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Portuguese Pages [730]
O MEDITERRÂNEO e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II
O AUTOR: Fernand Braudel nasceu em Meuse em 1902. Licenciado em História, leccionou em Argel, Paris e Slo Paulo, antes de, em 1937, se tomar clirector de estudos na École PratiqUI! des Hautes Études. A partir de
1 946 é um dos responsáveis pela revista Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, ao último dos quais sucede, em 1949, no College de France e, em 19 56, na presidmcia da VI SecçAo da referida Éco/e, onde estimula o diálogo inovador da História com as restantes cimcias sociais. Em 1962 é nomea do administrador da Malson des Sciences de l'Homme. Doutor honorls causa por Bruxelas, Oxford, Madrid, Genebra, Florença, Varsóvia, Cambridge, Slo Paulo, Pádua, Londres, Chicago, Saint Andrews e Edimburgo, Fernand Braudel é hoje consi derado um dos maiores especialistas mundiais, tendo colaborado na Cambridge Economic Hlstory o/ Europe e na Encyc/opedia Americana.
O Mediterrlineo e o Mundo Mediterr8nico na Época de Filipe li, tese que redigiu durante a sua
detençlo no campo de conc:entraçlo de Lübeck e que defendeu em 1 9 47, inaugurou uma nova manei
ra de encarar a História e foi considerada pelo New York Times como «a obra histórica mais signi ficativa do nosso tempo».
FERNAND BRAUDEL
O MEDITERRÂNEO e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II 2.0 volume
FICHA:
© 1966, Librairie Armand Colin. Titulo o ri ginal: La Méditerranée et /e monde méditerranéen a /'époque de Philippe li. Edito r o riginal: Librairie Armand Colin, Paris. A p resente t radução, apoiada pelo Minist �rio da Cult ura fran cas, foi e fe ctuada a p arti r da qu arta edição francesa ( 1 979), revista e co rrigida pelo Autor. Cole cção: Anais, n. 0 2. Capa: Fernando Felgueiras, sobre pormenor de «La /égende de sainte Ursu/e, Le départ des époUX>>, de Vittore Carpaccio (Foto Giraudon). 1. • ed ição: Junho de 1984. Edição: 2AS817. Depósito legal: 5484184. Direitos de edição, rep rodução e adaptação reservados p ara todos os p aises de lingua po rtuguesa po r: Publicações Dom Quixote, Rua Luciano Cordeiro, 119, Lisboa. Composição e impressão: Santelmo, Cooperativa de Artes Gráficas, CRL,
em Junho de 1984.
Venda interd ita em Portugal.
ÍNDICE
t��:��::i:s��.ie�ª-���-�-�-�����.::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
13 14
Seaunda Parte DESTINOS COLECTIVOS E MOVIMENTOS DE CONJUNTO (contlnuaçio)
4 - OS IMPÉRIOS . .. .. . ... . .. . . . . . . . . . . . . . . ........... . . . . . . . ........ . . . . . . . . . . . . . .. . . . . ......... . . . . . . .. . . . 1 . Nas origens dos Impérios...........................................................................
17 21
A grand eza tu rca: da Ásia M eno r aos Balcãs ...... . . . ............. . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os Tu rcos n a S lria e no Egipto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . ..... . . . . . . . . . . ... O Imp ério Tu rco v isto d e d ent ro .. ..... . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........ . . . . . . . . . . .. A unidad e espanhola: os Reis Cat ólicos . . . ............ . . . . . . . . . . . ..... . . . . . . . . .. .. . . . .. . .. . . .. . . C arlos V........ . . . . . . . . . . . . . . .. . ......... . . . . .. . ... . . . . . . . . . . . . .................... . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . O Imp ério d e Filipe II . . . . . . . . . . . . . . . . ...... . ... .. . . .. ........... . . . . . .. . . ...... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acaso e r azõ es po liticas ..... ..... . . . . ..... .... .. .. . . . . . . . . . .. . . . ......... . .. . . . . . . .......... .. . .....
21 28 30 30 33 36 39
2. Meios e fraquezas dos Estados . . . . . .. . ......... . . . . . . . ......... . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
41
O « funcionário» . . . .. . ... . . . . . ............ . .. . . . . . . . . .......... . . . . . . . . . . . . .. . . . . ........ . .. . . . . ...... Sob revivências e v enalidade ............................ .. . .................... ..... ... . ... . ... . . . . As autonomias locais . .............. . . . . ....... .. . . .. . . . . . ....................... . . . . . . . . . .... . . . . . .. As finanças e o cr édito ao s erviç 0 do Estado . . . . . . . . . . . .. . ... . . .......... . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . 1 600-1610 : s erá a ho ra propícia aos Estados m édios ?. . . . . . ..................... . .. .. . . . . . . . .
42 48 S2 S4 61
S - AS S OC IEDADES . . . . . . . . .................... .. . . . . . . . . . .. : . . . . ......... . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
6S
1 . Uma reacç/Jo senhorial..............................................................................
66
Senhor es e c amponeses .... . . . .. . .......... . . . . .. . .. ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . ...... ... . ... . . Em Castela: Grandes e titu lares fr ent e ao Rei ......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ·................. «Hidalgos» e « regido res» d e Cast ela . . . ...... . . . . . . . .. .. . . . . . . . .......... . ......... . . . . . . . . . . . . . Outros t est emunhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . .... . ...... . . ........ . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As sucessivas nob rezas d a Turquia .... . .. . . . . . . .. . ._.............................................. Os «Tschi ft li ks» . .. . . . .. . .. . . . ... . . . . .. . . . . . . . . ..... .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .............
67 71 76 78 80 86
2. A traiçilo da burguesia ...................... ........................................... ............. Burguesias m editerrânicas ................. ........................................................ A traiç ão da burguesia . . . . . . . ......... .. . .. . . .. . . ................ . . . . . . . . .. . . . . . . . . ................. A no br eza em leil ão ......... . ..... .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . ..... .............................. . . . . . Contra os novos no bres··-····--·---································································
87 88 91 93 95
3. Miséria e banditismo . . . . .. . .... . . . . . .................. ..............................................
96
Revo luções imp erfei tas . .......... .............. ....... .................. . ..... . ..... . .............. Luta d e classes ?................ .......... ................................................... . . . . . . .... Con tra os errantes e os vaga bundos .............................................................. Ubiq uidad e do bandi tismo ......................................... . . ............ . . . . . . . . ....... . . . O banditismo e os Es tados ....... .................................................................. O bandi tismo e os s en hor es .................. . ....... ..... ...... . .................................. O a um en to do bandi tismo ........................................ . . . ....... . . ....... . . . . ·........... Os escravos ............................ . . . . . ............. . . ..... . . ..... . . . ............................. Concl usões possiv eis ........... .. ............. ................................ .....................
97 100 101
6 - AS C IVILIZAÇÕES . ....... .. .............................. .... . . .......... . ............... . . . . ... .....
119
1. Mobilidade e estabilidade das civilizações ...... . . .............................. . ...............
120
A lição dos incid en tes ..... ............................ .... . ......................................... Como viajam os bens c ul turais................. ......................................... ....... . . . Irradiaç ão e r ec usa de empréstimos . . . . . . . . . . . . .. . . .............................................. So br evive a ci vilizaç ão gr ega ? . .......... .................................... ...................... Permanências e fron teiras c ul turais . ... ............. . ............................................ Um exemp lo d e fron teira s ec undária: a Ifriq ya . . . . . . . . . . . . ,................................... Lentid ão das trocas e das tr ans fer ências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . ......... . . . . ...........
120 123 126 131 132 134 135
2. Recuperaçilo de civilizações...................................................................... ..
138
Os T urcos nas pl aníci es do Les te ba lc ânico ...................... . ..... ................... . . . . .. O Is lão mo urisco . ............. ............................... ...... ........ . ... ..... .. ............ . .. Pro blemas mouriscos ................................... . . . . . . ...... ................................ Uma g eografia da Esp anha mo urisca ...................... ...................................... O dr ama de Gr anada ................................................................................ G ranada d epois de Gr anada ............................................................ . ....... . . . S up remacia do Ocid en te........ .................. .. . . .. . . . . . . . . . . ...... ... . . . . . . . . . ... . . . ..........
138 145 145 147 152
3. Uma civilizaçilo contra todas as outras: o destino dos Judeus..............................
165
S eg ur amen te uma civili zaç ão . . . . . .......... . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ... . . . . Ubi q uidade das com unidad es judaicas ............ ....... ....................................... Jud aismo e capitalismo . ....... ... .................................................. ................ Jud eus e conj un tura .......................... . . . .... . . . ..... . .. . . . . . . ...... . . . . . . .. . . . .............. Compr eend er a Esp anha ........ . . . . . ... . . . . . . . . . ... ............. . . .. . . . . . ... ...... . . ....... .. .. ...
166 173 176 182 185
4. As irradiações exteriores............................................................................
188
As etapas do Bar roco . . . . . . . . . . . .. . . . ............................... . . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . Será p reciso discuti r?................................................................................ Um grande c en tro de irradiaç ão m edi terr ânica: Roma ................ . . ..... ... . . . ... .. . . . . Outro c en tro d e ir radiação : a Espan ha . ........ .. ....... . ...... .... ........... . ................. Mais uma vez: a d ecad ência do M editer rân eo .... ... . . . . . . . . . ..... ..... . .. . .... . . . . . . . . . . .....
189 191 191 195 197
7 -ASFORMAS DA G UERRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...... .... . ... . ... . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . ...
199
1. A guerra das esquadras e dasfronteirasfortificadas .........................................
200
G uerras e técn icas ............. ....................... ............... ................................. G uerras e Es tados ............ .. .................. ............ .. .... ..................................
202 204
!OS
107 112 114 116 117
ISS
160
8-
G uerras e civilizações............. . . . . . . . . . .......................................................... A g uerra d efensiva fac e aos Ba lcãs . ............ ............................................... ... O «limes» v en eziano................ ......... . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . Sobre o Danúbio ..................................................................................... No c en tro do m ar: nas costas de N ápo les e da Sicília . . . . . ... . . . . .. . . . . . . . . . . . . ............... A defesa das costas d e Itália e d e Esp anha ....................... . . . .... ....... . . . . . . . . ......... Nas costas da África do None...... ... .......................... .................................. Os pres ídios, « à fa lta de m elhor »................................................................. Por o u contra as «ra zzias » . .............................................. .. ........................ Psicologia da d efensiva ..... ............................... ............ .... .........................
206 208 209 211 213 219 220 225 228 229
2. O corso, forma supletiva da grande guerra .....................................................
230
O corso , ind ús tria an tiga e g en erali zada . . ....... ................................ ............ . . . O corso ligado às cidades . . . . . . ..... . . . . . .......... ................................................. Corso e d espojos ............. . . .. . . .......... .. ..... . . ......... .... .. ..... .... . ............. .... ..... Crono logia do corso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ocorso cris tão . . . . . . . . . . . ... . . ............ . .. . .. ............ .. .. ... ........... ........ ... . .... ........ Rapinas c ris tãs no Levante......... . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... A primeira e p rodigiosa fonuna d e Arg el . . .................................................... . A s eg unda e s empre prodigiosa fo nuna d e Argel ........................................ ..... A q ue conclus ões pod emos ch egar? ............ .............. . . . ............... ............ . . .... Resgate d e cativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . .. ................ .................. Uma g uerra expulsa a o utra . . . . . . . . . .. . .. ... . . . . ........ . . . . . . . . ........ . . . . . . . . . . ... . . . . .. . ... . ...
231 236 239
A
240 24 1 245 248 250 254 255 257
LA IA DE C ONC LUS ÃO: C ONJUNT URA E C ONJUNT URAS . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .
261
As apostas à panida . . .. . ....... . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . ........ . .. . . . ...... ............................ O « tr end » s ecular .. ...................................................... ... ......................... As long as flutuações . . . ....... . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . ....... .. . . ................... Banc arro tas espanholas e conj unturas ....... .. ............. ................................... . G uerras in ternas e externas .............. ................ . ......................................... Conjun tura e his tória g era l . .............................. ......................................... As crises c unas . ......................................................................................
261 262 265 266 267 268 269
Terceira P1111e OS ACONTECIMENTOS, A POLÍTICA E OS HOMENS
1 - 1550-1559: RET OMADA EFIM DE UMA G UERRA M UN DIA L..........................
279
1. Nas origens da guerra ............................................................................. ..
279
1545-1550: a paz no M edi terrân eo . . . . . . . . . . ...... . . . . . . . .. . . . . . .... . .. . . . . . . . . . . . ..... . . . . . . ..... A q ues tão d e África ........... ...... ................................. . . ................ .. ........... Conseq uências e r ep ercuss ões d e M uhl berg . ..................................... ..............
279 282 286
2. A guerra no Mediterrâneo e/ora do Mediterrâneo ........... . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .
294
A q ueda de Tripo li : 14 de Agos to de 1551 ...................................................... Os incêndios do ano de 1552 ......................... .............................................. A C órs ega para os Fr anc es es, a Ing la terra p ara os Esp anh óis . . .... . ....................... As a bdica ções de C arlos V: 1554-1556...........................................................
294 300 304 309
3. Regress o à guerra. As decisões continuam a vir do Norte ............... . ............. . . . . ..
315
A r up tura das trég uas de Va uc el les .......... ... . .. . . . . . . . .......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . Saint-Quen tin .......... . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............ . . . . . . . ... . . . . . . . . .. . . . ................. A p az do Catea u-Cambrésis .. ..................................................................... O r egresso d eFi lip e li a Esp anha ........................ .........................................
315 318 322 326
4. A Espanha em meadosdo século . . . .. ... .. . . . .... ... . . . . .... . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . ..
331
O al er ta p ro tes tante. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . ...................... ...... . . . . . . . . . . . . . . . . .......... O mal -es tar politi co............... ................. . . . . . . . . ..... . . . ..... ...................... . . . .. . . As di ficuldad es fin anceiras . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . ............. . ... .. ........ . .. . ... .. . . . . . . . . . . . . ..
331 334 336
2 -OS ÚLT IM OS S EIS ANOS DA S UPREMAC IA T URCA : 1 559- 1 565 . . . . . . . . . .............
343
1 . A guerra contra os Turcos, uma loucura espanhola?.........................................
343
A rup tura das conversações hispano- turcas ... ....... . .. . .. .. .. ..... ... . .. . ................ . ... A s up rema cia naval dos T urcos ........ ................................................ ........ ... A exp edição d e Djerba ... .. .. .... . ....... .. .. .. ... . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . ............... .. .. ... . . .
344 347 349
2. A recuperação hisplJnica............................................................................
363
Os anos de 1 561 a 1 564........... . . .......... . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . .. . . . .... . . . . .................. Con tra os co rs à rios e con tra o Inv erno : 1 561-1 564 . ... . . . . . . . . . .... . . ........................ O l ev antamen to da C órs ega . . . . . . .. . .... .. . . . . . . .. . . . .. . . . . ...... .................................. A ca lma da Europa .... ... . .......... . . .. ...................... ..... .... . .. ... . .. . . .. ..... .. . . . .... .. Alg uns n úm eros sobre a recup era ção marl tima da Esp anha... ... ..... ............ ... . . . . .. D. Gar cia d e To ledo . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . .............................
363 368 37 6 380 383 388
3. Malta, prova deforça (18 de Maio-8 de Setembro de 1564).................................
390
Ho uv e s urp resa ? . . ... ... .. .. . . ....... .. . .... ............ .. .... .... ... ..... ............ . ........ . .. . .. A resis tência dos cava lei ros .. . . . . . . . ........ ... . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . ... ... .. ..... . O so co rro d e Ma lta . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . ... . ...... ... ............ . O papel da Espanha e de Fi lip e II... . .. . ........ ..................................................
390 392 39 3 39 6
3-NAS ORIGENS DA SA NTA LIGA : 1 566-1 570 . .............. ...... . . . .. ........ ............ .. . .
403
1. OsPafsesBaixos ou o MediterrlJneo?.............. ..................... .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
40 3
A el ei ção d e Pio V.... ........... . . . . .. . . .. . . . . .. . . . .......... ......................... . ... . . . . . . . . . . . Os T urcos n a Hungria e n o Adriáti co . . . . . . . . . ....... ................................... .. . . . . . . . O recom eço da g uerra na Hung ria..... ..... . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . ... ....... . . .................. Os Pais es Bai xos em 1566 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . . . . . . .. . . . ... . . ................... 1 567 -1 568: so b o signo dos Pais es Bai xos .......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . ......
40 3 406 411 415 421
2. A viragem da guerra de Granada .................................................................
431
O recrud es cim en to das g uerras . . . . ...... .. .. . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . ... . .. ... .. . . . . . . . .. . . .......... . Os in lcios da g uerra d e G ranada .. . . .. . ... . ... .. ..... . . .. . ... . . .. . .. . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . Uma cons eq uên cia de G ranada: a tomada de T un es po r Euld j Ali........................ G ranada e a g uerra d e Chipre .. . . . . . . .. . ... . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . ... . . . .. . . ... . ... .. .. .. . ........ . Os inlcios da g uerra d e Chipre........................................................ .... . . . . . . . . . O so co rro d e Chipre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . ..... .......
431 435 441 443 450 459
4-LEPANTO ... .. . .......... ............... ................. . . .. . ........... .............. .. .. . . . . . . . . . . . . ..
465
1. A batalha de 7de Outubro de 1571...............................................................
466
Uma con cl usão tardia .......... ............ . . ............... .. . .. . . . .. . . . ............ . . . . ........... O facto r diplom áti co França . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . .. ... D. Jo ão e a s ua frota ch ega rão a tempo ?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..... Os T ur cos perante Lepan to ...... ........... . . . . ................ . .......... .... ..... ... .... . . . . . .. . A ba talha d e 7 d e Outubro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . . . .. .. . . . . . ........ Uma vi tória s em cons eq uên cias ? . . .. . . .. .. . . . . . . . ... . ... .... . . ... . ... . . . ....... ........ ... . . .. . . .
466 472 47 5 47 8 480 482
2. 1572, ano dramático.................................................................................
485
A cris e fran cesa a té à noite de S ão Barto lom eu, 24 de Agosto de 1 572 . . .. . . . . . . . ........
485
Ordens e contra-ordens a D. João de Áustria, Junho-Julho de 1S72 .................... . As expedições da Moreia ...........................................................................
493 497
3. A «traiÇiio» de Veneza e as duas conquistas de Tunes: 1573-1574 .........................
S04
Defender Veneza ..................................................................................... A conquista de Tunes por D. João de Áustria, outra vitória sem consequências ....... A perda de Tunes: 13 de Setembro de IS74 .................................................... . No Mediterrâneo, finalmente a paz ..............................................................
S
- AS TRÉGUAS HISPANO-TURCAS: IS77-IS84 ............................................... . 1. A missão de Margliani, 1578-1581................................................................
Marcha-atrás: as primeiras tentativas de paz de Filipe II .................................... No tempo de D. João ................................................................................ Um estranho triunfador: Martin de Acufla ..................................................... Giovanni Margliani ................................................................................. . O acordo de ISSI ................................................................................... ..
2. A guerra abandona o centro do Mediterrãneo .................................................
�
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::::::::::: : :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
A Turquia frente à Pérsia ......................................................................... . g t s ���� �� � t ªd·i��· A guerra de Portugal, viragem do século ....................................................... Alcàcer Quibir ........................................................................................ O golpe de força de ISSO ........................................................................... . A Espanha abandona o Mediterrâneo ...........................................................
6
- O MEDITERRÂNEO FORA DAGRANDE HISTÓRIA ......................................
1. Problemas e dificuldades turcas ................................................................. .
Depois de ISS9: as revoltas na África do Norte e no Islão ................................... A crise financeira turca ............................................................................. IS93-1606: retomada das grandes operações nas frentes da Hungria .....................
2. Das guerras civis francesas à guerra aberta contra a Espanha: 1589-1598 ...............
Guerras de Religião na França mediterrânica ................................................. . A guerra hispano-francesa: IS9S-IS9S ......................................................... . A paz de Vervins .....................................................................................
3. A guerra não terá lugar no mar ...................................................................
S04 S06 Sl2 S IS S23 S24 S2S S21 S30 S32 S41 S46 S46 S4S SS4 SS6 SSS S63 S6S S61 S69 S70 S77 S7S SS6 SS6 S9S 601
604
O falso alerta de IS91 .............................................................................. . João André Dória não quer combater a armada turca: Agosto-Setembro de 1S96 .. .. IS97-1600 ............................................................................................. . Falso alerta ou ocasião falhada em 1601? ....................................................... A morte de Filipe II, 13 de Setembro de IS9S ................................................ ..
604 611 613 614 616
CONCLUSÃO ..................................................................................................
619
Anexos
AS FONTES..................................................................................................... ·
1. Asfontesmanuscritas.................. .............................................................
1. Os arquivos espanhóis ............... ......... ................... .......................... ...
629 629 630
II. III. IV. V. VI.
Os arquivos franceses ......................................................................... Os arquivos de Itália ..................... ..................................................... Os arquivos do Vaticano ..................................................................... Os arquivos de Ragusa........................................................................ Os arquivos europeus fora do Mediterrâneo e de França..............................
2. Asfontescartográjicas ................................ .............. ............. ..................
633 636 640 640 641 642
A. Fontes actuais .. ..... . . . ................ .. .. .. . ............................................. . ..... B. Fontes antigas....................................................................................
642 642
3. Asfontes impressas..................................................................................
645
A. As grandes publicações documentais ....................................................... B. As obras essenciais.............................................................................. C. Lista alfabética das obras citadas no texto e nas notas ..................................
645 651 653
1NDICE DOS NOMES PRÓPRIOS .................................. ............................ .... .....
689
ÍNDICE DAS MATÉRIAS ..................................................................................
723
ÍNDICE DOS MAPAS, QUADROS E GRÁFICOS 55. População da península dos Balcãs no início do século xv1.................................... 56. Os orçamentos seguem a conjuntura . . . ... .. .......... . . ............. ... . .. . ....................... 57. Os orçamentos seguem a conjuntura: 1. O caso de Veneza; 2. O caso da França........................................................ 58. Os orçamentos seguem a conjuntura: 3. O caso da Espanha.................................................................................. 59. Os asientose a vida económica em Castela, 1550-1650 ............ ............................. 60. Os/uoghida Casadi SanGiorgio, 1509-1625 ................. . . ... ............. . . . ............... 61. 1: Mouriscos e cristãos em Valência em 1609................ . ............ ...... . . . ........... . . ... 62. II: Evolução da população em Valência de 1565 a 1609 .................... ,................... 63. O duque de Alba atinge a Flandres, Abril-Agosto de 1567..................................... 64. O corso toscano ... . . ......... ..... . . . . . .. .......... . ..... . ............. .. . .. ............... . ............ 65. Prisioneiros cristãos a caminho de Constantinopla (desenho) .... .. ....... ..... . .. .... ....... 66. Os empréstimos de Carlos V e de Filipe II sobre a praça de Antuérpia, 1515-1556 ....... 67. Filipe II no trabalho, 20 de Janeiro de 1569 (carta-autógrafo)................................ 68. Filipe II no trabalho, 23 de Outubro de 1576 (carta-autógrafo) ...... ....... .. ...... .. ... .. ..
22-23 41 45 47 55 60 140 141 201 243 258 320 606 607
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES 25. O cerco de uma praça africana.............................................................. ......... 26, 27 e 28. Galeras na tempestade, no porto, em combate............ .................. .. ......... 29. A vista de Tunes (1535) ................................................................................ 30. Argel, 1563 ............................................................................................... 31. Ragusa em 1499-1501 .................................................................................. 32. Barba-Roxa ................. ..... ............................. .......... .......... .... ..... .............. 33. Carlos V.................. . . . . ............................................................................. 34. Filipe II, cerca de 1555 ................................................................................. 35. Filipe 11............................... ..................................................................... 36. Sixto V .............................................................. ...................................... 37. D. João de Áustria. ..... .............................. ........................................... ....... 38 e 39. A batalha de Lepanto ....................... .. ........ ........... .. ...... ...... .................. 40. Uma galeaça veneziana (século xv1) ••••• .• •• . . . . .• • • • . •• ••••••• ••• . •••• •• • ••••••••••••• •••• •• • • • • • •
215 216 233 234 234 275 276 297 298 447 448
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SEGUNDA PARTE
DESTINOS COLECTIVOS E MOVIMENTOS DE CONJUNTO (continuação)
4 OS IMPÉRIOS Um panorama político válido, no século XVI, não pode ser esboçado se não se remontar muito atrás, para reapreender o sentido de uma longa evo lução. No final do século XIV, o mar Interior pertencia às cidades, aos Estados ur banos plantados nas suas margens. Sem dúvida havia, aqui ou ali, e desembo cando mesmo sobre as vagas, Estados territoriais, mais ou menos homogéneos, relativamente extensos. Como o reino de Nápoles - «il Reame» - o Reino por· excelência; como o Império Bizantino, ou os países unidos da Coroa de Ara gão ... Mas estes Estados não passavam muitas vezes do amplo revestimento de cidades poderosas: Aragão, lato sensu, é a aplicação do dinamismo de Barce lona; o Império do Oriente, muito exactamente, os duplos arredores de Cons tantinopla e de Tessalónica. No século xv, a cidade já não está à altura da situação; surge uma crise urbana, em primeiro lugar em Itália, onde terá tido início com o século. Em cinquenta anos, desenha-se um novo mapa da Península, em benefício de algu mas cidades, em detrimento de outras. Crise comedida dado que não realizou o que esteve talvez então em questão - mas duvido - a unidade da Península. Alternadamente, Nápoles, Veneza, Milão fracassaram na tarefa. O momento era prematuro: demasiados particularismos interpunham-se, demasiadas cida des, ansiosas por viverem a sua própria vida, refreavam este difícil nascimento. A crise urbana só se desenvolveu até meio. A paz de Lodi, em 1454, cons�grou um equilíbrio e um fracasso: a Península tinha simplificado o seu mapa polí tico, mas continuou dividida. 17
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
Contudo, uma crise análoga iria minar toda a extensão mediterrânica. Por todo o lado, com efeito, a cidade-Estado, demasiado frágil, demasiado estreita, revela-se abaixo das tarefas políticas e financeiras do momento. Representava uma forma superada, condenada a desaparecer: em 1453, a tomada de Cons tantinopla, em 1472 a queda de Barcelona, em 1492, o fim de Granada foram as suas provas evidentes 1 • O rival do Estado urbano, o Estado territorial2 , rico de espaço e de homens, afinnava-se o único capaz de suportar as enormes despesas da guerra moderna; mantinha exércitos de mercenários, obtinha o dispendioso material de artilharia; em breve dar-se-ia ao luxo das grandes guerras marítimas. O seu avanço foi um fenómeno durante muito tempo irreversível . Estes Estados novos, no final do século xv, são o de Aragão de João II, esse Luís XI de além -Pirenéus, ou a Turquia de Maomé II, o vencedor de Constantinopla; são tam bém, em breve, a França de Carlos VIII e das aventuras italianas, ou a Espanha dos Reis Católicos. Todos tinham desenvolvido as suas primeiras forças no in terior, longe das margens mediterrânicas3 , a maior parte das vezes através dos espaços pobres onde as cidades obstáculos eram raras. Enquanto em Itália, a ri queza, a própria densidade das cidades tinham mantido divisões e fraquezas, separando-se mal a modernidade do passado na exacta medida em que este tinha sido brilhante e continuava vivaz. Tornava-se assim numa insigne debili dade. Viu-se na altura da primeira guerra turco-veneziana, de 1463 a 1479, durante a qual a Senhoria, mal resguardada pelos seus territórios demasiado debi litados, teve afinal de contas, apesar da superioridade das suas técnicas, de abandonar a partida4; viu-se ainda quando da trágica ocupação de Otranto pelos Turcos em 18405; melhor ainda, quando dos inícios, em 1494, desse furacão que desencadeou a descida de Carlos VIII a Itália. Houve alguma vez passeio militar mais espantoso do que essa rápida viagem a Nápoles onde bastou ao invasor, segundo Maquiavel, mandar marcar com giz o alojamento das suas tropas pelos furriéis? . . . Passado o alerta, cada um pôde discutir e discorrer à sua vontade. Ou troçar de Commynes, o embaixador de Carlos VIII, como o fazia no final de Julho de 1495 um patrício de Veneza, Filippo Tron. Não, acrescentava ele, não foi parvoíce o que se dizia do rei de França, «desejoso de ir à Terra Santa, quando queria fazer-se simplesmente signore di tutta l'ltalia . . . 6>>. Belos discursos, mas então tinha começado, para a Península, a sequência das infelicidades que deviam logicamente valer-lhe a sua riqueza, a sua posição no centro do ciclone da política europeia e, isto explicando tudo, a fragilidade 1 Ver supra, vol. I, p.
378 .
2 Não digo de propósito o Estado nacional. 3 A. Siegfrid, op. cit., p.
4
184.
H. Kretshmayr, op. cit., II, p. 382 . Ver os estudos de Enrico Perito, de E. Carusi, de Pietro Egidi (n. º' 2625 , 2630 e 2626 da bibliografia de Sánchez Alonso). 6 A. d. S., Modena, Venezia VIII, Aldobrandino Guidoni ao Duque, Veneza, 31 de Julho de 14 . 95 S
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OS IMPÉRIOS
das suas sábias estruturas políticas, de todo esse sistema de relojoaria que era o «equilíbrio italiano» . . . Não é sem motivo, a partir de então, que os seus pensa dores, instruídos pelas catástrofes e a lição quotidiana dos factos, meditarão sobre a política e o destino dos Estados, de Maquiavel e de Guichardin no início do século, até Paruta, Giovanni Botero ou Ammirato quando o século ter mina. A Itália? Sim, um estranho laboratório para homens de Estado: todo o povo aí discute política, segundo a sua paixão - a do carrejão na praça do mercado, a do barbeiro na sua loja ou dos artesãos nas tabernas7 ; porque a ra zão de Estado8 - essa redescoberta italiana, não saiu de reflexões solitárias, mas de uma lição colectiva. Do mesmo modo as crueldades, tão frequentes em matéria política, as traições, as chamas renovadas das vinganças privadas, são outros tantos sinais de uma época em que as velhas formas governamentais se quebram, em que as novas se sucedem rapidamente à medida de circunstâncias que o homem não comanda. A justiça prima muitas das vezes pela sua ausência e os governos são demasiado novos para se pouparem improvisações e violên cias. O terror converteu-se num meio de governo. O Príncipe, é a arte de viver, de sobreviver dia a dia9 • Mas já no século xv, e com toda a certeza no XVI, não é nem sequer de simples Estados territoriais, de Estados-nações que se deve falar. Então surgem grupos qiais amplos, monstruosos: aglomerados, heranças, federações, coliga ções de Estados particulares - Impérios, se podemos servir-nos, no seu sentido actual, apesar do seu anacronismo, desta cómoda fórmula. De outra_forma, como designar esses monstros? Em 1494, já não é apenas o reino de França que intervém para além dos montes, mas um Império francês, ainda que puramente imaginário. Instalar-se em Nápoles, é o seu primeiro objectivo. Em seguida, sem se imobilizar no coração do mar Interior, correr para o Oriente, apoiar aí a defesa cristã, responder aos apelos reiterados dos Cavaleiros de Rodes, libertar a Terra Santa, é esta exactamente a complexa política de Carlos VIII, apesar daquilo que diz um tal Filippo Tron: política de cruzada, concebida com a inten ção de bloquear o Mediterrâneo dum só golpe. Ora, não há Império sem mística, e na Europa Ocidental, fora desta mística da cruzada, entre terra e céu. O exemplo de Carlos V prová-lo-á em breve. Também já não é um «simples Estado nacional» como a Espanha dos Reis Católicos, mas sim uma associação de reinos, de Estados, de povos, unidos na pessoa dos soberanos. Os sultões, também eles, governam um aglomerado de povos conquistados e de povos fiéis, associados ao seu sucesso ou subjugados. 7 M. Seidlmayer, op. cit. , p. 342. A paternidade é atribuída, como se sabe, ao cardeal Giovanni della Casa, Oratione di Messer Giovanni dei/a Casa, scrilla a Cario Quinto intorno alia restitutione dei/a cillà di Piacem:.a, publicada no Galateo, do mesmo autor, Florença, 1 5 6 1 , p. 6 1 . Sobre esta vasta questão, F. Meinecke, Die /dee der Staatsr/i.son in der neueren Geschichte, 1 . • ed., Munique, 1925. 9 Pierre Mesnard, L 'essor de la philosophie politique au xvre siecle, 1. • ed., 1936, pp. 39 a 53, particular mente pp. 51-52.
8
19
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO Contudo, a aventura marítima começa a criar, em benefício de Portugal e de Castela, os primeiros Impérios coloniais modernos cuja importância, no início, os mais perspicazes observadores contemporâneos verão mal. O próprio Ma quiavel observa de demasiado perto o espectáculo de uma Itália perturbada para que lhe seja possível ver tão longe - fraqueza e quão grave, de um obser vador geralmente lúcido 1 0 • O drama do Mediterrâneo, no século XVI, é em primeiro lugar um drama de crescimento, que brota dos esforços dos colossos políticos da época em aco modarem-se. Sabe-se como a França fracassou a sua carreira imperial apenas esboçada, por causa das circunstâncias, sim, sem dúvida, do seu atraso econó mico, mas também por culpa do seu temperamento, da sua prudência, do seu gosto pelas coisas seguras, do seu horror pelo grandioso ... Mas o que não suce deu podia muito bem ter acontecido. Não é totalmente absurdo sonhar com um Império francês apoiado em Florença, como o da Espanha (não à primeira, é certo) se apoiou em Génova . . . Sabe-se também como Portugal já quase estran geiro no Mediterrâneo, se desenvolveu (salvo algumas posições marroquinas) fora do espaço próprio do Mediterrâneo. O auge dos Impérios, no mar Interior, é portanto o auge dos Osmânlis a Leste, o dos Habsburgos a Oeste. Como observou, há já muito tempo, Léopold von Ranke, esta dupla carreira ascendente é uma única e mesma história e, acrescentemo-lo sem demoras, não foram somente as circunstâncias e os acasos que presidiram ao nascimento desta grandiosa história simultânea. Não creio, sem mais, que Solimão o Magnífico ou Carlos V tenham sido acidentes (como terá defendido, entre outros, o próprio Henri Pirenne); os seus personagens, sim, sem dúvida, mas não os seus Impérios. Também não creio na influência preponderante de Wolsey 1 1 , desse Wolsey criador da política inglesa da Balance of Power e que, apoiando contrariamente aos seus princípios, em 1 52 1 , Carlos V, senhor dos Países Baixos e da Alemanha, portanto apoiando o mais forte, em vez de auxiliar Francisco o mais fraco, teria aberto a porta à brusca vitória de Carlos V, em Pavia, e seria responsável por uma Itália abandonada, durante dois séculos, à dominação espanhola. . . Porque, sem negar o papel dos indivíduos e das circunstâncias, penso que houve, com o desenvolvimento económico dos séculos xv e XVI, uma conjuntura obstinadamente favorável aos vastos e mesmo aos muito vastos Estados, a esses «extensos Estados» de que recomeçam a dizer-nos, hoje, que o futuro lhes pertence como aconteceu por um instante, no início do século xvm, no momento em que crescia a Róssia de Pedro o Grande e em que se esboçava uma união, pelo menos dinástica, entre a França de Luís XIV e a Espanha de Filipe V1 2• O que se passa no Ocidente passa-se também, mutatis mutandis, no Oriente. Em 1 5 16, o Sudão do Egipto cerca Aden, uma cidade livre e apodera-se dela, 10 A. Renaudet, Machiavel, p. 236. 1 1 G. M . Trevelyan, op. cit., p. 293. 12 Baudrillart (Mgr.), Philippe V et la Cour de France, 1889- 1901, 4 vol., Introdução, p. 1 .
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OS IMPÉRIOS segundo a lógica das coisas. Mas - e obedecendo a este tipo de lógica -, em 1 5 1 7, o Sultão turco apodera-se do Egipto 13 • O peixe pequeno corre sempre o . perigo de ser devorado pelo maior. De facto, a história é , alternadamente, favorável ou desfavorável às am plas formações políticas. Trabalha para o seu crescimento, para a sua expan são, depois para a sua usura e para o seu desmembramento. A evolução não é politicamente orientada de uma vez por todas; não há Estados irremediavel mente condenados a morrer, outros predestinados a crescer, custe o que custar, como se fossem encarregados pelo destino de «engolir territórios e devorar os seus semelhantes» 14 . Dois Impérios, no século XVI , dão provas da sua temível força. Mas entre os anos de 1 550 e 1600 esboça-se já e no século XVII precisa-se o momento não menos inexorável do seu refluxo.
1.
Nas origens dos Impérios
Talvez seja preciso, ao falar dos Impérios, do seu auge ou da sua decadên cia, estar atento ao seu destino: não confundir os períodos, não aperceber demasiado cedo a grandeza daquilo que, um dia, com a colaboração do tempo, será grande ou demasiado cedo anunciar a queda daquilo que, com os anos, deixará um outro dia de ser. Nada de mais difícil do que esta cronologia que não é uma relação de factos, mas um simples diagnóstico, uma auscultação, com as habituais hipóteses de erros médicos.
A grandeza turca 1 5: da Ásia Menor aos Balcãs Na origem da grandeza turca devem situar-se três séculos de esforços re petidos, longas lutas, milagres. Foi mesmo a este lado «milagroso» que os his toriadores ocidentais dos séculos XVI , XVI I e XVIII muitas vezes se apegaram. Como é extraordinária, com efeito, a história desta família dos Osmânlis, engrandecida no acaso dos combates, nessas fronteiras incertas da Ásia Menor, encontro de aventura e de paixão religiosa 16 ! Porque a Ásia Menor é por exce lência uma terra de entusiasmo místico: guerra tt,religião caminham a par, as confrarias bélicas pululam aí e, como se sabe, os janízaros ligam-se às podero sas seitas dos Acaias, depois dos Bektachis. A estas origens, o Estado osmânli
1 3 Ver infra, p. 28 e segs. 1 4 Gaston Roupnel, Histoire et destin, p. 330 . IS Sobre a grandeza turca, R. de Lusinge, De la naissance, durée et chute des États, 1588 , 206 p. Ars. 8 . º H 17337 , citado por J. Atkinson, op. cit., pp. 184- 185, e uma relação inédita sobre a Turquia (1 576). Simancas, E.º 1 147 . 16 Fernand Grenard, Décadence de l'Asie, p. 48 .
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55. Populações da peninsula
Aldeias Camponeses •
•
Camponeses Nómadas organizados militarmente
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Faltam a este mapa, elaborado por ômer Lutfi Barkan a partir dos recenseamentos otomanos, os números que diriam respeito a Istambul e que provavelmente se perderam. O Turco mantém o país por meio dos seus postos fronteiriços e mais ainda graças às suas cidades-chave. Notar-se-á a massa importante das implantações de nómadas Yuruks nas planícies, mas também nas zonas ele vadas, como no Rodopo e nas montanhas a leste do Struma e do Vardar. De um modo geral, uma linha partindo da ilha de Tasos e passando por Sófia divide uma zona cristã, de fraca implantação
s Balcãs no inicio do século xv1
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•
turca, e uma zona de forte implantação muçulmana, na Trácia e até à Bulgária. Os trabalhos poste riores de Õmer Lutfi Barkan e dos seus alunos quase terminaram o inventário dos recenseamentos do século xv1, que marcam um forte aumento da população e mostram o que já se sabia: a primazia muçulmana no povoamento da Anatólia. Cada sinal deste mapa representa 250 famílias, ou sejam mais de 1 000 pessoas. De notar a presença cerrada dos Muçulmanos na Bósnia e a importância da colónia judaica de Salónica.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO deve a sua maneira de ser, as suas bases, as suas primeiras exaltações. O milagre é que o pequeno Estado tenha sobrevivido aos turbilhões, aos acidentes inerentes à sua posição geográfica. Ao sobreviver, terá utilizado para seu proveito as lentas transformações dos países anatólios. A fortuna otomana liga-se, nas suas profundezas, a pode rosos movimentos de invasão, muitas vezes silenciosos, que empurraram os povos do Turquestão para o Oeste. É o fruto de uma transformação interna da Ásia Menor 17 que, grega e ortodoxa no século XIII, se toma turca e muçulmana na sequência de repetidas infiltrações e de completas rupturas sociais, na sequência também de uma espantosa propaganda religiosa das ordens muçul manas, algumas revolucionárias, «comunistas como os Babais, Acais, Abdâl; as outras mais pacificamente místicas como os Mévlévis de Cónia. Segundo G. Huart, Koprülüzadé esclareceu recentemente o seu apostolado» 18 • A sua poesia - a sua propaganda - marcou a alvorada da literatura turca ocidental . . . Do outro lado dos estreitos, a conquista turca foi amplamente favorecida pelas circunstâncias. A península dos Balcãs está longe de ser pobre, é mesmo, nos séculos XIV e xv, rica. Mas está dividida: Bizantinos, Sérvios, Búlgaros, Albaneses, Venezianos, Genoveses lutam aí uns contra os outros. Religiosamente, Ortodoxos e Latinos brigam; socialmente por fim, o mundo balcânico é de uma extrema fragilidade - um verdadeiro castelo de cartas. Tudo isto é para não esquecer: a conquista turca nos Balcãs aproveitou uma espantosa revolução social. Uma sociedade senhorial, dura para os camponeses, foi surpreendida pelo choque e abateu-se por si só. A conquista, fim dos grandes proprietários, senhores absolutos sobre as suas terras, foi, sob determinados pontos de vista, uma «libertação dos pobres diabos» 19 • A Ásia Menor tinha sido conquistada pacientemente, lentamente, depois de séculos de esforços; a península dos Bal cãs parece não ter resistido ao invasor. Na Bulgária, onde os Turcos farão pro gressos tão rápidos, o país tinha sido minado, muito antes da sua chegada, por perturbações violentas 20 • Mesmo na Grécia, tinha havido revolução social. Na Sérvia, desaparecendo os senhores nacionais, uma parte das aldeias sérvias foi incorporada nos bens wakouf (bens das mesquitas) ou distribuída pelos spah� 1 • Ora, estes spahis, soldados e senhores vitalícios, exigirão no início rendas em dinheiro e não jeiras. Será preciso tempo para que a situação campo nesa se torne sólida. Para mais, houve na região bosniana, em redor de Sara-
1 7 Ver supra, vol. I, p. 202. Annuaire du monde musulman, 1923 , p. 3 23 . afirmação é de B. Truhclka, o arquivista de Dubrovnik nas nossas repetidas discussões sobre este mag nífico assunto. 20 Cf. nomeadamente Christo Peyeff, Agrarverfassung und Agrarpo/itik, Berlim, 1927, p. 69; 1. Sakazov, op. cit., p. 1 9; R. Busch-Zantner, op. cit., p. 64 e segs. Contudo, se se seguir o artigo de D. Anguelov, Revue His torique (búlgara), IX, 4, pp. 374-398, a resistência búlgara aos turcos teria sido mais viva do que afirmo. Jos. Zontar, «Hauptproblemc der jugoslavischen Sozial-und Winschaftsgeschichte», in Vierteljahr schrift für Sozial-und Wirtscheftsgeschichte, 1934 , p. 368 .
18 19 A
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OS IMPÉR IOS jevo, conversões maciças em parte devidas, é sabido, à persistente heresia dos Bogomiloi22 • A situação é ainda mais complicada para a Albânia23 • Aqui os proprietários conseguiram encontrar refúgio nos presídios venezianos: foi o caso de Durazzo que permaneceu na Senhoria até 1 50 1 . Quando as fortalezas caíram, a nobreza albanesa refugiou-se em Itália, onde os seus descendentes se mantiveram algumas vezes até ao tempo presente. Não é o caso da família dos Musachi que se extinguiu em Nápoles em 1600. Mas possuímos sobre ela uma preciosa Historia dei/a Casa Musachi, publicada em 1 5 10 por Giovanni Musachi e que esclarece o destino de uma. casa, de um país, de toda uma casta. O nome desta antiga família conservou-se, na Albânia, no distrito dito dos Muzekie24 onde possuía antigamente imensas propriedades25 • A história destes exílios e
transplantações é espantosa. Não é igual em relação a todos os senhores e pro prietários balcânicos. Mas, seja qual for o desfecho que tenha tido, mesmo quando conseguiram salvar-se momentaneamente, renegando-a ou não o problema de conjunto continua a ser o mesmo: perante os Turcos, abateu-se um mundo social, em parte por si só, permitindo pensar, uma vez mais, que é verdadeira, sem excepção, esta reflexão de Albert Grenier: «Só são conquis tados os povos que o querem ser.» Esta realidade social explica as destruições e os êxitos dos invasores. A sua cavalaria, velozmente impelida para bastante longe, cortando os longínquos caminhos, destruindo as colheitas, desorganizando a vida económica, preparava para o grosso do exército fáceis conquistas. Só as regiões montanhosas estiveram protegidas, durante algum tempo, contra o invencível invasor. Este, ligado às rea lidades da geografia balcânica, foi em primeiro lugar senhor das grandes rotas, ao longo dos fossos fluviais, que conduzem ao Danúbio: o Maritza, o Vardar, o Drin, o Morava . . . Em 1 37 1 , triunfava em Cernomen, no Maritza; em 1 389, no Campo dos Melros, no Kosovo Polje, de onde se escapam o Vardar, o Maritza e o Morava. Em 1459, desta vez a Norte das Portas de Ferro, triunfava em Smeredevo, «no ponto exacto em que confluem o Morava e o Danúbio, dominando Belgrado e as terras que dão acesso à planície húngara» 26 • Também muito rapidamente, triunfava no vasto espaço das planícies do Leste27 • Em 1 365 , instalava a sua capital em Andrinopla, em 1 386 toda a Bulgá ria estava conquistada, depois toda a Tessália28 • A conquista foi mais lenta no Oeste montanhoso e muitas vezes mais aparente do que real. Na Grécia, Atenas era ocupada em 1456, a Moreia em 1460, a Bósnia em 1 462- 1 46629 , a Herzego vina em 148 1 30 , apesar das resistências de alguns «reis das montanhas» . A pró22 J. W. Zinkeisen, op. cit., li, p. 143 ; R. Busch-Zantner, op. cit. , p. 23 R. Busch-Zantner, op. cit. , p. 65 . 24 lbid. , p. 55 . 25 /bid., p. 65 e referências aos trabalhos de K. Jirecek e de Sufflay. 26 lbid., p. 23 . 27 W. Heyd, op. cit., li, p. 258 . 28 lbid., li, p. 270 . 29 Annuaire du monde musulman, 1923, p. 228 . 30 H. Hochholzcr, art. cit. , p. 57 .
50.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO pria Veneza não conseguiu proibir durante muito tempo o acesso ao Adriático: Scutari era tomada em 1479, Durazzo em 1 50 1 . Restaria marcar evidentemente essa outra conquista, mais lenta: a construção das estradas, dos pontos fortifi cados, o estabelecimento de caravanas de camelos, a acção de todos esses com boios de abastecimento e de transporte confiados muitas vezes aos cuidados dos transportadores búlgaros, finalmente e sobretudo essa conquista que se organizou pelas cidades que os Turcos submeteram, fortificaram ou cons truíram. Foram verdadeiros focos de expansão da civilização turca; acalma ram, domesticaram, domaram pelos menos os países vencidos, onde não se deveria imaginar um regime de violências contínuas. A conquista turca, nos seus inícios, alimentou-se evidentemente em detri mento dos povos submetidos: depois da batalha de Kosovo, milhares e milhares de Sérvios terão sido vendidos como escravos até nos mercados da Cris tandade3 1 ou recrutados como mercenários; mas o sentido político não faltou ao vencedor. Ainda se viu com as concessões de Maomé II aos Gregos chama dos a Constantinopla a partir de 1 45 3 . A Turquia acabou por criar quadros onde os povos da Península tomaram lugar, um por um, para colaborarem com o vencedor e, aqui ou ali, curiosamente reanimarem os faustos do Império Bizan tino. Esta conquista recriava uma ordem, uma pax turcica. Acreditemos nesse francês anónimo que, em 1 528, escrevia: «0 país está seguro e não há notícias de nenhum raptor . . . nem salteadores . . . O Imperador não tolera nenhum saltea dor nem gatuno»3 2 . Na mesma época, ter-se-ia podido dizer o mesmo da Cata lunha ou da Calábria? É preciso que exista uma parte de verdade neste quadro optimista, dado que, aos olhos dos Cristãos, o Império Turco pareceu durante muito tempo admirável, incompreensível, desconcertante pela sua ordem; dado que o seu exército maravilhou os Ocidentais pela sua disciplina, pelo seu silêncio, tanto como pela sua coragem, pela abundância das suas munições, pelo valor e pela sobriedade dos seus soldados . . . O que não impedia, pelo contrário, o Cristão de odiar estes Infiéis, «muito piores do que cães em todas as suas obras»: frase escrita em 1 52633 . . . Pouco a pouco, contudo, as opiniões tornaram-se mais justas. Os Turcos eram sem dúvida uma praga de Deus; Pierre Viret, o reformador protestante da Suíça Francesa, escreveu sobre eles, em 1 560: «Não nos podemos maravilhar se Deus castiga hoje os Cristãos com os Turcos, como antigamente castigou os Judeus, quando eles abandonaram a sua fé . . . porque os Turcos são hoje os Assí rios e os Babilónios dos Cristãos e a vara e a praga e o furor de Deus»34. A par tir de meados do século, outros como Belon du Mans, iam reconhecer as suas virtudes; e, em seguida, cada um gostará de sonhar com esse país exótico,
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J. Zontar, in Vierte/jahrschrift für Sozial-und Wirtschaftsgeschichte, 1934 , p. 369. Citado por G. Atkinson, op. cit., p. 179. Ibid., p. 21 1 . Ibid. , p. 397. A mesma ideia, em 1544, em Jérôme Maurand, Itinéraire de. . . d'Antibes à Constantinop/e ( 1 544), p.p. Léon Durez, 1901 , p. 69, as vitórias dos Turcos dados os pecados dos Cristãos.
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OS IMPÉRIOS às avessas, ocasião propícia para se evadir da sociedade ocidental e das suas pressões. Mas era já um progresso explicar os Turcos pelos erros e pelas fraquezas da Europa35 • Um ragusano dizia-o a Maximiliano 136 : enquanto os países europeus se dividem, «toda a suprema autoridade, no Império dos Turcos, está nas mãos de um único homem, todos obedecem ao Sultão, que governa sozinho; é para ele que vão todos os rendimentos, numa palavra, é o senhor, enquanto todos os outros são seus escravos . » Isto é em síntese o que explica, em 1 533, aos embaíxadores de Fernando, Aloysius Gritti, espantoso personagem, filho de um veneziano e de uma escrava, durante muito tempo favorito do grão-vizir lbrahim Paxá. Carlos V não deve arriscar a sua força contra a de Solimão.
Verum esse Caro/um Cesarem potentem sed cui non omnes obediant, exemplo esse Germaniam et lutheranorum pervicaciam31• É certo que a força turca está como que apanhada no complexo das fra
quezas europeias, por uma verdadeira acção mecânica. As grandes querelas da Europa favoreceram, provocaram ., avanço turco até à Hungria. «Foi a tomada de Belgrado [a 29 de Agosto de 1 521) - escreverá Busbec com razão38 - que deu nascimento a essa multidão de males que chegaram há tão pouco tempo e sob o peso dos quais ainda gememos. É essa a funesta porta pela qual os bárba ros entraram para destruir a Hungria, foi o que ocasionou a morte do Rei Luís, em seguida a perda de Buda, a alienação da Transilvânia. Se finalmente os Turcos não tivessem tomado Belgrado, nunca teriam entrado na Hungria, esse reino que destruíram, conhecido antigamente como um dos mais florescentes da Europa.» De facto, 1 5 2 1 , o ano de Belgrado, era o início do grande conflito entre Francisco 1 e Carlos V. As sequências chamaram-se Mohacs, em 1 526; o cerco de Viena em 1529. Bandello, que escrevia as suas Nouvelles a seguir a esse grande acontecimento39 , mostra uma Cristandade que esperava o pior, «reduzida a um cantão da Europa, na sequência das discórdias que se tornam cada vez maiores entre os Príncipes Cristãos . . . ». A menos que a Europa40, em vez de procurar quebrar o impulso otomano, se deixe de facto atrair por outras aven turas, a do Atlântico e do vasto mundo, como historiadores observaram há muito tempo41 • Talvez seja preciso alterar a muito antiga explicação, errada mas não desaparecida, a saber, que são as conquistas turcas que provocaram as grandes descobertas; enquanto que ao contrário, foram exactamente as grandes
35 F. Babinger, op. cit., pp. 446-447. Para a referência do livrÕ. ver infra, p. 44, nota 93 . 36 J. W. Zinkeisen, op. cit., III, p. 19. 37 Citado por J. W. Zinkeisen, op. cit., Ili, p. 20 , nota l, segundo Anton von Gevay, Urkunden und Acten stücke zur Geschichte der Verhliltnisse zwischen Üsterreich, Ungarn und der Pforte im XVI. und XVII. Jahr hundert, 1 840- 1 842, p. 3 1 . 3 8 Op. cit., p . 42. 39 Op. cit., VIII, p. 5. 30 40 F. Grenard, op. cit., p. 86 . 41 Émile Bourgeois, Manuel historique de Politique étrangere, t. I, 1892, Introdução, p. 2 e segs.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO descobertas que criaram no Levante uma zona de menor interesse onde o Turco conseguiu, em seguida, estender-se e instalar-se sem grandes dificuldades. Por que, de qualquer modo, quando ele ocupa o Egipto, em Janeiro de 1 5 17, há vinte anos que Vasco da Gama dera a volta ao cabo da Boa Esperança.
Os Turcos na Síria e no Egipto Ora, se não nos enganamos, o acontecimento principal na grandeza oto mana, mais ainda do que a tomada de Constantinopla, «esse episódio» como o chamou com algum exagero Richard Busch Zantner42 , não é a conquista da Síria, em 1 5 16, e a do Egipto, em 1 5 1 7, realizadas uma e outra num único e mesmo lance? Foi então que se desenhou a enorme história otomana43 • Note-se que a conquista, em si mesma, nada teve de particularmente grandioso, visto que se realizou sem dificuldades. Contestações de fronteiras ao Norte da Síria, e ainda uma tentativa do Sudão para se colocar como mediador entre Tur cos e Persas serviram, chegado o momento, de pretexto . . . Os Mamelucos, que consideravam a artilharia como uma arma desleal, não conseguiram resistir aos canhões de Selim, a 24 de Agosto de 1 5 16, perto de Alepo. A Síria caiu de vez nas mãos do vencedor que entrava em Damasco a 26 de Setembro . Recu sando-se o novo Sudão a reconhecer a soberania otomana, Selim levou o seu exército até ao Egipto. Os Mamelucos foram de novo varridos pelo canhão turco44 , em Janeiro de 1 5 1 7 , perto do Cairo. A artilharia, mais uma vez, criava um grande poder político. Tal como em França, na Moscóvia45 e em Granada46 em 1492. O Egipto foi conquistado sem luta, quase sem que a ordem tenha aí sido perturbada. Muito depressa, os Mamelucos, apoiados nas suas vastas proprie dades, apoderaram-se de novo do essencial do poder: Bonaparte encontrou-os três séculos mais tarde. Sem dúvida, o barão de Tott tem razão quando escreve: «Pelo exame do Código do sultão Selim, tem de se presumir que esse Príncipe capitulou com os Mamelucos mais do que conquistou o Egipto. Apercebe-se, com efeito, que ao manter os vinte e quatro beis que governavam o seu reino, apenas procurou equilibrar a sua autoridade pela de um Paxá, que estabeleceu como governador-geral e presidente do conselho . . . »47 • Esta observação con vida a não dramatizar a conquista de 1 5 1 7. E, contudo, que grande acontecimento! O que Selim conseguiu dos Egíp cios foi considerável. Em primeiro lugar o tributo, moderado nos seus inícios48 , 42 « . . . eine Episode, kein Ereignis», p. 22 . 43 V. Hassel, op. cit., pp. 22-23. 44 F. Grenard, op. cit., p. 79. 45 Ver supra, vol. !, p. 205. 46 J. Dieulafoy, Isabel/e la Catho/ique, Reine de Castil/e, 1920; Fernand Braudel, «Les Espagnols . . . », in Revue Africaine, 1928 , p. 216, nota 2 . 47 Mémoires, IV, p. 47 . 4l! Brockelmann, Gesch. der islamischen Vólker, 1939, p. 262 .
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OS IMPÉRIOS não parou de crescer. Por meio do Egipto organizou-se a participação do Impé rio Otomano no tráfico do oiro africano proveniente da Etiópia e do Sudão, depois no comércio das especiarias em direcção à Cristandade. Assinalámos este comércio do oiro e a importância que tomou a ter a rota do mar Vermelho no tráfico�eral do Levante. No momento em que os Turcos se instalaram no Egipto e na Síria, muito tempo depois do périplo de Vasco da Gama, estes dois países já não eram evidentemente as portas exclusivas do Extremo Oriente, mas continuavam a ser importantes. Assim, o dique turco entre a Cristandade medi terrânica e o oceano Índico49 encontrou-se terminado e consolidado. Enquanto a ligação se estabelecia, ao mesmo tempo, entre a enorme cidade de Constanti nopla e uma grande região produtora de trigo, de arroz, de favas. Em seguida, e muitas vezes, o Egipto terá sido, na evolução turca, o factor determinante e, se se pode dizer, o elemento corruptor. Defendeu-se, com alguma verosimi lhança, que do Egipto se tinha expandido, até às extremidades do Império Otomano, a venalidade dos cargos50 , frequentemente corruptora da ordem política. Mas Selim retirou da sua conquista um bem tão precioso como o oiro. Sem dúvida, antes de ser o senhor dos países do Nilo, tinha mandado dizer as ora ções em seu nome, desempenhado o papel de Califa5 1 , de Príncipe dos crentes. Ora, neste papel, o Egipto ter-lhe-á dado uma consagração. Diz a lenda - é uma lenda, mas pouco importa! - que o último dos Abassidas albergado no Egipto pelos Mamelucos teria cedido a Selim o Califado sobre todos os verda deiros muçulmanos. Lenda ou não, o Sultão regressava do Egipto aureolado de um prestígio imenso. Em Agosto de 1 5 1 7, recebia do filho do Xeque da Meca a própria chave da Kaaba52 • Era a partir desta data que devia ser confiado à guarda de cavaleiros de elite a bandeira verde do Profeta5 3 • Não há dúvida de que através do Islão, a elevação de Selim à dignidade de Comandante dos Cren tes, em 1 5 17, causou tanto alarido como dois anos mais tarde, na Cristandade, a célebre eleição de Carlos de Espanha para o Império. Esta data marcou, durante a Primavera do século XVI , a ascenção da maior potência otomana e (porque tudo se paga) de uma maré de intolerância religiosa54• Selim morria pouco depois das suas vitórias, em 1 520, no caminho de An drinopla. Seu filho, Solimão, sucedia-lhe sem competição. Ir-lhe-ia pertencer a honra de assegurar a grandeza otomana, apesar dos prognósticos pessimistas levantados sobre a sua pessoa. O homem estava à altura da sua tarefa. Mas,
49 J. Mazzei, op. cit., p. 41 . 50 Annuaire du monde musu/man, p. 21 . 5 1 Só toma este título oficialmente no século XVIII, Stanford J. Shaw, «The Ottoman view of the Balkans», in The Balkans in transition, ed. por C. e B. Jelavich, 1963 , p. 63. 52 J . W. Zinkcisen, op. cit., III, p. 1 5 . 53 Brockelmann, op. cit., p. 242 . 54 Stanford J. Shaw, art. cit., p. 67, assinala o papel dos ulemas fanáticos das províncias árabes recente mente conquistadas e a reacção turca contra os missionários franciscanos que Veneza e os Habsburgos enviam para os Balcãs.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO reconheçamo-lo, chegava numa hora favorável. Em 1 5 2 1 , apoderava-se de Belgrado, a porta da Hungria; em Julho de 1 522, cercava Rodes e tornava-a em Dezembro do mesmo ano; a temível e poderosa fortaleza dos Cavaleiros de São João foi tornada, e todo o Mediterrâneo oriental se oferecia à sua nova ambi ção. Nada já se opunha a que o senhor de tantas margens do Mediterrâneo dis pusesse de urna frota. Os seus súbditos e os Gregos, incluindo os das ilhas venezianas55 , iriam fornecer-lhe o indispensável material humano. O grande reinado de Solimão, inaugurado por esta vitória espantosa, teria sido tão bri lhante sem a conquista prévia da Síria e do Egipto?
O Império Turco visto de dentro Nós, os historiadores ocidentais, ternos visto apenas de fora este Império Turco. E isso é vê-lo na metade, ou menos ainda que a metade, e, por conse quência, têrno-lo tratado dum ponto de vista unilateral. A utilização dos riquís simos arquivos de Istambul e da Turquia, muda pouco a pouco esta óptica antiga. É de dentro que é preciso apreender a enorme máquina a fim de compreender melhor as suas forças e desde já, porque elas foram precoces, as suas fraquezas56 e as suas oscilações. O que é o mesmo que pôr em causa urna arte de governar que é também urna arte de viver, herança misturada e complicada, urna ordem reli giosa e urna ordem social, e épocas económicas diferentes. A história imperial dos Osrnanlis são séculos de história, portanto experiências sucessivas, diferen tes, contraditórias. É urna Ásia Menor «feudal» que abre o caminho dos Balcãs ( 1 360), alguns anos depois Poitiers, nas primeiras fases daquilo a que chama mos a Guerra dos Cem Anos; um sistema feudal (beneflcios e feudos) que se instaura nestas terras conquistadas da Europa e cria urna aristocracia rural que os sultões controlam razoavelmente e contra a qual lutarão em seguida com perseverança e êxito. Mas esta classe dominante dos Otomanos, dos escravos e do sultão, não vai deixar de mudar no seu recrutamento. As suas lutas pelo poder pontuarão o ritmo interior da grande história imperial. Tere mos ocasião de voltar ao assunto.
A unidade espanhola: os Reis Católicos Por um lado os Osrnanlis, por outro os Habsburgos. Antes destes últimos, os Reis Católicos, primeiros obreiros da unidade espanhola, tiveram no plano desta história imperial tanta importância, se não mais, corno os sultões de Brousse ou de Andrinopla na génese da fortuna otomana. A sua obra foi favo recida, elevada pelo impulso do século xv depois do fim da Guerra dita dos
ss Ver supra, vol. I, p. 133 e nota 43. S6 Stanford J. Shaw, «The Ottoman view of the Balkans», in The Balkan in transition, op. cit., pp.
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56-80.
OS IMPÉRIOS Cem Anos. Não se deve aceitar, com efeito, tudo o que terão dito os historió grafos de Fernando e de Isabel. .. A obra dos Reis Católicos, e não se trata de diminuí-la, teve a seu favor a colaboração do tempo e dos homens. Foi desejada, exigida pelas burguesias das cidades, saturadas de guerras civis, desejosas de paz interna, de negócios tranquilos, de segurança. A primeira Hermandad foi um amplo movimento urbano: os seus sinos de alarme respondem uns aos outros de cidade para cidade, anunciam os novos tempos. As cidades, com as suas espantosas reservas de vida democrática asseguraram o triunfo dos Reis Católicos. De igual modo, não aumentemos demasiado o papel, evidentemente consi derável, dos grandes autores deste destino. Alguns historiadores chegaram a pensar que a união de Castela e de Aragão, realizada em força pelo casamento de 1469, teria podido realizar-se também entre Castela e Portugal57 • Isabel teve a escolha entre o casamento português e o aragonês, entre o Atlântico e o Medi terrâneo . Em suma, a unidade ibérica anda no ar, no exacto sentido da conjun tura. A escolha reside entre uma fórmula portuguesa e uma fórmula aragonesa. Esta não forçosamente superior àquela. Ambas fáceis, ao alcance da mão. A solução adquírida, a partir de 1469, equivale ao desvio de Castela em direcção ao Mediterrâneo, operação cheia de dificuldades e de deformações, dada a tra dição, a política, os interesses do reino, mas que, no entanto, se realiza no curto espaço duma geração: o casamento de Fernando e de Isabel é de 1469; a subida ao trono de Isabel, em Castela, de 1474; a de Fernando em Aragão de 1479; a evicção .do português é conseguida em 1 483; a conquista de Granada termi nada em 1492; a reunião da Navarra espanhola realizada em 1 5 12. Não compa , in Revue Tunisienne, edição especial, p. 1 8.
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OS IMPÉRIOS rável que lhe faz frente, não para se perder no Novo Mundo, mas para se situar com conhecimento de todos, no próprio coração da Cristandade de então, no seu coração ameaçado, a Itália. Velha política, mas prestigiosa.
Carlos V Carlos V sucede em Espanha a Fernando. É então Carlos de Gante e torna -se Carlos I, em 1 5 16. Com ele, tudo se complica e se amplifica como, na outra extremidade do mar, com Solimão o Magnífico. A Espanha encontra-se relegada para a retaguarda da história falsamente brilhante do Imperador. Carlos de Gante tornou-se Carlos V em 1 5 19: não terá tempo para ser Carlos de Espanha. Curiosamente, só o será muito tarde, no fim da sua vida, por razões sen timentais e de saúde. A Espanha não foi o grande personagem da história de Carlos V, ainda que contribuísse para a sua grandeza. Claro que seria injusto não ver o que a Espanha conseguiu dar à aventura imperial. Aliás, os Reis Católicos prepararam a fortuna do seu neto. Não actua ram em todas as . direcções úteis: Inglaterra, Portugal, Áustria, Países Baixos? Não jogaram e tornaram a jogar na lotaria dos casamentos? A ideia de cercar a França, de dominar esse vizinho perigoso, modela previamente o curioso Império habsburguês, como que minado, esburacado no seu centro. Carlos de Gante foi um acaso calculado, preparado, pretendido pela Espanha. Sem dúvida, um acidente teria podido mudar o curso dos acontecimentos. Por exemplo, a Espanha não reconhecer Carlos em vida de sua mãe, Joana a Louca, que só morre em Tordesilhas em 1 555; ou então, pronunciar-se a favor do seu irmão Fernando, educado na Península. Continuemos: Carlos teria podido não triunfar na eleição imperial de 1 5 19. Nem por isso a Europa teria escapado a uma grande experiência imperial. A França, na via desta aventura desde 1494, podia recomeçar e conseguir. Não esqueçamos, além disso, que por detrás do sucesso de Carlos V houve durante muito tempo a força económica dos Países Baixos, associada à nova vida do Atlântico, encruzilhada da Europa, centro de indústria e de negócio a quem faltam saídas, mercados, uma segurança política que o Império Alemão, desorganizado, lhe teria contestado. Encaminhando-se a Europa por si só para a construção de um vasto Estado, o que teria podido mudar, com o destino diferente de Carlos V, é a figura ção do jogo imperial, não o próprio jogo. Os eleitores de Francoforte, em 1 5 1 9, não podiam de modo algum decidir-se a favor de uma candidatura nacional. Os historiadores alemães viram-no bem, a Alemanha não teria sttportado o peso de tal candidatura: teria tido que lutar contra os dois candidatos ao mesmo tempo, tanto contra Francisco I como contra Carlos. Escolheu, ao eleger Car los, o mal menor, e não só, digam o que disserem, aquele que, mantendo Viena, guardava a sua fronteira oriental ameaçada. Não esqueçamos que em 1 5 1 9 Belgrado continua a ser praça cristã e que, de Belgrado a Viena, se estende a espessura protectora do reino da Hungria. Foi apenas em 1526 que a fronteira húngara se quebrou. Tudo mudará então, mas nunca antes. As histórias dos
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO Habsburgos e dos Osmanlis misturam-se bastante na realidade sem que se mis turem despropositadamente. Não é em 1 5 1 9 que teriam podido circular estes
versos populares sobre o Imperador:
Das hat er ais getane Allein für Vatterland A uf das die romische Krone Nit komm in Turkenhand. A Alemanha, aliás, não servirá de ponto de apoio a Carlos V. A partir de
1 5 2 1 , Lutero atravessa o seu destino. E logo a seguir à sua coroação em Aix-la -Chapelle, em Setembro de 1 520, o Imperador tinha renunciado, a favor de seu
irmão Fernando, ao seu próprio casamento com a princesa húngara Ana e, em Bruxelas, a 7 de Fevereiro de 1 522, cedia secretamente a seu irmão o Erblancf>4. Era abandonar qualquer grande acção pessoal na Alemanha. Notemos também que, pela força das coisas, não podia apoiar-se directa mente na Espanha, excêntrica em relação à Europa e que ainda não era amplamente abastecida pelos tesouros do Novo Mundo: não o será, de maneira importante, antes de 1 53 5 . Na sua luta contra a França, que foi o pão quotidiano da sua vida a partir de 1 521 , as duas posições de Carlos V foram forçosamente a Itália e os Países Baixos. Foi sobre esta charneira da Europa que incidiu o esforço do Imperador. O Grande Chanceler Gattinara aconselhava a Carlos, antes de qualquer outra coisa, que mantivesse a Itália . . . Nos Países Baixos, Carlos V encontrava, em tempo de paz pelo menos, grandes rendimentos, possibilidades de empréstimos, como em 1 529, excedentes orçamentais. Foi regra, sob o seu rei nado, repetir que todos os encargos recaíam sobre os Países Baixos e depois de 1 552, mais do que nunca tal se afirmou. Aconteceu então nos Países Baixos esse acidente que já acabrunhava a Sicília, Nápoles ou mesmo Milão, cuja ri queza era todavia evidente: os seus excedentes orçamentais quase que se esgota ram. A evolução talvez se tenha precipitado porque Carlos e Filipe II exerceram o seu esforço militar sobre os Países Baixos e porque o comércio destes últimos sofreu com isso. Sem dúvida, chegaram de Espanha grandes somas de dinheiro. Filipe II sublinhá-lo-á. Mas em 1 560, a discussão ainda durava. Os Países Bai xos afirmavam ter sofrido mais do que a Espanha, «esta tinha então ficado in demne de qualquer prejuízo e tinha continuado os seus tráficos com a França a coberto de salvo-condutos»65 • Não podia pois queixar-se demasiado dos sofri mentos desta guerra que dizia só ter conduzido para permitir ao rei de Espanha «pôr o pé em Itália»66 • Discussão estéril, mas que se mostrará desvantajosa para a Flandres. Filipe II instalou-se em Espanha e, em 1567, um dos objectivos do duque de Alba foi obrigar a restituir as províncias revoltadas. Seria portanto 64 Gustav Turba. Geschichte des Thronfo/gerechtes in al/en habsburgischen Liindern. . . , 65 Granvelle a Filipe II, Bruxelas, 6 de Outubro de 1560, Papiers. . . , VI, p. 1 79. 66 lbid.
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1903, p. 153 e segs.
OS IMPÉR IOS muito útil ter uma história segura das finanças dos Países Baixos67 • Os Vcnezia nos, em 1 559, descrevem-nos como uma região rica e muito povoada, mas onde a vida é terrivelmente cara: «Ü que vale dois em Itália, três na Germânia, custa quatro e cinco na Flandres»68 • Seria a subida dos preços, na sequência das che gadas de prata americana, depois da guerra, que teria finalmente quebrado o mecanismo fiscal dos Países Baixos? Sariano diz na sua Re/azione, em 1 559: «Esses países são os tesouros do rei de Espanha, as suas minas, as suas Í ndias, apoiaram os empreendimentos do Imperador durante tantos anos nessas guer ras de França, de Itália e da Alemanha . . . »69 • O único erro de Sariano é falar no presente . . . Itália e Países Baixos, esta terá portanto sido a dupla e viva fórmula da política de Carlos V, com algumas escapadas para a Alemanha e para a Espanha. Por isso, a um historiador de Filipe II, este império parece cosmopolita, muito aberto aos Italianos, aos Flamengos, à gente do Condado, acontecendo eviden temente, no séquito do Imperador, encontrar espanhóis. Entre a Espanha dos Reis Católicos e a de Filipe II, a época de Carlos V foi carregada de um sentido universal. A ideia de cruzada também se modificou70 • Perdeu o seu carácter ibé rico e afasta-se do ideal da Reconquista. Depois da eleição de 1 5 19, a política de Carlos V desgarra-se do solo, perde-se em sonhos de Monarquia Universal . . . «Sire - escrevia-lhe Gattinara -, depois d a vossa eleição, agora que Deus vos fez a prodigiosa graça de vos elevar acima de todos os Reis e de todos os Príncipes da Cristandade, a um tal grau de poder que, só até aqui tinha conhe cido o vosso predecessor Carlos Magno, estais no caminho da Monarquia Uni versal, no ponto de reunir a Cristandade sob um único pastorn71 • Esta ideia de Monarquia Universal iria inspirar a política de Carlos V, apanhada para mais na grande corrente humanista da época. Um alemão, Georg Sauermann, que se encontrava em Espanha em 1 520, dirigia ao secretário imperial, Pedro Ruiz de la Mota, esta Hispani>86• Huomo di Republica, um belo projecto! Um pormenor ainda mais significativo, em Valência, em Abril de 1 6 1 6, o vice-rei, duque de Feria, punia um nobre na sequência de um dos seus gracejos de mau gosto e mandava-o passear em cima de uma mula através da cidade. Os nobres fecham imediatamente as suas casas, vestem os seus fatos de luto e alguns vão protestar a Madrid, junto do Rei87 • Em Nápoles, as violentas invasões de Carlos VIII e Luís XII, originaram catástrofes nobiliárias em cadeia. Viram-se desaparecer os grandes magnates,
80 lbid.• p. 81
270.
lbid., p. 277. lbid., p. 263 . 83 lbid., pp. 262-263 . 84 Lucien Romier, Le Royaume de Catherine de MMicis, 3 . ' ed., 1925 , l, pp. 160-239. BS Pierre Vilar, La Catalogne dans l'&pagne modeme, 1 962 , 1, p. 573 , notas breves; A. Dominguez Ortiz, op. cit., p. 303 e segs. Pequeno número da nobreza catalã. 86 A. d. S., Génova, Spagna 6, 24 1 5 , Madrid, 4 de Agosto de 1 575 . 87 A. d. S., Veneza, Senato Dispacci Spagna, P.º Vico ao Doge, Madrid, 27 de Abril de 1616. 82
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tal como os príncipes de Salemo ou de Tarento, ou o duque de Bari. Os seus «Estados» foram divididos. Mas, neste jogo, os nobres de menor categoria aumen taram e Estados muito vastos sobreviveram, como os condados de Albi e Taglia cozzo, de Matera, de Cellano. Em 1 55888, uma relação veneziana conta no reino 24 duques, 25 marqueses, 90 condes, cerca de 800 barões e, neste número, treze senhores dispondo de 16 a 45 000 escudos de rendas . Mais tarde, estes números aumentaram. Em 1 5 80, 1 1 príncipes, 25 duques, 37 marqueses89; em 1 597, 213 «titolati», ou sejam, 25 príncipes, 41 duques, 75 marqueses, 72 condes e 600 barões, etc. 90• Não vale a pena contar esta bagatela. Em 1594 há senhores que dispõem de 50 a 100 000 ducados de renda91 • Corno poderia o Estado, vendedor de títulos por intermédio da Sommaria, travar luta contra os seus próprios clientes? Travou-a, todavia, mas nunca completamente. Em 1 538, e ainda poste riormente, Carlos V fez saber que não permitia, aos seus feudatários de Nápo les, que exercessem o mero e o misto impero92 a não ser que este direito estivesse devidamente especificado nos seus privilégios ou estabelecido por meio de uma prescrição legítima; no caso contrário, o feudatário seria inculpado de usurpação de jurisdição. O Imperador tentou também retirar os bens das comunidades e a liberdade dos vassalos à mercê dos caprichos dos senhores; ten tou limitar o número dos «serviços» àqueles que o costume fixava. Em vão. Tudo serviu para o baronato: as florestas, os pastos comuns, as jeiras dos seus súbditos (sobre quem calculavam ter todos os direitos: Bianchini chega a falar de assentos cobertos com pele humana)93 , os direitos do soberano, por vezes o próprio dinheiro dos impostos devidos ao rei. É certo que este renunciava muitas vezes aos seus direitos e aos seus rendimentos fiscais, vendidos previamente, depois, dado o caso, revendidos. Em consequência, a maior parte dos feudatá rios têm direitos quase soberanos em matéria de justiça e de foros: têm homens seus, nenhum governo poderia domá-los. Talvez só lhes falte o privilégio de cunhar moeda. Só a sua prodigalidade, o seu costume, em Nápoles, de viverem perto do vice-rei e na atmosfera da grande cidade, a sua vaidade, a necessidade de se apoiarem na Espanha para lutarem contra o Turco e contra o «popular», os impede de se agitarem demasiadamente. E talvez também o facto de que, entre eles, se encontrem estrangeiros, Espanhóis ou Genoveses, introduzidos pela venalidade dos feudos. Em todo o caso, tomado em bloco, o baronato aumenta. Os últimos anos do século, tão maus, abatem sem dúvida mais de um senhor, particularmente na cidade. Dívidas gritantes originam vendas, colocações sob sequestro por parte da Sommaria. Estes são acidentes banais na vida dos nobres, tanto em Nápoles
88 E. AlbCri, op. cit., I, V, p. 276. 89 lbid., II, V, p. 464. lbid., p. 316. 91 Arch. storico italiano, IX, p. 247 . 92 L. Bianchini, op. cit., II, pp. 249, 93 Op. cit., p. 249 . 90
252-253 , 260, 299.
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corno em outras partes, os riscos próprios da sua condição. Os nobres sobrevivem a estes incidentes. Ainda que um deles se arruíne e deite tudo a perder, a classe nobiliária continua a crescer e a prosperar. Se de um salto fossemos até ao meio dramático do século XVII, veríamos aí, para além das imagens pitorescas e dos papéis individuais, por altura da revolução de Nápoles no tempo de Masaniello ( 1 647), o momento triunfal duma inegável revolução social: a classe reaccio nária dos senhores feudais alcançando a vitória decisiva94 • A nobreza ganhou a partida, por muitos anos, e não só em Nápoles. Ganhou-a em Milão95 , na Toscana96 , em Génova97 , em Veneza98 , em Rorna99 • Teríamos assim material de sobra para descrever cada um destes casos. Mas será necessário repetirmo-nos?
As sucessivas nobrezas da Turquia De longe, o arquivo mais espantoso é o que respeita ao Turco. Enquanto sobre o Islão não ternos nenhum, ou muito pouco conhecimento directo sobre o que se passa, estamos razoavelmente bem informados acerca da situação social na Anatólia, e perfeitamente inteirados da que impera nos Balcãs. E esta reali dade, contrariamente ao que se repetiu muitas vezes 1 00, não é oposta ao destino do Ocidente. Semelhanças e analogias saltam aos olhos. As mesmas causas, os mesmos efeitos, pode dizer-se, na medida em que urna ordem social de qual quer modo não apresenta, quanto às suas estruturas, milhares de soluções pos síveis, e que se trata de sociedades todas francamente rurais, de Estados ainda elementares apesar do seu esplendor e, no que toca à sua imaturidade, muito semelhantes uns aos outros. Os estudos dos últimos quinze anos, se não esclareceram tudo, permitem -nos discernir certas constantes e a construção de alguns «modelos» válidos, de grande utilidade para obter o essencial: estabelecer cuidadosamente as diferen ças entre urna época e outra. Demasiados historiadores, a propósito da Tur quia, tendem a confundir, com efeito, perspectivas que resultam dum processo evolutivo de vários séculos de duração; ora, se as sociedades caminham rara mente a passos de gigante, transformam-se com o tempo em distâncias também vastas. É de três, até mesmo de quatro nobrezas turcas que se deve falar, sendo
94 Cf. os excelentes artigos de Rosario Villari, «Baronaggio e finanze a Napoli alia vigilia della rivoluzione dei 1 647- 1 648 », in Studi Storici, 1962; «Note sulla rifeudalizzazione dei Regno di Napoli alia vigilia della rivolu zione di Masaniello», in Studi Storici, 1 963. 95 Storia di Mi/ano, X, L'età dei Borromei, 1 57 , problemas sociais abordados de viés, p. 3 3 e sg. 5 9 96 Ver infra, p. 70 . 97 Vito Vitale, Breviario dei/a storia di Genova, 1 55 , !, p. 235 e segs. 9 98 James C. Davis, The decline of the Venetian Nobility as a Ru/ing Class, Baltimore, 1 62. 9 99 J. Delumeau, op. cit., II, p. 433 e segs. 100 P. Milioukov, Charles Seignobos e Louis Eisenmann, Histoire de Russie, 1 32, I, p. XIII; Henri Pirenne, 9 Les villes du Moyen Âge.. . , p. 52; Henri Sée, Esquisse d'une histoire du régime agraire aux xvr1,e et x1xe siec/es, 1 92 1 , p. 180.
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AS SOCIEDADES a última, que se acaba de estabelecer ousadamente com o final do século XVI, se se pretender, a mais abusiva: submerge o Estado totalitário dos Osrnânlis e enfraquece-o, se é que não provoca, só por si, a sua ruína total. Porque, final mente, se as mesmas causas e os mesmos efeitos são visíveis por todo o lado, as conjunturas gerais têm a sua responsabilidade, assim corno serão o instrumento essencial da mudança. A primeira nobreza turca deve compreender-se remontando no curso do tempo até ao extremo da noite do século XIV; está instalada na Anatólia na vés pera ou a seguir aos primeiros grandes triunfos dos Osrnânlis (da tornada de Brousse, 1 326, à de Andrinopla, cerca de 1 360). Se se aceitar o que dizem de bom grado os historiadores 1 0 1 , esta alta sociedade é opressiva, comprimida num ombro a ombro inquietante, ao mesmo tempo esclavagista, feudal e senhorial, e contudo livre, demasiado livre perante o Sultão (que na realidade não passa do primeiro no meio dos seus pares). As terras compram-se e vendem-se constantemente sem o menor controlo do Estado. É urna sociedade que reco nhece o que nós chamaríamos propriedades privadas alodiais (mulks), e as familiares (wakoufs), ou para sermos mais precisos, piedosas instituições, sobre as quais o fundador e seus descendentes conservam a direcção e os benefícios, se bem que sejam, em certa medida, estáveis depósitos de riqueza corno os rnor gadios do Ocidente. A segunda nobreza turca não aparece exclusivamente nas possessões oto manas da Europa, no século xv, mas é nesse espaço que nos oferece a imagem mais clara do seu processo de enraizamento e florescimento . Perante a rápida conquista turca d o s Balcãs, com efeito, tudo ruiu à dis tância, muito antes, sob os golpes de revoluções camponesas violentas. Assim, antes do último passo em frente, da tomada de Belgrado em 1 52 1 à penetração na Hungria (Mohacs, 1 526), os camponeses húngaros revoltam-se, a nobreza cristã reduzi-los-á, mas a preço de um esforço mortal 102 • No total, urna série de regimes feudais antigos ruíram por si só, todos eles oriundos de longe, feitos de elementos misturados (gregos, eslavos, até mesmo ocidentais). Pela sua riqueza e também por várias características, corno, por exemplo, o facto dos nobres começarem a instalar-se nas cidades próximas dos seus domínios (um inurba mento semelhante ao italiano), podemos afirmar que os Balcãs, no seu aspecto social, evoluem a par com o Ocidente. Os Musachi, senhores albaneses, instala ram-se em Durazzo, em palácios fortificados semelhantes aos de Bolonha ou de Florença. E em mais de urna cidade, no interior das terras, assistiu-se à constru ção de ricas moradas senhoriais: Tirnovo a sua bojarska maha/a, Vidin a sua bojarska ulica103 ' estando todo este luxo ligadO à.-íatlfundia� a carnpesinatos
101 ômer Lütfi Barkan, Aperçu sur /'histoire agraire des pays ba/kaniques, edição especial, p. 141 e segs. 102 Nicoara Beldiceanu, «La région de Timok-Morava dans les documents de Mehmed II e de Selim !º'», in Revue des Études Roumaines, 1957 , pp. 1 16 e 1 1 9 e referência a um artigo de V. Papacostea. 103 R. Busch-Zantner, op. cit., pp. 60-61 e suas referências.
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duramente explorados. É este sistema que se desmorona perante o avanço dos Turcos, como uma falsa decoração de teatro. Sequela inevitável da conquista são as devastações e a fuga das populações nativas para as árduas montanhas, mas também, e não em pequeno grau, a relativa libertação dos camponeses . Estes manter-se-ão agrupados nas suas comunidades, senhores das suas terras, ainda que naturalmente não inteiramente livres, pois estão sujeitos ao fisco, do qual ninguém está isento, e enquadrados em novas senhorias, decalcadas sobre as antigas, feudos, ou mais exactamente benefícios, esses limars entre os quais se repartem a população e o solo conquis tado. O camponês pagará rendas em dinheiro, rendas em géneros, estas muito menos importantes do que aquelas, mas estará liberto das pesadas jeiras tradi cionais. Os Turcos são tanto mais conciliadores nestes primeiros anos quanto a conquista continua, quanto é preciso gerir perante ela a vantagem das perturba ções camponesas que a favorecem, quanto os Sultões já desconfiam da velha nobreza anatoliana enriquecida por essas distribuições de feudos na Europa e cujas grandes famílias, as Jandarii1 04, tentam apoderar-se da direcção dos negócios. Aliás, esta desconfiança do governo central a respeito dos feudais nunca cessará: daí tantas medidas, políticas, prudências dirigidas. Para já, os favores concedidos à nobreza cristã dos Balcãs, amplamente provida de limars, não tem outro motivo profundo 105 • Estes limars não são feudos vulgares, apesar das suas semelhanças com as senhorias do Ocidente; representam, tal como elas, aldeias, terras, espaços incul tos, águas correntes, portagens, por vezes direitos sobre o mercado da cidade vizi nha, como em Kostour, pequena cidade búlgara 1 06 . . . Mas estas senhorias ser vem para a manutenção de soldados, de cavaleiros, os sipahis, de tal modo que os limars se chamam muitas vezes sipahiliks. Em suma, são feudos condicio nais, uma espécie de salário, sendo a contrapartida obrigatória servir a cada requisição com um grupo de cavaleiros proporcional à importância do limar, sob a ordem do sandjak da província. Não responder ao apelo é perder o seu limar. Estas senhorias revogáveis, dadas a título vitalício, são mais do que feudos, benefícios no sentido carolíngio. Mas, muito em breve, os limars pas sam de pai para filho, e os benefícios acabam por se converter em feudos here ditários. Desde 1 375, uma disposição legal reconhecia este direito de acesso aos filhos de timariotas 1 º7 •
Stanford J. Shaw, in The Ba/kans in transition, 1 963, p. 64. lbid., pp. 64-65 . 1 06 Este pormenor e muitas precisões que se seguem são recolhidos do artigo de Bistra A. Cvetkova, «L'évo lution du régime féodal turc de la fin du xv1• siecle jusqu'au milieu du xvm• sieclc», in Études historiques (da Academia das Qências da Bulgária), à l'occasion du Xl" Qmgn!s lntemational des Sciences Historiques, Estocolmo, Agosto de 1 960; o pormenor relativo a Kostour, p. 176 . Para a bibliografia desta historiadora reportar-se ao Journal of Economic and Social History of lhe Orient, 1 963, pp. 320-32 1 ; o mesmo em relação ao seu importante artigo, «Nouveaux documents sur la propriété fonciere des Sipahis à la fin du xv1• sieclc», in Académie des Sciences de /'U.R.S.S., lnstitutum Popu/orum Asiae, Fontes Orientales, 1 964, resumido em francês, pp. 220-22 1 . I07 J. W. Zinkeisen, op. cit., III, pp. 1 46- 1 7. 4 1 04
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Geralmente, trata-se de fracos rendimentos, inferiores a vinte mil aspres, sendo o limite da primeira categoria raramente atingido . Registos da região de Vidin e de Berkovitza, de 1454 a 1479, assinalam para 2 1 timars rendimentos de 1416 aspres a 10 587, ou sejam, de 20 a 1 80 ducados, situando-se a maioria deles entre 2500 a 8000 ospres. Esta partilha proporcionada corresponde contudo à idade de oiro do sistema. O timariota, com efeito, sempre vigiado pelas auto ridades locais, não pode aumentar a sua renda servindo-se dos poucos haveres dos seus camponeses e a solução, se pretende enriquecer, é o espólio, o estímulo para a guerra frutuosa que os Osmânlis prosseguem até cerca de meados do século xv11 08 • A precaridade das rendas dos timariotas é algo que se poderia adivinhar de antemão tendo em conta o seu número. Cerca do final do século havia duzentos mil 1 09, que, com as suas famílias, prefazem mais ou menos um milhão de pes soas, quando a população total oscila entre dezasseis e vinte milhões. Esta nobreza é demasiado numerosa para ser rica. Mas entre eles existem privilegiados: uma grande nobreza constitui-se muito cedo. Há, com efeito, três categorias de timars1 1 0 : os vulgares, com um máximo de vinte mil aspres de rendimentos; os medianos ou ziamets, até cem mil; e os has acima deste rendimento. Em 1 530, na Romélia, o Grão-Vizir, lbrahim Paxá, possui um has·de 1 1 6 732 aspres de rendimento; Ayas Paxá um de 407 309; Kassim Paxá outro de 432 990. . . Além dos wakoufs e dos mulks (a estes últimos chamava-se-lhes hassa ou hassa tschiftliks em oposição e para os distinguir das raia tschiftliks ou propriedades camponesas), existiam também imensos domínios a que talvez pudessemos cha mar de reservas senhoriais. Na Grécia, algumas destas reservas, para a segunda metade do século xv, comportam olivais, vinhas, pomares, moinhos 1 1 1 • • •
Em maior ou menor escala, a propriedade privada apareceu muito cedo, quase sempre em benefício dos grandes feudatários, ameaçando minar o vasto edifí cio de uma aristocracia rural desenvolvida sob o signo dominante do serviço público e segundo a própria doutrina do Estado Turco que quer que toda a riqueza nacional seja propriedade exclusiva do Sultão. Que este último tenha achado ameaçadora a grande nobreza demasiado rica e já demasido livre, eis o que explica reacções precoces como as de Méhémet II, ou tardias como as de Solimão o Magnífico a favor de uma centralização decisiva do sistema, que separatismos e autonomias possíveis ameaçam. O que quer fazer o vencedor de Istambul, o Fatih, é quebrar os bens wakoufs e os bens mu/ks para os reintroduzir dentro do esquema dos sipahiliks1 12• O grande regu lamento de Solimão, em 15301 1 3 , é um restabelecimento da ordem geral, caracte108 Bistra A. Cvetkova. ar/. cit., p. 1 3. 7 1 09 L a Méditerranée. . . • 1 . • ed., p. 639: «0 exército feudal dos sipahis não a soldo monta a 230 000 cavalos.» 1 10 Bistra A. Cvetkova, art. cit., p. 1 72. I l i lbid., pp. 73- 7 . 1 1 5 112 Bistra A. Cvetkova, «Sur certaines réformes du régime foncier au temps de Méhemed II», in Journal of Economic and Social History o/Orient, 1 963. 1 1 3 J. W. Zinkeisen, op. cit. , Ili, pp. 4- 8 . 15 15
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rístico da época do «Legislador». A partir desse momento e de modo pratica mente exclusivo, os feudos militares devem ser distribuídos na capital (não tendo os beglerbeys provinciais mais direito que o de nomeação, no caso de se tratar de propriedades de pouca importância). As recompensas a atribuir aos filhos de sipahis são fixadas: variarão conforme o pai morreu no campo de batalha ou em seu leito, conforme o herdeiro já ter sido, ou não, provido de um feudo. Mas estas medidas, corno todas as medidas autoritárias em matéria social, terão um resultado duvidoso, salvo que centrado em Istambul, o sistema desde então dependerá do Serralho e das suas intrigas mais do que das suas vir tudes. Em todo o caso, a grande propriedade já em vigor, não retrocede. É favo recida pela colonização interna dos Balcãs, pelo aumento demográfico e pelo desenvolvimento das exportações de matérias-primas para o Ocidente. O comércio do trigo, de 1 560 a 1 570, enriquece os grande proprietários: o pró prio grão-vizir Roustern Paxá é traficante de trigo 1 14 • O terceiro período das nobrezas turcas, depois de 1 550-1570, datas aproxi madas, não é também tão novo corno se diz. O que o caracteriza é o desenvol vimento da grande propriedade, mas este é anterior a meados do século XVI. Todavia, a novidade é a interrupção das frutuosas conquistas turcas, antes do final do reinado demasiado glorioso de Solimão o Magnífico (1 566), a obriga ção que têm os senhores de qualquer grandeza e de qualquer categoria de se vol tarem para o mundo camponês e de o explorarem sem pejo e sem moderação, já nada significando as rendas em dinheiro devido às repetidas desvalorizações do aspre1 1 5 • O Estado Otomano encontra-se de repente numa situação difícil: «As receitas do tesouro público já não cobrem as suas despesas», nota no final do século XVI o cronista otomano Mustafá Selâniki 1 1 6 • As medidas fiscais e as alienações de rendimentos serão a consequência lógica desse estado de coisas. O aumento dos preços acaba por perverter a ordem antiga. Os contemporâneos acl!sarão disso os maus hábitos do governo, os seus favores concedidos à aris tocracia do palácio e aos servidores e clientes desta. É certo que o Serralho se tornou o distribuidor dos timars e reserva-os para os cortesãos e servidores que rodeiam o Soberano e os seus ministros, tchaouches, escrivães, inspectores de impostos fiscais (muteferikas), criados de dignatários, pagens do palácio 1 1 7 , S!!m contar os vizires ou a Sultana-Mãe . . . Esta distribuição de feudos ultrapassa tudo o que o Ocidente fez ou inventou neste domínio. As cartas de nobreza que se distribuíam em França não são nada comparadas com essas firmans que fre quentemente eram postas a circular e que privilegiavam sem .impedimento algum até os ecnebi, os «estrangeiros» 1 1 8 (os que não pertencem à classe otomana dominante). «Vagabundos, brigões, Ciganos, Judeus, Lasis, Russos, gente das 1 14
Ver supra, vol. 1, p. 642. Ver supra, vol. 1, p. 588 e segs. Bistra A. Cvetkova, «L'évolution du régime féodal. . . » , p. · 1 1 7 lbid., p. 8 . 1 4 } ! 8 lbid. 1 IS
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cidades»: eis como descreve um cronista otomano 1 19 aquilo a que chamaríamos no Ocidente a nova nobreza. Os tempos da «ignomínia» 120 chegaram e dura rão, desprezando todos os valores tradicionais. Impulsionadas pela economia monetária, as grandes propriedades continuarão a crescer semelhantes a plan tas venenosas contra as quais não há remédio possível. Sob nomes falsos, deter minado timariota consegue vinte, trinta senhorias 121 . . . As pequenas senhorias são então absorvidas pelas grandes e senhores desclassificados ou ameaçados de o serem figurarão em breve, em lugares proeminentes, nas revoltas campo nesas do final do século e do século seguinte. Tanto como a época dos nobres improvisados, este terceiro período é tam bém o dos usurários, dos «financeiros» que simultaneamente exploram o Estado, a nobreza e os camponeses. A partir de 1 550, com efeito, o Estado Otomano recorre ao velho processo das vendas de rendimentos fiscais, ao sistema dos mukata e do iltizan (arrendamento) praticado já pelos Turcos Seljúcidas e por Bizâncio 122 • Na realidade, o processo é curriqueiro, encontra-se tanto em Nápoles e Veneza como em Paris ou em Espanha. Em Nápoles, vendem-se rendi mentos fiscais, em Veneza, arrenda-se por dois ou três anos esta taxa, aquele sector das alfândegas . . . O Estado Turco vai proceder do mesmo modo, exigindo aos seus arrendatários que adiantem imediatamente o dinheiro correspon dente aos rendimentos a receber. O arrendatário, apesar da vigilância dos ins pectores, reembolsa-se em seguida largamente. Na portagem, os carneiros devem pagar um aspre por cada duas cabeças, porém chegar-se-á a receber oito aspres por cada animal. Mais ainda: antes de assinar o contrato, o arrendatário colocará as suas condições, multiplicará as suas exigências. Ora, frequentemente, os grandes senhores vão também eles arrendar os seus domínios e por todo o lado desenvolve-se sem entraves a rede dos prestamistas judeus ou gregos 123 • Em breve manterão a Turquia inteira sob o seu controlo . . . A economia mone tária, a subida dos preços erguem-nos aos cargos de comando. Nestas condi ções, o velho sistema militar dos sipahis deixa de funcionar. De qualquer modo, o contrário é que seria de estranhar. O serviço militar é evitado e ridicu larizadas as inspecções que o governo central ordena. Sobre este assunto, o testemunho do Intendente das finanças do sultão Ahmed, A'ini Ali, é claro 1 24 • «Actualmente, a maior parte dos feudatários - afirma exime-se do serviço militar, de modo que quando se requer, em campanha,
Ibid., p. 184 e segs. lbid. lbid. Bistra A. Cevtkova, «The System of Tax-forming (iltizan) in the Ottoman Empire during the 16th-18th Centuries with Reference to the Bulgarian Lands», em búlgaro, resumido em inglês in Izvestio no institouto w pravni noouki, Sófia, XI-2 . 123 Bistra A. Cvetkova, «L'évolution du régime féodal. . . », p. 184 . Todas estas observações e conclusões confirmadas pelas lições de Ômer Lütfi Barkan, original dactilografado, Escola dos Altos Estudos, VI Secção, Paris). 124 J. W. Zinkeisen, op. cit., III, pp. 15 3- 154 . Cf. J . von Harnmer, op. cit. , 1, p. 372.
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a sua prestação, acontece que dum total de dez timars não se apresenta um único homem.» O espírito cavaleiresco que fizera a solidez da instituição já não existe. Koci Beg, originário de Koritza, no Sul da Albânia, testemunha isso nos seus escritos publicados em 1 6301 25 • Mas já um desconhecido, o bósnio Mallah Hassan Elkjadi, lançara o mesmo grito de alarme, a partir de 1 596 1 26 • A deca dência é visível mesmo aos olhos dos estrangeiros 127 • No século XVII, os sipahis abandonarão as suas residências de campo, instalar-se-ão nas cidades. É a época em que a família albanesa Toptani troca o castelo-fortaleza de Kruju pela ci dade aberta e rodeada de jardins de Tirana 128 • Esta migração para as cidades é o sinal, entre outros, da formação de uma aristocracia de fortes raízes locais, confiante no seu futuro.
Os «Tschiftliks» De acordo com as investigações de Richard Busch-Zantner, no século XVII produz-se outra mudança não menos importante 1 29 • Os eruditos acolheram com imensas reservas o seu estimulante livro 1 30 • Mas, terão razão os eruditos? Que Richard-Zantner tenha sido atraído pela literatura e o exemplo das refor mas agrárias depois da Primeira Guerra Mundial, pelas obras jugoslavas de Frangês e de lusic, é certo, mas será isso necessariamente um defeito? Criticou -se-lhe também a imprecisão da sua terminologia, que me parece quase inevitá vel. Quando um historiador ocidental aborda estes mundos, todas as palavras à sua disposição são ambíguas e as definições do passado (a oposição categórica que assim estabelece Ch. Beckers entre feudo turco e feudo ocidental) ou as explicações gerais (como as de J. Cvijié) são maus pontos de apoio. Uma utili zação crescente das fontes turcas desloca aliás os problemas e obriga a revisões profundas. É provável que o tschiftlik assinale uma novidade e uma realidade impor tante. A palavra originalmente teria designado a área que um agrário lavra num 13 dia 1 ; (é o zeugarion bizantino, o Morgen ou o Joch alemão, o jour ou o jour nal empregados em certas regiões de França. E, com toda a probabilidade, pas sou a designar mais tarde a propriedade privada, tanto a dos camponeses (raia tschiftlik) como a dos grandes senhores (hassa tschiftlik) e, por último, a grande
1 25 Franz Babinger, in Encyclopédie de l'lslam, II, p. 1 1 16. 126 Ludwig von Thalloczy, «Eine unbekannte Staatsschrift eines bosnischen Mohammedaners», citado por R. Busch-Zantner, op. cit., p. 15 . 127 Como o veneziano L. Bernardo, em 1 592, B. A. Cvetkova, art. cit., p. 193. Cf. J. W. Zinkeisen, op. cit., III, p. 167 , nota 1 . 128 R. Busch-Zantner, op. cit., p. 60. 129 Aus dem Grundherr wurde der Gutsherr, op. cit., p. 84. 130 Carl Brinckmann, in Vierte/jahrschrift für Soz;ial-und Wirtschaftsgeschichte, 1939, pp. 173-17 ; Marc 4 Bloch, in Mélanges d'histoire sociale, 1, p. 1 20. 1 3 1 Traian Stoyanovitch, «Land Tenure and Related Sectors of the Balkan Economy», in Journal ofEcono mic History, 195 3, pp. 338 e 40 1 .
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propriedade moderna, urna espec1e de plantação colonial o Gutsherr schaft. Não podemos explicar adequadamente esta evolução, mas sabemos
que, desde 1 609- 1 6 1 0 1 32 , a palavra se utiliza com este sentido. A existência destas propriedades modernas, tiranicamente organizadas, mas produtivas, obrigar-nos-ia, se necessário, a não considerar, na evolução da nobreza turca, senão motivos de ordem social ou política. Também nem tudo foi destruição, deterioração, segundo as queixas e as explicações dos cronistas. Estas propriedades evocam as produtivas plantações coloniais, os belos domí nios do Ostelbien 133 ou da Polónia. No centro, a casa do senhor, construída em pedra corno na planície sul-albanesa de Koritza, é, com o seu aspecto de torre, o exacto tipo da kula, da casa-fortaleza com vários andares 1 34 , e ergue-se por cima dos miseráveis casebres de argila dos camponeses. Geralmente, os tschiftliks valorizam os fundões das planícies, corno os pântanos entre Larissa e Volo ao longo das margens lamacentas do lago Jezero 135 , ou os vales húmidos dos rios e das ribeiras. Era urna espécie de agricultura conquistadora. Estes tschiftliks produ zem sobretudo cereais. E o trigo, tanto na Turquia corno nas Províncias danu bianas, ou na Polónia, desde que está ligado a amplas exportações, cria à partida as próprias condições de urna «segunda servidão» 1 36 , evidente na Turquia. Estas grandes propriedades degradam por todo o lado a situação camponesa e tiram proveito de semelhante circunstância. Ao mesmo tempo, são, economica mente falando, eficazes, e produzem trigo em primeiro lugar, a seguir arroz, um pouco mais tarde milho, depois algodão. Desde o princípio, caracterizaram -se por recorrer a técnicas de irrigação muito perfeitas e pela difusão das pare lhas de búfalos 1 37 • • • A transformação das planícies dos Balcãs faz lembrar, de certa maneira, os processos utilizados no Ocidente, os de Venécia por exemplo. Trata-se, não há dúvida, de vastas e poderosas beneficiações. Tal corno no Ocidente, os grandes proprietários puseram a funcionar zonas despovoadas cujas pos sibilidades nunca tinham sido exploradas a fundo. O preço do progresso, aqui corno em outras partes, é pago com a opressão social. Só os pobres é que não ganharam nada com isso, nem poderão esperar nada deste progresso.
2. A
traição da burguesia
A burguesia, no século XVI, dedicada ao comércio e ao serviço do Rei, está sempre a pontos de se perder. Não arrisca apenas a sua ruína. Quer se torne demasiado rica, quer se canse de correr os riscos inerentes à vida mercantil, com132 133 1 34 1 35 136 13 7
Ibid., p. 401 . R. Busch-Zantner, op. cit., p. 86. A. Boué, op. cit., li, p. 273. R. Busch-Zantner, op. cit., pp. 80-90. G. I. Bratianu, op. cit., p. 244. T. Stoyanovitch, «Land Tenure . . . » , p. 403.
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prará cargos, rendas, títulos ou feudos e deixar-se-á tentar pela vida nobre, pelo seu prestígio e pela sua tranquila ociosidade. O serviço do Rei facilita muito rapidamente a ascenção à nobreza; por este caminho, que não exclui os outros, a burguesia perde-se. Renega-se tanto mais facilmente quanto o dinheiro que distingue o rico do pobre, no século XVI, vale já como um atributo de nobreza 138 • Além disso, na viragem entre os séculos XVI e XVII, os negócios marcam passo, e as pessoas prudentes consideram que as terras são a forma mais segura de inversão. Ora, a terra é aristocrática por vocação. «Entre os principais mercadores florentinos dispersos através dos merca dos da Europa - conta o historiador Galluzzi 1 39 -, numerosos foram os que [no final do século XVI] , repatriaram os seus fundos para a Toscana a fim de os empregarem na agricultura. Tal corno os Corsini e os Gerini que regressaram de Londres, os Torrigiani que abandonaram Nuremberga e os Ximenes, que, mer cadores portugueses, se tomaram florentinos.» É o regresso à terra dos gran des mercadores, que expressiva imagem, um século apenas depois de Lourenço o Magnífico! Voltemos as páginas e, em 1637, surge, por ocasião de urna mu dança de reinado, urna Toscana nova, afectada, nobiliária, cortesã1 40. . . A Itália de Stendhal, previsível há muito tempo e todavia surpreendente nesta cidade onde batera livremente o coração da Renascença. Toda urna decoração antiga que ruiu. Não é exagerado, com a condição de nos reportarmos muito antes ao sé culo xvn, falar de um fracasso da burguesia. Esta estava ligada às cidades; ora, as cidades conheceram muito cedo uma série de crises políticas: corno a revolta dos Comuneros, em 1 5 2 1 ; corno a tornada de Florença, em 1 530. Neste jogo, as liberdades urbanas sofreram muito. Em seguida vieram crises económicas; mo mentâneas de princípio e depois persistentes com o século XVII, afectando pro fundamente a sua prosperidade. Tudo muda, tem de mudar.
Burguesias mediterrânicas Em Espanha, o que então se suprime mal existia. Gustav Schnürer 141 afirma que a Espanha, pelo menos Castela, perdeu a sua burguesia desde a revolta dos Comuneros; cremos que isso é ir demasiado longe, ainda que o argumento esteja substancialmente certo. A Península, insuficientemente urbanizada, não dispõe de modo algum para as necessidades do comércio senão de intermediá rios estranhos aos interesses reais do país e que, todavia, desempenham aí um papel necessário, corno neste ou naquele país sul-americano de hoje, ou melhor de ontem ( 1 939). Na Idade Média, este papel tinha sido mantido pelas cornuni-
138 Antonio Dominguez Ortiz, op. cit., pp. 173 e 174. 139 Op. cit., III, pp. 280-281 . 140 Ibid., p. 497. 141 Op. cit., p. 168 .
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dades judaicas que forneceram mercadores, usurários e cobradores de impos tos. Por isso, a expulsão dos judeus (1492), abre um vazio em Espanha que volta a preencher-se com elementos não espanhóis. Nas cidades e aldeias, no sé culo XVI, os Mouriscos, os novos cristãos, acusados de conspirarem contra a segurança pública, de se entregarem ao comércio das armas, de tudo açambarca rem, ocupam-se do comércio de retalho. O alto comércio, nomeadamente em Burgos, conta muitos judeus convertidos 1 42 • Estas queixas, estas paixões, estas desconfianças, à falta de outras provas, diriam que permanecem, aqui e ali, burguesias espanholas, em Sevilha, em Bur gqs, em Barcelona (que o final do século deveria. tirar do seu longo letargo). Há ricos mercadores espanhóis como os Malvenda de Burgos, ou como Simón Ruiz de Medina dei Campo. Por outro lado, não podemos aplicar o termo de «burgueses» a estes numerosos funcionários, estes letrados143 ao serviço do Rei, tão dados a antepor o Don ao seu nome e que aspiram mais a passar por nobres ou pequenos nobres que por burgueses. É interessante, neste curioso país que é a Espanha, ver os bastardos eclesiásticos conseguirem, também eles, o título de hidalgo. Não tão curioso afinal se pensarmos no desprezo que se tem em Espanha pelo trabalho manual e pelo negócio, se pensarmos nas inumeráveis passagens clandestinas através das fronteiras mal guardadas da muito pequena nobreza: dos setecentos hidalgos de uma medíocre cidade, perto de Portugal, talvez existam trezentos verdadeiros, diz um protesto de 1 65 1 1 44, sem contar os hidalgos de gotera (de goteira), ou esses pais de doze filhos que gozavam de isenções fiscais sem por isso serem nobres e que o vulgo chamava cruamente os hidalgos de bragueta145 . . . Em Espanha, a burguesia está cercada, é atormentada e m todas a s suas frontei ras por essa nobreza proliferante. Na Turquia, as burguesias urbanas - essencialmente mercantis - são estranhas ao Islão: ragusanas, arménias, judias, gregas, ocidentais. Subsistem em Gálata e nas ilhas da «Latinidade». Ora, é sintomático ver a decadência rápida daqueles a que se poderia chamar os grandes mercadores do Império: Venezia nos, Genoveses, Ragusanos. Junto do Sultão, salientam-se dois grandes homens de negócios: um, Michel Cantacuzene146, é grego, o outro, Micas, judeu 1 47• Os Judeus ibéricos (espanhóis ou portugueses), imigrados no final do século xv, ocupam pouco a pouco os altos cargos dos negócios (sobretudo os Portugueses) no Cairo, em Alexandria, Alepo, Trípoli da Síria, Salónica, Constantinopla. Ocupam lugar proeminente entre os arrendatários (e mesmo
142 Julio Caro Baroja, La sociedad cripto}udia en la Corte de Felipe IV (Discurso de recepção na Academia de la Historia), 1 963 , p. 33 e segs. 143 Pouca estima pela noblew de letras, A. Dominguez Ortiz, op. cit., p. 19 . 4 144 A. Dominguez Ortiz, ibid., p. 2 , nota . 66 38 145 lbid., p. 195 . 1 46 Sobre o seu caso, referênCias, Traian Stoyanovitch, «Conquering Balkan Orthodoxe Merchant>>, in Joumal o/ Economic History, 1960, pp. 240-241. 147 Ver infra, pp. 527-528.
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os burocratas) do Império . Quantas vezes os Venezianos não se queixam da má fé dos Judeus, revendedores de mercadorias venezianas! Mas, rapidamente dei xam de se contentar com o oficio de redistribuidores e fazem concorrência directarnente aos Ragusanos e Venezianos. Desde o século XVI, praticam o grande comércio marítimo na direcção de Messina, de Ragusa, de Ancona, de Veneza. Um dos sectores lucrativos do corso cristão no Levante toma-se a caça, nos navios venezianos, ragusanos ou marselheses, às mercadorias judaicas, essa ropa de judíos como dizem os Espanhóis, assimilada por eles ao contra bando, pretexto fácil quando se trata de fazer qualquer tornada arbitrária 148 • Os Judeus terão em breve a concorrência dos Arménios que, no século XVII, fretarão navios para o Ocidente, irão para aí eles mesmos e tornar-se-ão os intermediários da expansão comercial do Xá Abbas 149 • Estes são, no Levante, os sucessores da rica burguesia dos mercadores italianos, durante um tempo senhora de todo o Mediterrâneo. Na própria Itália, a situação é complexa. Porque, mais urna vez, reside aí o cerne do problema, aí viveram as burguesias e as cidades essenciais. Os esplen dores de Florença, no tempo de Lourenço o Magnífico, coincidem com as de urna grande burguesia opulenta, culta. É a confirmação da tese de Hermano Hefele sobre a Renascença 150, acerca da coincidência entre a eclosão intelectual e artística e urna poderosa evolução social que dará origem a urna sociedade floren tina diferente e mais aberta. A Renascença corresponde aí ao aperfeiçoamento de urna ordem burguesa: a das Arti Maggiori1 51 que durante muito tempo ocupa as avenidas do poder e não desdenha nenhuma das tarefas do comércio, da indústria ou da banca; além disso, rende homenagem aos refinamentos do luxo, da inteligência e da arte. Revive sob os nossos olhos, pelos cuidados dos pintores seus amigos, nesta série de retratos que Florença deixou, sinal só por si de urna burguesia no seu apogeu152• Mas um pouco mais além, na galeria dos Uffizi, o visitante encontra-se perante o quadro de Bronzino : Cosme de Médicis, envolto na sua túnica vermelha. . . Trata-se de urna nova época, com os seus prín cipes e a sua nobreza cortesã. Contudo, um mercador espanhol, instalado em Florença, escreve ainda, em Março de 1572: «Nesta cidade existe o costume muito antigo de ter em alta estima os homens de negócios» 153 • É certo que se trata de mercadores importantes, hombres de negocios, e que muitos são nobres; bastar -lhes-ia, para que tudo estivesse em ordem, deixarem de se ocupar com os negó cios comerciais e viverem dos seus rendimentos e das suas terras.
1 4 8 Ver infra, p. 1 8 . 4 1 4 9 Ver supra, vol. 1, p. 61 . ISO Hermann Hefele, Geschichte und Gertalt. Sechs Essays, 1 940: o capítulo, «Zwn Begriff der Renaissance», p. 294 e segs., publicado sob a forma de artigo in Hist. Jahrbuch, t. 49, 1929. I S I Alfred von Martin, Sociologia dei Renacimiento, 19 , p. 23. 46 IS2 Marcel Brion, Laurent le Magnifique, 1937 , p. 29 e segs. ISJ Antonio de Montalvo a Simón Ruiz, Florença, 23 de Setembro de 1572. Arquivos Ruiz, Valladolid, 17 , f.º 239, citado por F. Ruiz Martin, Introduction . . . , op. cit.
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Também em outras partes a decoração muda. Em 1 528, Génova recebe a constituição aristocrática que se manterá vigente até aos distúrbios de 1 575-1576. Em Veneza, a nobreza mercantil, no final do século, afasta-se francamente dos negócios. No Centro e no Sul da Itália a evolução é análoga. Em Roma, a chamada à razão da burguesia terminava em 1 527 . Em Nápoles, já não há lugar para ela senão no exercício do direito . . . Só as chicanas a alimentam 1 54 • O seu papel restringe-se por todo o lado. Em Lentini, na Sicília, os magistrados da cidade, no século xvr, só são recrutados na nobreza1 55 • Tal como Francesco Gri maldi e Antonio Scammacca, síndicos da cidade, que conseguem em 1 5 1 7 a reintegração da cidade no domínio real, ou esse Sebastião Falcone que, em 1 537, na qualidade de giurato e sindaco, consegue contra uma entrega de vinte mil escudos de oiro a Carlos V que a cidade não seja entregue a grandes feuda tários e manda-lhe conceder o privilégio, confirmando um velho costume, que reserva para a nobreza da cidade as funções de capitão de Lentini. Portanto, não acreditemos numa luta impiedosa entre senhores e cidades dominiais da Si cília. Mesmo quando estas últimas estão ainda nas mãos dos seus burgueses, o que é raro, estes têm somente demasiada tendência para se entenderem com os nobres e as suas clientelas. Já passou o tempo em que os consoli e sindici dos ofícios lutavam contra eles pelo governo das cidades. Melhor ainda: em Áquila, no Norte do Reino de Nápoles, o sindaco dell'Arte dei/a lona torna-se, a partir de 1 5 50, uma prerrogativa quase exclusiva dos nobres 1 56 • Retomemos esses marcos cronológicos um por um: não há dúvidas, a evolução inicia-se muito cedo.
A traição da burguesia Se a ordem social parece modificar-se, é mais aparência do que realidade. A burguesia nem sempre foi eliminada, posta fora de jogo violentamente. Traiu-se a si mesma. Traição inconsciente, porque não existe classe burguesa que se sinta verda deiramente como tal. Talvez por ser muito pouco numerosa. Mesmo em Veneza, os cittadini constituem no máximo 5 ou 6"7o da população da cidade no final do século 1 57 • Por todo o lado, finalmente, ricos burgueses da mais diversa pro veniência sentem-se atraídos pela nobreza: ela é o seu sol. Vejam, segundo as suas cartas, os curiosos complexos de Simón Ruiz e de Baltasar Suárez a respeito daqueles que vivem nobremente e que exploram, se a ocasião se apresenta, esses mercadores sensatos e preocupados com os seus dinheiros 1 58 • A ambição destes falsos burgueses é chegar às fileiras da aristocracia, fundir-se com ela, pelo menos casar aí as suas filhas ricamente dotadas. 154 155 156 1 57 1 58
Benedetto Croce, Storia dei Regno di Napoli, 3. • ed., Bari, 1 944, pp. Matteo Gaudioso, «Per la storia . . . di Lenlini», ar/. cit., p. 54 . Cf. supra, vol. 1, p. 378, nota 337. D. Beltrami, op. cit . , p. 72: 5 , 1 % em 1 586; 7,4 "7o em 1624 . F. Ruiz Manín, lntroduction . . . . op. cit.
1 29- 1 30.
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Desde o início do século XVI, em Milão, os casamentos desiguais não dd xam de provocar escândalo, mas nem por isso acabam . E o nosso guia Bandello, todavia liberal, indigna-se com o facto. Uma mulher nobre casou com um mercador, sem antepassados notáveis; viúva, retira o seu filho dos negócios do seu marido e esforça-se, colocando-o fora das tarefas comerciais, por o fazer retomar a categoria de nobre 1 59 . Estes esforços não dão vontade de rir. Seguem a moda. Pelo contrário, de bom grado se divertem e maldosamente com toda uma série de casamentos desiguais, de tarefas vergonhosas infligidas a tantos ilustres brasões que, todavia, se tornam a dourar. Um parente de A:z:ro Vesconte casa, em troca de doze mil ducados de dote, com a filha de um carniceiro. O nar rador não quis assistir a tal casamento: «Vi o sogro - acrescenta - de blusa branca sobre as costas como é costume nos nossos carniceiros, sangrando uma vitela, os braços vermelhos de sangue até ao cotovelo . . . Eu, se tivesse tal mulher como esposa, julgaria tresandar para sempre a carniceiro. Parece-me que nunca mais ousaria levantar a cabeça» 160 • Infelizmente, o facto não é isolado: eis um Marescotto que toma como mulher a filha de um hortelão (tem ainda a desculpa de estar muito apaixonado); eis Lodovico, um dos condes Borro meu, grandes feudatários do Império, que casa com a filha de um padeiro, e o marquês de Saluzzo com uma simples camponesa. O amor, sim, mas o dinheiro também multiplica estes casamentos desiguais. «Ouvi dizer várias vezes - con tinua o narrador - ao conde Andrea Mandello di Caorsi, que quando uma mulher tinha mais de quatro mil ducados de dote, se podia casar com ela sem hesi tação, mesmo se fosse daquelas que prostituem os seus corpos por detrás da catedral de Milão. Creia-me, quem está cheio de dinheiro, e muito cheio, é nobre: quem é pobre não o é» 161 • Mesmo em Milão que passa, neste início de século, por liberal, os casa mentos desiguais podem ser tema de comédia, mas o tom sobe facilmente e a tragédia pode surgir de repente, como em Ancona, em 1 566. Um médico 162 , filho de um simples alfaiate, trata a filha de uma jovem viúva nobre (tem sete filhos e cinco mil escudos). Quando ela anuncia que quer casar-se com o médico, Mastro Hercule, desencadeia-se o drama; o médico é detido e a sua vida salva por um triz - depois de pagar duzentos ducados de multa - graças à decisiva intervenção de um seu protector que, de Ravena, o vem socorrer à cabeça dum grupo de cavaleiros. Contudo, a família opõe-se ainda mais ao casamento da viúva com un consorte di bossa conditione efigliolo di persone infime. E como se receia que, o médico, liberto, rapte a sua bem-amada, um dos filhos desta assassina-o em pleno dia . . . Em Espanha, o drama é sempre possível n o plano trágico da honra e da desonra. Entretanto, leiam o Tizón de la Nobleza espaflola163, sobre o qual Mau1 59 1 60 161 1 62 163
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Tomo II, notícia n.º XX, p. 47 e segs. Ibid., VIII, notícia n . º IX, pp. 278-279. lbid., p. 280 . Marciana, !tal. 6085 , f.º 42 e segs . , 1 556 . Atribuído a Francisco Mendoza y Bobadilla, edição de
1880: E/ Tizón de la Nob/eza espailo/a.
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rice Barres se debruçou para sonhar com a Espanha toledana. O panfleto é fal samente atribuído ao cardeal de Mendoza. Sem tornar por dinheiro contado o que ele diz - ou o que dizem outros libros verdes1 64 - não se deve rejeitar tudo, nem deixar de crer nestes dramas, nestes crimes contra a limpieza de la sangre1 65 , até ao mais elevado da sociedade. As alianças com as filhas de ricos rnarranos, o drama banal do casamento desigual, tornam na litigiosa Espanha um aspecto trágico . Mas nem por isso deixam de acontecer.
A nobreza em leilão Para quem sonha com um título de nobreza, há meios rápidos de o conse guir e multiplicam-se à medida que o século passa. Títulos de nobreza e feudos podem adquirir-se tanto na Suábia, onde, contudo, estes bens compensam muito pouco, corno em Nápoles, onde são geralmente um encargo e muitas vezes, no caso de quem os adquire os não saiba administrar, a causa de ruínas espanto sas. Mas, no fim, será sempre a vaidade a decidir: em Boisseron, perto de Lunel, por onde Thomas Platter 1 66 passa, a 3 de Agosto de 1 598, há um castelo e urna al deia, ambos pertencentes a «M. Carsan, um simples cidadão de Uzes que acaba por os doar a seu filho, tornado por este facto barão de Boisseron, porque é urna terra titular. » Milhares de exemplos análogos são conhecidos. Desde o sé culo xv, na Provença, a compra de urna terra, para urna burguesia enriquecida no «negócio, no tráfico marítimo, na judicatura, nos cargos mais diversos» , constitui «ao mesmo tempo urna colocação vantajosa e segura, a criação d e um património familiar, prova de um êxito, finalmente, o pretexto de um enobreci mento muitas das vezes rapidamente conseguido . » Cerca de 1 560, os Gua dagni, mercadores italianos instalados em Lião, possuíam «urna vintena de senhorias na Borgonha, Lionês, Forez, Delfinado e Languedoque» 167 • Nesse mesmo ano, em Outubro, o advogado de François Grirnaudet declarava na assembleia do Tiers de Angers168: «É infinito o número de falsos nobres, cujos pais e predecessores manejaram as armas e se fizeram cavaleiros nas ervanárias, armazéns de vinhos, de tecidos, nos moinhos e nas quintas dos senhores .» «Muita gente se misturou entre os nobres - diz um outro contemporâneo -, mercadores improvisados e seguindo a toda a brida as antigas pegadas dos fidalgos» 169 • De quem é a culpa? Não há um Estado, no século XVI, nem um príncipe que não venda, contra dinheiro contado, títulos de nobreza. Na Sicília, a partir
1 64 É o nome dado aos manuscritos clandestinos que enumeram os casamentos desiguais das grandes famí lias, A. Dominguez Ortiz, op. cit., p. 163, nota 1 1 . 1 65 Albert A. Sicroff, Les controverses des status de «pureté de sang» en Espagne du XIA' au XVII' siec/e, 1960. 1 66 Op. cit., p. 379. 167 Lucien Romier, op. cit., I, p. 184. 168 Ibid., pp. 185- 186 . 169 Ibid., p. 186 , segundo Noel du Fail.
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de 1600, vendem-se a bom preço marquesados, condados, principados, e ven dem-se seja a quem for, enquanto até aí, só quatro raros títulos tinham sido concedidos 1 70 • A época da moeda falsa é também a dos falsos títulos. Em Ná poles, um longo relatório espanhol, escrito cerca de 1 600 1 7 1 , indica que o número dos titulares, dos titolati, aumentou extraordinariamente. Assim, como qualquer mercadoria abundantemente oferecida, os títulos depreciaram-se, senão os de conde, pelo menos os de marquês. Chegaram-se mesmo «a criar alguns duques e príncipes que mais valia ter evitado .» Deste modo, por todo o lado a nobreza compra-se como mercadoria de feira: em Roma, em Milão, no Império, no Franco-Condado 1 72, em França, na Polónia 1 73 , mesmo na Transil vânia onde pululam os «fidalgos de pergaminhos» 1 74 • Em Portugal 1 75 , as con cessões começaram no século xv, seguindo o exemplo dos Ingleses. Os primeiros duques aparecem em 1 4 1 5 , o primeiro marquês em 145 1 , o primeiro barão em 1475. Mesmo em Espanha, a Realeza que muito cedo multiplicaria o nú mero dos Grandes, foi em princípio pouco vigilante. A sua incessante falta de dinheiro leva-a a vender hida/gufas e hábitos das Ordens a quem for capaz de os pagar, indianos ou peruleros enriquecidos nas Índias ou, pior ainda, com a usura 1 76 • Que outra coisa se podia fazer? Se se pretende arranjar dinheiro, aconselha ao secretário Matheo Vásquez o conde de Orgaz, numa carta que lhe dirige de Sevilha a 16 de Abril de 1 586, que se vendam hidalguías, mesmo rom pendo as promessas feitas de não as voltar a pôr em leilão 1 77 • Evidentemente, as Cortes queixam-se disto em Castela 178 , mas podem ouvir-se as Cortes? As ven das continuarão a ponto de, a partir de 1 573, o governo de Filipe II ser obri gado a promulgar decretos sobre os feudos nuevos119 • Disse-se que esta moda dos títulos que se transforma em loucura vem de Espanha, que ela é um dos seus objectos de exportação, como os fatos ajusta dos dos homens, os bigotes, as luvas perfumadas ou os temas das comédias . . . Mas a nova moda não é pura vaidade. A burguesia sabe tirar partido das suas compras, existe nisso uma parte de cálculo. Além disso, voltou-se para a terra como para o valor seguro e isto reforça uma ordem social de base senhorial. Em suma, os homens são como os Estados com as suas querelas de honras, estas envolvem muitas vezes pretensões precisas e bem situadas sobre esta terra. Mas, à primeira vista, só as vemos a elas. Em 1 560, Nicot, o embaixador do Rei
L. Bianchini, op. cit. 1, p. 1 5 1 . B. N . Pari!õo··Esp. 1 27 . Lucien Febvre, Philippe li e/ la Franche-Comté, 191 1, p. 275. Desde o século XV, A. Tymienecki, «Les nobles bourgeois e n Grande Pologne au X V" siécle, 1400- 1 475», in Miesiecznik Heraldyczny, 1937. 174 Revue d'histoire comparée, 1946, p. 45. 2 17S F. de Almeida, op. cit., Ili, p. 168 e segs. 176 G. Schnürer, op. cit., p. 148 . 1 77 EI conde de Orgaz a Matheo Vazquez, Sevilha, 16 de Abril de 1586, B. M. Add. 28 368 , f.º 305. 178 Actas, Ili, pp. 368-369, petição, XVI, 1571 . 179 Simancas, E.º 156.
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Cristianíssimo em Lisboa 180 , notava a propósito dos senhores portugueses: «Esta gente daqui tem tal abundância de criados [servidores] supérfluos, que o escudeiro quer manter ar de duque e o duque de rei: o que a todo o momento lhes faz dar com o nariz no chão .» O bispo de Limoges faz a mesma observação sobre a Espanha de 1 56 1 181 • Trata-se então de enobrecer quinhentos homens «ricos e aguerridos», com a condição de se armarem e servirem todos os anos durante três meses, nas fronteiras espanholas. Prosseguindo, o bispo admira-se da «vaidade que existe entre os homens deste país, os quais se alimentam de presunção desde que sejam tidos por nobres e possam usar o seu vestuário e aparência.» Mas, em 1615, o espectáculo é o mesmo em França. «É impossível. presente mente - escreve Montchrestien 1 82 a propósito do seu país -, distinguir pelas aparências. O homem de loja veste-se como o fidalgo. De resto, quem não se apercebe como esta conformidade de ornamentação introduz a corrupção na nossa antiga disciplina? . . . A insolência aumentará nas cidades, a tirania nos campos. Os homens efeminar-se-ão por demasiadas delícias e as mulheres, pela preocupação de se ataviarem, perderão, com a sua castidade, o cuidado dos seus lares.» Discurso digno de um pregador, mas testemunho sobre uma época descontente, pelo menos em França, com a sua ordem social.
Contra os novos nobres Algumas citações já o indicaram: ninguém aplaude a fortuna dos novos nobres. Quem não desejaria questionar com eles? Quem não teria prazer em humilhá-los? Em 1 559, nos Estados do Languedoque, era dada ordem aos barões para apenas se fazerem representar por «fidalgos de raça e de fato curto» 183 • Se assim for, cada um vinga-se, descarrega a sua bílis. Assim acontece em França no tempo do Antigo Regime e mesmo depois. Tal como por todo o lado no século XVII, porque «a etapa» não deixa de ser franqueada: o processo move-se sempre e a vindicta social continua em vigor, vigilante. Apercebemo -la em Nápoles por ocasião de um incidente 184 : um riquíssimo financeiro da cidade, de modesta origem, Aquino, deseja casar, em 1640, com o apoio do próprio vice-rei, com Anna Acquaviva, irmã do duque de Conversano. A namo rada é raptada por cavaleiros armados pertencentes à nobreza, decididos a impedir pela força que a mano di vi/e uomo la gentil giovina pervenisse. É levada para um convento em Benevento, onde estará mais que segura dado que Bene vento pertence ao Estado Pontifical. Estes incidentes superabundam ao longo
180 Correspondance de Jean Nicot, p. 1 17. 1 81 O bispo de Limoges à Rainha, Madrid, 8 de Novembro de 1561 , B. N. Paris, fr. 16103, f.º 104, cópia. 2 182 Traité d'économie po/itique, 1615, p.p. Th. Funck-Brentano, 1889, p. 60, citado por François Simiand,
Lesjluctuations économiques à longue période et la crise mondiale, 1932, p. 7. 183 Lucien Romier, op. cit., 1, p. 187. 1 84 Rosario Vilari, art. cit., in Studi Storici, 1963, p. 644 e segs.
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das crónicas, mas a evolução nem por isso é menos geral. À excepção apenas da nobreza veneziana que se fecha em sua casa a sete chaves, todas as nobrezas são abertas, recebem um sangue novo. Em Roma, no coração da Igreja (segura mente a mais liberal das sociedades do Ocidente), a nobreza romana evolui mais depressa ainda do que as outras dada a regular promoção à nobreza e mesmo à alta nobreza dos parentes de cada novo Papa, não forçosamente ele mesmo de ilustre ascendência 185 • Todas as nobrezas evoluem, libertam-se de um certo número de pesos mortos, aceitam esses novos ricos e estes dão a sua con tribuição para o edifício social. Grande vantagem: a nobreza não tem de lutar contra o Povo. Este vem ter com ela, empobrece em seu proveito. Evidentemente, este movimento contínuo pode precipitar-se. Em Roma, o Papado activa assim esta renovação. Em Inglaterra, depois da revolta dos barões do Norte que se malogra em 1569, a grande aristocracia é como que substi tuída por uma outra nobreza de fresca data, chamada a governar a Inglaterra até aos tempos presentes, a dos Russell, dos Cavendish, dos Cecil 186 • • • Em França, duas séries de guerras, terminando as primeiras com a paz do Cateau -Cambrésis ( 1 -3 de Abril de 1 559), as segundas com a paz de Vervins (2 de Maio de 1 5 98), precipitam a derrota da velha nobreza e abrem aos novos ricos a via do poder social 187 • Eis como, em 1 598, um conselheiro de Filipe II vê a situação da nobreza francesa: «0 maior número de senhores estando privado das suas rendas e rendimentos [que alienaram] não têm com que manter o seu estado e encontram-se grandemente endividados; quase toda a nobreza está na mesma, de tal modo que por um lado se não pode servir deles sem lhes dar grandes cuidados e tratamento, coisa perfeitamente impossível, e por outro é de temer que se não têm algum sossego dos males e da ruina da guerra, sejam então for çados a pensar nalguma revolta . . . » 188 •
3. Miséria e banditismo Sobre os pobres, a história só dá raras luzes, mas estes têm as suas manei ras de chamar a atenção dos poderosos contemporâneos, e a nossa por ricochete. Distúrbios, levantamentos, revoltas, multiplicação alarmante dos «vaga bundos e dos nómadas», repetidos assaltos à mão armada dos bandidos, todos estes rumores ainda que com frequência em surdina, nos informam do extraor dinário aumento de miséria nos finais do século XVI , com tendência a crescer no século seguinte.
1 85 186 187 188
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Jean Delumeau, op. cit., l, p. 458 e segs. Lytton Strachey, E/isabeth and Essex, 2 .ª ed . , 194 1 , p. 9. Pierre Goubert, Beauvais et /e Beauvaisis de 1600 à 1730, 1960, passim, e p. 2 14 e segs. Dis.:urso de M . Aldigala, na realidade de Guamix, Public Record Office, 30125, n. º 168, f. º
133 e segs.
AS SOCIEDADES
A base exacta desta angústia colectiva situa-se provavelmente cerca de 1650. Pelo menos assim se deduz da leitura do diário inédito de G. Baldinucci 189 , ao qual já nos referimos mais de uma vez: a pobreza é tal, em Abril de 1 650, em Florença, que já não se pode aí ouvir a missa in pace, tanto se é assediado durante os oflcios por miseráveis, «nus e cheios de sarna», ignudi et pieni di scab bia. Tudo é terrivelmente caro na cidade «e os oflcios estão parados»; na segunda-feira de Carnaval, para cúmulo do infortúnio, uma tempestade destruiu oliveiras, amoreiras e outras árvores de fruto . . .
Revoluções imperfeitas Pauperização, opressão exercida pelos ricos e pelos poderosos, tudo cami nha a par. O resultado não oferece dúvidas. E a razão essencial afirma-se ime diatamente, esta correlação entre sobrepovoamento e regressão económica: este duplo peso, sempre maior, comanda tudo. Num artigo escrito em 1935, Americo Castro 190 afirmava em princípio que a Espanha nunca conhecera revo luções, frase imprudente no plano das afirmações gerais, mas não inexacta se a limitarmos à Espanha do século xv. Esta conheceu mais aspirações à revolução social do que verdadeiras revoluções. Só o arrebatamento dos Comuneros mereceria constituir uma excepção. Discute-se isso 191 • Pode discutir-se isso 192 • Na verdade, diferentemente do Norte europeu, onde as guerras ditas de Re ligião recobrem uma série de revoluções sociais em cadeia, o Mediterrâneo do século XVI, apesar do sangue lhe fervilhar, falha as suas. Não é por culpa de as ter tentado e tornado a tentar. Mas é vítima de uma espécie de feitiçaria. Será porque as cidades foram aí desmanteladas cedo que o poderoso Estado teve a vocação irresistível do gendarme? O resultado, em todo o caso, é claro: pode imaginar-se um enorme livro onde distúrbios, revoltas, assassinatos, medidas policiais se sucedem e narram uma perpétua e múltipla tensão social. Mas, final mente, nada explode. O livro das revoluções no Mediterrâneo é enorme, mas os capítulos não estão reunidos e o próprio livro, de qualquer fQrma, coloca dúvidas 193 • Merecerá apenas o seu título? Porque estas desordens surgem, todos os anos, todos os dias, como sim ples acidentes de estrada a quem já ninguém dá atenção, nem os causadores, nem as vítimas, nem as testemunhas, nem os cronistas, nem os próprios Estados. Cada um parece ter tomado o seu partido sobre estes acidentes endémicos, assim como sobre o banditismo catalão, da Calábria ou dos Abruzos. Ora, por cada um destes incidentes conhecidos, escapam-se-nos dez, cem, e alguns con-
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1650.
189 Marciana, G. Baldinucci, Giomale di Ricordi, de Abril de 190 «Intento de rebellión social durante el siglo XVI», in La Nación, Agosto de
1935 .
191 Gregorio Marailon, Antonio Perez, Madrid, 1957 , 2. ' ed. 192 José Antonio Maravall, «Las communidades de Castilla, una primera revolución moderna», in Revista de Decidente, 19 de Outubro de 1963. 193 Ver as hesitações de Pierre Vilar sobre o banditismo catalão, op. cit., l, p. 579 e segs.
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tinuarão a escapar-se-nos. Os mais importantes são tão pequenos, tão mal esclarecidos, tão dificeis de interpretar! O que é na realidade a revolta da Terra nova na Sicília, em 1 5 1 6194? Que lugar atribuir à revolta dita protestante de Nápoles, em 1561-1562, ocasião de uma expedição punitiva das autoridades espa nholas contra os Valdenses da montanha calábrica: algumas centenas de homens degolados como bestas 195? Ou a própria guerra da Córsega (1564-1569) em toda a sua extensão, e a guerra de Granada no seu fim, uma e outra decom pondo-se em episódios indecisos, guerras da miséria tanto como guerras estran geiras ou religiosas? Que sabemos nós igualmente sobre esses distúrbios de Palermo em 1 5601 96, essas conspirações «protestantes» de Mântua em 1569197? Em 1 57 1 , os súbditos do duque de Urbino revoltavam-se contra as exacções do seu senhor, Francesco Maria, mas o episódio mal conhecido continua dificil de explicar; o ducado de Urbino é uma terra de soldados mercenários; então, quem puxa os cordelinhos 198 ? Em 1575-1576, a crise interna de Génova é ape nas mais clara. Em 1 579, na Provença, a revolta dos camponeses insurrectos - os Razas - , a tomada por eles do castelo de Villeneuve, o massacre do senhor do lugar, aaude de Villeneuve1 99, tudo se perde na trama confusa das nossas Guerras de Religião, como tantas outras perturbações sociais, como em 1580, essa revolta camponesa do Delfinado, protestante, mas democrática também, que se inspira nos exemplos dos Cantões Suíços e se ergue violentamente contra a no brez.a: aproxima-se das tentativas revolucionárias e espoliadoras dos Protestantes de Gasconha, alguns anos antes, no tempo de Monluc, ou das perturbações, mui tos anos mais tarde, do longínquo Cotentin (1587)200. Do mesmo modo, cerca de 1590, a revolta dos camponeses aragoneses do condado de Ribargorza, que lhes valerá finalmente serem adscritos ao domínio real. No ano anterior, os súbditos do duque de Piombino, na costa toscana, revoltaram-se igualmente2° 1 • Em 1599, a insurreição da Calábria, motivo da prisão de Campanella, não passa dum grande incidente202 • Numerosas também são as revoltas através do Impé rio Turco; durante os anos de 1 590 e 1600 , sem contar as sublevações endémi cas de Árabes e de nómadas na África do Norte e no Egipto, sublevações bas tante poderosas do «Escrivão» e dos seus adeptos na Ásia Menor, sobre os quais a Cristandade fundará esperanças insensatas; revoltas dos camponeses sérvios em 1594 no Banat, em 1 595 na Bósnia e na Herzegovina, em 1 597 de novo na 1 94 Pino Branca, op. cit. , p. 43 . 2 19S Archivio storico italiano, t. IX, pp. 193-195. 196 Palmerini, B. Communale Palermo, Oq. D. 84. 197 Luciano Serrano, Correspondencia diplomatica entre Espana y la Santa Sede, Madrid, lll, 1914, p. 94, 29 de Junho de 1569. 1 98 J. de Zuiliga ao duque de Alcalá, 15 de Março de 157 1, Simancas, E.º 1059, f. º 73 . A revolta continuava ainda em Fevereiro de 1573 : Silva a Filipe II, Veneza, 7 de Fevereiro de 1573 , Simancas, E.º 133 2, seis mil revol1ados com artilharia, o duque declara-se senhor da situação, o seu estado está quieto, 10 de Abril de 1573 . 1 99 Jean Héritier, Catherine de Médicis, 1940, p. 565. A. N., K 1566, 8 de Janeiro de 1587 . 20 1 Simancas, E. 0 109, o governador de Piombino a Filipe II, 6 de Outubro de 1598, R. Galluzzi , op. cit. , lll, p. 28 e segs. 202 Léon Blanchet, Campanel/a, 19 0 , p. 33 e segs. 2
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Herzegovina203 • Se, a esta lista muito incompleta, se acrescentar repentinamente a fantástica massa dos pequenos incidentes relativos às pilhagens, não tere mos um livro, mas uma enorme colecção de exposições . . . Sim, mas tudo isto, estes incidentes, estes acidentes, estas poeiras de pequenos incidentes, será a trama de uma história social válida e que, à falta de uma outra expressão, falaria essa língua confusa, inábil, talvez falaciosa? Será um testemunho profundamente coerente? É este o problema. Responder sim, connosco, é aceitar correspondências, regularidades, movimentos de conjunto, aí onde, em primeiro lugar, existe incoerência, anarquia, absurdo evidente. É admitir, por exemplo, que Nápoles, «onde se rouba e cruzam as espadas, [diariamente] desde a primeira hora da noite», seja o teatro de uma interminá vel guerra social, onde o puro crime não tem, não pode ter toda a culpa. É admi tir a mesma coisa em relação a Paris, já politicamente mas também social mente fanatizada, da Primavera de 1 588. O embaixador veneziano explica que «o duque de Guise entrou na cidade apenas com dez dos seus, que descobre pouco a pouco que o Príncipe tem absoluta falta de dinheiro, que está grande mente endividado e que não podendo manter uma guerra em campo aberto com forças numerosas [seria preciso pagar-lhes, evidentemente] , considerou ser mais seguro aproveitar a boa ocasião que se lhe oferecia nesta cidade agitada dos pés à cabeça . . . »204• Guerra social, portanto cruel e barata, alimentada por paixões e antinomias profundas. Precisamente, todos estes acontecimentos de que falávamos têm .também eles a marca de crueldades vigilantes, tanto de um lado como do outro. Os cri mes agrários, que começam em redor de Veneza com o próprio século, são impie dosos, tal como as repressões que se lhes seguem. Forçosamente, os cronistas, ou aqueles que assinalam estes factos nos registos públicos, estão contra estes causadores de distúrbios cujo retrato é regularmente enegrecido. Na região de Crema, durante o Inverno de 1 506- 1507, um bando penetra na casa de uma tal Catarina de Revoglara, e per vim ingressi, fractis foribus, ipsam invitam viola verunt et cum ea rem contra naturam habuere205, conta o escrivão do Senado. Em todos os relatórios, estes adversários mal identificados são culpados antes de serem ouvidos. São /adri, de uma «malignidade e de uma iniquidade cada vez maiores» , são celerados, e muito especialmente esses camponeses que, num dia de Inverno de 1507, fracassando o assassinato do patrício Leonardo Mau roceno na sua casa de campo, se vingam nas árvores do pomar206 . . . Com os anos, o tom dos documentos em nada mudará. São malditos de Deus, que, em redor de Portogruaro, na Primavera de 1 562207, saqueiam as propriedades, cor tam as suas árvores e as vinhas. Será que não têm temor a Deus? Ou qualquer
203 J. Cvijié, op. cit., p. 1 3 1 . 204 D. N., Paris, ital., 1737, Giovanni Mocenigo ao Doge d e Veneza, Paris, l i d e Maio d e 1588, cópia. 205 A. d. S., Veneza, Senato Terra 16, f.º 92, 29 de Janeiro de 1506. Ibid., IS, f.º 188, 16 de Dezembro de 1507. 207 Jbid. , 37 , Portogruaro, 9 de Março de 1562.
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piedade? Um avviso, final de Setembro de 1 585, declarava sem pestanejar: «Neste ano, em Roma, viram-se mais cabeças [cortadas de bandidos] na Ponte Saint-Ange do que melões no mercado»208 • Eis o que dá o tom de um certo jor nalismo ainda nos seus inícios. Que por traição, um prestigioso chefe de me liantes, o sienês Alfonso Piccolomini, seja apanhado pelos homens do grão -duque da Toscana a 5 de Janeiro de 159120'J, depois enforcado a 16 de Março a/faro solito dei palagio dei Podestà210, é uma boa ocasião para aviltar este fim mise rável insinuando que o bandido si lascio vi/mente far prigione21 1 , sem qual quer resistência. Estas paixões consignadas por escrito, a crueldade dos actos cometidos e da repressão - estes sinais autenticam esses acontecimentos, dão -lhes um sentido no meio da interminável revolução latente que marca todo o século XVI, depois todo o século XVII.
Luta de classes? Diremos que se trata de uma luta de classes? Imagino que B. Porchnev21 2 , o admirável historiador das agitações populares da França do século XVII, não hesitaria em utilizar esta expressão . De qualquer modo, nós historiadores, empregamos muitas palavras que forjámos, feudalidade, burguesia, capitalismo, sem muitas vezes termos em conta exactamente as realidades diferentes que elas recobrem, segundo os séculos. Questão de palavras . . . Se por luta de classes designamos, sem mais; essas vinganças fratricidas, essas mentiras, essas falsas justiças, então continuemos com a luta de classes! A expressão é preferível à de tensões sociais que nos sugerem os sociólogos. Mas, se a palavra implica, como penso, uma certa tomada de consciência, a luta de classes pode ser clara para o historiador, mas ele contempla esse passado com olhos do século xx; ela não teve essa nitidez para os homens do século XVI, seguramente pouco lúcidos sobre este ponto. O ficheiro de um historiador apenas limitado ao seu trabalho continua a ser uma sondagem forçosamente insl!ficiente; só encontro algumas luzes de uma tomada de consciência durante a primeira metade do século XVI. Como essa espantosa afirmação de Bayard (ou do Leal Servidor) perante Pádua cercada em 1 50� 13 ; ou, em Outubro de 1 525, no Friul contaminado pela revolta dos camponeses alemães, esse relatório que fala dos nobeli em armas contra li 208 J. Delumeau, op. cit. , II, p. 55 1 . 209 Diario florentino di Agostino Lapini dai 252 ai 1596, p . p . G. O. Corazzini,
1900, p . 3 10: chega a Flo·
rença a 1 1 de Janeiro. 210 Ibid. , p. 3 1 4. 21 1 /bid., p. 3 1 5, nota. 212 Les soulevements populaires en France de 1623 à 1648, 1963. 2 1 3 Le Loyal Serviteur, op. cit. (ed. de 187 ), p. 1 79. Bayard considera não dever aceitar, como o exige o Im 2 perador Maximiliano, colocar em acção a gendarmaria francesa e mandá-la carregar ao lado da infantaria para forçar a brecha: «Ü Imperador pensa que é coisa sensata colocar tanta nobreza em perigo e contigência com peões entre os quais um é sapateiro, o outro ferrador, o outro padeiro, e gente vária que não têm a sua honra em tão elevado preço como os fidalgos? . . . ». Toda esta passagem é posta em evidência por Giuliano Procacci, «Lotta di classe in Francia sotto l' Ancien Régime (1484-1559)», in Società, Setembro de 195 1, pp. 14-1 5 .
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villani21 4 ; ou, em Dezembro de 1 528, esses camponeses em redor de Áquila, nos Abruzos que, mortos de fome e de raiva, tentam revoltar-se contra os «traido res» e os «tiranos» ao grito de: Viva la povertà! Sem saberem aliás, no dizer suspeito do cronista, quais eram os traidores a castigar2 15 ; ou ainda, em Luca, em 1 5 3 1 - 1 532, essa insurreição dita dos Straccioni (gente esfarrapada) descrita como uma battaglia di popolo contro la nobi!tà216 • • • Em seguida, mais nada, pelo menos que eu saiba. Então, se esta sondagem muito imperfeita é exacta, deduzir-se-á que, da primeira à segunda metade do século XVI, houve diminui ção de lucidez, aventuremos a palavra de consciência revolucionária, sem o que não pode existir revolução poderosa com as suas possibilidades de sucesso. De facto, esta primeira parte, esta Primavera do século antes dos duros anos 1 540-1 560, que travam o seu florescimento, parece ter sido particularmente agitada: os Comuneros em 1 5 2 1 , as Germanias valencianas de 1 525- 1 526, as revoltas de Florença, a crise de Génova em 1 528, o levantamento dos campone ses da Guiana em 1 548 . . . Muito mais tarde, no século XVII, dar-se-ão as revol tas internas do Império Otomano, os distúrbios franceses estudados por Porch nev, a secessão da Catalunha e de Portugal, a grande revolta de Nápoles em 1647, o levantamento de Messina em 1 6742 1 7 . . . Entre estas duas séries de importantes distúrbios sociais, o longo meio-século que vai de 1 550 a 1 600 (e ·mesmo até 1620 ou melhor ainda 1630) faz triste figura, com as suas revoluções que mal explodem e que é preciso detectar como se fossem correntes de água subterrânea. De facto, e isto complica a análise, estas revoltas e revoluções não se erguem apenas contra os representantes das ordens privilegiadas, mas contra o Estado, amigo dos grandes e impiedoso cobrador de impostos, também ele realidade, construção social . . . E mesmo o Estado tem prioridade como objecto do ódio popular. É portanto possível, e isso levar-nos-ia novamente às antigas indicações de ordem geral de Hans Delbrück2 18 e às afirmações dos historiado res da política, que a solidez dos Estados no tempo de Filipe II explique essa sur dina, essa discreção popular. O gendarme aguentou-se, apesar de o vermos muitas vezes desancado, muitas vezes escarnecido e ineficaz, mais vezes ainda cúmplice. Contra os errantes e os vagabundos Forma silenciosa, insistente da miséria, multiplicam-se então os «errantes e vagabundos», para retomar a palavra dos Cônsules e Vereadores de Marselha que, no seu Conselho de 2 de Janeiro de 1 5662 19 , decidiam visitar os bairros da 214 M. Sanudo, op. cit., XL, coluna 59, 9 de Outubro de 15 5. 2 215 Bernadino Cirillo, Annali dei/a ciltà dell'Aqui/a, Roma, 1570, p. 4 v.º 12 216 Ora:i:.ionipolitiche, escolhidas e p . p. Pietro Dazzi , 1 866, discurso de Giovanni Guidiccioni à República de Luca, p. 73 e segs. Este discurso, parece, não foi pronunciado. 217 Massimo Petrocchi, La rivolu:i:.ione ciltadina messinense dei 1674, 1954. 218 We/tgeschichte, Ili, p. 51 . 2 219 A. Communales, Marselha BB 4 , f.0 45 .
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cidade para daí expulsarem todos estes inúteis. Decisão que nada tem de desu mano no espírito da época. As cidades são obrigadas a velar pela ordem e, por motivos de higiene pública, libertarem-se periodicamente dos pobres: mendi gos, loucos, enfermos verdadeiros ou simulados, ociosos que obstroem praças, tabernas e portas dos conventos distribuidores de sopas populares. Expulsam-se, mas voltam novamente, ou vêm outros substituí-los. As expulsões, gestos irritados, dão a medida da impotência das cidades respeitáveis perante esta invasão constante. Em Espanha, os vagabundos povoam as estradas, param em todas as cida des: estudantes com residência fixa que abandonam a companhia do seu pre ceptor para se juntarem ao mundo crescente da picardfa, aventureiros de toda a espécie, mendigos e ladrões. Têm as suas cidades preferidas, e nelas as suas pra ças fortes: San Lucar de Barrameda, perto de Sevilha; o Matadouro, mesmo dentro de Sevilha; a Puerta dei Sol em Madrid . . . Os mendigos formam uma confraria, um Estado com as suas ferias, e por vezes reúnem-se em número fabuloso220• As estradas para Madrid guiam o seu cortejo de pobres22 1 , funcioná rios sem emprego, chefes sem bando, gente vulgar à procura de trabalho seguindo um burrico desprovido de toda a sua carga, todos morrendo de fome, esperando na capital que seja decidido o seu destino. Para Sevilha, caminha a famélica multidão dos emigrantes para a América: miseráveis fidalgos desejo sos de redourar os seus brasões, soldados à procura de aventuras, jovens sem saberem que fazer222 , e ainda a escumalha da Espanha, ladrões marcados com ferrete, bandidos, vagabundos esperando encontrar aí um trabalho lucrativo, devedores ansiosos por escaparem aos credores, maridos que fogem das mulhe res quesilentas223 • • • Para todos, as Índias são o sonho, o «refúgio e protecção de todos os desesperados de Espanha, igreja dos revoltados, salvo-conduto dos homicidas»: assim fala Cervantes no limiar de uma das suas encantadoras novelas, E/ celoso Extremefío, história de um desses enriquecidos regressado das Índias que investe o seu dinheiro, compra uma casa, organiza burguesmente a sua vida e, infelizmente, casa-se224 . São ainda frequentadores das estradas os soldados, antigos ou novos recru tas, picarescos personagens que caminham e, ao acaso dos encontros, se per dem nas casas de carne, levando por vezes consigo alguma rapariga submissa. Um dia, seguem o tamboril do recrutador e, por Málaga ou por qualquer outro porto, com um grupo de homens incorporando crianças inexperientes, velhos soldados, fugitivos, assassinos, padres, prostitutas, embarcam segundo as ordens da intendência para as belas regiões de Itália, ou para as masmorras dos 220 Federico RahÓla, Economistas espanõles de los siglos XVI y XVII, Barcelona, 1 885, pp. 8- 9, B. N., 2 2 Paris, Oo 1017, in-16. 221 M. Aleman, Gu:i:.mán de Alfarache, op. cit., 1, II, p. 254: pobres que chegam a Madrid tras un asnillo cargado de buena dicha; Madrid, a cidade onde se faz fortuna, Pedro de Medina, op. cit. , p. 204 e segs. 222 Fernand Braudel, «Vers I' Amérique», in Annales E. S. C., 1959, p. 733 . 223 Stefan Zweig, Les heures étoi/ées de l'humanité, Paris, 1939, p. 53. 224 Novelas Ejemp/ares, p. p. Francisco Rodriguez Marin, 19 3 , II, p. 87 e segs. 4
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presídios africanos. Entre estes deportados, encontram-se pessoas honestas, tal como esse Diego Suárez que, ainda jovem, de senhor em senhor, atravessou toda a Espanha, desde Oviedo até Cartagena onde embarcará para Orão, em 1 575 ; e aí permanece um terço de século, prova, se fosse necessário, de que é mais fácil chegar a estas prisões de África do que sair delas225 • • • Perigo universal, a vagabundagem e m Espanha ameaça campos e cidades. Ao norte da Península, na Biscaia, os vagabundos chegam constantemente ao Seflorio. As autoridades tentam reagir, a partir de 1 57�, contra aqueles que se escondem entre a multidão dos peregrinos: «Se não são velhos ou enfermos e se não estão legitimamente impedidos, que se mandem para as prisões . . . e que médicos e cirurgiões os examinem.» Mas, como sempre, estas decisões ficam sem efeito: o mal agrava-se com os anos, as contramedidas tornam-se em vão mais restritas. Em Valência, a 21 de Março de 1 586 - e a medida é válida para a cidade e todas as cidades e aldeias do reino - o vice-rei toma sérias providên cias contra os desocupados227 • É-lhes dado um prazo de três dias para que encontrem um senhor, senão serão expulsos228 , especialmente esses brivons e vagamundos, que, nos dias de trabalho, jogam nas praças públicas e que se recu sam a qualquer trabalho sob o belo pretexto de o não encontrarem. O vice-rei informa também os jornales sem domicílio fixo de que se são apanhados a jogar seja que jogo for, os processará229, tal como contra os ditos mendigos e os estrangeiros, tudo gente que procura viver sem fazer nada. Coisa inverosímil, esta cólera valenciana dará os seus frutos. Em redor de Sarc.�oça, diz com efeito uma carta veneziana de 24 de Julho de 1 586, «viaja-se suportando um calor intensíssimo e com o múltiplo perigo dos assassinos que rondam pelos campos em grande número. Tudo isto porque, em Valência, expulsaram do reino todos os vagabundos com um prazo certo de número de dias, com a ameaça das penas mais graves; então, vieram em parte para Aragão, em parte para a Catalunha. Mais uma razão para viajar de dia e sob boa escolta! »230 • A prova de que vagabundos e bandidos são irmãos na miséria e podem tro car as suas condições está assim feita, mas não era necessária. A prova de que só se libertam dos seus pobres para embaraçar com eles outrem está igualmente feita. A menos que se proceda como em Sevilha, em Outubro de 1581 : vaga bundos presos durante uma rusga policial são colocados à força em navios de Sotomayor que se dirigem para o estreito de Magalhães. Reserva-se-llies o destíno de cavadores, de guastatori, mas, afundar-se-ão quatro navios e com eles mor rerão afogados mil homens231 •
225 226 227 228 229 230
Ver infra, p. 220 e segs. Gobiemo de Viscaya, li, pp. 64-65, 4 de Agosto de 1579. B. N., Paris, esp. 60, f. 0 55 (impresso). lbid.' art. 60. lbid. , art. 61. A. d. S., Veneza, Senato Dispacci Spagna, V.º Gradenigo a o Doge, SaragOÇa, 24 d e Julho d e 231 Jbid. , Zane ao Doge, Madrid, 30 de Outubro de 1581 .
1586.
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Evidentemente, todos estes dramas nos põem frente ao problema dos «bas-fonds» urbanos, das Cortes dos Milagres que não faltam em nenhuma cidade de então. A partir de Rinconete y Cortadilld-32, essa novela «exemplar» que o não é de modo algum, os «bas-fonds» sevilhanos apercebem-se mesmo com uma certa nitidez, com a ajuda da erudição dos comentários: raparigas de má vida, viúvas complacentes, aguazis de duplo ou triplo jogo, vagabundos autênticos, picaros dignos de entrar para a literatura, peruleros, tolos de comé dia, nada falta no quadro. Verifica-se o mesmo por todo o lado, tanto em Madrid como em Paris. Toda a Itália está cheia, também ela, de rufiões, de vaga bundos, de mendigos, todos eles personagens a que a literatura se vai afei çoar233 . Por todo o lado são perseguidos, por todo o lado regressam. Só as autoridades responsáveis acreditam na eficácia das medidas oficiais, sempre as mesmas. Em Palermo, em Fevereiro de 1 590, são tomadas medidas enérgicas contra os «vagabundos, bêbados e espiões deste reino»234 . Dois censores incorruptí veis, a duzentos escudos de salário anual, dividirão entre si a cidade. Compete -lhes perseguir esta gente ociosa, preguiçosa, que passa os dias de trabalho a jogar, a fomentar todos os vícios, «destruindo os seus bens e, o que é pior, as suas almas. » Jogar, mas quem não joga? Tudo serve de pretexto, e não só as cartas: aposta-se em Palermo sobre o preço do trigo, sobre o sexo das crianças que vão nascer e, ali como em todos os lados, sobre o número dos cardeais que o Santo Padre nomeará. Num maço de correspondência mercantil, em Veneza, encon trei um bilhete de lotaria, que ficou lá por acaso. Para lutar contra a coligação. do jogo, do vinho, da ociosidade, as autoridades de Palermo organizam visitas policiais às hospedarias, . fonduks, tabernas, casas de hóspedes, inquirindo as pessoas suspeitas que as frequentam . . . Tirar-se-á a limpo de onde vêm, a que nação pertencem, a origem dos seus recursos . . . Este jogo d o polícia e d o ladrão, d a cidade respeitável e d o vagabundo, não tem princípio nem fim. É um espectáculo permanente, uma «estrutura». Depois de uma rusga, tudo volta à calma, mas logo começam os roubos, os assaltos aos viandantes, os assassinatos sem conta. Em Abril de 1 585235 , em Veneza, é o Conselho dos Dez que ameaça intervir. Em Julho de 1606, há de novo demasiados delitos em Nápoles. Procede-se então a uma série de rusgas noctur nas aos albergues e hospedarias fazendo-se quatrocentas prisões, entre as quais algumas relativas a soldados da Flandres avvantaggiati, quer dizer, «pagos generosamente» 236 . Em Março de 1 590, são expulsos de Roma por oito dias li vagabondi, zingari, sgherri e bravazzi, os vagabundos, ciganos, bandidos e meliantes237. . . 232 233
Veneza,
Novelas Ejemplares, p . p . Francisco Rodriguez Marín, 1948, 1 , p . 133 e segs. Em Itália o êxito do livro de Giacinto Nobili (de seu verdadeiro nome Rafaelle Frianoro), li vagabundo,
1627 .
1 1 57 , Palermo, 24 de Fevereiro de 1 590. Marciana, Memorie politiche dall'anno 15 78 ai 1586, 23 de Abril de 1585. 236 Archivio Storico Italiano, t. IX, p . 64. 2 237 A. d. S., Mântua, A. Gonzaga, série E 15 , Aurelio Pomponazzi ao Duque, Roma, 22 234 Simancas, E. 0 235
de
1590.
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17
de Março
AS SOCIEDADES
Seria interessante distinguir todas estas expulsões, ver se elas estão rela cionadas entre si como as datas das feiras mercantis, pois, de onde vinham esses vagabundos que as cidades se apressavam a afastar do seu espaço? E para onde iam depois? A Veneza chegavam de muito longe, mesmo do Piemonte. Em Março de 1 545 , eram mais de seis mil di mo/te natione a entrar na cidade. Al guns regressaram às suas aldeias, outros embarcaram, lo resto per esser furfanti,
giotti, sari, piemontesi et de altre terre et loci alieni sono stati mandati fuora dei/a cità: o resto foi expulso, porque se tratava de vadios, parasitas, vin dos do Piemonte e de outras cidades e lugares estrangeiros238 • Cinco anos antes, em 1 540, ano de penúria, eram pelo contrário uma quantidade de infelizes pais de família, assaissimi poveri capi di caxa que tinham chegado de barca, com mulheres e crianças, e viviam sob as pontes, nas margens dos canais239 • • • Em breve, j á não é à estreita medida das implacáveis cidades que s e coloca o problema dos pobres. É à dimensão dos Estados e da Europa. Com o início do século XVII, homens como Montchrestien indignam-se ao vê-los pulular. A apolpgia que Montchrestien e outros fazem do colonialismo na França desta época deve-se apenas ao desejo de se desembaraçar deste silencioso e incrível exército de proletários240 • Em toda a Europa, demasiado povoada para os seus recursos e que um impulso económico compensador já não levanta, incluindo a própria Turquia, prepara-se a pauperização das consideráveis massas de homens atormentados pela necessidade do pão quotidiano. Será a humanidade que vai precipitar-se nos atrozes conflitos da Guerra dos Trinta Anos que Callot desenhará, testemunha implacável, e da qual Grimrnelhausen será o minucioso cronista24 1 • Ubiquidade do banditismo Estes testemunhos policiais da vida citadina tornam-se insignificantes em relação à história trágica e sangrenta do banditismo no Mediterrâneo, do ban ditismo terrestre, irmão do corso marítimo com o qual de certa maneira apre senta bastantes afinidades. Como ele, ou tanto como ele, representa um velho traço característico dos costumes mediterrânicos. Pelas suas origens, perde-se na noite dos tempos. Desde que o mar serviu de refúgio a sociedades coerentes, o banditismo irrompeu nele para não mais desaparecer. Mesmo hoje, ainda se mantém vivo242 • Não digamos portanto, como acontece a esses historiadores que não querem sair do mundo do «seu» século, quero dizer, o século que estu-
238 A . d . S., Veneza, Senato Terra I, 6 de Março de 15 5. 4 2 239 Jbid. , Brera, 5 1 , F . º 3 1 v.0, 15 0. 4 2 240 Traité d'économie politique, p. p. Funck Brentano, 1 889, p. 6. 2 241 Em dado ponto de Inglaterra, a poor /aw faz desaparecer os pobres da rua, G. M . Trevelyan, op. cit.,
p.
5. 28242
Mercure de France,
du Moyen Age».
15 d e Julho d e 1 939, « L a Sicile aux temps préfascistes connut des jacqueries dignes
105
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
dam, que o banditismo fez o seu aparecimento na Córsega no ·século xv, ou em Nápoles no XVI . E não acreditemos demasiado depressa na novidade daquilo que vemos surgir por todos os lados, no século XVI, como uma força, isso sim, nova ou remoçada. Determinadas instruções que a rainha Joana de Nápoles dá, a 1 de Agosto de 1 343, ao capitão de Áquila243 , para procedere rigorosamente contro i malandrini poderiam ser do século XVI e postas na conta do duque de Alcalá ou do cardeal Granvelle. Segundo as épocas e as circunstâncias, a rapina conseguiu mudar de nome ou de forma, mas quer se fale de malandrini, masna dieri, /adri, fuorusciti, banditi (os masnadieri são primitivamente soldados, os fuorusciti e os banditi proscritos), é sempre de bandoleiros que se trata - a nosso ver, de revoltados sociais, de inadaptados. Nenhuma região do Mediterrâneo está livre deste flagelo. Portanto, nem a Catalunha, nem a Calábria, nem a Albânia, regiões célebres por esta razão, têm o monopólio da rapina. Está por . todo o lado, com os seus múltiplos rostos: político, social, económico, terrorista . . . Tanto às portas de Alexandria do Egipto como às de Damasco ou de Alepo, no campo de Nápoles onde torres de vigia são erguidas contra os bandoleiros244 , no Campo romano a cujos matagais e bosques é por vezes necessário deitar fogo para expulsar dos seus esconderijos bandos de malfeitores ou num Estado aparentemente tão policiado como Veneza245 • E quando o exército do Sultão, em 1 566, se encaminha por Istambul para Andrinópolis, Nich, Belgrado, depois para a Hungria, enforca sem parar uma infinidade de bandidos que a sua passagem faz sair dos seus covis246• Evi dentemente que há bandidos e bandidos. A sua presença na grande rota do Império Turco, cuja segurança tanto se enaltece, diz muito sobre a paz pública desse tempo. Na outra extremidade do Mediterrâneo, em Espanha, o espectáculo é o mesmo. Várias vezes nos referimos à praga de banditismo nas rotas de Aragão e da Catalunha. É inútil, escreve um florentino em 1 567 , querer viajar de Bar celona a Saragoça pela posta. Depois de Saragoça, sim, mas não entre estas duas cidades. Quanto a ele, juntou-se a uma caravana de senhores armados247 • Numa das suas novelas, Cervantes imagina o pequeno grupo dos seus heróis surpreendido por bandoleros perto de Barcelona. Tratava-se, portanto, dum incidente perfeitamente banal . Ora, por Barcelona, passa uma das maiores rotas da Espanha imperial; por ela, a Espanha toma contacto com o Mediterrâ neo. E acontece muitas vezes que os correios oficiais sejam espoliados, ou mesmo já não possam passar. Como em Junho de 1 565248, o mesmo ano em que a 243 G. Buzzi. «Documenti angioni relativi ai comune di Aquila dai Deputazione abruuese di storia patria, 191 2, p. 40. 244 E. Alberi, op. cit. , II, V, p . 409 . 24S L . von Pastor, op. cit., X, p. 59. 246 Ver infra, p. 413. 247 A . d . S . , Aorença, Mediceo
de p.
1567 . 248
fbid. , Mediceo 4897 ,
650, nota 3 .
106
1343 ai 1344». in Bollettino dei/a Regia
4898, Scipione Alfonso d'Appiano ao Principe,
1 de Junho de 1565,
f. º
Barcelona,
24 de Janeiro
1 1 0 v. º e 1 19. Outras rupturas, La Méditerranée. . . , 1 . • ed . ,
AS SOCIEDADES
rota de Madrid a Burgos, esse outro braço que a Espanha estende para a Europa e o Oceano, se quebra em consequência da peste249 • Eis o que revela uma das mil fraquezas do Império hispânico demasiado vasto. Mas há tantos bandolei ros do lado do Languedoque como bandoleros do lado da Catalunha. Todas as herdades do Baixo Ródano250 têm casas fortificadas, à semelhança das fortale zas camponesas da Catalunha de que já falámos. Em Portugal25 1 , em Valência, mesmo em Veneza, em toda a Itália, em toda a extensão do Império Otomano, minúsculos Estados móveis de bandoleiros - e esta é a sua força são capazes, silenciosamente, de passar dos Pirenéus catalães para Granada, ou de Granada para a Catalunha, ou de vaguear como nómadas pelos Alpes, perto de Verona, até à Calábria, da Albânia ao mar Negro: estes grupos insignifican tes mortificam e provocam os Estados constituídos e desgastam-nos. Parecem resistentes das actuais guerras populares . O povo está invariavelmente do seu lado. De 1 550 a 1600, o Mediterrâneo consome-se assim nesta guerra ágil, cruel, quotidiana. Uma guerra à qual a grande história não presta atenção, que aban donou, como coisa secundária, aos ensaístas ou aos romancistas. Stendhal, no âmbito da Itália, terá dito, a este respeito, coisas pertinentes.
O banditismo e os Estados O banditismo é em primeiro lugar uma vingança contra os Estados organi zados, defensores da ordem pública e mesmo da ordem social. «Naturalmente, o povo vexado pelos Baglioni, pelos Malatesti, pelos Bentivoglio, pelos Médi cis . . . amava e respeitava os seus inimigos. As crueldades dos pequenos tiranos que sucederam aos primeiros usurpadores, por exemplo as crueldades de Cosme, primeiro grão-duque [da Toscana]252 que mandava assassinar os republica nos refugiados inclusivamente em Veneza e em Paris, reforçaram as fileiras dos bandidos»253 • «Estes bandoleiros eram a oposição levantada contra os gover nos atrozes que sucederam às Repúblicas na Idade Média»254 • Assim se exprime Stendhal. Na altura, é levado a formar tais juízos perante o espectáculo que se lhe depara, o banditismo continua a florescer na Itália do seu tempo. «Ainda nos nossos dias - escreve - toda a gente seguramente teme o encontro com os bandoleiros, mas se eles são aprisionados e castigados, todos se compadecem deles. É que este povo tão fino, tão trocista, que ri de todos os escritos publica dos sob a censura dos seus senhores, faz a sua leitura habitual de romances
249 250 251 252
lbid.
P. George, op. cit., p. 576. D. Peres, História de Portugal, V, p. 263. E não de Florença como diz o texto. Luta contra o Estado, autodefesa de uma «civiliz.ação» camponesa; sobre estes temas ver o admiravel livro de Cario Levi, Le Christ s'est arrêté à Eboli, Paris, 1948. 253 Stcndhal, Abbesse de Castro, ed. Garnier, 193 1 , p. 6. 254 lbid. , p. 7.
1 07
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populares que contam com calor a vida e as aventuras dos bandoleiros mais famo sos. O que julga encontrar de heróico nestas histórias faz vibrar a veia artística que vive sempre nas massas . . . O coração do povo está com eles e as raparigas das aldeias preferem os jovens que em algum momento da sua vida tenham sido forçados a andar alia macchia»255 • Na Sicília, as façanhas dos bandoleiros eram cantadas pelos urvi, bardos cegos e errantes, que se acompanham com os sons «de uma espécie de pequeno violino empoeirado»256 e que a multidão rodeava avidamente, debaixo das árvores dos passeios. A Espanha, sobretudo a Andaluzia, notará ainda Théophile Gautier257 , «continuou árabe neste ponto'e os bandidos passam aí facilmente por heróis .» Todo o floclore jugoslavo e romeno está igualmente cheio de histórias de haidouks e de foras-da-lei. . . Vingança contra o senhor, contra a sua justiça tortuosa, o banditismo, um pouco por todo o lado e em todas as épocas, é considerado como vingador de ofensas. Como, por exemplo, o caso desse bandido da Calábria que «se defendeu perante o Tribunal afirmando-se um vingador de ofensas e um benfeitor dos pobres. Rezava o terço todos os dias e os curas da aldeia abençoavam-no. Para realizar esta justiça social, tal como ele a concebia, tinha, com a idade de trinta anos, morto já uma trintena de pessoas»258 • Erguido contra o poder, o banditismo aloja-se sempre nas zonas mais débeis dos Estados. Nas montanhas, por exemplo, onde as tropas não podem de modo algum actuar com toda a sua força e onde o Estado perde os seus direi tos. Muitas vezes em zonas fronteiriças: ao longo da alta região dálmata, entre Veneza e Turquia; na vasta região fronteiriça da Hungria, uma das principais zonas do banditismo do século xv1259 , na Catalunha, nos Pirenéus próximos da França; em Messina, também uma fronteira na medida em que Messina, cidade livre, é um refúgio; em redor de Benevento, enclave pontifical no reino de Nápoles, porque ao passar de uma juridisção para outra, se insultam os persegui dores; entre o Estado pontifical e a Toscana; entre Milão e Veneza; entre Veneza e os Estados hereditários dos arquiduques . . . Todas estas ligações oferecem admiráveis acantonamentos. Mais tarde, com intenções de modo algum sangui nárias, Voltaire refugiar-se-á em Ferney para daí provocar os seus inimigos. Sem dúvida, os Estados acabam por se entender, mas vulgarmente o entendi mento dura pouco. Em 1 561 , o rei de França propunha a Filipe 11260 uma acção em comum contra os bandoleiros dos Pirenéus, mas foi apenas uma sensatez momentânea. Os acordos entre Nápoles e Roma, sobre Benevento, não foram mais úteis. Em 1 570, Veneza entendia-se formalmente com Nápoles26 1 e, em
255 25 6 25 7 25 8 259 260 26 1
108
Ibid. Lanza dei Vasto, La baronne de Carins, «Le Génie d'Oc», Op. cit., p . 320. Armando Zanetti, L 'ennemi, 1939, Genebra, p. 84. Barão de Busbec, op. cit., 1, p. 37 .
1946,
p.
196.
Memória do bispo de Limoges, 2 1 de Julho de 1561 , B. N., Paris, fr. Simancas, E.º 1058 , f.º ! 07 . Notas de los capitulos .. . (1 570.15 7 1).
16
l l O,
f.º 1 2 v.0
e
13.
AS SOCIEDADES
1 572, assinava um acordo com Milão, renovado em 1 580262 , num momento em que as incursões dos bandoleiros criavam no Estado veneziano uma insegurança geral263 • Cada um dos dois governos estava autorizado a perseguir os delin quentes até seis milhas para além das suas fronteiras. Em 1 578, quando o mar quês de Mondejar tentou atingir os fuorusciti da Calábria, alertou todos os vizi nhos, incluindo Malta e as ilhas Lipárias264• Em 1 585, Sisto V fez o mesmo, na véspera da sua campanha contra os bandidos do Estado pontifical265 • Mas estas negociações, que põem em jogo a soberania dos Estados, são lentas, difíceis, muitas vezes conduzidas com má-fé: que soberano de Itália não se regozija, no fundo do seu coração, com as dificuldades do seu vizinho? As ex tradições são raríssimas, salvo por via de troca. Quando Marcantonio Colonna, vice-rei da Sicília, consegue de Cosme a libertação de um bandoleiro de alto calibre, Rizzo di Saponara, que há vinte e cinco anos percorria Nápoles e a Sicí lia, impune porque protegido dos barões, consegue-a em troca da libertação de um cavaleiro da casa Martelli, acusado de ter conspirado contra o grão-duque. O bandido será ainda suprimido pelo veneno ao chegar a Palermo, sob a escolta de duas galeras. Vulgarmente, cada Estado terá que organizar por si próprio a sua polícia. E não é uma tarefa fácil. Nas grandes pátrias do banditismo, a tarefa tem de recomeçar sempre. Em 1 578, o duque de Mondejar, vice-rei de Nápoles, decidia uma nova operação contra os fuorusciti da Calábria. Desde a sua chegada, tinha sido posto ao corrente dos seus crimes: terras pilhadas, estradas cortadas, viajantes assassinados, igrejas profanadas, incêndios, pessoas capturadas e res gatadas, sem contar «outros muito graves, enormes e atrozes delitos.» As medidas tomadas pelo cardeal de Granvelle tinham sido inoperantes e mesmo, escre via o vice-rei, «o número dos fuorusciti aumentou, os seus delitos multiplica ram-se, o seu poder e insolência aumentaram de tal modo que em mil partes deste Reino não se pode viajar sem grandes riscos e perigos . » ,Pntão onde atacá -los melhor do que na Calábria, nessas províncias de Calalria citro et ultra? (Dez anos antes, seria dos Abruzos que se teriam queixado). Na Calábria, se os nossos documentos não falham266, favorecidos pelas circunstâncias e a natureza do terreno, os fora-da-lei aumentam. Os seus crimes são aí mais numerosos e atrozes do que noutro lado, a sua audácia sem limites, a tal ponto «que um dia, em plena tarde, entraram na cidade de Reggio com artilharia, bateram a uma casa, forçaram-na e mataram os seus ocupantes, sem que o governador da cidade tivesse podido opor-se-lhes, recusando os citadinos obedecer e vir em seu auxilio.» Mas agir contra a Calábria não é fácil. Mondejar fará a experiência à sua custa. Depois do incidente de Reggio, cuja data
262 263 264 265 266
Simancas , E. 0 1338. Salazar a Filipe II, Veneza, 29 de Maio de 1580, Simancas, E .º 1337. Simancas, E. 0 1077. L. von Pastor, op. cit., X, p. 59 e segs. Ver nomeadamente Dollinger, op. cit. , p. 75, Roma, 5 de Junho de 1547.
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exacta desconhecemos, as perseguições do governador da cidade, reforçado na ocasião por um juiz comissário, de nada serviram, senão para aumentar a força e a actividade dos bandoleiros. Do mesmo modo, fracassaram os esforços do conde Briatico, nomeado para o governo provisório das duas províncias da Calábria. As medidas repressivas apenas fizeram exasperar os bandidos. Força vam os castelos, entravam em pleno dia nas grandes cidades, ousando «matar os seus inimigos até nas igrejas, fazendo prisioneiros e exigindo resgates .» As suas atrocidades espalhavam o terror; «devastavam as terras, matavam os reba nhos daqueles que lhes resistiam ou que os perseguiam por ordem e mandato dos governadores, não ousando estes últimos fazê-lo eles mesmos.» Em suma, «tinham perdido totalmente o respeito, o medo, a obediência que se devem à justiça.» Em conclusão do relatório de onde acabamos de tirar estas citações, o vice-rei indicava que uma expedição militar tinha sido organizada contra eles, sob o comando de seu filho D. Pedro de Mendoza, na altura chefe de campo da infantaria do reino. Adiara esta acção tanto quanto tinha podido, a fim de evi tar às províncias os estragos que as tropas sempre lhes trazem, por muito disci plinadas que sejam. Mas, demorar mais não seria arriscar, na próxima Primavera, ter de reunir desta vez um exército para pôr termo a isto, quando um pequeno corpo expedicionário podia bastar no momento267 ? Neste corpo expedicionário participaram268 nove companhias de Espa nhóis (destinadas·a acampar nas aldeias suspeitas de auxiliarem os fuoruscit1) e três companhias de cavalaria ligeira: três fragatas deviam operar na costa, ficando assim as províncias suspeitas previamente bloqueadas. Como de cos tume, as cabeças dos bandidos foram postas a prémio, trinta ducados para os comparsas, duzentos para os chefes. D. Pedro deixou Nápoles a 8 de Janeiro e, a 9 de Abril, o vice-rei anunciava que a sua missão estava terminada, com êxito269 • Desde Fevereiro, dezassete cabeças de bandidos tinham sido enviadas para Nápoles e cr(lVadas às portas da cidade, supostamente para grande satisfa ção do povo270 • Jizeram-se igualmente prisioneiros que D. Pedro, ao regressar a Nápoles, entregara à justiça. Terá sido este um tão grande êxito como o declaravam as palavras oficiais e paternais do vice-rei? De facto, a Calábria demasiado povoada, infeliz, mais produtora de bandidos que de seda, continuou a sua vida sem alterações, ou quase. A operação, conduzida com pequenos efectivos, durante três meses de Inverno, não podia ter sido eficaz. Em 1 580, um agente veneziano271 assinalava que todo o reino estava infestado de bandidos, que os ladrões de estradas eram senhores na Púglia e sobretudo na Calábria. A dificuldade residia no facto de
267 Vic�-rei de Nápoles a Filipe II, A. N., K, 3 de Janeiro de 15 , Simancas, E.º 107. 78 268 Sumario de /as provisiones que e/ Visorey de Napo/es ha mandado hacer; s. d., ibid. 269 Vice-rei de Nápoles a Filipe II, 9 de Abril de 1578 (recebida a 29 de Maio), Sirnancas, 270 O mesmo ao mesmo, 1 de Fevereiro de 1578, ibid. 7 27 1 E. Alberi, op. cit., II, V, p. 469.
1 10
E.º 1077.
AS SOCIEDADES
que ao pretender evitar estas rotas perigosas, corriam o risco de cair nas mãos dos corsários que infestavam então as costas até aos fraguedos romanos do Adriático. Vinte anos mais tarde272 , a situação é ainda pior. Os bandidos levam as suas incursões até ao porto de Nápoles e as autoridades chegam a preferir o entendimento ou a astúcia à luta. É assim que o grande bando de Angelo Ferro, que aterrorizava a Campânia, é enviado para a Flandres para aí combater sob as bandeiras espanholas. Assestam-se também os bandos uns contra os outros: o de Sessa, por exemplo, devorou o outro, seu rival. Os fuorusciti são aceites no exército com a condição de auxiliarem o governo a lutar contra os seus émulos. Fi nalmente, recorre-se ao método dos alojados. Estando os bandidos sempre em li gação com determinada aldeia onde têm os seus parentes e o seu centro de abasteci mento, começa-se por sugerir aos ditos parentes que «arranjem o remédio», entenda-se que entreguem o «sem> bandido. Se recusam, uma companhia de Espanhóis vem alojar-se discretamente na aldeia, escolhendo de preferência as casas dos parentes e das pessoas afortunadas do local. Compete a estas enten derem-se com aqueles para encontrarem o «remédio». Como são ricos e têm influência, o culpado é entregue sem mais ou trata-se de o mandar sair do reino. É então exigida uma indemnização pelos delitos do exilado e as outras despe sas; a companhia é retirada, depois tudo entra de novo na ordem. Pelo menos é o que nos diz o relatório optimista que expõe estes métodos como um exemplo da arte de governar em Nápoles. Na realidade, nada há aqui de muito novo. São métodos velhos, habituais. Um documento veneziano assinala-os na Cândia onde, em 1 55 5273 , o perdão é concedido a qualquer bandido (há então duzentos na ilha, segundo as informa ções) que mate um dos seus companheiros, mais do que ele culpado de homicí dios . . . Sisto V recorrera também a isso quando da sua tentativa de 1 585 contra os bandidos romanos. É uma maneira de desfazer os bandos internamente. Perdões e prémios fanno il /oro frutto, nota um agente dos Gonzaga em Roma274• Entretanto, Génova perdoava a todos os bandidos da Córsega (salvo alguns criminosos excepcionalmente atrozes) que entrassem para as suas tropas. A solução liberta a inquieta ilha de elementos perturbadores: os perdoados dão garantias, deixam, momentaneamente, de ser inimigos de Génova para a servirem275 • Os Turcos não procedem de outra forma na Anatólia276 • Todavia, não exageremos a importância destes processos que tanto deter minam uma fraqueza como uma habilidade. De facto, nem uma mão de ferro, nem as astúcias policiais, nem o dinheiro, nem a apaixonada vontade de um Sisto V que se lança na luta com um ardor de camponês, venceram este inimigo insubmisso que dispõe de poderosos apoios. 27 2 273 274 27 5
de
1 586.
127 , f.0 65 v.0 a 67. 1 555, V. Larnansky, op. cit., p. 558 . 1 585, L. von Pastor, op. cit., X, p. 59.
B . N., Paris, esp.,
28 de Março de 22 de Junho de
A. Marcelli, «lntomo ai cosidetto mal governo genovese», art. cit., p.
276 Ver supra, vol. I, p.
147, Setembro de 1 578, e Outubro
1 16. 111
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
O banditismo e os senhores Por detrás do corso marítimo estavam as cidades, os Estados urbanos. Por detrás deste corso terrestre, o banditismo existe, favorecendo a aventura, o repetido auxilio dos senhores. Os bandidos têm muitas vezes, para os conduzir ou dirigir de perto ou de longe, determinado autêntico senhor. Como o conde Ottavio Avogadro que uma correspondência francesa de Veneza assinala, com o seu bando, operando contra os Venezianos, em Junho de 1 583277 • «0 conde Ottavio, Sire, ajuda sempre estes senhores em Sanguene, onde, desde que escrevi a Vossa Majestade, regressou duas vezes e queimou algumas casas no Veronês.» Os Venezianos perseguem-no, conseguem que Ferrara e Mântua, onde ele vul garmente se refugia lhe neguem asilo278 • Mas, nem mesmo assim conseguem apoderar-se dele; dois anos mais tarde está na Corte de Fernando de Tirol279 • Outro exemplo, entre os bandos que assolam o Estado pontifical, lugar de encontro de ladrões e assassinos do Norte e do Sul da Itália, sem contar a multi dão de autóctones, um dos mais encarniçados, na época de Gregório XIII, é o duque de Montemarciano, Alfonso Piccolomini, de quem já falámos antes280 • O grão-duque da Toscana salva-o in extremis, porque ele puxava há muito tempo os seus estranhos cordelinhos. Salvo no último momento, passa para França onde então se encontra com a verdadeira guerra, e não com uma guerra de guerrilhas: a guerra não agradou ao capitão dos masnadieri, o qual, fazendo-se eco de promessas e convites, regressou a Itália, desta vez a Toscana, lançando-se sem piedade e sem prudência contra o grão-duque. Alojado na montanha (ainda ela) de Pistóia, longe das fortalezas e das guarnições, está à altura de sol levare i popoli, de fazer dei/e scorrerie, tanto mais que onde está, nesse ano de 1 590, ano de pouco trigo, a miseria potea piü facilmente indurre gli uomini a tentare di variar condizione. Palavras espantosas de clarividência281 • Com a chegada ao coração do país toscano deste condutor de homens, tudo é de te mer, tanto mais que tem relações com os presídios espanhóis e todos os inimi gos da Casa Mediei. Se avançar sobre Siena e a sua Marema, será uma confu são . Todavia, os seus bandos, que não sabem fazer a guerra organizada, não podem tomar de assalto as praças-chave, recuam perante os gendarmes da Tos cana ou de Roma e a última palavra é para o príncipe: a 16 de Março de 1 59 1 , Piccolomini era executado em Florença282 • Terminava assim uma curiosa guerra interna, seguida de fora com interesse, porque os fios destas aventuras vão parar, geralmente, a mãos estranhas, umas vezes ao Escorial e outras a Lesdi guieres, no seu Delfinado283 • 277 278 279 280 281 282 283
1 12
H. de Maisse ao Rei, Veneza, 20de Junho de 1 5 83 , A. E . , Veneza, 31 , f.º 5 1 e 5 1 v. º /bid. , f.º 56 v.0 , li de Julho de 1583. G . Schnürer, op. cit., p. 102. R. Galluzzi , op. cit., li, possim, e t. III, p. 44 e segs. Ver supra, vol. li, p. 100. Ibid., III, p. 44 . Ibid. , III, p. 53. Ibid., li, p. 443 .
AS SOCIEDADES
Grandes exemplos que roçam a grande política. Casos mais simples facili tar-nos-iam a nossa tarefa. Mas são os menos fáceis de compreender . . . A liga ção é contudo inegável entre a nobreza catalã e a pilhagem dos Pirenéus, entre a nobreza napolitana ou siciliana284 e o banditismo do Sul da Itália, entre os signori e signorotti do Estado pontifical e a pilhagem romana. A nobreza desem penha por todo o lado o seu papel, quer política quer socialmente. O dinheiro é a chave: e a aristocracia, economicamente falando, está a maior parte das vezes doente. Os fidalgos pobres, uns arruinados, outros filhos segundos de familias sem fortuna, são os quadros, frequentemente, desta guerra social larvar, sem pre renascente, «semelhante às cabeças da hidra»285 • É-lhes forçoso viver de expedientes, de roubos, de se atirarem (como afirma La Noue da França daquele tempo onde o espectáculo é idêntico) «às cegas»286 • Este mecanismo social desempenhará muitas vezes o seu papel, e também mais tarde. Os senhores que no século XVIII perturbam a paz no Império truco, os Krdza/cen da Bulgária287 , são demasiado numerosos para pertencerem todos à nobreza diplomada. No Brasil, no início do século XIX, os bandidos são os homens de mão, os cabras de grandes proprietários mais ou menos desfavorecidos pelos novos tempos e que têm de se defender288 . Mas, não simplifiquemos demais: multiplicada e polivalente, a pilhagem, ao serviço de certos nobres, insurge-se também contra outros. Assim o revela uma notícia acerca das façanhas, na Lombardia, de um tal Alexio Bertholoti, «famoso bandido e rebelde do marquês de Castellón». A 17 de Agosto de 1 597, com mais de duzentos homens, escala os muros do castelo de Solferino e apode ra-se da mãe do marquês e do filho deste último, uma criança de treze anos. Transporta os prisioneiros para Castellón, tenta mandar abrir as portas do cas telo à velha marquesa, sua prisioneira, na esperança de apanhar o próprio mar quês. Trabalho perdido, ela recusa-se a isso, ele fere-a então de maneira selva gem e mata a criança. Depois disso, entrega-se à pilhagem e comete «outras crueldades de bárbaro», segundo o relatório do governador de Milão289 • É evidente que o banditismo não está somente ligado à crise de uma certa nobreza: é camponês e popular. Maré social, «inundação»290, diz um historia dor do século XVIII - remove e agita as águas mais diversas. Reivindicação política e social (não religiosa)291 , é ao mesmo tempo aristocrático e popular
284 L. Bianchini, op. cit., !, p. 60. 285 Marciana, 5 7, Notizie dei mondo, Nápoles, 5 de Março de 157 . 83 8 286 Citado por E. Fagniez, L 'économie sociale de la France sous Henri IV, 1 897 , p. 7 . 287 R. Busch-Zantncr, op. cit., p. 32. 288 Gilbeno Freyre, Sobrados e mucambos, p. 0 e segs. 8 289 Simancas, E.º 1 283 , O condestável de Castela a Filipe II, Milão, 25 de Agosto de 1597 . 290 R. Galluzzi, op. cit., II, p. 44 1 . 291 Diario florentino di Agostino Lapini. . . , 1591 , p. 17 : história desse Papa que os bandidos criam, em 3 redor de Forli, na pessoa dum Giacomo Galli: obedecem-lhe como se ele fosse soberano pontífice. Será enforcado com um chapéu dourado . . . A anedota é tanto política como religiosa. Não há outro pormenor a assinalar sobre este assunto. Os adeptos da ordem dizem exactamente que os bandidos violam as leis divinas e humanas, mas isto é uma maneira de falar .
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(os reis das montanhas, os do campo romano ou do campo de Nápoles não são em geral camponeses e gente humilde?). É uma revolta camponesa latente, filha da miséria e da superpopulação; é a retomada de velhas tradições, muitas vezes pilhagem pura, aventura feroz do homem contra o homem. Não gostaríamos de o reduzir a este último traço, acreditar, sem mais, a este propósito, nos pode rosos e nos ricos que tremem pelos seus bens, os seus lugares ou as suas vidas. Contudo, descontando a parte de exagero, como esquecer tanta ferocidade? É certo que a vida dos homens é pouco preciosa no século XVI: a existência de Alonso de Contreras, contada por ele próprio, o mais belo romance picaresco conhecido, porque vivido, relata uma boa dezena de assassinatos; a de Ben venuto Cellini tê-lo-ia levado hoje à prisão e ao cadafalso . . . Segundo estes modelos, imaginemos os escrúpulos daqueles que arranjaram um oficio de matar . . . Ou quer dizer das observações prestadas a Carlos V, quando do cerco de Metz, por Ambroise Paré, médico dos sitiados: «0 Imperador pergunta que pessoas eram as que morriam, e se eram fidalgos e homens distintos: foi-lhe respondido que eram todos pobres soldados. Então disse que não havia perigo que morressem, comparando-os às lagartas, gafanhotos e besouros que comem os rebentos e outros bens da terra, e que se fossem gente de bem, não estariam no seu acampamento por seis libras por mês . . . » 292 o aumento do banditismo · Seja como for, no final do século XVI, há um agravamento do banditismo. Através da Itália, mosaico de Estados, o banditismo sacia-se; perseguido em certos lugares, refugia-se noutros, reaparecendo mais longe, reforçado pelas ligações desse imenso maquis, ainda que debilitado, por sua vez, pelos seus ódios inextinguíveis. Mecatti, esse bom historiador do século XVIII, diz-nos como a Itália está submersa, cerca dos anos 1 590, por esses bandos de bandoleiros que aproveitam muitas vezes para as suas querelas a máscara falaciosa de Guelfos e de Gibelinos293 • E como imutável pano de fundo de todos estes factos, a fome. Essas desc�das montanhosas não passam de rezzous, como aqueles que se atira vam com todo o ardor, ainda há pouco tempo, em Marrocos, das montanhas insubmissas sobre as planícies ricas em trigo e em gado. Eis o que dá à Itália do final do século um clima humano tão curioso. A fome atinge aí regiões inteiras294 , a pilhagem estende-se por todo o lado, da Sicília aos Alpes, do Tir reno ao Adriático, longas séries de roubos, de incêndios, de assassinatos, de atrocidades semelhantes às do corso marítimo. Todos se angustiam. Antonio Serra, o economista napolitano, reconhece, em 1 6 1 3 , que há em Nápoles mais
292 Ambroise Paré, Oeuvres completes, 598, p. 1 208 . 1 293 G. Mecatti, op. cit., II, p . 780. Luta dos partidos n o Estado Pontifical n o tempo d e Pio V, L. von Pastor, op. cit., p. XV. 294 lbid. • p. 782.
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crimes, roubos e assassinatos do que em nenhuma outra região de Itália295 • Sucede o mesmo na Sicília e no Estado pontifical onde, durante os interregnos, recrudesce o banditismo296• Os confins de Nápoles e das terras romanas ofere cem-lhes campos privilegiados de acção297 • Toda uma turba heterogénea se lança à aventura, assassinos de profissão, camponeses, nobres, padres proscritos, monges que não querem submeter-se às ordens da Santa Sé . . . Podemos imagi nar o que era essa turba, sem grande risco de nos enganarmos, pelas cadeias de forçados das galés que o Estado pontifical entrega a um João André Dória e das quais por vezes possuímos as listas. Na Sardenha, na Córsega, o número dos bandoleiros é considerável. As dificuldades da Toscana sob o reinado de Francesco ( 1574-1587) são obra sua298 • Em 1 592-1593 , a Itália pensará liber tar-se destes personagens incómodos por meio de um indulto geral, com a con dição de irem para a Dalmácia ao serviço de Veneza299 • Mas, a Itália não é a única a lutar contra esta praga. Na África do Norte, onde os salteadores nunca faltaram, os viajantes prudentes (os mercadores de Constantina, por exemplo) vão em grupos; os mais hábeis, diz Haado, fazem -se acompanhar de marabus300• Na Turquia, pululam ladrões e bandoleiros. No século XVII, segundo Tavernier301 , «toda a Turquia está cheia de ladrões que vão em grandes bandos e esperam os mercadores nos caminhos.» Já no século XVI, na Moldávia e na Valáquia, os comerciantes ambulantes formavam, para se protegerem, longos comboios de viaturas, acampavam em grupos, assinala dos ao longe por grandes fogueiras302• Deste modo, o mercador por detrás dos seus fardos de mercadorias encontra-se em perigo tanto em terra como nos barcos redondos no mar. Nenhum país oferece melhor imagem do aumento do banditismo, durante estes últimos anos do século e os primeiros do século XVII, do que a Espanha que, morto o velho Rei no Escorial, vai conhecer esse espantoso avanço de luxo e de festa, de arte e de inteligência que é o Século de Ouro, nessa cidade nova que cresce a olhos vistos, a Madrid de Velásquez e de Lope de Vega, a dupla cidade dos ricos que são muito ricos e dos pobres que são muito pobres, men digos adormecidos à esquina das praças, enrolados em suas andrajosas capas, enquanto os senhores se embuçam para entrar nos palácios; serenos que velam à porta de ricas mansões, mundo inquietante de rufiões, de chefes de bandos, de criados famélicos, de batoteiros, de raparigas astutas à caça dum bom partido, de estudantes tocadores de guitarra que se esquecem de regressar às Universida295 Op. cit., p. 145. 296 28 de Março de 1592, Simancas, E.º 1 093 , f.º 1 2; G. Mecatti, op. cit., li, p. 781 ( 1590). 297 G. Mecatti, op. cit., li, p. 7 84 (1591); Amedeo Pellegrini, Relazioni inedite di ambasciatori /ucchesi alia corte di Roma, sec. XVI-XVII, Roma, 1901 ; em 1591 avanço do banditismo nas vizinhanças da Fronteira entre Roma e Nàpoles, medidas ineficazes de repressão. 298 H. Wlltjen, op. cit., p. 35. 2 99 G. Mecatti, op. cit., li, p p . 7 6-7 7. 8 8 300 Op. cit., p. 32. 301 J. B. Tavernier, op. cit., I, p. 2. 302 Angelesci.i, op. cit., 1, p. 33 1 .
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des, mundo revolto e caótico que a Espanha inteira alimenta e que de manhã é invadido pelos camponeses e camponesas da comarca circundante qué vêm aí vender pão . . . Durante a maior parte do reinado do Rei Prudente, o país, excep tuando o grande alerta de Granada e os ataques ingleses aos portos, gozara de relativa calma e de uma tranquilidade muitas vezes invejada pelo estrangeiro. Quanto aos bandidos, só eram numerosos nos Pirenéus Orientais, em ligação com a pequena nobreza catalã e a vizinha França. Ora, com os últimos anos do reinado, o banditismo generaliza-se em toda a Península. Há bandidos no caminho de Badajoz, isto ligado à campanha contra Portugal, em 1 5803°3 . Em Valência, violentas querelas opõem até à morte as grandes familias senhoriais. O perigo, em 1 577, é tão nítido que é objecto de uma nova real pragmatica304• Aqui como em outras partes, de que podem servir os remédios? Ineficazes, é necessário aplicá-los de novo. Em 1 599, 1603, 1605 305 novas pragmáticas con tra os bandolers de les viles [do Reino] que van divagant per le present regne amb armes prohibides pertubant la quietud de aquell. A questão dos «malfeito res»306 está na ordem do dia, exactamente na véspera da vasta expulsão dos Mouriscos em 1609- 1 6 1 4 que lhes vai oferecer outras tantas ocasiões para actuar307 . A corrupção dos pequenos funcionários será outro factor: vê-los -emos frequentemente de conluio com os malandrins308 .
Os escravos Um último traço singularizará estas sociedades do Mediterrâneo: apesar da sua modernidade, continuam esclavagistas, tanto no Ocidente como no Oriente. É uma estranha fidelidade ao passado, a marca talvez de um certo luxo, porque o escravo custa caro, tem as suas exigências e está em concorrência com os pobres e os miseráveis, mesmo em Istambul. É a raridade da mão-de -obra, o rendimento das minas e das (!lantações de cana-de-açúcar que permitirá a escravatura à maneira antiga no Novo Mundo, esse vasto e profundo passo atrás. Em todo o caso, a escravatura, praticamente apagada na Europa do Norte e em França, sobrevive no Ocidente mediterrânico309 , em Itália, em Espanha, sob a forma de uma escravatura doméstica bastante vivaz. Os decretos do Coo-
303 1 1 de Outubro de 1580, CODOIN, XXXlll, p. 1 6. 3 304 B . N., Paris, Esp. 60, í.º 1 12 v.0 a 1 23 (s. d.), 1577. 30S /bid. , f. 0 50 a 59. 3 3 306 Malhechores de Valencia, 1607-1609, Simancas, E.º 2025. 307 A. d. S ., Veneza, Senato Dispacci Spagna, P . 0 Priuli a o Doge, Madrid, 2 1 d e Outubro d e 1610. 308 Jacob van Klaveren, op. cit. , p. 54, nota 16 . 309 Georg Friederici, op. cit. , 1, p. 307. Que faria Sancho Pança dos vassalos negros? Vendê-los-ia. Sobre a servidão doméstica, R. Livi, La schiavitü domestica nei tempi di meuo e nei modemi, Pádua, 1928. Parando no século xv, o magnífico livro de Charles Verlinden, L 'esclavage dans l'Europe médiéva/e, I, Péninsule ibérique, France, 19SS. Escravatura doméstica dos negros em Granada, Luis de Cabrera, op. cit. , 1, p. 279; em Gibraltar, Saco. . . , p. S I , 77, 79. A escravatura desaparece em França desde o século XIII, Pardessus, op. cit., V, pp. 260; Gaston Zeller, Les institutions de la France, 1948, p. 22 ; o escravo vendido como uma mercadoria na Sicília. Par dessus, op. cit., V, p. 437.
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sulado de Burgos em 1 572, fixam as condições em que estão assegurados os escravos negros transportados para o Novo Mundo, mas também para Portugal e a estos Reynos, quer dizer para Espanha3 10. Guzmán, o herói picaresco, ao ser viço de uma dama cujo marido está nas Índias, apaixona-se, com todo o mal e toda a desonra, de uma escrava branca da dita dama, una esclava bianca que yo, mucho tiempo, crei ser libre3 1 1 • Em Valladolid, cerca de 1 55 5 ainda capital de Castela, escravos servem nas grandes casas, «bem alimentados com os restos da cozinha» e muitas vezes tornados livres pelos testamentos dos seus senhores3 1 2 . Em 1 539, no Rossilhão, descobre-se um turco roubando que não tem senhor algum, logo será preso e vendido como escravo a um notário313 . Em Itália, uma série de autos indicam a sobrevivência da escravatura doméstica, principalmente no Midi, e em outras partes também. Em Nápoles, documentos notariais314 assinalam vendas de escravos (vulgàrmente a trinta e cinco ducados a «peça», durante a primeira metade do século XVI); as mesmas notações em Veneza nos registos das actas3 15 , e também na correspondência dos Gonzaga, compradores de moleques3 1 6 para divertimento, sem dúvida, da sua Corte. Em Livorno, as portate assinalam, de vez em quando, a chegada num navio de alguns escravos negros3 17 . Todo este comércio ininterrupto só se exerce à luz do dia na altura de acon tecimentos excepcionais: como a tomada de Trípoli, em 1 5 1 03 18 , atira para o mercado siciliano tantos escravos que se vendem a baixo preço, de três a vinte e cinco ducados cada um e com que as galeras ponentinas, assim, renovam os seus forçados. Em 1 549, e não é o único, o grão-duque da Toscana envia um agente a Segna para comprar escravos turcos ou morlachi3 19• A escravatura é uma realidade desta sociedade mediterrânica, dura em relação aos pobres, ape sar do grande movimento de piedade e de caridade religiosas que aumentará no final do século. Em todo o caso, não é o apanágio do Atlântico e do Novo Mundo.
Conclusões possiveis Um lento, um poderoso trabalho em profundidade terá alterado pouco a pouco, transformado as sociedades do Mediterrâneo, de 1 550 a 1 600, termi nando uma longa gestação. O mal-estar é crescente e geral, e se não chega a tra3 10 311 3 12 313 3 14
E. Garcia de Quevedo, Ordenanzas dei Consulado de Burgos, 1905, p. 206, nota. Op. cit., l i , l l l , Vil, p. 450. Villalón, Viaje de Turquia, 1555, p. 78 . Arquivos Departamentais Pirenéus Orientais, B. 376, por esser latru e sens amo.
A. d. S., Nápoles, Notai, Sezione Giustizia, 5 1, f.º 5 (36 ducados, um escravo negro, 1 5 20); f.º 244 (35 ducados, uma escrava negra, 1521 ). 315 Albeno Tenenti, «Gli schiavi di Venezia alia fine dei Cinquecento», in Rivista storica italiana, 1955. 3 16 A. d. S., Mântua, E. Venezia, 16 de Junho de 1 499. 3 17 A. d. S., Florença, Mediceo 2080. 3 1 8 Sanuto, op. cit., XI. col. 468, Palermo, de Setembro de 15 10. 3 3 19 A. d. S., Florença, Mediceo 2077, f.º 34, 9 de Abril de 1549.
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duzir-se em revoltas e brutais reacções, não é menos certo que vai modificando profundamente a paisagem social. E este é um drama inegavelmente de carácter social. Depois do estudo preciso de Jean Delumeau sobre Roma e o Campo romano no século XVI, que tem a vantagem de aplicar os mil pequenos avvisi dos «jornalistas», dosfogliottanti da Cidade Eterna, as últimas dúvidas, se ainda se mantivessem, estariam resolvidas. Retomar este arquivo seria repetir as nossas constatações. Nenhuma dúvida, tudo tende para se polariz.ar entre uma nobreza rica, vigorosa, reconstituída em famílias poderosas apoiadas em vastos bens de raiz, e uma massa de pobres cada vez mais numerosos e miseráveis, «lagartas ou besouros», insectos humanos, infelizmente superabundantes. Um cracking abre em duas as sociedades antigas, cava aí os seus abismos. Já nada os fechará. Nem mesmo, repetimos, a espantosa caridade católica do final do século. Em Inglaterra, em França, em Itália, no Islão, tudo está minado por este drama cujas chagas incuráveis o século XVII exibirá aos olhos de toda a gente. Progres sivamente, tudo é atingido pelo mal, tanto os Estados como as sociedades, as sociedades como as civilizações. Esta crise tinge com as suas cores contraditó rias a vida dos homens. Se os ricos se acanalham, se misturam com a multidão que desprezam, é porque a vida tem as suas duas margens próximas; casas nobres por um lado, abarrotadas de criados; picardia por outro, mundo do mer cado negro, do roubo, do desregramento, da aventura, e sobretudo da miséria. . . Tal como a paixão religiosa mais pura e exaltada a par das mais espantosas baixezas e selvajarias. Espantosas, maravilhosas contradições do «Barroco», disse-se. Do Barroco não, mas da sociedade que o apoia e que ele mal cobre. No coração destas sociedades, que desespero de viver! A razão de tudo isto é mais uma vez o facto de que o mar falhou na sua tarefa de distribuidor de bens, de serviços, de riquezas, até mesmo de alegria de viver? Como é possível que tudo termine com uma glória e com uma prospe ridade antigas, que os povos do mar esgotem as suas últimas reservas? Ou então, a mesma e monótona interrogação das nossas investigações, será porque o mundo inteiro se precipita então, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, incluindo o Mediterrâneo, para esse espantoso refluxo de vida que em breve será o século XVII? François Simiand320 tem, pode ter razão?
320 François Simiand, 1873-1935, filósofo, sociólogo, economista, historiador, foi o mestre do pensamento dos historiadores franceses, um dos grandes orientadores, a par de Marcel Mauss, das ciências sociais no seu pals. Os seus principais trabalhos: Cours d'économiepolitique, 3 vol., 1928-1930; Le sa/aire, l'évo/ution sacia/e et la monnaie, 3 vol., 1932; Recherches anciennes et nouvel/es sur /e mouvement général desprixdu XVI' au XIX" si€ cle, 1932; Lesjluctuations économiques à longue période et la crise mondia/e, 1932.
6 AS CIVILIZAÇÕES As civilizações são os personagens mais complexos, mais contraditórios do Mediterrâneo. Mal se lhes reconhece uma qualidade e adquirem a qualidade oposta. As civilizações são fraternas, liberais, mas ao mesmo tempo exclusivas e caprichosas; recebem as visitas das outras, fazem-nas também; pacíficas, são, igualmente, guerreiras; de uma espantosa fixidez, são ao mesmo tempo móveis, vagabundas, animadas de fluxo e de turbilhões no pormenor da sua vida vítima de absurdos movimentos «brownianos» . Como as dunas, bem agarradas a acidentes escondidos do solo: os seus grãos de areia vão, vêm, voam, aglome ram-se à vontade dos ventos, mas, soma imóvel de inumeráveis movimentos, a duna continua lá. O mérito dos esboços de Marcel Mauss 1 é sem contestação o de ter devolvido às civilizações as suas qualidades de movimento, de luz activa. Talvez não tenha marcado suficientemente à nossa vontade as suas permanências. O que muda, o que se move na vida das civilizações, é o melhor, é a totalidade dessa mesma vida? Não, sem dúvida. Aqui encontram-se estrutura e conjuntura, ins tante e duração, e mesmo muito longa duração. Nem pela força brutal, cons ciente ou não do que faz; nem pela força indolente que se abandona àos acasos,
1 «Civilisation, éléments et formes», in Premiere Semaine lnternationale de Synthese, Paris, 1929, pp. 81-
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às benevolências da história; nem pelo ensino mais amplamente distribuído, mais vorazrnente engolido, uma civilização consegue beliscar sensivelmente o domínio de uma outra. No essencial, os jogos são sempre realizados antecipada mente. A África do Norte não «traiu» o Ocidente em Março de 1%22, mas desde os meados do século vm3 , talvez antes mesmo do nascimento de Cristo, desde a instalação de Cartago, filha do Oriente.
1.
Mobilidade e estabilidade das civilizações
Movimento e imobilidade acompanham-se, explicam-se um por meio do outro. Não há qualquer perigo de extravio ao abordar as civilizações por um ou outro caminho, e pelo mais absurdo aparentemente: essa poeira de aconteci me�tos e de incidentes pela qual se assinala em primeiro lugar qualquer civiliza ção viva.
A lição dos incidentes Estes pequenos factos4 explicam melhor do que longos discursos a vida dos homens do Mediterrâneo - ondulante, empurrada em todas as direcções pelos ventos da aventura. Um patrão ragusano, a bordo de uma nau, em qualquer parte do Mediterrâneo, em 1 598, ouve as confidências de um viajante genovês de Santa Margherita, fideicomissário de um ragusano, morto rico no Potosi e que o encarregou de encontrar os seus herdeiros em Mezzo, essa ilhota ao largo de Ragusa que é o viveiro dos seus marinheiros e dos seus capitães de longo curso. E o impossível acontece: inicia-se a investigação, encontram-se os herdeiros5 • Sabemos menos sobre esse outro ragusano, Blas Francisco Conich, também ele instalado no Peru e por quem Veneza se interessa porque possui, nesse fim de ano de 1 6 1 1 6, metade de uma nau, Santa Maria dei Rosario e quatr'occhi, de que a Senhoria se apoderou por represália. Outro pequeno acon tecimento: ainda em Ragusa inicia-se uma acção para constatação de morte. O morto, capitão de uma nau, desaparecera com essa armada que em 1 5% Filipe II lançara contra a Inglaterra. No arquivo da instância aparece uma carta escrita pelo desaparecido a sua mulher, antes da grande viagem. É datada de Lisboa, 1 5 de Outubro, um verdadeiro testamento: «Partimos hoje para a Irlanda.
2 A palavra «traição» é tirada de um curso de Lucien Febvre na Universidade de Buenos Aires. em Outubro
de
1 937.
3 Charles-André Julien, Histoire d e l'Afrique d u Nord, 19 1 , p. 20. 3 4 Encontram-se em todas as séries documentais e especialmente em Ragusa, Diversa di Cance//aria e Diversa de Foris; em Génova, Magistrato dei Riscatto dei Schiavi; em Veneza, Quarantia Criminale . . . S A. d e Ragusa, Diversa de Foris, V I I , f .0 62 a 66, Outubro d e 1598 . 6 A. d. S., Veneza, Dispacci Senato Spagna, P. Priuli ao Doge, Madrid, de Dezembro de 161 1 .
3
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AS C/V/L/ZAÇÔES
Sabe Deus quem voltará . . . ». E ele não voltará7 • Outro incidente mas em Génova: a 8 de Junho de 1601 , o capitão Pompeus Vassalus quondam Jacobi, no estado civil latinizado para a circunstância, testemunha perante o magnífico Magistrado dei Riscatto dei Schiavi sobre a provável morte de Matteo Forte de Portofino. «Estando no Egipto no ano passado - afirma -, do mês de Maio a 1 1 de Setembro, perguntei no dito lugar, a diversas pessoas, se Matteo Forte, antigo escravo das galeras do "bailio" de Alexandria, estava vivo . . . porque o dito Matteo possui urna casa perto da minha e eu queria comprá-la.» Ora, «todos aqueles que o conheciam me disseram que morrera, vários meses antes, e havia lá escravos de Rapallo que o tinham conhecido»8 • Este é um acontecimento tão vulgar corno a aventura de um genovês de Bogliasco, Gieronirno Campodirneglio, cativo em Argel. Há urna cinquentena de anos, em 1 598, e não se precisa a data em que ele foi capturado, nem o nome do seu antigo patrão de Argel, o qual ao morrer lhe legou a sua loja. Entretanto, viram-no nas ruas vestito de Turcho; alguém afirma que casou com urna mu çulmana. «Creio que é renegado e não se preocupará em regressarn9 : conclusão de urna história banal e mais frequente do que se pensa. De facto, são aos mi lhares, no próprio dizer de um conternporâneo 10 , os Cristãos que passam para os Turcos e para o Islão. As grandes civilizações - ou os governos fortes - di zem não, lutam, resgatam os seus filhos perdidos; os indivíduos, vulgarmente, são mais acornodatícios. Pouco a pouco, e mais tarde, será elaborado um esta tuto contra eles. No século XVI nem sequer sofrem a morte civil. Vê-se determi nado renegado de Tunes dispor da sua sucessão a favor de seu irmão, em Siracusa1 1 • Vê-se mesmo, em 1 568, um Fray Luis de Sandoval 12 tornar a inicia tiva de urna grande operação de salvamento junto dos príncipes cristãos do Me diterrâneo: o perdão será oferecido a estes desencaminhados e assim pôr-se-ia fim aos inumeráveis males que infligem à Cristandade. Entrentanto, cada rene gado pode voltar para sua casa, sem perigo, com esse veneziano Gabriel Zucato, apanhado pelos conquistadores de Chipre, em 1 572, reduzido à escravatura e que regressado a Veneza, trinta e cinco anos mais tarde, em 1 607, e à sanctis sima fede, pede um lugar de corretor, de sansaro, petição acolhida favoravel mente pelos Cinque Savii, dada a sua miséria e os seus conhecimentos do grego, do árabe e do turco «que até escreve» ; e contudo si feci turco, renegou 1 3 • Em todo o caso, as duas grandes civilizações, hostis e vizinhas, não deixam de fraternizar conforme as circunstâncias e os encontros. Na altura do ataque
7 Arquivos de Ragusa.
8
152 v. º e 153 , Lisboa, 1 5 de Outubro de 1596. 659.
Diversa de Foris, V, f.º'
8 de Junho de 1601 , A . d.
S., Génova, Atti
9 /bid. , Atti 659. H. Porsius, Breve histoire, Arsenal 8 .0 H 17 45 8 , citado por J . Atkinson, op. cit. , p. 244. 1 1 5 de Setembro de 1595, P. Grandchamp, op. cit., 1, p. 73 . Ver a história fictícia do pai de Guzmán de Al 2
IO
farache, M . Aleman, op. cit. , I, 1 , 1 , pp. 8-9. 1 2 A. d. S., Flor�nça, Mediceo 5037, f. 0 124, Fray Luis de Sandoval ao grão-duque da Toscana, Sevilha Agosto de 1568 . 13 A. d. S., Veneza, Cinque Savii, Riposte, 42, r. os 9 v.0 e 10, 25 de Maio de 1 607 . 1
1 de
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falhado dos Argelinos contra Gibraltar, em 1 540, oitenta cristãos encontram-se nas mãos dos corsários. Passado o alerta, tenta-se um acordo, como é de regra. Assinado uma espécie de armistício, travam-se conversações. Então os navios argelinos entram no porto, os seus marinheiros descem a terra, passeiam-se na cidade, reencontram conhecidos, antigos cativos ou antigos patrões, depois vão comer nas tascas, nas bodegones. Contudo, a população civil ajuda a transpor tar os tonéis de água doce para o abastecimento da sua frota 14 . Troca de amabi lidades, familiaridade, hesita-se em dizer «fraternização» como no tempo das trincheiras . . . Imagem que admitirá, entre as duas religiões inimigas, uma sepa ração estanque. Os homens vão e vêm, indiferentes às fronteiras dos Estados ou dos credos. Há as necessidades da navegação e do comércio, os casos do corso e da guerra, as conivências, a traição das circunstâncias. De onde múltiplas aventuras, como a desse Melek Jasa, ragusano que passou para o Islão, e que se encontra nas Índias, no início do século XVI , encarregado (ocupará o cargo durante anos) de defender Diu contra os Portugueses 15 . Ou a de três espanhóis que em 1 58 1 , em Derbent, no Cáspio, o pequeno navio inglês recolhe, vindo de Astracã, que, de dois em dois ou de três em três anos, é fretado pela Moscovie Companie. Três renegados sem dúvida, estes espanhóis, desertores do exército turco, e feitos prisioneiros em La Goulette, sete anos antes 16 . Quem não sonha ria com a sua aventura? Ou com esta, rigorosamente simétrica: em 1586, o barco inglês Hércules trazia para a Turquia vinte turcos que Drake libertara nas Índias Ocidentais: pormenor fornecido, sem mais, por um incidente da exposição que relata a viagem deste veleiro ao Levante 17 . No início do século XVII ocorrem as mesmas aventuras: em 1608, encon tra-se, encerrado no castelo de S. Julião da Barra em Lisboa, um tal Francisco Julião, que recebeu o baptismo e que comandava antigamente as galeras turcas ao largo de Melinde quando foi capturado 18 . Contudo, em 161 1 , os Persas cap turavam nas fileiras do exército turco do Grão-Vizir Mourad Paxá, três franceses e um alemão, vindos, em todo o caso, sabe Deus como, pela muda de Constan tinopla e ainda um grego originário de Chipre, todos poupados pelo vencedor, depois recolhidos pelos Padres Capuchinhos de lspahan 19 . Um último exemplo: nos finais do século XVII há um aventureiro grego, Constantin Phaulkon, natural de Cefalónia, que afirma ser filho de um nobre veneziano e que acaba por se tornar no favorito do Rei de Sião: «passando-lhe tudo pelas mãos . . . » 20 .
1 4 Saco, op. cit.• p. 101 . 15 V. L. Mazuranic, art. cit., resumido por Zontar, art. cit. , p. 369. Ver também essa complicada história de renegado, 10 de Novembro de 1571 , L. Serrano, op. cit. , IV, pp. 514-515. 16 R. Hakluyt, op. cit. , li, p. 282. 17 Jbid., li, pp. 282-28 5. 1 8 Boletim da Filmoteca Ultramarina Portuguesa, n. 0 16 , p. 692, Madrid, 8 de Maio de 1608 . 19 B . M. Royal, 1 4 A XXIII, f. 0 14 v. 0 e segs. 20 Abbé Prévost, Histoire générale des voyages, IX, pp. 1 35-1 36, segundo a viagem de Tachard ( 1685).
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AS CIVILIZAÇÔES
Como viajam os bens culturais Viagens dos homens; viagens também dos bens culturais, tanto dos mais usuais como dos mais inesperados. Não cessam de se deslocar com os viajantes. Trazidos para aqui por uns determinado ano, retomados por outros no ano seguinte ou um século depois, transportados sem cessar, abandonados, reapanhados, e muitas vezes por mãos ignorantes. As primeiras tipografias dos países danubia nos, destinadas a reproduzir livros de piedade ortodoxa, foram para aí levadas, no início do século XVI, por alfarrabistas montenegrinos de Veneza ou de pos sessões venezianas21 • Os Judeus expulsos de Espanha, em 1492, organizaram, em Salónica e em Constantinopla, o comércio de tudo o que precisamente aí faltava: portanto, abriram lojas de quinquilharia22 , instalaram as primeiras tipografias, de caracteres latinos, gregos ou hebraicos (é preciso esperar pelo século xvn23 para ver as primeiras tipografias de caracteres árabes); instalaram teares de lã24 e de brocado e, diz-se, construíram os primeiros reparos móveis25 que dotaram o exército de Solimão o Magnífico da sua artilharia de campanha, uma das razões do seu êxito. E são os reparos da artilharia de Carlos VIII em Itália (1494) que teriam servido de modelo26 • • • Mas, a maior parte das transferências culturais realiza-se sem que s e conhe çam os carreteiros. São tão numerosos, uns tão rápidos, outros tão lentos, tomam tantas direcções que não se reconhece ninguém nesta imensa gare de mercadorias onde nada permanece durante muito tempo. Para uma bagagem reconhecida, escapam-nos mil; faltam moradas e etiquetas, e outras vezes o conteúdo e a embalagem . . . Ainda se apreende quando se quer pôr tudo de novo em ordem, quando se trata de obras de arte, das pedras da catedral de Bayeux27, de uma pintura catalã encontrada no Sinai28, de uma ferragem de arte de Barcelona identificada no Egipto ou de curiosas pinturas de inspiração italiana ou alemã que se executam no século XVI nos mosteiros do monte Athos. Ainda se apreende quando se trata desses bens tangíveis, as palavras, as do vocabulário ou da geografia: o controlo é possível, senão seguro. Mas, quando se trata das ideias, dos sentimentos, das técnicas, todos os erros são possí veis. Imaginaremos nós o misticismo espanhol do século XVI , derivando do sofisma muçulmano, através de hipotéticas influências ou do inquieto pensa mento de Raimundo Túlio29? Diremos �ós que a rima no Ocidente vem dos poetas 2 1 N. lorga, Ospiti Romeni. . . , p . 24 . 22 Belon du Mans, op. cit., p. 182 .
2 3 Annuaire statistique du monde musulman, 1 923 , p. 2 1 . Padres muçulmanos que ganham a vida copiando manuscritos, Belon du Mans, op. cit., p. 1 94 . 24 Ver supra, vol. 1, p. 482 . 25 J . W. Zinkeisen, op. cit., III, p. 266. 26 Ibid., nota 2 . 27 Comunicação de Marcel Aubert à Academia das Inscrições e Belas Letras, 1 943 . 28 Conyat Barthoux, Une peinture cata/ane du XI-"' siec/e trouvée au monastere du Sinal". 29 Ou por outros caminhos. Vejam as comparações entre lbn Abbad e São João da Cruz. Asin Palacios, «Un précurseur hispano-musulman de San Juan de la Cruz», in AI Anda/ous, 1 933 ; J. Baruzi, Problemes d'histoire des religion.s, p. 1 1 1 e segs. Mas a hesitação permanece: filiação, paralelismo, simples coincidência? . . . J. Berque, «Un mystique. . . » , ar/. cit., p. 759, nota 1 .
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muçulmanos de Espanha30? Que as canções de gesta (o que é provável) são tira das do Islão? Desconfiemos de quem reconhece demasiado bem as bagagens (por exemplo as bagagens árabes dos nossos trovadores)3 1 ou daqueles que, por reacção, negam em bloco os empréstimos de civilização a civilização, quando tudo se troca no Mediterrâneo, os homens, os pensamentos, as artes de viver, as crenças, as maneiras de amar. . . Lucien Febvre32 divertiu-se a imaginar o s espantos d e Heródoto ao refazer o seu périplo, perante a flora que nos parece característica dos países do Medi terrâneo: laranjas, limoeiros, tangerineiras, importados do Extremo Oriente pelos Árabes; cactos vindos da América; eucaliptos originários da Austrália (conquistaram todo o espaço entre Portugal e a Síria e os aviadores dizem, hoje, reconhecerem Creta pelos seus bosques de eucaliptos); o cipreste, que é persa; o tomate, talvez peruano; o pimento, da Guiana; o milho, mexicano; o arroz, «essa bênção dos Árabes»; o pessegueiro, «filho das montanhas da China e logo aclimatado no Irão», ou o feijão, ou a batata, ou a figueira da Berberia ou o tabaco . . . A lista não está completa, nem encerrada. Seria de abrir todo um capítulo sobre as migrações do algodoeiro, autóctone do Egipto33 , de onde saiu, para percorrer o mundo através do mar. Um estudo também seria benvindo, o qual mostraria, no século XVI, a chegada do milho, originário da América, no qual lgnacio de Asso, no século XVIII, queria ver erradamente urna planta de dupla origem, vinda sem dúvida do Novo Mundo, mas que já no século XII tinha sido trazida pelos Árabes das Índias Orientais34 • O cafeeiro cul tiva-se no Egipto desde 1 550; o café, corno tal, chegou ao Oriente cerca de mea dos do século xv: certas tribos africanas comiam os seus grãos assados. Como bebida, é conhecido no Egipto e na Síria desde essa época. Diz-se que em 1 556 foi proibida a sua utilização em Meca, por se tratar duma bebida de dervixes. Cerca de 1 550, chega a Constantinopla. Os Venezianos importá-lo-ão para Itá lia em 1 580; estará em Inglaterra entre 1 640 e 1660; em França, aparece em pri meiro lugar em Marselha em 1 646, depois na Corte cerca de 167035 • Quanto ao tabaco, chegou de São Domingos a Espanha através de Portugal; «a esquisita
JO
Abbé Massieu, Histoire de la Poi!sie françoise avec une défense de la Pol!sie, 17 39, e . r. no Journal de Tré voux, Fevereiro e Março de 1 740, pp. 277- 3 14, 442-476 . Viardot, op. cit., II, pp. 191-193 . A. Gonzalez Palencia, «Precedentes islarnicos de la leyenda de Garin», in AI Andalous, I, 1933 . Maxime Rodinson, «Dante et l'Islarn d'apres des travaux récents», in Revue de l'histoire des religions, Outubro-Dezembro de 1951 . J I J. Sauvaget, Introduction, p. 186; em sentido contràrio, R. Konetzke, op. cit. , p. 64. J2 «Patate et pomme de terre», in Ann. d'hist. soe., Janeiro de 1940, II, p. 9 e segs. ; anigo reproduzido 2 em Pour une Histoire à part entiere, Paris, 1962, pp. 643-645. A . Philippson, op. cit., p. 1 10. lbid.• p. 1 10. J5 J . Kulischer, op. cit., II, pp. 6- . Sobre o café, a abundância da literatura desafia qualquer recensea 2 27 mento. A sua cronologia continua a ser algo que se presta às mais diversas conjecturas. A. Franklin, Le café, /e thé, /e choco/a/, 1893; William H. Ukers, Ali about Coffee, Nova Iorque, 1922; Jean Leclant, «Le café et les cafés de Paris ( 1 644- 1693)», in Annales E. S. C., 1 95 1 ; Günther Schiedlausky, Tee, Kaffee, Schoko/ade, ihr Eintritt in die europ/iische Gesellschaft, 1 96 1 .
JJ J4
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AS CIVILIZAÇÕES
erva nicotiana» invadiu a França36 em 1 559, talvez mesmo em 1 556, com The vet. Em 1561, Nicot enviava de Lisboa para Catarina de Médicis pó de tabaco como remédio para combater a enxaqueca37 • A preciosa planta não tardou a atravessar o espaço mediterrânico; cerca de 1605 , atingia a Índia38 ; foi muitas vezes proibida nos países muçulmanos, mas em 1664, Tavernier viu o próprio Sofi fumando cachimbo39 • • • A lista destes divertidos pequenos factos pode alongar-se: o plátano da Ásia Menor fez o seu aparecimento em Itália no século xv140; a cultura do arroz implantou-se no século XVI igualmente na região de Nice e ao longo das mari nhas provençais41 ; a alface que no nosso país se chama «romana» foi trazida para França por um viajante que se chamava Rabelais; e foi Busbec, cujas cartas tantas vezes citámos, que trouxe de Andrinópolis os primeiros lilases que, em Viena, com a cumplicidade do vento, povoaram todo o campo. Mas, que acrescentaria esta nomenclatura àquilo que é a única coisa que importa? E o que importa é a amplitude, a receptividade do grande crisol mediterrânico. Tanto mais rica de consequências quanto, nesta zona de fusões, são mais nume rosos desde o princípio grupos de civilizações. Aqui, permanecem de bom grado distintos, com trocas e empréstimos a intervalos mais ou menos frequentes. Ali, misturam-se nas extraordinárias balbúrdias que evocam esses portos do Oriente, tal como no-los descrevem os nossos românticos: encontro de todas as raças, de todas as religiões, de todos os tipos de homens, de tudo o que o mundo mediterrânico pode conter de penteados, de modas, de cozinhas e de costumes. Teófilo Gautier, na sua Viagem a Constantinopla, descreve minuciosa mente, em cada escala, o espectáculo deste imenso baile de máscaras. Partilha-se o seu divertimento, depois é-se surpreendido a saltar a inevitável descrição: que é sempre a mesma. Por todo o lado os mesmos Gregos, os mesmos Armé nios, os mesmos Albaneses, Levantinos, Judeus, Turcos e Italianos . . . Ao con siderarmos este espectáculo ainda vivo, apesar de menos pitoresco, nos bairros do porto, em Génova, em Argel, em Marselha, em Barcelona ou em Alexandria tem-se a impressão de uma evidente instabilidade das civilizações. Mas, nada é mais fácil do que enganarmo-nos, se se pretende destruir esta confusão. O his toriador pensava que a sarabanda era uma velha realidade das danças espanho las; apercebe-se de que acabava de aparecer na época de Cervantes42• Imaginava a pesca do atum como actividade específica dos marinheiros genoveses, dos Napolitanos, dos Marselheses ou dos pescadores do cabo Corso; de facto, os
36 Olivier de Serres, Le Théatre d'Agriculture, Lyon, 1675, pp. 557 , Ku/tur/andschajt, Berlim, Leipzig, 1932, p . 23 . 37 Segundo os estudos de um erudito charentês, Roben Gaudin. 38 Oito Maull, ver acima, nota 36. 39 Op. cit., l, p. 5 . 4 1 40 Rabelais a Jean du Bellay, Lyon,
Aricinae.
31
de Agosto de
783 , 839; Otto Maull, Geographie der
1 5 34, unicam p/atanum vidimus ad specu/um Dianae
4 1 Quiqueran de Beaujeu, op. cit., p. 329. 42 E/ celoso extremeno, Novelas ejemp/ares, II, p. 25.
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Árabes praticavam-na e transmitiram-na cerca do século x43 • Em suma, estaria quase tentado a seguir Gabriel Audisio44 e a pensar que a verdadeira raça medi terrânica é aquela que povoa esses portos variados e cosmopolitas: Veneza, Argel, Livorno, Marselha, Salónica, Alexandria, Barcelona, Constantinopla, para só citar os grandes. Raça única que as reúne a todas numa só. Mas, não será absurdo? Toda a mistura supõe a diversidade dos elementos. A variedade prova que nem tudo se fundiu numa única massa; que restam elementos distintos, que se encontram isolados, reconhecíveis, quando nos afastamos dos grandes centros em que eles se misturam com prazer.
Irradiação e recusa de empréstimos Só as civilizações vivas são capazes de exportar os seus bens para longe, de se irradiarem. Uma civilização que não exportasse homens, maneiras de pensar ou de viver é inimaginável. Houve uma civilização árabe: conhece-se a sua impor tância, depois o seu declínio. Houve uma civilização grega, pelo menos salva guardou a sua substância. No século XVI, existe uma civilização latina (não digo somente cristã), a mais resistente de todas as civilizações em conflito com o mar: radiosa, avança através do espaço mediterrânico e, para além, em direc ção às profundezas da Europa, para o Atlântico e o Ultramar ibérico. Esta irradia ção, velha de vários séculos, é também a das construções navais que os Italianos, mestres nesta arte, foram ensinar a Portugal e até mesmo ao Báltico; a da indús tria da seda de que os Italianos se tornaram depositários, depois os mestres; a das técnicas de contabilidade que os Venezianos, Genoveses, Florentinos, esses mercadores de sempre, estabeleceram muito antes dos Nórdicos. Esta irradia ção é também a grande repercussão da Renascença, filha da Itália e do Mediter râneo, e cujas etapas se podem seguir através da Europa. Para uma civilização, viver é ao mesmo tempo ser capaz de dar, de rece ber, de emprestar. Emprestar, tarefa dificil, não é capaz quem quer emprestar utilmente, para se servir, tal como o mestre, do utensílio adoptado. Um dos grandes empréstimos da civilização mediterrânica é seguramente a imprensa que os senhores alemães instalaram em Itália, em Espanha, em Portugal e até mesmo em Goa. Mas reconhece-se, também, uma grande civilização pela sua recusa por vezes em emprestar, por se opor a certos alinhamentos, por fazer uma escolha entre aquilo que os permutadores lhe propõem, e muitas vezes lhe imporão se não existissem vigilâncias ou, mais simplesmente, incompatibilidades de humor e de gosto. Só os utopistas (há-os admiráveis - Guillaume Postei por exemplo no século xvl) sonham em fundir as religiões entre si: as religiões, o que existe justamente de mais pessoal, de mais resistente neste complexo de bens, de for-
43 R. Lacoste. La colonisation maritime en Algérie, Paris, 193 1, p. 1 13. Jeunesse de la Méditerrannée, 1935, p p . 10, 15, 20 . . . ; Le sei de la mer, op. cit,
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p.
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AS C/V/L/ZAÇÔES
ças, de sistemas que é toda a civilização. É possível misturá-las em parte, deslo car de uma para outra certa ideia, com rigor certo dogma, certo rito; daí a confundi-las vai uma distância enorme. Recusa de empréstimo? O século XVI fornece um dos mais espantosos exemplos . A seguir à Guerra dos Cem Anos, a Catolicidade sofreu o assalto de uma subida de águas religiosas. Sob o peso destas águas, quebrou-se, como uma árvore cuja casca estalasse. No Norte, a Reforma espalhava-se através da Alemanha, da Polónia, da Hungria, dos países escandinavos, da Inglaterra, da Escócia. No Sul, expandiam-se a Contra-Reforma Católica, para se servir do velho vocábulo tradicional, e em breve a civilização a que alguns chamam Barroca . Claro que houve sempre um Norte e um Mediterrâneo. Dois mundos soli damente arrimados um ao outro, mas distintos com os seus céus, os seus cora ções muito próprios, e religiosamente falando, as suas almas. Porque se usa, no Mediterrâneo, uma certa maneira de exprimir o sentimento religioso que ainda hoje choca o homem do Norte como chocou Montaigne45 em Itália, ou o embaixador Saint-Gouard46 em Espanha, como chocou em primeiro lugar toda a Europa Ocidental quando aí foi veiculada pelos Jesuítas e Capuchinhos, esses jesuítas dos pobres. Até num país tão profundamente católico como o Franco -Condado, as procissões dos penitentes, as novas devoções, o que havia de sen sual, de dramático e, para o gosto francês, de excessivo, na piedade meridional, escandalizava muitos homens ponderados, reflectidos e sensatos47 • Todavia, o protestantismo lançou alguns conceitos poderosos até aos Alpes austríacos48, ao Maciço Central, aos Alpes franceses, aos Pirenéus bear neses. Mas, por todo o lado, finalmente, fracassará nas fronteiras do Mediter râneo. Depois de hesitações e impulsos que tornam a sua recusa ainda mais característica, a Latinidade respondeu não à Reforma «de além montes» . Se determinadas ideias luteranas ou, mais tarde, calvinistas, conseguiram ganhar adeptos em Espanha e em Itália, só interessaram a solitários ou a grupos restri tos. E tratava-se, quase sempre, quer de homens que tinham vivido muito tempo no estrangeiro, gente da igreja, estudantes, livreiros, artesãos, mercadores que traziam, escondidos nos seus fardos de mercadorias, os livros proibidos, quer ainda (Marcel Bataillon mostrou-o no seu Erasmo e a Espanha) de homens que mergulhavam as raízes da sua fé num solo apenas seu, que não emprestavam a ninguém, aqueles que em Espanha trabalham os Erasmianos, em Itália os Valdesianos. O fracasso da Reforma ao Sul dos Pirenéus e dos Alpes será uma questão de governo, como se afirmou tantas vezes, o efeito de uma repressão bem orga nizada? Ninguém subestimará a acção de perseguições sistemáticas, longamente continuadas,. O exemplo dos Paixes Baixos, em tão grande parte recatoliza-
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Voyage en ltalie, op. cit., pp. 127-128 . Sources inédites. . . , du Maroc, France, I, Nota de Lucien Febvre. G. Turba, op. cit., 1 , 3 ,
p.
322, Saint-Gouard a Carlos IX,
Madrid,
14 de Abril de 1572 .
12 de Janeiro de 1562.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO dos pelos rigores do duque de Alba e dos seus sucessores, proteger-nos-ia se fosse necessário contra tal erro. Mas, não exageremos também a importância das «heresias» espanhola e italiana; não se poderia na verdade compará-las aos poderosos movimentos nórdicos. Quando só se parar nesta única diferença, o Protestantismo, no Mediterrâneo, em nada atingiu as massas. Foi um movi mento da elite, e muitas vezes, em Espanha, esta Reforma foi feita dentro da Igreja. Nem os Erasmianos de Espanha, nem o pequeno grupo dos Valdesianos de Nápoles procuraram a ruptura, tal como em França, o grupo de Margarida de Navarra. Se a Reforma italiana, como diz Emmanuel Rodocanachi, «não foi uma verdadeira revolta religiosa»; se continuou a ser «humilde, meditativa, de modo algum agressiva a respeito do Papado»; se é inimiga da violência49, é porque muito mais ainda do que uma «Reforma» é uma renovação cristã. A palavra Reforma não é adequada. Não houve perigo, ou semelhança de perigo, senão no Piemonte, por causa dos Valdenses50 (mas o Piemonte é a Itália?); senão em Ferrara, na corte de Renée de França; em Luca, onde a riquíssima aristocracia dos fabricantes de sedas acolheu a Reforma a partir de 1525 51 ; em Cremona, onde se reuniram algumas assembleias52 pela mesma época; em Veneza, acolhe dora dos Nórdicos e onde, cerca de 1529, monges franciscanos ou agostinhos fundaram pequenos grupos onde os artesãos eram bastante numerosos 53 • Fora destes casos, em Itália, a Reforma foi sempre obra de alguns indivíduos; a sua história, a dos escândalos, como o do «senoys» Ochino, outrora grande e elo quente pregador católico em Itália, hoje, observa de Selve que o vê chegar a Inglaterra em 1 54754, convertido «às novas opiniões dos alemães». Aliás, muitas vezes trata-se de pregadores itinerantes55 ; apenas passam e semeiam ao passar: mas a seara cresce mal. Trata-se de solitários, de meditativos, com destinos excepcionais . De um obscuro, como esse Ombriano Bartolomeo Bartoccio56 , estabelecido como mercador em Genebra, preso na altura de uma das sua via-
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La Réforme en //alie, p. 3 . 50 Em 1 561 , Emmanuel Philibert tinha assinado tréguas com os Valdenses. « . . . E como dire uno interim», es crevia Borromée, J. Susta, op. cit., I, p. 97 . Depois de 1 552, os Valdenses estão ligados à igreja reformada de Basi leia, com os reformados franceses do Delfinado e da Provença. F. Hayward, Histoire de la Maison de Savoie, 1941 , 1 1, pp. 34-35 . Novas concessões do duque aos Valdenses em 1 565 , Nobili ao duque, Avinhão, 7 de Novem bro de 1 565 , Mediceo 4897 , f. º 152. Cerca de 1600, novas perturbações, hereges estrangeiros, sobretudo franceses, atacam católicos, conventos . . . Os Monges pedem para descer cerca de 1 600, de Montebenedetto a Banda . . . Fra Saverio Provana di Collegno, «Notizie e documenti d'alcune certose dei Piemonte», in Miseellanea di Storia Ita liana, 1901 , t. 37 , série 3 , vol. 2 , ar/. cit., p. 233 . Arturo Pascal , «Da Lucca a Ginevra», estudo muito notável, in Riv. st. ital. , 1932-1935, 1932 , pp. 1 50-
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-152.
Per la storia religiosa dei/o stato di Mi/ano, Bolonha, 1938, numerosas referências ao index, p. 292. A. Renaudet, Maehiave/, p. 194 . 23 de Novembro de 1 547, p. 258 . 55 Arehivio storieo italiano, IX, pp. 27-29, cerca de 1535; Alonso de la Cueva a Filipe III, Veneza, 17 de Outubro de 1 609, A. N., K 1679. 56 M. Rosi, La riforma religosa in Liguria e /'eretieo umbro Bartolomeo Bartoeeio, Atti dei/a Soe. Ligure di storia patria, 1892 , resumo in Boi. dei/a Soe. umbra di storia patria, 1, fase. li, 1895, pp. 436-437 . 52 Federico Chabod,
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AS SOCIEDADES gens a Oénova, entregue à inquisição romana e queimado a 25 de Maio de 1569, ou de uma ilustre vítima como Giordano Bruno57 , queimado no Campo dei Fiori, em 1 60058 • Finalmente, não avaliemos o perigo protestante em Itália segundo as inquietações católicas, pontificais ou espanholas, prontas a aumentá-lo. Inquie tações tão vivas que durante o Verão de 1568 se temeu uma descida a Itália dos huguenotes franceses que, dizia-se, encontrariam a Península perigosamente minada por dentro59 • Seria o mesmo que avaliar os perigos do Protestantismo em Espanha e os méritos ou os crimes da Inquisição segundo as obras de Gon zalo de Illescas, de Paramo, de Llorente, de Castro ou de J. Mac Crie60 • Ora, a Reforma em Espanha, se houve «Reforma», localizou-se em dois pontos: Sevilha e Valladolid. Depois das repressões de 1557-1558 apenas se tratará já de casos isolados. Simples loucos por vezes: como esse Hernandez Diaz a quem pastores da Sierra Morena falaram dos protestantes de Sevilha; ouviu o bastante para ser preso, em 1563, pela Inquisição de Toledo61 , um louco aliás satisfeito e contente por constatar que na prisão comia mais carne do que em casa . . . Alguns autênticos protestantes espanhóis correm pela Europa, de refúgio em refúgio, como o célebre Michel Servet ou essa dezena de exilados que, em 1578, «estudam a seita» em Genebra e que são denunciados ao embai xador Juan de Vargas Mexia, porque se preparavam para ir pregar para Espa nha ou para mandar livros de propaganda para as Índias62 • De facto, a Espanha conspira contra estas crianças perdidas e abomina-as. A Inquisição é aí popular na luta que trava contra elas. O processo à revelia que inicia contra Michel Servet é seguido com uma atenção apaixonada: está em causa a honra da nação63 ! O mesmo sentimento impele Alonso Diaz quando em Neubourg no Danúbio, em 1546, manda executar por um criado o seu próprio
57 Sobre G. Bruno cf. Virgilio Salvestrini. Bibliografia di Giordono Bruno, 1581 -1950. 2. • ed. póstuma, p.p. Luigi Firpo, Florença, 1958 ; segundo as sondagens a que procedemos, esta bibliografia parece exaustiva quanto ao período indicado. Eis para esclarecimento, alguns títulos posteriores a 1950 : Paul-Henri Michel, Gior dano Bruno, phi/osophe et poete, 1 952 (extracto do College philosophique: Ordre, désordre, /umiere); A. Corsa no, li Pensiero di Giordono Bruno nel suo svo/gimento storico, Aorença, 1955 ; Nicola Badaloni , Lo Filosofia di Giordono Bruno, Florença, 1955; Ádám Raffy, Wenn Giordono Bruno ein Togebuch geführt hiitte, Budapeste, 1956; John Nelson, Renoissonce Theory of Love, the Context ofGiordono Bruno 's «Eroicifurori)>, Nova Iorque, 1 958; Augusto Guzzo, Scritti di storio dellojilosojio, II, Giordono Bruno, Turim, 1 960; Paul-Henri Michel, Lo Cosmologie de Giordono Bruno, Paris, 1962 . 5 8 Muitas vezes simples acções judiciárias, como em relação a esse herético, Alonso Biandrato, refugiado em Saluzzo sob a protecção francesa e que o Papa quer que se lhe entregue. Cardeal de Rambouillet a Catarina de Mé dicis, Roma. 9 de Dezembro de 1568 , B. N., Fr. 17 989, f.º' 29 v.0 a 30 v . 0 , cópia. 59 Filipe li ao príncipe de Aorença, Aranjuez, 2 de Junho de 1 568, Simancas, E.º 1447 ; Grande Comenda dor de Castela a Filipe li, Cartagena, 10 de Junho de 1 568 , Simancas, E.º 1 50, r. 0• 18 e 19; D. João de Áustria a Filipe l i , Cartagena, 10 de Junho de 1568, ibid., f.0 17 . 60 E. Schãfer, op. cit., I, pp. 134- 136 . 61 lbid., 1 , pp. 34- 36 . 62 Relacion de cartas de J . de Vargas Mexia para S. M., 29 de Dezembro de 1 578, 21 de Janeiro de 1 579, A. N., K 1552, B 48, n.0 1 5. . 63 Marcel Bataillon, «Honneur et lnquisition, Michel Servet poursuivi par l' lnquisition espagnole», in Bu/ letin Hispanique, 1925 , pp. 5-17 .
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO irmão, Juan, desonra da sua família e de toda a Espanha64• Como falar então de Reforma espanhola? É mais ou menos como se se quisesse falar (as propor ções são as mesmas) de Reforma ragusana a propósito desse herético da cidade de Saint-Blaisse, Francisco Zacco, que, em 1 540, não quer acreditar nem no Inferno nem no Paraíso - ou dessas «tendências para o protestantismo» que segundo o continuador de Razzi, o historiador de Ragusa, se teriam manifestado em 1 57065 • Isto já não é medicina vulgar: mas homeopatia. Um historiador, Delio Cantimori 66 , pergunta-se se a história da Reforma italiana, estudada até aqui no seu pormenor biográfico, não se esclarecerá no dia em que, à imagem do que foi feito em França e na Alemanha, for recolocada no meio social que a viu germinar. Claro que há muito tempo Edgar Quinet67 fizera estas mesmas reflexões. Mas, a questão esclarece-se ainda melhor no plano cultural. A recusa da Itália perante a Reforma, análoga à da Espanha, não é, no sentido etnográfico, uma recusa de emprestar, um traço principal de civilização? Não é que a Itália fosse «pagã», como o descobriram tantos observadores superficiais, mas a seiva que sobe de Itália e das margens cristãs do Mediterrâneo às velhas árvores da catolicidade faz brotar as flores e os fru tos italianos. Não da Alemanha. Aquilo a que se chama a Contra-Reforma, é, se se pretender, a sua Reforma. Observou-se que os países do Midi eram, menos que os do Norte, atraidos pela leitura do Antigo Testamento68 e que dife rentemente deles não estavam submersos por essa espessa vaga de feitiçaria que ultrapassa a Alemanha até aos Alpes e até ao Norte da Espanha, com o fim do século xv169. Talvez por causa de um velho politeísmo subjacente, a Cristandade mediterrânica, nas suas próprias superstições, continua ligada ao culto dos santos. Será puro acaso se a devoção aos santos e à Virgem redobra aí de fervor no momento em que o ataque externo se torna vigoroso? Ver nisso alguma manobra de Roma ou dos Jesuítas é superficial . Em Espanha, é o Carmelo que propaga o culto de São José; por todo o lado, as associações populares do Rosário apoiam, exaltam o culto apaixonado da Mãe de Jesus. Como testemunho, esse herético napolitano, Giovanni Micro, que, em 1 564, declara rejeitar mil coisas, entre as quais os santos e as relíquias, mas continuar a acreditar na Virgem70 • No exacto momento em que a Espanha acaba de produzir santos rutilantes e combativos: São Jorge, São Jaime71 • E seguem-se outros: Santo Emí lio, São Sebastião e o santo camponês, Isidro, cujo culto chega até à Catalunha72 • 64 R. Konetzke, op. cit., p. 146; Marcel Bataillon, Érasme et /'Espagne, p. 55 1 . 65 Op. cit., p . 258 . 66 «Recenti studi intorno alia Riforma in ltalia ed i Riformatori italiani all'estero,
1924- 1934»,
1936, pp. 83 - 1 10. Edgar Quinet, Les Révolutions d'ltalie, Bruxelas, 1853 , p. 235 e segs. 68 Herbert Schofller, Abendland und Altes Testament, . • ed., Francoforte-do-Meno, 2 1943 . Enorme literatura sobre este assunto, e nomeadamente, G. Schnürer, op. cit., p. 266. E. Rodocanachi, op. cit., I, p. 24 . Gilberto Freyre, Casa Grande, op. cit., p. 298. 72 Ver supra, vol. I, p. 187 .
storica italiana,
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in Rivista
AS SOCIEDADES
A recusa foi portanto voluntária, categórica. Alguém disse que a Reforma «irrompera na teoria platónica e aristotélica da Idade Média, tal como os Ger manos bárbaros irromperam na civilização greco-romana»73 • Em todo o caso, o que restava do Império Romano nas margens do mar latino terá resistido bem melhor ao século XVI do que ao século v.
Sobrevive a civilização grega? A própria civilização grega não estava morta nessa época. A prova é que também ela se sentia capaz de «recusas» não menos categóricas e não menos dramáticas. Moribunda, ou antes, ameaçada de morte no século xv, tinha recu sado unir-se à Igreja Latina. No século XVI, o problema coloca-se de novo: a recusa não é menos enérgica. Infelizmente, conhecemos quase tão mal como a Turquia os países ortodoxos dessa época. Contudo, uma série de textos curio sos (encontrados em Veneza e publicados por Lamansky nessa colectânea tão cheia de coisas) espera ainda que algum historiador, depois de tantos anos, queira realçar-lhe o sentido. Esta série de textos esclarece a espantosa posição dos Gre gos do século XVI face à catolicidade romana74 •
Em 1570, um grego, fidalgo da Cândia e da Moreia, dirigia a Veneza vá rios longos relatórios. Oferecendo os seus serviços, explicava que tinha chegado para os países gregos a hora da revolta contra os turcos. Esta revolta só podia apoiar-se em países cristãos, nomeadamente em Veneza. Mas seria preciso pre viamente que a Cristandade compreendesse. Ora, ela nunca compreendeu. Quantas estúpidas vexações tiveram de sofrer os bispos gregos! O clero católico, nas possessões venezianas, sempre adoptou perante eles uma atitude de des prezo; e só procurou tirá-los do seu «erro», a maior parte das vezes pela violên cia, proibindo ou impondo determinado rito, pretendendo banir das igrejas a língua grega. . . Ora, em vez de se submeterem ao culto católico, os Gregos prefe riam entregar-se aos turcos. Aliás, foi o que fizeram. Contra os Venezianos, contra os corsários ponentinos, foram quase sempre aliados dos turcos. Por quê? Porque os turcos foram vulgarmente tolerantes, nunca procuraram fazer proselitismo, nunca perturbaram o exercício do culto ortodoxo. Regularmente, o clero grego encontrou-se assim nas fileiras dos adversários mais obstinados de Veneza e dos Ocidentais em geral. E os seus membros intervieram, de cada vez que uma revolta contra o senhor de Constantinopla se preparava, para acalmar os espíritos, explicar-lhes que desta calma dependia a sobrevivência do povo grego. Se hoje o estandarte da revolta está pronto a erguer-se - continua o nosso informador - é que depois de cerca de 1 570, uma vaga de intolerância começa a submergir os países turcos. Igrejas foram pilhadas, mosteiros queimados,
73 Julius Schmidhauser, Der Kampf um das geistige Reich, 1933, citado por Jean- Édouard Spenlé, La pensée allemande de Luther à Nietzsche, 1934, p. 1 3 , nota 1. 74 Especialmente o longo relatório de Gregorio Malaxa, V. Lamansky, op. cit., p. 83 e segs.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO padres molestados75 . . . Chegou o momento de Veneza agir, mas só tem uma hipótese de êxito: entender-se com os metropolitas, dar-lhes as certezas de que o clero católico receberá ordens para não inquietar em nada, no futuro, o clero grego. O correspondente de Veneza oferece-se aliás para trav·ar estas conversa ções, mas insiste em saber se Veneza está verdadeiramente pronta a manter as suas promessas. Neste caso, o êxito parece-lhe garantido . Ora, basta ler, sempre n a colectânea d e Lamansky, o s documentos relati vos aos numerosos incidentes verificados na Cândia ou em Chipre por padres ou monges venezianos zelosos, para acreditar na realidade das queixas da Igreja grega. Explicam-se os conluios, as «traições» criticadas aos Candiotas e outros Gregos do Arquipélago. Há outras explicações evidentemente: o marinheiro grego que, desembarcado de um barco turco, vai a terra ver a sua familia, saberá por ela de todos os pormenores possíveis sobre a frota veneziana que acaba de passar ou sobre o corsário ponentino que, na véspera, ali ancorara; mesmo se esse barco turco fosse de piratas e o porto de escala uma possessão veneziana (como é muitas vezes o caso). Mas a razão essencial é a hostilidade que separa a civilização ortodoxa da latina.
Permanências e fronteiras culturais Na verdade, para além das mudanças que alteram ou perturbam as civili zações, revelam-se espantosas permanências . Os homens, os indivíduos, podem traí-las: as civilizações nem por isso deixam de viver a sua própria vida, agarrada a determinados pontos fixos, quase inalteráveis. Pensando no obstáculo da montanha, J. Cvijié declara que ela se opõe «menos à penetração étnica do que aos movimentos que resultam da actividade humana e às correntes de civilização»76 • Interpretada e talvez modificada, esta ideia parece justa. Ao homem, todas as escaladas, todas as transferências são permitidas . Nada pode travá-lo, a ele e aos seus bens, materiais ou espirituais, que ele transporta, quando está só e quando actua em seu nome. Se se trata de um grupo, de uma massa social, a deslocação torna-se difícil. Uma civilização não se desloca com a totalidade das suas bagagens. Ao atravessar a fronteira, o indivíduo expatria-se. «Trai», abandona atrás de si a sua civilização. É que de facto esta está agarrada a um espaço determinado, que é uma das indispensáveis componentes da sua realidade. Antes de ser esta unidade nas manifestações da arte, no que Nietzsche via a sua principal verdade (talvez por que com a sua época, fazia da palavra um sinónimo de qualidade), uma civilização é, na base, um espaço trabalhado, organizado pelos homens e pela história. É por isso que existem limites culturais, espaços culturais de uma extraordi nária perenidade: todos os cruzamentos do mundo nada podem fazer em relação a isso. 75 lbid., p .
87 .
76 La Péninsu/e ba/kanique, p. 27.
1 32
AS SOCIEDADES O Mediterrâneo encontra-se portanto segmentado por fronteiras culturais, fronteiras principais e fronteiras secundárias, cicatrizes que não saram e desem penham o seu papel. Na massa dos Balcãs, J. Cvijié distingue três zonas culturais77 • Em Espanha, quem não seria sensível ao contraste vivo dum lado e doutro do paralelo de Toledo, onde se encontra o verdadeiro coração entrecru zado da Península? No Norte é a Espanha dura dos pequenos camponeses semi-independentes e dos nobres encerrados nas suas cidades de província e, para o Sul, a colónia de exploração, a única Espanha que vulgarmente se quer ver, aquela onde o Cristão encontrou, com uma agricultura engenhosa, vastas pro priedades organizadas, uma massa de fellahs laboriosos, mil heranças que de modo nenhum destruiu. Mas há espectáculos maiores, nas margens e no coração do Mediterrâneo. Uma charneira essencial do mundo mediterrânico continua a ser o antigo limite europeu de Roma, o Reno e o Danúbio onde o avanço católico encontrará, no século XVI, o seu limite forte: novos limes que os Jesuítas reocuparão com os seus colégios e as suas igrejas de cúpulas em colchete. A ruptura entre Roma e a Reforma deu-se precisamente ao longo desta antiga cicatriz. É o que confere, mais ainda do que as querelas de Estados, o seu carácter «solene»78 à fronteira do Reno. A França do século XVI, compreendida entre essa linha avançada de Roma e a linha dos Pirenéus que o avanço protestante atinge em limite, a França despedaçada entre os dois partidos terá, uma vez mais, sofrido o destino da sua posição geográfica. Mas, a cicatriz mais espantosa dos países mediterrânicos está, entre Oriente e Ocidente, para além das barreiras marítimas de que já se tratou, nessa imutá vel barreira que desliza entre Zagreb e Belgrado, se inicia no Adriático em Ales sio (Ljes), na embocadura do Dreno e na articulação das costas dálmata e albanesa79 e, que pelas antigas cidades de Naissus, Remesiana e Ratiara, vai até ao Danúbio80 • Todo o bloco dinárico foi latinizado, desde as planícies panonia nas apanhadas pela parte ocidental do Império e sobre as quais desembocam os grandes vales das regiões altas8 1 até às franjas litorais e insulares viradas para a Itália. «A última família que falou um dialecto latino na ilha de Veglia» (sem pre as ilhas ! ) apagou-se no primeiro decénio do século xx82 • Na Croácia, ainda hoje, misturada com muitas outras heranças, perpetua-se uma arte de viver que continua a ser à moda de Itália83 • De uma Itália muito antiga, sem dúvida.
77 Jbid., as zonas mediterrânica ou italiana, grega ou bizantina, patriarcal. Cf. as críticas não pertinentes aliás de R. Busch-Zantner, op. cit., pp. 38- 39. 78 A afirmação é de Mme. de Stael. 79 A. Philippson, «Das byzantinische Reich», ar/. cit., p. 445 . 80 Konstantin Jirecek, Die Romanen in den Stiidten Dalmatiens, 1902, p. A. Philippson, cf. acima nota 79. 82 J . Cvij ié, op. cit., p. 89. 83 H. Hochholzer. « Bo�nien u. Herzegovira», art. cit., p. 5 7 .
8t
9.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
Um exemplo de fronteira secundária: a Ifriqya Um exemplo menos ilustre, o de uma subdivisão cultural, merece a nossa atenção. Porque, não o esqueçamos, as três grandes civilizações mediterrâni cas·, Latinidade, Islão, mundo grego, são de facto agrupamentos de subciviliza ções, justaposição de casas autónomas, ainda que ligadas por um destino comum. Na África do Norte não há casa mais nitidamente delimitada do que o velho país urbano da antiga África, a lfriqya dos Árabes, a actual Tunísia. A natureza preparou o alojamento. Ao Norte e a Leste, as terras baixas tunisinas são costeadas pelo mar; para o Sul, amplamente aberto sobre o Sara, prolonga as suas paisagens de artemisa e de esparto, acolhe também as popula ções nómadas, pastoris e desordenadas que as cidades tentam conquistar como podem. A Oeste, o enquadramento físico é característico: acima das planícies secas e quentes da Tunísia surge uma série de relevos ásperos e hostis84 , coli nas, altos planaltos, maciços e também montanhas que conduzem à antiga Numídia, ao frio Constantinês85 actual que nos evoca, com um pouco de imagina ção, o centro da Sicília, a parte montanhosa da Andaluzia ou o interior da Sardenha. A charneira montanhosa, entre a Tunísia e o Magrebe central situa-se, grosso modo, ao longo de uma linha que parte do cabo Takuch, passando pelo ouecP> el Kebir, o oued Cherif, Ain Beida, o Djebe�7 Tafrent e Guentia. Charles Monchicourt deleitou-se em mostrar as mudanças dum lado e do outro desta ampla articulação : a Oeste, as cegonhas, os freixos, os olmos, os telhados de grandes telhas escuras sob um céu severo de montanha; além, para Leste, os telhados em forma de terraço, os zimbórios brancos das qoubbas, anúncio dessa fraternidade que liga as cidades da Tunísia às cidades do Oriente, Cairo ou Bei rute. «Kairouan não passa de um vasto cubo branco. . . , antítese de Constantina», e que é ainda, em mais de um aspecto, uma grande aldeia chaouia88 , com as casas rústicas e sem cor89 • O que a história mostra é que a Ifriqya, hoje como ontem, sempre encontrou aí o seu fim, a fronteira ocidental, um pouco mais aquém ou um pouco mais além dos obstáculos que às vezes detêm e às vezes deixam filtrar, mas sempre perturbam os imperialismos da sua planície feliz e atraente90 • Este denso e rústico país esbarra para o Oeste com a refinada civilização da Tunísia. O mercado de Constantina91 que, no século XVI, descia em direcção à R4 A. E. Mitard, «Considérations sur la subdivision morphologique de l' Algérie orientale», in 3' Congres de la fedération des Sociétés Savantes de /'Afrique du Nord, pp. 5 6 1-570. 85 Sobre o Constantinês, R. Brunschvig, op. cit., l, p. 290 e segs. 86 Oued - curso de água (N. da T.). 87 Djebel - montanha. (N. da T.). 88 Planície de Marrocos, na região de Casabranca (N. da T.). 89 Tectos rústicos e terraços das casas, o contraste existe também no Sul da Espanha atrás de Almeria e de Al pujarra. Mas como explicá-lo? Julio Caro Baroja, Los Moriscos dei Reino de Granada, Madrid, 1 95 7 . 90 Revue africaine, 193 8 , pp. 5 6-57 . 91 Léon l' Africain, e d . d e 1 830, l i , p. 1 . 1
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AS SOCIEDADES Tunísia, encontrava, ao mesmo tempo que as brancas casas com terraços e as cidades que brilhavam sob o sol, um país rico, bem ligado ao Oriente, comer ciando regularmente com Alexandria e Constantinopla; um país relativamente civilizado onde a língua árabe reinava como senhora nas cidades e nos campos. Na mesma época, o Magrebe central, até Tlemcen (cidade marroquina e sariana ao mesmo tempo) é uma região espantosamente inculta. Argel esten deu-se sobre um país onde a civilização ainda não tinha levedado, um país novo, povoado de cameleiros, de pastores de ovelhas, de cabreiros. Pelo con trário, o Levante tem velhas tradições. O rei de Tunes, Mouley Hacen, um dos últimos Hafsidas que, destronado pelo seu filho, cego por ele, vem refugiar-se na Sicília e em Nápoles, em 1540, deixou em todos aqueles que o conheceram a recordação de um príncipe cheio de distinção, com o gosto pelas coisas belas, amador de perfumes e de filosofia: um «averroísta»92 , diz-nos Bandello93 seu contemporâneo. Um príncipe filósofo? Em vão procuraremos outro no Magrebe central, mesmo em Argel, cidade de novos ricos e de rústicos . . . É certo que o horror que Tunes testemunhará aos Turcos, nela instalados a título provisório em 1534, depois em 1569, finalmente, a título decisivo, a partir de 1574, é a revolta de uma velha cidade, piedosa e civilizada, contra os bárbaros. Que concluir daqui, senão que a primeira realidade de uma civilização é o espaço que lhe impõe o seu avanço vegetal e, por vezes com rigor, seus limites? As civilizações são espaços, zonas e não só no sentido em que o pretendem os etnógrafos quando nos falam da zona do machado de dois gumes ou da flecha emplumada; espaços que pressionam os homens, e que são interminavelmente trabalhados por ele. Na verdade, o exemplo da «Tunísia» será outra coisa senão a oposição de um complexo de planícies a um complexo montanhoso de sinal oposto?
Lentidão das trocas e das transferências A força de resistência de civilizações ligadas ao solo explica a excepcional lentidão de certos movimentos. Só se transformam depois de longos prazos, de caminhadas insensíveis, apesar de aparentes roturas. Chegam-lhes luzes de astros longínquos e com as etapas, pausas de uma duração inverosímil. Como da China ao Mediterrâneo e do Mediterrâneo à China, ou da Índia e da Pérsia para o mar Interior. Quem dirá o tempo que foi necessário aos números indianos, ditos árabes, para virem da sua pátria de origem até ao Mediterrâneo Ocidental, passando pela Síria e pelas etapas do mundo árabe, África do Norte ou Espanha94 ?
92 Averróis (Abu al-Walid ibn Ruchddito), médico e filósofo árabe ( 1 1 26- 1 1 98) comentador de Aristóteles (N. da T.J. 9J M. Bandello. op. cit .• IX, p. 48. 94 Lucien Febvre. la réligion de Rabelai.s. 1942, 2 . ' ed., 1947, p. 423.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO Quem dirá o tempo que em seguida precisaram para triunfar sobre os números romanos considerados mais difíceis de falsificar? Em 1299, a Arte di Calimala proibia o seu emprego em Florença; ainda em 1520, os «novos números» eram proibidos em Friburgo; em Antuérpia só entram em uso nos finais do sé culo xv195• Quem dirá da viagem dos apólogos, oriundos das Índias ou da Pérsia, retomados mais tarde pela fábula grega e pela fábula latina onde La Fontaine irá buscar temas - e que ainda hoje florescem, como numa perene Primavera, na Mauritânia atlântica? Quem dirá o tempo, os séculos necessários para que o sino, nascido na China, se tome cristão, no século VII, até se instalar nas torres das lgrejas96? A julgar por alguns, teria sido preciso esperar que os campaná rios passassem eles mesmos da Ásia Menor para o Ocidente. A caminhada do papel não é menos longa. Inventado na China em 105 d . C. , sob a forma de um papel vegetal97 , o segredo do seu fabrico teria sido revelado em Samarcanda, em 75 1 , por chineses feitos prisioneiros. Depois do que os Árabes teriam substi tuído os panos por plantas e o papel de pano teria começado a sua carreira em Bagdad a partir de 79498 • Daí, teria alcançado lentamente o resto do mundo muçulmano. No século XI, a sua presença era assinalada na Arábia99 e em Espanha, mas a primeira fábrica de Xativa (hoje San Felipe em Valência) não seria anterior a meados do século xu100• No século XI, era conhecido na Grécia 101 , e, cerca de 1 350, suplantava o pergaminho no Ocidente 102 • Já assinalei, depois de G. 1. Bratianu 103 , que as bruscas transformações do vestuário, em França, cerca de 1340, a substituição ao vestuário flutuante das cruzadas dos fatos de gibão curto e apertado dos homens, completado por meias justas e as pontas alongadas das polainas, todas estas novidades vindas da Catalunha como a barbicha e o bigode à espanhola do Trecento, são origi nárias na realidade de muito mais longe ainda: do Oriente que era frequentado pelos Catalães e, pelo Oriente dos Búlgaros, até mesmo dos Siberianos; enquanto o vestuário feminino, nomeadamente os adereços com toucas, provêm da corte dos Lusignan de Chipre, mas, para além, através do espaço e do tempo, da China dos T'ang . . . O tempo: foram precisas inverosímeis quantidades para que tais viagens se realizassem e que em seguida as novidades se implantassem, dessem raízes e caules . . . As velhas cepas continuam pelo contrário espantosamente sólidas e resistentes. Quando E.-F. Gautier, contra os especialistas 1 04, defende que na África do Norte e em Espanha, o Islão reencontrou as bases púnicas antigas e J . Kulischer, op. cir .• li. p. 297. cit., p. 339. 97 Friedrich C. A . J. Hirth, Chinesische Studien, Munique, t. I,
95
96 Gal Brémond, op. 98
1 890, p. 266.
Datas diferentes, G . Marçais, Histoire Générale de G/otz, Moyen  ge, t. I l i , Chimie e/ industrie, Agosto de 1940. 100 Berthold Bretholz, Latein. Palaeographie, Munique, 1912 , 3 . ' ed . , 1926 , p. 101 Cf. acima nota 99 . 102 lbid. 103 Études byzantines, 938, p. 269 e segs. 1 104 Ch. André Julien, Histoire de l'Afrique du Nord, 1. • ed., pp. 32 - 327. 0
99
136
1944, 16 .
p.
365 .
AS SOCIEDADES que esta primeira civilização preparou o terreno para o avanço muçulmano continua, na minha opinião, dentro dos limites autorizados da hipótese. Não existem por todo o lado antigos vestígios, antigos ressurgimentos culturais, no Mediterrâneo e em redor do Mediterrâneo? À irradiação antiga das metrópoles religiosas da primeira cristandade, em Alexandria ou em Antioquia, correspon dem ainda no século XVI as cristandades da Abissínia e as dos Nestorianos . . . N a África do Norte, em Gafsa, o latim d e África é ainda falado no século XII, segundo Edrisi. É apenas em 1 1 59, com a perseguição de Abdalmu'min, que desaparecem as últimas Cristandades autóctones da África do Norte 1 05 • Em 1 1 59, ou seja, com quatro ou cinco séculos de atraso sobre a conquista muçul mana. Mas nesta mesma África do Norte, lbn Khaldoun assinalava ainda «idó latras» no século XIv 1 06. E a investigação etnográfica, realizada por Jean Ser vier na Cabília (1962) no vale do Soummam e outros lugares, põe imediatamente em causa, a um milénio de distância, a tardia chegada do Islão trazido aí não «pela cavalgada guerreira de Oqba mas, cerca de dois séculos mais tarde, no século IX, pelos Fatímidas Chiitas estabelecidos em Bugia, um Islão espirituali zado pelo Irão, enriquecido por correntes iniciáticas e que devia necessariamente encontrar de novo o simbolismo místico das tradições populares» 107 • Mais ainda, esse livro actual, de uma poderosa realidade concreta, abre-se sobre a imensa perspectiva destas tradições populares, sobre essa religião de base, em vigor há séculos e séculos e sempre viva. Não há padres: cada chefe de família, «cada dona de casa» tem «o poder de realizar os ritos . . . que fortalecem em terra o grupo humano de que estão encarregados» 108 • Antes de tudo: uma religião dos mortos, dos santos protectores; «Santo Agostinho exclamando: 'Não está a nossa África toda semeada dos corpos dos Santos Mártires? ' , já reconhecia a existência desses túmulos brancos, imutáveis guardiões dos desfiladeiros e das montanhas e que mais tarde se deviam tornar os Santos reconhecidos do Islão magrebino» 109 • Desde o cimo do observatório da história, a vista alcança, deve alcançar muito longe, até às regiões da noite da história, e mesmo para além. Será preciso confessar que um historiador do século XVI considera que a nova revista de proto-história, Chthonia1 1 0 , preocupada, entre outras tarefas, com o estudo dos longínquos substratos mediterrânicos, alpinos e nórdicos, e atenta em assinalar arcaicos ressurgimentos no culto dos mortos - interessa à sua época?
A civilização é também um passado longínquo, muito longínquo, que se obstina em viver e em impor-se sobre o habitat e as práticas agrárias do homem na mesma medida que o relevo, o solo, as reservas de água ou o clima - coisas evidentemente importantes. Isto é o que estabelece o admirável livro de um geá1 05 Robert Brunschwig, op. cit., 1 , p.
1 05 .
106 Gal Brémond, op. ci1., p. 372, nota 1 .
107 Jean Servier, op. ci/., p . 17. 108 Op. ci1 . , p. 2 1 . Op. cit., p. 20. 1 10 Primeiro número, Julho de 1963, Editorial Herder, Barcelona.
109
1 37
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO grafo sobre a Provença. Para Robert Livet, apaixonado por «uma genética geográfica», onde a história ocupa lugar primordial, o característico habitat da Provença alcandorado numa altura, tão inadequadamente considerado pelas explicações convencionais, especialmente pela teoria do emprazamento defensivo, está irrefutavelmente ligada a uma civilização do rochedo (como ele a baptiza de passagem) cujas bases e tradições remontariam «às velhas civilizações medi terrânicas que precederam a instalação romana.» Estaria adormecida no tempo de Roma, acordaria em seguida e estaria viva no início do século XVI onde tantas reviravoltas afectam o povoamento provençal 1 1 1 • Eis-nos longe do sé culo XVI, mas não fora da sua realidade. Como concluir? Negativamente, sem dúvida, proibindo-nos de repetir, depois de tantos outros e a qualquer propósito que «as civilizações são mortais». São-no nas flores, nas suas criações momentâneas, as mais complicadas, nas suas vitórias económicas, nas suas provas sociais, a curto prazo. Mas as bases permanecem . Não são de modo algum indestrutíveis; pelo menos são mil vezes mais sólidas do que se julga. Resistiram a mil mortes sobrepostas. Mantêm as suas massas imóveis sob a passagem monótona dos séculos.
2.
Recuperação de civilizações
Se se pretende voltar a uma história relativamente curta, precipitada, e contudo importante, mais à dimensão do homem, não há melhor encontro do que os conflitos violentos de civilização com civilização vizinha, da vitoriosa (ou que assim se julga) com a subjugada (que sonha em deixar de o ser). Não faltaram no Mediterrâneo do século XVI: o Islão, na pessoa dos seus mandatá rios, os Turcos, apoderou-se das Cristandades dos Balcãs. A Oeste, a Espanha dos Reis Católicos apoderou-se, com Granada, do último reduto do Islão ibérico. O que vão fazer destas conquistas uns e outros? A Leste, os Turcos manterão muitas vezes os Balcãs com alguns homens, como os Ingleses, ainda há pouco, mantinham as Índias. A Oeste, os Espanhóis esmagarão os seus súbditos muçulmanos sem piedade. Nisto, uns e outros obe decem mais do que parece aos imperativos das suas civilizações: uma, a cristã, demasiado povoada; a outra, a turca, insuficientemente provida de homens.
Os Turcos nas planícies do Leste balcânico O Islão turco recupera, nos Balcãs, a superfície ocupada directamente ou indirectamente pela civilização bizantina. Ao Norte, domina o Danúbio, a Oeste, toca por um lado os confins latinos, em Ragusa, na Dalmácia, ou em redor
1 1 1 Op. cit . , p . 22 1 .
1 38
AS SOCIEDADES de Zagreb na Croácia; por outro, estende-se sobre vastos cantões montanhosos de civilização patriarcal, para retomar uma das expressões de J. Cvijié. Ampla mente exibida no espaço, chamada a durar meio milénio, pode pensar-se em mais ampla, mais rica experiência co/onian Por infelicidade, o passado turco continua ainda a ser insuficientemente conhecido. Os historiadores ou geógrafos balcânicos, para o avaliarem, nem sempre se deixam guiar por preocupações puramente científicas. Mesmo um J. Cvijié. E se as histórias gerais de Hammer e de Zinkeisen estão fora de moda, a de N. larga é confusa. Por outro lado, um descrédito gratuito é lançado sobre os séculos do auge turco, como até há pouco, em Espanha, sobre a dominação muçulmana. Eis o que em nada nos auxilia a ver claro num mundo (porque é um mundo) que, pelo menos, nos despatria. Contudo, é impossível subestimar a força da experiência turca, ignorar o que ela introduziu no conjunto balcânico, cheio por ela de bens de todas as proveniências 1 12 • Este movimento, estas cores da Ásia, tão nítidas através dos Balcãs, é ao Islão turco que se devem. Propagou os bens que ele mesmo recebia do longínquo Oriente. Por ele, cidades e campos foram profundamente orien talizados. Não deixa de ter importância que em Ragusa, ilha católica (e sabe-se com que ardente catolicismo), as mulheres, no século XVI , ainda usem véus no rosto e sejam sequestradas, que o namorado não veja a namorada antes do casamento 1 1 3 • Os viajantes ocidentais que desembarcavam no estreito promon tório sentiam-no imediatamente: começava aí um outro mundo. Mas o Turco que punha o pé nos Balcãs não tinha, também ele, a mesma impressão? De facto, ao estudar a acção dos Turcos, é preciso distinguir duas zonas nos Balcãs. A primeira diz respeito a um Ocidente eslavo, barrado de monta nhas, e um sul grego igualmente montanhoso; a sua ocupação efectiva continua a ser dispersa. Nos países dináricos, conseguiu-se defender (e o facto não parece inexacto) que os próprios Muçulmanos não eram Turcos de sangue turco, mas eslavos islamizados 1 1 4 • Em suma, todo este bloco ocidental dos Balcãs não parece ter sido fortemente refeito pela civilização islâmica. Não nos admirare mos com isso dado que se trata de um bloco montanhoso, pouco acessível às invasões «civilizadoras», viessem elas de onde viessem. Quanto à sua islamização religiosa, sabe-se o que se deve pensar de certas «conversões» montanhesas 1 1 5 •
Pelo contrário, a Leste, nas amplas planícies da Trácia, da Romélia e da Bulgária, os Turcos instalaram muitos homens e desenrolaram em camadas espessas a sua própria civilização. Estes países, do Danúbio à Egeia, são regiões abertas, ao Norte como ao Sul, por onde, nos dois sentidos, os invasores não terão deixado de avançar. Se o esforço turco pode ser julgado - como êxito ou como fracasso - é nessas terras que, tanto quanto possível, fez suas. 1 12 1 1 .1 1 14 1 15
R . Busch-Zantner, op. ci1., passim e nomeadamente p. 22; Üllo Maull, LJa, i1y. op. cit., 1 6 1 7 , p . 637. J. Cvijil:, op. cit., p. 1 05; H . Hochholzer, ar/. cit. Ver supra, vol. 1 , p. 45 e segs.
Südeuropa,
p. 39 1 .
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1. Mouriscos e cristãos em Valência em 1609
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Segundo T. Halpcrin Donghi, «Os Mouriscos do reino de Valência», Annales E.S.C. , Abril -Junho de 1 956. O pormenor do mapa é a continuação da descrição do território valenciano para norte. O grande interesse deste mapa excepcional é mostrar a extraordinária mistura das duas populações. Tudo isto num ascenso quase geral da população, como mostra o mapa seguinte, sobre a evolução da população, de 1 565 a 1609.
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li. Evolução da população em Valência de 1565 a 1609
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO Encontrou uma massa tornada homogénea, apesar de fabricada com gru pos étnicos de origens diversas. Os últimos invasores, Búlgaros, Petchenegas e Kumans, vindos do Norte, juntaram-se aí aos Trácios, Eslavos, Gregos, Aro munas, Arménios, há mais tempo estabelecidos. Mas, todos estes elementos se tinham fundido bastante bem, tendo a passagem à religião ortodoxa sido mui tas vezes a etapa decisiva da assimilação, para os recém-chegados: não será de espantar, nesta zona onde Bizâncio, também ela, irradiou tão fortemente. Todo este espaço está formado por planícies, grandes planícies submetidas às leis de servidão próprias das terras planas. Só os maciços do Rodope e a cadeia dos Balcãs, sobretudo a Srednja Gora, preservam aí ilhotas de vida montanhesa independente, a dos Balkandjis, ainda hoje povo de migrantes e de viajantes, um dos mais originais da Bulgária 1 1 6 • Ao abrigo destes relevos, nos países de Kustendil e de Kratovo, alguns senhores búlgaros refugiaram-se no momento da conquista turca, para escapa rem à escravatura dos seus congéneres das planícies, acabando aliás por conse guirem, contra tributo, manterem os seus antigos privilégios 1 17 • Excepção minúscula à regra geral: porque a conquista turca submeteu os países baixos, des truiu o que podia salvaguardar uma comunidade búlgara, matando ou depor tando para a Ásia os nobres, incendiando as igrejas, mergulhando quase ime diatamente na própria carne deste povo camponês o sistema do Sipahinik, da sua nobreza de serviço, em breve transformada em aristocracia rural . . . Esta viveu abastadamente sobre o dorso desse animal paciente e laborioso, apto a tudo suportar que é o camponês búlgaro, o tipo exacto de homem das planicies, escravo dos grandes, disciplinado, embrutecido pelo trabalho, preocupado com os alimentos, tal como os seus compatriotas nos descrevem Baba Ganje, o servo francês 1 18 búlgaro. Aleko Konstantinov concedeu-lhe a qualidade de ser gros seiro e «brutal até à moela». «Os Búlgaros - afirma - comem verozmente, só se ocupam com aquilo que absorvem. Não se incomodariam se trezentos cães se matassem entre si a seu lado. O suor que lhes cai da testa ameaça cair nos seus pratos» 1 19 • Em 1917, um correspondente de guerra fazia disto um retrato ainda menos aliciante: «São excelentes soldados, disciplinados, muito bravos, mas sem temeridade, obstinados, mas sem entusiasmo. É o único exército que não sabe canções de marcha. Os homens avançam, carrancudos, silenciosos, duros ao sofrimento, indiferentes, cruéis, sem violência e vencedores sem alegria; não cantam. Na sua estrutura geral, na maneira de se comportarem, nota-se imedia tamente algo de espesso, de pesado, de entorpecido. Dir-se-ia homens inacaba dos . Não têm o ar por assim dizer de terem sido feitos individualmente, mas por grosso, por batalhões. Lentos de compreensão, são laboriosos, pacientes no t:� fon,:o, apaixonados pelo lucro, muito económicos . . . » 120 • 1 1 6 J . C vijié, op. cit . , p. 121 . Sakazov, op. cit . , p. 1 92. l l 8 No original Jacques Bonhomme (N. d a T.). 1 1 9 Baba Ganje, p. 4 , citado por J. Cvijié, op. cit . , p. 2 1 20 Citado por J . Cvijié, op. cit., p . 487. 1 1 7 1.
1 42
48 1 .
AS SOCIEDADES Poder-se-iam multiplicar estas citações tendenciosas e acrescentar a estes esboços injustos, indo junto dos povos das montanhas do Oeste à procura de ditos humorísticos sobre o camponês das terras baixas. Porque a Oeste, zomba-se dele: desprezo do guerreiro livre por esse camponês pesado, vestido de pano grosso, os pés bem enfiados na sua terra e sempre habituado a caminhar ombro a ombro. Um homem a quem sempre foram proibidos o individualismo, a fan tasia, o gosto da vida livre . . . Ao Norte, a planície romena teria caído na mesma servidão se não tivesse existido, para a preservar do Turco, o seu afastamento e para a manter alerta, as incursões dos nómadas tártaros; e sobretudo, para fazer levedar a massa, o fermento da emigração das vastas montanhas cárpatas e transilvânicas. É certo que em país búlgaro, a conquista turca nem sequer teve de curvar estes camponeses, já submetidos, prontos a obedecer. E a continuar a sua lavra. Porque a continuam, os viajantes dos séculos XVI e xvn descrevem os paí ses búlgaros como países ricos 12 1 • Paolo Giorgiu, em 1 595, afirma que este é o celeiro de trigo da Turquia 1 22 • Contudo, as rapinas dos bandidos, mais cruéis aqui do que em outro lado, as exacções dos senhores e do Estado, e, não, evi dentemente, a inércia, mas a pobreza do camponês, a sua ferramenta rudimen tar (lavra com a pequena charrua de madeira, o rolo), deixam entre as culturas grandes desertos. Só as explorações externas utilizam as charruas grandes. Nes tas terras, segundo os casos, uma extensiva criação de gado ou culturas de trigo verde e de trigo seco. O arroz, chegado com os Turcos no século xv, teve êxito nos territórios de Philippopoli e de Tatar Pazardzik, mais modestamente no cantão de Caribrod. A produção búlgara do século XVI está avaliada em cerca de três mil toneladas. O sézamo, introduzido na planície da Maritza e o algo dão nas regiões de Andrinopla, de Kustendil e na Macedónia, em redor de Seres, são contribuições turcas do século XVI 1 23 • A estas variedades de culturas, acrescentam-se algum vinho de má qualidade, legumes nas cercanias das cidades 124 , cânhamo, rosas, pomares em redor de Uskub . . . Finalmente, outras duas culturas novas, o tabaco e o milho, estão quase a fazer a sua aparição - a qual não pode datar-se com precisão. A maior parte destas culturas enquadra-se em largas explorações. Organi zadas à turca (em tschiftliks, a mais dura para o homem das formas rurais bal cânicas), estão ligadas à deformação da grande propriedade turca. Seguiram-se, em relação à população rural, algumas vicissitudes e deslocações para os inte riores das planícies, deslocações que serão anuladas quando, no século XIX, essa grande propriedade abandonar a presa 1 25 • Sobretudo, seguiu-se uma domi-
1 21 122
1844 ,
l,
1. Sakazov. op. cil. • p . 1 97 . Antoine Juchereau de Saint-Denis. Histoire de / 'Empire u11umu11, deµuis 1 792 jusqu'e11 1844, p.
l 24
36 .
4
vol.,
de Beaujour, Tab/eau du commerce de la Gréce, 1800, I, p. 54 e seg>. Segundo Besolt, viajante do século xv1 . que 1. Sakazov cita, op. cit .• p. 202 .
123 F.
1 25 J. Cvijié, op. cit., p.
1 72 .
143
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO nação absoluta do Turco, apoiado numa administração que a proximidade da capital tornava ainda mais firme. A par desta sociedade rural enraizada, fortemente mantida, parece que alguns grupos - Valascos e «Arbanassi» entre outros - que, nas terras incultas, levam uma vida pastoril e agrícola seminómada, em aldeias provisórias de construções ligeiras, muito diferentes das aldeias fixas dos Eslavos 126 - parece ria que estes grupos gozavam de uma certa independência. Mas, muitas vezes, a Ásia junta-os sob a forma de nómadas que se misturam a eles ou os acompa nham. O caso mais claro é dos Yurukas que, franqueando os estreitos, vêm periodicamente ocupar os amplos e poderosos pastos de Rodopo: conquistaram ao Islão esses estranhos Pomacos, pobres Búlgaros islamizados , que a grande corrente do nomadismo asiático enrolou nas suas ondas . . . A Ásia parece assim nada ter poupado d o país búlgaro, por a í ter colocado o pesado pé dos seus homens, dos seus camelos, submergindo (com o auxílio de alguns cúmplices, sobretudo os usurários, os corbazi de sinistra reputação, denunciadores se a ocasião se apresentasse) um povo que, pelo seu sangue, as suas origens, a sua própria terra estava pior defendido do que qualquer outro. Ainda hoje, na Bulgária, a impregnação de uma civilização exótica, de perfumes poderosos, continua a ser visível. Ainda hoje, as suas cidades dizem de novo qual foi esta maceração: cidades de Oriente, de longas ruelas rodeadas de paredes cegas, com o seu inevitável bazar de lojas estreitas, fechadas por persianas de madeira: sobre a persiana rebaixada, o mercador agachado espera os seus clientes, perto do seu mangai, a lareira indispensável nestes países bati dos pelos grandes ventos de neve do Norte e do Leste . . . Nestas lojinhas, no século XVI, um povo de pequenos artesãos trabalhava para as caravanas, ferrado res, marceneiros, fabricantes de albardas, correeiros. À frente das portas, em redor das fontes sob os choupos, camelos e cavalos esperavam, nos dias de feira, na variedade dos vestuários, das mercadorias e dos homens: Turcos, senhores de tschiftliks que vieram por um instante às suas terras, Gregos do Phanar em rota para os países danubianos, vendedores de especiarias ou caravaneiros aromonos, mercadores ciganos de cavalos em que ninguém pode ter confiança. . . Viver, para o povo búlgaro, era submeter-se a estas invasões. E todavia, o Búlgaro conservou o essencial, dado que continuou a ser ele mesmo. Sejam quais forem as influências durante esta longa coabitação, não se dissolveu de modo algum na massa turca e salvaguardou o que o preservava desta dissolu ção: a sua religião e a sua língua, garantias de ressurreição futura. Agarrado ao seu solo, obstinou-se em conservá-lo, continuando nas melhores regiões da sua terra negra. Quando o camponês turco se instalou perto dele, vindo da Ásia Menor, foi obrigado a contentar-se com as encostas de bosques ou com as par tes pantanosas, rodeadas de salgueiros, no fundo das bacias, com o único solo
126 R. Busch-Zantner, op. cit., p. 59; J. Burckhardt, «Die thrakische Niederung und ihre anthropog�ogra phische Stellung zwischen Orient und Okzident», in Geogr. Am:., 1930 , p. 241 .
144
AS CIVILIZAÇÕES que o raia deixava desocupado 1 27• Suprimido o Turco, não se encontrou de novo o Búlgaro autêntico, o mesmo camponês que, cinco séculos antes, falava a mesma língua, rezava nas mesmas igrejas, cultivava as mesmas terras, sob o mesmo céu?
O Islão mourisco Na outra extremidade do Mediterrâneo, os Espanhóis estão também em conflito com um povo inassimilável e levam a coisa para o trágico. Poucos pro blemas terão deixado uma marca tão profunda como este na Península. O seu nome indica-o: o problema mourisco é um conflito de religiões, por outras palavras, no sentido mais profundo, um conflito de civilizações, difícil de resolver, chamado a perdurar. Por Mouriscos, entendem-se os descendentes dos Muçulmanos de Espanha convertidos ao cristianismo; em 1 501 nos países de Castela, em 1 526 nos da coroa de Aragão. Alternadamente maltratados, endoutrinados, favorecidos, sempre temidos, serão finalmente corridos durante as grandes expulsões dos anos 1609-1614. Estudar o problema é o mesmo que esclarecer, depois da tomada de Gra nada em 1492, a longa sobrevivência, ou melhor, o lento naufrágio do Islão ibérico. Deste naufrágio, muitas coisas ficarão ao de cima, mesmo depois da data fatídica de 1 609 128 .
Problemas mouriscos Não há apenas um problema mourisco mas vários. Tantos como sociedades e civilizações em vias de perdição, não se encontré!IldO nenhuma destas no mesmo ponto de usura e de decadência: a cronologia da Reconquista e da conver são explica-o previamente. A Espanha muçulmana, no tempo da sua maior extensão, só manteve sob o seu domínio uma parte da Península: as costas mediterrânicas, a Andaluzia, o vale do Tejo, o vale do Ebro, o Sul e o centro de Portugal. Desprezou as regiões pobres de Castela-a-Velha e não tocou, pelo menos de maneira durável, nem nos Pirenéus nem, para o Oeste, nos seus prolongamentos cantábricos. Durante muito tempo, a Reconquista ter-se-á desenvolvido no quas�-deserto de Castela -a-Velha onde o Cristão, para erigir as suas cidades vigilantes e guerreiras,
127
Herbert Wilhebny, Hochbulgarien, Kiel, 1935; R. Busch-Zantner, op. cit., p. 28; Wolfgang Stubenrauch, Zur Kulturgeogr. des Deli Orman, Berlim, 1933. Desde a primeira edição de O Mediterr8neo foram publicados estudos decisivos sobre o problema mou risco: Tulio Halpérin Donghi, Un corif/icto nacional: Moriscos y Christianos viejos en Valencia, Buenos Aires, 1955; «Recouvrements de civilisations: les Marisques du Royaume de Valence au xv1• siecle», in Annales E.S.C.� 1956; Henri Lapeyre, Géographie de /'Espagne Morisque, 1959, resolve o dificil problema estatístico da expulsão dos Mouriscos; a obra já citada de Julio Caro Baroja, Los Moriscos deiReino de Granada, é uma obra-prima, um
128
dos mais belos livros de história e de antropologia culturais que eu conheço.
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO teve que adquirir e construir tudo. Somente no século XI, já vitorioso, começa a fazer mossa na parte viva do Islão ibérico: a tomada de Toledo (1085) abre-lhe esse mundo invejado. E, no entanto, Toledo não passa, para o Islão, de uma vanguarda no coração continental da Península. Foi com lentidão que os reinos cristãos tomaram posse dos vales povoados de Aragão, de Valência, de Múrcia, de Andaluzia. Saragoça é tomada em 1 1 1 8, Córdova em 1236, Valência em 1238, Sevilha em 1248, Granada apenas em 1492. Séculos separam as etapas sucessivas da Reconquista. Esta, antes de 1085, instalou portanto no vazio as suas populações cristãs, enquanto depois desta data, incorpora em si terras povoadas defellahs, muçul manos ou cristãos, e de citadinos mais ou menos islamizados. A passagem dá-se então de uma colonização de povoamento para uma colonização de exploração e, imediatamente, colocou-se, com as suas mil variantes, o problema das com plexas relações entre vencedores e vencidos e, depois, entre civilizações opostas. Não tendo o debate começado no mesmo instante nas diversas partes dessa Espanha muçulmana retomada pelo Cristão, os problemas no século XVI não são aí de uma mesma e única forma. É portanto uma série de casos diversos que a Espanha oferece. Casos aliás inseparáveis uns dos outros e que se esclarecem se forem aproximados. As suas diferenças são outras tantas explicações. Assim, os Mouros de Granada foram convertidos em 1499 por ordem governamental. O cardeal Cis neros decidiu-se a isso contra a opinião das autoridades locais, rompendo a promessa dos Reis Católicos que, em 1492, aquando da capitulação da cidade, lhe tinham assegurado a sua liberdade religiosa. O acto, preparado com a cum plicidade de alguns convertidos, foi precedido e acompanhado por amplas manifest s, incluindo o auto-de-fé de numerosos Corões e manuscritos árabes . . . O resultado foi o levantamento de Albarracim, a cidade indígena de Granada, depois uma revolta, que levou tempo a sufocar, na Sierra Vermeja. Em 1502, extinta com algumas dificuldades esta revolta, os Mouros tiveram de se converter ou exilar. Não há dúvidas, apesar das defesas e dos relatos oficiais, de que os Reis Católicos, que se disseram surpreendidos, estiveram de acordo com o arcebispo de Toledo: a sua responsabilidade é a responsabilidade deles 129 • As conversões forçadas começavam em Espanha. A medida tomada em Granada foi aplicada a toda a Castela. Mas, notemos, não tinha de modo algum o mesmo sentido dirigindo-se aos Granadinos, conquistados na véspera, ou aos poucos Mouros de Castela, aos Mudejares, que, há muito tempo, viviam no meio dos Cristãos e tinham até aí exercido livremente o seu cÚlto. Nos países de Aragão (Aragão, Catalunha e Valência), foi ainda outra coisa completamente diferente. A conversão foi mais tardia e igualmente apres-
aÇõe
129
Contrariamente ao que dizem H. Hefele ou F. de Retana . . . Testemunho retrospectivo, mas categórico no nosso sentido, o de Diego Hurtado Mendoza, De la guerra de Granada, ed. de Manuel Gómcz·Moreno, Madrid, 1948, p. 8 e segs. ; J. Caro Baroja de quem se admirará o tom, op. cit., p. S e segs.
146
AS CIVILJZAÇÔES sada, mas foi ordenada pelo Estado . Foram os Cristão Velhos, entre os quais os Mouros se encontravam disseminados, que, durante a crise dos Germanias em 1525-1 526, baptizaram à força, em massa, os seus compatriotas muçulma nos. Estes baptismos forçados eram ou não válidos? Discutiu-se o assunto e até mesmo em Roma onde, notemo-lo, as soluções de compromisso tiveram mais adeptos do que em Espanha 1 30 • Em 1 526, Carlos V, solicitado a dar a sua opi nião, decidiu-se a favor da conversão, para seguir o exemplo de Granada e ao mesmo tempo para dar graças a Deus pela sua vitória de Pavia 1 31 • Mas o seu pa pel tinha aqui sido mínimo . É certo que Granada e Valência, essas duas vertentes da Espanha (aqui a aragonesa, ali a castelhana), não se tornaram «cristãs» (e como se dirá em seguida mouriscas) nas mesmas condições. E isto distingue pelo menos duas zonas de problemas mouriscos.
Uma geografia da Espanha mourisca Observando o assunto um pouco mais de perto, há outras distinções e outras wnas, conforme os Mouriscos são aí mais ou menos numerosos, estão mais ou menos enquadrados e há mais ou menos tempo empenhados na civili zação dos vencedores. Na Biscaia, em Navarra, nas Astúrias, o Mourisco não é um personagem desconhecido: artesão ou mercador ambulante, e até mesmo revendedor de pólvora de arcabuz 132, não é certamente numeroso, apesar do vale de Navarra do Ebro ser uma excepção com os seus descendentes de Moros. Em Castela, o seu número é mais importante e parece aumentar à medida que se caminha para o Sul. Cada cidade tem os seus 133 • No final do século xv, um via jante, o Doutor Hieronymus Münzer, nota que em Madrid, uma cidade que não é «maior do que Biberach» , há duas morerias, dois guetos muçulmanos 1 34 • A proporção é maior em Toledo e, para além de Toledo, na Andaluzia buliçosa de Mouriscos, camponeses ou proletários ao serviço das grandes cidades. Em Aragão propriamente dito, estão, como artesãos, alojados nas aglomerações urbanas (em Saragoça trabalham o coiro, fabricam armas de pólvora 135) e, mais numerosos ainda, na região alta 136 entre o Ebro e os Pirenéus, formam activas comunidades agrícolas e pastoris 137 • Alguns grandes senhores detêm, nos seus lugares de moriscos, a maior parte daqueles que ficaram no cultivo da terra: tal como o conde de Fuentes em Exca, uma das regiões mais agitadas do Ara130 Ainda em 160'J. aemente VIII opôs-se à expulsão dos Mouriscos e ao zelo do santo arcebispo de Valência, Juan de Ribera, G. Schnürer, op. cit., p. 196. I l i R . Konetzke, op. cit., p. 57 . 1 32 Gobiemo de Vizcaya, II, p. 357 . Em 1 582 , evocam-se contra ele leis raciais (ibid., II, p. 223) e, em 1 585, em nome dos exclusivos previstos pelo fuero, ibid., p. 309 ; exclusivos postos em prática também em 1 572 na vizi nha Navarra, Antonio Chavier, Fueros de Navarra, 1 686, p. 142 . 1 33 Simancas, Patronato Real, IS de Agosto de 1 543 , para Arevalo e Medina dei Campo. l l4 Citado por L. Pfandl, Philippe II, Madrid, pp. 310-3 1 , habet duas morerias cum Saracenis plenas. 1 1 3S I. de Asso, op. cit., pp. 219-22 . 0 Cabrera, citado por R. Menendez Pidal, op. cit., l, p. 122. ll7 No total, 20 "lo da população aragonesa, H. Lape)'Te, op. cit., p. 96.
ll6
147
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO gão mourisco, ou o Conde de Aranda em Almonezil ou o duque de Aranda em Torellas 1 38 • • • Na Catalunha, pelo contrário, poucos ou nenhuns Mouriscos, até mesmo nenhum rasto da Ibéria muçulmana. A velha Catalunha viveu à margem do Islão que só tocou nos seus territórios no Sul, por alturas de Tarragona e do Ebro. E em 15 16, expulsou os Mouriscos que se encontravam em Tortosa 139 • É milagre se, daqui e dali, a Inquisição de Barcelona é chamada a julgar um deles 1 40• Mais para o Sul, a terra valenciana é um domínio colonial típico, tomado a cargo no século XIII pelos senhores de Aragão e os mercadores catalães, e que desde então se verá agitada por mil movimentos, mil imigrações sucessivas. Henri Lapeyre 1 4 1 vê a situação de Valência através do exemplo da Argélia, antes de Março de 1962. As proporções não são as mesmas, mas as duas popula ções estão imbricadas uma na outra como o mostram os mapas decisivos de Tulio Halperin Donghi 1 42 • As características gerais da distribuição geográfica são bastante claras: as cidades são essencialmente cristãs, os Mouriscos ocupam em reduzido número os seus arredores; as regiões de regadío, de irrigação, são sobretudo cristãs, salvo em redor de Javita e de Gandía; as regiões de secano, salvo alguns maciços, dependem pelo contrário dos Mouriscos. São deles as terras pobres da região alta. «Não é pois de admirar se as duas principais rebeliões se tenham dado em região montanhosa, em 1 526 na Sierra de Espadán, em 1609 na região de Mucla de Cortes na margem direita do Júcar e no vale de Laguar, ao Sul de Gandía . . . » 1 43 • Em 1 609, os Mouriscos representam mais ou menos um terço da popula ção valenciana total, 3 1 715 fogos contra 65 016 de Cristãos «velhos» 144, mas estes têm posições dominantes e controlam totalmente Valência e a sua fértil
huerta.
Tudo isto é evidentemente fruto dos séculos anteriores, de uma longa evo lução. A sociedade vencida, sempre viva, mas reduzida a levar uma magra exis tência, apresenta-se aí como um tecido usado, muitas vezes despedaçado. Não há aristocracia, não há elite muçulmana, de facto, acima da massa proletária dos vencidos; e portanto não há resistência na ocasião sabiamente orquestrada. Por todo o lado, na cidade, nos campos, o Mourisco é mantido pela sociedade vitoriosa. Os defensores dos fellahs são os seus próprios senhores 1 45 • Mantêm
E. 0
1 38 Apuntamientos dei Virrey de Aragon sobre prevenciones de aquel reyno contra los Moriscos, Simancas,
33 5 ,
s. d. (cerca de Março de
1 575).
139 Geof!,rajia General de Catalunya, op. cit., p.
.
343 140 Cf. contudo, A . H . N. Inquisição de Barcelona, Libro I, f. º 2 1 , 20 de Dezembro de 1 543 . 141 H . Lapeyre, op. cit., p. 27. 142 Cf. pp. 1 40 e Í 41 . 1 4 3 H . Lapeyre, op. cit., p. 26. 144 lbid., p. 30.
145 Sobre este assunto, inumeráveis provas, como Castagna em Alessandrino, Madrid, 15 de Março de 1 569.
L. Serrano, op. cit., III, p. 5, os Mouriscos «sono favoriti da tutti li sgnori di quel paese perche da loro cavano quasi tutta l'entrata che hanno . . . », a propósito de Valência e do Maestre de Montesa.
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AS C/VILIZAÇÔES os moriscos como mais tarde nos Estados Unidos, os colonos sulistas, os seus escravos. Mas, a par deles, fruto de vários séculos de vitória cristã, um proleta riado de Cristãos Velhos está instalado, fanático e duro, rural tanto como urbano, e que evoca muito bem, se se pretende continuar a comparação, os pobres Brancos do Sul dos Estados Unidos. Aquilo que Valência deve ter sido no século XIII, Granada evoca-o no XVI. Granada onde a vitória cristã é muito recente, adquirida em detrimento de um país rico, traído mais ainda pela sua falta de artilharia do que pelas suas eviden tes fraquezas internas 1 46• A sociedade muçulmana não está aí inalterada - era preciso que a conquista não tivesse originado pilhagens imediatas - mas é ainda reconhecível, num país dominado e disciplinado pelo homem, cultivado até aos seus mais elevados terraços, rico de Vegas' de uma espantosa fertilidade, oásis tropicais no meio de terras já semiafricanas. Senhores cristãos instalaram-se nas terras ricas, tal como esse Juan Enríquez147 , defensor dos Mouriscos, em 1568, que tem os seus bens na planície de Granada. Instalaram-se por todo o lado funcionários e eclesiásticos, uns e outros mais ou menos honestos, muitas vezes prevaricadores e gozando descaradamente das suas vantagens. Tudo o que se pôde dizer do «colonialismo», seja em que país for, seja em que época for, é estranhamente verdadeiro no reino reconquistado de Granada. Sobre este assunto, os próprios documentos oficiais falam uma linguagem clara. Como o licen ciado Hurtado 148 , que investigando em Alpujarra na Primavera de 1 56 1 , acha algum mérito na gente morisca, tão tranquila, enquanto há vinte anos, não houve na província nenhuma verdadeira justiça, mas apenas prevaricações, delitos, concussões, roubos sem número à sua custa. Se os verdadeiros culpados, que é preciso agarrar pelo pescoço, repetem à porfia que os Mouriscos são peri gosos, que acumulam víveres, farinha, trigo , armas, com a intenção de um belo dia se revoltarem, é unicamente para perdoar a sua imperdoável conduta, continua o investigador. Ter-se-á deixado iludir? Quando Granada se revolta no Natal de 1 568, o embaixador de Filipe II em França, Francés de Alava, sente a necessidade, como que para descarregar a sua consciência, de fazer revelações da mesma ordem. Em Outubro de 1 569, escreve longamente ao secretário Çayas 149 e pre cisa-lhe, desde as primeiras linhas que, esteve, durante esses últimos doze anos, sete ou oito vezes em Granada, que conhece as respectivas autoridades respon sáveis, civis, militares e religiosas. Então, que razões teríamos para não acredi tar nele? Que razões teria ele para correr em socorro de pobres diabos de quem se encontra, na época, muito afastado - que razões, senão a de dar a conhecer a verdade?
146 1 47 148 149
J. e. Baroja, op. cit., p. 2 e segs. passim. lbid., p. 1 54. Simancas, E. 0 328, o licenciado Hurtado a S. M., las Alpujarras, 29 de Junho de 1 56 1 . F. de Alava a Çayas, Tours, 29de 0utubro de 1 569, A. N., K 1 5 1 2, 8 24, n . º 138 b orig. dup. n.º 138 a.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO Os Mouriscos estão revoltados, afirma, mas são os Cristãos Velhos que os levam ao desespero, pela sua arrogância, os seus roubos, a insolência com que se apoderam das suas mulheres. Os próprios padres não procedem de outra maneira e eis uma anedota precisa: tendo toda uma aldeia mourisca protestado ao Arcebispado contra o seu pastor, tinham perguntado o motivo da queixa. Que no-lo tirem, exclamaram os administrados . . . Ou então «que o casem, porque todos os nossos filhos nascem com os olhos tão azuis como os seus.» O embai xador não se contenta com esta boa história que relata como estritamente verí dica e aliás de modo nenhum boa. Desolado, furioso, investigou ele mesmo. Pôde constatar as prevaricações dos pequenos funcionários, mesmo daqueles que, mouriscos de origem, nem por isso exploravam menos, tanto como os outros, os seus administrados. Entrou, em dias de festa, em igrejas para constatar como aí se preocupavam pouco em respeitar e em tornar respeitável a dignidade do culto. Viu, no momento da consagração, entre a elevação da hóstia e do cá lice, um padre virar-se para espiar se todo o seu mundo indígena, homens e mu lheres, estavam bem ajoelhados como convinha e lançar ignomínias às suas ovelhas - coisa tão «contrária ao serviço de Deus», nota Don Francés, que me temblavan las carnes, «que todo o meu corpo tremia». Rapinas, roubos, injustiças, homicídios, condenações maciças e abusivas: poder-se-ia sem dificuldade instruir o processo da Espanha cristã. Mas, estará ela minimamente consciente daquilo que se faz, muitas vezes obscuramente, em seu nome, ou pretensamente em seu nome, naquelas riquíssimas terras do Sul onde cada um chega à procura de algum ganho, benefício, terra, emprego; onde Fla mengos e Franceses nem sequer desdenham de vir instalar-se como artesãos, como o assinala em Granada, em 15721 50, um documento inquisitorial? Existe aqui uma física da história, uma lei inexorável do mais forte. Ao lado da cidade indígena 151 , separada dela desde 1498 152, cresce uma cidade oficial e cristã, perto de Alhambra onde reside o Capitão geral, na Universidade fundada em 1 537, na Chancelaria, criada em 1 505 , e já toda poderosa e agressiva em 1 540153 • • • Não esqueçamos, para compreender, não digo para julgar, que o Espanhol se encontra aí - como ontem o Francês em Argel, o Holandês em Bata via ou o Inglês em Calcutá - no coração de um empreendimento colonial, num maelstrom 1 54 de civilizações opostas, cujas águas agitadas recusam misturar-se. Em face deste colonialismo espanhol nem sempre hábil, ergue-se uma sociedade indigena ainda coerente, tendo (o que não oferece, ou já não oferece Valência) uma classe dirigente, os ricos de Albarracim, massa de notáveis de vestuário de seda, prudentes, secretos, reinando sobre um povo de horticulto res, estes criadores de bichos-da-seda, camponeses engenhosos na arte de cavar ISO A. H. N. Inquisição de Granada,
de
1 573. 151 1 52 153 1 54
1 50
2602, 20 de Março, 28 de Maio, 17 de Julho de 1 572; 7 de Setembro
Sobre o aspecto «colonial» de Granada, Pedro de Medina, op. cit., p. J . e. Baroja, op. cit., p. 1 3 . lbid., p. 1 42 . Maelstrom = turbilhão (N. da T.).
159 v . º
AS C/VIL/ZAÇÔES os regos de água fertilizante, ou de manter os muros das culturas em terraço; reinando também sobre um povo de arreeiros, de pequenos mercadores e de revendedores, de artesãos tecelões, tintureiros, sapateiros, pedreiros, soldadores muitas vezes em concorrência com artesãos vindos do Norte, uns e outros com os seus métodos e os seus princípios. Todos eles pobres, todos eles gente humilde vestida com roupa de algodão. Que os nobres de Albarracim não sejam de uma coragem à prova de tudo, o futuro demonstrá-lo-á de maneira brilhante. Têm medo de se comprometer, de perder os seus carmenes, as suas casas de campo. Além disso, uma parte da aristocracia granadina, ou pelo menos os seus representantes mais ilustres, abandonou a Espanha pouco depois da queda de Granada. Contudo, esta classe dirigente conservou os seus quadros, as suas tradições, o gosto desmedido também pelas linhagens, as grandes famílias e a revolta de 1568 verá renascer querelas de clãs análogas às que tinham preci pitado a queda de Granada. Esta aristocracia sobrevivente viu crescer a seu lado e acima dela uma aris tocracia cristã de fresca importação, ricamente dotada (aliás tão amplamente como em Valência), utilizando descaradamente os seus camponeses mouriscos, sóbrios, tanto mais que são fáceis de explorar. Julga-se que um Mourisco con some menos de metade do que um Cristão. E os provérbios não deixam qual quer dúvida: quien tiene Moro, tiene oro; a más Moros, más ganancias, a más Moros, más despojos, aos seus senhores o Mouro deixa o ouro, ganhos, despojos 1 55 . . . O s senhores cristãos são o s protectores dos camponeses mouriscos, reco nheceu-se-lhes mesmo durante muito tempo o direito de asilo nas suas terras, para os delinquentes das terras vizinhas. Depois, o Estado, desejoso de estabe lecer a ordem, suprimiu esse direito e limitou a alguns dias o asilo das igrejas. Além disso, declaradamente desde 1540, mas já antes desta data, os letrados da A udiencia de Granada tentam diminuir os direitos da grande nobreza e do seu chefe, o Capitão Geral do Reino, por outras palavras, a grande família dos Mendoza. Então, esboça-se um governo civil apoiado nas cidades cristãs e na população imigrada para Granada, contra o governo militar e senhorial dos Mendoza. Esta crise política e social não abre só por si o drama da guerra, mas agrava as tensões e a confusão. Na mesma ocasião, o governo de Filipe II, à procura de recursos fiscais, pôs de novo em causa, desde 1559 pelo menos, os títulos de propriedade. Finalmente, em Granada como em Valência, a popula ção aumenta; com as dificuldades económicas a ajudar, o banditismo faz o seu aparecimento, os bandoleiros - os monfiés -, não encontrando mais refúgio em casa dos senhores ou nas igrejas, vão para a alta montanha e dai se escapam para fazer incursões de pilhagem, de conivência com os gandules, seus cúmpli ces urbanos, ou com os corsários berberescos ou turcos 156 . . . Em 1 569, alguns
ISS
lbid., p. 23.
1 56 Jbid., p. 1 66.
151
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO meses depois do início da revolta, a seguir à expedição punitiva do marquês de Mondejar contra os Alpujarras, tudo podia ainda arranjar-se por intermédio, urna vez mais, dos nobres. Julio Caro Baroja di-lo formalmente no seu belo livro e tem razão1 57 • Mas o problema teria sido resolvido por isso? Além disso, as civilizações são mais exigentes que as sociedades, e as suas cóleras, cruéis e intransigentes, são duradoiras. Ora, são estes rostos terríveis do ódio, da cruel dade e da incompreensão que é preciso tentar aperceber, sem se demorar dema siado nas vicissitudes de urna guerra de que teremos ocasião de voltar a falar 158 •
O drama de Granada Qualquer guerra «colonial» implica o conflito de civilizações, a intrusão de paixões violentas, insidiosas, cegas. Qualquer cálculo sensato desaparece, tanto mais que a política espanhola está talvez demasiado favorecida desde 1 502 em Granada, desde 1 526 em Valência, desde sempre em Aragão. Sem a mínima dificuldade, dividiu os seus inimigos, impediu as agitações ao passar de urna região para a região vizinha. Nunca teve de se enfrentar com mais de urna questão mourisca de cada vez: a de Granada em 1499-1502, a de Valência em 1 525-1 526, e de novo, ainda que brevemente, em 1 563 159 , a de Aragão em 1 575 160 (mas o perigo nunca foi sério), a de Castela em 1 580161 , a de Granada ei:n 1 5841 62 , ainda a de Valência em 1 609 163 , de Castela em 16 10, de Aragão em 1614. O governo espanhol vigia assim de perto as fronteiras externas , tenta encerrá-las aos Mouriscos fugitivos do lado dos Pirenéus ou do lado do Mediter râneo. Esta vigilância não impede as evasões, mas torna-as mais difíceis, corno ao longo das costas de Valência, depois de 1 550 1 64 • • • Estes são gestos e práticas sensatas, sob o signo da sensatez política e da experiência. Tal corno é sensatez ouvir os senhores de camponeses mouriscos no Conselho de Guerra que de bom grado os acolhe 165 , como no Conselho de Estado. Não é a Espanha mantida, em terra mourisca como em outros lados, por intermédio da alta nobreza? Contudo, estas regras de bom governo são transgredidas no momento de perigo. Não se seguirão os conselhos, em 1 568, depois em 1 569, do marquês de Mondejar, mas as paixões do cardeal Espinosa, de Don Pedro de Deza, o Presi dente fanático da A udiencia de Granada, um e outro representantes dos letra-
157 lbid., p. 193 e segs. 1 58 Infra, p. 431 e segs. 1S9 Manuel Danvila y Collado, «Desarme de los Moriscos en 1 563», in Boletin de la Real Academia de la Historia, X, 1887 , pp. 275-306. 160 Simancas, E.º 335 . 16 1 6 de Julho de 1 580, A. E. Espanha, f.º 333 , proibição aos Mouriscos de Castela de entrarem em Portugal. Lapeyre, op. cit., p. 1 27. 1 63 /bid., p. 162 e segs. Ibid., p. 29. 165 J. e. Baroja, op. cit., p. 154.
162 H. 164
1 52
AS C/V/LIZAÇÔES dos, desses bonetes que irão pouco a pouco, se os deixarem, impor a sua lei à Espanha. O cardeal teimoso, resoluto en lo que no era de su profesion, diz um
cronista 1 66, decidido naquilo que não era o seu ofício, evidentemente, o das armas. Na verdade, não se fez tudo para que a explosão se desse, e em primeiro lugar em Madrid, pouco acreditando nisso previamente? Há mais de quarenta anos que os Mouriscos estão tranquilos, desde as Germanias de 1526. A Prag mática que vai atear o rastilho está suspensa desde 17 de Novembro de 1566, promulgada a l de Janeiro de 1567 e durante mais de dois anos discutir-se-á a seu respeito deixando aos Mouriscos e aos seus defensores a impressão de que continua possível um compromisso e que se conseguiria em rigor uma prorroga ção em troca de uma dávida substancial. Ora, o que os conselheiros de Filipe II decidiram no papel, é nem mais nem menos do que a condenação sem apelo de uma civilização inteira, de toda uma arte de viver: são proibidos os vestuários mouriscos cios homens e das mulheres (estas deverão renunciar ao véu na rua), o encerramento das casas, abrigos das cerimónias islâmicas clandestinas, a uti lização dos banhos públicos, finalmente, o emprego da língua árabe. Em suma, trata-se de perseguir aquilo que se suspeita viver ainda do Islão granadino. Ou antes, trata-se de o ameaçar, de lhe meter medo e como as discussões e as dúvi das se eternizam, o tempo é finalmente deixado aos que optam pela via da vio lência para conspirarem, prepararem a sua acção, como nos conciliábulos e nas buscas do Hospital e da Confraria da Ressurreição que os Mouriscos manti nham em Granada 167 • • •
Finalmente, na noite de Natal de 1568, os monfiés penetram em Albarra cim, tentam revoltá-la. Alhambra, em frente, não tem cinquenta defensores; ora, Alhambra não é atacada e a cidade indígena não se revolta . . . Para que a guerra se inicie será preciso que se misturem as paixões e as crueldades popula res, que se verifiquem os massacres dos Cristãos e dos seus padres em Alpujarras, as incursões em direcção à planície, depois essas caças ao homem em breve iniciadas dum lado e do outro . . . Começa então uma gigantesca orgia de san gue, indecisa nos seus movimentos, perdida num espaço imenso, selvagem, sem caminhos. Quando o Rei deu finalmente aos Cristãos Velhos o direito de pilha rem à sua vontade, concedendo-lhes o campo franco 1 68 , imediatamente relan çou a guerra, levou-a aos extremos . Pilhagens dos rebanhos, dos fardos de seda, dos tesouros escondidos, das jóias, caça aos escravos, eis a realidade quoti diana da guerra, com a pilhagem dos soldados e dos abastecedores do exército. Em Saldas, perto de Almeria, os Mouriscos vendem aos Berberescos os seus prisioneiros cristãos: «um homem em troca de uma escopeta» 169 ; em Granada, contudo, não se sabe o que fazer com os escravos mouriscos vendidos em leilão e a população cristã pensa lançar-se subitamente sobre a cidade indígena para a 166 lbid., p.
151 , a afirmação é de L. Cabrera de Córdova.
167 lbid., p. 169. 168 lbid., p. 1 96. 169 lbid., p. 1 88 .
153
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO pilhar de uma vez por todas 1 70 . . • Paixões, temores, pânicos, desconfianças, tudo se mistura. A Espanha cristã vitoriosa, mas não apaziguada, vive no terror de uma intervenção turca, cujo projecto foi aliás agitado em Istambul 1 7 1 . A Espa nha, tanto antes como depois de 1 568, não deixou nunca de sobrestimar a ameaça do Islão. Na sua tentativa de reconstruir um reino de Granada, os revoltados só res suscitaram um fantasma. Todavia, esta tentativa, as cerimónias da coroação do primeiro rei da rebelião, a construção de uma mesquita em Alpujarras, as profa nações das igrejas são importantes sob o ponto de vista que nos interessa . . . É exactamente uma civilização que tenta renascer, depois toma de novo a cair por terra. Com as vitórias dispendiosamente compradas de D. João de Áustria (subs tituindo no comando das tropas o marquês de Mondejar a 13 de Abril de 172), vencem as medidas radicais. As rendições em massa dos insurrectos • 569 tinham começado desde Abril de 1 570 . . . Praticamente, a guerra estava termi nada, a revolta apodrecida por dentro. Ora, desde o ano anterior, em Junho de 1 569, as expulsões tinham começado: três mil e quinhentos Mouriscos de Gra nada (entre dez e sessenta anos) tinham sido transportados da capital para a Mancha vizinha 1 73 • A 28 de Outubro de 1570 1 74 , era dada a ordem de expulsão de todos os Mouriscos; a 1 de Novembro os infelizes estavam reunidos em lon gos comboios e eram exilados para Castela, presos a cadeias de forçados. Assim, o que restava da revolta estava condenado, sem o socorro dessas popula ções aparentemente tranquilas, mas cúmplices dos soldados da rebelião e que asseguravam o seu abastecimento 175 . A revolta da região montanhosa já só com porta a partir de então algumas centenas de salteadores, travando uma pequena guerra, diz uma correspondência genovesa, a guisa di /adroni1 76 • Tudo parecia terminado, e de uma vez para sempre. Massas cerradas de imigrantes, gal/egos, asturianos, ou castelhanos, cerca de doze mil famílias de camponeses, atingem as aldeias desertas de Granada. Contudo, os despojos dos vencidos eram vendi dos em leilão aos senhores, aos mosteiros e às igrejas; o Rei retirou, diz-se, somas enormes. De facto, nada estava resolvido; a colonização camponesa iria terminar muito em breve por um fiasco 1 77 ; nem todos os Mouriscos tinham abandonado o infeliz reino; alguns voltaram aí e foi preciso, em 1584178 , proce der a novas expulsões, recomeçá-las em 1610179 •
170 lbid., p. 199. 171 Infra, p. 440. 1 72 lbid., p. 199. 1 73 H. Lapeyre, op. cit., p. 174 lbid.
122.
m A. d. S., Aorença, Mediceo 4903 , Nobili ao Príncipe, Madrid, 22 de Janeiro de 1 571 . A. d. S., Génova, Spagna . . . , Sauli à República d e Génova, Madrid, 1 1 d e Janeiro d e 157 1 ; há mais de dois mil e quinhentos «bandolieri». Lapeyre, op. cit., p. 122 e nota 4 . lbid., p. 1 27 . /bid., p. 162 e segs.
1 76
177 H. 178 1 79
154
AS C/VILIZAÇÔES Granada depois de Granada Tinha-se libertado Granada, mas para encher Castela, sobretudo Castela -a-Nova. Fechava-se um dossier para abrir um outro. Os refugiados granadi nos, instalados aqui e ali como outros tantos enxertos, não tardaram a proliferar 180 e a enriquecer. A tornarem-se de novo inquietantes. Não estavam eles condenados à riqueza dado exactamente o seu engenho, num país inundado de metais preciosos, povoado por demasiados «hidalgos» para quem traba lhar significava enfraquecer? Por volta de 1580-1590, portanto, em menos de vinte anos, a questão de Granada tornou-se curiosamente uma questão de Castela e de Andaluzia: o perigo apenas se aproximara do coração da Espanha. Não era tanto em relação a Granada, onde evidentemente ficaram Mouriscos, como em relação a Sevilha, Toledo ou Ávila, que havia receios e que se procuravam, de novo, soluções radicais. Durante o Verão de 1 580 descobriu-se em Sevilha uma vasta conspiração em ligação com Marrocos: seriam mesmo os embaixa dores do Xerife, então preocupado em apoiar-se na Espanha, que teriam reve lado tudo sobre o conluio 181 • Na Primavera de 1 588 começaram os distúrbios, desta vez em Aragão 182 • Originaram , em Julho, uma deliberação do Conselho de Estado 183 onde foi evocado o perigo que constituía para a Espanha essa pre sença de inimigos domésticos, em constante crescimento. Que Sua Majestade não recomece o erro de 1 568, em Granada; que ataque imediatamente. Ora, todo este alerta, era, na origem, o levantamento de algumas centenas de Mouriscos, na sequência de rixas com os Cristãos Velhos 1 84• Devia apaziguar-se muito em breve e o vice-rei de Nápoles acreditava tão pouco nisso pelo seu lado que não hesitava em declarar, em Maio, que isso eram boatos espalhados pela propaganda inglesa 185 • Era também talvez, além do sinal de um certo nervosismo, um pretexto. Porque, desde Novembro do mesmo ano, a Igreja de Espanha intervém mais uma vez. O seu intérprete, o cardeal de Toledo, preside ao Conselho de Estado e apoia-se nos relatórios do comissário da Inquisição em Toledo, Juan de Carillo 186• Parece que nesta cidade, onde a velha colónia de Mouriscos mudeja res foi reforçada, em 1 570, por uma colónia de Mouriscos granadinos, estes, os deportados, falam ainda árabe entre si, enquanto aqueles, escrivães públicos, mes tres da língua espanhola, procuram deslizar para os bons cargos. Entre uns e ou tros, são numerosos os que enriquecem no comércio. E, todos infiéis, nunca vão à
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Nas tems toledanas. são mil e quinhentos em 1570, mas treze mil em 1608, no dizer do cardeal de Toledo, J. C. Baroja, op. cit., p. 2 1 4. 1 8 1 A . d. S., Florença, Mediceo 491 1 , Bernardo Canigiani, embaixador do Grão-Duque, Madrid, 27 de Junho de 1580, acreditou em primeiro lugar numa fábula, depois veio a conflrmação por cartas de mercadores de Sevilha. Longlée ao Rei, Madrid, 5 de Março de 1588, Correspondance, p. 352. Simancas, E.º 165, f.º 347 . Consulta dei C.º de Est.0, 5 de Julho de 1588. Longlée ao Rei, 5 de Junho de 1588, p. 380. Simancas, E.º 1089, f.º 268. Miranda ao Rei, Nápoles, 6 de Maio de 1588. Sobre los moriscos, conselho de Estado, 1 4 de Novembro de 1 488 , Simancas, E.º 165, f.º 34 .
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO missa, não acompanham o Santo Sacramento na rua, só se confessam por medo das sanções. Casam entre si, escondem os filhos para não terem de os bapti zar, e, quando os baptizarn, arranjam como padrinhos os que chegarem primeiro à entrada da igreja. A extrema-unção nunca é pedida senão para os mori bundos incapazes de a receberem. E como os encarregados de vigiar e educar estes hereges não se ocupam deles, podem vagabundear à sua vontade. É dever do Conselho de Estado deliberar sobre o assunto o mais depressa possível. Assim se fez, terça-feira, 29 de Novembro de 1 588, sob proposta do car deal que desenvolveu os seus argumentos 187• Ficar-se-ia indiferente à inquie tante multiplicação dos Mouriscos em Castela, e especialmente em Toledo, o seu «alcazar e fortaleza>>, enquanto os Cristãos-Velhos, apanhados pelas «milícias», diminuíam substancialmente e, mal armados, se arriscavam um belo dia a serem surpreendidos? Pelo menos - o Conselho foi unânime sobre este ponto era preciso dar ordens aos Inquisidores para que investigassem nos seus locais e para que elaborassem um recenseamento dos Mouriscos. O medo entrava assim no coração da Espanha, o medo mau conselheiro. No ano seguinte, em 1 589, com as incursões inglesas, teme-se que os Mouris cos, numerosos em Sevilha, dêem apoio ao assaltante 188 • Em 1 596, em Valên cia, inquietar-se-ão com as mesmas conexões 189 • Esta presença do inimigo no centro da casa preocupa e vai inflectir a política espanhola: o inimigo está enquistado em pleno coração, diríamos nós franceses, no rim de Espanha, diria um espanhol castiço 190 • Em 1 589, o Conselho de Estado ainda só falava de recenseamento. Mas os acontecimentos sucedem depressa; no ano seguinte, o Rei é apanhado por propostas arrebatadas: que se obriguem os Mouriscos a servir um certo tempo nas galeras, contra soldo: isto pelo menos travaria o seu aumento; que se separem as crianças das famílias, para as confiar a senhores, a padres e a artesãos encarregados da sua educação; que se executem os mais perigosos; que se lancem os Granadinas instalados em Castela para o seu antigo bairro, retirando-os assim do famoso riflon , que sejam expulsos também das cidades para os campos 19 1 • Desde 5 de Maio, falava-se de expulsão pura e sim ples: os Reis Católicos tinham-no exactamente feito outrora em relação aos Judeus e tinham ai conquistado a sua santa fama192• Em espírito, os indesejáveis Mouriscos são condenados por todos os membros do Conselho sem excepção . Mas estas condenações vão gozar de uma prorrogação bastante longa. Sem dúvida porque a Espanha, empenhada nos Países Baixos, lutando contra a França, oposta à Inglaterra, tem outras tarefas além deste resolver de con tas internas. Não é a sua mansidão, mas a sua impotência, curiosa canse187 Los muchos nuevos christianos que ay por toda Castilla, Madrid,
E.º 165, f.º 348 . 1 88 1 89 190 19 1 192
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30 de Novembro de 1 588, Simancas,
A. d. S., Aorença, Mediceo 4 185, f.OS 1 7 1 a 1 75, relatório desconhecido. Marquês de Denia a Filipe II, Valência, 3 de Agosto de 1596, Simancas, E.º Madrid, 22 de Maio de 1590, Simancas, E.º 165. 22 de Maio de 1590, ver nota precedente. 5 de Maio de 1590, Simancas, E.º 165.
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AS CJVILIZAÇÔES quência da sua política imperialista, que salva os Mouriscos como a corda que sustém o enforcado. Em seu redor, a cólera e o ódio não deixam de aumentar. Um relatório dirigido ao Rei, em Fevereiro de 1 596 193 , ergue-se contra o deixa -andar da política governamental a respeito destes infiéis e assinala a sua imensa riqueza: são mais de vinte mil na Andaluzia e no reino de Toledo que pos suem rendimentos superiores a vinte mil ducados. Será isto tolerável? E denun ciar um tal Francisco Toledana, Mourisco de Toledo instalado em Madrid, o mais rico mercador de ferro da praça, o qual, por razões do seu negócio, trafi cava na Biscaia e em Vitória, aproveitando para comerciar em armas e arcabuzes. Por favor, deitem-lhe a mão e saibam quais são os seus clientes e cúmplices! Em 1599, as intermináveis discussões recomeçam no Conselho de Estado. Que o Rei se decida e que se decida sem tardar, eis a conclusão de todas as pro postas. Entre os signatários, continua a encontrar-se o cardeal de Toledo, mas também D. J. de Borja, D. J. de Idiáquez, o conde de Chinchón, Pedro de Guevara 194 • Na vasta massa de papéis que, em Simancas, diz respeito a estas deliberações, não se encontra qualquer defesa pró-mourisca 195 • O epílogo será a expulsão de 1609-1614. Para que se realizasse, foi preciso um conjunto de circunstâncias, o regresso à paz (1598, 1604, 1609) e a mobili zação silenciosa de toda a frota de guerra da Espanha, galeões e galeras 196, capaz de assegurar os embarques e a segurança da operação. Julio Caro Baroja pensa que as vitórias do Sultão de Marraquexe, na Primavera de 1609, sobre o «rei» de Fez levaram às decisões radicais, e o facto é verosímil 197 • Terminava assim por um fracasso â longa tentativa de assimilação do Islão ibérico, fracasso claramente sentido logo na ocasião. «Quem fará os nossos sapatos?», dizia o arcebispo de Valência na altura da expulsão da qual era contudo firme adepto. Quem cultivará as nossas terras?, pensavam os senhores dos lugares de Moriscos. A expulsão, sabia-se previamente, iria originar feri das graves. Os Diputados dei Reino de Aragão tinham-se aliás pronunciado contra ela. Em 1613-1614, Juan Bautista Lobana, que percorre este reino a fim de fazer o respectivo mapa, regista por várias vezes nas suas notas a desolação das aldeias abandonadas: em Longares, de mil habitantes ficaram 16; em Mie das, de setecentos ficaram oitenta; em Alfamen, de cento e vinte ficaram três; em Clanda, de trezentos ficaram cem 198 . . . Historiadores disseram e repetiram que todas as feridas se curam com o tempo. E é verdade1 99• Henri Lapeyre acaba de demonstrar que a expulsão englobou no máximo trezentos mil indiví193 Arquivo do ex·Govemo Geral da Argélia, Registo 1686, f.º 101 . 194 Consulta dei C. 0 de E. 0, 2 de Fevereiro de 1599, Simancas, E.º 165, f. º 356. Ver igualmente C. º de E.º ao Rei, 10 de Agosto de 1600, A. N . . K 1603 . 1 9S H. Lapeyre, op. cit. , p. 210, torna maleável esta opinião: «Isto é válido para o Mourisco endurecido que se recusava à civilização cristã, mas encontram-se aí numerosas defesas do Mourisco a que poderíamos chamar "bem pensante".» J. de Salazar, op. cit . . pp. 16-1 7 ; Gal Brémond, op. cit., p. 304. 197 J. C. Baroja, op. cit., p. 23 1 . 198 I. d e Asso, op. cit., p. 33 8. 1 99 E. J. Hamilton, American treasure. . . . pp. 04- 05. 3 3
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO duos numa população global de talvez oito milhões200• Mas isto é muito à escala do tempo e da Espanha, apesar de estarmos muito aquém dos números fan tásticos propostos no passado. Ao mesmo tempo, Henri Lapeyre201 pensa que foram graves os efeitos imediatos das feridas e que a descida demográfica do século XVII atrasou a cura. Todavia, o problema, dificil de resolver, não consiste em saber se a Espa nha pagou ou não um elevado preço pela expulsão e pela política violenta que ela implica, ou se teve razão (ou não) em proceder assim. Não se trata de retomar o processo à luz dos nossos sentimentos actuais: todos os historiadores são a favor dos Mouriscos evidentemente. . . Que a Espanha tenha procedido bem ou mal em privar-se da laboriosa e prolífera população mourisca, pouco importa! Por que o fez? Em primeiro lugar porque o Mourisco continuou a ser inassimilável. A Espa nha não agiu por ódio racial (o qual parece quase ausente nesta luta), mas por ódio de civilização, de religião. E a explosão do seu ódio, a expulsão, é a confissão da sua impotência. A prova de que o Mourisco, depois de um, dois, três séculos segundo os casos, continuou a ser o Mouro de outrora: vestuário, religião, língua, casas clausuradas, banhos mouros - tudo conservara. Tinha-se recusado à civilização ocidental; e isto é o essencial do debate. Algumas bri lhantes excepções, no plano religioso - ou esse facto inegável de que os Mou riscos das cidades adoptavam cada vez mais o vestuário dos vencedores202 em nada alteram o problema. O Mourisco continuou ligado de coração a um mundo imenso que se estendia, sabia-se em Espanha203 , até à Pérsia longínqua, com casas, costumes análogos e crenças idênticas. Todas as diatribes antimouriscas se resumem na declaração do cardeal de Toledo: são «verdadeiros Maometanos como os de Argel»204• E, sobre este ponto, pode criticar-se ao cardeal a sua intolerância, não a sua injustiça. Provam-no as próprias soluções que os membros do Conselho propõem. Não se trata de modo algum de destruir uma raça odiada: mas parece impossível conservar no coração da Espanha um irredutível núcleo do Islão. Não havia, pois, outro remédio senão arrancá-lo duma só vez, suprimindo o suporte de toda a civiliza ção: a matéria humana; foi a solução finalmente adoptada. Ou então, a todo o preço, conseguir a assimilação que o baptismo forçado não conseguiu realizar. Um propõe ficar-se apenas com as crianças, matéria maleável, e favorecer a partida dos adultos para a Berberia, desde que ela se faça sem alarido. O outro, o marquês de Denia, pensa que é preciso educar as crianças cristãmente, indo os homens de quinze a sessenta anos para sempre para as galeras, as mulheres e os velhos para a Berberia. Um terceiro opina que bastaria repartir os Mouriscos
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H. Lapeyre, op. cit., p. 204. 20 1 Ibid. , p. 7 1 e 2 1 2. J. e. Baroja, op. cit. , p. 1 27 . 203 Ibid. , p. 107 . 204 Simancas, E.º 165, li de Agosto de
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AS CIVILIZAÇÔES entre diversas povoações, à razão de uma família mourisca por cada cinquenta Cristãos Velhos, proibindo-lhes qualquer mudança de residência ou qualquer ocupação além da agricultura, já que a indústria, o transporte e o comércio ten diam a favorecer as deslocações e as relações com o exterior205 • De todas estas soluções, a Espanha escolheu a mais radical: a deportação, o arranque completo da planta para fora do seu solo. Mas, era toda a população mourisca que desaparecia da Espanha? Não, certamente. Em primeiro lugar, não era fácil, em determinados casos, distinguir entre Mouriscos e não Mouriscos. Os casamentos mistos eram muito numero sos para que o édito de expulsão tivesse tido isso em conta206• Depois, entra vam em jogo alguns interesses, que certamente salvaram um bom número dos que deveriam ter sido atingidos. Foram expulsos, na sua quase totalidade, os Mouriscos das cidades; numa proporção menor, os que povoavam os realen gos, as terras reais; e, com excepções ainda maiores, os Mouriscos das terras senhoriais, os montanheses, os camponeses isolados2º7 • • • Na maioria dos casos, o Mourisco continuou enquistado em Espanha, mas confundido entre a massa, ainda que deixando nela a sua marca indelével208 • A população cristã, até mesmo a sua aristocracia, não estava já marcada por esse sangue mouro? Os historiadores da América afirmam também, e em todos os tons, que o Mourisco teve a sua parte no povoamento da América20'J. Uma coisa é certa: a civilização muçulmana, apoiada nos próprios resíduos mouriscos e no que a Espanha tinha já absorvido do Islão durante séculos, não deixou de desempenhar o seu papel na complexa civilização da Península, mesmo depois da operação cirúrgica de 1 609- 16 14. Mas, á vaga de fundo não pôde arrastar tudo. Não pôde arrastar o que se encontrava já agarrado para sempre ao solo da Ibéria: os olhos negros dos Andaluzes, as mil toponímias árabes, os milhares de palavras que entraram para o vocabulário dos antigos vencidos, transformados em novos vencedores. Herança morta, dir-se-á; e pouco importa que as receitas culinárias21 0 , que os ofícios, que as funções de comando falem ainda do Islão na vida quotidiana de Espa-
20' 2 de Fevereiro de 1599, referência nota 193 , pàg. 157 .
206 Gal Bmnond, op. cit., p. 170.
207 «Seria tempo de terminar sobre este asmmto com as lamentações sentimentais de uma certa escola histórica,
sobre aquilo a que ela chama a odiosa e bárbara expulsilo dos Mouros de Espanha. O que deve espantar, é que se tenham resignado a suportar durante mais de cem anos, apesar da opinião do grande Ximenes, a presença de um milhão de Mouriscos em estado de conspiração pennanente no interior e no exterior . . . », Henri Delmas de Gram monl, Relations entre la France et la Régence d'Alger au xnie siecle, Argel, 1879, 1 . ' parte, em nota p. 2 e 3 . 208 Vejam como aí se enganam poucos viajantes, bons observadores. Le Play, 1833 , «existe sangue àrabe em toda essa gente», p. 123 ; Teófilo Gautier, Voyage en Espagne, pp. 219-220; Edgar Quinet, Vacances en Espagne, p. 196 e tantos outros. 209 Como Carlos Pereyra em relação à América espanhola. Em relação ao Brasil, Nicolas J. Dabarie, L 'in f/uence arabe dans la formation historique et la civi/isation du peuple brésilien, Cairo, 1 91 1 . E m relação a Portugal, essa Arte de Co:r;inha d e Domingos Rodriguez, 1652, que Gilberto Freyre cita, Casa Grande e Senzala, 1, 394, livro do qual retiràmos também as nossas rápidas observações a propósito do sé culo xvm. Persistência de uma arquitectura e de uma decoração «mouriscas» em Toledo, até ao século XVI e tal vez depois, Royal! Tyler, Spain, a Study of her Life and Arts, Londres, 1909, p. 505.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO nha ou de Portugal seu vizinho. E todavia, em pleno século XVIII, na época da preponderância francesa, mantém-se, na Península, uma arte viva, verdadeira arte mudejar, com os seus estuques, as suas cerâmicas e a doçura dos seus azu/ejos21 1 •
Supremacia do Ocidente Mas a questão mourisca não passa de um episódio de uin conflito mais vasto. No Mediterrâneo, a grande partida foi jogada entre Oriente e Ocidente, numa eterna «questão do Oriente», no essencial debate de civilizações, retomado conforme as vantagens que alternadamente o jogo dá a um, depois ao outro dos parceiros. As cartas boas passam de mão em mão e, conforme um ou outro ganha, estabelecem-se correntes culturais principais, do mais rico ao mais pobre, do Ocidente ao Oriente ou do Oriente ao Ocidente212 • A primeira alteração, em beneficio do Ocidente, é o feito de Alexandre da Macedónia: o helenismo representa uma primeira «europeização» do Próximo Oriente e do Egipto, que ficou para durar até aos séculos de Bizâncio213 • Com o fim do Império Romano e as grandes invasões do século v, o Ocidente e a antiga herança ficam arruinados; é o Oriente bizantino e muçulmano que conserva ou recolhe as suas riquezas e as projecta, durante séculos, para o Ocidente bár baro. Toda a nossa Idade Média está saturada, iluminada pelo Oriente, antes,
2 1 1 Sobre a questão mourisca, enonne documentação ainda inédita, em Simancas, como E. 0 2025 (Moriscos que pasaban a Francia, 1607-1609). Um transporte de refugiados mouriscos «com os seus rebanhos» numa barca marselhesa, A. das B. do Ródano, Almirantado B IX, 14, 24 de Maio de 1 6 1 0 . Um texto admirável, soterrado em Eugénio Larruga, Memorias polfticas y economicas, t. XVII, Madrid, 1792, pp. 1 1 5- 1 17. Mouriscos desteTTados regressaram a Espanha (1 6 13), sem mulheres, sem filhos . . . Apenas homens. Vão ser empregados nas minas de mercúrio de Almaden? Não, que se procure, entre os forçados das galés, especialistas do trabalho em minas e que a bordo sejam substituídos por essa gente vadia, mais culpada do que os forçados, «pues han sido de apostasia y crimen loesae Majestatis». Sobre os vestígios da civilização muçulmana, é preciso ver as razões calorosas, muitas vezes novas, de Julio Caro Baroja, op. cit., p. 758 e segs. Sobre as próprias expulsões dos Mouriscos e o enonne transporte que elas sig nificam, ver Henri Lapeyre, op. cit., passim. Este belo livro apenas retém um aspecto (estatístico) do problema, o qual deve ser recolocado em toda a história política, social, económica e internacional da Espanha. Aqui a tarefa está longe de chegar ao fim: « . . . A expulsão dos Mouriscos não parece ser o feito de um Estado em decadência», ibid., p. 2 1 3 , isto é possível, mas não está demonstrado. Do mesmo modo tiveram a sua parte a pressão demográ fica, ibid., p. 29 e segs., o ódio contra uma classe artesanal, mercantil e prolífica. Continuo, até melhor infonna ção, fiel à antiga explicação (supra, p. 1 57): a religião designou os que partiam . . . Publicado e m 1977, o livro d e Louis Cardaillac Marisques e t Chrétiens, u n ciffrontement po/émique (1492-1640) tem, para os estudos hispânicos, valor idêntico ao da monumental obra de Marcel Bataillon, Erasme et /'Espagne. Sobre o conflito, em terra espanhola, entre o Islão e a Cristandade, ele acrescenta ópticas novas de uma rara riqueza. Reter apenas, no sentido das explicações precedentes, esse encamiçarnento, essa progressiva superex citação entre as duas religiões é sublinhar a coexistência tensa das duas civilizações; o modo como se adaptam uma à outra, resmungando e sofrendo. Adaptação essa que, evidentemente, não decorre sob o signo da tolerância. Tudo tennina por uma explosão. 212 Alfred Hettner, art. cit., p. 202, ou as espantosas observações de André Malraux, La lutte avec /'Ange,
1945 .
21 3 Sobre este grande problema, o livro luminoso de E. F. Gautier, Moeurs et coutumes des Musulmans (reedição de 1955).
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AS CIVILIZAÇÔES durante e depois das Cruzadas. «As civilizações misturaram-se por meio dos seus exércitos; uma multidão de histórias, de relatos que falavam desses mun dos longínquos que entravam em circulação: a Lenda Dourada abunda nestes contos; a história de Santo Eustáquio, as de São Cristóvão, de Tha:is, dos Sete Adormecidos de Éfeso, de Barlaam e de Josaphat, são fábulas orientais. A lenda do Santo Graal tem raízes na recordação de José de Arimateia; o Romance de Huon de Bordéus é uma refulgente fantasmagoria dos encantamentos de Oberon, o génio da madrugada e da aurora; a odisseia de São Brandão não passa de uma versão irlandesa das aventuras de Sinbad o Marinheiro2 1 4» . E estes empréstimos representam apenas uma parte da massa espessa e substancial dos intercâmbios. «Determinada obra - escreve Renan2 15 - composta em Marro cos e no Cairo, era conhecida em Paris e em Colónia em menos tempo do que é preciso nos nossos dias para um livro importante da Alemanha passar o Reno. A história da Idade Média só estará completa quando se tiver feito a estatística das obras árabes que liam os doutores dos séculos XIII e XIV.» Será de admirar que se descubram fontes muçulmanas da Divina Comédia; que em Dante, os Árabes apareçam como grandes modelos a imitar2 16 , ou que existam, em São João da Cruz, singulares precursores muçulmanos entre os quais um, Ibn Abbad, o poeta de Ronda que desenvolveu, muito antes dele, o tema da «Noite obscura»2 17? Desde a época das cruzadas, está em vias de se dar uma reviravolta. O Cristão apoderou-se do mar. São dele, a partir de então, as superioridades e as riquezas que o domínio das rotas e dos tráficos significa. Alfred Hettner viu exactamente estas alternâncias, mas errou manifestamente ao afirmar que nos séculos XVI, XVII e XVIII2 18 , os contactos entre Ocidente e Oriente se reduzem. Antes pelo contrário. «De meados do século XVII até ao final do século XVIII, as relações de viagens europeias multiplicam-se em todas as línguas da Europa.» É que a estadia do Oriente «se abriu às embaixadas permanentes, aos cônsules, às colónias de comerciantes, às missões de investigação económica, às missões. científicas, às missões católicas . . . , aos aventureiros que entram para o serviço do Grande Turco»2 19 • Houve então a invasão do Oriente pelo Ocidente: uma invasão que levava consigo os elementos de uma dominação. Mas, voltemos ao Ocidente do século XVI: nesta época, vence o Oriente e leva-o a reboque. Nenhuma dúvida sobre este assunto, apesar dos argumentos de Fernand Grenard. Constatá-lo, não é de modo algum aliás fazer, sobre as civili zações em presença, este ou aquele juízo de valor; mas constatar que no século XVI a alternância joga a favor do Ocidente cuja civilização, mais vigorosa, mantém sob a sua dependência a do Islão. 21 4 215 216 21 7 218 2 19
Louis Gillet, Le Dante, 1 941 , p. 80. Citado por Louis Gillet, ibid. , p. 94. Femand Grenard, Grandeur e/ décadence de l'Asie, p. 34 . Louis Gillet, in Revue des Deux Mondes, 1 942, p. 24 1 . lbid. , p. 202. J. Sauvaget, lntroduction, pp. 44-45.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO Só por si o movimento dos homens indicá-lo-ia. Passam em fileiras cerra das da Cristandade para o Islão . Este atrai-os, pelas suas perspectivas de aven turas e de lucro; atrai-os - e paga-lhes. O Grande Turco tem necessidade de artesãos, de tecelões, de especialistas das construções navais, de marinheiros qua lificados, de fundidores de artilharia, desses operários de «quinquilharia» (ou seja, operários metalúrgicos), que são a força principal de um Estado: «Os Turcos e vários outros povos sabem-no bem - escreve Montchrestien220 -, que os retêm quando podem apanhá-los.» Uma curiosa correspondência de um merca dor judeu de Constantinopla com Morat Aga de Trípoli mostra o primeiro à procura de escravos cristãos capazes de tecer veludos e damascos22 1 • Porque os cativos desempenham também o seu papel neste abastecimento de mão-de -obra. Será porque está demasiado povoada, ainda mal aberta à aventura de Além -Oceano que a Cristandade não reduz os seus envios de homens para o Leste? Muitas vezes o Cristão, em contacto com os países do Islão, é apanhado pela vertigem da abjuração. Em África, nos presídios, as guarnições espanholas são dizimadas por epidemias de deserção. Em Djerba, em 1 560, antes que o forte se rendesse aos Turcos, numerosos Espanhóis tinham-se juntado ao inimigo, «abandonando a sua fé e os seus companheiros»222 • Pouco depois, em La Gou lette, descobria-se um conluio para entregar a praça aos Infiéis223 • Da Sicília, barcas partiam frequentemente, levando cargas de candidatos à apostasia224 • Em Goa, sucede o mesmo fenómeno com os Portugueses225 • O apelo é tão forte que nem sequer poupa o clero. Esse «Turco» que acompanha em França um embaixador do Rei Cristianíssimo e que se aconselha às autoridades espanholas para que o prendam na passagem, é um antigo padre húngaro226 • O caso não deve ser tão raro: em 1630, pedir-se-á ao Padre José que mande regressar os Capuchinhos perdidos no Levante, «com medo que se façam turcos»227• Da Córsega, da Sardenha, da Sicília, da Calábria, de Génova, de Veneza, de Espa nha, de todos os pontos do mundo mediterrânico, foram renegados para o Islão. No outra sentido, nada de análogo . Inconscientemente talvez, o Turco abre a s suas portas e o Cristão fecha as suas. A intolerância cristã, filha do número, não chama os homens: repele-os. E tudo o que expulsa do seu domínio - Judeus de 1492, Mouriscos do século XVI e de 1609-1614 - acrescenta-se ao contingente dos voluntários. Tudo parte para o Islão onde há praças e lucros. O seu melhor sinal é a corrente de emigração judaica que, sobretudo na segunda metade do século XVI, parte de Itália ou dos
220 · op. cit. , p. 5 1 . 221 A . d. S . , Florença, Mediceo, 4279 . 222 Paolo Tiepolo, 19 de Janeiro de 1563 , E. Alberi, op. cit., 1, V, p. 18. 223 Ibid. 224 Como em 1596, relatório sobre África, Palermo, 15 de Setembro de 1596, Simancas, E.º 225 J. Atkinson, op. cit., p. 244. 226 4 de Setembro de 1569, Simancas, E. 0 1057 , f. º 75. 227 E. de Vaumas, op. cit., p. 1 2 1 .
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AS CIVIL/ZAÇÔES Países Baixos, na direcção do Levante. Corrente bastante forte para não ter escapado aos agentes espanhóis de Veneza, porque é por esta cidade que se fazem estas migrações curiosas228 • Por meio de todos estes homens a Turquia do século XVI completa a sua educação ocidental. «Os Turcos - escrevia Filipe de Caneia, em 1573 - adqui riram, por meio dos renegados, todas as superioridades cristãs»229 • Claro está que exagera ao dizer «todas» . Porque assim que o Turco adquiriu uma delas, apercebe-se de uma outra, aquela que ainda lhe falta. Estranha corrida, ou estranha guerra, com pequenos ou grandes meios. Um dia, é um médico que se quer adquirir; outra vez um canhoneiro das sábias escolas de artilharia; outra vez um cartógrafo, ou um pintor230 • Ou então pre ciosos produtos: pólvora, madeira de teixo para o fabrico dos arcos, que se encontra no mar Negro (dado que antigamente Veneza a ia procurar para a reven der em lnglaterra23 1 ) mas que não basta de modo algum para o consumo do exército turco do século XVI, o qual a importa da Alemanha do Sul232 • Em 1 570, acusar-se-á Ragusa - e em Veneza, ó ironia - de ter entregue aos Turcos pólvora, remos e, além do mais, um cirurgião judeu233 - Ragusa que vemos muitas vezes ela mesma à procura de médicos italianos234 • No final do século, um dos mais importantes comércios ingleses no Oriente incidirá sobre o chumbo, o estanho e o cobre. Peças de artilharia fundidas em Nuremberga foram talvez entregues aos turcos. Constantinopla também se abastece nas suas zonas fronteiriças, por meio de Ragusa ou das cidades saxónicas da Transilvânia, quer se trate de armas, de homens ou, como o assinala uma carta de um principe da Valáquia à gente de Kronstadt, de médicos e de produtos farmacêuticos235 • Os Estados Berberescos prestam-lhe o mesmo serviço apesar da sua pobreza e da sua evi dente «barbárie», encontram-se curiosamente - no mundo muçulmano enten da-se - na ponta do progresso, do progresso ocidental: porque, pelo seu recru tamento, pela sua posição no mar do Ponente, em breve pelas suas ligações com os Holandeses, são os primeiros a estar informados das novidades técni cas. Têm operários: a abundante colheita de cativos realizada todos os Verões pelos corsários de Argel, e pelos Andaluzes, artesãos ,hábeis, alguns aptos a fabri car, todos a manejar a escopeta236 • Será casualidade se o reequipamento da armada turca, depois de 157 1 , e o seu equipamento ocidental (o arcabuz substi228 Francisco de Vera a Fipile II, Veneza,
1590, A. N . , K 1674.
23 229 Op. cit. , p. 1 20. 230 Desde o século XV, Pisanello. 23 1 B. N., Paris, Fr 5599 . 232 Richard B. Hieí, «Die Ebenholz-Monopole des 16. Jahrhunderts», in de Novembro de
"ierteljahrschrift für Sozia/-und Wirtscheftsgeschichte, XVIII, 1 925, p. 18 3 e segs. L. Voinovitch, Histoire de Dalmatie, 1 934 , p. 30 . Os reitores a Marino di Bona, cônsul ragusano em Nápoles, 8 de Março de 15 93 , A. de Ragusa, L. P VII, r.0 1 7 . Um «lombardo» médico em Gálata, N. lorga, Ospiti romeni, p. 39. N. Iorga, Ospiti romeni, pp. 37 , 39, 43 . O Feito muitas vezes assinalado e mesmo por M. Bandello, op. cit., IX, p. 50.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO tuindo-se ao arco, a artilharia reforçando-se consideravelmente a bordo das galeras) é o feito de um Napolitano, Euldj Ali, renegado instruído na escola dos corsários argelinos? Contudo, os empréstimos culturais são enxertos que nem sempre pegam. Em 1548, os Turcos tinham tentado, na sua campanha contra a Pérsia, trans formar o armamento dos spahis ·e dotá-los de pistoletes (minores sclopetos quo rum ex equis usus est, precisa Busbec237); a tentativa caiu no ridículo e os spahis, em Lepanto e mais tarde ainda, continuaram armados de arcos e de flechas238 • Este medíocre exemplo mostra, só por si, a dificuldade que sentem os países turcos em seguir os seus adversários. Sem as divisões destes últimos, as suas querelas e as suas traições, os Turcos não teriam conseguido, apesar da sua disciplina, do seu fanatismo e da excelência da sua cavalaria ou das suas equipagens, aguentar-se contra o Ocidente. E todas as contribuições externas239 não bastaram para manter à superfície o mundo turco; ele ameaça perecer a partir do fim do século XVI. A guerra tinha-o poderosamente ajudado até ai a encontrar os bens necessários, homens, técnicas ou produtos dessa técnica, a apoderar-se de bocados da Cristandade nutritiva, em terra, no mar, ou ao longo da zona russo-polaco-húngara. Gas sot, no Arsenal de Constantinopla, viu o amontoado de peças de artilharia, tra zidas por guerras vitoriosas ainda mais do que por hábeis compras ou por cons truções no local240• A guerra, recolocação em equilíbrio de civilizações: seria uma-tese a defender. Ora, esta guerra, no Mediterrâneo, a partir de 1 574, cul minou no impasse e em 1606, nos campos de batalha da Hungria, numa posição de equilíbrio a partir daí impossível de ultrapassar. É então que se manifesta uma inferioridade que não tardará a agravar-se. Muitos Cristãos enganam-se, é certo, sobre o futuro otomano nesses pri meiros anos do século XVII, novamente férteis em projectos de cruzada24 1 • Mas, não é a divisão da Europa e os inícios da Guerra dos Trinta Anos que iludem sobre a força otomana, e salvam o seu vasto Império?
237 Epist. III, p. 199. 238 J. W. Zinkeisen, op. cit., III, pp. 1 73-1 74. 239 E as penetrações europeias católicas ou protestantes; G. Tongas, op. cit., p. 69; H. Wãtjen, op. cit., p. 69; o papel de Veneza entre Capuchinhos e Jesultas, E. de Vaumas, op. cit. , p. 13S; a questão dos Lugares San tos em 162S, ibid. , p. 199; a história movimentada do patriarca Cirilo Lascaris, K. Bihlmeyer, op. cit., III, p. 181, G. Tongas, op. cit., p. 1 30 . . . Mesmo a África do Norte atingida por esta cruzada sem guerra, R. Capot-Rey «La Politique française et le Maghreb méditerranéen 1648-168S», in Revue Africaine, 1934, pp. 47-61. 240 Jacques Gassot , Le discours du voyage de Venise à Constantinople, ISSO, 2. '.edição, 1606, p. 1 1 . Na fun dição de Péra, quarenta ou cinquenta alemães « . . .fundem peças de artilharia», IS44, ltinéraire de J. Maurand d'Antibes à Constantinop/e, p. p. Léon Duriez, 1901 , p. 204. 241 Ver infra, p. 1 78 .
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AS CIVILIZAÇÔES
3. Uma civilização contra todas as outras: o destino dos Judeus242 Os conflitos abordados até aqui limitam-se, geralmente, ao diálogo de duas civilizações. Perante os Judeus, todas as civilizações estão em causa e nor malmente em posição de superioridade esmagadora. São a força, a multidão, e os Judeus são quase sempre minúsculos adversários. Mas, estes adversários têm estranhas possibilidades: um príncipe persegue-os, um outro protege-os; uma economia trai-os, uma outra é pródiga para com eles; uma grande civilização rejeita-os, uma outra acolhe-os. A Espanha expul sa-os em 1492, a Turquia recebe-os, feliz talvez por atirar Judeus contra os Gre gos . . . Há também possibilidades de pressão, de acção indirecta: como os Judeus portugueses demonstrarão amplamente243 • Têm por si as cumplicidades que o dinheiro permite e dispõem em Roma de um embaixador geralmente dedicado à sua causa. Nada de mais simples em seguida do que um adormeci mento das medidas tomadas contra eles pelo governo de Lisboa, regularmente retiradas ou tornadas ineficazes. Luis Sarmiento244 explica-o a Carlos V, em Dezembro de 1 535: os Judeus convertidos, os conversos, conseguiram uma bula pontifical que lhes perdoa os seus erros passados, eis o que vai perturbar a acção governamental, tanto mais que estes conversos adiantaram dinheiro ao rei de Portugal, terrivelmente endividado: quinhentos mil ducados, sem contar o resto na Flandres, «e que têm cotação sobre os câmbios». Todavia, o povo murmura sem cessar contra esses mercadores de peixe seco, de que se alimentam os pobres - e murmura com muita dureza, fieramente, dirá ainda uma corres pondência veneziana tardia de Outubro de 1604, mais de meio século depois do estabelecimento da Inquisição portuguesa, em 1 536245 • Há também as armas do mais fraco: a resignação, os distinguo talmúdicos, a astúcia, a obstinação, a coragem, até o heroísmo. Para complicar mais o seu caso como que gratuitamente, os Judeus, onde quer que estejam, surgem ao historiador como muito capazes de se adaptarem ao meio ambiente. São os bons alunos de qualquer aculturação .que deles se encarregue, ou simplesmente os encontre. Artistas e escritores judeus, não são, segundo os casos, autênticos artistas ou escritores de Castela, de Aragão ou de qualquer outra parte? Adaptam-
242 Para uma bibliografia mais vasta do que aquela que fornecem as nossas referências, reportar-se aos livros essenciais de Attilio Milano, Storia degli ebrei in /ta/ia, Turim, 1963 , e de Julio Caro Baroja, Los Judios en la Espana moderna y contemporanea, Madrid, 3 vols., 1961 . O problema principal continua a ser neste domínio o ponto de vista que addpta o historiador: pode ele ficar de fora, como Julio Caro Baroja perante o drama que re lata, ser puramente espectador? Michelet não tomou esse partido. Léon Poliakov, Histoire de l'antisémitisme, II, De Mahomet aux Marranes, Paris, 1961, p. 23 5 e segs. 244 Simancas, Guerra Antigua, 7, f.º 42, Luis Sarmiento a Carlos V, Évora, de Dezembro de 15 35. 24S A. d. S., Veneza, Senato Dispacci Spagna, Contarini ao Doge, Valladolid, de Outubro de 1604. Siman 4 cas, E.º Portugal 436 (1608-1614) Lirenças a v6rios judeus e cristiJos novos de Portugal para saírem do reino. Prova de que hà maneiras de se acomodar, ainda nesta época, às autoridades portuguesas. A concessão de salda para os novos cristãos é de 1601 , a retirada da concessão de 1610, J. Lúcio de Azevedo, História doscrislilos novos por tugueses, p. 498.
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1922,
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO -se depressa tanto às situações sociais que lhes são impostas como oferecidas, tanto às mais humildes como às mais brilhantes. Ei-los portanto muito em breve à beira de um naufrágio cultural, de um abandono de si mesmos de que conhece mos múltiplos casos. Mas, vulgarmente, salvaguardam aquilo a que os sociólo gos e antropologistas chamam a sua «personalidade de base». Permanecem no coração das suas crenças, no centro de um universo do qual nada os desaloja. Estas obstinações, estas recusas desesperadas são o traço forte do seu destino. Os Cristãos têm razão ao sublinharem a obstinação dos ricos marranos (nome pejorativo que se dava aos judeus conversos)246 em praticarem a sua religião em segredo. Há exactamente uma civilização judaica, tão particular que nem sem pre se lhe reconhece este carácter de civilização autêntica. E todavia, irradia, transmite, r.esiste, aceita, recusa; tem todos os traços que assinalámos a propó sito das civilizações. É certo que não está enraizada, ou antes, que está mal enraizada, que escapa a imperativos geográficos estáveis, dados de uma vez por todas. Esta é a sua mais forte originalidade, mas não é a única.
Seguramente uma civilização A matéria de que se compõe esta civilização aparece dispersa; espalhada como múltiplas finas gotinhas de azeite sobre as águas profundas de outras civilizações e nunca confundidas, ainda que sempre dependente delas. De forma que os seus movimentos são também os movimentos das outras, na sequência dos «indicadores» de uma excepcional sensibilidade. Émile-Félix Gautier, pro curando um equivalente para a diáspora judaica, propunha o exemplo, humilde em si, dos Mozabitas da África do Norte, dispersos em colónias também elas muito pequenas247 • Poder-se-ia pensar de igual modo nos Arménios, campone ses montanheses que se tornam, na época da nossa Renascença, mercadores internacionais desde as Filipinas até Amsterdão, até mesmo aos Pársis nas Índias, ou mesmo aos Cristãos nestorianos da Ásia . . . O essencial? Aceitar que tenham existido, com uma infinidade de ilhas perdidas no meio de águas estranhas, civilizações de diáspora e mais numerosas do que se suspeitaria à primeira vista. Por exemplo, as comunidades cristãs da África do Norte, desde o século vm até às perseguições Almóadas, no século XIII, que praticamente põem ponto final à sua existência. E, em certo sentido, o mesmo acontece no caso dessas colónias europeias nos países do Terceiro Mundo tanto antes como depois da sua inde pendência, para não mencionar os Mouriscos, de quem a Espanha como já vimos, se liberta brutalmente, num gesto de fria cólera.
246 Sobre a palavra, ver 1 . S. Revah, «Les Marranes», in Revue des Études Juives, 3. • série, t. I, 1959-1960, pp. 29-77; sobre a persistência das práticas judaicas, toda a obra de J. Caro Baroja é disso testemunho, ou deter minadas páginas a propósito do caso menos significativo de Maiorca do velho livro de Francisque Michel, Histoire des races maudites de la France et de l'Espagne, Paris, 1847, t. li, p. 33 e segs. 247 Moeurs et coutumes des Musu/mans, op. cit., p. 212.
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AS C/VIL/ZAÇÓES Se estas ilhotas se tocassem, tudo mudaria para elas. Como na Espanha medieval, até às ferocidades dos séculos XIV e xv, as comunidades judaicas ten dem para formar um tecido mais ou menos contínuo, uma espécie de nação confessional248, um «milho miúdo», como dizem os Turcos, um mellah249, segundo a linguagem da África do Norte. A originalidade de Portugal consiste, em 1492, em ter recebido uma sobrecarga decisiva de população judaica com os refugiados de Espanha. A originalidade do Levante é da mesma ordem e por ra z.ões idênticas. Como ainda na Polónia, bruscamente desabrochada da primeira modernidade, a partir do século xv, há um maior domínio judaico, filho do número, e quase uma nação e um Estado judeus que as dificuldades económi cas e a repressão impiedosa do século XVII vão varrer, o Grande Dilúvio ou matança dos anos de 1 648250 . Como no Brasil nascente e ainda pouco povoado, os Judeus estão menos ameaçados do que em outros lugares até ao final do sé culo xv1251 . A densidade relativa dos Judeus será sempre um factor significativo. Mas mesmo quando o número não favorece, isto não exaspera a presença judia, estando estas unidades elementares ligadas entre si pelo ensino, pelas cren ças, pelas incessantes viagens dos mercadores, dos rabinos e também dos mendi gos (são uma legião); pela troca ininterrupta de cartas comerciais, de amizade ou de família; finalmente, pelos livros252 . A imprensa, para além de ter servido as suas querelas, serviu aos Judeus como elemento de união . Estes livros decisi vos, facilmente multiplicados, quem poderia queimá-los ou sequestrá-los todos de uma só vez? Certas vidas vagabundas, exemplares, ilustram estes movimen tos vivos, unificadores. Jacob Sasportas nasceu cerca do início do século XVII em Orão que os Espanhóis detêm; é rabino em Tlemcen, depois em Marraquexe e em Fez; preso, escapa, atinge Amsterdão onde é professor na Academia dos Pinto; regressa a África; acompanha, em 1655, Menasse ben Israel na altura da sua embaixada a Londres; exerce de novo o rabinato, em particular em Ham burgo, de 1666 a 1673; regressa então a Amsterdão, é chamado a Livomo, volta a Amsterdão, e é aí que morre253 . . . Estes múltiplos laços explicam, reforçam
248 Léon Poliakov, Histoire de l'antisémitisme, II, De Mahomet aux Mammes, p. 1 27 e segs.: A nação judaica em Espanha. Aproveitámos muito deste livro honesto e inteligente. 249 Bairro judeu, em Marrocos (N. da T.). 250 lbid., I, Du Christ aux Juifs de Cour, 1 955, p. 266 e segs. , particularmente p. 277 e segs. m Plinio Barreto, «Note sur les Juifs au Brésil», in O Estado de SiJo Paulo, 3 1 de Outubro de 1936; rica e sólida literatura sobre eles a partir dos livros clássicos de Gilberto Freyre e de Lúcio de Azevedo; a colectânea do cumental essencial continua a ser os três volumes da Primeira Visitação do Santo Officio as Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendoça. . . , deputado do Sto. Officio: /. Corifisõ s esda Bahia, 1591-1592 . Introdu ção de Capistrano de Abreu, São Paulo, 1 922; Denunciações da Bahia, 1591-1593 , São Paulo, 1 925; Denuncia ções de Pernambuco, 1593-1595. Introdução de Rodolpho Garcia, São Paulo, 1929 . Sobre Portugal, Léon Polia kov, op. cit., De Mahomet aux Marranes, p. 23 5 e segs. 252 Léon Poliakov, Du Christ aux Juifs de Cour, pp. VI-XII; De Mahomet aux Marranes, p. 1 ; Joseph Ha 39 Cohen, Emek Habakha ou la Vallée des Pleurs; Chronique des souffrances d'lsra/!I depuis sa dispersion, 1575 , e na sequência Continuation de la Val/ée des Pleurs, 1602, p.p. Julien Sée, Paris, 1881, p. 167 . Notaremos esta obra, em seguida, apenas sob o nome de Joseph Ha Cohen. 253 Hennann Kellenbenz, Sephardim an der unteren Elbe. lhre wirtschtiftliche und politische Bedeutung vom Ende des 16. bis ium Beginn des 18. Jahrh., 1958, p. 45.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO a coerência do destino judeu. Johann Gottfried von Herder, nas suas Idées sur la Philosophie de l'histoire de l'humanité ( 1 785-1 792), já dizia que «os Judeus continuam a ser na Europa um povo asiático, estranho ao nosso mundo, e ine vitavelmente prisioneiro de uma antiga lei que lhes foi dada sob um céu lon gínquo»254 . Todavia, os Judeus não são uma raça255 : todos os estudos científicos pro vam o contrário. As suas colónias dependem biologicamente dos países, dos povos onde viveram durante séculos. Judeus da Alemanha ou askhenazis, Judeus de Espanha ou sefarditas são biologicamente semi-Alemães, semi-Espa nhóis, porque as misturas de sangue foram frequentes e as judiarias nasceram muitas vezes de conversões locais ao judaísmo: nunca viveram fechadas no mundo que as limita e sobre o qual, mais de uma vez, se abriram amplamente. Aliás, como não teria o tempo acumulado, por vezes em espantosas espessu ras, trazido as suas confusões e os seus cruzamentos? Estes Judeus que, em 1492, deixam para sempre a Sicília estavam aí de qualquer modo há mais de mil e quinhentos anos256 . Além disso, os Judeus nem sempre viveram à parte, vestiram fatos particu lares ou usaram sinais distintivos, como a gorra amarela ou a rodela, esse segno de tela zala in mezo el pecto, diz um texto veneziano de 1496257 . Nem sempre habitaram um bairro especial, um ghetto (o nome vem do bairro que lhes foi atribuído em Veneza e onde antigamente se vertia, derramava nos moldes [ghettare = verter] o ferro fundido dos canhões)258 . Como, em Agosto de 1 540, os Judeus de Nápoles, vítimas de uma hostilidade tenaz e que os derrotará um ano mais tarde, protestam ainda contra as ordens dadas e que os obrigariam «a habitar em conjunto e a usar um sinal particular» , habitar juntos y traer seiial, o que é contrário aos seus privilégios259 . E aliás, onde entra a rega de segrega ção, quantas afrontas e desobediências! Em Veneza, os Judeus de passagem e os outros, diz uma deliberação senatorial de Março de 1 556, «há pouco tempo que se vão espalhando por todo o território da cidade, instalam-se em casas cristãs, indo onde lhes apetece de dia e de noite.» Que termine o escândalo, que sejam obrigados a habitar o ghetto «e não possam albergar-se em sítio algum da cidade senão naquele»2(j(). Cerca da mesma época, os Judeus provenien tes da Turquia chegam a Itália com turbantes brancos, privilégio dos Turcos, quando os seus deveriam ser amarelos. É velhacaria da sua parte, assegura Belon du Mans261 , usurpam a boa fé dos Turcos que está melhor estabelecida no Citado por J. Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 52. Léon Poliakov, op. cit., l, p. 307 e segs. A. Milano, op. cit., p. 22 1 . 257 A . d. S . , Veneza, Senato Terra 1 , f.º' 1 5 e 1 5 v . º , 2 6 d e Março d e 1 96. Cf. M. Sanudo, op. cit., 1 , 4 2 3 3 col. 81, 26 d e Março d e 1496. 258 Giuseppe Tassini, Curiosità veneziane, Veneza, 1887, p. 3 19. 259 Simancas, E. 0 Nápoles 1 03 1 , f. º 155, Nápoles, 25 de Agosto de 1540. Numerosas referências relativas aos Judeus neste /egajo. 260 A. d. S., Veneza, Senato Terra 3 1 , 29 de Março de 1556. 261 Op. cit., p. 181. 254 255
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AS CIVILIZAÇÔES Ocidente do que a dos Judeus. Em 1 566, e não é este o primeiro alerta, os Judeus de Milão são obrigados a usar o chapéu amarelo262 . Muitas vezes, a segregação tarda e estabelece-se mal. Em Verona, em 1 599 (fala-se disso pelo menos depois de 1 593), os Judeus que «viviam disseminados, um aqui, outro ali», têm de fixar a sua residência «nas proximidades da grande praça da cidade»263 , «onde se vende vinho», ao longo dessa rua que vai até à igreja de S. Sebastiano, vulgarmente chamada a partir de então de via degli Hebrei264 • Só em 1602, uma medida análoga intervinha em Pádua onde até aí os «Israelitas viviam na sua maioria disseminados pelos quatro cantos da ci dade»265 . Em Agosto de 1602, em Mântua, surgem incidentes dado que os Judeus se passeiam aí como qualquer outra pessoa, com garras negras266. Em Espanha e em Portugal, durante séculos, a coexistência foi a regra. Em Portugal, uma das reclamações populares mais frequentes diz respeito à obriga ção que o Papa impôs aos Judeus - e que eles não observam - de usarem sinais distintivos nos fatos, para impedir, dizem mesmo as Cortes de 148 1 , as tentativas de sedução de que os Judeus são useiros em relação a mulheres cris tãs . Alfaiates e sapateiros judeus seduzem muitas vezes mulheres e raparigas nas casas de agricultores para onde vão trabalhar267 . . . De facto, em Portugal, os Judeus misturaram-se com a aristocracia, mais ainda do que com o povo. Na Turquia, os Judeus possuem escravos, cristãos e cristãs, e «servem-se das mulheres cristãs escravas, não tendo dificuldade em se misturar com elas, tal como se elas fossem judias»268 . Não, sejam quais forem os interditos, não é o sangue, força errada, que mantém as comunidades judaicas, mas a hostilidade dos outros a seu respeito e a sua própria repugnância a respeito destes. Tudo isto é questão de religião, consequência de um feixe cerrado de crenças e de hábitos, de heranças diversas, até mesmo de hábitos culinários. Falando dos Judeus renegados, «nunca perderam a sua maneira de comer à judaica - explica Bemal dez, o historiador dos Reis Católicos269 - preparando os seus pratos de carne com cebolas e alhos e fazendo-os frigir no azeite, de que se serviam em vez de toucinho.» Julgar-se-ia ler uma descrição da cozinha espanhola actual. . . Mas, a cozinha com toucinho era hábito dos Cristãos Velhos e como afirma Salvador de Madariaga, o triunfo do azeite, desde então, foi uma herança judia, uma transferência cultural270 . . . O convertido, o ma"ano, não se traía menos quando, ao sábado, se esquecia conscientemente de acender a lareira em casa. Um inquisidor disse um dia ao governador de Sevilha: «Senhor, se queres saber
262 Setembro de 1 66, Joseph Ha Cohen, op. cit., p. 158. 5 lbid. , p. 207. Lodovico Moscardo, op. cit. , p. 44 1 , esse projecto de gueto remontaria a Joseph Ha Cohen, op. cit., pp. 2 15-2 16. Museo Correr, Cicogna 1 993 , r.0 261, 16 de Agosto de 1602 . J. Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 10. Belon du Mans, op. cit., p . 180, 193 v.0 Citado por Léon Poliakov, op. cit., II, p. 180. Ibid. , segundo S. de Madariaga, Spain and the Jews, 1 946 .
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO como os conversos festejam o sábado, sobe comigo à torre.» E quando aí che gatn: «Levanta os olhos e observa todas essas casas habitadas por conversos; por muito füo que faça, nunca verás, ao sábado, o fumo sair das suas chami nés»27 1 . Esta história contada por lbn Verga (cerca de 1 500) tem um tom de ver dade e esses golpes de frio em Sevilha, no Inverno, são demasiado reais . . . Pequenos sinais reveladores: no Levante, o s Judeus «nunca comerão a carne que um Turco, Grego ou Germânico tenha preparado e não querem comer gordura alguma de Cristãos ou Turcos, nem beber vinhos vendidos por Turcos ou Cris tãos»272 . Mas, evidentemente, todas estas comunidades judaicas estão condenadas ao diálogo, por vezes em condições dramáticas quando, em seu redor, muda toda a paisagem da civilização dominante. Os Muçulmanos em Espanha substi tuem-se aos Cristãos, depois estes voltam com os triunfos tardios da Recon quista. Os Judeus arabófonos começam a praticar o espanhol. Na Hungria, onde com o avanço imperial de 1593 a 1606 os Judeus de Buda se vêem apanha dos entre dois fogos, o Imperial e o Turco, sucede a mesma tragédia273 . . . Todas estas circunstâncias fazem deles os herdeiros involuntários de civilizações ambientes cujos bens em seguida propagam num sentido ou no outro. Sem o que rerem, perante o Ocidente, foram, até ao século xm e mesmo depois, os inter mediários do pensamento e da ciência árabes: filósofos, matemáticos, médicos, cosmógrafos. No século xv, ei-los prontos a entusiasmar-se pela imprensa: em Portugal, o primeiro livro impresso é o Pentateuco, em 1487, em Faro, ao cui dado de Samuel Gacon. Só uma dezena de anos mais tarde, aparecem em Por tugal os impressores alemães274 . Se se pensar que a imprensa, trazida pelos Ale mães para Espanha, não é aí anterior a 1475, avalia-se essa pressa judia em imprimir os textos sagrados. Ora, expulsos de Espanha em 1492, os Judeus leva rão a imprensa para a Turquia. Cerca de 1 550, «traduziram toda a espécie de livros para a sua língua, o hebraico»275 . Fundar uma tipografia, é obra pia, o que faz, nos campos de Koregismi, perto de Istambul, a viúva· de Jean Micas, duque de Naxos276 . Em 1 573, Veneza apronta-se, segundo a sua decisão de 14 de Dezembro de 1 57 1277 , para expulsar os seus Judeus. Mas a roda girou desde Lepanto e Soranzo chega entretanto de Constantinopla onde desempenhava as funções de bai lio. Ouçam o discurso que lhe faz um cronista judeu278 , perante o Conselho dos Dez: «Que acção perniciosa cometestes em ter expulso os Judeus! Não sabeis o
271 Jbid., p. 19 1 . Ibn Verga, Lefouet deJuda, citado por L. Poliakov, op. cit., t. II, p. 64, segundo a tradução alemã devida a Wiener, Hanover, 1856. 272 Belon du Mans, op. cit., p. 181. 27J lbid., pp. 209-2 !0. 274 J. Lúcio de Azevedo, op. cit., p. 36. 275 Belon du Mans, op. cit., p. 180 v. º 276 J. Ha Cohen, op. cit., p. 51, segundo E. Cannoly, Archives isra/Hites de France, 1 857 . 2 277 A. Milano, op. cit., p. 180 e segs. 278 O continuador de J. Ha Cohen, op. cit., p. 181.
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AS C/VIL/ZAÇÔES que mais tarde isso vos pode custar? Quem tornou o Turco tão forte e onde teria ele encontrado tão hábeis artesãos para o fabrico dos canhões, dos arcos, das balas, das espadas, dos escudos e das tarjas, que lhes permitem medir-se com os outros povos, senão entre os Judeus que os Reis de Espanha expulsa ram!» Cerca de 1550, urna descrição francesa de Constantinopla279, já o afinna : «Estes [os marranos] são os que deram a conhecer aos ditos turcos as manei ras tanto de traficar corno de negociar em questões de que abusamos meca nicamente . . . » Outro privilégio: os Judeus são, no Oriente, os intérpretes natos de qual quer conversação e sem eles nada seria possível ou fácil. Belon du Mans28º explica: «Os que partiram de Espanha, da Alemanha, Hungria e Boémia ensina ram a língua desses países aos filhos: e os seus filhos ensinaram a língua da nação onde têm de falar, tal corno Grego, Eslavo, Turco, Árabe, Arménio e Italiano . . . » «Os Judeus que estão na Turquia sabem vulgarmente falar quatro ou cinco línguas: e há vários que sabem dez ou doze.» Esta observação vem-lhe ao espírito em Roseta, no Egipto, onde os Judeus «se multiplicaram por todo o lado (sic) nos países onde domina o Turco e não há cidade nem aldeia que não habitem e tenham multiplicado. Também falam todas as línguas, coisa que nos serviu não só para nos interpretarem, mas também para nos contarem corno eram as coisas nesse país»281 • No plano linguístico, é curioso que os Judeus expulsos da Alemanha nos séculos XIV, xv e ainda no XVI e que vão fazer a fortuna da Polónia judaica introduzam aí a sua língua, um alemão particular, o yiddisch282 , tal corno os Judeus espanhóis que, depois de 1492, formarão as fortes colónias de Istambul e sobretudo de Salónica, para aí levarem a sua língua, o ladino, o espanhol da Renascença, e conservarem urna verdadeira ternura a respeito da Espanha cujas manifestações afluem em abundância283 (prova de que se leva por vezes a sua pátria na sola dos sapatos). Pequenos pormenores a par destas imensas rea lidades: um hispanista encontra hoje as músicas e os textos de romances medie vais espanhóis junto dos Judeus de Marrocos284; um historiador ensina-nos também a lentidão com que os Sefarditas de Hamburgo se adaptam (e mal) à língua alernã285 • Fidelidade também, as dessas comunidades judaicas de Saló nica, intituladas Messina, Sicília, Púglia, Calábria286 • Estas fidelidades não deixam de ter inconvenientes: criam categorias. Dese nham-se nações judaicas e, se houver ocasião, altercam entre si. Assim, Veneza
279 B. N., Paris, Fr. 61 2 1 (s. d.). Ver iguiilmente L. Poliakov, op. cit., II, p. 247, referências à viagem de G. de Aramon e de Nicolas de Nicolay. 280 Op. cit., p. 180 v.º, p. 1 18. 281 /bid. , p. lOO v.º 282 L. Poliakov, op. cit., I, pp. 270-271. /bid., p p . 249 e 250; L a Méditerranée, 1 . • ed., p p . 707-708. 284 Paul Benichou, Romances judeo-espafloles de Marruecos, Buenos Ai res, 1946. 285 H. Kcllenbenz, op. cit., p. 3 5 e segs. 286 A. Milano, op. cit., p. 23 5.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO criou, um ao lado do outro, de 1 5 1 6 a 1633 , três ghettos, o vecchio, o nuovo, o nuovissimo, ilhotas juntas com casas muito altas (até sete andares) porque o espaço falta e a ocupação humana é aí a mais densa da cidade. O vecchio, o dos Judeus /evantini, está sob o controlo dos Cinque Savii alia Mercanzia, desde 1 541 ; o nuovo, sob o controlo dos Cattaveri, abriga os Judeus alemães, os Todeschi que, não podendo aí alojar todos, passam em parte para o velho gueto. Estes Todeschi, aceites na época da Liga de Cambraia, são os Judeus pobres que se ocupam de lojas de adelos e de penhores, e é a eles que será confiado o Monte Pio de Veneza - li banchi dei/a povertà. Contudo, os Judeus especialistas do grande comércio, portugueses ou levantinos, alternadamente detestados ou amimados pela Senhoria, conseguem um estatuto à parte, sem dúvida a partir de 1 58 1 287 • Mas, em 1 633, todos os Judeus, incluindo os Ponentini, estão reuni dos nos mesmos guetos. De onde essas querelas sociais, religiosas, culturais neste falso pequeno mundo concentracionário. Estes traços não impedem que não exista, com as suas vivacidades e os seus turbilhões, uma civilização judaica e, evidentemente, não inerte ou «fóssil» como defende Arnold Toynbee288 . Vigilante, agressiva, pelo contrário, por vezes vítima de estranhos messianismos, particularmente nesta primeira modernidade onde está dividida entre um racionalismo que desemboca, para alguns, no cepticismo e no ateísmo, muito antes de Espinosa, e uma propensão das massas para a superstição e a exaltação gratuitas. Qualquer perseguição origina, por ricochete, movímentos messiânicos, como no tempo de Carlos V, de 1525 a 153 1 , esses pseudomessias, David Rubeni e Diogo Pires, que sublevam o s Judeus portugueses289 ; como no século XVII, a imensa maré que a propaganda messiâ nica de Sabbatal Zevi290 provocará no Oriente, na Polónia e mesmo para além. Mas, postas de parte estas crises agudas, seria errado supor que a atitude judaica foi vulgarmente tranquila ou tolerante. Mostra-se activa, pronta ao proselitismo e ao combate. O gueto não é apenas o símbolo da prisão onde se encerrou os Judeus, mas da cidadela para onde se retiraram por si só para defenderem as suas crenças e a continuidade do Talmud. Um historiador tão sim pático para os Judeus como o grande Lúcio de Azevedo pode defender que a intolerância judaica, no limiar do século XVI, foi «maior certamente do que a dos Cristãos»291 , o que é sem dúvida dizer muito. Mas, finalmente, esta intolerân cia é evidente. Corre mesmo o boato - absurdo em si, mas correu cerca de 1 532 - que os Judeus tinham tentado converter Carlos V à fé de Moisés, quando da sua passagem por Mântua292 ! 287 Ceei! Roth, in Mélanges Luuatto, p. 237 e segs. ; e a título de exemplo, A. d. S., Veneza, Cinque Savii 7 , f.º' 33- 34, 15 de Dezembro de 1609. Sobre os três guetos e a origem evidentemente discutível da palavra, argumen tos e pormenores em G. Tassini, op. cit., pp. 3 19-320; nem tudo é claro sobre a repartição das três comunidades judaicas nos três guetos, mesmo depois da leitura de A. Milano, op. cit. , p. 28 1 . 288 Arnold Y. Toynbee, L 'Histoire, un essai d'interprétation, Paris, 195 1 , pp. 30-15 , 98, 428 . 3 3 289 J. Lúcio de Azevedo, op. cit. , pp. 68-73 . 290 L. Poliakov, op. cit., li, p. 6 e segs. 22 29 1 Op. cit., p. 9. 3 292 F. Amadei, Cronaca universo/e dei/a città di Mantoa, li, p. 548 .
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AS CJV/LIZAÇÔES Ubiquidade das comunidades judaicas Quisessem ou não, os Judeus viam-se obrigatoriamente condenados ao papel de agentes do intercâmbio. Estão, ou estiveram por todo o lado; expul sos, não abandonam forçosamente os locais interditos, voltam lá. Estariam ausentes, oficialmente, de Inglaterra de 1290 a 1 655, data da sua pseudo-read missão no tempo de Cromwell; de facto, Londres tem os seus mercadores judeus desde o início do século xvn, talvez mais cedo. Do mesmo modo, a França liberta-se deles de uma vez para sempre, em 1 394, mas muito em breve estão de novo (marranos, é certo, e aparentemente cristãos) em Ruão, em Nantes, em Bordéus, em Baiona, essas etapas habituais para os Marranos de Portugal que atingem Antuérpia e Amsterdão. Henrique II, «rei de França, permite aos mer cadores judeus de Mântua irem às cidades do seu reino fazer comércio no país. Liberta-os igualmente dos seus impostos e quando lhe foram apresentar as suas homenagens e os seus agradecimentos, mostrou-se benevolente para com eles nesse ano»293 , sem dúvida em 1 547. Mais curioso, senão mais importante, o boato que corre na Primavera de 1 597 em Paris, e talvez em Nantes onde o aco lhe o serviço de informações espanhol: o rei de França pensaria em «mandar regressar os Judeus que o Cristianíssimo Rei São Luís tinha expulso»294• O boato repete-se, quatro anos mais tarde, em 1 601 . «Um Judeu importante [de Portugal] , explica a Henrique IV o embaixador Filipe Canaye, disse-me que se Vossa Majestade pennitisse à sua nação habitar a França, ela tiraria disso muito proveito e veria aumentado o seu reino com mais de cinquenta mil famílias de gente sensata e engenhosa»295 • Cerca de 1 6 1 0, entre os Mouriscos que entram em França, onde vulgarmente apenas transitarão, nomeadamente Judeus e marranos portugueses misturaram-se aos exilados e «ter-se-iam instalado sob a máscara cristã em França, e particularmente em Auvergne»296 • No Midi da França, os Judeus foram pouco numerosos. Cerca de 1 568-1 570, eram expulsos das cidades da Provença e refugiavam-se amigavelmente em Sabóia297 • Em Marselha, onde a política da cidade foi variável, são apenas alguns no início do século xvn298 • Judeus expulsos de Espanha, em 1492, insta laram-se no Languedoque, ficaram aí e «habituaram [os Franceses] a traficar na Berberia»299 • Sob a máscara de Cristãos Novos, são boticários e médicos em Montpellier; Félix Platter instala-se em casa de um deles. Em Avinhão, no final
Joseph Ha Cohen, op. cil., p. 1 27 . A. N., K 1600 , 4 de Abril de 1597 , Relacion de algunas nuebas generales que se entienden de Nantes de Paris y otras partes desde 4 de abril 97 : . . . quiere hazer benir losjudios que hecho e/ christianissimo Rey St. Luis. . . 295 Citado por L. Poliakov, op. cit., li, p. 3 68 , Canas e embaixadas d e Messire Filipe Champagne, 1635, p. 62. 296 Citado por L. Poliakov, op. cit., li, pp. 367-368, segundo Francisque Michel, Histoire des roces maudites de la France et de l'Espagne, 1847 , pp. 7 1 e 94. 297 J. Ha Cohen, op. cit., p. 160. 298 H. Kellenbenz, op. cit., p. 1 35 . 299 Jean Bodin, Response. . . , op. cit., ed. H. Hauser, p. 1 4 . 293
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO do século, abrigados pelo Papa, são quinhentos, mas não tendo o direito «de comprar nem casa, nem jardim, nem campo, nem prado, dentro ou fora da cidade», reduzidos ao oficio de algibebes ou de alfaiates300 • • • Claro que a Alemanha e a Itália s e encontram demasiado divididas para que eles possam ser aí expulsos de todo o lado ao mesmo tempo, apesar de terem sido desalojados vezes sem conta. Urna cidade encerra-lhe as suas portas, urna outra abre-lhes as suas. Quando Milão, em 1 597, depois de muitas hesita ções, se liberta dos seus «Hebreus», aliás pouco numerosos, estes, na medida em que nos informámos acerca deles, chegam a Verceil, Mântua, Modena, Verona, Pádua, «e às localidades vizinhas»3º 1 • São muitas vezes comédias de porta a porta (mesmo quando correm mal). Comédia em Génova onde, expulsos solenemente em 1 5 16, os Judeus regressam em 1 5 1 7302 • Comédia em Veneza, em Ragusa, dado que tudo aí se arranja: em Maio de 1 5 1 5 , a pequena cidade inflamada por um monge franciscano expulsa os seus Judeus; estes imediata mente, na Púglia e na Moreia, fazem o bloqueio dos cereais contra a República de São Blaise (prova de que são os senhores deste abastecimento) e esta tem de os acolher de novo; em 1 545 , mal se pensa em expulsá-los e o Sultão chama os Ragusanos à ordern303 . . . Em 1 550, é Veneza quem gostaria de expulsar os seus, mas apercebe-se que eles controlam e limitam o seu comércio: lã, seda, açúcar, especiarias - e os próprios Venezianos se contentam muitas vezes em revender as suas mercadorias, guadagnando /e nostre solite provizioni, com isso apenas ganhando as comissões habituais304 • De facto, a Itália encheu-se de urna grande quantidade de Judeus com as expulsões sucessivas de França, de Espanha e de Portugal, principalmente no Estado da Santa Sé onde de preferência se refugia ram. Em Ancona, começou para eles urna espantosa fortuna: antes das perse guições violentas de Paulo IV em 1 555 e 1 556, são 1 770 chefes de família que compram corno querem bens imobiliários, casas, vinhas, «não usando qual quer sinal que possa distingui-los dos Cristãos»3º5 • Em 1492, a expulsão dos Judeus da Sicília incidiu em mais de quarenta mil pessoas306, dizem-nos, em enorme maioria modestos artesãos cuja partida a ilha suportará mal. Em Nápoles, pelo contrário, que só dez anos mais tarde ficará sob controlo do Rei Católico,
Thomas e Felix Platter, op. cit., pp. 252, 391. J. Ha Cohen, op. cit. , p. 200. lbid., pp. 1 1 2- 1 1 3 . 303 S. Razzi, op. cit., pp. 1 18-1 19 (1516); pp. 159 (1545). Ver também a intervenção de Solimão o Magnífico contra as perseguições dos Judeus e dos marranos de Ancona, A. Milano, op. cit., p. 253 ; C. Roth, The House o/ Nasi, Dona Gracia, Filadélfia, 1947 , pp. 1 35-174. 304 W. Sombart, Die Juden und das Wirtschaftsleben, 19 , p. 20. Segundo o documento p. p. David Kauff 22 mann, «Die Vertreibung der Marranen aus Venedig im Jahre 1550», in The Jewish Quarterly Review, 1901. Sobre esta ordem de expulsão dos Marranos, Marciana, 2991 C. VII. 4, r. 0 1 10 v. º e 1 1 1; Musco Correr, Donà delle Rose, 46, f. º 155, 8 de Julho de 1550 . 305 Marciana, 6085, r. 0 32 v. 0 e segs. : exposição das perseguições de 1555 e 1556. cr. igualmente A. Milano, op. cit. , pp. 247- 253 . 306 .L. Bianchini, op. cit., !, p. 41 . Mas não cento e sessenta mil, A. Milano, op. cit., p. 222 . 300
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AS CIVILIZAÇÔES Judeus pouco numerosos, mas ricos e activos como os Abravanel, manter-se-ão até 1 541 3°7 • • • Seria incongruente comparar estes Judeus expulsos aos expeditos bandos de salteadores, mas, finalmente, Hebreus e foras-da-lei aproveitam as facilida des de um mapa político complicado tanto na Alemanha como em Itália. Aliás, perto da Alemanha, existem as oportunidades da Polónia onde os fugitivos chegam em carroças, amontoados se for preciso, com os seus rebanhos; e perto da Itália, as facilidades do mar e do Levante. Os Venezianos, em 1 5 7 1 , falam em expulsar os seus Judeus, estando já alguns a bordo de navios prontos a sair quando a ordem é revogada308 • Estas partidas por mar não deixam evidente mente de ter os seus perigos: roubar as bagagens, vender as pessoas, a tentação é grande para o mestre do navio . Em 1540, um capitão de barco ragusano pilha os seus passageiros, Judeus que fogem de Nápoles, e abandona-os em Marselha onde o rei de França, Francisco I, tem piedade deles e os manda nos seus pró prios barcos para o Levante309 • Em 1 558, Judeus fugitivos de Pesaro3 1 0 chegam a Ragusa, depois navegam para o Levante: a tripulação, talvez ragusana, apo dera-se deles e vende-os na Púglia como escravos. Em 1 583 , marinheiros, desta vez gregos, massacram 52 dos seus 53 passageiros judeus3 1 1 • Sempre à procura de cidades «onde os seus pés poderiam encontrar repouso»3 12 , os Judeus estão finalmente e forçosamente por todo o lado. Ei-los, em 1 5 14, em Chipre onde os reitores recebem da Senhoria de Veneza a ordem de não autorizar nenhum destes Judeus a usar a gorra negra em vez da gorra amarelam. Eis, em Istambul, doze Judeus candiotas em má situação, oportunidade para se saber que na sua ilha, «são mais de quinhentos»3 1 4 • Numa outra ilha veneziana, em Corfu, em 1 588, são quatrocentos, sparsi per la città con /e lor case conggionte con quel/e di Christiani, dispersos pela cidade e as suas casas misturadas com as dos Cristãos: seria bom, diz o nosso documento, separá-los uns dos outros, para satisfação de ambos3 15 • De facto, os Judeus corfiotas gozarão sempre de vantagens junto das autoridades venezianas3 16 • Se quisessemas marcar a dispersão judaica à escala do Grande Mediterrâ neo e do mundo, encontrá-los-íamos facilmente em Goa, em Aden, na Pérsia, «sob o bastião à sombra do qual passam a sua miserável vida em todo o Levante»,
307 A. Milano, op. cit., p. 2 . 33 308 J. Ha Cohen, op. cit., p. 180 . 309 lbid. , p. 121 . • 3 10 lbid., p. 1 43 . 3 1 1 A. Hananel e E. Eskenazi, Fontes hebraici ad res oeconomicas socialesque terrarum balcanicarum sfl!cu/o XVI pertinentes, Sófia, 1 958, I, p. 7 1 . 3 12 A expressão retirada d e Joseph H a Cohen é banal. 3 1 3 Musco Correr, Donà delle Rose, 46, f.º 55, 5 de Junho de 151 4 . 3 14 Musco Correr, Donà deUe Rose, 21, f.º I, Constantinopla, 5 de Março de 1561. Ver igualmente sobre o gueto, a «zudeca» de Cândia, A. d. S., Veneza, Capi dei Cons. 0 dei X, Leltere, B. • 285, f. º 74 , Cãndia, 7 de Maio de 1554. 3 15 Museo Correr, Donà deUe Rose, 21, 1588. 3 16 A. Milano, op. cit., pp. 236, 281 , 283 ...
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO mas esta observação é de 16603 1 7 , e a roda girou e girará ainda. Em 1693, com efeito, um documento francês mostra-nos Judeus portugueses e italianos que se estabeleceram no Levante «há quarenta anos» introduzirem-se sob a protecção dos cônsules de França em «Esmirna». Introduziram-se igualmente em Marselha, ou «insensivelmente tomaram posse de uma grande parte do comércio do Levante o que obrigou o falecido senhor de Seignelay a expulsá-los de Marselha por um decreto do Rei»3 18 • Mas, a questão é retomada por eles na outra extremidade dos tráficos, no próprio Levante. Também há Judeus na Madeira e são tão numerosos na ilha de São Tomé que (são evidentemente cris tãos-novos) praticam aí o judaísmo «abertamente» 3 19; na América foram os primeiros a chegar e os primeiros mártires, desde 1 5 1 5 , em Cuba, da Inquisição Espanhola32º que não se aguentará aí; em 1 543 , Filipe II, então regente dos rei nos de Espanha, tinha-os expulso - gesto muito teórico - das Índias de Castela321 • • • Os Judeus são também numerosos na África do Norte e até no Sara.
Judaísmo e capitalismo O Judeu, originariamente camponês tal como o Arménio, desligou-se há sécu los e séculos do trabalho da terra. Por todo o lado é financeiro, assentista, mer cador, usurário, prestamista, médico, artesão, alfaiate, tecelão, até mesmo fer reiro . . . Muito pobre por vezes; medíocre prestamista se se apresentar ocasião para isso. Muito pobres seguramente essas Judias, vendedoras de enfeites, ofe recendo nos mercados da Turquia lenços, guardanapos, sobrecéus de leito322 , ou todos esses Judeus, por montes e vales, de que decisões rabínicas nos dizem nos Balcãs as querelas e as ocupações, modestas a maior parte das vezes323 • Os penhoristas, mesmo os mais humildes são quase uma burguesia nessas colónias frequentemente famélicas. Em Itália, a quantidade destes penhoristas é elevada e os seus serviços eficazes nos campos e nas pequenas cidades que os incitam. Em Setembro de 1 573, o podestà de Capodistria324 pede que se chame um ban queiro judeu à cidade, senão os habitantes, vítimas de contínuas carestias irão ter, forçosamente, com os usurários de Trieste que emprestam a 30 e 40% , o que não aconteceria com um prestamista local judeu; no ano seguinte, em 1574, a povera communità de Castelfranco pede à Senhoria de Veneza que lho per-
3 17 État de la Perse en 1660, par /e P. Raphai!I du Mans, p. p. Ch. Schefer, Paris, 1890, p. 46. 3 1 8 A. N., A. E., B lll 23 5, 1693 . 3 1 9 Na Madeira, ainda em 1682, Abbé Prévost, op. cit., lll, p. 1 72; Lisboa, 1 4 de Fevereiro de 1632: « . . • A illia (de São Tomé) está de tal modo infestada de cristãos novos que realizam as práticas judaicas quase aberta mente», J. Cuvelier e L. Jadin, L 'ancien Congo d'apres /es archives romaines, 1518, 1640, 1 954, p. 498 . 320 Prólogo de Fernando Ortiz, cm Lewis Hanke, Las Casas. . . , p. XXXVI. 321 Jacob von Klaveren, op. cil., p. 143 . 322 Belon du Mans, op. cit., pp. 182 e 182 v.0 323 A. Hananel e E. Eskenazi, op. ci/., l, 1958 (século XVI); li, 1960 (século XVII). 3 24 A. d. S., Veneza, Senato Terra, 62, 20 de Setembro de 1573 .
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AS CIVILIZAÇÓES mita em 6 de Abril, que conceda a Josef ebreo. . . di tener banco nella cittadina, col divieto pero di poter prestare salvo che sopra beni mobili, e ele só emprestará sobre bens móveism . Do mesmo modo, em 1 575, a communità de Pordenone suplicava por sua vez «para vantagem de numerosos pobres» poder autorizar un ebreo a tener banco326; o que não quer dizer que em seguida tudo corresse pelo melhor entre os prestamistas judeus e os cristãos que pedem emprestado . Em 1 573, a communità de Cividale dei Friul327 tinha assim pedido «para ser liberta da voracidade hebraica que atormenta sem cessar e consome os pobres desta cidade.» Um monte di hebrei é roubado em Conegliano, em Julho de 1 607, por salteadores de estradas , fuoruscitti. Os capelletti da Senhoria (diríamos os cara binien) vão atrás deles, recuperam a quantia (cinco mil ducados entre jóias e outros penhores), matam quatro dos bandidos cujas cabeças levam para Tre visa, levando para aí dois prisioneiros vivos328 • Mas, a par destes prestamistas a curto prazo e destes usurários, existem, muitas vezes expulsos, depois chamados, sempre solicitados, grandes mercado res judeus. São vistos em Lisboa, apesar das suas máscaras de cristãos novos, ou, se são ricos, de perfeitos cristãos, os Ximenes, os Caldeira, os Évora . . . Vê-se a sua acção inovadora, como a de Michel Rodriguez, ou melhor Rodrigua, judeu levantino, inventor em Veneza da escala de Spalato329; adivinha-se a sua força como a de Samuel Abravanel e da sua rica família que detêm nas mãos cl,.urante anos, o destino dos Judeus de Nápoles, emprestando ao rei e que vemos interessados no comércio do açúcar da Madeira e nas feiras de Lanciano, no tráfico cerealífero330; adivinha-se um colossal êxito através da carreira sem paralelo da família portuguesa dos Mendes e de seu sobrinho, Juan Minguez, dito João Micas, o João Micas dos avisos espanhóis do Levante33 1 • Marrano, regressa ao judaísmo em Istambul onde se torna numa espécie de Fugger, todo poderoso até quase à morte ( 1 579), sonhando ser um «rei dos Judeus» e consti tuir um Estado na Terra Santa (reparou as ruínas de Tiberíades), ser «rei·de
63 , 6 de Abril de 1574. lbid., 66, 15 75. lbid., 60, 1573 . 328 A. d. S., florença, Mcdiceo 3087, f.º 348, 1 4 de Julho de 1607 . J29 Ver supra, vol. I, pp. 3 19- 320. 330 A casa dos Abravaneles é de origem espanhola, os seus empréstimos ao Rei, Simancas, E.º Nápoles 1015, f. º 101, 6 de Outubro de 15 33 ; ibid., f. º 33 ; 101 8 , f. 0 2 1 , 15 de Janeiro de 15 34, se a usura não é feita pelos Judeus, será feita pelos Cristãos a uma taxa tripla, «porque el fin de Ytalia como V. M. tienc mejor expei'lmentado y cono cido, es ynterese»; ibid. , f. º 58 , 3 de Outubro de 15 34, «em Nápoles, de trezentas a quatrocentas famílias judias; 101 7 , f.º 39, 28 de Março de 1534, prisão de Cristãos Novos em Manfredonia, «que deba.xo de ser xpianos han bi bido y biben como puros judios»; 101 8, f. 0 58, 3 de Outubro de 15 34 : a cidade de Nápoles pede para conservar os seus Judeus, sem eles no ano passado os pobres estariam todos mortos de fome; 103 1, f.º 155, 25 de Agosto d� 1540, as mesmas medidas antijudaicas; 1033 , f. º 70, 19 de Junho de 1541, decidida a sua expulsão . . . A. d. S., Ná-' poles, Sommaria Partium, 242, f.º 1 3 v.0, 16 de Abril de 1543 , Samuel Abravanel manda extrair pelo seu agente Gabriele Isaac, 1 20 corri de cereal de Termoli; ibid. , 1 20, f. º 44, 8 de Junho de 1526, um Simone Abravanel, , in Rev. de Archivos, Bibl. y Museos, 1921, pp. 60-84. 149 Granvelle a Renard, 14 de Janeiro de 1553, citado por M. Tridon, op. cit., p. 85. UO M. Tridon, op. cit., p. 84. A partir de Novembro de 1553, o resultado estava alcançado, Carlos V à Rai· nhe de Portugal, Bruxelas, 2 1 de Novembro de 1553, in E. Pacheco, art. cit., pp. 279-280. m W. Oncken, op. cit., XII, p. 1086. 1 52 Ch. de la Ronciere, H. de la marine française, 1934, III, pp. 491-49 . 2 1 53 De Mula ao Doge, Bruxelas, 30 de Dezembro de 1553, G. Turbe, op. cit., 1, , p. 640. 2 1 54 Carlos V a Filipe, 1 de Janeiro de 1554, A. E. Esp. 229, f. 0 79. Sobre a atitude de Soranzo em Inglaterra, de Mula, 2 de Março de 1554, G. Turbe, op. cit., 1, 2 , p. 645, nota 2 . 1" O condestável ao cardeal de Paris (em Roma), Paris, 3 de Fevereiro de 1554, A. N., K 1498 (cópia em ita· liano). Simon Renard a Carlos V, Londres, 29 de Janeiro de 1554, A. E. Esp. 229, f. 0 79; do mesmo ao mesmo, 8 de Fevereiro de 1554, f. 0 80; 19 de Fevereiro de 1554, Março de 1554, ibid.; CODO/N, III, p. 458. 1 56 E. Lavisse , op. cit., V, 2 , p. 158.
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tanto o apoio da Inglaterra que Carlos V conquistou, mas a boa vontade de uma rainha que não passa da senhora contestada, ainda pouco segura dos seus meios e dos socorros espanhóis cuja passagem para a Inglaterra os Franceses podem travar 157 ; finalmente, uma rainha mais desprovida de dinheiro do que o próprio Imperador ou o seu filho. As abdicações de Carlos V: 1554-1556 Ora, a falta de dinheiro pesa duramente nesta fase da guerra. Do lado do Imperador, não deixam de surgir dificuldades com os Fugger, os Schetz e outros prestamistas de Augsburgo, de Antuérpia ou de Génova158 . Do lado fran cês, o Rei acha bem pedir emprestado sobre a praça de Lyon: 1553 será o ano do «grand party» . Mas este dinheiro que se pede emprestado é preciso reembol sá-lo e, para este efeito, exigir sempre mais impostos. Segue-se no país um estranho mal-estar, e que data de muito longe. Já em 1547 159 , o condestável tivera de reprimir, na Guiena, perturbações camponesas por causa das podas. Em Abril de 15521(J(), avisos transmitidos para Espanha assinalam que a França não tinha falta de trigo nem de pão, mas que o descontentamento era aí muito grande contra o imposto que não poupava os mosteiros nem os hospitais de Santo António ou de São Lázaro. A guerra que recomeçava nesse ano de 1 552 era a ruína da arraia-miúda, dos mercadores, dos camponeses que tinham tudo a temer das exacções dos fidalgos. «Cada fidalgo - continua o mesmo aviso -, não se apodera por todo o lado daquilo que precisa? Esta gente é como Mouros sem dono. » Trata-se, é certo, de um aviso espanhol, suspeito, mas em Abril de 1554, um aviso de França destinado à Toscana 161 também assinala o cansaço das pessoas, o mau estado dos exérci tos, a impossibilidade em que se encontra o rei, por falta de dinheiro, de recru tar os Suíços, o aumento dos impostos, uma vez mais, e a fundição das pratas privadas, a venda dos títulos de nobreza, as contribuições exigidas ao clero . . . Aliás, a fadiga é idêntica e m todos o s países cristãos: França, Espanha, Itália ou Alemanha. O papa tentará, em Agosto, servir-se disso para uma tentativa de paz 162 . O próprio Império Turco, cujas forças estão empenhadas na Pérsia, não se encontra em melhor situação. É preciso, em 1555, que o embaixador do Rei IS7 Colocam para este efeito tropas perto de Calais, o condestável ao cardeal de Paris, Paris, 3 de Fevereiro de 1554, cópia italiana, A. N . , K 1489. ISB Carlos V a Filipe, Bruxelas, 13 de Março de 1554, A. E. Esp. , f.º 81 ; 1 de Março de 1554, f.º 82;
229
2
1 de Abril de 1554, f. 0 83; 3 de Abril de 1554, f.º 84. Da Mula ao Doge, Bruxelas, 20 de Maio de U54, G. Turba, op. cit., 1, 2, p. 648 e segs. I S9 E. Lavisse , op. cit., V, 2, p. 137 . 1 60 Avisos de Francia, Nantes, 26 de Junho de 155 , A. N., K 1489. 2 161 Avisos de Francia, 3 de Abril de 1554, A. d. S., Florença, Mediceo 424, f. º 5, citado por H. Joly, op. cit., p. 1 19. 162 H. Joly, op. cit. , p. 1 18. 309
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Cristianíssimo, Codignac, se dirija até ao exército que opera contra o Sófi a fim de solicitar do próprio Sultão o envio da armada 1 63 • Assim, onde os historiadores imaginam intrigas e cálculos, não houve, muitas vezes, falta de meios financeiros? Durante esses dois anos de 1554- 1 555, a guerra é por todo o lado travada brandamente: guerra de praças na fronteira dos Países Baixos e na orla do Piemonte onde Brissac 1 64 toma de surpresa a praça forte de Casal, em Junho de 1 555; guerrilha marítima no Mediterrâneo onde a armada turca só assiste: em 1 554, sob o comando de Dragut, atrasa-se em Durazzo mais do que deve, é pelo menos a opinião dos Franceses que, de acordo com as galeotas de Argel, tentaram, durante este tempo, intervir na Córsega e nas costas da Marema toscana 165 • Em face deles, nenhuma reacção, tanto mais que um certo número de galeras espanholas foi enviado para o Atlântico a fim de acompanhar Filipe a Inglaterra. Mas Dragut chega tarde e circula apenas ao longo da costa de Nápoles para atingir o Oriente mais rapida mente. Os agentes franceses dizem que é traição 1 66 e, desde então, empenhar -se-ão em afastar o personagem do comando da frota. É possível, apesar de tudo, que Dragut tenha recebido dinheiro dos Imperiais. Mas no ano seguinte ocupa na frota apenas um lugar de segundo plano, sob as ordens do novo capi tão paxá, Pialí Paxá, homem jovem, inexperiente. Ora, apesar do rei de França que exigiu uma guerra «forte e tenaZ» 167 , a frota turca apenas assiste, sem tomar parte nele, ao cerco de Calvi que, bem abastecido pelos Genoveses, derrota rá os Franceses. Assiste, com igual despreocupação, à tentativa de Agosto contra Bastia que, desde o ano anterior, recaíra nas mãos do ininúgo. Finalmente, depois de algumas tentativas falhadas nas costas e nas ilhas toscanas, dada a falta de víveres 1 68 e o mau tempo, vira de bordo e regressa às suas bases. Não se terá o direito de pensar que recebera, tal como o ano passado, instruções pru dentes? Essa carência dos grandes Estados permite aos pequenos mostrarem-se mais eficazes do que normalmente. Viu-se com que energia Génova trava a sua guerra na Córsega: em 1 554- 1 555, expulsa os Franceses de uma grande parte da ilha1 69 • O esforço de Cosme de Médicis não é menos poderoso: mal apoiado no mar por André Dória que por um lado é prudente e por outro, como genovês, observa com desagrado a expansão toscana, Cosme obrigou de qualquer forma os Franceses de Siena a capitularem, a 21 de Abril de 1 555; alguns meses mais
163 e. Manfroni, op. cit., III, p. 164 H. Joly, op. cit., p. 122.
392 e referências a E. Charriere, op. cit.
165 É durante estas operações que perece Leone Strozzi. 1 66 e. Manfroni, op. cit., III, p. 167 lbid. , p. E. Chaniere, Négociations. . . , li, p. 168 Marquês de Sania à princesa Joana, Roma, 22 de Novembro de l S S S , J. J. Dõllinger, op. cit., p p .
392;
·2 1 6.
391.
351.
2 14-
1 69 Durante o Inverno, a frota genovesa sai da sua toca. De doze galeras que lhe estão confiadas, que são o seu inlcio, Joio André Dória, perde nove em Janeiro de 1 SS6, na sequência de um golpe de libeccio, nas costas da Córsega, C. Manfroni, op. cit., III, p. 394.
3 10
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tarde, reconquista Ortibello na costa da Marema. Apenas subsiste então a «República» de Montalcino, nas montanhas dos Apeninos, refúgio dos patriotas sieneses e de alguns franceses 170 • Mas, desde o final de 1 555, Cosme ataca começando pela limpeza do Vai di Chiana171 • Pelo seu lado, o Estado argelino merece só por si, em relação a estes dois anos, uma menção mais ampla do que a frota otomana. Em 1 554172 , Salah Rais, conduzindo o seu exército por mar até ao «novo» porto de Melilla, depois por terra até Taza e Fez onde entrou como vencedor, travou contra Marrocos uma incursão de uma espantosa rapidez. A cavalaria marroquina não conse guiu resistir aos arcabuzes dos Turcos. Mas, esta vitoriosa incursão não pros perou, porque os vencedores, tendo instalado em Fez o seu protegido (o seu escravo da véspera, esse Ba Hassoun feito prisioneiro no ano anterior), este em breve era mandado matar pelo antigo Xerife, regressado à cidade desde a partida dos vencedores que, carregados de espólios, gratificados com grandes somas de oiro pelo seu protegido reconhecido, se tinham voltado do novo para os cavalos e as mulas dos Marroquinos. Tudo o que restará aos argelinos desta expe dição será o pequeno rochedo do Penõn de Vélez de la Gomera, essa ilhota de que tornaremos a falar l73 . No · ano seguinte, em 1553, exercem a sua actividade no Leste, contra Bugia, ou antes, contra o presídio espanhol de Bugia, porque já não se trata de uma verdadeira cidade, mas, aquém dos antigos limites da aglomeração indígena, de uma pequena zona fortificada, em forma de triângulo, tendo em cada ângulo um forte; o castelo imperial, obra rectangular análoga à fortaleza primi tiva de La Goleta; o grande Castelo e o pequeno Castelo do mar, antigas cons truções mouras, em frente à praia174 • No interior destas muralhas encontra-se uma centena de homens e algumas dezenas de cavalos. Para alimentar uns e outros era preciso contar tanto com as saídas como com a chegada dos barcos abastecedores. O velho Luis Peralta, governador da praça, encontraria a morte numa emboscada, quando ia arranjar uma jeira de forragem, deixando a seu filho Alonso o encargo de lhe suceder 175 • Em Junho de 1555, Salah Rais deixava Argel com alguns milhares de soldados, entre os quais os renegados excopete ros, enquanto despachava por mar, para o transporte dos víveres e da artilha ria, uma pequena frota: duas galeras, uma barca, uma «saeta» francesa requisi tada em Argel; como se vê, muito pouca coisa, tendo a maior parte dos barcos corsários partido para se juntarem à frota de Leone Strozzi. Mas, estes meios foram suficientes: o forte não conseguiu resistir à artilharia e os seus defensores partiram para a cidade próxima onde a defesa já não era possível. Alonso de Les origines politiques des guerres de religion, Paris, 1914, II, pp. 1 14, nota 1, Dezembro de ISSS. Epitome. . . , op. cit., r.os 68 e 68 v . 0
170 Lucien Romier,
171 Coggiola, «Ascanio della Coma», p.
172 D. de Haedo,
393-440.
173 Ver infra, pp. 307-308. 174 Paule Wintzer, «Bougie, place forte cspagnole», in B. Soe. géogr. d'Alger, 1932, pp. 185-222 , especial mente p. 204 e scgs., e 221 . 17S Diego Suárez, Hist. dei maestre ultimo que fue de Montesa. . . , Madrid, 1 889, pp. 106-107 .
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Peralta em breve capitulava contra a promessa, para ele próprio e quarenta dos seus companheiros, à sua escolha, da vida salva e do repatriamento para Espa nha, a bordo da «saeta» francesa. Em Espanha, a repercussão foi enorme 176 • Em Valência, na Catalunha, em Castela, falou-se em montar uma expedição de vingança e o arcebispo de Toledo, Siliceo177 , colocou-se à frente do movimento. Depois tudo acalmou, como acontece, nota Luis Cabreram nestas questões de honra e de reputação quando exigem muito dinheiro. A expedição foi adiada a pretexto de que o Imperador não estava nos seus reinos; mas o ressentimento será tão vivo que no regresso Alonso de Peralta foi preso, julgado e decapitado em Valladolid, a 4 de Maio de 1 556178 • Seria assim tão culpado? Depois de ata car Bugia tinha enviado em devido tempo o seu pedido de socorro a Espanha, de onde as ordens foram expedidas com certa morosidade até ao duque de Alba, então vice-rei de Nápoles. Quando o príncipe Dória, alertado pelo duque, estava em Nápoles, em Março de 1 556, com as suas galeras prontas a navegar, chegou a notícia da capitulação 179 • • • Enquanto o s pequenos países resolviam a s suas questões particulares, o jogo dos grandes Estados continuav.a no plano diplomático. A morte do papa Júlio III, a 22 de Março de 1555 180, representava para Carlos V a perda de um apoio inegável. O rei de França herdou o que perdera quando, depois do reinado de Marcel II, que só deveria durar algumas semanas 181 , Paulo IV foi eleito, a 23 de Maio de 1 555 182 , no mesmo dia em que se iniciavam, na Marca, nego ciações franco-imperiais tendo em vista a paz 183 • Nada fazia prever, no início, os sentimentos de violenta hostilidade do Papa a respeito do Imperador, mas só por si ameaçavam a paz que parecia querer estabelecer-se no Norte. Com efeito, um tratado secreto (cuja existência se conheceu contudo então em Veneza e em Bruxelas), com data de 13 de Outubro de 1 555, assegurava aos Franceses a aliança formal do Papa, no caso de as esperanças de paz se desvanecerem 184 • Mesmo no interior do Império, anunciavam-se importantes mudanças . Filipe chegara facilmente a Inglaterra, em 1 554 185 , e esta fora a grande «man chette» de todas as correspondências diplomáticas. Era ele ou não amado pela Rainha? Teria filhos? (Dizia-se que não, a partir de 1 555). Ao mesmo tempo, sabia-se que Carlos V cedia a seu filho, rei de Inglaterra, os reinos de Nápoles e
176 Luis de Cabrera, Felipe II Rey de &palla, Madrid, 1877, !, p. 4 . 2 177 Peticiones dei Cardenal de Toledo para la jornada de Argel y Bugia y Conquista de Africa, Sirnancas, E.º 5 1 1-5 13. 178 Paule Wintzer, art. cit., p. 22 1 . Em seu favor, Diego Suárez, op. cit., p. 10 . 7 179 O duque de Alba à princesa Joana, 29 de Março de 1556, Simancas, E. 0 1049, f. 0 1 1 . 1 80 G . Mecatti, Storia cronologica dei/a Ottà di Fireme, op. cit., II, p . 697. 181 Coggiola, «AscaniO . . . » , p. 97. 182 H. Joly, op. cit., p. 122; S. Romanin, op. cit., VI, p. 30. 2 183 H. Joly, op. cit., p. 1 0. 2 1 84 Simancas, P. º Real, n. 0 1583, 1 3 de Outubro de 1555, Coggiola, art. cit., p. 246. 18S f"tlipe à princesa Joana, Windsor, 9 de Agosto de 1554, A. E. Esp. 229, f. º 84. Viqje de Felippe // (sic) à Inglaterra quando en 1555 /ué a casar con la Reina D. ª Maria, CODOIN, 1, p. 564.
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da Sicília e o ducado de Milão1 86• Sem dúvida, o gesto era sobretudo destinado a valorizar o recém-13 O rei ao vice-rei da Sicília, Bruxelas, 4 ae Abril ae 1559, Simancai., E. 0 l i24, i. 0 304. 14 E. Charriére, op. cit., li, p. 596, nota. 1 5 lbid., p. 603. l 6 Marin de Cavalli ao Doge, Péra, 1 8 de Março de 1559, A. d. S . , Veneza, Senato Secreta, Costant.
Filza 2/B.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
O Verão de 1 559 parece dar-lhe razão: a frota turca não ultrapassa, nesse ano, a costa da Albânia e, desordenadamente, regressa daí a partir do Outono, sem nada ter tentado contra a Cristandade. Filipe II contou sem dúvida dema siado com o facto de que ela só poderia ameaçar o Ocidente com a cumplicidade francesa. Faltando-lhe esta cumplicidade, deveria contentar-se com rápidas incursões, aproveitando o bom tempo. Apesar da sua inferioridade numérica, a frota hispânica podia portanto permitir-se uma acção, quer no fim da boa esta ção, durante o Inverno, quer no início, antes de ser alcançada pelo seu adversá rio . Trata-se de não se deixar surpreender, sobretudo se se propuser agir no centro do Mediterrâneo. De facto, a Espanha tem de fazer face a um duplo perigo: de um lado, os Berberescos, de Trípoli até Salé; do outro, os Turcos. Cada grupo tinha a sua autonomia e separavam-se durante o Inverno; mas juntavam-se um ao outro e reforçavam-se durante a boa estação. Os Berberescos têm loja aberta no Medi terrâneo do Oeste, e a loja prospera; no centro do Magrebe, Argel cresce, tor na-se um Império que é uma ameaça directa contra a Espanha. Claro que este «Império» não é um modelo de disciplina política. Está cortado por largas manchas divergentes, como as montanhas da Cabília; mas as grandes rotas mantêm-se. Dissemos como, em 1 552, Salah Rais, sétimo rei de Argel, tinha avançado até Uargla; em 1 553 até Fez. Esta praça fora reconquistada e o Xerife tinha-se mesmo, momentaneamente, apoderado de Tlemcen, em 1 557 . Perse guido pelos Turcos, batera em retirada para a capital, mas a pouca distância da cidade, graças à sua numerosa cavalaria e aos «Elches», esses Mouriscos refu giados em Marrocos, hábeis no manejo do arcabuz - prendera as tropas de Hassan Paxá, o filho de Barba-Roxa. Na direcção do Oeste, a fronteira argelino -marroquina mostrava-se finalmente mais fácil de franquear do que de des locar. Mas a Leste, o Estado argelino tinha conseguido libertar-se, na sua frente marítima, do presídio espanhol de Bugia, em 1 5 5 5 . Finalmente, fora-lhe dado, em 1 558, alcançar contra Orão um imenso sucesso. No início do século, desde 1 509, os Espanhóis tinham praticado um jogo cerrado em redor de Orão, conseguindo, por várias vezes, anexar Tlemcen. Esta política de prestígio praticada conscientemente pelo conde Martin de Alcau dete, encontrara todavia o seu termo em 1 55 1 , no dia em que uma guarnição turca pôde instalar-se e fixar-se em Tlemcen. Isto foi, desde então, para o presí dio uma perturbação constante e foi para a atenuar e elevar o moral da guarni ção que, com tropas recrutadas em parte nas suas terras de Andaluzia, o Velho Don Martin, E/ Viejo, como era chamado para o distinguir de seu filho, organi zou uma expedição contra Mostaganem, a doze léguas a Leste de Orão. Privar os Turcos de Mostaganem era romper a sua ligação com Tlemcen, pois os Tur cos encaminhavam por este porto o abastecimento e a artilharia necessários às suas operações do Oeste. Bem travada, a operação só podia ter êxito contra uma praça mal fortificada. Mas perdeu-se tempo a exercitar os novos recrutas em surtidas em redor de Orão que alertaram toda a África do Norte. Depois, o Velho conduziu com lentidão e precaução a sua expedição. A 26 de Agosto, 348 .
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
surpreendido pelos Argelinos e pelos indígenas, sucumbia perante a multidão, e mais de doze mil Espanhóis caíam nas mãos do vencedor. Em Argel, todas as casas ficaram cheias destes novos cativos e, no ano seguinte, muitos renegaram a fim de irem combater na Cabília Pequena, incorporados nas tropas de Hassan Paxá 17 • Estes pormenores mostram a força com que o novo Estado turco talhava o seu lugar em terra magrebina. Conhece-se ainda melhor a sua força crescente no mar, a Leste até à porta da Sicília, ao Norte até à Sardenha, a Oeste para lá de Gibraltar: «Os Turcos navegaram há pouco com quatorze ou quinze galeras para os Algarves - escrevia Nicot, embaixador do rei de França em Lisboa, a 4 de Setembro de 1 559 18 - e espalharam o terror entre a população. À minha chegada, retiraram-se . . . » Causaram maiores prejuízos em Castela e ergueram «em Cális 19 uma bandeira branca, pedindo resgate de todas as suas presas e foram aí resgatados todos os cativos.» Vê-se de que «Turcos» se trata neste caso . . . Mas o Estado argelino, o mais poderoso dos Estados berberescos, não era o único. A Leste do Magrebe, o «reino» de Trípoli desenvolvia-se à imagem de Argel, sobretudo desde que Dragut, em 1 556, tinha tomado a sua direcção. Com a diferença todavia de que o Estado tripolitano só podia alimentar-se à custa de uma província desesperadamente pobre, difícil de submeter, particu larmente na região do Darrien onde as pessoas cortavam livremente, as rotas que traziam do Sudão o ouro e os escravos. Limitada do lado da terra, Trípoli voltava-se ainda mais para o mar; toda a sua riqueza vinha desse lado, do lado da Sicília de tal modo próxima, ao alcance da mão. Ora, para além da Sicília, o que Dragut pôs em causa foi a vida material do Mediterrâneo ocidental, hasta Catalufla y Valencia que morian de hambre, incluindo a Catalunha e Valência que morriam de fome, escrevia em Junho de 1 559 o duque de Medina Celi20, vice-rei da Sicília e grande promotor da expedição contra Trípoli.
A expedição de Djerba2 1 Esta expedição tomaria uma direcção diferente da que fora primitivamente decidida e voltar-se-ia contra Djerba; depois das vicissitudes que relataremos muito sucintamente.
1 7 D. de Haedo, op. cit., pp. 73, 74. Sobre a política espanhola na Á frica do Norte, ver o nosso artigo in Revue Africaine, 1928 ; Jean Cazenave, Les sources de l'histoire d'Oran, 1933. 18 Jean Nicot, Correspondance. . . , p.p. E. Falgairolle, p. 7. 1 9 Cádis. 20 Ao rei, 20 de Junho de 1559, Simancas, E. 0 485. 21 Para todo o pormenor deste parágrafo, Charles Monchicoun, L 'expédition espagnole contre /'íle de Djerba, Paris, 1913, modelo de erudição minuciosa. Em princípio, as nossas referências dirão respeito a fontes não utilizadas para este livro.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
Se a decisão da expedição pode datar-se de 1 5 de Junho de 1 5 59, corno dão disso fé as ordens e instruções expedidas de Bruxelas22 , os projectos são muito anteriores e a responsabilidade.não é apenas de Filipe II. Todos os testemunhos indicam o papel do duque de Medina Celi, vice-rei da Sicília, e do grão-mestre de Malta, Jean de la Valette. Ligados por urna estreita amizade23 , ambos estão perante o terrível corsário de Trípoli e a Jean de la Valette que antigamente, por conta dos cavaleiros, fora um notável governador de Trípoli24, é preciso dar parte dos desgostos de um «Africano» e da ambição de um chefe de Estado. Trípoli reconquistada só podia voltar à sua Ordem. Para Juan de la Cerda, du que de Medina Celi, existe, além das necessidades sicilianas, o desejo de reno var, mas com mais brilho, aquilo que o seu predecessor, Juan de la Vega, con seguira contra a Á frica, em 1 550. Ora, as circunstâncias parecem favoráveis. Trípoli está mal fortificada, com urna guarnição de apenas quinhentos Turcos. Dragut, obrigado sem cessar a intervir na retaguarda, encontra-se em plena hostilidade com o «rei» de Kairouan, esse emir Chabbia cujas tropas, pelo que conta um aviso de La Goleta, bateram as de Dragut, e cuja autoridade moral é grande, quasi come il Papa tra Christiani, afirma Carnpana25 , o que é dizer muito. Finalmente, tem-se sempre a certeza de encontrar auxílios entre os «Mouros», nómadas demasiado perseguidos pelos Turcos para lhes dedicarem qualquer simpatia. O duque de Medina Celi mantém relações secretas com eles (e mesmo, por meio de um tal Jafer Catania, cumplicidades no círculo de Dragut). Contudo, reconhece-o ele mesmo, apesar das cartas e dos sentimentos destes xeques, seria pouco prudente fazer um cálculo sobre eles26 . Foi um cavaleiro de Malta, o comendador Guirneran quem, em Bruxelas, foi apresentar ao rei o projecto contra Trípoli. A questão depressa ultrapassa a fase das primeiras observações. A 8 de Maio de 1 559, Filipe II exigiu um relatório ao vice-rei. Mas ainda este relatório não tinha saído da Sicília e já o rei tornava a sua decisão27 e notificava-a ao duque de Medina Celi investindo-o do comando da expedição numa carta de 15 de Junho onde expõe os seus motivos: paz com a França; o interesse que há em libertar a Itália de urna tão desagradável vizi nhança; mau estado dos negócios de Dragut no regresso da sua expedição às montanhas do Dariano, no meio de Mouros hostis que o mantêm num serniblo queio; finalmente, facilidade da expedição que poderá fazer-se desde o Verão, antes que o corsário se tenha reforçado no seu esconderijo. No mesmo dia, na sua instrução ao comandante Guimeran, o soberano acrescenta que este ano, outro argumento favorável, não haverá armada turca importante, informam-no 22 Ao vice-rei da Sicília. mesma data. Simancas, E. 0 1 1 24, f. 0 300; instrução ao comenaador Guimeran, mesma data, ibid., f.º' 278 e 279; ao grão-mestre de Malta, mesma data, ibid., f. º 302, etc. 23 Don Lorenzo van der Hammeny Leon, Don Felipe E/ Prudente. . . , Madrid, 1625, f.º 146 v . 0 24 Jean d e L a Valeue, d a língua d e Provença, grão-mestre d a Ordem, 1557 a 1568. Governara Tripoli d e 1546 a 1549. Cf. os extractos de G. Bosio, I Cava/ieri gerosolimitani a Tripoli, p.p. S. Aurigemma, 1937, pp. 271-272 . 25 Op. cit., pp. 82-83. 26 O duque de Medina Celi a Filipe II, 20 de Julho de 1559, Simancas, E.º l, f.º 204. 27 Decisão de 15 de Junho, relatório de 0. 2
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de todos os lados. O rei punha à disposição de Medina Celi as galeras de Itália, recebendo as de Espanha pelo contrário a ordem de regressar aos seus países de origem para protegerem as respectivas costas contra os corsários. Quando Juan de Mendoza, seu chefe, recusa mais tarde juntar-se à expedição28 , apenas obedecerá às suas ordens. Portanto, a expedição será conduzida unicamente com os elementos italia nos da frota de Filipe II, galeras da Sicília e de Nápoles, galeras alugadas dos Genoveses, dos Toscanos, dos Sicilianos, do duque de Mónaco, e frotas aliadas do papa e da Religião. Não era difícil agrupar estes navios, libertos pela paz com a França, no habitual e cómodo porto de Messina. Ainda era mais fácil reunir os abastecimentos e, mais· ainda, os homens indispensáveis. À partida, Filipe II tinha previsto o embarque de oito mil Espanhóis, dos quais, cinco mil a recrutar nas guarnições de Milão e de Nápoles e dois mil a encontrar no reino da Sicília. Com os mil homens que Guimeran oferecia, em nome de Malta. isto não bastaria29? Ora, antes de saber a decisão do rei, no seu memorial de 20 de Junho, Medina Celi exigia uns vinte mil homens, se duas baterias de artilharia lhe parecessem suficientes, dada a fragilidade da praça. Estes números subli nham a oposição, desde o início, entre o projecto real, expedição rápida a exe cutar no local, durante o Verão, e a operação mais pesada que o vice-rei sonha organizar. Assim, o rei, ao confirmar ser difícil retirar os Espanhóis da Lom bardia (as praças do Piemonte não tinham sido ainda restituídas), deu imedia tamente ordem, a 14 de Julho30, de os substituir pelos dois mil Italianos que o duque de Alcalá acabava de enviar de Nápoles para Messina, a bordo das gale ras destinadas à expedição. O essencial era que estas não perdessem tempo a subir até Génova para aí embarcarem tropas e, como escrevia Filipe 1131 , «que se executasse o empreendimento dentro do tempo que. restava da boa estação. » Andar depressa, eram estas a s instruções d o rei. Mas Medina Celi exige um aumento dos efectivos que obriga Filipe II a 7 de Agosto32, a reiterar a ordem de enviar os Espanhóis da Lombardia, con la mayor brevidad, para a Sicília. Sim, mas o duque de Sessa, em determinada altura, encontra, na morte de Henrique II, um novo argumento para não largar os seus homens33 . Imagina-se, em relação a estas sucessivas ordens, os atrasos impostos, todas as vezes, pela correspondência entre Gand, Nápoles, Milão e 28 C. Monchicourt, op. ci/ . , p. 93, leva a pensar que D. J. cie Menaoza agiu por sua própria iniciativa. R. B. Merriman (op. cit., IV, p. 102) indica a título ae hipótese que D. Juan pode ter recebido uma ordem. O facto é determinado pela cana de Filipe li (ver notas precedentes, nota 22, p. 3SO e nota 8, p. 346). Ver igualmente sobre este ponto e sobre o desarmamento das costas de Espanha, o Aubespino ao rei, 20 de Julho de ISS9, E. Charriere, op. cil., li, p. 600, nota; L. Paris, Nég. sous François II, p. 24; C. Duro, op. cit., li, p. 46. 29 Curiosas observações de A. de Herrera, op. cil. , I, p. 14; por todo o lado coloca-se, depois de IS59, o pro blema da desmobilização, a expedição projectada, não será um meio de libertar a Itália espanhola dos soldados que «restavam da guerra do Piemonte e não podiam ocupar-se melhor senão contra os Infiéis»? 30 Filipe li ao com. Guimeran, Gand, 14 de Julho de 1559, Simancas, E.º 1 1 24, f. º 331. 31 A o vice-rei d a Sicília, Gand, 14 d e Julho d e 1559, Simancas, E. 0 1 124, f . 0 321 . 32 Ao com. Guimeran, Gand, 7 de Agosto de 1559, Simancas, E.º 1 1 24, f.º 330. 33 Figueroa à princesa Joana, Génova, 7 de Agosto de 1559, Simancas, E.º 1388, f.º' 162-163.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
Messina . . . A 10 de Agosto, João André Dó ria escreve ao rei 34 que confia uma galera a Alvaro de Sande: este irá a Génova, daí a Milão e dirá de sua justiça ao duque de Sessa para conseguir, além dos seus Espanhóis, dois mil Alemães e dois mil Italianos a recrutar na Lombardia. Eis, em relação às galeras, novos problemas de transporte, sem contar os navios carregados com o abastecimento de bolacha. A 1 1 de Agosto35 , em Milão, o duque de Sessa decide-se finalmente, dado que as restituições aos duques de Sabóia e de Mântua se realizaram como o combinado. Será contudo preciso mais de um mês para que as infantarias espanhola, alemã e italiana, prometidas urnas a seguir às outras, cheguem a Génova36 . A 14 de Setembro, Figueroa, o embaixador espanhol nesta cidade, anuncia o seu embarque, a bordo de algumas naus e de onze galeras: «São todas esplêndidas e boas tropas. Se o tempo não as impedir, partirão completas, sem perder um instante.» Mas estamos já a 14 de Setembro! Em Nápoles, os atrasos e as dificuldades são idênticos. João André Dória, a 14 de Setembro37 , anuncia que as galeras da Religião partiram para Nápoles para daí trazerem a infantaria italiana que a Ordem dos Cavaleiros acaba de recrutar. Quanto a ele, enviou galeras para Tarento para aí procurarem cinco companhias italianas que o vice-rei de Nápoles cedeu ao corpo expedicioná rio e, avançando até Otranto, carregar aí pólvora e balas. Recebeu ainda, na véspera, cartas do vice-rei que declara já não querer ceder a dita infantaria por que recebeu «a notícia certa da chegada da forte frota turca, de oitenta velas, a Valona onde embarcou 1 500 spahis»38 • Repentinamente, inquieta-se pelas suas galeras: «Deus queira reconduzi-las sãs e salvas . . . ». Contudo, os prazos correm e Filipe II receia isso: «Estou muito preocupado com o êxito da expedição - escreve a 8 de Outubro39 - sendo a estação tão tardia.» De Siracusa, onde a frota acaba de chegar, Don Sancho de Leyva, que comanda as galeras da Sicí lia, escreve a 30 de Novembro: «Não deixei de dizer ao duque de Medina Celi e por várias vezes, que na rapidez residia o primeiro elemento do êxito desta expedição e que o atraso era o seu maior impedimento . . . Ora, foi em toda a Itália que se foram procurar soldados e abastecimentos»40• Importava assinalar este lento estabelecimento4 1 . Quando a frota parte finalmente de Siracusa, a l de Dezembro, num intervalo de bom tempo42, conta quarenta e sete galeras, quatro galeotas, três galeões (ao todo, cinquenta e qua34 J. André Dória a Filipe l i , Messina, 10 de Agosw de 1559, Simancas, E.º 1 124, f.º 33 5, em italiano. Mais tarde, J. A. Dória já só se corresponderá com o rei em espanhol. J S O duque de Sessa ao rei, Milão, li ae Agosto de 1559, Simancas, E. 0 1 2 10, f. 0 203. 36 Figueroa a Filipe II, Génova, 14 de Setembro de 1559, Simancas, E. 0 1 388 . 3? J. A. Dória a Filipe II, Messina, 14 de Setembro de 1559, Simancas, E.º 1 1 24 , f.º 336. 38 lbid. 39 Filipe II ao duque de Medina Celi, Valladolid, 8 de Outubro de 1559, Simancas, E. 0 1 1 24, f.º' 325-326. 40 A Filipe II, Simancas, E.0 1 1 24, f.º 270. 41 Sobre esta lentidão, inumeráveis documentos e nomeadamente, Simancas, E.º 1 049, f.º' 1 8 5, 1 88 , 189,
225, 227 , 251, 272.
42 Gio. Lomellino à Senhoria de Génova, Messina, IO de Dezembro de soli, Napoli-Messina, 1-2634.
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1559, A. d. S., Génova, Lettere Con
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
tro navios de guerra e trinta e seis naus de carga43); a bordo, dez a doze mil homens44, uma força mais importante do que a que operara contra África, em 1550, e que só fora superada pelas expedições que Carlos V realizara em pessoa contra Tunes e Argel. O seu próprio volume explica a lentidão da sua concen tração, mas a frota turca, chegada em Agosto a Valona, ainda a atrasou mais45 . Herrera afirma que se esta armada de uma centena de velas não foi mais longe em direcção ao Oeste, é porque foi mantida em respeito pelas galeras reunidas em Messina46• Seria necessário dizer, pelo menos, que as duas frotas se imobili zaram à distância. Só quando os Turcos se tiverem de novo dirigido para o Oriente, em Outubro, o vice-rei de Nápoles aceitará dar os últimos soldados necessários à expedição e que mantinha na região de Tarento47 . A frota cristã passa então de Messina para Siracusa. Mas a partir de então, deixa de haver surpresas. Toda a Europa está ao corrente; igualmente os Turcos e os corsários. Dragut fortifica-se. Uma nau francesa que partira de Marselha, a 25 de Novembro, leva, pelo menos até Milo, notícias da armada instalada em Messina48 e da qual Dragut, no Outono, se apoderou de um navio enviado como batedor49 . Correm milhares de boatos, mais ou menos exactos, nas correspondências venezianas50, se bem que o Turco começa a equipar à pressa, em Constantinopla, uma frota que será, diz-se, de 250 velas. A opinião de Maximiliano, em Viena, é de «que se tornou pública de tal modo cedo a expedição que se deu ao Turco um motivo e tempo para prepa rar uma tão grande armada» 51 • Será para colocar do seu lado pelo menos um elemento de surpresa que a frota inicia a sua viagem no mês de Dezembro? Todos os marinheiros sabiam que era uma loucura escolher semelhante época. Mas o duque é um soldado e não um marinheiro; desprezou todos os conselhos e a frota abandonou Messina. Quase de imediato, ei-la vítima do mau tempo. Único recurso: voltar a Malta. Os marinheiros tiveram de sujeitar-se a tudo porque o mau tempo a reteve aí dez semanas, até 10 de Fevereiro de 1 560. Durante esta longa espera, as epide mias dizimaram o corpo expedicionário que perdeu, antes de combater, dois milhares de homens. O encontro das galeras e das naus, que tornaram a partir separadamente, foi fixado nas proximidades de Zuara. As naves chegaram com algum atraso; as galeras chegaram aí a 16 de Fevereiro, depois de um desvio pela� ilhas Ker43 C. Monchicourt, op. cit., p.
44
lbid.' p.
92.
88.
1559, mesma referência do que na nota 42, pagina precedente. Op. cit., 1, p. 15. 47 Figueroa a Filipe II, Génova, 27 de Outubro de 1559, Simancas, E.º 1388, f. º 16. 48 Marin de Cavalli ao doge, Péra, 29 de Janeiro de 1560. A. d . S., Veneza, Senato Secreta, Cost. 2/B, f.0 222 v.0 9 4 C. Monchicourt, op. cit. , p. 1 00. 50 Como 1 de Janeiro de 1560, C.S.P., VII, p. 150. 3 5 1 Giacomo Soranzo ao doge, Viena, 3 de Fevereiro de 1560, G. Turba, op. cit. , 1, p. 1 34 . 45 Gio. Lomellino à Senhoria de Génova, Messina, 24 de Agosto de
46
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kenna e Djerba, ocasião de tomar dois navios carregados de azeite, de lã grossa e de especiarias52 e de deixar escapar duas galeotas que, com Euldj Ali, navega ram até Constantinopla para lançar o alarme. Ocasião sobretudo de conceder a Dragut, que se encontrava em Djerba, o tempo de ser avisado e de atingir Trí poli. Como se adivinha sem dificuldade, estavam todos muito inquietos. Escu temos, na outra extremidade do Mediterrâneo, o bailio veneziano de Constanti nopla: chegaram quatro galeras de Dragut. «Diz-se que trouxeram, além de escravos, grandes riquezas do dito Dragut, sinal de que considera a partida deses perada. Exige um auxílio rápido, dizendo que só dispõe de 1 500 Turcos: todos os corsários que tinham passado o Inverno em Trípoli, com cerca de quinze navios, ao anúncio da chegada dos Espanhóis, fugiram sem esperar autorização . . . »53 •
Se a armada tivesse então atacado Trípoli, teria tido alguma oportunidade de vencer. Era já um erro o facto de Dragut ter falhado em Djerba, porque o corsário bloqueado na ilha, os quatrocentos Turcos que se encontravam em guarnição em Trípoli não teriam podido impedir uma vitória fácil, reconhecê -lo-ia mais tarde o duque de Medina Celi54 • Mas na maré baixa de Palo, perto de Zuara, a armada voltou a imobilizar-se, por causa do mau tempo, durante a segunda metade de Fevereiro; novo atraso, novas epidemias, novas perdas de homens. A 2 de Março, fez-se à vela, mas para Djerba, sem dúvida porque se sabia que Dragut regressara a Trípoli; em vez da cidade, conquistava-se a ilha rica de palmeiras, oliveiras, rebanhos, a ilha da lã e do azeite. O de sembarque fez-se a 7 de Março, sem incidentes. No princípio de Abril, o cônsul genovês Lom/ellino podia anunciar de Messina (onde a notícia acabava de che gar): /'armada nostra - a expressão tem o seu valor - «tomou Djerba» ss . . . Nesta data, com efeito, o duque de Medina Celi estabeleceu já, com soleni dade e paternalismo, o governo do rei de Espanha na nova possessão. Deu posse a um xeque da sua escolha; zela para que os Djerbis não sejam molestados, obriga os soldados a pagar o que consomem no país. Aliás, o Hafsida de Tunes e o Chabb'ia de Kairuan enviam abastecimentos. Contudo, no lado Norte da ilha, começou a construção de um forte, trabalho extremamente dificil, faltando tanto a madeira, como a pedra e a cal. Os indígenas não deram qualquer ajuda efectiva além das caravanas cameleiras. É portanto o exército que, apesar de minado pelas febres, continua a utilizar os seus efectivos nestes duros traba lhos. Todavia, os patrões de barcos mais hábeis compram azeite, cavalos, camelos, coiros, lãs, barreganas. . . Simultaneamente recebem da Berberia, Nápoles e Sicília notícias do Levante; e são más notícias. O vice-rei de Nápoles é avisado, no início de Abril, de que a armada turca vai sair muito mais cedo do que é habitual. Pede ao rei que S2 Messina,
3 de Abril
de
1S60, A.
d. S., Lettere Consoli, Napoli-Messina,
1S60, A.
1-2634.
SJ O bailio ao doge, Péra, 30 de Março de d. S., Veneza, Senato Secreta, Cost. S4 Nas suas notas ao Memorial de D. A/varo, C. Monchicourt, op. cit., p. nota
ss
354
3 de Abril de 1 S60,A.
d. S., Génova, Lettere Consoli . . . ,
1-2634.
100,
2.
2/B.
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se reúnam galeras em Messina, nomeadamente as galeras de Espanha. Não bas tarão para se opôr ao Turco, mas impedi-lo-ão de desembarcar demasiado . facilmente gente e artilharia. Escreve também a Medina Celi para que lhe envie pelas galeras e dirija para Tarento a infantaria de Nápoles que lhe ernprestou56 . A 2 1 , confia ao rei as suas angústias: se não lhe entregarem essa infantaria, será preciso recrutar Italianos, com novas despesas. Defende portanto o regresso parcial ou total do corpo expedicionário, acrescentando: «Avisei [o duque de Medina Celi] de que na minha opinião, é mau esperar que a armada do Turco venha e que a de V. M. se encontre ocupada na construção do forte que se ergue em Djerba.» Alguns dias mais tarde, sabe, por um viajante de regresso de Constantinopla, que a armada turca partiu em socorro de Trípoli57 • A 13 de Maio58 , avisam-no que ela já abandonou Modon. Previne imediatamente a Sicília por terra e, por fragata, os ocupantes de Djerba. Ao rei anuncia: «Consi dero que a armada de V. M. está em grande perigo . . . ». O aviso que chega a 14, assinala que a armada foi vista ao largo de Zante, fazendo vela rumo à Berberia59. Mas nesta data, tudo estava terminado em Djerba. A frota de Piali Paxá tinha, com efeito, andado tão depressa corno as notí cias. A 8 de Maio, encontrava-se entre Malta e o Gozzo. Tinha navegado a direito, com urna extrema rapidez. É um récorde ter conseguido franquear em vinte dias a distância de Constantinopla a Djerba. O duque, que a esperava em Junho, viu-a chegar a 1 1 de Maio. Na véspera, uma fragata de Malta viera pre veni-lo. Ninguém em Djerba pensou em combater. Pareceu a todos, corno mais tarde Cirini dirá, «que urna boa fuga valia mais do que um valoroso cornbate»60. Deverá atribuir-se esta atitude a um «complexo de inferioridade», ou então à falta de sangue-frio dos chefes, ou ainda ao desejo da maior parte deles de colocar ao abrigo as cargas amontoadas a bordo, durante a estadia nas costas da ilha? Estas cargas que o visitador Quiroga acusará mais tarde de terem estado na origem da catástrofe: sem elas, afirma, sem a preocupação de carregar estas riquezas antes da partida, ter-se-iam seguido os conselhos do vice -rei de Nápoles e a frota turca, ao chegar a Djerba, teria encontrado os luga res vazios há vários dias6 1 . Contudo, a própria fuga não foi fácil. Não querendo abandonar a infanta ria italiana e alemã, ainda em terra, o duque perdeu um tempo precioso na noite de 10 para 1 1 . No dia seguinte, quando a frota turca atacou, foi o pânico imediato e total62 . Tudo foi sacrificado para apressar a fuga, incluindo as famosas cargas, fardos de lã, jarras de azeite, cavalos, camelos que se atiraram 56 O vice-rei de Nàpoles a Filipe II. 4 de Abril de 1 560, Simancas, E.º 1050, f. º 28, ao duque de Medina Celi, 20 de Abril, ibid., f.º 32, ao rei, 2 1 de Abril, f.º 3 2. 57 Ao rei, 5 de Maio de 1560, Simancas, E.º 1050, f.º 36. 5 8 lbid., f. o 39. 59 Ao rei, 16 de Maio de 1560, ibid., f. 0 40. 60 P. 32 e 32 v.º, citado por C. Monchicourt, op. cit., p. 1 09 . 61 O visitador Quiroga ao rei, Nàpoles, 3 de Junho de 1560, Simancas, E. 0 1050, f. 0 63. 62 Bem visto pelo filho de Maquiavel, C. Monchicourt, op. cit., p. I l i .
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para bordo com tudo o que os navios podiam .carregar. Cigala, habituado à vida dos piratas no Levante, foi um dos raros que ousaram fazer frente. Manteve o ini migo em respeito e finalmente escapou-lhe. Mas, de 48 galeras ou galeotas que a armada cristã contava no momento do recontro, perderam-se 28, sem contar os navios que caíram nas mãos do inimigo. Raramente se tinha visto semelhante retirada. A notícia propagou-se rapidamente na Sicília, em Nápoles, em Génova, em Espanha, por toda a Europa. A 18 de Maio, às duas horas da manhã, che gavam a Nápoles cinco galeras que escaparam à catástrofe, três de Antonio Doria, uma de Bendinelli Sauli, uma de Stefano de' Mari. Traziam a má notícia com toda a espécie de pormenores. Notemos que estas primeiras chegadas são, propositadamente, galeras alugadas, ou como se diz, galeras de asentistas, de particulares com contratos, asientos com o rei de Espanha, portanto preocupa dos, em qualquer ocasião, em salvar o seu capital . . . Quase ao mesmo tempo chegaram outros fugitivos, em fragatas ou embarcações ainda mais modestas. Entre estes felizes que enganaram a vigilância dos Turcos, encontravam-se João André Dória, comandante da frota, o próprio vice-rei e alguns dos seus familiares, «milagrosamente chegados a Malta e de Malta a Messina»63 • Contudo, vários milhares de homens ficaram no forte com abundantes ví veres: dizia-se que chegavam para um ano. Que se faria deles? De La Goleta - onde se ficou ao corrente demasiado tarde, a 26 de Maio64 e talvez por meio da Sicília - Alonso de la Cueva escreve ao rei, a 30: apesar dos pedidos que o vice -rei de Nápoles lhe dirige, ele não pensa que se tenha a possibilidade (nisto tem razão, o personagem está à mercê dos Turcos) de utilizar o rei de Tunes, vassalo de S. M . , para o socorro do forte de Djerba. Se se tivesse construído o forte não no local do velho Castelo, mas em Roqueta, onde a frota desembarcara, os cer cados teriam disposto de um porto em águas profundas e de água potável; ter -se-ia podido avançar à sua frente. Mas assim . . . Durante u m certo tempo, o duque d e Alcalá continua a agitar-se, encara medidas sobre medidas. Depois, acalma-se com o anúncio da sobrevivência do seu colega, o duque de Medina Celi65 • Este último traz-lhe aliás, para a guarda de Nápoles, uma parte da infantaria italiana que escapou à catástrofe, esperando que, substituindo a infantaria espanhola perdida em Djerba, se tenham feito novos recrutamentos em Espanha66 . Quanto a Filipe II, a notícia chegara-lhe cerca de 2 de Junho, por via de Génova67 • Anunciavam-lhe a perda de trinta galeras e de 32 barcos68 ; a chegada 63 A Senhoria de Génova a Sauli, Génova, 19 de Maio de 1560, A. d. S., Génova, L. M. Spagna, 3 . 2412. 64 Ao rei, 30 de Maio de 1560, Simancas, E. 0 485. 65 O duque d e Alcalá a Filipe I I , Nápoles, 31 d e Maio d e 1560, Simancas, E.º 1050, f.º 56. 66 O mesmo ao mesmo, 1 de Junho de 1560, ibid., f. 0 60. 67 Por uma cana de Figueroa e avisos do cardeal Cigala e dos embaixadores de Génova, Filipe II ao vice-rei de Nápoles, 2 de Junho de 1560, Simancas, E. 0 1050, f. º 63 . Sobre o número das perdas, Gresham, 16 de Junho de 1560, fala de 65 barcos, Ms. Record Office, n. 0 1 94 . 68 Tiepolo ao doge, Toledo, 2 de Junho de 1560, C.S.P. Venetian, VII, pp. 2 1 2-213 .
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a bom porto de apenas dezassete galeras; estes números são mais ou menos exactos. O rei, depois de ter deliberado sobre isto com o duque de Alba, Anto nio de Toledo, Juan de Manrique, Gutierre Lopez de Padilla, decidia imediata mente enviar a Messina uma pessoa autorizada, a fim de substituir o vice-rei que ainda não se sabia que estava salvo e mandar vir da Sicília cinco mil solda dos de infantaria a recrutar na Calábria e ainda a artilharia e munições que se retirariam das reservas de Nápoles69• Corria o boato de que Filipe II exigiria ao rei de França o apoio da sua frota70• • • A 3 de Junho, nomeava, para o governo da Sicília, D. Garcia de Toledo, então vice-rei da Catalunha. Organizava assim o auxílio do forte onde se julgava continuar encerrado o duque de Medina Celi. A 8 de Junho, recebia notícias tranquilizadoras sobre a Sicília: mais uma razão, exclamava com exaltação7 1 , para estar preocupado com as pessoas do forte; salvar aqueles que serviram a Coroa é um dever. Pen sava reunir até sessenta e quatro galeras em Messína e tinha ordenado o embargo sobre trinta naus grandes, bem munidas de artilharia. Os Italianos recruta dos na Península, os Espanhóis da Lombardia que se substituiriam por três mil a/emanes altos, três mil homens da Alta-Alemanha, ou seja, ao todo, catorze mil soldados de infantaria, estavam previstos para a armada de socorro, colo cada sob as ordens de D. Garcia de Toledo. Finalmente, encaminhar-se-ia para Génova uma boa quantidade de trigo para o fabrico de bolacha . . . Tudo estava pronto. Mas a 1 3 d e Junho72 , Filipe II recebia uma carta de D. Garcia de Toledo informando-o que o vice-rei da Sicília estava salvo73 • A 15, bruscamente, o rei suspendia as suas ordens, alegando que, segundo todas as opiniões, os cercados tinham víveres para oito meses, enquanto a armada turca só tinha para dois e não poderia portanto prolongar o cerco74• Todos os preparativos foram interrompidos. Todavia, passou algum tempo antes que as novas ordens chegassem aos seus destinatários, tempo durante o qual conti nuou a agitação provocada pela questão de Djerba. O velho príncipe Dória envia os seus conselhos: parece-lhe imprudente atacar directamente, com um número insuficiente de galeras. Mais valia tentar um raid de diversão para o Levante. A Senhoria de Génova oferece quatro galeras para socorro do forte. O senhor de Piombino coloca uma ao serviço do rei de Espanha; se não é aceite, enviá-la-á buscar su ventura75 • O duque de Sabóia anuncia que tem três: uma está em ordem, a outra só tem os forçados e a terceira não tem nada, mas espera as quatro galeras que o rei de França lhe deve dar76 • Estefano Mari acaba de comprar duas galeras ao cardeal Vitelli e está disposto a alugá-las ao rei de Espa69 lbid. 70 lbid. 71 Filipe II ao duque de Alcalá, Toledo, 8 de Junho de 15 60, E. 0 1 050, f. 0 69. 72 Barcelona, 9 de Junho de 1560, Simancas, E.º 3 27 . 73 D. Garcia de Toledo a Filipe II, Barcelona, 1 2 de Junho de 1560, Simancas, E.º 327 . 74 Filipe II a D. Garcia de Toledo, 15 de Junho de 1 560, Simancas, E.º 3 27 . Resposta de D. Garcia de Barce lona, 23 de Junho, ibid. 75 Resumo das cartas de Figueroa, 3, 5, 10, 1 2 de Julho de 1560, Simancas, E. 0 13 89 . 76 Ibid.
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nha. Um genovês estabelecido em Veneza, antigamente ao serviço do Impera dor, Domenico Cigala, oferece-se para ir à Turquia e à Pérsia77 • Na Sicília, o duque de Medina Celi desempenha apaixonadamente a sua tarefa. Em Julho, pelos seus cuidados, sete galeras estão no estaleiro à conta de Palermo, de Mes sina e da Regia Corte18 • Desde Abril, seis tinham sido postas a navegar, substi tuindo previamente as que se tinham perdido em Djerba79 . Finalmente, o incidente dâ, mais uma vez, o tom das relações franco-espa nholas: o pedido das galeras francesas foi nitidamente formulado em nome de Filipe II. Como afirmava Michiel ao doge de Veneza, a 22 de Junho de 1 560, o rei de Espanha teme mais a recusa do que deseja a aceitação80 • Desconfianças e queixas separam os dois Estados. Filipe II acaba de mandar qespedir os servi dores franceses da jovem Rainha. Nada mudou na sua atitude nas questões da Inglaterra. As hesitações da França não são menos singulares, apesar das agita ções que se iniciam no reino e cuja importância se exagera, levam o governo dos Guises à colaboração com a Espanha. O embaixador francês em Espanha declara a Tiepolo e este repete ao doge, a 25 de Junho8 1 , que ofereceu aos Espa nhóis as galeras de Marselha e tropas, mas isto a 25 de Junho, dez dias depois da decisão negativa de Filipe II. O duque de Alba não deixa de sublinhar, no mês de Setembro: « . . . Ultimamente, no momento da derrota de Djerba, nunca ousâmos pedir [aos Franceses] as suas galeras para o socorro que V. M. previa então, porque tendo feito por vârias vezes apelos, nunca encontrei disposições tais que pudesse aconselhar V. M. a fazer a respectiva proposta. Passado o momento. . . , quando lhes pareceu que o seu auxilio era inútil, o embaixador veio dizer-me que se as galeras eram necessârias seriam arranjadas»82 . Política hesi tante da França, ou antes fidelidade às linhas políticas do passado, dificuldade, tanto para uns como para outros, de se libertarem de atitudes demasiado antigas. Não mantém o rei de França relações com o Sultão, de quem não quer perder a amizade83 , e com os Argelinos que lhe enviam deputados e aos quais Marselha entrega armas84? Ao mesmo tempo, apesar de então não estar no governo da França, e mesmo vítima das perseguições dos Guises, o rei de Navarra, Hen rique, ou como dizem os Espanhóis, Senhor de Vendôme, faz intrigas em Mar rocos junto do Xerife85 . 77
lbid.
1560,
237. 1050, f.º 137.
78 O duque de Medina Celi ao rei, de Julho de C. Monchicourt, op. cit., p. 79 O duque de Alcalá a Filipe ll, Nápoles, de Outubro de Simancas, E.º
9
9
1 560,
80 Michiel ao doge, Chartres, 22 de Junho de 1560, C.S.P. Venetian, VII, p. 228. 81 C.S.P. Venetian, VII, p. 229. O duque de Alba a Filipe li, Alva, 19 de Setembro de
E.º
1 39, existe uma cópia.
1560, orig. Simancas,
16 1 , r.0• 1 5 a 21 . Ver E. Charriere, op. cit. , li, pp. 62 1 -623 , sobre os boatos de uma colaboração franco-espanhola. 83 O rei ao bispo de Limoges, 16 de Setembro de 1560, L. Paris, op. cit., pp. 523-530. 84 Oiantonnay a Filipe li, 2 de Fevereiro e 1560, A. N., K 1493 , f.0 39; L. Romicr, La corijuration d'Amboise, 1923, p. 123. A rainha de Espanha a Catarina de Médicis, Setembro de 1560, L. Paris, Négoc. sous /e régne de François li, p. 510. 8S Chantonnay a Filipe li, Melun, 3 1 de Agosto de 1560, A. N., K 1493, f.º 83; 3 de Setembro de 1560, L. Paris, op. cit., pp. 506-509 . 82 B. N., Paris, Esp.
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Para voltar a Djerba, vê-se até onde se alargaram as agitações que rodeiam o pequeno acontecimento: as suas ondas recobriram em poucos dias toda a Europa. Mesmo em Viena, onde se estava, pouco tempo antes, desejoso de se libertar do Turco, o acontecimento não deixava de fazer reflectir Fernando e os seus86 . O prestígio de Filipe II sofreu na aventura, o contrário seria dificilmente crível, apesar das cartas do seu embaixador em Viena afirmarem que as contra medidas tomadas pelo seu senhor lhe deram mais reputação do que lhe teria valido a própria vitória em Trípoli! Sob este ponto de vista, o abandono brutal, decidido pelo rei de Espanha, seria uma boa solução? Em Djerba, se os marinheiros se tinham comportado com uma considerável cobardia, as tropas em terra cumpriam honradamente o seu dever, sob o comando de Alvaro de Sande, militar graduado. Cercado, não perdera totalmente o contacto com o exterior; escrevia ainda, a 1 1 de Julho, ao vice-rei da Sicília87 . Talvez existissem algumas razões para acreditar que a armada turca largaria a presa, à falta de víveres, com a aproximação do mau tempo? Fizera-se saber ao vice-rei de Nápoles que ela o faria se estivesse em prepa ração alguma expedição de socorro. Avisava disso o governador de La Goleta, a 26 de Junho (portanto, antes de saber que Filipe II tinha renunciado à expedi ção), imaginando que seria bom entregar-se a algumas indiscrições sensatas, próprias para fazer crer aos Turcos que os preparativos de socorro demoravam88 . É um facto que os chefes turcos, na época, mostravam pouco entusiasmo. Passava o tempo; as suas perdas eram pesadas. Em Julho, o confi dente de Piali Paxá, Nassuf Agha, chegava a Constantinopla e não escondia que já não acreditava na tomada do forte89. Ora, ao mesmo tempo chegavam da Pérsia notícias muitos perturbadoras: o Sofi morrera, dizia-se, e o seu suces sor amava Bajazé como um irmão90• A Génova, a 15 de Julho, chegava mesmo (sabe Deus donde, quando, e como partira) um tal embaixador de Bajazé, que Figueroa recebeu em sua casa, em Génova, e lisonjeou antes de o deixar tomar o caminho de Nice, num bergantim91 . Somente ao chegar a Espanha se desco bre a impostura. Todas estas esperanças iriam ser frustradas. Os Turcos, se não atacaram o forte à viva força, apoderaram-se dos poços próximos, limitando os cercados à água das cisternas, que se esgotou muito depressa, com os calores de Julho. Alvaro de Sande tentou então uma surtida, durante a qual foi preso, a 29 de Julho. Dois dias depois o forte capitulava. É pelo menos esta a explicação que o prisioneiro deu, quando escreveu, a 6 de Agosto, ao duque de Medina Ce1i92 3 de Julho de 1560, CODOIN, xcvm, pp. 155-158 . 87 Simancas, E. 0 13 89. 88 Simancas, E.º 1050, f. 0 84. 89 13 de Julho de 1560, E. Charriere, op. cit., li, pp. 616-61 8 . 90 Constantinopla, 17 e 7 de Julho de 1560, ibid., pp. 61 -6 1. 2 8 2 91 Figueroa a S. M . , Génova, 26 d e Julho d e 1560, Simancas, E . º 13 89 . A sua impostura, Sauli à República de Génova, Toledo, 1 4 de Dezembro de 1560, A. d. S., Génova, Lettere Ministri, Spagna, 2. 24 1 1 . 92 6 d e Agosto d e 1560, Simancas, E . 0 445, cópia. 86
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rejeitando aliás o erro dos seus soldados: «Se tivesse encontrado nos homens o que antigamente encontrei noutras tropas sob as minhas ordens, teríamos alcançado a maior vitória que alguém alguma vez alcançou há numerosos anos.» Isto é dizer muito em relação a urna surtida falhada e ser-se-ia tentado a acredi tar no retrato que Busbec traçará do homem, algum tempo mais tarde, na Tur quia: pesado, vão, e mais do que isso, medroso . . . De tal forma que se poderia, nem que fosse apenas em Duro93 , encontrar a mesma explicação para este segundo fracasso de Djerba, que acusa o comando. Mas a acusação mais cómoda é seguramente a que Don Sancho de Leyva levanta contra os responsáveis da expedição, numa carta ao rei, escrita do fundo da sua prisão, em 1 561 94: esta dupla catástrofe é um castigo de Deus. Se se fizer urna nova expedição, que se vigiem por favor os blasfemadores, que se confie a sua direcção a um chefe que seja um verdadeiro e bom católico . . . Prosa de prisioneiro que rumina sobre as causas da sua prisão; mas também, porque se trata de um homem lúcido e avisado, que encontraremos, liberto, nas galeras de Nápoles, prosa de um cató lico do século XVI • • . Após a rendição d o forte, a armada turca estava livre. J . A. Dória que navegava de Malta para África, com um reforço para La Goleta, regressou assim que soube do desastre, abandonando os seus projectos contra Trípoli95 . Foi a armada vitoriosa que fez escala na cidade, antes de se dirigir para Gozzo96 onde chegou a 13 de Agosto97; daí, partiu para urna operação de pilhagem, costeando a ri viera siciliana onde tornou Augusta98 , saqueando e incendiando as al deias e povoados da costa dos Abruzos99. Mas, a partir de 4 de Setembro, um aviso assinala que ancorou em la Preveza 1 00 onde Piali Paxá, tendo recebido ordens para regressar a Constantinopla, deixou os spahis (regressaram ao seu país por via terrestre) e fez-se à vela, a 1 de Setembro, rumo a Navarino. Urna série de avisos confirmam estas notícias: o vice-rei de Nápoles apronta-se a licenciar as tropas ainda instaladas em Cotron e Otranto 101 . A 1 de Outubro, Piali Paxá faz, em Constantinopla, urna entrada triunfal na galera-almirante pintada de verde, seguida de quinze galeras de um vermelho rutilante e de todo o resto do cortejo, no meio das salvas de artilharia, dos vivas da multidão, do ruído ensur decedor dos tambores e das trombetas. Busbec deu urna descrição desta chegada, do longo desfile de vencidos 102 , da cidade em festa, onde os Cristãos, du rante um certo tempo, serão muito mal tratados . . . 93 Op. cit., 11, p . 36. 94 B. N., Madrid, Ms. 10 5, 1 8 95 C. Monchicourt, op. cit., p.
9 de Abril de 1561. 1 33 ; J. A. Dória chegava a Malta a 8 de Asosto de 1560. J. A. Dória a Filipe II, 1560, Simancas, E. 0 1 1 25. Estava a pontos de cair sobre Trípoli quando lhe chegou a notícia da queda do forte. O mesmo ao mesmo, 9 de Setembro de 1 560, ibid. 96 1 8 de Asosto de 1560, Simancas, E.º 1050, f.º 1 20. 97 e. Monchicourt, op. cit., p. 1 34. 8 de Agosto de
98 lbid. 99 G. Hernandez a Filipe II, Veneza,
21
1560, Simancas, E.º 1 325. 1050, f .º 1 29. 1050, f. º 128.
de Asosto de 1 00 Corfu, d e Setembro d e Simancas, E. 0 10 1 O vice-rei de Nápoles a Filipe II, Simancas, E.º 102 Op. cit., II, p. e segs.
1560,
4
245
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OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
O acontecimento justificava este entusiasmo: o Islão terminava, para seu proveito, a partida iniciada pela dominação do Mediterrâneo Central 103. Tripoli, onde a soberania turca tinha sido tão ameaçada, mantinha-se melhor do que nunca. A Cristandade estava angustiada: assim que a armada turca abandonara as costas de Itália já se pensava nas calamidades que acompanhariam o seu regresso . . . dentro de um ano. O duque de Monteleone e o vice-rei de Nápoles falam ambos da expedição que o Grande Senhor conduzirá, contra La Goleta, em 1561 104 ! Quando se sabe em Viena, a 28 de Dezembrol 05 , que o Turco está em vias de armar 120 galeras, é ainda para La Goleta que as destinam em imagi nação. Esta obsessão é alimentada pelas audácias que a vitória do Islão dá aos corsários. A despeito do Inverno, sobem até à Toscana 1 06. Todas as costas ita lianas e espanholas estão alertadas 107 . Diz-se em Constantinopla que os Espa nhóis estão tão assustados com a lição que receberam em Djerba que estão a pontos de abandonar Orãolos. Ainda não se chegou lá. Mas é certo que a dupla catástrofe de Djerba se prestou a úteis reflexões. Dos altos funcionários aos mais modestos executan tes, cada um envia a sua opinião para Madrid e esta opinião, a maioria das vezes, é que o rei não pode aguentar as margens dos seus Estados mediterrânicos sem uma potente armada naval. Seria também preciso, diz o duque de Alba 1 09, reforçar as guarnições de Itália (certamente fracas ; vimos como era dificil tirar de lá alguns homens), o seu pequeno número e a sua diminuição a propósito de Djerba contribuíram certamente para fazer «bulir» as intrigas italianas, muito vivas desde o Outonouo. Mas tornar-se forte e poderoso no mar, eis o que era necessário. Nem todos o compreendem; há quem se inquiete ainda e apenas com medi das defensivas e terrestres, como o duque de Alcalá, preocupado em fortificar as ilhas de lbiza e de Minorca que sabe desprovidas l l l . Outros são mais lúcidos. Na sua carta um pouco exaltada de 9 de Julho de 1 560, o duque de Medina Celi escrevia: «É preciso arrancar forças da nossa fraqueza e que V. M. nos venda a todos, e a mim em primeiro lugar, mas que se torne senhor do mar. Desta maneira, ela terá calma e repouso e os seus súbditos serão defendidos, senão, tudo correrá às avessas» 1 1 2. Seflor dei mar: a fórmula regressa, por várias vezes, sob
les.
103 R. B. Merriman. op. cit .• IV. p. 107 . 104 Monteleone ao rei, 30 de Agosto de 1560, Simancas, E.º 1050. f. º 1 1 . O duque de Alcalá ao rei, Nápo2 3 de Setembro de 1560. ibid. , f.0 1 24. 1 05 Conde de Luna ao rei. 28 de Dezembro de 1560. CODOIN, XCVlll, pp. 1 89-192. 106 Florença. 10 de Julho de 1560, Simancas. E.º 1446. 1 07 G. Hemandez a Filipe li, Veneza, 0 de Julho de 1560. Simancas. E.º 13 4, f.º 4 . 7 2 2 108 H. ° Ferro ao doge, Péra, 1 de Novembro de 1560; A. d. S., Veneza. Senato Secreta. Cost. /8, f.º' 902 2 2
·291.
109 19 de Setembro de 1560, e. N., Esp. 1 6 1 . f.OS 15 a 2 1 . 1 10 9 d e Outubro d � 1560. Simancas, E . º 1850, f . º 139. J. d e Mendoza a o rei, Palamos, 1 d e Setembro de 1560, Simancas, E.º 327 . Ili 26 de Agosto de 1560, Simancas, E.º 1058, f.º 1 18. 1 1 2 C. Monchicourt, p. 237 .
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
a pena do vice-rei da Sardenha, Alvaro de Madrigal, ora para suplicar ao rei que queira sê-lo, ora para se felicitar de ele ter tido a intenção, «porque é isso que convém à quietude da Cristandade e à conservação dos seus Estados» 113 • É ainda no mesmo sentido que intervêm junto do rei, nesse mesmo ano de 1560, o doutor Juan de Sepulveda 1 14 e o extravagante doutor Buschia, agente mal conhecido da Espanha em Ragusa, um desses informadores que, para ganharem a sua vida a tanto a linha, contam muitas vezes histórias de tabernas l l S . . . O s sonhos dos diplomatas tomam caminhos que lhes são mais naturais, mas o objectivo é o mesmo. Todos se voltam para Veneza: nesta miséria da Cristandade, só Veneza - vers-se-á bem, mais tarde - poderia dar ao Ocidente a supremacia do mar. Quem conhece a egoísta cidade só pode sorrir. O que lhe pedem é o mesmo que fechar a loja. Mas as penas que estas dificuldades não embaraçam, continuam a correr sobre o papel. Em Viena, a 8 de Outubro, o conde de Luna pensa «que conviria muito ao serviço de V. M. voltar à liga que os Venezianos tiveram [antigamente] com o Imperador, meu senhor, que esteja na glória de Deus . . . » 1 16• Em Roma, parece efectivamente que a ideia de uma liga contra os Turcos, compreendendo Veneza, foi evocada em conversações entre o novo papa, Pio IV, e Don Juan de Zuftiga que representa, então, em Roma, ao mesmo tempo que seu innão, o comendador de Castela, os interesses de Filipe II. «Respondo numa outra carta - escreve Filipe aos dois irmãos àquilo que vós, Don Juan de Zuftiga, me escrevestes e diz-se aí a nossa opinião sobre a vossa conversação com S. S. sobre a liga com os Venezianos contra os Turcos. Aqui, à parte, quis avisar-vos a ambos das propostas sobre esta maté ria [em nome do duque de Urbino e por intermédio de Ruy Gomez] do conde de Landriano, o qual se empenhará, se eu quiser, em fazer realizar esta liga. Ao que ele respondeu, dado ser esta uma questão de tal modo a favor do serviço de Deus e do bem da Cristandade, que eu me alegraria muito. Dito isto, aconteceu a morte do doge desta República, predecessor do actual [portanto esta questão foi iniciada antes de 1 7 de Agosto de 1 559). Suspendi então estas conversações durante alguns dias . Mas o conde de Landriano disse-me que o duque retoma ria a questão» 1 17 • A catástrofe de Djerba, de uma determinada maneira, foi salutar. Colocou o Império de Filipe II perante as suas tarefas mediterrânicas. Obrigou-o a rea gir. Djerba e o ano de 1 560 marcaram o momento culminante do poderio oto mano. O mesmo é dizer que depois de 1 560 esta vai declinar. Não por sua culpa,
1 1 3 Cagliari, 1 14
25 de Agosto de 1560, Simancas, E.º 327 . 560.
CODOIN, VIII, p.
1493, B 11 , f. 0 11 1 (20, 28, 30 de Setembro 4, 8 , 13 de Outubro de 1560). Sobre os informadores fantasistas do Levante, Granvelle a Filipe l i, Nápoles, 31 de Janeiro de 1572, Simancas, E . º 1 061 . 1 1 6 CODOIN, XCVIII, p. 182. 1 17 Filipe II ao grande comendador e a D. J. de Zui\iga, Madrid, 2 3 de Outubro de 1560, Simancas, E. 0 13 24, f.0 48 . 1 1 5 Sobre o doutor Buschia, algumas das suas cartas nos A. N . , Paris, série K,
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mas na sequência do amplo trabalho de equipamento marítimo que começa nesse ano e se estende, desde Palermo e Messina, a todas as costas da Itália oci dental, e a todas as costas mediterrânicas da Espanha.
2. A
recuperação hispânica
Não teria sido de modo algum possível uma recuperação sem o inexplicá vel prazo que os Turcos iam conceder ao seu adversário. Nem em 1 561 , nem em 1 562, nem em 1 563 , nem em 1 564 a armada turca saiu em força. Durante qua tro anos, a Cristandade ocidental viveu amedrontada. Durante quatro anos, repetiu-se a mesma comédia: o Turco arma-se, em breve far-se-á ao mar, com uma potente armada, atacará La Goleta e a Sardenha; assim dizem as previsões de Inverno. Depois, na boa estação, aparecem as mais loucas inquietações e tudo se dissipa. Pode então dispensar-se de executar até ao fim os programas defensivos de Inverno, retomar os créditos, licenciar as tropas, não transferindo estas nem recrutando aquelas. Há, no Mediterrâneo, como que uma respira ção a dois tempos da política espanhola. Nada de mais fácil, dados os inumerá veis documentos que ela deixou, senão seguir o respectivo ritmo.
Os anos de 1561 a 1564 Virá a armada turca em 1561? Ainda sob a deprimente e forte impressão de Djerba, . todos estão persuadidos disso, durante este incómodo Inverno de 1560- 1 56 1 , em que o trigo falta 1 1 8 , e onde a peste é devastadora 1 19• Eis um fran cês que regressa de Constantinopla, com um soldado ragusano. Palavra puxa palavra e o ragusano afirma, ao chegar a sua casa, no início de Janeiro de 1561 , que, segundo o seu companheiro, o exército turco estava de regresso da Pérsia e que a armada seria nesse ano importantissima 1 20• Resumindo os avisos que lhe passam sob os olhos, o vice-rei de Nápoles, a 5 de Janeiro, assegura que a armada vai sair em breve. Dentro de vinte ou trinta dias, ele tomará as provi dências necessárias a fim de pôr as armadas em alerta defensivo. Enviar -lhe-ão os Espanhóis prometidos, ocupar-se-ão a tempo de La Goleta 1 2 1 ? Um mês mais tarde, para o vice-rei da Sicília, Orão e La Goleta estão ameaçadas pela armada ( 1 1 de Fevereiro 122) . Sem contar as incursões dos Argelinos, estas são 1 1 8 Dolu ao cardeal de Lorena, Constantinopla, carestia, miséria, peste. 1 1 9 lbid. 120 Ragusa,
5 de
Março de
1561, E. Charriere, op. cit.,
2 de Janeiro de 1561, Simancas, E.º 1051, f.º l i . 121 Vice-rei de Nàpoles a Filipe II, 6 de Janeiro de 1561, Simancas, E.º
122 Ao rei, Trapani, Simancas, E.º
1 1 26.
II, pp.
652-653,
1051, f. º 1 2.
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tão reais e ameaçadoras que Filipe II, a 28 de Fevereiro, recusa ao vice-rei de Maiorca a autorização que ele solicitava para sair da ilha 123 . Os avisos de Corfú, com data de 30 de Março (recebê-los-ão em Nápoles a 2 de Maio), anunciam ainda uma armada turca de cem galeras 1 24, e Antonio Daria, fazendo em Abril a viagem de La Goleta, teme encontrar no mar os corsários que teriam decidido bloquear o presídio, esperando a frota turca 1 25 . O primeiro aviso de Constanti nopla, assinalando que só haverá uma pequena armada turca, destinada apenas à defesa das costas do Levante, data de 9 de Abril de 1 56 1 1 26 . Na melhor das hipóteses, a notícia, confirmada depois amplamente 127 , não terá chegado a Nápoles antes de Junho, e até aí, ponto de desanuviamento na defesa cristã. Toda uma série de exigências de La Goleta, sobre as cisternas e a artilharia 1 28 , foram satisfeitas de Abril a Junho. E em Maio, o vice-rei de Nápoles exigia ainda ao papa que autorizasse Marcantonio Colonna a participar na defesa eventual de Nápoles 129. Mas será preciso entrar em todos os pormenores de uma pesada máquina política e militar, mais regular aliás no seu funcionamento do que afirmam os historiadores? Se se seguirem os acontecimentos a partir de Nápoles, o início de Agosto apenas marca o regresso à calma, com a desmobilização dos Italianos que reforçavam a guarda da marinha1 30. Em Espanha o alerta encerra-se no início de Setembro: «Agora que a estação e o medo do exército turco passou», escreve de Madrid o bispo de Limoges, a 5 de Setembro 1 3 1 . A tropa turca, que saíra de Constantinopla em Junho com cerca de cinquenta galeras, contentou-se com uma rápida ida e volta entre Constantinopla e Modon. Abandonara Modon no início de Julho e, a 1 9 de Agosto, deixava Zante para regressar a Constan tinopla 1 32 . Porquê este esforço limitado? Porquê este erro? Os documentos deixam-nos a opção entre impressões e hipóteses. Será isto por causa das questões da Pérsia, ainda elas, como indica uma carta de Bois taillé, escrita de Veneza, a 7 de Junho de 1 56 1 , a Catarina de Médicis 1 33? A sua carta de 1 1 de Maio 1 34 já o afirmava: «0 rei Filipe . . . só tem como meio mais seguro conter o dito G. S. nesses países por esse freio. E pode assegurar-se que o G. S. o não teria deixado passar este ano tão facilmente como fez tendo presen temente apenas posto fora do porto de Constantinopla quarenta galeras.» Notem de passagem que em Veneza, a 9 de Maio, se está avançado quanto à infor mação: a 8 de Junho, o vice-rei da Sicília ainda não sabe se haverá ou não perigo 1561, Simancas, E.º 328 . 30 de Março de 1561, Simancas, E.º 1051, f.º 5 1 . que haze Antonio Doria. . ., 1 8 d e Abril d e 1561, Simancas, E. 0 1051, f . 0 62. 1 26 Constantinopla, 9 de Abril de 1561, Simancas, E.º 1051, f.0 54 . 127 1 2, 14 de Abril de 1561, Simancas, E.º 1051, f.º 55; Liesma, 16 de Abril de 1561 , ibid., f.º 56. 1 28 Alonso de la Cueva ao vice-rei de Nápoles, La Goleta, 17 de Abril de 1561, E.º 105 1 , f. º 57. 1 29 Vice-rei de Nápoles a Marcantonio Colonna, Nápoles, 9 de Maio de 1561, Simancas, E.º 1051, f.º 78. llO Vice-rei de Nápoles a Filipe II, 9 de Agosto de 1561, Simancas, E.º 1051, f.01 19. Il i Madrid, 5 de Setembro de 1561, B. N., Paris, Fr. 16103 , f.º 44 e segs. 132 « Lo que se entiende de Levante . . . de Corfu», 10 de Agosto de 1561, Simancas, E.º 1051, f.º 120. 133 E. Charriere, op. cil., II, pp. 657-65 8 . l l4 Ibid., pp. 65 3-654 .
1 23 Filipe
II ao vice-rei de Maiorca, Aranjuez, 28 de Fevereiro de
124 Corfu, 1 25 Re/acion
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turco 1 35 . Todavia, Boistaillé não acredita que as questões da Pérsia bastem para explicar a pressa tão anormal da armada, que regressa às suas bases desde Julho 1 36 . Piali Paxá estaria verdadeiramente morto, corno foi anunciado, inter roga-se a 1 1 de Julho? Piali Paxá não estava morto, mas Roustern, e Ali Paxá, chegavam ao cargo de grão-vizir 137 ; as rivalidades entre os ministros do Grande Senhor desempenharam talvez um papel nesta questão 1 38 . Correram todos os boatos, mesmo aquele de que as galeras tiveram de intervir no mar Negro 139. O relatório do embaixador espanhol em Viena, a 14 de Seternbro 1 40, é mais circunstanciado: o Turco não conseguiu conciliar-se com o Sofi; criou um grande ressentimento e ordenou a proclamação da guerra contra os Persas. Diz-se que iria passar o Inverno em Alepo para aí preparar a próxima campanha. Mas diz-se também, e é aí que o testemunho do conde de Luna parece digno de refle xão, diz-se «que não ousará abandonar Constantinopla, tanto porque não está seguro de seu filho Selim corno porque teme, dada a popularidade de Bajazé junto de muitos dos seus súbditos, a eclosão de urna rebelião qualquer nestas regiões que corra tão bem que aí não possa voltar.» Adivinham-se as segundas intenções que este documento assinala sobre a guerra contra Bajazé, cujo aspecto social não se pode desprezar. É precisamente no seu centro que a Turquia está perturbada, até mesmo paralisada por ela . . . Acrescentaremos a estas explica ções adiantadas pelos observadores da Cristandade urna hipótese? O ano de 1561 parece ter sido, no Império Turco, um ano de colheitas fracas, de querelas pelo trigo com os Venezianos, de crises epidérnicas. Tudo isto contou igualmente. Em 1562, as notícias de Constantinopla foram menos inquietantes. Só avi sos um pouco sensacionais, corno aquele que representa um embaixador do Rei de Tunes rasgando o seu vestuário perante o Grande Senhor 1 41 ou aqueles que assinalam (mas só interessam a Génova) a viagem de Sampiero Corso a Cons tantinopla pelo desvio de Argel 142. Os preparativos de defesa, iniciados mais tarde do que no ano anterior, interromperam-se mais cedo. A frota turca não tentou nenhuma incursão e, desde o mês de Maio 1 43 , o fim do alerta soara em Nápoles, desde a primeira quinzena de Junho 144 em Madrid. Coisa estranha e que se explica pelo próprio excesso de inutilidade dos terrores do ano precedente, o facto pareceu quase natural desta vez, e não se matou a cabeça para en contrar as razões. O vice-rei de Nápoles escreve simplesmente que o sultão não 135 Vice-rei da Sicilia a Filipe li, Messina, 8 de Junho de 1561, Simancas, E.º 1 1 26. Vice-rei de Nápoles ao rei, Nápoles, 7 de Julho de 1561. 136 E. Charriere, op. cit., li, p. 661. 137 H . º Ferro ao Doge, Péra, 10 de Julho de 1561, A. d . S., Veneza, Secreta Senato Cost. 3/C. Roustem Paxá morreu a 9 de Julho. 13 8 O bispo de Limoges ao rei, Madrid, S de Setembro de 1561 , B. N., Paris, Fr. 1610 , f.0 44 e segs. 3 139 E. Charriere, op. cit., li, pp. 657-65 . 8 140 CODOIN, XCll, pp. 240-244. 1 41 28 de Maio de 1562, Sirnancas, E. 0 1052, f. º 27 . 1 42 Sampiero só chegará aliás a Constantinopla em Janeiro de 156 . Numerosos documentos genoveses, 3 A. d. S., Génova, Spagna, 3 . 24 1 2 e Costantinopoli, 1. 2 169. 143 Vice-rei de Nápoles a Marcantonio Colonna, 24 de Maio de 156 , Simancas, E.º 1051, f. º 87 . 2 144 Filipe li ao vice-rei de Nápoles, 1 4 de Junho de 1562, Sirnancas, E.º 1051, f.º 96.
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enviará de modo algum a sua frota contra La Goleta, «quer por causa da querela de seus filhos, quer para a não deixar afastar-se das suas margens, quer por que sabe que a dita praça está bem munida» 145 . Em todo o caso, por boas e imperiosas razões, dado que o Turco assina, nesse mesmo ano, com o Imperador as tréguas em suspenso desde 1558 146. Nesta ocasião estavam libertos em troca de resgate Alvaro de Sande, Don Sancho de Leyva e Don Berenguer de Requesens 147 • Sem dúvida, o Sultão desejaria vol tar-se deliberadamente para o Leste dado que a paz de facto que podia, à sua vontade, impor no mar à Cristandade, lhe não bastava, dado que quis igual mente a liberdade dos seus exércitos de terra, nas fronteiras ocidentais. Durante o Inverno seguinte, a Cristandade habitua-se a esta calma, ao mesmo tempo que toma oficialmente as suas precauções. Torna a falar-se evi dentemente de ameaças sobre La Goleta, sobre a Sardenha. Mas a partir de Janeiro de 1 563, querelas sobre o trigo que Veneza, como de costume, tenta levantar antecipadamente no Arquipélago, indicam que os celeiros turcos não estão bem fomecidos 148• Sabe-se, igualmente cedo, que a viagem de Sampiero Corso foi curta. Coisa significativa: é Filipe II quem, do Escorial, dá prudente mente o alarme 149 e manda abastecer La Goleta, esse minúsculo sorvedouro que nunca se consegue encher. Desde o início de Junho, em Nápoles, tem-se a certeza de que não haverá armada. Um informador, que partiu de Constantino pla a 29 de Abril, chegou, a 5 de Junho, como portador de boas notícias que ninguém põe em dúvida 150 • Todos os avisos posteriores confirmam que o Turco se contentou em lançar à água um certo número de galeras, sem as armar, e apenas mandou sair algumas, indispensáveis à guarda do Arquipélago. Em 1 564 registam-se ainda poucas mudanças. Em Janeiro, fala-se muito de armamentos turcos com que os próprios Venezianos se inquietariam 1 51 • Mas desde 12 de Fevereiro, afirmam de Constantinopla que não haverá armada 152 • Por volta desta mesma época, o duque de Alcalá está em vias de tomar as suas disposições para enviar mil homens para La Goleta, mas, diz, a despeito das informações que recebeu e não por causa delas 153 . Tudo está calmo. Sampiero Corso acaba por ter conversações, por intermédio de outras pessoas, com o embaixador espanhol em Paris, Francés de Alava 154 • Queixa-se do governo de
14S
Ver a penúltima nota. · 146 Daniel Barbarigo ao Doge, Péra, 5 de Agosto de 1562, A. d. S., Veneza, Senato Secreta 3/C; Veneza, 20 de Agosto de 1562, tréguas assinadas por oito anos, CODOJN, XCVII, pp. 369-372, C. Monchicourt, op. cit., p. 142 . Constantinopla, 30 de Agosto de 1562, E. Charriere, op. cit., II, pp. 702-707. 148 6-17 de Janeiro de 1563 , ibid., pp. 716-719. 149 Filipe II aos duques de Sabóia e de Florença, Escorial, 8 de Março de !563 , Sirnancas, E.• 1 393 . I SO Simancas, E .• 105 , f.. 169. 2 I S! Narbona, de Janeiro de 1564, Edmond Cabié, A mbassade en Espagne de Jean Ebrard, Seigneur de 2 Saint-Sulpice, Albi, 1903 , p. 2 1 2. I S2 Constantinopla, 1 de Fevereiro de 1564, Simancas, E.• 105 , f. • 19. 2 3 I S3 Vice-rei de Nàpoles a Filipe II, Nàpoles, 17 de Fevereiro de 1564 , Simancas, E.º 1053 , f.º 22. 1 '4 A Filipe II, Paris, 17 de Março de 1564, A. N., K 1501, n.º 48 O.
147
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Génova, lembra que o Corso depende da Coroa de Aragão, que os Corsos são súbditos do Rei Católico. Francés de Alava concluiu que em todo o caso, os dois chefes corsos, que vieram ter com ele nesta ocasião, conhecem bem as questões do Levante e que poderiam ser utilizados ao serviço do rei . . . Haverá sem dúvida ainda u m alerta, no início de Maio; Ruy Gomez falará disso ao embaixador de França 1 55 • Mas ainda mal terminou o mês e estes receios dissiparam-se156. A 27 de Maio e 6 de Junho, avisos pormenorizados de Constantinopla 157 explicam por que razão, apesar dos protestos dos rais que, eles, desejam dividir, a armada está impossibilitada de ir para o mar: sessenta galeras, que estão a ser calafetadas, vão ser lançadas à água, mas nada foi feito para assegurar os remadores e as bolachas; não poderiam portanto aparecer antes de 10 ou 15 de Julho. Em seguida, deslastrar, pôr a bordo os spahis vulgares das guarnições, levaria até Agosto. Portanto, não há saída a encarar sensata mente. Desde meados de Junho, Filipe II decide-se então, e não menos sensata mente, a voltar a sua frota contra os Berberescos 158 • De Nápoles, os movimen tos de tropas já não se fazem para Messina e La Goleta mas para Génova e Espanha, e mais precisamente para Málagat 59, Há ainda a sombra de uma inquie tação, em Agosto: a 2, Sauli informa a Senhoria de Génova 160 que em Madrid se anunciou a chegada da armada turca, mas que o boato é mantido per vanità e «que se sente por isso, uma menor ansiedade sobre o levantamento da Córsega» (porque a Córsega acaba de se revoltar à ordem de Sampiero Corso). Esta é a última menção sobre a armada turca, neste ano de 1564, em que a Cristandade mediterrânica, pouco inquieta com o Oriente, está sobretudo preocupada com os acontecimentos que se verificam no Ocidente do mar, ou seja, as ques tões corsas por um lado, e por outro a expedição que vitoriosamente D. Gar cia de Toledo vai conduzir na costa marroquina, contra o minúsculo Peõon de Velez. Passam algumas semanas, alguns meses e, de novo, reanima-se o jogo das hipóteses durante o Inverno. Em Viena, a 29 de Dezembro de 1564, Maximiliano conversa com o embaixador veneziano, Leonardo Contarini 1 61 . Uma grande armada turca vai, diz-se, sair na próxima boa estação: «Vós, Venezianos, que fareis? A ilha de Chipre está muito perto e agrada fortemente aos Turcos . » «Veneza fortificar-se-á», responde o embaixador. Mas esta questão d a Córsega dá tanto trabalho aos Genoveses? Agravar-se-á com a saída da armada turca . . . «Sem dúvida, Sampiero Corso não tem auxílios declarados, mas mantém rela ções secretas com um determinado príncipe e tão secretas - acrescenta o sobe-
1 55 156 1 57 1 58 159 160 161
Saint·Sulpice ao Rei, 1 1 de Março de 1564, E. Cabié, op. cit., pp. 262·263 . /bid., p. 269, 29 de Maio de 1564. Simancas, E.º 1053, f.º 54. Início de Julho de 1564, E. Cabié, op. cit., p. 270. lbid .• p. 279 . A. d. S., Génova, L. M. Spagna, 3. 241 2 . Ao doge, G. Turba, op. cit., l, pp. 289-290.
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rano - que não hâ ninguém que as não conheça.» Propósitos de Inverno, perante um quadro da Europa! Mas o futuro vai confirmâ-los, porque o ano de 1 565 , ano de combate, não se parecerâ com os precedentes.
Contra os corsários e contra o Inverno: 1561-1564 Foram portanto quatro anos de paz que o Turco concedeu ao Império Espanhol. Mas estes anos foram proficuos. E em primeiro lugar contra os corsâ rios. Estes não desapareceram ao mesmo tempo que a armada turca e muito naturalmente, todos os anos, a marinha hispânica foi obrigada a utilizar contra eles as forças que a ameaça do perigo turco fizera reunir, que o seu desapareci mento tornava disponíveis. A nova frota de Filipe II forjou-se nesta luta penosa contra inimigos expe rientes, difíceis de apanhar na imensidade do mar, de inquietar nas suas defesas africanas. Com efeito, foram desferidos contra os Espanhóis golpes muito duros. Assim, em Julho de 1561 , a esquadra da Sicília, ou sejam, sete galeras, caia numa emboscada feita por Dragut, perto das ilhas Lipari 162 • Fora realizada sob as ordens do comendador Guimeran, catalão e cavaleiro de Malta, esse Guimeran «que foi tão estimado em Saint-Quentin - escrevia ao seu rei o bispo de Limo ges -. Era mais louvado pela sua destreza em terra do que no mar onde Dragut secundou mal a sua aprendizagem, tendo-se perdido com ele muitas pessoas de bem, como não é difícil terdes, Sire, encontrado na Itâlia» 163 • Entre as perdas, acrescenta, «querem esconder um outro navio, o qual desapareceu quando se guia de Nâpoles para a Sicília onde se assegura que havia três das velhas insíg nias da Flandres recentemente transportadas para Itâlia.» Aproveitando o facto de as galeras do rei terem sido chamadas para as costas de Espanha, Dragut «manteve, com trinta e cinco barcos, o reino de Nâpoles em tal situação que, hâ quinze dias, chegou correio a pé do marquês de Tariffa, governador da dita Nâpoles», pedindo a Filipe II «que mande as ditas galeras, estando de outra forma isolados da religião, da Sicília e outros portos vizinhos tão perturbados e aper tados pelo dito Dragut que nenhum deles pode passar de um lugar para outro.» Felizmente, acrescenta o bispo, que a armada turca não veio, «O que foi, na verdade, uma grande graça de Deus, como é visível dado que tão poucos piratas e ladrões mantêm este príncipe, desde o estreito de Gibraltar até à Sicília, em tal servidão que os infiéis descem aonde querem entre as suas terras, se não aos fortes . » Esta história dispersa d e Gibraltar à Sicília exigiria uma série d e investi gações nos pequenos depósitos dos arquivos da Andaluzia, das Baleares, de
162 Diego Suárez, segundo o General Didier, Hist. d'Oran, 163 24 de Agosto de 1561 , B. N . , Paris, Fr. 16 103.
368
1927,
VI, p. 99, nota
5.
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Valência onde parece que existiu um laço entre os movimentos dos Mouriscos e os avanços do corso argelino. Haedo sugere-o várias vezes, quando fala da actividade do centro de corso de Cherchell, quase inteiramente habitado por fugitivos mouriscos, ainda relacionados com os seus parentes e amigos da costa espanhola 1 64. É certo que os corsários fazem muitas capturas durante esse Verão de 1 56 1 . Com o seu fim, chega a hora das vinganças cristãs e os comentários mu dam de sentido: em Setembro, atribui-se aos Espanhóis o projecto de tomarem Monastir 165 . Nesta época, um por um, os corsários regressam às suas bases, abandonando o mar agitado. Quanto ao governo espanhol, não pensa abri gar os seus navios; simplesmente porque é o mais fraco. O príncipe de Melfi 166, a quem se confiou o comando das galeras hispânicas, com a morte de André Dória, protesta contra estas ordens das gentes de terra que não sabem o que é uma galera, lançada, no Inverno, para os caminhos do Mediterrâneo - que de modo algum compreendem as avarias e a usura que as tempestades infligem aos estreitos navios de remos. Sem dúvida. Mas quando pretende agir e manter as indispensáveis lig� ções, o mais fraco é automaticamente atirado para os maus tempos que esva ziam o mar e escondem o adversário. O vice-rei da Sicília - continua a ser o duque de Medina Celi - lembra secamente ao príncipe de Melfi que o rei orde nou a reunião das galeras em Messina; ordens são ordens 167 . Portanto, os mo vimentos previstos realizar-se-ão. La Goleta é abastecida de munições, desde Outubro 168, e, no início de Novembro, a frota hispânica está ainda em Trapani . O facto d e já não s e encontrar e m Messina mostra que s e desviou para a s suas linhas internas, se o príncipe de Melfi não manifestar todavia nenhum desejo de sair daí. Aliãs, o tempo está terrível 1 69, e é sem dúvida nesta época (o documento não tem data precisa) que um comboio de galeras deve renunciar a atingir La Goleta. O que podem as ordens contra um mar agitado? O vice-rei da Sicília decide-se finalmente a enviar uma grande nau, com duas mil salmas de trigo, para fazer face às necessidades da guarnição superlotada 1 10. Pensa-se, em Janeiro, embarcar os Espanhóis em excesso que Juan de Romero 171 comanda, mas o seu embarque coloca problemas semelhantes aos do seu abastecimento. O príncipe de Melfi, se tivesse sido audacioso, estaria em condições favoráveis para mos-
cit., II, p. 44. Ver supra, segunda parte, capítulo IV. O bispo de Limoges ao Rei, 5 de Setembro de 1561 , B . N., Paris, Fr. 16 103 , f.0 44 e segs. Simancas, E.º 1 05 1 , f.0 1 3 1 . lbid. , f . o 139. lbid. , f. o 49. Vice-rei da Sicília a Filipe II, Palermo, 8 de Novembro de 1561, Simancas, E.º 1 1 26 . O mesmo ao mesmo (s. d. nas minhas fichas}, ibid. O bispo de Limoges à Rainha, Madrid, 3 de Janeiro de 1562, B. N . , Paris, Fr. 16 103, f. 0 1 26 v . 0 • Em Junho de 1562, os Espanhóis estão ainda em La Goleta. Relação de viagem de J. de Mendoza. . . Simancas, E. 0 1052, 164 C. Duro, op.
1 65 166 1 67 168 1 69 1 70 17 1
f.0 33.
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trar que a política da presença das galeras espanholas, tão dispendiosa, não dera grandes resultados nesse Inverno. A partir da Primavera, o corso berberesco recomeçava ainda melhor. A 1 de Março de 1 562 1 72, uma carta de La Goleta assinalava que Dragut partira para se abastecer de trigo. No mês de Abril, velas argelinas tentavam surpreender Tabarcal 73 . Pelo seu lado, Juan de Mendoza conseguia, de Maio a Junho, che fiar um grande comboio de navios redondos até La Goleta, sob a escolta de uma vintena de galeras 1 74, sem encontrar nenhum navio inimigo e quase sem in cidentes marítimos. Neste mesmo mês de Maio, barcos argelinos estavam em Marselha 1 1s. Diziam ter capturado na rota uma nau ragusana que vinha de Ale xandria, carregada de mercadorias pertencentes a Florentinos, e uma nave veneziana, essa transportando vinhos de Malvasia. Falava-se também de uma «cidade» que teriam tomado, perto de Porto Maurizio, capturando aí cinquenta e seis pessoas. «Vieram a Marselha para se reabastecerem de bolacha e outros víveres e reiniciar os seus corsos. De noite, embarcaram secretamente trinta e seis barris de pólvora e de salitre.» Em seguida, perdemos o rasto dos corsários. Sem dúvida, porfiaram muito nesta costa norte do mar, dado que Juan de Mendoza, com trinta e duas galeras, faz, em Junho, o policiamento de Nápoles na embocadura do Tibre, a pedido do Santo Padre 1 76. Por outro lado, chega a Argel, em Julho, com Sampiero Corso, um embaixador de França encarregado de exigir indemnizações pelos prejuízos causados pelos corsários argelinos 1 77 . A partir de Setembro, os Espanhóis ripostam. Anuncia-se, de Barcelona, que três galeotas de corsários teriam sido tomadas em Ponza; igualmente algu mas fustas, mas isso não está confirmado, em Tortosa 178. Inscrevamos no activo dos Espanhóis um novo abastecimento da insaciável La Goleta, realizado em Setembro por João André Dória 1 79. Juan de Mendoza regressara às costas his pânicas, com as frotas da Sicília e de Espanha engrandecidas com algumas galeras particulares, para policiar a costa e trazer abastecimentos e homens para Orão l 80. Mas, surpreendidas por um forte vento de Leste no porto de Málaga, as vinte e oito galeras foram obrigadas a ir procurar refúgio no largo abrigo da baía de Herradura. As Instruções Náuticas181 assinalam que este ancoradoiro cheio de lodo, sobre um fundo de vinte a trinta metros, é perigoso com vento do largo. Ora, mal as galeras se refugiaram aí, foram surpreendidas por um
Alonso de la Cueva ao vice-rei da Sicília, 1 de Março de 1562 , Simancas, E.º 1 1 27 . Figueroa a Filipe li, Génova, 9 de Maio de 1562 , Simancas. E. 0 1391 . Relação d e viagem d e J. d e Mendoza. . . , Simancas, E . º 1052 , f.0 33; D . J . de Mendoza de regresso a Palermo a 9 de Maio de 1562 , Simancas, E.º 1 1 27 . 17 5 Per /ettere di Marsig/ia, 2 1 de Maio, A. d. S., Génova, L. M. Spagna 3. 241 2 . 176 Vice-rei de Nàpoles a Filipe li, 4 de Julho de 1562 , Simancas, E. 0 105 2, f. º 45. 177 Argel, 1 2 de Julho de 1562 , A. d. S., Génova, L. M. Spagna 3. 241 2 . 178 Sauli à Senhoria de Génova, Barcelona, 13 de Setembro de 1562 , ibid. 179 Ao rei, La Goleta, 30 de Setembro de 1562 , Simancas, E. 0 486. 1 80 Saint-Sulpice ao Rei, 26 de Outubro de 1562, E. Cabié, op. cit., p. 90. 181 N.º 345, p. 83. 172 1 73
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violento vento do Sul 182. A catástrofe foi quase total: das vinte e oito galeras destruiu vinte e cinco e causou 2500 a 5000 .mortos. Pôde apenas recuperar-se, dos destroços, uma parte do armamento. A 8 de Novembro de 1 562, a notícia chega a Gaeta 1 83 , de onde foi retrans mitida para Nápoles. A catástrofe, tão pouco tempo depois da que sucedera em Djerba, desencadeou uma considerável emoção 1 84. Mas o governo de Filipe I I soube tirar força d a sua fraqueza: a 1 2 d e Dezembro d e 1 562 1 85 , nas Cortes especialmente convocadas, era exigido um subsídio extraordinário para a defesa das fronteiras africanas e para o armamento de novas galeras 1 86 . A recuperação marítima da Espanha, que se tornara mais difícil, prosseguiu com renovada energia. O que acabava de desaparecer, com efeito, era a protecção naval das costas da Península e da praça de Orão, a única praça digna desse nome, segundo as afirmações do bispo de Limoges, que a Espanha possuía em África. A grande ofensiva argelina, desencadeada no ano seguinte contra Orão, está certamente ligada à catástrofe da Herradura. Este foi um ataque em grande escala, sem comparação possível com o de Hassan Corso, em 1 556. O cerco durou dois meses, desde os primeiros dias de Abril 1 87 a 8 de Junho de 1 563 . A guarnição espanhola tinha sido alertada pre viamente, a 20 de Março; soubera também da chegada a Mazagran de quatro mil tiradores que son los que van de/ante dei campo dei Rey de Argel. Os es piões acrescentavam que, sem as chuvas, o próprio rei de Argel teria chegado ao mesmo tempo que eles. Contava-se que entrasse em Mostaganem na sexta -feira, 26 de Março, ao mesmo tempo que quarenta navios, entre os quais duas caravelas e uma naveta de mercadores que se encontravam no molhe de Argel e que tinham sido carregados de pólvora, de balas para canhão, de bestiones de madera bem como de bolacha. A artilharia chegava em quatro galeras. Final mente, dez galeras grandes (serão as dez capturadas em Djerba aos Cristãos e com as quais Hassan Paxá regressara de Constantinopla a Argel 1 88?) eram en viadas em duas esquadras rumo às costas de Espanha, para se informarem da possibilidade de um auxílio enviado da Península 1 89. Seguros destas informações, os dois filhos do conde de Alcaudete, que comandavam os dois presídios da Orânia, Martín, o mais velho, e Alonso, o mais novo, conseguiram tocar a rebate, antes que o duplo exército de mar e de terra 1 82 Relacion de como se perdieron las galeras en la Herradura, 156 , Simancas, E.º 444, f.0 217; C. Duro 2 (op. cit., II, p. 47 e scgs.) não parece ter remontado às origens. 1 83 J. de Figueroa ao vice-rei de Nápoles, Gacta, 8 de Novembro de 1562, Simancas, E.º 1052, f.0 67 . 1 84 e. Duro, op. cit., li, p. 48. 18S Agostinho Gavy de Mendonça, Historia do famoso cerco que o xarife pos afortalew de Mar.agilo no ano de 1562, Lisboa, 1 607 . 186 e. Duro, op. cit., II, p. 49. 1 87 A ou , segundo os relatos tradicionais, talvez nunca antes de de Ab.ril. Nesta data os Argelinos estão 3 4 8 ainda a duas léguas da cidade, do lado de terra. Filipe li a Figueroa, Segóvia, 1 8 de Abril de 1563 , Simancas, E. 0 1 392. Lo que ha passado en e/ campo de Oran y Almarçaquibir.. ., Toledo, 1 563 ; Peça, B. N., Paris Oi 69. 1 88 D. de Hacdo, op. cit. , p. 75 v.0 1 89 Resumo das cartas do conde de Alcaudcte, Março de 1563 , Simancas, E. 0 486.
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dos Argelinos caísse sobre eles. Tinham de defender Orão propriamente dita, depois, para além da barra de Mers-el-Kébir, numa península, a pequena forti ficação que dominava o ancoradoiro dos navios. Os Argelinos, depois de muito hesitarem, fizeram incidir os seus esforços sobre Mers-el-Kébir, mais exacta mente contra o fortim de San-Salvador recentemente construído nos relevos que dominam Mers-el-Kébir, do lado da terra. Depois do fortim de San-Sal vador, que foi conquistado a 8 de Maio depois de 23 dias de cerco, contra a própria Mers-el-Kébir e a sua pequena guarnição de algumas centenas de ho mens que entretanto chegara, apesar da preparação de uma longa bateria de 8 a 22 de Maio, para repelir o primeiro assalto, a 22, infligindo grandes perdas aos assaltantes. Os Argelinos decidiram-se então a atacar o forte num outro sector, de 22 de Maio a 2 de Junho, depois tentaram o assalto ao mesmo tempo do lado da velha e do lado da nova bateria, ao mesmo tempo que as peças de proa atira vam sobre a frente do mar. Assalto ineficaz e que custou aos Turcos a evacua ção para Argel de oito galeotas cheias de feridosl 90 . Mers-el-Kébir tinha portanto aguentado. É certo que a proximidade das costas de Espanha significava uma substancial ajuda para as duas praças. Através do bloqueio da armada argelina, introduziam-se galeras reforçadas e sobretudo pequenas barcas cujos pilotos, um Gaspar Fernández, um Alonso Fernández, foram os verdadeiros salvadores dos sitiados, levando-lhes víveres, munições, homens de reforço. De 1 de Maio a 4 de Junho, mais de duzentos fidalgos pas saram assim de Espanha para Orão. Em Cartagena, o marquês de los Velez, cujo nome era temido em território muçulmano, recebia-os com a mesa farta, tão generosamente que os habitantes de Cartagena já não encontravam no mercado nem carne, nem peixe 191 • Contudo, a situação era má em Mers-el-Kébir; a guarni ção extenuada não comia quase nada, sino algunas çeçinas dejumentos y animales nunca usados, senão um pouco de carne fumada de burros e outros animais de que não é hábito alimentarem-se. A frota de socorro, que apareceu a 8 de Junho, pondo em fuga esses «caes» Turcos, surgiu no momento oportuno. Que ai se encontre dois meses depois do inicio do cerco, é milagroso quando se sabe que as galeras que realizam este feito vêm quase todas de Itália. O inte ressante, para a história, entenda-se, deste cerco que deu tanto que falar em Es panha (Cervantes e Lope de Vega consagraram-lhe, tanto um como outro, uma peça de teatro) não é tanto o comportamento heróico de Don Martin e dos seus em Mers-el-Kébir como a rapidez com que chegou a ajuda. É uma excelente ocasião para ver uma vez em acção o dinamismo espanhol. Desde 3 de Abril, antes do início do cerco, ao receber os relatórios dos espiões de que falámos, Filipe II expedira um correio expresso ao seu embaixador
1 90 Relacion de lo que se entiende de Oran por cartas dei Conde de Al�audete de dos de junio de 1563 resci bidas a cinco dei mismo, Simancas, E.º 486. 191 Lo que ha passado .. ., B. N., Paris, Oi 69.
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em Génova, Figueroa, e.ncarregando-o de mandar partir as galeras de João An dré Dória, de Marco Centurione, do cardeal Borromeu, dos duques de Sabóia e da Toscana, tendo, como primeiro ponto de ligação, o porto de Rosas. Que se empenhem «em ganhar tempo - recomenda o rei - porque enquanto os não vir aqui, não poderei deixar de estar justificadamente muito preocupado» 1 92 . Estas ordens, registadas em Messina a partir de 23 1 93 de Abril, significavam a chamada a Espanha de todas as frotas de Itãlia, salvo as galeras da Sicília e da Religião. Lo que mas importa, escreve Filipe II a D. Garcia de Toledo a 25 de Abril, es la venida de las galeras de Italia 1 94• Em Itãlia a opinião é a mesma. O vice-rei de Nãpoles, numa carta a Figue roa, a 25 de Abril 1 95 , diz-lhe ter estado ao corrente do cerco de Orão por cartas expedidas a partir de 28 de Março (portanto antes das ordens do rei de 3 de Abril) e, imediatamente, ao saber que a armada turca não sairia esse ano, pare ceu-lhe «que convinha ao serviço de S. M. que nas vinte e duas galeras que João André Dória podia levar consigo e nas outras quatro galeras do reino, ou sejam, vinte e seis no total, embarcassem dois mil soldados espanhóis e viajassem pela rota da Sardenha, Minorca, lbiza e Cartagena [portanto a direito, sem o desvio por Rosas] e que aí, em Cartagena, esperassem as ordens de S. M.» No mesmo dia 1 96, Dória anunciava ao rei a sua chegada próxima a Cartagena. Filipe II, ao receber a sua carta em Madrid, a 17 de Maio 1 97 , respondia nesse mesmo dia, avisando-o de que se fabricaria bolacha em Cartagena, prevendo a chegada das galeras, e que se mandaria vir de Barcelona e de Mãlaga. Acrescen tava que por diversas razões - talvez a chegada tardia da frota de Itãlia, o facto de se tratar de questões espanholas, o facto também de que no seu regresso de Orão, a armada de reforço deveria dividir-se em duas esquadras das quais uma, com Dória, regressaria a Itãlia para a caça aos corsãrios -, portanto por todas estas razões, tinha escolhido, para chefe da expedição, Don Francisco de Mendoza, capitão-mor das galeras de Espanha. Assim, no início de Junho estavam reunidas em Cartagena quarenta e duas galeras, das quais, quatro de Espanha. Oito ficaram no porto (quatro do duque de Sabóia e quatro de Génova). As outras trinta e quatro chegaram a 8 a Orão, mas o golpe de surpresa só deixou como espólio três navios redondos, uma dúzia de barcas e uma saeta francesa (que se encontrava carregada de chumbo, de munições e de cotas de malha). Todos os grandes navios a remos tinham tido tempo de fugir 198 . Talvez porque, segundo um aviso de Bona de 3 de Junho retransmitido por Marselha, a frota argelina se aprontava para abandonar os
O rei lembra este pormenor na sua carta de 18 de Abril, Simancas, E.º 1 392. O vice-rei da Sicília a Filipe II, Messina, 23 de Abril de 1563 , Simancas, E. 0 1 127. Madrid, 25 de Abril de 1563 , Simancas, E.º 330. 1 95 Simancas, E. 0 105 , f. º 156. 2 l 96 Esta carta citada segundo a resposta do rei, ver nota seguinte. 197 Madrid, Simancas, E.º 1 3 2. 9 1 98 lbid. 192 193 1 94
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locais l99. O êxito não era menor. O rei anunciava-o, a 1 7 de Junho200, ao vice -rei de Nápoles de quem Diego Suárez, nas suas preciosas crónicas de Orão, fez o elogio como de um bom artesão da vitória. Ninguém o contestará. Mas, no capítulo dos elogios, não conviria mais inscrever o nome de Filipe II e alargar as felicitações ao conjunto do sistema hispânico, desta vez bem coordenado, talvez porque rodado pelas experiências precedentes e porque se tratava de um pequeno sector, próximo de Espanha201 7 Em Madrid ambicionou-se mais. Assim que entrou em Cartagena, a frota recebia do rei ordem para tomar de surpresa o Pei'l.on de Velez. Francisco de Mendoza, doente, confiou a Sancho de Leyva o comando da operação cujo plano tinha sido elaborado pelo governador de Melilla. Mas a guarnição turca da ilhota foi alertada pelo ruído dos remos e as tropas desembarcadas em frente de Velez desfaleceram . Em vez de insistir, de canhonear, de ir em frente, a maior parte dos chefes decidiu-se por um reembarque e pelo adiamento da ope ração para uma data posterior. A frota regressava a Málaga nos primeiros dias de Agosto1.02. Os corsários, conhecedores deste insucesso, redobraram os seus ata ques nas costas de Espanha. Chegaram mesmo, o que jamais tinham feito, até às Canárias. Contudo, as galeras espanholas terminavam o abastecimento de Orão, traziam-lhe, no final de Agosto, os vinte mil ducados necessários para o pré da guarnição. Alguns dias depois, tendo franqueado o estreito, encontra vam-se no Puerto de Santa Maria, o porto avançado de Sevilha203 . O balanço do ano não era, afinal de contas, demasiado mau. Mas no ano seguinte, em 1 564, a Espanha fez mais: julgou poder passar à ofensiva. Prova velmente por causa da maior segurança do lado do Oriente e da tranquilidade política geral. Talvez também por causa da nomeação, a 10 de Fevereiro de 1564, de Garcia de Toledo para o cargo de capitão-mor do Mar. Mas sobretudo, a Espanha começava a sentir-se mais forte. A autorização que em Janeiro Sancho de Leyva, comandante das galeras de Nápoles, solicitava a Filipe II, para ir, com cinco das suas galeras, uma de Stefano de Mari e as galeras livres da Sicília, dar caça, nas costas da Berberia, às fustas e galeotas dos corsários e arranjar os cativos necessários para os remos dos navios a equipar é um sinal (antes da nomeação de D. Garcia) de uma mudança de espírito204• Muito em breve, nesta Primavera e a par das tarefas vulgares e rituais, o abastecimento de
199 Simancas, E. 0
E.º
1 392.
200 Indicação dada segundo a carta do vice-rei a Filipe II, carta de resposta, 23 de Julho de 1563 , Simancas,
1052, f. º 207.
201 A este respeito, R. B. Merriman, op. cit. , IV, p. 1 10, fala de esforços sobre-humanos. Não será dizer demais? 202 A 2 segundo Salazar, a 6 segundo Cabrera, segundo Duro, op. cit. , II, pp. 55-59. 203 Gomez Verdugo a Francisco de Eraso, 29 de Agosto de 1563 , Simancas, E.º 143 , f.º 1 17. 204 Sancho de Leyva ao rei, Nápoles, 1 3 de Janeiro de 1564, Simancas, E. 0 105 3 , f.º 8. Sabe-se contudo que S. de Leyva se fazia à vela para La Goleta, vice-rei a S. M., Nápoles, 17 de Fevereiro de 1564, Simancas, E.º 105 3 , f.0 22.
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La Goleta, o reabastecimento de Orão, tratou-se, em elevado nível, de reiniciar a operação falhada contra o Pefion de Velez. A decisão oficial estava tomada desde Abri1205 . Foi uma obra-prima de organização metódica e segura, que deixou nos arquivos grande quantidade de documentos inéditos206• Tudo estava de tal modo em ordem que a 12 de Junho Filipe II podia anunciar ao embaixador de França207 que o exército de mar seria utilizado contra a Á frica. A fase dos pre parativos estava encerrada e D. Garcia procurava reunir as tropas e as galeras de Itália para as mandar passar para Espanha e para África208 . A 14, fizera em Nápoles uma entrada triunfal209, com trinta e três galeras2 10. Ainda desta vez, Filipe II interessou-se minuciosamente por todos os movimentos da frota; deu ordem aos seus serviços para estarem atentos a todos os pedidos de D. Garcia e para «apressarem toda esta questão, porque, com os ventos que fazem presente mente, creio que não tardará a chegar. Que se examine se um maior número de soldados seria necessário: o duque de Alcalá escreve que só pode entregar 1 200, que chegarão sob as ordens do capitão Carillo de Quesada»2 1 1 . É por Génova que D. Garcia atinge a Espanha, pela grande volta das costas Norte e não pelo atalho das ilhas que J. A. Dória seguira, no ano prece dente. A primeira concentração da frota teve lugar em Palamos, nas costas da Catalunha, onde a 6 de Junho se juntaram a ela as galeras de Espanha, sob o comando de Alvaro de Bazan cuja prestigiosa carreira começava então. J. A. Dória chegava ao mesmo ancoradoiro, a 26 com 2:� galeras2 1 2 . Depois, foram as galeras e os navios de Pagan Doria, que ficaram em Spezia para aí embarcarem soldados alemães. A 15 de Agosto, a frota estava em Málaga213 • D. Garcia separou-se dela, momentaneamente, a fim de se dirigir a Cádis, ao encontro das galeras portuguesas prometidas para a expedição. O seu apareci mento lançou o pânico de Estepona e de Marbella até Gibraltar, ao longo de uma costa habituada às rapinas dos corsários que julgou estar na presença de velas inimigas. Depois, com uma certa lentidão, a concentração terminou nos portos vizinhos de Marbella e Málaga. No fim de Agosto, a frota contava entre noventa e cem galeras214, mais um determinado número de caravelas, galeões e
205 Filipe II a D. Garcia de Toledo, Valência, Abril de 1 564, CODOIN, XXVII, p. 398. 206 Até ao inicio da construção de chalupas ordenada aos proveedores de Málaga, CODOIN, XXVII, p. 410,
17 de Maio de 1564. 207
1 2 de Junho de 1564, E . Cabie, op. cit., p. 270. 15 Junho de 1564, Simancas, E. 0 1053, f. 0 64. 15 1564, ibid. , f.º 63. 15 1564, ibid. , f. 0 60.
208 D. Garcia de Toledo a Filipe li, Nápoles, de 209 D. Juan de Çapata a Eraso, de Junho de 210 Vice-rei de Nápoles a Filipe II, de Junho de
2 1 1 Nota autografada do rei à margem de uma carta que lhe dirige D. Garcia de Toledo, Nápoles, 16 de
1053,
Junho de 1564, Simancas, E. 0 f. 0 65. 212 J. B. E. Jurien de la Graviere, Les Chevaliers de Malte, Paris, 1887,
1, p. 98. 21 3 lbid.• p. 99. 214 Estes são os números de C. Duro. A 29 de Agosto, Saint-Sulpice, apenas em relação a Cádis, fala de 62 galeras (E. Cabie, op. cit., pp. 291-292). Setenta e tal galeras, diz-se em França, 13 de Agosto de 1564, A. N., K 1502, n. 0 296.
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bergantins, no total 1 50 velas e dezasseis mil soldados. Exibição de forças inútil e ostentatória, diz-se em Veneza, com alguma malevolência2 15 . Servira pelo me nos para afastar os corsários, com uma magnífica vassourada: três galeras e um galeão armado foram apanhados, outros seis ou oito perseguidos escaparam com grande dificuldade. A 31 de Agosto, após uma viagem de três dias, a frota chegava em frente de Peiíon. Tal como em 1 563, a cidade fora abandonada pelos seus habitantes. No porto ardiam três navios catalães, capturados pelos muito laboriosos corsá rios de Velez, os quais tinham aliás partido para o corso com Kara Mustafa, de tal modo acreditavam pouco num ataque da armada cristã contra a sua cidade. D. Garcia de Toledo nem por isso actuou com menos prudência e grande osten tação de meios. Uma ampla testa de ponte, solidamente organizada, protegeu, do lado da terra, as operações contra a pequena ilhota fortificada. Contraria mente a tudo quanto se esperava, a guarnição, após alguns dias de tiros de canhão, a 6 de Setembro, abandonava o rochedo. Fortificou-se, deixaram-se aí canhões, víveres, homens, depois evacuou-se a testa de ponte, após ter arrasado os muros da cidade de Velez. Foi nesta ocasião que se deram, em 1 1 de Setem bro, alguns sérios recontros com os indígenas2 16. Resumindo, podia dizer-se: muito barulho e muitas despesas, para pouca coisa. Sem dúvida, convinha fazer uma demonstração brilhante para provar ao Papado que os subsídios concedidos pela Igreja para a luta contra os Mouros não tinham sido concedidos em vão. E/ Papa esta a la mira, como dizia Filipe 11217 • Todos os contemporâneos assinalaram este lado espectacular do empreendi mento. Houve também razões estratégicas: as de uma retomada, por meio de um novo chefe, da frota hispânica, e a preocupação de inutilizar este pequeno centro de corso agressivo de Velez, demasiado próximo das costas de Espanha e das ligações de Sevilha para com o andar do tempo não ser perturbador. Desde então, montará guarda na ilhota (como de 1 508 a 1 525) uma guarnição espa nhola. Garcia de Toledo só se afastou depois de ter organizado tudo. Mas afas tou-se depressa porque já precisavam dele em outra parte: na Córsega, a Senhoria de Génova, vítima dos inícios da revolta de Sampiero Corso, pedia insistentemente socorro.
O levantamento da Córsega A revolta da Córsega preparava-se há muito tempo. A paz do Cateau -Cambrésis desesperou os insulares. Sampiero Corso, de 1 559 a 1 564, apoquen tou-se por todo o lado em negociações apaixonadas, de resto perfeitamente inúJ. B. E. Jurien de la Graviere, op. cit. , 1, nota 1. Garcia d e Toledo a S . M., Málaga, 16 d e Setembro d e 1564, CODOJN, XXVll, p . 527. 3 de Agosto de 1564, Simancas, E. 0 1 393 , e não E. 0 93 1 impresso por erro, Fernand Braudel, in Rev. Afr., 1928 , p. 395, nota 1 . 215
2 1 6 D.
2 17 Filipe l i a Figueroa,
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teis. Mas bastou-lhe desembarcar a 12 de Junho de 1 564, no golfo de Valinco, com um pequeno grupo, para a ilha pegar fogo. Pois estava pronta a atiçar com a primeira faísca. Sampiero precipitou-se imediatamente sobre Corte e subju gou-a. Começava uma das mais desoladoras guerras que a ilha conheceu. Pri sioneiros massacrados, aldeias incendiadas, colheitas devastadas: a Córsega conhecerá tudo. Para Génova, isto não era uma verdadeira surpresa. Diga-se o que se dis ser, sabia-se há muito tempo como a ilha estava inquieta, como lhe era hostil. Os seus agentes tinham seguido, de perto e muito pontualmente, as viagens de Sampiero e as suas intrigas, tanto em França como em Argel, na Toscana como na Turquia. O serviço genovês de informações soubera que se encontrava em Marselha e como dispusera de uma galera armada. Portanto, o seu desembar que fora previsto; mas as rápidas consequências desta expedição, os efeitos quase imediatos da propaganda do chefe da revolta, o número de pessoas que acorriam à sua volta talvez não tivessem sido previstos. Quem se encontra portanto por detrás de Sampiero? - perguntar-se-á aquando dos seus êxitos. O rei de França que lhe emprestou a galera do desem barque? Os corsários turcos2 1 8? O duque de Florença? - murmurar-se-á em breve2 19• • • E sem dúvida Sampiero tem por detrás de si simultaneamente todos esses grandes apoios: mas de maneira indirecta e calculada. O melhor apoio do revoltado é a miserável Córsega das zonas montanhosas, a plebe insular vítima dos usurários e dos cobradores de impostos da Dominante. Génova não o diz, evidentemente: tem todo o interesse em sublinhar o jogo dos seus grandes vizi nhos para conseguir a intervenção de Filipe II. Ela não lhe falta, sobretudo quando se trata do jogo francês que é demasiado evidente. «A questão da Cór sega - escreve Figueroa a 7 de Julho - tem mais fundamento do que alguns pensavam no início. Sampiero subleva as populações e uma boa parte da ilha está inteiramente ao seu lado. Recebeu-se o aviso de que o Senhor de Carces recrutava, na Provença, sete grupos de infantaria, para lhos enviar apesar dos Franceses dizerem que são para a guarda das suas marinhas.» Pelo seu lado, os mercadores genoveses de Lyon informam220 a Senhoria acerca das actuações e das reacções dos Franceses. Filipe II, posto ao corrente, aprova D. Garcia de Toledo que é de opinião de avançar até à Córsega com trinta galeras, enquanto João André Dória e lbarra continuariam a carregar víveres e soldados alemães. Onde quer que se encontre, quando recebe a ordem do rei, D. Garcia é pois convidado, por carta de 1 8 de Julho, a dirigir-se para a ilha. Não se pode, escreve o rei, deixar Sampiero, já senhor de Ístria e que ameaça Ajácio, apoderar-se de toda a ilha, ele que é um aficionado da França, que faria da Córsega uma scala para los TurFigueroa ao rei, Génova, 27 de Junho de 1564, Simancas, E. 0 1393. Em Veneza, nomeadamente, centro de noticias verdadeiras ou falsas e de especulações, G. Hernandez a Filipe li, Veneza, 1 2 de Setembro de 1564, Simancas, E. 0 1325. 220 O mesmo ao mesmo, ibid. 21 8
2 19
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cos moros enemigos de nuestra santa fe catholica121 • A França desempenha neste caso um papel inadmissível, escreve ao seu embaixador em França222: «Não posso acreditar que foi com a benevolência do rei e da rainha que o dito Corso teria iniciado o que fez, nem mesmo com o seu simples conhecimento, dado que se trata de uma questão tão pouco de acordo com a nossa amizade e fraternidade, e tão contrária à observação da paz. Todavia, há tantos indícios, tão grandes e tão manifestos, que não podem contentar-se em afirmar que isto não se fez com o seu consentimento.» Infelizmente, para Filipe II e mais ainda para os Genoveses, o seu consen timento de 18 de Julho que ordena o desvio das galeras rumo à Córsega, chegou a D. Garcia quando este já estava nas costas de Espanha, pronto para a expedi ção de Velez. Seria preciso mandá-lo de novo para onde viera? Teria sido perder tempo, comprometer a expedição contra o Peõon e, ao explicar-se junto de Figueroa, o rei acrescentava que tinha sido «advertido de que o Papa estava alerta para ver se o dinheiro que tinha concedido para armar galeras serviria verdadeiramente para empreendimentos contra os Infiéis»223 • Por todas estas razões, Filipe II deixou que a viagem prosseguisse para Gibraltar e Marrocos. No fim do Outono, pensar-se-ia então na Córsega. Assim, a expedição do Peõon causou um prolongado atraso a Sampiero e aos seus guerrilheiros. As notícias espalhadas por Génova foram desde então cada vez mais alarmantes. Figueroa, numa carta de 5 de Agosto de 1 564224, falava de crescentes intervenções francesas, de fragatas que vão e vêm entre a ilha e a Provença, de conciliábulos que os Fieschi, banidos genoveses, e os Corsos mantêm na casa de Thomas Corso (entenda-se Thomas Lenche, o fundador do Bastião de França), «que habitualmente fornece os Argelinos de remos, pólvora, velas e outras mercadorias de contrabando . » Todavia, Catarina de Médicis declara todavia não ter qualquer responsabilidade na questão e chega a propor a sua mediação. Se se aprontam as galeras em Marselha, afirma, é prevendo a próxima entrada do rei. Confia mesmo a Francés de Alava, por intermédio do cardeal Rambouillet, que a passagem da frota de D. Garcia de Toledo, com tão numerosas galeras, ao largo dos portos franceses, sem que tenha sequer pedido «refrescos», a fez desconfiar225 ! Isto não impede de modo algum Génova de acusar a França226 e de se inquietar a propósito das dez galeras que o mar quês de Elbeuf tem aprontadas em Marselha . . . Contudo, a máquina hispânica, d e modo algum danificada no Peõon, pode repetir na direcção da Córsega o movimento que acaba de ter êxito em África. A 3 1 de Agosto de 1 564, o duque de Alba escreveu a Figueroa que
221 Filipe 11 a
D.
18 de Julho de 1564, Simancas, E.º 1 393 . 1502. 3 de Agosto de 1 564, Simancas, E.º 1393 .
Garcia de Toledo.
222 2 de Agosto de 1564, A. N., K 223 Filipe 11 a Figueroa,
224
1393 .
Simancas, E. 0 22S D. Francés de Alava a Filipe 11, 226 Nuevas de Francia . . . recebidas a
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3 de Agosto de 1564, A. N., K 1502, n.0 96. 3 de Setembro de 1564, Simancas, E.º 3 51.
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D. Garcia de Toledo, acabada a sua tarefa em Velez, deixaria apenas em Espanha uma vintena de galeras, e atingiria imediatamente a Córsega. Na mesma altura, Filipe II assegura a Figueroa que nada surgiria de França para se opor à expedi ção que se prepara quase oficialmente, como todos sabem. O embaixador do duque de Florença anuncia-o ao seu senhor, a 22 de Setembro de 1 5 64227, e Filipe II faz o mesmo, no dia seguinte228 . Todavia, os Genoveses não se dão por satisfeitos: os preparativos pare cem-lhes demasiado lentos. A 24, o embaixador Sauli afirma nada saber da armada que deve encontrar-se em Cartagena229. A 9 de Outubro, o seu mau humor torna-se evidente: «Se a armada demora a vir, que Vossas Senhorias Ilustríssimas acusem disso a grande fleuma e a lenta natureza destes senhores, e não a minha negligência, porque, a bem dizer, não deixei de insistir junto de S. M. e dos seus ministros»230. A crítica pode parecer injusta. A partir do mês de Agosto, Lorenzo Suárez de Figueroa, filho do embaixador espanhol de Gé nova, foi enviado a Milão para aí recrutar 1 500 Italianos, destinados às opera ções da Córsega. A 26, embarcam em três barcos redondos que só a espera do bom tempo impede que atinjam a ilha. Lorenzo é o seu coronel. Os Genoveses têm todavia motivos para estarem impacientes. Sampiero derrotou os grupos de Estefano Doria231 , e com o decorrer do tempo, temem algum conluio de Outono que se negociaria em seu detrimento. O próprio Fi lipe II afirma que é desejável um acordo com Sampiero, para evitar as despesas de uma guerra que pode prolongar-se, devido à dureza da terra corsa232, Sondados sobre este assunto, os Genoveses recebem mal a questão. Finalmente, Garcia de Toledo chega, a 25 de Outubro, a Savona233 . Mas entretanto a boa estação ter minou e não está disposto a arriscar a sua frota. Propõe vinte galeras, assim como a infantaria recrutada em Espanha e no Piemonte, enquanto os Genoveses gostariam de uma demonstração maciça de toda a armada em Porto Vecchio234• Não a conseguirão. Francés de Alava escreve de Arles, a 20 de Novembro, que se os Genoveses não a terminaram antes do Inverno, o melhor seria conciliar-se com os revoltados, conforme já lhe foi sugerido, do lado francês235 . Mas Génova não o entende assim e Filipe recusa-se, pelo seu lado, a uma mediação francesa236 . Assim, já se está no Inverno e a guerra continua. Os socorros externos não deixam de chegar à ilha, pelo menos de França (não forçosamente aliás com o
f.0
227 Garces ao duque de Florença, Madrid, 22 de Setembro de 1564,
36 v.0 228 229 230 231 232 233 234 23S
236
A.
d. S., Florença, Mediceo 4897,
23 d e Setembro de 1564, Simancas, E . º 1446, f. º 1 1 2. Sauli à Senhoria, Madrid, 24 de Setembro de 1564, A. d. S., Génova, L. M . Spagna, 3 . 24 1 2. 9 de Outubro, ibid. Filipe II a Figueroa, Madrid, 25 de Outubro de 1564, Simancas, E.º 1 393 . lbid. Figueroa a Filipe li, Génova, 27 de Outubro de 1564, Simancas, E. 0 1 393 . O mesmo ao mesmo, 8 de Novembro, Simancas, E.º 1054 , f. º 21 . A . N . , K 1502 , B 1 8, n . º 51 a. Filipe li a Francês de Alava, 3 1 de Dezembro de 1564, A. N., K 1502, B 18, n.0 77. Filipe li a o duque d e Florença, Madrid,
379
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
consentimento do rei e da rainha237), mas também de Livorno de onde partem as fragatas carregadas de munições e também de dinheiro238 . Sampiero mantém mesmo relações secretas com o Santo Padre239 . Assim, a guerra corre mal para os Genoveses240• As vinte galeras e os Espanhóis que João André Dória condu ziu até Bastia241 , bastarão para mudar o seu curso? O mau tempo não impede apenas as operações marítimas (D . Garcia, a 14 de Dezembro, não pode afas tar-se de Génova mais do que 25 milhas242), mas também as operações terres tres. Sabe-se, a 25 de Novembro, que o corpo expedicionário, que partira de Bastia para socorrer Corte sitiada, teve de retroceder por causa do mau tempo e das epidemias que dizimam as suas fileiras . . . Este recuo é mal compensado pela tomada, cerca de meados de Dezembro, de Porto Vecchio que João André Dória conquista sem combate, ou pela conquista de determinada aldeia de Balanha . . . Génova limitava-se a manter alguns pontos da costa e do interior, enquanto o resto da ilha passa pouco a pouco para o lado dos amotinados. Amontoados nos presídios, os soldados da Dominante sofrem mais com as epidemias e com o mau abastecimento do que com o inimigo . . .
A calma d a Europa A rebelião de Sampiero durará muito tempo, mas, circunscrita, terá pouca incidência sobre a vida geral da Europa. É preciso sublinhá-lo porque, se o mundo hispânico conseguiu recobrar fôlego, se conseguiu recuperar uma situa ção comprometida, foi porque soube aproveitar ao mesmo tempo a paz turca e as tréguas com a Europa, que de qualquer modo não passam talvez da con sequência das esgotantes guerras de Carlos V. De 1 552 a 1 559, estas guerras absorveram todos os recursos dos Estados, e ainda mais. Seguiram-se grandes falências financeiras em Espanha e na França que se repercutiram através de toda a Europa. De onde uma paralisia da grande guerra neste mundo que, durante anos, tinha sido o seu lugar preferido. Depois, a ruptura do Império de Carlos V trouxera uma relativa calma. A Alemanha, com os Fernandinos, recuperou a sua autonomia, e a Europa, esqueceu assim os seus receios de uma monarquia universal dos Habsburgos. Ainda não existe imperialismo espanhol ameaçador; não existirá até cerca de 1 580. Às grandes guerras sucedem portanto as querelas locais que se alimentam das energias inactivas. Em França, os conflitos internos que se dão no reino estão em estreita ligação com a desmobilização do exército, com a ociosidade 237 Figueroa a Francés de Alava, Génova, 1 de Dezembro de 1564, A. N., K 1502, B 18, n. 0 60. 23 8 lbid. A bordo de uma destas fragatas, um Corso amigo de Sampiero, Piovanelo que os corsários berberescos capturaram de passagem.
239 240 24 1 242
380
lbid. lbid. Figueroa a Filipe
II,
3 de Dezembro de
1564, Simancas, E.º
O mesmo ao mesmo, 21 de Dezembro de 1564,
ibid.
1393.
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
de uma pequena nobreza mais necessitada ainda do que no início do século, e que a realeza já não utiliza em Itália. Apenas um conflito importante sobreviveu à paz do Cateu-Cambrésis: o que opõe a França dos Valois à Inglaterra. Velho debate que remonta pelo me nos a 1 558, ao casamento do delfim . A atenção externa do governo francês está poderosamente voltada para o Norte, longe do Mediterrâneo. Mas os dois adversários, incomodados tanto um como outro por perturbações políticas e reli giosas, são pouco capazes de lutar verdadeiramente, sendo muito mais levados a injuriarem-se e a queixarem-se um do outro perante o Papado ou perante Fi lipe II. Este último faz com que as coisas se arrastem, não toma partido, vendo nesta querela providencial do Norte um instrumento da sua tranquilidade. Seria afastarmo-nos muito do nosso objectivo seguir esta política de má-fé243 e de pura razão de Estado; apesar de, finalmente, ter um sentido político muito curto. Claro que a França não aproveitou com isso, mas a Espanha procedendo assim, salvou ou contribuiu para salvar, a muito frágil Inglaterra de Isabel. Podia Filipe II prever que ela cresceria tão depressa? Manter a França parecia-lhe ser a tarefa essencial para a paz da Espanha. Tarefa fácil: o ano de 1 560 inaugurara o reinado de Catarina de Médicis e em breve se verificaram perturbações. Foi esta a ocasião para Filipe II, que insistia em salvaguardar os seus Estados do contágio protestante, oferecer tropas. E a oferta deu-lhe durante muito tempo domínio sobre o reino vizinho. Considerou mesmo útil comprar auxílios em França, segundo a boa tradição da política dos Habsburgos e de toda a diplomacia do século. A política espanhola foi assim levada a entrar em longas conversações com Antoine de Bourbon. Quem engana quem? Não se tentaria reabrir o dossier se ele nos não levasse ao Mediterrâneo, em primeiro lugar à Sardenha, depois a Tunes. Foi em 1 561 que começaram as conversações244, desde que Antoine de Bourbon ocupou um lugar preponderante, talvez mais aparente que real, com o seu título de Lugar-Tenente Geral do Reino. Aquele a quem a Espanha chama «Senhor de Vendôme», é de facto rei dessa Navarra cuja parte espanhola Filipe II ocupa, contra qualquer direito. Recuperar este domínio de Além-Montes, pelo menos fazer aí intrigas2A5 , misturar-se com a vida da Espanha para além do muro dos Pirenéus, nenhum rei de Navarra desde 1 5 1 1 - desde a conquista espa nhola - resistira a essa tentação, nem mesmo mais tarde o futuro Henrique IV. Todavia, era possível uma outra política: à falta da Navarra espanhola, conse-
10 de Novembro de 1562, K 1496, B. 14, n. 0 1 26: Filipe II declarou a Saint-Sulpice que ele não podia declarar-se contra a rainha de Inglaterra por causa de las antiguas alianças. 244 A conversação começou jà em Setembro; o bispo de Limoges a Catarina de Médicis, Madrid, 2A de Setembro, 1561 , B. N . , Paris Fr. 15 87 5, f.º 194; Chantonnay a Filipe II, Saint-Cloud, 2 1 de Novembro de 1561, A. N., K 1494, B 12, n . 0 I l i ; o mesmo ao mesmo, Poissy, 28 de Novembro de 1561, ibid. , n . 0 1 15. 243 Saboreemos de passagem este argumento. S. M. em Chantonnay, Madrid,
A. N.,
245 G. Soranzo ao doge, Viena,
do rei de Navarra, G. Turba, op.
25 de Dezembro de 1561, uma conjuntura descoberta em Pampelune, a favor p. 195 e segs.
cit. , l,
381
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
guir por outro lado uma compensação. O Senhor de Vendôme empenhou-se nisso tenazmente. Exigiu o reino da Sardenha e sem dúvida falou disso até em Roma246• Um dos seus agentes, que figura nos documentos espanhóis sob o nome de Bermejo ou Vermejo (mas isto não passa de uma alcunha para manter o segredo das correspondências) é recebido em Madrid em Janeiro de 1 562247 por Ruy Gomez e pelo duque de Alba, tanto um como outro pouco satisfeitos com os serviços prestados por Antoine de Bourbon e com a sua visível inclina ção para os heréticos. Especulando sobre a ambição do dito «Vendôme», os dois ministros propõem a Vermejo o reino de Tunes para o seu senhor, com a promessa de que o ajudarão a conquistá-lo. Mas, diz o agente, o que é exacta mente este reino? «Digo-lhe - declara o duque de Alba - que ninguém o poderia informar melhor do que eu, porque o Imperador. . . tivera intenções sobre este reino . . . e falara delas comigo muito particularmente.» Segue-se uma des crição idílica do reino de Tunes, de uma notoriedade tal que «poucas pessoas o ignoram» : lugar de passagem de «todas as mercadorias que vêm do Levante para o Ponente e do Ponente para o Levante», terras férteis que produzem trigo, azeite, lãs, gado em abundância, sucessão de portos admiráveis e fáceis de defender . . . Nada de comparável com o pobre reino da Sardenha, que aliás tem as suas próprias leis, e que o rei não pode alienar da sua única autoridade. Não se sabe o acolhimento que o rei de Navarra reservou a esta atraente proposta. Pelo contrário, sabe-se que Catarina se preocupou com as negocia ções de Bourbon com a Espanha e, também, que correu em Génova, em Setem bro de 1 562248 o boato de uma cessão do reino da Sardenha: «Chegou a esta cidade - escrevia Figueroa a 9 - a notícia de que D. J. de Mendoza tomou posse do reino da Sardenha para o entregar, por vossa ordem, ao Senhor de Vendôme, o que, aqui, não parece digno de crédito.» As conversações interrompe ram-se brutalmente: o Senhor de Vendôme, ferido sob os muros de Ruão, viria a morrer dos ferimentos. Filipe II foi informado rapidamente «de que os médicos e cirurgiões não tinham nenhuma esperança na sua saúde»249 e man dou escrever previamente, deixando as datas em branco, as cartas de condo lências. Pequena história, mas que mostra a França rigorosamente vigiada por uma diplomacia vigilante, pacificadora, um pouco lenta, facilmente maquiavé lica, seguramente orgulhosa e protocolar, agindo sempre, ainda que nem sem pre tão eficazmente como julga. Porque se a Europa já não pesa sobre o Impé rio Hispânico, o mérito pertence totalmente a Ruy Gomez ou à subtileza do duque de Alba? Será porque, de vez em quando, se sabe deixar o Francês «com os burrinhos dentro de água», como escrevia o bispo de Limoges? Porque Filipe é
246 Morone ao duque de Alba, Roma, 2 de Outubro de 1561 , Joseph Susta, Die Romische Curie und das Konzil von Trient unter Pius IV, Viena, 1904, 1 , p. 259. 247 O duque de Alba a Chantonnay, Madrid, 18 de Janeiro de 1562, A. N., K 1496, B. 14, n. 0 3 8. 248 Figueroa a Filipe li, 9 de Outubro de 1562, Simancas, E.º 1 39 1. 24 9 Saint-Sulpice a Catarina d e Médicis, Madrid, 2 5 d e Novembro d e 1562, B. N . , Paris, Fr. 15877, f.º 38 . 6
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o único soberano adulto (Limoges dixit ainda) numa Europa onde os tronos pertencem a crianças, ou se tomaram apanágio das mulheres? Não será porque esta Europa está fatigada? Um facto continua a ser certo: defronte de uma Tur quia limitada, fixada longe das margens do Mediterrâneo, encontra-se uma Es panha livre nos seus movimentos, que a Europa não perturba e não inquieta, pelo menos agora. A Espanha terá de aproveitar esta oportunidade.
Alguns números sobre a recuperação maritima da Espanha É difícil precisar, com números na mão, a realidade dos armamentos navais do século XVI. Em primeiro lugar, quais os navios que devem entrar em linha de conta? A par das galeras, das galeotas e das fustas, seria preciso ter em conta uma frota auxiliar de navios redondos, navios abastecedores, mas também de guerra quando surge a ocasião, porque estão munidos de artilharia. Entre o final do ano de 1 563 e o início de 1 564, o governo espanhol embarga uma centena de chalupas e de zabras de pescadores das regiões biscainha ,e can tábrica, pequenos barcos de setenta toneladas, munidos de remadores voluntá rios e de artilharia. Esta frota auxiliar foi então organizada, na Catalunha, por Alvaro de Bazan. Restaria saber em que condições e com que fins. Parece que estes navios especificamente oceânicos e de pequena tonelagem participaram nas lutas mediterrânicas apenas como transportadores. Não se compreendeu, nos meios espanhóis, o valor que podiam ter - e que terão mais tarde - estes ligeiros veleiros do Oceano. Se atendermos apenas aos navios de guerra, é preciso ter em conta, a par desses poderosos navios que são as galeras, essas galeras menores, as fustas e as galeotas. É certo que são sobretudo corsários berberescos que utilizam estas pequenas unidades. Finalmente, a principal dificuldade deriva do facto de a frota de Filipe ser na realidade um conjunto de diversas frotas, a coligação de quatro esquadras: as de Espanha, de Nápoles, da Sicília, e o grupo de galeras genove sas a soldo de Espanha (principalmente os navios de J. A. Dória). Juntam-se a estas, quando se proporciona a casião, as galeras do Mónaco, da Sabóia, da Toscana e da Religião. Isto não simplifica as contagens. Para avaliar os armamentos hispânicos, tentámos contar, para cada um dos anos de 1560 a 1 564, o número das galeras agrupadas quer em Messina, quer em qualquer outra parte, mas de preferência em Messina, o que é o mesmo que enumerar as frotas efectivamente mobilizadas. Em 1560, o ano de Djerba, a armada cristã comporta 1 54 navios de guerra, entre os quais 47 galeras e quatro galeotas2so, o que dá, entre galeras e outros navios de guerra, uma proporção de um para três. A estas 47 galeras é preciso acrescentar a esquadra de Espanha que, reclamada nas costas da Península, não 250 C. Monchicoun, op.
cit., p.
88.
383
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
participou na expedição e ainda uma dezena de galeras da Religião, da Tosca na, de Génova e de Sabóia. As medidas tomadas no momento em que foi neces sário socorrer o forte de Djerba permitem calcular estas forças de reserva. A 8 de Junho de 1 560, Filipe 1125 1 , calculando as galeras que deveria reunir, pen sava que poderiam atingir o número de 64252; número que se pode aceitar como sendo exacto; mas compreende evidentemente as vinte galeras que escaparam de Djerba. Portanto, devem apenas acrescentar-se 44 galeras às 47 da expedi ção - ou sejam 91 - para obtermos o total das forças navais de que, directa ou indirectamente, a Espanha podia dispor a seguir ao Cateau-Cambrésis. É um número considerável, mas a catástrofe de Djerba fá-lo cair para 64. Esta importante diminuição é tanto mais grave quanto a maior parte dos navios per didos foram engrossar os efectivos inimigos: em 1 562, as dez galeras grandes que levam Hassan Paxá de Argel fariam parte do espólio de Djerba. A reacção dos arsenais de Itália foi rápida. Na Sicília foram decididos novos impostos para as construções navais253 • Em Nápoles, a partir de 9 de Outubro254, as seis galeras perdidas em Djerba foram substituídas. Só havia dificuldades, e essas sérias, para os remadores. Na mesma altura, Cosme de Médicis intensificava o seu esforço marítimo, tal como o duque de Sabóia. As cartas de Figueroa, em Julho de 1 560, indicam que Filipe II poderia encontrar no porto genovês galeras para alugar255 • Pelo seu lado, João André Dória reconstituía a sua frota e comprava, em Janeiro de 1 56 1 , duas galeras ao cardeal de Santa Flor256 • Armamento significa, antes de tudo, dinheiro. É ocasião para Filipe II pedir a Roma, além da cruzada que lhe foi concedida257 , o «subsídio». Conse guiu-o em Janeiro de 1 56 1 , por cinco anos e num montante de trezentos mil ducados de oiro anuais258 • O que considerou insuficiente. Em Abril de 1 562, depois de muitas negociações, com a ajuda complacente de Pio IV, o subsídio foi elevado para 420 000 ducados e por dez anos em vez de cinco (o que provo cou veementes protestos do clero espanhol) com efeitos retroactivos desde 1 560259. Segundo uma avaliação de Paolo Tiepolo, subsidio e cruz0:da deviam
251 Filipe II ao vice-rei de Nápoles, Toledo, 8 de Junho de 1560, Simancas, E. 0 1059, f. 0 69. 252 Uma avaliação genovesa (Conto che si fa dei/e galef'f! che S. M.ta Cat.ca potrà metef'f! insieme), A. d. S., Génova, L. M. Spagna 2.2411 ( 1 560) fornece uma interessante distribuição: galeras de Espanha (20); de Génova
(6), do Príncipe Dória, não incluindo as que se encontram em Djerba (6), do duque de Florença (3), do duque de Sabóia (2), do conde de Nicolera ( 1 ) , do rei de Portugal (4), de Paolo Santa Fiore (2), «delle salve» (23). No total, 67, um documento siciliano de 1560 (Simiancas, E.º 1 125) dá o número total de 74 com a seguinte distribuição: ga leras do Papa (2), de Espanha (20), do prlncipe Dória (10), de Génova (8); da Religião (5), do duque de Florença (7); do duque de Sabóia (6); de Antonio Doria (4), de Cigala (2), de Cal. Vitelli (3), de Paolo Sforza (2), de Nápo les (3), de Bendineli Sauli ( 1 ) , de Stefano de Mari (1). 253 L. Blanchini, op. cit., l, p. 54 . 254 255 25 6 257 25 8 259
384
O vice-rei de Nápoles ao rei, Simancas, E.º 1050, f. 0 137. Resumo das cartas de Figueroa ao rei,
3, 5,
10,
1 2 de Junho de
1560, Simancas, E. 0
1389.
O vice-rei de Nápoles a Filipe II, Nápoles, 12 de Janeiro de 1 56 1 , Simancas, E.º 105 1 , f.º L. von Pastor,
lbid. lbid. ,
p.
257.
op. cit. ,
XVI, p.
256 e nota 1.
17.
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
render a Filipe II, em 1 563 , 750 000 ducados, sem contar com os outros rendi mentos cobrados em Espanha e fora de Espanha com a autorização da Santa Sé: l 970 000 ducados anuais, segundo um relato romano de 1 565 260 • Resolvida a questão do dinheiro, restava o pr_oblema técnico. Ora, Filipe II dispõe - à parte os da Provença - de todos os estaleiros e de toda a mão-de -obra do Ocidente. Mas, pelo menos durante o ano de 1561, não prestou a esta ta refa os cuidados desejáveis. O dinheiro da Igreja de Espanha não estava ime diatamente disponível, ou serviu para suprimir os enormes vazios do orçamento espanhol; sobretudo o rei e os seus conselheiros não quiseram tomar a seu cargo as despesas de rearmamentos empreendidos pelos «potentados» de Itália. Naturalmente, equipava-se para bem e salvaguarda da Cristandade. Era justo, desde então, que os «potentados» fizessem o mesmo esforço que a Espanha e dessem o seu dinheiro. Foi assim que em Março de 1 561 261 , o governo espanhol solicitava, contra os Berberescos, o auxílio das galeras de Portugal. E quando, a 1 de Abril, enviava para Itália o marquês de Favara, com a missão de nego ciar em Itália a união de todas as galeras dos seus confederados, teve o cuidado de indicar que não pretendia arranjar galeras a sue/do. Tanto ao senhor de Piombino, como à República de Génova, como ao duque de Sabóia, ao duque e à duquesa de Mântua, ao duque de Florença, pedirá dávidas, visto que lhe restavam muito poucas galeras e que as que se constroem nos seus reinos ainda não estão utilizáveis262 . Uma carta do embaixador genovês em Espanha indica que de todas as ofertas de galeras a sue/do, só a de Marco Centurione fora con siderada, para quatro ou cinco galeras, durante o ano de 1562263 . Todavia, João André Dória, o maior alugador de galeras, conseguira cem mil coroas pa gáveis na feira de Outubro, sobre as cento e trinta que lhe deviam para comple mento de equipamento dos seus navios264• Se se tiver em conta a lentidão da preparação para navegar e o equipamento das novas galeras, e depois a perda em Junho das sete galeras da Sicília, capturadas por Dragut265 , pode concluir-se que a frota hispânica, em 1 56 1 , não recuperou as suas perdas do ano precedente. O príncipe de Melfi só conseguiu para a sua campanha de Outono cinquenta e cinco galeras266 . Só no final do ano de 1 56 1 se inicia um grande esforço em Espanha. Irá até à reactivação do arsenal de Barcelona. Aliás, os vizinhos preocuparam-se sufi cientemente com estas actividades pelo que Catarina de Médicis enviou Mr. Dozances em missão especial junto de seu genro, com o único objectivo de dis-
260 261 262 263 264 26S 266
Ibid.
C. S. P. Venetian, Vil, p. 30S . , 1 de Abril de 1565, Simancas, E.º 1 1 26. 27 de Abril de 1561, A. d . S . , Génova, L. M . Spagna, 2241 1 . Tiepolo ao doge, 26 d e Abril d e 1561, C. S. P . Venetian, Vil, p. 3 10. O duque de Medina Celi ao vice-rei de Nápoles, 30 de Junho de 1561 , Simancas, E.º lOS l , f. 0 100, cópia. O bispo de Limoges ao rei, Madrid, S de Setembro de 1561 , B. N . , Paris, Fr. 16103 , f.º 44 e segs., cópia, e, do mesmo ao mesmo, a carta já citada de 1 2 de Agosto de 1561. Tiepolo ao doge, Toledo,
26 de Março de 1561,
A instrução de Fernando de Sylva, marquês de Favara . . . Sauli à Senhoria de Génova, Toledo,
385
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
sipar possíveis rnal-entendidos267 . Isto em Dezembro. Nesse mesmo Inverno, o duque de Joyeuse, sob ordem expressa do rei, mandava avançar companhias para a fronteira espanhola. Ainda que, escrevia ele, não creia que haja perigo nestas fronteiras. O que é certo é que «há dois meses, o dito senhor rei de Espa nha manda trabalhar diligentemente em Barcelona para acabar algumas galeras e outros navios e mandou fazer, corno ainda faz, grande quantidade de bola chas. Corre o boato que é para iniciar este Verão a viagem de Argel e eu sei, Sire, na verdade, que o rei de Espanha é muito instado por todos os Espanhóis para fazer a guerra em Argel, devido à grande submissão em que o rei se encon tra. Argel retém por agora os Espanhóis, só podendo negociar por mar com grande perigo»268 . Um mês mais tarde, a 17 de Janeiro de 1562, o bispo de Li rnoges indicava pormenores análogos sobre as galeras «que em todos os lados se constroem e armam apressadamente tendo-se de novo cortado na Catalunha e reinos vizinhos mais de quatro mil pés de pinheiros para satisfazer essas neces sidades, além das que se fabricam em Nápoles e Sicília, tendo vindo mestres e operários de Génova e alguns da nossa Provença»269. Mas as construções são lentas; a madeira que se corta não pode ser utilizada antes de estar seca. Os resultados não poderiam portanto ser imediatos. E, ainda nesse ano, Filipe II não quis mobilizar em seu proveito todo o arma mento disponível do Mediterrâneo ocidental. Um documento oficial de 14 de Junho de 1 562 não prevê mais de 56 galeras a colocar à disposição do comando, devendo 32 operar sob as ordens de D. Juan de Mendoza e 24 sob as ordens de Dória210 . Todavia, o pormenor do extracto mostra que tanto as galeras da Sicí lia corno as do Papa, da Toscana, de Génova, e finalmente as de particulares corno o duque de Mónaco ou o Sire de Piornbino não fazem de modo algum parte do comboio. Seria difícil enumerar com precisão as galeras que não foram utilizadas; tendo em conta os extractos anteriores, pode pensar-se num número compreendido entre vinte e trinta. Portanto, para o armamento geral do Mediterrâneo hispânico, de oitenta a noventa galeras; a catástrofe de Djerba está apenas terminada, se o estiver. Sobre o que sobrevém à catástrofe da Her radura: 25 galeras perdidas, o equipamento hispânico ficou brutalmente redu zido a um nível que desde há muito tempo não conhecera; os esforços de um ano são repentinamente arruinados. Para grandes males, grandes remédios. A 12 de Dezembro de 1562, Filipe II convoca as Cortes de Castela para Madrid. A «proposta» lida na abertura
de
267 Los puntos en que han hab/ado a S. M. Mos. Dosance y e/ embaxor. Limoges, Madrid, 10 de Dezembro A. N . , K 1 495, B. 1 3 , n. 0 96. 268 Joyeuse ao rei, Narbonne, 28 de Dezembro de 1561, B. N., Paris, Fr. 15 87 5, f.º 460. 269 Memórias do bispo de Limoges, 27 de Janeiro de 1562, B. N . , Paris, Fr. 16103 , f. 0 1 44, cópia. 270 Filipe II ao vice-rei de Nápoles, 1 4 de Junho de 1562, Simancas, E.• 1052, f. • 96. A composição das es
1561 2,
a) esquadra de D. J. de Mendoza, 1 2 galeras de Espanha (das quais, quatro destacadas à dis 4 do conde Federico Borromeo; 2 de Estefano 2 de Bendineli Sauli; b) esquadra de J. André D6ria, 1 2 galeras do dito J. André, conforme o seu novo asiento; 4 da Religião; 4 de Marco Centurione; 2 do duque de Terranova; 2 de Cigala. quadras é a seguinte:
posição do Prior e dos Cônsules de Sevilha); 6 de Antonio Doria; Doria;
386
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
das Cortes - dir-se-ia hoje, nota Cesáreo F. Duro, o discurso do Trono expunha as razões, tanto mediterrânicas como oceânicas, da constituição de wna grande frota27 1 ; a conclusão, adivinha-se, foi um pedido de impostos. Estas medidas diziam respeito ao futuro. Em 1 563 , os armamentos maríti mos só conseguiram em parte preencher os vazios da frota hispânica. Quando chegou a boa estação, Filipe apelou, mais uma vez, para os seus aliados de Itá lia: o duque de Sabóia, a República de Génova, o duque de Florença. A 8 de Março, pensava poder reunir setenta galeras272 que destinava, tal como em 1562, metade a Espanha e metade a Itália. Todos os seus planos foram pertur bados pelo cerco de Orão. Não foi nada fácil enviar as 34 galeras que salvaram os sitiados. Contudo, existe sempre uma margem muito grande entre o número das galeras mobilizáveis para uma expedição externa e o efectivo completo da frota, continuando um determinado número de navios de guarda às costas. O rei só conseguiu a recompensa dos seus esforços em 1 564. Em Setembro, entre as costas de Espanha e de África, D. Garcia de Toledo conseguia agrupar entre 90 a 102 galeras (considerando os números exagerados oferecidos pelos contemporâneos). Se se atendesse ao primeiro, o salto seria considerável. É certo que o novo chefe da frota espanhola, fiando-se nas informações recebidas sobre os Turcos, estava firmemente decidido a juntar todas as galeras disponí veis num único ponto, a Ocidente do mar, sem deixar atrás dele reservas ou guarda-costas. O desembarque de Sampiero Corso, será uma coincidência, efectuou-se na retaguarda desta enorme armada lançada para o Oeste. É igual mente certo que o rei não hesitou em recorrer a todos os auxílios, gratuitos ou não: a frota de Velez, não é a frota do rei de Espanha, é a frota de toda a Cris tandade ocidental, excepto da França. Entre outras, figuram aí dez galeras do duque de Sabóia, sete do duque de Florença, oito do rei de Portugal273 . Se se acrescentar a estas os navios mercenários, uma trintena de velas «aliadas» acompanham as de Filipe II. Entretanto, novos navios deixaram os seus estaleiros. A esquadra de Ná poles que, em Janeiro, se compunha de quatro galeras em serviço, duas na doca seca ainda por equipar, duas já construídas no arsenal e quatro em construção274, compreendia em Junho onze galeras em serviço275 , a uma décima segunda faltavam apenas os remadores276 , outras quatro estavam na doca seca e quatro em construção, no total vinte, das quais onze em serviço . Depois do lento estabelecimento, parece que os progressos foram rápidos. No final de 1 564, os arsenais hispânicos trabalhavam em pleno. O de Barcelona beneficiava
27 1 272 273 274 275 276
op. cit., II, p. 49 . li aos duques de Sabóia e de Florença, S. Lorenzo, 8 de Março de 1563 , Simancas, E.º cit., Ili, p. 67. Sancho de Leyva a Filipe li, Nápoles, 1 3 de Janeiro de 1564, Simancas, E. 0 105 3 , f. 0 8. Vice-rei de Nápoles ao rei, 15 de Junho de 1564, Simancas, E. 0 105 3 , f. 0 60. 29 de Junho de 1564, ibid. , f. º 73 . C. Duro,
Filipe
C. Duro, op.
1 392.
387
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
dos cuidados muito particulares de D. Garcia, o antigo vice-rei da Catalunha, e os primeiros resultados eram encorajadores: apesar das perdas, os efectivos de 1 559 estavam não só atingidos, mas ultrapassados.
D. Garcia de Toledo Esta reacção salutar, será obra de uma política consciente e consequente, supondo em Filipe II uma clara visão dos seus interesses e das suas tarefas no Mediterrâneo? Talvez seja apenas o perigo eminente, Djerba e uma série de acasos desastrosos que obrigaram Filipe II a um esforço que ele não pensava. Segundo parece, ele ter-se-ia de bom grado acomodado, e durante muito tempo, à guerrilha dos anos 1 56 1 - 1 564, sem ir ao encontro de perigos e grandes despesas. Não existem nele nem as ideias nem as paixões capazes de alimentar uma verdadeira política de cruzada. O seu horizonte não ultrapassa, para Leste, as margens da Sicília e de Nápoles. É mesmo provável que em 1 564, quando Maximiliano, uma vez eleito Imperador, iniciou em Constantinopla negocia ções para a prorrogação das tréguas de 1 562, postas de novo em causa pela morte de Fernando - é possível que então, tal como em 1 558, Filipe II tenha tentado intrometer-se na negociação. Hammer assinala a este respeito, entre os documentos conservados em Viena, um relatório do «internúncio», do agente imperial em Constantinopla, Albert Wyss, com data de 22 de Dezembro de 1 564277• Não existe portanto, por detrás de D. Garcia de Toledo, uma política deci dida, nenhuma das condições que, dentro de poucos anos, iriam, senão criar, pelo menos tornar possível a glória de D. João de Áustria. Talvez também lhe faltasse aquilo que a sua juventude e o seu temperamento prodigalizaram a D. João: o gosto pelo risco. Em 1564, D. Garcia é um homem velho, atormentado pela gota e pelos reumatismos. Todavia, foi ele quem soube organizar a frota hispânica, fazer dela um instrumento eficaz e poderoso. Filho de D. Pedro de Toledo - esse magnífico vice-rei de Nápoles que governou o reino com uma mão firme e contribuiu largamente para embelezar a sua capital - , D. Garcia parece ter retido de seu pai o sentido da grandeza e a amplitude dos meios a empregar. Marquês de Vilafranca, com a morte de seu irmão mais velho, começara a prestar serviço, em 1 539, com duas galeras suas, sob as ordens do príncipe Dória. Aos 21 anos, fora nomeado para o comando da esquadra de Nápoles, favor que era dirigido a seu pai, mas que lhe valeu car gos precocemente pesados. Vi-mo-lo empenhar-se contra Tunes, Argel, Sfax, Kelibia e Mehedia, na Grécia, em Nice, durante a guerra de Siena, na Córsega. Por razões de saúde - pelo menos alegou-as - renunciara ao seu cargo, a 25 de Abril de 1558, fora nomeado vice-rei e capitão-mor da Catalunha e Rossi-
277 J. von
388
Hammer, op. cit. , VI, p. 1 18.
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
!hão. Foi aí que depois do alerta de 1 5 60, durante a qual se pensou momenta neamente em confiar-lhe a frota e o reino da Sicília, alcançou a nomeação de Capitan General de la Mar, com data de 10 de Fevereiro de 1 564278 . A 7 de Outubro do mesmo ano279, por pedido que fizera e em recompensa da vitória do Peõon, era nomeado vice-rei da Sicília. Ligava assim ao seu comando marítimo a ilha que queria tranformar em arsenal e armazém . Considera-se por este pormenor que se tratava de um homem de vistas lar gas. Conhecia o preço dos serviços que prestava (peleo por su servido, luto pelo serviço do rei, escrevia280) e este sentimento de bem servir dava-lhe a coragem para determinar as suas exigências e para falar alto. «Não se pode dizer nem imaginar em que estado encontrei a frota», escrevia de Málaga a Eraso, a 17 de Agosto de 1564, no início do seu activo comando. Na mesma altura, numa carta ao rei: «É preciso - escrevia - que S. M. saiba que é indispensável que eu seja rigoroso em relação à sua frota, dado o seu estado actual, se se quiser que desempenhe bem a minha missão e que defenda as suas finanças. Sei perfeita mente que me arrisco a ser pouco estimado, mas confesso que não posso fechar os olhos aos roubos e à má administração, naquilo que depende da minha auto ridade» 28 1 . Na sua correspondência surge como honesto e exigente282, previdente, orde nado. Mas igualmente lúcido, capaz de observar e manobrar primorosamente. A carta que escreve a Filipe II, de Gaeta, a 14 de Dezembro de 1 5 64283 , coloca com inteligência o problema das relações da Espanha com o Papado. Perante ele, Pio IV, baralhando as questões, queixou-se, mais uma vez, dos Espanhóis, das pessoas que Filipe II lhe enviara, dos termos que estas pessoas empregaram a seu respeito, do conde de Luna e de Vargas, da atitude do rei no respeitante ao concílio . . . Durante quatro horas, D. Garcia limita-se a ouvir sem responder às queixas e sem falar do objectivo da sua missão. Dois dias mais tarde, passada a tempestade, começa a expor os resultados marítimos do ano que termina. O papa responde, intencionalmente, que está contente por ver finalmente o resultado dos subsídios que concede há tanto tempo. O seu interlocutor coloca-se então no plano técnico: uma frota não se constrói num dia; só os grandes agru pamentos desse ano podem evidenciar plenamente o trabalho ininterrupto dos anos anteriores. Mas o papa não se deixa convencer, fala nada mais nada menos do que de uma expedição contra Argel: o que é, em comparação, o Peõon de Velez? Isto dá sentido à frase que citávamos de Filipe I I : EI Papa esta a la
278 C. Duro, op. cit., III, p. 6 1 , nota 2 e p. 62, nota 1 . 279 Ibid. , p. 64 , nota 3 . 280 D. Garcia d e Toledo a Eraso, Màlaga, 17 d e Agosto d e 1 S 64 , CODOIN, XXVll, p. 452, citado por C. Duro, op. cit., III, pp. 6S-66. 281 22 de Agosto de IS64, citado por C. Duro, op. cit. llL p . 66. 282 Como, em relação às galeras de Nápoles, G. de Toledo ao vice-rei de Nápoles, 23 de Janeiro de 1565, Simancas, E. 0 1054, f. 0 52. 283 D. Garcia de Toledo a Filipe li, Gaeta, 14 de Dezembro de 1564, CODOIN, Cl, pp. 93- 1 05.
389
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
mira, o papa guarda-nos à vista, traduziríamos de bom grado. O papa observa a Espanha e o seu olhar nada tem de benevolente . . .
3 . Malta, prova d e força (18 d e Maio-8 d e Setembro de 1564) Mesmo correndo o risco de cair numa literatura fácil, sentimo-nos tenta dos a afirmar que Malta, ou melhor dizendo, a brusca chegada da armada turca sobre Malta em Maio de 1 565, provocou na Europa o efeito de um furacão. Mas este furacão - pelas suas consequências, um dos grandes acontecimentos do século - só surpreende metade dos governos responsáveis. Corno equipou o sultão, corno organizou esta enorme máquina de guerra sem que o boato che gasse à Europa? Desde o final de 1 564, em Viena, onde se estava sempre tão bem informado sobre as questões turcas, Maximiliano dizia ao embaixador veneziano que urna grande frota iria sair de Constantinopla a tempo nuovo. Fi lipe II armava-se, mas não haveria perigo igualmente do lado de Chipre284? Começava assim o divertido jogo dos prognósticos . . .
Houve surpresa? No início de Janeiro, de Nápoles, D. Garcia escrevia ao rei28S que seria essencial pôr termo à questão corsa, antes de Abril, ou seja, antes da chegada dos Turcos. Era preciso estar livre no Oeste para melhor resistir, a Leste, a um ata que que em breve se saberia ser muito sério. A 20 de Janeiro, Petremol escrevia a Catarina de Médicis, de Constantinopla, que a armada turca cairia sem dúvida sobre Malta, mas repetia o que lhe fora dito, sem saber mais nada286. Cada vez que se encarava um assalto turco o nome de Malta afluía naturalmente ao espírito. No fim do mês de Janeiro, D. Garcia de Toledo pensava ir lá, assim como a La Goleta, sendo as duas praças, juntamente com a Sicília, esta dema siado vasta para ser seriamente ameaçada, os bastiões da Cristandade face ao Leste, aqueles que forçosamente o Turco devia atacar. Durante todo o Inverno, e depois na Primavera, sucederam-se os boatos alarmantes. Segundo avisos de 10 de Fevereiro287 , trabalhava-se afuria no arse nal turco; em meados de Abril, estariam sem dúvida em pé de guerra 140 gale ras, dez rnaonas (ou grandes galeaças), vinte navios redondos e quinze caramu salis . . . A respeito destes alarmes, pouco importava que Alvaro de Bazan, com
284 Leonardo Contarini ao doge, Veneza, 29 de Dezembro de IS64, G. Turba, op. cit., l, 3, p. 28� D. Garcia de Toledo ao rei, Nàpoles, 7 de Janeiro de IS6S, CODOIN, XXVll, p, SS8. 286 E. Charriere, op. cit., li, pp. 774-776. 287 Constantinopla, 10 de Fevereiro de IS6S, Sirnancas, E.º IOS4, f. 0 64.
390
289.
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1 559-1 565
as galeras de Espanha, tivesse conseguido obstruir o rio de Tetuão, afundando navios na sua embocadura288 ; ou que os corsários se tenham apoderado de três navios saídos de Málaga que propunham resgatar no cabo Falcão, como era costume289. Mesmo a sensacional entrevista de Baiona não consegue desviar a atenção290 e os armamentos (oito corpos de galeras postas a navegar em Barce lona e três galeotas em Málaga29 1 ) não bastam para infundir tranquilidade. E, para além disso, impõe-se a angustiante certeza, todos os dias confirmada, da força da armada que vai chegar e que tanto os barcos do corsário do Levante como do Ponente vão reforçar. É possível que em Argel, desde o Inverno de 1 564, como afirma Haedo, Hassan Paxá tenha sido posto ao corrente da acção contra Malta. Todos os postos de escuta, tanto os de Constantinopla como aqueles que estão mais perto, como os de Corfú e de Ragusa, estão de acordo. De Ragusa, um aviso com data de 8 de Abril, anunciava que as primeiras vinte galeras de Piali Paxá tinham saido dos estreitos, a 20 de Março292 e acrescentava que os boatos falavam de Malta como objectivo da expedição, sem que se pudesse afirmar nada de seguro293 . Pelo seu lado, o governo espanhol temia um ataque contra La Goleta294, e, a 22 de Março, tinham sido tomadas medidas para recrutar quatro mil soldados de infantaria em Espanha, destinados parte à Córsega e parte à infantaria das galeras. Filipe II desdobrava-se em advertências: «A frota turca virá com mais galeras do que nos anos passados», escrevia a 7 de Abril ao Prior e Cônsules de Sevilha295 que punha ao corrente das ordens dadas a Alvaro de Bazan: atingir Cartagena para aí embarcar tropas espanholas destinadas à Córsega, depois regressar a Maiorca e continuar aí a guarda contra os corsários. Em Nápoles, a 8 de Abril, o vice-rei pensa que perante a grandeza do perigo ameaçador, recru tará dez mil a doze mil homens e irá pessoalmente à Púglia296. Mas, quanto ao que se conta de um empreendimento turco contra Piombino, com o auxilio do duque de florença, não acredita nisso297 . 288 Alvaro de Bazan a Filipe li, Orão,
graphique en Espagne,
1 89 1,
pp.
1 22- 1 26.
10 de Março de 1565,
Simancas, E. 0
486,
ver E. Cat,
Mission biblio-
289 Rodrigo Ponillo ao rei, Mers�l-Kébir, 13 de Março de 1565, Simancas, E.º 485 . 290 Vice-rei de Nápoles a Filipe li, 14 de Março de 1565, Simancas, E.º 1054, f. 0 70. 29 1 Francavila a S. M., Barcelona, 19 de Março de 1565, Simancas, E.º 332 , Filipe li aos proveedores de
30 de Março de 1565, Simancas, E.º 145. 292 Constantinopla, 20 de Março, Corfú, 29 de Março, Ragusa, 8 de Abril de 1565 , Simancas, E.º 1054, 71; a 22, afirma Jurien de La Graviere, op. cil. . l, p. 1 69. 293 Em Madrid, a 6 de Abril, o embaixador toscano Garces enviava a Filipe li os avisos do Levante recebidos por via de Florença: anunciam a força, não o objcctivo da armada. Garces ao duque de Florença, Madrid, 6 de Abril de 15 65, A. d. S . , Florença, Mediceo, 1 897 , f. º 88 . Tal como Petremol, na sua carta a Du Ferrier, 7 de Abril de 1565, E. Charriere (op. cit. , li, p. 783 a 785), indica a partida da maioria da frota a 30 de Constantinopla, mas não sabe se ela se dirige para Malta ou La Goleta. Esta data de 30 de Março indicada igualmente por um aviso de Constantinopla, 8 de Abril de 1565, Simancas, E . º 1054, f.º 85. 2� Filipe I I ao Deão de Cargatena (Alberto Clavijo, provttdor de Málaaa), Madrid, 22 de Março de 1565, Simancas, E.º 145. 295 Aranjuez, 7 de Abril de 1565, Simancas, E. 0 145. 296 Vice-rei de Nápoles a Filipe li, Nápoles, 8 de Abril de 1565, Simancas, E. 0 1054, f. 0 80. 297 O f!lCSmo ao mesmo, Nápoles, 8 de Abril de 1565, ibid, f.º 8 1 .
Málaga, Madrid,
f.º
391
O MED/Tb"'RRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
Com a demora habitual, começam a saber-se, no Ocidente, as etapas da viagem turca. A 1 7 de Abril, quarenta galeras estão no canal de Negroponte; a 19 juntam-se-lhe trinta; o resto da frota, ou sejam 1 50 velas, encontra-se em Quios298. Portanto, os navios precisaram de duas semanas (e certos elementos mais) para atingirem o Arquipélago. Durante o caminho, completaram os seus abastecimentos (nomeadamente de bolachas) e tomaram tropas a bordo. Dra gut insistiu para que a armada se fizesse depressa ao mar e teria exigido cin quenta galeras para impedir a concentração da frota de Filipe II. Em Corfú corre o boato de que a armada vai cair sobre Malta, mas o informador toma as suas precauções: «Dados os preparativos - escreve - tem-se por mais certo que ela irá contra La Goleta»299. Em Maio, chegava a Navarino 300 ; a 18, estava em Malta301 . Mais uma vez, a frota turca viajara a toda a velocidade, colocando do seu lado a vantagem da surpresa e da rapidez. A 17, de Siracusa, Carlos de Aragona enviava à pressa, por correio especial, uma curta informação a D. Garcia de Toledo: «À uma hora da manhã, a guarda de Casibila disparou trinta tiros. Visto que disparam tantas vezes, é bem provável, tememo-lo, que se trate da frota turca»302• Em breve a notícia era confirmada: a 17, a frota turca tinha sido «descoberta» ao largo do cabo Passero e o vice-rei de Nápoles informava o rei a 22, numa carta que acompanhava as notícias pormenorizadas dadas por D. Garcia303 . O rei recebeu estas primeiras informações concretas a 6 de Junho304 . Apesar de advertidos do perigo, os responsáveis pela defesa, os Espanhóis e o grão-mestre, ficaram surpreendidos com a rapidez do acontecimento, sobretudo, o grão-mestre que tinha hesitado em encetar despesas e, na ilha de Malta, em proceder às demolições necessárias. Houve atrasos no encaminha mento dos víveres e dos reforços e cinco galeras da Religião, em excelentes con dições, bloqueadas no porto, não conseguiriam prestar à frota cristã o menor serviço305 .
A resistência dos cavaleiros Mas o grão-mestre, Jean de La Valette Parisot, e os seus cavaleiros defen deram-se admiravelmente. A sua coragem salvou tudo.
298 299 300 301 302 303 304 305
392
/bid., lbid. J. B.
f. 0
E.
94,
aviso de Corfú,
30 de Abril de 1565.
Jurien de La Graviere,
lbid.
op. cit.,
E. 0 1 1 25. Simancas, E. 0 1054, f. º 1 06 . Recibida a VI de junio, nota sobre o e. Duro, op. cit. , lll, p. 76 e scgs.
l, p.
1 72.
Simancas,
precedente documento.
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
Chegada a 18 de Maio em frente da ilha, a frota turca utilizava imediata mente, no litoral Sudeste, a ampla baía de Marsa Sciraco, um dos melhores ancoradoiros de Malta depois da baía de Marsa Muset, que servirá de porto a La Valette. Desembarcava três mil homens na noite de 18 para 19 e, no dia se guinte, vinte mil. Submersa, a ilha foi ocupada sem grande dificuldade. Só restava aos cavaleiros o pequeno forte Saint-Elme, que dominava o acesso de Marsa Muset e da Velha Cidade - o Burgo (vasto acampamento entrincheirado), e os potentes fortes de São Miguel e de Saint-Ange. Considerações marítimas fize ram com que os Turcos começassem o cerco, a 24 de Maio, pelo menos poderoso destes fortes, o de Saint-Elme, na esperança de disporem em seguida do porto cuja entrada ele dominava. A artilharia começou a disparar a 3 1 de Maio. Ora, a fortificação só foi tomada a 23 de Junho, depois de um bombardeamento de uma extrema violência. Não escapou nenhum dos defensores. Mas esta tenaz resistência tinha salvo Malta. Proporcionou-lhe o tempo indispensável para preparar a repressão do assalto e terminar as construções previstas, no Burgo e em São Miguel, pelo arquitecto dos cavaleiros M. 0 Evangelista. Permitira tam bém aos Espanhóis recuperar o seu atraso. Só circunstâncias fortuitas impedi ram que Juan de Cardona, comandante das galeras da Sicília, socorresse Malta antes da queda de Saint-Elme. Este pequeno destacamento de seiscentos homens desembarcou ainda oportunamente, a 30 de Junho, e conseguiu atingir a Velha Cidade, prova de que nem a terra nem o mar estavam perfeitamente guardados pelos sitiantes. Tomado Saint-Elme, os Turcos fizeram incidir os seus esforços, por terra e por mar, sobre a considerável construção, mas em parte improvisada, de São Miguel. A artilharia, os assaltos, as minas, os ataques com barcas, nada foi poupado, nada venceu a resistência da defesa. A salvação, quase milagrosa, foi finalmente assegurada, a 7 de Agosto, pela intervenção em pessoa do grão-mes tre e por uma surtida da cavalaria da Velha Cidade que, lançando-se sobre a retaguarda turca, espalhou aí o pânico. Um mês mais tarde, a 7 de Setembro, o exército turco nada tinha progredido. As suas fileiras tinham-se reduzido devido a estes repetidos assaltos, às epidemias e até à fome. De Co�stantinopla, não chegavam os reforços de homens e de víveres. Sitiados e sitiantes tinham na realidade chegado ao esgotamento das suas forças. Então interveio D. Garcia de Toledo.
O socorro de Malta Os historiadores criticaram a D. Garcia a falta de rapidez na acção. Ava liaram eles sensatamente as condições em que ele teve de actuar? Perder Malta teria sido uma catástrofe para a Cristandade306 • Mas perder a frota hispânica
306 P . Herre, op.
cit., p. 53 ; H . Kretschmayr, op. cit., III, p. 48.
393
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
acabada de reconstituir era expor-se a um perigo irremediávell07. Por outro lado, como se trata dessa luta do Mediterrâneo ocidental contra o Mediterrâneo oriental, não esqueçamos que este é mais navegável que aquele; e que na con centração das frotas hispânicas, o golfo de Leão desempenha o papel de um obstáculo muito mais difícil do que o de um mar Egeu semeado de ilhas. Con tra a rapidez de uma concentração não existe apenas o espaço, mas também as múltiplas tarefas policiais, de transporte e de abastecimento no Mediterrâneo ocidental onde todos os pontos estão simultaneamente ameaçados pelos corsá rios. É preciso em Génova, em Livorno, em Civitavecchia, em Nápoles, embar car víveres, dinheiro, tropas. Finalmente, existe a Córsega onde a revolta conti nua a assolar e a conquistar terreno. Avaliem-se estas dificuldades pelas viagens da esquadra de EspanhaJos, sob as ordens de Alvaro de Bazan. No princípio de Maio chega a Málaga; embarca aí canhões e munições destinados a Orão. De Orão volta para Cartagena, onde embarca nas suas dezanove galeras e duas naves, 1 500 homens que conduz a Mers-el-Kébir. Chega a Barcelona apenas a 27 de Junho309; a 6 de Julho encontra-se em Génova; a 21 em Nápoles e em cada um destes portos é retida por pequenas tarefas . . . Imaginemos milhares de movimentos semelhantes, recruta mentos de tropas, comboios de forçados, fretamentos de naus para os trans portes, envios de fundos. Tudo isto exige tempo. Fora preciso esperar por Agosto-Setembro de 1 564 para concentrar a frota do Peõon. Mais uma vez, a concentração não se pôde fazer mais cedo. A 25 de Junho, dois dias depois da queda do forte Saint-Elme, D. Garcia ainda só dispunha de 25 galeras. No fim do mês de Agosto tinha uma centena, entre boas e más. Nestas condições, fez ou não bem em esperar? Não arriscar as suas forças em pequenas vagas? Quando aí se encontrava a quase totalidade dos navios, realizou-se um conselho de guerra no início de Agosto, em Messina310, sobre a maneira como se devia utilizá-los. Os audaciosos recomendavam enviar um apoio de homens, com sessenta galeras reforçadas; os prudentes e os peritos, como se dizia «Os marinheiros práticos», aconselhavam ir a Siracusa para aí esperar os aconteci mentos . . . Dez dias mais tarde, com a chegada de J. A. Dória, D. Garcia dispôs finalmente de todas as suas galeras. Então, bruscamente, sem ouvir a opinião de ninguém, decidiu-se a lançar um corpo de desembarque para a ilha, com as suas galeras reforçadas. A 26 de Agosto, a frota de socorro abandonava a Sicí lia. O mau tempo fê-la desviar-se para a ponta Oeste da ilha, até Favignana. Daí, atingiu Trapani onde um milhar de soldados aproveitou a paragem para
140.
307 J . B. E. Jurien de La Graviere, op. cit., li, p. 308 Em Maio, Alvaro de Bazan tem dezanove aaleras sob as suas ordens, Tello a Filipe li, Sevilha, 29 de Maio de IS6S, Simar:cas, E.º 42 galeras.
145, f.º 284. Em seauida a sua esquadra vai aumentar, chegará a Nápoles com
309 J. B. E. Jurien de La Gravicre, op. cit., li, p. 167. 3 1 0 Jbid. , p. 172 e segs.
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desertar. Um vento de feição levou-a em seguida a Larnpedll$a e finalmente ao Gozzo, ao Norte de Malta. A rajada que surpreendera a frota na sua partida tinha, muito a propósito, esvaziado o «canal» de Malta dos seus navios, mas foi impossível às galeras cristãs juntarem-se oportunamente em redor do Gozzo. Se bem que, cansado da guerra, D. Garcia regressou à Sicília a 5 de Setembro. Esta partida falhada valeu-lhe críticas, desdéns e troças, enquanto esperava as injustiças dos historiadores. Mas a partir do dia seguinte, sob a intervenção cate górica de João André Dória, a frota retornava o mar; na noite de 7 passava o canal que separa o Gozzo de Malta e encontrava-se, com temporal desfeito, à altura da baía do Friul. Querendo evitar os perigos de um desembarque noc turno, D. Garcia de Toledo ordenou que se esperasse o nascer do dia; ordenada mente, o desembarque conseguiu fazer-se em hora e meia, na praia de Melicha. Depois disto a frota regressou à Sicília. O corpo desembarcado, sob o comando de Alvaro de Sande e de Ascanio de la Coma, progrediu bastante lentamente devido ao peso das bagagens que era preciso transportar, devido à falta de animais, às costas dos homens. Chegou penosamente junto da Velha Cidade onde ficou alojado em grandes armazéns, fora da cintura. Seria preciso ir mais adiante? O grão-mestre pensava que não. Com efeito, os Turcos tinham abandonado as suas posições, evacuado o forte Saint-Elrne e embarcavam de novo. Nestas condições, mais valia não mandar avançar o corpo expedicionário, já conturbado com doenças, até às posições turcas pejadas de detritos e de cadáveres e não correr o risco de urna epidemia pestífera. Contudo, prevenidos por um trânsfuga espanhol, um mourisco, do pequeno número de Cristãos desembarcados (cinco mil), os chefes turcos tenta ram um regresso ofensivo. Lançando para terra alguns milhares de homens, empurraram-nos para o interior da ilha até à Velha Cidade onde foram massa crados nas tortuosas ruelas da Cidade; os que escaparam regressaram às galeras de Piali Paxá que retornaram a rota do Levante, dirigindo-se o grosso da frota para Zante. A 12 de Setembro desaparecia do horizonte de Malta a última vela turca. Ao saber esta notícia, Garcia de Toledo que, com as suas sessenta galeras reforçadas, tinha embarcado em Messina um novo corpo expedicionário, achou por bem desembarcá-lo em Siracusa. O que teriam feito estes homens numa ilha devastada, sem víveres? A 14 entrava com a sua frota no porto de Malta para aí embarcar de novo a infantaria espanhola cJe Nápoles e da Sicília e tornava rapidamente a direcção do Levante, esperando capturar pelo menos algumas naus na retaguarda do inimigo. Atingiu assim Cerigo a 23 311 , onde per maneceu emboscado quase oito dias, mas falhou, devido ao temporal, o seu objectivo. A 7 de Outubro regressava a Messina31 2 •
1565, Simancas, E.º 1054, f.º 207. A 22, partido de Cerigo, ilha vene ai esperar a armada turca «la qual forçosamente havia de passar por alli».
3 1 1 Por cartas dei duque de Seminara de Otranto a 29 de 7bre,
D. Garcia estava entre Zante e Modon, em frente da ilha desabitada de Strafaria, tendo ziana, com a intenção de
312 J. B. E. Jurien de La Graviere, op. cil., li, 224.
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O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO A notícia da vitória espalhou-se rapidamente. Em Nápoles era conhecida a 1 2313 , em Roma a 1 93 1 4 . A 6 de Outubro, talvez mais cedo3 t 5 , lançava a conster nação em Constantinopla. Os Cristãos «não podiam andar pelas ruas da cidade por causa das pedras que os Turcos lhes lançavam e que por sua vez choravam uns a morte de um irmão, outros a de um filho, de um marido, de um amigo»3 16 . Contudo, o Ocidente, quanto mais tinha temido mais se alegrava. Em Madrid, a 22 de Setembro de 1 565 ainda se estava pouco optimista3 1 7 • Veja -se o entusiasmo do senhor de Bourdeilles, aliás Brantôme, que tal como tantos outros chegara demasiado tarde a Messina para embarcar para Malta. «Daqui a cem mil anos, o grande rei de Espanha, Filipe, será digno de reputação e de louvores, digno também de que toda a Cristandade reze outros tantos anos pela salvação da sua alma, se Deus ainda não lhe concedeu o seu lugar no seu Paraíso por ter tão perfeitamente socorrido em Malta tantas pessoas de bem que toma vam o caminho de Rodes»3 1 8 . Em Roma, onde com o anúncio das galeras turcas se experimentaram tantos receios no Verão, celebrou-se o heroísmo dos cavaleiros, agradeceu-se a Deus pela sua intervenção, mas não se pagou qual quer tributo de reconhecimento aos Espanhóis, antes pelo contrário. O papa dava o exemplo: não lhes perdoava as faltas de rapidez na acção, nem as difi culdades que tinham suscitado desde a sua subida ao trono. O cardeal Pacheco, ao conhecer a notícia da vitória, solicitou ao papa uma audiência que foi o mais desagradável possível. O cardeal sugerira que a ocasião era boa para conceder ao rei o quinquenio, e foi, escreve, «como se lhe tivesse dado um tiro de arca buz.» Enviar-lhe o quinquenio? - perguntou finalmente. Será muito bom se eu lho conceder quando ele mo pedir . . . Em audiência pública, alguns instantes depois, o papa conseguia falar da vitória sem nomear o rei de Espanha, nem o capitão-mor, nem as suas tropas, atribuindo tudo a Deus e aos cavaleiros319.
O papel da Espanha e de Filipe II E todavia os méritos de Filipe II e de D. Garcia parecem fora de discussão. Jurien de La Graviere, a quem Malta evoca constantemente a lembrança de Sebastopol, é mais justo nas suas apreciações do que os outros historiadores. Vertot, o bondoso abade Vertot, que, reclinado no seu cadeirão, não se move dele, 3 1 3 O duque de Alba a Filipe li, Nápoles 1 2 de Setembro de 1565, E. 0 1054, f. 0 194. 3 1 4 Pedro d'Avila a G. Perez, Roma, 22 de Setembro de 1565, J. J. Dõllinger, p. 629 . A meia-noite o cardeal
li, 23 de Setembro de 106-107 . 6 de Outubro de 1565, Simancas, E.º 1054, f. º 210; Petremol a Carlos IX, Constantino 1565, E. Charriere, op. cit., li, pp. 804-805.
Pacheco enviou um correio a S. M. com a notícia da vitória. O cardeal Pacheco a Filipe
1565, CODO/N, 31S
CI, pp.
Constantinopla,
pla,
7 de Outubro de
ceo
4897, f. 0 148.
3 16 3 17 3 18 3 19
396
Ver nota precedente.
Garces ao duque de Florença, Madrid,
22 de Setembro de 1565, orig. em esp., A. d.
Citado por J. B. E. Jurien de La Graviere, op. O cardeal Pacheco a Filipe li, Roma,
cit., li,
p.
23 de Setembro de
201 . 1565,
CODOIN, CI, pp.
S., Florença, Medi
106-107.
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critica a D. Garcia a sua prudência e a sua inactividade, sem colocar o problema dessa inactividade em termos aritméticos. Manfroni, na sua História da mari nha italiana, atribui todo o mérito aos Italianos; os Espanhóis estariam abaixo de tudo. Vãs querelas de nacionalidades, narrações de cronistas que os histo riadores examinam atentamente. Em todo o caso, é certo que a vitória de Malta foi uma nova etapa da recu peração espanhola, recuperação que não foi obra do acaso e que foi prosseguida activamente nesse ano de 1 565 . Fourquevaux, chegado a Madrid no final do ano para aí representar o rei de França, escrevia a 21 de Novembro 320 que esta vam a ser construídas quarenta galeras em Barcelona, vinte em Nápoles e doze na Sicília. É provável (acrescentava, e aqui quem fala é o governador de Nápo les) que se peça ao rei de França autorização para cortar nas florestas de Quillan, perto de Carcassone, um bom número de «remos para roldanas», para equipar as galeras de Barcelona. O enorme esforço prosseguido por Filipe II arrastava outros consigo: foi assim que o duque de Florença continuou a constru ção de uma nova frota. Isto porque com a retirada de Malta não se tinha o sentimento do desapa recimento do perigo turco. Parecia mesmo mais ameaçador do que nunca neste findar de ano. O sultão activava as suas construções navais e, a 25 de Setembro, em Constantinopla (onde ainda não se conhecia, é certo, o insucesso da armada), já se falava de outros grandes empreendimentos, nomeadamente na Púglia32 1 • A notícia do «peso» do exército naval, como escreve o embaixador francês, apenas acrescentou a estes projectos um desejo de vingança. Apesar das dificuldades de abastecimento de madeira, era necessário construir cem barcos no arsenal, e o sultão falara mesmo de quinhentas velas. «Ordenou - diz um aviso de 19 de Outubro - que se ponham em condições de navegar cin quenta mil remadores e cinquenta mil assupirs para meados do mês de Março próximo, na Natólia, Egipto e Grécia.» Malta, Sicília ou Púglia seriam o objec tivo destes armamentos. A 3 de Novembro, em Madrid, segundo Fourquevaux, teme-se que o Turco faça «no próximo ano, um maravilhoso esforço no mar e em terra, se não morrer de ira ao saber que o seu exército foi repelido de Malta»322 • A 21 de Novembro323 , sabe-se já, segundo as notícias recebidas de Viena, que no ano seguinte, o sultão empregaria contra Filipe II todas as suas forças, incluindo os janízaros e a sua guarda. Avisos de 12 de Dezembro anun ciavam também que Solimão tinha declarado guerra contra o imperador e que marcharia contra ele à frente de duzentos mil homens324• Mas apenas se via nisso um gesto feito por Solimão contra a opinião dos que o rodeavam. Continuava -se persuadido de que a frota turca seria enviada contra Malta com os mesmos
320 Fourquevaux, op. cit., l, pp. 10-14. 321 Constantinopla, 25 de Setembro de 1565, Simancas, E. 0 1054, f. 0 205. 322 Fourquevaux, op. cit. , l, p. 6. 323 lbid. . p. 1 3 . 324 Constantinopla, 16 de Dezembro de 15 25, Simancas, E. 0 1055, f. 0 14.
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chefes de 1 565 , porque se o sultão permitisse que a ilha se fortificasse, nunca mais poderia conquistá-la. Pensava-se consequentemente que as coisas se con ciliariam entre o sultão e o imperador . . . Estes boatos foram levados muito a sério pelo governo espanhol. A 5 de Novembro de 1565, Filipe II ordena a fortificação de La Goleta; decidiu, escreve a Figueroa, que fossem aí aplicados os 56 000 ducados necessários 325 • Deci são que parece firme dado que pediu a Adam Centurione que tomasse esta quantia a cambio. Executando estas ordens, começou a erguer-se, em redor da velha fortaleza, uma nova Goleta (Goleta la Nueva, defronte de Goleta la Vieja). Por outro lado, excepto as doze galeras de Alvaro de Bazan que regressaram a Es panha, o rei mantém toda a sua frota na SicíJia326 . Não ameaçou o grão-mestre abandonar a ilha se não fosse socorrido? No final de Dezembro, o rei de Espa nha auxilia-o com cinquenta mil ducados (trinta mil em dinheiro contado, vinte mil em víveres e munições) e ainda com seis mil soldados de infantaria; isto é pelo menos o que afirma o agente toscano327 • Todos pensam que o Turco só pode ir contra Malta ou La Goleta, conta Fourquevaux, a 6 de Janeiro de 1 566. Se for contra Malta, o rei católico enviará para aí trinta mil Alemães, cinco mil Espa nhóis e Italianos que se instalarão na montanha de Saint-Elme, porque não é possível reparar o Burgo. Se for contra La Goleta, o rei enviará para aí doze mil homens que acamparão em redor da fortaleza. Contudo, todas estas medidas, estes esforços, por muito meritórios que sejam, não formam uma verdadeira política que tenha a pretensão de forçar o curso dos acontecimentos. Existe em Madrid o vago projecto de uma liga con tra o Turco; Filipe II procura aliar-se com Veneza, diz-se, mas será a sério? Não se alegraram os Venezianos quando souberam da conquista do forte de Saint-Elme328? Como bons e honestos comerciantes, consideravam os cavalei ros de Malta como os desmancha-prazeres do negócio oriental e nunca deixa vam de informar os Turcos daquilo que se passava no Ocidente. Assim, quando Fourquevaux obteve informações junto do seu colega, o embaixador vene ziano, este tranquilizou-o imediatamente: a Signoria de modo algum pensava numa aliança com o rei de Espanha . . . Tal como n o que diz respeito a uma política comum d a França e da Espa nha: palavras no ar e nada mais. A grande entrevista de Baiona não marcou uma viragem da história, como terão julgado os contemporâneos e depois os historiadores. Deste lado dos Pirenéus havia um reino perturbado, profunda mente agitado, já com evidentes traições. À sua frente, uma mulher inquieta, um rei criança. Catarina decidiu mostrar seu filho ao reino, como se decide uma tournée de propaganda - tournée aliás frutuosa, mas lenta. Quando os
325 Filipe II a Figueroa, 5 de Novembro de 1565, Simancas, E. 0 1394. 326 Fourquevaux ao rei, 2 1 de Novembro de 1565, Fourquevaux, op. cit., 1, pp. 10-14. 327 A. d. S . , Florença, Mediceo 4897 bis, 29 de Dezembro de 1565, Fourquevaux, op. cit., 1, 36, 25 000 escu
dos e ainda três mil Espanhóis.
328
398
Garci Hernandez a Filipe
li, Veneza, 26 de Julho de
1 565, Simancas,
E.º
1 325.
OS ÚLTIMOS SEIS ANOS DA SUPREMACIA TURCA: 1559-1565
viajantes chegaram ao Sul, a ocasião pareceu propícia para negociar um encon tro eventual com os soberanos espanhóis. Pouco importa quem foi o primeiro a pensar nisso (talvez Montluc, semiagente da Espanha). Em todo o caso, Filipe II esquivou-se a uma visita pessoal e foi a instâncias de sua mulher que permi tiu, em Janeiro de 1565, que ela se juntasse, momentaneamente, à sua família. Mas o facto de ter considerado que era bom e talvez político fazer-se rogar, não quer de modo algum dizer que este encontro o tenha deixado indiferente329. Com efeito, do outro lado dos Pirenéus o vasto mundo hispânico estava ainda tranquilo, mas sobre ele pesavam, cada vez mais, responsabilidades imperiais e finanças endividadas. Só por si, Filipe era a soma deste império, das suas forças e das suas fraquezas. Perto dele, a sua terceira mulher, Isabel, a Reina de la Paz, podia desempenhar um papel. Era ainda uma criança, apenas uma jovem e não a infeliz esposa que por vezes se descreveu. Segundo parece, tinha-se hispanizado muito depressa, em todo o caso, em Baiona desempenhou perfeitamente o papel que lhe tinham confiado. Francés de Alava, o embaixa dor de Espanha junto do rei de França, escrevia a 1 de Julho, ao falar da jovem rainha a Filipe II: «Asseguro a V. M. com toda a minha franqueza que S. M . conquistou todos o s corações bem intencionados, sobretudo quando a ouviram falar das coisas da religião e dos sentimentos de fraternidade e de grande amizade que V. M. tem e terá pelo rei de França» 33°. E isto deve ser verdade. Tendo partido a 8 de Abril33 1 , a jovem rainha chegava, a 10 de Junho332 , a Saint-Jean-de-Luz onde sua mãe se lhe juntava. Entraram simultaneamente em Baiona a 14. Isabel passou aí quase dois meses, até 2 de Julho, um pouco mais do que estava previsto333 • Esta reunião de família foi a ocasião, para os dois governos, de arranjar garantias, de projectar casamentos (a grande questão das uniões principescas do século), depois de se separar com as mãos vazias, cada um duvidando mais do que nunca da sinceridade do outro. É a encenação da falsa grande história. A nosso ver, evidentemente, e não segundo a maneira de ver dos autores e dos contemporâneos. Nem mesmo segundo a maneira de ver de Filipe II que mandou acompa nhar a rainha pelo duque de Alba e D. Juan de Manrique, a título de observa dores e de conselheiros. A figura do primeiro domina a entrevista tal como foi descrita por contemporâneos e historiadores. O que se pretende do lado da Espanha é imobilizar a França, mergulhá-la nas suas querelas internas e externas. Isso não é jogo de amigo, nem jogo diabólico. É quase uma necessidade para o Império Espanhol, instalado em redor da França, ressentindo automaticamente as repercussões de todos os seus movimentos, sobretudo nos Países Baixos,
329 Saint-Sulpice, 22 de Janeiro de 1565, E. Cabié, op. cit., p . 33 8; Filipe li a Figueroa, 3 de Fevereiro de 1565; Garces ao duque de Florença, A. d. S., Florença, Mediceo 4899, f. 0 64. 330 Baiona, 1 de Julho de 1565, A. N . , K 1504, B 19, n . º 46. 33t Luis Cabrera de Córdoba, op. cit., I, p. 423 , indica as datas e 8 e 14 de Junho. 332 O duque de Alba e D. J. Manrique ao rei, Saint-Jean-de-Luz, l i de Junho de 165, A. N., K 1504, B 19. 333 Os mesmos ao mesmo. Baiona, 28 e 29 de Junho de 1565, ibid. , n. º 3 7 (resumo).
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onde o perigo era realmente grande, depois dos levantamentos de 1 564. Mas é pedir muito à França, em nome da defesa da religião que, mais uma vez, é um cómodo disfarce. Nada é oferecido em contrapartida. Pode a rainha-mãe renun ciar à sua política de tolerância por um jogo que, demasiado aparentemente, o da Espanha, só pode dividir e diminuir o reino de França? Apesar dos sorrisos e das festas, surgiram estas profundas divergências. Houve mesmo, antes e durante a entrevista alguns alertas. Assim, a 7 de Feve reiro, quando Catarina de Médicis já tinha enviado para Baiona a ordem para fazer grandes provisões e preparar apartamentos à la espaflola para a rainha de Espanha e suas damas, Francés de Alava informava de Toulouse que corriam rumores segundo os quais os soberanos franceses levavam consigo, ó escândalo, a herética «Senhora de Vendôme», Jeanne d' Albret. Estas linhas do relató rio foram sublinhadas por Filipe II que acrescentou à margem: si tal es, yo no dexare ir a la Reyna, se é assim, não deixarei ir aí a Rainha334 . E preveniu imediatamente335 o embaixador de França336 de que não queria, na entrevista, nem a rainha de Navarra, nem o príncipe de Condé. Em Junho, pouco antes da chegada da rainha de Espanha, ocorreu outro incidente quando Francés de Alava soube que um embaixador turco desembarcara em Marselha, vergonha das vergonhas. Catarina de Médicis, repreendida pelo embaixador, defende-se como pode. Envia apressadamente, para junto de seu genro, o Senhor de Lan sac, o qual chegará a Aranjuez no mesmo dia em que a rainha de Espanha se juntava a sua mãe em Saint-Jean-de-Luz, a 10 de Junho de 1 565 . A desculpa que Lansac apresenta é a seguinte: o rei e a rainha de França desconhecem as intenções deste embaixador e enviaram ao seu encontro, para se informarem, o barão de La Garde. Se a sua missão comportar seja o que for contra o rei de Espa nha, é evidente que não será admitido em nenhuma audiência . . . «Respondi - escreve Filipe II a Francés de Alava - que estava convencido disso, mas contudo muita gente não poderia deixar de se admirar que este enviado viesse no momento em que o Turco enviava a sua armada contra mim. Porque, ape sar disso, eu acreditava que a resposta a dar ao embaixador . . . seria de molde a fazer compreender a todos a amizade que existia entre a minha pessoa e a do rei de França»337 . Pequena questão, sem dúvida, mas que não dissipava as desconfianças espanholas. A 27 de Junho o embaixador turco pediu imediatamente autorização à rainha-mãe para se retirar. Estava-se então em plena conferência e a rainha apressou-se a explicar ao duque de Alba que apenas tinha falado com o Turco
334 F. de Alava a Filipe II, Toulouse, 7 de Fevereiro de de Filipe
II à
margem.
1565, A. N . , K 1503 , B 19, n. 0 33 a. Nota autografada
335 É com efeito preciso ter em conta os atrasos de caminho. 33 6 Saint-Sulpice a Catarina de Médicis, 16 de Março de 1565, E. Cabié, pp. 337 Aranjuez, 1 2 de Junho de 1565, A. N . , K 1504 , B 19, n.0 1 1 .
400
357-358 .
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sobre as depredações feitas na Provença338 , o qual prometeu que seriam feitas restituições, todavia com a condição de que um emissário francês fosse enviado junto do sultão. Portanto, a intenção dos Franceses seria a instalação de uma embaixada na Turquia, pensa o duque. Mas dado que a armada turca se encon tra aqui, responde à rainha, «não é uma questão de enviar alguém a Constanti nopla. E no próximo ano, a frota do rei de Espanha estará no estado em que se encontra a do sultão e já pouco mal poderá causar»339. Parece portanto que em Baiona, os Espanhóis consideravam como evidente o abandono pela França da sua tradicional amizade turca e que procuravam levá-la para uma liga contra os heréticos, ao mesmo tempo que contra o sultão. A abertura é feita nitidamente alguns meses mais tarde. Estas conversações, declara Fourquevaux à rainha, parecem «querer encerrar-vos numa liga de gran des consequências.» Os Espanhóis utilizam os desejos que Catarina expressou em Baiona. A rainha fala em casamentos, esses casamentos que culminariam numa liga. Os Espanhóis falam sobretudo da liga, começando assim «pelo fim», como afirma Fourquevaux340. Ora, quantos perigos existem numa tal liga, exclama o embaixador, quando o «Turco está em paz com Sua Majestade e quando os Franceses são melhor recebidos nos seus portos e países do que são nesses lugares dos países e reinos do Rei, estando aliás a França de tal modo voltada que as forças Turcas não são aí de temer. Para romper portanto a paz contra o dito Turco e perder o comércio das mercadorias e do tráfico dos vos sos súbditos, esta Majestade tem de conceder tudo o que Vossa Majestade lhe puder exigir.» Ora, o que Catarina exige são casamentos vantajosos para os seus filhos e parece pouco provável a Fourquevaux que eles se realizem, nomea damente o do duque de Orleães com a irmã de Filipe II, a princesa Joana, que não parece consentir nele. De igual modo, o casamento de Margarida com D. Carlos. A diplomacia espanhola apenas joga as suas cartas; é uma maneira senão de manter, pelo menos de aguentar o governo francês. Pequeno jogo, de resto. Madrid serve-se, como de um guarda-vento, do argumento de uma grande política católica. Mas trata-se apenas de uma política espanhola (aliás, uma grande política católica só pode vir de Roma onde Pio IV acaba de morrer). Em Espanha, ainda não há sequer o desejo de uma grande política mediterrânica: ela suporia um impulso, uma paixão, interesses, uma força de dinheiro, uma liberdade de movimentos que não são, ou ainda não são o destino do Rei Prudente. Sente-se rodeado por todo o lado de perigos. Peri gos no Mediterrâneo, sem dúvida, mas também perigos dos piratas protestantes no Atlântico; perigos da França nas fronteiras dos Países Baixos; perigos dos próprios Países Baixos onde se anunciam perturbações que ameaçam todas as
338 É muito possível, com rigor, que estas depredações sejam fictícias, H. Fomeron, Hist. de Philippe li, l,
p.
322.
339 Ver supra, nota 333, p. 399. 340 Op. cit., 1, p. 20, 2S de Dezembro de 1565.
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forças de Espanha que culminam na grande gare reguladora de Antuérpia. Espalha-se já em Dezembro de 1565 o boato que vai correr ainda, ressoar durante anos, de urna viagem de Filipe II à Flandres34t . De facto, tudo impede Filipe II continuar este ou aquele grande desígnio político, ou prossegui-lo durante mais algum tempo. Durante os primeiros dez anos do seu reinado só conseguiu ir até ao mais premente, ao mais exigente dos perigos. E com despesas mínimas, sem comprometer demasiado o futuro. Esta mos longe dos excessos imperialistas do final do reinado em que Filipe II será tão pouco o Rei Prudente.
341 D. Francés de Alava a Filipe li, 1 3 de Dezembro de 1565, aut. A. N., K 1504, B 19, n.0 95.
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3 NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1 566- 1 570 De 1 556 a 1 570, os acontecimentos precipitam-se. Sem dúvida, esta é a sequência lógica do período relativamente calmo que o golpe de teatro de Malta, no Outono de 1 565 , encerra mal e bruscamente. Todavia, a incerteza subsiste . . . Vai o Mediterrâneo atrair, fixar em si, sob a forma de projectos e de empreendimentos vigorosos, as forças engrandecidas do Império Hispânico, ou estas virar-se-ão então para os Países Baixos, outro pólo do poder de Filipe II? Estas hesitações têm a sua quota-parte de responsa bilidade numa rnetereologia política durante muito tempo incerta. Finalmente, quem decidirá? Os homens ou as circunstâncias, estas por vezes absurdamente unidas urnas às outras? O Ocidente ou o Oriente turco, sempre «suspenso no ar» e pronto a abater-se sobre a Cristandade?
1. Os Países Baixos ou o Mediterrâneo? A eleição de Pio V A 7 de Janeiro de 1 566, um sufrágio inesperado levava ao trono pontifical o cardeal Ghislieri, conhecido pelos seus contemporâneos sob o nome de car deal de Alexandria. Em reconhecimento pela consideração de Carlos Borrorneu
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e da sua facção, que tinham assegurado a sua eleição, adaptava o nome de Pio V, honrando um predecessor que, todavia, não o havia particularmente amado. Pio IV, Pio V: o contraste entre os dois homens é enorme. De uma rica e poderosa família milanesa, o primeiro é um político, um jurista e ainda um homem da Renascença. Pio V, quando era criança, guardou rebanhos. É um desses inumeráveis filhos de pobres em quem a Igreja muitas vezes encontrou, no século da Contra-Reforma, os seus servidores mais apaixonados. Aliás, à medida que o século vai decorrendo, são eles - os pobres - que, cada vez mais, dão o tom à Igreja. Os pobres ou (como dizia melancolicamente Alphonse de Ferrara, aquele que em vão tentará em 1 566 fazer eleger seu tio, o cardeal Hipólito de Este) os filhos da fortuna. Pio V é precisamente um destes filhos da fortuna e não um «principesco», um amigo e conhecedor do mundo, disposto aos compromissos sem o que «O mundo» não existiria. Tem o fervor, a severi dade, a intransigência do pobre, se for ocasião disso a sua extrema dureza, a sua recusa em perdoar. Claro que não é um papa da Renascença: a época já ter minou. Sobre isto, um historiador conjecturou encontrar-lhe algo de medieval; digamos antes, com um outro, algo de bíblico 1 • Nascido a 17 de Janeiro de 1 5042 em Basco, perto de Alexandria, deve ao acaso a frequência escolar. Aos quatorze anos entrava para o convento dos Dominicanos, em Voghera. Professava, em 1 52 1 , no convento de Vigevano, era ordenado padre sete anos mais tarde, depois de ter estudado em Bolonha e em Génova. Desde então, nada de mais simples do que a vida de Fra Michele de Alexandria, o mais modesto dos Dominicanos, obstinadamente pobre, viajando apenas·, quando viaja, a pé, com o alforge às costas. Chegam-lhe as honras, mas constrangem-no sempre; e acompanham-nas duras tarefas. Prior, depois provedor, ei-lo, cerca de 1 550, inquisidor da diocese de Côme, num ponto nevrálgico da fronteira e da defesa católicas. Luta aí com furor. E, evidente mente, o facto de mandar apreender os pacotes de livros heréticos, nesse ano de 1550, proporciona-lhe dificuldades inusitadas. Mas também uma viagem a Roma e uma tomada de contacto com os cardeais da Inquisição, nomeadamente com o cardeal Carafa que desde então se interessará por ele. Este apoio vale-lhe ser nomeado comissário-geral da Inquisição de Júlio III. Com a subida ao trono de Paulo IV, a 4 de Setembro de 1 556, foi eleito bispo de Sutri e Nepi, mas para o manter perto de si, o papa nomeava-o prefeito do Palácio da Inquisição. A 15 de Março de 1 557, ascendia ao cardinalato. Com efeito, o futuro Pio V é um homem segundo o coração de Paulo IV; tem a sua intransigência, a sua vio lência apaixonada, a sua vontade de ferro. . . Naturalmente, viveu em bastante más relações cwn o seu sucessor: Pio IV é demasiado «mundano», demasiado amigo do compromisso, demasiado desejoso de agradar para se entender com o «cardeal de Alexandria». O novo papa de 1 566 deveria adaptar o nome de Paulo V. 1 J ean Héritier, Catherine d e Mddicis, 1 940 , p. 439. 2 Para todos estes pormenores biográficos, L. von Pastor, op. cit., XVII, pp. 37·59.
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NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1566-1570
Nesta época, este homem calvo, de longa barba branca, este asceta que já só tem pele e osso3 , é contudo de uma vitalidade excepcional, de uma actividade sem limites. Não se concedendo qualquer repouso, mesmo nos terríveis dias de siroco em Roma. Alimentava-se com pouco: «Ao meio-dia, uma sopa de pão com dois ovos e meio copo de vinho; à noite, uma sopa de legumes, uma salada, alguns mariscos e uma peça de fruta cozida. A carne só aparecia na sua mesa duas vezes por semana»4• Em Novembro de 1 566, indo visitar na costa os trabalhos de defesa, viram-no caminhar, como antigamente, ao lado da sua liteiras. A sua virtude designara-o para os sufrágios do Sagrado Colégio, e não as suas intrigas ou as dos príncipes que, desta vez, não participaram na eleição6 • Em 1 565 , Requesens escrevera a Filipe II: «É um teólogo e um homem de bem, de uma vida exemplar e de um grande zelo religioso. Na minha opinião, é o car deal que seria necessário para papa, nos tempos actuais»7 • No trono de São Pedro, Pio V não desmentiu o seu passado, e, ainda durante a sua vida, entrou na lenda. A partir do primeiro ano do seu pontificado, Requesens repetia à porfia que a Igreja há três séculos que não tivera melhor chefe e que este era um santo. Encontra-se esta mesma opinião na pena de Granvelle8 • É impossível falar de Pio V sem ter em conta o seu carácter fora de série. O seu mais pequeno texto dá aliás uma estranha impressão de violência e de presença. Vive no sobrenatural, absorvido nos seus fervores; o facto de não viver neste mundo desprezível, mergulhado nos pequenos cálculos racionais dos políticos, faz de Pio V uma grande força de história, imprevisível e perigosa. Um conselheiro imperial escrevia em 1 567: «Preferiríamos que o actual São Pedro estivesse morto, por muito grande, inexplicável, desmedida, pouco habi tual que seja a sua santidade»9• Estamos persuadidos que para alguns esta san tidade era um incómodo . . . Intransigente, visionário, Pio V, melhor d o que qualquer outro, tem o sen tido dos conflitos da Cristandade contra os Infiéis e os Heréticos. O seu sonho foi travar estes grandes combates e acalmar, o mais depressa possível, os confli tos que dividiam a Cristandade contra ela mesma. Muito em breve, retomou o velho projecto de Pio II de unir os Príncipes cristãos contra os Turcos. Um dos seus primeiros gestos será pedir a Filipe II que renuncie, em Roma, à querela de
3 e nota
4 5
Relatório de Cusano, 26 de Janeiro de
2. lbid.• p. 44. lbid. , p. 45.
1566, Arq. de Viena, citado por L. von Pastor, op. cit., XVII, p. 42
6 S6 houve, a seu favor, a sombra d e uma intervenção d e Filipe II, L. Wahrmund, DasA usschliessungsrecht (jus exclusiva) der kath. Staaten ôsterreich, Frankreich und Spanien bei den Papstwahlen, Viena, 1 888 , p. 26. Re quesens a Filipe II, Roma, 7 de Janeiro de 1566: Hasido ayudado yfavorecido por parte de V. M.; Luciano Serra no, Correspondencia diplomatica entre Espaila y la Santa Sede, Madrid, 191 4, 1, p. 77 e nota 2. 7 Requesens a Filipe II, S de Janeiro de 1 565, in J . J . Dõllinger, op. cit., I, pp. 571-578 , citado por L. von Pastor, op. cit., XVII, pp. l i e 59.
48-49.
8 pp. 9 Zasius ao arquiduque Alben V da Baviera, F. Hartlaub,
lbid.,
Maximilian II. der r/Jtselhefte Kaiser,
1929, p. 303 .
Don Juan d'Austria, Berlim,
1940, p. 35; V. Bibl,
405
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
honra com a França que, sob o pontificado de Pio IV, tinha provocado a retirada de Requesens 10 • Com tais querelas, tentam atirar o Rei Cristianíssimo para a aliança Turca. Outro dos seus primeiros gestos será contribuir para o armamento marítimo da Espanha. Sabe-se a que negociatas deram lugar as concessões de favores eclesiásticos à Espanha, as gratificaÇões que se deviam oferecer aos parentes e favoritos do Papa, as despesas acessórias, o tempo que isto exigia. Ora, o subsí dio das galeras concedido por Pio IV por cinco anos expirava precisamente na altura da sua eleição: o novo papa renovou-o imediatamente, sem discussões. A 1 1 de Janeiro de 1566, quatro dias depois da subida ao trono pontificio, Reque sens, ao escrever a Gonzalo Pérez, alegrava-se abertamente com este quinque nio que não tinha custado um único maravedi ao Rei. «0 anterior tinha custado quinze mil ducados de renda sobre os vassalos do reino de Nápoles, e doze mil ducados de pensão, em Espanha, para os sobrinhos do papa, sem contar as grandes somas dispendidas para enviar os ministros encarregados da negocia ção»l l . Outro pontificado, outros costumes. A Igreja tem certamente, em Pio V, um- mestre enérgico, decidido a uma nova cruzada. Ora, os acontecimentos do ano 1 566 apenas podiam criar um clima favorável à cruzada.
Os Turcos na Hungria e no Adriãtico Em Novembro e Dezembro de 1565 as notícias do Levante eram alarman tes. Recebido em audiência pública, à porta do conclave, a 30 de Dezembro de 1 565, o embaixador veneziano, dadas estas más notícias, tinha conjurado os cardeais a escolherem à pressa um soberano pontífice 1 2• A «voz comum» falava de uma armada mais poderosa que a do ano de Malta. Estes avisos de Novembro e Dezembro explicam as grandiosas prescrições dos estados-maiores. Filipe II lembra a Chantonnay, a 1 6 de Janeiro, que, dado o anúncio de uma armada turca mais numerosa e poderosa que a de 1 565 , deci diu providenciar a defesa das duas praças mais ameaçadas: para Malta enviará, a fim de se juntarem aos efectivos próprios dos cavaleiros, mil Espanhóis das antigas companhias, dois mil Alemães e três mil Italianos; para La Goleta, onde a nova fortaleza não está terminada, cinco mil Espanhóis treinados, quatro mil Italianos e três mil Alemães, ou sejam, doze mil homens no total que se colocarão, à falta de lugar, nas «montanhas» próximas da fortaleza, que têm muita abundância de água 13 • Estes planos originam as múltiplas medidas onde sobressai a minuciosa máquina burocrática de Filipe II. Desta vez, o seu trabalho,
Pio V a Filipe li, Roma, li Roma, de Janeiro de
24 de Janeiro de 1566, L. Serrano, op. cit. , l, p. 1 1 1 . 1566, ibid., l, p. 90. 30 de Dezembro de 1565, L. Serrano, op. cit., 1, p. 67. Filipe l i a Chantonnay, Madrid, 16 de Janeiro de 1566, CODOJN, CI, pp. 1 19-1 23; a F. de Alava, Madrid, 16 de Janeiro de 1566, A. N., K 1505, B 20, n. 0 65; Nobili ao príncipe, Madrid, 18 de Janeiro de 1566, A. d. S., Florença, Mediceo, 4897 bis; do mesmo ao mesmo, 2 1 de Janeiro de 1566, ibid. 10
12 13
406
11
Requesens ao Rei, Roma,
NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1566-1570
de modo algum silencioso, pelo contrário, de bom grado propalado, é assinalado por todos os embaixadores estrangeiros em Madrid 1 4 • As ordens são dadas em voz alta e inteligível; as nomeações sucedem-se: Ascanio della Coma para o comando dos Alemães a enviar para Malta; D. Hernando de Toledo, filho do duque de Alba, para La Goleta; e D. Alvaro de Sande para Orão 15 • A 26 de Janeiro, em Orão, Fourquevaux fala de um comboio de dois mil Espanhóis recrutados nas guarnições de Nápoles. Chega a escrever que os Espanhóis deseja riam um ataque turco contra a Púglia e a Sicília, seguros em semelhante caso «de que toda a Cristandade acorrerá imediatamente em seu auxílio .» Um mês mais tarde o mesmo Fourquevaux conta que o rei de Espanha ofereceria quatro cidades de Itália aos Venezianos para os atrair para uma aliança contra o Turco 16• A publicidade feita em redor dos armamentos espanhóis levanta-lhe aliás algumas desconfianças. Pergunta-se se os números que o duque de Alba lhe comunicou não estarão viciados. Desconfianças injustificadas pois encontramos estes mesmos números nas ordens e comunicações do rei 17 • Restaria explicar porque razão os Espanhóis, contrariamente aos seus hábitos, fizeram tanto ala rido em redor destes preparativos. Será para dissimular outros? A respeito dos armamentos marítimos realizados tanto em Barcelona como em Nápoles, onde, pelo menos nesta última cidade, são perturbados pela falta de forçados, perma necem totalmente silenciosos 1 8 • Contudo, chegavam de Constantinopla notícias que, se fossem verdadei ras, tornavam inútil uma boa parte destas precauções. Com efeito, um relatório de 10 de Janeiro declarava que a armada sairia, mas menos forte do que a que tinha ido contra Malta, porque faltavam remadores e munições. Previa-se uma centena de galeras, com Piali Paxá, sem qualquer empreendimento em grande escala, mas talvez, para perturbar as concentrações da frota hispânica, uma incursão até às margens de Génova. Por outro lado, e esta era a grande novidade, tudo confirmava que o velho Solimão se aprontava para ir em pessoa à Hungria e, depois da Hungria, avançar sobre Viena 19. De facto, a guerra já tinha reco meçado na longa fronteira balcânica em 1565 . Em vão Maximiliano enviara agentes e cartas para lhe pôr cobro e voltar ao âmbito das tréguas de 1562. O regresso às tréguas estava tão longe quanto possível do espírito do sultão que organizava grandes preparativos militares: falava-se de duzentos mil Turcos e de 1 4 Como pelo agente toscano, 15 de Janeiro de 1566, referência à nota precedente. IS Canas de Nobili de 1 8 de Janeiro e 16 de Fevereiro de 1566; 17 de Janeiro de 1566, Fourquevaux, op. cit.,
1, p. 47; 22 de Janeiro, pp. 47-48; 11 1 6 1, p. 61.
de Fevereiro, p.
5 2.
23 d e Janeiro d e 1566, Simancas, E.º 1055, f .º 1 1 . Instrução a o prior D. Antonio de Toledo, 1 8 de Fevereiro de 1566, Simancas, E. 0 1 131. 1 8 Carta ao vice-rei de Nápoles, 23 d e Janeiro d e 1566 (ver nota precedente). Garcia d e Toledo ao vice-rei de Nápoles, Nápoles, 2 de Fevereiro de 1566, Simancas, E. 0 1055, f. 0 24; vice-rei de Nápoles a Filipe II, Nápoles, 16 de Abril de 1566, Simancas, E. 0 1055, f. 0 103, sobre as quinze galeras a construir por conta do reino da Sicília, em 1 7 Vice-rei d e Nápoles a Filipe I I ,
Nápoles. Não se poderiam mandar construir oito em Génova? 1 9 Simancas, E.º f.º
1055,
7.
407
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
quarenta mil Tártaros. Os chefes turcos preparavam-se para a campanha, arruinando-se em compras de camelos e de cavalos, os quais já estavam caríssi mos. Outro facto sintomático: o velho sandjac de Rodes, Ali Portuc, guardião do arquipélago, estava pronto a largar, ele e as suas galeras, para o Danúbio, com a missão de aí mandar construir barcos e massames para a travessia dos rios20• Os projectos marítimos contra o Ocidente não estavam todavia esqueci dos. A 27 de Fevereiro os remadores chegavam a Constantinopla2 1 • Isto signifi cava que as galeras estavam prontas. Anunciou-se a sua partida por volta de 1 de Abril. Mas todos os avisos afirmavam que o seu número não atingia a centena22• E, assim que houvesse uma guerra na Hungria, podia-se contar ante cipadamente com um perigo menor no Mediterrâneo23 • Génova, que sempre dispôs no Levante, talvez devido ao grande número de renegados genoveses, do melhor serviço de informações - fora prevenida, por carta datada de 9 de Fe vereiro de 1 566, de que a armada turca projectava entrar no golfo de Veneza, contra Fiume, e, depois de juntar um espólio que só podia ser considerável, abrir caminho a fim de ir socorrer o exército do Grande Senhor na Hungria24 . Só avançaria mais se soubesse que a frota espanhola não estava concentrada. A partir de então todos começaram a tranquilizar-se. Os Malteses, escreve Requesens ao Rei a 18 de Abril, consideram que a pesada hipoteca que caía sobre eles está a partir de então inteiramente paga25 • Em Maio, Filipe II parece estar em vias de interromper as grandes medidas de Inverno26, e o vice-rei de Nápoles, desejoso de economias, pede, a 20 de Abril, que se licenciem os Alemães assim que tiver recuperado 1500 dos Espanhóis de Nápoles, cedidos a D. Garcia de Toledo, e que devem estar na Sicília e em La Goleta27 • Todavia, a 30 de Março a frota turca abandonou Constantinopla. Alguns avisos dizem que partiu com 106 galeras, outros apenas com noventa, incluindo as dez de Alexandria28 • Mas não se apressou a atravessar o Arquipélago. Aliás, 20
lbid., ...por e/ Danubio a hazer fabricar barcones y a hazer xarcias para posar los exercitas.
21 Aviso de Constantinopla,
22
lbid.,
aviso de Corfú,
28
27 de Fevereiro de 1566, Simancas,
E. 0
1055,
f. 0
5 3.
de Fevereiro, por canas de Cesare de Palma e Annibale Prototico, Simancas,
1055, f.º 49; este aviso fala de oitenta a noventa galeras apenas, as quais não deixam as éguas turcas. Aviso de 1 de Março de 1566, Simancas, E. 0 1055, f. º 59; aviso de Corfú, 16 de Março de 1566, Simancas, E. 0 1055, 67 e 68; só um aviso de Constantinopla, 15 de Março de 1566, e Lepanto, 25 de Março, Simancas, E. 0 1055, f. º 54, fala de 1 30 galeras.
E. 0
Quios, f. 0
23 Ora, a guerra da Hungria previa-se mais do que nunca, com uma marcha sobre Viena, aviso de Ragusa, Fevereiro de 1566, Simancas, E.º 1055. f. 0 61. A IS de Março, anunciavam de Constantinopla movimentos de
26 de
tropas em direcção a Só fia (Simancas, E . º
1055, f. º 64). A 16, de Corfú, assinalavam o agrupamento de spahis em 16 de Março de 1566,
Andrinopla e a fundição de numerosos canhões em Constantinopla (por carta de Corfú de Simancas, E.º
1 055, f.º' 67 e 68).
24 B. Ferrero
nopoli
à República de Génova,
Constantinopla, 9 de Fevereiro de
22170. Confirmado por cana de Corfú de 16 de Março, Simancas,
2S L . Serrano, op. cit., !, p. 1 84. 26 29 de Maio de 1566, Fourquevaux, op. cit., 1, p. 64. 27 20 de Abril de 1566, Simancas, E. 0 1055, f. 0 1 04 . 28 Aviso de Ragusa, 27 de Abril de 1566, Simancas, E.º
Simancas, E . 0
408
1055,
f. 0
1 24.
1055,
f. º
1566, A. d. S., Génova, Constanti1055, f.º' 67-68 .
E.º
1 3 . Aviso de Corfú, 3 de Maio de 1566,
NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1566-1570
procura liquidar, sem combater, a dominação genovesa na ilha de Quios, con tentando-se, ao princípio, em exilar os signori mahonesi, com mulheres e crian ças, para Caffa, no mar Negro29• Em Corfú, a 10 de Maio, continua a pensar -se que ela entrará no Golfo30, mas só a 10 de Julho é apercebida no canal da ilha3 1 • A 1 1 , está em Valona32, de onde em breve passa para Durazzo, depois para as Bocas de Cattaro e para Castelnuovo onde chega provavelmente a 23 33 • Ao conhecerem estas notícias e estando a estação demasiado avançada para que a armada turca possa empreender alguma coisa contra a ilha, o grão -mestre de Malta e D. Garcia de Toledo decidem dispensar os soldados que não eram necessários34 • Dezoito galeras vinham pois recolher os soldados alemães e o marquês de Pescara, nomeado alguns meses antes para o comando geral das tropas enviadas por Filipe para a ilha, abandonava o seu posto, nada mais tendo aí a fazer. Longe de provocar um sobressalto, a entrada da frota turca no Adriático parece ter encontrado os Espanhóis satisfeitos com o acontecimento . . . O Golfo era assunto dos Venezianos. Competia-lhes equipar, negociar, tomar as suas precauções. O que arriscavam os Espanhóis na aventura? A costa napo litana estava alertada, defendida, abandonada pelos seus habitantes que se en contravam a léguas de distância. Segundo as informações venezianas, a frota turca chegada por volta de 21 de Julho a Cattaro, contava 140 velas, das quais, 120 galeras, galeotas ou fus tas. A 22, Piali Paxá, com três galeras, chegara até Ragusa e aí recebera o tributo da República de Saint-Blaise35 • Alguns dias mais tarde, a armada turca come çava os seus recontros na costa pouco fértil dos Abruzos36 • A 29 de Julho desembarcava, nas proximidades de Francavilla, seis mil a sete mil homens, apoderava-se da cidade abandonada pelos seus habitantes e incendiava-a. Uma galera que saíra de Francavilla com dois botes fez o reconhecimento das águas de Pescara, mas na cidade preparada para resistir, bastou dar alguns tiros de canhão, e os barcos batedores viraram de bordo, dirigindo-se a armada para Ortona a Mare. Encontrando aí também a cidade evacuada incendiou-a, assim como algumas aldeias da costa. A 5 de Agosto, os Turcos fizeram uma incursão a oito milhas no interior, até ao lugar dito a Serra Capriola, na província de Capitanata. Correu-lhes mal: no fim do corso embateram numa defesa vigorosa e
29 Por cartas de Constantinopla,
16 de Julho de 1566,
n
1055.
22 170. 10 di maggio 1566,
A. d. S., Gé ova, Constantinopoli,
30 Avvisi venuti con la reggia fregata da Levante dall'ysola de Corfu de dove partete alli Simancas. E . 0
1 2, Simancas, E . 0 1055, f. 0 155. 1055, f. º 163 . 1566, Simancas, E.º 1 365. O marquês de Caparso ao duque de Alcalá, Bari. 24 de Julho de 1566, Simancas, E.º 1 055. f. º 1 80. 34 O grão-mestre a Filipe II. Malta, 25 de Julho de 1566. Simancas, E.º 1 1 3 1. Filipe II a J. A. Dória, Bosque de Segóvia, 11 de Agosto de 1566, Simancas, E.º 1 395. 35 Garci Hemandez a o rei, Veneza, 1 d e Agosto d e 1566, Simancas, E . º 1 325. 3 6 Carta d o governador dos Abruzos, 1 d e Agosto d e 1566, Simancas, E . º 1055, f .º 165; Relacion d e l o que la armada dei Turco ha hecho en el Reyno de Napoles desde que fue descubierta hasta los seys de agosto de 1566, Simancas, E. 0 1 325. 31 Corfú, li de Julho, aviso chegado a Otranto a
32 Relatório de um patrão de galeão, Simancas, E. 0 33 G. Hemandez a S. M., Veneza, 1 de Agosto de
409
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
inesperada que os fez recuar desordenadamente. No dia 6 à noite, a frota surgia em frente de Vasto, com oitenta galeras, mas desaparecia na escuridão. A 10, sabia-se em Nápoles, por cartas do governador de Capitanata, que o mau tempo lançara para terra quatro galeras turcas, à altura de Fortor37 . As tripulações tinham-se naturalmente salvo, mas tinha sido dada ordem no sentido de recu perar a artilharia e a aparelhagem e depois incendiar os navios que os Turcos poderiam porventura pôr de novo a navegar. Caso a frota inimiga voltasse novamente às costas do reino, tudo estava preparado, acrescentava o relatório. Entretanto, alegravam-se com as pequenas consequências dos ataques prece dentes. Tendo o vice-rei ordenado, ao saber da partida da armada da ilha de Quios, a evacuação total de todos os pontos não defendidos do litoral, o Turco caira por todo o lado nos despovoados. Fizera, no total, três prisioneiros, uma ninharia . . . Cada vez que a armada turca viera ao reino, levara pelo menos de cinco a seis mil almas, mesmo quando tinha na retaguarda uma boa quantidade das galeras de Sua Majestade Católica. Quanto aos desgastes materiais, eram menores do que ao princípio se receara38 , Ora, a armada turca parecia estar já no caminho de regresso. A 13 de Agosto, deslastrava em Castelnuovo, depois atingia Lepanto, com os remado res em muito mau estado e dizimados pela doença. Pouco depois, chegava a Preveza de onde, dizia-se, se fizera à vela para Constantinopla39 , Foi portanto com surpresa que a viram regressar, em Setembro, à Albânia, a «Cimara», como se dizia40• Subiu até Valona. Seria apenas para punir os Albaneses revoltados41 ? O vice-rei interrogou-se sobre o assunto sem se inquietar dema siado, porque as marinhas de Nápoles, onde houvera rendição dos Alemães pelos Espanhóis, tinham sido mantidas de prevenção. O novo perigo apaga-se por si só, sem alarido, antes do regresso do Inverno . Esta foi a campanha marítima em 1 566: tanto de um lado como do outro - do lado turco onde se fez tão pouco no mar Adriático, do lado espanhol onde se contentaram em esperar - uma campanha sem amplitude. Os Espanhóis evitaram carregar sobre Argel ou Tunes, como em determinada altura fizeram crer que tinham essa intenção42 • Deixaram-se arrastar pela quietude desse ano, que reservava para outros os golpes e o perigo. Veneza tinha pouco o hábito de se inquietar com os outros para inspirar piedade, e parecia a única visada.
37 JS
Por cartas de D. de Mendoza,
7 de Agosto de 1566, de San Juan Redondo, Simancas, E.º 1055, f.º 171. 16 d e Agosto d e 1566, Simancas, E . º 1055, f. 0 177; Fourquevaux,
Vice-rei d e Nápoles a Filipe II, Nápoles,
op. cit., l, pp. 1 10- 1 1 I, 1 23 . 39 Por cartas de J. Daça castellano de Veste (Vasto?), 6 de Agosto de 1566, Simancas, E.º 169. Lo queseen tiende de la armada por carta de Bari de los 19 de agosto 1566, Simancas, E.º 1055, f. º 178; vice-rei de Nápoles a
5
1566,
1055, f. º 1 90. 14 de Setembro de 1566, E.º 1055, f.0 197. 1566, ibid., f.0 200. 1566; Nobili ao príncipe, Madrid, 6 de Maio de 1566,
Filipe II, Nápoles, de Setembro de E.º 40 Vice-rei de Nápoles a Filipe II, Nápoles,
4 1 O mesmo ao mesmo, Nápoles, 27 de Setembro de 42 Fourquevaux, op. cit., l, pp. 84-85, 6 de Maio de
A. d. S., florença, Mediceo 4897 bis, ... et mo/ti dicono che Sua Moesta vuol andar sopra... Argeri et dicono che in consiglio ha par/ato (Filipe ll) di voler andar in persona bencM questo io no lo credo . . . , o mesmo ao mesmo, 7 de Maio de 1566, ibid.
410
NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1566-1570
O Turco chegava até junto dela, ao seu Golfo, contrariamente a todas as con venções: concebeu receios vivos e fez-lhes face rapidamente. Em Julho, pôs a navegar uma centena de galeras43 , e foi talvez esta atitude firme que travou os Turcos na sua marcha para o Norte. Seja como for, Veneza esteve muito in quieta e as suas inquietações foram partilhadas pela Itália e pelo papa que che gou a aceitar favorecer os pedidos dos venezianos. Nos fins de Julho, princípios de Agosto, mandou escrever pelo cardeal Alessandrino e ele próprio escreveu a D. Garcia de Toledo para o exortar a ir a Brindisi, com toda a sua frota, porque os Venezianos tinham dito que armavam cem galeras e que juntando-as às de D. Garcia, poderiam carregar sobre a armada turca44• D. Garcia respondia, a 7 de Agosto45 , jurando ao papa defender os Estados da Igreja tanto como os do Rei de Espanha, mas sem aceitar o audacioso projecto. Sem dúvida, apanhada entre as duas forças, espanhola e veneziana, a frota turca não teria conseguido escapar. Mas Veneza só deve ter desejado combater durante algum tempo, quando se julgou ameaçada; e para o Sul, o sensato, o prudente, o doentio D. Garcia de Toledo não tinha ordens para ser agressivo. O papa foi sem dúvida o único a pensar que a ocasião era magnífica para destruir a frota de Solimão. Finalmente, esta guerra do Adriãtico, por muito limitado que tenham sido os efeitos, deve ter, na altura, parecido dramâtica, por causa da perturbação geral que abalava a Europa no mesmo momento. Em França, veja-se Brantôme, é a altura das movimentações, das viagens, das inquietações da juventude . . . Ao mesmo tempo que o jovem duque d e Guise vai combater n a Hungria, outro vai para Nâpoles, ainda um outro, como o filho de Montluc, lança-se nas aven turas do Atlântico e vai morrer por altura da tomada da Madeira46 • Jã ninguém fica no mesmo sítio. O próprio Filipe II fala de viagens. Por todo o lado a guerra mostra o seu rosto: através dos Países Baixos que quase se sublevam no mês de Agosto, e do Adriãtico até ao mar Negro onde estende o espesso traço vermelho de uma luta continental furiosa, que prolonga em distâncias enormes a guerra das frotas do Adriãtico.
O recomeço da guerra na Hungria A morte do imperador Fernando (25 de Julho de 1 564) servira de pretexto aos Turcos para exigir o pagamento dos tributos em atraso e pôr de novo em questão as tréguas de 1 562. O pagamento foi efectuado, a 4 de Fevereiro de
43 G. Cappelletti, op. cit., VIII, p .
373 .
44 Vice-rei de Nápoles a Filipe II, Nápoles, 6 de Agosto de
1566,
Simancas, E. 0
45 7 de Agosto de 1566, Simancas, E.º 1055, f.º 170. 46 Edmond Falgairolle, Une expéditionfrançaise à 17/e de Madere en 1556,
1055,
f. 0
168 .
1 895; Nobili ao príncipe, Madrid, 6 de Outubro de 1566, A. d. S . , Florença, Mediceo, 4897 bis; Calendar o/State Papers, Venet. VII, 1 2 de Novem bro de 1566, p. 3 86; Montluc desacreditado por Carlos IX: o rei a Fourquevaux, Saint-Maur-des-Fossés, 14 de Novembro de 1566, pp. 59-60; os Ponugueses são os agressores, 29 de Novembro de 1566, Fourquevaux, op. cit., 1, p. 144. 41 1
O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNICO
1 56547 , e em contrapartida as tréguas foram ratificadas por oito anos. Mas Maximiliano, que não renunciava aos seus projectos contra a Transilvânia, tinha reunido tropas importantes e tomado Tokay e Serenes. Ora, atingir a Tran silvânia ou contrariar, deste lado, a acção dos Turcos, era reacender as discór dias latentes, travar uma guerra «encoberta», que, como habitualmente, se resu miu a uma sequência de recontros e de cercos. Em 1 565, a longa fronteira da Hungria esteve mais inquieta do que nunca. Maximiliano, apanhado nas con testações da Transilvânia como num vespeiro, fez vãos esforços pacíficos, em suma, mais ou menos sinceros porque queria a paz, mas não pretendia de modo algum ceder. Mais, encontrava perante si a poderosa hostilidade do grão-vizir Méhémet Sokolli, e o próprio sultão estava desejoso de apagar, por meio de algum êxito brilhante, a vergonha de Malta. Ora, do seu posto de vanguarda, o paxá de Buda, Arslan, não cessava de incitar à guerra mostrando até que ponto a Hungria cristã estava desguarnecida de tropas. Dando o exemplo, lançou-se ele mesmo, a 9 de Junho de 1 566, sobre a pequena praça de Palota; mas apres sadamente, porque os Imperiais a entregaram no momento em que ele ia vencer e, aproveitando o seu impulso, eles mesmos tomaram Wessprim e Tata, dizi mando na cidade tudo o que encontraram, amigos e inimigos, Turcos e Húnga ros, sem distinção48 . Recomeçava assim a guerra da Hungria. Não se pode dizer que fosse uma surpresa. Em Viena, ninguém ignorava que era de prever uma reacção turca. A Dieta germânica tinha concedido, para esse ano, um apoio ..excepcional de 24 Romermonate )mais oito para cada um dos três anos seguintes49• O embaixador espanhol em Londres, a 29 de Abril de 1 566, fala, a propósito deste auxílio, de vinte mil soldados de infantaria e de quatro mil cavalos por três anos50 • Por outro lado, Maximiliano conseguia do Papado e de Filipe II apoios em dinheiro e em homens, sobre cujo montante os nossos documentos divergem um pouco, mas que foram consideráveis. O agente toscano em Madrid, a 23 de Março de 1 566, fala de seis mil soldados espanhóis e de dez mil escudos mensais (os quais tinham aliás sido assegurados por Filipe II, a partir de 1 565)51 • Estas somas deviam ser pagas por intermédio dos Fugger e dos banqueiros genoveses52• Um mês mais tarde (6 de Junho), falará de doze mil escudos mensais, sem contar com uma entrega de trezentos mil escudos53 • O Imperador teve portanto tempo e meios para se preparar. No Verão, perto de Viena, juntou quarenta mil homens, aliás bastante diversificados54, os quais só lhe permitiram manter-se na defensiva: mas ele não tinha outra inten47
Josef voo Hammer-Purgstall. 48 /bid. , p.
49 SO SI
52
53 54
412
215.
Hist. de l'Empire ol/oman, Paris,
1 835-1 843 , VI, p. 206.
191 3 , p. 278. G. da Silva ao Rei, Londres, 29 de Abril de 1 566, CODOIN, LXXXIX, p. 308. Nobili ao príncipe, Madrid, 23 de Março de 1566, A. d. S., Florença, Mediceo 4897 bis. Leonardo Contarini ao doge, Augsburgo, 30 de Março de 1566, in G. Turba, op. cit., l, 3 , p. 3 1 3 . Nobili ao príncipe, Madrid, 6 de Junho de 1566, A. d . S., Florença, Mediceo 4897 bis. Georg Mentz, op. cit., p. 278. Georg Mentz,
Deutsche Geschichte,
Tübingen,
NAS ORIGENS DA SANTA LIGA: 1566-1570
ção. Com efeito, sendo longa a distância entre Constantinopla e Buda, contava que o enorme exército turco não se deslocaria muito depressa: calculavam-se noventa giornate para o percurso . . . Restar-lhe-ia portanto pouco tempo para combater, porque, desde o mês de Outubro, seria travado pelo frio e pelas difi culdades do seu abastecimento, consideráveis para um exército numeroso num país quase vazio. Era pelo menos isto que o Imperador explicava a Leonardo Contarini, embaixador venezianoss, com alguma presunção. A 20 de Junho, não se fazia o mesmo embaixador eco de números manifestamente exagerados que elevam o exército imperial a cinquenta mil soldados de infantaria, vinte mil cavaleiros e ainda uma importante frota danubiana56? Na realidade, o exército de Maximiliano não parece possuir outra qualidade além da que Busbec conhecera e julgara tão severamente em 1 562. Fourque vaux não está enganado quando pensa que esta guerra não lhe trará qualquer proveito e quando deseja «que o Grande Senhor dos Turcos se obstine e perse vere no seu empreendimento da Hungria; porque de outro modo é de temer a gentalha da Alemanha, se se acalmam as questões do dito lado»57 . Infelizmente para a França das guerras de religião, tantas vezes abalada pelos retres, a paz estabelecer-se-ia na Hungria em 1 568 e duraria até 1 593 . Encaminhava-se para a Hungria, contra as tropas de Maximiliano, um enorme exército turco, dividido em diferentes corpos: trinta mil homens, segundo as informações recebidas por Carlos IX, armados a seu modo «com uma extraordinária quantidade de artilharia e todas as outras munições que é uma coisa horrível» 58 . O sultão tinha abandonado Constantinopla, a 1 de Maio59, com um aparato mais imponente do que em qualquer das suas doze campanhas anteriores. Deslocava-se de viatura, visto que a sua saúde já não lhe permitia viajar a cavalo, pela grande rota militar e mercantil de Constantinopla a Bel grado, via Andrinopla, Sofia e Nich. Arranjaram-se previamente, assim-assim, os caminhos difíceis por onde avançava a viatura imperial, enquanto era feita uma caça eficaz, ao longo da estrada, aos inumeráveis bandidos que se opu nham ao exército e ainda mais ao seu abastecimento. Para eles, era necessário erguer sempre algumas forcas perto dos acampamentos. Para além de Belgrado, o grande problema consistiu, não em negociar com o Transilvano, mas em franquear os rios, o Savo em Chabatz 42• Explica-se a irritação do paxá, que as suas fan farronices atraiçoam, os seus gracejos a respeito do papa, as suas alusões às dificuldades da Flandres, a sua exigência de cessão de Orão. Mas a paz era uma necessidade vivamente sentida tanto do lado turco como do lado espanhol. À falta de embaixador, negociou-se com Margliani . E como era preciso terminar antes da Primavera, as audiências sucederam-se ininterruptamente. Depois de 1 de Fevereiro, Margliani registava um nítido desa nuviamento. A 7, tinham sido assinadas tréguas por um ano43, uma espécie de suspensão de armas, de gentlemen 's agreement. O texto tem como título uma atestação de tradução conforme, do intérprete Horembey e do doutor Salomão Ascanasi que, ambos, desempenharam um papel decisivo nestas negociações. O paxá prometia que nesse ano de 1 578, e com a condição de reciprocidade, a armada turca não sairia. As tréguas estendiam-se a uma série de Estados, uns indicados pelo rei de Espanha, outros pelo Grande Senhor. A saber, do lado 40 E. Charriere.
op. cit.,
III, p. 705.
4 1 A Henrique III, Const., 22 de Janeiro de 1578, E. Charriere, op. cit., III, p. 710. 42 Op. cit., p. 160; J. W. Zinkeisen, op. cit., III, p. 499. 43 Lo que se tratto y concerto entre e/ Baxa y Juan Margliano, 7 de Fevereiro de 1578,
Simancas, E. 0 489. Cópia do mesmo documento feita em 1579 talvez, Capitoli che si sono trattatifra /'ili.mo s.re Meemet pascià (di) buona memoria. . . , Simancas, E.º 490.
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turco, o rei de França, o imperador, Veneza e o rei da Polónia e ainda o «príncipe» de Fez, «apesar de não ser necessário - acrescenta o texto [que aqui abrange de passagem uma grande pretensão turca] - dado que leva a bandeira do Sere níssimo Grande Senhor e lhe presta obediência.» Do lado de Filipe II, o papa, «a ilha de Malta e a religião de São João que reside nesta ilha», as Repúblicas de Génova e Luca, os duques de Sabóia, Florença, Ferrara, Mântua, Parma e Urbino, e, para terminar, o senhor de Piombino. Para o rei de Portugal, con vencionou-se que a armada turca não irá contra os seus Estados, depois de Gibraltar, «pelo Mar Branco». As promessas não são tão claras no que diz res peito ao Mar Vermelho e ao Oceano Índico: desse lado, sabe Deus o que se passará. Resumindo, um magnífico êxito. Obtido imediatamente, sem abrir a bolsa, e sem espalhafato, como o desejava a diplomacia espanhola. Rápido: as nego ciações duraram de 12 de Janeiro a 7 de Fevereiro e foram tão vivamente exe cutadas como as de Martin de Acuna. Talvez porque o essencial, para os Tur cos, fosse evitar, em tempo útil, a mobilização da frota e as grandes despesas que ela teria originado. A operação só era portanto lucrativa se se concluísse antes do fim do Inverno. Daí as datas das duas tréguas: 18 de Março de 1 577; 7 de Fevereiro de 157844• • • Mas os Turcos continuam a exigir uma embaixada espanhola e m boa e devida forma; querem um êxito diplomático retumbante, que ressoe através da Europa. Pedem-na insistentemente. Em suma, o acordo de 7 de Fevereiro con tém a promessa formal de uma troca de embaixadores. Com a ajuda das cir cunstâncias, isto vai prolongar ainda durante três anos a estadia de Margliani nas Vinhas de Péra e ser a causa de todas as suas desgraças. Terminada a sua missão, não deveria ter regressado à Europa desde a Pri mavera de 1 578? Sem dúvida, não pensou muito nisso, esperando, como o mostra a sua missiva de 30 de Abril a Antonio Pérez45 , conseguir sozinho o resultado previsto, ou seja, uma suspensão de hostilidades de dois ou três anos. Na febre e nas ilusões de uma negociação tão fácil, pôde ter algumas esperan ças. Tendo sabido pelo seu amigo ragusano, Prodanelli, a vitória de D. João em Gembloux, confirmada por outras vias, tentou imediatamente tirar pro veito disso, no fim de Abril, a fim de relançar o «Dottore». «Sempre disse a Horembey e a Vossa Senhoria - declarava-lhe - que não estava inclinado a acre ditar que a Majestade do Rei meu Senhor fosse a favor do envio de um embai xador. Agradou a Horembey acreditar neste Aurelio (de Santa Croce) mais do que em mim mesmo. Sabe Deus o que acontecerá. Quanto a mim, continuo a ter a mesma opinião, tanto mais que o senhor D. João corre para a vitória e o Grande Senhor está empenhado numa guerra da Pérsia, a qual é conhecida como cheia de perigos e de trabalhos, e que contrabalança galhardamente a guerra 44 Lo que ha de ser resuelto sobre lo de la tregua, (1578), Simancas, E.º 489; sobre a não assinatura de acor dos económicos, Margliani (a Antonio Pérez?), 11 de Fevereiro de 1578, Simancas, E.º 489. 4S Simancas, E.º 489. A vitória de Gembloux é de 1 de Janeiro de 1538. 3
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da Flandres. Indicai portanto a Méhémet Paxá que lhe seria vantajoso certi ficar-se das forças do rei de Espanha, meu senhor, por dois ou três anos e ligar -se à fórmula de uma suspensão de hostilidades que se assinaria por meu inter médio. » Isto era ousado e prematuro. A resposta d o paxá não s e fez esperar, em termos amáveis, pelo menos sob a forma que o doutor lhe dava. Dizia não se opor de modo algum às razões que lhe apresentaram. Mas o Grande Senhor era jovem, desejoso de glória. Em Fevereiro, Margliani descrevia-o acessível às sugestões, mais acolhedor do que Selim, abandonando-se às suas primeiras impressões. Mas, efectivamente, dizem-lhe, as instâncias quotidianas de Euldj Ali não deixam de ter peso junto do soberano. O «Capitão do Mar» gaba-se, mesmo com uma frota medíocre, de vencer a resistência de Espanha, nessa altura muito embaraçada com outros problemas. Ora, «encontro-me - confia o paxá ao doutor - na situação de ter falado tão abertamente a favor de Don Martín, por quem fui enganado, que já não posso recomeçar. » Então, suspira profun damente e geme: «Este Império, presentemente, não tem pés nem cabeça.» Belas e boas palavras, e que se repetem tal e qual a Margliani, sem esquecer o «Tem razão, doutor», com que o paxá saudou a exposição das teses espa nholas. Mas, concluindo, o paxá voltou à questão do embaixador. Se Filipe II enviar um, estará então disposto a acabar com as suas exigências. Mas se o não enviam, acrescenta Méhémet, «seguirei, também eu, a opinião do Capitão do Mar.» Depois disto jura, pela vida do Grande Senhor, que tem todas as dificul dades do mundo em fazer acatar os termos das tréguas e em impedir a saída da armada. Deste modo, gentilezas e ameças misturam-se na boca do paxá. Cris tãos e Turcos jogam com a maior subtileza. As suas convernf..,ões, contadas fielmente pelas inumeráveis cartas de Margliani, deixam transparecer uma certa impressão de mal-estar. Além disso, revelam uma diplomacia complicada, astuta, senão muito escrupulosa, que não repugna, nem de um lado nem do outro, às mais subtis astúcias. «Ü homem de Margliani», encarregado de levar a Espanha o texto das tré guas provisórias, partira a 12 de Fevereiro de 1 578 de Constantinopla. O Con selho de Estado, em Madrid, deliberou várias vezes sobre as notícias que ele trazia46• A unanimidade sobre a necessidade de assinar concluiu-se facilmente «dado o estado das questões de Sua Majestade e das suas finanças e a necessi dade que tem de coordenar as coisas e de iniciar a fortificação dos seus reinos . . . » Se ninguém deseja abordar o fundamento do debate, é preciso enten der-se com o Turco. Toda a gente está de acordo sobre este assunto. Pelo con46 Relacion de lo que ha passado en el neg. 0 de la tregua y suspencion de armas con el Turco y lo quepara la conclusion dei/a /levo en com.on don Juan de Rocaful/ y el estado en que ai presente esta (1578), Simancas, E. 0 459, f. 0 28 (ou f. 0 281). Estes textos não datados devem ser resituados entre o início de Junho e 12 de Setembro de 1578, questão de atrasos postais: a título de indicação uma cana de Margliani dirigida a Antonio Pérez de Const., a 9 de Dezembro de 1578, chegava-lhe, a 31 de Março de 1579, depois de uma viagem de três meses e 22 dias.
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trário, os conselheiros hesitam sobre as «questões de protocolo e de prestígio»: enviar-se-ia, ou não, um embaixador? E, em caso afirmativo, contentar-se-iam em enviar cartas credenciais a Margliani? O debate limitou-se a isto. Em Setem bro, o envio de um embaixador estava decidido, em princípio, e um tal Don Juan de Rocafull 47, personagem muito apagada que uma carta nos assinala em 1 576, comandando algumas galeras da esquadra de Nápoles 48, recebia instru ções para este efeito. A sua instrução geral, sem data precisa, pormenorizava os antecedentes da negociação. Era duplicada por uma «segunda instrução» com data de 12 de Setembro de 1 578 49, que previa o caso em que Rocafull não «pudesse» ir a Constantinopla. Enviava então o capitão Echevarri que o acompa nhava, com o encargo de exigir que as tréguas fossem assinadas por intermédio de Margliani. A decisão de enviar um embaixador ao sultão não era portanto muito firme: reservavam para si a possibilidade de o reter no último momento. Para que Margliani fosse posto ao corrente, na sua longínqua residência, foram precisos ainda três a quatro meses. Segundo o Tagebuch de Gerlach, «o homem» de Margliani regressava a Constantinopla apenas a 13 de Janeiro de 1579 5º. A lentidão da viagem devera-se talvez ao Inverno; talvez a uma preten são da Espanha, desejosa de repetir, em 1579, a manobra que lhe permitira nos dois anos precedentes conseguir a retenção da frota turca. Os Franceses pensa ram-no imediatamente e, de facto, a chegada destas boas notícias, o anúncio do embaixador facilitaram a tarefa de Margliani. Além disso, os Turcos, cada vez mais empenhados na Pérsia, tornavam-se sucessivamente mais acomodatícios. A 16 de Janeiro de 1 579 Juyé escrevia a Henrique III: Os Turcos «têm tanta necessidade como poderia ter o dito Rei Católico por ocasião da guerra da Pérsia, onde encontrarão mais questões do que se diZ» 5 1 • Juan de Idiáquez, então representante de Filipe II em Veneza, a 5 de Fevereiro de 1579, sabia através do embaixador francês que Margliani já não estava sequestrado em Constantino pla, que se vestia de novo, ele e a sua gente, e falava em alugar uma casa em Péra. «Concluiu-se aqui que o enviado de V. M., que esperavam para a conclusão das tréguas, não está longe» 52• Todavia, Don Juan de Rocafull não tinha pressa. A 9 de Fevereiro estava ainda em Nápoles. A 4 de Março, em Veneza, dizia-se que se aproximava de Constantinopla de onde Margliani enviara dois homens ao seu encontro 53 • Mas a notícia era prematura. Rocafull estava «doente». Conhecendo a sua segunda instrução e as reticências espanholas, podemos, tal como os Turcos, ter dúvidas
47 Data da sua segunda instrução, 1 de Setembro de 1578, ver abaixo, nota 9. Don J. Rocafull é o Don 4 2 Juan de Rogua, de Valenza, de que fala Gerlach, citado por J. W. Zinkeisen, op. cit., III, p. 500. 48 Don Juan de Cardona a Filipe II, Barcelona, 1 de Novembro de 1576, Simancas, E.º 335 , f. º 58, . . . y con
correo por tierra ordenando a Don Juan de Rocafu/I hizieze despa/mar las nueve galeras.
lnstruccion segunda a Don Juan de Rocafull, Madrid, 1 2 de Setembro de 1578, Simancas, E.º 489. J. W. Zinkeisen, op. cit., III, p. 500. op. cit., III, p. 777. 52 Juan de ldiáquez a Filipe II, Veneza, 5 de Fevereiro de 1579, A. N., K 1672 , G l, n. º 22 . 53 J. de Idiáquez a Filipe II, Veneza, 4 de Março de 1579, A. N., K 167 . 2
49
so
SI E. Charriere,
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sobre essa doença e mesmo sobre a «recaída» com que o pobre homem foi atin gido. De qualquer modo, Margliani assinou umas tréguas análogas às dos anos precedentes? Os documentos que investigámos não as mencionam. Uma corres pondência francesa permite supô-las, mas com uma precisão insuficiente 54• Em todo o caso, desde Abril, a frota turca, ou pelo menos a parte que era facil mente mobilizável, era encaminhada para o mar Negro, sob o comando de Euldj Ali. Em Nápoles, teve-se portanto muito cedo a certeza de que a frota turca não «sairia». Não contribuiu isto - simples hipótese - para a demora da viagem de Juan de Rocafull? Doente ou não, Rocafull não atravessou o Adriático. A 25 de Agosto desembarcava em Ragusa o capitão Echevarri . Acompanhado de um tal Juan Estevan, trazia os presentes destinados ao Grão-Turco e aos seus ministros e, para Margliani, todos los poderes et recaudos necessarios para a assinatura das tréguas 55, o que fazia passar Margliani do papel de simples agente para o de verdadeiro embaixador. No mesmo momento, chegava de Constantinopla um novo embaixador francês 56• A 16 de Setembro, sabia por meio do velho Méhé met que as tréguas com a Espanha estavam em bom andamento 57, e imediata mente, como é natural, procurou intrometer-se. Primeiramente através de uma guerra de notícias. Enquanto Margliani dizia que as equipagens do rei de Espa nha, conhecidas em Constantinopla, se destinavam a Portugal, cuja sucessão se tinha aberto antes mesmo da morte do Rei Cardeal 58, o Francês, utilizando um boato que corria em Constantinopla 59, afirmava que se dirigiriam contra Argel. Além disso, falava de uma guerra em Itália, inevitável devido aos incidentes do marquesado de Salúcio. Trabalho perdido! Criticar-se-á mais tarde Germigny por não ter sabido barrar o caminho à política espanhola. Mas ele só podia tra var este combate de pequena guerra de palavras. Depois da noite de São Barto lomeu verificou-se uma verdadeira queda do prestígio da França no Levante: a evidência da sua impotência, da sua usura no Ocidente, diminuía os seus meios em Constantinopla. Não se negocia de mãos vazias. E a política francesa aca bava de prender o único homem capaz talvez de lançar a Turquia na direcção da Europa, Claude Ou Bourg, o homem do duque de Anjou, preso em Veneza, em Fevereiro de 1 579, e transferido para a Mirândolaro. O seu projecto consis tia em interessar a Turquia na conquista dos Países Baixos pelo duque de Anjou, em ligação com Guilherme o Taciturno, os Protestantes de toda a Europa Charriere, op. cit., III, p. 852 nota, mas o aviso de 9 de Janeiro de 1580 visa tanto o futuro como o pas· que pôde significar também o texto de 1579 que mencionámos supra, vol. II, p. 534, nota 43. 55 Echevarri a Margliani, Gazagua, 2 de Setembro de 1579, A. N., K 1672 , G l, n.º 1 17. O mesmo ao mesmo, Caravançara (sic), 2 de Setembro de 1579, ibid. , n. º 1 18, queixa-se de Brutti «bellaco». 56 Margliani a Antonio Pérez, Péra, 2 de Setembro de 1579, Simancas, E.º 490. 57 Germigny ao rei, Vignes de Péra, 16 de Setembro de 1579, Recuei/, p. 8 e segs. 58 A qual só será aliás conhecida em Constantinopla no início de Abril de 1580, G. Margliani ao vice-rei de Nápoles, Vignes de Péra, 9 e 14 de Abril de 1580, A. N., K 1672 , G I, n.0 1 66 . 59 Const. , 4 de Julho de 1579, cópia it., A. N., K 1672 , G 1, n.0 81 a. 60 E. Charriere, op. cit., III, p. 782 e segs., nota. Sobre os feitos do «general» Ou Bourg, ver acima, vol. l , '4 E.
sado.
pp.
O
420-42 1 .
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e os Ingleses cuja presença Margliani assinala em Constantinopla. Havia nisto algo que tentaria a política turca. Mas empenhada profundamente na esgotante luta contra a Pérsia, não podia de modo algum, ao mesmo tempo, voltar-se para o Ocidente. O ano de 1580 foi finalmente, para Margliani, um ano de trabalho e de êxito. Ligada a Nápoles, sob a autorizada direcção de Don Juan de Çuõiga (tornado comendador de Castela, desde a morte de seu sobrinho, e vice-rei de Nápo les depois da morte de Mondejar), a missão do Milanês era mais eficaz do que no passado, liberta dos lentos vaivéns com a Espanha. Pelo contrário, sabe-se que no tempo de Mondejar lhe fora proibido manter Nápoles ao corrente. O que não quer dizer que a tarefa parecesse fácil na altura a Margliani. Atraves sou períodos críticos, ainda que o resto do tempo se tenha passado em conver sas, em longas conversações, seguidas de não menos longos relatórios de infor mação, e mesmo, durante algum tempo, em querelas de honra com Germiny, pela escolha do seu cadeirão na igreja principal de Péra61 • • • Futilidades, ou desejo de provar aos Turcos a impossibilidade de manter em Constantinopla um representante com morada em Espanha, concessão que Filipe II não queria permitir. Outra dificuldade para Margliani : na cena política turca os grandes perso nagens mudam. Méhémet Paxá foi assassinado, em Outubro de 1 579, e substi tuído por Achmet Paxá, cabeça bastante pobre, talvez favorável à Espanha62• Mas morre por sua vez, a 27 de Abril de 1580, e Mustafá Paxá sucede-lhe. A estas mudanças correspondem múltiplas transformações no pessoal menor: se o doutor Salomão se mantém, o intérprete Horembey desaparece; encontra-se pelo contrário o estranho Bruti, espião duplo, se não for triplo, que Margliani denuncia sem poder desmascarar, enquanto as suas conversas e traições arris cam comprometer, além de Margliani, uma série de agentes ao seu serviço, Sinan, Aydar, Inglês, Juan de Briones 63 • • • Surgem dois recém-chegados: Bena vides e Pedro Brea, empregados da chancelaria turca, o primeiro muito ao cor rente dos documentos que aí se redigem, Judeu (a sua religião não lhe permite embarcar ao sábado); o segundo é mais dificil de situar; mas ambos seguramente agentes duplos. Incidentalmente apercebemos os bailios, o mercador ragusano, Nicoló Prodanelli e seu irmão Marino cujo navio tem, em Outubro de 1 5 80, de se encontrar em Nápoles64• De facto, Margliani era senhor da situáção, mas não estava consciente disso. Daí as suas dificuldades para manter as suas vantagens, para não se deixar perturbar pelas fanfarronadas e pelas ameaças de Euldj Ali que, perante o grão-vizir em pessoa, lhe fez uma cena terrível. Talvez seja um simples cenário,
885 e segs. Grande com. de Castela a Filipe li, 9 de Junho de 1580, Simancas, E.º 491 . 1580, Simancas, E.º 491 . Margliani ao vice-rei de Nàpoles, 15 de Outubro de 1580, Simancas, E.º 1338.
61 /bid., p.
62
63 Margliani a D. J. de Çui\iga, 3 de Fevereiro de
64
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concertado entre os ministros. Mas é inquietante, porque se juntava a outras intimidações. No Arsenal, Euldj Ali proclamava que «as conversações de paz tinham sido interrompidas, que tinha ordem para armar duzentas galeras e cem maonas .» Mas Margliani era homem para aguentar. Falava com autoridade, não fugia aos riscos, «estava decidido - afirmava - a nada negociar em nome de S. M. nem dar cartas ou presentes antes da capitulação estar concluída» 65 • E insistia em conseguir que a armada não saísse na Primavera. As violências e o tom desmesurado com que Euldj Ali se lhe dirige 66 só provam a irritação e a cólera do Capitão Paxá: este não era um jogo para ganhar. Um aviso de Constan tinopla, com data de 26 de Fevereiro de 1 580, afirma que é impossível a Mar gliani, pela sua honra e pelo serviço do rei, chegar a acordo com «esses cães Turcos» 67, enquanto, antes dessa data, tudo está em vias de resolução. Na manhã de 18, o doutor Salomão vem visitá-lo com um texto conciliatório. Como não se trata de uma capitulação entre soberanos, mas de um acordo «entre o paxá e Margliani» , as dificuldades protocolares são resolvidas num abrir e fechar de olhos68• Contudo, de passagem, Margliani foi duramente abalado e sen tiu pairar mais uma vez sobre a sua cabeça «O perigo em que - escreve a 7 de Março - me encontro há já cinquenta dias» 69• Aliás, nesta data ainda não está completamente tranquilo. «Receio vivamente que toda esta prática se rompa com um tal estrondo que venhamos a desejar nunca ter negociado estas tré guas», exclama no mesmo dia. Todavia, o acordo está próximo, imposto pelas circunstâncias, pelas necessidades das guerras da Pérsia e de Portugal, pela terrível fome que, além disso, assola o Oriente70• Se bem que o pobre Margliani julgue todas as vezes que tudo está perdido, as conversações recomeçam. É o doutor, ou qualquer outro intermediário que regressa. É o paxá que consente em tornar a discutir. É Mar gliani que retoma o fôlego 71 • E depois é um novo conflito a propósito do reino de Fez que Margliani não quer reconhecer como pertencente ao Grande Senhor 72; uma nova querela a propósito de Portugal 73 • Em Março, circula em Veneza o boato de que Margliani está em risco de ser empalado e de que Euldj Ali ameaçou arrancar-lhe o olho que lhe resta 74• • • Mas, a 21 do mesmo mês, assina com o paxá umas novas tréguas, sob a forma habitual, válidas por dez meses, até Janeiro de 158 1 . Para evitar as contestações, o texto italiano continua
65 O mesmo ao mesmo. 2 de Fevereiro de 1580, resumo de chancelaria, Simancas, E.º 491. 66 E. Charriere, op. cit., Ili, pp. 872 e 876, nota. 67 Const., 26 de Fevereiro de 1580, Simancas, E.º 1337. 68 Margliani ao grande comendador, Vignes de Péra, 27 de Fevereiro de 1580, Simancas, E.º 69 O mesmo ao mesmo, 7 de Março de 1580, Simancas, E.º 491. E.
70 O mesmo ao mesmo, 29 de Outubro de 1580, Simancas, E.º
Charriere, op. cit., Ili, p. 885. 71 O mesmo ao mesmo, 1 de Março de 1580, cópia, Simancas, E.º 91 . 4 2 72 Ver nota precedente. 73 O mesmo ao mesmo, 18 de Março de 1580, Simancas, E . º 91. 4 7 4 Ch. de Salazar a Filipe II, Veneza, 18 de Março de 1580, Simancas, E.º 1 33 7.
540
491 , cópia.
1338; Germigny ao rei, 24 de Março de 1580,
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nas mãos do paxá, enquanto o texto turco, em letras de oiro, é entregue a Mar gliani, que por sua vez o envia a Çufiiga 75 • Depois disto, estando assegurado o futuro próximo, as conversações ador mecem por uns tempos e ambas as partes se entregam a um certo lazer. Juan Stefano chega a Espanha para levar a notícia e trazer ordens. Desta vez, a Cris tandade está ao corrente. No início de Maio, está-se informado em Roma, onde se observa que a coisa não se enquadra de modo algum com as declarações anteriores da Espanha, a saber, que na realidade o embaixador fora enviado para romper as negociações 76• Mas Roma não pretende protestar: neste ano de 1 580, também ela abandona o Mediterrâneo e a guerra contra o Islão, para se preocu par com a Irlanda e com a guerra contra os Prostestantes. Germigny, que tinha exactamente seguido a prática do Milanês, afirmava que o seu êxito tinha sido comprado a preço de oiro. Na verdade, Margliani agira mais a poder de promessas 77• E sobretudo, devia o seu êxito às circunstân cias. A última que actuara sobre os Turcos, no momento da assinatura, fora a alarmante notícia de um levantamento de Argel. Tinha tudo a perder se Filipe II (cuja armada estava de novo preparada para os assuntos portugueses) não esti vesse empenhado no Mediterrâneo 78• Veneza deu conta disso: até aí reticente e hostil, mudou de atitude e esforçou-se por ser englobada na paz que se nego ciava. Notemos que as tréguas de 1 580, sem dúvida porque foram nitidamente esclarecidas pela velha colectânea de Charriêre e pelo livro sempre tão útil de Zinkeisen publicado em Gotha em 1855, têm direito de cidadania na maior parte dos livros de história conscienciosos 79• Mas, coisa estranha, são apresentadas como um facto isolado e excepcional, quando não passa de um dos anéis de uma longa cadeia. E muito pouco compreensíveis sem esta cadeia. O acordo de 1581
Já ninguém duvidava em Constantinopla que a paz devia assinar-se em breve. Todavia, foi preciso quase um ano para a conseguir. O Verão transcor reu em conversações intermitentes. As querelas já não incidiam sobre as inesgo táveis controvérsias de títulos ou de honras, mas sobre os acontecimentos que os correios relatavam. A 5 de Abril, por via de Ragusa, sabia-se da morte do cardeal Henrique. «Esta notícia - escrevia Margliani 80 - lançou alterações 75 As cartas de Margliani ao grande comendador, 23 e 25 de Março de 1580 (Simancas, E.º 491) não dão a data exacta desta assinatura. Mas Germigny é formal, 24 de Março de 1580, E. Charriêre, op. cit., III, pp. 884-
·889.
76 2 de Maio de 1580, A. Vaticanes Spagna, n.0 27, f.º 88. 77 Ao rei, 1 7 de Maio de 1580, E. Charriere, op. cit., III, pp.
910-91 1 .
7 8 M. Philippson, Ein Ministerium unter Philipp li, p. 404 ; L. von Pastor, 1923, p. 273; H. Kretschmayr, op. cit., Ili, p. 74. 79 J. W. Zinkeisen, op. cit., Ili, p. 107. 80 9 e 14 de Abril de 1580, A. N., K 1672, G I, n.º 1 66 .
Geschichte der Papste, t.
IX,
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nos espíritos das pessoas daqui. Parece-lhes que com a anexação desses reinos, realizada sem grande efusão de sangue nem longa guerra, as forças de S. M. se tornam tão grandes que se deve sensatamente temê-las. Tanto mais que estão persuadidas de que . . . [a partir de agora] S. M. aderirá mais dificilmente às tré guas ou suspensão de hostilidades, segundo o modo que desejariam.» No outro sentido, Margliani teme as actuações de Euldj Ali. Diz-se que iria a Argel com sessenta galeras para apaziguar as perturbações. «Mas outros acham que vai lá exactamente para isso, mas também para prejudicar o rei de Fez. Estou pronto a obstar a isso . . . quando a sua viagem for confirmada» 81 • De outro modo, esta riam ameaçadas todas as disposições das tréguas 82• É o que pensa pelo seu lado e o que lhe escreve o grande comendador de Castela, informado sem dúvida por outras vias 83 • Finalmente, a expedição de Argel não se efectuará, mas será objecto de muitas discussões. Tal como a notícia, que chega em Outubro, da vitó ria do duque de Alba sobre Don Antonio. O paxá, tendo sabido que nesta oca sião o duque distribuira duzentos mil dobrões aos seus soldados, manda fme diatamente perguntar a Margliani qual o motivo desta distribuição e quanto vale um dobrão. Um dobrão vale dois escudos, apressa-se a explicar Margliani e, para que ninguém o desconheça, entrega uma dezena ao seu interlocutor. .. E o que faz Juan de Estefano, pergunta este último? Porquê tanto atrasoll4? Imagi� na-se o género de conversação, ao mesmo tempo desconfiada e fútil que trocam os dois parceiros. Está-se no Verão, só no Inverno se falará disso seriamente. Em Dezembro, a situação torna-se de novo bruscamente tensa85 : Don Juan de Estefano não chegou, e Margliani está bastante embaraçado, o paxá pressiona-o a dizer se sim ou não o rei de Espanha enviou ordens para assinar a paz. Infelizmente, faltam determinadas cartas de Margliani para acompanhar os últimos meses da sua embaixada. Parece que entre 10 e 20 de Dezembro, as exigências dos Turcos se tornaram mais claras. E muito embaraçosas, porque foi igualmente neste momento que Margliani recebeu as ordens esperadas (com ou sem Juan de Estefano, não o determina), ordens de que tomou conhecimento com uma certa perplexidade. O rei mandava-lhe dizer que renunciava às tré guas em boa e devida forma, dada a dificuldade de poder proceder com «a igualdade desejável». Na realidade, recusa-se a um acordo do género daqueles que os Imperiais negociavam com uma representação diplomática permanente86• Margliani, finalmente assente o que devia fazer, procedeu tão depressa quanto possível. Uma carta sua, com data de 28 de Dezembro, apresenta-o falando durante três longas horas com o Agá dos Janízaros. Antes do nascer do dia, a 27 de Dezembro, este enviara-lhe o seu caíque para o transportar de Péra 81 lbid. 82 lbid. 83
(Abril de 1580), Simancas, E. 0 491. Péra, 29 de Outubro de 1580, Simancas, E.º 1 338. O mesmo ao mesmo, Péra, 10 de Dezembro de 1580, Simancas, E.º 1338. O mesmo ao mesmo, Péra, 20, 2 1 , 26 (29 ou 30) de Dezembro de 1580, resumo de chancelaria, Simancas,
84 Margliani ao vice-rei de Nápoles,
85
86
E.º
491.
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a Istambul. Nicolà Prodanelli serve de intérprete durante a entrevista. Margliani congratula-se com isso: «É mais inteligente e mais capaz do que qualquer outro», escreve. E sem dúvida escolheu-o porque está efectivamente muito emba raçado com a sua missão e com o que deve fazer entender ao Agá. Este último nada compreende. Apesar de tudo, pergunta se Margliani irá ou não beijar as mãos do sultão: irei se houver capitulação, foi-lhe respondido, mas não beijarei se houver suspensão . . . Esta é a ocasião de compreendermos ao de leve a hierar quia das duas palavras: suspensão e capitulação. Filipe II não quer a última. O sultão concede as capitulações, diz o Agá, mas neste caso em que se tornará a «igualdade»? - pergunta Margliani. E o seu interlocutor acaba por nada com preender. Depois, por sua vez, faz perguntas mais simples e mais precisas. Mar gliani ficará? «Disse-lhe que não. Perguntou-me porquê. Disse-lhe que dado que não haveria negociação, segundo as decisões tomadas, isso não era necessá rio. Pronunciei estas palavras com um ligeiro sorriso e acrescentei que gostaria de lhe dizer a verdade: que duas razões me fizeram tomar esta resolução. Pri meira, o processo pouco cortês que aqui encontrei; segunda, o boato que o secretário da embaixada de França tinha espalhado por todos os lados da Cris tandade por onde passara [no seu regresso] , sobre a declaração de honra for mulada por ele» em França . . . E como não está muito seguro dos seus argumentos, o embaixador espa nhol manda pagar cinco mil escudos à sultana mãe, que aliás os aproveita para pedir mais. Ao mesmo tempo, arranja maneira de não mostrar o poder que o rei lhe conferiu, a pretexto de que o reenviou para Nápoles 87• Torneia o assunto com muito engenho, dado que, alertado a 10 de Dezembro, quase convenceu os seus adversários antes do final do ano. A 4 de Fevereiro, várias cartas e avisos, expedidos de Constantinopla, anunciam em diversas direcções que as tréguas foram assinadas por três anos 88• No mesmo dia, Margliani escreve a Don Juan de Çufiiga89: «No dia de São João, 27 de Dezembro, fui junto de Chaouch Paxá, a quem expus a minha missão com as palavras que me pareceram a propó sito, tendo perante os olhos a dignidade de S. M. Depois encontrei-me várias vezes com o dito paxá e ultimamente, a 25 de Janeiro, mandou-me chamar para me comunicar a resolução do seu soberano que me autorizava a partir e a ir informar V. M. Esperava que eu cumprisse a minha tarefa para que se estabele cesse um bom entendimento e, enquanto esperava, seria feita uma suspensão durante três anos.» Pelo que nos diz Germigny, o acordo era mais ou menos a reproduÇão das tréguas precedentes, com a diferença de que desta vez estava Todos estes pormenores segundo a carta de Margliani ao grande comendador (fim de Dezembro de ISSO). 1672, G 1, n.º 169. Bartolome Pusterla a D. Juan de Çui\iga, aviso do Levante, 4 de Fevereiro de 1581, in Cartas y avisos. . . , pp. S3-S4. Gennigny ao rei, 4 de Fevereiro de 1581, Recuei/•. ., p. 3 1; E. Charriere, op. cit., IV, pp. 26-28, nota, fala dos «escudos novos marcados com o cu,nho de Aragão» com que Margliani pagou aos Paxás. Aviso do Levante, 4 de Fevereiro de 1581, Simancas, E. 0 1339. 89 Margliani a D. J. de Çulliga, 4 e S de Fevereiro de 1581, Cartasy avisos. . . , op. cit., p. SS; S de Fevereiro de 1581, Simancas, E. 0 1339. Leio no meu texto Sciaous Paxá e não como o editor anónimo das Cartas, Scianus . . . 87
A. N.,
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K
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previsto por três anos90• O vice-rei de Nápoles, ao receber a notícia a 3 de Março, apressava-se a transmiti-la a Filipe II, acrescentando que na sua opinião Margliani tinha negociado muito bem, mas que se interrogava se o papa não iria aproveitar esta questão para apertar um pouco os cordões da sua bolsa91 • Sim, o que iria dizer o papado? Tendo sido embaixador em Roma, Don Juan de Çuiíiga pensava nisso mais do que qualquer outro. Considerou pru dente tomar a iniciativa e, a 4 de Março 92, escrevia para utilização de Roma a seguinte singular versão. No seu tempo anunciara a Margliani que Filipe II não queria tréguas, invocando as melhores razões possíveis para desculpar o rei. Mas falou-se imediatamente em Constantinopla no sentido de empalar Mar gliani, acusado de ter entretido o sultão com falsos discursos até terminar a conquista de Portugal. Sabe-se que os Turcos são muito capazes de semelhantes crueldades. Se bem que o pobre cavaleiro, para salvar a sua vida, prometesse tréguas por um ano . Os Turcos exigiram-nas por três anos, graças às quais lhe permitiram regressar à Cristandade. Mas, naturalmente, se se pretendia tomar alguma iniciativa contra o Turco, seria fácil romper este compromisso, por um lado porque foi imposto «pela força», por outro, porque os corsários propor cionaram milhares de ocasiões para uma ruptura. A infelicidade, diz-se de pas sagem, reside no facto de não termos de modo algum a possibilidade de empreender qualquer iniciativa contra o Turco, com todas as questões com que estamos a braços. Mas as tréguas, quanto a elas, nada significam . . . U m embaixador veneziano repetia, nesse mesmo ano de 1 58 1 , os discursos do vice-rei 93 • Acreditava nisso? Acreditava-se nisso em Roma? Certamente, não se procurou esclarecer demasiado as coisas. Antes de tudo, tratava-se de agir na Irlanda, contra a Inglaterra. E quem podia agir contra a ilha, segundo as opiniões do papa, senão a Espanha 94? Portanto, ninguém entre os contemporâneos falou da «traição» da Espa nha, como se falara da traição de Veneza. Apenas uma única excepção para confirmar a regra: o clero de Espanha protestou com violência e energia, e em voz alta. Não significa que estivesse, mais do que outros, ligado à cruzada con tra o Infiel, mas, dado que a guerra era coisa morta, exigia consequentemente deixar de pagar os impostos criados ou mantidos nesta ocasião. Aliás, exigi -lo-á em vão. Foram os historiadores que introduziram o processo como traição da Espanha. Processo: a palavra é um pouco forte para qualificar algumas linhas de
90 Ver nota 88, página precedente. 9 1 Don Juan de Çuiliga a Filipe li, Nápoles, 3 de de Março de 1 58 1 , recebida em Tovar a 23 de Março, Simancas, E. 0 1084. 92 Don Juan de Çuiliga ao marquês de Alcaniças, 4 de Março de 1 581 , Simancas, E.º 1084. 91 E. Albéri, op. cit., 1, V, p. 328 . 94 Ao núncio de Espanha, Roma, 11 de Julho de 1 580, A. Vat., Spagna 27, f.0 1 23 , . . . ilpassar con silentio
nelfalto de la tregua e stata buona riso/utione poiché ilfarne querei/a in questo tempo non potria sinon aggiungere travaglio a
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S. M. tà sen:i:.a speran:i:.a di frutto.
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Wlttjen e de R. Konetzke. «A guerra contra os Turcos - escreve este últirno95 estava assim definitivamente abandonada. Com ela interrompia-se uma tra dição secular da Espanha. A guerra religiosa contra o Islão, que tinha estimulado e reunido as forças espirituais da Península, deixava de existir. Sem dúvida, a Reconquista e as incursões conquistadoras que a tinham prolongado até à África do Norte não tinham sido simples guerras religiosas. Contudo, fora o espírito religioso que animara e propulsionara constantemente estes empreendi mentos e os fizera sentir à Espanha como uma obra comum e de grande vulto. O motor mais poderoso da progressão espanhola estava paralisado.» Opinião exacta se se considerar a evolução de conjunto, contudo, injusta em muitos pontos. A força religiosa que emanava da Espanha, depois dos anos de 1 5 80, inflectiu numa outra direcção. A guerra contra a heresia é também uma guerra religiosa, com as habituais alianças que a guerra comporta. Aliás, haverá ainda algumas tentativas na direcção da África do Norte e contra a Tur quia - a pseudoguerra de 1 593 , insignificante é certo. Apesar de tudo, verifica-se que os anos de 1 580 cortam a história exterior da Espanha frente ao Islão, mesmo se esta história, no passado, foi muito mais entrecortada, interrompida e imperfeita do que se diz. Depois da embaixada de Margliani, instala-se uma paz de facto. As tréguas de 1 5 8 1 parecem ter sido prorrogadas em 1 584 e até em 1 58796• E as hostilidades, quando existem de novo hostilidades, não se podem comparar com as enormes guerras do passado. As tréguas foram algo mais que um hábil expediente da política espanhola 97• Por isso, diremos que em 1 5 8 1 a Espanha traiu? No pior dos casos, só se teria traído a si mesma, à sua tradição, ao seu próprio ser. Mas essas traições, quando se trata de um pais, não passam muitas vezes de concepções do espírito. Em todo o caso, não traiu nem a Cristandade mediterrânica, nem entregou Veneza a uma eventual vingança, nem abandonou a Itália onde se encontrava a guarda dispendiosa. Quem poderia criticá-la por ter negociado com a Sublime Porta? Não foi a Espanha que introduziu a Turquia no concerto europeu. A grande guerra no Mediterrâneo excede os meios dos próprios grandes Estados, dos monstros políticos que cada um tem tanta dificuldade em manter a sua res pectiva metade. Existe uma certa diferença entre trair e largar a presa. Q movi mento bascular que, nesses anos de discussões difíceis e obsc�ras, desloca bru talmente as guerras para fora da área mediterrânica é duplo: por um lado, empurra a Espanha para Portugal e para o Atlântico, numa aventura marítima ainda mais gigantesca do que a do campo fechado mediterrânico; por outro lado, lança a Turquia na direcção da Pérsia, das profundezas da Ásia, do Cáucaso, do Cáspio, da Arménia e, mais tarde, para o próprio Oceano Índico.
9' Op. cit., p. 18 1. 96 Com extremo rigor e m 15 84 pelo próprio Margliani, se se interpretar livremente uma indicação d e J. von Hammcr, op. cit., VI, pp. 194-195. Tréguas prolongadas para dois anos cm 1 587 , mas não fornece as fontes. 97 Como M. de Breves, em 1624, pensava, E. Charriere, op. cit., IV, p. 28, nota.
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2. A guerra abandona o centro do Mediterrâneo Sem que possamos explicá-las sempre, conhecemos as amplas oscilações da guerra turca. O mais breve resumo do reinado de Solimão o Magnífico assi nala-as de maneira espantosa98• Mais do que a vontade do soberano, estas osci lações ritmaram o seu longo reinado glorioso. Ao correr dos anos, a potência turca bascula sucessivamente para a Ásia, para a África, para o Mediterrâneo, para a Europa norte-balcânica. A cada um destes movimentos correspondem irresistíveis avanços. Se existe uma história ritmada, é exactamente esta. Mas é uma história obscura, na medida em que os historiadores se reportam aos indi víduos. Interessam-se pouco pelos movimentos profundos (por exemplo aque les que o Império turco herdou do Império bizantino que destruiu totalmente prolongando-o), por esta física política que estabelece compensações necessá rias entre as grandes frentes de ataque, pelo que a potência turca pesa no mundo exterior.
A Turquia frente à Pérsia
De 1 578 a 1 590, a história turca não nos é acessível do interior e as crónicas sobre as quais se apoia, por exemplo, o relato de Hammer, só colocam os gran des problemas em termos de acontecimentos. Depois, o que nos escapa, a nós historiadores, não é apenas a Turquia, com rigor quase coerente e compreensível; mas, para além, o espaço persa, essa outra forma do Islão, essa outra civilização que ignoramos. Ignoramos tam bém os espaços intercalares, entre a Pérsia, Turquia e a Rússia ortodoxa. . . Finalmente, qual é o papel d o Turquestão, essa outra placa giratória? Para além destas terras, para o Sul, há ainda o enorme Oceano Índico, com os seus tráfi cos mal mantidos por Portugal e que a Espanha vai favorecer a partir de 1580, aliás, mais em teoria do que na realidade. Ora, é todo este espaço que é posto em causa pela enorme reviravolta da Turquia, depois dos anos 1 577- 1 5 80, reviravolta tão poderosa como a que lan çou então a Espanha para o Atlântico. O Oceano era a nova riqueza da Europa. Foi igualmente para a riqueza que a Turquia se voltou, basculando para a Ásia? Nenhum texto no-lo diz e a nossa informação é tão descontínua que só podemos aqui adiantar impressões. O que de certeza exprime a linguagem das crónicas é que a Pérsia é vítima de terríveis dificuldades políticas. Que o Xá Talmasq que reina na Pérsia desde 1 522 é assassinado, em Maio de 1 57699; que esse assassinato seja seguido do 98 Penso nomeadamente no de Franz Babinger, «Suleiman der Mllchtige», in Meister der Po/itik, 2 vol., Estugarda e Berlim, 1923. 99 J . von Hammer, op. cit., VII, p. 70. Sobre todos estes problemas, ver o pequeno livro, mas decisivo, de W. E. D. Allen, já citado, vol. 1, p. 131, nota 42.
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assassínio imediato do novo soberano, Halder; depois da subida ao trono de um príncipe lsmall, tirado para este efeito de uma prisão incrível, e que reinará apenas dezasseis meses, até 24 de Setembro de 1 577; finalmente da chegada ao poder de um príncipe quase cego, Mohammed Khobabendé, o pai do futuro Abbas o Grande; estes acontecimentos e alguns outros (em particular o papel, difícil de distinguir, das tribos georgianas, tcherquesas, turcomanas e curdas) fazem compreender a fraqueza da Pérsia; explicam a tentação dos chefes da fronteira turca, nomeadamente um Khosrew Paxá, e a política de todos os «militares» turcos, rurais, sacrificados durante anos à marinha: um Sinan Paxá, um Mustafá Paxá . . . A Pérsia decompõe-se no seu centro: é de aproveitar. Em 1578, são expedidas cartas de Constantinopla, dirigidas aos príncipes da zona do norte da Pérsia, príncipes em funções ou não, obedecidos ou não, poderosos ou não, do Chirvão, do Daguestão, da Geórgia, da Tchercássia. Uma dúzia destas epístolas foram conservadas pelo historiador Ali, no seu Livro da Vitória, relato da primeira campanha desta nova guerra da Pérsiauxi. São dirigidas a «Schabrokh Mirza, filho do antigo soberano do Chirvão; a Schemkal, príncipe dos Kumuks e dos Kaitaks; ao governador do Tabazerão, no Daguestão à beira do Mar Cáspio; a Alexandre, filho de Lewend, soberano dos países entre Erivão e Chirvão; a Jorge, filho de Lonarssab, senhor da pro víncia de Bacsh Atschouk [Imcreta] ; ao soberano de Guriel e ao Dadião, príncipe de Mingrélia [Colchis] .» Esta cascata de nomes põe em causa um espaço dis tinguível, entre Mar Negro e Cáspio, esse mesmo espaço que, em 1 533-1 536 e em 1548- 1 552, se desenhava já na retaguarda das guerras de Solimão contra a Pérsia. Por muito pouco que saibamos destes países intermédios, por muito mal que conheçamos a fronteira turca da região de Van, ou essa Pérsia tingida de sangue principesco dos anos 1 576- 1 578, parece provável que o imperialismo dos turcos se tenha então dirigido para o Cáspio. Não se trata de dominar o mar, mas ter acesso a ele bastaria para ameaçar, de maneira directa, as costas persas do Mazanderão, nas quais as galeras, navegando por um mar em que são praticamente desconhecidas, seriam muito mais eficazes. As correspondências ocidentais por ocasião da guerra de 1 568 e do projecto do canal Don-Volga já assinalavam este objectivo estratégico. Mas nos Turcos ainda não existe o desejo de ter acesso ao Turquestão, às rotas interiores da Ásia que os Russos inter romperam ao ocuparem Astracã em 1 556? De qualquer modo, o Turquestão é a rota da seda. A Pérsia deverá a estas rotas do interior asiático uma parte da renovação económica que lhe deram o final do século e o grande reinado do Xá Abbas. Estiveram também na origem dessa primeira expansão persa, visível no avanço das cidades, capaz de atrair de muito longe o comércio inglês e que se exprime pela espantosa dispersão dos mercadores arménios através de todos os
100 J. voo Hammer, op.
cit.,
p. 77.
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países do Oceano Índico, através dos Estados turcos da Ásia e da Europa, alguns cerca de 1 572 terminando em Dantzig 1 01 . Tabriz, muda importante deste comércio através do mundo, é uma presa tentadora. A ocasião, e a crescente debilidade da Pérsia atraem tanto mais os Turcos quanto dispõem, sobre o seu adversário, de uma superioridade técnica evidente. Não existe artilharia do lado dos Persas e muito poucos arcabuzes; os Tur cos não possuem muitos, mas têm alguns, e isso basta. Não existe, na sua frente, nenhuma praça forte digna desse nome. As únicas protecções, nos largos confins turco-persas, são os desertos, alguns naturais, outros estratégicos, ordenados pela prudência dos soberanos do Irão 102 . Claro que a religião desempenha um papel em qualquer guerra entre Tur cos e Persas: os fetwas consagraram o carácter piedoso e quase santo da luta contra os caes dos Chiitas 103, esses renegados e heréticos de «barretes verme lhos»104. Tanto mais que os Chiitas, adeptos da «religião persa», estão presen tes em todo o Império turco asiático, até no coração da Anatólia. Sublevaram-se �m 1 569 1 05 . Mas, tanto no Oriente como no Ocidente, não existem guerras puramente religiosas. Os Turcos, empenhando-se nos caminhos da Pérsia, cedem ao mesmo tempo a todas as espécies de paixões; e àquelas que enume iámos, conviria acrescentar a atracção pelos países georgianos, ricos de homens, mulheres, rotas, rendimentos fiscais . . . Isto supõe uma grande, uma poderosa política turca? Mas esta existe. A pretensa decadência, cujos inícios se pretendem assinalar com a morte de Soli mão o Magnífico, é uma falsa medida. A Turquia continua a ser uma imensa força, não selvagem, mas organizada, disciplinada, reflectida. Se, bruscamente, abandona as terras conhecidas do Mediterrâneo a fim de se voltar para o Leste, isto não é razão para anunciar que está «em decadência». Segue o seu destino.
A guerra contra a Pérsia
A guerra nem por isso será para os Tu,rcos uma guerra menos esgotante. Em 1 578, a primeira campanha com o sérasker 1 06 Mustafá, o vencedor de Chipre, anunciava, imediatamente, todas as grandes dificuldades futuras. Os Turcos alcançaram aí grandes vitórias, todas custosamente realizadas (como, nas fronteiras da Geórgia, a vitória do Castelo do Diabo, a 9 de Agosto de
101 B. N., Paris, ltal., 1220. 102 lbid., f. 0 317 v. 0 (cerca de IS72). 103 J. von Hammer, op. cit., VII, p. 75. I04 lbid., p. 80 ; Voyage da ns /e Levant de M . d'Aramon, op. cit., l, p. 108. I05 De Grantric de Grandchamp a M. de Foix, Const. , 30 de Agosto de IS69, E. Charriere, op. cit., Ili, pp. 62-66.
106 Sérasker - Nos Turcos, general das tropas do Império (N. da T.).
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1 578 107). Se a entrada em Tíflis se fez com facilidade, o mesmo não se passou com a longa marcha do exército de Tíflis até ao Kanak e, depois deste rio, atra vés das florestas e dos pântanos. Juntando-se a fome à fadiga aquela dizimou o exército, que os Khans persas não cessavam de provocar. Todavia, em Setem bro, nas margens do Kanak, os Turcos saíram, mais uma vez, vitoriosos. A maior parte da Geórgia permaneceu nas suas mãos. Em Setembro, o sérasker dividiu-a em quatro províncias, deixando aí os beglierbeys, com tropas e arti lharia, e com a missão de receber os direitos que nestas ricas províncias, nomea damente no Chirvão, os Persas cobravam sobre as sedas. Ao mesmo tempo, o sérasker soube conciliar os príncipes indígenas que ao princípio tinham aceite com certa naturalidade a conquista turca. Chegado o Outono, retirou, com as suas tropas dizimadas «por cinco batalhas e pelas doenças» 1 08, para Erzeroum onde passaram o Inverno. Que dificuldades revelara esta primeira campanha? Em primeiro lugar, a tenacidade do adversário; a inconstância dos indígenas, capazes de criar cruéis e bruscas surpresas nas passagens montanhesas; sobretudo as distâncias, o número das etapas, a sua dureza, a quase impossibilidade de viver em países desi gualmente férteis, cortados por montanhas, florestas, pântanos, sujeitos cada Inverno a um clima desumano. É o espaço, como na campanha da «Rússia» de 1 569, que joga contra o Turco. De Constantinopla, porque o exército partiu de Constantinopla, para chegar até Erzeroum existem sessenta e cinco etapas; de Erzeroum a Aresch (que a expedição não ultrapassou), sessenta e nove e outras tantas para regressar. Para estas guerras de longas distâncias, a cavalaria, e sem demasiadas bagagens, é a arma conveniente. Jamais um exército equipado à ocidental, com os seus pesados serviços de intendência, a sua infantaria, a sua artilharia 109• O instrumento ideal é a cavalaria tártara, que serviu na campanha de 1 568. É ainda preciso ter a certeza do apoio e utilizá-lo não através das zonas montanhosas onde é impotente, mas nas grandes planícies, ao Norte e ao Sul do Cáucaso, sobretudo ao Norte (verificar-se-á isto por ocasião da incursão de Osman Paxá, em 1580). Mas, como viver depois em países destruídos e ter êxito na sua ocupação? Em todo o caso, os Persas souberam aproveitar o Inverno e, durante o de 1578- 1 579, passaram à ofensiva. Mais do que os seus adversários, que estavam afastados das suas bases e acampados em lugares ao acaso, e além disso habi tuados ao clima mediterrânico, eram capazes de suportar os terríveis frios asiá ticos. Os pontos de apoio turcos resistiram à primeira tormenta. À segunda, alguns cederam: o Chirvão foi assim evacuado e a sua guarnição retirou para o
107 J. von Hammer, op. cit., VII, p. 81 . Sobre a guerra da Pérsia, a velha obra de Hammer utiliza as fontes preciosas de Minadoi e de Vicenzo degli Alessandrini e as fontes orientais, as dos historiadores Ali e Pertchewi. Mais uma vez é boa ocasião para afirmar a superioridade deste antigo livro sobre os dos seus sucessores, J. W. Zinkeisen e N. lorga. 108 Péra, 9 de Dezembro de 1578 (Margliani a Pérez, recebida a 3 1 de Março de 1579), Simancas, E.º 489. 109 Que teria dito Émile-Félix Gautier sobre este assunto?
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Derbent. Inverno terrível . Não é para admirar se os avisos da Síria são alarmantes 1 10• Os agentes que informam os Espanhóis em Constantinopla ale gram-se com isso . «Soube-se . . . - nota um deles 1 1 1 - que viria um embaixador de S. M. [o Rei Católico]. Isso desagrada-me muito, porque este não é o momento oportuno. Se tem de vir, seria preciso que o fizesse com uma grande armada.» A guerra vai durar, concluem os observadores 1 12• A Pérsia tem grandes exigências 1 1 3 • A 8 de Julho de 1 579, o embaixador espanhol em Veneza escrevia que «não contente em exigir a Mesopotâmia, o Persa quer que os Turcos aban donem os ritos da sua seita» 1 14• Os reveses turcos tinham tomado o aspecto de uma derrota. Os combaten tes que os acasos desta terrível guerra de Inverno trouxeram para Constantino pla, perturbaram todos os que os viram 1 15 , de tal modo eram a imagem da miséria humana. Por isso, o sultão não tencionava renunciar aos seus projectos. O ano de 1 579 - pelo menos a sua estação útil - foi aproveitado pelo sérasker para a construção da poderosa fortaleza de Kars. Portanto, foi novamente necessário concentrar tropas, acumular víveres em Erzeroum 1 16, encaminhar para Trebizonda quarenta galeras, munições, artilharia e madeira 1 1 7, e ao mesmo tempo negociar à distância com o Tártaro e alguns príncipes da Índia. Com efeito, o perigo dos cavaleiros persas continuava a ser muito grande cerca de Kasbin e de Chirvão, tanto mais que os Georgianos, pelo que se dizia, estavam de acordo com eles e tinham-lhes dado garantias 1 1 8• Contudo, para o Sul, a fortaleza de Kars erguia-se à custa de um trabalho insano 1 19• Testemunhas contavam em Constantinopla que a partir de agora já estava ao abrigo de um ataque inimigo, «cuja notícia - escreve Margliani - é de grande importância e será tida em conta pelo Grande Senhor e com muita razão. Porque terá feito o que não conseguiu fazer o seu avô o sultão Solimão, o qual, não se pode negar, foi um grande chefe. Nestas duas últimas noites, houve fogo de artifício e alegria no Serralho do Grande Senhor. Receio grandemente que esta notícia o torne ainda mais orgulhoso do que é sensato . » Mas, escre via alguns dias mais tarde: «Vou-me consolando, com a esperança de que poderá acontecer em Kars o que se verificou em Servão [Chirvão?], o qual foi tomado, fortificado pelos Turcos com a mesma facilidade e recuperado pelos Persas 1 10 111 1 12 1 13 1 14 1 IS 1 16 1 17
7 de Janeiro de 1 579, A. N., K 1672, O ! . 1579, A. N., K 1672, O ! . 1 579, ibid. Juan de Idiáquez a Filipe II, Veneza, 2 1 de Março de 1579, ibid, n. 0 35. X. de Salazar a Filipe II, Veneza, 8 de Julho de 1579, ibid., n . 0 84.
Veneza,
Const., 4 de Fevereiro de Const., 24 d e Março d e
Margliani (referência exacta, extraviada). J . de Idiáquez a Filipe II, Veneza, de Abril de A. Germigny ao rei, Péra, de Setembro de Recuei/, p.
29
16
1579,
1 579,
N., K 1672, n.º 56, cópia. 10; Re/acion de lo que ha succedido ai capitan
de la mar Aluchali desde los 1 7 de Mayo que partia de aqui de Constantinopla asta los 6 de Agosto sacada de las cartas que se han recibido de Juan de Briones y Aydar lngles, A. N., K 1672, O 1 , n . 0 1 15. (Mesma relação,
1672, O 1,
Simancas, E.º 490). Relacion de lo que ha succedido de los 9 de Agosto hasta los 28, A. N., K de Setembro (cf. Germigny, citado no início desta nota) Euldj Ali regressou a Constantinopla a 1 18 Const., n.0 cópia. de Abril de A. N., K
1 19
550
10
56, Margliani a Antonio Pérez, Péra, 2 de Março de 1 579, Simancas, E. 29
1579,
1672,
0 490.
n.0
1 16.
com trez.e galeras.
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para grande prejuízo dos ditos Turcos» 1 20• Em Veneza - conhece-se o valor das notícias de Veneza - contar-se-á que a fortaleza era tão grande como metade de Alepo e media três mil milhas de circuito 1 2 1 ! Aliás, parece que os Persas, nesse Verão de 1 579, ficaram de propósito na defensiva. Por causa da peste, dizia-se em Veneza, que dizimava as fileiras turcas 1 22• Por causa da artilharia e das forças turcas, pensaremos nós, e na espera do Inverno, seu aliado. Todavia, a sua ameaça estava sempre presente. Em Veneza, dizia-se que estavam na fronteira 250 000 Persas 1 23 • Em Veneza, é claro. Mas na própria Constantinopla, sabia-se que se, em Kars, os Turcos tinham levantado uma barragem sólida, Tíflis, no coração da conquista de 1 578, encontrava-se cercada pelo inimigo 1 24• Em Veneza, em Setembro - é preciso ter em conta os atrasos de caminho - falava-se das dificuldades que o sérasker sentira em avançar as suas tropas de Erzeroum para Kars, e mesmo de motins entre os janízaros e os spahis. Perguntava-se se não teria sido o próprio séras ker a provocá-los, de tal modo estava desejoso de um pretexto para não avan çar mais 125 • Em Constantinopla, em Outubro, reinava um optimismo oficial: far-se-ia a paz com a Pérsia quando se quisesse. Isto não impede que Mustafá recebesse ordens para passar o Inverno e, dizia-se, recuar as suas tropas não para Erzeroum, mas muito mais para Oeste, até à Amásia 126• Tíflis, perseguida de perto, foi todavia desbloqueada por Hassan Paxá, filho de Méhémet Sokolli, e largamente abastecida pelos seus cuidados 1 27 • Mas chegava o Inverno. E em breve o grosso dos contingentes tártaros abandonaria o Daguestão que tinham dizimado na boa estação 1 28• Notemos, de passagem, que neste caso se trata de um pequeno exército (dois mil cavaleiros segundo Hammer), e que num mês, tinha conseguido cobrir a enorme distância que, pelos quase desertos do Norte caucasiano, separa a Crimeia de Derbent, nas margens do mar Cáspio. Recebeu aí a indicação de uma via de invasão mais fácil do que a que atravessa as desu manas montanhas da Arménia. A morte de Méhémet Sokolli, o curto vizirato de Achmet 1 29, a nomeação de Sinan Paxá para o comando do exército de Erzeroum 130, depois, a sua eleva ção, quando marchava sobre a Geórgia, à dignidade de vizir, não alteraram sensivelmente as condições da guerra. Durante o Verão, Sinan impeliu o seu
120 1 21 122
O mesmo ao mesmo, 5 de Setembro de 1579; ibid. J. de Cornoça a S. M., Veneza, 17 de Outubro de 1579, A. N., K 1672, G Salazar a Filipe li, Veneza, 7 de Setembro de 1579, ibid.
I,
n.0 142 a.
1 23 Ibid. 1 24 Gennigny
ao rei, Péra, 1 6 de Setembro de 1579, Recuei/. . . , p. 10. Ver nota 1 22 . Gennigny ao grão-mestre de Malta, Péra, 8 de Outubro de 1579, Recuei/.. ., pp. 17-18. Apenas até Erzeroum, J. voo Hammer, op. cit., VII, p. 96. 127 J. voo Hammer, op. cit. VII, p. 97. 125
1 26
1 28 lbid., p.
98.
Morre a 27 de Abril de 1580, E. Charriére, op. cit., III, p. 901 . Três cartas de Margliani a Don Juan de Çui\iga, 27 e 30 de Abril de 1580, Simancas, E.º 491 . Resumo da chancelaria. 129 1 30
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exército em longas colunas, de Erzerourn até Tíflis. Reorganizou a ocupação otomana na Geórgia. Depois, para vingar um fracasso dos seus soldados que saíram corno saqueadores, decidiu-se a desferir um grande golpe contra a pode rosa cidade de Tabriz. Teve de resignar-se rapidamente a não lhe dar sequência e, na véspera do Inverno, recuar para Erzerourn. Entretanto, iniciaram-se negociações de paz. Sinan conseguiu autorização para a vir debater em Constanti nopla. Em breve, culminaram numa espécie de armistício, válido para o ano de 1 582. Ibrahirn, o embaixador persa, entrava em Constantinopla a 29 de Março de 1 582, «com um séquito composto de tantas pessoas corno dias tem o ano» 13 t. Todavia, as dificuldades georgianas obrigaram o exército turco a urna certa actividade. Era preciso abastecer Tíflis a partir de Erzerourn durante o Verão de 1 582 132, prevendo o Inverno que se seguiria. Ora, o comboio foi surpreendido pelos Georgianos e guerrilheiros persas. A situação de Tíflis tornava-se dra mática. Ao mesmo tempo, a embaixada persa mudava bruscamente. Esta série de fracassos originou o regresso e o exílio de Sinan Paxá que se dizia ser hostil à guerra da Pérsia, e a nomeação, a 5 de Dezembro de 1582, de um novo vizir, esse Chaouch Paxá que vimos altercar com Margliani, na altura do epílogo da sua negociação, em Janeiro de 1 58 1 . Esta crise interna comportava a continuação da guerra. A sua condução foi reservada ao berglebey da Rornélia, Ferhad, elevado nessa ocasião à digni dade de vizir. Foi responsável por ela em 1 583 e 1 584. A sua preocupação con sistiu, sob as pr.óprias ordens do sultão, em fortificar os confins contestados. De onde a elevação de urna grande praça corno Erivan, em 1583; de onde, em 1 5 84, a construção ou a reparação de um certo número de castelos e a fortifica ção de Lori e Tornanis. Assim, curiosamente, constituía-se a Leste do Império Otomano uma fronteira à ocidental, com as suas praças, as suas guarnições, os seus comboios de abastecimento. Política prudente, mas também paciente, sem brilho, e dura para o soldado. Contudo, ao Norte do Cáucaso, a partir de 1 582 (as tréguas aqui não tinham sido muito francas) e em 1583-1584, uma outra guerra, muito mais viva, começara pelas grandes rotas das estepes tártaras, devido às diligências de Osman Paxá, governador do Daguestão. Urna guerra que avançou, sem dema siado esforço, do Mar Negro até ao Cáspio. Por ordem do sultão 1 33, forças consi deráveis foram reunidas em Caffa; encaminhou-se para aí, além dos homens, material e víveres, oitenta e seis cargas de oiro: as guerras da Pérsia, difíceis, dispendiosas sob o ponto de vista humano, devoram evidentemente enormes somas. Falar-se-á em breve de empréstimos dos bens das mesquitas. Entretanto, um relatório ínglês descrevia, em 1 583, os Persas carregando lingotes e peças
1 31 J. von Hammer, op. cit., VII, p. 1 32 Ibid. 133 lbid. , p. 1 12.
552
1 04.
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de prata destinados ao soldo 134• Oiro turco e prata persa: até nisto encon tramos a divergência. O corpo expedicionário constituído em Caffa, sob o comando de Djafer Paxá, levou duas semanas para atravessar o Don. Precisou, para abrir cami nho, de pagar indemnizações às tribos com que se encontrava ao norte do Cáu caso e caminhar longamente, através dos desertos onde pululavam os veados selvagens 135• Após vinte e quatro dias de marcha, chegou a Derbent, a 14 de Novembro de 1 582, e, esgotado, resolveu passar aí o Inverno. Na Primavera, o pequeno grupo tornava a partir sob as ordens de Osman Paxá, esmagava os Persas e avançava até Baku. Depois, tendo Osman instalado Djafer Paxá no Daguestão, retirou o resto dos seus soldados para o mar Negro. Encontrou na retirada as piores dificuldades; depois de repetidos combates contra os Russos, perto do Terek e do Kouban, foi bloqueado pelos Tártaros quando atingiu Caffa, recusando-se estes, aliados pouco fiéis, pelo menos reticentes, a depôr o seu Khan, como Osman o exigia. Para os fazer entrar na ordem, foi necessária a intervenção de uma esquadra de galeras turcas, sob as ordens de Euldj Ali. Note mos que se os números que as nossas fontes fornecem estão certos, Osman só tem consigo quatro mil homens: isto dá a medida desta extraordinária campa nha. A sua chegada a Constantinopla valeu-lhe um acolhimento excepcional mente caloroso por parte do sultão que, durante quatro horas, ouviu os seus longos relatos. Três semanas depois desta audiência, era nomeado grão-vizir. E o sultão confiava-lhe o comando do exército de Erzeroum, com a missão de conquistar Tabriz. Preocupado, durante o Inverno, com uma nova pacificação da Crimeia que finalmente se deu por si só, o novo chefe do exército turco deixou Erze roum a partir da boa estação, com um exército propositadamente pouco nume roso; no fim do Verão (Setembro de 1 585), avançava sobre Tabriz e vencia-a. Cidade de tráfico e de artesanato, no centro de uma planície rica de culturas e árvores de fruto, Tabriz foi uma dádiva para o esfomeado e fatigado exército turco. Mas, depois de um terrível saque, foi preciso fortificá-la à pressa, já que os Persas continuavam a lutar em redor da praça. Depois da sua brilhante vitó ria, Osman Paxá morreu, na noite de um dos seus recontros (29 de Outubro de 1585). Cigala trouxe de novo o exército para os seus aquartelamentos de Inverno. Mas os Persas não desistiam. Durante o Inverno de 1 585-1 586, de Tíflis a Tabriz, pode dizer-se que todas as praças do limes turco estavam cercadas pelos súbditos do Sofi e seus cúmplices indígenas. Mais uma vez, o limes aguentou, e Tabriz foi desbloqueada a tempo pelo sérasker Ferhad Paxá, o qual, pela segunda vez, voltava a exercer o comando na Ásia. Lentamente, mas com uma certa força, os Turcos tinham recuperado algum terreno. Ora, durante os dois anos seguintes, a guerra ia mudar de carácter. Com efeito, os Persas tiveram brusca-
134 R. Hakluyt, op. cil., 11, p. 171. 135 J. von Hammer, op. cit., V I I , p.
1 1 3 , nota 1. 553
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mente de fazer frente a um novo adversário, os Uzbegs do Khorassan. A sua defesa foi assim desfeita, ao mesmo tempo que o seu recrutamento de cavalei ros se tomava difícil. Os Turcos ultrapassaram então Tabriz e progrediram para o Sul . A guerra concentrada em Erzeroum ia tornar-se, durante algum tempo, uma guerra radicada em Bagdad. É perto desta cidade que em 1 587, o exér cito de Ferhad Paxá, engrossado por soldados curdos recrutados à pressa, esmaga os Persas na planície das Gruas. No ano seguinte, dirigir-se-ão nova mente para o Norte, em redor de Tabriz, no Karabagh. Conquistarão Ghendjé que imediatamente se empenharão em fortificar, prevendo as próximas campanhas. Mas entretanto, o jovem Abbas associara-se, a bem ou à força, ao governo de seu pai, mesmo quando este ainda estava vivo (Junho de 1 587). Teve a sensa tez de compreender que entre os dois perigos que pressionavam o seu reino, os Uzbegs por um lado e os Otomanos por outro, mais valia fazer concessões a Oeste. De novo, em 1 598, chegou a Constantinopla uma magnífica embaixada persa sob o comando do príncipe Ha"ider Mirza. Na capital turca, onde Mourad tinha instaurado o reinado da sumptuosidade, as recepções foram magníficas. As negociações foram longas, mas finalmente terminaram. A 21 de Março de 1 590, a paz estava assinada, pondo fim a uma guerra de doze anos. A obstina ção turca encontrava aí a sua recompensa: todas as conquistas continuavam nas mãos do sultão, ou seja, a Geórgia, o Chirvão, o Lauristão, o Scherzol, Tabriz e «a parte de Azerbeijão» que depende dele 136• Em suma, toda a Transcau cásia, todo o lado humano do Cáucaso, com uma janela amplamente aberta sobre o mar Cáspio. Esta não era uma pequena vitória. Pelo contrário, era um sinal particular de vitalidade, no único ponto verdadeiro da sua espécie. Mas para o historiador do Mediterrâneo, o importante é a fixação da força turca na direcção do Cás pio, longe do Mar Interior. Este avanço centrífugo explica, pelo menos até 1 590, a ausência da Turquia no campo mediterrânico. Os Turcos no Oceano Índico
Tanto mais que a par e para além da guerra persa, os Turcos tiveram de manter uma guerra em relação ao Oceano Índico, sobre a qual possuímos uma escassa informação. O Oceano Índico, pelo menos na sua parte ocidental, fora, durante sécu los, um lago islâmico. Os Portugueses não conseguiram tirar de lá o Islão. Tive ram mesmo de sofrer os seus repetidos assaltos, desde 1 538, pelo menos, e nes tes assaltos, os Turcos desempenharam o seu grande papel. Mas, em última 1 36 lbid., p. 223. Ponanto vitória turca, G. Botero, op. cit., p. 188 v.0, vê-a da maneira seguinte: «Pois ape sar do Turco ter sido desfeito e fugido mais de uma vez, foi-se fonificando pouco a pouco nos lugares mais ade quados e ocupando um extenso território; finalmente, ao ter tomado a grande cidade de Tauris, deu-se conta de uma grande e fone cidadela. Assim como os da Pérsia que, por não terem cidadelas nem fortalezas, perderam o campo e também as cidades.»
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análise, é talvez porque não teve êxito nesta descida para o Sul que o Império dos Osrnânlis não pôde contrabalançar a Europa. Foi-lhe necessária urna boa frota. A Turquia possuía urna, evidentemente, e temível. Mas tornava contacto com o Oceano Índico pelo estreito Mar Vermelho e a sua técnica naval era urna técnica mediterrânica. Foi portanto com um material mediterrânico, galeras des montadas, depois transportadas em caravanas até Suez onde eram montadas de novo e lançadas à água, que a Turquia abordou os seus competidores do Oceano Índico. Foi com galeras que o velho Solimão Paxá, governador do Egipto, tornou Aden, em 1 538, e avançou, em Setembro do mesmo ano, até Diu, que não conseguiu conquistar. Galeras com que Piri Rais 137, em 1 554, correu a ten tar fortuna contra os veleiros portugueses, navios feitos para o Oceano e que venceram os seus navios a remos. Com base em Bassora, às portas de um outro mar estreito, o Golfo Pérsico, a frota de galeras, comandada pelo almirante poeta Ali, foi, em 1 556, lançada para as costas da península do Goudjerat e abandonada aí pelo seu chefe e pelas suas tripulações. Foi assim que o Oceano Índico assistiu a urna luta muito curiosa entre a galera e o veleiro 138• Geralmente, os avanços turcos nesta direcção estiveram ligados às compli cações turco-persas. Regularmente, surgiram em consequência destas guerras. Guerra contra a Pérsia, de 1 533 a 1 536, depois a expedição de Solimão Paxá: a tornada de Aden e o primeiro cerco de Diu são de 1 538. Guerra contra a Pérsia, de 1 548 a 1 552 (mas que só é importante durante o primeiro ano) e em 1 549, o segundo cerco de Diu; em 1 554, as expedições de Piri Rais e em 1556 as de Ali. Do mesmo modo, cerca de 1 585, a guerra da Pérsia diminuía, e a guerra pelo Oceano recomeça, ao longo da costa oriental da África, desse litoral a que os Portugueses chamam a Contracosta 139• Em suma," as tréguas turco-espanholas só terão funcionado para o Medi terrâneo. Em vão Filipe II recomendou aos funcionários portugueses - aliás tardiamente - que fossem liberais e tolerantes a fim de evitar que os príncipes indígenas descontentes não apelassem para os Turcos 1 40• Estes nem sequer esperaram que os chamassem. Depois de 1 580, continuaram as suas frutuosas piratarias contra o comércio português. Em 1 585, urna frota, sob o comando de Mirali Beg 141 , chegava a atingir as margens africanas do oiro. Conquistava sem dificuldade Mogadiscio, Darawa, Djurnbo, Arnpaza. O príncipe de Mornbassa declarava-se vassalo da Sublime Porta. No ano seguinte, Mirali Beg apoderava-se de todos os pontos da costa, salvo Melinde, Patta e Kelife, que continuaram 1 37 Karl Brockelmann, Geschichte der islamisch. V(;Jker und Staaten, 1939, p. 8 ; sobre o personagem e as 22 suas curiosidades, Erich Brllunlich, Zwei türkische We//karten. . . , Leipzig, 1937. 1 38 A fórmula é infelizmente demasiado simples. Mas como, aqui, entrar em todos os pormenores? Vitorino Magalhães Godinho que prepara um trabalho de conjunto sobre o Oceano Índico no século XVI faz-me notar que as frotas portuguesas se compõem de veleiros, digamos atlânticos, de navios de tipos indígenas e também de gale ras. . . uma frota diversa, para tarefas diversas. 139 M. A. Hedwig Fitzler, «Der Anleil der Deutschen an der Kolonialpolitik Phillips II in Asian», in Vierte/ jahrschrift für Sol.ial-und Wirtschaftsgeschichte, 1936 , pp. 254-256. 140 Lisboa, 22 de Fevereiro de 1588, Arq. por/. or. , III, n. º l i , citado por M. A. H. Fitzler, art. cit., p. 254. 141 Cf. W. E. D. Allen, op. cit., p. 32- 33 e notas, que rectifica o erro da minha ! . ª edição.
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fiéis a Portugal. Seria este o resultado dos maus tratos infligidos pelos Portu gueses aos indígenas, como pensava Filipe II 1 42?
A resposta portuguesa foi lenta. Em 1 588 uma frota acaba por perder-se
nas margens da Arábia meridional 143 • Nesse ano da Invencível Armada, a maquinaria ibérica tinha outras preocupações para além dessas lutas muito longín quas. Mas a aposta era enorme: por detrás de Mombassa, que o Turco quer fortificar, trata-se das minas de oiro de Sofala; e mais abundantemente ainda, da Pérsia e da Índia, que a frota portuguesa, na direcção de Bab-el-Mandeb, tentou em vão proteger em 1 588. Felizmente para os Portugueses, também o Turco actua no extremo limite das suas forças, esgotado pela distância. Em 1589, Mirali Beg ataca apenas com cinco navios. A frota portuguesa de Thomé de Souza consegue bloqueá-lo na margem de Mombassa, enquanto uma frené tica revolta dos Negros eclodia ao longo da costa e finalmente vencia tudo, senhores, indígenas e invasores turcos. Só os Turcos, que se refugiaram a bordo dos navios portugueses, entre os quais o próprio Mirali Beg, escaparam ao mas sacre. Fracassou assim, em 1 589, uma das mais curiosas e das menos conheci das tentativas otomanas.
A guerra de Portugal, viragem do século Michelet via no ano de São Bartolomeu a viragem do século. Se houve viragem, coincide antes com os anos de 1578- 1 583, quando se travam, com a guerra de Portugal, as grandes lutas pelo Atlântico e pela dominação do mundo. A política espanhola pende para o Oceano e para a Europa Ocidental. Ao mesmo tempo que depois da bancarrota de 1 575, liquidação da primeira parte do reinado de Filipe I I , o afluxo dos metais preciosos aumenta bruscamente as possibilidades do tesouro de guerra espanhol. Começa então, depois desses «anos-charneira», aquilo a que se chamou «o ciclo real da prata», de 1 579 a
1 592 1 44• Tanto nos Países Baixos como fora deles, a política de Filipe II, exa
cerbada pelo rápido crescimento dos seus recursos, torna-se cada vez mais agressiva e menos prudente. Esta dramática mudança não escapou aos historiadores, particularmente aos portugueses que a conheciam melhor do que os outros mas observaram-na demasiado pela pequena ponta da luneta: o seu destino nacional, evidentemente, encontra-se no centro da história oceânica, mas não a constitui totalmente. Ligados uns aos outros, os acontecimentos desta vida oceânica mostram ime diatamente a amplitude das lutas travadas. Não diremos, tal como outros, que abrem a porta aos «tempos modernos» . A afirmação é prematura, pois que durante longos anos, elas travaram, de facto, o desenvolvimento do Oceano.
142 1 4 de Março de 1588, ibid., n.º 43, citado por M. A. H. Fitzler, an. cit., p. 256. 1 43 M. A. H. Fitzler, art. cit., p. 256. 1 44 Pierre Chaunu, art. cit., in Revue du Nord, 1960, p. 288 e Conjoncture, p. 629 e segs.
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AS TRÉGUAS HISPANO-TURCAS: 1577-1584
No que diz respeito à Espanha, a mudança de direcção foi nítida. Em 1579, o cardeal Granvelle chegava a Madrid. Ficou aí até à sua morte (1586), sete anos durante os quais desempenhou, no princípio realmente, depois titu larmente, as funções de primeiro ministro. A tentação de ligar a estas mudan ças governamentais a passagem de uma fase defensiva e prudente do reinado de Filipe II para uma fase agressiva e imperialista era grande (Martin Philippson não lhe escapou). Até 1 580, a política espanhola fora a do «partido da paw - o de Ruy Gomez e dos seus amigos - mais do que a do duque de Alba e dos seus sequazes, «O partido da guerra». Com algumas excepções: pensemos na viagem do duque de Alba de 1 567, ou em Lepanto. Aliás, os dois partidos não estavam organizados. Dir-se-ia melhor dois carrilhos, fora dos quais o rei sem pre se manteve, ao mesmo tempo que se servia deles, mais satisfeito com as suas querelas subalternas que lhe garantiam uma melhor informação, uma vigilân cia mais fácil, e finalmente a integridade da sua autoridade. Opondo-os uns aos outros, não lhes poupando as preocupações, Filipe II serviu-se assim bastante dos homens que estavam ao seu serviço. Aliás, as duras tarefas do seu reinado também o ajudaram. Em 1 579, existem apenas sobreviventes dos partidos da primeira fase do reinado. Ruy Gomez morre em 1 573 e a sua camarilha, em redor de Antonio Pérez, já não tem a coerência de antigamente. O duque de Alba, que abandonou os Países Baixos em Dezembro de 1 573, não encontrou, em Espanha, a posição eminente que noutros tempos ocupara. Em 1 575, uma brusca desgraça relegou-o para fora da vida política. Em Março de 1 579 Filipe II chamou Granvelle para junto de si . «Tenho sobretudo necessidade da vossa pessoa - escreveu-lhe - e do vosso auxílio nos trabalhos e nas preocupações do governo . . . Quanto mais cedo chegardes, mais satisfeito ficarei» 145• O cardeal vivia então em Roma. Apesar da sua idade - 62 anos - aceitou a aventura, mas só conseguiu pôr-se a caminho depois de numerosos atrasos: foi preciso esperar em Roma e em Génova. Só a 2 de Julho, com Don Juan de Idiáquez que o acompanhava, divisou as costas de Espanha. A 8, desembarcaram em Barcelona. Imediatamente, o cardeal pôs-se a caminho com as suas viaturas e as suas bestas de carga, viajando de noite para evitar o calor. Por ordem expressa do rei, que já se encontrava no Escorial, não passou por Madrid e chegou a San Lorenzo nos primeiros dias de Agosto, acolhido • pelo rei como um salvador 1 46• Era a palavra que convinha. Filipe II esperara que o cardeal estivesse a caminho do Escorial para tirar a máscara e atingir brutalmente Antonio Pérez e a sua cúmplice, a princesa de Eboli. Na noite de 28 para 29 de Julho, ambos tinham sido presos. Estas datas têm a sua importância. Porque o rei há muito tempo que suspeitava de Antonio Pérez, mas só se decidiu a enfrentar uma camarilha ainda po2.289, 329, 348; li. 497, 518. Verdelbõet: 1. 17', 1 79 (200) . Verdote (verde-cinzento): 1. 245. v.,101ssy11•m: 1. 361, 47-479. Vestuàrio: búlpro: li. 143; francb: li. 137, 196 (417); judeu: li. 168-169, 17', 184; mouriJco: li. UI, IH, 445; rlll\U&DO: li . 139; turco: li. , 1 , 306. Viqens: 1. 666-668 , 680; li. l:Z0.126, 161, 217, 24,, 2'6. Viaturas: 1. 224-225, 238, 31f>.317, 323, 35', 392, 427, 428, ,91; li. 5'7. Vidros, vidreiros, vidraria: 1. 437, 462, 473, 5 1 1 , 6U, 616. VII/as: 1. 376; 11. m , 2'2. Vindimas: 1: 288-290. Vinhas: 1. 43, 52, 70, 72, 81 (221), 86, 98, 99, 106, 168 (164), 178, 179, 223, 2'2, 261, 261 (16), 263, 264, 26,, 291, 430,
445, 469, 47', 624, 638-641, 649, 6'°· 6'8; li. 83.
Vinhos: 1. 55, 72, 99, 143, I'°, /JO (98), 1'1 (102), /7J (188), 179 (201), 180, 181, 223, 224, 234, 24,, 2'4, 263, 264, 272,
289-290, 317, 333, 336, 340, 348, 3'4, 3'8, 369, 427, 428, 431, 431 (141), 432, 433, 46$ (33'), 467, 469, 476, 487, 489, m, m. 567, 568, 57', 586, 639, 6'9-660, 664-66, , 670, 673; li. 68, 143, 214, 227, 2'°· 370, 476, 513. Vitelas: 1. 106, 27', 306, 428, 431, 567. Wokorif(bens): li. 24, 83.
Walibt: 1. 50.
Xerifes: 1. 204-205, 523. Yoyla, estado estival: 1. 1 13, 393. Yldd/M:h (o): 11. 171. Zobras, navios da B bcaia : 1. 254, 527-'29, '41; l i . 383, 429. Ztanos, moedao do Mapebe: 1. 522.
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