã como religião não possui nenhuma estrutura organizacional. Assim, quase todas as organizações islâmicas na Itália queriam assinar uma intesa, o que levou muitos observadores a especular que nenhuma jamais viria a ser assinada. O fato de Pallavicini, que representava diretamente apenas algumas dúzias de indivíduos, ter a expectativa de representar o Islã perante a República Italiana pareceu algo extraordinário a muitas pessoas. A lógica de Pallavicini era a de que apenas a CoReIs era capaz de representar o Islã puramente italiano, bem como o Islã como religião, e não como ideologia política.129 Foi o projeto de mesquita que substituiu a «Pequena Jerusalém» que devolveu Pallavicini à fama nacional em 2001, quando ele apresentou o requerimento necessário para alterar o uso de seu terreno para «mesquita». O que se seguiu foi uma confusão.130 Apesar de, àquela altura, haver milhares do que, na prática, poderiam ser consideradas mesquitas espalhadas pela Itália, todas elas, exceto uma, recebiam outra denominação
oficial, geralmente a de centros culturais. A única exceção era a altamente oficial Mesquita de Roma, planejada desde 1963 e finalmente inaugurada em 1995. Assim, Pallavicini parecia estar fazendo um requerimento para construir «a» Mesquita de Milão, a segunda no país. Seu pedido recebeu muita atenção e gerou um sentimento anti-imigração. «Sim à liberdade religiosa», dizia um cartaz num protesto de rua, «não à transformação do bairro num gueto!»131 O fato de Pallavicini e os membros de sua ordem, todos italianos, serem incapazes de transformar seu bairro de Milão num gueto de imigrantes foi algo que escapou aos que protestavam, ou algo que pouco lhes importava. O Corriere della Sera notou que semelhante ameaça dificilmente parecia vir «desses cavalheiros de paletó e gravata, com a aparência de advogados ou executivos». Mas o conflito estava armado. O partido Lega Nord, de direita, organizou um «referendo» contra a mesquita, buscando votos na porta das igrejas aos domingos. O cardeal arcebispo de Milão, que não havia respondido às aproximações de Pallavicini nos tempos do diálogo islamo-cristão, assinou uma petição à cidade pedindo tolerância. A Lega Nord negou ser a organizadora da manifestação de um «Front Cidadão», até então desconhecido, em frente à zawiya da ordem Ahmadiyya. A polícia de choque foi chamada para separá-los de uma manifestação contrária convocada por um grupo anarquista. Por fim, Pallavicini venceu a votação na Câmara de Vereadores e a controvérsia desapareceu junto com as manifestações, ao menos por um tempo.132 No entanto, no momento em que este livro estava sendo escrito, não estava claro se Pallavicini havia conseguido o dinheiro necessário para a construção da mesquita.
Tradicionalismo maçônico Para fins de completude, revisarei brevemente as várias lojas Tradicionalistas que, assim como as ordens sufis estudadas, seguiram adiante de maneira independente após a morte de Guénon. A primeira dessas, a Grande Tríade, ainda funcionava no final do século XX sob um venerável mestre Tradicionalista (um físico nuclear) e com
membros Tradicionalistas, mas deixara havia muito de estar à frente das tentativas de restaurar a tradição no Ocidente. Após a morte de Guénon remover uma influência estabilizadora, a outra loja maçônica Tradicionalista dos primeiros tempos — a Trois Anneaux — afundou em 1953, quando Tourniac (católico) e Reyor (muçulmano) tiveram um desentendimento. Esse acontecimento marcou o fim da participação maçônica de Reyor, mas Tourniac continuou como a grande figura da maçonaria Tradicionalista, aproximando-a do coração da Grande Loja Nacional da França. Esta era uma terceira obediência (distinta da Grande Loja Francesa), fundada em 1918 por maçons que haviam abandonado a Grande Oriente, e exigia a crença no Grande Arquiteto do Universo. Tratavase de uma organização menor do que as outras duas, mas, ao contrário delas, era oficialmente reconhecida pela Grande Loja Inglesa. Tourniac ocupou diversas posições oficiais na Grande Loja Nacional a partir de 1960, tornando-se grão-prior em 1977, inferior apenas ao grão-mestre.133 Parte da autoridade de Tourniac na época vinha de sua conhecida associação com Guénon na década de 1940; por extensão, seu Tradicionalismo (bem como seus livros) dava maior visibilidade ao Tradicionalismo em geral.134 Ele também reviveu a Trois Anneaux sob outro nome em meados da década de 1970,135 dessa vez exclusivamente com membros cristãos e judeus — Tourniac estava particularmente interessado em uma concordância judaicocristã. No fim do século XX, essa loja «selvagem» havia criado diversas outras lojas Tradicionalistas em diversas partes da França,136 respondendo a Tourniac como uma espécie de grão-mestre (apesar de este termo não ser usado). Um maçom Tradicionalista não identificado sucedeu-o após sua morte. Além dessas atividades, Tourniac esteve envolvido em um ambicioso projeto Tradicionalista para restaurar as boas relações entre a maçonaria e a Igreja Católica. Tal projeto foi obra principalmente de Michel Riquet e de Jean Baylot, o primeiro, padre jesuíta, o segundo, maçom, deputado no Parlamento e chefe da polícia de Paris. Ambos estavam convencidos — em parte com base
em argumentos Tradicionalistas — da complementaridade entre a prática exotérica católica e a prática esotérica maçônica, exatamente como Tourniac.137 Suas atividades com vistas a esse fim se refletiram em publicações e organizações. Os três escreveram livros e artigos defendendo a compatibilidade entre a maçonaria e o catolicismo,138 e, no fim da década de 1960 ou início da de 1970, Riquet e Baylot fundaram em conjunto a Fraternité d’Abraham (Fraternidade de Abraão)139 como um protótipo para a cooperação maçônico-católica, não uma loja, mas uma commanderie (comenda, o termo usado para designar as divisões principais das ordens medievais, como os Cavaleiros de Malta), sob auspícios maçônicos. Não se sabe que papel essas atividades desempenharam no gesto da Igreja Católica que mais se aproximou de uma reconciliação com a maçonaria, uma carta particular do cardeal Fanjo Seper, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, afirmando que era permitido a um católico ser membro de uma loja sob a autoridade da Grande Loja Nacional da França, a obediência a que pertenciam Tourniac e Baylot. No entanto, essa decisão foi revogada após 1983 por um prefeito posterior, o cardeal Ratzinger.140 O impacto mais duradouro desse grupo talvez tenha sido a aproximação entre a maçonaria Tradicionalista e a academia francesa. Em 1964, Baylot fundou um loja de pesquisa (que, como o nome sugere, não se ocupa de ritos, mas de pesquisas) batizada em homenagem a um arquiteto do início do século XIII chamado Villard de Honnecourt. Essa loja organizava palestras e publicava uma revista dedicada a questões maçônicas e Tradicionalistas; o principal conferencista em sua reunião inaugural foi Mircea Eliade, e sua revista obteve um reconhecimento geral. Além de diversos artigos de Tourniac, ela também publica o trabalho de uma série de acadêmicos da religião franceses com interesses Tradicionalistas, alguns deles maçons.141 A maçonaria Tradicionalista continuou a florescer. Outra loja Tradicionalista sob a autoridade da Grande Loja Francesa foi fundada na década de 1990, chamada Règle d’Abraham (Regra de Abraão) e dedicada não apenas a fins similares aos de Tourniac, Baylot e
Riquet, mas ao entendimento entre as três religiões abraâmicas (não apenas o judaísmo e o Cristianismo, mas também o Islã), baseada sobretudo na obra de Ibn al-Arabi.142 A expressão maçônica do Tradicionalismo é notavelmente diferente de todas as outras ao operar com a plena aprovação das autoridades relevantes. A razão para isso talvez seja o fato de que a maçonaria está mais próxima do meio em que o Tradicionalismo teve origem do que qualquer outra de suas expressões.
I No sentido etimológico do termo, «errante», «que vagueia». [N. T.]
PARTE III A EXPANSÃO DO TRADICIONALISMO
7. A ORDEM MARYAMIYYA
Após a morte de Guénon em 1951, a ordem Alawiyya de Schuon (que mudou seu nome para «Maryamiyya» na década de 1960 por razões que serão explicadas mais adiante) desenvolveu-se de maneira independente do restante do movimento Tradicionalista. Para seus seguidores, Schuon havia tomado o lugar de Guénon como o pai do Tradicionalismo. Enquanto alguns membros mais velhos da ordem Maryamiyya, como Martin Lings, nunca se esqueceriam de Guénon, para a maior parte dos demais que serão discutidos a partir de agora, o francês era uma figura distante. O próprio Schuon passou a minimizar sua dívida para com Guénon, dando-lhe crédito por pouco mais do que seu conhecimento do Vedanta e da metafísica. Guénon, segundo ele, havia sido «um matemático, um maçom e um ocultista», o que não era o bastante.1 Duas tendências emergiram entre a década de 1960 e a década de 1990. Por um lado, a ordem Maryamiyya (como passarei a chamá-la daqui em diante) e os seguidores não muçulmanos de Schuon cresceram em tamanho e importância, superando todas as ordens Tradicionalistas consideradas até aqui. Por outro lado, o universalismo de Schuon também se desenvolveu, bem como as ideias que tinha a respeito de sua própria função. Cedo ou tarde, a evolução nos pontos de vista de Schuon teria reflexo no grupo por ele liderado, mas sempre houve uma defasagem temporal, e alguns membros da ordem Maryamiyya não se deram conta de certos desenvolvimentos até o final. Os seguidores de Schuon logo se tornaram o principal grupo Tradicionalista. A maioria dos ocidentais inspirados a embarcar em uma jornada espiritual pela leitura de obras Tradicionalistas e que buscavam um mestre ortodoxo numa tradição espiritual com uma iniciação válida voltou-se para Schuon em busca de direção. Eles o fizeram em parte por falta de alternativas de fácil acesso (ao menos
fora de Paris, Turim e Milão) e em parte devido à posição cada vez mais central de Schuon na rede de escritores e de publicações Tradicionalistas. Em certa medida, essa tendência também se deveu ao recrutamento de indivíduos cuidadosamente selecionados capazes de ser membros da elite.
A VIRGEM MARIA Em 1943, o «amor infeliz» de Schuon por Madeleine chegou ao fim em Lausanne; ou melhor, transformou-se no «amor cósmico da amada». Cinco anos depois, na idade um tanto avançada de 42 anos, Schuon casou-se pela primeira vez. Catherine Feer, sua esposa, tinha então 25 anos e era a discípula que ele havia presentado com o livro Black Elk Speaks em 1948. Segundo um relato não confirmado, Schuon decidiu casar-se com ela após receber um sinal, do mesmo modo que se tornara muçulmano em Paris após um sinal. Catherine Schuon, filha de um diplomata e criada principalmente nas embaixadas suíças na Argentina e na Argélia, tinha ideias mais amplas do que as de seu marido. Nas palavras de um observador simpático, «artista por temperamento e organizadora meticulosa, ela ajudou a conferir um mínimo de regras básicas à crescente comunidade [em Lausanne]».2 Aos olhos de outros, que claramente se ressentiam de sua influência e de suas atividades, ela era excessivamente ambiciosa, para si mesma e para o marido, e sua «organização» da comunidade não era bem-vinda. Uma de suas primeiras ações foi organizar os seguidores de Schuon para sustentarem melhor o seu xeique, garantindo sua mudança primeiro para um apartamento maior e depois, em 1953, instalando-o em uma boa casa com uma zawiya apropriada. Mediante as contribuições recebidas, esse conjunto foi construído na agradável comuna de Pully, nos arredores de Lausanne.3 Além de se encarregar de recolher as esmolas (zakat), ela logo começou a se envolver em aspectos da vida dos seguidores de Schuon que muitos acreditavam estar fora de sua competência, não importando quão artístico fosse o seu temperamento.4 Logo após a chegada de Whitall Perry (o rico
americano que acompanhou o enterro de Guénon junto com Martin Lings) e de sua esposa a Lausanne, Catherine Schuon sugeriu ao casal que comprasse um terreno adjacente ao seu e que construísse ali uma casa ao lado da sua, arranjando também para que Perry trabalhasse como motorista de Schuon, em suas palavras, um «privilégio» do qual ele desfrutou por 25 anos.5 Além de organizar assim o séquito de Schuon, Catherine uniu-se ao marido numa atividade que viria a se tornar cada vez mais importante, a pintura. Após seu casamento, Schuon começou a pintar com seriedade, abandonando por alguns anos a escrita de poesia. Uma de suas primeiras pinturas foi a de dois indígenas norteamericanos, um dos quais sem roupas, simbolizando o exotérico (vestido) e o esotérico (nu).6 O interesse de Schuon na espiritualidade indígena da América do Norte continuou a crescer, e, em 1959, o casal visitou os Estados Unidos pela primeira vez, a convite de Thomas Yellowtail, um indígena que eles haviam conhecido em Paris em 1953 e que se tornaria famoso. Eles se dirigiram primeiro à reserva Sioux em Pine Ridge, na Dakota do Sul, o antigo lar de Black Elk; em seguida, foram para Sheridan, em Montana, onde vivia Yellowtail. O casal levava consigo uma pintura feita por Schuon da Mulher Búfalo Branco, uma importante figura na mitologia Lakota.7 Um de seus objetivos com essa visita era o de ajudar a salvar da modernidade a tradição indígena norte-americana.8 No entanto, a religião indígena teve mais impacto sobre Schuon do que o oposto.9 Schuon havia descoberto as qualidades divinas da natureza quase dez anos antes, quando sua mulher levou-o às montanhas suíças pouco depois do casamento. Lá, ele teve a experiência de uma «liberação» que havia sentido antes apenas na zawiya da ordem Alawiyya em Mostaganem; em uma casa de madeira emprestada nas montanhas, ele aprendeu a desfrutar «dias totalmente próximos da natureza, dias medievais de algum modo».10 Assim como as montanhas da Suíça, a paisagem ao redor de Sheridan, no Wyoming, fazia Schuon recordar-se de Mostaganem.11 O que Mostaganem, as
montanhas suíças e as planícies do Wyoming têm em comum, claro, é que o mundo moderno fica muito longe. Além de encontrar-se com muitos indígenas norte-americanos, os Schuon participaram de uma série de danças indígenas, inicialmente como espectadores, mas envolvendo-se cada vez mais. O ponto alto da viagem do casal foi assistir à Dança do Sol em Fort Hall, Idaho. A Dança do Sol é o principal rito dos Sioux Oglala e dos Shoshone Crow, uma cerimônia complexa de três ou quatro dias de duração, realizada ao redor de uma «árvore sagrada» erguida para esse fim, durante a qual os participantes buscam a expiação por meio de sacrifícios e, em certo sentido, unem-se com o «Grande Sagrado» (por vezes chamado, de maneira controversa, de «Deus»). Os participantes não apenas jejuam durante um ou mais dias, mas oferecem também outras formas de provação, como olhar diretamente para o sol nascente ou cortar um pedaço de carne da parte superior do braço.12 Para Schuon, as cerimônias de abertura da Dança do Sol foram extremamente tocantes, «uma unificação com o Uno».13 No segundo dia, ele e sua esposa jejuaram com os participantes, apesar de permanecerem apenas como espectadores. Numa visita posterior ao local, já deserto, da Dança do Sol, Catherine Schuon dançou sozinha.14 Antes de retornar à Suíça, os Schuon foram adotados pelos Sioux, recebendo os nomes de Wicahpi Wiyakpa (Estrela Brilhante) e Wowan Winyan (Mulher Artista). A experiência foi decisiva para Schuon. Como escreveria mais tarde, ela ajudou-o a se recuperar «das feridas espirituais da juventude». Os Schuon voltaram aos Estados Unidos em 1963 para uma visita parecida de três meses de duração.15 Apesar dessa experiência, em 1965 Schuon havia caído em um estado de depressão, exacerbado pela asma.16 Nesse estado ele teve outra visão, a mais dramática até então: uma visita da Virgem Maria. Em um barco que ia da Europa para Tânger, no Marrocos, em 1965, Schuon estava sozinho em sua cabine: «Subitamente, fui arrebatado pela misericórdia divina de uma maneira especial. Ela chegou a mim internamente, sob uma forma feminina que não consigo descrever, e
soube que se tratava da Santa Virgem». Como resultado, Schuon «sentiu-se melhor, e se viu num êxtase de amor e alegria».17 A princípio, Frithjof Schuon teve dúvidas. Na estrada de Tânger a Tetuan, ele começou a retornar a seu estado anterior, e, quando ele e seu grupo pararam para passar a noite em um hotel em Tetuan, ele se sentiu fraco demais para sair com os outros. Sozinho no quarto, no entanto, o estado produzido por sua visão voltou e perdurou até o grupo chegar a seu destino, a cidade de Fez. Em Fez, ele voltou a ter preocupações e dúvidas, mas «à noite sobreveio novamente aquele conforto celestial que jorrava do essencial feminino [Urweibliche]», e, dessa vez, o estado durou até seu retorno à Suíça.18 Essas experiências uniram os dois temas de 1942-43: o «amor cósmico pela amada [...] como em amor materno», que Schuon havia sentido ao ver o bebê de Madeleine, e a atração à Virgem, sentida ao ver a estatueta numa vitrine de Lausanne. Ele havia percebido ocasionalmente a presença da Virgem entre 1942 e 1965, primeiro durante a ruptura com Guénon, por volta de 1949, quando «sentiu sua bênção», e uma vez durante o dhikr, sozinho em casa, em 1953. Nessa segunda ocasião, ele sentiu uma «poderosa presença», que identificou imediatamente como a Virgem.19 A princípio, Schuon não teve certeza sobre como interpretar suas experiências de 1965. A primeira questão era se elas representavam uma visão falsa ou verdadeira. Uma visão verdadeira, decidiu Schuon, podia ser distinguida de uma falsa pelo efeito benéfico que tinha em quem a recebia, e essa visão teve o efeito benéfico de libertá-lo do amor aos livros, aos jornais e ao teatro, nos quais ele percebeu que não conseguia mais se perder.20 Schuon não levou em conta, nesse contexto, outro efeito de sua visão: a «necessidade quase irresistível de estar nu como o bebê de Madeleine». Durante algum tempo após esse incidente, Schuon tirava a roupa sempre que ficava sozinho em casa.21 Após decidir que suas experiências representavam uma verdadeira visão, a questão seguinte era como interpretá-las. Sua conclusão final foi a de que a visão marcou a chegada de «uma relação especial com o Céu». A natureza exata dessa relação especial não está clara, mas,
uma vez que a Virgem Maria é «a encarnação da misericórdia divina e, ao mesmo tempo, da Religio Perennis»,22 parece certo que Schuon tomou-a como uma mudança em seu papel, passando de xeique da ordem Alawiyya (posição que lhe foi conferida por sua visão anterior, em 1937) para algo mais universal, acima e além do Islã. Antes de considerar as consequências dessa conclusão para os discípulos da ordem Maryamiyya, analisarei brevemente uma visão ainda mais dramática da Virgem Maria que Schuon teve no ano seguinte, em 1966, também no Marrocos. Schuon imaginou sua estatueta da Virgem, que «começou a se mover e a tremer levemente, e, à medida que o medo me tomava e o amor me arrebatava, eu soube: isso já não é um sonho, mas realidade». A Virgem apareceu, «mas não cabe a mim dizer mais nada», escreveu Schuon.23 A razão pela qual Schuon acreditou que não lhe cabia dizer mais nada por escrito foi, segundo diversos relatos, que a Virgem Maria estava nua. A nudez de Schuon e a possível nudez da Virgem fizeram com que algumas pessoas que não pertenciam à ordem Maryamiyya atribuíssem uma origem satânica a essas visões, mas o próprio Schuon claramente descartou tal explicação, ainda que não de imediato, já que ele se questionou a respeito da veracidade da visão ocorrida em 1965. O Islã mainstream tende a ver a nudez em termos exclusivamente negativos, mas imagens cristãs da Virgem frequentemente mostram um seio descoberto. Os perenialistas costumam ter familiaridade com o hinduísmo, no qual a nudez é um elemento estabelecido de certas práticas religiosas. Ramana Maharshi, o guru de Henri Hartung, por exemplo, passou a viver nu a partir dos dezessete anos de idade, ainda que não completamente, usando uma kaupina, uma estreita faixa que cobria seus genitais.24 A principal consequência dessas visões para Schuon parece ter sido sua decisão de que possuía uma missão universal, já que foi a partir desse ponto que a ênfase passou da ordem Maryamiyya para a religião perene no sentido mais amplo. Schuon decidiu também que possuía uma relação especial com a Virgem,25 bem como com Deus. Suas pinturas mudaram, e, a partir desse momento, ele e sua esposa
se concentraram na figura da Virgem Maria. As imagens da Virgem Maria pintadas por Schuon por vezes retratavam-na nua ou seminua, com os seios descobertos, «uma referência», como explicado, «ao desvelar da verdade no sentido da gnose, e à misericórdia libertadora».26 Schuon viu suas pinturas anteriores da Mulher Búfalo Branca como um «pressentimento» dessas imagens da Virgem Maria,27 o que representava um desenvolvimento importante, pois ele ligava sua experiência nos Estados Unidos em 1959 à experiência no Marrocos em 1965. Sua adoção pelos Sioux passou a ser vista como «sua união ao último elo [de uma corrente iniciática] de uma religião verdadeiramente primordial»,28 apesar de ele nunca se referir ao ocorrido como uma «iniciação», mas sim como uma «adoção».29 No fim da década de 1960, portanto, Schuon era um Tradicionalista com duas iniciações esotéricas: ele era muçulmano, com uma iniciação sufi da ordem Alawiyya, designado xeique em uma visão; mas era também universalista, com uma iniciação primordial dos Sioux, indicado para uma missão universal pela Virgem Maria em outra visão. Essa missão primordial passaria a substituir gradualmente o papel original de Schuon como xeique sufi. O resultado imediato disso tudo para os seguidores de Schuon foi menos dramático do que as consequências posteriores. Durante muitos anos, Schuon continuou a apresentar uma face essencialmente islâmica perante o mundo. Tudo o que aconteceu na década de 1960 foi uma mudança no nome de sua ordem, bem como em algumas de suas práticas diárias. Uma breve oração à Virgem foi acrescentada à litania diária, e as pinturas de Schuon foram agregadas aos seis temas como um foco informal para a meditação de seus seguidores.30 A data dessa segunda mudança não é conhecida, mas o fim da década de 1960 parece ser o período mais provável. O nome da ordem foi alterado para «Alawiyya Maryamiyya», geralmente abreviado para «Maryamiyya», adjetivo de Maryam, a forma árabe do nome Maria. Não parece provável que os membros da ordem conhecessem todos os detalhes das visões que conduziram a tais mudanças. O novo foco em Maryam foi justificado
primariamente em termos de seus simbolismo. A Virgem Maria seria a figura em que se reuniam as três religiões monoteístas, como «uma princesa judia da casa de Davi», «mãe do fundador do Cristianismo», que «ocupa no Islã o topo da hierarquia das mulheres». A Virgem Maria «ama as três religiões e a religião em geral, assim como nós [membros da ordem Maryamiyya]».31 A devoção de Schuon à Virgem Maria não era sincretismo, explicou um Tradicionalista, já que «Maria é frequentemente venerada no Islã com muito fervor, como é possível ver em Éfeso», em que «muçulmanos e cristãos» rezam em um santuário chamado Maryemana Evi (a casa de Maria).32 A questão não é tanto se essas explicações são justificadas (e, de um ponto de vista islâmico, não o são),33 mas sim que essa é a maneira como muitos membros da ordem Maryamiyya justificavam a si mesmos sua ênfase na Virgem Maria. O uso das pinturas de Schuon como foco informal de meditação era parcialmente explicado do seguinte modo: «Ninguém é obrigado a se interessar por elas», escreveu um importante membro da ordem na década de 1980, «mas todos são obrigados a respeitá-las, já que elas emanam do xeique e refletem aspectos de sua personalidade e de sua experiência».34 O fato de Schuon «estar sempre convencido de que tudo o que fazia tinha um caráter sacro», nas palavras de um de seus seguidores mais antigos, explica a incrível franqueza de seus Erinnerungen und Betrachtungen: detalhes que nos parecem privados e demasiado humanos evidentemente pareciam possuir para ele um sentido além do simplesmente pessoal. Por volta dessa época, os seguidores de Schuon começaram a formular seus próprios textos canônicos, compostos de breves composições de uma ou duas páginas escritas pelo próprio xeique, a mais antiga datando da década de 1930, a maioria posterior a 1951. Esses textos tratavam de uma ampla variedade de problemas ou questões espirituais em potencial, e mais tarde foram compilados num Livre des Clefs [Livro de chaves].35 As entradas eram numeradas para facilitar a referência, de modo que um membro da ordem poderia aconselhar um colega mais jovem a «ler o texto número 258». Apesar de seguirem o costume islâmico de começar com «em
nome de Deus, o clemente e misericordioso», os textos geralmente tratavam dos problemas do momento em termos mais Tradicionalistas do que islâmicos, baseando-se em fontes hindus tanto quanto no Corão e nos hadith. Os textos centrais dos seguidores de Schuon eram, portanto, Tradicionalistas e não islâmicos.36 Outra flexibilização da xaria ocorreu por volta dessa época. Em 1965, quando Schuon contraiu um segundo matrimônio (permitido pela xaria, ainda que não pela lei suíça), a cerimônia não foi organizada seguindo padrões islâmicos, mas Tradicionalistas. A nova esposa, seguidora de Schuon, já era casada com outro de seus seguidores. Enquanto a xaria exigiria que ela se divorciasse do primeiro marido e esperasse alguns meses antes de voltar a se casar, Schuon permitiu que ela continuasse casada e morando com seu marido original e que se casasse com ele [Schuon] «verticalmente». A distinção entre o vertical (aquilo que liga as pessoas a Deus) e o horizontal (aquilo que é puramente deste mundo) deriva não da xaria, mas da metafísica ocidental, e foi usada no livro de Guénon intitulado Symbolisme de la croix [Simbolismo da cruz]. O «casamento vertical» de Schuon — chamado por alguns seguidores tardios de «casamento espiritual» — foi, nas palavras de Catherine Schuon, um «acerto para satisfazer a lei ocidental e a necessidade social [...] precedido de sinais celestiais inconfundíveis que o autorizavam e abençoavam». Ele também foi endossado — com relutância — por Burckhardt e Lings.37 A existência desse «casamento», que seria impossível de justificar em termos puramente islâmicos, não se tornou amplamente conhecida até o fim da década de 1980. Comenta-se que Burckhardt ficou profundamente incomodado com ele, bem como com episódios similares envolvendo mulheres,38 mas que, após um certo conflito interno, concluiu finalmente que seu dever de lealdade para com o xeique vinha antes de tudo. Em geral, o sufismo enfatiza a lealdade absoluta ao xeique e desencoraja fortemente que seus seguidores o julguem. Há, por exemplo, uma famosa história de um xeique abandonado por seus seguidores de pouca fé após ser avistado por
eles beijando uma estranha; os seguidores viriam a descobrir depois, envergonhados, que a mulher era a irmã mais nova do xeique. Em 1957, Burckhardt recordou a outro membro da ordem que os seguidores de um xeique deveriam julgá-lo não pela compreensão que possuem do mestre, mas por seus ensinamentos e por seu método. É no ato de confiarmos neles [nos ensinamentos e no método] que «obrigamos» Deus para conosco; Deus não nos engana, ele não exige que analisemos as ações pessoais do mestre. [...] Se um mestre ensina erros ou um método contrário à Revelação, abandone-o, mas, se ele parece cometer atos imorais, desconfie de sua própria desconfiança. [...] Um mestre espiritual é como um espelho que nos mostra nossa própria natureza; um erro de niyah — orientação interior — é o suficiente para projetar nossos erros sobre ele, e o demônio se precipitará para nos fazer atribuir tais erros ao espelho.39
A ACADEMIA IMPERIAL IRANIANA DE FILOSOFIA Foi no momento em que a ordem Maryamiyya começava a se afastar do Islã que ela conseguiu seu primeiro e mais importante seguidor muçulmano de nascimento, um iraniano chamado Seyyed Hossein Nasr, que viria a ser tornar uma figura central na história do Tradicionalismo. A nacionalidade de Nasr é importante, já que, sob muitos aspectos, o Irã está mais próximo do Ocidente do que do mundo árabe, e, durante o fim do século XIX e início do século XX, partes da elite iraniana tornaram-se mais e mais ocidentalizadas. Nasr nasceu nessa elite: ele era um Sayyid, descendente do Profeta, e seu pai, o dr. Wali Allah Nasr, foi uma figura política e intelectual de projeção nacional, antigo diretor da Faculdade de Humanidades na Universidade de Teerã e ministro da Educação de seu país.40 Grande parte do universo intelectual do jovem Nasr foi ocidental. A biblioteca de seu pai continha Montesquieu e Voltaire, além de clássicos persas, e ele foi enviado para a escola secundária em Nova
Jersey aos doze anos de idade, por razões não de todo claras.41 De Nova Jersey ele passou ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), formando-se em geologia e geofísica. Durante seu segundo ano no MIT, Nasr passou por aquilo que viria a descrever mais tarde como «uma crise espiritual e intelectual completa», quando começou a perceber as limitações das ciências naturais para explicar a natureza. Com sua fé na física abalada pelas conferências de Robert Oppenheimer (que citava textos hindus) sobre o Projeto Manhattan e por uma discussão com Bertrand Russell, Nasr voltou-se para a filosofia, apesar de completar seus estudos científicos. Giorgio de Santillana, um filósofo da ciência que na época dava aulas no MIT, apresentou uma ampla gama de influências a Nasr, de Plotino a Jacques Maritain (antigo padrinho de Guénon no Instituto Católico de Paris), incluindo o próprio Guénon. Nasr também conheceu alguns antigos alunos de Coomaraswamy, que o apresentaram à sua viúva. Na biblioteca de Coomaraswamy, Nasr encontrou as primeiras obras de Schuon. Guénon, Schuon e Burckhardt «solucionaram a crise». «Daquele momento em diante, eu soube com certeza», escreveu Nasr muitos anos depois, «que a Verdade existia e que podia ser alcançada pelo conhecimento obtido por meio do coração-intelecto e também pela revelação.»42 Apesar de muçulmano de nascimento, sua leitura dos Tradicionalistas despertou um interesse no hinduísmo, e não no Islã,43 assim como havia acontecido com Schuon e diversos outros cristãos de nascimento. No entanto, as obras islâmicas de Burckhardt e Schuon redirecionaram esse interesse: Os escritos dos mestres sufis e dos filósofos islâmicos começaram a voltar a ter o mais profundo sentido para mim. [...] No entanto, esse novo sentido já não era uma simples imitação ou repetição de coisas herdadas, mas estava baseado na redescoberta pessoal após uma intensa busca e, poderíamos dizer, sofrimento. [...] A sabedoria islâmica tornou-se uma intensa realidade vivente, não porque nasci e fui educado como muçulmano, mas porque havia sido guiado pela graça dos Céus à eterna sophia [aproximadamente, a Filosofia Perene], da qual
a sabedoria islâmica é uma das mais universais e vitais encarnações.44 Nasr, apesar de mais próximo da religião à qual viria a dedicar sua carreira do que Coomaraswamy havia estado da dele, abordou-a — uma vez mais, como Coomaraswamy — de uma perspectiva essencialmente ocidental e Tradicionalista. Ao contrário de Coomaraswamy, porém, ele também se dedicou à prática religiosa. Sua busca pela iniciação terminou com sua filiação à ordem Maryamiyya, provavelmente durante uma visita ao Marrocos em 1957.45 O Tradicionalismo desviou os interesses de Nasr da ciência natural para a filosofia da ciência e para aquilo que por vezes é chamado de «filosofia islâmica», uma escola de esoterismo intelectual especialmente forte no Irã, seu país natal, e cujos representantes mais famosos são Sadra al-Din Muhammad Shirazi (século XVII) e Shibab al-Din Yahya Suhrawardi (século XII).46 Nasr completou um doutorado em filosofia da ciência em Harvard47 e estudou no Irã com os dois maiores professores de filosofia islâmica do país, Muhamad Husayn Tabataba’i e Abu’l-Hasn Raf’i Qazwini.48 Ele então deu início a uma carreira dedicada à ciência e à filosofia islâmica, compreendidas numa perspectiva essencial, mas não explicitamente, Tradicionalista. A carreira de Nasr se divide em duas metades, a primeira na Universidade de Teerã até a Revolução Islâmica de 1979, discutida mais adiante, e a segunda nos Estados Unidos após a Revolução. Durante ambos os períodos ele foi influente por meio de sua obra, apesar de seus livros mais importantes terem sido escritos em inglês no Irã. Alguns deles estão voltados ao grande público — os mais importantes são Ideals and Realities of Islam [Ideais e realidades do Islã], The Encounter of Man and Nature: The Spiritual Crisis of Modern Man [O homem e a natureza] e Sufi Essays49 [Ensaios sufis] — e podem ser descritos como Tradicionalismo islâmico; outros são voltados a um público mais especializado e tratam da obra dos filósofos islâmicos e da relação entre o Islã e a ciência.50 Quase todos
foram traduzidos a vários idiomas, ocidentais e islâmicos, especialmente ao persa, turco e malaio. Durante a metade iraniana de sua carreira, Nasr deu aulas de filosofia da ciência e filosofia islâmica na Universidade de Teerã, além de criar a instituição Tradicionalista mais importante do século XX, chamada Anjoman-e Shahanshahi-ye Falsafahi-e Iran (Academia Imperial Iraniana de Filosofia). Fundada em 1974, a Academia era um órgão independente sob a direção de um conselho chefiado por seu patrono, a imperatriz Farah, com quem Nasr tinha uma boa relação, e era generosamente financiada pela corte imperial iraniana.51 Seu objetivo era ser um escola para o estudo e a difusão das ciências tradicionais, especialmente da filosofia islâmica, e para a educação de uma pequena elite que deveria levar adiante esse trabalho em outras instituições, no Irã e no exterior. A ideia era conceder cerca de dez bolsas de estudo de cada vez aos alunos de pós-graduação mais destacados, que, após um período mínimo de três anos na Academia, iriam dar aulas em universidades no Irã e em outros países. Alguns já teriam doutorados e outros poderiam aproveitar o período que estivessem na Academia para preparar teses a serem apresentadas a universidades no exterior (a própria Academia não concedia nenhum tipo de título).52 Como anunciou Nasr no primeiro número da revista da Academia, publicada em persa e em inglês sob os títulos de Javidan Kherad e Sophia Perennis: Os objetivos da Academia são: reviver a vida intelectual tradicional da Pérsia islâmica; publicar textos e estudos que tratem da Pérsia islâmica e pré-islâmica; divulgar no exterior os tesouros da Pérsia nos campos da filosofia, misticismo e afins; tornar possível uma ampla pesquisa em filosofia comparada; divulgar aos persas as tradições intelectuais de outras civilizações, no Oriente e no Ocidente; encorajar o confronto intelectual com o mundo moderno; e, finalmente, discutir do o ponto de vista da tradição diversos problemas enfrentados pelo homem moderno.53
A referência à Pérsia pré-islâmica provavelmente foi incluída devido aos padrinhos imperiais de Nasr. O xá, em especial, estava muito mais interessado no passado pré-islâmico do Irã do que no islâmico.54 Até onde se sabe, a Academia nunca se ocupou da Pérsia pré-islâmica. Os objetivos da Academia são um bom exemplo de como o Tradicionalismo pode permanecer quase invisível. Lidos por alguém que não conheça o Tradicionalismo, eles parecem normais; lidos de uma maneira mais bem informada, eles são completamente Tradicionalistas e poderiam ter saído de um anúncio para uma nova série da revista Études traditionnelles. A Academia se instalou numa casa ampla e agradável que lhe fora dada de presente, na mesma rua da Embaixada da França, e decorada em estilo «tradicional», com sua mobília feita sob encomenda em Isfahan e o uso abundante de azulejos azuis — o azul foi escolhido por ser «a cor da eternidade». A nova sede possuía uma biblioteca, um salão de conferências, escritórios para administração e salas para pesquisadores e acadêmicos visitantes. As instalações originais logo foram expandidas, com a compra de dois edifícios adjacentes. Sob o patrocínio imperial, a Academia possuía os recursos financeiros para preenchê-los com alunos e professores. O próprio Nasr dava aulas uma vez por semana, à maneira tradicional, reunindo os demais membros da Academia num círculo ao seu redor enquanto lia e comentava textos de autores como Suhrawardi. Os principais quadros da Academia eram, em geral, membros da Maryamiyya, pertencentes a um ramo iraniano da ordem fundado e liderado por Nasr, ou, em alguns casos, Tradicionalistas seguidores de outras ordens sufis.55 Muitos, no entanto, eram partidários da escola clássica iraniana de filosofia mística sem nenhum interesse no Tradicionalismo. Dois de seus membros mais eminentes foram o aiatolá Jalal al-Din Ashtiyani e o professor Henry Corbin. Ashtiyani, que se tornou a principal autoridade iraniana em filosofia islâmica,56 não sabia outras línguas além do árabe e do persa, e, apesar de certamente ter ouvido falar de Guénon, nunca o leu nem fez referência a ele.57
Corbin, um dos mais famosos orientalistas franceses do século XX e que passou os verões no Irã a convite da Academia durante anos,58 tampouco foi um Tradicionalista. No mesmo ano que Nasr fundou sua Academia em Teerã, Corbin criou em Paris um Centro Internacional para a Pesquisa Espiritual Comparada, também conhecido como Universidade de São João de Jerusalém; seus objetivos (nas palavras de Eliade, participante da empreitada) eram «a restauração dos estudos e da ciência tradicional no Ocidente». O Centro de Corbin deveria criar «um fórum para aquelas ciências avançadas, cujo abandono e esquecimento é tanto a causa quanto o sintoma de nossa civilização [ocidental]» e «garantir a vocação do cavalheirismoI espiritual». Segundo Eliade, o que Corbin entendia por «cavalheirismo espiritual» (chevalerie spirituelle) eram os «mitos medievais ocidentais, símbolos, padrões iniciáticos e organizações secretas». Dessa forma, Eliade vê o Corbin tardio como parte da «ressurgência de certas tradições esotéricas entre alguns pensadores e acadêmicos europeus», um grupo no qual ele incluía Coomaraswamy.60 Apesar das semelhanças entre a organização de Corbin e o Tradicionalismo, porém, o francês e seus colaboradores trilhavam um caminho diferente. Tal caminho, por vezes, corria paralelo ao do Tradicionalismo, mas eles não eram Tradicionalistas. Segundo a opinião de um acadêmico francês que discutiu com ele esses assuntos, Corbin estava interessado nos aspectos comuns entre o Islã, o Cristianismo e o judaísmo, incluindo os esotéricos. No entanto, ele não tinha interesse em religião primordial, unidade transcendente nem nada ligado ao hinduísmo ou outras religiões não monoteístas.61 Nas palavras de Nasr, Corbin «tinha aversão aos ensinamentos dos principais representantes da escola Tradicionalista, especialmente Guénon».62 Do mesmo modo, apesar de todos os estudantes de pós-graduação cuidadosamente selecionados que estudavam na Academia terem sido expostos ao Tradicionalismo, nem todos se tornaram Tradicionalistas. A maioria, no entanto, chegou a ocupar postos importantes. Entre eles estavam Gholam-Reza A’avani, trazido por
Nasr da Universidade Americana de Beirute, e William Chittick, um norte-americano.63 A’avani tornou-se diretor da Academia após a Revolução, e Chittick teve uma importante carreira acadêmica nos Estados Unidos como um dos principais especialistas do país na obra de Ibn al-Arabi. O aiatolá Mortada Motahhari foi um amigo de Nasr que nunca pôs os pés na Academia devido a seu título imperial, mas que, no entanto, enviou para estudar nela Haddad ‘Adil, mais tarde professor de filosofia na Universidade de Teerã e figura influente na República Islâmica. Corbin trouxe Pierre Lory, que viria a sucedê-lo na Sorbonne. Lory leu os autores Tradicionalistas e guarda um interesse por suas obras e atividades, mas não foi influenciado por eles de modo algum em sua própria vida ou obra.64 A importância da Academia fora do Irã foi a de ter dado ao Tradicionalismo uma base altamente respeitável, algumas vezes utilizada para trazer convidados importantes, outras como uma plataforma para a participação em eventos internacionais. O encontro anual de 1975 do Institut international de philosophie, por exemplo, foi realizado em Teerã, tendo por tema as relações entre a religião, a filosofia e a ciência,65 algo caro a Nasr e aos demais Tradicionalistas. A seção em língua inglesa da revista da Academia publicou muitos artigos Tradicionalistas, atingindo um público muito mais amplo do que Études traditionnelles. A Academia foi ainda mais influente no Irã do que no exterior. Além de apresentar o Tradicionalismo a um pequeno número de intelectuais iranianos, ela contribuiu de maneira importante para um crescimento generalizado no interesse pela filosofia islâmica, que também foi resultado dos esforços de Nasr em outros foros. O Tradicionalismo nunca ultrapassou os círculos intelectuais mais restritos,66 o que, provavelmente, nunca foi seu objetivo. Apesar de a seção em língua persa da revista Javidan Kherad ter publicado alguns artigos abertamente Tradicionalistas, incluindo algumas traduções ocasionais de Schuon, e apesar de Nasr ter organizado a primeira publicação de uma obra de Guénon em um idioma não ocidental (a Crise du monde moderne, publicado em persa pela Editora da Universidade de Teerã em 1970), o impulso principal de suas
atividades na Pérsia estava voltado para a tradição, não para o Tradicionalismo. Suas atividades puramente Tradicionalistas se dirigiam para fora do Irã.67 Não foi apenas na Academia que Nasr trabalhou para a recuperação da tradição no Irã. Ao retornar dos Estados Unidos, ele foi nomeado professor de filosofia e história da ciência na Universidade de Teerã. Na época, «filosofia» era geralmente entendida na Faculdade de Letras como filosofia ocidental, já que a Universidade de Teerã havia sido fundada segundo um padrão norteamericano, tanto em sua estrutura quanto em seu currículo. Nasr introduziu o ensino de filosofia islâmica e realizou um bem-sucedido trabalho conjunto com seu amigo aiatolá Motahhari (que introduziu a filosofia islâmica no departamento de teologia na mesma época) para promover o interesse e o conhecimento dos filósofos islâmicos na Universidade de Teerã e fora dela. Tanto Nasr quanto Motahhari deram conferências sobre esses temas para um público mais amplo na Husayniyya-ye Irshad, uma importante instituição da época. Às atividades de Nasr e Motahhari, a Academia acrescentou suas próprias conferências, além de editar e publicar muitos textos clássicos de filosofia islâmica. Em seu primeiro ano de existência, foram publicados quinze livros, incluindo três bibliografias e nove traduções de filósofos islâmicos ao inglês;68 Javidan Kherad, a seção persa da revista da Academia, publicou também muitos textos de e sobre os filósofos islâmicos.69 O impacto último dessas atividades foi inesperado. Segundo a opinião unânime de filósofos e clérigos iranianos entrevistados para este livro, Nasr e sua academia deram uma contribuição definitiva à Revolução islâmica. O crescimento do interesse em filosofia islâmica contribuiu para o crescimento do interesse no Islã entre os estudantes iranianos, um fator importante para o sucesso da Revolução. Tabataba’i, o professor de Nasr, foi explícito sobre o papel da filosofia islâmica, defendendo seu ensino com o argumento de que os estudantes chegavam a ele com as cabeças cheias de ideias ocidentais e marxistas e que a filosofia islâmica podia ser usada para ocupar o seu lugar.70 Além disso, os discursos de Nasr a favor da
tradição e contra a modernidade uniram-se, na prática, à corrente geral de mobilização a favor do Islã e contra a decadência ocidental, e assim, por implicação, contra o regime do xá. A contribuição de Nasr (e do Tradicionalismo) para a Revolução foi claramente secundária, ficando muito atrás das contribuições dos aiatolás Khomeini, Motahhari (o principal ideólogo da soberania islâmica) e de Ali Xariati, um sociólogo cuja mistura original do Islã com o socialismo fez mais do que qualquer outra coisa para voltar os estudantes para o Islã nos anos que antecederam a Revolução (a propósito, Xariati foi um leitor ocasional e simpático de Guénon, ainda que não um Tradicionalista).71 A contribuição de Nasr à Revolução não foi apenas acidental, ela também não foi intencional. Ao longo de sua carreira no Irã, ele foi um fiel partidário do regime do xá. Havia razões para essa posição: Nasr estava ligado à corte imperial, como seu pai antes dele, e seus contatos certamente não atrapalharam sua destacada carreira acadêmica, que incluiu os cargos de diretor da Faculdade de Artes e Letras da Universidade de Teerã e vice-reitor da Universidade Aryamehr, uma universidade técnica na capital. Mais importantes, porém, eram questões de princípio: Nasr aparentemente considerava a monarquia uma forma tradicional de governo, preferível, a despeito de seus muitos defeitos, ao que viria a sucedê-la. Ele possuía especial antipatia pela mistura do Islã com o socialismo defendida por Xariati, que considerava claramente antitradicional.72 À medida que a Revolução se acercava e a vida iraniana se politizava mais e mais, a proximidade de Nasr com a corte imperial tornava-se um risco cada vez maior. O caso de Abd al-Karim Soroush, um jovem iraniano que viria a se tornar um dos maiores intelectuais de seu país, serve como exemplo. Soroush havia lido Guénon quando estudava filosofia da ciência na Universidade de Londres com um discípulo de Karl Popper, e, ao retornar ao Irã, foi inicialmente atraído por Nasr. No entanto, logo concluiu que as opiniões de Nasr eram irrelevantes para as questões da época e que ele seria até mesmo hipócrita por se identificar ao mesmo tempo com o Islã e com o trono e por permanecer calado diante das injustiças cometidas. Como
muitos outros, Soroush voltou-se para Xariati, sugerindo depois que a ascensão deste marcou o eclipse de Nasr.73 À medida que indivíduos e organizações começaram a se afastar de Nasr e da Academia Imperial, alguns sugeriram que Nasr deveria se afastar do xá, cada vez mais detestado, e até mesmo mudar o nome da Academia. Nasr se recusou e, mais do que isso, aproximou-se da corte. Ao traduzir para o inglês o livro Islã Xiita de Tabataba’i, ele omitiu as condenações à monarquia presentes na obra.74 Em 1977, aceitou ser nomeado para o cargo de principal secretário privado da imperatriz Farah, e começou a realizar missões diplomáticas especiais no exterior.75 Nasr permaneceu fiel a seus princípios e lealdades. A Revolução de 1979 apanhou-o em Londres, a caminho do Japão, e, seguindo um conselho recebido por telefone da imperatriz, ele permaneceu no exterior.76 Até 2003 ele não havia retornado ao Irã, ainda que, como veremos, algumas pessoas associadas à Revolução tenham chegado a desejar seu retorno. Em que medida a Revolução promoveu os objetivos do Tradicionalismo e em que medida ela representou o triunfo disfarçado de uma forma particular de modernidade é algo difícil de determinar, e certamente vai além do escopo deste livro.
I O termo «chivalry» em inglês significa tanto as forças de cavalaria medievais com armamento pesado e armadura quanto a conduta cavalheiresca de nobres e elevados padrões morais a ela associada. Ambos os sentidos estão presentes no texto. [N. T.]
8. AMÉRICA
O Tradicionalismo da ordem Maryamiyya floresceu durante as décadas de 1960 e 1970 não apenas no Irã, mas também na Europa e nos Estados Unidos. Por volta de 1979, zawiyas da ordem estavam espalhadas por diversos países europeus (três na Suíça, ao menos duas na França e ao menos uma na Inglaterra), em pelo menos um país latino-americano (Argentina) e também pelos Estados Unidos.1 Havia também zawiyas em uma série de lugares no mundo islâmico. Além delas, uma vasta comunidade havia se formado ao redor de Schuon, incluindo diversos Tradicionalistas não muçulmanos. Um deles, Jean Borella, professor de filosofia na Universidade de Nancy, na França, liderava um grupo subsidiário de cerca de cinquenta Tradicionalistas católicos. Rama Coomaraswamy, filho de Ananda Coomaraswamy, liderava outro nos Estados Unidos. Segundo uma fonte, o grupo de Rama (e provavelmente também o de Borella) integrava o Tradicionalismo a sua prática religiosa por meio de orações repetitivas similares ao dhikr sufi, mas utilizando termos e conceitos cristãos.2 Nenhum desses cristãos era membro da ordem Maryamiyya, mas seguiam pessoalmente Schuon como um membro o faria. O termo «schuonianos» é empregado neste capítulo para denotar tanto os membros da ordem Maryamiyya quanto esses seguidores não muçulmanos. Das três zawiyas conhecidas nos Estados Unidos, a mais importante era a que girava em torno da Universidade de Indiana, em Bloomington, e que havia sido fundada em 1967 por Victor Danner, um professor de estudos religiosos. Danner escrevera a Schuon após ler seus livros, do mesmo modo que antes as pessoas escreviam a Guénon. Ele foi colocado em contato com Joseph Epes Brown, o autor do livro The Sacred Pipe, que também havia sido professor em Indiana. Após filiar-se à ordem Maryamiyya, Danner passou a indicar algumas obras Tradicionalistas a seus alunos — Nasr
na bibliografia principal, Schuon na complementar. «Era algo muito sutil», recordava um ex-aluno que veio a se filiar à ordem por intermédio de Danner, que, obviamente, não a mencionava (pois se tratava de uma organização secreta naquela época), nem o fato de ele mesmo ser muçulmano, como era a regra. No entanto, alguns dos alunos de Brown e de Danner se interessavam pelo que liam a ponto de quererem ir além.3 Em 1979, havia cerca de cinquenta membros da ordem Maryamiyya em Bloomington, a maioria ex-alunos de Brown, Danner ou de outro professor da Universidade de Indiana que também pertencia à ordem. O caso de Danner é um exemplo de como a ordem Maryamiyya se difundiu. É provável que se trate de um exemplo bastante típico, já que diversos outros professores na mesma situação foram identificados em universidades norte-americanas e europeias.4 Os seguidores de Schuon em tais posições auxiliavam no processo de recrutamento e na formação da «elite». Ademais, aparentemente havia alvos definidos a serem recrutados pela ordem Maryamiyya, apesar de não estar claro em que medida se tratava de uma política deliberada ou se membros individuais simplesmente decidiam que uma pessoa em especial era mais indicada para receber livros de Schuon e, em seguida, para talvez ouvir algo sobre a ordem. Um desses recrutamentos foi objeto de um estudo detalhado, o de Thomas Merton, o monge cisterciense (trapista) que se tornou — nos Estados Unidos, ao menos — o místico mais conhecido do século XX. Merton nunca se filiou à ordem Maryamiyya, mas parecia estar a ponto de se tornar um schuoniano no momento de sua morte súbita na Tailândia, aos 53 anos de idade. Merton foi um monge fora do comum, um convertido ao catolicismo com uma história de vida parecida com a de muitos que se tornaram Tradicionalistas. Sua mãe era americana, seu pai, um pintor neozelandês; parte de sua juventude foi passada no meio artístico de Paris,5 e ele se revelou um escritor talentoso desde muito cedo. No entanto, não foram as obras dos Tradicionalistas que o jovem Merton encontrou durante as primeiras fases de sua busca espiritual na década de 1930 — provavelmente porque na época vivia na Inglaterra, e não na França — mas sim os livros de William Blake
e Aldous Huxley (ambos perenialistas) bem como de Jacques Maritain. Sua busca espiritual conduziu-o, em 1942, ao mosteiro cisterciense de Nossa Senhora de Gethsêmani, no Kentucky. Ele ficou famoso pouco depois, com a publicação de sua autobiografia espiritual, intitulada The Seven Storey Mountain [A montanha dos sete patamares] (1946), que vendeu mais de 1 milhão de exemplares.6 A razão pela qual um importante schuoniano chamado Marco Pallis decidiu começar uma correspondência com Merton em 1963 não está clara; é possível que tenha sido uma resposta ao livro Mystics and Zen Masters [Místicos e mestres zen], publicado por Merton em 1961.7 O momento foi, em todo caso, bem escolhido. Na década de 1960, Merton atravessava um período conturbado em sua vida. Ele sempre havia reagido mal à disciplina eclesiástica, fazendo diversos pedidos para ser transferido a outros mosteiros, a outras ordens e até mesmo a outros países, todos rejeitados de maneira firme por seu abade. Certa vez, ele apelou diretamente ao papa João XXIII, que dificilmente poderia ignorar a petição de um católico tão famoso; o papa enviou a Merton um emissário pessoal que levava como presente a estola usada por João XXIII no dia de sua consagração, bem como uma firme recusa a seu pedido.8 Merton fez as pazes com a ideia de permanecer em Gethsêmani, mas envolveu-se em uma série de atividades pouco comuns para um monge, incluindo a participação ativa no movimento pacifista contra a Guerra do Vietnã a partir de 1961 e uma relação platônica com uma enfermeira em Louisville (a cidade vizinha ao mosteiro) a partir de 1966. Ele também passou a se interessar cada vez mais pelo diálogo interconfessional, que ainda não tinha entrado em voga nos meios católicos. Uma das primeiras menções a essa atividade encontra-se em seu diário no ano de 1957: «Se eu for capaz unir em mim mesmo o pensamento e a devoção do Cristianismo do Oriente e do Ocidente. [...] Conseguirei preparar em mim mesmo a reunião dos cristãos divididos».9 Seus interesses logo se ampliaram às religiões não cristãs, especialmente ao taoismo e ao zen-budismo, mas também ao Islã e ao sufismo. Em 1959, ele começou uma correspondência — dedicada sobretudo a
Hallaj, o grande sufi do século X — com Louis Massignon, o importante estudioso francês do Islã.10 Em 1963, Pallis enviou a Merton uma seleção de livros Tradicionalistas: um de sua própria autoria e outros de Guénon, Schuon e Lings; o preferido de Merton foi o clássico de Lings intitulado A Moslem Saint of the Twentieth Century [Um santo muçulmano do século XX] (1961).11 O santo muçulmano descrito como «santo sufi» no título das edições posteriores — uma mudança que aumentou consideravelmente as vendas — era Ahmad al-Alawi, o xeique de quem Schuon havia recebido a ordem Alawiyya. «Estou muito impressionado com ele», escreveu Merton, «e com a pureza da tradição sufi nele representada.»12 Não está claro qual foi o critério de «pureza» de Merton, mas não seria surpreendente se ele tivesse encontrado semelhanças entre as concepções de Lings e as de Blake, por exemplo.13 Merton e Pallis se corresponderam durante cerca de dois anos, discutindo a tradição e a modernidade, o Islã, o budismo e o Cristianismo, numa correspondência que Merton parece ter excluído da censura que era parte da regra cisterciense.14 Em 1966, Pallis enviou um antigo ícone grego de presente para Merton («Nunca recebi um presente tão valioso e magnífico de ninguém em toda minha vida», afirmou o monge em sua carta de agradecimento), acompanhado de uma carta em que ele revelava a existência da ordem Maryamiyya — «todos nós acreditamos que você deva estar plenamente informado». A Maryamiyya era descrita como uma ordem sufi «com um pequeno número de membros de outras tradições».15 A carta em que Pallis enviou o convite de Schuon está desaparecida, mas, em junho de 1966, Merton anotou em seu diário: Outra carta chegou, esta importante: uma mensagem de um xeique (mestre espiritual) muçulmano — na realidade, um europeu, mas formado por um dos grandes santos e místicos muçulmanos de nosso tempo (Ahmad al-‘Alawî). Que posso ser aceito em uma relação pessoal e confidencial, não exatamente como discípulo, mas como alguém que tem o direito de consultá-
lo direta e pessoalmente. Trata-se de uma questão de grande importância para mim, porque, segundo suas ideias tradicionais, isso me coloca em contato com o espírito e os ensinamentos de Ahmad al-‘Alawî de uma maneira inacessível ao mero acadêmico ou estudante. Isso significa que posso ter um lugar vivo numa tradição viva e sagrada. É algo que pode ter efeitos tremendos. Vejo isso desde já.16 O entendimento da relação entre Schuon e al-Alawi dificilmente pode ser considerado correto — Schuon foi «formado» muito mais por Guénon do que por al-Alawi. Além disso, a maneira como entendia seu possível relacionamento com Schuon coloca questões difíceis. Em termos católicos, Merton já possuía «um lugar numa tradição viva e sagrada» como cisterciense, e dificilmente precisava de um novo. Em termos schuonianos, Merton já possuía igualmente uma iniciação válida e não precisava de outra. De que modo, então, uma «relação pessoal e confidencial» com Schuon poderia conferir a Merton um «contato especial com o espírito e os ensinamentos» de al-Alawi, além de um novo lugar numa nova tradição, a menos que ele se tornasse muçulmano e membro da ordem Maryamiyya, o que não parecia estar considerando («não exatamente como discípulo»)? Essa questão nunca poderá ser respondida. Em dezembro de 1966, Merton escreveu a Pallis: «Ainda não escrevi a Schuon como pretendia fazê-lo». Infelizmente, o resto da correspondência MertonPallis não chegou a nós, perdida ou destruída, com a exceção de um único cartão-postal de junho de 1968, que confirma que a correspondência continuou.17 No fim de 1968, Merton deixou os Estados Unidos e partiu em uma turnê mundial. Uma de suas últimas paradas deveria ser uma visita a Nasr em Teerã,18 onde novos passos em direção a Schuon e à ordem Maryamiyya não poderiam ser descartados, a julgar por certas coisas que ele vinha dizendo na turnê. Em Calcutá, Merton participou de uma «Conferência de Cúpula Espiritual» inter-religiosa, onde algumas de suas intervenções soaram claramente Tradicionalistas: «O nível de comunicação mais profundo não é o da comunicação, mas o da comunhão. [...] Descobrimos uma unidade mais antiga. Caros irmãos,
já somos um, mas imaginamos que não. O que temos de recuperar é nossa unidade original». A «unidade original» de Merton não parece muito diferente da filosofia perene. De Calcutá, ele seguiu para o Himalaia, onde um lama ensinou-lhe um mantra e onde se encontrou com o Dalai-Lama. Naquela noite, ele sonhou que estava usando as roupas de um lama, e não o hábito dos cistercienses. Do Himalaia, ele seguiu para Darjeeling, onde disse a um público católico quase o mesmo que Guénon havia dito no passado aos católicos em Paris: «nós [no Ocidente] precisamos do gênio religioso da Ásia e da cultura asiática para injetar uma nova dimensão de profundidade ao nosso impulso de nos debatermos sem sentido».19 No entanto, Merton nunca chegou a Teerã. Da Índia, ele viajou à Tailândia, parando primeiro no Sri Lanka e depois viajando para o norte, para visitar as antigas figuras do Buda em Polonnaruwa. Na Tailândia, num centro de conferências próximo a Bangkok, ele apresentou um artigo sobre «O marxismo e as perspectivas monásticas» num encontro de abades cistercienses e beneditinos e depois recolheu-se a seu quarto. Ali, segundo a polícia tailandesa, ele morreu eletrocutado por um ventilador elétrico com defeito. Sua morte súbita naturalmente provocou suspeitas — algumas pessoas chegaram a acreditar que ele havia sido assassinado pela CIA devido a suas atividades no movimento de paz — mas não há indicações de que sua morte tenha sido algo além de um acidente.20 Outro autor norte-americano famoso por escrever sobre temas religiosos conseguiu chegar a Teerã e à ordem Maryamiyya: Huston Smith, pastor metodista e autor de um livro intitulado The Religions of Man [As religiões do homem] (1958), posteriormente chamado de The World’s Religion [As religiões do mundo], que se juntou à Montanha dos sete patamares de Thomas Merton como um dos livros religiosos norte-americanos mais populares do século XX, com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos.21 O sucesso do livro de Smith deve muito à sua grande habilidade como comunicador, mas também à sua perspectiva universalista e à ênfase nos elementos comuns das sete religiões que conferem à obra sua unidade. Essa perspectiva tinha sua origem não no Tradicionalismo, mas sim nas leituras que o autor fizera de Aldous Huxley e Gerald Hear durante seus estudos de
pós-graduação.22 Elas deixaram Smith com um problema, que ele chamou de «problema do uno e do múltiplo». Smith sabia o que as diferentes religiões tinham em comum, «mas eu não tinha ideia do que fazer com suas diferenças». Assim, ele buscava «um absoluto pelo qual pudesse viver». «Eu sabia que tal absoluto não podia ser montado com peças juntadas aqui e ali», escreveu ele. Isso «faria tanto sentido quanto tentar criar uma grande obra de arte colando pedaços de minhas pinturas favoritas». Ele também descartou a alternativa de «tentar encontrar um fio comum que atravessasse as várias religiões. [...] Quem é capaz de dizer qual é a essência das religiões do mundo? E como qualquer descrição dessa essência seria capaz de evitar a marca da linguagem e da perspectiva de seu proponente?».23 Smith seguiu diversas práticas religiosas enquanto esperava a solução para esse problema. Ele continuou a frequentar igrejas metodistas, mas, no período em que dava aulas na Universidade Washington de St. Louis, estudou também o Vedanta com um swami que lhe havia sido indicado por Heard.24 O Vedanta foi substituído pela prática budista quando Smith passou ao MIT em 1958 (isso aconteceu depois de Nasr haver trocado o MIT por Harvard).25 Em 1969, o Tradicionalismo forneceu a solução ao problema de Smith. Naquele ano, ele partiu em uma turnê mundial das religiões, não de todo diferente da de Merton, e levou consigo para o Japão o livro de Schuon intitulado In the Tracks of Buddhism [Nos rastros do budismo] (1968). Ele já havia lido Guénon, que lhe parecera excessivamente pessimista, além de ter começado o livro Transcendent Unity of Religions [Da unidade transcendente das religiões] de Schuon, sem, no entanto, terminar sua leitura. À medida que lia In the Tracks of Buddhism, no entanto, «o Caminho dos Deuses se abriu diante de mim». Na Índia ele comprou outro livro de Schuon, Language of the Self [Linguagens do self], uma edição indiana de um artigo sobre o Vedanta e a gnose publicado em Études traditionnelles em 1956, e descobriu que «uma década sob a tutela de um swami [...] havia me familiarizado com os contornos básicos do Vedanta, mas Schuon alçava voo a partir dali». Em Teerã, Nasr lhe
deu de presente uma edição de Understanding Islam [Para compreender o Islã] (1966), o segundo livro mais importante de Schuon.26 Smith dividiu o Tradicionalismo em duas partes, o perenialismo e aquilo que chamou de «Tradicionalismo». O perenialismo resolvia o problema do que fazer com «a relação entre as religiões», «o problema do uno e do múltiplo». A solução era bastante simples: «Não busque uma essência única que perpassa as religiões do mundo. Reconheça-as como expressões múltiplas do Absoluto, que é indescritível».27 Aquilo que Smith chamava «Tradicionalismo» — o que venho chamando de compreensão Tradicionalista da modernidade — complementava os pontos de vista que ele já vinha desenvolvendo, especialmente no MIT, onde ele aparentemente enxergava seu verdadeiro trabalho como o de ser a voz poderosa, ainda que diminuta, da filosofia e da religião contra o que chamava de «cientismo».28 O pós-modernismo, escreveu ele, estava certo «em desmascarar o cientismo» — mas errado porque «a questão de nosso tempo já não é como desconstruir as coisas, mas sim como trabalhar de maneira responsável para reconstruí-las».29 A jornada religiosa pessoal de Smith havia sido, de certo modo, pública. Apesar de não mencionar em público a ordem Maryamiyya nem afirmar com todas as letras que havia se tornado muçulmano, ele disse à imprensa que havia feito o jejum de Ramadã «mais de uma vez» e que «durante 26 anos havia rezado cinco vezes por dia em árabe» (as duas citações vêm de diferentes perfis de Smith publicados em jornais).30 Ele também continuou a praticar yoga e a frequentar a igreja metodista local, apesar de sua declaração de que os Metodistas estavam «completamente exaustos teologicamente».31 Smith claramente contribuiu para a difusão da filosofia Tradicionalista nos Estados Unidos. Ele fez o máximo para promover a nova edição de Da unidade transcendente das religiões, lançada em 1975, com uma chamativa introdução, onde alertava que o livro era difícil e que ele mesmo não havia conseguido terminá-lo na primeira tentativa, ao mesmo tempo que indicava claramente que ele valia a pena ser terminado. A edição de 1991 do já então clássico As
religiões do homem (com o título de As religiões do mundo) era levemente mais Tradicionalista do que a original de 1958, e continha mais material sobre sufismo e religiões indígenas da América do Norte. O Tradicionalismo também esteve visível — aos que sabiam reconhecê-lo — em sua conferência plenária apresentada à Academia Americana de Religião (AAR, a maior sociedade erudita para o estudo da religião) em 1989.32 Smith publicou duas obras Tradicionalistas: Forgotten Truth: The Primordial Tradition [Verdade esquecida: A tradição primordial] (1976), sobre tradição e modernidade, e Beyond the Post-Modern Mind [Além da mente pós-moderna] (1982), contra o «cientismo».33 Nenhuma teve o sucesso de As religiões do homem, talvez por serem abertamente Tradicionalistas em excesso, apesar do estilo ultraacessível de Smith. Nem mesmo ele seria capaz de fazer a filosofia Tradicionalista compreensível a todos, para não dizer interessante ou divertida. No entanto, os dois livros tiveram muitos leitores, apesar de não venderem milhões de cópias. Em 1998, Beyond the PostModern Mind foi tema da primeira de uma série em três partes da PBS — a rede de televisão pública norte-americana —, intitulada «Pensando em voz alta». A última parte foi baseada em The Primordial Tradition. Esses programas são um bom exemplo de Tradicionalismo «suave»: os argumentos são simples, não há menção a Guénon e, entre a primeira e a última parte, havia um centro ainda mais suave, sem nenhum Tradicionalismo, chamado «Psicologia da Experiência Religiosa» e que tratava principalmente das investigações com psicotrópicos conduzidas pelo próprio Smith no início da década de 1960.34 Parte do Tradicionalismo «suave» de Smith levanta a difícil questão do momento em que ele se torna tão suave a ponto de deixar de ser Tradicionalismo e passa a ser apenas uma vaga oposição ao materialismo. As obras Tradicionalistas de Smith foram apenas algumas entre as muitas produzidas por schuonianos. No período 1950-99, Schuon e outros 23 seguidores identificados publicaram cerca de 220 livros. Oitenta deles foram bem recebidos o bastante a ponto de serem traduzidos a outros idiomas (135 traduções no total) ou reeditados. Trinta foram obras muito importantes — nenhuma com as vendas
impressionantes dos best-sellers de Merton ou Smith, mas todas sendo reeditadas diversas vezes por várias editoras e em muitos idiomas.35 Alguns desses livros apresentavam o Tradicionalismo «duro», geralmente publicados por editoras abertamente Tradicionalistas, alguns ainda pela Éditions traditionnelles em Paris, como o negócio dos irmãos Chacornac passou a se chamar, ou, mais importante, pela própria editora dos schuonianos, chamada World Wisdom Books, de Bloomington. Outros foram publicados por casas especializadas, como a Archè, uma editora de língua francesa em Milão. Esses livros Tradicionalistas «duros» deram continuidade ao desenvolvimento da filosofia Tradicionalista e estavam voltados principalmente aos membros da comunidade e aos envolvidos numa busca espiritual séria. Apenas algumas dessas obras tiveram vendas significativas. Mais importantes foram os livros voltados a um público mais geral, Tradicionalismo «suave» — livros tratando de espiritualidade ou religião em geral, ou sobre aspectos do Islã, do Cristianismo, do budismo e das religiões indígenas norte-americanas, mas raramente do hinduísmo e do judaísmo.36 Muitos deles eram lançados por grandes editoras, como Penguin, Routledge ou Gallimard, na França; e por editoras universitárias como as de Harvard, Princeton e Oxford.37 Alguns foram publicados ou reeditados pelo que poderíamos chamar de «editoras de Tradicionalismo suave»; as três que realmente importavam nessa categoria foram fundadas ou tiveram o envolvimento da mesma pessoa, Gray Henry. Além de escrever e realizar programas de rádio sobre o Islã — por exemplo, na BBC World Service —, Henry fundou duas editoras na Inglaterra (Quinta Essentia, em 1979, e Islamic Texts Society, em 1981) antes de voltar para os Estados Unidos, sua terra natal, e fundar outra editora, a Fons Vitae, em 1997 no Kentucky. Todas as três seguiam a mesma fórmula: catálogos relativamente pequenos com textos importantes, contendo Tradicionalismo «duro» e «suave», mas dominado por traduções de textos clássicos tradicionais realizadas com a maior qualidade, tanto de um ponto de vista acadêmico quanto editorial. Por exemplo, Muhammad al-Ghazali, o grande sufi do século XI, só estava disponível em inglês anteriormente
em edições de péssima qualidade, geralmente impressas com papel barato no Paquistão e repletas de gralhas, para não falar nos erros de tradução. A Islamic Texts Society começou a lançar a obra de alGhazali, um volume de cada vez, com produção belíssima e tradução cuidadosa feita por acadêmicos que, apesar de nem sempre schuonianos ou membros da ordem Maryamiyya, eram geralmente americanos ou ingleses convertidos ao Islã. Do mesmo modo que Nasr ajudou a promover um renascimento de textos místicos clássicos no Irã e Vâlsan e seus seguidores disponibilizaram tais textos em francês, Henry fez o mesmo em inglês.38 Este breve relato de algumas das atividades de Henry sugere um grande talento, dedicação e energia. Qualidades semelhantes podem ser observadas no festival World of Islam, evento organizado em Londres em 1976 que envolveu todo o mundo, da rainha Elizabeth II (que abriu o festival) ao arcebispo de Canterbury, que recebeu Abd al-Halim Mahmud, o xeique egípcio de Al Azhar, que escrevera páginas elogiosas sobre Guénon sem nunca ter lido nenhum de seus livros.39 O festival foi financiado em sua maior parte pelos Emirados Árabes Unidos, recém-enriquecidos pelo petróleo, e administrado por uma fundação dominada por ingleses importantes — seis dos oito administradores eram nobres, e a presidência coube a sir Harold Beeley, historiador acadêmico e diplomata que por duas vezes desempenhou a difícil tarefa de ser o embaixador britânico no Cairo de Nasser.40 Apesar desse amplo apoio, as visões Tradicionalistas do Islã — e os membros da ordem Maryamiyya — predominaram no festival.41 Nasr organizou a exibição de ciência e tecnologia islâmica no Museu de Ciências, Lings supervisionou a exibição de manuscritos e caligrafia islâmica na Biblioteca Britânica e parece ter havido contribuições de membros da ordem em outras exibições.42 Livros de Tradicionalistas em geral e de membros da ordem Maryamiyya em particular tiveram uma posição de destaque entre as publicações da World of Islam Festival Publishing Company Limited; resenhas de seus livros apareceram em uma edição especial do Times Literary Supplement.43
O festival gerou bastante publicidade favorável para o Islã «tradicional», a julgar pelos jornais britânicos da época, mas seu impacto logo se perdeu em meio à reação geral à Revolução Islâmica no Irã, uma reação que não esteve concentrada nas inclinações místicas do aiatolá Khomeini nem em sua poesia.44 O impacto das outras atividades da ordem Maryamiyya sobre o grande público no Ocidente é mais difícil de ser avaliado. É provável que qualquer ocidental que tenha feito leituras mais amplas sobre o Islã (por interesse espiritual e não por especialização acadêmica) nas últimas décadas do século XX tenha encontrado a ordem Maryamiyya, geralmente sem se dar conta disso. Autores schuonianos costumam ser especialistas reconhecidos em alguma área, que pode estar relacionada à religião de que tratam — por exemplo, algum aspecto da arte ou da arquitetura islâmica, mas também poesia grega ou música renascentista.45 Seus livros são bem escritos e eles nunca pregam para o leitor; em lugar disso, apresentam a religião de uma maneira que não afasta nem mesmo o maior dos agnósticos. Os porta-vozes da ordem Maryamiyya que falam pelo Islã, ao contrário da maioria dos muçulmanos que tentam apresentar sua religião a um público ocidental,46 aparecem como intelectuais de qualidade propondo uma alternativa genuína na qual eles próprios depositam toda a confiança, possuindo bases sólidas para ignorar os mais óbvios argumentos em contrário. Se o ouvinte se sente pessoalmente atraído por essa alternativa, essa é outra questão. Os livros schuonianos geralmente apresentam a tradição esotérica no interior da religião — ou das religiões — de que estão tratando como sua expressão mais importante, na realidade reduzindo toda diferença entre formas esotéricas e exotéricas47 — os livros de Schuon e Nasr intitulados Understanding Islam e Ideals and Realities of Islam, respectivamente, são mais sobre o sufismo do que sobre o Islã. Tais livros também enfatizam as expressões artísticas da religião, como na obra de Titus Burckhardt intitulada Fez: City of Islam [Fez:cidade do Islã]. Finalmente, eles tendem a apresentar a tradição esotérica de qualquer religião como uma expressão de uma verdade
absoluta de origem imemorial, acessível apenas àqueles capazes de suspender o racionalismo e o cientismo, que são — isso fica implícito — os males da modernidade. Apenas alguém que conheça a filosofia Tradicionalista e esteja procurando-a reconhecerá sua presença nesses livros; interpretações Tradicionalistas nunca são apresentadas como tal, mas colocadas simplesmente como a verdade. Essa prática não exige desonestidade, todos nós apresentamos as coisas do modo como as enxergamos, sem que nos sintamos obrigados a explicar exatamente como chegamos a vê-las daquela maneira. Os leitores interessados encontrarão, no entanto, referências ocasionais a obras Tradicionalistas «duras», que serão investigadas. No fim da década de 1980, Nasr editou dois volumes intitulados Islamic Spirituality [Espiritualidade islâmica] na (excelente) série Crossroads sobre espiritualidades no mundo. Quase todos os autores nesses dois volumes são membros da ordem Maryamiyya. Apesar do título, a obra trata exclusivamente da espiritualidade sufi. Isso fica claro para qualquer leitor, que pode julgar por si próprio se a espiritualidade não pode mesmo ser encontrada em nenhum outro lugar do Islã. O que a maioria dos leitores não será capaz de distinguir é entre a espiritualidade sufi e a espiritualidade da ordem Maryamiyya, ou Tradicionalista. Para um especialista em sufismo que conhece o Tradicionalismo, quase todos os ensaios contêm interpretações claramente Tradicionalistas, mas nunca indicadas como tal. Muitas dessas interpretações são discutíveis, para dizer o mínimo. Para o leitor não especializado, no entanto, a origem e a natureza questionável das interpretações não é algo evidente.48 Nem todos ficam felizes ao descobrir o Tradicionalismo por trás desses livros. Uma cientista escandinava convertida ao Islã reagiu com consternação ao ler um artigo escrito por mim identificando autores Tradicionalistas que ela e seus conhecidos haviam lido desavisadamente: «Livros ‹Tradicionalistas› estão por toda parte», escreveu ela. «Talvez o mais assustador seja a sutil infiltração do pensamento ‹Tradicionalista› sem referências. [...] As pessoas pegam essas ideias porque são atraentes e depois acabam passando-as para frente. [...] É algo que afeta todos que dependem da literatura não
árabe (não urdu, não turca etc.).»49 Essa «infiltração súbita» do Tradicionalismo também chocou outro observador — James W. Morris —, a quem pareceu algo mais irônico do que sinistro. «É difícil encontrar especialistas acadêmicos nas dimensões espirituais dos estudos religiosos que não leram diversas obras de Schuon», escreveu Morris, mas «essa profunda influência raramente é mencionada em público» devido ao «processo peculiar de ‹canonização› acadêmica».50
O SOL EMPLUMADO A partir do fim da década de 1970, Schuon e parte de seus seguidores começaram a se afastar do Islã e a se aproximar de uma forma de universalismo que enfatizava o próprio xeique. Erinnerungen und Betrachtungen termina em 1973. Assim, não se conhece a compreensão de Schuon acerca de seu papel durante esse período. A obra, no entanto, relata uma visão posterior de Schuon, acontecida em 1973, abordada por ele de maneira menos explícita do que as anteriores. Schuon relata apenas que «esse mistério» (a Virgem, pode-se presumir) voltou a ele, «ligado a uma esmagadora consciência de que não sou como os outros homens».51 Segundo uma interpretação possível, a essa altura Schuon poderia estar se perguntando se seria o profeta Elias, de volta no fim dos tempos, ou, em lugar disso, uma manifestação de Kali, a deusa hindu.52 É improvável que essa tenha sido a última visão de Schuon — elas começaram a ficar mais frequentes —, e visões subsequentes, das quais não temos detalhes, podem ter contribuído para sua aparente convicção, implícita numa carta de 1980, de que ele era «o instrumento humano para a manifestação da Religio Perennis no fim dos tempos».53 Em 1998, no momento de sua morte, um grupo de seus seguidores havia deixado o Islã para trás e assumido as características não de uma ordem sufi, mas daquilo que os estudiosos da religião chamam de «novo movimento religioso». Schuon começou a se afastar publicamente do Islã em 1978 — talvez como reação aos eventos no Irã — com uma série de reflexões
num artigo sobre «Os aspectos paradoxais do sufismo», que tinham um tom quase anti-islâmico.54 Em 1981, ele escreveu para um seguidor que «nosso ponto de partida é a busca do esoterismo e não de uma religião particular»; em 1989 explicou a outro seguidor: «nosso ponto de partida é o Advaita Vedanta e não uma antropologia moralista, individualista e voluntarista com a qual o sufismo comum sem dúvida se identifica, não importando o quanto isso possa desagradar aqueles que desejariam que nossa ortodoxia consistisse em fingir ou nos apaixonarmos por uma mentalidade arábicosemita».55Alguns schuonianos contemporâneos argumentam que essas afirmações simplesmente refletem a posição de Schuon desde o princípio.56 Em certa medida, isso está claro, mas a força com que esses argumentos são apresentados não é vista antes do fim da década de 1970. Além de se afastar do Islã, Schuon também se afastou ainda mais de Guénon: em 1984, ele publicou em Paris um artigo acusando o francês de superestimar o Oriente e de subestimar o Ocidente, o tradicional, não o moderno, é claro.57 Essa crítica em particular também não era nova, e poderia ter passado em branco; o tom de Schuon em relação a Guénon, no entanto, não podia. Ele escreveu, por exemplo: «uma das coisas mais assombrosas é o espanto de Guénon com pontos que qualquer criança seria capaz de entender».58 Esse artigo causou furor entre Tradicionalistas não schuonianos, que exigiram a exclusão de Schuon das páginas de Études traditionnelles; os schuonianos franceses responderam fundando sua própria revista, Connaissance des religions [Conhecimento de religiões], uma publicação bem editada e com excelente design que rapidamente atingiu uma circulação maior do que a de Études traditionnelles, àquela altura já claramente fora de moda. Em 1992, Études traditionnelles finalmente deixou de ser publicada, após pouco mais de um século.59 O que havia sido a editora e a livraria dos Chacornac (Éditions traditionnelles), no entanto, entrou no século XXI como uma livraria esotérica genérica, especializada em Tradicionalismo e que continuou a publicar os livros de Guénon de que detinha os direitos autorais.60
Em 1981, Schuon se mudou da Suíça para Indiana, onde uma nova comunidade schuoniana foi fundada em Inverness Farms, um antigo conjunto habitacional às margens de uma floresta, a cerca de três milhas de distância de Bloomington. A comunidade de Inverness Farms em Indiana tinha por volta de sessenta ou setenta pessoas — norte-americanos, suíços e latino-americanos — residindo ao redor da casa de Schuon ou em localidades próximas.61 A casa de Schuon foi construída num terreno com que o havia presenteado um membro da ordem que vivia ao lado, e em cuja casa ficava a zawiya, «um grande aposento [...] com três arcos em um canto e um chão de madeira polida». A construtora havia sido informada de que a estrutura seria uma pista de dança.62 A imigração de Schuon para os Estados Unidos, algo notável para um homem de 73 anos de idade, aconteceu em resposta a um sinal dos céus, cujos detalhes são desconhecidos.63 Em uma carta a um seguidor, Schuon sugeriu que se mudou da Europa para os Estados Unidos para fundar uma comunidade primordial, apesar de a explicação geralmente oferecida pelos schuonianos ser o desejo do xeique de estar mais próximo da religião indígena norte-americana.64 As duas estavam ligadas: o Schuon tardio escreveu com frequência sobre a natureza primordial da religião indígena da América e sobre seu próprio papel primordial. A comunidade de Inverness Farms adotou como seu um símbolo dos indígenas das planícies, o «sol emplumado»; mais tarde, ele se tornaria também o símbolo da editora de Schuon em Bloomington, a World Wisdom Books. No fim da década de 1980, Schuon era visto por muitos em Inverness Farms como o «Mestre da Religio Perennis», por cima do Islã, assim como por cima — porque no centro — de todas as tradições individuais. A comunidade era considerada uma manifestação «direta» da Tradição Primordial em seu estado «mais puro», enquanto todas as outras organizações esotéricas eram apenas suas manifestações «indiretas».65 A comunidade de Inverness Farms foi enxertada no ramo da ordem Maryamiyya fundado em 1967 pelo professor Victor Danner, e, apesar de o próprio Danner ter sido logo excluído de qualquer papel na
direção da nova comunidade, algo da ordem Maryamiyya mais antiga permaneceu até o fim. A ênfase, no entanto, estava no «círculo interno» de primordialistas, os novos schuonianos, e não no círculo exterior dos membros mais islâmicos da ordem, geralmente descritos como «muçulmanos muçulmanos», que eram vistos com desprezo pelos primordialistas por seu apego excessivo às formalidades exotéricas do Islã. Muitos membros mais antigos passaram a estar cada vez mais ausentes, ou foram excluídos. Burckhardt, doente havia já um tempo, não seguiu Schuon aos Estados Unidos, falecendo em 1984.66 Danner morreu em 1990, sem se encontrar com Schuon desde 1985.67 Nasr visitava Inverness Farms apenas ocasionalmente (cerca de uma vez por ano), e, segundo algumas fontes, havia um esforço deliberado para esconder dele parte do que acontecia por lá. Lings também visitava apenas uma vez por ano, mas é possível que ele tampouco pudesse observar tudo, e que fosse visto por alguns, talvez por muitos primordialistas, como um pedante, tolerado com dificuldade.68 Schuon, aproximando-se dos oitenta anos de idade, passou a estar cada vez mais inacessível. Em seu período final, frequentava o dhikr apenas ocasionalmente e pouco falava em público — ele não se sentia confortável em inglês (apesar de dominar bem a língua), preferindo falar em francês e utilizar um intérprete.69 A direção da comunidade de Inverness Farms passou às mãos de seu muqaddam e outros primordialistas, especialmente Catherine Schuon, que regulava o acesso a seu marido. Uma jovem americana, Patricia Estelle (pseudônimo), também se tornou importante, passando a pintar junto com Schuon e, segundo alguns, incentivando que ele fosse percebido como mais do que simplesmente humano. Ela também se tornou sua terceira esposa «vertical» ou «espiritual», apesar de, ao contrário das outras duas esposas «verticais», não possuir outro marido no momento de seu «casamento» com o xeique.70 A maioria das pessoas na comunidade de Inverness Farms era ao menos nominalmente muçulmana e membro da ordem Maryamiyya, e os ritos do Islã e do sufismo continuaram a ser praticados, apesar
de o interesse no Islã como religião ser pouco encorajado, por ser algo demasiadamente exotérico. Um membro inglês da ordem que manifestou o desejo de aprender árabe foi aconselhado a aprender francês a fim de ler as obras de Schuon no original. O jejum de Ramadã era voluntário, membros que estivessem ocupados no trabalho tinham a permissão de «fazer sacrifícios alternativos», desde que jejuassem ao menos três dias no mês e que se concentrassem ainda mais no dhikr.71 A antiga autorização para tomar cerveja a fim de ocultar o Islã permanecia em vigor.72 Uma terminologia não islâmica passou a substituir a islâmica, com Schuon sendo descrito não como um qutb (o grau mais alto que os sufis normalmente conferem a seu amado xeique), mas como um pneumatikos. Há diferentes opiniões sobre a interpretação correta desse termo grego. Para alguns Tradicionalistas, ele simplesmente indica uma pessoa com um temperamento especialmente espiritual, um gnóstico que chegou ao fim do caminho em Deus, enquanto, para outros, indica uma pessoa em quem o espírito divino — em lugar de uma mera alma humana — predomina. É provável que ambas as interpretações estivessem presentes. Alguns schuonianos passaram a vê-lo como um avatar, um termo hindu para uma encarnação divina.73 Histórias começaram a circular a respeito da estatura espiritual de Schuon sendo reconhecida por leões e elefantes, bem como tendo sido prevista pelo arcebispo de Estrasburgo quando Schuon era criança em Mulhouse. Contavam-se até mesmo histórias de pessoas que faltaram ao respeito com Schuon na rua e que foram imediatamente paralisadas como resultado.74 Schuon tentou desviar a crescente atenção dirigida a ele, mas em termos equívocos. Em 1981, ele escreveu: «Não desejo que minha pessoa se torne objeto de especulações místicas e simbólicas que — para além de seu caráter problemático — criam preocupações suplementares e afastam a mente daquilo que exclusivamente importa: seguir meus ensinamentos sem acrescentar nada a eles».75 Tais proclamações não parecem ter surtido grande efeito. Diversas práticas «primordiais» foram introduzidas. O dhikr semanal era seguido não apenas de uma breve lição (escrita por
Schuon e lida em voz alta) e, às vezes, pela recitação de poesia em árabe, como é normal em círculos sufis, mas também por «uma espécie de canto ou canção indígena pele-vermelha, executada [pelos muqaddam] ao som de um tambor».76 «Dias indígenas» (também conhecidos como «pow wows») também foram criados, sendo realizados cerca de uma vez por mês durante o verão e contando com danças e cerimônias às vezes lideradas por Yellowtail, com os muqaddam encarregados dos tambores e do canto.77 Para esses «dias indígenas» era adotada uma forma de vestimenta típica, que, no caso das mulheres, se reduzia a biquínis ornamentados. Em tais ocasiões, Schuon aparecia vestido como um chefe indígena, carregando um cajado emplumado.78 Além dos «dias indígenas», há relatos também de «encontros primordiais» secretos frequentados apenas por Schuon e um pequeno número de seus seguidores mais próximos (segundo um desses relatos, cinco ou seis mulheres e três homens; segundo outro, de dez a quinze pessoas de cada sexo). Uma fonte próxima a Schuon descreveu da seguinte forma uma dessas ocasiões: As mulheres estavam nuas, exceto eu e [outra mulher]. Preferíamos estar vestidas porque já éramos mais velhas; assim, usávamos sáris com transparência. Os homens estavam de tanga, exceto o xeique [Schuon], que vestia uma tanga «livre», ou seja, sem nada por baixo, de modo que podíamos vê-lo nu com frequência. Após um jantar bom e simples, uma mulher executava uma encantadora dança do tipo hindu, ou indígena, ou balinesa, com um véu e flores. Era algo celestial, formal e muito, muito lindo. [...] O xeique realizava a dança primordial e nós a assistíamos — e [uma mulher] às vezes tentava puxar e tirar sua tanga! [As mulheres mais velhas] às vezes dançavam flamenco e, por vezes, [outras três mulheres] realizavam uma dança em conjunto.79 Schuon, como já vimos, enxergava a beleza como capaz de facilitar o acesso ao divino. Como ele escreveu por volta dessa época:
Dada a degeneração espiritual da humanidade, o grau mais elevado possível de beleza, o do corpo humano, não desempenha papel algum na piedade comum; mas essa teofania pode ser um apoio para a espiritualidade esotérica. [...] Nudez significa interioridade, essencialidade, primordialidade e, portanto, universalidade. [...] Nudez significa glória, irradiação da substância ou energia espiritual; o corpo é a forma da essência e, portanto, a essência da forma. Mas não há apenas beleza visual; poesia, música e dança são também meios de interiorização; não em si mesmas, mas combinadas com a lembrança do Soberano Bem.80 Schuonianos contemporâneos argumentam que a maneira como um observador enxerga a nudez — como espiritual ou sexual — é uma função de seu estado espiritual e de seu status. Nas palavras de Schuon, «Belezas terrenas [...] conduzem o homem espiritual a Deus e o homem vulgar apenas a si mesmo».81 Se esses encontros secretos existiram, apenas a porção mais restrita do «círculo interno» sabia deles, mas muitos «muçulmanos muçulmanos» (e até mesmo alguns dos mais recentes membros da ordem) estavam insatisfeitos com os «dias indígenas», com o que consideravam roupas vistosas e afetação, com as alegações feitas sobre Schuon e com o «ambiente humano», que, segundo um participante, era caracterizado pela «maledicência, intriga, espionagem e pequenas brigas pelo poder, que pareciam uma constante em tudo ligado ao ‹círculo interno› — para não falar da fofoca generalizada». Apesar dessa situação, «o medo de ser ostracizado ou de ser visto como um discípulo ‹periférico› era uma maneira efetiva de manter todos ‹na linha›».82 Nem todos podiam ser mantidos «na linha», porém. Havia objeções suficientes ao papel desempenhado por Catherine Schuon a ponto de obrigar seu marido a escrever: «Ninguém tem o direito de acreditar que a mulher do xeique se ocupa de assuntos além de sua competência, porque, se o fossem, ela não deveria ocupar-se deles».83 Esse argumento circular não convenceu a todos. No fim da década de 1980, o número de pessoas abandonando a ordem
Maryamiyya crescia, especialmente após 1988, quando Alawi al-Alawi, da ordem Alawiyya da Argélia, visitou Nova York e supostamente negou a validade da pretensão de Schuon à ijaza dos alawis.84 Além disso, pouco a pouco o fato de que Schuon tinha esposas «verticais» foi se tornando amplamente conhecido.85 O desastre finalmente se abateu sobre Inverness Farms em 1991, quando Mark Koslow , que era próximo do «círculo interior» durante um tempo e também tinha um relacionamento amoroso com Rose Connor (pseudônimo), uma das esposas «verticais» de Schuon, rompeu com o xeique após não receber permissão para continuar seu relacionamento com Connor. Koslow contou à polícia histórias sobre «encontros primordiais» e outras atividades em Inverness Farms. Ele e outros alegaram que, ao final dos «dias indígenas» e dos «encontros primordiais», Schuon abraçava as mulheres presentes, incluindo algumas menores de dezesseis anos, de maneira que seus genitais se tocassem brevemente.86 Koslow — e a polícia — claramente associava a nudez ao sexo, e não à espiritualidade. Uma investigação policial teve início e, após alguns meses, levou ao indiciamento de Schuon por um grande júri sob as acusações de molestamento de crianças e agressão sexual. A base da primeira acusação foi que garotas com menos de dezesseis anos supostamente estiveram presentes em tais «encontros» e supostamente foram abraçadas por Schuon junto com outras mulheres; a da segunda, que as mulheres que permitiram que ele pressionasse seu corpo contra os delas o fizeram como resultado de «influência e pressão exercidas de maneira indevida em uma seita».87 Essas acusações foram posteriormente retiradas pelo promotor porque não havia «provas suficientes para fundamentar um processo criminal com base nelas». Em uma declaração à imprensa, ele afirmou: «No que diz respeito ao modo como ele [Schuon] foi rotulado, houve um erro judicial».88 A maior parte da comunidade Inverness Farms se manteve firmemente ao lado de Schuon.89 A existência de «encontros primordiais» secretos foi negada, bem como os abraços em geral e os abraços a menores em particular.90
Segundo um porta-voz da comunidade, algumas das garotas menores de idade que supostamente haviam sido abraçadas estavam em outros lugares nas datas em questão.91 Mesmo que os abraços tivessem ocorrido e que tivessem sido admitidos, Schuon provavelmente não seria culpado de nenhum crime segundo as leis de Indiana, já que ambos os crimes exigem «a intenção de excitar ou satisfazer [...] desejos sexuais»;92 não há nenhuma sugestão de que esse tenha sido o caso. Até mesmo Koslow aceita atualmente que as intenções de Schuon «não tratavam primariamente de sexo, mas de sua busca de ilusões absurdas de poder».93 Apesar de Schuon ter sido exonerado aos olhos da lei, da maior parte de seus seguidores e da imprensa de Indiana, o caso ainda teve repercussões. O promotor assistente do caso foi acusado de não ter fornecido ao grande júri «as diretrizes apropriadas sobre os critérios legais [exigidos] para substanciar tais acusações», e renunciou.94 Connor processou civilmente Koslow demandando a posse da casa que ela havia comprado para ele. Aldo Vidali, um antigo membro da ordem que havia tomado o partido de Koslow contra Schuon, foi processado por outro membro por supostamente alterar de maneira fraudulenta um contrato náutico, além de ter sido processado pelo próprio filho por supostamente ter vendido um barco à vela do qual este possuía um terço.95 Longe de Indiana, um consumado adversário das posições de Nasr — Ziauddin Sardar — publicou uma resenha de uma série de seus livros na revista Insight International. Ele começou citando os elogios mais efusivos de Nasr a Schuon e passou a descrever, com evidente satisfação e no tom mais hostil possível, as acusações contra Schuon.96 Rumores acerca dos acontecimentos em Inverness Farms começaram a se espalhar pelas comunidades Tradicionalistas na Europa, bem como em círculos sufis ocidentais e islâmicos mais além do Tradicionalismo. Membros da comunidade de Inverness Farms tentaram evitar essa difusão, por exemplo buscando uma ordem judicial que proibisse Aldo Vidali de fazer circularem fotos aparentemente comprometedoras de Schuon, alegando violação de direitos autorais; outra ação foi ajuizada contra quando ele passou a
fazer circularem desenhos dessas fotografias.97 O estrago, no entanto, já estava feito. Schuon, um homem envelhecido e claramente atormentado, escreveu ao seus principais muqaddams anunciando que deixaria o comando da ordem Maryamiyya e instruindo-os a prosseguir de maneira independente. Lings, Nasr e o muqaddam para a Suíça protestaram lealdade a Schuon, mas, na prática, começaram a seguir em frente sem depender dele.98 Desde então, eles continuaram com a ordem Maryamiyya sem fazer referências ao primordialismo da última fase de Schuon, encontrando-se anualmente no Cairo para coordenar suas atividades. Essas seções da ordem sempre enfatizaram o Islã, e, desde o início da década de 1990, tornaram-se ainda mais islâmicas. Schuon passou os últimos anos de sua vida escrevendo — incluindo cerca de 3 mil poemas em alemão — e morreu em 1998.99 A comunidade de Inverness Farms ainda existe, e os relatos sugerem que ela continua a funcionar com ênfase no primordialismo. Ela cresceu pouco nos últimos anos, grande parte de tal crescimento vindo da admissão de filhos adultos de antigos membros.100 Desde a morte de Schuon, a comunidade tornou-se muito menos secreta. Apesar de Inverness Farms estar cercada em parte por um muro que mantém afastados os olhares curiosos, a própria ordem Maryamiyya agora é discutida abertamente.101 A reação dos demais membros da ordem a esses acontecimentos e revelações foi variada. O círculo mais interno de Inverness Farms não se abalou com os detalhes da acusação de Koslow, mas sim com os próprios acontecimentos. Se as acusações não tinham fundamento, eles o sabiam. Se estavam baseadas em fatos verdadeiros, eles tinha apoiado tais práticas ao participar delas e não viam nada de errado nisso. De uma maneira ou de outra, seu ponto de vista é expresso por Catherine Schuon, escrevendo em um contexto mais amplo: «A presença do sagrado pode gerar ódio. Assim, o xeique teve de sofrer a dolorosa experiência das pessoas que se rebelaram contra ele e o cobriram de falsas acusações».102 Outros, de fora da comunidade, desviavam o olhar: coisas estranhas claramente vinham acontecendo, mas os culpados eram
elementos do séquito de Schuon e não o próprio xeique, e não era justo nem útil investigar muito a fundo coisas impossíveis por sua própria natureza. Como Burckhardt havia escrito treze anos antes, em resposta a sugestões anteriores de comportamentos impróprios de Schuon: «Você acredita que Deus seria capaz de desapontar pessoas que seguiram corretamente o Caminho por mais de quarenta anos, colocando sua fé em Deus na pessoa de seu mestre [...] você acredita que Deus poderia desejar recompensá-los com uma desilusão escandalosa?»; «É concebível que um homem cuja própria natureza é a incorruptibilidade intelectual [...] viesse a sucumbir perante uma tentação banal?».103 Algumas pessoas, no entanto, trocaram a Maryamiyya por outras ordens sufis, como a Alawiyya argelina original, enquanto outros abandonaram o Islã e se converteram a outras religiões, ou a nenhuma; a maioria dessas pessoas teve suas vidas deslocadas em maior ou menor grau, e algumas passaram por um verdadeiro sofrimento e tragédia pessoal.104 Outras ainda afastaram-se o máximo possível do que um membro americano da ordem, residente no mundo árabe, chamou de «escuridão por baixo da lanterna», seguindo o exemplo de Danner. Este afastou-se de maneira privada de Schuon ao mesmo tempo que sustentava que ele era o xeique autêntico de uma ordem sufi autêntica, mas que se encontrava (nas palavras de um membro da ordem que manifestou suas dúvidas a Danner) «cercado por pessoas medíocres e más, cujos defeitos o próprio Schuon em grande medida não enxergava».105 Quando esse membro da Maryamiyya contou a Danner que passaria para a Alawiyya, este respondeu-lhe de maneira afável: «ligar-se a outro xeique é uma das soluções para diversos problemas apresentados [por Schuon]», mas aconselhou o colega a «não guardar recriminações [contra Schuon] ou contra qualquer outro de seus seguidores aqui. [...] De outro modo, esses pensamentos podem obscurecer sua mente».106 Para muitos membros de longa data da ordem Maryamiyya, a maneira como ela se desenvolveu em Inverness Farms foi uma tragédia que gerou enorme confusão. Diversas explicações são
sugeridas, indo do impacto do ambiente dos Estados Unidos à influência de Estelle. A explicação mais frequente entre os exmembros mais ponderados e Tradicionalistas da ordem é que Schuon confundia a observação perenialista correta a respeito da unidade transcendente das religiões com uma tentativa tola e impossível de recriar uma religião unificada na Terra. Schuon havia perdido de vista o fato de que «a religio perennis não é, de maneira alguma, a antecipação da revelação da religião universal que virá [no fim dos tempos], ou a remanifestação da forma espiritual da era dourada primordial».107 O resultado de «dar [ao estado primordial] uma forma sensível composta de elementos retirados do Islã, do xamanismo da América do Norte [...] e iconografia cristã ortodoxa» foi o de «substituir o verdadeiro esoterismo por uma fantasia».108 Como vimos, Huston Smith perguntou retoricamente em outro contexto: «Quem é capaz de dizer qual é a essência das religiões do mundo? E como qualquer descrição dessa essência seria capaz de evitar a marca da linguagem e da perspectiva de seu proponente?».109 Segundo essa visão, Schuon tentou responder àquela questão, e sua resposta carregou, de fato, uma marca pessoal.
9. TERROR NA ITÁLIA
Julius Evola e Frithjof Schuon foram os Tradicionalistas mais longevos da primeira geração. Antes da morte de Evola, em 1974, ele desempenhou um papel importante na história da Itália do pósguerra, tornando-se o Tradicionalista com o nome mais reconhecido pelo público — um nome que veio a ser universalmente coberto de injúrias. A Segunda Guerra Mundial desacreditou por completo o fascismo na Itália, mas o país não passou por nada equivalente ao programa de desnazificação imposto pelos aliados à Alemanha. Como resultado disso, grupos políticos de extrema direita ressurgiram mais cedo na Itália do que na Alemanha. Quando isso aconteceu, a condição marginal de Evola durante a guerra (bem como sua inocência e ausência de responsabilidade pela debacle do fascismo de Mussolini) colocou-o numa posição vantajosa. A política de extrema direita da Itália do pós-guerra pode ser dividida em dois períodos, um deles ligado de certa maneira ao fascismo de Mussolini; o outro, ao novo radicalismo derivado da ebulição social e política de 1968. Em ambos os períodos, as atividades do principal partido político direitista — o Movimento Sociale Italiano [Movimento Social Italiano] (MSI) — foram complementadas por uma série de grupos sem ambições parlamentares. Para muitos desses grupos, ainda que não para o próprio MSI, as obras de Evola possuíam uma importância central. Evola esteve inicialmente ligado aos Fasci di Azione Rivoluzionaria (Fasces de Ação Revolucionária, FAR), o primeiro dos grupos direitistas do pós-guerra, ainda que a natureza dessa ligação não esteja clara. Os FAR foram fundados no fim de 1946, e logo se dividiram em dois grupos, um revolucionário e outro «utópico». Em 1949, Evola publicou, na revista de um grupo de jovens do MSI chamada Imperium, um artigo chamado «Due intransigenze» (Duas
intransigências), possivelmente dirigido a ala utópica dos FAR, defendendo a primazia da revolução espiritual. Esse artigo foi a base de um importante panfleto de 1950, Orientamenti [Orientações].1 Nesse momento, Evola ainda pensava em termos de uma ordem iniciática e urânica, do tipo encontrado no capítulo 5, ainda que não mais a ordem ítalo-germânica que buscou durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo uma fonte, ele apoiou os objetivos e a atividade de Junio Valerio Borghese, um aristocrata, fascista e herói de guerra da Segunda Guerra Mundial.2 Em 1951, a polícia italiana prendeu cerca de treze membros dos FAR e acusou-os de conspirar para restabelecer o fascismo. Evola foi um dos detidos, embora não como membro dos FAR. Ele foi acusado de inspirar o partido por meio de seus escritos, algo que não se sustentou nos tribunais, e terminou absolvido.3 A publicidade ao redor do julgamento, no entanto, ajudou a lançar sua carreira no pós-guerra. Ele expandiu o texto Orientamenti e transformou-o num livro, publicado em 1961 sob o título de Cavalcare la Tigre: Orientamenti esisteziali per un’epoca della dissoluzione [Cavalgar o tigre: orientações existenciais para uma época de dissolução]. Cavalcare la Tigre viria a se tornar o principal texto para a extrema direita italiana. Esse livro também marca o fim dos interesses de Evola em ordens iniciáticas e urânicas.4 A organização de extrema direita mais importante do primeiro período do pós-guerra italiano foi a Ordine Nuovo [Nova Ordem], uma dissidência do MSI fundada por Pino Rauti em 1956.5 Rauti era um seguidor convicto de Evola, ou, ao menos, da obra de Evola, e a Ordine Nuovo se comprometia publicamente com a defesa «de tudo de tradicional que foi salvo e encontrou um ‹polo›». Eles lançaram um jornal, chamado Ordine Nuovo, e ofereceram cursos e seminários baseados nas obras de Evola (e, às vezes, nas de Guénon), incluindo as Orientamenti.6 Um pequeno círculo no interior da Ordine Nuovo chegou a seguir os interesses anteriores de Evola — magia cerimonial e neopaganismo romano —, fundando o grupo I Dioscuri (do grego, Dioskouroi, filhos de Zeus) em Roma no final da década de 1960. Pouco se sabe sobre suas atividades, exceto que ele encontrou algum
tipo de dificuldade que levou ao suicídio de diversos membros. Houve rumores sobre sacrifícios, presumivelmente animais.7 Em 1975, o grupo I Dioscuri havia deixado de operar em Roma, apesar de um ramo ter sobrevivido em Messina.8 A maior parte das atividades da Ordine Nuovo, porém, era intelectual e política. Segundo o sociólogo Franco Ferraresi, a organização e sua revista serviram também como ponto de referência para uma miríade de grupos menores e mal coordenados entre si, alguns dos quais envolvidos em ações armadas — atentados à bomba e uma tentativa de golpe de Estado — em lugar de atividades intelectuais. O ímpeto imediato para a violência dos grupos da Ordine Nuovo não veio tanto de Evola quanto da atmosfera dos primeiros tempos da Guerra Fria e das atividades de grupos como o Front de Libération Nationale (FLN) da Argélia, o movimento armado nacionalista que terminou por expulsar os franceses da Argélia. O Partido Comunista Italiano (PCI) era o partido comunista mais forte da Europa, e havia uma grande preocupação em Washington, em partes do governo, das Forças Armadas e dos serviços de segurança da Itália de que o país pudesse «cair», passando para o campo soviético. Tais círculos enxergavam as atividades dos FLN no contexto da Guerra Fria, e não da descolonização, e o conceito de «guerra revolucionária» foi desenvolvido. Segundo tal entendimento, a União Soviética combatia uma guerra não convencional, «revolucionária» contra o Ocidente por meio de intermediários como a FLN e o PCI. Era direito e dever dos Estados ocidentais responder à guerra revolucionária tanto quanto à guerra convencional, usando as armas apropriadas, ou seja, as táticas insurgentes e terroristas empregadas com evidente sucesso por grupos como a FLN.9 Alguns evolianos ligados à Ordine Nuovo estiveram entre os que difundiram o conceito de guerra revolucionária,10 mas não na linha de frente desse desenvolvimento, que não está ligado ao Tradicionalismo. No entanto, um grupo em Roma derivado da Ordine Nuovo — chamado Avanguardia Nazionale Giovanile (Vanguarda Nacional Juvenil), liderado por Stefano Delle Chiaie — esteve na linha
de frente da implementação dessa teoria. Com cerca de quinhentos membros, a Avanguardia Nazionale foi responsável por, pelo menos, quinze ataques terroristas entre 1962 e 1967, contando às vezes com a simpatia (e talvez a ajuda) de elementos das forças de segurança italianas.11 Sua estratégia algumas vezes era direta, outras, «indireta». Diversos ativistas da Avanguardia Nazionale, por exemplo, aparentemente se converteram à esquerda e depois reapareceram jogando coquetéis molotov em meio aos estudantes esquerdistas de 1968, ações presumivelmente planejadas para desacreditar os grupos do outro lado.12 A ligação entre as atividades da Avanguardia Nazionale e o Tradicionalismo não é clara. A produção intelectual visível do grupo não passava da propaganda anticomunista mais crua.13 Assim, é impossível afirmar em que medida Delle Chiaie trouxe consigo o Tradicionalismo da Ordine Nuovo. Um elo mais claro surge no caso do grupo da Ordine Nuovo em Udine, comandado pelos irmãos gêmeos Gaetano e Vincenzo Vinceguerra. Ao serem julgados pelos homicídio e pelos atentados à bomba realizados em 1971-72, os irmãos citaram não apenas Evola, mas também Guénon, como justificativa para suas ações.14 Outro elo vem da pessoa de Franco Freda, o discípulo mais importante da fase tardia de Evola. Tal elo é «intelectual» no sentido de que as ligações intelectuais são muito claras, enquanto não há informações sobre ligações pessoais. Nesse sentido, Freda é uma figura central na história do Tradicionalismo político italiano. Franco Freda, membro da Ordine Nuovo desde 1966, liderava um grupo em Pádua que começou a colocar bombas em 1969. Como no caso da Avanguardia Nazionale e dos irmãos Vinceguerra, a estratégia escolhida foi, uma vez mais, indireta. Certa vez, seus seguidores colocaram cinco bombas em bancos de Roma e Milão; em seguida, passaram informações à polícia incriminando o grupo anarquista 22 Marzo. Como pretendido, os membros do 22 Marzo foram presos e, junto com outros grupos anarquistas, sofreram medidas repressivas da polícia, justificadas por uma onda de indignação pública. Desse modo, a operação poderia parecer um exemplo de manual de guerra revolucionária, exceto pelo fato de não
ter obtido os resultados desejados. Gradualmente, tornou-se claro que o grupo 22 Marzo não poderia ter colocado as bombas, e os verdadeiros autores do atentado foram revelados após um vazamento no interior do grupo de Freda.15 O impacto de longo prazo das operações de Freda foi o oposto do desejado. Logo após os ataques à bomba, Giuseppe Pinelli, um membro do grupo 22 Marzo, caiu do terceiro andar da sede da polícia de Milão, onde estava sendo interrogado,16 e faleceu. O incidente foi imortalizado por Dario Fo, dramaturgo esquerdista e futuro prêmio Nobel, em sua peça Morte accidentale di un anarchico [Morte acidental de um anarquista] (1974).17 Essa peça, um feroz ataque à brutalidade e à estupidez policial (e, portanto, da autoridade em geral), foi um grande sucesso nas décadas seguintes, especialmente nos meios estudantis, e ajudou a fomentar uma atitude antiautoritária em gerações de estudantes na Europa. Uma das consequências mais importantes dessa tentativa de colocar o Tradicionalismo em prática, portanto, foi claramente «antitradicional». Em qualquer tempo, esforços para ir contra a corrente correm o risco de terem sua direção revertida e de serem levados na direção do fluxo geral. Algo assim aconteceu com as atividades Tradicionalistas de Nasr no Irã, que contribuíram para uma revolução que ele mesmo trabalhava para prevenir. Muitos outros atentados à bomba se seguiram. Devido ao uso de estratégias indiretas e aos resultados inconclusivos de muitas investigações policiais, a responsabilidade exata pelo aumento dramático na violência política na Itália por volta dessa época (145 incidentes terroristas apenas em 1969) não foi determinada de maneira definitiva.18 Está claro, no entanto, que ativistas ligados à Ordine Nuovo, que podem ou não terem sido Tradicionalistas evolianos, foram responsáveis por um número significativo de ataques violentos a diversos alvos. O incidente mais dramático desse primeiro período foi uma tentativa de golpe de Estado em 1970, motivada pela percepção de um risco crescente de que o país fosse tomado pelos comunistas. A tentativa de golpe foi liderada por Borghese, não se sabe se ainda
favorecido por Evola, com o apoio de um grupo de paraquedistas amadores, guardas florestais em treinamento e pessoas ligadas à Ordine Nuovo. A tentativa de capturar alvos-chave em Roma foi abandonada antes de ter propriamente começado, e houve tantos elementos farsescos na operação (por exemplo, a caminho de prender o chefe da polícia de Roma, os conspiradores sobrecarregaram um elevador e ficaram presos nele a noite inteira) que um tribunal se recusou a acusar os autores de «insurreição armada» sob a alegação de que eles não podiam ser levados a sério como uma ameaça à República.19 Esse primeiro período de violência direitista na Itália terminou com a dissolução forçada, por ordem judicial, das organizações Ordine Nuovo e Avanguardia Nazionale em 1974.20 Evola e os Tradicionalistas não foram responsáveis pelos objetivos imediatos dessa violência (a luta contra o comunismo) ou pelos meios das ações, pois as origens do conceito de guerra revolucionária vêm de outro lugar. Uma contribuição do Tradicionalismo a esse período, no entanto, foi fornecer a visão de um futuro melhor que motivou muitos direitistas em nível individual. Outra contribuição foi o guerreiro espiritual de Evola — o indivíduo absoluto, que se tornou o modelo inspirador de muitos dos participantes. Evola foi mais importante durante o segundo período do terrorismo direitista, que começou em 1968, como tantas outras coisas. Foi nesse ano que as vendas de Cavalcare la Tigre, antes nas centenas, passaram aos milhares.21 Nessa obra, Evola argumenta que o fim do século XX é uma época de dissolução. Não existem Estados que possam invocar uma «autoridade inalienável» — todos não passam de uma coleção de «sistemas representativos e administrativos» — mas tampouco existem movimentos «de guerrilha» antiestado dos quais seja possível participar, dada a ausência de condições prévias para qualquer ação «retificadora» bem-sucedida, isto é, a instalação de uma autoridade estatal legítima.22 Essa análise é o inverso da posição evoliana do pré-guerra; suas atividades entre as décadas de 1920 e 1940 demonstravam claramente que ele acreditava, ao menos
naquela época, na possibilidade de instalar um sistema considerado legítimo. Apesar da impossibilidade de uma ação «retificadora» legítima, observou Evola, alguns indivíduos continuam «dispostos a lutar, ainda que sobre posições já perdidas». A estes, ele recomendava a apoliteia (separação da pólis), que definia como «o distanciamento interior irrevogável da sociedade e de seus ‹valores›; bem como a recusa a ligar-se a eles por quaisquer elos morais ou espirituais». Evola enfatizava que ele estava descrevendo um estado interior que não necessariamente precisava ter consequências no campo da ação. Ao mesmo tempo, enfatizava também que tal estado não exigia a abstenção, como no caso de «objetores de consciência».23 O significado de apoliteia para Evola em termos práticos — no campo da ação — tem sido objeto de grandes debates desde então.24 Mais importante do que o real significado da palavra para Evola, no entanto, foi o que as pessoas pensaram que ela significava. Freda transformou apoliteia num chamado contra o Estado burguês sem levar em conta as consequências, uma espécie de existencialismo Tradicionalista, e a palavra «existencialismo» é usada no subtítulo de Cavalcare la Tigre. Os desenvolvimentos do Tradicionalismo evoliano elaborados por Freda não eram completamente niilistas — ele defendia a destruição do Estado burguês como uma necessidade preliminar a desenvolvimentos posteriores, o que implica uma crença na possibilidade de uma «ação retificadora» —, mas seu chamado se dirigia, na realidade, àquilo que Gianfranco de Turris chamou de «anarquismo direitista».25 Do mesmo modo que houve uma mudança de ênfase em Evola (ou se acreditava que tivesse havido), passando dos objetivos da ação aos estados interiores que geram a ação, uma mudança de ênfase também foi observada em Freda, passando da objetividade — que implicava certo grau de planejamento central e organização — à individualidade. Ele foi um dos primeiros e mais importantes defensores da chamada «solução arquipélago», o novo padrão de organização do terrorismo italiano de extrema direita que emergiu na década de 1970 — uma solução ao problema gerado pela dissolução da Ordine Nuovo. Ela representava a substituição das estruturas
anteriores, relativamente grandes e hierarquizadas, por grupos pequenos e fluidos, geralmente formados para uma ação em particular e dissolvidos em seguida, atuando quase sempre de maneira independente uns dos outros e sem comando central.26 A solução arquipélago apresenta certas vantagens operacionais óbvias. Como extensão do sistema leninista de células, trata-se da última barreira contra a infiltração policial: apenas uma operação pode ser comprometida. No entanto, trata-se de mais do que mera defesa, pois o abandono de qualquer controle sobre os grupos operacionais só faz sentido como corolário do abandono de uma estratégia geral. Assim, a solução arquipélago acompanha a apoliteia, ao menos como Freda entendia esta última. As duas juntas formam o spontaneismo armato (espontaneidade armada), a descoberta mais destrutiva de Freda, mais tarde popularizada em sua revista, chamada Quex.27 Na prática, o spontaneismo armato pouco difere do caos aleatório. A despeito desses desenvolvimentos, ainda existiam grupos direitistas estáveis, alguns formados de unidades clandestinas permanentes. Mais interessantes eram os «círculos culturais» ou «grupos de estudo» criados por toda a Itália, aparentemente concentrados no estudo da obra de Evola e de outros escritores direitistas. Recrutas para operações podiam ser encontrados nesses grupos e neles se formavam intelectualmente. No entanto, esses grupos não eram, em si mesmos, unidades operacionais.28 A mudança de alvo da violência direitista (dos comunistas ao Estado burguês) operada por Freda em 1974, ano da morte de Evola, teve seu espelho numa mudança de alvo da violência esquerdista. A esquerda também passou a atacar o Estado (descrito como «capitalista», em lugar de «burguês») em vez de usar a violência como uma forma de propaganda (a tática do período anterior, que envolvia executar industrialistas declarados culpados de comportamento repreensível contra os interesses da classe trabalhadora). Da mesma forma que os direitistas adotaram a solução arquipélago, os ativistas de esquerda se dissociaram de organizações como o Partido Comunista Italiano (PCI), que havia feito acordos com outras forças políticas na Itália. Para muitos esquerdistas, a velha
divisão entre direita e esquerda perdera muito de sua importância e havia sido substituída por uma divisão que Asor Rosa identificou como entre «Dentro» e «Fora». Industrialistas burgueses, trabalhadores sindicalizados e o PCI estavam «Dentro»; desempregados, mulheres, estudantes e outros grupos marginais estavam «Fora».29 Durante esse segundo período, houve muitas similaridades entre direitistas e esquerdistas. O ataque terrorista mais sangrento da época foi o atentado à bomba na estação de trens de Bolonha em 2 de agosto de 1980, que matou 85 pessoas. Durante muitos anos, não esteve claro se os explosivos foram colocados pela direita ou pela esquerda.30 Não apenas o inimigo agora era o mesmo para os dois lados, mas, em ambos os casos, as justificativas para a violência haviam se tornado cada vez mais existenciais à medida que as perspectivas de ganhos políticos diminuíam. Freda chegou a buscar uma aliança direita-esquerda sobre essas bases,31 uma aliança que aconteceria na Rússia pós-soviética, consolidada por uma ideologia criada por um Tradicionalista a partir do Tradicionalismo e de outras fontes. Na Itália, o perfil demográfico dos ativistas de direita e de esquerda mudou à medida que a polícia passou a ter mais sucesso em se infiltrar nos grupos terroristas e prender seus líderes. Durante a década de 1980, com os terroristas de ambos os lados cada vez mais jovens (com frequência, quinze ou dezesseis anos de idade), a organização e a estratégia desapareceram por completo, substituídas pelo crescimento de ataques cada vez mais aleatórios. Esquerdistas atiravam contra seguranças privados, funcionários do Ministério do Trabalho e até mesmo médicos. Direitistas atiravam em policiais e até em seus próprios líderes ainda fora da cadeia. Por fim, a polícia teve sucesso, e, por volta de 1983, os grupos de direita e de esquerda haviam deixado de existir.32 Não está claro se Evola previu ou desejou as consequências de seus escritos nesse período. Parece provável que sim, no entanto, especialmente à luz de seu envolvimento anterior com as SS e com a política racialista nazista em 1942. Não é possível que Evola ignorasse
o que se fazia em seu nome, e o único esclarecimento a respeito de Cavalcare la Tigre feito por ele foi o de que o livro estava dirigido a homens «tradicionais». Do mesmo modo, ele escreveu alguns artigos condenando o uso da violência contra «o sistema», mas eles pareciam condenar mais um excesso de energia juvenil do que os atos violentos em si mesmos.33 Em 1971, Evola conversou com Henri Hartung sobre os «grupos de estudos evolianos em Gênova, Palermo e Calábria». Segundo Hartung — um Tradicionalista muito diferente, que não tinha simpatia pela direita política —, Evola falava «com uma ternura surpreendente [...] desses jovens que, rejeitando a degradação profana, tentavam restaurar um estado espiritual tradicional. Mas, com uma indiferença cortante, ele rejeitou todas as tentativas ‹anacrônicas› de ‹um ativismo desprovido de qualquer preparação doutrinária séria›».34 Evola, portanto, parece ter aprovado o que se fazia em seu nome, desde que fosse feito com a preparação espiritual adequada. Isso não significa, porém, que ele possa ser considerado o único responsável pelo terrorismo de extrema direita na Itália. Evola não era o único autor que os terroristas liam; Franco Freda fundou uma editora chamada AR, que publicou as obras de Oswald Spengler, Friedrich Nietzsche, Corneliu Codreanu e Muammar Gaddafi, além do próprio Evola.35 Além disso, houve diversos outros fatores importantes de ordem social, econômica e política. O terrorismo entre as décadas de 1960 e 1980 foi um fenômeno italiano, e não apenas direitista. Na opinião de Roger Griffin, «1968 criou um clima em que, se Evola não existisse, teria sido preciso inventá-lo».36 O ano de 1983 assistiu ao fim da violência política direitista significativa na Europa Ocidental, mas não da direita ou do Tradicionalismo Evoliano. Evola e, em menor medida, Guénon continuaram na lista de leituras da Nova Direita, levando à ideia equivocada de que ambos são, sobretudo, teóricos do fascismo. O exemplo mais importante de Tradicionalismo evoliano no fim do século XX não esteve na Europa Ocidental, mas na Rússia, e é discutido em um capítulo posterior. Houve também grupos evolianos na Hungria, Alemanha, Áustria, França e Argentina, bem como na
Itália e possivelmente também em outros países.37 Desses, os mais importantes foram os húngaros e os italianos. Apesar de o terror Tradicionalista ter se encerrado na Itália em 1983, esse não foi o fim dos Tradicionalistas envolvidos com ele. Alguns, como Claudio Mutti,38 antigo seguidor de Freda (discutido mais adiante), passaram a operar de maneira não violenta e independente. Outros passaram a enfatizar a obra e o pensamento de Evola em lugar da ação, especialmente aqueles estabelecidos em torno da Fondazione Julius Evola, criada em 1974, e que, no fim do século XX, publicava livros e periódicos, organizava conferências regulares e mantinha um excelente site na internet.39 Diversos círculos de estudo evolianos também continuaram, com ao menos dois deles fazendo parte da ala jovem da Alleanza Nazionale, um front comum de direita que fez campanha com o primeiro-ministro Silvio Berlusconi nas eleições de 2001 e foi recompensado com cinco pastas ministeriais e um cargo de vice-primeiro-ministro para Gianfranco Fini, seu líder.40 Freda, rejeitado por muitos Tradicionalistas evolianos e condenado a dezesseis anos de prisão em 1972, ressurgiu no fim da década de 1980, e, em 1991, fundou o Fronte Nazionali (Front Nacional). Seus apoiadores eram majoritariamente skinheads e seu tema principal era a imigração, não sob a forma de um racismo cru, mas como um ataque ao multiculturalismo em nome da preservação da pureza de tradições particulares. No entanto, Freda e cerca de cinquenta seguidores foram condenados em 1999 por «incitação à discriminação racial»; em 2002, o Front Nacional foi dissolvido por um decreto do ministro do Interior e seus bens foram confiscados.41 Comentava-se, porém, que ativistas do Front Nacional, aliados a membros da Alleanza Nazionale, ajudaram a fomentar a violência que chocou a Itália durante os protestos antiglobalização ocorridos durante a cúpula do G8 realizada em Gênova em 2001.42 O Tradicionalismo húngaro, assim como o romeno, formou-se antes da Segunda Guerra Mundial, sobreviveu ao comunismo e ressurgiu na década de 1990. O primeiro seguidor de Evola na Hungria foi Béla Hamvas, um bibliotecário e jornalista que publicou obras sobre o
Tradicionalismo entre 1935 e 1943. Após 1945, Hamvas foi obrigado a trabalhar como vigia noturno, mas transmitiu seu interesse pelo Tradicionalismo a András László, um jovem filósofo dissidente. Em 1975, László começou a dar aulas particulares sobre filosofia e Tradicionalismo para um círculo de vinte ou trinta dissidentes como ele, e esse círculo evoluiu para um Tradicionalismo aberto na década de 1990.43 Um Hamvas Béla Kör (Círculo Béla Hamvas) foi fundado, assim como uma editora evoliana (Arkhé), além de três grupos evolianos.44 O grupo Tradicionalista húngaro mais importante do fim do século XX foi o Kard-Kerezst-Korona Szövetség (Aliança Espada-Cruz-Coroa), de Tibor Baranyi, com sede em Debrecen, próximo da fronteira com a Romênia. O número de seguidores do Kard-Kerezst-Korona Szövetség é desconhecido, mas é possível que fosse algo respeitável. Esse grupo mantinha uma editora, uma revista e uma igreja — A Metafizikai Hagyomány Egyháza (A Igreja da Tradição Metafísica). Tal igreja praticava «uma religião absoluta universal [...] baseada na Tradição religiosa-espiritual primordial e universal», mas não se conhecem outros detalhes.45 O Tradicionalismo húngaro do pós-guerra — ainda que baseado em Evola, Hamvas e László — demonstra um interesse maior por Guénon, Schuon e a religião em geral do que o fazia o Tradicionalismo evoliano do pós-guerra, apesar da Kard-Kerezst- Korona Szövetség possuir um perfil político óbvio. Um retorno parecido às raízes religiosas do Tradicionalismo pode ser observado na Itália. O ramo de Messina do grupo Dioscuri que surgiu da Ordine Nuovo, chamado Arx, foi revivido na década de 1980 e realizou diversos encontros com o objetivo de reunir as diversas correntes do neopaganismo romano. Esses esforços renderam frutos em 1988, com a fundação de um Movimento Tradizionalista Romano, e, em 1992, com a fundação da Curia Romana Patrum, que padronizou os rituais neopagãos e uniu os diversos calendários seguidos anteriormente. À Curia Romana Patrum seguiram-se ao menos cinco outro grupos neopagãos em diversas partes da Itália. Não se sabe o
papel do Tradicionalismo em tais grupos, mas parece haver pouca ênfase política.46 Apesar de Evola ter permanecido importante para a extrema direita europeia e partes da norte-americana no fim do século XX, sua obra já não era dominante. Para Alain de Benoist, um dos principais escritores e editores da Nova Direita europeia, Evola e Guénon permaneciam interessantes — sobretudo historicamente — mas não importantes. De Benoist havia lido a maior parte de suas obras, chegando mesmo a escrever sobre elas, mas suas próprias ideias, e aquelas exploradas nos diversos jornais e revistas controlados por ele, estavam construídas em base incompatíveis com qualquer variedade de Tradicionalismo.47
10. EDUCAÇÃO
Durante as décadas de 1950 e 1960, o Tradicionalismo suave de Mircea Eliade ajudou a operar uma transformação no estudo acadêmico da religião nos Estados Unidos. Na França, a indologia de Louis Dumont, informada pelo Tradicionalismo suave, tornou-se cada vez mais influente, enquanto Henri Hartung e seu Institut des sciences et techniques humaines (Instituto de Ciências e Técnicas Humanas) começou uma transformação na educação continuada de adultos e, especialmente, de executivos. Hartung tinha por objetivo a transformação sutil da cultura geral, mas, passados alguns anos, em 1968, ele concluiu que seus esforços tinham sido em vão e abandonou o mais suave dos Tradicionalismos por um ataque «duro», também em vão. Ainda na França, o rabino Léon Askénazi, um importante educador judeu, bebeu do Tradicionalismo, mas dentro de limites estritos, o que demonstrava a razão de o Tradicionalismo judaico ser tão raro. Simultaneamente, uma empreitada similar à de Hartung, o Institut scientifique d’instruction et d’éducation (Instituto Científico de Educação e Treinamento), criado por Paul de Séligny, ilustrava o quanto o Tradicionalismo podia se afastar dos objetivos do próprio Guénon.
ESTUDOS SOBRE A RELIGIÃO NOS ESTADOS UNIDOS Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Mircea Eliade mudou-se da legação romena em Portugal para a França, onde, em 1945, começou a dar aulas de ciências religiosas na Sorbonne. Seu trabalho em francês consolidou sua reputação no Ocidente, enquanto suas obras anteriores, escritas sobretudo em romeno, encontravam-se praticamente inacessíveis. Apesar de se envolver brevemente com a política dos emigrados romenos, ajudando a fundar o jornal Lucea
Farul (Estrela da Manhã), com o apoio financeiro de antigos membros da Legião do Arcanjo São Miguel, ele parece ter se afastado rapidamente de muitos de seus colaboradores do pré-guerra, encontrando-se com Michel Vâlsan apenas uma vez, em 1948.1 Também se encontrou com Julius Evola uma vez em Roma, provavelmente em 1949, e os dois trocaram cartas, mas a correspondência parece ter parado em 1952 ou 1953.2 Suas atividades na Bucareste do pré-guerra eram, de modo geral, desconhecidas na França. Durante esse período, as atividades de Eliade foram financiadas pela Fundação Bollingen. Essa rica fundação, fundada por Paul Mellon, da empresa Gulf Oil, também patrocinou uma importante coleção sobre assuntos religiosos publicada pela Editora da Universidade de Princeton (as «Bollingen Series»), bem como os encontros anuais de Eranos, realizados a partir de 1933 em Ascona, na Suíça. Eliade participou regularmente de tais encontros e também publicou na «Bollingen Series», assim como Coomaraswamy.3 Apesar de a Fundação Bollingen ter contribuído para a difusão do novo tipo de estudo acadêmico da religião exemplificado por Eliade e discutido neste capítulo, ela não era uma organização Tradicionalista de modo algum, mas dedicava-se à obra e, mais tarde, à memória de C. G. Jung, que dominava Eranos e de quem a mulher de Mellon havia sido uma admiradora.4 Os interesses e as obras de Jung e Eliade possuíam alguns elementos em comum, mas suas diferenças eram maiores do que as semelhanças. Jung, Bollingen e Eranos, portanto, pertencem a uma corrente da história intelectual diferente da de Eliade. A fama de Eliade cresceu e, em 1958, ele foi nomeado catedrático de história da religião na Universidade de Chicago, uma posição que ocupou até sua morte em 1986. Durante esses anos, ele manteve um perfil discreto, exceto como acadêmico. Apesar de um aluno de pósgraduação lembrar-se dele claramente como Tradicionalista, Eliade geralmente evitava discussões sobre política e sobre suas próprias convicções religiosas.5 A decisão de lançar um véu sobre seu passado foi sábia; quando uma reação à sua obra teve início pouco após sua
morte, seus contatos legionários e Tradicionalistas foram redescobertos e «seu sorriso caprichoso foi ensombrecido por murmúrios de duplicidade moral e política».6 Durante as décadas de 1960 e 1970, a influência de Eliade sobre os estudos religiosos nos Estados Unidos foi enorme, como é sugerido pelo fato de a reunião comemorativa do 75º aniversário da Academia Americana de Religião (AAR, a maior sociedade erudita para o estudo da religião) ter sido dedicada a ele, dois anos antes de sua morte.7 A importância da obra de Eliade para os estudos sobre a religião não está em seus detalhes (apesar de sua produção ter sido prodigiosa), mas em sua abordagem geral, ou seja, em seu Tradicionalismo «suave». O que Eliade fez na academia dos Estados Unidos — e, em certa medida, da Europa Ocidental — foi o trabalho de um obstetra trazendo à luz os estudos sobre a religião como campo autônomo, e não como adjunto à teologia ou à sociologia. Antes de Eliade, religiões não cristãs haviam sido estudadas de um ponto de vista puramente cristão, como uma descendência mais liberal da heresiografia medieval, ou de um ponto de vista materialista, como por Max Weber e seu aluno Joachim Wach, o predecessor de Eliade na Universidade de Chicago. Aquilo que Eliade chamava de religiões «arcaicas» e Guénon chamava de «tradição» havia sido geralmente denominado religião «primitiva», um termo que carregava o pressuposto evolucionário de que tais religiões eram precursoras incompletas de outra mais tardias e perfeitas. Essa era a opinião de Johann Jakob Bachofen — de quem Evola era admirador — bem como a opinião dominante ao longo de todo o século XIX, e ainda bastante difundida entre acadêmicos na década de 1950 e entre o grande público hoje em dia.8 A abordagem de Eliade era radicalmente diferente e foi o protótipo do que passou a ser chamado de estudo «autônomo» das religiões, geralmente aceito atualmente.9 Como vimos no capítulo 5, Eliade rejeitava a hipótese evolucionária sob o argumento de que a maneira moderna de ver as coisas era fundamentalmente diferente da maneira arcaica e, por ser atípica, deveria ser descartada. Ao fazê-lo, ele privilegiou a religião arcaica (ou tradição) em detrimento da
modernidade e ultrapassou as abordagens cristãs e materialistas para o estudo das religiões. A abordagem cristã foi ultrapassada por razões óbvias: a religião arcaica era mais importante do que o Cristianismo contemporâneo. A abordagem materialista foi ultrapassada porque tendia a ser evolucionária e também porque o projeto de Eliade exigia que as religiões fossem estudadas «em seu próprio plano de referências», nos termos em que faziam sentido para os que acreditavam nelas, que, obviamente, não eram os termos materialistas. O estudo «autônomo» da religião estabelecido pelo exemplo de Eliade implicava uma revolução metodológica e outra na estrutura universitária. Os milhares de acadêmicos norte-americanos que assistem às reuniões anuais da AAR são, em grande medida, o produto dessa revolução. Seus departamentos devem muito de sua existência a Eliade. Nenhum deles consideraria, por um segundo que fosse, apresentar sua pesquisa em termos cristãos ou puramente materialistas (apesar de serem, obviamente, sensíveis ao impacto potencial dos fatores materiais sobre os fenômenos religiosos).10 A abordagem «autônoma» defendida por Eliade deriva, em parte, do Tradicionalismo romeno da década de 1930. Existiam, é claro, outros fatores, entre eles o fato nada desprezível de que as abordagens cristãs e materialistas começavam a apresentar sinais de envelhecimento. Essa foi a razão pela qual elas foram substituídas com tamanha facilidade. Outras pessoas apresentaram substitutos similares: justificações teóricas para a abordagem «autônoma» no estudo das religiões podem ser encontradas facilmente em outras fontes. O próprio Eliade fazia referência à obra de Rudolf Otto, que em seu livro intitulado Das Heilige [O sagrado] (1917), desenvolvera o conceito útil de «numinosidade», que vinha, em última análise, de Kant.11 O fato de Otto aparentemente apoiar Guénon deve ter sido visto com bons olhos por Eliade, ainda que pelo simples fato de dispensá-lo de citar o francês. A abordagem de Eliade aos estudos da religião não esteve imune às críticas, obviamente. Uma objeção apresentada, por exemplo, foi a de que estudar a religião «em seu próprio plano de referência» tende a isolar a disciplina dos estudos da religião.12 Isso é, sem dúvida,
verdadeiro, mas o isolamento entre as disciplinas é um problema geral na academia atual, amplamente reconhecido e, em certa medida, combatido pela crescente ênfase nos estudos interdisciplinares. De modo mais sério, Eliade foi acusado de uma «generalização universal acrítica»,13 e a tese do Tradicionalismo suave sobre um modelo geral de religiosidade humana foi muito atacado por aqueles que buscam demonstrar que tal modelo não existe, que o mito não é universal e que reunir todos os povos arcaicos e seus sistemas é algo «agressivamente assimilador» e frágil.14 As opiniões de Eliade sobre o tempo circular e linear estiveram entre as primeiras a serem atacadas, com o argumento de que eram, pura e simplesmente, historicamente erradas.15 Em ambas as críticas podemos ouvir ecos dos comentários de Sylvain Lévi a respeito da tese de Guénon em 1921. Uma crítica da qual Eliade deve ser defendido é a de que seu projeto não seria científico apenas por ser uma versão camuflada do projeto de pesquisas padrão do Tradicionalismo. Recentemente, ele chegou até a ser acusado de «camuflar suas fontes».16 Apesar de a reconstrução apresentada no capítulo 5 concordar em parte com esse juízo, não houve «duplicidade» envolvida. O Eliade tardio certamente não se via como um Tradicionalista disfarçado.17 A gênese Tradicionalista da abordagem de Eliade não significa que seu próprio trabalho deva ser descartado; ao contrário, sua produção acadêmica deve ser avaliada por seus próprios méritos. Houve uma importante tentativa posterior de introduzir o Tradicionalismo mais duro, sem disfarces, no discurso acadêmico padrão. Ela aconteceu sob a forma de uma série de sessões realizadas nas reuniões anuais da AAR durante a década de 1980. Àquela altura, a Associação havia crescido tanto que foi dividida em diversas «seções», «grupos» e «seminários».18 Em 1986, um grupo — chamado «Esoterismo e perenialismo» — foi criado para o Tradicionalismo, mas desapareceu depois de três anos, devido aos projetos conflitantes dos dois grupos por trás da iniciativa. Um deles, composto principalmente de acadêmicos franceses, queria estudar o Tradicionalismo como fenômeno religioso (tal como ele é examinado
neste livro). O outro, composto sobretudo de acadêmicos norteamericanos e dominado por membros da ordem Maryamiyya, queria estudar a religião de um ponto de vista Tradicionalista. Os choques (ou o «intenso debate») entre esses dois objetivos incompatíveis resultou no desmantelamento do grupo, ou melhor, em sua transformação num seminário muito diferente, dedicado à Teosofia e ao pensamento teosófico.19 A abordagem por trás do breve grupo da AAR teve, no entanto, uma consequência interessante: dois artigos escritos por Gene Thursby, indologista e um dos dois Tradicionalistas da Universidade da Flórida. Thursby chegou ao Tradicionalismo após a leitura do Guide for the Perplexed [Guia para os perplexos], de Schumacher. Em seguida, assistiu a um seminário de verão em Berkeley dado por Huston Smith. Thursby é um Tradicionalista no sentido de aceitar muitas premissas Tradicionalistas, mas não é conhecido por pertencer a nenhum grupo Tradicionalista.20 Seus dois artigos colocam o Tradicionalismo no vocabulário padrão acadêmico do século XX. Ele explica, por exemplo, que o Tradicionalismo «insiste que caminhos para a transcendência e a transformação devem ser situados dentro de contextos tradicionais. Isso acontece porque é apenas no interior de tais comunidades que as estruturas de socialização são condicionadas pela religião revelada».21 Ele não trata o Tradicionalismo como verdade absoluta, como o fazem Nasr e outros Tradicionalistas, nem como fenômeno, como o fazem os acadêmicos franceses da AAR (e este livro), mas como um sistema, uma maneira de ver as coisas, uma fenomenologia (como, por exemplo, o marxismo e o estruturalismo). O Tradicionalismo de Thursby, que ele chama de «antropologia perene» tem, assim, o potencial de penetrar no discurso intelectual dominante do Ocidente, como aconteceu com Eliade, mas sem disfarces. Ele ainda não realizou esse potencial, porém. Thursby publicou seus artigos em revistas acadêmicas,22 mas eles não despertaram muito interesse. Evidentemente desencorajado por essa recepção e pelo fracasso do grupo da AAR, Thursby mudou o foco de seu trabalho.
A hostilidade da maioria dos acadêmicos não Tradicionalistas ao estudo da religião a partir de um ponto de vista Tradicionalista é clara. Segundo Wouter Hanegraaff, o primeiro titular da cátedra de esoterismo na Universidade de Amsterdã, um dos principais problemas para o estudo sério do esoterismo é que «estudiosos das correntes esotéricas ocidentais geralmente se veem colocados junto com perenialistas em seminários ou publicações». De maneira similar, o islamologista alemão Bernd Radtke identificou um dos dois maiores problemas no estudo do sufismo como sendo a «mistificação», o «papel negativo» desempenhado por acadêmicos Tradicionalistas como Nasr (o segundo seria o fato de muito poucos acadêmicos de língua inglesa lerem alemão).23
SOCIOLOGIA E JUDAÍSMO NA FRANÇA A carreira de Louis Dumont na França guarda certos paralelos com a de Eliade nos Estados Unidos. Dumont descobriu Guénon no início da década de 1930, quando era um rebelde fugido da escola nos círculos artísticos de Paris. Depois, completou seus estudos e aprendeu sânscrito no tempo que passou como prisioneiro de guerra na Alemanha, entre 1939 e 1945. Após a guerra, completou um doutorado, deu aulas de antropologia social em Oxford durante quatro anos e, entre 1955 e o fim da década de 1970, ocupou a cátedra de sociologia indiana na Sorbonne.24 Nessa posição, ele foi responsável por muitos dos futuros sociólogos e indologistas da França. O livro Homo hierarchicus (1966)25 foi, segundo o consenso geral, sua obra mais importante. Nele, Dumont desenvolveu uma concepção completamente Tradicionalista da sociedade indiana como representante de uma norma tradicional de hierarquia baseada na religião, um conceito que ele, mais tarde, contrastou de maneira desfavorável com o individualismo moderno em seu livro Essais sur l’individualisme [O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna].26 Tal contraste foi aprofundado por Dumont e um pequeno número de seguidores que formaram uma equipe de pesquisa no Centre National de Recherches Scientifiques (Centro
Nacional de Pesquisas Científicas) da França. A equipe tentou fundar uma «escola francesa de sociologia», mas obteve reconhecimento limitado;27 ela pode ser vista como um raro exemplo de grupo Tradicionalista suave com reconhecimento oficial na academia. Assim como Eliade, Dumont nunca citou Guénon, apesar de ter admitido por escrito outra influência fora de moda na época, a de Alexis de Tocqueville.28 A importância de Guénon para Dumont, no entanto, era conhecida por seus colegas29 e, em 1995, foi demonstrada de maneira convincente em um artigo de Roland Lardinois, a despeito do apelo que fez em uma conferência quando Lardinois preparava seu texto: «Não falemos demasiado da influência de Guénon».30 Em seu artigo, Lardinois demonstrou também certas deficiências técnicas na obra de Dumont que, segundo ele, permitiam que este chegasse a suas conclusões quase Tradicionalistas. Dumont e sua crítica do individualismo moderno ganharam popularidade nas décadas de 1970 e 1980 entre escritores e intelectuais franceses que se opunham às correntes que viam surgir de 1968, especialmente o estruturalismo e um quase marxismo na sociologia. Aqueles que defendiam na França um retorno aos «valores tradicionais» e atacavam o «individualismo moderno» frequentemente se baseavam em Dumont, muitas vezes — segundo um observador — sem tê-lo lido.31 Poucos teriam como saber que estavam se baseando também em Guénon. Guénon também chamou a atenção de outro educador francês, muito diferente de Dumont, o rabino Léon Askénazi, diretor da escola Gilbert Bloch em Orsay (nos arredores de Paris) e mestre da Cabala, a tradição mística do judaísmo.32 Não se sabe como Askénazi encontrou a obra de Guénon, porém o mais provável é que isso tenha ocorrido após sua chegada à França, em 1944, aos 22 anos, como capelão do Exército da França Livre. Nascido na Argélia, onde seu pai foi o rabino-chefe, ele foi criado em círculos modernos e tradicionais. Seus pais vinham de velhas famílias eruditas. Em ambientes informais, eles falavam a língua judaico-arábica ou ladino; nos ambientes formais, hebraico clássico; em público, falavam em francês. Askénazi estudou no Liceu Francês de Oran. Depois da
guerra ele passou pela Sorbonne e, depois disso, pelo Musée de l’Homme, onde estudou etnologia e antropologia com Claude LéviStrauss.33 Por volta de 1945, Askénazi foi contratado para dar aulas na escola Gilbert Bloch,34 fundada para formar na França uma nova geração de líderes comunitários judaicos a fim de substituir aqueles assassinados no Holocausto. O primeiro diretor da escola, Jacob Gordin (um rabino de origem russa residente na França desde 1933 e possivelmente leitor de Guénon) faleceu em 1947, e Askénazi passou a dirigi-la a partir de 1951. Ele também comandava o movimento escoteiro judaico na França — os Éclaireurs Israélites de France — e o Sindicato de Estudantes Judeus. Na escola Gilbert Bloch, Askénazi tinha por público sobretudo alunos parcialmente secularizados. Ele via a missão central da escola como sendo «expressar a tradição judaica [...] no vocabulário e nos termos do Ocidente» ou da «filosofia geral».35 Essa necessidade levou-o a um amplo estudo do pensamento francês clássico e contemporâneo, algo que não estava, de modo algum, restrito a Guénon. O que Askénazi tomou de Guénon foi sua análise da tradição e da modernidade, parte de seu vocabulário e seu entendimento da tradição como algo intimamente relacionado ao esotérico. Seu interesse pela Cabala como aspecto esotérico da tradição judaica, no entanto, não vinha de Guénon, mas de seu avô materno, um conhecido mestre cabalista.36 A Cabala permaneceu bastante difundida e respeitada no Norte da África nos círculos de origem de Askénazi, ainda que a maior parte dos judeus europeus a rejeitassem como obscurantista. Apresentar a Tradição em oposição à «mentalidade moderna» provou ser uma maneira efetiva de trazer muitos dos alunos de Askénazi de volta para sua própria tradição, do mesmo modo que — em outras mãos — viria a se mostrar efetiva para trazer estudantes iranianos e marroquinos francófonos de volta a suas «raízes» religiosas, como veremos num capítulo posterior. Askénazi formou praticamente toda uma geração de líderes judaicos francófonos e incutiu um interesse por Guénon e por aspectos do Tradicionalismo
em muitos deles.37 Seu status e seus dons eram tais que Charles Mopsik, um acadêmico francês, acreditou ser necessário explicar por que Askénazi não fundou seu próprio grupo religioso sectário (Mopsik sugere que a razão foi, por um lado, uma questão de temperamento e, por outro, porque Askénazi respeitava escrupulosamente as regras antigas e restritivas a respeito da transmissão do conhecimento cabalístico).38 André Fraenkel, o sucessor na direção da escola Gilbert Bloch após a imigração de Askénazi para Israel em 1958,39 também era um Tradicionalista nos moldes de seu antecessor.40 Apesar do sucesso de Askénazi, que morreu em 1996, em difundir uma visão da Cabala como um elemento respeitável dentro da tradição judaica, e da modernidade como algo intrinsecamente defeituoso, ele não difundiu o Tradicionalismo propriamente dito. Seus seguidores conhecem Guénon apenas como um escritor entre muitos nos interesses de Askénazi, e não lhe conferem grande importância.41 A geração seguinte foi educada em yeshivot ortodoxas, onde Guénon não apresentava nenhum interesse.42 Esse é praticamente o único exemplo conhecido de Tradicionalismo judaico, e a razão disso é demonstrada pela maneira como o Tradicionalismo de Askénazi diferia da norma. Apesar de se comentar que ele apreciava os escritos de Elie Benamozegh, um rabino do século XIX que propôs a Cabala como forma de religião primordial capaz de unir judeus e cristãos,43 ele não acreditava de maneira nenhuma na unidade transcendente das religiões. Para Askénazi, a tradição primordial da humanidade era a tradição judaica. O que se perdeu para o Ocidente com a destruição dos Templários (um acontecimento enfatizado por muitos Tradicionalistas) não foi uma filosofia perene não confessional, mas sim os elementos de verdade que alguns ocidentais haviam adotado do judaísmo. Askénazi acompanhava os Tradicionalismos em seu diagnóstico da modernidade, encarando-a como o estágio final de um ciclo que conduzia inexoravelmente ao apocalipse, mas ele diferia em sua prescrição.44 Apesar de ser capaz de simpatizar mais facilmente com o Islã do que com o Cristianismo — que lhe parecia irremediavelmente politeísta, até mesmo pagão45 —, o que o deixava
perplexo, segundo um seguidor próximo, era que os demais Tradicionalistas não percebiam aquilo que estava na frente de seus narizes: a tradição primordial não precisava ser recuperada, mas encontrava-se intacta e facilmente acessível no judaísmo. Ele acreditava que a falta de interesse dos Tradicionalistas no judaísmo vinha de algum tipo de antissemitismo, e chegou até a se perguntar se o próprio Guénon poderia ter origens judaicas, uma vez que «Guénoun» é um sobrenome sefardita comum.46 A firme rejeição das outras tradições pelo judaísmo aparentemente serviria como obstáculo ao desenvolvimento de um Tradicionalismo judaico pleno.
O Institut des Sciences et Techniques Humaines de Hartung Depois de Henri Hartung ter abandonado Schuon e se divorciado de sua primeira esposa (que permaneceu com o xeique), ele começou uma nova carreira como educador, fundando uma escola noturna para um público abastado em Paris, chamada École supérieure d’orientation [Escola superior de orientação], inicialmente para preparar os alunos para os exames de entrada em diversas universidades de prestígio. Tratava-se de um projeto similar ao Collège Rollin, em que Guénon entrou em 1904. A filosofia da École supérieure d’orientation estava baseada na observação feita por Hartung de que muitos alunos saíam do ensino secundário com muitas informações, mas sem ideia do que fazer com elas. Assim, ele não apenas ensinava as disciplinas exigidas para os vários exames vestibulares, mas também uma formation générale [formação geral] nas «ciências humanas»: lógica, autoexpressão e coisas do tipo.47 Apesar de tal abordagem ser comum hoje em dia, tratava-se de algo extremamente inovador na França da década de 1950. Em 1956, a École supérieure d’orientation abriu uma seção dedicada à educação continuada de executivos (cadres). Uma vez mais, tratava-se de um conceito inovador na França, e Hartung foi, em grande parte, responsável por sua difusão. Em 1957, ele tinha a IBM da França como cliente, e a seção para executivos se revelara tão bem-sucedida a ponto de se separar, transformando-se primeiro em
outra escola e depois num grande negócio independente, o Institut des sciences et techniques humaines (ISTH) [Instituto de Ciências Humanas e Técnicas].48 Em 1962, entre os clientes de Hartung estavam a Air France, o banco Crédit Lyonnais e a Shell. Em 1963, o ISTH empregava 66 conferencistas, tinha um jornal e sua própria série de livros com a editora Fayard, além de ocupar um importante espaço em Paris. Em 1964, Hartung fez uma série de conferências no Japão como parte de uma importante missão cultural francesa, e, em 1966, a abertura de uma versão internacional da ISTH em um château restaurado foi patrocinada por gigantes industriais como a Simca Aviation e noticiada não apenas na imprensa francesa, mas na revista Time, no New York Times e no Times de Londres.49 Esse sucesso meteórico se deveu, por um lado, à demanda pelo produto oferecido por Hartung (educação para executivos com um diferencial) e, por outro, às qualidades do próprio Hartung como palestrante, um orador excepcional.50 Ele também se tornou conhecido por uma série de livros e artigos sobre educação continuada, e por seu papel em uma campanha que resultou numa lei que garantia a educação continuada como um direito de todos os cidadãos franceses, aprovada em 1971 pela Assembleia Nacional com apenas um voto em contrário.51 Seu livro Pour une éducation permanente [Por uma educação permanente] (1966) recebeu resenhas favoráveis nos principais jornais da França.52 Hartung já havia apresentado os argumentos baseados na necessidade que vinham se tornando padrão em várias palestras e artigos. Não apenas os concorrentes econômicos da França vinham se tornando perigosamente mais avançados no tema da educação continuada, mas o mundo moderno dos negócios estava em processo de mudança tão acelerado que a capacidade de adaptação dos executivos era crucial para o sucesso econômico. A educação continuada, escreveu ele em 1966, «é utilitária no sentido de que ela torna possível uma maior eficiência profissional; ao mesmo tempo, ela é desinteressada ao facilitar a autorrealização. Ela é coletiva, pois seu objetivo é ensinar o maior número possível de pessoas para organizarem melhor a si mesmas e o mundo; ela é
também pessoal, já que todos devem estar sós em seu autoconhecimento e em sua compreensão do mundo».53 Definida a necessidade de uma educação continuada, o livro Pour une éducation permanente discute sua organização e seus componentes, sublinhando a importância da culture générale (cultura geral). Os executivos devem ser pessoas educadas e cultivadas, com formação em lógica e autoexpressão, capazes de entender o pensamento e a economia contemporâneos. Esse aspecto da educação continuada era muito enfatizado no ISTH e foi uma das razões de seu sucesso. Em uma entrevista no jornal Le Figaro Littéraire em 1962, Hartung se vangloriava de estar fazendo executivos lerem Montaigne e Sartre.54 O objeto da culture générale não era Sartre ou a economia. No capítulo 6 de Pour une éducation permanente, Hartung por fim menciona a necessidade de «autodesenvolvimento», na realidade realização espiritual. Aí, bem encoberto por ideias mais facilmente assimiláveis, está o seu Tradicionalismo. Ao longo dos anos, Hartung continuara sendo um Tradicionalista e um muçulmano, apesar de esse ser um fato pouco conhecido. Ele jejuava em segredo durante o Ramadã e até mantinha contato com Julius Evola, o único Tradicionalista vivo da primeira geração. Após conhecer Evola em Roma em 1964, Hartung continuou a visitá-lo regularmente até a morte do italiano, dez anos depois,55 e carregou uma foto sua (entre cerca de meia dúzia de fotografias de seus mentores espirituais) no bolso até o dia em que morreu. Essa relação entre Hartung, geralmente visto como esquerdista, e o direitista Evola era algo improvável, como o próprio francês percebia: «Um veterano da resistência, condenado pelos alemães, com uma sensibilidade social diferente da de Evola, para dizer o mínimo. [...] Percebo-me em diálogo com ele, com esse homem que se diz de Direita, e que escreve essa palavra com um ‹D› maiúsculo, que conheceu Mussolini».56 Não era a orientação política de Evola que interessava Hartung, mas seu Tradicionalismo. Em 1924, em seu livro Orient et Occident, Guénon defendia a revitalização da espiritualidade ocidental por uma elite formada
expressamente com esse objetivo, a fim de evitar o colapso cataclísmico da civilização ocidental. Em 1966, Hartung defendia a revitalização espiritual como um componente do crescimento cultural, e o crescimento cultural como um elemento da educação continuada de executivos de grandes empresas, e a educação continuada como um elemento na competitividade francesa e também em termos humanos. Diante disso, a estratégia de Hartung era sensata: o perigo da perda de competitividade econômica preocupava muito mais as pessoas em 1966 do que o perigo do colapso cataclísmico da civilização ocidental. Além de apresentar um dos argumentos centrais de Guénon em termos «suaves», Hartung misturou também sua própria forma de revitalização espiritual nos cursos do ISTH, que, no ano de 1968, já tinham sido frequentados por 12 mil executivos franceses e 6 mil alunos diversos (gestores públicos sêniores e outros).57 Em que medida esses 18 mil alunos do ISTH absorveram «uma base cultural que claramente não pareciam possuir»,58 para não falar de uma base espiritual, é algo impossível de dizer. O próprio Hartung chegou à conclusão de que fracassara. Essa conclusão foi uma das consequências dos «acontecimentos» de maio de 1968, quando uma revolução popular deu a impressão de estar prestes a destruir a República Francesa. Na noite do dia 24 de maio de 1968, Henri Hartung saiu para dar uma caminhada pelas ruas de Paris. Após presenciar confrontos entre os estudantes revolucionários e a tropa de choque da polícia na Pont Neuf, ele voltou para casa e passou o restante da noite andando para lá e para cá em seu apartamento. Aquela noite foi um importante ponto de inflexão em sua vida, como o foram a leitura da Introduction générale de Guénon em 1939 ou seu encontro com Ramana Maharshi em 1947.59 Ele percebeu que havia terminado do lado errado das barricadas e que «um homem só pode aceitar uma mentira ao renunciar à própria dignidade».60 Inicialmente, Hartung viu os choques de maio de 1968 como «a afirmação [...] da soberania interior»; «a abertura necessariamente violenta, libertadora e inesperada em direção ao futuro e ao possível».61 Mais tarde, Hartung reviu tais opiniões,62 mas manteve a
conclusão de que sua abordagem «suave» não estava levando a lugar nenhum, e que ele havia sido cooptado pelo sistema. Comentando seu livro sobre educação continuada, Evola perguntara a Hartung em 1966: «De que adianta seus leitores enxergarem com clareza se, a despeito disso, eles aceitam um ‹sistema› que continua profano?».63 Em maio de 1968, Hartung aceitava de maneira geral o pessimismo de Evola com o sistema e viajou a Roma para anunciar isso pessoalmente ao italiano.64 Seus esforços haviam sido bemsucedidos, pensava ele, mas apenas «caso não haja obrigação de mudar, compartilhar ou suprimir dois grandes abusos: o abismo entre a liberdade interior e a vida do dia a dia; [...] e a magia da palavra que substitui a ação em sucessão ininterrupta de belas promessas que não são cumpridas».65 Nem mesmo a educação continuada que se tornara direito de todos os cidadãos em 1971 era o tipo de educação interior e espiritual para a qual Hartung havia trabalhado, mas sim «uma invasão feita [pelas escolas], com suas estruturas hierárquicas, diplomas, currículos e pedagogia».66 Tratava-se de uma objeção não tanto à educação formal, mas ao triunfo recorrente do treinamento técnico sobre a educação do ser em sua integralidade.67 Após o maio de 1968, Hartung abandonou sua abordagem anterior e passou à critica aberta do «sistema» — suas críticas estavam baseadas no Tradicionalismo e na esquerda. Por exemplo, em agosto de 1968 ele foi convidado a falar sobre dois temas na reunião do grupo de Bilderberg realizada no Canadá, em Mont Tremblant: as relações entre o Ocidente e o mundo comunista e a internacionalização dos negócios (o que mais tarde viria a ser chamado de globalização). Tratava-se de um elogio considerável. A reunião anual do grupo Bilderberg é mais seleta do que a do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, apesar de este ser mais conhecido. Apenas cerca de cem pessoas são convidadas, contra milhares em Davos. O público que ouviu Hartung em 1968 incluía diversas celebridades. Essas reuniões e seus participantes são confidenciais, mas a imprensa avistou Pierre Trudeau, primeiroministro do Canadá; o embaixador norte-americano nas Nações Unidas; David Rockefeller, presidente do Banco Chase Manhattan, e
Enoch Powell, o parlamentar britânico favorito de certos setores da direita britânica como candidato a primeiro-ministro e por outros como ditador antissocialista.68 Hartung falou sobre «A internacionalização dos negócios: seu aspecto social». Para ele, «social» significava, na verdade, «espiritual»: O sistema econômico e social contemporâneo aparentemente vem se desenvolvendo apenas num plano horizontal, sem cuidado com o processo vertical que conduz à transcendência, que é negada ou, no melhor dos casos, rejeitada como cientificamente improvável. [...] A transição das empresas do nível regional e nacional para o internacional [...] a menos que acompanhada por uma pesquisa paralela a respeito da realidade interior do homem [...] só pode levar à regressão e ao retorno a um positivismo ainda mais estreito. [...] Ao deixar completamente de fora a vida do espírito, os protagonistas do mundo moderno podem muito bem estar organizando um mundo de desolação em seus esforços para abolir os efeitos da desolação.69 Não se sabe como o público de Hartung recebeu essa mensagem, mas ele não voltou a ser convidado para as reuniões seguintes do grupo Bilderberg. A desilusão de Hartung em 1968 gerou também um livro publicado no ano seguinte, com o título de Ces princes du management: le patronat français devant ses responsabilités [Esses príncipes da administração: o patronato francês perante suas responsabilidades]. Hartung escreveu o livro rapidamente, dizendo com paixão o que provavelmente desejou dizer nos vinte anos anteriores: o triunfo do progresso material foi o triunfo do quantitativo sobre o qualitativo, com os meios invertidos como fins, criando uma «sociedade escravizada» (o título do capítulo 5). Isso era Tradicionalismo «duro», ainda que com um toque esquerdista. Hartung via as características da vida comercial dando o tom da vida na sociedade como um todo, e as condições de emprego como o principal determinante da vida privada do indivíduo.
O Tradicionalismo duro de Hartung teve uma recepção muito diferente de suas iniciativas e livros anteriores baseados num Tradicionalismo suave. Antigos colaboradores escreveram-lhe com tristeza e, por vezes, hostilidade. As resenhas de seus livro publicadas na imprensa não foram favoráveis, afirmando que seus argumentos não eram novidade. O que pareceu interessante à maioria dos resenhistas foi o fato de um homem como Hartung ter abandonado sua posição por uma questão de princípio; alguns mencionaram sua óbvia coragem.70 Essa recepção ocorreu precisamente devido à paixão com que ele escrevera a obra. Seu livro apresenta uma compreensão sobre o verdadeiro funcionamento da vida comercial e do «sistema» bastante rara entre críticos de esquerda. Esse insight poderia passar despercebido com facilidade por um leitor chocado com suas posições mais extremas. Em certo momento, Hartung chegou até a apresentar o automóvel como um exemplo de inversão, de um meio tornando-se um fim.71 Ainda que possa haver certa verdade nisso, é algo que soaria levemente ridículo à maior parte dos leitores. As exceções a essa recepção hostil generalizada são instrutivas. Somente três resenhas elogiaram o livro. Uma delas, publicada no L’Humanité, o órgão oficial do então poderoso Partido Comunista Francês, aprovava as críticas de Hartung mas, previsivelmente, lamentava que, por não empregar a análise socialista de classes, a obra se condenasse «à esterilidade e [...] ao pessimismo».72 Outra, publicada no jornal conservador Tribune de Genève, reconhecia que a posição de Hartung estava baseada na fé religiosa e erroneamente saudava-o como um companheiro católico.73 Por fim, Entreprise, a principal revista mensal de negócios da França, escolheu Ces princes du management como livro da semana,74 apesar de ser difícil afirmar se a escolha refletia um interesse genuíno ou uma autoconfiança divertida. Duas cartas de apoio a Hartung se destacam: uma delas de Jacques Maritain, que no passado havia apoiado Guénon no Institut Catholique, a outra, de Henri D’Orléans, conde de Paris (herdeiro legítimo ao trono da França), com quem Hartung mantinha boas
relações desde que havia sido tutor de seu filho, no tempo da École supérieure d’orientation. «O seu combate», escreveu o herdeiro dos Bourbon, «une-se ao que eu mesmo combati ao longo de trinta anos com o mesmo espírito.»75 Apesar de indubitavelmente feliz com tal apoio, a reação geral de Hartung à recepção de seu livro foi de desapontamento e tristeza. Sua saída abrupta do ISTH também causou-lhe dificuldades financeiras. Obrigado a se desfazer de seu apartamento em Paris, ele se mudou para a casa de seus avós maternos em Fleurier, na Suíça, a qual havia herdado. A partir de então, seus projetos, discutidos no próximo capítulo, deixariam de estar voltados ao grande público.
O Institut Scientifique d’Instruction et d’Education de Paul de Séligny Se os «desvios» dominaram o fim da ordem Maryamiyya em Bloomington, eles estiveram presentes desde o princípio em uma das mais estranhas aplicações independentes do Tradicionalismo. Essa aplicação foi feita por Paul de Séligny, um nativo das Ilhas Maurício de ascendência francesa que se tornou um pequeno guru na década de 1960, e, para alguns, um guru notório. De Séligny havia se tornado Tradicionalista na França no fim da década de 1920 ou começo da de 1930, provavelmente em 1927 ou 1928, e é possível que tenha visitado Guénon no Cairo. Ele se filiou à ordem Alawiyya em 1939 ou 1940, apesar de não estar exatamente claro como isso aconteceu;76 na época, havia um pequeno grupo de schuonianos no Marrocos, incluindo Jean-Victor Hocquard, a quem ele estava ligado. Hocquard, um musicólogo que havia se filiado à Alawiyya de Schuon, abandonou a ordem e o próprio Islã em 1945 para retornar ao catolicismo em que nascera, perdendo o contato com De Séligny. Contudo Hocquard e De Séligny permaneceram no Marrocos, o primeiro como professor no Liceu de Tânger, o segundo como vendedor de sementes na mesma cidade.77 Apesar de Hocquard ter abandonado Schuon e o Islã, ele continuou interessado no Tradicionalismo, interesse que transmitiu a
seu filho, Manuel. Em 1960, retomou o contato com De Séligny por insistência de Manuel e de Ain Shams, sua filha de dezoito anos de idade. A família Hocquard pediu a De Séligny que os conduzisse no caminho sufi. Assim nasceu um novo ramo da ordem Alawiyya, liderado por De Séligny e composto de Hocquard, seus filhos e familiares, além de outras pessoas. Trava-se, no entanto, de um ramo fora do comum. De Séligny foi ainda mais longe do que o Schuon dos últimos anos, dispensando de imediato seus seguidores de obedecerem a qualquer aspecto da xaria e ensinando um perenialismo mais hindu do que islâmico. Seu caminho, explicou ele, era «um caminho intelectual, e não místico». Sua prática central era «o trabalho» (le travail), uma versão simplificada do dhikr que envolvia a repetição da profissão de fé islâmica.78 Passado cerca de um ano, De Séligny e seus seguidores deixaram Tânger e partiram para a Europa (deixando a esposa cética de De Séligny para trás no Marrocos), fixando-se na costa mediterrânea, no Principado de Mônaco.79 Ali, a natureza do grupo mudou e ele logo se tornou antitradicionalista. Em maio de 1962, De Séligny fundou um Centro de Estudos Culturais, com um jornal quinzenal chamado Je suis [Eu sou]. As primeiras edições do Je suis abordavam a (limitada) vida artística e cultural de Mônaco, além de temas ligado à pesca e aos iates. Logo surgiu uma «página jovem», que cresceu até se tornar uma seção, tomando o lugar da pesca e dos iates. No fim de 1962, os «temas jovens» haviam tomado todo o jornal. Em fevereiro de 1963, Je suis declarou-se «completamente editado e publicado pela juventude», apesar de o controle claramente permanecer nas mãos de De Séligny, então com 59 anos de idade. «Nós, jovens» sofreram de tédio e alienação (ennui) até encontrarem De Séligny; ele e Je suis mudaram tudo.80 Não se sabe como De Séligny descobriu as questões da juventude, mas isso pode estar ligado ao caso que manteve com Ain Shams, a filha de Hocquard, então com dezenove ou vinte anos de idade. Esse caso e os pedidos de dinheiro que De Séligny vinha fazendo a seus seguidores — muitos dos quais chegaram a passar fome para satisfazer seu gosto por champanhe e automóveis caros — geraram
descontentamento entre alguns e, em seguida, dificuldades com as autoridades de Mônaco. Em 1963, De Séligny e seu grupo foram expulsos do país e o jornal Je suis desapareceu por falta de assinantes.81 O grupo de De Séligny seguiu em movimento ao longo da costa do Mediterrâneo, estabelecendo-se em Villefranche-sur-Mer, nos arredores de Nice, onde fundaram um Institut scientifique d’instruction et d’éducation (Instituto Científico de Instrução e Educação), localizado num iate comprado por De Séligny, chamado Storm-Bird. De maneira menos ambiciosa do que Hartung, De Séligny especializou-se no hiato entre a escola secundária e a universidade, e nos filhos da elite francesa. Ele fornecia não apenas o currículo padrão, mas algo a mais: exercícios de meditação e um ambiente muito especial. Os exercícios de meditação parecem ter sido o dhikr modificado usado durante seu período sufi, repetindo seus próprios «aforismos» em lugar da profissão de fé islâmica.82 O ambiente combinava o antiautoritarismo típico da década de 1960 com uma extrema devoção ao próprio De Séligny. Uma das seguidoras mais dedicadas de De Séligny durante sua última fase foi Béatrice le Mire, filha rebelde de um diplomata francês. Ela fora enviada ao Instituto por seus pais em 1966 após De Séligny ter conseguido transformar seu irmão mais velho de um desastre acadêmico expulso da escola secundária em um estudante de medicina aceitável.83 Béatrice narrou mais tarde seu primeiro encontro com De Séligny: «Pela primeira vez na vida, eu tinha diante de mim alguém que não tentava me enganar com belas palavras nem me forçar a pensar de uma determinada maneira. [...] Tudo o que ele fez foi me ajudar a chegar ao fundo de minhas próprias ideias, de modo que eu mesma pudesse ver os problemas, que eu revelasse as contradições».84 De Séligny escreveu: «Tudo repousa neste erro fundamental: nós nos tomamos por algo diferente do que realmente somos».85 Assim, ele ajudava seus alunos e seguidores num processo de autodescoberta, ou, no caso de Le Mire, da descoberta típica da década de 1960 de que tudo era culpa de seus pais «burgueses», além de que a esperança de sua salvação estava em De Séligny.86
Le Mire era devotada a De Séligny não apenas como seu guru, mas também como seu amante, papel que ela dividia com Ain Shams. A devoção dos demais não é explicável com tanta facilidade. Hocquard, o pai de Ain Shams, era autor de uma bem-sucedida biografia de Mozart. Ele dedicou a edição revista do livro, publicada em 1970, a De Séligny, «o sábio cuja obra comunicará ao mundo todo o conhecimento fundamental, de natureza científica, que ele trouxe à luz» (uma esperança que o mestre nunca viria a concretizar, já que nenhuma de suas obras jamais chegou a ser publicada). De Séligny — escreveu Hocquard, então com sessenta anos de idade e diretor oficial do Institut scientifique d’instruction e d’éducation — ajudou-o a identificar «ideias falsas», libertando-o «das opiniões filosóficas, metafísicas e até mesmo teológicas que me mantinham prisioneiro». Em 1964, Hocquard havia revisado seu livro sobre Mozart para tentar extirpá-lo dessas «ideias falsas», realizando uma revisão ainda mais rigorosa em 1970, depois de «ter percebido a responsabilidade que eu carregava por ter contribuído, por meio de meus escritos, para a difusão de ideias que só fazem, e só podem fazer, mal».87 Além de levar Hocquard a surpreendentes retratações — os escritos em questão eram, afinal de contas, uma obra popular sobre a música de Mozart —, De Séligny inspirava tamanha devoção a ponto de a maioria de seus seguidores parecer contente em viver numa dieta exclusiva de macarrão a fim de sustentá-lo, ainda que a fome fosse tanta que a esposa de um de seus seguidores tivesse de recorrer ao furto em lojas.88 Durante o período sufi, alguns seguidores chegaram a vender sua mobília;89 durante o período do Institut scientifique d’instruction et d’éducation, Le Mire convenceu os pais a lhe darem um carro de presente, que ela imediatamente vendeu para entregar o dinheiro a De Séligny.90 A devoção de seus seguidores teve consequências trágicas — casamentos desfeitos e filhos abandonados. Tais consequências são explicáveis em termos do desenvolvimento, possivelmente não intencional, realizado por De Séligny de técnicas espirituais padrão. Ele havia começado como um xeique sufi, e espera-se que os seguidores de um xeique coloquem toda a confiança em seu guia. A
comunidade que cerca o xeique isola o sufi das distrações do mundo exterior, e a ascese — incluindo o jejum — fortalece a vontade contra a tentação. No caso de De Séligny, seus seguidores passaram a temer o abandono pelo «patrão», como ele se referia a si mesmo, acima de tudo, e o menor sinal de deslealdade ou hesitação levava a indícios atemorizantes de descontentamento do mestre ou à ameaça de ostracismo pelos demais seguidores. A comunidade ao redor de De Séligny era fechada a ponto de isolar totalmente os indivíduos de sua vida normal e, assim, da percepção de que seu comportamento passava a ser cada vez mais bizarro. A comunidade também se unia para ajudar qualquer pessoa que estivesse em dúvida, atravessando um episódio de «fraqueza». A necessidade de lutar contra a fome constante estreitava ainda mais a visão, excluindo qualquer coisa que pudesse retirar a atenção dos seguidores do próprio De Séligny. E, por fim, o dhikr modificado parecia funcionar, mesmo para aqueles que perdiam a confiança no mestre pessoalmente.91 Algo parecido parece ter acontecido, de maneira menos extrema, entre os seguidores de Schuon em Inverness Farms. O caso de De Séligny também se parece com o de Schuon no fato de ter sido igualmente objeto de um escândalo e de uma ação judicial relacionados a comportamentos sexuais. Os pais de Le Mire descobriram que a filha havia abandonado a Universidade de Nice e que mantinha um relacionamento com De Séligny. Sua mãe viajou à França para levá-la de volta; Le Mire ameaçou o suicídio e foi internada numa clínica psiquiátrica pela mãe. Na época, a maioridade legal na França era atingida aos 21 anos de idade. Assim, Le Mire ainda era menor de idade. Simultaneamente, o pai usou seus contato para que De Séligny — cidadão britânico em virtude de seu local de nascimento — fosse expulso da França.92 Na década de 1950, a história poderia ter acabado aí, mas não em 1970. De Séligny entrou com uma ação em um tribunal de Nice pedindo a liberação de Le Mire. Mais importante, um semanário comunista chamado Le Patriote [O Patriota] publicou um bilhete supostamente contrabandeado pela garota para fora da clínica, um bilhete que se tornaria famoso: «Socorro, socorro. Eles estão me dando injeções e mais injeções e um tratamento que está me
deixando louca. Eu não quero isso. Socorro». Estudantes da Universidade de Nice criaram um «Comitê para o apoio a Béatrice Le Mire» e organizaram um abaixo-assinado. O diretor da Faculdade de Humanidades recusou-se a assinar o documento e teve seu escritório invadido pelos alunos. A clínica onde Le Mire foi internada enfrentou protestos do «Grupo Comunista-Libertário Espártaco — Nice». Na Assembleia Nacional, o ministro do Interior foi questionado sobre a ordem de expulsão contra De Séligny; a pergunta partiu de um deputado socialista chamado François Mitterrand (que viria a se tornar presidente da França).93 Por fim, o tribunal de Nice decidiu que, ainda que os métodos de De Séligny fossem, para dizer o mínimo, dúbios, essa não era a questão. Se Le Mire havia sido internada para impedir que cometesse suicídio e se já não havia perigo de suicídio, ela deveria ser liberada, o que aconteceu. Em seguida, a mãe levou-a à República Dominicana, onde o pai era o embaixador francês. Poucos meses depois, Le Mire comemorou sua maioridade retornando à França com De Séligny, um retorno que a imprensa francesa celebrou como uma vitória da liberdade contra a reação — os familiares de Le Mire eram ótimos representantes da reação, já que, além do pai embaixador, o tio era coronel paraquedista da reserva.94 Tais eventos pouco têm a ver com o Tradicionalismo. Eles fornecem, no entanto, um exemplo dramático de como influências exteriores ao Tradicionalismo podem desviar para outras direções o que originalmente haviam sido iniciativas Tradicionalistas.
PARTE IV O Tradicionalismo e o futuro
11. A EUROPA APÓS 1968
Após as mortes de Schuon e Evola, deixou de existir um foco central para o Tradicionalismo no Ocidente. Em lugar disso, a última parte do século XX assistiu ao crescimento de muitos grupos e influências Tradicionalistas sem ligação entre si. O Tradicionalismo deixou de ser propriedade de figuras individuais e, sobretudo após a década de 1960, misturou-se de maneira gradual com as principais correntes da espiritualidade ocidental. A década de 1960 foi claramente o maior ponto de inflexão cultural e intelectual do século XX no Ocidente, talvez mais do que 1914-18. O Tradicionalismo posterior a esse período, bem como o Ocidente, foi diferente do que veio antes. Assim como o Renascimento — que os Tradicionalistas abominam como a morte da tradição esotérica ocidental — assistiu ao nascimento do perenialismo que se encontra no coração do próprio Tradicionalismo, e assim como os anos 191418 apresentaram o Tradicionalismo ao mesmo tempo que a velha Europa desaparecia, a revolução cultural da década de 1960 também infundiu-lhe uma nova energia e foi o início do movimento Tradicionalista contemporâneo. O fim do século XX viu um crescimento fenomenal no apetite do público por alternativas religiosas e espirituais. A princípio, esse apetite foi alimentado por figuras típicas do período, como Alan Watts nos Estados Unidos e, mais importante, Louis Pauwels na maior parte da Europa. Menos importante, mas ainda influente na França, foi Raymond Abellio, que se tornou um importante apresentador de rádio e TV na década de 1970.1 A estrela de Pauwels começou sua ascensão em 1961, com a publicação em Paris do livro Le matin des magiciens [O despertar dos mágicos],2 um sucesso fenomenal que misturava esoterismo, divulgação e ficção científica. O sucesso da obra levou à criação, no fim de 1961, de uma revista mensal chamada Planète [Planeta], que
atingiu uma circulação de 100 mil exemplares em poucos meses.3 Em 1970, Planète se declarava «a revista mais importante da Europa, devido ao peso de seus artigos, sua circulação e suas edições internacionais» — na época, ela era publicada também em italiano, alemão, espanhol (na Espanha e na Argentina) e em português (no Brasil).4 Naquele ano, a revista Planète original havia crescido tanto a ponto de se dividir em três: Planète-plus, para cultura e espiritualidade, Planète-action, para política, e Le nouveau planète, para todo o mais. Planète-action estreou com uma edição especial sobre o líder comunista norte-vietnamita Ho Chi Minh, seguida por outra sobre Fidel Castro. Planète-plus estreou com uma edição sobre o guru hindu Ramakrishna, seguida por outra sobre René Guénon.5 O próprio Pauwels não era um Tradicionalista — sendo, mais que tudo, um seguidor de Gurdjieff —, mas seu interesse no Tradicionalismo é visível em O despertar dos mágicos, bem como na escolha de Guénon como tema da segunda edição de Planète-plus. Assim como Hartung, Pauwels era um veterano da Resistência e um comunicador habilidoso: antes de lançar a revista Planète, ele havia editado o jornal Combat, da Resistência francesa e, em seguida, Marie-France, a principal revista feminina da França. Após o colapso do império de Planète no início da década de 1970 (a moda havia mudado), ele passou ao importante jornal Le Figaro, onde lançou a Figaro Magazine em 1978.6 Apesar de não ser primordialmente um Tradicionalista, Pauwels foi responsável pela difusão de um Tradicionalismo simplificado pela Europa latina. O período de sucesso de Planète coincidiu com um significativo aumento de vendas das obras de Guénon.7 Alan Watts, um ex-padre inglês e, mais tarde, guru do zen norteamericano, conhecia o Tradicionalismo, mas este não era particularmente importante para ele. Sua responsabilidade por apresentar o Tradicionalismo a um jovem dos Estados Unidos chamado Eugene Rose (mais tarde, Seraphim Rose) foi completamente acidental. Rose havia conhecido Watts em 1953, quando estudava no Pomona College, no sul da Califórnia, onde Watts lecionava. Ele seguiu Watts à Academia Americana de Estudos
Asiáticos, onde encontrou alguns livros de Guénon na biblioteca. Após um período de imersão na primeira «contracultura» de São Francisco, Rose descobriu que preferia Guénon a Watts. Nas palavras de seu biógrafo, «Enquanto Guénon havia buscado estudar as religiões orientais em seu próprio contexto, Watts parecia [a Rose] estar tentando torná-las mais palatáveis aos ocidentais. O ‹budismo›, que ele defendia como remédio ao mal-estar espiritual do Ocidente, era, assim, uma expressão inautêntica e sintética daquela tradição, simplificada para adaptar-se à mentalidade moderna do culto a si mesmo».8 Em outras palavras, Guénon convenceu Rose de que o grupo informal de Watts, ao qual ele pertencia, era «contrainiciático». A princípio, Rose seguiu o caminho usual. Ele leu o livro de Schuon sobre a unidade transcendente das religiões e aceitou seu ponto de vista. Em seguida, procurou um mestre ortodoxo em uma Tradição esotérica. Em lugar de encontrar a ordem Maryamiyya, porém, ele escolheu um erudito taoista chinês que dava aulas na Academia de Watts e «resolveu fazer pela tradição espiritual chinesa aquilo que Guénon havia feito pela hindu». No entanto, tal intenção foi logo abandonada. Schuon havia despertado o interesse de Rose pelo Cristianismo ortodoxo e, depois de um amigo levá-lo a alguns ofícios litúrgicos numa Igreja Ortodoxa russa, certa noite, numa rua de São Francisco, o jovem Eugene experimentou a certeza avassaladora da divindade de Cristo. Em 1962 ele foi recebido na Igreja Ortodoxa Russa.9 Como cristão ortodoxo e, após 1965, como leitor ordenado da Igreja, Rose concluiu que «cada tradição possui a verdade, para além de qualquer dúvida, mas em diferentes medidas [...] a ‹igualdade› e a ‹unidade transcendente› das religiões são noções da mentalidade modernista ‹simplista›». O Tradicionalismo não era a resposta integral: «Com toda a ‹sabedoria› de Coomaraswamy, Guénon e os sábios menores de hoje, parecemos estar mais próximos de um colapso ainda maior. [...] Cristo não exige nosso ‹entendimento›, mas sim nosso sofrimento, morte e ressurreição para a Vida nele».10 No entanto, Rose não rejeitou o Tradicionalismo por completo, que continuou parte de sua filosofia pessoal na década de 1970, quando respondeu a um Tradicionalista que havia lhe escrito: «Rezo apenas
para que você tome o que há de bom nele [Guénon] sem se deixar acorrentar por suas limitações».11 O que Rose guardou do Tradicionalismo foi uma devoção à prática esotérica «tradicional», bem como uma firme oposição ao mundo moderno e à «contrainiciação», o tema de um de seus dois livros, intitulado Orthodoxy and the Religion of the Future [Ortodoxia e a religião do futuro] (1976). Essa obra era, sob certos aspectos, uma revisão do Erreur spirite de Guénon, atacando os novos movimentos religiosos de seu tempo: Swami Vivekananda, Meditação Transcendental, Hare Krishna, Yoga Tântrica e até mesmo movimentos a respeito de OVNIs.12 O outro livro de Rose, The Soul after Death [A alma após a morte] (1980), foi muito menos Tradicionalista.13 A devoção de Rose à prática esotérica Tradicional rendeu frutos em um mosteiro, dedicado a São Germano do Alasca, fundado em 1967 numa montanha isolada em Platina, Califórnia. Os monges do mosteiro de São Germano seguiam a regra mais tradicional que Rose conseguiu encontrar, escrita por ele mesmo com base nos princípios de um santo do século XVIII, o bem-aventurado Paisius Velichovsky. O mosteiro de São Germano floresceu no fim da década de 1970 e na de 1980, fundando «paróquias missionárias» na Califórnia, Oregon, Washington e Idaho e republicando textos clássicos da ortodoxia em russo para distribuição na então União Soviética. Esses textos, bem como as traduções posteriores dos dois livros de Rose, tornaram-se muito populares em círculos ortodoxos «conservadores» na Rússia.14 Rose, que passou a ser visto por muitos como um santo após sua morte em 1982 (não existe processo formal de canonização na ortodoxia), é o clássico exemplo de como o Tradicionalismo tornou-se um «trampolim» para muitas pessoas, não um destino em si mesmo como o foi para gerações prévias, mas sim um encontro decisivo durante uma busca espiritual que, ao final, conduz a um destino diferente. Rose não foi o único a se voltar para a ortodoxia russa após ser exposto ao Tradicionalismo. Em 1976, um jovem suíço chamado Jean-François Mayer foi batizado na Igreja Ortodoxa Russa após uma busca espiritual que o conduzira da Opus Dei aos Quakers.
O Tradicionalismo, tal como encontrado na revista Planète e na obra Crise du monde moderne de Guénon foi o trampolim.15 Na maioria dos casos, a influência do Tradicionalismo sobre aqueles que não se uniram a um grupo Tradicionalista identificável termina por ser invisível. Mayer é uma exceção porque se tornou um importante estudioso dos Novos Movimentos Religiosos (um campo no qual é possível detectar um interesse Tradicionalista na «contrainiciação») e publicou uma divertida autobiografia intitulada Confessions d´un chasseur de sectes [Confissões de um caçador de seitas]. É impossível quantificar o impacto do Tradicionalismo em todas as outras pessoas com histórias semelhantes, apesar de um jornalista que investigava a conversão de cristãos e cristãs franceses de nascimento ao Islã ter relatado que o nome de Guénon aparecia na maioria de suas entrevistas.16 O líder de uma importante organização islâmica na Itália (ele mesmo não sendo um Tradicionalista) chegou à mesma conclusão a respeito das conversões em seu país: Guénon vinha em segundo lugar como gatilho para conversão ao Islã, apenas atrás do casamento com um muçulmano.17 Alguns, no entanto, desconfiam de convertidos vindos de ambientes Tradicionalistas. Depois de dificuldades envolvendo um italiano que passou do Islã à ortodoxia russa para depois passar ao budismo, o abade do pequeno mosteiro ortodoxo de São Serafim de Sarov na Toscana chegou ao ponto de pronunciar um anátema contra «a ímpia doutrina de René Guénon e seus seguidores», que afirmava que o Cristianismo seria «apenas um dos diversos caminhos que conduzem à salvação».18 Outros, é claro, permaneceram intocados pelo Tradicionalismo. Fica claro da leitura do livro O pêndulo de Foucault, por exemplo, que Umberto Eco conhece bem o Tradicionalismo, mas este não parece ter tido nenhum efeito sobre sua obra ou sua vida.19
GRUPOS TRADICIONALISTAS TARDIOS A lista dos grupos do fim do século XX que incorporam o Tradicionalismo de uma maneira ou outra poderia se estender
indefinidamente. A maioria está localizada na França e na Itália, os dois países onde o Tradicionalismo se estabeleceu primeiro, e na Espanha, onde se tornou cada vez mais popular à medida que o país se aproximava entusiasticamente do resto do Ocidente após a morte do general Francisco Franco em 1975. Em todas essas áreas e em partes da América Latina, o Tradicionalismo gerou centros de estudos, revistas e ordens maçônicas. Filósofos amadores começaram a se reunir em Blois, a cidade natal de Guénon, para discuti-lo. Um argentino em Barcelona fundou uma bem-sucedida «universidade por via postal», com o Tradicionalismo ocupando uma parte importante do currículo. Grupos pequenos e excêntricos de franceses aplicaram o Tradicionalismo ao monarquismo e até à homossexualidade.20 Um grupo típico é abordado na seguinte subseção, seguido de uma seleção das mais interessantes expressões recentes do Tradicionalismo.
O Centre de Rencontres Spirituelles et de Méditation de Hartung O projeto pós-1968 de Henri Hartung é típico do Tradicionalismo tardio, um Centre de Rencontres Spirituelles et de Méditation (Centro de Encontros Espirituais e de Meditação) fundado em Fleurier, na Suíça, em 1977. Apesar de modesto se comparado com os projetos anteriores de Hartung, o Centro possuía sede própria e contava com sessenta membros na década de 1980, todos participando de sua administração (Hartung continuava sendo de esquerda). Ele organizava retiros e conferências, geralmente frequentados por centenas de não membros, suíços e franceses (a cidade de Fleurier está localizada perto da fronteira com a França, facilmente acessível de trem a partir de Paris). A newsletter do Centro, chamada Diagonale, chegou a ter uma circulação de quinhentos exemplares.21 Como o ISTH (discutido no capítulo anterior), o Centro não era especificamente Tradicionalista — a maioria de seus membros provavelmente nunca havia lido Guénon, apesar de a maioria aceitar a necessidade de que uma prática exotérica acompanhasse um
caminho esotérico, uma posição caracteristicamente Tradicionalista.22 Hartung descreveu-o em algumas ocasiões como a educação continuada praticada da maneira certa, começando com o que realmente importa.23 Sua prática, essencialmente a de um mosteiro zen, era organizada sobretudo pela segunda esposa de Henri Hartung, Sylvie, praticante de zazen, professora de tai chi e que havia estado em mosteiros zen no Japão. Sylvie Hartung vinha de outra grande família protestante da França — seu pai havia sido diretor do Banco Central e ministro das Finanças no governo do presidente De Gaulle. Ela nunca havia se sentido atraída pelo Islã ou pelo Tradicionalismo em especial, mas, ao casar-se com Henri Hartung, Sylvie concordou em adotar uma prática religiosa «tradicional», em lugar do protestantismo. Ela escolheu o catolicismo, mas descobriu que, como católica, não poderia se casar com um homem divorciado. Assim, em 1966, ela se voltou para uma técnica de meditação ensinada por Karlfried Graf Dürckheim, o seguidor de C. G. Jung que descobriu o zen e mestre Eckhart durante uma missão alemã ao Japão em 1937.24 De Dürckheim, Sylvie passou ao zazen. O Tradicionalismo era algo evidente nas palestras de Henri Hartung no Centro. O perenialismo também ficava claro na escolha dos palestrantes convidados. Estes incluíam Adda Bentounès, da ordem Alawiyya da Argélia (que, àquela altura, contava com seus próprios seguidores na Suíça), e um padre católico; o mais importante, no entanto, foi um roshi (abade) zen. Outro palestrante frequente era Dürckheim, e uma amizade próxima se desenvolveu entre os casais Dürckheim e Hartung. Devido à idade avançada de Karlfried Graf Dürckheim, ele raramente viajava a Fleurier, mas os Hartung levavam membros de seu Centro ao de Dürckheim na Alemanha. Henri Hartung morreu subitamente em 1988. Dois anos depois, Sylvie Hartung decidiu afastar-se do Centro por razões pessoais, o que levou à interrupção de suas atividades em 1992, pondo fim com isso a essa parte da história do Tradicionalismo. Como Rose, Hartung não pode ser descrito como Tradicionalista do mesmo modo que Schuon e Vâlsan. O Tradicionalismo foi apenas um elemento de seu ensinamento público, e, para seus seguidores, um trampolim do qual eles nem sequer estavam conscientes.
O negócio é ser pequeno Outro exemplo da penetração parcial do Tradicionalismo na cultura de massa do Ocidente foi um dos livros de maior sucesso da década de 1970, Small Is Beautiful: Economics as if People Mattered [O negócio é ser pequeno: um estudo de economia que leva em conta as pessoas] (1973), de E. F. Schumacher. A obra vendeu milhões de cópias — em parte, graças a seu título inspirado, sugestão da editora de Schumacher, que queria chamá-la de The homecomers [Os que regressam ao lar].25 Até onde se sabe, Schumacher não estava presente à reunião do Grupo Bilderberg em que Hartung falou sobre os perigos de criar infelicidade, mas ele fez eco às opiniões do francês. Economista inglês de origem alemã, Schumacher atacou a economia contemporânea por sua obsessão com o tamanho e por seu descaso com objetivos imateriais, o que significava que «inúmeras distinções qualitativas são suprimidas [...] [e] assim o reino da quantidade celebra seu grande triunfo».26 Em seu Règne de la quantité [O reino da quantidade] (1945), Guénon argumentou que uma das principais características da kali yuga era a substituição da qualidade pela quantidade. Schumacher, assim como Hartung, identifica a infelicidade produzida pela inversão: «Se vícios como a cobiça e a inveja são sistematicamente cultivados, [...] se sociedades inteiras são infectadas por tais vícios, [...] as pessoas [...] se veem oprimidas por uma crescente frustração, alienação, insegurança e assim por diante».27 A base correta para a economia era, segundo Schumacher dava a entender, espiritual — o que ele chamava de «economia budista», enquanto reconhecia que «os ensinamentos do Cristianismo, do Islã ou do judaísmo poderiam ser empregados da mesma forma que os de qualquer uma das grandes religiões orientais». «A economia budista deve ser muito diferente da economia do materialismo moderno, uma vez que os budistas enxergam a essência da civilização não na multiplicação de necessidades, mas na purificação do caráter.»28
Schumacher foi um leitor apreciativo das obras dos Tradicionalistas, ainda que não um deles. Ele foi menos um discípulo de Guénon do que de Gurdjieff (assim como Pauwels), seguindo um caminho espiritual no budismo até finalmente converter-se ao catolicismo.29 Como aconteceu com Rose, o Tradicionalismo foi um dos elementos (ainda que importante) na filosofia pessoal de Schumacher, e não a resposta final em si mesma. Além de ocasionalmente visível em O negócio é ser pequeno, o Tradicionalismo foi uma das principais fontes do antimodernismo de seu autor. Esse antimodernismo está implícito em grande parte de O negócio é ser pequeno e explícito em um relatório pouco comum — financiado pela ONU — sobre a economia de Burma, escrito por Schumacher em 1955, no qual ele recomendou que o governo local abandonasse todos os seus planos para o desenvolvimento econômico e se concentrasse, em lugar disso, no budismo.30 «O cientismo materialista moderno», escreveu ele em outro texto, «destruiu até os últimos vestígios da sabedoria antiga, ao menos no Ocidente.»31 Seu antimodernismo Tradicionalista não foi o que transformou O negócio é ser pequeno num sucesso, porém, nem a espiritualidade gurdjieffiana. O mais apreciado foram os elementos do livro que defendiam a conservação de recursos naturais — argumentos que ajudaram a lançar o Movimento Verde que caracterizou grande parte do fim do século XX. «Já existem», escreveu Schumacher, «indícios esmagadores de que o grande mecanismo de autoequilíbrio da natureza vem se tornando cada vez mais desequilibrado.» «O crescimento infinito num ambiente finito é, obviamente, uma impossibilidade.» «Os bens não renováveis devem ser usados apenas se forem indispensáveis, e com a maior cautela e com o maior cuidado com a conservação.»32 Essas opiniões não vêm do Tradicionalismo, mas da Antroposofia, a versão de Rudolf Steiner para a Teosofia, que havia inspirado a «Associação Solo», um grupo britânico que esteve entre os primeiros a fazer pressão pelo que viria a ser chamado mais tarde de abordagem ecológica da agricultura, e ao qual Schumacher se filiou em 1949.33 As opiniões de Schumacher vêm também da política industrial britânica: ele trabalhou um tempo
como assessor econômico para o Conselho Britânico do Carvão, a empresa estatal da indústria carvoeira britânica, e, na década de 1960, foi incumbido de encontrar argumentos contra a proposta do governo de fechar as minas de carvão deficitárias. O principal deles foi que, a partir da década de 1980, as reservas de petróleo começariam a se esgotar e o carvão voltaria a ser importante.34 Não está claro se o próprio Schumacher percebeu que seu livro vinha sendo lido sobretudo por seus argumentos a favor da ecologia, e que seu antimodernismo e seu apelo por uma base espiritual para a economia e para a vida estavam sendo ignorados. A fama que se seguiu à popularidade crescente do livro pode tê-lo isolado de tal descoberta, sobretudo à luz da turnê mundial de palestras na qual partiu em 1973; o estresse causado por ela levou à sua morte inesperada em 1977, enquanto viajava entre um evento e outro.35
A poeta e o príncipe Uma das tentativas mais exitosas de apresentar o Tradicionalismo ao grande público foi patrocinada pela poeta e crítica literária Kathleen Raine. Quando estudava em Cambridge no fim da década de 1920, um interesse por William Blake conduziu Raine às fontes do poeta, que incluíam, descobriu ela, os perenialistas originais do Renascimento, incluindo Marsílio Ficino.36 Também identificou fontes semelhantes por trás de William Butler Yeats, o amigo de Coomaraswamy, que ela considerava um grande poeta, não «a despeito de seus estudos em campos esotéricos», mas devido a seu grande conhecimento e erudição nesses campos de conhecimento excluídos».37 Essas conclusões foram recebidas sem grande entusiasmo pelos acadêmicos britânicos, e Raine poderia ter sido deixada de lado como uma excêntrica a mais se não fosse pela estatura conferida a ela por sua própria poesia. Seu primeiro livro — Stone and Flower [Pedra e flor] — foi publicado em 1943, com ilustrações de Barbara Hepworth; dezoito volumes se seguiram ao longo do século, e, em 1993, ela recebeu a importante Medalha da Rainha para Poesia.38
As investigações acadêmicas de Raine foram acompanhadas por uma busca espiritual que a conduziu pela magia ritual (um grupo que ela identificava apenas como descendente da Golden Dawn de Aleister Crowley, ao qual pertencia Yeats) até o hinduísmo.39 O Tradicionalismo não parece ter desempenhado papel importante em sua busca; Raine preferia Ficino, o original, a Guénon. No entanto, ela leu com interesse as obras de Guénon e de outros Tradicionalistas, especialmente Coomaraswamy e Le règne de la quantité.40 A combinação de Ficino, hinduísmo e iniciação a conduziu a conclusões muito semelhantes às de Guénon: que estava na última das eras, a kali yuga.41 Ela também chegou a conclusões parecidas com as do francês a respeito do Oriente e do Ocidente. «Ao Oriente materialmente pobre falta aquilo que nós no Ocidente podemos dar», disse ela a uma plateia da Índia; «enquanto nossa civilização espiritualmente empobrecida observa o Oriente.» «Não é nas ruas da rica Londres — ou Nova York, ou Dallas — que se veem rostos de radiante beleza e alegria de viver. Os ricos [...] levam seu desespero calado ao psiquiatra.» Reine enfatizava que se referia à Índia como um «estado de espírito», e não «à Índia política, econômica e industrial». Na economia, ela fazia eco a Schumacher, condenando a tecnologia «a serviço do lucro, produzindo necessidades onde elas inexistiam, buscando vender os produtos das máquinas que criou. Enquanto toda civilização baseada na espiritualidade colocou os valores mais elevados não na multiplicação de necessidades, mas na redução do desejo de bens materiais».42 Em 1980, Raine uniu-se ao que pareciam ser três Tradicionalistas schuonianos (Keith Critchlow, Phillip Sherrard e Brian Keeble) para criar Temenos: A Review of the Arts of the Imagination [Temenos: uma revista das artes da imaginação]. «Não usamos a palavra ‹sagrado›, já que ninguém teria nos levado a sério», explicou Raine mais tarde,43 mas a pista estava ali mesmo no título: em grego antigo, Temenos significava o centro sagrado, geralmente de um lugar de culto. Desde o princípio, Temenos foi uma revista mais ou menos Tradicionalista, ainda que nunca exclusivamente.
Temenos atraiu a atenção de sir Laurens van der Post, um amigo e seguidor sul-africano de Jung, além de ambientalista de primeira hora. Van der Post foi por muitos anos amigo do príncipe Charles, o herdeiro do trono britânico, e era visto como seu mentor espiritual. Em 1992, Van der Post mostrou a revista Temenos ao príncipe, que gostou dela a ponto de pedir para se encontrar com Raine. O príncipe Charles incentivou-a a criar uma «Academia Temenos», acolhida por ele em sua fundação, que serve de guarda-chuva para seus projetos culturais.44 O príncipe Charles é mais um antimodernista do que um Tradicionalista, apesar de claramente ler Burckhardt45 com aprovação e das influências Tradicionalistas serem cada vez mais visíveis em alguns de seus discursos. No ano 2000, por exemplo, na qualidade de Alto Comissário da Igreja da Escócia, o príncipe dirigiu-se à Assembleia Geral daquela Igreja nos seguintes termos: Cada vez mais nos vemos em uma era secular que corre o risco de ignorar, ou de esquecer, todo o conhecimento sagrado e espiritual, além daqueles princípios de ordem e harmonia que se encontram no coração do universo. [...] Tenho o maior respeito pelo trabalho da mente racional [...] mas o risco [...] é que estejamos colocando em perigo o equilíbrio de nossas vidas. [...] A tradição e a sabedoria perene que perpassa tanto da nossa compreensão profunda dos mundos visíveis e invisíveis perderam seu valor ou foram ignoradas.46 O Tradicionalismo também pode estar por trás de uma visão do Islã bastante mais simpática do que o normal na vida pública britânica. Em 1993, num discurso proferido durante a abertura do Centro de Estudos Islâmicos de Oxford, do qual o príncipe Charles é um dos patronos, ele se manifestou veementemente contra os malentendidos e medos do Ocidente contra o Islã, enfatizando «a visão monoteísta comum» do Islã e do Cristianismo e falando da necessidade de uma «dimensão metafísica, além da material, em nossas vidas».47 A reação a esse discurso ilustra as dificuldades encontradas pelo Tradicionalismo suave em outros contextos: o
Evening Standard, um jornal de grande circulação, fez uma reportagem sobre o discurso com o título: «Charles destrói as mentiras de Saddam Hussein»,48 concentrando-se em uma passagem pontual e ignorando quase por completo a substância do discurso do príncipe Charles. Nem todos os jornais britânicos seguiram essa linha, é claro, mas o discurso provavelmente fez mais pela imagem do príncipe no mundo muçulmano do que pela imagem do Islã na GrãBretanha. A organização mais importante dentro da Fundação do príncipe (que abriga a «Academia Temenos») é o Instituto de Arquitetura do Príncipe de Gales (fundado em 1992), que, como o próprio Charles, é mais antimodernista do que Tradicionalista. Outra organização, no entanto, é totalmente Tradicionalista. Trata-se do Programa de Artes Visuais Islâmicas e Tradicionais (VITA, na sigla em inglês), fundado em 1984 por Keith Critchlow e que se uniu à Fundação do príncipe em 1993.49 O VITA oferecia cursos de graduação e pós-graduação, atraindo cerca de vinte alunos por ano. Esses cursos são principalmente práticos, ensinando os alunos a produzirem obras notáveis — miniaturas de padrão mugal, azulejos de padrão otomano, além de caligrafia e mosaicos geométricos de inspiração islâmica. Na medida em que há um elemento teórico, este é puramente Tradicionalista: as obras de Guénon, Schuon, Coomaraswamy e outros autores. «Tutores» visitantes incluíam Nasr e Lings. A reação dos alunos do VITA ao componente Tradicionalista de seu curso varia: alguns acreditam ter sido enganados (não era isso o que buscavam), alguns aceitam uma abordagem Tradicionalista das artes em maior ou menor medida, e alguns se interessam o bastante para irem além, ocasionalmente filiando-se à ordem Maryamiyya, bem representada no corpo docente do VITA.50 Mais importante do que o VITA, porém, foi a Academia Temenos, com seu papel mais amplo. Os Tradicionalistas estiveram entre os palestrantes mais frequentes da Academia, mas a maioria das palestras não era dada por eles. As conferências tratavam das artes (sobretudo da poesia) e do Islã (sobretudo do sufismo) em proporções mais ou menos iguais, mas também do esoterismo ocidental (sobretudo do perenialismo) e de diversas outras
religiões.51 Seyyed Hossein Nasr falou na Academia Temenos, da qual é membro, em três ocasiões entre 1992 e 2000.52 Nasr e o apoio da realeza não são as únicas conexões entre a Academia Temenos e a Academia Imperial Iraniana de Filosofia. Assim como sua predecessora iraniana, Temenos é uma tentativa bem-sucedida de introduzir o Tradicionalismo no mainstream intelectual, uma tentativa de incluir aquilo que Raine chama de «conhecimento excluído». Poucos lobistas ajudariam mais uma causa pouco conhecida do que o príncipe Charles. Lorde Young (um importante empresário britânico e amigo do príncipe), ao comentar o trabalho de Charles em prol de uma causa mais na moda — o meio ambiente —, afirmou o seguinte a respeito de uma conferência na Carolina do Norte à qual compareceram cem empresários: «Provavelmente, tudo o que eles queriam era uma foto com ele, mas os resultados foram bons. [...] As pessoas que frequentam jantares em sua casa em Londres ou em Highgrove (sua residência de campo) terminam a noite voluntariando-se para todo tipo de coisas que nunca imaginaram. [...] Ele é a prova viva de que não existe almoço grátis».53 No entanto, existem limites até mesmo para o que o príncipe Charles pode fazer pelo Tradicionalismo no Ocidente contemporâneo. Grande parte da imprensa popular britânica costuma receber suas opiniões e atividades com uma mistura de hostilidade e deboche. Até um artigo muito favorável pode terminar com a seguinte frase: «Muitos de seus súditos estão convencidos, é claro, que as teorias do príncipe Charles são absurdas, se não completamente doidas. O aspecto espiritual e filosófico de sua cruzada [contra o materialismo] é considerado constrangedor ou impensado em algumas partes do reino».54
Aristasia Aristasia é o nome assumido durante a década de 1980 por um grupo anteriormente conhecido como «Os românticos» e «Os olímpicos». Ele foi fundado na cidade universitária inglesa de Oxford no fim da década de 1960 por uma acadêmica que usava o nome de
«Hester StClare». StClare nasceu na década de 1920; outros detalhes de sua carreira são desconhecidos. No fim da década de 1960, ela, já uma Tradicionalista, começou a reunir um grupo de mulheres jovens, a maior parte alunas da Universidade de Oxford descontentes com o «colapso cultural» da época.55 Elas levaram Guénon um passo além: ainda pior do que a modernidade era a «sociedade invertida», a idade contemporânea, pós-moderna, produzida pelo colapso cultural da década de 1960, um evento a que as aristasianas se referiam como «o Eclipse». A sociedade invertida — frequentemente chamada de «o Fosso» — guarda com a modernidade a mesma relação que a própria modernidade guardava com a tradição, argumentava «Alice Trent», a seguidora mais importante de StClare. Nem tudo produzido antes do Eclipse era sem valor; Beethoven e Wordsworth claramente não são «aberrações malignas», por exemplo. Cada fase no ciclo de declínio pode produzir desenvolvimentos que, ainda que «de ordem inferior ao que era possível em fases anteriores, [...] são bons e belos em si mesmos». No entanto, nada produzido após o Eclipse possui algum valor, embora, em teoria, até pudesse ter. Na prática, tudo no Fosso é inversão — «o objetivo deliberado é uma paródia invertida de tudo o que deveria ser». As classes altas imitam as baixas, «a vida em família e a lealdade pessoal» são substituídas por um culto da «independência pessoal», e até mesmo os ganhos do primeiro período da modernidade são perdidos, à medida que o crime e o analfabetismo crescem. Na arte e no vestuário, prefere-se o caos à harmonia; a masculinidade substitui a feminilidade.56 StClare, assim como Evola (ainda que sem uma dívida direta para com ele), acrescentou o tema do gênero ao Tradicionalismo. Evola era claramente «masculinista», a ponto de seu «indivíduo absoluto» ver-se ameaçado pela feminização como resultado da modernidade; Aristasia seguiu o caminho oposto, o de que a mulher se via ameaçada pela masculinização. Na cosmologia aristasiana, a primeira idade não havia sido a dos brahmin (como para Guénon), mas a idade da Deusa. A ascensão dos deuses masculinos e de uma sociedade dominada por homens foram consequência dos estágios iniciais de declínio. A modernidade trouxe o triunfo das qualidades masculinas «materiais e quantitativas» (agressividade, guerra e
ciências técnicas) à esfera pública em detrimento das características femininas «espirituais e qualitativas», essencialmente o princípio da harmonia ou da união. Esse foi um exemplo inicial de inversão, uma vez que as características femininas são naturalmente superiores às masculinas, e o feminino é «o sexo primário ou fundamental». O estágio final de declínio — o Fosso — trouxe «o triunfo final do patriarcado», geralmente descrito no Fosso como a aceitação geral dos pontos de vista do feminismo. Com o Eclipse, «o princípio masculino chegou a dominar toda a cultura, extirpando a feminilidade do coração da própria mulher».57 A elite aristasiana, portanto, é composta inteiramente de fêmeas, mas, além disso, é «feminina». Ela também exclui os homens a fim de evitar o risco de um retorno à dominação das mulheres por eles, que é um produto do declínio, e não uma característica da tradição primordial. Ademais, ela apoia uma variante da apoliteia de Evola, apesar de não utilizar o termo.58 Uma vez que todas as coisas no Fosso estão contaminadas pela inversão, «a tendência de todos os aspectos da cultura é corrosiva, e essa corrosão é um ritual que age para desestabilizar a alma, [...] que [...] aprofunda o processo de desintegração psíquica». Assim, é necessário controlar aquilo que entra em nossa consciência, do mesmo modo que «não pegamos qualquer coisa na rua e a engolimos». Além de excluir o Fosso de suas vidas o máximo possível, as aristasianas buscam recriar para si um ambiente correspondente ao que precedeu o Eclipse. Uma vez que «imagens [...] verdadeiramente tradicionais [...] estão demasiado distantes das operações de nossa consciência atual», a idade escolhida para ser recriada é aquela que precedeu imediatamente a atual, o período entre as décadas de 1920 e 1950. Aristasia, além de ser o nome de um grupo Tradicionalista, é também um forma de realidade virtual (apesar de as aristasianas não empregarem esse termo, uma vez que excluem neologismos, assim como tudo o mais que é característico do Fosso). Diversos aspectos da vida pré-Eclipse são cuidadosamente recriados nas casas das aristasianas — restaurantes da década de 1950, clubes dos anos 1940, lares dos anos 1930. As aristasianas se vestem com as roupas da década de sua escolha, utilizam os equipamentos e utensílios
daquela década e, se possível, dirigem até mesmo os carros e assistem aos filmes correspondentes. Tal comportamento é apresentado como uma alternativa ao caminho padrão de «santidade» ou «transcendência espiritual», para o qual apenas algumas têm vocação.59 O Tradicionalismo aristasiano é promovido por meio de anúncios ocasionais em revistas e em uma elaborada página na internet, que também inclui ficção aristasiana. Na história escrita por Trent, chamada «Strangers in Paradise» [Estranhos no paraíso], uma não aristasiana acaba de causar confusão ao usar a palavra «homem» numa conversa com duas aristasianas: «Você tem alguma ideia do que ela está falando?», perguntou a mulher com o caderno. «Referência clássica», disse sua colega, Eileen. «Homens — criaturas mitológicas, como os humanos, mas extremamente ferozes e cruéis. Dizem que habitavam as terras ermas do norte nos tempos antigos. Sabrina, a jovem, menciona-os; Ulalua também.»60 O Tradicionalismo aristasiano é apresentado de modo mais sério no livro de Trent intitulado The Feminine Universe [O universo feminino]. Essa obra, voltada a um público mais amplo, aborda Nietzsche antes de Guénon e emprega argumentos históricos com alguma habilidade. O aristasianismo também recebeu certa cobertura na imprensa e na televisão do Reino Unido.61 No fim do século XX, a Aristasia era composta de cerca de quarenta aristasianas dedicadas e comprometidas em tempo integral com a organização, além de muitas outras seguidoras que dedicavam a ela apenas parte de seu tempo. A maioria das aristasianas estava na casa dos vinte ou trinta anos de idade, com algumas mais velhas e poucas mais jovens; a ocupação mais frequente era «alguma ligação com a academia».62 Quase todas essas aristasianas encontravam-se na Grã-Bretanha. O aristasianismo não conseguiu um grande número de seguidores nos Estados Unidos, talvez devido a diferenças culturais. A Aristasia é permeada pelo humor excêntrico característico
de Oxford, onde a expressão de convicções profundas dificilmente acontece sem um elemento de brincadeira, e onde é impossível imaginar que qualquer piada não possa conter alguma questão muito séria. A cobertura realizada pela imprensa britânica a respeito do grupo enfatizava menos seu Tradicionalismo do que dois aspectos de sua prática considerados periféricos por Trent. Um deles é a divisão das aristasianas em «loiras» e «morenas», categorias que correspondem aproximadamente a macho e fêmea no mundo exterior. Isso levou a Aristasia a ser descrita como um «enclave lésbico» por um dos principais jornais para gays e lésbicas do Reino Unido, The Pink Paper.63 O outro era o emprego da disciplina — surras —, visto pelas aristasianas como «uma busca pela pureza [...] um meio de submissão espiritual»,64 e pelas pessoas de fora do grupo como sadomasoquismo fetichista. O papel do lesbianismo na Aristasia não é claro, até mesmo porque na era anterior ao Eclipse esse assunto não era discutido, portanto as aristasianas tampouco falam sobre ele, mas «relações íntimas com homens» não são encorajadas.65 A prática da submissão, porém, pode ser vista como alinhada com a espiritualidade Tradicionalista mais mainstream. Os sufis se submetem a seu xeique, e Trent não está equivocada ao defender que «a submissão a um poder superior [...] é a própria essência da espiritualidade», apesar de ser recomendável distinguir diferentes tipos de submissão.66 Da mesma maneira, o separatismo da comunidade aristasiana faz eco ao separatismo da ordem sufi. Como que para recordar as implicações políticas sempre latentes no Tradicionalismo, em 1995 a Aristasia foi atacada no The Guardian (jornal inglês de esquerda) por ligações com o Partido Nacional Britânico (BNP, na sigla em inglês), um notório grupo de extrema direita, quando foi descoberto que John Tyndall, o líder do BNP, havia escrito o seguinte a «Marianne Martindale» (uma importante aristasiana): «Admiro e respeito o que vocês fazem ao ponto da fascinação». Martindale declarou ao The Guardian: «Pessoalmente, não tenho interesse no fascismo», acrescentando de maneira
provocadora que tampouco «tinha interesse na democracia [...] [ou em] qualquer movimento político masculino».67
12. O TRADICIONALISMO NA RÚSSIA
O colapso da União Soviética em 1991 levou uma variedade pouco comum de Tradicionalismo à política da Rússia, a de Alexander Dugin, importante Tradicionalista russo. Inicialmente, o Tradicionalismo de Dugin teve apelo principalmente entre aqueles segmentos da sociedade russa que rejeitavam as políticas do presidente Boris Iéltsin, bem como a ideia de transformar seu país num tipo de estado liberal-democrático com boas relações com o Ocidente. À medida que o ambiente político russo se transformava sob o presidente Vladimir Putin, o Tradicionalismo neoeurasiano de Dugin passou das margens ao centro, menos porque Dugin mudara, mas sim porque a Rússia o fizera.
TRADICIONALISMO NA UNIÃO SOVIÉTICA Tradicionalismo subterrâneo Apesar de o Tradicionalismo estar necessariamente limitado aos círculos dissidentes até a era da perestroika, já existiam Tradicionalistas russos na década de 1960. O movimento penetrou na União Soviética por meio de duas bibliotecas, a Biblioteca de Línguas Estrangeiras e a Biblioteca Lênin, que, por razões desconhecidas, estranhamente possuía um bom acervo de obras Tradicionalistas.1 Em 1962 ou 1963, a atenção de Evgenii Golovin, um poeta conhecido apenas nos círculos de intelectuais dissidentes ou «independentes» por ele liderados, foi atraída pelos autores Tradicionalistas mencionados no livro O despertar dos mágicos, de Louis Pauwels — um eco distante da popularização do Tradicionalismo na Europa Ocidental levada a cabo por Pauwels e discutida no capítulo anterior.2 Uma descoberta parecida foi feita praticamente ao mesmo tempo na
Biblioteca de Línguas Estrangeiras, onde outro poeta inédito, Iuri Stefanov, começou a ler Guénon. Stefanov, um conceituado tradutor de literatura francesa, era um pouco mais conhecido na época.3 Stefanov e Golovin se conheciam, mas não está claro qual dos dois descobriu Guénon primeiro. O interesse de Golovin e Stefanov no Tradicionalismo foi transmitido a seu círculo, um dos muitos pequenos grupos de intelectuais espalhados pela União Soviética. Desencantados com as ortodoxias cada vez mais caducas do marxismo-leninismo soviético tardio, esses intelectuais dissidentes ou «independentes» habitavam as margens da vida soviética, boicotando instituições, como o Partido Comunista e o Komsomol, às quais a filiação era uma exigência para ter sucesso no trabalho em áreas como a academia e o jornalismo, em que intelectuais geralmente trabalham. Em lugar disso, eles eram empregados como estatísticos, bibliotecários e até mesmo garis. Seguindo a prática comum na Rússia, esses intelectuais se encontravam nos apartamentos ou nas cozinhas uns dos outros para conversar e beber, mas também para ler e discutir obras de filosofia, literatura e poesia, por vezes circuladas em samizdat (cópias caseiras, autopublicadas), algumas delas compostas por eles mesmos. A música alternativa também florescia nesses ambientes; gêneros ocidentais como o rock e o punk, malvistos pelo establishment soviético, adquiriram uma respeitabilidade intelectual desconhecida em seus países de origem. Muitos desses intelectuais aprenderam sozinhos línguas estrangeiras (frequentemente em textos bilíngues). Sua autoeducação nas humanidades geralmente atingia níveis muito superiores à dos autodidatas no Ocidente, mas, segundo a opinião de alguns observadores, a ausência de supervisão intelectual formal geralmente tinha como resultado uma falta de rigor e de disciplina, e causava lacunas surpreendentes. O círculo de Golovin no período soviético incluía Stefanov, Haydar Jamal e, um pouco mais tarde, Alexander Dugin. Esses três se tornaram os Tradicionalistas mais importantes da Rússia. Jamal, que se uniu ao círculo em 1967, era um moscovita com origens no Azerbaijão. Sua educação e criação haviam sido seculares e soviéticas, e não islâmicas. Na juventude, ele mergulhou na biblioteca
de livros filosóficos deixada por seu avô materno, um turco otomano que emigrou para a Rússia e participou da Revolução de Outubro ao lado dos bolcheviques e que foi professor do prestigioso Instituto Estatal de Artes Teatrais.4 Dugin, que se uniu ao círculo por volta de 1980, era filho de um coronel do exército soviético. Golovin, Stefanov, Jamal e, mais tarde, Dugin trabalharam para reconstruir o Tradicionalismo a partir dos livros que encontraram na Biblioteca Lênin e na Biblioteca de Línguas Estrangeiras, por vezes buscando adivinhar o conteúdo de livros indisponíveis a partir de seu título. Apesar de o livro Symbolisme de la Croix de Guénon não estar disponível (guardado na «seção fechada» da Biblioteca Lênin), o Imperialismo pagano de Evola (na versão revista e mais Tradicionalista publicada em Leipzig em 1933) havia sido colocado na coleção aberta da Biblioteca quando foi adquirido em 1957 — quem quer que tenha sido o responsável por essas decisões claramente não levou em conta nada além dos títulos. A maior parte dos Tradicionalistas russos, apesar de guiados pela explicação da modernidade dada por Guénon, geralmente reagiram a ela (após 1991, ao menos) seguindo mais o modelo de Evola. Somente Stefanov representou uma corrente mais guénoniana do que evoliana.5 O Tradicionalismo fornecia uma explicação intelectualmente satisfatória da realidade soviética em que esses dissidentes viviam e que rejeitavam, mas ele não os impulsionava a nenhum tipo de ação. Dugin traduziu o livro Imperialismo pagano ao russo em 1981, mas suas tentativas de fazê-lo circular em samizdat não tiveram sucesso. A atividade espiritual desempenhada por Guénon no Ocidente e a atividade política associada a Evola eram impossíveis na Moscou das décadas de 1960 e 1970. Qualquer atividade política era excluída por razões óbvias, e a atividade espiritual se via limitada pela falta da infraestrutura necessária. Os grupos Tradicionalistas estabelecidos não podiam ser contatados com facilidade de dentro da União Soviética, apesar de Vladimir Stepanov (não confundir com Iuri Stefanov), formado no Instituto de Filosofia de Moscou e membro do círculo de Golovin, ter conseguido entrar em contato com um neossufi britânico (ainda que não Tradicionalista), o destacado
romancista e poeta Robert Graves.6 Ainda que Jamal tenha se filiado à ordem sufi Naqshbandiyya no Tajiquistão em 1980, o sufismo não parece ter tido importância para ele. Quando levou Dugin para uma viagem de um mês pelas montanhas Zeravshan, no nordeste da cordilheira do Pamir, em 1980 ou 1982, eles não se encontraram com o xeique de Jamal, apesar de terem visitado os túmulos de diversos santos sufis.7 O mais próximo da ação a que o círculo de Golovin chegou foi o chamado Bateau ivre [Barco embriagado], ocasiões em que Golovin indicava uma «tripulação» para recitar textos poéticos, alquímicos ou esotéricos ao longo de dias — ou até semanas — de contínua bebedeira.8 Aquilo que Dugin chamou mais tarde de «excesso sob todas as formas» era visto como um modo de revolta. Tal excesso é visível em alguns dos romances de outro membro do círculo de Golovin, o escritor Iurii Mamleev, descrito por um dos críticos como o «mestre do grotesco sexual e necrofílico».9 Ele também é visível na vida amorosa de alguns dos participantes; duas companheiras dos membros do círculo tornaram-se ativistas lésbicas. O Tradicionalismo encontrava-se apenas em Moscou, apesar de Stepanov, o correspondente de Graves, ter sido seu introdutor na Estônia. Ele encorajou o interesse no Tradicionalismo de Haljand Udam, um estoniano que fez uma tese de doutorado entre 1967 e 1971 no Instituto de Estudos Orientais de Moscou.10 Seu interesse original era a indologia, e ele encontrou a Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues ao procurar obras de filosofia indiana no catálogo de uma biblioteca. Impressionado, Udam localizou e leu outras obras Tradicionalistas com a ajuda de Stepanov, a quem foi apresentado por seu orientador no Instituto de Estudos Orientais. Ele então retornou à Estônia e tornou-se o primeiro Tradicionalista do país. No entanto, não houve contatos importantes entre Udam e o círculo de Golovin em Moscou, e Udam veio a se tornar mais tarde um crítico dos Tradicionalistas russos.11 O círculo de Golovin não parece ter atraído muita atenção oficial, apesar de Jamal supostamente ter sido internado mais de uma vez em hospitais psiquiátricos (a maneira padrão de controlar os
dissidentes na época). A KGB evidentemente passou a tolerar esses círculos informais, dentro de certos limites — limites que Dugin claramente ultrapassou. Em 1983, as autoridades ficaram sabendo de uma festa realizada no estúdio de um pintor, na qual Dugin tocara guitarra e cantara o que chamou de «canções místicas anticomunistas», o que levou a uma breve prisão. A KGB encontrou literatura proibida em seu quarto, principalmente livros de Alexander Soljenítsin e Mamleev (o romancista mencionado anteriormente, que fizera parte do círculo de Golovin, mas que havia emigrado para os Estados Unidos antes de Dugin unir-se ao grupo).12 Dugin foi expulso do Instituto de Aviação, onde estudava. Ele encontrou trabalho como gari e continuou lendo na Biblioteca Lênin com um cartão de usuário falsificado.13
O Tradicionalismo sob a perestroika O período da perestroika (1986-1991) foi, sob muitos aspectos, a era de ouro dos intelectuais «independentes». De maneira inesperada, o que era antes impossível tornou-se possível, e até popular. Restrições foram levantadas; novas áreas foram abertas àqueles que não eram membros do Partido Comunista; novas ideias puderam ser expressas. Em 1988, o «Boletim da Sociedade Oriental Estoniana» chegou mesmo a publicar uma tradução, feita por Udam, do texto de Guénon intitulado «Cycles cosmiques» [Ciclos cósmicos].14 Foi durante a perestroika que os Tradicionalistas russos deram seus primeiros passos ativos. Em 1987, Dugin e Jamal uniram-se ao grupo chamado Pamyat’ (Memória), mais tarde descrito por Dugin como «a organização mais reacionária que estava disponível». Ele tinham esperança de influenciá-la na direção do Tradicionalismo, como Eliade com a Legião do Arcanjo São Miguel na Romênia e Evola com os fascistas, o Herrenklub e as SS. O foco da Pamyat’ era a oposição popular à perestroika. Fundada em 1974 por restauradores de arte e historiadores, seu propósito original era a preservação do patrimônio cultural russo. Em 1987, ela
emergiu como uma organização política de massa,15 possivelmente sob os auspícios da KGB, como «uma válvula de escape para administrar a pressão que vinha sendo gerada pelos dissidentes».16 A Pamyat’ criticava as reformas de Mikhail Gorbachev e alegava defender a verdadeira Rússia, atacando a «russofobia», o sionismo e a conspiração mundial maçônica.17 Entendia-se «russofobia» como a ameaça ao estado soviético e seu enfraquecimento,18 a substituição de padrões e valores soviéticos por outros liberais ou mesmo ocidentais. As tentativas de Dugin e de Jamal de infiltrar a Pamyat’ não tiveram mais sucesso do que os esforços similares de Eliade ou Evola. Os seminários apresentados por eles atraíam um público considerável (até cem pessoas), e Dugin foi nomeado para o Comitê Central da organização no fim de 1988,19 mas eles desistiram e deixaram a Pamyat’ em 1989; mais tarde, Dugin descreveu seus membros como «histéricos, colaboradores da KGB e esquizofrênicos». Muitos outros chegaram a conclusões parecidas, e a Pamyat’ logo se tornou insignificante. Sua importância para a política oposicionista na Rússia foi comparável à da Teosofia para o esoterismo ocidental: ela foi o fórum que facilitou a emergência de figuras que se tornariam importantes em outros lugares. Após 1989, as atividades de Dugin e de Jamal correram por caminhos separados, porém paralelos. Em 1990, quando o islamismo emergia na União Soviética, Jamal foi um dos fundadores do Partido do Renascimento Islâmico, discutido num capítulo posterior. Após o colapso da União Soviética, Dugin envolveu-se cada vez mais com atividades políticas, inicialmente ligado a duas figuras importantes da vida política russa daquela época. Uma delas era Gennadi Ziuganov, líder do Partido Comunista da Federação Russa (CPRF, na sigla em inglês). A outra era Aleksander Andreevich Prokhanov, líder de um grupo de autodenominados «patriotas». Prokhanov era um prolífico (e, segundo alguns, não muito bom) romancista; um de seus livros mais notáveis foi Derevo v tsentre Kabula [Uma árvore no centro de Cabul].20 Esse romance sobre a guerra do Afeganistão e outras obras
sobre temas similares renderam-lhe o apelido de «pesadelo do Estado-Maior».21
AS ATIVIDADES DE DUGIN DURANTE A PRESIDÊNCIA DE IÉLTSIN Para Dugin, que havia sido preso pela KGB como dissidente, tornarse um colaborador de Ziuganov, líder do CPRF, foi uma transformação surpreendente. Como veremos, houve uma segunda transformação, da mesma magnitude, quando ele se afastou da esfera do CPRF e aproximou-se do mainstream político sob o presidente Putin. Tais transformações não indicam inconsistência da parte de Dugin. Como Evola, sua lealdade primária era a sua própria ideologia, não aos movimentos políticos de outras pessoas. A explicação dada pelo próprio Dugin para sua primeira transformação — de dissidente antissoviético a colaborador da liderança comunista — tinha duas partes. Em primeiro lugar, em 1989 ele viajou diversas vezes ao Ocidente, falando para públicos da Nova Direita na França, Espanha e Bélgica. Essas visitas foram importantes para desencadear uma grande mudança em sua orientação. Tendo acreditado a vida toda que a «realidade soviética» era «a pior possível», Dugin descobriu que a realidade ocidental era ainda pior — uma reação não de todo incomum entre dissidentes soviéticos ao encontrar o Ocidente. Em segundo lugar, seu novo posicionamento político foi moldado pelos acontecimentos de agosto de 1991, quando um Comitê do Estado para a Situação Extraordinária [GKChP] não conseguiu tomar o controle do Estado soviético durante um mal planejado golpe de estado e, em lugar disso, deu início à dissolução final da União Soviética. O documento geralmente considerado como o manifesto do GKChP chamava-se Slovo k narodu [Uma palavra ao povo], foi escrito por Gennadi Ziuganov e Aleksander Prokhanov,22 futuros colaboradores de Dugin, e publicado no jornal Sovietskaya Rossiya no dia 23 de julho de 1991. Segundo seu próprio relato, Dugin ficou tão desapontado ao ver as massas em Moscou pedindo democracia, liberdade e mercado que ele finalmente se descobriu
pró-soviético, no exato momento em que a União Soviética deixara de existir. Para além dessa explicação, devemos observar as modificações feitas por Dugin na filosofia Tradicionalista, e também as características especiais da vida política russa no período imediatamente posterior à queda da União Soviética. A primeira modificação de Dugin foi «corrigir» a compreensão que Guénon tinha do Cristianismo ortodoxo, traçando um paralelo com a correção anterior feita por Coomaraswamy a respeito do budismo. Essa correção está articulada de maneira mais clara em seu livro Metafizika blagoi vesti: pravoslavnyi esoterizm [Metafísica do Evangelho: esoterismo ortodoxo] (1996). Nele, Dugin segue Jean Biès, um ortodoxo schuoniano de nacionalidade francesa, ao defender que o Cristianismo rejeitado por Guénon era o catolicismo ocidental. Guénon estava certo em rejeitar o catolicismo, mas errado quanto à ortodoxia, sobre a qual ele pouco sabia. Segundo Dugin (e Biès), a ortodoxia, ao contrário do catolicismo, nunca havia perdido sua validade iniciática, permanecendo assim uma tradição válida para a qual os Tradicionalistas podiam se voltar. Dugin passou então a traduzir grande parte da filosofia Tradicionalista em termos ortodoxos.23 Reorientado dessa forma, o Tradicionalismo de Dugin conduzia não ao sufismo como a prática esotérica do Islã, mas à ortodoxia russa como prática ao mesmo tempo esotérica e exotérica. A vertente da ortodoxia adotada por Dugin foi a dos Velhos Crentes, especificamente sob a modalidade da Edinoverie.24 Um fato importante para as futuras relações entre ele e o mainstream russo é que a Edinoverie (ao contrário da maioria dos Velhos Crentes) reconhece a autoridade do patriarca, sendo reconhecido assim de volta pela principal corrente da Igreja Ortodoxa Russa. A segunda modificação feita por Dugin no Tradicionalismo foi combiná-lo com uma ideologia conhecida como eurasianismo. O resultado tem algo em comum com as opiniões expressas no livro Clash of Civilizations [O choque de civilizações] de Samuel Huntington25 e vem sendo quase tão influente quanto ele. No fim da década de 1990, Dugin havia se tornado o expoente mais famoso do neoeurasianismo; depois de 2000, foi como neoeurasiano, e não
como Tradicionalista, que ele passou a ser mais conhecido pelo público. O eurasianismo original foi desenvolvido em Praga, Berlim e Paris no começo da década de 1920 por intelectuais russos emigrados, especialmente pelo geógrafo P. N. Savitskii, pelo linguista N. S. Trubetskoi e por N. N. Alekseev, um filósofo do direito.26 Esses eurasianistas davam continuidade ao trabalho dos eslavófilos e paneslavistas do século XIX, especialmente Konstantin Leontiev e Nikolas Danilevskii, e tinham a esperança de que sua doutrina se espalhasse entre a elite no interior da União Soviética, criando uma «oposição interna».27 O que aconteceu, no entanto, foi que o eurasianismo atraiu atenção na União Soviética apenas na década de 1980, com a publicação do livro de Lev Gumilev chamado Ciência do ethnos, impresso não em território soviético, mas na Hungria,28 e foi apenas no fim da década de 1990 que o eurasianismo tornou-se importante na Rússia, com a ajuda de Dugin e sob uma forma modificada. A versão de Dugin dessa doutrina é geralmente conhecida como neoeurasianismo, termo aplicado às teorias de Gumilev e de uma série de outra figuras posteriores, especialmente A. S. Panarim. Todos são desenvolvimentos separados do eurasianismo original da década de 1920; é a versão desenvolvida por Dugin que nos ocupará aqui. O que eslavófilos, pan-eslavistas, eurasianos da década de 1920 e, finalmente, Dugin têm em comum é a convicção de que a Rússia difere fundamentalmente do Ocidente em sua espiritualidade e na natureza orgânica de sua sociedade. Todos eles, no entanto, apresentam divergências em certos detalhes importantes. Os eslavófilos foram os primeiros intelectuais russos a buscar uma definição da identidade de seu país em contraste com a identidade europeia, do mesmo modo que alguns intelectuais ocidentais do período estavam definindo o Ocidente em contraste com as colônias ultramarinas da Europa. Esse contraste com um «outro» foi central para o nacionalismo do século XIX, ajudando a criar uma identidade da Europa como civilizada e racional, em contraste com os povos supostamente bárbaros e irracionais das colônias, identidade que, em grande medida, substituiu a anterior, da Europa cristã. Em vez
substituir a da religião por uma ênfase na civilização e na razão, no entanto, os eslavófilos enfatizavam a religião e a solidariedade social, contrastando-as com a racionalidade estéril e a decadência moral da Europa. Ao fazê-lo, eles se baseavam nas críticas românticas à primeira modernidade de um modo sem paralelos entre seus pares europeus.29 Os eurasianos da década de 1920 mantiveram em grande medida o esquema dos eslavófilos e dos pan-eslavistas, atualizando sua crítica da modernidade ocidental para englobar o «mecanicismo» — reconhecendo os triunfos ocidentais em questões técnicas, mas enfatizando o «organicismo» russo e eurasiano, além de criticar o Ocidente por sua secularização e pela atomização da sociedade em nome do individualismo.30 Sua análise do Ocidente não era, na realidade, tão diferente da de Guénon. Não se conhece nenhum eurasiano desse período que tenha lido Guénon (cujas obras apenas começavam a se tornar conhecidas), mas tanto Guénon quanto os eurasianos estavam formulando suas ideias no mesmo período e sujeitos, portanto, às mesmas influências gerais. Desse modo, não foi difícil para Dugin alinhar as visões eurasianas e Tradicionalistas sobre o Ocidente. Uma diferença maior entre o século XIX e a década de 1990 estava na definição de «nós» e «outros». Para os eslavófilos e paneslavistas, «nós» eram os eslavos, e «eles», os europeus — ou, para os pan-eslavistas, a civilização «romano-germânica». Os eurasianos da década de 1920 mantiveram a mesma definição de «outros», mas redefiniram o «nós», passando dos eslavos aos russos e povos da estepe eurasiana.31 Em linhas gerais, Dugin seguiu os eurasianos da década de 1920, mas modificou suas definições à luz da obra de dois geógrafos «geopolíticos» do período entreguerras, sir Halford Mackinder, o pioneiro geógrafo britânico,32 e Karl Haushofer, o influente geopolítico alemão. A tese de Mackinder e de Haushofer de uma divisão fundamental entre uma «Heartland eurasiana»I que consistia na Alemanha e na Rússia, por um lado, e, por outro, um mundo Atlântico composto de nações marítimas predispostas ao livre comércio e ao liberalismo
democrático foi proposta pela primeira vez no livro de Mackinder intitulado Democratic Ideals and Reality [Ideais democráticos e a realidade], publicado na época da Conferência de Paz de Paris em 1919,33 e posteriormente adotada por Haushofer. A intenção de Mackinder, parlamentar Unionista [Conservador] e um feroz imperialista, era convencer as potências atlânticas (a Grã-Bretanha e os Estados Unidos) da necessidade de intervir para garantir um equilíbrio entre as duas potências eurasianas, Rússia e Alemanha. Ironicamente, sua obra atraiu menos atenção no Atlântico do que na Alemanha. Haushofer foi um importante defensor da necessidade de uma aliança germano-russa contra o mundo Atlântico, apesar de sua concepção de Estado como organismo vivo com direito a um Lebensraum [espaço vital] dever ser considerada como tendo algum grau de responsabilidade pela invasão alemã da Rússia que terminou por encerrar a breve aliança germano-soviética. Uma vez reorientado do sufismo e do hinduísmo para a ortodoxia, o Tradicionalismo é um complemento quase perfeito ao eurasianismo. O mundo Atlântico pode ser identificado com a Kali Yuga, a modernidade, a ausência da verdadeira espiritualidade e a democracia do vulgo, que Evola tanto detestava. A Rússia, por outro lado, é o repositório de uma vasta e poderosa tradição iniciática e possui as melhores justificações espirituais e metafísicas para seu combate inevitável contra os poderes das trevas, encarnados na aliança atlântica. Enquanto no passado a missão da União Soviética era a de levar o comunismo ao mundo, agora a missão sagrada da Rússia era levar o Tradicionalismo ortodoxo ao mundo. Nas palavras do próprio Dugin, «a Igreja do Oriente deve realizar sua missão no contexto planetário».34
DUGIN E OS «VERMELHOS E MARRONS» Para completar a explicação a respeito de como um Tradicionalista veio a se alinhar com marxistas, devemos observar brevemente algumas características especiais da vida política russa no período imediatamente posterior à queda da União Soviética,35 em que a
divisão padrão da política ocidental entre esquerda, direita e centro não se aplicava. Desde os primeiros dias da perestroika, o liberalismo havia sido radical, e o comunismo, conservador. Quando a oposição política organizada à perestroika surgiu dentro do próprio partido comunista em 1990, cristalizando-se ao redor do CPRF sob o comando de Gennadi Ziuganov, ela esteve alinhada ideologicamente aos «patriotas» de Prokhanov. A aliança deu início à formação de um front comum, geralmente descrito como os «Vermelhos e Marrons», os vermelhos sendo o CPRF e os marrons (fascistas), os «patriotas». O próprio Dugin preferia o título «Vermelho e Branco».36 Uma divisão mais importante do que direita e esquerda era aquela entre aqueles que, como Iéltsin, aceitavam algum tipo de Rússia liberal-democrática que mantivesse boas relações com o Ocidente — esse grupo será chamado de «liberais» — e aqueles que rejeitavam essa visão, que serão chamados de «a oposição». Partes da oposição receberam diferentes denominações ao longo do tempo (comunistas, «patriotas», nacionalistas e até mesmo monarquistas), mas estar na oposição era geralmente muito mais importante do que a facção exata à qual a pessoa pertencia.37 Um padrão similar pode ser visto na Alemanha durante a República de Weimar, quando uma tendência nacional-comunista emergiu entre comunistas nos primeiros anos do pós-guerra e uma tendência nacional-bolchevique emergiu entre os direitistas, incluindo alguns nazistas, em 1929.38 Em 1991, Dugin começou a escrever no jornal Den’ [Dia], de Prokhanov, então com uma circulação de 150 mil exemplares.39 Para ele, Prokhanov era um «patriota estatista», mas aberto a novas ideias de um modo incomum. As ideias que ele permitiu que Dugin divulgasse no jornal Den’ eram as de Evola e Guénon, bem como as da «Nova Direita» europeia: «anticapitalistas» (a expressão é do próprio Dugin) como Claudio Mutti, muçulmano evoliano da Itália, e Alain de Benoist, o importante líder da nova direita francesa. Durante esse período, Dugin pertencia indiscutivelmente à oposição, assim como os comunistas de Ziuganov. Para Dugin, o oposicionismo de Ziuganov era mais importante do que seu marxismo, que, de todo modo, não era tão marxista assim. Nas
palavras de Aleksandr Tsipko, antigo assessor político de Gorbachev: «A própria ideia de colocar os conceitos de ‹nação› e de ‹estado› acima da ideia de libertação das classes trabalhadoras [como fazia o CPRF] contradizia diretamente o espírito e a doutrina teórica do marxismo».40 Se é compreensível que um Tradicionalista como Dugin pudesse querer aliar-se ao CPRF, a questão que resta é: por que o CPRF estaria interessado no neoeurasianismo de Dugin? A resposta é que os vários grupos que compunham a oposição compartilhavam interesses e inimigos, mas careciam de uma ideologia unificadora. À primeira vista, o nacionalismo poderia parecer uma ideologia adequada aos propósitos da oposição, mas o nacionalismo de base étnica, familiar na Europa Ocidental desde a Revolução Francesa, não era adequado às condições russas, já que a Federação Russa é um estado multiétnico. O nacionalismo de base étnica não seria capaz de desempenhar nenhum papel legitimador dos regimes czarista ou soviético,41 e até mesmo o líder do Pamyat’ viu-se obrigado a emendar uma declaração, quando afirmou: «nosso objetivo é despertar a consciência nacional do povo russo», acrescentando «e de todos os outros povos que vivem em nossa pátria».42 Levado às últimas consequências lógicas no fim do século XX, o nacionalismo de base étnica teria sugerido que os domínios da Rússia fossem reduzidos ainda mais do que em 1991, até chegar a um pequeno núcleo de território puramente russo. Apesar de tal solução ter sido contemplada por um reduzido número de intelectuais liberais radicais em Moscou,43 ela seria anátema para a maioria dos russos. Ela também tinha a desvantagem prática de que deixaria um número inaceitável de russos étnicos do lado de fora desse núcleo etnicamente puro. O neoeurasianismo de Dugin, portanto, era uma forma mais inclusiva de nacionalismo, mais bem adaptada às condições russas. O bloco eurasiano, liderado pela Rússia, incluiria não apenas a Federação Russa em sua totalidade, mas, segundo a maioria das interpretações, áreas como a Ucrânia e a Belarus. Segundo alguns,
incluiria também os territórios da antiga União Soviética bem como a maior parte do mundo islâmico. As relações entre a Rússia e o mundo islâmico formavam um paradoxo central no pensamento da oposição e dos neoeurasianos. Por um lado, seria previsível que os acontecimentos no Afeganistão na década de 1980 e na Chechênia e Moscou na década de 1990 produzissem uma hostilidade considerável contra o Islã e o islamismo tanto no exército quanto na população russa em geral, e sentimentos anti-islâmicos foram utilizados e encorajados pelo presidente Iéltsin. Um certo racismo contra os «bundas pretas» do Cáucaso era generalizado e, por vezes, se traduzia em ataques racistas. Sentimentos racistas parecidos têm sido explorados com frequência por importantes setores da extrema direita no Ocidente. Por outro lado, a União Soviética cultivava relações amigáveis com o mundo árabe havia muito tempo, e tendia a ver os Estados do Oriente Médio como aliados, reais ou potenciais, contra os Estados Unidos.44 Independentemente do sentimento popular, a oposição russa geralmente falava do Islã em tom positivo. «Respeito o Islã e outras religiões», declarou Dmitry Vasiliev, do Pamyat’, em 1989. «Khomeini é um grande pessoa, que luta pelo Islã e pela pureza das tradições islâmicas. Estamos com aqueles que têm fé em Deus.»45 As figuras mais importantes da oposição viriam a seguir uma linha parecida. Dugin, Prokhanov e Ziuganov declararam-se a favor de uma aliança com o Islã. Para Dugin, «a nova fase da estratégia mundial da Besta consiste, por um lado, na subordinação do povo russo ao poder global e, por outro, num ataque contra o bastião mais sólido da Tradição, atualmente representado pelo Islã».46 Para Ziuganov, «no fim do século XX, fica cada vez mais óbvio que o caminho islâmico vem se tornando uma alternativa real à hegemonia da civilização ocidental. [...] O fundamentalismo é [...] uma volta à tradição nacional espiritual de séculos [...] a normas morais e relações entre pessoas».47 Ziuganov foi uma figura importante na vida política russa, e Prokhanov foi importante para Ziuganov. Diversos comentaristas concordam que Prokhanov foi vital para a reaproximação de Ziuganov
com outros grupos da oposição, e, assim, para o notável sucesso de seu partido nas eleições de 1995 para a Duma, quando o CPRF emergiu como o partido dominante no Parlamento,48 posição que manteve nas eleições de 1999, apesar de sua importância começar a diminuir a partir de então. Há também um consenso de que o jornal de Prokhanov, Den’, foi importante na popularização do neoeurasianismo e em sua transformação no «foco comum da coalizão ‹vermelha e marrom› russa».49 Um comentarista chegou até a declarar (com algum exagero) que não era o jornal do partido (Pravda 5), mas sim o de Prokhanov «que representa a ideologia do mainstream comunista».50 «Ziuganov usou o eurasianismo para reinventar o Partido Comunista», escreveu outro analista, «e foi incrivelmente bem-sucedido.»51 O papel do neoeurasianismo, e do próprio Dugin, na oposição foi central. Essa é a opinião de muitos observadores ocidentais, especialmente depois de livro de Dugin intitulado Osnovi geopolitiki: geopoliticheskoe budushchee Rossii [Fundações geopolíticas: o futuro geopolítico da Rússia] (1997)52 ter se tornado um best-seller. Osnovi geopolitiki foi o livro mais importante e de maior sucesso de Dugin. Em 1997, ele foi «objeto de uma acalorada discussão entre analistas civis e militares em diversas instituições [...] apesar de a impressão de um dos observadores ter sido a de que o livro foi mais discutido do que lido».53 O interesse das Forças Armadas russas no livro garantiu que muita atenção fosse dedicada a ele em círculos especializados no exterior. Dugin já havia publicado «Geopolítica como destino» na edição de 25 de abril de 1997 do jornal do exército, chamado Krasnaya Zvezda [Estrela Vermelha], e Osnovi geopolitiki também recebeu o endosso do exército, ou, ao menos, do general de divisão Nikolai Pavlovich Klotov, instrutor da Academia Militar do Estado-Maior, um fórum onde Dugin já havia falado a convite do coronel Igor Nikolaevich Rodionov, que depois seria ministro de Defesa no governo do presidente Iéltsin.54 Osnovi geopolitiki defendia uma aliança com o Islã, a criação de um eixo Berlim-Moscou-Tóquio para combater a ameaça atlântica norte-americana, além da devolução à Alemanha do enclave de
Kalingrado (conhecido anteriormente como Königsberg), bem como a devolução ao Japão das ilhas Kurila, ambos tomados pela União Soviética no final da Segunda Guerra Mundial. «A correlação entre as ideias de Dugin e as do establishment russo», escreveu Charles Clover na importante revista norte-americana Foreign Affairs, «é acentuada demais para ser ignorada.» Como prova, Clover citou a sugestão russa, feita em 1998, de que as ilhas Kurila poderiam ser devolvidas ao Japão, além da aproximação do país com o Irã e o Iraque.55 Ambas podem ser explicadas de maneira satisfatória sem recorrer ao Tradicionalismo ou a Dugin,56 mas está claro que as ideias deste último pareciam menos excêntricas ao público russo do que a sua contraparte no Ocidente. A melhor análise talvez venha do intelectual liberal Igor Vinogradov, editor da revista Kontinent. Falando das origens do eurasianismo na década de 1920, ele declarou que «seu utopianismo gangrenoso já havia sido revelado na época». A objeção de Vinogradov ao utopianismo era, evidentemente, que este conduzia ao totalitarismo. Dos neoeurasianos da década de 1990, ele afirmou: Eles estão levando a cabo a ruidosa galvanização de uma utopia há muito fracassada, uma tentativa de revivê-la pela injeção de uma nova vacina — uma combinação de «ortodoxia» e «Islã» em nome do combate ao insidioso «sionismo», ao pútrido «catolicismo» ocidental e a qualquer coisa «judaicomaçônica» [...] A despeito de toda sua inépcia intelectual, eles são muito perigosos. Afinal, a tentação do fundamentalismo religioso em nosso século de descrença e corrupção intelectual generalizada é atraente a muitas pessoas desesperadas, que perderam seu caminho neste caos.57 O crédito por reviver essa ideologia «fracassada» deve ser dado a Dugin e ao Tradicionalismo, claramente a fonte da «nova vacina» mencionada. O neoeurasianismo de Dugin não é específica nem abertamente Tradicionalista. Apesar de influências Tradicionalistas poderem ser identificadas com facilidade pelo leitor informado58 e de haver uma seção sobre a relação entre a geopolítica moderna e a
geografia sagrada em Osnovi geopolitiki, a palavra «tradição» não aparece no glossário do livro, e não há nenhum Tradicionalista ou outros textos filosóficos nos extratos de textos clássicos ali incluídos, dominados por Halford Mackinder.59 O bem-sucedido Osnovi geopolitiki é, portanto, outro exemplo de Tradicionalismo suave.
O Partido Nacional-Bolchevique Durante o governo do presidente Iéltsin, as parcerias políticas mais importantes de Dugin foram com Prokhanov e o CPRF; após o sucesso de Osnovi geopolitiki, no início de 1999, Dugin foi nomeado assessor especial de Gennadi Nikolaevich Seleznev, o porta-voz do CPRF na Duma.60 Ele também manteve contato com direitistas da Europa. Relações amistosas foram estabelecidas inicialmente durante suas visitas ao Ocidente em 1989 e continuaram com visitas à Rússia feitas por De Benoist e seu aliado belga Robert Steuckers (a primeira delas em março de 1992)61 e com a publicação de duas coletâneas de artigos de Dugin em italiano por Mutti em 1991 e 1992.62 A ligação política que tornou Dugin famoso na Rússia, no entanto, e à qual muitas de suas obras estiveram ligadas, foi com Eduard Limonov, um escritor muito diferente de Prokhanov. Limonov havia sido um poeta dissidente como Golovin, e, como Mamleev, emigrara para os Estados Unidos, em 1974.63 Como Dugin, sua reação às realidades ocidentais foi de desapontamento e até mesmo de repulsa, documentada em seu romance mais famoso, intitulado Eto ia, Edichka [Sou eu, Eddie] (Nova York, 1976).64 Ele se mudou para a França, recebendo a cidadania francesa em 1987, e continuou a escrever romances semiautobiográficos tidos em alta conta pelos russos que conseguiam lê-los, no exterior ou em cópias contrabandeadas para a União Soviética, e por muitos ocidentais, já que diversos deles foram traduzidos ao francês e a outros idiomas. O fim da União Soviética em 1991 fez com que exilados como Limonov (e Mamleev e Soljenítsin) pudessem voltar para a Rússia.65 Para intelectuais mais jovens, o retorno de Limonov foi ainda mais
importante do que o de Soljenítsin. Ele deu diversas entrevistas, para a imprensa e para a televisão, e se revelou uma decepção para os intelectuais liberais. Apesar de inegavelmente bom poeta e romancista, diante das câmeras ele parecia menos articulado e um tanto provinciano. De maneira ainda mais perturbadora, ele começara a dizer «coisas estranhas». Por fim, os liberais se viram forçados a admitir que as opiniões de Limonov eram iguais às da oposição. Em 1992, quando Zhirinovski, um nacionalista radical, apresentou sua proposta de nomes para um futuro governo da Rússia pelo partido batizado ironicamente de Liberal Democrático, Limonov apareceu como um dos nove ministros.66 Dugin conheceu Limonov nos círculos oposicionistas que orbitavam ao redor de Prokhanov e Ziuganov. Àquela altura, Limonov estava pronto para romper com Zhirinovski, que passara a ser visto como um oportunista sem princípios. Além disso, ele e Dugin estavam desapontados com o «arcaísmo» da oposição existente e se puseram de acordo sobre um projeto conjunto. Dugin desejava algum tipo de movimento, mas Limonov insistiu num partido político formal. Assim, em 1993 eles criaram o Partido Nacional-Bolchevique (PNB)67 — um nome chocante sugerido por Dugin, cuja fonte vinha da comunidade russa exilada da década de 1920, e não da experiência alemã.68 Um terceiro membro fundador do partido foi o músico Egor Letov, um cantor punk usuário de drogas cuja banda, Grazhdanskaia Oborona (Defesa Civil), tinha muitos fãs na faixa entre os doze e vinte anos de idade.69 Limonov era o líder do PNB e o «homem de ação» por trás de suas atividades, mas sua motivação se devia mais a sua reação ao Ocidente na década de 1970 do que ao Tradicionalismo ou a qualquer ideologia em particular. O primeiro passo do PNB foi uma campanha com cartazes por toda a cidade de Moscou defendendo o boicote de bens importados, com o slogan: «Ianques fora da Rússia!». Isso atraiu uma certa atenção favorável ao partido.70 Slogans posteriores incluíam «Beba kvass, não Coca-Cola», uma criação de Dugin. Outras atividades tiveram menos sucesso. Os membros do partido em Moscou nunca ultrapassaram quinhentos, e, apesar de talvez terem
chegado a 2 mil em toda a Rússia, esse número não chega a ser significativo num país de 150 milhões de pessoas.71 As alianças de Limonov com outros partidos de oposição tiveram vida curta.72 Nas eleições de 1995 para a Duma, os nacional-bolcheviques fizeram campanhas individuais, e não como partido, uma vez que seu registro partidário fora recusado diversas vezes pelo Ministério da Justiça.73 Dugin concorreu num distrito de São Petersburgo, Limonov, em Moscou. A campanha de Dugin recebeu ampla publicidade devido ao apoio de Sergei Kurjochin, um respeitado músico de jazz e rock que também compunha sinfonias e cuja banda, Pop Mechanics, era muito popular (ao menos em certos círculos). A popularidade de Kurjochin vinha em parte de suas «mistificações», como na ocasião em que defendeu num grande canal de TV que Lênin era, na verdade, um cogumelo. Ele organizou um show gratuito chamado «Kurjochin com Dugin»74 e explicou a plataforma do PNB em entrevistas como a que concedeu em setembro de 1995 ao jornal jovem de São Petersburgo chamado Smena [Mudança]. Apesar de seu apoio, Dugin conseguiu apenas 2.493 votos, 0,85% do total. Limonov se saiu um pouco melhor em Moscou, com 1,84% (5.555 votos).75 Sem se deixar abalar por esse tropeço, Limonov se apresentou novamente às eleições em 1997, mas não conseguiu ser eleito governador da região de Nizhni Novgorod.76 Dugin, por outro lado, concluiu que a opinião de Limonov sobre o provável impacto do PNB sobre o eleitorado russo (e não sobre a classe intelectual) não era realista. Ele também estava desapontado com a falta de interesse do parceiro em questões ideológicas,77 e deixou o partido em abril ou maio de 1998. O outro membro fundador, o músico punk Egor Letov, deixara de prestar atenção no partido (apesar de ainda escrever em Elementy — comentada mais abaixo — em 1996). Sem dúvida, há elementos de humor no PNB que recordam a ficção de Limonov. Seu programa político, por exemplo, incluía o direito dos membros do partido a não escutar enquanto suas namoradas falavam, e as instruções sobre o comportamento a ser seguido nos cinemas (frequentar filmes ocidentais em grupos de quinze pessoas e vandalizar o auditório) claramente não foram feitas para serem
levadas a sério, ainda que alguns cinemas tenham sido mesmo vandalizados. O que pensar da promessa «Destruiremos o mundo do crime. Seus melhores quadros serão colocados a serviço da nação e do Estado. O restante será aniquilado por meios militares»? A saudação do partido — o braço direito erguido, como no fascismo, com o punho fechado, como no bolchevismo, seguido de um grito de «Da, smert» (Sim, morte!) — tinha também algo de farsesco. Esses elementos do absurdo claramente contribuíam para o apelo contracultural do PNB. Apesar de nunca tê-lo admitido, o PNB foi mais a encarnação de uma atitude do que uma organização política séria. O crítico Ilia Pomanev chegou a descrevê-lo como «um projeto estético pós-moderno feito por provocadores intelectuais»,78 o que talvez não seja exato para seus grupos regionais mais primitivos, mas que não estava tão longe da verdade no que diz respeito ao centro. O objetivo declarado do partido de conseguir o poder absoluto deve ser visto com alguma reserva. A verdadeira importância do PNB para Dugin foi a de que, durante alguns anos, ele havia sido a base para suas aparições públicas e para suas atividades editoriais.
Dugin, o comunicador Após a saída de Dugin do PNB, a base para seu ativismo passou a ser sua própria editora, Arktogeia (o nome de uma versão nórdica da Atlântida). A Arktogeia publicou algumas traduções de Tradicionalistas ocidentais,79 muitos dos livros de Dugin (ele costumava escrever dois livros por ano) e alguns romances de Gustav Meyrink, o escritor «fantástico» do início do século XX, um tcheco de língua alemã muito interessado na magia e no ocultismo.80 Dugin também tentou, com diferentes graus de sucesso, difundir sua versão do Tradicionalismo por meio de uma série de revistas, além do rádio e da internet. Uma vez mais, o Tradicionalismo mais suave foi o que teve maior sucesso. A revista «teórica» mais séria, chamada Milyi Angel [Anjo Encantador], publicada entre 1991 e 1997, teve circulação restrita. Uma revista mais geral, chamada Elementy [Elementos], foi fundada em 1993 com a ambiciosa tiragem de 50 mil
cópias, mas esta foi reduzida para 2 mil em 1996, o que ainda é um número respeitável, ainda que a redução tenha sido dramática. Em 1998, ela deixou de ser publicada.81 Mais importante para o acesso ao público mais amplo foi uma página no jornal de Prokhanov chamado Zavtra [Amanhã], o sucessor do Den’ [Hoje], banido após o uso da força por Iéltsin contra uma Duma recalcitrante em outubro de 1993. Zavtra tinha uma circulação que oscilava entre 70 e 100 mil exemplares.82 A página de Dugin, um suplemento intitulado Evraziisko Vtorzhenie [Invasão eurasiana], dificilmente poderia se dirigir aos mesmos leitores do próprio Zavtra, um jornal claramente populista que publicava matérias de capa como «Iéltsin — ladrão; Diachenko (filha de Iéltsin) — ladra?», matérias sobre aviação militar e denúncias acusando figuras políticas liberais de serem espiões norte-americanos ou agentes judaicos. O Evraziisko Vtorzhenie de Dugin, por outro lado, era muito mais intelectualizado. Uma apresentação claramente pós-moderna, bastante diferente do resto do jornal, podia ser complementada por um pensamento do dia de Emerson (por exemplo, «Herói é aquele que possui um centro imóvel»). O complemento à matéria de capa sobre «Iéltsin — ladrão; Diachenko — ladra?» foi «Nacional-existencialismo: o corpo como performance».83 Seu maior sucesso foi um programa de rádio semanal de uma hora chamado «Finis Mundi»,84 apresentado por Dugin e transmitido quinta-feira à meia-noite numa estação de música popular, FM 101, em 1997. O programa «foi objeto de culto para um público de estudantes universitários» (segundo um jornal de Moscou),85 com uma seleção musical eclética (de Wagner a Edith Piaf) misturada com a mensagem Tradicionalista de Dugin e uma discussão de um filósofo por episódio: Guénon no primeiro, Nietzsche no oitavo. No entanto, o programa foi cancelado após dezesseis semanas, por razões políticas e não jornalísticas. Um sucesso equivalente coube ao site de Dugin, arcto- gaia.com (atualmente arcto.ru), uma das primeiras páginas em russo na internet, lançada em 1998, um ano antes de o uso da rede começar a se difundir além de círculos restritos no país (a RUNET surgiu em 1995-
96, mas não era muito usada).86 A internet russa era tão básica naquele tempo que um grande bloco político chamado Edinstvo (Unidade) lançou seu site apenas doze dias antes das eleições de 1999.87 No final de 1999, o site Arctogaia era enorme, com seções sobre metafísica, política, literatura e erotismo,88 além de fóruns de discussão sobre Tradicionalismo, hermetismo, literatura e os Velhos Crentes.89 Um usuário dos primeiros tempos recorda-se que, dada a escassez inicial de sites em russo, «a maioria das pessoas que usavam a internet naquela época chegava, cedo ou tarde, aos sites de Dugin».90 A porcentagem da internet russa ocupada por Dugin caiu muito, é claro, desde 1999, à medida que seu tamanho se expandia consideravelmente. Dugin ainda leva vantagem no ciberespaço, porém. Uma pesquisa de sites políticos realizada em 2003 deu notas de 0 a 10 para design e conteúdo, e também para navegação. Um site de Dugin tirou 5 para design e conteúdo, contra 5,6 dos grandes partidos dos Estados Unidos e do Reino Unido, 5,5 dos grandes partidos russos e 1,6 dos pequenos partidos russos. Com uma nota 9 para a navegabilidade, o site de Dugin venceu confortavelmente as médias dos partidos russos e ocidentais.91
TRADICIONALISMO GUÉNONIANO NA RÚSSIA Apesar de Dugin ter se tornado o Tradicionalista russo mais famoso durante esses anos, uma versão menos política do Tradicionalismo, mais alinhada com o encontrado na Europa Ocidental, que enfatizava Guénon de uma maneira mais padrão, também criou raízes. Este vinha de Iuri Stefanov, o poeta e tradutor que descobrira Guénon junto com Golovin no início da década de 1960. Imediatamente após o colapso da União Soviética, Stefanov publicou uma série de artigos sobre Guénon na revista Voprosy filosofii [Questões de Filosofia], um revista séria de filosofia editada pela Academia Russa de Ciência, mas com um público um pouco mais amplo do que o de publicações desse tipo. Diversos intelectuais russos leitores dessa revista se interessaram pelo Tradicionalismo em sua forma não política. O mais
importante deles foi Artur Medvedev, como Dugin, filho de um oficial do Exército e formado na faculdade de história da Universidade do Estado das Ciências das Humanidades. Medvedev tornou-se o principal aluno de Stefanov, e, após a morte de seu mestre, tornou-se o principal Tradicionalista não político da Rússia. Em 1993, quando estava deixando a Universidade, fundou uma revista chamada Volshbnaya Gora [Montanha Mágica], batizada em homenagem ao romance de Thomas Mann. Inicialmente planejada para ser uma publicação literária e filosófica, um local de encontro para intelectuais de diversas correntes,92 a partir de seu segundo número ela se tornou mais e mais Tradicionalista, até se estabelecer como o equivalente russo de Études traditionnelles. A partir de 1993, Medvedev publicou aproximadamente um número por ano, com essa frequência aumentando depois do ano 2000. Cada número tem cerca de trezentas páginas, significativamente mais do que revistas semelhantes no Ocidente. Como seus equivalentes ocidentais, ela contém traduções de textos Tradicionalistas clássicos, traduções de clássicos espiritualistas não Tradicionalistas, como Mulla Sadra, artigos inéditos e resenhas de livros. A maior parte dos inéditos é de Tradicionalistas russos ou russófonos, mas ela também traduz textos de Tradicionalistas europeus contemporâneos, ligando os russos com o mundo.93 Desde o fim da década de 1990, A Montanha Mágica tem uma tiragem de quinhentos exemplares. Medvedev acredita que conseguiria vender mais, mas, já que a revista não é um empreendimento comercial e existe apenas graças a doações de benfeitores, o custo extra de uma circulação maior implicaria menos páginas ou uma produção menos cuidadosa (A Montanha Mágica é cuidadosamente impressa em papel de alta qualidade), e nenhuma das alternativas lhe parece aceitável. Segundo suas estimativas, cerca de duzentos autores foram publicados ao longo dos anos.94 Esses números dão uma ideia do tamanho da comunidade de Tradicionalistas não políticos na Rússia, comparável a comunidades semelhantes no resto do mundo. Ela é grande o bastante para interessar editoras comerciais, especialmente a Belovodie, que
começou a publicar traduções de Guénon e Evola no início da década de 1990, e ainda publicava novas traduções do francês em 2005.95 Existe alguma justaposição entre os grupos de A Montanha Mágica e os Tradicionalistas políticos. Apesar de a maior parte dos autores publicados na revista ter pouco interesse na política de Dugin — alguns são até mesmo liberais —, os seguidores de Dugin e de Jamal por vezes publicam em A Montanha Mágica sobre assuntos puramente espirituais,96 assim como Golovin, o mais antigo Tradicionalista russo em atividade. Em geral, porém, Medvedev não aceita artigos puramente políticos. Os colaboradores não políticos de A Montanha Mágica são, em grande medida, parecidos com seus pares em revistas similares no resto do mundo, ainda que talvez com uma maior ênfase na poesia e na academia. Assim como os seguidores de Schuon, muitos publicam livros sobre assuntos diversos sob uma perspectiva Tradicionalista. Eles não estão ligados a nenhuma ordem sufi, no entanto, e não formaram uma comunidade espiritual separada. Por um lado, isso está ligado às origens do Tradicionalismo russo, discutidas acima, e, por outro, à convicção de que a ortodoxia russa retém a validade iniciática que Guénon pensava estar ausente no Cristianismo ocidental. Stefanov tinha interesse na Cabala e no gnosticismo, mas sempre se viu como um cristão ortodoxo.97 Do mesmo modo, a consequência espiritual para Medvedev de seu encontro com Guénon e Stefanov foi a de dar início a uma prática cristã regular. Dois dos colaboradores Tradicionalistas mais próximos de Medvedev são Velhos Crentes, ainda que de correntes diferentes. Existe um certo interesse pelo Islã entre os Tradicionalistas russos, mas o muçulmano mais próximo de A Montanha Mágica é muçulmano de nascimento. Trata-se de Ali Turgiev, um cosmopolita do Cáucaso, biólogo celular e que encontrou o Tradicionalismo pela primeira vez na série Questões de Filosofia, associando-se mais tarde a Medvedev. Turgiev não vê a necessidade de uma iniciação pessoal para além da prática regular do Islã, e tem mais interesse na literatura esotérica do xiismo do que no sufismo (apesar de ser, ele mesmo, sunita).98 Um pequeno número de Tradicionalistas russos se
converteu ao Islã, mas, em geral, eles foram atraídos para o xiismo, como resultado da influência de Jamal, que é xiita. Apesar de as atividades de Jamal (discutidas num capítulo posterior) terem sido primariamente políticas, ele ainda é o Tradicionalista muçulmano de maior visibilidade na Rússia. Como disse um desses convertidos quando questionado se já havia pensado em se unir a uma ordem sufi (tariqa): «O xiismo não é, por acaso, uma grande tariqa?».99 Essa não é exatamente a visão dominante, mas ela é encontrada entre muçulmanos praticantes e observadores externos. Uma série de pontos de vista que no Islã sunita são características do sufismo é, no Islã xiita, inteiramente mainstream. O grupo ao redor de A Montanha Mágica não é o único no Tradicionalismo russo, mas é certamente o mais importante. Há relatos de um grupo de russos seguidores de uma ordem sufi chamada Tijaniyya, de grande importância no mundo islâmico. Seu xeique seria um suíço, ex-membro da ordem Maryamiyya.100 Há também uma série de organizações como o Clube Bizantino, liderado por Arkadii Maler, um antigo membro judeu do PNB que deixou o partido junto com Dugin, para depois abandonar este último junto com dois companheiros para formar outro grupo, o Clube Eurasiano, que se aproximou da ortodoxia com o passar do tempo e se tornou o Clube Bizantino.101 Maler contribui ocasionalmente para A Montanha Mágica. O grupo de A Montanha Mágica, bem como os grupos menores, é típico do Tradicionalismo em todos os lugares. O Dugin da década de 1990, porém, era fora do comum. Os projetos de Evola possuíam o mesmo grau de ambição, mas os de Dugin tiveram maior sucesso. Nos primeiros anos do século XXI, como veremos, Dugin foi ainda mais bem-sucedido.
I O termo «heartland» é de uso corrente no estudo acadêmico das Relações Internacionais e geralmente não é traduzido pelos principais estudiosos da área, no Brasil e em outros países de línguas neolatinas. [N. T.]
13. NEOEURASIANISMO
O Tradicionalismo russo, invisível mas se desenvolvendo nos subterrâneos da União Soviética, tornou-se visível pela primeira vez após o colapso da União Soviética com o presidente Iéltsin. No início do século XXI, no mundo transformado da Rússia do presidente Putin, o Tradicionalismo tornou-se não apenas visível, mas cada vez mais importante. Dugin se transformou numa figura de projeção nacional, ao menos entre as classes intelectuais. Em 2006, a maioria dos alunos de ciências humanas de qualquer universidade de ponta reconheceria seu nome, e muitos seriam capazes de descrever suas posições mais conhecidas. Poucos russos escolhidos aleatoriamente nas ruas chegariam a reconhecê-lo,1 mas, mesmo assim, Dugin havia se tornado o Tradicionalista mais famoso de todos os tempos. Essa fama estava ligada a seu neoeurasianismo, descrito no capítulo anterior, e não ao Tradicionalismo, mas este permaneceu visível e importante. Outra medida da relevância de Dugin foi o crescimento do que poderia ser chamado de pós-eurasianismo — uma segunda geração de Tradicionalistas russos influenciados por Dugin, mas que vieram a ocupar posições ideológicas muito diferentes. Após examinarmos a ascensão de Dugin à fama, duas figuras desse segundo grupo serão consideradas. Outra medida da importância de Dugin foi o crescimento de um Movimento Eurásia internacional. Ainda que nenhum dos ramos não russos de tal movimento tivesse grande importância em si mesmo no momento em que este livro era escrito, ainda assim tratava-se de uma tendência notável, que pode se acelerar.
O MOVIMENTO EURÁSIA
Depois de 2000, o ambiente político russo mudou. A visão de uma Rússia liberal-democrática mantendo boas relações com o Ocidente, a que Dugin se opunha, ficou para trás, vítima dos acontecimentos internos e externos. A mão mais firme do presidente Vladimir Putin deu um grau de certeza à vida política russa que contrastava favoravelmente com a deriva e a corrupção altamente visível dos anos tardios de Iéltsin, ainda que sua «verticalização» do poder, na opinião de muitos, tenha produzido novos problemas. Nesse novo ambiente, logo ficou claro que a oposição tornava-se cada vez mais marginal. Até mesmo o CPRF parecia condenado, demasiado dependente de eleitores idosos e excessivamente afundado no passado soviético. A despeito de seus flertes com o neoeurasianismo, o seu nacionalismo permaneceu excessivamente baseado no caráter étnico russo.2 Sob essas circunstâncias, Dugin se afastou cada vez mais da oposição. Apesar de continuar a publicar o seu suplemento Evraziiskoe Vtorzhenie no jornal Zavtra, de Prokhanov, ele passou ao que chamou de «centrismo radical». Essa nova posição, adotada publicamente em 2001 com a fundação do Movimento Eurásia, era centrista na medida em que apoiava o presidente Putin como um patriota aparentemente comprometido com a restauração do poder russo e receptivo à ideia da Rússia como uma potência eurasiana. Por outro lado, ela era radical pelo fato de o neoeurasianismo de Dugin ser central para o Movimento Eurásia, e porque os elementos liberais do programa de Putin eram tolerados, não apoiados.3 Ela se apoiava no sucesso anterior de Dugin com seu livro Osnovi geopolitiki, bem como na aceitação cada vez maior em importantes círculos no Kremlin da manutenção de uma hostilidade fundamental entre a Rússia e os Estados Unidos. Apesar de Dugin estar se tornando o expoente mais importante do neoeurasianismo, ele estava longe de ser a única pessoa a falar nesses termos. Alguns meses antes do anúncio de seu Movimento Eurásia, um Partido Eurasiano da Rússia fora fundado por Abd AlWahid Niiazov (nascido Vadim Medvedev), um deputado da Duma. Niiazov, apesar de ser um russo convertido ao Islã que se associara a Jamal e apoiava grande parte do neoeurasianismo de Dugin, não era
um Tradicionalista.4 Ele havia fundado um partido político islâmico, batizado de Refakh devido ao famoso e bem-sucedido partido islamista turco atualmente conhecido como AK, que havia conquistado cinco cadeiras nas eleições de 1999 para a Duma. Partidos puramente confessionais estavam proibidos na época, então Niiazov acrescentou alguns budistas ao seu e o renomeou de Partido Eurasiano.5 Apesar de sua posição na Duma, Niiazov nunca chegou a rivalizar com Dugin como o mais importante neoeurasiano da Rússia. Dugin fundou seu Movimento Eurásia com três tipos de apoio, dois dos quais fizeram dele uma organização muito mais séria do que o Partido Nacional-Bolchevique (PNB) jamais fora. Em primeiro lugar, havia uma série de Tradicionalistas, incluindo dois membros do círculo original de dissidentes de Evgenii Golovin do período soviético: o próprio Golovin e Iurii Mamleev, o romancista cujos livros causaram problemas para Dugin com a KGB na época de seus estudos no Instituto de Aviação.6 O segundo tipo de apoio vinha de indivíduos respeitados, como o dr. Aleksandr Panarin, um importante cientista político, catedrático da disciplina na Universidade de Moscou e que tinha se estabelecido (de maneira independente) como uma autoridade no eurasianismo.7 O apoio de tais pessoas dava a medida do sucesso do livro Osnovi geopolitiki e também do quanto o mainstream se movia na direção de Dugin. O terceiro tipo de apoio vinha de figuras próximas do Kremlin. Membros formais do Movimento Eurásia incluíam o famoso apresentador de televisão Mikhail Leontiev, conhecido como «o jornalista preferido do presidente».8 Comentava-se também que Gleb Pavlovskii, assessor próximo de Putin, apoiava o Movimento Eurásia de alguma maneira, apesar de não ser oficialmente membro.9 Tal apoio não é improvável. Pavlovskii, que se descrevia como um «tecnologista político», prestava assistência a uma série de movimentos políticos vistos como potencialmente úteis ao Kremlin. Circulavam também muitos relatos de que o Movimento Eurásia recebia apoio financeiro de grupos de associações de oficiais aposentados da SVR e da FSB, as agências de inteligência e segurança interna que nasceram da divisão da KGB em 1991.10 O primeiro
número dois de Dugin no Movimento Eurásia, Peter Evgenevich Suslov, era um antigo membro dos serviços de inteligência. Após servir no Primeiro Diretório da KGB, Suslov aposentou-se do SVR como coronel em 1995.11 Segundo um relatório confidencial e não confirmado, ele se especializara em assassinatos políticos e foi ligado a Maksim Lazovskii, um antigo agente da KGB e da FSB acusado de forjar atentados a bomba de «terroristas chechenos» em Moscou em 1994.12 O apoio de agentes aposentados da FSB e da SVR não indica de maneira definitiva o apoio de agentes da ativa ou da própria FSB, mas ao menos sugere uma relação de cooperação com a FSB e o Kremlin. Como resultado desse tipo de apoios, o Movimento Eurásia rapidamente cresceu em tamanho e visibilidade. Segundo seus próprios números, que podem ser otimistas, ele rapidamente ganhou cinquenta sucursais nas províncias e 2 mil membros. Esses números eram inferiores aos do PNB, mas este tinha o objetivo de ser um partido político, o que não era o caso do Movimento Eurásia. Antes das eleições de 2003 para a Duma, no entanto, Dugin voltou a incursionar pela política convencional, com a decisão do segundo congresso do Movimento Eurásia (em 2002) de se transformar em Partido Político, o Partido Eurásia (um nome pouco diferente do partido de Niiazov, chamado Partido Eurasiano).13 Em 2003, o Partido Eurásia anunciou uma aliança com o Partido Rodina, de Sergei Glazev. Houve desavenças, porém, sobre quem assumiria as três primeiras posições na lista do Rodina (beneficiando-se, assim, da publicidade que acompanharia tal posto), e, por essa e outras razões, incluindo um rompimento entre Dugin e Suslov, o Partido Eurásia retirou-se da aliança e não participou das eleições de 2003, terminando dissolvido.14 O resultado das eleições de 2003 foi a eliminação dos partidos liberais da Duma e uma vitória tão avassaladora dos candidatos do Kremlin que a importância do parlamento diminuiu de imediato, e, com ela, a dos partidos políticos. Mais importante, porém, do que o tamanho do Movimento Eurásia ou sua breve incursão na política eleitoral foi o fato de que sua cooperação com o Kremlin fez com que ele passasse a assumir as
características de um respeitado think tank de política externa, com funções (ainda que não orientação ideológica) similares à RAND e ao Council on Foreign Relations nos Estados Unidos. Muitos acreditavam que, em certas ocasiões, o Kremlin recebia recomendações do Movimento Eurásia e, em outras, usava-o para fazer circularem suas próprias propostas.15 O próprio Dugin tornou-se cada vez mais visível nos jornais (incluindo o Komsomolsakaia pravda e a Rossiiskaia gazeta) e na televisão (de Kultura ao Canal Primeiro).16 Esse destaque não era resultado apenas de sua relação com o Kremlin. Havia razões jornalísticas legítimas para entrevistá-lo: podia-se contar com ele para tiradas memoráveis, além de transmitir a imagem de um pensador original e muito bem informado. Observadores concordam, no entanto, que tamanha fama não seria possível se o Kremlin fosse uniformemente hostil a ele. O renome internacional de Dugin também cresceu. Ramos do Movimento Eurásia foram fundados por todo o mundo (Turquia, Israel, Europa Ocidental, além da antiga União Soviética). A importância disso para o mundo fora das fronteiras da Rússia é analisada no fim deste capítulo, no contexto de uma discussão do eurasianismo em Israel e na Grã-Bretanha. Sua importância para Dugin foi a de torná-lo ainda mais conhecido. Em 2005, seu renome era tal que até o Departamento de Estado norte-americano pensou ser prudente fazer contato com ele, durante sua visita aos Estados Unidos para falar na Nitze School of Advanced International Studies da Universidade Johns Hopkins.17 Dugin revelou-se surpreendentemente popular em alguns círculos nos Estados Unidos. Ilan Berman, vice-presidente para políticas do influente American Policy Council, descreveu-o como «o mais importante estrategista da Rússia».18 O movimento de Dugin seguiu o neoeurasianismo e o Tradicionalismo em seu ecumenismo. O mufti Talgat Taj al-Din, xeique al-Islã da Rússia europeia e da Sibéria, foi um dos membros fundadores. Taj al-Din foi nomeado para seu posto — criado por Catarina a Grande em 1789 e depois recriado em 1942 — no ano de 1980, e seguia a linha ditada pelos soviéticos. Em 1985, por exemplo,
ele e mais três outros muftis condenaram a «guerra não declarada [...] conduzida contra o povo afegão pelos imperialistas norteamericanos e seus sequazes» (os mujahidin),19 uma posição muito diferente daquela dos muçulmanos fora da União Soviética. Apesar dos muitos desafios, ele manteve seu posto e algum grau de influência durante a perestroika e nos governos Iéltsin e Putin.20 No ano 2000, seu competidor mais sério era Ravil Gainutdin, seu antigo assistente que, em 1994, tornou-se o líder do recém-criado Diretorado das Regiões Centro-Europeias (islâmicas), com sede em Moscou. A sede de Taj al-Din continuou em Ufa. O fato de That Gainutdin estar aliado com o Partido Eurasiano de Niiazov explica bem o status de membro fundador que Taj al-Din ostentava do Movimento Eurásia.21 Há indícios, porém, de que Taj al-Din pode ter tido alguma simpatia ideológica pelas opiniões Tradicionalistas de Dugin acerca da unidade das religiões. Algumas de suas próprias opiniões estavam mais próximas do Tradicionalismo do que do mainstream islâmico. A sugestão feita por ele em 1992 de que o culto pré-islâmico de Tengri, realizado pelos tártaros, podia ser visto como uma forma primitiva de monoteísmo22 seria recebida com gargalhadas em qualquer outra parte do mundo islâmico (ainda que algo possa ser dito a favor dessa opinião sob o ponto de vista da disciplina acadêmica da religião comparada). Suas opiniões inclusivas a respeito de outras religiões, visível em 1998 na construção de uma mesquita adornada com um vitral decorado com uma cruz e uma estrela de Davi,23 seriam recebidas com indignação em qualquer outro lugar que não fosse a Rússia. Possivelmente, essas opiniões facilitaram a tarefa de Taj al-Din de dividir um programa político com um Velho Crente Tradicionalista (Dugin), bem como com representantes das três outras religiões estabelecidas da Rússia, a ortodoxia, o judaísmo e o budismo. Mesmo na Rússia, tais opiniões produziram alguma indignação — os vitrais inter-religioso de Taj alDin foram quebrados por desconhecidos.24 O representante do judaísmo no movimento, o rabino Avraam Shmulevich, era um radical, não um centrista, mas as religiões que importavam eram a ortodoxia e o Islã. Dadas as relações próximas
entre a hierarquia ortodoxa e o Kremlin, a participação dos ortodoxos refletia um elemento mais centrista do que radical na abordagem de Dugin. A participação de Taj al-Din também era centrista. Como este, Dugin também fazia uma cuidadosa distinção entre o «wahhabismo» (como o islamismo é geralmente chamado na Rússia, quer esteja ou não relacionado com o que é conhecido como wahhabismo fora do país) e o «Islã tradicional», condenando o primeiro e louvando o segundo. Taj al-Din deu as boas-vindas ao Movimento Eurásia como «nossa resposta aos apoiadores do satânico wahhabismo».25 O «centrismo radical» de Dugin e as conexões com o Kremlin não transformaram seu movimento em um fantoche do governo, a despeito das acusações de muitos de seus adversários. Sua independência ficou aparente após os atentados de Onze de Setembro contra os Estados Unidos. Dugin imediatamente expressou suas condolências,26 mas também escreveu que os aviões que destruíram as Torres Gêmeas eram «as andorinhas do apocalipse», semelhantes às balas da arma de Gavrilo Princip em Sarajevo em 1914, que deram início à Primeira Guerra Mundial. As «andorinhas» do Onze de Setembro, declarou ele no dia seguinte ao atentado, forçariam os Estados Unidos a responderem de uma maneira que daria início a uma possível «guerra apocalíptica entre o globalismo unipolar [norte-americano] [...] e o resto do mundo»,27 uma previsão que se mostraria exagerada, ainda que não totalmente errada. Ele acreditava que, nessa guerra, a Rússia deveria permanecer neutra, ao mesmo tempo que melhorava suas relações com o bloco eurasiano.28 Assim, atacou a posição pró-atlantista adotada por Putin imediatamente após o Onze de Setembro como «o primeiro grande erro geopolítico feito pelo presidente», e lamentou que as ações dos Estados Unidos no Afeganistão «representaram um duro golpe para a estratégia eurasianista na Ásia Central». No entanto, ele ainda defendia o apoio a Putin, pois as alternativas eram piores.29 Desse modo, Dugin mantinha-se fiel à sua promessa: «somos guiados apenas pelos interesses de longo prazo da Rússia. Se a defesa desses interesses de longo prazo não é politicamente conveniente, ou se eles contradizem a situação atual, continuaremos defendendo-os da
mesma maneira».30 Mais tarde, Taj al-Din adotou uma posição ainda mais radical do que a de Dugin, declarando após a invasão do Iraque em 2003 que a resistência aos norte-americanos era uma jihad e, portanto, um dever religioso. Isso causou alguma consternação no Kremlin, que o boicotou por um período.31 As posições antiatlantistas de Dugin, no entanto, pareceram justificadas pela passagem do tempo. O pró-americanismo aparente de Putin já estava esquecido havia muito quando, em 2004--05, uma «Revolução Laranja» ocorreu na Ucrânia, a despeito dos desejos do Kremlin e dos melhores esforços de Gleb Pavlovskii. Enquanto um pequeno grupo de liberais russos teve dessa Revolução Laranja uma percepção semelhante à ocidental (uma vitória da democracia liberal contra a autocracia corrupta), ela foi vista por muitos no Kremlin como uma etapa de uma complexa ação norte-americana contra a Rússia, apertando ainda mais o cerco dos Estados Unidos ao redor da Federação Russa. O anúncio, feito por Dugin em setembro de 2005, de um Front Jovem Antilaranja, baseado na recém-fundada União da Juventude Eurasiana e dedicado a combater qualquer ação similar na Rússia,32 foi, assim, oportuno e provavelmente bem recebido pelo Kremlin. Para os que se preparavam para enfrentar uma revolta laranja instigada pelos norte-americanos no interior da Rússia, seria muito útil contar com algo além da tropa de choque da polícia ou do exército para dispersar os manifestantes. Deixando as questões éticas de lado, imagens de tropas atirando em multidões desarmadas são péssimas de um ponto de vista publicitário, e, em 1905, tais cenas foram o último prego no caixão do regime czarista. Um grupo de combatentes independente do Kremlin faria um trabalho muito melhor. Antes do Front Jovem Antilaranja, apenas dois grupos possíveis existiam: Nashi (Nosso) e o PNB, ainda liderado por Limonov. Nenhum dos dois se prestava à tarefa. Nashi era ligado demais ao Kremlin, e poucos de seus membros demonstravam a determinação necessária para atingir objetivos concretos. O PNB não tinha nenhuma utilidade, já que, em 2004, passou por uma transformação à primeira vista inacreditável, declarando-se «laranja», isto é, comprometido
com a democracia liberal.33 Em tais circunstâncias, a juventude eurasiana de Dugin parecia ser a única fonte possível para dispersar os manifestantes laranja. A mudança da ideologia oficial do PNB, transformando-se no extremo oposto do que era no momento de sua fundação por Dugin e Limonov em 1993, pode ser explicada de três maneiras. Em primeiro lugar, Limonov esteve preso entre 2001 e 2003, acusado e condenado por tráfico de armas após ser pego numa operação da FSB. Essa experiência claramente levou-o a repensar certas posições do PNB; o velho slogan «Stálin, Beria, Gulag!» claramente perdeu boa parte de seu apelo dentro de uma cela de prisão. Em segundo lugar, como Dugin havia muito se queixava, Limonov nunca levara a ideologia a sério; seu maior interesse era provocar. E a posição mais provocadora em 2004 foi a que ele adotou: a posição laranja. Essa talvez seja a ilustração mais vívida possível da dimensão da mudança ocorrida no mainstream político da Rússia desde os anos Iéltsin, quando ser Marrom era provocativo — uma mudança que havia beneficiado Dugin, como vimos. O fato de Limonov continuar sendo um provocador apesar de sua conversão ao liberalismo é algo sugerido pelo uso das táticas de «terrorismo de veludo», que o PNB passou a empregar a favor da ideologia laranja, tal como havia feito anteriormente a favor da Marrom. A tática do «terror de veludo» é a quintessência do PNB, e envolvia atacar alvos como Mikhail Gorbachev e o príncipe Charles com buquês de flores ou empregar técnicas de protesto passivo, sentando-se em grupo na sala de recepção do presidente Putin.34 O Front Jovem Antilaranja podia ser bem recebido, portanto, por aqueles que planejavam derrotar uma manobra laranja na Rússia. Seu tamanho — ou o de seu principal componente, a Juventude Eurasiana — não é conhecido ao certo, e vem mudando rapidamente à medida que este livro é escrito. Há indicações de que ex-membros do PNB podem estar passando para a Juventude Eurasiana, chocados com as novas posições ideológicas de Limonov, o que supostamente vem acontecendo em São Petersburgo e na Ucrânia,35 onde o ramo de Kiev da Juventude Eurasiana comemorou o aniversário da Revolução Bolchevique em 2005 atacando edifícios do governo com
laranjas podres36 — fruta escolhida com o típico humor do PNB. Outro ramo do Front Jovem Antilaranja, a União da Juventude de Bashkir, chegou às manchetes dos jornais em 2005, quando dispersou com violência um comício organizado por um grupo oposicionista local em Ufa.37 Aconteça o que acontecer, não parece provável que o Front Jovem Antilaranja e a Juventude Eurasiana desempenhem um papel importante na política russa. Segundo algumas pessoas, o número ideal de voluntários bem organizados necessário para dispersar manifestações como as que ocorreram durante a Revolução Laranja na Ucrânia estaria na casa dos 10 mil, um objetivo altamente improvável para a Juventude Eurasiana. Existe também a questão da probabilidade de ocorrerem protestos laranja. É bem possível que o verdadeiro perigo para a Federação Russa não seja a cor laranja patrocinada pelos Estados Unidos, mas sim a cor branca num movimento centrífugo, uma questão que será examinada mais abaixo. Outra razão para prever que o Front Jovem Antilaranja terá pouca importância política é que as incursões anteriores de Dugin pela política prática (o primeiro PNB e o Partido Eurásia) não tiveram grande importância, certamente muito menos do que suas intervenções intelectuais (o cimento ideológico para a aliança Vermelha e Marrom e, depois, o Movimento Eurásia). O próprio Dugin parece aceitar isso. Questionado sobre a razão de insistir em tais projetos, ele responde que «nunca havia abdicado da política concreta», e que, como demonstração de fé, é necessário «tentar colocar em prática coisas que são impossíveis de colocar em prática», uma vez que a atividade intelectual está ligada ao ser.38 Trata-se de uma lógica que o Evola tardio teria aprovado completamente. Ainda assim, existe a possibilidade de que partes do Movimento Eurásia desempenhem um papel diferente. Comenta-se que um número desconhecido de membros da Juventude Eurasiana e/ou do Movimento Eurásia foi treinado na Escola de Liderança Che Guevara na assim chamada República Transdnistriana, um campo de treinamento que opera sob os auspícios da agência de segurança
local.39 Há relatos de que tal campo incluiu treinamento paramilitar, treinamento mais útil num tipo de terrorismo menos «aveludado» do que o praticado pelo PNB. Entre os pré-requisitos importantes, ainda que frequentemente ignorados, para o terrorismo sério está o conhecimento técnico. Aparentemente, é isso que alguns eurasianos podem estar adquirindo agora. Apesar de o próprio Dugin nunca ter demonstrado nada além de interesse acadêmico no terrorismo, outros leitores de Evola se tornaram terroristas, e grupos terroristas frequentemente surgiram como dissidências radicais de movimentos políticos não terroristas. Apesar da atenção dada à Juventude Eurasiana por alguns comentaristas, o neoeurasianismo de Dugin é, sem dúvida, mais importante. Claramente, ele é cada vez mais conhecido e popular entre decisores no Kremlin e em partes das Forças Armadas e dos serviços de segurança. Muitos desses entusiastas de Dugin, no entanto, podem ter uma compreensão bastante superficial de seu neoeurasianismo. É provável que poucos tenham realmente lido seus livros, e muitos devem vê-lo, de maneira equivocada, como um simples chauvinista da Grande Rússia como eles próprios. Alguns insiders do Kremlin de Putin lamentam há muito tempo o entendimento «primitivo» da política internacional que ali se encontra, um estado de coisas que não faz pensar numa compreensão sutil das teses mais complexas de Dugin. Um comentarista sugere que é difícil imaginar o Kremlin de Putin, onde um menu para a Quaresma foi introduzido na cantina e onde o fundamentalismo islâmico é visto como uma grande ameaça, levando muito a sério uma aliança islâmica. Os altos escalões das Forças Armadas russas podem ser instintivamente antiamericanos, como se sugere, mas também são instintivamente anti-islâmicos; eles podem ter um interesse profissional em geopolítica, mas também têm uma tendência profissional à simplificação. O mesmo pode ser dito da SVR, apesar de a tendência ali não ser tanto à simplificação quanto à complexidade. A FSB é um caso um pouco diferente. À medida que as recompensas de uma carreira na segurança interna diminuíram em termos financeiros e de prestígio, a qualidade dos agentes da FSB também caiu. Poucos agentes da FSB hoje são intelectuais, mas
muitos tendem a uma visão quase mística do lugar da Rússia no mundo, bem como de seu próprio papel, talvez como compensação, segundo a sugestão pouco caridosa de um comentarista, por seus baixos salários.40
A NOVA UNIVERSIDADE Junto com seu novo centrismo e seu já antigo radicalismo político, Dugin permanece um Tradicionalista. Como colocou um observador, Dugin é um fenômeno com muitas camadas. O mesmo acontece com muitas pessoas, é claro, mas Dugin é fora do comum, no sentido de que todas as suas camadas são publicamente visíveis e publicamente acessíveis ao mesmo tempo.41 Para muitos telespectadores, ele é apenas um comentarista político sem nada de especial. Quem examinar mais a fundo, encontrará de imediato os detalhes de seu neoeurasianismo. Seu Tradicionalismo, essencialmente o mesmo desde os dias do Bateau ivre de Golovin, também está disponível publicamente. O Tradicionalismo pode ser visto nos sites de Dugin na internet, em suas obras,42 e também em sua Nova Universidade, uma pequena organização (sem sede física) fundada em 1998. Enquanto as atividades ao redor do Movimento Eurásia se concentram na política, a Nova Universidade é o foco principal de Dugin para a metafísica Tradicionalista. Trata-se, em essência, de uma série de conferências, com cerca de cem pessoas ouvindo palestras semanais sobre temas como «Tradicionalismo e pós-guénonismo», «Satã e o problema da preexistência» e «A morte como linguagem».43 Por vezes o conferencista é o próprio Dugin; em outras ocasiões, pode ser um colaborador, como Vladimir Karpiets, que se tornou um Tradicionalista quando descobriu Guénon e Evola em Elementy na década de 1990, passando a colaborar com Dugin desde 2004. Karpiets, como Dugin, é um Velho Crente e ambos frequentam a mesma igreja (Mikhailovska Sloboda), assim como Pavel Zarifulin, o líder da Juventude Eurasiana.44 Karpiets também está envolvido com a Juventude Eurasiana, e relata que seus membros geralmente
frequentam a Nova Universidade. Isso dá a entender que a seção de Moscou da Juventude Eurasiana ainda é pequena — é difícil imaginar as 10 mil pessoas necessárias para dispersar uma verdadeira manifestação laranja frequentando palestras sobre o tema «Iniciação: Evola vs. Guénon». Além da Nova Universidade, Dugin dá palestras sobre metafísica também na Universidade de Moscou, onde leciona sobre filosofia pósmoderna — apesar de não ter tido formação acadêmica em nível da graduação, ele fez um doutorado em história da ciência (ainda que na Universidade de Rostovo-no-Don,45 uma instituição de menor prestígio do que aquela onde atualmente leciona). Desde 2005, ele também apresenta, no canal por satélite Spas, que pertence à Igreja Ortodoxa, um programa semanal de televisão sobre temas como o egotismo ocidental. Os dados de audiência do canal Spas não estão disponíveis, mas, obviamente, a audiência é muito menor do que a do Canal Um, assistido por 98% dos russos. Um russo liberal, no entanto, ficou surpreso ao ver Dugin falando às pessoas na sala de espera da Embaixada da Rússia em Berlim, via Spas. Um certo Tradicionalismo também pode ser visto no programa do Movimento Eurásia. Assim como o programa do PNB, ele não deve ser tomado por seu valor de face, já que dificilmente será implementado em sua forma atual. Ele propõe uma engenhosa estrutura política global em múltiplas camadas, começando com «grandes espaços»: o mundo atlântico, a Eurásia (incluindo o «Islã continental» — Turquia, Irã, Afeganistão e Paquistão), um bloco euro-africano, um bloco árabe e talvez um bloco hindu. A partir desses «grandes espaços» Dugin desce, através dos «Estados-nação, ou uniões de Estados», para comunidades locais, que podem ser compostas de «milhões de pessoas ou de pequenas unidades de alguns poucos trabalhadores». Cada uma emitiria seu próprio meio de troca, um sistema que «evita a acumulação do capital para fins especulativos e estimula sua circulação. [...] Fundos serão investidos primariamente onde possam ser empregados de maneira produtiva».46 Isso não deve nada a Guénon; trata-se, essencialmente, de neoeurasianismo com algo de pós-marxismo visível em suas ideias econômicas. As preocupações de Dugin com a espiritualidade de suas comunidades locais, no entanto,
deve algo ao Tradicionalismo. Ele lamenta que «os moradores das cidades são os menos ligados a suas tradições nacionais e religiosas [...] os mais consumidos pelos processos da globalização e da modernização». O remédio proposto é verdadeiramente radical. Uma vez que a baixa densidade populacional média da Rússia torna as cidades menos necessárias do que em lugares densamente povoados, como o Japão, Dugin propõe que as grandes cidades de seus país sejam «gradualmente despovoadas».47 Isso, é claro, foi tentado pela última vez por Pol Pot, no Camboja.
PÓS-EURASIANISMO Dugin é, ao mesmo tempo, o principal neoeurasiano da Rússia e o seu principal Tradicionalista político. Existem, no entanto, outros neoeurasianistas (como Niiazov) e outros Tradicionalistas políticos. Uma vez que não há notícia de que outros neoeurasianos recebam influência do Tradicionalismo, eles não se enquadram no escopo deste livro. No momento em que ele era escrito, os três russos mais importantes operando independentemente de Dugin eram Haydar Jamal, Khodj-Ahmad Nukhaev e Vadim Shtepa. Os dois primeiros são muçulmanos e, portanto, serão abordados no próximo capítulo; um deles é um Tradicionalista «suave» (Nukhaev) e o outro tornou-se mais um pós-Tradicionalista (Jamal). Shtepa, por outro lado, é um Tradicionalista «duro», e será abordado aqui. Shtepa pertence a uma geração diferente da de Dugin. Ele tinha 21 anos de idade no momento da queda da União Soviética, quando Dugin tinha 29. Dada a rapidez das mudanças ocorridas na Rússia entre 1980 e 2000, a diferença de idade é importante. Shtepa foi atraído para o Tradicionalismo pelo artigo publicado por Stefanov em 1991, chamado «Questões de Filosofia», que ele leu quando era estudante de jornalismo na Universidade de Moscou, e seu primeiro contato Tradicionalista foi com Stepanov. Ele publicou em A Montanha Mágica, e, portanto, pode ser identificado com a escola de Tradicionalismo russo mais reduzida e espiritual. Shtepa chegou até a
aprender francês para ler Guénon no original.48 No entanto, entre 1992 e 1994, ele foi um colaborador próximo de Dugin (então no PNB), trabalhando na revista Elementy. Em 1994, foi expulso do PNB depois de um choque com Dugin, parcialmente político e parcialmente pessoal. As objeções políticas de Shtepa não eram ao direitismo do PNB, mas ao que ele via como seu imperialismo.49 Com base nisso, Shtepa pode ser descrito como um pós-eurasiano. Shtepa está preocupado com um problema que ocupa muitos russos atualmente: a relação entre centro e periferia, entre Moscou e as províncias. Observa-se com frequência que 85% dos recursos financeiros russos estão concentrados no Anel de Jardins de Moscou. Em certa medida, isso pode se dever ao fato de que os obstáculos criminais e regulatórios que se apresentam a qualquer empresário são ainda maiores fora de Moscou, onde já são bastante severos. Mas esse dado também reflete a extraordinária medida em que, num dos territórios mais extensos do mundo, tudo está concentrado numa única cidade, situação sem paralelo em outros territórios de tamanho correspondente. Esse problema existia na época da União Soviética, piorou no governo Iéltsin e ainda mais no governo Putin, em parte como consequência direta de sua «verticalização» do poder. O problema é agravado pela natureza multiétnica da população da Federação Russa. Isso já foi analisado a partir da perspectiva dos russos étnicos; aos olhos das outras etnias, o predomínio de Moscou não é, para dizer o mínimo, algo obviamente bom. Enquanto muitos russos vão pouco além de observar que o problema das relações centro-periferia está entre os mais sérios do país, alguns chegam a afirmar que a situação atual é insustentável, e que, se persistir, produzirá inevitavelmente o colapso e a fragmentação da Federação Russa, semelhante ao que aconteceu com a União Soviética. Dugin e Shtepa compartilham essa opinião. Dugin descreve seu afastamento do «nacionalismo de Estado» como um dos mais importantes em seu pensamento recente.50 Sua proposta de estrutura política em diversos níveis é planejada em parte para tratar desse problema, mantendo a supremacia de Moscou nas grandes questões (sobretudo defesa, segurança, petróleo e recursos minerais) enquanto o poder seria delegado em outros
temas.51 Shtepa não se empolga com tal estrutura. Ao contrário de Dugin, não deseja manter a supremacia de Moscou, ao contrário. Shtepa, e nisso ele difere de outros Tradicionalistas, não é moscovita de nascimento ou adoção. Ele nasceu no norte (em Petrozavodsk, Karelia) e passou a primeira adolescência na Sibéria. Em 1997, deixou Moscou e retornou à sua terra natal, onde permaneceu até 2004. Quando as belezas naturais do norte começaram a perder seu interesse, ele retornou à vida na metrópole não em Moscou, mas em São Petersburgo. Como Dugin, Shtepa olha para o passado da Rússia em busca de um modelo político «tradicional». Ao contrário de Dugin, porém, ele não vê a continuação do império czarista na União Soviética como um modelo a ser seguido. Em lugar disso, aponta para a República de Novgorod, argumentando que o império posterior foi uma aberração. Shtepa defende, portanto, a fragmentação da Federação Russa, algo que outros — especialmente o Kremlin — fariam qualquer coisa para evitar. Assim como o império romano deu lugar à Europa Ocidental, diz ele, o império russo deve dar lugar a algo diferente. Shtepa enxerga os conflitos no sul da Rússia (especialmente na Chechênia) como um sintoma altamente visível de um problema mais amplo, mas não sente que isso seja problema seu. Ele ficaria feliz em conceder independência aos chechenos ou a qualquer outro grupo do sul que a desejasse. Os residentes russos de tais áreas insatisfeitos com a nova configuração sempre podem ir embora. A preocupação de Shtepa não é com o sul, mas com o norte. Ele é um antiimperialista, um defensor da independência do norte — de Estados soberanos para sua Karelia natal e para outras regiões; talvez até mesmo para a região ao redor da própria São Petersburgo, que ele chama de «Ingermanland», o nome pela qual era conhecida até sua aquisição pelo Grão-Ducado de Moscou em 1478. Ele aponta que grande parte do petróleo e gás da Rússia estão localizados no norte, e que, sob o sistema atual, é Moscou, e não o próprio norte, que se beneficia deles. Como corolário desse anti-imperialismo, Shtepa rejeita a Igreja Ortodoxa Russa (ainda que não os Velhos Crentes), que ele vê como excessivamente associada ao imperialismo russo. Seus interesses, e
os de seus colaboradores, concentram-se em tradições regionais, como as «religiões nativas» siberianas. Vinte ou trinta pessoas se reúnem para celebrar o solstício de inverno. Não se trata de um fenômeno novo no Tradicionalismo; os Tradicionalistas romenos do entreguerras, por exemplo, tinham interesse nas tradições espirituais populares da Romênia. Em um contexto diferente, porém, isso pode ter implicações diferentes. Desde o século XIX, a redescoberta de tradições populares locais foi frequentemente importante para a redescoberta (ou mesmo para a descoberta) de novas identidades nacionais. Shtepa não lidera, neste momento, nenhum movimento nacionalista do norte. Não existe hoje nenhuma «Revolução Branca» sendo preparada. Uma fonte bem informada considera que o pequeno movimento nacionalista do norte é ainda menor hoje em dia do que no início da década de 1990.52 Mesmo assim, ainda ocorrem alguns eventos em que elementos de nacionalismo do norte podem ser identificados, incluindo reuniões do Fórum de Pesquisa do Norte, um «fórum [...] para discussões relevantes de políticas públicas sobre o papel da pesquisa» criado (para fins bastante diferentes) pelo governo da Islândia em 1998. Shtepa participou da reunião de 2002 desse fórum (em Novgorod) e falou sobre a «Criação de recursos conjuntos de mídia que fossem interessantes para os moradores como um passo em direção ao Norte Global».53 Segundo Shtepa, um encontro mais especificamente nacionalista foi realizado em São Petersburgo em dezembro de 2004. Uma Revolução Branca não é, portanto, impensável, e pode representar um perigo mais sério para o Kremlin do que a temida Revolução Laranja. Shtepa é uma figura ativa no nascente movimento nacionalista do norte, fornecendo justificativas ideológicas para um secessionismo que outros apoiam por razões mais práticas, incluindo a combinação da pobreza da região e a exploração de seus recursos naturais por Moscou. Em certo sentido, ele não passa de uma figura interessante em um grupo bastante marginal. O mesmo poderia ser dito de Dugin em 1992, porém. Shtepa parece ter menos motivação, energia e carisma que Dugin, mas, mesmo assim, pode ser uma figura interessante a ser observada.
De qualquer modo, Shtepa ilustra o quanto a nova geração de Tradicionalismo russo pós-eurasiano pode ser diferente do modelo duguinista. Outro exemplo é Aleksei Ivanenko, um Tradicionalista de São Petersburgo. Como Shtepa, Ivanenko é mais visível na internet e também pode ser descrito como um pós-eurasiano. Ao contrário daquele, porém, ele nunca leu Guénon ou Evola e não tem intenção de fazê-lo. Apesar de se declarar como Tradicionalista, ele não considera Guénon ou Evola importantes. Suas referências Tradicionalistas são todas russas, incluindo Dugin.54 Os interesses de Ivanenko são difusos, mas concentram-se numa autorrealização político-espiritual de tipo «pós-moderno» (uma de suas expressões favoritas). Motivos político-espirituais o levaram a se converter ao Islã em 2001, após os atentados de Onze de Setembro. Apesar de sua conversão, ele não mantém contato regular com muçulmanos. Ivanenko encontrou-se com alguns em Moscou, mas não se deu bem com eles. Os muçulmanos moscovitas consideravam (de maneira previsível) a prática islâmica algo importante, enquanto Ivanenko a rejeita, com o argumento de que se opõe ao «ritualismo». Ele também levou seu entendimento da unidade das religiões ao que parece ser sua conclusão lógica, casando-se em uma igreja protestante, apesar de nenhum dos noivos ter nenhuma ligação com o protestantismo. A principal forma de contato de Ivanenko com o Islã é pela internet; ele escreve para sites de separatistas chechenos e islamistas radicais, como o Hizb al-Tahrir.55 Dificilmente Ivanenko virá a se tornar uma figura de grande importância na Rússia. Ele é, contudo, um exemplo de uma tendência lançada por Dugin, ainda que sua denominação — pós-eurasianismo ou neoeurasianismo suave — seja ainda objeto de discussão.
O MOVIMENTO EURÁSIA NO EXTERIOR Em 2006, o Movimento Eurásia declarava possuir núcleos ou afiliados na antiga União Soviética (especialmente na Ucrânia e no Cazaquistão), no Oriente Médio (especialmente na Turquia e em Israel) e na Europa Ocidental (especialmente na França, Grã-
Bretanha, Itália e Escandinávia).56 Alguns são mais importantes do que outros. Por razões práticas, não foi possível fazer um estudo completo deles; em lugar disso, os afiliados em Israel e na GrãBretanha serão analisados detalhadamente.
O NEOEURASIANISMO ISRAELENSE O neoeurasianismo em Israel é representado pelo grupo Be’ad Artzeinu (Para nossa pátria), dirigido pelo rabino Avraam Shmulevich e por Avigdor Eskin. Ambos são cidadãos israelenses de origem russa e ambos estiveram em Moscou para o congresso de fundação do Movimento Eurasiano.57 Em 2002, o Be’ad Artzeinu afirmava possuir centenas de membros, a maioria deles de origem russa. Seu líder, Shmulevich, se descreve como um «hipersionista», considerando obsoleto o primeiro sionismo, que levou à fundação do Estado de Israel. Tal visão é compartilhada por muitos israelenses, afinal Israel claramente já existe e o sionismo cumpriu seu objetivo. Poucos israelenses, no entanto, concordariam com a ideologia proposta por Shmulevich para substituir o sionismo original dos fundadores do Estado. Segundo ele, Israel tem uma missão global: liderar o caminho para o século XXI, moldando-o da mesma maneira que judeus como Marx, Freud e Einstein moldaram o século XX. Como primeiro passo, Israel deve não apenas barrar qualquer proposta para a criação de um Estado palestino e derrotar a ameaça do islamismo, mas também expandir seu controle até cobrir todo o Oriente Médio, do Nilo ao Eufrates. Esse controle não precisa ser militar: as técnicas de controle econômico e social sugeridas nos Protocolos dos Sábios do Sião também funcionariam. Como segundo passo, Israel deve «voltar a instaurar a camada mais primordial da Tradição [aquela de Adão, o primeiro hipersionista], mas isso deve estar baseado na fusão com as tendências mais modernas encontradas numa sociedade pós-industrial».58 Apesar de o Be’ad ser suspeito de ações contra os árabes nos territórios «ocupados»,I o grupo admite ter feito apenas protestos não violentos (com uma exceção), ainda que também admita que seu
objetivo último é uma revolução em Israel para substituir a atual classe política por hipersionistas. Seus protestos são pitorescos: os hipersionistas usam camisas vermelhas e marcham em fileiras ordenadas, liderados por um cão pastor chamado Fritz, que certa vez comeu um repolho enfeitado com salame que havia sido pintado com o rosto de Yasser Arafat.59 Jornalistas israelenses já sugeriram a Shmulevich que tais trajes paramilitares podem lembrar de grupos como as SA de Hitler, ao que ele responde (corretamente) que não foram apenas as SA que empregaram tais técnicas, mas também o Betar, o grupo de jovens do Sionismo Revisionista, origem do atual partido Likud. Além disso, ele também explica que «a revolução deve ser inspiradora, não chata. Você precisa saber como disseminar uma ideia. O uniforme e as provocações são parte do marketing; a embalagem do produto deve atrair a atenção».60 O mesmo poderia ser dito do PNB e de muitas outras atividades de Dugin. O Be’ad Artzeinu admite publicamente ter cometido apenas um ato violento: o lançamento de uma maldição contra Hassan Nasrallah, o líder do Hizbollah, no fim de 2004,61 o que pode ter sido inspirado por uma maldição semelhante lançada contra o primeiro-ministro Ytzak Rabin em 1995 (como resposta ao Acordos de Oslo) por Eskin, outro colaborador israelense de Dugin. Acredita-se que a maldição de Eskin, chamada pulsa d’nura (látigos de fogo, em aramaico), age num período de trinta dias. Trinta e dois dias após ser lançada a maldição de Eskin, Rabin foi baleado e morto por Yigal Amir (que não era colono nem Tradicionalista, mas estudante da cidade de Herzliya). Como resultado, Eskin foi condenado a quatro meses de prisão em 1997 por incitação ao crime.62 No momento em que este livro foi escrito, Nasrallah ainda estava vivo. A biografia de Shmulevich mostra como um israelense pode se tornar um neotradicionalista, algo surpreendente, dada a ênfase no Islã presente tanto no Tradicionalismo quanto no neoeurasianismo, além dos contatos anteriores de Dugin com grupos vistos como fascistas e antissemitas. Shmulevich foi criado em Murmansk por pais soviéticos seculares, vagamente consciente de ser «judeu», mas de
modo algum religioso. Após redescobrir a religião de sua avó, ele emigrou para Israel e se tornou um rabino hasídico (pietista), ainda que não esteja claro em que ordem se desenrolaram esses eventos.63 Os hasidim — sob certos aspectos, os equivalentes judaicos dos sufis — são ferozmente ortodoxos, e os ferozmente ortodoxos geralmente defendem uma ou outra entre duas posições extremas a respeito do Estado de Israel. Num dos extremos, eles podem rejeitá-lo como uma tentativa blasfema e irreligiosa de apressar a redenção. No outro extremo, podem ver Israel como um elemento na redenção. Nesse caso, a conquista inesperada da Judeia e da Samaria em 1967 é vista como uma dádiva de Deus, e qualquer tentativa de devolver esses territórios «ocupados» é blasfema.64 Essa é a posição adotada por Shmulevich, que se uniu a outras 250 pessoas num assentamento controverso, simbolicamente importante e fortemente defendido no centro de Hebron, uma cidade com cerca de 40 mil habitantes árabes, conhecida por eles como al-Khalil.65 Em termos israelenses, Shmulevich e seus companheiros são inegavelmente radicais, geralmente apresentados pela imprensa como «extremistas de direita» (na prática israelense, os termos «direita» e «esquerda» são usados de maneira muito diferente do que na Europa e nos Estados Unidos, denotando principalmente posições relativas à questão palestina: a esquerda defende a troca de território pela paz, a direita não defende tal troca). A nova posição neoeurasiana perante a questão palestina é bem ilustrada pelas atividades de Eskin, o outro conhecido membro israelense do Movimento Eurásia de Dugin. Ao sair da prisão após sua condenação por incitação ao crime, Eskin começou a preparar dois projetos criados para desencadear uma reação palestina que destruiria os Acordos de Oslo, que ameaçavam levar Israel a abandonar alguns dos territórios conquistados em 1967. Um desses projetos era usar uma catapulta para lançar uma cabeça de porco no Domo da Rocha, no Monte do Templo, durante o Ramadã; o outro envolvia colocar uma cabeça de porco no túmulo de Izz al-Din al-Qassam (um herói nacional palestino morto pelas autoridades do mandato britânico em 1935). Os serviços de segurança israelense descobriram esses planos, além de outro, o
de incendiar um edifício que pertencia a um grupo de esquerda israelense chamado Dor Shalom, e Eskin e um cúmplice voltaram a ser presos. Em 1999, Eskin foi condenado a dois anos e meio de prisão.66 Ironicamente, a visita realizada por Ariel Sharon ao Monte do Templo um ano depois conduziu aos mesmos resultados dos projetos de Eskin, dando início à segunda intifada. A participação de Eskin e Shmulevich em um Movimento Eurásia que tem por objetivo abarcar grande parte do mundo islâmico é algo paradoxal. Claramente, a aliança com o Islã não foi o elemento do neoeurasianismo que os atraiu, mas sim os elementos antiamericanos do movimento, que se encaixam com a opinião de muitos colonos de que seu próprio governo está traindo não apenas eles, mas o povo judeu e o sionismo, sob pressão norte-americana. A explicação de Shmulevich para essa traição era o «processo de subordinação da elite política a influências ocidentais»,67 combatido pelo neoeurasianismo. Shmulevich e Eskin são neoeurasianos, e não Tradicionalistas, e não há indícios de que este último jamais tenha lido Guénon. Mesmo seu neoeurasianismo é consequência, e não causa, de suas outras atividades — a posição de Eskin precedeu o desenvolvimento do neoeurasianismo, e sua primeira atividade política conhecida aconteceu em 1979, quando, aos dezenove anos, ele e três outros jovens colonos foram presos por invadir casas palestinas em Hebron, onde «reviraram a mobília e atacaram os moradores».68 Três anos depois, em 1981, ele foi novamente preso, dessa vez num protesto em frente à companhia aérea soviética Aeroflot em Nova York, acusado de «distúrbios, associação criminosa e tentativa de transgressão criminosa».69 O neoeurasianismo israelense representa um desenvolvimento das atividades de Dugin que não pode nem sequer ser chamado de Tradicionalismo «suave». No entanto, visto que empregam uma ideologia parcialmente baseada no Tradicionalismo, eles também descendem, ainda que de maneira indireta, do trabalho de Guénon.
NEOEURASIANISMO BRITÂNICO
O neoeurasianismo na Grã-Bretanha é representado pelos nacionalanarquistas, um grupo pequeno e informal comandado por Troy Southgate. Southgate difere de Shmulevich e de Eskin por sua ideologia ser ainda mais marginal do que a deles. As porções mais radicais do movimento dos colonos israelenses e a «direita religiosa» são um eleitorado em potencial que pode se sentir atraído por Shmulevich e Eskin, além dos israelenses de origem russa, mas não existe um eleitorado equivalente na Grã-Bretanha. Desde a dissolução da União Britânica de Fascistas de sir Oswald Mosley no início da Segunda Guerra Mundial, a direita radical só foi importante para a política britânica uma única vez, e por pouco tempo. Entre 1973 e 1979, o Front Nacional beneficiou-se do crescente mal-estar com a imigração vinda das Índias Ocidentais e do Paquistão para a Grã-Bretanha. Em 1973, o Front Nacional tinha 17,5 mil membros; em 1979, os membros atuais e passados somavam 60 mil. Isso os levou a uma incursão impensada pelo terreno da política eleitoral em 1979, o ano em que Margaret Thatcher chegou ao poder e mudou a natureza da política britânica mais do que qualquer outro primeiroministro do século XX. Após receber apenas 192 mil votos naquela eleição (vergonhosos 0,6%), o Front Nacional se desfez em meio à confusão.70 Em 1985, ele tinha apenas mil membros, e, em 1989, fragmentou-se em uma série de grupos menores.71 Southgate filiou-se ao Front Nacional em 1985, quando o grupo havia abandonado muitas de suas posições iniciais, substituindo sua plataforma original de expulsão de todos os imigrantes não brancos por uma defesa do «separatismo racial» e adotando algumas das perspectivas de Evola. Essas perspectivas eram especialmente visíveis num panfleto intitulado «Political Soldier» [O soldado político], escrito por Derek Holland, um dos líderes do Front Nacional posterior a 1979, que havia sido apresentado à obra de Evola por Roberto Fiore, um direitista italiano fugido para a Inglaterra. Depois da fragmentação do Front Nacional em 1989, Southgate seguiu Holland e Fiore para a Terceira Posição Internacional.72 Por volta de 1992, a Terceira Posição Internacional começou a parecer para Southgate próxima demais do velho fascismo italiano. Ele e um grupo de colaboradores abandonaram o grupo e fundaram
o Movimento Nacionalista Inglês, que, em 1998, se transformou na Facção Revolucionária Nacional.73 A Facção Revolucionária Nacional foi descrita por um acadêmico inglês que se deu conta de sua existência como «completamente irrelevante como força política».74 Buscando novas direções ideológicas, Southgate começou a ler Bakunin. Então, por volta de 1998 ou 1999, ele descobriu a seção em inglês do site Arktogeia, de Dugin. Isso o levou a ler Evola pela primeira vez (apesar de saber da existência do italiano havia já alguns anos). No ano 2000, a Facção Revolucionária Nacional se transformou nos nacional-anarquistas75 — um eco britânico da surpreendente justaposição de nomes feita pelos nacionalbolcheviques. Em uma entrevista de 2006, Southgate descreveu sua posição como uma mistura de Tradicionalismo, anarquismo e separatismo racial.76 Seu site, Synthesis, se descrevia como «dedicado à ocultura (o reconhecimento e compreensão da natureza esotérica da Vida e da Cultura) anarquista e à metapolítica», e listava 24 figuras-chave, começando por Ernst Jünger, Bakunin e Evola, incluindo também Dugin e Guénon (além de Nietzsche, Crowley e Sergei Nechayev).77 Apesar das referências a Bakunin, o anarquismo de Southgate pertence a um tipo peculiar, que deve mais ao conceito de Jünger do «Anarca», o indivíduo que rejeita toda autoridade.78 O «Anarca» de Jünger possui pontos em comum com o «indivíduo absoluto» de Evola. Southgate também é anarquista no sentido de que rejeita o Estado e defende «comunidades autônomas e com uma única raça onde as pessoas possam ocupar seu próprio espaço e viver segundo seus próprios valores e princípios».79 Essa não é uma posição que qualquer outro anarquista britânico (e não há muitos) apoiaria. O Tradicionalismo desempenha um papel perceptível na síntese ideológica de Southgate, mas está longe de ser dominante. Evola é mais visível do que Dugin. O link para Arktogeia no site Synthesis de Southgate é apenas um entre muitos, e somente um artigo de Dugin foi traduzido na íntegra, em 2006. A maior parte das referências a Dugin estava defasada, associando-o ainda ao PNB.80
Como no caso de Israel, o elemento mais atraente do neoeurasianismo é a ideia de um bloco antiamericano — antiamericano, e não antiatlantista, já que Southgate (como habitante do mundo atlântico descrito por Dugin) não tem opção além de rejeitar as análises geopolíticas do russo. Além de considerar a divisão do mundo em regiões marítimas associadas à modernidade e regiões continentais associadas à tradição uma simplificação excessiva, Southgate defende que a Rússia (onde nunca esteve) é mais europeia do que Dugin faz crer.81 Southgate, porém, concorda plenamente com Dugin ao ver os Estados Unidos como inimigos da tradição, apesar de sua «tradição» ser mais cultural do que espiritual, resultado de seu interesse no tema racial. Os europeus (incluindo os russos) possuem uma tradição particular, e não europeus possuem outras tradições. Tais tradições devem ser mantidas puras. Em cidades como Londres, contudo, elas estão se misturando, encontrando um terreno comum na degeneração da «cultura popular» norte-americana.82 A Rússia pode ajudar a fortalecer uma alternativa à hegemonia global dos Estados Unidos,83 e, assim, à cultura popular norte-americana e à mistura de tradições, raças e culturas. O Islã também pode ajudar, já que os muçulmanos permanecem «vigorosamente contrários a essa ameaça». Ainda assim, Southgate «não apoia sua presença na Europa».84 O nacional-anarquismo de Southgate nunca atraiu mais do que dez seguidores em tempo integral,85 e é mais visível na internet, um meio no qual a direita radical europeia floresceu, assim como outros grupos marginais, como os nacionalistas do norte de Shtepa. Para alguns indivíduos isolados, é muito mais fácil reunir-se na internet do que em espaços físicos. Ainda assim, Southgate continua a organizar alguns eventos presenciais — reuniões mensais de vinte ou trinta pessoas num quartinho de fundos alugado num pub, onde escutam palestras sobre o culto neopagão de Odin ou a posição de Oswald Mosley a respeito da integração europeia.86 Na primavera de 2005, o próprio Dugin falou numa dessas reuniões, durante uma visita a Londres.
Southgate não vê seus seguidores, nem ele próprio, desempenhando um papel de destaque em auxílio do neoeurasianismo, ainda que tenha a esperança de divulgar as ideias de Dugin no mundo de língua inglesa por meio de suas atividades na internet.87 Por outro lado, o neoeurasianismo de Dugin tem alguma importância para Southgate. Em primeiro lugar, sua posição marginal se vê um pouco reduzida pela associação a uma figura ligeiramente menos marginal, cuja importância na Rússia é percebida de modo exagerado pelos estrangeiros. Em segundo lugar, o neoeurasianismo e o Tradicionalismo ajudaram a dar certo brilho às posições ideológicas do próprio Southgate. O conceito de tradição permitiu que ele voltasse a expressar a xenofobia crua do Front Nacional original sob uma forma mais sofisticada, com um apelo talvez um pouco mais amplo. A ênfase na preservação de tradições separadas pode ser apresentada como uma forma de multiculturalismo e até mesmo de antiglobalização, posições ideológicas muito mais populares.
IMPORTÂNCIA GLOBAL DO NEOEURASIANISMO As políticas da Rússia, de Israel e da Grã-Bretanha têm pouco em comum. Não surpreende, portanto, que os israelenses e britânicos associados a Dugin sigam plataformas orientadas mais pelas preocupações de seus próprios países do que pelas de Dugin ou da Rússia. Shmulevich e Eskin estão mais interessados em manter as conquistas feitas por Israel em 1967, enquanto o interesse de Southgate é a imigração, ou, ao menos, suas consequências e implicações. Dugin não tem interesse em nenhum desses temas. No entanto, a associação dos direitistas não russos com Dugin ajuda a torná-los um pouco menos marginais, e elementos do neoeurasianismo dão a eles um brilho ideológico útil. Movimentos como os de Shmulevich e de Southgate não contribuíram em quase nada para a política nacional. No entanto, alguns do membros mais radicais de partidos radicais menos marginais leem o que gente como Shmulevich e Southgate postam
na internet, e partidos radicais menos marginais são observados pelos grandes partidos, assim como os grandes partidos observam todos os seus rivais, às vezes tomando emprestadas algumas de suas políticas mais populares. Vitórias ocasionais de partidos radicais antiimigração, por exemplo, são amplamente reconhecidas como tendo contribuído para a adoção de políticas muito mais duras sobre o assunto pelos grandes partidos. A importância e o futuro do neoeurasianismo na antiga União Soviética fora da Federação Russa ainda não estão claros, dada a falta de pesquisa sobre o assunto. O neoeurasianismo pode ser importante, especialmente no Cazaquistão. Do mesmo modo, o status do neotradicionalismo na Turquia não está claro. Dugin já visitou a Turquia, e seus discursos foram noticiados em grandes jornais, incluindo o Zaman, moderadamente islamista. Se o antigo sonho do país de se juntar à União Europeia tiver de ser abandonado (o que é provável), algum tipo de alternativa eurasiana pode se tornar atraente. A disseminação internacional do neoeurasianismo, portanto, é certamente uma tendência notável, que pode se acelerar.
I As aspas no termo «ocupados» para adjetivar os territórios sob controle israelense desde 1967, bem como a ausência de aspas ao referir-se a esses mesmos territórios como «Judeia» e «Samaria» mais abaixo, são uma decisão editorial do autor do livro. [N. T.]
14. O MUNDO ISLÂMICOI
O primeiro país no mundo islâmico a encontrar o Tradicionalismo foi o Irã. Apesar de a Revolução Islâmica ter encerrado as atividades de Nasr em território iraniano, o Tradicionalismo sobreviveu a ela e, no fim do século XX, veio a desempenhar um papel no debate público sobre a direção futura da República Islâmica. Nessa época, o Tradicionalismo já havia aparecido na discussão pública de outras nações islâmicas, especialmente da Turquia e da Malásia, bem como na Federação Russa, que possui uma população muçulmana importante e há muito estabelecida.1 No mundo árabe, contudo, o Tradicionalismo permaneceu geralmente ausente do debate público. Na Argélia, ele foi considerado irrelevante; no Marrocos, desempenhou um papel mais parecido com o que teve no Ocidente, fornecendo respostas a alguns marroquinos ocidentalizados, mas sem impacto visível na sociedade mais ampla.
GUÉNON NO NORTE DA ÁFRICA A renovada popularidade das obras Tradicionalistas na Europa após a década de 1960 teve impacto no Norte da África de língua francesa, especialmente na Argélia e no Marrocos, de maneira semelhante ao impacto que teve em Moscou por volta da mesma época. Um pequeno número de intelectuais dissidentes argelinos começaram a ler Guénon por volta de 1967. Eles se opunham ao éthos socialista e materialista do regime argelino, o Front de Libertação Nacional (FLN), que havia conduzido a Argélia à independência por meio de uma sangrenta guerra com a França. Essa guerra havia ajudado a criar o conceito de «guerra revolucionária» na Itália2 e fundara um Estado socialista de partido único.
Um desses intelectuais dissidentes, Rachid ben Eissa, lançou uma série de oficinas para estudantes universitários com o objetivo de afastar os jovens argelinos do materialismo socialista e assim dar início a um renascimento islâmico no país.3 Seu principal palestrante era o mais importante intelectual islamista da Argélia, Malek Bennabi; um convidado era Roger Garaudy, então membro do Comitê Central do Partido Comunista Francês e que viria a se tornar mais tarde o mais famoso convertido ao Islã da França (e, incidentalmente, um entusiasta de Guénon).4 Análises Tradicionalistas estavam no centro dos ataques de Ben Eissa contra a modernidade. Dado o controle exercido pelo FLN sobre a vida cultural e intelectual, teria sido difícil, se não impossível, organizar tais oficinas de maneira independente. Assim, Ben Eissa criou um Departamento de Estudos Sociológicos Islâmicos no Ministério da Educação, o que lhe permitiu criar as oficinas em nome do ministério (elas eram geralmente realizadas em escolas públicas durante as férias escolares). Tais oficinas começaram em 1969, com uma duração de três ou quatro dias, e atraíam entre 120 e 140 alunos cada uma. A maioria dos alunos vinha de carreiras técnicas ou de ciências naturais; estudantes de ciências humanas eram deixados de lado, considerados uma causa perdida. Não havia, porém, traduções das obras de Guénon para o árabe, apesar de Rachid ben Eissa ter pensado nisso. Ele concluiu que, ainda que tais ideias, quando apresentadas em francês, pudessem ajudar a conduzir ao Islã argelinos educados num sistema essencialmente francês, em árabe elas apenas escandalizariam os leitores menos educados, que provavelmente iriam entendê-las da maneira equivocada e enxergá-las como não islâmicas, ou mesmo anti-islâmicas. O Tradicionalismo não criou raízes na Argélia. Após manifestar certo interesse inicial, Bennabi concluiu que Guénon e outros Tradicionalistas tratavam dos problemas do Ocidente, não dos da Argélia, que, em sua opinião, eram antes políticos e econômicos do que espirituais. O interesse numa solução islâmica para esses problemas — ou seja, no islamismo, ou no Islã político radical — cresceu à medida que o interesse no Tradicionalismo diminuía. As oficinas de Ben Eissa foram interrompidas e ele deixou o país para
seguir carreira no exterior, terminando na Unesco, em Paris. Seu primo, Hamza ben Eissa, escrevera dois livros em francês sobre a modernidade — que eram Tradicionalistas sob todos os aspectos —, chegando mesmo a tentar, com algum sucesso, reproduzir o próprio estilo de Guénon. Tais livros não encontraram editora. O apoio ao principal grupo islamista da Argélia, o Front Islamique du Salut (Front Islamista da Salvação, FIS), levou o grupo à vitória nas primeira eleições livres desde a independência do país, realizadas em 1991, e a uma guerra civil no ano seguinte. No Marrocos, onde as condições políticas eram mais relaxadas e as condições econômicas menos severas do que na Argélia, o Tradicionalismo teve mais sucesso. Ele desempenhou um papel importante num renascimento sufi entre a elite, que teve início na década de 1970 e foi liderado por uma ordem sufi chamada Budshishiyya. Ainda assim, Guénon nunca foi traduzido ao árabe no país, pelas mesmas razões que fizeram Ben Eissa abandonar a ideia de uma tradução na Argélia. A ordem Budshishiyya não é Tradicionalista; seu xeique, Hamza ibn Abi’l-Abbas, nunca leu Guénon, apesar de certamente ter ouvido falar nele.5 No entanto, na opinião de Ahmad Qustas, um antigo muqaddam da ordem para a importante região de Fez, as obras de Guénon desempenharam um certo papel em trazer à Budshishiyya quase todos os seus membros oriundos do que Qustas chama de «meio francófono», ou seja, os marroquinos educados em francês, a elite que pode falar o dialeto marroquino do árabe em casa, mas que se sente mais confortável lendo em francês do que em árabe. A ordem Budshishiyya teve um enorme sucesso recrutando pessoas desse meio, bem como das classes sociais imediatamente abaixo dessa, um feito considerável dadas a ignorância e a hostilidade ao sufismo dominante nesse meio, além da distância entre o estilo de vida da elite e o Islã.6 O Tradicionalismo é capaz de chegar a esse meio de um modo que outras abordagens não são. Quando Zakia Zouanat, membro da ordem Budshishiyya e Tradicionalista, foi entrevistada pela revista Demain, francófona e de grande circulação, para falar sobre sufismo, ela usou a entrevista não para falar de seu próprio xeique, mas para elogiar a «obra
incomensurável» de Guénon, que havia «conferido grande nobreza ao sufismo».7 Tal ênfase podia ser decorrente apenas de seu entusiasmo por Guénon, mas também é possível que tenha sido calculada. Em seus próprios artigos, Zouanat se esforça para abordar as concepções equivocadas que seus leitores francófonos possam ter sobre o sufismo, apresentando-o como um repositório «daquela dimensão universal que o coloca em contato com tudo o que há de mais profundo na inspiração para a liberdade, na busca pelo absoluto», apressando-se em tranquilizá-los de que não se trata de algo fanático ou não islâmico.8 O fato de a própria Zouanat não usar véu e ser uma mulher glamorosa também deve tranquilizá-los. É provável, portanto, que Zouanat dê ênfase a Guénon porque enxerga sua obra como o melhor ponto de acesso ao sufismo para seus leitores. Para ela, assim como para Abd al-Halim Mahmud no Egito, o aval dado ao sufismo por um francês «civilizado» é bem-vindo e útil. Guénon tornou-se conhecido no meio francófono do Marrocos na década de 1960, como havia acontecido na Argélia, e foi lido junto com Sartre e Camus.9 Os leitores marroquinos de Guénon (ao contrário de suas contrapartes no Ocidente) geralmente sabiam de sua conversão ao Islã e sua adesão sufismo, e ele era comumente associado (ainda que isso não fosse de todo correto; cf. capítulo 4) com Abd al-Halim Mahmud, cujas obras eram também populares no Marrocos. Seu Tradicionalismo, portanto, apontava os leitores marroquinos na direção do sufismo de maneira mais direta do acontecia com seus leitores europeus ou norte-americanos. Ademais, não se conhece nenhum Tradicionalista marroquino que tenha passado de Guénon a destinos não islâmicos. Parte da razão disso é que o sufismo, ainda que eclipsado, permanecia «presente abaixo da superfície» até mesmo para o marroquino mais moderno; parte também se deve à quase total ausência de grupos espiritualistas New Age no Marrocos. Apesar de as seções de língua francesa nas livrarias de Casablanca seguirem o padrão ocidental de classificação, todos os livros à venda na categoria «Espiritualidade» tipicamente são sobre o Islã, com talvez um ou dois sobre o Cristianismo.10 Desses livros,
mais serão sobre sufismo do que na parte em árabe da mesma livraria, refletindo os gostos do público leitor. Os livros do próprio Guénon não estavam geralmente à venda no fim do século XX, em parte porque sua principal editora francesa (Gallimard) era demasiado cara para o mercado marroquino, mas, caso alguém o desejasse, eles podiam ser encomendados com facilidade. Diversas obras de outros Tradicionalistas que conduziriam o leitor interessado a Guénon estavam disponíveis, contudo.11 Entre elas, podiam ser encontrados os livros de Fawzy Sqali, um marroquino do meio francófono que, como Qustas, tornou-se um muqaddam da ordem Budshishiyya.
Fawzy Sqali Além de ser o Tradicionalista mais importante do Marrocos, Sqali também é um bom exemplo de como o Tradicionalismo pode levar os marroquinos modernos de volta a suas origens, o que, segundo Qustas, é uma das grandes tarefas da ordem Budshishiyya. Ambos os avôs de Sqali foram ulama (eruditos religiosos) na Qarawayyin em Fez (a principal instituição de ensino no Islã ocidental), além de sufis, seguidores de um ramo marroquino da ordem Khalwatiyya. Seu pai, por outro lado, era um administrador hospitalar sênior, bilíngue em francês e árabe, um homem ocupado e sem interesse no sufismo (apesar de fazer as orações rituais). A educação de Sqali foi realizada inteiramente em francês, na Mission culturelle française em Fez, e sua educação superior (a partir de 1973) se deu na Universidade de Paris, onde estudou sociologia e obteve um doutorado em antropologia.12 Sqali era, portanto, um marroquino completamente moderno. Durante os quatro primeiros anos que passou em Paris, seus interesses eram os mesmos de qualquer estudante da década de 1970, apesar de ter permanecido às margens da atividade política e de nunca ter se filiado a nenhum grupo ou movimento político. A insatisfação com esse modo de vida conduziu-o numa jornada espiritual em busca «do essencial». Seu primeiro interesse foi o
taoismo, como poderia facilmente ter acontecido com qualquer estudante em Paris de origem francesa na década de 1970, assim como o interesse de Nasr havia sido o hinduísmo. Apesar de o taoismo aparentemente oferecer algo «essencial», belo e simples, Sqali percebeu que ele não indicava nenhum curso de ação praticável. Seu desapontamento com essa circunstância reflete a ênfase islâmica na prática, como indicado no capítulo 4. Sqali passou então a se voltar para o Islã de sua infância marroquina, lendo o Corão e até começando a rezar as orações rituais novamente, «completamente sozinho, no meio de Paris!», como recordou mais tarde — Paris e oração ocupam os polos opostos de um espectro para um marroquino francófono. Além disso, Sqali começou a comprar livros sobre o Islã e o sufismo — uma tradução francesa de Rumi, um livro sobre Ibn’ Arabi por Henry Corbin, o parceiro de Nasr, e obras de Tradicionalistas: Aperçus sur l’ésoterisme et le taoïsme [Considerações sobre o esoterismo e o taoismo] (uma coleção póstuma de artigos de Guénon), que combinava seu primeiro e segundo interesses; um livro de Jean-Louis Michon, membro da ordem Maryamiyya, e dois livros de Martin Lings, as traduções ao francês de What Is Sufism? [O que é o sufismo?] e de Sufi Saint [Um santo sufi].13 Tais livros poderiam ter levado um francês a Schuon e à ordem Maryamiyya, e, de fato, conduziram o iraniano Nasr a esse destino. Para Sqali, no entanto, eles foram antes um trampolim, que o levou a «decodificar» (em suas próprias palavras) o que ele já sabia e a voltar ao Marrocos em busca de um mestre espiritual. O plano original de Sqali era ir para o sul, à região remota e deserta do país, a menos afetada pela modernidade. Seria uma viagem de aventura, na qual um tio prometeu acompanhá-lo. Antes que ela começasse, no entanto, Sqali soube dos lamentos que corriam em sua família a respeito de um contraparente, um empresário chamado Tahir Rais, considerado perdido para algum tipo de seita. Na realidade, Rais tinha se tornado seguidor de Hamza al-Budshishi, um dos mais importantes xeiques marroquinos do fim do século XX. Apesar de a ordem Budshishiyya ser uma ordem sufi completamente normal, a adesão de Tahir Rais assustou e desgostou
sua família. Devido à concepção equivocada que tinham acerca do que era um sufi, o xeique Hamza lhes soava como um impostor e um charlatão, ou, no mínimo, como alguém iludido. O fato de sua ordem atrair jovens anteriormente irreligiosos — que bebiam álcool abertamente, por exemplo — apenas tornava as coisas mais estranhas. Uma exceção foi um senhor de idade que, após ouvir uma discussão em Casablanca, afirmou que aquelas pessoas ali reunidas deveriam ter cuidado com o que diziam a respeito de Hamza alBudshishi, que podia muito bem ser um santo. Sqali tinha uma opinião semelhante: o que ouvira lhe recordava a descrição feita por Lings de Ahmad al-Alawi, o mestre espiritual descrito em suas leituras Tradicionalistas. Ele conseguiu um convite para uma cerimônia do dhikr da ordem Budshishiyya, filiou-se a ela e viajou para a zawiya em Madagh, perto de Oujda, na fronteira entre o Marrocos e a Argélia, onde passou uma semana. A função do Tradicionalismo para Sqali havia sido importante, mas auxiliar. Foi a religião na qual havia nascido, e não o Tradicionalismo, que guiou sua busca pelo sufismo e pelos xeiques do Marrocos, mas foram suas leituras de autores Tradicionalistas que lhe deram «a referência exata» e facilitaram a identificação do xeique Hamza como o mestre que ele buscava. Tais leituras também ajudaram a validar a escolha feita por Rais independentemente delas: durante a semana que Sqali passou com ele após conhecê-lo no primeiro dhikr que frequentou, a esposa de Rais ficou fascinada e aliviada ao ouvir de Sqali a explicação sobre a respeitabilidade histórica dessa variedade de sufismo, explicação que veio de suas leituras em Paris. Outras formas de validação também estavam em curso. Ao encontrar-se com o xeique Hamza, Sqali imediatamente reconheceuo como o mestre que lhe havia aparecido em sonho na época de sua partida de Paris, e a pergunta que o xeique lhe fez — «Então, você quer devolver a alma [ruh] à sua origem [asliha]?» — parecia ter um duplo sentido, já que a palavra asl (em linguagem sufi, uma referência implícita a Deus) pode significar também «tradição», além de «origem». Outra validação veio no retorno de Sqali a Fez. A reação de sua família a sua adesão à ordem Budshishiyya foi de «pânico generalizado», e sua consternada mãe levou-o para almoçar
com o pai dela, Idris, o professor aposentado de Qarawayyin para que este pudesse explicar ao neto que o que ele estava fazendo não era parte do Islã, nem era algo exigido pela religião. Durante esse almoço, a conversa seguiu por caminhos bastante incomuns, com todos falando sobre religião e espiritualidade, e com o próprio Idris contando histórias de sufis do passado de Fez que nenhum dos presentes havia ouvido antes. Surpresa, a mãe de Sqali recordou a seu pai que não para isso que ele estava ali, e Idris disse que trataria disso mais tarde. No entanto, puxou o neto de lado e perguntou-lhe se o caminho que ele havia tomado era «severo». Sqali respondeu que ele não havia visto severidade na ordem Budshishiyya, ao que o avô lhe disse: «Então, não a deixe por nada neste mundo». Sqali sentiu que voltava para casa de muitas maneiras. Desde então, ele seguiu a ordem Budshishi e se tornou um de seus muqaddam.
Tradicionalismo marroquino Tanto Sqali quanto Qustas, portanto, são muqaddams da ordem Budshishiyya familiarizados com o Tradicionalismo. Qustas, contudo, não pode ser considerado um Tradicionalista. Ouviu falar de Guénon somente após sua entrada na ordem, em 1975, informado por alguns ingleses convertidos ao Islã.14 Ele mesmo não vem do meio francófono, mas é filho de um imã sufi da ordem Darqawiyya, tendo sido professor durante um tempo no programa de estudos islâmicos em Qarawayyin, agora uma universidade. Ele aprecia a obra de Guénon e faz uso dela em sua função atual de muqaddam para a América do Norte (sua função, apesar de o título não existir), mas ela não tem consequências para sua própria vida espiritual ou intelectual. Pelo contrário, ele critica duramente aqueles Tradicionalistas que ficam «presos» no perenialismo e desdenha a abordagem utilitária que muitos Tradicionalistas têm da xaria, enfatizando que ela é o vaso que deve conter a haqiqa (verdade, Deus). Uma série de exmembros da ordem Maryamiyya estão entre os que buscaram a ordem Budshishiyya e ele próprio, o que faz com que Qustas esteja excepcionalmente bem informado sobre os aspectos mais
escandalosos dos últimos anos da Maryamiyya; em certo momento, ele tentou convencer alguns importantes membros da ordem de que deveriam alertar seus colegas para se afastarem de Schuon. Em certo sentido, portanto, o Tradicionalismo como prática não possui um crítico mais severo do que Qustas. Em contraste, Sqali ainda retém em si muitos elementos do Tradicionalismo. Por um lado, enfatiza que o Tradicionalismo é uma expressão da verdade espiritual, mas não é, de modo algum, um caminho espiritual. Em sua opinião, ele é confundido com um caminho apenas por aqueles que possuem pouca experiência espiritual, aqueles que não encontraram realmente um verdadeiro caminho. Sqali argumenta que não são apenas as obras de Guénon que correm o risco de serem tomadas como uma doutrina espiritual definitiva, mas que até mesmo Ibn al-Arabi pode (ainda que não deva) ser visto assim. Em sua opinião, tomar qualquer corpus individual como uma doutrina definitiva é algo incompatível com o Islã sunita; o guia definitivo é o xeique; no seu caso, o xeique Hamza. Por outro lado, o Tradicionalismo foi mais do que um trampolim para Sqali. Ele continuou a ler Guénon e descobriu que, à medida que progredia na ordem Budshishiyya e à medida que sua própria compreensão espiritual se aprofundava, as obras de Guénon faziam mais sentido a cada releitura. Suas atividades com a ordem na França mantinham-no em contato com os meios Tradicionalistas franceses. Sqali tinha também um projeto pessoal para o que poderia ser chamado de «retradicionalização» da sociedade — apesar de ele mesmo chamar o projeto de «a contribuição do sufismo para a sociedade [...] a partir de um ponto de vista tradicional». Tal projeto se expressa em sua participação numa série de associações com objetivos Semitradicionalistas.15 Além disso, ele é também o fundador e diretor do Festival de Fez de Músicas Sagradas do Mundo, realizado anualmente e que, desde 1994, vem crescendo em tamanho e importância. Em 2000, atraiu não apenas Nasr, mas também Jacques Attali, importante figura pública francesa com interesse no Islã;16 em 2001, ele se expandiu para incluir uma conferência paralela. A primeira delas teve como tema «Uma alma para a globalização», e
uma ampla gama de personalidades foi convidada. Sqali enfatiza a ligação entre os objetivos desse festival e o passado da cidade de Fez, não apenas a capital intelectual e espiritual do ocidente muçulmano, mas também uma cidade onde as três religiões abraâmicas floresceram lado a lado. Há algo perenialista nessa visão. Do ponto de vista dos que encontram a ordem Budshishiyya, porém, há poucas diferenças entre Sqali e Qustas. Ambos compreendem bem o Tradicionalismo a ponto de explicar que, na realidade, a ordem Budshishiyya é a melhor iniciação tradicional disponível. O primeiro e mais importante livro de Sqali, intitulado La voie soufie [A via sufi] (1985),17 também se presta a esses fins. Segundo Sqali, ele resultou em parte de sua própria tentativa de criar uma «síntese» entre o Tradicionalismo e o sufismo, de ligar o Tradicionalismo com os textos clássicos sufis que ele vinha lendo e com sua própria experiência na ordem Budshishiyya, a fim de «desenvolver uma coerência doutrinária». La voie soufie não é um livro abertamente tradicional, porém. Ele incluiu Guénon, Schuon e alguns outros autores Tradicionalistas em sua bibliografia, além de usar certos conceitos Tradicionalistas como a divisão entre vertical e horizontal,18 mas, em aparência e estrutura, ele é mais uma obra de erudição do qualquer outra coisa, apesar de deixar claro que seu autor é muçulmano e um sufi dedicado. A primeira parte do livro é um estudo da cosmologia e da metafísica islâmica, baseando-se em fontes clássicas, como Ibn al-Arabi. Essa parte pode servir também para islamizar uma compreensão Tradicionalista dessas questões, ou então para impressionar um não Tradicionalista com a amplitude e a sutileza do pensamento islâmico. Sqali enfatiza, no entanto, que a «a doutrina sufi é essencialmente a expressão de uma experiência vivida»19 — a primeira frase do livro e uma questão sublinhada diversas vezes — enquanto a segunda parte do livro é uma introdução a essa experiência vivida. Uma seção é dedicada à ordem e ao xeique, e outra é um guia para o caminho sufi tal como experimentado por alguém que entra numa ordem como a Budshishiyya. Segundo seu autor, o livro La voie soufie levou muitos Tradicionalistas franceses a ele e, por extensão, à ordem
Budshishiyya. Esse efeito pode ser explicado por uma das qualidades da obra: a segunda parte é excelente, tanto do ponto de vista sufi quanto do acadêmico, apesar de muitos leitores acharem-na um pouco difícil. O livro também é uma proteção contra a decepção que um Tradicionalista ou intelectual francês pode sentir ao descobrir as realidades do sufismo no mundo islâmico; ele explica, por exemplo, que nem todas as ordens sufis mantêm a espiritualidade do momento de sua fundação.20 Para os que possuem uma mente voltada para questões teóricas, ele explica a relativa carência recente de obras intelectuais sufis de primeira grandeza em termos de uma mudança de perspectiva, da expressão do conhecimento intelectual por escrito para sua realização interior, refutando especificamente qualquer possível acusação «daquilo que tem sido chamado de decadência muçulmana».21 Isso é a resposta à idealização do Oriente visível no jovem Guénon22 e ainda presente em muitos Tradicionalistas ocidentais. Sqali tornou-se muqaddam da ordem Budshishiyya para a França quando ainda era estudante. Após se unir à ordem, e com a permissão de seu novo xeique, ele retornou ao país para continuar seus estudos.23 Pouco depois, recebeu uma ijaza do xeique Hamza, e, no ano 2000, a ordem Budshishiyya possuía zawiyas em Paris, Estrasburgo, Nantes, Montpellier, Aix-en-Provence, Nice e Marselha, algumas grandes, outras pequenas.24 A de Marselha incluía um «café oriental» chamado Le Derviche aberto ao público, com uma livraria, biblioteca e loja de artesanato oriental.25 A ordem Budshishiyya é uma das mais importantes da França, e começa a se expandir para a Espanha, Inglaterra e os Estados Unidos.26 O sucesso da ordem em atrair membros na França, assim como no Marrocos, pode ser devido a suas publicações e eventos altamente eficientes, enquanto seu sucesso em manter tais membros pode ser creditado a sua abordagem mais relaxada quanto à aplicação da xaria. A razão também pode estar nas conexões: quando um ou dois membros de um grupo social se filiam a uma ordem, é provável que outros os sigam, assim como é provável que se sintam em casa ao chegar.
As publicações e os eventos da ordem Budshishiyya na França são pensados para atrair aquela parcela do público francês que está interessada em espiritualidades alternativas, mas os Tradicionalistas também são lembrados. Assim, a revista semestral que Sqali fundou em 1998, chamada Soufisme, d’orient e d’occident [Sufismo do Oriente e do Ocidente], apresenta sufis selecionados, eventos e livros. Ela contém traduções de clássicos sufis (Rumi, Abd al-Qadir alJilani) e artigos sobre temas como o dhikr e a mesquita de Qarawayyin. Assim como Zakia Zouanat apresentava o sufismo para os marroquinos francófonos em termos da «inspiração do homem pela liberdade», um editorial de Soufisme falava dos objetivos do sufismo em termos da «transformação do ser», em lugar de mencionar Deus ou o Islã.27 A primeira edição de Soufisme planejada para 2001 tratava especificamente do Tradicionalismo, divulgando antecipadamente seu tema de capa: «Sobre uma correspondência inédita de René Guénon». A ordem Budshishiyya na França tem organizado eventos como os Rencontres Méditerranéennes sur le soufisme [Encontros mediterrâneos sobre o sufismo], uma série de reuniões, filmes, exibições e concertos, realizados anualmente em Marselha e outras cidades francesas que, no ano 2000, atraiu cerca de mil pessoas a um total de trinta eventos.28 O próprio Sqali faz palestras públicas regularmente, patrocinadas por organizações como a Association Espaces/Expressions na Sorbonne, e, desde o fim da década de 1990, também por uma organização da própria ordem, chamada Association l’isthme. Dos Rencontres de 2000, participaram não apenas Sqali, mas também Khaled Bentounès, um xeique da ordem Alawiyya conhecido por muitos Tradicionalistas, além de Guéndé Jeusset, um franciscano que passou vinte anos na Costa do Marfim e que claramente tornou-se bastante universalista durante esse processo, referindo-se a um xeique tijani da região como seu mestre espiritual tanto quanto São Francisco de Assis.29 Sqali tem a permissão do xeique Hamza para «basear-se em estruturas europeias»,30 a ponto de (segundo uma fonte), por vezes, ser evasivo ao responder a perguntas sobre a necessidade de ser
muçulmano para ser sufi.31 A aplicação da xaria em questões de vestuário é relaxada, Sqali enfatiza que não deseja «vestir franceses com turbantes» e que, quando ocorrem conflitos entre membros da ordem de origem francesa e marroquina, a sua preocupação não é a de integrar franceses no meio cultural dos imigrantes do Norte da África, mas sim integrar imigrantes no meio cultural dominante da França. O sufismo, afirma ele, é como a água, tomando a forma do vaso em que é vertido. A ordem Budshishiyya não é Tradicionalista do mesmo modo que a Maryamiyya ou a Ahmadiyya, ou mesmo que a Alawiyya de Vâlsan, o são. A ênfase não é colocada em Guénon e no Tradicionalismo, mas no xeique Hamza e no sufismo. O fato de ela ter sido uma das poucas ordens sufis a ultrapassar a barreira da modernidade no mundo árabe se deve mais a seu carisma e talentos organizacionais do que ao Tradicionalismo — mas o papel desempenhado pelo Tradicionalismo em sua contínua expansão é uma medida de seu sucesso em ultrapassar aquela barreira. Nenhuma outra ordem é capaz de receber intelectuais Tradicionalistas com tanta facilidade. O xeique Hamza aceita e lidera com gosto pessoas cujo mundo intelectual deriva de Guénon e Sartre, bem como pessoas cujo universo é mais puramente islâmico.
A REPÚBLICA ISLÂMICA DO IRÃ O Tradicionalismo não desempenhou nenhum papel nos primeiros anos da República Islâmica, quando o tumulto da guerra com o Iraque e a consolidação da revolução deslocaram o foco de questões intelectuais para questões práticas. A Academia de Nasr sobreviveu,32 sem o título «imperial» — estudantes reviraram a biblioteca, apagando o odiado termo «imperial» dos carimbos nos livros e até mesmo das primeiras páginas do catálogo da revista da Academia.33 Desde então ela teve pouca importância, a não ser para o estudo acadêmico de filosofia. Hoje em dia ela recebe poucas verbas, em comparação com seu início glorioso; já não há revista nem nenhum
tipo de publicação, e seus azulejos azuis estão lascados em alguns pontos.
Reações à Revolução Alguns dos antigos membros da Academia se afastaram de Teerã e da política. O aiatolá Ashtiyani, por exemplo, mudou-se para a cidade sagrada de Mashhad, onde continuou a dar aulas sobre Mulla Sadra; ele havia sido um admirador de Khomeini como filósofo, descrevendo-o como «o selo dos filósofos e gnósticos de nosso tempo», mas não tinha interesse na Revolução.34 Hadi Sharif, antigo vice-diretor da Academia, mudou-se para Londres, onde fundou e dirigiu por muitos anos a Fundação Furqan, uma instituição que deu continuidade ao interesse da Academia em textos originais, levando a cabo a tarefa monumental de localizar, preservar e catalogar manuscritos islâmicos ao redor do mundo.35 O Tradicionalismo, contudo, permaneceu vivo no Irã. Nasr, Corbin e Chittick foram substituídos por outros antigos membros da Academia, especialmente Gholam-Reza A’vani, que assumiu o lugar de Nasr como diretor por volta de 1984, e também por outros acadêmicos tradicionais (mas não Tradicionalistas).36 Um professor universitário numa cidade nos arredores de Teerã substituiu Nasr como muqaddam da ordem Maryamiyya, mas a ordem permaneceu relativamente pequena.37 Alguns Tradicionalistas desempenharam papel ativo na política pósrevolucionária. Nasrullah Purjavadi, anteriormente desapontado pelo fracasso da Academia em mudar qualquer coisa importante, foi nomeado para o Shura-ye ali-ye Enqalab-e Farhangi (Conselho da Revolução Cultural),38 cuja principal tarefa era expurgar as universidades iranianas. Reza Davari Ardakani, que havia conhecido o Tradicionalismo ao estudar na Universidade de Teerã, e Abd al-Karim Soroush, o jovem intelectual que havia deixado Nasr e se unido a Xariati antes da Revolução, também foram nomeados para esse Conselho. Não se sabe se seus demais membros (sete no total) leram ou não Guénon, mas essas três nomeações indicam a penetração do
Tradicionalismo em importantes áreas da vida iraniana. Elas também ilustram os três tipos de Tradicionalismo encontrados no Irã. Em um extremo estão os Tradicionalistas duros, como Purjavadi, que podem ser membros da Maryamiyya ou de alguma outra ordem (Purjavadi era membro da ordem Ni’matollahiyya). No outro extremo estão pessoas como Soroush, que conhecem as ideias e autores Tradicionalistas, mas para quem o Tradicionalismo nunca foi muito interessante, ou deixou de sê-lo. Entre os dois polos, encontram-se homens como Davari: o Tradicionalismo contribuiu para formar seus pontos de vista, mas não afetou profundamente suas vidas. Eles tampouco pertencem a organizações Tradicionalistas. Essas pessoas são o equivalente iraniano de Schumacher, Tradicionalistas suaves. Os Tradicionalistas adotaram diversas posturas nas décadas seguintes, à medida que a Revolução amadurecia. Em 2001, muitos professores universitários, especialmente no campo da filosofia, eram adeptos do Tradicionalismo ou versados nele. A maioria não fazia declarações públicas de suas posições; alguns continuavam a apoiar o governo pós-revolucionário. Haddad Adil, um dos colaboradores mais próximos de Nasr, que havia sido rejeitado como ministro da Cultura logo após a Revolução devido a suas associações com Nasr e com a corte imperial,39 tornou-se um parlamentar conservador. Comentava-se que ele era muito próximo do Líder Supremo, o aiatolá Khomeini, cujo filho casou-se com a filha de Adil.40 Davari também permaneceu próximo do regime e tornou-se presidente da Academia de Ciências e um importante intelectual conservador. Outros assumiram posições opostas: Laleh Bakhtiar, uma Tradicionalista nascida nos Estados Unidos e filha de mãe americana, que havia editado uma revista feminina revolucionária islâmica chamada Mahjuba e fundado uma organização para traduzir as obras de Xariati ao inglês,41 abandou o Irã e começou uma carreira de psicóloga nos Estados Unidos, onde terminou trabalhando nas Publicações Kazi, a mais importante editora islâmica do país.42 Purjavadi ficou no país (e tornou-se diretor da Editora da Universidade do Irã) mas finalmente alinhou-se aos liberais; ele manifestou arrependimento pelo fato de que «tradição» e «Islã» haviam se tornado máscaras por trás das
quais «certas pessoas» trabalhavam por seus próprios interesses, reduzindo-os a uma insistência em detalhes sobre roupas femininas, campanhas contra o álcool e fortalecimento da xenofobia. Apesar de ter permanecido um Tradicionalista (publicando, em 1999, uma tradução ao persa do livro de Lings Sufi Saint), ele também decidiu que o Islã precisava mudar para sobreviver. Schuon e Nasr, acreditava ele, haviam propagado um tipo de ideia que, ao ser incorporada a uma ideologia, se revela destrutiva e perigosa, até mesmo para o futuro do Islã.43 Daryush Shayegan, outro antigo membro da Academia de Nasr, mudou-se para a França após a Revolução e também se alinhou com os liberais ao voltar para o Irã. Em 1977, ele publicou Asia dar barabir gharb [Ásia contra o Ocidente], uma obra que atacava o Ocidente como o lar da modernidade.44 Ao estudar sânscrito e viajar pela Índia no fim da década de 1960, porém, Shayegan já se perguntava se ainda existiam sociedades tradicionais ou apenas «civilizações em transição» para a modernidade. No fim da década de 1990 ele chegou à conclusão de que não existia o que se chama de «sociedade tradicional» e que isso não importava muito. A modernidade era «inevitável e epidêmica», mas também multicultural. Começando pelos Estados Unidos, «as culturas estão formando um mosaico [...] e não é mais possível encadeá-las numa formação linear». A religião pode coexistir no interior da modernidade, concluiu ele, já que as necessidades espirituais humanas existem independentemente do contexto — como pode ser visto pela popularidade no Ocidente dos ensinamentos espirituais do Oriente, da yoga ao budismo tibetano. A conclusão é que o combate contra a modernidade ocidental não é apenas sem sentido, mas desnecessário.45 Assim, um número suficiente de Tradicionalistas permaneceu no Irã — de ambos os lados do espectro político — para reagir ao renascimento do interesse no Tradicionalismo que teve início na década de 1990. Esse renascimento foi visível em primeiro lugar entre os alunos e professores de arquitetura: «o estilo do dr. Nasr» tornou-se objeto de grande discussão, como um estilo que não vinha do Ocidente. Um livro escrito por Laleh Bakhtiar e Nader Ardalan,
intitulado The Sense of Unity: The Sufi Tradition in Persian Architecture [O sentido da unidade: a tradição sufi na arquitetura Persa] e publicado em 1973 pela Editora da Universidade de Chicago com uma introdução de Nasr46 foi muito lido. Após meados da década de 1990, diversas novas traduções de livros Tradicionalistas foram publicadas, traduções de Guénon, Schuon, Nasr e de outros dois membros da ordem Maryamiyya, Burckhardt e Lings.47 A obra de Lings sobre Shakespeare foi amplamente discutida e admirada por pregadores populares como Husayn Iahi Qumsha’i.48 Foi relatado também um interesse crescente no Tradicionalismo entre estudantes universitários no fim da década de 1990, tanto em Qom quanto no sistema universitário tradicional.49
O debate sobre o pluralismo religioso Em 1998, o Tradicionalismo assumiu uma posição de maior destaque como efeito colateral de um debate público sobre o pluralismo religioso. Esse debate não surgiu de questões práticas a respeito do status das minorias religiosas na República Islâmica, mas devido ao status do homem que participou do início da República, Soroush, e a suas implicações para a recepção de ideias reformistas no Irã, ideias geralmente associadas à América não muçulmana. O debate sobre o pluralismo religioso foi importante como um reflexo intelectual da luta política que se desenrolava entre as forças conservadoras, representadas pelo líder supremo, aiatolá Khamenei, e as reformistas, representadas pelo presidente Khatami.50 O debate foi iniciado por Soroush em 1998, com um artigo posteriormente transformado em livro. O artigo tinha o título provocador de «Siratha-ye mustaqim» [Caminhos retos (no plural)], uma referência à Fatiha, em que os fiéis pedem a Deus para guiá-los pelo caminho reto (no singular). Em seu artigo e livro, Soroush defendia que a verdade é una. Como ele explicou a um entrevistador, «As verdades em todos os lugares são compatíveis; nenhuma verdade se choca com outra. [...] Uma verdade num canto do mundo tem de ser compatível com todas as demais verdades de outras
partes, ou então não se trata de uma verdade».51 Essa visão, ainda que possa soar desarmante em sua simplicidade, possui um corolário explicitado no título escolhido por Soroush: que mais de um caminho pode ser reto, que o Islã não possui o monopólio da verdade. O artigo e o livro de Soroush causaram alvoroço. Eles também reavivaram um interesse na teoria Tradicionalista da unidade transcendente, manifestado no período 1998-99 em uma série de periódicos publicados em Qom, começando em 1998 na revista Ma’rifat [Gnose], do Instituto de Pesquisas Imã Khomeini. Ainda em 1998, a revista Naqd ve Nazar [Comentários e Opiniões], publicada pelo Escritório de Propaganda Islâmica do Seminário [Hawza] de Qom, dedicou uma edição especial à unidade transcendente e aos Tradicionalistas.52 Quando o recém-criado Centro de Qom para Estudos sobre a Religião passou a publicar uma revista — Haft Aman [Sete Céus] em 1999, o primeiro artigo do primeiro número tratava dos pontos de vista Tradicionalistas sobre a unidade transcendente.53 Todos esses artigos apoiavam as conclusões gerais de Soroush sobre pluralismo religioso, ainda que em bases próprias e diferentes. Um Tradicionalista, Davari, esteve no campo oposto de um importante debate anterior, também iniciado por Soroush: o debate sobre o modernismo, lançado igualmente por um artigo transformado em livro, nesse caso chamado «Qabz va bast-e Te’orik’e Shari’at» [Expansão e contração na teoria da xaria]. A xaria, argumentava Soroush, é transcendente e eterna, mas sua interpretação é uma ciência profana, que deve empregar as descobertas das ciências naturais e sociais. Esse argumento gerou grande controvérsia, sendo visto — corretamente — como um ataque ao establishment religioso e como um chamado para uma revisão geral da xaria, ou seja, para sua modernização.54 Davari respondeu não exatamente ao argumento central de Soroush, mas à sua conclusão implícita, argumentando que os ocidentais não haviam modernizado sua religião, mas sim a perdido completamente. Esse não havia sido o primeiro choque entre Davari e Soroush: na década de 1980, fora Soroush que respondera a Davari. Em um livro publicado em 1982, Davari argumentava que o
Ocidente não era um organismo político, mas uma «totalidade», que essa totalidade era o resultado da substituição da tradição pela modernidade e que, portanto, não era possível pensar em adotar com segurança elementos do Ocidente. É comum associar as opiniões de Davari a Heidegger,55 mas sua visão da perda da religião no Ocidente por meio da substituição da tradição pela modernidade é caracteristicamente Tradicionalista.56
O Futuro do Tradicionalismo no Irã Davari não é o único conservador a ter opiniões Tradicionalistas. Comenta-se que alguns dos círculos mais intelectualizados da importante milícia Basij, por exemplo, defendem a volta de Nasr ao Irã como uma questão urgente. Há uma sensação de que Nasr é capaz de falar com a nova geração — que lê Freud e, claramente, é pouco comprometida com a Revolução — de uma maneira que outros não conseguiriam.57 Ironicamente, foi no momento em que o Tradicionalismo começava a assumir uma relevância pós-revolucionária que a Academia teve o destino que havia conseguido evitar durante o próprio período da Revolução: foi extinta.58 Apesar de sua extinção formal, ela havia se tornado uma instituição estabelecida na paisagem intelectual iraniana e continuou a ser chamada de «a Academia» mesmo depois de deixar de existir legalmente. A’vani e os demais fizeram o possível para desempenhar a nova tarefa de ensinar filosofia ocidental,59 apesar de ter explicado seu interesse no tema como o de um médico ao estudar uma doença.60 Por fim, ele conseguiu que a nova academia («Academia II») fosse aprovada pelo Ministério da Cultura e que ela tivesse sua sede no edifício de sua predecessora, de modo que a Academia voltou a operar, ainda que sem orçamento. Talvez de modo surpreendente, o Tradicionalismo nunca recebeu ataques dignos de nota no Irã por suas origens e conteúdos ocidentais e não islâmicos, sobretudo levando em conta que os Tradicionalistas contemporâneos são bastante francos sobre tais origens, como pode ser visto na edição especial da revista Naqd ve
Nazar mencionada anteriormente. As opiniões ali contidas causariam indignação generalizada caso fossem publicadas em árabe no Cairo, a cidade de adoção de Guénon, ou em qualquer outra parte do mundo árabe sunita, como reconheceram Tradicionalistas tanto do Marrocos quanto da Argélia. O fato de não terem causado indignação no Irã se deve, por um lado, ao cuidado dos Tradicionalistas com o material que foi traduzido ao persa e, por outro, à relativa abertura da vida intelectual iraniana. Hujit al-Islam Sadiq Larijani, um mulá que dá aulas na Madrasa Vali-yi Asr, em Qom, por exemplo, afirmou que sua única crítica a Guénon se devia ao fato de suas obras serem insuficientemente analíticas. Quanto a seu conteúdo, segundo ele, Soroush expressa ideias consideravelmente mais chocantes.61 São conhecidas apenas duas exceções à tolerância generalizada do Tradicionalismo na República Islâmica. Uma delas foi a reação de Husayn Ghaffari, filósofo na Universidade de Teerã que chegou a anunciar a intenção de escrever contra a concepção Tradicionalista de unidade transcendente das religiões, ainda que não se conheça nenhuma obra sua a respeito do assunto.62 A outra foi um artigo na revista Ma’rifat em resposta ao artigo anterior sobre a unidade transcendente. Ele atacava o Tradicionalismo sob dois aspectos: a origem de suas ideias (que eram remetidas a Encausse e ao ocultismo francês do século XIX, ainda que não a Ficino) e a contradição da teoria da unidade transcendente com as interpretações estritas e clássicas do Corão e dos hadith.63 De maneira talvez significativa, o autor desse artigo não era produto do sistema de Qom, mas um filósofo norte-americano, contratado pelo Instituto de Pesquisas Imã Khomeini após ter dado aulas na Universidade de Rice.64
TURQUIA O Tradicionalismo na Turquia ainda não produziu nenhuma das características que vimos até agora em outros lugares. Não existe nada equivalente à ordem Budshishiyya ou à Academia Iraniana de Filosofia. Em lugar disso, há um claro e crescente interesse nas obras
Tradicionalistas (alimentado por diversas traduções) entre os intelectuais — o equivalente turco do meio francófono marroquino, apesar de essa elite não estar associada ao domínio de nenhuma língua estrangeira na Turquia. Seu principal traço distintivo é aquilo que os franceses chamam de laïcisme, o tipo de secularismo desenvolvido na França que implica não a neutralidade do Estado perante a religião, mas a exclusão da religião da esfera pública. É a filosofia que tem o laïcisme como um de seus componentes que torna o interesse turco pelo Tradicionalismo algo notável. Desde a década de 1920, a República Turca esteve comprometida com uma filosofia às vezes chamada de «kemalismo», devido a Kemal Atatürk, o reverenciado pai da Turquia moderna. O kemalismo é uma filosofia não apenas de laïcisme, mas de intransigente modernização e ocidentalização, diretamente oposta à tradição e, portanto, ao Tradicionalismo. Na opinião de um Tradicionalista turco, as obras de Guénon são, no contexto da Turquia, mais subversivas do que as do aiatolá Khomeini. Apesar de referências ocasionais indicarem que alguns intelectuais e escritores leram as obras de Guénon em francês na década de 1940, além de haver menções esparsas a ele na década de 1970 (geralmente como um comentarista da modernidade),65 foi apenas em 1979 que o primeiro escrito Tradicionalista apareceu na Turquia. Tratava-se do artigo de Guénon intitulado «Le tawhid», publicado em Kubbealti Akademi Mecmuasi,66 uma revista de pequena circulação que abordava sobretudo temas literários e históricos, lida principalmente por acadêmicos e intelectuais. O tradutor do texto era Mustafa Tahrali, que, assim como Sqali, encontrara Guénon quando estudava em Paris, embora antes, na década de 1960, e que mantinha contato com Tradicionalistas na cidade, especialmente Ahmad Vâlsan, o filho mais velho de Michel Vâlsan. Ao retornar à Turquia após terminar seu doutorado na Sorbonne sobre a ordem sufi Rifa’iyya em 1973, Tahrali deu aulas no departamento de teologia da Universidade de Mármara, finalmente sendo efetivado como professor e chefe da seção dedicada ao estudo do sufismo.67 Sua tradução de 1979 foi a primeira de muitas. No fim do século XX, os turcos podiam ler a maioria dos livros de Guénon, Evola e
Eliade. Surpreendentemente, Evola era comumente visto como um autor que tratava de temas espirituais, e não políticos; suas conexões com a direita eram pouco conhecidas.68 O Tradicionalismo não teve nenhum impacto político na Turquia.69 Diversos membros da ordem Maryamiyya também foram traduzidos, especialmente Schuon, Lings e, mais importante, Nasr,70 que se tornou o autor Tradicionalista mais relevante da Turquia. No ano 2000, quase todas as suas obras encontravam-se traduzidas e dois volumes de seus artigos (alguns publicados originalmente em persa e nunca traduzidos a línguas ocidentais) foram publicados somente em turco. A razão disso (na opinião de um de seus tradutores) se devia principalmente ao fato de ele abordar diretamente a preocupação dos turcos com o Islã de uma maneira que os demais Tradicionalistas não o faziam. Com Guénon, as pessoas eram obrigadas a ligar os pontos; Nasr ligava-os ele mesmo. Nenhuma dessas traduções teve grandes tiragens, cada uma vendendo no máximo mil cópias por ano, mas todas foram publicadas por editoras mais ou menos grandes e vendidas em livrarias importantes que mantinham em estoque livros sobre o Islã.71 Existe, portanto, um interesse claro, ainda que limitado, no Tradicionalismo, similar ao que se desenvolveu na década de 1980 pelas obras de Alan Watts, o primeiro mestre de Seraphim Rose, e por livros sobre religião e ciência, tais como The Tao of Physics [O Tao da física], de Fritjof Capra (1975) e God and the New Physics [Deus e a nova física], de Paul C. W. Davies (1983), e por novas traduções de Rumi e Ibn al Arabi.72 No Marrocos, Guénon era lido junto com Camus; na Turquia, Nasr é lido junto com Watts. Um breve artigo escrito por mim sobre a história do Tradicionalismo foi traduzido ao turco por uma revista literária chamada Hece, onde foi publicado ao lado de poesias, resenhas e contos. A popularidade de Nasr é um indicador de que o Tradicionalismo turco é decididamente islâmico — mais do que o iraniano, em que a ênfase é mais filosófica. Outro indicador é que algumas obras Tradicionalistas foram editadas especialmente para o mercado turco: por exemplo, apenas o primeiro capítulo da Introduction générale à
l’étude des doctrines hindoues de Guénon veio a público (esse capítulo é uma introdução às doutrinas orientais em geral), já que a avaliação foi a de que o público turco não tem grande interesse no hinduísmo. Mesmo na ausência de tais escolhas editoriais, a tradução para o turco envolveu por vezes uma certa islamização, como quando a palavra din (religião, e, por implicação, o Islã) é usada para traduzir o termo «tradição».73 A oposição ao Tradicionalismo como algo «não islâmico» também foi maior na Turquia do que no Norte da África ou no Irã. Em 1992, Zübeyir Yetikr, um jornalista ligado ao movimento islamista, publicou um livro chamado Ìnsanin Yüceligi ve Guenoniyen Batinilik [Grandeza humana e esoterismo guénoniano],74 bem como diversos artigos na revista Haksöz investindo, segundo um Tradicionalista, contra um retorno à Idade do Bronze — não exatamente o que Guénon sugeria. O Tradicionalismo também não teria despertado grande interesse da parte do establishment religioso turco.75 Essa oposição relativamente maior pode se dever ao fato de que, na Turquia, qualquer pessoa pode ler os Tradicionalistas, enquanto no Marrocos e na Argélia o acesso encontra-se restrito àqueles com uma educação francófona. Os intelectuais islâmicos do Irã são, de modo geral, mais tolerantes com visões fora do comum do Islã do que suas contrapartes turcas ou árabes. A despeito de todas essas publicações, não existem organizações Tradicionalistas na Turquia. O fato de não haver nenhuma ordem sufi Tradicionalista importante (há meia dúzia de membros da ordem Maryamiyya, todos na cidade de Konya) segue o padrão do Irã e do Marrocos — uma ordem Tradicionalista não é necessária onde já há diversas ordens locais. A razão pela qual não há algo equivalente à ordem Budshishiyya é que talvez não existam ordens especializadas em turcos «modernos» do mesmo modo que a Budshishiyya se especializa em marroquinos «modernos», apesar de uma revista da ordem Naqshbandiyya, chamada Ìlim ve Sanat [Ciência e Arte], ter publicado um artigo Tradicionalista de Guénon em 1987,76 e de um professor de física não identificado que se tornou um xeique da
ordem Khalwatiyya no fim da década de 1990 ler os livros de Guénon com interesse. Do mesmo modo, os principais Tradicionalistas da Turquia operam todos individualmente. O responsável pela publicação de grande parte da obra de Nasr (por vezes sob pseudônimo) é Mahmud Kiliç, o mais importante dos jovens Tradicionalistas turcos e colega de Tahrali, o mais antigo Tradicionalista do país. Kiliç vem de uma família sufi — seu avô foi um xeique sufi em Kosovo. Ele parece ser um sufi mais ativo do que Tahrali, que é um «seguidor» do xeique turco Ken’an Rifa’i,77 mas apenas no sentido de seguir suas obras escritas, já que a ordem de Rifa’i foi dissolvida na década de 1920, como exigido pela legislação kamelista da época, e Rifa’i morreu em 1950. Tanto Kiliç quanto Tahrali escreveram seus próprios artigos Tradicionalistas, geralmente em revistas mais ou menos especializadas, como Kubbealti Akademi Mecmuasi (que publicou a primeira tradução de Guénon em 1979). Além disso, há dois outros acadêmicos: um deles, um popular filósofo islâmico, o outro, um conhecido psiquiatra chamado Kemal Sayar, que escreve sobre psicologia sufi.78 Dada a ausência de organizações Tradicionalistas identificáveis, é difícil estimar o tamanho do movimento Tradicionalista na Turquia. Kiliç e Tahrali recebem diversas cartas de leitores79 e conhecem um pequeno número de turcos que eles apresentaram a várias ordens. Entre eles encontra-se uma famosa diretora de cinema chamada Ayse Sasi, que se filiou à ordem Khalwatiyya. Kiliç por vezes também encaminha algumas pessoas à zawiya de Lausanne do xeique Banda bin Murad,80 um argelino da ordem Alawiyya, caso lhe pareça que as diferenças culturais entre eles e os sufis turcos possam criar dificuldades. De qualquer modo, ele recomenda àqueles que se dirigem a xeiques turcos que não discutam Guénon na zawiya. Ademais, um número desconhecido de pessoas provavelmente encontrou seus próprios xeiques sem a ajuda de Tahrali ou de Kiliç. Apesar de ser mais difícil para um habitante de Istambul em 1999 encontrar um xeique por conta própria do que para um habitante de
Fez ou do Cairo, ainda é muito mais fácil do que para alguém que mora em Roma ou Los Angeles. O impacto do Tradicionalismo na Turquia foi, portanto, duplo: por um lado, ele conduziu um número desconhecido de indivíduos ao sufismo, por outro, introduziu ideias Tradicionalistas no discurso da nova geração de intelectuais ocidentalizados desencantados, o mesmo tipo de pessoa que se sente atraída pelo Tradicionalismo no Ocidente. Essa é uma classe cuja importância vem crescendo na Turquia. Assim como na Rússia, a importância final do Tradicionalismo na Turquia ainda permanece em aberto.
RÚSSIA Existem duas correntes principais de Tradicionalismo islâmico na Federação Russa, uma em Moscou, liderada por Haydar Jamal, e outra na Chechênia, liderada por Khozh-Ahmed Nukhaev.81 Jamal, como visto no capítulo 12, foi membro do círculo de dissidentes de Golovin na década de 1960. Após 1991, o seu Tradicionalismo tornouse primariamente político — islamista, mais do que islâmico82 — e, com a passagem do tempo, mais islamista do que Tradicionalista. Em contraste, Nukhaev (conhecido pela maioria dos russos não como um Tradicionalista, mas como um mafioso, bandido e terrorista checheno) desenvolveu um Tradicionalismo islâmico também político, mas que permaneceu Tradicionalista sem ser islamista.
Haydar Jamal Como vimos no capítulo 12, Haydar Jamal filiou-se ao Pamyat’ e o abandonou junto com Dugin. Ele se tornou então um dos membros fundadores do Partido do Renascimento Islâmico (PRI), criado em 1990 por Ahmad Qadi Aktaev em Astracã. Ainda que longe de ser a maior ou a mais importante organização política de muçulmanos na antiga União Soviética, o PRI era o único partido importante a cobrir toda a Federação Russa; todos os outros grupos tinham uma base
étnica ou regional. O PRI possuía, assim, importância real na própria Rússia, ou seja, fora das repúblicas muçulmanas.83 Inicialmente, Jamal foi o ideólogo do PRI, editor de seu jornal, chamado Wahdah (Unicidade) e diretor de seu centro de pesquisas em Moscou. Os primeiros números de Tavhid (Unidade), uma revista de pequena circulação publicada pessoalmente por Jamal na época, eram claramente Tradicionalistas em seu tom. No primeiro deles, Jamal analisou a situação do Islã em termos Tradicionalistas, acrescentando um ângulo histórico raramente visto, derivado, nesse caso, de escritos islamistas. O Islã, indicava ele, existia no tempo e estava sujeito ao declínio, como qualquer outra coisa. Além disso, não existiram governos realmente islâmicos desde a morte do Profeta, e certamente nenhum desde os mongóis. As coisas haviam piorado muito desde então, uma vez que as «elites pós-coloniais» no mundo muçulmano eram compostas de nacionalistas (e, portanto, inimigas do Islã universal) ou de «cosmopolitas ateus», também inimigos do verdadeiro Islã.84 Um artigo publicado na revista de Dugin chamada Hyperborea em 1991 revela a dívida de Jamal para com Evola. Após comparar o significado existencial da morte no Tradicionalismo evoliano com o significado metafísico da morte (o retorno final a Deus) no Islã, ele argumentava que «o Islã autêntico e a direita autêntica são não conformistas; seu caráter vital consiste na oposição, no desacordo e na não identificação». René Daumal, o pintor surrealista mencionado no capítulo 4, teria aprovado. Para um cristão, «Deus é quase sinônimo de hiperconformismo», enquanto o Islã é «um protesto [...] contra a redução de Deus a um consenso». A direita política e o Islã combatem as mesmas armadilhas do mundo, incluindo a autodeificação e o «elitismo político».85 O islamismo Tradicionalista revelou-se demasiado extremo para muitos. O PRI rachou em 1992 sobre a questão das relações com Iéltsin e seu projeto de democracia russa: a maioria dos membros do partido se alinhou com o projeto, enquanto Jamal liderou uma minoria mais radical que saiu do partido e se moveu na direção de alianças com islamistas radicais no Oriente Médio e com a oposição doméstica a Iéltsin, esta última sob a forma do Partido Comunista da
Federação Russa, comandado por Gennadi Ziuganov, e dos «patriotas» de direita de Aleksandr Prokhanov e outros.86 Ambos eram colaboradores de Jamal de seu tempo no Pamyat’ e ambos também colaboraram com o outro grande Tradicionalista russo, Dugin. Essa aliança «vermelho-marrom-verde» será discutida mais adiante. Os contatos de Jamal no Oriente Médio eram com homens como Hasan al-Turabi, o líder do Front Islâmico Sudanês, por muitos anos a eminência parda por trás do regime militar islamista no Sudão. Assim, o enquadramento institucional de Jamal deixou de ser o PRI e passou a ser o Comitê Islâmico da Rússia — uma rede com tais comitês foi criada sob a supervisão de al-Turabia em uma conferência realizada em Cartum em 1993 com o objetivo de unir os líderes de diversos movimentos islamistas radicais, como o Front Islâmico Nacional do próprio Turab, o Hamas na Palestina e o Hezbollah no Líbano. Jamal tornou-se o líder da filial moscovita desse Comitê Islâmico.87 Em uma entrevista realizada em 1999, ele mencionou contatos com o Hamas, Hezbollah, Lobos do Islã (um grupo checheno) e o Talibã.88 Na época, Jamal era uma das duas ou três vozes mais importantes do islamismo na Federação Russa. Assim, ele ficou conhecido como um «wahhabita», seguindo o uso padrão não acadêmico desse termo na Rússia. Dada a conhecida antipatia do wahhabismo saudita pelo xiismo, isso levou algumas pessoas a se perguntarem como Jamal, sendo muçulmano xiita, poderia ser um wahhabita. Na realidade, a contradição era apenas aparente: Jamal nunca fora wahabbita no sentido preciso e delimitado do termo. Durante os anos Iéltsin, suas conexões políticas na Rússia foram com a oposição, sobrepondo-se às de Dugin. Em meados de 1999, o jornal Zavtra de Prokhanov publicou uma entrevista com Jamal, anunciando a formação de uma frente comum «verde e vermelho», entre o Comitê da Rússia do próprio Jamal e Movimento em Defesa do Exército, da Indústria de Defesa e das Ciências Militares, uma grupo independente de oposição alinhado com o CPRF e liderado pelo presidente do Comitê de Segurança do Estado da Duma com a ajuda
de um general da reserva de origem cossaca chamado Albert Makashov.89 A improvável aliança entre um movimento islamista radical e um movimento em defesa do exército russo quando este entrava em sua segunda rodada de conflito com muçulmanos, às vezes islamistas, no Cáucaso90 tornou-se possível devido a uma variedade do neoeurasianismo. Como um oficial da reserva e representante local do Movimento em Defesa do Exército afirmou na época: «Somos todos filhos da mesma mãe, sem levar em conta raça ou religião. O nome de nossa mãe é Rússia».91 Para o Movimento em Defesa do Exército, aqueles que matavam soldados russos no Cáucaso eram rebeldes, não chechenos ou muçulmanos; as medidas apropriadas deviam ser tomadas contra rebeldes, sejam eles chechenos, russos, cossacos, muçulmanos ou ortodoxos. A guerra travada pelo exército em 1999 decididamente não era contra os muçulmanos como tais. Para Jamal e para o Movimento em Defesa do Exército, o verdadeiro inimigo era Iéltsin, cujo governo era acusado por Makashov de não ter tomado as medidas adequadas após a primeira guerra da Chechênia para resolver a situação, além dos israelenses: «Um movimento está sendo feito para provocar um conflito entre a ortodoxia e o Islã», declarou Makashov numa entrevista coletiva, passando a culpar «aqueles no Oriente Médio que não estão satisfeitos em serem vizinhos do mundo árabe».92 De maneira similar, para Jamal o conflito no Cáucaso servia aos interesses de Iéltsin e dos israelenses. Guerras no exterior desviavam a atenção dos fracassos domésticos do presidente russo e levavam a uma maior cooperação entre a Rússia e Israel, o que ajudava as tentativas israelenses de extraditar alguns islamistas árabes que viviam na Rússia, servindo assim ao «lobby atlantista».93 Essas explicações fazem eco às opiniões de grande parte da oposição, além de muitos russos comuns — os russos são atraídos com frequência por teorias da conspiração.94 O islamismo radical e o Tradicionalismo são, em geral, incompatíveis. Eles têm visões fundamentalmente diferentes da tradição, do futuro da humanidade e, é claro, das outras religiões
além do Islã.95 Possivelmente por isso, Jamal modificou sua posição a ponto de não poder mais ser descrito como puramente Tradicionalista — na realidade, Dugin descreveu-o, numa conversa privada, como «pós-Tradicionalista».96 Jamal é um crítico da aparente contradição entre a prática islâmica de Guénon e a concentração de seus escritos no hinduísmo,97 e também criticou Evola, ao menos de maneira indireta, por confundir o político com o espiritual.98 Assim, Jamal deve ser visto como uma figura para quem o Tradicionalismo foi um trampolim, e não o destino final. Apesar disso, como apontado no capítulo 12, ele permaneceu como um ponto de referência para os Tradicionalistas russos com interesse no Islã. Durante a presidência de Putin, à medida que diminuía a importância da oposição da era Iéltsin, Dugin precisou de novos aliados. Uma ligação próxima com islamistas radicais no exterior tornou-se menos vantajosa, uma vez que o grande público associava cada vez mais o terrorismo checheno com o islamismo, algo que também acontecia no Kremlin. Depois de 2001, portanto, Jamal fundou um nova organização, com o grandioso nome de Liga Socialista Internacional. Essa Liga é, na realidade, mais anarquista do que socialista, atacando o «sistema» em nome dos «sem-teto planetários» que aquele despreza. Os «sem-teto planetários» incluem todas as diásporas e forasteiros, não apenas os muçulmanos na Rússia. A Liga defende a «liquidação» do atual regime «lumpemburocrático» russo e a substituição do Estado por grupos locais em grande medida autônomos.99 Os ecos das propostas de Dugin de uma estrutura política local são apenas uma resposta similar a problemas reconhecíveis pelo público em geral. Nos anos Putin, Jamal e Dugin não se moviam mais nos mesmos círculos. Não parece que a Liga Socialista Internacional chegará algum dia a ser grande coisa. Ela é provavelmente mais notada devido à sua ligação com Jamal do que o contrário. Apesar de tudo, Jamal mantém certa fama na imprensa russa (ainda que não tanto quanto Dugin). Finalmente, essa fama pode se dever menos ao que ele representa do que à sua disponibilidade para dar entrevistas, bem como à sua facilidade para produzir sempre uma resposta que se ajuste ao estereótipo generalizado do islamismo radical.
Nukhaev O Tradicionalismo de Khozh-Ahmed Nukhaev é de um tipo muito diferente, e veio à tona apenas em 1998, quando ele tinha 44 anos de idade. Nukhaev é um defensor do que chama de «Tradicionalismo hanífico». «Hanífico» faz referência a hanaf, o termo islâmico para os adoradores primordiais do único Deus verdadeiro (incluindo, sobretudo, Abraão).100 Logo, o hanifismo é uma alternativa ao salafismo; os salaf eram os muçulmanos originais, contemporâneos e imediatamente posteriores ao Profeta, muito enfatizados pelos islamistas, que quase nunca mencionam os hanaf. Desse modo, Nukhaev não é um islamista, rejeitando o salafismo e o wahhabismo. Seu passado não se parece com o de nenhum outro Tradicionalista. Ele atraiu a atenção do público pela primeira vez durante a glasnost, após se formar na Universidade de Moscou, como um dos quatro líderes da máfia chechena,101 o grupo criminoso com raízes étnicas que, por volta de 1988, havia esmagado os demais grupos não chechenos e conquistado o monopólio do crime organizado em Moscou.102 Nesse período, Nukhaev era conhecido por «usar sempre ternos italianos chiques, carregar uma bengala com a ponta de prata e se deslocar num Mercedes blindado».103 Após o colapso da União Soviética, os recursos de Nukhaev foram colocados a serviço do movimento independentista checheno. Ele combateu os russos durante o primeiro cerco de Grozny (1995) e foi vice-primeiro-ministro da Chechênia por um breve período. Em 1997, à medida que surgiam diferenças entre os líderes do lado checheno durante a primeira guerra da Chechênia, Nukhaev passou a ocupar o cargo menos importante de presidente da Câmara de Comércio Internacional do Cáucaso. A partir dessa base pouco promissora, ele tentou criar um Mercado Comum do Cáucaso, baseado no Mercado Comum Europeu original. Esse projeto obteve um apoio amplo, especialmente do sobrinho do presidente Shevardnadze, da Geórgia, do filho do presidente Haidar Aliev, do Azerbaijão, e de Lord McAlpine, um empresário britânico com bons contatos políticos. Se a Chechênia tivesse conseguido sua independência definitiva, o projeto
poderia ter se tornado realmente importante. O que aconteceu, na realidade, foi que ele ruiu em 1998 e o único impacto duradouro que deixou foi o de atrapalhar as relações russo-georgianas: comenta-se que Putin nunca perdoou o envolvimento de Shevardnadze com Nukhaev, que ele via como um financiador do terrorismo.104 Um colaborador próximo de Nukhaev nesse projeto foi Maciej (Mansur) Jachimczyk, um banqueiro polonês convertido ao Islã, leitor de Guénon e que se uniu à causa chechena. A educação de Jachimczyk foi pouco comum para um banqueiro. De família judia, ele se converteu ao catolicismo e estudou na Academia Papal de Teologia da Cracóvia, sua cidade natal, passando aos estudos de pósgraduação em teologia na Universidade de Oxford. Depois de formado, retornou à Polônia em 1989 (após a vitória do Solidariedade) como empregado de um pequeno banco de investimentos inglês, responsável pela Polônia e Ucrânia, mas também com tarefas que o levavam ocasionalmente a Moscou. Lá, ele conheceu alguns chechenos, por quem se interessava desde que lera, ainda em Oxford, o livro de Bennigsen e Wimbush chamado Mystics and Commissars [Místicos e comissários].105 Esses contatos levaram-no a abrir um Escritório de Informação Chechena na Cracóvia em 1994, com o beneplácito do prefeito da cidade, um antigo membro do Solidariedade, evidentemente simpático a todos os rebeldes contra Moscou. Em 1996, Jachimczyk conheceu Nukhaev em Istambul. No mesmo ano, ele viajou à Chechênia, tornando-se muçulmano no caminho, em Abu Dhabi, e uniu-se a Nukhaev.106 Durante o ano de 1997, Jachimczyk trabalhou com Nukhaev no projeto do Mercado Comum do Cáucaso, acrescentando sua experiência mais ortodoxa em finanças à de seu parceiro, além de intermediar contatos entre Nukhaev e figuras influentes no Ocidente e em Israel. Quando viajavam juntos, porém, os dois não falavam apenas de finanças. Também conversavam sobre religião, e sobre a sociedade; Jachimczyk chamou a atenção de seu companheiro para alguns aspectos da história islâmica que são mais conhecidos na Universidade de Oxford do que em Grozny, especialmente para a relação existente entre a xaria e a adat (lei tribal consuetudinária), e
a «Constituição de Medina»,107 um antigo documento que parece criar uma confederação tribal multirreligiosa sob o comando do Profeta Maomé, incluindo judeus e muçulmanos. A Constituição de Medina foi lida com grande interesse por estudiosos europeus do Islã no fim do século XIX, mas é quase desconhecida no mundo islâmico. Segundo Jachimczyk, a conversão de Nukhaev ao Tradicionalismo hanífico ocorreu em 1998, após uma viagem a Israel, na qual os dois visitaram os lugares sagrados das três religiões, além de realizarem reuniões de negócios. Nukhaev ficou impressionado pela hostilidade armada entre as denominações em Israel e concluiu que, na melhor das hipóteses, algo parecido aguardava a Chechênia se nada fosse feito para evitá-lo. Outro fator, não destacado por Jachimczyk, foi, sem dúvida, o mergulho da Chechênia autônoma na segunda guerra chechena, que começou em 1999. Apesar da conversão de Nukhaev ao Tradicionalismo, ele deu continuidade a algumas de suas atividades anteriores durante essa guerra, fornecendo assistência financeira (provavelmente obtida por meios ilícitos) a Aslan Maskhadov.108 O Tradicionalismo de Nukhaev, formulado com a ajuda de Jachimczyk, é único no fato de substituir a dicotomia original de Guénon entre tradição e modernidade por uma divisão tripartite. Nukhaev divide a tradição entre o «mundo primordial» do barbarismo tribalista (para ele, um termo positivo) e o «velho mundo» do estatismo civilizado.109 Entre esses, o barbarismo tribalista é «sinônimo de Tradicionalismo normativo», enquanto o estatismo civilizado tem algo do tradicional, estando pelo menos no «caminho retorcido da história». A modernidade é expressa como selvageria consumista, encontrada no Novo Mundo, isto é, no mundo atlântico de Dugin. A selvageria consumista é a «selvageria tecnocrática que emerge em pontos da realidade virtual que se separaram do caminho retorcido da história, que se encontra para além de suas fronteiras e que, pela sua própria natureza, não tem nada em comum com o Velho Mundo, menos ainda com o Mundo Primordial». O Novo Mundo é, claro, o inimigo do Primordial: Nukhaev nota que os Estados Unidos devem sua origem «ao genocídio das tribos indígenas e dos povos da América». Os Estados Unidos são o principal expoente da
selvageria consumista. O principal expoente do estatismo civilizado é a Rússia, abençoada que é pela herança espiritual para a qual Dugin chamou a atenção. O expoente mais imediato, ainda que não necessariamente o mais notável, do mundo primordial do barbarismo tribalista é a própria Chechênia de Nukhaev. As origens da divisão proposta por Nukhaev em barbarismo, civilização e selvageria não estão claras. Algumas pessoas veem ecos de Engels,110 mas parece improvável que ele tenha lido Engels. Quando estudante na Universidade de Moscou, Nukhaev deveria ter lido Engels, mas provavelmente não cumpriu essa obrigação.111 Uma alternativa é Bachofen, fonte comum de Engels e Evola, bem como de Dugin. Nukhaev e Jachimczyk claramente liam Dugin. Nukhaev associa diversas características morais e espirituais aos três mundos. O bárbaro do mundo primordial, «baseando-se em imperativos morais absolutos derivados da Revelação, está invariavelmente preparado para sacrificar sua vida e propriedade por valores espirituais naturais». Por outro lado, o consumidor do Novo Mundo, «cuja natureza imoral é baseada na economia, nunca está preparado para sacrificar a vida ou arriscar sua propriedade em nome de quaisquer valores espirituais». Existem, no entanto, «dissidentes» até mesmo no Novo Mundo de selvageria consumista. Nukhaev usa sua divisão tripartite para explicar os conflitos. O que acontece na Chechênia é um conflito entre o barbarismo tribalista e a civilização estatista, entre o Velho Mundo e o Mundo Primordial, algo possível, mas não inevitável ou desejável. O conflito checheno é complicado pelo envolvimento do «modernismo de estilo ocidental sob a forma de globalismo» e do «modernismo de estilo oriental sob a forma de fundamentalismo islâmico». O fundamentalismo islâmico (ou islamismo, como o chamo) é frequentemente tido como medieval, e não modernista, mas diversos acadêmicos e comentaristas ocidentais concordariam com os ataques sarcásticos de Nukhaev contra a «interpretação politizada da Umma do Profeta Maomé como uma espécie de Protoestado islâmico, preordenado pelas leis do progresso para se desenvolver no caminho histórico estatista ao longo das etapas de transição do império e do Estadonação até culminar em um ‹Estado islamista mundial›»,112 feita pelos
islamistas, ainda que os acadêmicos colocassem a questão de modo um pouco diferente. Todos os islamistas rejeitariam essa interpretação, é claro. O islamismo é também parte importante de um conflito ainda maior — aquele travado entre o Ocidente e o Islã, ou entre a selvageria e o barbarismo primordial.113 Segundo Nukhaev, a culpa desse conflito vem igualmente do desejo dos Estados Unidos «de transformar o Velho Mundo e o Mundo primordial em apêndices fornecedores de matérias-primas» e do comportamento dos islamistas, que alimentam a percepção doméstica norte-americana de uma «ameaça islâmica» existencial, justificando assim a agressão administrada pelas «elites do capital, da informação e do poder». Se os islamistas se tornassem Tradicionalistas, essa «ameaça» desapareceria, e, com ela, a intervenção dos Estados Unidos na Eurásia. Nukhaev usa sua divisão tripartite não apenas para explicar os conflitos, mas também para propor uma nova versão da sociedade islâmica ideal. Ele rejeita o Estado sob qualquer uma de suas formas, distanciando-se assim de todas as demais versões conhecidas do islamismo. Em seu lugar, ele propõe uma sociedade baseada na Constituição de Medina, uma confederação de tribos governada pela xaria e pelo adat (costume tribal) checheno, que ele enxerga como essencialmente compatíveis, ainda que alguns ajustes sejam necessários aos dois. O adat checheno, por exemplo, proíbe o casamento de primos de primeiro grau. Uma vez que a xaria permite esse tipo de casamento, todos os Ulemas concordariam com Nukhaev para permiti-lo. Nenhum Ulema, no entanto, concordaria com suas objeções ao apedrejamento em caso de adultério, exigido (ao menos teoricamente) tanto pela xaria quanto pela adat chechena.114 As análises de Nukhaev não encontraram público fora dos círculos Tradicionalistas, como ele mesmo se queixou.115 Os anciãos de seu próprio clã, o Yalhoy, supostamente aceitaram seu modelo em um encontro realizado em Baku por volta de 2002, mas o clã Yalhoy não é um dos mais importantes.116 Se Nukhaev fosse famoso na Chechênia como comandante militar, suas opiniões poderiam ter
atraído mais atenção, mas, como seu papel foi sobretudo financeiro, ele nunca teve grande fama.117 A Chechênia do início do século XXI não era um lugar de grandes debates intelectuais; a única educação à que a maioria dos chechenos tinha acesso era informal e primariamente militar. No entanto, Nukhaev atraiu mais atenção na própria Rússia, com uma proposta de acordo de paz para a Chechênia apresentada pela primeira vez no importante semanário Argumenty i fakty. Sua proposta de paz estava baseada numa concessão mútua inteligente. Ele sugeria a partição da Chechênia numa parte Norte e numa parte Sul, com a Chechênia do Norte aceitando o controle russo, ao mesmo tempo que a Rússia concedia uma independência de facto à parte Sul do país, não como Estado soberano, algo que Moscou buscaria evitar a quase qualquer custo, mas como um «não Estado», sob «a ordem social tribal do sistema teip [tribal checheno])».118 A comparação com os antigos e satisfatórios acordos que governam a fronteira provincial noroeste do Paquistão não foi feita, mas poderia ter sido. A proposta de Nukhaev não era apenas pragmática, mas estava baseada também no Tradicionalismo hanífico. A ordem que Nukhaev propunha para a Chechênia do Sul era o barbarismo tribal, preferível ao estatismo civilizado que ele estava preparado para aceitar no Norte, o que representava um triunfo e não uma derrota para a Chechênia. Esse arranjo também representava uma base potencial para uma aliança entre a Rússia civilizada estatista e o barbarismo tribal checheno, que poderia servir como germe de uma aliança russo-islâmica do tipo defendido por Dugin. A proposta de Nukhaev foi divulgada em Moscou por Dugin, e também pelo professor Sergei Arutiunov, chefe do Departamento do Cáucaso no Instituto de Antropologia Social e Etnografia da Academia de Ciências da Rússia. Dugin foi apresentado por seu então número dois, Peter Suslov, um ex-oficial da SVR, a Nukhaev, que Suslov claramente conhecia já havia tempos. A compreensão que Nukhaev possuía do neoeurasianismo causou uma boa impressão em Dugin, que também aceitou em linhas gerais o argumento de que a sociedade chechena representava a tradição primordial. Dugin convidou Nukhaev para falar em uma conferência organizada por ele,
com o tema «Ameaça islâmica ou ameaça ao Islã» em Moscou em 2002, após obter garantias sobre a segurança do checheno. Mais tarde, a Arktogeia publicou a palestra de Nukhaev em livro, com o título Vedeno ili Vashington [Vedeno ou Washington]119 O apoio de Arutiunov se devia à similaridade entre o plano de paz de Nukhaev e outro que o próprio Arutiunov havia criado e proposto pessoalmente ao presidente Putin no ano 2000, apesar de ele não ter se baseado em nenhum tipo de Tradicionalismo, mas no modelo de reservas indígenas dos Estados Unidos. Um elemento que também contribuiu para o apoio de Arutiunov foi o generoso financiamento vindo da Fundação Sociedade Fechada, uma alternativa Tradicionalista à Fundação Sociedade Aberta de George Soros, sediada em Amsterdã e controlada por Jachimczyk. A Fundação Sociedade Fechada financiou também um Instituto Internacional de Estudos do Cáucaso, sediado na Geórgia, igualmente dirigido por acadêmicos sérios sem outra fonte de financiamento para seu trabalho.120 A atividade mais notável financiada pela Fundação Sociedade Fechada foi uma grande conferência realizada no Le Meridien Clube de Campo de Moscou em novembro de 2003. Ela foi organizada por Arutiunov com a presença de quase 250 acadêmicos, a maioria da Rússia, alguns do Cáucaso e cerca de trinta do Ocidente. Dugin foi um dos oradores, e um discurso de Nukhaev foi lido aos delegados.121 Devido à posição de relevo do Tradicionalismo e do neoeurasianismo numa suposta conferência acadêmica, muitos dos participantes ocidentais sentiram que foram enganados para prestar seu apoio a uma causa política altamente duvidosa que não aprovavam.122 O plano de paz de Nukhaev foi levado ao público também em 2003, em uma conferência de alta categoria organizada pelo American Enterprise Institute em Washington D.C., onde, aparentemente, não atraiu grande interesse.123 No entanto, Nukhaev recebeu alguns comentários favoráveis do influente falcão Daniel Pipes,124 apesar de parecer improvável que Pipes tenha entendido plenamente o Tradicionalismo hanífico.125
O plano de paz de Nukhaev, porém, não interessou ao Kremlin. Qualquer tipo de descentralização era o oposto simétrico da abordagem de Moscou na época. Em junho de 2005, Nukhaev foi acusado in absentia pela Procuradoria de Moscou pela morte de Paul Klebnikov, um jornalista norte-americano assassinado na cidade no verão anterior,126 que havia publicado um livro sobre o checheno em 2003 intitulado Conversas com um bárbaro (em russo). Nukhaev, dizia-se, não havia gostado do livro de Klebnikov. Outros sugeriam que ele não passava de um bode expiatório útil, e que Klebnikov fora assassinado por outras pessoas devido a um projeto totalmente distinto no qual trabalhava no momento de sua morte. Qualquer que seja a verdade, Nukhaev foi obrigado a se esconder (no momento em que este livro foi escrito, havia dúvidas se ele continuava vivo). A Fundação Sociedade Fechada fechou as portas. Jachimczyk mudou-se para o Cazaquistão, onde voltou a trabalhar. O Tradicionalismo hanífico de Nukhaev mostra uma vez mais a extensão da influência do Tradicionalismo na Rússia. Além disso, mostra também o potencial para desenvolvimentos posteriores contido no Tradicionalismo do próprio Guénon. Mais interessante ainda é a substituição da dicotomia guénoniana por uma divisão tripartite feita por Nukhaev. De certa forma, isso é algo quase tão radical quanto a aplicação do Tradicionalismo ao matriarcado feito pelo grupo Aristasia. Mas existem também continuidades: a identificação realizada por Nukhaev entre o tribal e o primordial ecoa a descoberta de Schuon do primordial entre os povos indígenas dos Estados Unidos (apesar de Nukhaev nunca ter lido Schuon).
MUTTI Jamal não é o único muçulmano Tradicionalista que é também um islamista radical. Outra figura do tipo é o italiano Claudio Mutti, um antigo seguidor de Franco Freda, o seguidor de Evola que propunha a espontaneidade armada. Mutti, que perdeu o emprego na Universidade de Bolonha e cumpriu pena de prisão por suas atividades terroristas, voltou sua atenção para questões mais
espirituais no início da década de 1980 e se converteu ao Islã. Dois fatores influenciaram essa conversão: os escritos de Guénon, aos quais ele havia sido levado pelas obras de Evola, e o coronel Gaddafi. Guénon o havia convencido da necessidade de um «caminho de realização», algo que Evola não havia conseguido. Gaddafi é uma fonte menos comum. Freda tinha interesse em Gaddafi e no Islã; ele escreveu na revista Quex sobre a exigência de Evola de uma base espiritual para a ação em termos da relação entre a «jihad menor» (o conflito armado) e a «jihad maior» (o combate para subjugar o simesmo inferior), e publicou uma tradução de alguns dos discursos de Gaddafi.127 Essa tradução havia sido feita por Mutti, provavelmente do francês — Mutti, que havia dado aulas de húngaro e romeno na Universidade de Bolonha antes de sua demissão, não sabe árabe. Originalmente, ele via Gaddafi como o líder de uma jihad de base espiritual contra o mundo moderno e o Islã «como a força espiritual que pode animar e dirigir a ‹revolta contra o mundo moderno›». Apesar de ter mudado de ideia sobre Gaddafi, ele nunca mudou de opinião sobre o Islã.128 O Islã de Mutti é militante e político. Ele publicou traduções ao italiano das obras de Jamal, assim como do aiatolá Khomeini. O fato de o Islã estar assentado sobre seu antigo evolianismo é simbolizado pela decoração de seu escritório, predominantemente islâmica, mas que incluiu um estandarte das SS atrás de seu arquivo. Mutti também realizou tentativas pouco comuns de «europeizar» a história do Islã. O Império Otomano, aponta ele, foi europeu, além de árabe e asiático, com uma série de grão-vizires, almirantes e generais de origem europeia. Alexandre, o Grande é uma figura islâmica (como Dhu’l-Qarnayn) tanto quanto europeia, e Platão foi incorporado ao pensamento islâmico e ao europeu. Mutti chega até a identificar um dos companheiros do Profeta Maomé, Suhayb al-Rumi, como europeu.129 Durante a década de 1990, Mutti foi importante como um dos pontos focais na rede internacional do Tradicionalismo do fim do século XX, conectando grupos menores na Romênia, Hungria, Itália, França e Rússia. Durante os primeiros anos do século XXI, ele prosseguiu em suas funções, envolvendo-se cada vez mais na
promoção do neoeurasianismo de Dugin. Desde 2004, ele publicou a revista Eurasia: Rivista di studi geopolitici, para a qual também escrevia.
AVALIAÇÃO O papel desempenhado pelo Tradicionalismo no mundo islâmico e na Rússia difere fundamentalmente do que geralmente desempenhou no Ocidente. No Ocidente, os grupos Tradicionalistas são, em sua maior parte, pequenos e isolados, e o Tradicionalismo permanece marginal, ainda que alguns de seus adeptos tenham falado de maneira efetiva ao público ocidental. Com raras exceções, os livros de maior sucesso do Tradicionalismo ocidental têm sido da variedade «suave», sem tratar do Tradicionalismo em si. O Tradicionalismo puro interessou apenas a uma pequena minoria, e suas preocupações são geralmente marginais no contexto do discurso geral do Ocidente. No Irã, na Turquia e na Rússia, porém, os Tradicionalistas encontram-se muito mais integrados em suas sociedades e fazem parte do discurso mainstream, ou, no caso da Rússia, no menos importante de dois discursos mainstream. Isso não se aplica tanto ao Marrocos, onde o padrão se aproxima mais do Ocidente, porque o elemento da sociedade marroquina que tem interesse no Tradicionalismo é, ele mesmo, mais próximo do Ocidente. Parece paradoxal que uma filosofia que tem suas origens no Renascimento italiano, e que foi desenvolvida na França e na Suíça do início do século XX, esteja mais em casa no Irã, na Turquia e na Rússia de hoje do que no Ocidente. Um Tradicionalista poderia argumentar que esse aparente paradoxo reflete a diferença entre a modernidade ocidental e a tradição islâmica. Tal explicação não é de todo satisfatória, porém. Grande parte do Irã era bastante moderno no momento da Revolução, e a Turquia é o país mais conscientemente moderno do mundo islâmico. A Rússia, apesar de diferente do Ocidente sob muitos aspectos, também é um país moderno, e não «tradicional». Os países mais tradicionais do mundo islâmico foram os que demonstraram menos interesse no
Tradicionalismo. Guénon é desconhecido no Egito hoje em dia, e o árabe é um dos poucos idiomas importantes em que quase não há obras Tradicionalistas disponíveis. E os Tradicionalistas argelinos e marroquinos não acreditaram, no fim das contas, que valia a pena disponibilizá-las nesse idioma. O Irã e a Turquia, em contraste com o Egito e o Marrocos não francófono, possuem algo equivalente ao público ocidental de Guénon, reduzido mas importante. A Rússia possuiu um público maior. Não é a presença da tradição no Irã e na Turquia que permite a entrada do Tradicionalismo no mainstream intelectual, mas a presença da modernidade. De maneira similar, não é a presença da modernidade que exclui o Tradicionalismo do discurso mainstream ocidental, mas sim a ausência de qualquer interesse verdadeiro em algumas das questões centrais que interessavam a Guénon. Uma dessas questões é a que começa a ser colocada agora na Turquia pela primeira vez desde o século XIX, a mesma questão que é de suma importância na Rússia: Oriente ou Ocidente? Outra delas é central para o Irã atualmente: modernização ou isolamento em nome da religião tradicional? Essas são as questões que os escritos originais de Guénon abordavam.
I Partes desta seção foram originalmente apresentadas no encontro anual da Associação de Estudos do Oriente Médio, São Francisco, CA (17-20 de novembro, 2001) sob a forma de um artigo intitulado «A Academia Imperial Iraniana de Filosofia e o pluralismo religioso na República do Irã». Uma versão desse artigo foi publicada em Historian in Cairo: Essays in
Honor of George Scanlon, org. Jill Edwards (Cairo: AUC Press, 2002).
15. CONTRA A CORRENTE
Nos anos anteriores à publicação de seu livro Crise du monde moderne (1927), René Guénon construiu uma filosofia antimodernista, o Tradicionalismo, que floresceu sobretudo após a década de 1960. Antes da Segunda Guerra Mundial, o Tradicionalismo era um pequeno movimento intelectual (Guénon no Cairo e seus diversos correspondentes) com uma única organização ativa, a ordem sufi liderada por Frithjof Schuon na Basileia. No início da década de 1960, o movimento intelectual havia perdido o seu centro e vinha se tornando cada vez mais diversificado. Havia um punhado de organizações em atividade, a maioria sufis, algumas maçônicas. Então, ao longo das quatro décadas seguintes, a ordem de Schuon floresceu, para em seguida fracassar parcialmente. Eliade transformou o estudo acadêmico das religiões, terroristas inspirados pelo barão Julius Evola promoveram o caos na Itália e o Tradicionalismo entrou na cultura geral do Ocidente. Por fim, ele apareceu no Irã, na Turquia e na Rússia. No fim do século XX, havia tantas organizações Tradicionalistas, ou parcialmente Tradicionalistas, que já não era possível contá-las. Pode parecer estranho que o Tradicionalismo tenha se beneficiado da década de 1960, uma década em que a modernidade avançou visivelmente. Na realidade, isso não é tão extraordinário. Por um lado, a alienação da modernidade parece avançar junto com a própria modernidade. Por outro, o avanço da modernidade exige a rejeição do status quo, e aqueles que rejeitam o presente podem invocar o passado tanto quanto o futuro. O Renascimento produziu algo novo ao se voltar para o passado, para o período clássico; a Reforma fez o mesmo com o Cristianismo dos primeiros séculos. A modernidade pode ser produzida pelo antimodernismo, e o antimodernismo pela modernidade. Como demonstrou Douglas Allen, a obra de Eliade possui muitos traços em comum com o pós-
modernismo; o que Allen diz de Eliade também se aplica ao movimento do qual ele veio. Tanto o Tradicionalismo quanto o pósmodernismo rejeitam «a tirania e a dominação dos ídolos modernistas da ciência, do racionalismo e da objetividade». Ambos veem o Iluminismo como «estreito, opressivo, [...] e reducionista». Para ambos, «o discurso racional científico é somente uma das maneiras pelas quais o homem constrói suas ‹histórias› sobre a realidade».1 O número dos que rejeitam a modernidade ocidental e que estavam alienados da sociedade contemporânea aumentou durante a década de 1960, no momento em que as alternativas anteriores — como os partidos comunistas alinhados a Moscou — começavam a perder seu poder de atração. Foi entre dissidentes como esses que os Tradicionalistas sempre foram recrutados. Havia ainda mais dissidentes da modernidade ocidental fora do Ocidente, claro, e, durante os últimos 25 anos do século XX, alguns deles começaram a receber as ideias Tradicionalistas com entusiasmo. O desenvolvimento futuro mais interessante na história do Tradicionalismo pode estar em tais áreas. Apesar de ainda ser muito cedo para dizê-lo, o Tradicionalismo no Ocidente pode ter se esgotado e estar em processo de ser reabsorvido na matriz comum de ideias Ocidentais de onde emergiu. Antoine Faivre, um dos mais importantes especialistas acadêmicos franceses no terreno da religião, professor na mesma Sorbonne que recusou o doutorado a Guénon, confessou recentemente sua incapacidade para explicar o sucesso do que chamou de «um dos fenômenos culturais mais curiosos de nosso tempo».2 Minha sugestão é que o sucesso do Tradicionalismo se deve não apenas à relação simbiótica entre a modernidade e o antimodernismo, mas também à síntese específica feita por Guénon. A filosofia de Guénon não era particularmente original. Ela era composta de uma série de elementos, a maioria deles parte do pensamento ocidental havia séculos. Seu grande feito foi o de formar uma síntese completamente nova a partir dessas ideias, para depois promovê-la até o ponto em que pudessem ser levadas adiante por outras pessoas: por Schuon, para as organizações religiosas; por
Evola, para a política; por Eliade, para a academia; e, finalmente, por Nasr e Dugin, para o mundo não ocidental. A síntese de Guénon combinava uma ênfase na inversão, uma ideia mais antiga do que o livro do Apocalipse (a fonte pela qual ela é mais conhecida pelos ocidentais), com uma série de outras ideias previamente sintetizadas para ele durante o século anterior. A mais antiga delas era a de que a sabedoria podia ser encontrada no Oriente, já visível na Sicília de Frederico II no século XIII (naquele momento, ela era indiscutível e objetivamente verdadeira).3 A segunda ideia mais antiga era o perenialismo, que remeti a Marsílio Ficino no século XV. Nenhuma das duas era rara no início do século XX, e no fim do século ambas haviam se tornado um lugar-comum. Viagens pela Índia tornaram-se parte da educação do estudante universitário europeu, como o Grand Tour havia sido parte um dia da educação da aristocracia europeia, enquanto o yoga e o zen se transformaram em traços comuns da vida norte-americana. A filosofia perene permaneceu pouco conhecida com esse nome, mas uma espécie de universalismo tornara-se a regra no Ocidente; nem mesmo a Igreja Católica ousou continuar a invocar um monopólio absoluto da verdade religiosa, e muitos ocidentais tendem a dar como certo que qualquer religião é, de uma maneira ou outra, pouco diferente das demais em seus traços essenciais. A ideia de que a sabedoria reside no Oriente era parte do perenialismo original, o Oriente àquela altura sendo composto da Grécia clássica, da Israel bíblica e do Egito, representado por Hermes. A substituição de Hermes pelo hinduísmo aparece pela primeira vez com Reuben Burrow no fim do século XVIII, difundindo-se durante o século XIX, com sua influência final vindo por meio da Sociedade Teosófica. A Sociedade Teosófica é o início do desenvolvimento visível do Tradicionalismo, bem como de tantos outros movimentos, mas uma síntese a mais foi necessária para dar a Guénon seu ponto de partida. Tratava-se do conceito de iniciação, novamente algo muito antigo, que se torna visível sob sua forma caracteristicamente moderna com o surgimento da maçonaria moderna no século XVII. O perenialismo, a sabedoria hindu e a iniciação eram parte da Ordem Martinista do doutor Gérard Encausse, o primeiro mestre de Guénon,
criador da distinção entre religião esotérica e exotérica que viria a se tornar um aspecto central do Tradicionalismo. O conde Albert de Pouvourville, segundo mestre de Guénon, promoveu uma síntese similar, substituindo o hinduísmo pelo taoismo. Algo muito semelhante é encontrado no caso do pintor Ivan Aguéli, exceto pelo fato de que aqui o sufismo e o Islã assumem, pela primeira vez, o lugar do hermetismo, do hinduísmo e do taoismo. Essa síntese continuou de maneira independente do Tradicionalismo e era visível no fim do século XX na poeta Katherine Raine, uma iniciada e admiradora de Ficino que encontrou seu lar no hinduísmo. Está claro que Guénon recebeu essa síntese final de Encausse e de De Pouvourville. As origens de sua ênfase na inversão são menos certas. A insistência de De Pouvourville no perigo para o Ocidente representado pela superioridade espiritual do Oriente é uma fonte, já que está implícita nessa opinião a ideia de que, ao menos em um ponto importante, o Ocidente havia regredido, e não progredido. A regressão também está implícita no perenialismo, que busca a verdade no passado, em lugar do futuro, ainda que nenhum perenialista anterior a De Pouvourville pareça ter levado essa tese à sua conclusão lógica. As polêmicas católicas contra maçons e satanistas são outra fonte, já que foi sob auspícios católicos que os primeiros escritos de Guénon sobre a contrainiciação vieram à luz. Talvez a fonte mais importante de todas, no entanto, tenham sido suas experiências juvenis entre os martinistas e neognósticos, e, claro, sua própria incursão na Ordem Renovada do Templo. Essas empreitadas provavelmente pareceram risíveis à maioria dos leitores deste livro, e é compreensível que tenha parecido ao Guénon maduro o oposto do que alegavam ser, ou seja, caminhos para o erro, e não para a verdade. Sua paranoia ocasional pode ter contribuído também para sua identificação das forças da contrainiciação. A inversão compreende a regressão e a contrainiciação. Quando a observação das possibilidades de iniciação deixa clara a morte do esoterismo no Ocidente moderno, a inversão pode ser facilmente sintetizada junto com a busca pela sabedoria no Oriente. O perenialismo não nasce automaticamente disso, mas, quando combinado com esses outros elementos, produz o Tradicionalismo.
A inversão e a busca pela sabedoria no Oriente têm algo em comum com o Orientalismo, tal como analisado por Edward Said.4 No entanto, Said demonstrou o quanto a compreensão ocidental do Oriente Médio derivou mais de como o Ocidente enxerga a si mesmo do que de algo realmente existente no próprio Oriente Médio. Ser racional era parte da autoimagem ocidental: o Oriente Médio era diferente do Ocidente, logo, irracional. No século XIX, quando as mulheres ocidentais eram vistas sobretudo como virtuosas e morais, a compreensão ocidental da mulher muçulmana esteve focada na ocupante libidinosa do harém. Quando a imagem da mulher ocidental mudou para enfatizar a emancipação, a mulher muçulmana passou a ser vista em termos da subordinação e do véu. Esse modelo pode ser aplicado com proveito até hoje: a imprensa ocidental tende a ignorar a possibilidade de que possa existir uma opinião pública no Oriente Médio, exceto em referências às (escuras, assustadoras e irracionais) «ruas dos países árabes», porque a opinião pública é o que existe e importa no Ocidente. A visão Tradicionalista do Oriente é, sob muitos aspectos, uma forma inversa de Orientalismo. Tanto o Tradicionalismo quanto o Orientalismo são sistemas dualistas, ambos têm suas origens no século XIX e ambos compartilham a importante falha metodológica do excesso de confiança no texto e falta de confiança na observação. Como o Orientalismo, o Tradicionalismo tende a retratar o mundo não ocidental como um espelho do Ocidente. A diferença é que a comparação é elogiosa para o não Ocidente. Em lugar de apresentar um contraste entre um Oriente Médio povoado por seres irracionais e infantis incapazes de organização e disciplina, e um Ocidente racional, o Tradicionalismo apresenta um contraste entre um Ocidente caracterizado pela modernidade, pelo materialismo e pela mera habilidade técnica e um Oriente Médio de tradição, espiritualidade e sabedoria. Essa compreensão do Oriente Médio não é mais precisa do que a do orientalista clássico. Um elemento adicional ainda era necessário para que a filosofia Tradicionalista atingisse sua forma final. Tratava-se do desenvolvimento da concepção guénoniana de iniciação para incluir a prática, um desenvolvimento que ocorreu somente na década de
1930, quando Guénon encontrou a prática do Islã no Egito. O Tradicionalismo até aquele momento havia se concentrado em textos e ideias. Apesar de Aguéli e de De Pouvourville terem viajado para além da Europa, nenhum dos dois parece ter colocado grande ênfase na prática. A prática religiosa, visível na França da década de 1920 principalmente aos domingos, estava por toda parte no Egito da década de 1930, visível nas orações rituais que os comerciantes faziam em suas lojas, audível no chamado à oração cinco vezes por dia, inevitável na perturbação da maior parte dos aspectos da vida no Ramadã. Não há indícios diretos de que foram essas as experiências que levaram Guénon a concluir que a iniciação deve implicar a prática, mas isso parece altamente provável. As modificações feitas pelo próprio Guénon no Tradicionalismo durante a década de 1930 para incluir a prática não foram as únicas. A maioria dos demais Tradicionalistas importantes acrescentou suas próprias modificações. O doutor Ananda Coomaraswamy, como importante historiador da arte, introduziu uma duradoura ênfase na estética, encontrada em diversas partes do movimento Tradicionalista, especialmente em sua vertente schuoniana. Ele também foi o responsável pela primeira tentativa — malsucedida, em grande parte — de integrar o Tradicionalismo com uma abordagem acadêmica formal; Guénon havia dado as costas à academia após a recusa de sua tese pela Sorbonne. Foi o doutor Mircea Eliade que integrou com sucesso o Tradicionalismo e a academia, traduzindo «tradição» como «religião arcaica» e «sabedoria» como «mitos e símbolos universalmente válidos», além de acrescentar uma boa medida de rigor acadêmico a seus escritos. Evola fez as modificações mais dramáticas no Tradicionalismo guénoniano, a tal ponto que alguns Tradicionalistas contemporâneos, em parte envergonhados por suas posições políticas, prefeririam excluí-lo completamente do Tradicionalismo. As leituras de Nietzsche e Bachofen feitas por Evola em sua juventude levaram a uma ênfase na realização pela ação, por meio da revolta que o pintor René Daumal via como ausente das obras de Guénon, e não pela prática religiosa. Para Guénon, a casta sacerdotal era superior à casta guerreira, mas Evola discordava. Nas circunstâncias das décadas de
1920, 1930 e 1940, o Tradicionalismo evoliano apontava na direção da direita política, o que o separava definitivamente do Tradicionalismo guénoniano, essencialmente apolítico. Esses dois ramos permaneceram unidos, contudo, como pode ser visto nas repetidas visitas do «esquerdista» Henri Hartung a Evola na década de 1960. O Tradicionalismo evoliano passou por novas modificações após a Segunda Guerra Mundial, com a inserção do existencialismo, o que levou — com a ajuda de Franco Freda — a um entendimento da apoliteia que causou um caos sangrento. Coomaraswamy, Eliade e Evola procedem de versões iniciais do Tradicionalismo, que não enfatizavam a prática. Frithjof Schuon veio da versão final, e levou o Tradicionalismo em outra direção, bastante diferente, acrescentando a forma organizacional característica de uma ordem sufi. É a partir desse ponto que podemos falar verdadeiramente de um movimento Tradicionalista, e não apenas de uma filosofia. Schuon também desenvolveu o perenialismo e transformou-o numa missão universal dele próprio, que conduziu ao desastre. Em reação a isso, Michel Vâlsan modificou o Tradicionalismo schuoniano na direção da ortodoxia extrema, conduzindo-o de volta ao Islã não Tradicionalista, um destino que seus seguidores compartilhavam com o doutor Fawzy Sqali. No interior do Tradicionalismo schuoniano, o doutor Hossein Nasr modificou-o para o consumo de segmentos mais modernos do mundo islâmico, acrescentando uma ênfase na «filosofia islâmica» e, pela primeira vez, conectando o Tradicionalismo diretamente com a erudição não ocidental. Nasr compartilha com Eliade a distinção de ser um importante acadêmico Tradicionalista. Não está claro se uma das modificações mais recentes do Tradicionalismo, a substituição de sacerdotes e guerreiros por mulheres, operada pelas aristasianas, deve ser levada a sério como a adaptação do movimento a um novo grupo (as mulheres) ou apenas como uma divertida prova da entrada do Tradicionalismo na cultura geral do Ocidente. A profunda seriedade sempre foi uma das características de todos os outros Tradicionalistas; talvez o elemento de humor presente nas aristasianas acabe impedindo sua difusão para além de círculos muito restritos.
Alexander Dugin foi responsável pela última grande modificação do século XX, adaptando o Tradicionalismo para o Leste Europeu ao acrescentar o Cristianismo ortodoxo e as teorias geopolíticas eurasianas de sir Halford Mackinder. Com uma dívida maior para com Evola do que para com Guénon, o neoeurasianismo de Dugin pareceu a alguns ter consequências tão lamentáveis quanto as de Evola. A política de Dugin e de Evola e o desastre da versão tardia da ordem Maryamiyya de Schuon em Bloomington levaram algumas pessoas a defenderem que o Tradicionalismo, tanto como movimento quanto como filosofia, seria algo inescapavelmente maligno. No entanto, diversos Tradicionalistas reconhecerem e evitaram o mal ao mesmo tempo que se mantinham fiéis ao Tradicionalismo. Eliade afastou-se da Legião do Arcanjo São Miguel à medida que esta começou a se transformar num clone nazista, e Vâlsan afastou-se não apenas dos acontecimentos na Romênia, mas também do desastre que rondava a ordem Maryamiyya. Nasr pode ter contribuído acidentalmente para a Revolução Iraniana, mas fez o possível para evitá-la, e dois Tradicionalistas iranianos menos importantes (Daryush Shayegan e Nasrullah Purjavadi) foram importantes entre os iranianos que condenaram os males trazidos pela Revolução.5 Schuon e Paul de Séligny são casos mais difíceis, mas parece claro que o bem ou o mal dependem mais dos indivíduos do que do próprio Tradicionalismo. O movimento Tradicionalista falhou indiscutivelmente em certas áreas, mas teve sucesso em outras. Ao menos em grande escala, ele falhou em seu objetivo original, tal como definido no livro Orient e Occident, publicado por Guénon em 1924. A civilização ocidental no início do século XXI não está baseada de modo mais visível na tradição espiritual do que estava na década de 1920. Se existem mais espiritualidades não ocidentais no Ocidente hoje do que naquela época, a sua presença não pode ser creditada apenas aos esforços de uma elite Tradicionalista. Em uma escala menor, no entanto, os Tradicionalistas estiveram entre os mais efetivos escritores, palestrantes e educadores que apresentaram o público ocidental ao Islã, ao sufismo e a uma abordagem mais simpática a religiões não ocidentais em geral, tanto na academia quanto fora dela. O
Tradicionalismo também desempenhou papel importante ao guiar parte da maçonaria na direção de algo que poderia ser descrito como espiritualidade, e teve sucesso em seu objetivo inicial, o de recompor os destroços da tradição primordial. O Tradicionalismo está completo e possui coerência interna. Foram seus projetos menos ambiciosos que tiveram maior sucesso. O Tradicionalismo «suave», livros informados por uma análise Tradicionalista mas que não colocam ênfase nela, atingiu públicos muito maiores do que o Tradicionalismo «duro». Foi essa forma «suave» que tocou a vida de muitos que não conheciam o Tradicionalismo. Ainda que poucos leitores deste livro já tenham ouvido falar do Tradicionalismo em si mesmo, muitos encontraram autores e interpretações de sua vertente «suave». Essa relação, é claro, não está restrita ao Tradicionalismo; as obras de George Orwell são muito mais lidas no Ocidente do que as de Karl Marx. Ataques frontais contra a modernidade, por outro lado, geralmente conseguiram o contrário do que buscavam. O antimodernismo de E. F. Schumacher levou a uma maior modernização, e, em lugar de destruir o estado burguês, as atividades dos terroristas italianos da década de 1970 provocaram uma repulsa contra o extremismo que fortaleceu o status quo. A ordem sufi pouco ambiciosa de Vâlsan, que buscava apenas conduzir pelo caminho padrão do sufismo aqueles que se apresentavam a ela, atingiu seus objetivos; a missão universal de Schuon transformou sua ordem num movimento religioso claramente moderno (como germe de uma nova religião), que Guénon certamente teria identificado como contrainiciático. Foi somente fora do Ocidente que os ataques frontais dos Tradicionalistas contra a modernidade ocidental tiveram algum sucesso, no Irã e, mais tarde, na Rússia. A recepção favorável dada aos Tradicionalistas nesses países vem de seu alinhamento com um antiocidentalismo já estabelecido. Os Tradicionalistas no Irã e na Rússia iam a favor da corrente. No Ocidente, o Tradicionalismo «duro» ia contra a corrente. O Tradicionalismo «suave» geralmente evitava a corrente principal. Em geral, iniciativas que seguem a corrente histórica podem modificar de certa maneira sua direção, enquanto iniciativas que vão contra ela normalmente são afundadas
ou (como Schumacher, Freda e Schuon) têm sua direção alterada pela própria corrente e passam a ir na direção contrária. Nesses termos, Vâlsan liderou seus seguidores de uma corrente a outra; eles estão agora muito mais próximos da corrente principal do Islã do que de qualquer coisa no Ocidente. Os indivíduos que se tornaram Tradicionalistas já estavam, quase sem exceção, fora da corrente. Schuon e Burckhardt, como Aguéli e Eberhardt antes deles, vinham de ambientes artísticos e contestadores, assim como Thomas Merton, simpatizante do Tradicionalismo. Von Meyenburg e Pallavicini vinham de ambientes aristocráticos, fora de sintonia com os tempos, bem como o conde de Pouvourville e o barão Evola,6 além, é claro, de dois outros simpatizantes do movimento, o pretendente do trono da França e o herdeiro do trono do Reino Unido. Coomaraswamy e Nasr eram produtos de uma mistura cultural e não possuíam uma corrente própria para começar. Na realidade, o único Tradicionalista a não vir de um ambiente ou comunidade fora de sintonia com o seu tempo foi o próprio Guénon, filho único de um analista de risco em uma seguradora, solidamente burguês. A corrente principal do século XX foi progressista, no sentido de ter esperança no progresso, ainda que não no sentido anterior à Primeira Guerra Mundial de acreditar na inevitabilidade do progresso. Nenhum progressista jamais tornou-se Tradicionalista, nem mesmo um progressista não ocidental. Taha Husayn, o intelectual egípcio altamente progressista, rejeitou o Tradicionalismo e o próprio Guénon com desprezo; Malek Bennabi, o islamista progressista argelino, considerava o Tradicionalismo irrelevante; e Ali Xariati, o islamista progressista iraniano, não empregou o Tradicionalismo de nenhum modo em sua obra. A consciência da importância de seguir uma corrente está implícita na estratégia política francesa conhecida como entrisme («entrismo»), um termo geralmente empregado num contexto político para indicar a infiltração oportunista de uma organização com o objetivo de influenciá-la desde dentro. O «entrismo» foi usado por diversos Tradicionalistas, geralmente com mais sucesso em tentativas subsequentes do que na primeira. Em certos casos, ele fracassou.
Eliade, Evola, Dugin, Jamal e Pallavicini não conseguiram atingir seus objetivos com a Legião do Arcanjo São Miguel na Romênia, o Partido Fascista Italiano, as SS, o Pamyat’ e o Partido do Renascimento Islâmico na Rússia e a Igreja Católica — foi a Igreja Católica que dominou o diálogo islamo-cristão que Pallavicini tentou, sem sucesso, tradicionalizar. Em todos esses casos, essas são, ou eram, instituições de controle centralizado e rigidamente estruturadas, difíceis de serem infiltradas por qualquer um. Em contraste, o Tradicionalismo foi bem-sucedido em alianças políticas e comunidades semiestruturadas, geralmente em sua segunda ou terceira tentativa de «entrismo» — Eliade e, em certa medida, Nasr na academia norte-americana, Dugin com a aliança vermelho-marrom, Jamal com a rede de «Comitês Islâmicos» e Evola com os círculos ultraconservadores ao redor do Herrenklub de Berlim (esses círculos fracassaram ou foram desmantelados pelos nazistas, mas essa é outra questão). Evola também teve sucesso ao infiltrar a questão do racialismo, apesar de suas iniciativas terem sido encerradas externamente, pelo regime fascista. Pallavicini saiu-se melhor com a comunidade semiestruturada de organizações islâmicas oficiais e semioficiais do que com a Igreja Católica. Uma das três exceções a esse padrão é Von Sebottendorff — que, de todo modo, não era um Tradicionalista —, cuja tentativa de infiltrar a Germanen-Orden fracassou de maneira ridícula, e cujo único êxito foi ajudar o partido nazista a encontrar um nome. Para ele, não houve uma segunda tentativa bem-sucedida. No Reino Unido, Critchlow tradicionalizou com sucesso grande parte da Academia Temenos e a fundação do príncipe Charles sem (ao menos que se saiba) ter sofrido nenhum fracasso anterior. Na França, Hartung foi bem-sucedido ao infiltrar o campo da educação para empresários, mas sua avaliação posterior foi a de que essa infiltração havia sido desviada pela corrente. O Tradicionalismo «duro» foi rejeitado não apenas por progressistas, e pelo mainstream da história ocidental do século XX, mas também por outros dois grupos: povos completamente tradicionais e a maioria dos acadêmicos. Quase toda a população do mundo árabe ignorou o Tradicionalismo, evidentemente porque o
mundo árabe não é moderno o bastante para recebê-lo. Figuras religiosas solidamente inseridas em suas próprias tradições também rejeitaram com frequência o Tradicionalismo, no todo ou em parte: Jacques Maritain na Igreja Católica, Seraphim Rose na Igreja Ortodoxa e Ahmad Qustas no Islã. Exceto na versão de Dugin, o Cristianismo sempre foi a escolha de uma minoria entre os Tradicionalistas (apesar de o universalismo de Schuon alegar abarcá-lo, como todas as demais religiões). Muitos Tradicionalistas, no entanto, se viam como muçulmanos. Apesar de qualquer muçulmano que subscreva alguma forma de universalismo necessariamente estar se afastando do que é geralmente aceito como o consenso do Islã, diversos Tradicionalistas poderiam ser considerados muçulmanos por outros muçulmanos com base em suas práticas: Nasr, Vâlsan, Pallavicini e o próprio Guénon. Outros, especialmente Schuon, seriam, e foram, rejeitados. A relação entre o Tradicionalismo e a academia é curiosa. Por um lado, todo o campo dos estudos religiosos contemporâneos tem a marca do Tradicionalismo suave de Eliade, e muitos Tradicionalistas foram acadêmicos. Por outro lado, desde que o professor Sylvain Lévi rejeitou a tese de doutorado de Guénon em 1921, todo acadêmico não afiliado ao movimento que examinou o Tradicionalismo chegou, em linhas gerais, à mesma conclusão: essa gente não é séria. Eles ignoram a história e tudo o que não se molda a suas teorias. Nas palavras de Antoine Faivre, o Tradicionalismo «des-historiza e desespacializa seus predicados ontológicos. [...] Sua propensão a buscar similaridades por toda parte na esperança de encontrar uma unidade hipotética é claramente prejudicial à pesquisa crítico-histórica, isto é, à pesquisa empírica, que está mais interessada em revelar a gênese, o curso, as mudanças e as migrações dos fenômenos que estuda». Como reconhece Faivre, quem quer que inicie já sabendo «a verdade», dificilmente reconhecerá algo inesperado encontrado no caminho.7 A função deste livro não é defender o Tradicionalismo, mas parece claro que aqueles que dizem que ele não é sério simplesmente perdem de vista a verdadeira questão. O Tradicionalismo alega representar a verdade última, exatamente como a religião e alguns
tipos de filosofia. Como afirmou Douglas Allen, «o discurso racional científico é apenas uma das maneiras como os seres humanos constroem suas ‹histórias› sobre a realidade». Julgar o Tradicionalismo do mesmo modo que se julgaria uma tese universitária faz tanto sentido quanto rejeitar o Cristianismo porque este não apresenta provas suficientes da divindade de Cristo, ou rejeitar o Islã por ignorar o elemento crucial da doutrina da trindade. Por outro lado, Guénon apresentou seu trabalho a Lévi como uma tese, e, assim, Lévi estava certo em recomendar que ele fosse recusado.
Notas
Uma lista de meus principais entrevistados vem antes da bibliografia; locais e datas das entrevistas são informados ali, e não em notas individuais. Material que poderia interessar apenas um pequeno número de leitores foi disponibilizado, em inglês, como notas adicionais («additional notes — AN») na internet. Esse material está indicado por «Ver AN e um número». Assim «Ver AN 2» remete o leitor para uma nota adicional do capítulo em questão. As notas adicionais estão disponíveis em: .
1. TRADICIONALISMO (PP. 55-85) 1 Shorter Oxford English Dictionary, 3ª ed. 2 René Guénon, La crise du monde moderne (Paris: Brossard, 1927) e La métaphysique
orientale (Paris: Chacornac, 1939); Julius Evola, Rivolta contro il mondo moderno (Milão: Hoepli, 1934). O título do presente livro se baseia na Crise du monde moderne, de Guénon, e na Rivolta contro il mondo moderno, de Evola. 3 O resumo da filosofia Tradicionalista apresentado neste capítulo é, por necessidade, breve, e enfatiza especialmente os elementos mais importantes para a história posterior do movimento. Os leitores interessados na filosofia Tradicionalista como filosofia devem começar pelo livro Crise du monde moderne, de Guénon, ou ler outros livros escritos pelos próprios Tradicionalistas. Uma boa visão geral é apresentada no livro The Only Tradition, de William W. Quinn (Albany, N.Y.: SUNY Press, 1996). 4 René Guénon, L’introduction générale à l’étude des doctrines hindoues (Paris: M. Rivière, 1921). 5 Lévi, relatado a Dean Ferdinand Brunot, citado em Marie-France James, Ésotérisme et
Christianisme: autour de René Guénon (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), p. 194. 6 Lévi, relatado a Dean Ferdinand Brunot.
7 Victor Cousin, Cours de philosophie (Paris: Pichon et Didier, 1828). 8 Jean Filliozat, «Rien sans l’Orient?», Planète+, abr. 1970, p. 124. 9 Lévi, relatado a Dean Ferdinand Brunot. 10 Pelo menos ele não o incluiu entre as duas críticas adicionadas à resenha feita por Noële Maurice-Denis ao livro Introduction générale (in La Revue universelle, jul. 1921, discutido mais adiante). 11 Agostino Steuco, bibliotecário do Vaticano e platonista cristão, autor de De perenni
philosophia [Sobre a Filosofia Perene], 1540, dedicado ao papa Paulo III. 12 A obra mais importante de Ficino foi a Theologica Platonica de animarum immortalitate [Teologia platônica da imortalidade da alma] (1482), em que ele examinou a questão da imortalidade à luz dos escritos de Platão, bem como da teologia católica. 13 Paul Oskar Kristeller, «Introduction», in The Letters of Marsilio Ficino (Londres: Shepheard-Walwyn, 1975). Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2001. 14 Kristeller, «Introduction». 15 As razões para isso são analisadas no capítulo 2. 16 James, Ésotérisme et Christianisme, p. 194. 17 Le Théosophisme, histoire d’une pseudo-religion (Paris: Nouvelle Librairie Nationale, 1921); L’erreur spirite (Paris: M. Rivière, 1923). 18 A fotografia fora do comum retratando um crucifixo submerso na obra «Mistérios Fluidos» de Serrano causou muita controvérsia nas décadas de 1980 e 1990. 19 Discussão com um Tradicionalista anônimo, 1994. 20 René Guénon, Orient et Occident (Paris: Payot, 1924; reimpressão, Paris: Guy Trédaniel, 1993), p. 19. Editei a citação da seguinte maneira: «A civilização moderna ocidental aparece na história como uma verdadeira anomalia [...] entre todas as que conhecemos [...], essa civilização // acompanhada por uma regressão intelectual correspondente [...] [que] atingiu um ponto em que o Ocidente hoje já não sabe o que pode ser a pura intelectualidade [...] daí o seu desdém». 21 Guénon, Orient et Occident, p. 187. 22 Guénon, Orient et Occident, p. 115.
23 Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes; Umrisse einer Morphologie der
Weltgeschichte (2 vols., Munique: Beck, 1919-22). 24 Guénon, Orient et Occident, pp. 169-87. 25 Guénon, Orient et Occident, p. 196. Editei a passagem para torná-la mais direta: «Se a elite [...] não tem o tempo // mentalidade como um todo [...] essa elite seria [...] a ‹arca› simbólica // receberia [...] a base de um novo desenvolvimento // Mas [...] haveria ainda [...] problemas difíceis: as revoluções étnicas [...] certamente seriam sérias [...] Seria preferível para o Ocidente [...] adquirir uma civilização [...] adequada a suas próprias condições, poupando-o [...] de ser assimilado de maneira mais ou menos desagradável». 26 Guénon, Orient et Occident, pp. 174, 177, 184-5 e 188. 27 Guénon, Orient et Occident, p. 177. 28 L’homme et son devenir selon le Védânta (Paris: Brossard, 1925); La crise du monde
moderne (Paris: Brossard, 1927). Ver AN 1 para os outros quatro. 29 René Guénon, La crise du monde moderne (Paris: Folio, 1999), p. 187. 30 Citado em Paul Chacornac, La vie simple de René Guénon (1958; reimpressão, Paris: Éditions traditionnelles, 1986), p. 79. 31 Ver: . 32 Noële Maurice-Denis Boulet, «L’ésotériste René Guénon: Souvenirs et jugements», La
pensée catholique: Cahiers de synthèse 77 (1962), 24-5. 33 Boulet, «L’ésotériste René Guénon», pp. 18 e 26-7, e Jean Borella, «René Guénon and the Traditionalist School», in Modern Esoteric Spirituality, org. Antoine Faivre e Jakob Needleman (Nova York: Crossroads, 1992), p. 373. 34 Boulet, « L’ésotériste René Guénon», pp. 35-6. 35 O fato de Maritain e outros terem recomendado Guénon aos Frères des Écoles chrétiennes (que administravam a École des Francs-Bourgeois) é uma suposição, mas, dadas as circunstâncias, uma suposição razoável. 36 Citado em James, Ésotérisme et Christianisme, p. 198. 37 Amèlée d’Yvignac, in Revue de philosophie, nov.-dez. 1924, citado em James, Ésotérisme
et Christianisme, p. 225. 38 Bernard Allo, OP, resenha em Revue des sciences philosophiques et théologiques, citado em James, Ésotérisme et Christianisme, p. 227.
39 Em 1946-47, segundo James, Ésotérisme et Christianisme, p. 389. 40 James, Ésotérisme et Christianisme, pp. 233-4, e James, Esotérisme, Occultisme, Franc-
Maçonnerie et Christianisme aux xix et xx siècles. Explorations biobibliographiques (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), p. 145. 41 Olivier de Frémond. 42 James, Ésotérisme et Christianisme, pp. 243-4, 255-6 e 262-3. 43 Para outros, ver AN 2. Zoccatelli, Le lièvre qui rumine: Autour de René Guénon, Louis
Charbonneau-Lassay et la Fraternité du Paraclet (Milão: Archè, 1999), p. 16. 44 Guénon, Crise du monde moderne, pp. 195-201. 45 Reconstituído a partir do rascunho de uma carta de Charbonneau-Lassay a Guénon, abril de 1928, publicado em Zoccatelli, Lièvre qui rumine, pp. 61-2. 46 Maurice Clavelle [Jean Reyor], «Document confidentiel inédit», documento datilografado inédito. 47 Diversos livros sobre martinismo etc., foram encontrados em sua biblioteca privada após sua morte. Ver Igor Volkoff, «Voyage à travers la bibliothèque de René Guénon», Egypte
nouvelle, 9 out. 1953, publicado in Xavier Accart, org., L’Ermite de Duqqi: René Guénon en marge des milieux francophones égyptiens (Milão: Archè, 2001). Ver pp. 220-1. 48 Chacornac, Vie simple, p. 63. Houve certa especulação a respeito da identidade da senhora indiana, que chegou a ser identificada equivocadamente como a esposa de Guénon, ou como a esposa de seu guru desconhecido. Para mim, parece provável que o retrato era puramente decorativo. 49 Chacornac, Vie simple, p. 84, e, para a falta de entusiasmo, Jean Reyor, «De quelques énigmes dans l’oeuvre de René Guénon», in René Guénon [Cahiers de l’Herne], org. Jean-Pierre Laurant e Paul Barbanegra (Paris: Ed. de l’Herne, 1985), pp. 137-8. 50 André Braire, entrevista. 51 James, Ésotérisme et Christianisme, p. 298. 52 James, Ésotérisme et Christianisme, p. 298. Jourd’Heuil esteve em Roma cerca de dez anos antes de Maritain ter tentado colocar os livros de Guénon no Índex, mas ela pode ter deixado alguns simpatizantes no Vaticano. Outra razão pela qual Guénon nunca foi colocado no Índex pode ter sido a influência do cardeal Daniélou (ver capítulo 6). 53 Chacornac, Vie simple, p. 84
54 Jean-Pierre Laurant, e-mail, 11 de outubro de 2001. 55 Na introdução à sua tradução de parte de La crise du monde moderne, publicada em 1935. Citado em Roger Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3: His Life and Work (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1977), p. 169. 56 Catalogue of the Indian Collections in the Museum of Fine Arts (Boston: Museum of Fine Arts, 1923-30); History of Indian and Indonesian Art (Nova York: E. Weyhe, 1927). 57 Seu conhecimento enciclopédico vinha, em parte, dos dez anos que passou catalogando a vasta coleção do Museu de Boston (Lipsey, Coomaraswamy, p. 135). 58 Para os detalhes, ver Lipsey, Coomaraswamy, pp. 145-8. A especulação é tão somente minha. 59 Que Guénon teria contribuído com a grande ideia enquanto Coomaraswamy teria contribuído com a erudição é a tese de Lipsey, Coomaraswamy, p. 172, com a qual concordo plenamente. Mais importante, Coomaraswamy persuadiu Guénon a abandonar sua caracterização do budismo como uma heresia hindu de menor interesse. Marco Pallis, «A Fateful Meeting of Minds: A. K. Coomaraswamy and R. Guénon», Studies in
Comparative Religion 12 (1978), 180-1. 60 A New Approach to the Vedas: An Essay in Translation and Exegesis (Londres: Luzac, 1933). 61 Citado em Lipsey, Coomaraswamy, p. 177. Ver também pp. 163-4. 62 Eric Schroeder, “Memories of the Person,” em Coomaraswamy, org. Lipsey, vol. 3, p. 285. 63 The Transformation of Nature in Art (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1934);
Hinduism and Buddhism (Nova York: Philosophical Library, 1941). Sobre o Tradicionalismo de Coomaraswamy, cf. Giovanni Monastra, «Ananda K. Coomaraswamy: de l’idéalisme à la tradition», Nouvelle Ecole 47 (1995). 64 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 186. 65 Coomaraswamy a Marco Pallis, 1944, em Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 184. 66 Eric Schroeder, citado em Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 206. 67 Walter E. Clark, resenha de Ananda K. Coomaraswamy, Hinduism and Buddhism (Nova York: Philosophical Library, 1943), Harvard Journal of Asiatic Studies 8, n. 1 (março 1944), 63-70. O revisor, claramente um indologista da tradição clássica, dedica cinco páginas inteiras a listar interpretações dúbias, sobretudo linguísticas.
68 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 162. 69 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 254-7. 70 Histoire d’un enfant du pays d’Egypte (reimpressão, Paris: F. Rieder, 1924). 71 Jean-Pierre Luccioni, «Bonjean, Bosco et la ‹doctrine›», in Henri Bosco, mystère et spiritualité: Actes du iiie colloque international Henri Bosco (Nice, 22-24 maio 1986), sem editor (NP: Librairie Jose Corti, 1987), p. 168. 72 Bonjean, «Souvenirs et réflexions sur René Guénon», Revue de la Méditerranée, mar.-abr. 1951, pp. 214-20, citado em Chacornac, Vie simple, p. 83. 73 Pierre Alibert, Gleizes: biographie (Paris: Editions Gallérie Michèle Heyraud, 1970), pp. 207-9. 74 Ver Alibert, Gleizes. 75 Ver Eddy Batache, Surréalisme et tradition: la pensée d’André Breton jugée selon l’oeuvre
de René Guénon (Paris: Éditions traditionnelles, 1978). 76 Christian Allègre, resenha de Phil Powrie, René Daumal, étude d’une obsession (Genebra: Droz: 1990), Erofile: Electronic reviews of French & Italian Literary Essays 18 (dezembro 1991) [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 24 maio 2000. 77 «Michel Camus, Daumal, profil perdu», Poésie d’hier et d’aujourd’hui [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 2000. 78 Diário 1928, em Daumal, L’évidence absurde, essais et notes i (1926-1934) (Paris: Gallimard, 1972). Reproduzido in Cybrairie ambulante, 10 out. 1997 [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2000. 79 Jean-Paul Enthoven, «Dumont l’intouchable» [entrevista com Louis Dumont], Le nouvel
observateur, 6 jan. 1984, reimpresso em Roland Lardinois, «Louis Dumont et la science indigène», Actes de la recherche en sciences sociales, 106-107 (março 1995), 11 e 18. Agradeço a Gaborieau por chamar minha atenção para a conexão entre Dumont e Guénon. 80 Henri Bosco, Hyacinthe (Paris: Gallimard, 1940). 81 Citado em Xavier Accart, «Du Jardin enchanté à l’ermitage Saint-Jean: La réception de l’oeuvre de René Guénon par Henri Bosco», in Henri Bosco, Actes de colloque
international de Narbonne 13-14 juin 1997, sem editor (Narbonne: Les cahiers du CERMEIL, 1997). 82 Accart, «Du Jardin enchanté». 83 Henri Bosco, «Trois rencontres», Nouvelle Revue Française, nov. 1951, p. 276. 84 Stefano Salzani e PierLuigi Zoccatelli, Hermétisme et emblématique du Christ dans la vie
et dans l’oeuvre de Louis Charbonneau-Lassay (1871-1946) (Milão: Archè, 1996), pp. 167. 85 Bestiaire du Christ: la mystérieuse emblématique de Jésus-Christ (Paris: Desclée, De Brouwer, 1940). O Bestiário, com mil páginas e 1.157 xilogravuras, foi publicado quando um número suficiente de assinaturas foi atingido, mas a maioria das cópias foi destruída num galpão por um ataque alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Ver Salzani e Zoccatelli, Hermétisme et emblématique, pp. 11-3 e 55-6, e E. Mila, «CharbonneauLassay y el esoterismo católico en el siglo xx», Disidencias: OnLine Press, on-line. Disponível em: . Acesso em 1º jun. 2000.
2. PERENIALISMO (PP. 87-112)
1 Paul Chacornac, La vie simple de René Guénon (1958; reedição, Paris: Éditions traditionnelles, 1986), pp. 16-27. 2 Gérard Encausse defendeu sua tese de doutorado em 1894, sobre o tema «L’anatomie philosophique et ses divisions, augmentée d’un essai de clarification méthodologique des sciences anatomiques». Marie-Sophie André e Christophe Beaufils, Papus, biographie: la
Belle Époque de l’occultisme (Paris: Berg International, 1995), p. 115. 3 André e Beaufils, Papus, pp. 8-14. 4 Na juventude, Olcott abandonara a Universidade de Nova York por razões financeiras, mudando-se para Ohio, onde trabalhou como fazendeiro e escreveu uma obra de referência sobre o cultivo do sorgo. Após um período como correspondente de agricultura
para o New York Tribune na década de 1850, outro como oficial de sinalização durante a Guerra Civil e uma passagem bem-sucedida pelo cargo de comissário no Departamento da Guerra, Olcott foi aceito na ordem dos advogados de Nova York em 1868. 5 Citado em Bruce F. Campbell, Ancient Wisdom Revived: A History of the Theosophical
Movement (Berkeley: University of California Press, 1980), p. 29. Ver também pp. 2-7 e 21-2. 6 Em seu De rebus sacris et ecclesiasticis exercitationes. Sobre Ficino e sobre Hermes e Casaubon, cf. Wouter J. Hanegraaff, New Age Religion and Western Culture: Esotericism
in the Mirror of Secular Thought (Leiden: Brill, 1996), pp. 388-91, e Paul Oskar Kristeller, «Introduction», in The Letters of Marsilio Ficino (Londres: Shepheard-Walwyn, 1975). Ver também David Stevenson, The Origins of Freemasonry: Scotland’s Century, 1590-1710 (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), pp. 82, e Antoine Faivre, «Histoire de la notion moderne de Tradition dans ses rapports avec les courants ésotériques (XVe-XXe siècles)», Aries, sem número, «Symboles et Mythes» (c. 2000), 9-12. 7 Arthur Edward Waite, «The French Mystic and the Story of Modern Martinism», Martinist
Information Page, on-line. Disponível em: . Acesso em 8 maio 1996. Na realidade, Encausse defendia que Saint-Martin havia sido o fundador da Ordem, provavelmente sem muita justificativa. 8 Saint-Martin, De l’esprit des choses (Paris: 1800), citado em Umberto Eco, Foucault’s
Pendulum (San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), p. 173. 9 Emile Dermenghem, Joseph de Maistre mystique (1923; reimpressão, Paris: La Colombe, 1946), pp. 48-51. 10 De Maistre, Mémoire au Duc de Brunswick (1781), citado em Faivre, «Histoire de la notion moderne de Tradition», p. 18. 11 Sobre a Asiatick Society, ver J. M. Steadman, «The Asiatick Society of Bengal»,
Eighteenth Century Studies 10 (1977). 12 Reuben Burrow, «A Proof that the Hindoos Had the Binomial Theorem», Asiatick
Researches: Transactions of the Society Instituted in Bengal for Inquiring into the History and Antiquities, the Arts, Sciences and Literature, of Asia 2 (1799), 488-9. Steadman, «Asiatick Society», chamou minha atenção para esse importante artigo. 13 Especialmente Thomas Maurice em seu artigo «A Dissertation on the Indian Origin of the Druids and on the Striking Affinity which the Religious Rites and Ceremonies, Anciently
Practised in the British Islands, Bore to Those of the Brahmins» (Indian Antiquities 6, 1812), e Godfrey Higgins em sua obra The Celtic Druids (Londres: Rowland Hunter, 1829). Ver Catherine Robinson, «Druids and Brahmins: A Case of Mistaken Identity?»,
diskus 6 (2000) [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 1o fev. 2002. 14 As citações de Emerson vêm de Russell B. Goodman, «East-West Philosophy in Nineteenth-Century America: Emerson and Hinduism», Journal of the History of Ideas 51 (1990), 627, e Stephen E. Whicher, org., Selections from Ralph Waldo Emerson: An
Organic Anthology (Cambridge, Mass.: Riverside Press, 1960), p. 104. 15 The Dial publicou obras de Emerson, e The Western Messenger, obras de James Freeman Clarke, autor do livro muito popular chamado Ten Great Religions: An Essay in
Comparative Theology (Boston, 1871). O hinduísmo e a ideia romântico-perenialista de «uma identidade de sentimento [grifo meu] sob todas as suas grandes formas históricas», além da necessidade «da troca mútua de experiências entre o Oriente e o Ocidente» foram promovidos por um ex-pastor Unitário não Tradicionalista, Samuel Johnson, também leitor de Victor Cousin. Ver Carl T. Jackson, «The Orient in Post-Bellum American Critical Thought: Three Pioneer Popularizers», American Quarterly 1 (1970), 6975. São todas variações sobre o tema da transmissão por meio de Cousin e do Transcendentalismo. 16 Em Whicher, org., Selections, pp. 139-40. 17 Aldous Huxley, The Perennial Philosophy (1944; Nova York: Harper and Brothers, 1945). 18 Os países bálticos passaram ao controle alemão antes de serem absorvidos pelo império russo, e a maior parte dos senhores de terras possuía assim uma distante origem germânica, normalmente com o título de «barão» e com sobrenomes alemães. No século XIX, porém, os barões bálticos eram culturalmente indistinguíveis do restante da aristocracia imperial. 19 Campbell, Ancient Wisdom, pp. 2-7 e 21-2. 20 «Bey» era o equivalente otomano, e também no Egito do século XIX, ao título britânico «sir». «Tuitit» não tem nenhuma semelhança com nomes egípcios do período. 21 Campbell, Ancient Wisdom, pp. 23-4 e 25-6. 22 Tamanho estimado a partir de Paul Pedersen, «Tibet, Theosophy, and the Psychologization of Buddhism», artigo inédito apresentado em uma conferência sobre «Mythos Tibet», realizada na Universidade de Bonn, 10 a 12 de maio de 1996. A
mudança da Sociedade Teosófica para a Índia coincidiu com o início de sua expansão, grande parte da qual aconteceu naquele país, além de Burma e do Ceilão. Em 1885, 106 de suas 121 lojas estava localizadas nesses três países — mas também na Europa e nos Estados Unidos. 23 Peter Washington, Madame Blavatsky’s Baboon: A History of the Mystics, Mediums and
Misfits Who Brought Spiritualism to America (Nova York: Schocken Books, 1995), pp. 667. 24 Isis Unveiled: A Master-key to the Mysteries of Ancient and Modern Science and Theology (Nova York: J. W. Bouton, 1877); The Secret Doctrine: The Synthesis of Science, Religion
and Philosophy (Londres: Theosophical Pub. Co., 1888). 25 Campbell, Ancient Wisdom, pp. 34 e 40. 26 Samuel Dunlap, Sôd, the Son of Man (Londres: Williams and Norgate, 1861); Joseph Ennemoser, The History of Magic (Londres: H. G. Bohn, 1854); John Dowson, A Classical
Dictionary of Hindu Mythology and Religion, Geography, History, and Literature (Londres: Trübner, 1879); Horace Wilson, trad. ingl., Vishnu Purana: A System of Hindu Mythology
and Tradition (Londres: J. Murray, 1840). Essa, ao menos, é a conclusão de William Coleman, acadêmico norte-americano especialista em textos Pali e interessado no espiritismo (Campbell, Ancient Wisdom, pp. 34 e 41). Ver Coleman, «The Source of Madame Blavatsky’s Writings», em A Modern Priestess of Isis, org. Vsevolod Soloviev (Londres: 1895), pp. 353-66. Existem outras teorias, mas há um consenso generalizado de que as obras foram amplamente plagiadas. 27 Ver Washington, Madame Blavatsky, esp. pp. 37 e 81. Isso cria uma possibilidade alternativa a respeito da transmissão do que poderia ser chamado de «perenialismo védico» a Guénon, já que Bulwer Lytton estava em contato com Eliphas Lévi (pseudônimo de Alphonse Louis Constant), um padre francês excomungado que combinava ocultismo com um interesse nos Vedas e uma crença numa tradição religiosa universal única. (Washington, Madame Blavatsky, p. 37). Uma convicção parecida na «existência de uma grande unidade » no «fundo» de todas as religiões pode ser encontrada em Antoine Fabre d’Olivet, L’Histoire philosophique du genre humaine (1822) (I, 1, citado em Faivre, «Histoire de la notion moderne de Tradition»). A linhagem que passa de Fabre d’Olivet por Lévi também é plausível, mas não foi enfatizada aqui por uma questão de clareza. 28 Campbell, Ancient Wisdom, pp. 87-93, e Washington, Madame Blavatsky, pp. 80-1.
29 A Sociedade Teosófica ainda existe e gerou muitos outros movimentos, o mais importante dos quais é a Antroposofia de Rudolf Steiner. Para a história posterior da Teosofia, ver Washington, Madame Blavatsky. 30 Lotus, jul.-ago. 1887, citado em André Beaufils, Papus, p. 37. 31 A iniciação sufi pode ser dividida da mesma maneira: a importância exotérica de «receber» uma ordem é que o novo sufi se une a uma comunidade e pode receber os benefícios da instrução espiritual do xeique, enquanto a importância esotérica é que o novo sufi recebe baraka [aproximadamente: «graça»] ao unir-se à cadeia de xeiques que remete ao Profeta e, por intermédio dele, ao próprio Deus. 32 Stevenson, Origins of Freemasonry, pp. 5-19. 33 Stevenson, Origins of Freemasonry, pp. 20, 26-31, 44-50, e 87-96. 34 Stevenson, Origins of Freemasonry, pp. 196-9 e 230-1. 35 Antonio Coen e Michel Dumesnil de Grammont, La Franc-Maçonnerie Ecossaise (Nice: SNEP, 1946), p. 15. 36 Stevenson, Origins of Freemasonry, pp. 6-7. 37 G. Rocca, org., ‘Abdul-Hadi: Ecrits pour La Gnose (Milão: Archè, 1988), pp. 33-48. 38 André e Beaufils, Papus, pp. 54-7. 39 Palavras de Georges Descormiers, um seguidor de Encausse, citado em Philippe Encausse, Papus, le «Balzac de l’occultisme»: vingt-cinq années d’occultisme occidental (Paris: Pierre Belfond, 1979), p. 31. 40 Para uma discussão do que Blavatsky entendia por iniciação, ver K. Paul Johnson,
Initiates of Theosophical Masters (Albany, N.Y.: SUNY Press, 1995), pp. 1-10. 41 André e Beaufils, Papus, p. 11, e André Braire, entrevista. 42 André e Beaufils, Papus, pp. 84-6. 43 André e Beaufils, Papus, p. 86. 44 André e Beaufils, Papus, pp. 93-4 e Chacornac, Vie simple, pp. 31-3. 45 Encausse, Papus, p. 34. 46 Waite, «French Mystic». 47 Citado em Encausse, Papus, p. 52. 48 André e Beaufils, Papus, pp. 65-70 e 116-7.
49 Bryan R. Wilson, The Social Dimensions of Sectarianism: Sects and New Religious
Movements in Contemporary Society (Oxford: Clarendon Press, 1990). 50 «Vurgey» (pseud.), «L’Age de Sphinx», Le Voile d’Isis, 6 maio 1891, p. 3. 51 Essa é a conclusão do professor Jean Filliozat, um importante indologista francês, que afirma que a «as exposições [de Guénon sobre a doutrina hindu] estão, em geral, em conformidade com a produção acadêmica indologista de seus tempo, cujas publicações ele seguia». Filliozat, «Rien sans l’Orient?», Planète+, abr. 1970, p. 124. 52 Por exemplo, Guénon não apenas usou a tradução de qualidade inferior do Tao Te Ching feita por Léon Wieger, mas, como consequência disso, terminou citando como parte do texto original um comentário de Wieger, identificado de forma errônea. Ver Pierre Grison, «L’Extrême-Asie dans l’oeuvre de René Guénon», em René Guénon [Cahiers de l’Herne], org. Jean-Pierre Laurant e Paul Barbanegra (Paris: Ed. de l’Herne, 1985), p. 145. Alain Daniélou também menciona que Guénon se baseia no livro, bastante dúbio, de B. G. Tilak intitulado The Arctic Home of the Vedas [O lar ártico dos vedas]. Daniélou, «René Guénon et la tradition hindoue», in René Guénon [Dossiers H], org. Pierre-Marie Sigaud (Lausanne: L’Age d’Homme, 1984), p. 137. 53 Maurice Clavelle [Jean Reyor], «Document confidentiel inédit», documento datilografado inédito. 54 Clavelle [Reyor], «Document confidentiel». 55 André e Beaufils, Papus, pp. 268-70; Clavelle [Reyor], «Document confidentiel». 56 André e Beaufils, Papus, pp. 270-3, e Clavelle [Reyor], «Document confidentiel». 57 The Secret Doctrine, citado em Campbell, Ancient Wisdom, p. 49. 58 Emerson, «Nature», em Selections, org. Whicher, pp. 21 e 24. 59 Roger Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3: His Life and Work (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1977), pp. 9-10. 60 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 10, 14 e 42. A especulação sobre acontecimentos em Wycliffe é minha; o ambiente dos colégios internos britânicos é difícil. 61 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 17-8. 62 Sobre os primos, Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 41. 63 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 22-5.
64 Mediæval Sinhalese Art, Being a Monograph on Mediææval Sinhalese Arts and Crafts,
Mainly as Surviving in the Eighteenth Century, with an Account of the Structure of Society and the Status of the Craftsmen (Broad Campden: Essex House Press, 1908). 65 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 26, 33, 40, 53 e 69-72. 66 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 122-6. O curador foi o dr. Deman W. Ross. 67 Giovanni Monastra, «Ananda K. Coomaraswamy: de l’idéalisme à la tradition», Nouvelle
Ecole 47 (1995). 68 Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, pp. 42-5. 69 Ver Kathleen Raine, Blake and Tradition (Princeton, N.J.: Princeton UP, 1968). 70 Citado em Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 108. 71 Citado em Lipsey, Coomaraswamy, vol. 3, p. 109. 72 Monastra, «Ananda K. Coomaraswamy». 73 Agradeço esta informação ao dr. Marco Pasi, um especialista em Aleister Crowley.
3. GNÓSTICOS, TAOISTAS E SUFIS (PP. 113-137) 1 Lance S. Owens, «An Introduction to Gnosticism», The Gnostic Society Library [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2001. 2 René Le Forestier, L’Occultisme en France aux xixe et xxe siècles: L’église gnostique, org. Antoine Faivre (Milão: Archè, 1990), pp. 9-37. 3 Não está claro quem foi Valentine I. Marie-France James, Ésotérisme et Christianisme:
autour de René Guénon (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), pp. 81-2. 4 O grupo incluía também um indivíduo chamado Faugeron (que depois ajudaria Guénon a fundar sua Ordem do Templo) e Yvon Le Loup (bancário e também bibliotecário de Encausse). Maurice Clavelle [Jean Reyor], «Document confidentiel inédit», documento datilografado inédito; Marie-Sophie André e Christophe Beaufils, Papus, biographie: la
Belle Époque de l’occultisme (Paris: Berg International, 1995), pp. 128-9; e Philippe Encausse, Papus, le «Balzac de l’occultisme»: vingt-cinq années d’occultisme occidental (Paris: Pierre Belfond, 1979), p. 37.
5 Le Forestier, Occultisme en France, p. 69, e Jean-Pierre Laurant, L’ésotérisme chrétien en
France au xix siècle (Lausanne: L’Age d’Homme, 1992), p. 141. 6 Jean Kostka [pseud. de Jules-Benoît Doinel], Lucifer démasqué (Paris: Delhomme et Briguet, 1895). Ver Le Forestier, Occultisme en France, pp. 71-4, e André e Beaufils,
Papus, pp. 127-8. 7 Outro ocultista, chamado Paul Rosen (polonês de origem), publicou um livro intitulado
Satan et compagnie, association universelle pour la destruction de l’ordre sociale [Satã e companhia, associação universal para a destruição da ordem social] (Paris, 1888), seguido de L’ennemie sociale, historie documentée de la Franc-Maçonnerie de 1717 à
1890 [A inimiga social, história documentada da maçonaria de 1717 a 1890] (Paris, 1890), dedicado ao papa Leão XIII. 8 Faugeron comandou a Igreja Católica Gnóstica. André e Beaufils, Papus, pp. 128-9, 275 e 278. 9 James, Ésotérisme et Christianisme, p. 82; André e Beaufils, Papus, pp. 275-6; e Clavelle [Reyor], «Document confidentiel». 10 Noële Maurice-Denis Boulet, «L’ésotériste René Guénon: Souvenirs et jugements», La
pensée catholique: Cahiers de synthèse [Paris] 77 (1962), 23. 11 Segundo o próprio De Pouvourville, «le Thien dianhien» e «le Bachlieu». Marie-France James, Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie et Christianisme aux xix et xx siècles.
Explorations bio-bibliographiques (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), p. 221. Minha leitura é a de que «Thien dianhien» seria Thien dia hoi, a forma vietnamita de T’ien-ti hui, e «Bachlieu» seria Bac Lieu. Hue-Tam Ho Tai, Millenarianism and Peasant Politics in
Vietnam (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1983), pp. 55 e 62. 12 Hue-Tam Ho Tai, Millenarianism, pp. 20 e 35-7; Julian F. Pas e Man Kam Leung, Historical
Dictionary of Taoism (Lanham, Md.: Scarecrow Press, 1998), pp. 1-3 e 212-6; e Barend J. Ter Haar, Ritual and Mythology of the Chinese Triads: Creating an Identity (Leiden: Brill, 1998), pp. 7 e 344. Sobre sua carreira, James, Esotérisme, Occultisme, pp. 219-20. Meus agradecimentos a Jean-Pierre Laurant pelas informações adicionais, obtidas em suas entrevistas com Guy de Pouvourville, sobrinho de De Pouvourville. 13 Le Tonkin actuel (Paris: A. Savine, 1891). 14 Jean-Pierre Laurant, Matgioi, un aventurier taoïste (Paris: Dervy livres, 1982), pp. 30 e 41-2.
15 L’art indo-chinois (Paris: Librairies-imprimeries réunies, 1894); Les sept éléments de
l’homme de la pathogénie chinoise (Paris: Chamuel, 1895) e Le Taoïsme et les sociétés secrètes chinoises (Paris: Chamuel, 1897). 16 Publicado sob o pseudônimo de Mat-Gioi usado por De Pouvourville com o título de De
l’autre côté du mur: récits chinois des guerres de 1883 (Haiphong [Vietnã]: F.-H. Schneider, 1897) e reimpresso como L’Annam sanglant [Annam sangrento] em 1911. 17 James, Esotérisme, Occultisme, p. 221. 18 As traduções eram Le Tao de Lao-Tseu e Le Te de Lao-Tseu (Paris: Librairie de l’art indépendant, 1894). Ele também publicou uma tradução do Traité des influences errantes
de Quangdzu (Paris: Bibliothèque de la Haute Science, 1896). 19 Ver também James, Esotérisme, Occultisme, p. 221. 20 De Pouvourville e Louis Champrenaud, Les enseignements secrets de la Gnose [Os ensinamentos secretos da gnose] (Paris, 1904). Esse livro foi seguido por La voie
métaphysique (Paris, 1905) e La voie rationnelle (Paris: L. Bodin, 1907). 21 Jean-Pierre Laurant, Le sens caché selon René Guénon (Lausanne: L’Age d’homme, 1975), p. 53. 22 Boulet, «L’ésotériste René Guénon», p. 22. Noële Boulet, a fonte mais útil sobre Guénon nesse período (porque, pouco depois disso, eles se tornaram amigos próximos e porque ela mesma nunca foi uma Tradicionalista) estava convencida de que o desprezo de Guénon pelo catolicismo como uma «forma sentimental» de religião vinha de De Pouvourville. 23 De Pouvourville, editorial, Le Continent 1, n. 1 (1906), 11-6. 24 Deixando de ser publicado em 1907, após somente dez edições. Não há razão para supor que esse Hans Richter era o pintor Hans Richter. 25 L’opium, sa pratique (Paris: Editions de l’Initiation, 1903). 26 De Pouvourville, «La question de l’opium», Le Continent 4 (1906-07), 289- 310, e Laurant, L’ésotérisme chrétien en France, p. 178. Guénon admitiu o uso de ópio (como «um auxílio à meditação») antes de 1912 (Boulet, «L’ésotériste René Guénon», p. 22); é razoável supor que ele tenha adquirido esse hábito de De Pouvourville. 27 Em «Pages dédiées à Mercure», La Gnose, 1911 (reprinted in ‘Abdul-Hadi: Ecrits pour La
Gnose, org. G. Rocca [Milão: Archè, 1988]), por exemplo, Aguéli defendia que o «Islã esotérico» (o sufismo de Ibn al-Arabi) era muito próximo do taoismo tal como explicado
por De Pouvourville, e ele identificava ambos com a «tradição primordial» (usando a mesma expressão que Guénon) e com o conceito islâmico de din ul-fitra [religião original]. Ele também demonstrou algum interesse nas preocupações raciais de De Pouvourville, apesar de não seguir suas teorias. Ele creditava a «decadência» dos orientais à «heterogeneidade étnica», mas acrescentava que longe das cidades do Oriente era possível encontrar «tanta moralidade coletiva e virtudes individuais quanto nos melhores países da Europa». Aguéli, «Pages», p. 24. 28 Rocca, org., ‘Abdul-Hadi: Ecrits, p. xv. 29 André e Beaufils, Papus, pp. 124-5 e 136; James, Ésotérisme et Christianisme, p. 105; e Le Forestier, Occultisme en France, pp. 88-9. Ver AN 1. 30 James, Ésotérisme et Christianisme, pp. 105-14 e 127, e André e Beaufils, Papus, p. 276. 31 Paul Chacornac, La vie simple de René Guénon (1958; Paris: Editions traditionnelles, 1986), p. 47, e Laurant, Matgioi, p. 62. Há dúvidas se De Pouvourville estava realmente em posição de iniciar alguém em uma Tríade, já que o caminho de Tao-chung [assistente] a Tao-shih [cavalheiro do Tao] é longo e complexo, envolvendo diversos estágios, que De Pouvourville dificilmente teria tido tempo de completar. Somente um Tao-shih pode realizar rituais por conta própria. Ver Pas e Man Kam Leung, Historical Dictionary of
Taoism, pp. 258-60. A datação desses acontecimentos como sendo de 1912 é errada — ver Rocca, Introduction, p. XIX. 32 Viveca Lindqvist, Ivan Aguéli 1869-1917: centre culturel suédois, Paris 11 mars- 24 avril
1983 (Paris: Centre culturel suédois, 1983), p. 6. 33 Sobre Bernard e a Teosofia, Jean-Pierre Laurant, «La ‹non-conversion› de René Guénon (1886-1951)», in De la conversion, org. Jean-Christophe Attias (Paris: Cerf, 1998), p. 135. Em 1907, Aguéli escreveu um elogioso obituário de Olcott. Ele também guardou uma versão algo teosófica do perenialismo, atribuindo a falta de sucesso da Teosofia entre os muçulmanos ao fato de que «nenhum teosofista conhecia realmente as doutrinas secretas do Islã, e, portanto, não eram capazes de encontrar a Teosofia nas fórmulas muçulmanas». Aguéli, obituário do Coronel Olcott, Il Convito 2 (1907), 62-4, reproduzido em Rocca, org., ‘Abdul-Hadi: Ecrits, p. XIII. 34 Marie Huot, Les courses de taureaux. Paris, 1887, 1889, 1890: Conférence faite le
mercredi 11 juin 1890, à la salle des Capucines (Paris: Ligue populaire contre la vivisection, 1890); Alphonse Séché, Les muses françaises: anthologie des femmes poètes (xxe siècle) (Paris: Louis Michaud, 1908), p. 162; e Lindqvist, Ivan Aguéli, p. 8.
35 Séché, Les muses françaises, p. 162. Ver AN 2 para um poema de Huot. 36 Hilary Hocking e Ingrid Holmgren, Ivan Aguéli (Sala: Sala Art Society, n.d.), p. 2. 37 Bernard, o professor de Aguéli, passou o período entre 1894 e 1904 no Egito, mas isso não parece ter sido a razão da ida de Aguéli ao país, já que ele praticamente não pintou nesses anos. 38 Rocca, org., ‘Abdul-Hadi: Ecrits, p. XVI, e Chacornac, Vie simple, p. 45. 39 Lindqvist, Ivan Aguéli, p. 8. Sobre a carreira de Aguéli, ver também Chacornac, Vie
simple, pp. 42-8. 40 Salvatore Bono, Orientalismo e Colonialismo: La ricerca di consenso in Egitto per
l’impresa di Libia (Roma: Istituto per l’Oriente C. A. Nallino, 1997), pp. 33-7 e 58-61. 41 Bono, Orientalismo, pp. 42-4 e 47-50. 42 Um mufti é primariamente um estudioso, mas frequentemente forçado a exercer um papel político. Em 1881, Muhammad Illaysh participou de um levante antieuropeu liderado pelo coronel Ahmad Urabi. Em 1882, após a derrota do exército de Urabi pelo exército britânicos (que permaneceria no Egito até 1956), Muhammad Illaysh foi preso e morreu na prisão. Knut S. Vikør, Sufi and Scholar on the Desert Edge: Muhammad b. ‘Ali
al-Sanusi and his Brotherhood (London: Hurst, 1995), pp. 250-1. 43 O relato de que Abd al-Rahman mantinha ralações próximas com Abd al-Qadir em Damasco (Michel Vâlsan, L’islam et la fonction de René Guénon: recueil posthume [Paris: Ed. de l’Oeuvre, 1984], p. 35) é dúbio. Primeiro porque não está claro onde Vâlsan obteve essa informação, e depois porque ele afirma que Abd al-Rahman conseguiu retornar ao Cairo após ser anistiado pela rainha Vitória, o que não é possível. 44 Ver K. Paul Johnson, The Masters Revealed: Madame Blavatsky and the Myth of the Great
White Lodge (Albany, N.Y.: SUNY Press, 1994), pp. 68-9. 45 Bono, Orientalismo, p. 57, e Rocca, org., ‘Abdul-Hadi: Ecrits, pp. XIII-XIV. A Etiópia, é claro, possui apenas uma população muçulmana minoritária. 46 Vâlsan, L’islam et la fonction de René Guénon, p. 37. 47 Fred De Jong, Turuq and Turuq-linked Institutions in Nineteenth Century Egypt: A
Historical Study in Organizational Dimensions of Islamic Mysticism (Leiden: Brill, 1978), pp. 27-8, 113 e 173-4. 48 Laurant, «Non-conversion», p. 135, e Rocca, org., ‘Abdul-Hadi: Ecrits, pp. VIII e IX-X.
49 Roger Shattuck, The Banquet Years: The Origins of the Avant Garde in Paris, 1885 to
World War I (1958; Nova York: Vintage Books, 1968), pp. 24, 211 e 215. 50 Lesley Blanch, The Wilder Shores of Love (Londres: John Murray, 1955), pp. 275-6. 51 Ver Isabelle Eberhardt, Departures: Selected Writings Translated from the French (São Francisco: City Lights, 1994). 52 Blanch, Wilder Shores of Love, pp. 275-8. 53 Sanua foi um jornalista politicamente radical e professor de idiomas que, na juventude, havia apoiado Carbonari, o nacionalista italiano, e, mais velho, o nacionalismo islâmico anticolonialista de Jama al-Din al-Afghani. Ele pertencia à mesma loja maçônica no Cairo que al-Afghani, e, quando este viajou a Paris, Sanua foi seu professor de francês. Johnson, Masters Revealed, pp. 52-5; K. Paul Johnson, Initiates of Theosophical Masters (Albany, N.Y.: SUNY Press, 1995), p. 77. 54 54. Johnson, Initiates, pp. 168 e 171-2. 55 Este relato de Eberhardt na Argélia foi feito a partir de diversas fontes e é uma reconstrução. Ver especialmente Blanch, Wilder Shores of Love, e Karim Hamdy, «The Intoxicated Mystic: Eberhardt’s Sufi Experience», em Departures, pp. 225-42; usei também o artigo inédito de Tanya Monier, «Isabelle Eberhardt, Colonial Heretic», apresentado na reunião anual de Associação de Estudos do Oriente Médio realizada em São Francisco entre 22 e 24 de novembro de 1997. 56 Johnson, Initiates, p. 171. 57 A expressão «ordem sufi» — tariqa, em árabe — pode ser usada em dois sentidos: para descrever um grupo de sufis que seguem um xeique em particular; ou para descrever uma linhagem. Para uma introdução mais detalhada ao sufismo, ver minha pequena obra: Sufism: The Essentials (Cairo: American University in Cairo Press, 2000). Ver também AN 3. Sobre os contatos de Rahmaniyya e Eberhardt, ver Julia A. Clancy-Smith,
Rebel and Saint: Muslim Notables, Populist Protest, Colonial Encounters (Algeria and Tunisia, 1800—1904) (Berkeley: University of California Press, 1994), pp. 217-22 e 23348. 58 Eberhardt não foi o primeiro visitante francês a Bu Sada. Em 1884, Etienne Dinet, o pintor orientalista às vésperas da fama, visitara o local com uma expedição entomológica, convertendo-se a seguir ao Islã. Ver Denise Brahimi, Les terrasses de Bou-Saada (Algiers: Entreprise Nationale du Livre, 1986). 59 Blanch, Wilder Shores of Love, pp. 298-9.
60 Os muitos seguidores de professores como Inayat Khan e escritores como Idries Shah discordariam dessa afirmação. No entanto, de um ponto de vista factual e histórico, o sufismo não islâmico não é encontrado no mundo islâmico (apesar de haver, é claro, movimentos sectários ocasionais que se tornaram não islâmicos, por vezes de origem sufi, assim como existem novos movimentos religiosos por toda parte). 61 Erwin Torre, o alter ego de Von Sebottendorff (ver a seguir), conclui, após ler o Mesnawi de Rumi, que o Cristianismo e o Islã são basicamente o mesmo, e alcança uma compreensão da «unidade entre a natureza espiritual e Deus». Rudolf von Sebottendorff,
Der Talisman des Rosenkreuzers (Pfullinger in Württemberg: Johannes Baum Verlag, 1925), p. 37. Ele também afirma que a Europa necessita de «cultura oriental» mais do que a Turquia precisa da ocidentalização (pp. 74-5), e no começo do livro ha várias denúncias padrão contra o materialismo ocidental, contrastado com a «espiritualidade oriental». Na realidade, era muito mais provável que os diversos personagens turcos e egípcios que explicam a «espiritualidade oriental» no começo do livro acabassem pregando o Islã mainstream a Von Sebottendorff. «Espiritualidade oriental» é um conceito ocidental, e não oriental. 62 Von Sebottendorff alegava ter sido adotado já adulto por um já idoso Freiherr von Sebottendorff, algo que parece improvável, e de que não existem outras provas. Nicholas Goodrick-Clarke, The Occult Roots of Nazism: The Ariosophists of Austria and Germany,
1890-1935 (Wellingborough: Aquarian Press, 1985), pp. 140-1. 63 Grande parte da biografia de Von Sebottendorff é cautelosamente reconstruída aqui com base em um romance autobiográfico chamado Talisman [Talismã], que é mais romanesco na primeira parte e mais claramente autobiográfico a partir de 1908. Ver também Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, pp. 135-52. 64 Von Sebottendorff, Talisman, pp. 53-5. A data aproximada é deduzida baseada nas pp. 72-3. 65 Houve relações próximas entre muitos membros da ordem Bektashiyya e maçons turcos após a proibição daquela em 1826, especialmente após 1839, com muitos liberais otomanos sendo ao mesmo tempo membros da ordem e maçons. Ver Irène Mélikoff,
Hadji Bektach: un mythe et ses avatars (Leiden: Brill, 1998), pp. 241-4, e Thierry Zarcone, Mystiques, philosophes et francs-maçons en Islam: Riza Tevfiq, penseur
ottoman (1868-1948), du soufisme a la confrérie (Paris: Institut français d’études anatoliennes d’Istanbul, 1993).
66 O tipo da numerologia descrita por Von Sebottendorff se baseia na interpretação das letras alaf, lam e mim no Corão, cuja chave supostamente seria um tablete de de origem indiana dado ao Profeta e transmitido por ele a Abu Bakr, seu sucessor, e depois de Abu Bakr a Ali. De Ali, seus segredos foram transmitidos a certas ordens sufis. Von Sebottendorff, Talisman, p. 71, e Von Sebottendorff, Die Praxis der alter türkischen
Freimaurerei: Der Schlüssel zum Verständnis der Alchimie (1924; reimpressão, Freiburg im Breisgau: Hermann Bauer, 1954), pp. 12-3. Essa história certamente não é conhecida amplamente entre os sufis, e não conheço nenhuma outra menção a ela, apesar de ser possível que circulasse entre os membros da ordem Bektashiyya naquela época. 67 Erwin Torre recebeu o «cordão» (o que, pelo contexto, pode significar a wird, isto é, a prática diária, normalmente uma consequência de se tornar membro de uma ordem sufi) de um xeique Betashi, com quem vinha estudando árabe e o Corão após as orações rituais do amanhecer. Em resposta à questão: «Você acredita em Deus?», Erwin respondeu: «Sim, acredito que Deus é uno» — o que poderia ser uma afirmação do entendimento que os muçulmanos têm de Deus, ou, igualmente, do entendimento perenialista. Von Sebottendorff, Talisman, pp. 50-1. A wird que Erwin recebeu, no entanto, possui pouca semelhança com as wird sufis que conheço, e o evento todo não se parece em nada com com nenhuma cerimônia da ordem Bektashiyya descrita no livro de Mélikoff, Hadji Bektach. Em outro lugar (Talisman, p. 34), Von Sebottendorff mostra familiaridade com a prática de sufis não Bektashis, e provavelmente transferiu tais práticas para um contexto Bektashi. Trata-se da familiaridade de alguém de fora bem informado, mais do que da de alguém de dentro. 68 Von Sebottendorff, Talisman, pp. 73-8. Paradoxalmente, Von Sebottendorff pode ter criado sua própria loja pseudomaçônica em 1910, em Istambul, mas ela não teve sucesso. 69 Von Sebottendorff, Praxis der alter türkischen Freimaurerei, pp. 9-10. 70 Boulet, «L’ésotériste René Guénon», pp. 18 e 26-7. 71 Michel Chodkiewicz, o estudioso acadêmico contemporâneo de Ibn al-Arabi, criticou algumas traduções do árabe de Aguéli — ver Chodkiewicz, «L’‘Offrande au Prophète de Muhammad al-Burhanpuri», Connaissance des religions, jun.-set. 1988, pp. 30-40, esp. p. 30 — e ele tem razão, sem dúvida. Meu argumento, no entanto, não é o de que Aguéli foi um acadêmico de primeira como Chodkiewicz, mas a de que ele foi muito mais do que um amador. 72 Laurant, «Non-conversion», p. 136.
73 Especialmente Stanislas de Guaita, que reviveu, em 1888, A Ordem Cabalística da RosaCruz. James Webb, The Occult Underground (La Salle, Ill.: Open Court, 1974), p. 174. 74 André e Beaufils, Papus, pp. 160 e 168. 75 Catálogo da Bibliothèque Nationale de France. 76 Boulet, «L’ésotériste René Guénon», p. 22. 77 Chacornac, Vie simple, p. 46. 78 Clavelle [Reyor], «Document confidentiel»; André e Beaufils, Papus, p. 338. 79 Lindqvist, Ivan Aguéli, pp. 10 e 30. Subversivo aos olhos dos britânicos, então em guerra com o Império Otomano, aliado das potências centrais. 80 Chacornac, Vie simple, pp. 47-8. 81 Lindqvist, Ivan Aguéli, pp. 5, 8 e 10-1. 82 O Museu Aguéli em Sala foi fundado em 1962 (Hocking e Holmgren, Ivan Aguéli, pp. 34). O romance é Ivan Aguéli: en roman om frihet de Torbjörn Säfve (Stockholm: Prisma, 1981). Segundo Laurant, «Non-conversion», Axel Gauffin, em seu livro Ivan Aguéli:
människan, mystikern, malaren (Estocolmo: Sveriges allmänna konstförenings publikation, 1940-41), relata que Aguéli se converteu do Islã à nova religião Bahai. Não consegui confirmar tal fato, e ele não é repetido em nenhum outro lugar. 83 Supostamente, ele escreveu outro livro religioso, chamado Sainte Thérèse de Lisieux, o que significaria um retorno ao catolicismo (Laurant, Matgioi, p. 93). Esse livro não se encontra na Biblioteca Nacional Francesa, porém, e Guy de Pouvourville, o sobrinho de De Pouvourville, expressou sérias dúvidas a respeito de qualquer retorno à Igreja de parte de seu tio em uma entrevista com Jean-Pierre Laurant (agradeço a Jean-Pierre Laurant por essa informação). 84 Ver também L’homme qui a mis les Boches dedans (Paris: Editions Figuière, 1919), La
greffe (Paris: Editions Figuière, 1922), e Chasseur de pirates (Editions du Monde Moderne, 1928). 85 André e Beaufils, Papus, pp. 324-34. 86 James, Esotérisme, Occultisme, pp. 96-7. 87 André e Beaufils, Papus, pp. 338 e 340-2.
4. CAIRO, MOSTAGANEM E BASILEIA (PP. 141-177) 1 Noële Maurice-Denis Boulet, «L’ésotériste René Guénon: Souvenirs et jugements», La
pensée catholique: Cahiers de synthèse, 77 (1962), 41. 2 Boulet, «Ésotériste René Guénon», 78-79 (1962), 140. 3 Guénon a Charbonneau-Lassay, 18 de março de 1929 e 11 de abril de 1929, reproduzido em PierLuigi Zoccatelli, Le lièvre qui rumine: Autour de René Guénon, Louis
Charbonneau-Lassay et la Fraternité du Paraclet (Milão: Archè, 1999), pp. 53 e 58-9. 4 Com base na resposta de Guénon (11 de abril de 1929) a uma carta extraviada de Charbonneau-Lassay, tem-se a impressão de que Charbonneau-Lassay tentou desculpar Françoise com a justificativa de que ela se sentia isolada. 5 Boulet, «Ésotériste René Guénon», 77 (1962), 41. 6 Essa é a dedução de Robin Waterfield, René Guénon and the Future of the West: The Life
and Writings of a 20th-Century Metaphysician ([UK]: Crucible Press, 1987). O marido de Shillito morreu mais ou menos na mesma época que a esposa de Guénon. 7 Paul Chacornac, La vie simple de René Guénon (1958; Paris: Éditions traditionnelles, 1986), pp. 91-2. Chacornac chama Shillito de «Madame Dina» e seu marido de «Hassan Farid Dina», mas ele obviamente se confunde com os nomes egípcios. No costume egípcio, «Madame» é usado antes do primeiro nome, e não do sobrenome; de qualquer modo, «Dina» é um nome, e não um sobrenome, feminino. As mulheres mantêm o sobrenome de sua família após o casamento. O nome do marido de Shillito seria, portanto, Hassan Farid, identificado como engenheiro. Se Shillito tiver assumido o nome muçulmano de Dina, ela deve ter se convertido ao Islã; do contrário, ela teria mantido seu nome original, Maria, que pode ser facilmente arabizado como «Maryam». Sua conversão não seria obrigatória, já que homens muçulmanos podem se casar com cristãs ou judias e, no Egito, por vezes o fazem. Sua conversão deve ter ocorrido por convicção. 8 Maurice Clavelle [Jean Reyor], «Document confidentiel inédit», documento datilografado inédito. 9 Waterfield, René Guénon, p. 56. 10 Faruq al-Hitami, entrevista. 11 Chacornac, Vie simple, p. 111. Na lei egípcia, a nacionalidade é transmitida pelo pai. A nacionalidade e local de nascimento da mãe eram irrelevantes. Assim, os filhos de Guénon necessitariam de vistos de residência desde seu nascimento, e foi claramente
para livrá-los dessa exigência que ele recebeu a nacionalidade egípcia, e não devido a algum patriotismo egípcio. Ver também pp. 93-4. 12 Ele não foi o primeiro nem o último ocidental a fazer essa descoberta. Diversos ocidentais se veem inesperadamente seduzidos pelo Cairo a despeito de seus muitos problemas, algumas vezes uma visita de alguns dias transformando-se numa estada de décadas. Apenas alguns desses se tornam muçulmanos. Para a maioria, o que os atrai é aquilo que um Tradicionalista chamaria de «estilo de vida tradicional», ainda que eles mesmos não o sigam por completo. 13 Jean-Louis Michon, «Dans l’intimité de Cheikh Abdal-Wahid—René Guénon— au Caire, 1947-49», Sophia 3,2 (1997), publicado em Xavier Accart, org., L’Ermite de Duqqi: René
Guénon en marge des milieux francophones égyptiens (Milão: Archè, 2001), p. 258. 14 Ver especialmente René Alleau e Marianne Scriabine, Actes du colloque international René
Guénon et l’actualité de la pensée traditionnelle (Cérisy-la-Salle: 13-20 juillet 1973) (Braine-le-Comte [Bélgica]: Éditions du Baucens, 1979). 15 Michon, «Dans l’intimité de Cheikh Abdal-Wahid», p. 256. 16 Outra peculiaridade é, provavelmente, algo mais aparente do que real. Uma fotografia de um espaço usado especialmente para as orações na casa de Guénon aparece em Accart,
Ermite de Duqqi (ilustração 25). O chão e as paredes estão cobertos por tapetes de palha, como é comum no Norte da África, mas não no Egito, e é possível ver uma vela, como numa mesquita turca (mas não numa egípcia). Dado que uma fonte anônima relata que Guénon seguia a prática muçulmana normal de estender um tapete onde fosse mais conveniente, fazer as orações e depois dobrar novamente o tapete, e dado que os elementos não egípcios na fotografia (que, de todo modo, foi tirada em 1953, após a morte de Guénon), é possível que o espaço tenha sido criado pelo fotógrafo, como uma prova visual da piedade de Guénon. 17 Muhammad Guénon, entrevista. Ele também foi recebido na ordem Qadiriyya, segundo Seyyed Hossein Nasr, «Frithjof Schuon et la tradition islamique», Frithjof Schuon, 1907-
1998: Etudes et témoignages, org. Bernard Chevilliat (Avon: Connaissance des Religions, 1999), p. 126. 18 Esse juízo está baseado em Michael Gilsenan, Saint and Sufi in Modern Egypt: An Essay
in the Sociology of Religion (Oxford: Oxford University Press, 1973). 19 Guénon a F. Schuon, 28 de novembro de 1932. Agradeço a Jean-Baptiste Aymard pela referência.
20 Na realidade, o envolvimento sufi na política provavelmente é tão antigo quanto o próprio sufismo. 21 Guénon, em Études traditionnelles, 1948, citado em Jean-Pierre Laurant, «La ‹nonconversion› de René Guénon (1886-1951)» em De la conversion, org. Jean-Christophe Attias (Paris: Cerf, 1998), p. 139. Guénon escreveu quase a mesma coisa em uma carta a Alain Daniélou, 27 de agosto de 1947, citado em Thierry Zarcone, «Relectures et transformations de Soufisme en Occident», Diogène 187 (janeiro 2000), 145-60. A expressão «mudar-se» [s’installer] é usada por Guénon em outros lugares; Zarcone chama a atenção para sua importância em «Relectures et transformations». 22 Guénon, carta a Pierre Colard, 1938, citado em Laurant, «Non-conversion», p. 139. 23 Igor Volkoff, «Voyage à travers la bibliothèque de René Guénon», Egypte nouvelle, 9 out. 1953. Reproduzido em Accart, Ermite de Duqqi. Ver pp. 220-1. Nenhum livro em árabe é mencionado, e também não havia nenhum na biblioteca de Guénon na década de 1980, segundo duas fontes. Obviamente, é possível que houvesse algum, que escapou a Volkoff e já vendido na década de 1980. 24 Trata-se de Michel Vâlsan. Sobre ele, ver capítulos 5 e 6 (Michel Chodkiewicz, entrevista). 25 Esse ponto também é sugerido pela caligrafia estranha e malformada (segundo Accart,
Ermite de Duqqi, p. 169) de seu único escrito conhecido em árabe, sua assinatura na solicitação de cidadania egípcia. Eu não vi essa assinatura; em sua correspondência, Guénon usava o alfabeto árabe para expressões rituais, como a bismillah, e nesse caso a escrita é bem formada, mas talvez não muito fluente. 26 Alleau e Scriabine, Actes, pp. 47 e 91. 27 Índia: Alain Daniélou (ver capítulo 6). O principal correspondente de Guénon no Brasil foi Fernando Guedes Galvão, que publicou a primeira tradução para o português da Crise du
Monde Moderne em 1948. Uma presença Tradicionalista no Brasil sobreviveu até o fim do século, em seu período tardio sob Luiz Pontual (Luiz Pontual, e-mail, 11 de agosto de 2000). 28 Chacornac, Vie simple, p. 99, sobre o ataque, e Michon, «Dans l’intimité de Cheikh Abd al-Wahid», p. 257, sobre a explicação. 29 Martin Lings, entrevista. 30 Michon, «Dans l’intimité de Cheikh Abd al-Wahid», p. 258.
31 Marie-France James, Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie et Christianisme aux xix
et xx siècles. Explorations bio-bibliographiques (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), pp. 231-3; Jean-Baptiste Aymard, «Frithjof Schuon (1907-1998). Connaissance et voie d’intériorité. Approche biographique», in Frithjof Schuon, org. Chevilliat, p. 39; e também Accart, Ermite de Duqqi, pp. 51-2. Ver também Valentine de Saint-Point, «René Guénon»,
L’Egypte nouvelle, 25 jan. 1952, reproduzido em Ermite de Duqqi, p. 157, e Jean Moscatelli, carta ao editor de France-Asie, 28 de abril de 1953, reproduzido em Ermite de
Duqqi, p. 213. 32 Sadek Sellam, «Un frère des hommes», em L’Islam et l’Occident: Dialogues, org. Najmoud-Dine Bammate (Paris: Unesco, 2000), pp. 13-5. 33 Faruq al-Hitami, entrevista. 34 Thierry Zarcone, «Le cheikh al-Azhar Abd al-Halim Mahmud et René Guénon: entre soufisme populaire et soufisme d’élite», in Ermite de Duqqi, org. Accart, pp. 274-6. 35 Defendido principalmente em Ibrahim M. Abu-Rabi, «Al-Azhar Sufism in Modern Egypt: The Sufi Thought», Islamic Quarterly 32 (1988), 207-35. Muitas das supostas atitudes Tradicionalistas de Mahmud poderiam ter vindo de qualquer lugar, e, cada vez que AbuRabi aponta uma opinião Tradicionalista precisa de Mahmud, a nota de rodapé cita uma obra de Guénon, não de Mahmud, exceto em um caso em que a obra citada de Mahmud parece não existir (a referência na citação está incompleta). 36 Martin Lings, entrevista. 37 Abd al-Halim Mahmud, «Al-‘arif bi’Llah shaykh Abd al-Wahid Yahya», in Mahmud, Al-
madrasa al-Shadhiliyya al-haditha wa imamha Abu’l-Hasan al-Shadhili (Cairo, n.d.), pp. 229-54. Minhas conclusões são respaldadas por discussões mantidas em 2001 com Hatsuki Aishima, então aluno de pós-gradução que fazia uma tese sobre Mahmud na Universidade de Kyoto. Aishima não havia encontrado nenhum desenvolvimento de nenhum tema caracteristicamente Tradicionalista na obra de Mahmud. Em outro lugar, Lings afirmou que, sim, Mahmud leu Guénon, mas outros indícios ainda sustentam a conclusão de que ele não foi influenciado pelo Tradicionalismo de maneira significativa. 38 Al-Marifa foi editado por Mustafa Abd al-Raziq, xeique de al-Azhar 1945-47. Ver Accart,
Ermite de Duqqi, p. 47. O período de Al-Raziq em Al Azhar foi mais reformista do que tradicional. 39 Ahmad Badawi, entrevista.
40 Citado em Albert Hourani, Arabic Thought in the Liberal Age, 1798-1939 (Cambridge: Cambridge UP, 1983), pp. 328-9. Agradeço a Mona Abaza por essa citação. 41 Accart, Ermite de Duqqi, p. 45. 42 Isso é uma hipótese, baseada na mudança nos escritos de Guénon. 43 Aperçus sur l’initiation (Paris: Chacornac, 1946). 44 Clavelle, «Document confidentiel». 45 Clavelle, documento sem título reproduzido em Zoccatelli, Lièvre, pp. 121-2. O nome de Barbot e alguns outros detalhes vêm de Stefano Salzani e PierLuigi Zoccatelli,
Hermétisme et emblématique du Christ dans la vie et dans l’oeuvre de Louis Charbonneau-Lassay (1871-1946) (Milão: Archè, 1996), pp. 64 e 66-99. E. Mila apresenta o nome de Estoile éternelle, mas deve ser um erro de impressão — ver Mila, «Charbonneau-Lassay y el esoterismo católico en el siglo XX», Disidencias: OnLine Press, on-line. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2000. 46 Reyor in C. Tacou, org., Mircea Eliade [Cahier de l’Herne] (Paris: Éditions de l’Herne, 1978), pp. 122-3. O diário de Charbonneau-Lassay sugere que sua motivação para reviver a Fraternité des Chevaliers du divin Paraclet foi a de impedir as pessoas de deixar o Cristianismo, segundo PierLuigi Zoccatelli, e-mails, 2 e 4 de julho de 2001. 47 Reyor in Zoccatelli, Lièvre, p. 123, e Mila, «Charbonneau-Lassay». 48 Reyor in Zoccatelli, Lièvre, pp. 123-4; sobre a sugestão de Reyor, Salzani e Zoccatelli,
Hermétisme et emblématique, p. 79. 49 Carta de Thomas ao abade André Gircourt, 24 de junho de 1947, reproduzido em Zoccatelli, Lièvre, pp. 137-8. A descrição das práticas está em Lièvre, pp. 127-33. 50 Eles eram chamados frequentemente de «la Thomasine». Zoccatelli, e-mails. 51 Charbonneau-Lassay, carta ao abade André Gircourt, 16 de janeiro de 1946. Reproduzido em Zoccatelli, Lièvre, pp. 65-6. 52 Mila, «Charbonneau-Lassay». 53 Exceto quando indicado, as informações a respeito da maçonaria francesa e do papel do Tradicionalismo nela vêm de entrevistas com Claude Gagne e Pierre Molliner, bem como de discussões com outros maçons franceses e estrangeiros. Eu não sou maçom; portanto, minhas fontes se viram obrigadas a ser circunspectas comigo. Gostaria de agradecer a essas fontes maçônicas por sua educação em todos os momentos ao lidar com um
entrevistador «profano», e também de alertar meus leitores de que, nesta seção, eu me baseei em indícios não confirmados e em reconstruções especulativas. 54 Clavelle, «Document confidentiel». 55 Agradeço a Jean-Pierre Laurant por essa informação. 56 José, o irmão de Napoleão, diversos generais e Fouché, o chefe de polícia, eram todos maçons. Antonio Coën e Michel Dumesnil de Grammont, La Franc-Maçonnerie Ecossaise (Nice: SNEP, 1946), pp. 23 e 27-8. 57 Oswald Wirth, La Franc-Maçonnerie rendue intelligible à ses adeptes, vol. 2: Le
compagnon (1931?; Paris: Dervy livres, 2000, 3 vols.), pp. 22-3. 58 «A maçonaria [...] ensina os homens a construir a felicidade coletiva na terra, sem proibilos de acreditar numa vida futura se assim o desejarem» (Wirth, Franc-Maçonnerie
rendue intelligible, vol. 2, p. 51). 59 Wirth, Franc-Maçonnerie rendue intelligible, vol. 2, passim. 60 Pierre Chevallier, Histoire de la franc-maçonnerie française, vol. 3, La Maçonnerie: Eglise
de la République (1877-1944) (Paris: Fayard, 1975), dá crédito quase igual a Guénon (p. 405). 61 As opiniões de Wirth sobre muitos desses assuntos dificilmente seriam as de Guénon ou de qualquer muçulmano, judeu ou cristão. Ele defende, por exemplo, que a alma humana não é um absoluto — ela pode ser modificada por «raiva, embriaguez ou loucura» — e que «o indivíduo é uma manifestação efêmera e particularizada da espécie, a única que possui uma vida mais ampla, unida à grande vida universal». Apenas a participação na totalidade da humanidade pode nos dar a imortalidade, uma vez que apenas a humanidade como um todo é imortal. Ver Wirth, Franc-Maçonnerie rendue intelligible, vol. 2, pp. 83-4. 62 Jean-Pierre Laurant, «René Guénon (1886-1951) et la Franc-Maçonnerie». Travaux de
Villard d’Honnencourt 9 (1984, 2): 15-20, p. 17. 63 J. Corneloup, Je ne sais qu’épeler (Paris: Vitiano, 1971), pp. 99-100, e Denys Roman,
René Guénon et les destins de la Franc-Maçonnerie (Paris: Les éditions de l’oeuvre, 1982), p. 159. 64 William Stoddart, «Titus Burckhardt: An Outline of his Life and Works», in Mirror of the
Intellect: Essays on Traditional Science and Sacred Art, org. Titus Burckhardt (Cambridge: Quinta Essentia, 1987), pp. 3 e 5.
65 Frithjof Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen ([Suíça]: edição privada, 1974), p. 12. 66 Quando outra fonte não é citada, a informação vem de Schuon, Erinnerungen und
Betrachtungen, e Harald von Meyenburg, entrevista. 67 Aymard, «Frithjof Schuon», p. 7, complementado por Aymard, e-mail, 3 de fevereiro de 2003. Há, em Erinnerungen und Betrachtungen, diversas sugestões de que o pai de Schuon tinha interesse em espiritualidade e nos Vedas. 68 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 7. 69 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 7. 70 Schuon a Albert Oesch, 1932, citado em Aymard, «Frithjof Schuon», p. 12. 71 Aymard, «Frithjof Schuon», p. 12, e Nasr, «Frithjof Schuon», pp. 124-5. 72 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 13-4. Ver AN 1. 73 Aymard, «Frithjof Schuon», p. 6. 74 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 41 e 57, e Aymard, «Frithjof Schuon», p. 7. 75 Essa conversão havia sido claramente acertada antes da morte do pai de Schuon, já que, antes de morrer, ele havia manifestado o desejo de que seus filhos se tornassem católicos. Aymard, e-mail. 76 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 6-7 e 12. 77 Aymard, «Frithjof Schuon», p. 7. 78 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 48-9. 79 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 7. 80 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 40. 81 A recorrência deste termo no nome da Fraternidade de Charbonneau-Lassay no diário de Schuon chama a atenção. Não fui capaz, no entanto, de encontrar uma ligação entre os dois, e imagino que se trate de uma coincidência. O termo não é totalmente obscuro, especialmente num contexto católico, e aparece diversas vezes no Evangelho de São João. 82 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 66. 83 Von Meyenburg, fax, julho de 2002, sobre os encontros e as visitas de Schuon. Ele não especifica quem estava no grupo. Aymard (e-mail) supõe que era o grupo criado por
Hans e Ernst Küry, dois irmãos com quem Schuon se correspondia, mas que não desempenham um papel importante na história posterior da ordem Alawiyya. 84 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 100. Aymard (e-mail) coloca esses acontecimentos em 1934, mas Schuon descreve o evento no contexto de ter recémfinalizado o poema «Du bist der Traum», escrito antes de sua partida da Basileia para Lausanne. Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 97 e 99. 85 Martin Lings, A Sufi Saint of the Twentieth Century: Shaikh Ahmad al-‘Alawi, His Spiritual
Heritage and Legacy (Londres: George Allen & Unwin, 1971), esp. pp. 63-6. 86 O marinheiro iemenita era Muhammad Qasim. Em 1999, quando Qassim morreu, o presidente do Iêmen enviou seu irmão à Inglaterra para o funeral. Ver Muhammad alMaysali, obituário de Muhammad Qasim al-Alawi, The British-Yemeni Society Website [online]. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2001. 87 A suspeita não se devia ao fato de as ordens sufis serem organizações militares dedicadas à jihad, mas sim ao fato de que, devido à destruição e ao controle das instituições norte-africanas pelos franceses, as ordens eram tudo o que restava para servir de base de organização da resistência. 88 Robert Caspar, em «Mystique musulmane. Bilan d’une décennie (1963- -1973)», Institut
de Belles Lettres Arabes [Túnis] 135 (1975), pp. 81-2, menciona a popularidade, mas tem dificuldade em explicá-la. Sobre Probst Biraben, Jean-Pierre Laurant, e-mail, 11 de outubro de 2001. 89 Lings, entrevista, relata que os marinheiros compraram a passagem. Von Dechend, no entanto, recorda-se que ela comprou a passagem (Aymard, e-mail, citando sua entrevista com Von Dechend). 90 Aymard, «Frithjof Schuon», p. 14. 91 Para uma bela descrição da zawiya, ver Schuon, carta do início de janeiro de 1933, publicada em Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 73. 92 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 71-2. 93 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 71-4 e 77. 94 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 8, 71 e 74 95 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 8. 96 Von Meyenburg, entrevista.
97 Burckhardt, texto sem título, citado em Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 87-8. 98 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 84, e Aymard, «Frithjof Schuon», p. 17. 99 Al-Alawi supostamente tinha pontos de vista universalistas, mas não se conhece o seu nível ou extensão. 100 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 84. 101 Burckhardt in Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 86 e 88. 102 Burckhardt in Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 89. 103 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 94. 104 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 95. 105 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 94. 106 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 16. 107 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 122. Baseado nesse texto, é possível pensar que essa nomeação também foi parte das visões do Profeta e do Buda, mas esse não é o caso, já que o mesmo episódio é descrito de maneira bastante factual em uma carta de Schuon a Hans Küry, 20 de fevereiro de 1935 (agradeço a M. Aymard por citar a passagem correspondente, e-mail). 108 Por exemplo, «Sidi Alawi» para Cyril Glasse (sem data; coleção privada), Aymard, «Frithjof Schuon», p. 16, e Roland Goffin, entrevista com Khaled Bentounès, «Entrevista con Khaled Bentounes», Symbolos 19 [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2001. 109 Khaled Bentounès, entrevista. 110 Von Meyenburg sugere que a opinião de Schuon era a de que «convencionalmente, uma
ijaza é necessária para conferir a iniciação; em situações de emergência, qualquer iniciado pode fazê-lo, assim como qualquer batizado pode batizar quando um padre não está disponível» (fax, julho de 2002). Outros seguidores de Schuon, passados ou presentes, sugerem o mesmo, ainda que sem a referência ao batismo. Se essa era a lógica de Schuon, ela depende profundamente do paralelo cristão. No mundo islâmico, não existe o conceito de «situação de emergência» que exija a admissão numa ordem sufi. 111 Von Meyenburg, entrevista e fax, julho de 2002.
112 Von Meyenburg, fax, julho de 2002. Aymard cita Hans Küry relatando o mesmo incidente, com Schuon dando continuidade ao dhikr (e-mail), e, em geral, sobre a liderança do grupo ser de Schuon, e não de Burckhardt, desde o início. Uma vez que nunca entrevistei Küry, não sou capaz de resolver essa discrepância e apenas sigo a versão de Von Meyenburg. 113 Von Meyenburg, entrevista. 114 Schuon a Burckhardt, maio de 1939. Usei uma versão posterior, datilografada, desta carta. 115 William Stoddart, por exemplo, citou o Corão 29:45 em um e-mail (fevereiro de 2003). Esse versículo começa da seguinte maneira: «Recita o que te foi revelado do Livro (Corão) e observa a oração, porque a oração preserva do erro e da iniquidade», e continua, dependendo da interpretação de cada um, ou do seguinte modo: «mas, na verdade, a recordação de Alá é muito importante», ou «a recordação de Alá é mais importante». A dificuldade surge porque, em árabe, «muito importante» e «mais importante» são o mesmo. Os schuonianos preferem «mais importante» e — de maior importância — enfatizam a palavra árabe traduzida como «recordação» — dhikr. Ao menos alguns schuonianos enxergam a palavra dhikr nesse contexto como referência à prática sufi da oração repetitiva, chamada dhikr. O uso da palavra nesse sentido geralmente é considerado posterior ao Corão, e, dessa forma, «recordação» é geralmente entendido como o sentido do termo. Que esses schuonianos interpretem um versículo geralmente tomado para sublinhar a importância da oração ritual em um sentido quase totalmente contrário é uma indicação de sua distância do mainstream islâmico, mas também, em certo sentido, de sua sinceridade. 116 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 100. 117 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 104-18. 118 A julgar pela referência na carta de Schuon [a Burckhardt?] datada de 5 de maio de 1944, publicada em Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 125. 119 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 122. Aymard discorda da minha cronologia (e-mail); o trecho, escrito em 1944, descreve acontecimentos em Mostaganem e a permissão para usar o nome do Altíssimo, além de comentários de que ele deixou de usálo «mais tarde», associando essa interrupção a seu amor profano. Não está de todo claro quando foi este «mais tarde», mas creio que minha interpretação é a mais provável.
120 Von Meyenburg, entrevista. Aymard discorda dessa frase (e-mail), mas há outros indícios colaterais que sustentam a recordação de Von Meyenburg. 121 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 132. 122 Por exemplo, Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 95. 123 Clavelle, «Document confidentiel». 124 Clavelle, “Document confidentiel». 125 Von Meyenburg, entrevista. Clavelle, «Document confidentiel», fala em cem, mas Von Meyenburg é a fonte mais confiável. 126 O status espiritual de um santo em especial pode ser privado, mas qualquer coisa que possa ser descrita como uma ordem, em sentido organizacional, é quase sempre pública. 127 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 95 e 138. Aymard questiona essa cronologia (e-mail), mas o primeiro evento é claramente datado do início de 1937, enquanto o segundo aconteceu cerca de dois anos após a morte de al-Alawi. 128 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 95. 129 Von Meyenburg, entrevista. 130 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 8 e 136, e Aymard, «Frithjof Schuon», pp. 25-6. 131 Chodkiewicz, entrevista. 132 Guénon, carta a Vasile Lovinescu, março de 1938, citada em Julius Evola, Le chemin du
cinabre (Milão: Arché and Arktos, 1983), pp. 199-200. 133 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 139. 134 Aymard, «Frithjof Schuon», p. 27. 135 James, Esotérisme, Occultisme, pp. 84-5, e Von Meyenburg, entrevista. 136 Von Meyenburg, entrevista. 137 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 9 e 37. 138 Schuon, carta de 18 de agosto de 1943, publicada em Schuon, Erinnerungen und
Betrachtungen, p. 120. 139 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 262-3.
140 Na realidade, o interesse de Schuon pela Virgem Maria existia antes disso. Por volta de 1934, ele compôs um poema à Virgem. Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 154.
5. FASCISMO (PP. 179-218) 1 Definidos pragmaticamente aqui como os regimes autoritários que terminaram combatendo os aliados ocidentais ao lado do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial. 2 Essas são as palavras de Erwin Torre, o alter ego de Rudolf von Sebottendorff, em seu romance autobiográfico intitulado Der Talisman des Rosenkreuzers (Pfullinger in Württemberg: Johannes Baum Verlag, 1925), pp. 81-97. 3 Nicholas Goodrick-Clarke, The Occult Roots of Nazism: The Ariosophists of Austria and
Germany, 1890-1935 (Wellingborough: Aquarian Press, 1985), pp. 41-64 e 128-9. 4 Von Sebottendorff, por meio de seu alter ego Erwin, Talisman, p. 101. 5 Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, pp. 142-6 e 150, e Von Sebottendorff, Talisman, pp. 99-102. 6 Albrecht Götz von Olenhusen, «Zeittafel zur Biographie Rudolf von Sebottendorff (18751945)», impresso após 1969 numa revista não identificada, pp. 81-6; Götz von Olenhusen, «Bürgerrat, Einwohnerwehr und Gegenrevolution: Freiburg 1918-1920. Zugleich ein Beitrag zur Biographie des Rudolf Freiherr von Sebottendorff», in Beiträge
zur europäischen Geistesgeschichte der Neuzeit. Festschrift für Ellie Howe zum 20. September 1990, org. Götz von Olenhusen et al. (Freiburg: Hochschule Verlag, 1990), pp. 122-6; e Goodrick Clarke, Occult Roots of Nazism, pp. 147-9 e 151-2. 7 Esta é a conclusão completamente convincente de Goodrick-Clarke, Occult Roots of
Nazism, pp. 193-8 e 201-2. O mito, porém, viria a se tornar realidade, com o crescimento de grupos neonazistas ocultistas nas décadas de 1970 e 1980. Ver Nicholas GoodrickClarke, Black Sun: Aryan Cults, Esoteric Nazism, and the Politics of Identity (Nova York: New York University Press, 2002), especialmente pp. 108-9 e 14-7. 8 Bevor Hitler kam: Urkundlichen aus der Frühzeit der nationalsozialistischen Bewegung (Munique: Deukula-Grassinger, 1933). 9 Götz von Olenhusen, «Zeittafel zur Biographie», p. 88, e Herbert Rittlinger, Geheimdienst
mit beschränkter Haftung: Bericht vom Bosporus (Stuttgart: Deutsche Verlags—Anstalt, 1973), p. 184.
10 Rittlinger, Geheimdienst, pp. 184-5 e 326. Rittlinger supõe que Von Sebottendorff tenha recebido ajuda de amigos importantes, já que, de outro modo, sua saída de um campo de concentração e seu retorno à Turquia seriam inexplicáveis. 11 Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, p. 146. 12 Para um relato alternativo do desenvolvimento intelectual de Evola, ver Goodrick-Clarke,
Black Sun, pp. 53-66. 13 Julius Evola, Le chemin du cinabre (Milão: Archè and Arktos, 1983), p. 69. Na página 85, ele diz que chegou até a criticar Guénon em seu livro Saggi sull’idealismo magico (1925). 14 Rivolta contro il mondo moderno (Milão: Hoepli, 1934; reimpressão, Roma: Edizioni Mediterranee, 1993). 15 H. T. Hansen, «Julius Evola und der Sexus» in Julius Evola, Die Grosse Lust — Metaphysik
des Sexus (n.p.: Fischer Media Verlag, 1998). 16 Arte astratta, posizione teorica (Zurique: Magliano e Strini, 1920); La parole obscure du
paysage intérieur (Zurique: Collection Dada, 1920). Evola, Chemin du cinabre, pp. 17-22, e Alain de Benoist, «Bibliographie de Julius Evola». Agradeço ao sr. De Benoist por me permitir usar sua bibliografia exaustiva e inédita. Richard Drake, «Julius Evola and the Ideological Origins of the Radical Right in Contemporary Italy», in Political Violence and
Terror: Motifs and Motivations, org. Peter H. Merkl (Berkeley: University of California Press, 1986), para a Revue bleu, e Hansen, «Julius Evola und der Sexus», para as unhas. 17 Esse interesse foi refletido nas obras iniciais de Evola, Saggi sull’idealismo magico (1925) e L’uomo come potenza. I Tantra nella loro metafisica e nei loro metodi di
autorealizzazione magica (1926). Evola, Chemin du cinabre, pp. 30-1. 18 H. T. Hansen, «Die ‹magische› Gruppe von Ur in ihrem Historischen und esoterischen Umfeld», in Julius Evola, Schritte zur Initiation (Berna: Scherz-Ansata, 1997), e Evola,
Chemin du cinabre, p. 69. Sobre Reghini, Dana Lloyd Thomas, «Arturo Reghini: A Modern Pythagorean», Gnosis Magazine 59 (verão 1997. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2002. 19 Evola, Chemin du cinabre, p. 79. 20 Sibilla Aleramo, Amo, dunque sono (1927; reimpressão, Milão: A. Mondadori, 1940). 21 Hansen, «Julius Evola und der Sexus». 22 Evola, Chemin du cinabre, pp. 85-9. Evola também reconhece a influência de Hermann Wirth, mas esta foi menos importante.
23 Evola, Chemin du cinabre, pp. 8-10 e 28-9. 24 Teoria dell’individuo assoluto (Turim: Fratelli Bocca, 1927). 25 Joseph Campbell, «Introduction», in Myth, Religion and Mother Right: Selected Writings
of J. J. Bachoffen, org. Ralph Manheim (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1967), pp. XXXIV-XLIV. 26 Jakob Burckhardt não apenas tinha a obra de Bachofen em alta conta, mas era também seu contraparente — Louise, a mulher de Bachofen, era da família Burckhardt. Campbell, «Introduction», pp. XXXIV e LI-LIV, e George Boas, «Preface», in Myth, Religion and
Mother Right, org. Manheim, pp. XI-XX. Segundo Campbell, Nietzsche fazia frequentes visitas à casa de Bachofen na década de 1870 (p. XLVI). 27 Autorité spirituelle et pouvoir temporel (Paris: J. Vrin, 1929). 28 Evola, Rivolta contro il mondo moderno, passim, e Evola, Chemin du cinabre, pp. 90-2, 106-7 e 125-6. 29 Evola, Chemin du cinabre, p. 92. 30 Lloyd Thomas, «Arturo Reghini» 31 Evola, Chemin du cinabre, pp. 70-1. 32 Evola, Chemin du cinabre, p. 97. 33 Imperialismo pagano. Il fascismo dinnanzi al pericolo euro-cristiano (Roma: Atanor, 1928). 34 Hansen, «Die ‹magische› Gruppe von Ur». Reghini estava ligado à maçonaria e compartilhava dos pontos de vista expressos em Imperialismo pagano, considerando o paganismo romano infinitamente superior ao Cristianismo, que ele desprezava não apenas como sentimentalismo (seguindo Guénon) mas também como a religião do «proletariado espiritual». Ver Evola, Chemin du cinabre, p. 69. 35 Evola, Chemin du cinabre, pp. 87 e 93, e Hansen, «Die ‹magische› Gruppe von Ur». 36 Evola, Chemin du cinabre, pp. 94-5. 37 Evola, Chemin du cinabre, pp. 70-5. 38 Evola, Chemin du cinabre, pp. 93-6. 39 La tradizione ermetica. Nei suoi simboli, nella sua dottrina e nella sua «Arte Regia» (Bari: Laterza, 1931). Evola, Chemin du cinabre, p. 103.
40 La tradizione romana (Milão: Flamen, 1973). Evola, Chemin du cinabre, pp. 87-88; Hansen, «Die ‹magische› Gruppe von Ur»; e Renato del Ponte, «Le correnti della tradizione pagana romana in Italia», Algiza 7 (c. 1996). Disponível em: . Acesso em: 17 maio 2000. 41 Maschera e volto dello spiritualismo contemporaneo. Analisi critica delle principali correnti
moderne verso il «sovrannaturale» (Turim: Bocca, 1932). 42 Evola, Chemin du cinabre, p. 107-13. 43 Evola, Chemin du cinabre, pp. 112-3. 44 Evola, Chemin du cinabre, p. 104. 45 Rio de Janeiro: Rocco, 1991. Esta interpretação é o único sinal de influência Tradicionalista no livro, que, exceto isso, é claramente moderno. A interpretação da alquimia feita por Coelho provavelmente veio de Mircea Eliade (discutido mais adiante). 46 Hansen, «Die ‹magische› Gruppe von Ur». 47 Esta é a opinião de Hansen, com base também em outras pesquisas (comunicação pessoal). 48 Evola, Chemin du cinabre, p. 69. 49 Na realidade, Hartung perguntava sobre o «indivíduo individuado» («Rencontres Romaines au milieu des ruines», manuscrito inédito, março de 1984), mas a questão é essencialmente a mesma. 50 Essa afirmação foi feita em 1974. Ver Claudio Mutti, «Evola e l’Islam», Heliodromos:
Contributi per il fronte della Tradizione [Siracusa] 6 (primavera 1995), 52-3. 51 Hartung, «Rencontres» 52 Evola, Chemin du cinabre, pp. 96-9. 53 Evola, Chemin du cinabre, p. 101. 54 Heidnische Imperialismus (Leipzig: Armanen, 1933). 55 De Benoist, «Bibliographie». 56 H. T. Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution», Criticon [Munique] 158 (abril-julho 1998), 16-33. 57 Evola, Chemin du cinabre, p. 75. 58 Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution».
59 Evola, Chemin du cinabre, p. 134. 60 Aparentemente, sob a forma moderna ting nos nomes dos parlamentos escandinavos contemporâneos. 61 Evola, Chemin du cinabre, pp. 134-5, e Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». 62 Evola, Chemin du cinabre, pp. 136-7, e Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». 63 Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». 64 Evola, Chemin du cinabre, p. 137. 65 Il mistero del Graal e la tradizione ghibellina dell’Impero (Bari: Laterza, 1937). 66 Hansen, «Julius Evola und der Sexus». 67 Esse resumo vê os acontecimentos sob uma luz algo evoliana. 68 Evola, Chemin du cinabre, pp. 129-30. Essa é uma simplificação extrema de eventos complexos. 69 Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». 70 Os detalhes conhecidos são retirados da ata de uma reunião que rejeitou essas propostas, e a visita a Wewelsburg aparece em um relatório da polícia italiana de 1939 (embora, uma vez que outro relatório desse tipo apresente Evola como um seguidor de Rudolf Steiner, engajado na divulgação do imperialismo alemão e mantendo relações próximas com o príncipe herdeiro e com a senhora Krupp, esse tipo de documento sobre Evola deva ser tratado com cuidado). Ver Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». Evola guarda silêncio sobre quaisquer contatos com a SS em
Chemin du cinabre, relatando apenas seus contatos com os ultraconservadores, mas na altura em que escreveu o livro ele tinha razões para se arrepender de suas ligações com as SS. 71 Wiligut foi instruído a resenhar quatro conferências de Evola, uma delas proferida em Berlim em 1937, as outras três em 1938, bem como o livro Heidnische Imperialismus — Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, pp. 188-3 e 189-90. A conexão de Wiligut com o ocultismo aconteceu no fim da década de 1920, com o Ordo Novi Templi, um grupo neotemplário fundado em 1907 por Jörg Lanz von Liebenfels, um antigo cisterciense. Von Liebenfels estava ligado (de maneira previsível) à sociedade teosófica, mas algumas de suas ideias estavam muito distantes das dos teosofistas. Interpretando a queda descrita
na Bíblia como a miscigenação de arianos primitivos divinos com pigmeus, em 1905 ele propôs que os arianos fossem restituídos a seu estado divino; suas propostas incluíam a esterilização de raças inferiores ou sua deportação a Madagascar, ou, ainda, alternativamente, sua incineração ritual. Ver Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, pp. 90-7, 100 e 180. 72 Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, p. 190. 73 Sobre as atas da reunião de 11 de agosto de 1938, Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». Hansen dá uma interpretação completamente diferente a essas atas, enfatizando que o relato da visita de Evola em 1938 não é confiável, simplesmente citando a referência aos planos de Evola e afirmando que estes eram insustentáveis por serem utópicos. Hansen provavelmente viu as atas originais, e eu não, algo que torna minha interpretação um pouco menos certa, mas me parece que a reunião não poderia ter decidido cortar o acesso aos führenden Dienststellen a menos que Evola tivesse gozado previamente de tal acesso, e que uma reunião de nível tão elevado a ponto de Himmler estar presente não teria se dado ao trabalho de pensar no planos de Evola a menos que, de algum modo, eles estivessem dirigidos às SS. GoodrickClarke, Occult Roots of Nazism (ao qual Hansen não faz referência; é possível que ele não conheça o relatório de Wiligut) não dá detalhes do discurso que Wiligut deveria relatar, e há confirmação de que apenas um deles (o de 1937) teria sido feito na Alemanha; assim, é possível que os três discursos de junho de 1938 tenham sido feitos em outro lugar, possivelmente na Itália, e tenham atraído a atenção de Hitler por alguma outra razão. Parece improvável, no entanto, que não exista nenhuma conexão, uma vez que os três discursos feitos em junho de 1938 foram analisados pelas SS e o orador estava na agenda de uma reunião de alto nível das SS em agosto de 1938. Deve-se enfatizar, porém, que mais pesquisas sobre o assunto são necessárias. 74 Goodrick-Clarke, Occult Roots of Nazism, pp. 179 e 190. 75 Sintesi di dottrina della razza (Milão: Hoepli, 1941). 76 Evola, Chemin du cinabre, pp. 151-2 e 157. 77 Evola, Chemin du cinabre, pp. 153 e 156, e De Benoist, «Bibliographie». 78 Evola, Chemin du cinabre, p. 154. 79 Evola, Chemin du cinabre, p. 154, e Hansen, «Julius Evola und die deutsche konservative Revolution». O próprio Evola, é claro, apresenta os acontecimentos de maneira bastante distinta.
80 De Benoist, «Bibliographie». 81 Evola, Chemin du cinabre. pp. 159-62. Goodrick-Clarke, Black Sun, pp. 66-7. 82 Sobre Reghini, H. T. Hansen, «Mircea Eliade, Julius Evola und die Integrale Tradition», in Julius Evola, Über das Initiatische (Sinzheim: AAGW, 1998). Sobre o grupo Ur, Evola,
Chemin du cinabre, p. 137. «Distante» num sentido geográfico, mas também metafórico. No fim da década de 1930, Evola mandou alguns livros a Eliade com uma nota que começava da seguinte maneira: «Lembro-me perfeitamente de você» — Claudio Mutti,
Julius Evola sul fronte dell’est (Parma: All’insegna del Veltro, 1998), p. 94 —, o que dá a entender que Eliade havia pedido os livros em uma carta que continha alguma frase do tipo «você talvez se lembre que Reghini [ou alguma outra pessoa] falou-lhe sobre mim em [...]». A data de 1927 é a mais tardia possível, dado o conteúdo evoliano do artigo de Eliade intitulado «Ocultismul în cultura europeana», publicado na revista Cuvântul em dezembro de 1927. Ao mesmo tempo, também é a primeira data possível, já que o grupo Ur não existia antes de 1927. 83 Sobre a Teosofia, Natale Spineto, «Mircea Eliade and Traditionalism», Aries 1, n. 1 (2001), 68. Saint Martin é menos claro. 84 Spineto, «Mircea Eliade», p. 68. 85 Mircea Eliade, Journal iii, 1970-1978 (Chicago: University of Chicago Press, 1989), p. 161. 86 Robert Ellwood, The Politics of Myth: A Study of C. G. Jung, Mircea Eliade, and Joseph
Campbell (Albany, N.Y.: SUNY Press, 1999), p. 81. 87 O encontro parece ter ocorrido por volta de 1933. Em 1934, Lovinescu publicou um artigo sobre o Santo Graal em Études traditionnelles — Claudio Mutti, «Nota introduttiva», in Vasile Lovinescu, , La Dacia iperborea (Parma: All’insegna del Veltro, 1984), p. 11. Há também uma breve referência a Evola em um artigo publicado por Lovinescu naquele ano na revista Vremea [Bucareste] (Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, p. 23). 88 Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, p. 22 89 Mutti, «Nota introduttiva», Dacia iperborea, p. 11. Os artigos sobre a Dácia foram compilados e traduzidos sob o título de Dacia iperborea. 90 Adriana Berger, «Mircea Eliade: Romanian Fascism and the History of Religions in the United States», in Tainted Greatness: Antisemitism and Cultural Heroes, org. Nancy A. Harrowitz (Filadélfia: Temple University Press, 1994), pp. 55-6.
91 Mutti, «La vita e i libri di Vasile Lovinescu», in Vasile Lovinescu, La colonna traiana [sic] (Parma: All’insegna del Veltro, 1995), p. 20. 92 Mutti, «Vita e libri», p. 20. 93 O primeiro artigo Tradicionalista de Eliade é de dezembro de 1927, quando ele tinha vinte anos de idade e era estudante universitário. Trata-se de «Ocultismul în cultura europeana», publicado na revista Cuvântul [Juventude] em 1º de dezembro de 1927, pp. 1-2, e baseava-se num artigo de Evola publicado na Itália no mês anterior, intitulado «Il valore dell’occultismo nella cultura contemporanea» [O valor do ocultismo na cultura contemporânea], Bilychnis, 11 nov. 1927, pp. 250-69. Em 1932, Eliade descreveu Guénon como um «notável ocultista, com uma compreensão sólida do que fala» («Spritualitate si mister feminin» [Espiritualidade e mistério feminino], Azi [Hoje], abr. 1932). Em sua resenha do livro Rivolta contro il mondo moderno (1933) publicada na revista Vremea (31 mar. 1935, p. 6), Eliade é mais cauteloso, referindo-se a Evola como «uma das personalidades mais interessantes da geração da guerra». Após 1935, porém, encontramse apenas referências ocasionais aos autores Tradicionalistas. Ver Mutti, Julius Evola sul
fronte dell’est, pp. 22, 97-8, e Hansen, «Mircea Eliade». 94 Spineto, «Mircea Eliade», p. 67. 95 Citado em Hansen, «Mircea Eliade». 96 Eliade, Journal iii, pp. 162-3. 97 Uma vez que Eliade não negou a acusação de Evola a respeito da falta de créditos, ele só poderia estar tentando explicar a razão de tais créditos (cuja presença representaria um «Tradicionalimo explícito») estarem ausentes. Nesse contexto, a referência a seu público não Tradicionalista parece indicar que ele não queria alienar tal público. Também podia significar, é claro, que ele não via razão para citar autores (os Tradicionalistas) que seus leitores desconheciam, mas essa interpretação é improvável, uma vez que Eliade devia compreender o duplo propósito da citação de fontes. Em outro lugar, Eliade praticamente admitiu seu Tradicionalismo. Em 1940, ao escrever um romance (Viaţa Nou [Vida Nova]), ele anotou em seu diário o seguinte, sobre Tulin, um dos personagens: «Tulin dirá coisas que nunca tive coragem de expressar em público. Confessei apenas a alguns amigos, em certas ocasiões, minhas opiniões ‹tradicionalistas› (para usar o termo de René Guénon)». Citado em Spineto, «Mircea Eliade», p. 68. 98 Em uma carta de 1949, Guénon escreveu o seguinte a respeito de Eliade: «Em essência, ele está mais ou menos inteiramente de acordo com as ideias tradicionais, mas não ousa demonstrá-lo demasiadamente no que escreve, já que tem medo de se chocar com as
concepções oficialmente aceitas». Steven M. Wasserstrom, Religion after Religion:
Gershom Scholem, Mircea Eliade, and Henry Corbin at Eranos (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1999), p. 272. 99 Em Comentarii la legenda Meşterului Manole [Comentário à lenda do Mestre Manolo] (Bucareste: 1943), citado em Spineto, «Mircea Eliade», p. 73. 100 Mircea Eliade, «Some Notes on Theosophia perennis: Ananda K. Coomaraswamy and Henry Corbin» [Review of Roger Lipsey, Coomaraswamy, 3 vols., Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1977], History of Religions 19 (1979), 169-71. 101 Spineto, «Mircea Eliade», menciona: «os conceitos de correspondência antropocósmica, de símbolo, de centro sagrado, de qualidade ‹cíclica› do tempo tradicional, de construção humana como uma repetição da cosmogonia, de sacrifício como reintegração e de arquétipo» (p. 68). Muitos desses não são centrais para as obras de Eliade nem dos Tradicionalistas, ou então podem ser encontrados nela, mas também em outros lugares. Eliade via, sim, o tempo tradicional como cíclico, mas de uma maneira muito diferente de Guénon. 102 Esse objetivo é deduzido de sua associação anterior com o Tradicionalismo, dedução que parece corroborada pelos argumentos que mostrarei adiante. É claro que Eliade — como qualquer pessoa— deve ter tido múltiplos objetivos. 103 Douglas Allen, «Mircea Eliade’s View of the Study of Religion as the Basis for Cultural and Spiritual Renewal», in Changing Religious Worlds: The Meaning and End of Mircea
Eliade, org. Bryan S. Rennie (Albany, N.Y.: SUNY Press, 2000), pp. 211 e 214-25. Ver também Bryan S. Rennie, «Introduction», Changing Religious Worlds, org. Rennie, pp. IXXXIV 104 «Folclorul ca instrument de cunostere» [O Folclore como instrumento do conhecimento], 1937, reproduzido em Insula lui [A ilha], Euthanasius (Bucareste: Fundatia regala pentru literatura si arte, 1943). Citado em Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, p. 22. 105 Em certas ocasiões, ele também substituia «iniciático» por «soteriológico» — ver exemplo em Spineto, «Mircea Eliade», p. 69. Para Eliade, a religião «arcaica» incluía até mesmo o hinduísmo contemporâneo (ver Rennie, «The Religious Creativity of Modern Humanity: Some Observations on Eliade’s Unfinished Thought», Religious Studies 31 [junho 1995], 221-35), do mesmo modo que o hinduísmo era «tradicional» para os Tradicionalistas. 106 Spineto, «Mircea Eliade», p. 75.
107 Em L’épreuve du Labyrinthe, entretien avec C. H. Rocquet (Paris: 1978), citado em Enrico Montanari, «Eliade e Guénon», Studi e Materiali di Storia della Religioni 61 (1995), 133. 108 N. J. Girardot, «Smiles and Whispers», in Changing Religious Worlds, org. Rennie, p. 157. 109 O apoio de Lovinescu é deduzido de seu artigo «Mistica fascismului» [O misticismo do fascimo], Vremea, 14 jan. 1934 (Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, p. 23). Ele também conhecia pessoalmente Codreanu (Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, p. 21). O apoio de Eliade é discutido mais adiante. 110 Larry L. Watts, Romanian Cassandra: Ion Antonescu and the Struggle for Reform, 1916-
1941 (Boulder, Col.: East European Monographs, 1993), pp. 132-3, e Berger, «Mircea Eliade», p. 56. O juízo sobre o antissemitismo dos legionários vem de Watts, p. 183. 111 Radu Ioanid, The Sword of the Archangel: Fascist Ideology in Romania (Boulder, Col.: East European Monographs, 1990), pp. 54-5, e Watts, Romanian Cassandra, pp. 158-60. 112 Z. Ornea, The Romanian Extreme Right: The Nineteen Thirties (Boulder: East European Monographs, 1999), pp. 204 e 206. 113 Vremea 10: 476 (1937), citado em Berger, «Mircea Eliade», pp. 63-4. 114 «Why I Believe in the Victory of the Legionary Movement», Buna Vestire [Boas Novas], 17 dez. 1937. Tradução alemã em Deutsche Stimme, 11, 1998. Disponível em: . Acesso em: maio 2000. 115 «Bucuresti Centru Viril», Vremea 8: 835 (1935), e «Pilotii Orbi» [Pilotos cegos], Vremea 10: 505 (1937), citado em Berger, «Mircea Eliade», pp. 56 e 63. 116 Ou 1936 ou 1938 — ver a discussão em Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, pp. 13-5. 117 Evola, Chemin du cinabre, p. 137. 118 Mutti, Julius Evola sul fronte dell’est, pp. 25-6. 119 Florin Mihaescu, «René Guénon, Frithjof Schuon, Vasile Lovinescu et l’initiation», in
Frithjof Schuon, 1907-1998: Études et témoignages, org. Bernard Chevilliat (Avon: Connaissance des Religions, 1999), pp. 195-7. 120 Ioanid, Sword of the Archangel, p. 141 sobre Lupu. 121 Maurice Clavelle [Jean Reyor], «Document confidentiel inédit», documento datilografado inédito, e Muhammad Vâlsan, entrevista.
122 Em Eliade, «Initiation et monde moderne», Travaux de Villard de Honnecourt 1 (1980). Citado em Wasserstrom, Religion after Religion, pp. 41-2. 123 Watts, Romanian Cassandra, pp. 173-6; Ellwood, Politics of Myth, p. 82; e Ornea,
Romanian Extreme Right, p. 216. 124 Marie-France James, Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie et Christianisme aux xix
et xix siècles. Explorations bio-bibliographiques (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), p. 336, e Bryan Rennie, «Mircea Eliade», Routledge Encyclopedia of Philosophy (1998). 125 Watts, Romanian Cassandra, pp. 228-9, e Ornea, Romanian Extreme Right, p. 219. 126 Mutti, «Vita e libri», p. 22. 127 A formulação, ainda que não a acusação em si, vem de Kelley Ross, «Mircea Eliade (1907-1986)», The Proceedings of the Friesian School, Fourth Series, 1996- [on-line]. Disponível em: . 128 Ross, «Mircea Eliade». 129 A patrulea hagialîc: exegeza nocturna a Crailor de Curtea-Veche (Bucareste: Cartea Româneasca, 1981); Mutti, «Vita e libri», p. 22; e e-mail de Mihai Marinescu, 1º de setembro de 2001. 130 Sobre os acontecimentos posteriores à morte de Lovinescu, ver AN 1. 131 Para mais detalhes, ver AN 2.
6. FRAGMENTAÇÃO (PP. 219-263) 1 Havia obviamente um Tradicionalista não identificado no serviço diplomático brasileiro. O Brasil declarou guerra ao Eixo em agosto de 1942. 2 A maçonaria francesa foi oficialmente dissolvida em 1940 e teve seus bens e arquivos apreendidos. Listas de maçons — proibidos de ocupar cargos públicos e sujeitos a outras restrições — foram publicadas no Journal Officiel [Diário Oficial]. Diversas exposições e publicações antimaçônicas foram criadas. Antonio Coen e Michel Dumesnil de Gramont,
La Franc-Maçonnerie Ecossaise (Nice: SNEP, 1946), pp. 6 e 57-60. 3 Martin Lings, entrevista. 4 Alain Daniélou, «René Guénon et la tradition hindoue», in René Guénon [Dossier H], org. Pierre-Marie Sigaud (Lausanne: L’Age d’Homme, 1984), pp. 138-9, e Marie-France James,
Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie et Christianisme aux xix et xx siècles. Explorations bio-bibliographiques (Paris: Nouvelles éditions latines, 1981), pp. 88-9. 5 André Gide, Journal 1939-1949: Souvenirs (1954; Paris: Gallimard, 1979), p. 254. O Tradicionalista em questão era Abdallah Haddou, identificado como Georges ou Guy Delon. Nada mais se sabe sobre ele. 6 Henri Bosco, «Trois rencontres», Nouvelle Revue Française, nov. 1951, p. 279. 7 La grande Triade (Nancy: Revue de la Table Ronde, 1946). Denys Roman, René Guénon et
les destins de la Franc-Maçonnerie (Paris: Les éditions de l’oeuvre, 1982), p. 160. 8 Essa é a estimativa de Claude Gagne, que, além de ter sido um Venerável da Grande Tríade, foi também arquivista da Grande Loja Francesa. 9 O futuro grão-mestre era Antonio Coën. Retirado do registro de membros da Grande Tríade, do qual me foi permitido ver as primeiras páginas. 10 Roman, René Guénon, p. 166. 11 Roman, René Guénon, p. 165-6. 12 Henri Hartung, Spiritualité et autogestion (Lausanne: L’Age d’Homme, 1978), pp. 28-35, e Sylvie Hartung, entrevista. O relatório de Hartung, «La Chine communiste et le problème communiste chinois», foi apresentado em setembro. Henri Hartung, «Articles et conférences», manuscrito inédito, 1º de julho de 1983. 13 Henri Hartung, Présence de Ramana Maharshi (1979; Paris: Dervy livres, 1987), p. 36. 14 Em 1947 ele defendeu a tese L’hévéaculture et le problème de caoutchouc en Indochine
Française. Hartung, «Articles et conférences». 15 Hartung a Guénon, 2 de maio e 13 de julho de 1949, e Guénon a Hartung, 19 de maio de 1949. Coleção de Sylvie Hartung. 16 Vâlsan a Schuon, novembro de 1950, coleção particular. 17 Catherine Schuon, «Frithjof Schuon: Memories and Anecdotes», Sacred Web 8 (1992), 37-8. 18 Observação pessoal em diversas ocasiões. 19 Frithjof Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen ([Suíça]: edição privada, 1974), p. 12. 20 Black Elk Speaks (Nova York: William Morrow, 1932).
21 Michael Fitzgerald, «Le rôle de Frithjof Schuon dans la préservation de l’esprit de l’indien peau-rouge», in Frithjof Schuon, 1907-1998: Etudes et témoignages, org. Bernard Chevilliat (Avon: Connaissance des Religions, 1999), p. 186, e Bernadette Rigal-Cellard, «La religion des sioux oglalas», in Le facteur religieux an Amérique du Nord: Religion et
groupes ethniques au Canada et aux Etats-Unis, org. J. Beranger e P. Guillaume (Bordeaux: CNRS, 1984), pp. 245-8. 22 Catherine Schuon, «Frithjof Schuon», p. 41. 23 Fitzgerald, «Rôle de Frithjof Schuon», p. 187, e Jean-Baptiste Aymard, «Frithjof Schuon (1907-1998). Connaissance et voie d’intériorité. Approche biographique», in Chevilliat, org., Frithjof Schuon, 1907-1998, p. 32. 24 The Sacred Pipe: Black Elk’s Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux (Norman: University of Oklahoma Press, 1953). Aymard, «Frithjof Schuon», p. 32. 25 Rigal-Cellard, «Religion des sioux oglalas», p. 245. 26 Fitzgerald, «Rôle de Frithjof Schuon», p. 187. 27 Maurice Clavelle [Jean Reyor], «Document confidentiel inédit», documento datilografado inédito. As relações entre Guénon e Schuon parecem ter continuado como antes até esse momento, já que em 1947 Schuon chegou a enviar ao francês o manuscrito de seu livro mais importante, De l’unité transcendante des religions [Da unidade transcendente das
religiões], publicado em 1948 (Claude Gagne, entrevista). 28 Clavelle, «Document confidentiel». 29 «Islã Ortodoxo» é definido aqui como Guénon o faria: o Islã mainstream tal como praticado por sufis piedosos em países como o Egito. 30 Clavelle, «Document confidentiel». 31 Hartung, notas sobre uma conversa com Cuttat, 23 de julho de 1950, e carta aberta de Vâlsan a Schuon, novembro de 1950. Não me foi permitido ler a carta, mas apenas tomar notas enquanto ela era lida em voz alta para mim; algumas partes podem ter sido omitidas, mas tenho confiança de que nenhuma foi acrescentada e que seu tom geral não foi alterado de maneira significativa. 32 A mesma questão foi apresentada por um schuoniano tardio em 2002: «Essas dispensas nunca foram transformadas em um princípio amplamente aplicado». Michael Fitzgerald, «Frithjof Schuon: Providence without Paradox», Sacred Web 8, 2002. 33 Harald von Meyenburg, entrevista.
34 Vâlsan a Schuon, novembro de 1950. 35 Schuon, «Taçawwuf», texto datilografado sem data. 36 Fitzgerald, «Frithjof Schuon». 37 Vâlsan a Schuon, novembro de 1950. 38 O que fazer com o jejum em tais circunstâncias é um assunto que ocupou os muçulmanos durante séculos. A questão não surgiu durante os primeiros anos do Islã e, portanto, não recebeu uma resposta definitiva. Após a difusão do Islã para o norte, percebeu-se que jejuar do nascer ao pôr do sol em julho em certas latitudes seria o equivalente a cometer suicídio. Uma resposta pragmática a esse problema foi a de jejuar seguindo o horário do nascer e do pôr do sol de algum outro lugar, tal como Meca. 39 O único propósito do tayammum é rezar, e, no Ocidente, é mais difícil para um muçulmano encontrar um lugar para rezar do que encontrar um lugar para fazer as abluções. Tal permissão poderia ser útil para alguém que trabalhasse num lugar onde fosse possível trancar a porta de sua sala, mas não a porta de um banheiro público. 40 Não existem outras razões para embasar tais relaxamentos. A xaria permite um adiamento limitado da oração ritual e do jejum para aqueles que estão em viagem ou em combate, e dispensa completamente certas categorias de pessoas (mulheres grávidas, por exemplo) do jejum, mas isso é tudo. 41 Por exemplo, certa vez eu ouvi um xeique sufi conceder uma permissão desse tipo a um soldado norueguês servindo no exército de seu país durante uma missão de paz no Líbano. É possível imaginar a reação do exército norueguês a um soldado convertido ao Islã no Líbano e que começasse a rezar em público. 42 A expressão «essencialização» é usada muito mais tarde para descrever as «dispensas» de Schuon, em Fitzgerald, «Frithjof Schuon», mas é provável que o conceito subjacente já estivesse presente na década de 1940. 43 Vâlsan a Schuon, novembro de 1950. Vâlsan faz referência a beber vinho ou vinho do Porto, mas, segundo Von Meyenburg, a bebida permitida era cerveja, não vinho — sob o argumento de que a cerveja contém menos álcool do que o vinho. Von Meyenburg, fax, julho de 2002. 44 Houve relatos de que alguns dos sequestradores de 11 de setembro de 2001 foram vistos bebendo vodca, mas eles devem ser tratados com extremo cuidado. 45 Von Meyenburg, fax, julho 2002.
46 Schuon a Burckhardt, maio de 1939, dirigindo-se não especificamente a Burckhardt sobre esse ponto, mas «a todas as zawiyas». Usei uma versão posterior, datilografada, dessa carta. 47 Clavelle, «Document confidentiel», complementado pela entrevista com A1 (ver a lista antes da bibliografia). Eu não vi essa ijaza, cuja existência já foi questionada em certas ocasiões. No entanto, há muito menos controvérsia a respeito da izaja de Maridort do que da de Schuon. 48 Vâlsan a Schuon, novembro de 1950. Fontes contemporâneas da ordem Maryamiyya não negaram esse ponto. 49 PierLuigi Zoccatelli, e-mails, 2 e 4 de julho de 2001, e Zoccatelli, Le lièvre qui rumine:
Autour de René Guénon, Louis Charbonneau-Lassay et la Fraternité du Paraclet (Milão: Archè, 1999), p. 31. 50 Zoccatelli, Lièvre qui rumine, p. 33. Ver AN 1. 51 Jean-Pierre Laurant, Les sens caché selon René Guénon (Lausanne: L’Age d’homme, 1975), pp. 241-2. 52 Ver Clavelle, «Document confidentiel inédit», e Roman, René Guénon, p. 167. Corneloup, um observador mais ou menos neutro, ecoa essa interpretação em J. Corneloup, Je ne
sais qu’épeler (Paris: Vitiano, 1971), pp. 114 e 117. 53 Ou, possivelmente, uma terceira tentativa. Outra loja foi fundada na França durante a década de 1950 por Tradicionalistas romenos refugiados no país; não se conhecem mais detalhes, porém. 54 Agradeço a PierLuigi Zocatelli por essa informação. 55 Essa afirmação de Reyor foi contestada, mas ela parece plausível, dada a convicção de Guénon de estar sendo espionado. 56 Clavelle, «Document confidentiel inédit», e Lings, entrevista. 57 Lings chegou a ser chamado pela polícia para prestar esclarecimentos sobre esses estranhos símbolos (Lings, entrevista). Uma fonte sem relação com Lings, um americano que dava aulas no Cairo na época, confirmou ser bastante normal no fim da década de 1940 que as cartas vindas do exterior chegassem com claros sinais de terem sido lidas pelos censores. 58 Hartung, notas da conversa com Cuttat, 27 de agosto de 1950. 59 Clavelle, «Document confidentiel».
60 James, Esotérisme, Occultisme, pp. 85-6. 61 Sylvie Hartung, entrevista. 62 Sylvie Hartung, entrevista. Os alawis não schuonianos eram seguidores de Khaled Bentounès. 63 Vâlsan a Schuon, 17 de setembro de 1950. Sobre a aprovação de Guénon, Michel Chodkiewicz, entrevista. 64 Guénon, carta de 9 de outubro de 1950, reproduzida em Dominique Devie, «The File on the Schuon Case: The History of a Pseudo-Guénonian Cult» [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 1996. 65 Vâlsan a Schuon, novembro de 1950. 66 Hartung, notas da conversa com Cuttat, 23 de julho de 1950. 67 Clavelle, «Document confidentiel». 68 Valentine de Saint-Point, «René Guénon», L’Egypte nouvelle, 25 jan. 1952, reproduzido em L’Ermite de Duqqi: René Guénon en marge des milieux francophones égyptiens, org. Xavier Accart (Milão: Archè, 2001), pp. 158-9. 69 Gabriel Boctor, «Une visite à l’ermite de Dokki», La Bourse égyptienne, 22 jan. 1951, reproduzido em Accart, org., Ermite de Duqqi, p. 103. 70 Paul Chacornac, La vie simple de René Guénon (1958; Paris: Éditions traditionnelles, 1986), pp. 112-24; Lings, carta a Schuon, 11 de janeiro de 1951 (coleção privada, tradução francesa em Accart, org., Ermite de Duqqi, pp. 239-41); e S Katz, carta a Swami Siddheswarananda, 6 de fevereiro de 1951, em Accart, org., Ermite de Duqqi, pp. 241-2. Whithall N. Perry, «Aperçus», in Frithjof Schuon, 1907-1998: Études et témoignages, org. Bernard Chevilliat (Avon: Connaissance des Religions, 1999), pp. 90-1. Ver AN 2. 71 Accart, org., Ermite de Duqqi, pp. 53-4. 72 Diversas fontes. 73 A origem dessa crença não foi determinada. Sobre o último desejo, Katz a Siddheswarananda, 6 de fevereiro de 1951. 74 Sobre a tentativa de vender a biblioteca, Igor Volkoff, «Voyage à travers la bibliotèque de René Guénon», L’Egypte nouvelle, 9 out. 1953, in Accart, org., Ermite de Duqqi, pp. 21823. Agradeço a Jean-Pierre Laurant pela informação sobre a televisão. 75 Lings, entrevista.
76 Perry, «Aperçus», pp. 100-1. 77 Martin Lings e Faruq al-Hitami, entrevistas. Sobre Levy, ver também Andrew Rawlinson,
The Book of Enlightened Masters: Western Teachers in Eastern Traditions (Chicago: Open Court Press, 1997). Usei o manuscrito, um pouco mais longo, desse livro, pelo que agradeço o dr. Rawlinson. 78 Accart, org., Ermite de Duqqi, pp. 57-60. 79 Accart, org., Ermite de Duqqi, p. 61. 80 Gamal Abdul Nasr foi um nacionalista, não um islamista. Depois que tropas francesas, britânicas e israelenses se uniram para invadir o território egípcio em 1956 durante a Crise de Suez — conhecida no Egito como a Agressão Tripartite —, a memória de um único convertido francês ao Islã não faria grande diferença. 81 Clavelle, «Document confidentiel», complementado por Gagne, entrevista. 82 Gagne, entrevista, e outras fontes. 83 Pietro Nutrizio, org., René Guénon e l’Occidente (Milão: Luni Editrice, 1999), passim. As citações são de Ugo Darbesio, resenha da resenha publicada em Études traditionnelles sobre o livro de Jean Reyor, Pour un aboutissement de l’oeuvre de René Guénon (Milão: Archè, 1988), Rivista di Studi Tradizionali 68-69 (1989), 245-8. 84 Muhammad Guénon e A1 (ver a lista antes da bibliografia), entrevista. 85 Muhammad Vâlsan, entrevista. Caso não seja mencionada outra fonte sobre essa ordem, a informação vem de Muhammad Vâlsan ou de Michel Chodkiewicz. 86 Por Chodkiewicz, que estava em posição de julgar e não parecia estar exagerando. 87 Muhammad Vâlsan, entrevista. 88 Ao menos dois livros e 25 traduções mais curtas em Études traditionnelles entre 1951 e 1971. Ver bibliografia em Michel Vâlsan, L’islam et la fonction de René Guénon: recueil
posthume (Paris: Editions de l’Oeuvre, 1984). 89 A este dhikr seguia-se, normalmente, uma homilia baseada sobretudo no Corão ou em Ibn al-Arabi; Guénon era citado apenas ocasionalmente. 90 As estimativas variam entre 65 (Chodkiewicz) e 200 (Muhammad Vâlsan). 91 Apenas raramente ultrapassadas no caso de novas ordens, quer dizer. Uma ordem fundada há muito tempo pode ter milhares de seguidores não muito dedicados.
92 Ver J. Storch e R. Françon, «La difficile naissance de la semeuse», Documents
Philatéliques 110, n. 4 (1986) [on-line]. Disponível em: . Existe também um Museu Oscar Roty com uma página no seguinte endereço: . Depois de 2002, uma versão modernizada da Semeuse apareceu em certas moedas de euro cunhadas na França. 93 O sobrenome é, obviamente, polonês, mas a família Chodkiewicz está estabelecida na França desde 1832, levada por um oficial do exército que fugiu da Rússia após uma insurreição fracassada em 1831. Todas as informações sobre Chodkiewicz vêm de uma entrevista com ele, confirmadas, onde possível, por outras fontes. 94 Na realidade, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, um instituto de prestígio. 95 Em 1998, a Revue de l’histoire des religions — uma venerável revista acadêmica fundada em 1880 —— publicou uma edição especial com seis artigos dedicados a ordens cristãs e muçulmanas (vol. 215, n. 1). Um deles de Chodkiewicz, outro de Gril e outro de Eric Geoffroy, que, apesar de não ser Tradicionalista, era leitor de Guénon, muçulmano e genro de René Roty, seguidor próximo de Vâlsan. Os três artigos sobre ordens cristãs foram escritos por acadêmicos sem nenhuma ligação com Vâlsan. 96 Ver, por exemplo, Yacoub Roty, L’attestation de foi: première base de l’Islam (Paris: Maison d’Ennour, 1994). A abordagem nesse livro é típica da ordem de Vâlsan — baseada puramente em fontes islâmicas clássicas até o ultimo capítulo, que trata da «obra providencial» de Guénon, fala dos perigos do racionalismo contemporâneo e recomenda a leitura de seis das obras mais importantes do francês. 97 Ele era conhecido pelos membros da Grande Tríade, escreveu ocasionalmente sobre a maçonaria (por exemplo, um artigo em três partes sobre «Les derniers hauts grades de l’Ecossisme et la réalisation descendante» em Études traditionnelles em 1953), e desconfiava, com aprovação, que Illaysh fosse maçom (Vâlsan, L’islam et la fonction de
René Guénon, pp. 30-1), o que pode muito bem ter sido verdade. Chodkiewicz, porém, é taxativo ao afirmar que Vâlsan não era maçom (entrevista). 98 Muhammad Vâlsan, entrevista. 99 Vâlsan, L’islam et la fonction de René Guénon, p. 13. 100 Diversas fontes. Nenhuma dessas ordens sucessoras desejou revelar mais detalhes. 101 Pallavicini, entrevista. Exceto quando indicado, as informações sobre Pallavicini e a ordem Ahmadiyya vêm de Pallavicini ou da observação realizada durante uma visita à
Ahmadiyya em Milão em 1996, incluindo entrevistas informais com outros membros da ordem. 102 Diversas fontes. 103 Para maiores informações sobre essa ordem, ver meu livro Saints and Sons: The Making
and Remaking of the Rashidi Ahmadi Sufi Order, 1799-2000 (Leiden: Brill, 2004). 104 Ali Salim, entrevista. 105 Ali Salim e Muhammad Zabid, entrevistas. 106 Pallavicini, entrevista. 107 «Centro Studi Metafisici ‹René Guénon›», panfleto sem data. 108 «Centro Studi Metafisici ‹René Guénon›», e Pallavicini, entrevista. 109 Exemplos tomados das notas a Abd-al-Wahid Pallavicini, Islam interiore: La spiritualità
universale nella religione islamica (Milão: Arnoldo Mondadori, 1991), que reproduz diversas palestras de Pallavicini. 110 Davide Gorni, «La moschea divide già via Meda», Corriere della Sera, 26 out. 2000. 111 Eu observei o dhikr em Milão e, mais tarde, em Singapura. 112 Pallavicini enfatizava repetidamente, tanto em suas palestras quanto em seus escritos, que o sincretismo deve ser evitado. Minha avaliação de que eles seguiam a xaria está baseada na observação e na discussão, além da ausência de acusações de desvios da xaria entre as muitas feitas contra Pallavicini por seus adversários (além de, em certa ocasiões, fazer saudação islâmica salamat para não muçulmanos). Apesar de a ordem Ahmadiyya não ser conhecida por ter se afastado do Islã, Pallavicini cometeu pequenos erros ocasionais em sua exposição da religião, confundindo o Corão e os hadith (palavras do Profeta) como fonte de algo, por exemplo. Trata-se de erros acidentais, não de desvios. 113 Pallavicini, entrevista. 114 Conclusão baseada na análise das palestras reproduzidas em Pallavicini, Islam interiore. 115 Diversas fontes. 116 Diversas fontes. 117 Diversas reportagens da Agência Reuters. 118 Franco Cardini, «Religioni di guerra e di pace», Il Giornale [Milão], 29 out. 1985.
119 Stefano Trabucchi, «Un centro per capire l’Islam: Lo ‹shaikh› Pallavicini e l’incontro tra Allah e Roma», Corriere della Sera, 30 jul. 1990, p. 18. 120 Essa é a opinião do dr. Stefano Allievi (comunicação pessoal). 121 «Abdu-l-Hadi» [pseud.], carta ao editor, Messaggero dell’Islam, 15 dez. 1986, p. 15. 122 Stefano Allievi (comunicação pessoal). 123 «In memoriam René Guénon», reproduzido em Abd-al-Wahid Pallavicini, L’islam
intérieur: La spiritualité universelle dans la religion islamique (1991; Paris: Christian de Bartillat, 1995), pp. 103-13. 124 Communita Islamica 1992, pp. 11 e 13-4. Esse foi o único número de Communita
Islamica publicado em 1992, dedicado integralmente a atacar Pallavicini. 125 Muhammad Zabid (entrevista) desconhece que seu pai tenha escrito tal carta, que estava em italiano, língua que ele não falava. Embora a carta possa ter sido traduzida ao italiano por outra pessoa, seu conteúdo é simplesmente incorreto. Tanto Muhammad Zabid quanto Ali Salim (entrevistas) confirmam que Pallavicini entrou na ordem Ahmadiyya e recebeu uma ijaza; o xeique Abd al-Rashid não negaria ter dado uma ijaza se realmente a tivesse dado (ele poderia tê-la cancelado, se desejasse). O fator decisivo é que a carta contém a afirmação de que os atos de Pallavicini são «nulos e desprovidos de todo fundamento tradicional» [grifo meu]. Somente alguém familiarizado com o Tradicionalismo poderia ter escrito isso; não se trata de uma expressão que ocorreria a um falante de árabe ou de malaio a menos que ele tivesse amplo conhecimento de obras Tradicionalistas, o que não era o caso do xeique Abd al-Rashid. 126 Pallavicini, L’islam intérieur, pp. 163-4. 127 Diversas fontes. 128 Pallavicini, entrevista, respaldado por diversas provas que corroboram a afirmação. 129 Diversas fontes da ordem Ahmadiyya. 130 Francesco Battistini, «Moschea: AN diserterà la fiaccolata di protesta», Corriere della
Sera, 31 out. 2000. 131 Elisabetta Rosaspina, «Milano: Un quartiere contro la moschea», Corriere della Sera, 30 out. 2000. 132 Diversas reportagens, Corriere della Sera, out. 2000.
133 Jean Tourniac [Jean Granger], Johannes Eques A Rosa Mystica. La Franc-maçonnerie
chrétienne-templière des Prieures Ecossais Rectifies: Réflexion sur l’organisation prieurale et l’esprit du rite (Paris: SEPP, 1997), pp. 11-3 e 78. 134 Tourniac publicou quinze livros entre 1965 e 1993 tratando de maçonaria, simbolismo, Cristianismo do Oriente, e judaísmo, bem como de Tradicionalismo puro. Dois volumes sobre o judaísmo foram publicados postumamente. 135 O nome escolhido nessa ocasião foi S. F., apesar de nas fontes haver divergências sobre seu significado, algumas afirmando serem as iniciais de Sainte Fraternité, outras de Sein de Famille. 136 Seu ritual era caracterizado por um novo grau maçônico inventado por Guénon, o de Chevalier (ou talvez Maître) d’Orient et d’Occident. 137 Tourniac, Johannes Eques, passim, e Roman, René Guénon, pp. 153-4. 138 O primeiro livro de Tourniac, publicado em 1965, foi Symbolisme maçonnique et
tradition chrétienne (Paris: Dervy, 1965). Baylot e Riquet publicaram juntos Les FrancsMaçons: dialogue entre Michel Riquet et Jean Baylot (Paris: Beauchesne, 1968). 139 Tourniac, Johannes Eques, p. 81. 140 Agradeço ao padre Jérôme Lacordaire por esses detalhes. 141 Esses comentários estão baseados em uma resenha de Travaux de la loge nationale de
recherches Villard de Honnecourt e Cahiers Villard de Honnecourt. 142 Patrick Géay, Editorial, La Règle d’Abraham 1 (abril 1996), 3-6.
7. A ORDEM MARYAMIYYA (PP. 267-289) I O termo «chivalry» em inglês significa tanto as forças de cavalaria medievais com armamento pesado e armadura quanto a conduta cavalheiresca de nobres e elevados padrões morais a ela associada. Ambos os sentidos estão presentes no texto. [N. T.] 1 Frithjof Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen ([Suíça]: edição privada, 1974), pp. 1378. 2 Jean-Baptiste Aymard, «Frithjof Schuon (1907-1998). Connaissance et voie d’intériorité. Approche biographique», in Frithjof Schuon, 1907-1998: Études et témoignages, org. Bernard Chevilliat (Avon: Connaissance des Religions, 1999), p. 43.
3 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 9. 4 A3, entrevista. Ver lista antes da bibliografia. 5 Whithall N. Perry, «Aperçus», in Frithjof Schuon, org. Chevilliat, pp. 100-2. 6 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 152 e 267. 7 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 159, e Aymard, «Frithjof Schuon», p. 50. Yellowtail [Cauda Amarela] foi o marido da primeira indígena norte-americana a ser certificada como enfermeira, e o irmão do primeiro indígena norte-americano a tornar-se superintendente de uma reserva, «Le rôle de Frithjof Schuon dans la préservation de l’ésprit de l’indien peau-rouge», in Frithjof Schuon, org. Bernard Chevilliat, p. 190. A Mulher Búfalo Branco é uma figura central do mito fundacional dos Lakota, tendo entregue a eles seu primeiro cachimbo sagrado. 8 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 166. 9 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 169. 10 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 141-2. 11 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 167 e 169. 12 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 173-83, complementado por Bernadette Rigal-Cellard, «La religion des sioux oglalas», in Le facteur religieux en Amérique du
Nord: Religion et groupes ethniques au Canada et aux États-Unis, org. J. Beranger e P. Guillaume (Bordeaux: CNRS, 1984), pp. 248-1, e J. Vahid Brown, e-mail, dezembro de 2002. 13 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 180. 14 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 200. 15 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 9, 190-1 e 212-59. 16 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 9. 17 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 264. 18 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 265. 19 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 263. 20 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 266. 21 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 295. 22 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, pp. 272 e 266.
23 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 268. 24 Henri Hartung, Présence de Ramana Maharshi (1979; Paris: Dervy livres, 1987), p. 44. 25 Em 1967, Schuon e seu grupo perderam o barco que tomariam para Tânger, e decidiram cruzar a Espanha e tomar outro barco de lá. No caminho, visitaram a famosa Virgem «Macarena» em Sevilha, a quem Schuon creditou a paz no restante da viagem.
Erinnerungen und Betrachtungen, p. 274. 26 Aymard, «Frithjof Schuon», pp. 53-4. 27 Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen, p. 153. 28 Essas palavras não são de Schuon, mas de Aymard, «Frithjof Schuon», p. 50. 29 Jean-Baptiste Aymard, e-mail, fevereiro de 2003. 30 Aymard diz que as pinturas nunca foram usadas para meditação (e-mail), mas diversas outras fontes da ordem Maryamiyya sugerem vigorosamente que elas eram ao menos um foco informal para a meditação. 31 Lings, relatando Schuon. Lings, «Frithjof Schuon. Un regard autobiographique», in
Frithjof Schuon, org. Chevilliat, p. 85. 32 Aymard, «Frithjof Schuon», pp. 53 e 58. 33 Na realidade, Abraão é geralmente apresentado como a figura que une as três religiões monoteístas, já que possui um status mais ou menos igual nas três. A Virgem Maria não tem lugar no judaísmo, ainda que a Casa de Davi o tenha. Não existe uma «hierarquia de mulheres» consagrada no Islã, e, se houvesse, as candidatas mais óbvias para ocupar o topo seriam Hagar (a mulher de Abraão, no Islã) ou, em tempos mais recentes, Fátima, a filha do Profeta Maomé, ou talvez sua esposa, Aysha. O fato de alguns muçulmanos turcos venerarem Maria em Éfeso não diz nada sobre as atitudes muçulmanas como um todo com relação à Virgem: o Islã popular turco é muito influenciado pelo alevismo, que incorpora o culto cristão da Virgem e difere tanto do Islã sunita e xiita que seria considerado uma religião diferente, não fosse pelo fato de que tal classificação traria consequências muito difíceis para as relações entre a minoria alevita e a maioria sunita na Turquia. 34 «Concerning the Paintings» [A respeito das pinturas], texto datilografado, sem data. Seu autor poderia ser também Patricia Estelle (pseud., discutido mais adiante). 35 No momento da morte de Schuon, havia mais de 1.200 textos desse tipo em circulação. Sobre datas e coleção, Aymard, e-mail. Aymard descreve os textos não como
«canônicos» (expressão minha), mas como «méthodiques» [metódicos]. 36 Descrição de minha própria análise de uma seleção de tais textos. 37 Sobre a justificação, «Points of Reference» [Pontos de Referência], c. 1985, documento anônimo e sem data com a letra de Catherine Schuon. Sobre os fatos, fontes diversas. Sobre a data, A5, entrevista (ver lista antes da bibliografia). 38 Os nomes vieram de diversas fontes e são consistentes. No entanto, dado que as mulheres ligadas desse modo a Schuon seguem vivas em sua maioria e, em certos casos, têm filhos, não havia razão para publicar tais detalhes. 39 Burckhardt a «Abd al-Hayy», 4 de agosto de 1957. 40 Seyyed Hossein Nasr, «Intellectual Autobiography», in The Philosophy of Seyyed Hossein
Nasr, org. Lewis E. Hahn (Chicago: Open Court, 2001), p. 4, e várias fontes no Irã. Na ausência de outras fontes citadas, informações como essas são de conhecimento de todos no Irã e vêm de diversas fontes que se confirmaram mutuamente. 41 O próprio Nasr escreve que foi enviado aos Estados Unidos para fugir de um lar dominado pela saúde declinante de seu pai, gravemente ferido num acidente e que viria a falecer pouco depois da partida do filho para os Estados Unidos (Nasr, «Intellectual Autobiography», pp. 10-1). Essas circunstâncias explicam por que os pais de Nasr podem ter pensado que ele estaria melhor longe de casa, mas não explicam por que ele foi enviado numa viagem para os Estados Unidos que, em 1945, seria longa e difícil. 42 Nasr, «Intellectual Autobiography», pp. 16-9, e Nasr, entrevista. 43 Adnan Aslan, Religious Pluralism in Christian and Islamic Philosophy: The Thought of John
Hick and Seyyed Hossein Nasr (Richmond, Surrey [U.K.]: Curzon, 1998), p. 15. 44 «In Quest of the Eternal Sophia», in Philosophes critiques d’eux-mêmes / Philosophische
Selbstbetrachtungen, org. André Mercier e Suilar Maja (Berna: Peter Lang, 1980), p. 115. Citado em Aslan, Religious Pluralism, p. 16. 45 Nasr, «Intellectual Autobiography», p. 27. 46 «Filosofia Islâmica» usada dessa forma é, essencialmente, hikma dhawqiyya, «filosofia sapiencial», um termo tomado de Suhrawardi, que fez uma distinção entre «filosofia sapiencial» e «filosofia discursiva». A essência da distinção de Suhrawardi é que a filosofia sapiencial se aproxima do divino, enquanto a filosofia discursiva, ou aristotélica, não o faz. Para ele, um verdadeiro arif (conhecedor de Deus) necessitava das duas variedades. Sobre a distinção, A’avani entrevista.
47 «Conceptions of Nature and Methods Used for its Study by the Ikhwan al-Safa, al-Biruni, and Ibn Sina», 1958. 48 Sobre os professors de Nasr, ver AN 1. Ali Tabandeh, Hurshid tabande (Teerã: Haqiqat, 1998), pp. 46, 48, 51-3, 65-75, 80-2 e 87. 49 Nova York: Praeger, 1966; Londres: Allen & Unwin, 1968; Nova York: Schroder Books, 1972. 50 Entre 1964 e 1968, a editora da Universidade de Harvard publicou a tese de doutorado de Nasr, com o título An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines: Conceptions of
Nature and Methods Used for Its Study by the Ikhwan al-Safa, al-Biruni, and Ibn Sina (1964); dois outros livros de destaque: Three Muslim Sages: Avicenna, Suhrawardi, Ibn
Arabi (1964); e Science and Civilization in Islam (1968). O três eram importantes obras de erudição e continuaram sendo reimpressos e republicados diversas vezes em inglês;
Science and Civilization in Islam foi traduzido também ao francês e ao italiano. Eles foram precedidos por algumas obras menores em persa: Ahamiyat-i tahqiq dar falsafah-’i Islam
dar ‘asr-i hazir [A importância de estudar a filosofia islâmica hoje] (Teerã: S.N., 196-?), Vujud va takassur-i an [O ser e sua polarização] (Teerã: Daniskkadah-i Adabiyat, 196-?). As traduções persas dos três livros citados inicialmente foram publicadas na seguinte ordem: An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines, imediatamente, Three Muslim
Sages, em 1967, e Science and Civilization in Islam, em 1972. 51 Alguns entrevistados relatam que a esposa de Nasr era amiga pessoal da imperatriz. 52 A2, entrevista (ver a lista antes da bibliografia). Na ausência de outras fontes citadas, as informações sobre a Academia vêm dessa fonte. 53 Nasr, Prefácio, Sophia Perennis 1, n. 1 (1975), 7. 54 Em 1975, o xá chegou a substituir o antigo calendário islâmico hijri (há muito em vigor no Irã), que conta os anos a partir da fundação pelo Profeta Maomé da primeira comunidade islâmica em Medina, por outro, que contava os anos a partir da ascensão ao poder de Ciro, o Grande, em 559 a.C. O uso da palavra falsafah (filosofia) em lugar de
hikma no título da Academia provavelmente se devia ao mesmo motivo. 55 Nasrullah Purjavadi, por exemplo, foi um Ni’matollahi (entrevista). 56 A principal autoridade após seu próprio professor, Tabataba’i, com quem o próprio Nasr havia estudado. Ali Tabandeh, Hurshid tabande, p. 97, e A’avani, entrevista. 57 Yahya Alawi, entrevista.
58 Corbin foi o sucessor de Massignon na École Pratique des Hautes Études da Sorbonne. Ele vinha estudando Suhrawardi desde 1939, incialmente em Istambul, e, depois da Segunda Guerra Mundial, em Paris e no Irã. Mais tarde, passou aos estudos de Mulla Sadra. Steven M Wasserstrom, Religion after Religion: Gershom Scholem, Mircea Eliade,
and Henry Corbin at Eranos (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1999), pp. 146-7. Corbin publicou uma tradução da obra de Mulla Sadra intitulada Kitab al-mashazir em 1964. 59 Wasserstrom, Religion after Religion, p. 42, sobre a participação de Eliade. Mircea Eliade, «Some Notes on Theosophia perennis: Ananda K. Coomaraswamy and Henry Corbin» [Resenha de Roger Lipsey, Coomaraswamy, 3 vols., Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1977], History of Religions 19 (1979), 173-6, esp. 173. 60 Antoine Faivre, entrevista. Essa opinião foi corroborada por outras fontes. Para alguns paralelos, ver especialmente Henry Corbin, «The Force of Traditional Philosophy in Iran Today», Studies in Comparative Religion 2 (1968), 12-26. 61 Nasr, «Intellectual Autobiography», p. 50. 62 A’avani, entrevista. 63 Pierre Lory, entrevista. 64 O discurso de abertura, feito pela imperatriz Farah, foi publicado em Sophia Perennis 1, n. 2 (outono 1975). Muitos participantes em conferências desse tipo ignoram completamente o tema proposto. 65 Ainda que o tamanho da ordem Maryamiyya no Irã não seja conhecido ao certo, é possível que ela não tenha ultrapassado doze pessoas, apesar de uma estimativa de seus membros no momento da Revolução colocá-los na faixa de setenta pessoas. 66 Com a possível exceção de uma obra de juventude em persa, intitulada Ahamiyat-i tahqiq
dar falsafah-’i Islami dar ‘asr-i hazir [A importância de estudar filosofia islâmica hoje], publicada na década de 1960 e que não consegui localizar nem ler. 67 Lista em Sophia Perennis 1, n. 2 (outono 1975), 133-8. 68 Esses comentários são baseados numa leitura dos primeiros seis números. 69 Muhammad Legenhausen, entrevista. 70 Ocasionalmente, ele costumava recomendar Guénon (que comparava a Max Planck) a seus seguidores. Shariati, «A Glance at Tomorrow’s History» [on-line]. Disponível em: e
. Acesso em: abr. 2001;, e Ali Rahnema, An Islamic Utopian: A Political Biography of Ali Shariati (Londres: I. B. Tauris, 1998), p. 161. 71 Ele nunca atacou Xariati por escrito, mas criticou-o verbalmente com frequência (Soroush, entrevista). 72 Soroush, entrevista. 73 Julian Baldick, resenha de Tabatabazi, Shi’ite Islam (Londres: Allen & Unwin, 1976),
Times Literary Supplement, 30 abr. 1976, p. 526. 74 Na realidade, «chefe do gabinete particular da imperatriz». Nasr envolveu-se na alta política quase por acidente — ver sua «Intellectual Autobiography», p. 72. Sobre uma das missões diplomáticas do xá, ver Parviz C. Radji, In the Service of the Peacock Throne:
The Diaries of the Shah’s Last Ambassador to London (Londres: Hamish Hamilton, 1983), p. 270. 75 Nasr, «Intellectual Autobiography», p. 72.
8. AMÉRICA (PP. 291-320) 1 Na Suíça: Lausanne, Basileia e Genebra. Na França: Reims e Nancy. Na Inglaterra: Londres. Na Argentina: Buenos Aires. Nos Estados Unidos: Bloomington, Berkeley e Washington D.C. 2 Sobre Borella, várias fontes. Sobre Rama Coomaraswamy, A5, entrevista (ver lista antes da bibliografia); e-mails. 3 A5 e A7, entrevistas (ver lista antes da bibliografia). 4 Uma vez que muitos ainda estão ativos como professores, não seria útil especificar seus nomes ou as instituições onde trabalham. 5 James H. Forest, Living with Wisdom: A Life of Thomas Merton (Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1991), pp. 6-16. 6 O livro de Aldous Huxley intitulado Ends and Means chamou sua atenção para o misticismo, enquanto o livro de Jacques Maritain intitulado Art and Scholasticism bem como o exemplo de Gerard Manley Hopkins confirmou sua predileção pelo catolicismo. Blake era o tema inicial de sua tese de doutorado, mais tarde substituído por Hopkins. Ver Forest, Living with Wisdom, pp. 47-55, 73, 79 e 90.
7 Agradeço a Jean-Baptiste Aymard (e-mail, fevereiro de 2003) por essa sugestão. 8 Forest, Living with Wisdom, pp. 125 e 128. 9 Citado em Forest, Living with Wisdom, p. 118. 10 Sidney H. Griffith, «Merton, Massignon, and the Challenge of Islam», in Merton & Sufism:
The Untold Story, org. Rob Baker e Gray Henry (Louisville, Ky.: Fons Vitae, 1999), pp. 59 e 68. 11 Rob Baker, «Merton, Marco Pallis, and the Traditionalists», in Merton & Sufism, org. Baker e Henry, pp. 203-5. 12 Citado em Baker, «Merton, Marco Pallis», p. 204. 13 Blake, que havia sido muito importante para Merton (ver n. 6) e que era também um perenialista. 14 Baker, «Merton, Marco Pallis», p. 195, e Forest, Living with Wisdom, pp. 126 e 173. 15 Baker, «Merton, Marco Pallis», pp. 217-9. 16 Merton, anotação em seu diário, 16 de junho de 1966, The Journals of Thomas Merton, vol. 6: Learning to Love, org. Christine M. Bochen (São Francisco: Harper San Francisco, 1997), citado em Baker, «Merton, Marco Pallis», pp. 220-1. 17 Baker, «Merton, Marco Pallis», p. 223. Segundo William Stoddart (e-mail, fevereiro de 2003), Merton e Schuon nunca se corresponderam. 18 Seyyed Hossein Nasr, «What Attracted Merton to Sufism», in Merton & Sufism, org. Baker e Henry, p. 9. 19 As citações e o itinerário são retirados de Forest, Living with Wisdom, pp. 201-7. As especulações são todas minhas. Forest desconhecia o interesse de Merton pelo Tradicionalismo e a própria existência do movimento Tradicionalista. 20 Forest, Living with Wisdom, pp. 208-25. É claro que, caso houvesse algo estranho a respeito das circunstâncias da morte de Merton, muitos de seus colegas na conferência poderiam se sentir obrigados a esconder tal fato. 21 Cálculos da editora Harper Collins a respeito da edição de bolso de 1991. As religiões do
homem surgiu a partir de uma exitosa série de televisão homônima em dezessete partes, transmitida pela Televisão Educacional Nacional em 1955. Diane Hue Balay, «Can a 76Year-Old Retired Minister Become a Media Star?», 21 mar. 1996, on line em UMR
Communications. Disponível em: . Acesso em: 18 maio 2000. 22 G. McLeod Bryan, Voices in the Wilderness: Twentieth-Century Prophets Speak to the
New Millennium (Macon, Ga.: Mercer University Press, 1999), p. 101. 23 Huston Smith, «Bubble Blown and Lived In: A Theological Autobiography», Dialog 33, n. 4 (outono 1994), 276-7. 24 Bryan, Voices, p. 101. 25 Smith, «Bubble Blown», p. 275. 26 Smith, introdução a The Transcendent Unity of Being de Schuon (Nova York: Harper & Row, 1975), pp. IX-XI; Smith, «Bubble Blown», p. 276, e fax, 29 de julho de 2001. 27 Smith, «Bubble Blown», p. 277. 28 Smith, «Bubble Blown», p. 278. 29 Smith, «Bubble Blown», p. 279. 30 Mary Rourke, «Our Culture, Our Beliefs, Our Responsibilities: Explorer of the World’s Spirituality», Los Angeles Times, 21 jul. 1999, p. E 1+, e Marilyn Snell, «The World of Religions according to Huston Smith», Mother Jones 22, n. 5 (novembro-dezembro 1997), 40-3. 31 Bryan, Voices, e Snell, «World of Religions». 32 Essa é a opinião de Gene R. Thursby (e-mail, 19 de maio de 2000); eu não ouvi a apresentação. 33 Smith, «Bubble Blown», p. 278. 34 Transcrições disponíveis em: , e . Acesso em: maio 2001. 35 Ver meu post «Decade analysis» em: . 36 A razão disso é um mistério. O número de judeus que se tornam Tradicionalistas parece proporcional à composição dos países estudados. Ver, no entanto, a discussão sobre o rabino Léon Askénazi no capítulo 10. 37 Ver meu post «Traditionalist Writings» em: .
38 Marcia Z. Nelson, «Islamic Publishing Is Poised for Growth», Publishers Weekly, 13 nov. 2000, complementada por catálogos, entrevistas e diversas outras fontes. 39 «Moslems: East Comes West», The Economist, 3 abr. 1976, p. 30. Sobre Mahmud, fotografias contemporânea. Sobre a rainha Elizabeth abrindo o festival, Stoddart, e-mail; a matéria da Economist diz apenas que ela abriu uma das exibições. 40 Sobre as finanças, Alistair Duncan (antigo secretário da fundação), fax, 31 de janeiro de 2000. O governo dos Emirados Árabes Unidos doou £1.250.000 (cerca de $15 milhões em valores do ano 2000), e o governo de outros seis países muçulmanos contribuíram juntos com mais £600.000. Sobre os administradores, Duncan, World of Islam Festival Trust
1973-1983 (Londres: edição privada, s.d.). Sobre Beeley, obituário de sir Harold Beeley, Daily Telegraph [Londres], 31 jul. 2001. 41 «Se pudéssemos afirmar que existe um único homem que representa, e que, em grande medida, inspirou o batin do festival, este homem é Frithjof Schuon.» Peter Lamborn Wilson, «The World of Islam», Sophia Perennis [Tehran] 2, n. 2 (outono 1976), 108. De todos os que comentaram o festival em Londres, apenas a romancista Doris Lessing parece ter percebido que muitas oferendas vinham «de um grupo parecido». Doris Lessing, «The Ones Who Know» [Resenha], Times Literary Supplement, 30 abr. 1976, p. 515. 42 Wilson, «The World of Islam», p. 109. Ver também Michael Levey, «The Twin Pillars of Islam», Times Literary Supplement, 30 abr. 1976, p. 518. 43 Times Literary Supplement, 30 abr. 1976. 44 Sobre esse assunto, ver Christian Bonaud, L’Imam Khomeyni, un gnostique méconnu de xxe siècle (Beirut: Al-Bouraq, 1997). 45 Ver meu post «Schuonian Writers: Biographic analysis» em: . 46 O Islã é geralmente apresentado ao público ocidental por muçulmanos conscientemente «modernos» ou por ativistas políticos. Os muçulmanos «modernos» costumam adotar um tom que tem algo de apologético, tentando justificar práticas islâmicas em termos das ciências sociais contemporâneas ou — em casos severos — em termos das ciências naturais. Esses porta-vozes não causam, em geral, grande impressão — o tom apologético é percebido e as racionalizações são deixadas de lado como autointeressadas. No entanto, eles geralmente não atraem hostilidade, o que costuma ser
o efeito causado pelos islamistas radicais, que parecem irritados com todo mundo, de modo que todo mundo fica irritado com eles de volta. 47 Essa abordagem é um tanto irônica, dada a ênfase dos Tradicionalistas na distinção esotérico/exotérico, mas ela é consequência da ênfase no esotérico. 48 Comentários baseados em minha própria experiência das consequências de recomendar alguns desses artigos a alunos de graduação. 49 Correspondente anônimo, e-mail, maio de 2001. 50 James W. Morris, «Ibn Arabî in the ‹Far West›: Visible and Invisible Influences», Journal
of the Muhyiddin Ibn Arabi Society, 29 (2001), 87-122. A citação foi retirada da palestra que deu origem ao artigo antes de sua publicação. 51 Frithjof Schuon, Erinnerungen und Betrachtungen ([Suíça]: edição privada, 1974), p. 295. 52 Aymar (e-mail) se opõe com veemência a essas interpretações, mas elas são sugeridas pelas últimas páginas de Erinnerungen und Betrachtungen. Schuon escreveu repetidamente sobre as várias fases de sua vida, e encerra suas memórias especulando que em 1973 (quando escrevia o livro) uma nova fase poderia estar começando e menciona dois acontecimentos ligados a isso. Um deles foi uma conferência em Houston, Texas, onde Léo Schaya apresentou um artigo chamando a atenção para a relação entre as atividades da ordem Maryamiyya e a função escatológica de Elias — aqui, Schuon está ao menos citando com aprovação uma comparação implícita entre ele e Elias. O outro acontecimento foi a visita de um sadhu alemão do Sri Lanka, que ele interpreta em conexão com um sonho que tivera na década de 1940, no qual fundia-se a Kali; ele claramente atribuiu grande importância a esse sonho. Schuon, Erinnerungen und
Betrachtungen, pp. 302-4. 53 Schuon, carta de 19 de dezembro de 1980 a Léo Schaya, na qual comenta que «o instrumento humano para a manifestação da Religio Perennis no fim dos tempos será um ocidental». É difícil que ele estivesse se referindo a outro ocidental além de si mesmo. 54 Publicado em Studies in Comparative Religion 12 (1978), 131-75. 55 Schuon a Hans Küry, 15 de maio de 1981, e Schuon a um seguidor anônimo, 29 de abril de 1989, citado em Jean-Baptiste Aymard, «Frithjof Schuon (1907- -1998). Connaissance et voie d’intériorité. Approche biographique», in Frithjof Schuon, 1907-1998: Études et
témoignages, org. Bernard Chevilliat (Avon: Connaissance des Religions, 1999), p. 59. 56 Três schuonianos contemporâneos, e-mails, fevereiro de 2003.
57 Frithjof Schuon, «Quelques critiques», in René Guénon [Dossier H], org. Pierre-Marie Sigaud (Lausanne: L’Age d’Homme, 1984), pp. 57 e 80. 58 Schuon, «Quelques critiques», p. 57. 59 A última edição se apresenta como «ano 93», mas Philippe Encausse apresenta a data de 1890 para a primeira edição. Encausse, Papus, le «Balzac de l’occultisme»: vingt-cinq
années d’occultisme occidental (Paris: Pierre Belfond, 1979), p. 31. A discrepância talvez se deva aos anos em que a publicação foi suspensa, como durante a Segunda Guerra Mundial. 60 André Braire, entrevista. 61 Richard B. Forsaith, entrevista, e outras fontes. 62 Forsaith, entrevista. 63 Sobre a existência do sinal, Catherine Schuon, «Frithjof Schuon: Memories and Anecdotes», Sacred Web 8 (1992), 59. 64 Em uma carta de 19 de outubro de 1980, Schuon explicou a Léo Schaya que a mudança foi «uma questão de se afastar da Religio formalis [presumivelmente o Islã] pela aproximção à Religio perennis». A explicação alternativa foi dada, por exemplo, por Nasr (entrevista). 65 Forsaith, entrevista. 66 Harald von Meyenburg, entrevista. 67 A7, entrevista (ver lista antes da bibliografia). 68 Forsaith e A5 (ver lista antes da bibliografia), entrevistas. 69 Forsaith, entrevista. 70 Forsaith, entrevista. Mark Koslow, «Black Elk, Joseph Epes Brown and the Schuon Cult» (documento datilografado inédito, coleção privada); A7, entrevista (ver lista antes da bibliografia); e Jean-Paul Schneuwly, entrevista. Schuon «casou-se» com Estelle por volta de 1989, tendo «se casado» com sua segunda esposa «vertical» em 1974 (A5, entrevista, ver lista antes da bibliografia). 71 Michael Fitzgerald, «Frithjof Schuon: Providence without Paradox», Sacred Web 8, 2002. 72 Forsaith, A7 (ver lista antes da bibliografia), e Schneuwly, entrevistas. 73 Sobre o uso do termo pneumatikos, quatro textos breves e sem data de Schuon: 1034, 1035, 1082, e «Au sujet d’une personnalité pneumatique». Sobre o uso do termo avatar
e para uma interpretação de pneumatikos, Von Meyenburg, entrevista, e Von Meyenburg, fax, julho de 2002. Para a interpretação menos dramática do termo pneumatikos, Aymard, e-mail, e Stoddart, e-mail. 74 Catherine Schuon, «Frithjof Schuon: Memories and Anecdotes», Sacred Web 8 (1992), 43-6. 75 Schuon, papel numerado datado de 1981, citado em Fitzgerald, «Frithjof Schuon». 76 Forsaith, entrevista. Segundo Stoddart, «ele cantava sobretudo qasidas árabes. Durante um tempo, ele acrescentou um canto da Índia» (e-mail). 77 Algumas fontes especificam o Rito do Cachimbo Sagrado e a Dança do Sol, enquanto outras negam sua realização, mas não revelam o que realmente acontecia durante os «Dias Indígenas». Yellowtail tinha uma relação próxima com Inverness Farms — ele considerava todos os seguidores de Schuon automaticamente membros da tribo Crow —, mas, segundo algumas fontes, ele era alguém de fora. 78 Forsaith, entrevista; Mark Koslow, «Schuon and Thomas Yellowtail» (documento datilografado inédito, coleção privada); e fotografias dos Dias Indígenas em uma coleção privada. 79 A8 (ver lista antes da bibliografia), carta a Koslow, sem data, provavelmente de 1995. A descrição de S. E. Lambert (declaração sob juramento, sem título, 9 de outubro de 1992) coincide com aquela fornecida por A8. A descrição de Mark Koslow («Schuon and Thomas Yellowtail», «Evidence of the Involvement of Children», documentos datilografados inéditos) sugere um encontro maior e mais ritualizado. Outros schuonianos sugerem que essas narrativas foram todas orquestradas por críticos do grupo. 80 Schuon, «Beauty» [Beleza], texto n. 1018. 81 Schuon, «Beauty’s Requirement» [A exigência da beleza], texto n. 316. 82 Forsaith, entrevista confirmada por A7 (entrevista, ver lista antes da bibliografia). 83 Schuon, «Au sujet du Gouvernement de la Tarîqah», texto manuscrito, sem data. 84 Forsaith, entrevista. Como mencionado no capítulo 4, outros alawis discordaram, apoiando a ijaza de Schuon. 85 A7, entrevista (ver lista antes da bibliografia). 86 Connor (outra carta), Lambert (declaração), e A5 (entrevista, ver lista antes da bibliografia).
87 State of Indiana v. Frithjof Schuon, Acusação, Tribunal do Circuito de Monroe, apresentado em 11 de outubro de 1991. Também Mark Koslow, entrevista, confirmada pelo sargento (aposentado) Jim Richardson, entrevista. 88 Kurt Van der Dussen, «Schuon Indictments Dropped», The Herald-Times [Bloomington], 21 nov. 1991, p. 1. 89 Kurt Van der Dussen, «Prosecutor Explains Reasons for Dropping Case», The Herald-
Times [Bloomington], 21 nov. 1991, p. A9. 90 Richardson, entrevista; Koslow, «Schuon and Thomas Yellowtail». 91 «Information on Indictments of Frithjof Schuon», informação à imprensa, 21 de novembro de 1999. 92 Código de Indiana 35-42-4-3 e 35-42-4-8. 93 Koslow, entrevista. 94 Robert Miller, promotor do condado, citado em Robert Niles, «Charges Dropped against Schuon», Indiana Daily Student, 21 nov. 1991, p. 1. 95 O contrato marítimo de venda condicional havia sido dado como garantia parcial de um empréstimo de US$ 12 mil a Vidali (Judgement, Stanley Jones v. Aldo Vidali, Case B118448, California Municipal Court, County of San Diego, El Cajon Judicial District, October 22, 1993). Ari, o filho de Vidali, adquiriu um terço do Arcadaldo em 1982; depois disso, Vidali vendeu o barco por volta de 1992 (Order, Ari Vidali v. Aldo Vidali, Case 654460, California Superior Court, County of San Diego, San Diego Judicial District, December 1992). 96 Ziauddin Sardar, «A Man for All Seasons», Impact International, dez. 1993, pp. 33-6. 97 Contempt Order, Michael Pollack and Sharlyn Romaine v. Aldo Vidali, Case 92-1060 S, US District Court for the Southern District of California, 26 de outubro de 1992. 98 Von Meyenburg, entrevista. 99 Catherine Schuon, «Frithjof Schuon», p. 60. 100 Por instrução de Schuon, a liderança passou a dois membros sêniores da ordem; a influência de Estelle diminuiu depois que ela voltou a se casar. A6 (ver lista antes da bibliografia), e-mails, 2002. 101 Eu não cheguei a ver a cerca, mas um colega que esteve em Inverness Farms em 2002 falou-me sobre ela. Sobre a discussão aberta a respeito da ordem Maryamiyya, ver
muitos dos artigos mais recentes utilizados neste livro, ou visitar . 102 Catherine Schuon, «Frithjof Schuon», p. 45. 103 «Lettre de S. Ibrâhîm à un accusateur marocain», c. 1978. 104 Pouco valeria contar as histórias, com frequência comoventes, dessas pessoas. 105 Forsaith, entrevista. 106 Danner a Forsaith, 20 de outubro de 1988. 107 Patrick Ringgenberg, «Frithjof Schuon: Paradoxes et Providence», Sacred Web 7, 2001. A citação é tomada do manuscrito francês, e não da tradução publicada em inglês. 108 Forsaith, entrevista. 109 Smith, «Bubble Blown», p. 277.
9. TERROR NA ITÁLIA (PP. 321-335) 1 Gianfranco De Turris, Elogio e difesa di Julius Evola: Il Barone e i terroristi (Roma: Edizioni Méditerranée, 1997), pp. 50, 52, 59, 61. 2 EM [pseud.], «Sobre los ‹años de plomo›: las estrategias políticas en Italia», apresentado em «Las Jornadas sobre el MSI». Disidencias OnLine/Press, on-line. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2001. 3 De Turris, Elogio e difesa, pp. 51-2. 4 EM, «Años de plomo». 5 Franco Ferraresi, Minacce alla democrazia: La Destra radicale e la strategia della tensione
in Italia nel dopoguerra (Milão: Feltrinelli, 1995), p. 109. Utilizei amplamente essa obra como fonte de informações. Minhas interpretações, no entanto, divergem frequentemente das do dr. Ferraresi. 6 Ferraresi, Minacce alla democrazia, pp. 112-3. 7 Acadêmicos acreditam que sacrifícios humanos eram praticados pelos etruscos, mas não pelos romanos. 8 H. T. Hansen, «Die ‹magische› Gruppe von Ur in ihrem Historischen und esoterischen Umfeld», in Julius Evola, Schritte zur Initiation (Berna: Scherz-Ansata, 1997); Renato Del
Ponte, «Le correnti della tradizione pagana romana in Italia», Algiza 7 c. 1996. Disponível em: