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Portuguese Pages 196 Year 2011
Sistemas Axiomáticos Formalizados a questão da desinterpretação e da formalização da axiomática
ARNO AURÉLIO VIERO
Sistemas Axiomáticos Formalizados a questão da desinterpretação e da formalização da axiomática
VOLUME 60 – 2011
COLEÇÃO CLE
COLEÇÃO CLE Editor: Itala M. Loffredo D’Ottaviano Conselho Editorial: Newton C.A. da Costa (USP) - Itala M. Loffredo D’Ottaviano (UNICAMP) - Fátima R. R. Évora (UNICAMP) - Osmyr Faria Gabbi Jr. (UNICAMP) - Michel O. Ghins (UNIV. LOUVAIN) - Zeljko Loparic (UNICAMP) - Oswaldo Porchat Pereira (USP) Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência Cidade Universitária “Zeferino Vaz” - C.P. 6133 - 13083-970 Campinas, SP. www.cle.unicamp.br [email protected] Copyright by Coleção CLE, 2011 ISSN: 0103-3247
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do CLE Viero, Arno Aurélio Sistemas axiomáticos formalizados : a questão da desinterpretação e da formalização da axiomática / Arno Aurélio Viero. – Campinas : UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2011. (Coleção CLE ; v.60) ISBN 978-85-86497-08-7 1. Lógica simbólica e matemática. 2. Axiomas. I. Título. II. Série. 20. CDD 511.3 Índice para catálogo sistemático 1. Lógica simbólica e matemática 2. Axiomas
IMPRESSO NO BRASIL
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Sumário Apresentação............................................................................................
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Introdução.................................................................................................
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Capítulo 1 - O Advento da Axiomática Formal.......................................
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Capítulo 2 - Hilbert e os Fundamentos da Geometria............................
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Capítulo 3 - A Teoria da Prova como Instrumento de Fundamentação: o programa de Hilbert............................
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Capítulo 4 - O Fracasso do Programa Formalista: dificuldades na concepção do processo de formalização............................. 107 Capítulo 5 - O Método Axiomático e o Formalismo............................... 129 Conclusão.................................................................................................. 183 Bibliografia................................................................................................ 189 Índice......................................................................................................... 195
Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e
O Método Axiomático O método axiomático não é, em geral, o método privilegiado de investigação matemática, mas é o preferido quando se trata de compreender os aspectos lógicos e epistemológicos da atividade matemática. Sua origem remonta à Grécia clássica, tendo nos Elementos de Euclides sua expressão mais eloqüente. O método axiomático é a realização, no campo da matemática, do ideal arquitetônico de ciência preconizado por Aristóteles. Seu desenvolvimento, ao longo da história da matemática, até pelo menos o século XIX, esteve ligado à Geometria. As fracassadas tentativas de demonstrar a dependência lógica do quinto postulado de Euclides, o postulado das paralelas, dos outros quatro, que na verdade é independente deles, exigiam a aplicação conscienciosa desse método. A criação da geometria projetiva e dos métodos analíticos em geometria a partir do século XVII, em especial na França, colocou momentaneamente o método axiomático em segundo plano; porém, a descoberta das geometrias não-Euclidianas, nascidas das duas possíveis negações do postulado das paralelas, por Gauss, Lobachevsky e Bolyai, no início do século XIX, e depois por Riemann, obrigou a um retorno aos fundamentos da Geometria, à tarefa de deslindar as propriedades afim, projetivas e topológicas do espaço das suas propriedades métricas e investigar as conseqüências lógicas de cada um desses grupos separadamente. E para isso o método axiomático mostrou-se insuperável. 7
O método axiomático
O método conhece seu apogeu com Hilbert na passagem do século XIX para o XX. Com ele, pela primeira vez, a Geometria Euclidiana e a Análise são axiomatizadas segundo os critérios modernos de rigor lógico e essas axiomatizações submetidas à análise meta-matemática. Para isso, porém, era mister reduzir essas teorias axiomáticas a seus arcabouços formais. Isso é o que Arno Viero chama “desinterpretação”. Este texto é uma análise rigorosa e inteligente do movimento de desinterpretação que, a partir do começo do século XX, irá propor uma reinterpretação do método axiomático, e a que propósitos esse movimento servia. Dada sua origem como uma dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio sob a orientação de Oswaldo Chateaubriand, este texto de Arno Viero é também surpreendentemente maduro. O autor analisa de maneira incisiva e original o desenvolvimento da geometria axiomática de sua origem com Euclides ao formalismo do século XX. Infelizmente, Arno nos deixou pela mão de um assassino, que nos privou não apenas da convivência com o autor e amigo, mas de trabalhos futuros cuja qualidade este trabalho afiançava de antemão. Os Editores
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Introdução A criação do método axiomático pode ser considerada uma das maiores contribuições dos gregos à civilização ocidental. A descoberta de tal método teve um impacto profundo sobre todo o desenvolvimento posterior tanto da ciência como da filosofia. Segundo Aristóteles, o arranjo axiomático era o ideal ao qual toda disciplina científica deveria necessariamente se adequar. Esta foi uma concepção que, durante séculos, influenciou de uma forma decisiva toda discussão da natureza e do significado do conhecimento em geral. Apesar de o método axiomático ter sido estabelecido neste contexto mais amplo, no início, o seu desenvolvimento efetivo esteve restrito ao âmbito da matemática. É nesta área que encontramos a obra que, durante séculos, foi identificada como o próprio paradigma da axiomática. Os Elementos de Euclides é um dos exemplos mais impressionantes da eficácia e do alcance capazes de serem obtidos através da utilização deste método. A obra de Euclides pode ser considerada uma das mais importantes contribuições feitas à matemática em todos os tempos. O impacto da sistematização euclidiana teve repercussões que transcenderam o domínio da matemática. Basta lembrarmos que no século XVII Espinosa adotou esse modelo para escrever a Ética, e Isaac Newton escrevia a sua grande obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de acordo com as diretrizes do método axiomático. A revolução causada pelo trabalho de Newton é uma das mais importantes na história do pensamento humano e parte deste impacto se deveu à adoção da postura axiomática que permitiu uma sistematização notável do corpo dos enunciados que constituía o conhecimento físico da época.
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Introdução
No início do século XIX se destacavam duas axiomatizações que encarnavam o próprio ideal do conhecimento científico: a da geometria, desenvolvida por Euclides, e a da física, realizada por Newton. É importante, neste momento, assinalar alguns fatos significativos. Apesar do método axiomático ter tido uma influência notável enquanto ideal ao qual todo conhecimento teórico deveria se adequar, a sua aplicação efetiva se restringiu basicamente à matemática e à física. A utilização da axiomática fora do âmbito das ciências ‘exatas’ parecia envolver dificuldades consideráveis. Aliás, o emprego deste método dentro da própria matemática havia sido limitado visto que no início do século XIX a única disciplina que era estudada nos moldes da axiomática era a geometria. Contudo, se examinarmos as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, constataremos que este estado de coisas se alterou de forma considerável. Diversos investigadores, muitas vezes com motivações conceituais distintas, conseguiram implementar este método em diversos domínios com um grau de eficiência notável. Peano axiomatizou a aritmética; Frege, de uma forma brilhante, aplicou tal método à lógica, algo mais ou menos análogo havia sido feito anteriormente por Aristóteles, porém, de uma maneira mais rudimentar e limitada. Zermelo, no início do século, axiomatizou a teoria dos conjuntos. Em 1933, Kolmogorov, no livro Os Fundamentos da Teoria da Probabilidade, axiomatizou o cálculo de probabilidades, com extrema engenhosidade. Bourbaki utilizou de forma sistemática o método axiomático em suas investigações através de seu projeto de unificação da matemática com o recurso a estruturas abstratas. Fora do âmbito da lógica e da matemática, diversas aplicações foram realizadas. Basta citarmos a axiomatização da mecânica por Hamel, da teoria da relatividade especial por Carathéodory e de partes da
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Introdução
biologia por Woodger, para percebermos a mudança em torno da situação anteriormente referida. A figura chave de todo o desenvolvimento contemporâneo da axiomática foi o matemático alemão David Hilbert. A sua obra Os Fundamentos da Geometria se tornou o centro do processo de transformações sofridas pelo método axiomático nos últimos cem anos. Hilbert foi o grande divulgador da postura axiomática e podemos afirmar que, em parte devido à sua influência, este método foi utilizado em larga escala como em nenhuma outra época da história. Na verdade, Hilbert foi o principal artífice da confluência de duas propostas conceituais que acabaram por alterar profundamente o entendimento da axiomática e é responsável pela forma que o método axiomático é utilizado ainda hoje. A nova concepção da axiomática que surgiu desse contexto teve repercussões profundas não somente na área das ciências formais, como também no âmbito da própria filosofia. O positivismo lógico, um dos principais movimentos filosóficos do século passado, adotou a postura segundo a qual o emprego de sistemas formalizados de acordo com os preceitos da ‘construção lógica’ seria o método filosófico por excelência. Portanto, o estudo das motivações que levaram ao surgimento dos sistemas axiomáticos formalizados, bem como a forma de concebê-los, está longe de interessar somente as pessoas ligadas às áreas da matemática e da lógica. A proposta central deste livro é examinar minuciosamente a concepção, segundo a qual, através de sua caracterização sintática o método axiomático teria alcançado a sua forma mais completa e perfeita. O meu principal objetivo é mostrar que, do ponto de vista conceitual, essa concepção é errônea e serviu somente para obliterar o verdadeiro significado tanto do método axiomático como do forma11
Introdução
lismo. Contudo, para que isso seja possível, será necessária a introdução de uma série de categorias que nos permitam identificar e avaliar os diversos elementos envolvidos nessa questão. O núcleo da minha proposta é examinar as circunstâncias específicas que levaram, dentro do programa formalista, ao surgimento desta concepção. Entretanto, no meu entender, o programa de Hilbert deve ser examinado dentro de uma perspectiva mais ampla que acabou sendo resgatada por ele mesmo, em diversos aspectos, na sua proposta de fundamentação da matemática. Este contexto mais amplo é formado por aquilo que denominarei de ‘movimento de desinterpretação’. No final do século XIX, a partir de diversos desenvolvimentos de áreas distintas da matemática, se criou um consenso de que o método axiomático deveria sofrer mudanças radicais. Isso conduziu ao advento daquilo que hoje em dia é conhecido como sendo a axiomática formal. Portanto, uma das ideias centrais deste livro é mostrar a maneira que Hilbert se enquadrou em tal movimento e como ele, através do recurso à formalização, complementou e deu um impulso decisivo a essa nova concepção da axiomática. Esta problemática nos remete diretamente às circunstâncias e os motivos que levaram ao advento da axiomática formal. O estudo desta concepção será realizado no capítulo 1 que está dividido em duas partes. A primeira delas terá por objetivo a caracterização daquilo que denominarei de ‘axiomática clássica’. A partir do exame da obra de Euclides espero mostrar que, contrariamente ao que se pensa ainda hoje, a tarefa de entender a função e a natureza dos diversos elementos associados ao método axiomático foi, desde o seu início, complexa e difícil.
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Introdução
Na segunda parte do primeiro capítulo, mostrarei de que maneira o movimento de desinterpretação se contrapôs à concepção clássica e como isto resultou a axiomática formal. No capítulo 2, examinarei de que forma Hilbert adotou os princípios desta nova concepção no seu trabalho de fundamentação da geometria e quais foram as consequências que esta postura teve para o desenvolvimento ulterior da axiomática. Também pretendo mostrar o real significado da polêmica entre Frege e Hilbert em torno de Os Fundamentos da Geometria que só pode ser apreendido dentro desse contexto maior de transformações do método axiomático. O capítulo 3 tratará da caracterização de uma série de pressupostos do programa formalista e as suas relações com diversos aspectos do movimento de desinterpretação. Neste momento será possível perceber de que maneira, através do advento dos sistemas axiomáticos formalizados, todo o conjunto de transformações pelo qual passou a axiomática chegava ao seu ápice. A associação entre método axiomático e formalismo foi estabelecida em circunstâncias específicas e é somente a partir deste contexto que é possível explicar a postura adotada em relação aos sistemas formalizados desde então. Uma vez realizado o exame das motivações que conduziram à concepção sintática do método axiomático, tentarei mostrar em duas etapas como as características atribuídas ao formalismo não são justificáveis. A primeira delas será apresentada no capítulo 4, no qual, mostrarei como as várias pretensões associadas aos sistemas axiomáticos formalizados são injustificáveis a partir do contexto específico do programa formalista de fundamentação. A segunda etapa será tratada no último capítulo, no qual, reexaminarei o contexto que levou, no final do século XIX, ao advento da axiomática formal. Em um primeiro momento, analisarei as várias motivações que estavam subjacentes ao movimento de desinter13
Introdução
pretação e de que forma tanto a interpretação dada a determinados desenvolvimentos matemáticos quanto à solução adotada foram insatisfatórias. Logo em seguida, discutirei a noção de prova formal para indicar como devemos entender o método axiomático, pois ficará claro a partir da seção 1.2, que ela desempenhou um papel central em toda essa problemática. Também, procurarei mostrar a relação que é possível estabelecer entre a axiomática e o formalismo, a partir desta nova perspectiva, e apontar, no meu entender, o verdadeiro significado da adoção de uma perspectiva puramente sintática.
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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e
Capítulo 1
O Advento da Axiomática Formal 1.1. A axiomática clássica: Aristóteles, Euclides e Pascal A matemática é uma disciplina cujas origens se confundem com o surgimento das civilizações mais antigas. O volume de resultados matemáticos obtidos pelos hindus, egípcios e babilônios nos remete a uma prática desenvolvida que, na maioria das vezes, estabelecia resultados de uma sofisticação considerável. Contudo, os estudiosos das origens e da história da matemática são unânimes em afirmar que certas características desta disciplina, consideradas hoje como elementos constitutivos da prática matemática, estavam ausentes nesse período da história. A concepção segundo a qual a matemática é uma ciência essencialmente demonstrativa teve sua origem na Grécia antiga e influenciou, decisivamente, todo o desenvolvimento ulterior desta disciplina. Os matemáticos gregos foram os primeiros a utilizar procedimentos dedutivos para a obtenção e justificação de seus resultados. O recurso à demonstração como elemento indispensável na aquisição do conhecimento matemático foi mais uma contribuição dos gregos para a civilização ocidental. Os motivos que teriam levado à introdução de tal procedimento, bem como o que se esperava obter através dele, são assuntos que, ainda hoje, ocupam os investigadores da história da matemática. Contudo, é possível constatar que a prática demonstrativa dos matemáticos gregos do século V a. C. lhes permitiu a obtenção de resultados sofisticados. Assim, por exemplo, Hipócrates de Chio, em 430 a. C. aproximadamente, teria obtido um importante teorema a respeito de áreas de círculos, o que 15
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
lhe permitiu estabelecer, pela primeira vez na história da matemática, a quadratura de uma área curvilínea. É, justamente, no contexto de uma prática matemática desenvolvida que se utiliza de raciocínios dedutivos que se dá a introdução do método axiomático. No século IV a.C., Euclides utilizou no livro Os Elementos, pela primeira vez, o método axiomático na exposição e desenvolvimento de uma disciplina matemática, de uma forma sistemática. Esta obra foi considerada, durante séculos, como o próprio paradigma de investigação científica e acabou por influenciar o desenvolvimento ulterior de outras disciplinas além da matemática, inclusive a própria filosofia. O conteúdo da obra de Euclides chegou quase intacto até nós, o que nos permitiu uma avaliação precisa do gênio deste matemático grego. Contudo, alguns fatos ligados a Os Elementos permanecem obscuros e são, ainda hoje, objeto de discussão e investigação. Um dos questionamentos em torno desta obra seria o motivo pelo qual, em um determinado momento, os gregos sentiram a necessidade de uma apresentação axiomática da geometria. Outra questão seria a da origem do próprio método utilizado e da sua relação com a matemática grega preexistente. No artigo “Truth and Proof”, Tarski conjectura que a motivação básica que teria levado os gregos a utilizarem tal método seria uma necessidade crescente de restringir o recurso à intuição na prática matemática. Apesar da possibilidade deste fato ter desempenhado alguma influência na adoção do método axiomático, é inadequado considerá-lo como a única explicação, ou mesmo, como elemento determinante de tal processo. A restrição do recurso à intuição e, eventualmente, a sua supressão é uma característica aplicável a uma certa concepção da axiomática que diverge, consideravelmente, daquilo que conhecemos hoje da concepção grega de tal método. Sem dúvida que respostas a estas
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
questões podem ser de extrema valia para o nosso entendimento a respeito da natureza e do significado das diversas axiomatizações. De qualquer forma, o princípio que norteou Euclides na apresentação axiomática da geometria é, basicamente, o mesmo utilizado hoje em dia na axiomatização das mais diversas disciplinas matemáticas, inclusive a lógica. A ideia básica da axiomatização é a de organizar os enunciados e os conceitos, relativos a um domínio qualquer do conhecimento, de acordo com as conexões de demonstrabilidade e definibilidade. Assim, algumas sentenças ou enunciados são admitidos na base do sistema. Estes enunciados, denominados ‘axiomas’ ou ‘postulados’, são aceitos sem recurso à demonstração. Todos os demais enunciados obtidos a partir destes, através de determinados procedimentos, são os teoremas da disciplina em questão. No caso da relação de definibilidade, ocorre algo análogo. Na base desta relação temos o que comumente se denomina de ‘termos primitivos’, todos os demais a serem utilizados devem ser definidos a partir deles. Os Elementos de Euclides nada mais é do que a implementação destes princípios a um domínio específico da matemática com um tal nível de eficiência e sofisticação a ponto de, durante séculos, ser considerado o modelo de rigor a ser obtido nas mais diversas áreas da matemática. Os Elementos é composto por treze livros, sendo que, ao contrário do que se pensa, esta obra não trata exclusivamente de questões geométricas e, mesmo no caso da geometria, seu escopo vai além da geometria plana. Assim, por exemplo, nos livros II e VII temos a obtenção de importantes resultados relativos à álgebra geométrica elementar e à teoria dos números, respectivamente. Na proposição 4 do livro II, Euclides demonstra o que seria, em linguagem moderna, a igualdade entre o quadrado da soma de dois números com a soma dos quadrados dos dois números, adicionados ao dobro 17
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
de seu produto. As proposições 12 e 13 deste mesmo livro, por exemplo, não são nada além de formulações geométricas que conhecemos hoje como as leis dos cossenos para triângulos planos. No livro VII, inicia com a demonstração do algoritmo que nos permite achar o máximo divisor comum de dois números dados, um importante resultado na teoria dos números. No livro X, estuda diversas propriedades e relações de equivalentes geométricos de números expressos por radicais quadráticos e, com isto, acaba tratando de diversas questões ligadas aos irracionais. E, finalmente, no livro XIII, Euclides realiza um minucioso estudo dos cinco sólidos regulares. Os elementos básicos da estrutura formal da obra de Euclides são compostos por definições (horoi), cinco postulados (aitemata) e cinco noções comuns (konai ennoiai). O livro I inicia listando vinte e três definições, entre as quais, encontramos enunciados do tipo ‘um ponto é aquilo que não possui partes’; ‘uma linha é um comprimento sem largura’; ‘linhas retas paralelas são linhas que, estando no mesmo plano e sendo produzidas indefinidamente em ambas as direções, não encontram uma a outra em nenhuma das direções’; etc. Definições adicionais são fornecidas, no decorrer da obra, no início dos livros II, III, IV, V, VI, VII e X. Logo a seguir Euclides nos fornece a lista dos postulados: 1. Uma linha reta pode ser traçada de um ponto para outro qualquer. 2. Qualquer segmento finito de reta pode ser prolongado indefinidamente para constituir uma reta. 3. Dados um ponto e uma distância qualquer, podemos traçar um círculo de centro naquele ponto e raio igual à dada distância.
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
4. Todos os ângulos retos são iguais. 5. Se uma linha reta cortar outras duas retas de modo que a soma dos dois ângulos internos de um mesmo lado seja menor do que dois ângulos retos, então, as duas retas, quando prolongadas indefinidamente, se encontram do mesmo lado em que estão os ângulos menores que os ângulos retos. Dando prosseguimento, ele apresenta a lista das noções comuns: 1. Coisas que são iguais a uma mesma coisa são também iguais entre si. 2. Se iguais são somados a iguais, os totais são iguais. 3. Se iguais são subtraídos de iguais, os restos são iguais. 4. Coisas que coincidem com a outra são iguais uma a outra. 5. O todo é maior que a parte. Esta é a base a partir da qual são geradas todas as demais proposições geométricas obtidas em Os Elementos. Contudo, as proposições estabelecidas a partir destas suposições iniciais são de dois tipos distintos: aquelas que descrevem uma tarefa são denominadas ‘problemas’ (problemata) e, aquelas que expressam uma asserção são denominadas ‘teoremas’ (theoremata). Assim, por exemplo, quando pedimos para determinar o centro de um círculo qualquer, estamos enunciando um problema, ao passo que, ao afirmarmos que o triângulo isósceles possui os ângulos da base iguais, estamos tratando de um teorema. Esta diferença é cuidadosamente indicada por Euclides no final de cada demonstração onde se lê para os teoremas ‘o que era requerido provar’ e, no caso dos problemas, ‘o que era requerido fazer’. Na verdade, um rápido exame nos indica que o primeiro teo19
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
rema do livro I de Euclides é a proposição número 4. Quanto ao aspecto lógico das demonstrações de Euclides, nada nos indica que ele tivesse reconhecido, explicitamente, a necessidade de procedimentos puramente formais nas suas demonstrações. No artigo “Greek Mathematics and Greek Logic”, Mueller tenta mostrar que Euclides não teria nenhum conhecimento da silogística e sequer estaria ciente da ideia de que a validade de um argumento dependeria exclusivamente de sua forma, absolutamente central em lógica. A suposição de que o conteúdo matemático da obra de Euclides tenha chegado quase intacto às nossas mãos é razoável e não tem suscitado grandes debates. O que não é nada claro, contudo, é qual seria o significado atribuído por Euclides à utilização do método axiomático na sua investigação. Em lugar algum, o autor de Os Elementos nos deixou um comentário no qual esclarecesse os termos ‘definição’, ‘postulado’, ‘noção comum’, ‘demonstração’, entre outros. Ao contrário do que se pensa, a tarefa de entender a natureza e a função de cada um destes elementos na apresentação axiomática de uma teoria não é fácil. Os debates em torno do método axiomático que precederam à obra de Euclides, bem como os ocorridos posteriormente à sua sistematização da geometria, podem ser encontrados nos Comentários sobre o Primeiro Livro dos Elementos de Euclides, de Proclus. Neste livro, Proclus nos relata em detalhes as divergências de opiniões entre filósofos e matemáticos na tentativa de entender o significado dos diversos elementos constituintes do método axiomático. O próprio Proclus pretende nos fornecer subsídios para a compreensão de tais elementos e, não raras vezes, as suas explicações são confusas e até contraditórias. O que é interessante notar é que o trabalho de Euclides acabou gerando um intenso debate que já se encontrava presente nos meios filosóficos e matemáticos anteriores à elaboração de sua obra, revelando a dificuldade encontrada pelos 20
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
gregos na tentativa de entender um método que envolve noções tão sofisticadas do ponto de vista conceitual. Contemporaneamente, o advento do formalismo introduziu novos elementos que acabaram por dificultar ainda mais a compreensão do conceito de método axiomático, assim como, conduziu a concepções errôneas do propósito e do alcance da utilização de métodos formais. Obviamente, a opção de recorrer aos Segundos Analíticos de Aristóteles para tentar entender o significado do trabalho de Euclides é natural e, até certo ponto, justificada porque encontramos, pela primeira vez, uma discussão minuciosa e cuidadosa a respeito do método axiomático. O grande número de exemplos extraídos da matemática, utilizados nesta obra, nos revela a familiaridade de Aristóteles com o trabalho dos matemáticos gregos que antecederam Euclides. Portanto, a prática matemática grega desempenhou um papel fundamental na concepção de método dedutivo desenvolvida nos Segundos Analíticos. Contudo, a teoria aristotélica é obscura em alguns pontos e nada nos garante que haja uma correspondência estrita entre a axiomatização euclidiana e a teoria aristotélica. O entendimento da estrutura conceitual de Os Elementos através das ideias de Aristóteles é esclarecedor, mas deve ser realizado com cuidado. De qualquer forma, a concepção clássica do método axiomático, que influenciou todo o desenvolvimento ulterior da axiomática, surgiu a partir de um contexto no qual os nomes de Euclides e Aristóteles estão indissoluvelmente ligados. A partir do relato de Proclus, podemos perceber a problematização de diversas noções relativas à axiomatização euclidiana e à utilização de ideias aristotélicas na tentativa de esclarecer o significado dos diversos procedimentos utilizados por Euclides. Como entender as diversas definições estabelecidas no início do livro I? Qual é, exatamente, a diferença entre postulados e axiomas? A dis21
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
cussão acerca da distinção destas noções envolve pelo menos dois tipos de problemas. O primeiro deles é saber que tipo de característica um enunciado deve possuir para ser caracterizado por uma destas noções. O outro se refere ao tipo de resultado obtido a partir dos axiomas. Alguns defendiam que a partir dos postulados seria possível somente a obtenção de determinados objetos. Ao contrário das demonstrações que teriam os axiomas como ponto de partida e por finalidade a obtenção de resultados relacionados a certas propriedades relativas aos elementos pertencentes ao domínio da axiomática. No primeiro caso, teríamos os problemas e no segundo, os teoremas. Entretanto, qual destes procedimentos é prioritário às construções ou às provas? Estas e outras questões revelam a falta de unanimidade por parte dos matemáticos gregos na tentativa de entender o trabalho de Euclides. Apesar das divergências de opiniões relatadas por Proclus, é possível perceber um certo consenso em torno de algumas noções da axiomática. Portanto, existe a preocupação de distinguir, por um lado, os princípios e, por outro, as consequências estabelecidas a partir destes. No que diz respeito aos princípios, as definições são cuidadosamente distinguidas dos axiomas e postulados. Isto fica claro, inclusive, através da distribuição dos temas na obra de Proclus. As definições são tratadas em uma parte do livro, ficando a discussão acerca da natureza dos axiomas e postulados para a parte seguinte. Além disto, tanto os axiomas como os postulados são reconhecidos como o ponto de partida através do qual são obtidas as demais proposições. O fato de que a demonstração, em última análise, pressupõe algo não demonstrado parece ser um ponto de consenso em relação à axiomática grega. Toda discussão parte do princípio que não é possível demonstrar tudo. A divergência se dá quanto àquilo que deve ou não ser provado. Esta questão nos remete à 22
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
concepção acerca da natureza da prova subjacente a estas discussões. A ideia básica referente ao conceito de demonstração dentro deste contexto é a de um procedimento, segundo o qual, a partir da verdade de certos enunciados seria possível estabelecer a verdade de outro. Este processo, contudo, deveria obedecer a certos critérios de tal forma que o estabelecimento da verdade fosse sempre acompanhado de um avanço no seu entendimento. A concepção segundo a qual a demonstração seria um instrumento de produção de conhecimento e entendimento é uma das noções centrais dos Segundos Analíticos: Se há também outro tipo de entendimento é uma questão que será tratada posteriormente; mas, agora, afirmamos que o conhecimento se dá através da demonstração. Por demonstração entendo uma dedução científica; e, por científica entendo que seja uma demonstração em virtude da qual, por tê-la, entendemos algo. ( I 2, 71b 15-20)
Dessa forma, uma demonstração seria uma dedução através da qual seria possível a obtenção de conhecimento. Contudo, para que uma dedução fosse ‘científica’, ela deveria possuir certas características, a saber, as suas premissas deveriam ser verdadeiras, primitivas, imediatas, mais familiares e anteriores à conclusão por se constituírem em uma explicação desta. Portanto, segundo Aristóteles, a demonstração seria o instrumento por excelência da investigação científica e a apresentação axiomática como um ideal a que toda ciência deveria se adequar. Os ecos desta concepção podem ser detectados nos comentários de Proclus a respeito do trabalho de Euclides:
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal Pois os problemas declaram que algo deve ser feito, os teoremas, que alguma verdade deve ser descoberta e demonstrada. (Proclus 1970, p. 164) Consequentemente, conhecimento claro sem demonstração e suposição sem construção distinguem axiomas e postulados, exatamente, na mesma medida em que conhecer a partir de demonstrações e aceitar conclusões com a ajuda de construções diferencia os teoremas dos problemas. (Proclus 1970, p. 140 e 141) Os princípios devem sempre ser superiores a suas consequências, ao serem simples, indemonstráveis e evidentes por si mesmos. (Proclus 1970, p. 141)
Portanto, demonstrar é estabelecer a verdade de uma proposição a partir da verdade de outras. Sob o risco de incorrermos em um círculo vicioso ou em um regresso ao infinito, devemos supor a existência de certos princípios cujo conhecimento não é fornecido através do procedimento demonstrativo. Na base da relação de demonstrabilidade estariam, necessariamente, enunciados que, além de serem verdadeiros, deveriam possuir uma inteligibilidade superior a dos demais enunciados. Esta é uma ideia essencial para uma concepção que considera a demonstração como um instrumento de obtenção de conhecimento. Na verdade, a demonstração se justificaria, em parte, como um procedimento capaz de nos auxiliar no reconhecimento da verdade de proposições que não contassem com a clareza e a inteligibilidade dos axiomas e postulados. Se uma tal construção é feita facilmente ou com dificuldade, ou se uma demonstração se dá através de um número maior ou menor de termos médios, depende da aptidão daqueles que usam estes métodos; mas que, de qualquer modo, uma demonstração ou uma construção é necessária resulta do fato de que faltam às conclusões a clareza dos postulados e dos axiomas. Ambos, tanto postulados quanto
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal axiomas, devem ser simples e fáceis de compreender (...). Assim, um postulado possui o mesmo caráter geral que um axioma, mas, diferindo deste pela maneira descrita. Pois, cada um deles é um ponto de partida indemonstrável, um de uma forma, outro de outra, como havíamos explicado. (Proclus 1970, p. 141 e 142)
Obviamente, algumas dificuldades surgem quando se trata de caracterizar no que consistiria exatamente esta maior inteligibilidade das proposições básicas da axiomática. Proclus, em algumas passagens de sua obra, se refere a esta propriedade dos princípios como uma certa clareza capaz de ser facilmente detectada. Ele utiliza o enunciado ‘o fogo é quente’ com o propósito de ilustrar o tipo de evidência que seria própria dos axiomas, sendo que, o fato de alguém ser incapaz de apreender tal verdade somente seria possível na medida em que esta pessoa não possuísse órgãos sensoriais ou que estes não tivessem sido suficientemente estimulados. Contudo, apesar deste tipo de explicação ser plausível, não é de todo convincente. A prova disso está no fato de que, através do relato de Proclus, podemos perceber a falta de unanimidade em torno dos princípios cujo conhecimento dispensaria o recurso à demonstração. Assim, Proclus repreende severamente Apolônio, um dos maiores matemáticos gregos da antiguidade, por tentar demonstrar um dos enunciados que Euclides classificava no grupo das noções comuns. A ideia é que, de alguma forma, Apolônio não teria percebido que as coisas indemonstráveis diferem, em natureza, daquelas que são demonstráveis. Para não discorrer inutilmente sobre este assunto, devemos apresentar todos os axiomas como imediatos e auto-evidentes, conhecidos unicamente a partir deles mesmos e confiáveis. Aquele que acrescenta uma prova a coisas já abundantemente evidentes não confirma sua verdade, mas enfraquece a clareza que elas possuem quando as aceitamos sem instrução. (Proclus 1970, p. 153)
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
Nesta questão acerca da natureza das proposições básicas da axiomática é interessante examinar a polêmica criada em torno do quinto postulado. No livro I, Euclides inicia a sua investigação a respeito das propriedades dos quadriláteros, após ter considerado diversos problemas relativos à construção, igualdade e desigualdades de triângulos. Em um primeiro momento, Euclides trata de problemas relativos aos paralelogramos, incluindo considerações a respeito dos trapézios. Tendo em vista que, por razões óbvias, é impossível fazer uma teoria a respeito dos paralelogramos sem uma correspondente teoria das paralelas. É, justamente, na construção desta teoria, na proposição 29 do livro I, que Euclides utiliza pela primeira vez o quinto postulado na demonstração de uma proposição. Desde seu início, a teoria das paralelas foi objeto de uma intensa polêmica entre os matemáticos gregos. O fato de Euclides ter assumido um enunciado desta teoria como indemonstrável na sua axiomatização da geometria gerou uma intensa discussão. Basicamente, os motivos que levaram a esta polêmica são dois: um de natureza especificamente matemática e outro de natureza conceitual. Do ponto de vista matemático, a adoção de um enunciado indemonstrável era problemática na medida em que era do conhecimento dos matemáticos da época a existência de linhas que convergiam mais e mais, uma em relação à outra, sem jamais se interceptarem em qualquer região finita do plano. Por outro lado, do ponto de vista conceitual, a assimetria do postulado das paralelas em relação aos demais foi um fato que, imediatamente, chamou a atenção dos matemáticos gregos. A sofisticação contentual do último postulado de Euclides contrasta com o caráter simples dos demais postulados. Contudo, existiam evidências de que o postulado era verdadeiro. Proclus, por exemplo, invoca o fato de que, na proposição 17 do livro I, Euclides havia demonstrado a conversa do postulado em 26
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questão. Este fato deixa claro que aquilo que estava em jogo não era a verdade da proposição em questão, mas sim, se o conhecimento de seu conteúdo se daria ou não através da demonstração. Desta forma, a partir de um determinado momento, tendo em vista a simplicidade dos demais postulados, é possível perceber o consenso criado em torno do fato de que o quinto postulado deveria ser objeto de demonstração. Isto fica bem caracterizado no comentário de Proclus a respeito desta proposição utilizada por Euclides: Estas considerações tornam claro que deveríamos procurar uma prova do teorema em questão e que falta a ele o caráter especial de um postulado. Mas, como ele deve ser provado e com quais argumentos às objeções a esta proposição podem ser respondidas, somente poderemos dizer quando o autor do livro Os Elementos estiver usando e mencionando esta proposição como óbvia. Neste momento, será necessário mostrar que seu caráter óbvio não aparece independentemente da demonstração, mas é transformado pela prova em matéria de conhecimento. (Proclus 1970, p. 151)
Assim, é possível perceber o grau de dificuldade que os gregos, sucessores de Euclides, tiveram na tentativa de compreender o significado e a função dos diversos elementos na axiomatização da geometria. O que é interessante notar é que, pouco a pouco, toda esta polêmica se cristalizou em torno de problemas de natureza matemática e a questão da demonstração do postulado das paralelas passou a ocupar o lugar central nessas investigações. No decorrer dos séculos, este problema ocupou a atenção dos matemáticos e, sem dúvida alguma, pouquíssimos enunciados, no âmbito da matemática, foram tão discutidos. O propósito básico sempre foi o de demonstrar o quinto postulado seja na sua formulação original ou através de substitutos que pareciam ser, sob diversos aspectos, mais 27
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adequados do que aquele adotado por Euclides. Nesse sentido, as propostas de Playfair, Wallis, Saccheri, Gauss, Legendre e muitos outros acabaram por sugerir interessantes substitutos para o postulado das paralelas e, ainda hoje, são adotados na maioria das obras que tratam deste tema. Entretanto, a discussão acerca da natureza conceitual dos diversos elementos da axiomática euclidiana, iniciada pelos antigos gregos, não recebeu a mesma atenção por parte dos filósofos e matemáticos. O que é possível perceber, claramente, já no século XVII, é a formação de uma concepção da axiomática que, ignorando certas dificuldades, tanto de natureza matemática como de natureza conceitual, alterava a concepção grega em pontos bastante básicos. Nesta época surge o livro de Pascal L’Esprit Géométrique et de L’Art de Persuader que exerceria uma influência decisiva no desenvolvimento ulterior do método axiomático. Na obra de Pascal, constatamos que certos elementos presentes na axiomática grega são suprimidos ou têm a sua ênfase alterada. A clássica distinção entre axiomas e postulados, por exemplo, desapareceu. O método axiomático, nas mãos de Pascal, se torna um método de persuasão por excelência e isto fica claro se examinarmos a sua concepção de demonstração. A demonstração, segundo Pascal, é um instrumento através do qual é possível convencer alguém de uma verdade já adquirida. O método dos geômetras seria eficiente neste propósito, na medida em que demonstrar uma proposição seria exibir um encadeamento de proposições tendo por base os axiomas, verdades perfeitamente claras e indubitáveis. Pois, na apreensão de tais verdades precisaríamos somente nos utilizar de uma ‘luz natural’ e as transições às proposições seguintes se dariam segundo regras tão naturais que se imporiam ao assentimento de qualquer um. Portanto, a demonstração seria um mecanismo através do qual a verdade não evidente de 28
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um enunciado seria reduzida à verdade de enunciados evidentes e inquestionáveis. Desta forma, dar o assentimento a proposições demonstradas não seria nada mais nada menos do que aceitar os axiomas e, este fato nos levaria à convicção da verdade da proposição demonstrada. Entretanto, a concepção esboçada no livro de Pascal concorda com as ideias centrais da axiomática grega. Assim, a distinção entre axiomas e definições é cuidadosamente observada. Os princípios da demonstração possuindo um maior grau de clareza se distinguem das consequências obtidas a partir destes. Aliás, a distinção entre estas duas classes de proposições, pela sua própria natureza, é que fornece sentido à demonstração enquanto instrumento de produção de convicção. Neste processo, a verdade ainda desempenha um papel central, porém, a ênfase agora é dada ao caráter de justificação da prova. Contudo, apesar dos acordos entre a concepção de Pascal e a dos gregos, é possível perceber a introdução de um elemento completamente estranho a toda discussão em torno do método axiomático tão bem relatada por Proclus. Na primeira seção de sua obra Pascal escreve: Este verdadeiro método que constituiria as demonstrações na mais alta excelência, se isto fosse possível de obter, consistiria em duas coisas principais: uma, não empregar nenhum termo cujo sentido não tenha sido explicado anteriormente de forma clara; outra, não assumir de antemão nenhuma proposição que não tenhamos demonstrado a partir de verdades já conhecidas: ou seja, em uma palavra, definir todos os termos e de provar todas as proposições. (Pascal 1954, p. 577)
Este ideal de tudo definir e de tudo provar é completamente estranho aos gregos. Tanto no caso da definição como no caso da prova existem pressuposições incapazes de serem justificadas a partir das relações que se originam delas. No caso da demonstração, 29
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isto é bastante claro por razões óbvias. A prova seria um instrumento de conhecimento na medida em que, entre outras coisas, ela partisse de princípios cuja inteligibilidade fosse maior que as suas consequências e que, devido a sua própria natureza, dispensassem o recurso à demonstração. O fato de não haver demonstração dos princípios, longe de ser uma deficiência do método, era uma exigência da própria noção de prova como um instrumento de conhecimento e entendimento. Neste sentido, a apreensão da verdade dos teoremas seria um fenômeno essencialmente parasitário ao entendimento dos axiomas e postulados. Com Pascal e sua ênfase na persuasão, o fato de não se poder provar e definir tudo passa a ser encarado como uma deficiência do método axiomático e sugere uma forte desconfiança em relação ao conhecimento não demonstrativo. Do mesmo modo, ao levar adiante nossas investigações chegamos, necessariamente, a palavras primitivas cuja definição não é possível e a princípios tão claros que para podermos constatar a sua correção basta um simples exame cuidadoso de tais verdades. Assim, parece que os homens se encontram, irremediavelmente, em uma certa impotência natural de tratar qualquer ciência de uma forma absolutamente completa. (Pascal 1954, p. 578 e 579)
Tal concepção, somada a fatos ocorridos posteriormente em diversos ramos da matemática, contribuiu para o surgimento de uma nova concepção do método axiomático que conduziu, em última análise, à sua formalização completa. A influência de Pascal no desenvolvimento moderno deste conceito foi bem maior do que pode parecer à primeira vista. Tarski, por exemplo, no seu livro Introducción a la Lógica y a la Metodologia de las Ciencias Deductivas, expõe no capítulo VI os princípios básicos daquilo que ele entende como sendo o método dedutivo. Em um artigo de autoria de Blok e 30
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Pigozzi, “Alfred Tarski’s Work on General Metamathematics”, há uma referência a este capítulo do livro de Tarski como aquilo que ele teria escrito de mais claro a respeito de assunto. De acordo com uma nota de pé de página, os autores do artigo chamam a atenção para o fato de que esta seria a opinião do próprio Tarski que, em diversas ocasiões, teria enfatizado a importância de sua abordagem justamente devido a seu caráter elementar. Os princípios que vamos estudar têm por objeto assegurar ao conhecimento adquirido em lógica e matemática, o maior grau possível de clareza e certeza. A partir deste ponto de vista seria ideal um procedimento que permitisse esclarecer o significado de cada expressão que aparecesse na ciência considerada e justificasse cada uma de suas asserções. (Tarski 1977 p. 149)
Tarski se refere ao livro de Pascal como a obra que estaria intimamente associada às ideias desenvolvidas por ele. É óbvio que ele reconhece imediatamente que tal ideal não é alcançável e passa a examinar os diversos elementos do método dedutivo. O que é significativo, contudo, é o fato do fundador da metodologia das ciências dedutivas, ao discutir os princípios básicos do método axiomático, nos remeter a Pascal e, em nenhum momento, fazer qualquer menção aos Segundos Analíticos. 1.2. A questão da desinterpretação A partir do início do século XIX, diversos fatores contribuíram para que, pouco a pouco, fosse se formando uma concepção segundo a qual o rigor que a matemática exigia seria possível somente se alterações drásticas fossem efetuadas nos princípios básicos que regiam a axiomática clássica. Sem dúvida alguma, a compreensão des31
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te fenômeno é de fundamental importância quando se trata de entender o significado da concepção sintática do método axiomático. A versão formalizada da axiomática pode ser entendida, em última análise, como uma tentativa de resolver certas questões colocadas pelo processo de desinterpretação, bem como, avançar no entendimento de certos elementos desconsiderados por esse movimento. A formalização completa da axiomática de Hilbert, tendo a crise dos fundamentos da matemática como pano de fundo, é o ponto terminal de todo um processo iniciado no século passado e que acabaria marcando, de forma definitiva, as concepções contemporâneas a respeito do método dedutivo e do próprio formalismo. A necessidade de se alterar a axiomática clássica surgiu, juntamente com uma nova concepção sobre a sua natureza, na tentativa de entender certos fenômenos matemáticos ocorridos no século XIX. Em geral se atribui ao surgimento das geometrias não-euclidianas um papel preponderante no surgimento de tal concepção. Apesar da descoberta de geometrias alternativas tenha contribuído decisivamente para esta mudança, outros fatores foram de importância capital para o surgimento da concepção formal da axiomática. O movimento de desinterpretação, que, em última análise, levou a uma concepção puramente sintática do método axiomático, é um fenômeno complexo, com raízes em diversos acontecimentos que alteraram a prática matemática a partir de então. Ao menos quatro fatores foram de importância decisiva para que tal mudança ocorresse: certos desenvolvimentos da álgebra; a ênfase em alguns elementos dada por um grupo de matemáticos na tentativa de obter uma fundamentação sólida para a análise; a retomada do interesse pela geometria projetiva e; finalmente, a descoberta de geometrias não-euclidianas por Gauss, Bolyai, Lobachevsky e Riemann. 32
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Na primeira metade do século XIX, o estudo da álgebra sofreu profundas mudanças graças ao trabalho de matemáticos ingleses, principalmente. Até então, a álgebra havia sido considerada apenas como uma aritmética simbolizada. Através do recurso a variáveis era possível o estabelecimento de fatos bastante gerais a respeito de uma dada classe de elementos. A grande descoberta realizada pelos algebristas ingleses foi a ideia de que, através do recurso à simbolização, seria possível a caracterização de certas propriedades que não deveriam ter sua aplicabilidade restrita a domínios numéricos específicos. Assim, a álgebra adquiriu um caráter não-contentual, sendo que, desta forma, o simbolismo passou a ter uma autonomia que permitiu a obtenção de resultados de grande generalidade. Neste contexto, Boole escreveu: Aqueles que estão familiarizados com o estado atual da teoria da Álgebra Simbólica estão conscientes que a validade dos processos de análise não depende da interpretação dos símbolos que são empregados, mas unicamente das leis de sua combinação. Cada sistema de interpretação que não afeta a verdade das relações supostas é igualmente admissível e é assim que o mesmo procedimento pode, sob um esquema de interpretação, representar a solução de uma questão sobre as propriedades dos números, sob outra, a solução de um problema geométrico e, sob uma terceira, a solução de um problema de dinâmica ou ótica. (Boole 1951, p. 3)
Assim, além do recurso às possíveis interpretações ser desnecessário no procedimento de verificação dos processos algébricos também acaba sendo um obstáculo na obtenção de certos resultados. A partir do momento em que se dissocia o simbolismo de sua interpretação natural, a liberdade de manipulação algébrica aumenta consideravelmente e é neste contexto que se dá o surgimento de ál33
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gebras não-comutativas que acabaram por conduzir a pesquisas abstratas, como foi o caso do desenvolvimento de uma álgebra de números hipercomplexos por Grassmann. No caso da análise, a preocupação era com o rigor. Até então, um grande número de conceitos básicos desta disciplina tinham sido utilizados sem uma preocupação de defini-los de forma exata. Já no início do século XIX, diversos matemáticos passaram a considerar tal situação inadmissível. A engenhosa construção de Weierstrass de uma curva contínua que não possuiria derivada em nenhum ponto pode ser tomada como exemplo da necessidade sentida na época de esclarecer certos conceitos básicos da análise. Tal exemplo teria levado Poincaré a escrever o artigo “Como pode a intuição nos enganar a este ponto?” publicado na coletânea Elements D´Histoire de Mathématiques (1969), organizada por Bourbaki. Assim, um dos traços característicos deste movimento é uma desconfiança crescente do recurso à intuição. Resultados que anteriormente eram aceitos sem prova passaram a ser demonstrados de forma rigorosa a partir de conceitos precisamente definidos. Dedekind afirma que tudo aquilo que é passível de demonstração não deve ser objeto de nossa crença sem uma prova rigorosa do enunciado em questão. Com isto, fatos até então considerados óbvios passaram a ser objeto de demonstração. Um exemplo típico disto é o teorema de Bolzano no qual, pela primeira vez, se sentiu necessidade de demonstrar um fato óbvio a respeito de funções contínuas. Contudo, matemáticos como Gauss se utilizaram deste resultado anteriormente sem qualquer necessidade de demonstrá-lo. A retomada do interesse pela geometria projetiva no início do século XIX foi outro elemento que desempenhou um papel de importância fundamental no surgimento da concepção formal da axiomática. A influência deste ramo da matemática no surgimento de 34
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uma nova concepção do método axiomático se deve a certas características intrínsecas da própria disciplina. A geometria projetiva pode ser definida como o conjunto de proposições que dizem respeito a certas propriedades das figuras geométricas que permanecem invariantes através de certas transformações projetivas arbitrárias. Muito cedo, os matemáticos que trabalhavam com esta disciplina perceberam as vantagens da introdução de certos elementos contra-intuitivos. Assim, por exemplo, a introdução de um ponto no infinito, definido como ponto de interseção de retas paralelas, tornou possível uma simetria notável entre os fatos estabelecidos a respeito de pontos e de linhas retas. Isto permitiu a formulação e utilização do chamado princípio de dualidade. Assim, dado um teorema qualquer, poderíamos intersubstituir uniformemente os termos ‘ponto’ e ‘reta’ e, com isto, obter um novo teorema denominado de dual do primeiro. O famoso teorema de Brianchon, por exemplo, que estabelece o fato de que as linhas que unem os vértices opostos de um hexágono circunscrito em uma circunferência se encontram em um ponto é o dual de outro famoso teorema desta disciplina, o teorema de Pascal. O impacto causado pela descoberta do princípio de dualidade foi imenso. Ainda hoje, esta proposição é considerada por vários matemáticos como um dos resultados mais elegantes obtidos em toda a matemática. A sua descoberta foi decisiva para o surgimento da axiomática formal. A unificação espantosa da disciplina e o alcance obtido através da introdução de elementos ideais acabaram por sugerir alterações profundas nas concepções a respeito dos elementos básicos do método axiomático. Assim, os axiomas sofrem um esvaziamento natural na medida em que é possível obter enunciados através do procedimento descrito acima. Afinal, se é possível intersubstituir os termos ‘ponto’ e ‘reta’ o significado pré-teórico de 35
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tais noções é irrelevante e, de alguma forma, o que é importante para as demonstrações já deve estar presente nos axiomas. Além disto, o princípio de dualidade sugeriu uma economia demonstrativa considerável, uma vez que os matemáticos perceberam que ao provar um teorema bastava dualizá-lo para obter outro teorema. Desta forma, parece natural supor que na demonstração de um teorema, o esvaziamento do conteúdo significativo das proposições seria uma estratégia interessante na obtenção de novos resultados. Outro fato que explica a importância da geometria projetiva no surgimento da axiomática formal foi a descoberta de certos tipos de pressuposições que, até então, haviam passado despercebidos pelos geômetras. As propriedades estudadas pela geometria projetiva tratam da colinearidade de pontos e da concorrência de retas, da relação de ‘cross-ratio’ e do princípio de dualidade. Certas propriedades que dizem respeito à relação entre os pontos de uma reta e da mútua relação entre pontos e linhas retas no plano haviam sido utilizadas sem uma formulação explícita. Foi no contexto da geometria projetiva, por exemplo, que pela primeira vez houve a necessidade da formulação dos axiomas de ordem utilizados posteriormente por Hilbert no livro The Foundations of Geometry para definir a noção de ‘estar entre’. É claro que a descoberta de que seria possível a obtenção de geometrias alternativas através da substituição do postulado das paralelas teve repercussões profundas na concepção do método axiomático. Para alguns, a descoberta de tal fato atestava mais uma vez o fracasso da intuição na constituição do conhecimento matemático e, a partir de então, não seria possível atribuir qualquer significado ao conceito de evidência. Em 1900, Pieri escreveu o seguinte se referindo ao postulado das paralelas:
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal Como poderíamos explicar a evidência intuitiva dos postulados das chamadas geometrias não-euclidianas após termos considerado o Axioma XII, sobre as paralelas, evidente ou vice-versa? (Pieri, in: Torretti 1978, p. 224).
É interessante notar quão estranha é a decepção de Pieri no que diz respeito à proposição considerada. Será que, durante séculos, os mais brilhantes matemáticos tentaram obter, sem sucesso, uma demonstração do quinto postulado porque o achavam evidente? Outro fato importante ligado ao advento das geometrias nãoeuclidianas é que a partir da constituição de tais geometrias surgiu a necessidade de entender exatamente em que pontos estas novas construções se distinguiam da axiomatização de Euclides. Um passo necessário neste sentido é a obtenção de uma formulação mais completa possível da geometria euclidiana. Qual não foi a surpresa para alguns ao constatar que aquilo que teria sido considerado o exemplo mais acabado da apresentação dedutiva de uma teoria matemática era, sob diversos aspectos, insuficiente. O impacto de tal descoberta foi tão forte que faria com que Russell, décadas mais tarde, escrevesse: Os rígidos métodos empregados por geômetras modernos destituíram Euclides de seu pináculo de correção (...) Suas oito primeiras proposições envolvem erros incontáveis. (Russell 1877, p. 102)
É claro que algumas lacunas presentes na axiomatização de Euclides haviam sido percebidas pelos seus mais antigos comentadores. A descoberta de que certas demonstrações contavam com pressuposições adicionais e o fato de que várias definições fornecidas por Euclides são insuficientes não é, em absoluto, uma descoberta do século XIX. Na verdade, o que aconteceu foi a convergência de 37
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uma série de fatores que, justificadamente ou não, colocaram em evidência certos problemas na axiomatização de Euclides. É interessante notar que, a partir de então, se criou uma concepção de rigor no tratamento axiomático de uma teoria que somente seria alcançável através de mudanças radicais nos elementos básicos do método axiomático. Em um determinado contexto, a percepção de algumas deficiências na obra de Euclides levou a uma nova concepção da axiomática e não à complementação do programa clássico. Esta nova concepção surge a partir do tratamento de questões matemáticas específicas e obtém a adesão de importantes matemáticos da época. Contudo, esta alteração não é clara do ponto de vista conceitual e o que se percebe é a ausência completa de qualquer justificação deste tipo. Na verdade, certas questões cruciais a respeito desta nova concepção do método axiomático serão examinadas somente com a introdução do formalismo feita por Hilbert. Consideremos a proposição 21 do livro I de Os Elementos de Euclides: Se em um lado de um triângulo, de suas extremidades, se constroem duas linhas retas que se encontram dentro do triângulo, as linhas retas assim construídas serão menores do que os dois lados restantes do triângulo, mas irão conter um ângulo maior.
Se examinarmos com cuidado a demonstração de Euclides constataremos que, logo no início da prova, é necessária uma manobra cuja justificativa não é apresentada em momento algum. A demonstração da proposição em questão é obtida com o prolongamento de uma das duas linhas que se interceptam no interior do triângulo de tal forma que ela encontre um dos outros dois lados do triângulo. Com isto, o triângulo original é decomposto em três triângulos 38
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
menores através dos quais é possível se obter o resultado desejado com o auxílio de resultados estabelecidos anteriormente nas proposições 16 e 20 do livro I. Entretanto, nem todos os expedientes utilizados por Euclides nesta demonstração estão assegurados pelos postulados e teoremas. Na verdade, a prova faz uma pressuposição substancial a respeito de um determinado ponto. Se prolongarmos um dos segmentos das retas que se encontram no interior do triângulo, a partir de seu ponto de interseção, o que nos assegura que a reta assim prolongada interceptará um dos lados do triângulo em um ponto que pertence a este lado e está entre os pontos que constituem os outros dois vértices do triângulo maior? Em outras palavras, o que nos garante que uma vez que uma reta penetre em um triângulo através de um de seus vértices, ela deverá necessariamente alcançar o lado oposto quando suficientemente prolongada? Na sistematização euclidiana, tal suposição é feita sem nenhuma justificativa que nos assegure de sua legitimidade. Este tipo de suposição envolve os chamados ‘axiomas de ordem’ que foram formulados pela primeira vez por Moritz Pasch dentro do contexto de investigação da geometria projetiva, no século XIX. Juntamente com este tipo de problema presente em diversas demonstrações obtidas por Euclides, a atenção dos matemáticos se voltou para algumas impropriedades da axiomatização euclidiana. O caso das definições é elucidativo a este respeito. Criou-se uma impressão generalizada de que algumas das definições dadas por Euclides não eram somente inadequadas, mas também desnecessárias. Afinal, numa época em que se exigia o maior rigor possível no procedimento dedutivo e de desconfiança ilimitada a respeito de fatos elementares, quem poderia aceitar as definições elaboradas por Euclides de termos tais como ‘ponto’ e ‘reta’ como definições rigorosas? Além disto, qual o papel de tais definições na sistematização 39
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elaborada por Euclides? Por exemplo, as definições dos números 4 e 7, fornecidas no início do livro I, não são utilizadas na obtenção de teoremas em nenhum momento posterior. Além disto, a utilização de determinados conceitos sem uma determinação prévia rigorosa teria levado Euclides a fazer certas suposições adicionais que não estariam presentes nos seus postulados e axiomas. Isto fica claro se considerarmos o segundo postulado, no qual, Euclides afirma que uma linha reta pode ser estendida indefinidamente. Contudo, o que significa exatamente afirmar que algo pode ser estendido indefinidamente? Ora, estender algo indefinidamente significa que o processo em questão jamais alcançaria o seu término. No entanto, isto não implicaria necessariamente que se o objeto estendido desta forma fosse uma reta resultaria em uma reta de extensão infinita. O contra-exemplo é extremamente simples. Dado um arco qualquer que una dois pontos na superfície de uma esfera, ele pode ser prolongado indefinidamente fazendo com que o arco obtido seja ilimitado, mas com o comprimento finito. Assim, de um ponto de vista estrito, o segundo postulado não afirma necessariamente a infinitude de linhas retas. Contudo, Euclides assume esta pressuposição implicitamente em diversas demonstrações. Por
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xemplo, na demonstração do teorema 16 do livro I se pretende mostrar que em qualquer triângulo, se um dos lados é estendido, o ângulo exterior, assim produzido, é maior do que cada um dos ângulos opostos e interiores. Logo no início da prova, na construção de uma reta que deve cortar ao meio um dos lados do triângulo, Euclides assume a pressuposição de que tal reta poderia ser estendida indefinidamente sem retornar ao seu ponto inicial. É importante notar que, se tal suposição não for feita, o teorema não se verifica uma vez que o ponto que se procura ao estender a reta pode coincidir com o ponto de origem ou cair na parte da reta que está no interior do tri40
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ângulo. Assim, tal teorema não é universalmente válido na geometria de Riemann porque ela trabalha com um espaço ilimitado em extensão, mas não infinito em tamanho. Desta forma, todas as descobertas e avanços da matemática, considerados anteriormente, acabaram por colocar em evidência uma série de problemas de estruturação e desenvolvimento na axiomatização euclidiana. O advento das geometrias não-euclidianas deixou claro que a geometria desenvolvida até então não era apenas a única possível e também não poderia mais ser considerada como o paradigma de rigor na organização do conhecimento matemático. O rigor com o qual Euclides havia elaborado a sua axiomatização não atendia às exigências da época. Além disso, o caráter contentual da geometria euclidiana passou a ser visto como um obstáculo na tentativa da obtenção de resultados de generalidade superior e, via de regra, com suposições e consequências contra-intuitivas. Os desenvolvimentos da época exigiam um novo padrão de rigor na prática matemática e como o método axiomático é o método matemático por excelência, uma nova concepção de axiomática foi surgindo para satisfizer as exigências do momento. As mudanças na concepção clássica que possibilitaram o surgimento da axiomática formal é o que denomino de ‘movimento de desinterpretação’. A desinterpretação da axiomática é o resultado de um processo complexo que surge gradualmente como uma nova maneira de entender os diversos componentes do método axiomático. Desde o seu início, tal concepção não contou com um desenvolvimento uniforme do ponto de vista conceitual, pois não era clara a conexão entre estas novas ideias e as diversas descobertas realizadas na matemática no século XIX. Por exemplo, a ideia de uma axiomática formal era completamente estranha aos fundadores das geometrias não-euclidianas. Apesar disto, é possível reconstruir de forma ra41
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zoável as ideias básicas desta nova concepção que é a precursora do conceito de sistema axiomático formalizado através das ideias e trabalhos de matemáticos da época. A ideia de reconstruir a gênese de tal concepção a partir das falhas do sistema euclidiano parece ser natural quando se trata de entender certas motivações básicas para o surgimento da axiomática formal. A descoberta da independência do quinto postulado havia sido interpretada por alguns como um fato que deporia contra a intuição e também contra o próprio conceito de evidência. Havia a questão das definições também. Como um matemático do talento de Euclides não tinha percebido que não é possível definir tudo? Por que introduzir elementos desnecessários na estruturação dedutiva de uma teoria? Como nos assegurar que a conclusão estabelecida através do procedimento de prova não envolve, em algum ponto, uma pressuposição adicional aos princípios da teoria? Como evitar a introdução de elementos estranhos à demonstração e, com isto, finalmente obter o rigor tão desejado? Estas eram questões centrais para a nova concepção de axiomática que procurou resolver esse tipo de problema através de certas alterações conceituais no modelo clássico de método axiomático no contexto específico da investigação matemática. No que diz respeito à questão da prova, o problema é duplo porque devemos possuir um controle rigoroso de nossas suposições iniciais bem como dos expedientes que são utilizados para o estabelecimento dos teoremas. Durante o século XIX, se criou consenso em torno do fato de que a utilização de figuras geométricas nas demonstrações teria sido a principal causa de Euclides ter assumido certos fatos não justificados pelos seus axiomas e postulados. O recurso à evidência geométrica passou a ser considerado um expediente potencialmente perigoso e a sua utilização deveria ser evitada ao má42
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ximo no processo demonstrativo. A inconveniência de tal procedimento estaria na familiaridade que o matemático teria com tais figuras, o que lhe permitiria introduzir certos elementos sem a respectiva justificativa. Afinal, quais seriam os fatos fornecidos pela intuição geométrica que dispensariam o ônus da prova? Na demonstração da proposição 1 do livro I de Os Elementos, por exemplo, Euclides havia assumido como óbvia a existência de um ponto de interseção entre duas circunferências; mas a justificativa de tal pressuposto requeria suposições adicionais de sofisticação nada desprezível, tais como os axiomas de continuidade, descobertos posteriormente. A eliminação do recurso à evidência geométrica nas provas havia ganhado um grande ímpeto a partir dos trabalhos de fundamentação da análise. Por exemplo, Dedekind escreveu no seu célebre ensaio a respeito dos números irracionais de 1872: Ao discutir a noção de aproximação de uma magnitude variável a um valor limite fixo e, especialmente, ao provar o teorema que toda magnitude que cresce continuamente, mas não além de todos os limites, deve, certamente, se aproximar de um valor limite, recorri a evidências geométricas. Mesmo agora considero extremamente útil tal recurso à intuição geométrica em uma primeira apresentação do cálculo diferencial, do ponto de vista didático, e mesmo indispensável se não quisermos perder muito tempo. Mas que esta forma de introdução ao cálculo diferencial não pode possuir nenhuma pretensão de ser científica, ninguém irá negar. (Dedekind 1963, p. 1)
Klein é outro matemático que chama a atenção para os riscos da introdução de figuras geométricas nas provas. Segundo ele, o perigo residiria no fato de que poderíamos, por exemplo, obter conclusões falsas e, consequentemente, aquilo que Klein denomina de ‘sofismas geométricos’, a partir de tais figuras mal desenhadas. 43
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
Klein ilustra tal perigo fornecendo uma demonstração que estabeleceria o fato de que todos os triângulos são isósceles, através do recurso a figuras mal construídas, o que é obviamente falso. Fazendo uma referência aos axiomas de ordem, a sua conclusão é inevitável: O significado destes axiomas de ordem (betweenness) não deve ser subestimado. Eles são tão importantes como quaisquer outros axiomas se desejamos desenvolver a geometria como uma ciência verdadeiramente lógica, na qual, após os axiomas serem escolhidos, não é mais necessário nenhum recurso à intuição e às figuras para a dedução de suas conclusões. (Klein, in: Mueller 1981, p. 5)
Mas, e quanto às nossas suposições básicas? Que tipo de controle e justificativa podemos fornecer aos axiomas que, afinal de contas, constituem a base da relação de demonstrabilidade já que o recurso à evidência não é mais confiável? A resposta é bastante clara, nenhuma. Com o advento da axiomática formal, a grande novidade do século XIX é a utilização de um expediente que permitiria, não somente um maior controle das suposições iniciais como evitaria qualquer recurso ao conceito de evidência. Afinal, o que significa afirmar que uma proposição é evidente? O fracasso desta noção em vários domínios da matemática, bem como o seu caráter, até certo ponto, subjetivo havia sido percebido há algum tempo. Sem dúvida alguma, muitos matemáticos se sentiram bastante aliviados ao perceberem que poderiam prescindir deste conceito na elaboração de suas teorias axiomáticas. O expediente utilizado consiste em colapsar os elementos básicos das relações de demonstrabilidade e definibilidade tão cuidadosamente mantidos separados pela concepção clássica da axiomática. Conforme mostrado anteriormente, para os gregos, os dois princípios básicos da axiomatização seriam a relação de demonstra44
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
bilidade e de definibilidade. No caso da primeira, as proposições que constituiriam a demonstração de um teorema deveriam satisfazer certas condições através das quais tal procedimento seria um instrumento de conhecimento. Em relação à questão da definibilidade ocorreria algo análogo. Certos enunciados seriam definições pelo fato de possuírem características muito específicas fazendo com que eles ocupassem um lugar bem determinado dentro na teoria. Assim, os termos da teoria deveriam ser definidos a partir de elementos anteriores e mais inteligíveis. Através da definição seria possível se entender o que uma coisa é sem podermos afirmar qualquer coisa a respeito de sua existência. A distinção entre as definições e as demais proposições é cuidadosamente observada por Aristóteles nos Segundos Analíticos: Uma tese que assume uma das partes de uma contradição, quando afirma-se, por exemplo, que uma coisa é ou que uma coisa não é, denomino de hipótese; do contrário, a denomino de definição. A definição é uma tese (em aritmética a unidade é pressuposta como aquilo que é quantitativamente indivisível), mas não uma hipótese (uma vez que definir a unidade e afirmar a sua existência são duas coisas distintas). (I 2, 72a 20-25)
A distinção entre a definição de um objeto e o enunciado que afirma a sua existência também é observada por Euclides. A vigésima segunda definição do livro I define quadrado como aquilo que é equilátero e possui todos os ângulos retos. Nada na definição nos assegura da existência de tal objeto. Esta questão é decidida somente na proposição 46 do livro I, na qual, Euclides constrói um quadrado a partir de um segmento de reta e mostra que o objeto obtido coincide com a definição fornecida anteriormente.
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
É claro que algo deve ser pressuposto tanto no caso das definições como no caso da existência de objetos. Nos Segundos Analíticos, Aristóteles afirma que a definição de certos termos bem como a existência de certos objetos deve ser assumida simplesmente. Contudo, partindo deste pressuposto, os demais elementos devem ser definidos em função destes e ter a sua existência estabelecida através do procedimento demonstrativo: Entendo por princípios, em cada gênero, aquelas verdades cuja existência não é possível provar. O significado dos primitivos, bem como das coisas que dependem deles, é, simplesmente, assumido; mas, quanto à existência, ela deve ser assumida no caso dos princípios, sendo que, para o restante, é necessário demonstrá-la. Por exemplo, devemos assumir o significado da unidade, da reta e do triângulo e a existência da unidade e da grandeza. Mas, a existência dos demais deve ser provada. (I 10, 76a 30-35)
A grande inovação associada ao advento da axiomática formal é a de conceber os axiomas como proposições que imporiam certas condições aos termos primitivos e não mais como enunciados que estabeleceriam determinados fatos. A ideia de que o significado dos termos primitivos poderia ser estabelecido através dos axiomas remonta a Gergonne. No artigo “Essai sur la théorie des définitions”, ele estabeleceu pela primeira vez uma distinção entre definições implícitas e definições explícitas. Esta nova concepção dos axiomas está intimamente associada à descoberta do princípio de dualidade na geometria projetiva. Em 1819, Gergonne foi um dos primeiros investigadores a ter uma apreensão clara deste princípio. Uma vez formulado o princípio de dualidade é natural pensar nos axiomas como condições impostas aos termos básicos da teoria já que, como foi explicado anteriormente, o fato de se poder realizar certas substitui46
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
ções uniformes sugeria que o significado dos termos primitivos era fixado pelos axiomas, de alguma forma. O fato de em uma determinada proposição ser possível substituir o termo ‘ponto’ pelo termo ‘reta’ e obter um enunciado igualmente válido sugeria que o significado pré-teórico de tais termos era irrelevante para a teoria, uma vez que eles satisfizessem as condições impostas pelos axiomas. Assim, qualquer significado atribuído aos termos que ocorressem nos axiomas que preservassem as relações por eles estabelecidas eram igualmente válidos. Com isto, por exemplo, era possível acomodar elementos extremamente contra-intuitivos na teoria, como era o caso de pontos de interseção de retas paralelas no infinito. A retomada do interesse pela geometria projetiva no século XIX foi a principal causa da divulgação deste tipo de concepção entre os matemáticos da época. Em 1882, a axiomatização de Pasch desempenhou um importante papel neste sentido por ter exercido uma forte influência nos trabalhos posteriores da axiomatização da geometria realizados por Hilbert e Peano, por exemplo. O que se percebe é que, já na última década do século XIX, tal concepção a respeito dos axiomas é amplamente empregada pelos matemáticos na axiomatização das mais diversas geometrias. A adoção deste tipo de concepção teve repercussões profundas no entendimento do método axiomático. Nenhum tipo de justificativa de natureza conceitual acompanhou o desenvolvimento técnico de tais ideias. Na verdade, os princípios da axiomática formal foram imediatamente considerados instrumentos eficazes para a implementação de um novo ideal de rigor e também como um meio para a obtenção da generalidade que as investigações matemáticas do momento exigiam. No momento em que se adota tal concepção de axioma, o conceito de auto-evidência perde completamente o seu significado e 47
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
o recurso à intuição não é mais necessário. Além disso, os postulados não precisam apresentar qualquer sinal de ‘plausibilidade’ e, em certo sentido, o próprio termo ‘postulado’ tem o seu significado radicalmente alterado. Tal descrição esconde, de fato, um sistema de postulados. Mas uma vez que estes, apresentados como definições, amplamente exibem sua natureza como proposições condicionais que dizem respeito aos conceitos primitivos (i.e. seu caráter completamente arbitrário, etc.) ninguém irá perguntar se eles são auto-evidentes ou não. Os postulados, como todas as proposições condicionais, não são nem verdadeiros nem falsos: eles unicamente expressam condições que podem ou não ser verificadas. Assim, a equação (x+y)2 = x2+2xy+y2 é verdadeira se x, y denotam números reais, falsa se eles denotam quatérnions. (Pieri, in: Torretti 1978, p. 225 e 226) (...) mas do ponto de vista dedutivo, essa interpretação pode ser ignorada pelo leitor que está livre para trocá-la, em sua mente, por outra interpretação que satisfaça as condições estabelecidas pelas proposições não provadas. E uma vez que estas proposições, do ponto de vista dedutivo, não estabelecem fatos, mas condições, não podemos considerá-las postulados genuínos. (Padoa 1981, p. 120 e 121)
O recurso ao exemplo de um sistema de n equações a n incógnitas é frequentemente utilizado por matemáticos da época para ilustrar a nova concepção das proposições não demonstráveis de uma teoria. Por exemplo, Padoa se refere aos termos primitivos como as raízes de um sistema de equações lógicas simultâneas em um trabalho escrito em 1900. Na verdade, a partir da segunda metade do século XIX, os matemáticos começaram a perceber as vantagens obtidas com esta manobra aparentemente simples na axiomatização de diversas disciplinas matemáticas.
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
No caso dos axiomas, essas vantagens são facilmente percebidas. Ao adotar tal concepção se evitaria um regresso ao infinito na cadeia formada pelas proposições demonstráveis sem ter que apelar ao duvidoso conceito de evidência. Algo análogo ocorreria com a relação de definibilidade. Ao definirmos os termos da teoria se evitaria o regresso ao infinito e também a utilização de certos tipos de definição que haviam sido empregadas por Euclides que passaram a ser repudiadas pelos matemáticos da época. Definições do tipo ‘ponto é aquilo que não possui partes’ passaram a ser descartadas por serem completamente irrelevantes. A definição dos termos primitivos seria determinada pelas condições expressas nos axiomas e um sistema de equações determinaria as suas soluções. Em um certo sentido, seria a implementação da concepção de Pascal a respeito da relação de definibilidade em uma teoria dedutiva, na qual, todos os seus termos são definidos. Além disto, algo análogo ocorreria em relação ao conceito de demonstração, uma vez que todas as proposições da teoria seriam passíveis de prova, exceto as definições básicas na forma de axiomas para as quais a questão da demonstração não se colocaria, em estrito senso. Esta proposta de alteração na base da relação de demonstrabilidade modifica profundamente a noção de prova. Uma vez que se toma os axiomas como um análogo lógico de um sistema de equações, a aproximação entre o procedimento demonstrativo e a manipulação algébrica de símbolos parece natural e vantajosa. Esta similaridade já havia sido percebida por Gergonne, por volta de 1817: Constantemente se afirma que o raciocínio deve ser somente sobre objetos dos quais se tem uma ideia perfeitamente clara; contudo, frequentemente, nada é mais falso. Raciocina-se na prática com palavras exatamente como é realizado o cálculo com letras em álgebra; e, da mesma forma que um cálculo algébrico pode ser executado preci-
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal samente, sem se ter a mínima ideia sobre o significado dos símbolos com os quais se está operando, da mesma forma é possível seguir o desenvolvimento de um raciocínio sem qualquer conhecimento do significado dos termos no qual ele é expresso ou sem recorrer a eles no caso de conhecê-los. (Gergonne, in: Bochenski 1961, p. 277)
Assim, a ideia básica da axiomática formal de conceber os axiomas expressando certas estipulações a respeito dos termos primitivos e a sua analogia com alguns procedimentos algébricos permitiu o surgimento de uma concepção de prova, segundo a qual, toda e qualquer referência ao significado dos termos envolvidos devia ser desconsiderada. Nesta nova concepção de prova era desnecessário o recurso à evidência geométrica por considerá-lo ilegítimo e também a análise do significado e verdade dos conceitos. Os ganhos pretendidos com a adoção de tal concepção e as alterações sofridas pelo conceito de demonstração são claros. A prova concebida agora como uma manipulação algébrica não permitiria a introdução de elementos estranhos através do recurso ao significado de termos não muito bem definidos já que não se faz mais necessário o recurso à intuição para estabelecer os axiomas e estes determinarem as condições que os termos primitivos devem obedecer. Com isto, seria possível evitar equívocos como o realizado por Euclides na demonstração 16 do livro I, examinada anteriormente. A exclusão dos significados no desenvolvimento da prova seria a garantia de que pressuposições a respeito dos fatos a serem estabelecidos não iriam ocorrer caso não estivessem presentes nos axiomas. As proposições iniciais expressariam toda a informação necessária para o estabelecimento dos teoremas. Enganos como os cometidos por Euclides de introduzir definições que depois não seriam mais utilizadas seriam evitados. As vantagens obtidas em termos de economia e de
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
rigor vinham de encontro às necessidades de precisão exigidas pelos desenvolvimentos da época. Assim, o conceito de demonstração sofre alterações radicais, pois não faz mais sentido exigir das premissas que elas sejam mais inteligíveis, primárias e também causa da conclusão. Todos estes conceitos perdem de alguma forma o seu significado com as mudanças introduzidas no método axiomático. O próprio requisito da verdade das demonstrações se dissolveu, uma vez que na base da relação de demonstrabilidade está um conjunto de enunciados a respeito do qual a questão da verdade não se coloca do ponto de vista estritamente dedutivo. Neste contexto, falar de demonstrações como expedientes de conhecimento e entendimento não é claro. Isto era possível apenas para os gregos na medida em que os elementos básicos da axiomática possuíssem certas características específicas. Com as modificações introduzidas no método axiomático a partir do início do século XIX, o conceito de demonstração passou a ser caracterizado de uma forma totalmente diferente. Devido ao contexto do surgimento desta nova concepção, se observa que a preocupação fundamental é com a justificação ao invés do conhecimento. No momento em que se abre mão da intuição e se passa a lidar com resultados gerais e consequências contraintuitivas - como era o caso de diversos trabalhos da época - a justificação de tais resultados desempenha um papel preponderante na axiomatização de teorias. Consideremos o seguinte teorema: dado quatro linhas p, q, r, s se os pares (p, q), (p, r), (p, s), (q, r), (q, s) são coplanares, mas nem r nem s estão no plano pq, então, o par (r, s) é também coplanar. Como justificar um tipo de asserção como esta que satisfizesse as exigências de rigor da época e que, ao mesmo tempo, obtivesse o assentimento do nosso interlocutor? A concepção da época sugere que isto seria possível graças à apresentação de 51
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
uma prova rigorosa e de caráter essencialmente algébrico a partir de pressuposições cuidadosamente estabelecidas. Porém, a persuasão obtida seria diferente em pontos essenciais daquela tão cara a Pascal. Agora, não se tratava de convencer alguém da verdade de um enunciado, mas sim de convencer que o enunciado era supostamente uma consequência exclusiva das condições estabelecidas de início. Na verdade, é possível detectar aqui uma confusão entre os conceitos de dedução e demonstração cuidadosamente distinguidos pelos gregos, conforme Aristóteles nos Segundos Analíticos: Uma dedução poderá existir mesmo sem essas condições. Contudo, ela não será uma demonstração, uma vez que não se dará o entendimento. As premissas devem ser verdadeiras já que não podemos entender aquilo que não é o caso, por exemplo, que a diagonal é comensurável. (I 2, 71b 20-25)
Na última década do século XIX, é possível detectar uma concepção, mais ou menos bem definida da axiomática formal como resultado das exigências da época que levaram a uma desinterpretação do método axiomático. A base da axiomática deixou de ser não um domínio de objetos anteriormente dados cuja investigação seria realizada através do método em questão. Ao contrário, as condições impostas pelos axiomas à teoria é que iriam determinar o seu domínio de aplicabilidade. Por isso, os axiomas são esvaziados de seu caráter contentual e passam a ser examinados em grupos. O conceito de evidência, com o seu resíduo subjetivista, deixa de ser considerado. A intuição não tem mais função alguma na constituição de uma teoria axiomática e as definições adquirem um caráter abreviativo. Do ponto de vista dedutivo, a prova adquire um caráter fundamentalmente algébrico, no qual, o recurso aos significados dos termos envolvidos deve ser evitado em nome do rigor. O conceito de 52
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
prova enquanto estabelecimento da verdade de um enunciado, com a respectiva produção de entendimento, sofre uma mudança radical. Esta nova concepção foi saudada como o novo modelo de rigor ao qual as diversas disciplinas matemáticas deveriam se adaptar: Se a geometria deve ser verdadeiramente dedutiva, o processo de inferência deve ser independente, em todas as suas partes, do significado dos conceitos geométricos, exatamente como ela deve ser independente dos diagramas. Tudo o que é necessário ser considerado são as relações entre os conceitos geométricos, registradas nas proposições e definições. No decurso de uma dedução é permitido e útil ter presente o significado dos conceitos geométricos que nela ocorrem, mas não é, de forma alguma, necessário. Na verdade, quando isto se torna necessário, fica claro que existe uma lacuna na prova e (se tal lacuna não puder ser eliminada através de uma modificação do argumento) que as premissas são muito fracas para dar suporte ao argumento. (Pasch, in: Torretti 1978, p. 211)
Naturalmente tais teorias começaram a ser pensadas do ponto de vista estritamente dedutivo tratando fundamentalmente de símbolos e de suas diversas relações, uma vez que o processo de desinterpretação foi levado a cabo e a axiomática ter sofrido um esvaziamento de sua parte contentual. Esta é a conclusão que um grupo de eminentes matemáticos chegou nas últimas décadas do século XIX. Através dos trabalhos da chamada ‘escola italiana’, integrada por Peano, Pieri, Padoa, Veronese, entre outros, é possível perceber uma forte tendência para conceber o método axiomático como algo de uma natureza fundamentalmente sintática. Por exemplo, Peano expressa no trabalho I Principii di Geometria Logicamente Esposti, de 1889, um sistema de geometria diretamente inspirado na axiomatização de Pasch, através de sua linguagem simbólica, exercendo uma influência considerável nesta nova concepção do método dedutivo. 53
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
Os matemáticos italianos desempenharam um papel muito importante em diversos ramos da investigação matemática na virada do século XIX. Basta lembrar que a atuação de alguns membros deste grupo foi marcante no famoso Terceiro Congresso Internacional de Filosofia realizado em Paris no início de agosto de 1900. Neste congresso estavam presentes Russell e Poincaré, entre outros, e dias após a realização do evento, muitos participantes voltariam a se reunir no Segundo Congresso Internacional de Matemáticos, no qual, Hilbert apresentaria a sua famosa lista de problemas em aberto, cuja finalidade era a de prever dentro de que orientações básicas o desenvolvimento da matemática iria seguir no decorrer do século que se iniciava. Em ambos os congressos, Padoa apresentou o artigo “Essai d’une théorie algébrique des nombres entiéres précédé d’une introduction logique à une théorie déductif quelqu´un”, no qual, explicita muito bem a concepção sintática de método axiomático da escola italiana. Na introdução deste trabalho, ele trata de esclarecer o significado dos diversos elementos de uma teoria dedutiva: (...) é apropriado propor uma leitura destes símbolos com o auxílio de palavras ou sentenças da linguagem ordinária (acrescentando também explanações de forma a tornar mais preciso o significado destas palavras ou sentenças), uma vez garantido que este expediente nada mais é do que um comentário a respeito da teoria, muito útil ao facilitar a leitura e o entendimento do texto, mas completamente sem utilidade do ponto de vista dedutivo; pois o que é necessário para o desenvolvimento lógico de uma teoria dedutiva não é o conhecimento empírico das propriedades das coisas, mas o conhecimento formal das relações entre os símbolos. (Padoa 1981, p. 121)
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
Ao se referir ao ‘conhecimento empírico das propriedades das coisas’, ele acrescenta a seguinte nota: Algumas vezes esse conhecimento empírico é até perigoso, pois ele pode preencher e esconder certas lacunas presentes nos argumentos. (Padoa 1981, p. 121)
Padoa é também explícito no que diz respeito a generalidade no processo da prova: Assim, por meio de um único argumento que prova uma proposição da teoria genérica, provamos, implicitamente, uma proposição em cada uma das teorias especializadas. (Padoa 1981, p. 121)
E acrescenta: O princípio de dualidade na geometria projetiva oferece uma confirmação daquilo que é aqui afirmado, e fornece um dos exemplos mais interessantes disso. (Padoa 1981, p. 121)
Em meados de 1900, o grupo de matemáticos italianos já contava com uma concepção razoavelmente sofisticada da axiomática formal e um importante passo havia sido dado no sentido de se obter uma concepção estritamente sintática do método axiomático. Inclusive, é possível detectar, no artigo de Padoa, a introdução de um conceito informal de interpretação necessário para a individualização do significado dos termos primitivos. A ideia de conceber a definição como um propósito fundamental de abreviação sintática é formulada explicitamente no início do artigo. Contudo, tal concepção não é suficiente para caracterizar aquilo que seria conhecido posteriormente como o conceito de sistema formal ou o conceito de sistema axiomático formalizado. Além disto, é possível perceber uma falta de preocupação por parte dos matemáticos italianos em 55
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
tratar de certas questões conceituais cruciais colocadas pela axiomática formal. Dada esta nova concepção de axiomática, a questão da consistência da teoria passa a ser de importância fundamental uma vez que se abre mão da evidência como justificativa na adoção dos axiomas. O que nos garante que as condições estipuladas pelos axiomas não são contraditórias? Se estas condições não preenchem o requisito de consistência, a teoria não seria aplicável a nenhum domínio de objeto e isto a tornaria obviamente desinteressante sob diversos aspectos. Isto é evidente no artigo de Padoa no qual a economia demonstrativa é invocada. Assim, obter uma prova dentro da teoria geral seria simultaneamente obter provas em teorias específicas com domínios supostamente diferentes. A ideia de que a teoria genérica poderia ser ‘realizada’ em diversas teorias especializadas é um pressuposto da concepção de Padoa que teve certamente sua origem nos desenvolvimentos da álgebra ocorridos no século XIX, conforme mencionado anteriormente. Entretanto, o problema da consistência não é levantado pelos italianos apesar do seu interesse na investigação de certas propriedades metateóricas, como ilustra o artigo de Padoa. Em 1884, Frege já havia chamado a atenção para a importância de tal questão nos seus Fundamentos da Aritmética: De resto, como seria possível demonstrar que um conceito não implica contradição? Isto não é de modo algum evidente. Do que não se vê contradição não segue que não haja alguma, e o caráter determinado da definição não garante nada (...) Isto deve, a bem dizer, ser demonstrado. (Frege 1983, p. 269)
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Capítulo 1: O advento da axiomática formal
A construção de modelos euclidianos para as geometrias nãoeuclidianas era um fato amplamente conhecido na comunidade matemática do final do século XIX, porém, não está claro se originalmente a preocupação na obtenção de tais modelos foi o problema da consistência das novas geometrias. A necessidade que levou a tais construções parece ter sido muito mais a tentativa de obter uma base intuitivamente plausível, a partir da qual fosse possível entender resultados contra-intuitivos do que a questão da consistência propriamente dita. Por exemplo, Gauss e Lobachevsky nunca demonstraram qualquer dúvida a respeito da consistência das novas geometrias descobertas. Tanto isto é verdade que Gauss nunca considerou a suposta demonstração de Saccheri, segundo a qual, uma contradição se seguia da suposição da negação do postulado das paralelas. Aliás, em um primeiro momento, a obtenção destes modelos serviu muito mais para obscurecer a sua verdadeira função lógica. Isto fica claro no caso de Klein e sua construção de um modelo euclidiano da geometria hiperbólica, via geometria projetiva. De qualquer forma, o problema da consistência não foi colocado pela escola italiana no contexto da investigação da axiomática formal. Além disso, nenhuma tentativa é feita no sentido de explicitar os procedimentos lógicos necessários para a obtenção dos teoremas em um esquema formal. Apesar de Peano ter analisado certas questões relativas à formalização da lógica subjacente à teoria considerada no artigo “Sui Fondamenti della Geometria” de 1894, elas não foram suficientemente desenvolvidas, ou seja, não tiverem a ênfase que mereciam. Esta questão é importante no contexto da nova concepção de axiomática. A exigência de rigor teria levado à exclusão do recurso à evidência geométrica na prova de teoremas o que impediria o recurso a elementos que não estariam presentes nas suposições iniciais. Com isso, teria sido eliminado o recurso à intuição 57
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
que havia se mostrado tão falho na constituição do conhecimento matemático. A mesma questão se coloca em relação aos princípios lógicos utilizados nas demonstrações. Como saber se tais expedientes são confiáveis? Como nos certificar de que o recurso a tais princípios não nos remeteria a algum tipo de evidência igualmente enganadora, em última instância? O conceito de generalidade embutido nesta concepção formal da axiomática também é problemático, pois invocar o princípio de dualidade para exemplificar a generalidade obtida através do esvaziamento contentual da noção de prova pode induzir ao erro. Padoa apelava a algo mais forte do que o princípio de dualidade ao se referir às teorias genéricas e teorias especializadas. Na verdade, se está invocando um princípio, segundo o qual, através de substituições uniformes em ‘provas gerais’ se obteriam diversas ‘provas específicas’ e isso envolve pressuposições substanciais nada óbvias. Em primeiro lugar, se admite uma concepção segundo a qual os signos possuem natureza multívoca, ou seja, é possível associar a eles diversos fatos, ideias ou significados. Mas como entender esta pluralidade de ‘interpretações’? E de que forma teríamos a garantia que não foram introduzidos elementos estranhos à prova através destas transições? Este tipo de consideração não é periférico levando em conta que a preocupação de bloquear o recurso a suposições adicionais nas demonstrações teria sido um dos principais fatores que desencadeou o movimento de desinterpretação da axiomática. Além disso, qual seria o critério das ‘substituições’ na teoria genérica? É interessante notar que o princípio de dualidade é, na verdade, um metateorema cuja aceitação não envolveu poucas dificuldades. Gergonne formulou explicitamente tal princípio pela primeira vez e atribuía a ele um caráter a priori. O próprio Gergonne cometeu erros na sua aplicação. Por exemplo, ele acreditava que a toda curva algé58
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
brica de ordem n corresponderia dualmente a uma curva de mesma ordem. Mais tarde, Poncelet sentiu a necessidade de justificar tal princípio recorrendo à sua teoria de pólos e polares. Contudo, houve problemas na aplicação de tal princípio novamente porque Poncelet não conseguiu perceber como a dualidade poderia se aplicar a curvas de ordem maior que dois. Desta forma, o processo de desinterpretação havia alcançado o seu término e surgia uma nova concepção do método axiomático na virada do século XIX. Isto fica claro no caso da escola italiana porque já é possível perceber uma concepção sintática da axiomática um tanto quanto rudimentar. Inclusive, o recurso a um conceito informal de interpretação é usado para a obtenção de resultados metateóricos importantes. Este tipo de procedimento já havia sido adotado para a demonstração da independência de alguns axiomas no trabalho sobre geometria de Peano, em 1894. Aliás, ele havia realizado uma investigação semelhante anteriormente no artigo “Sul Concetto di Numero” de 1891, no qual, procura demonstrar a independência de alguns axiomas daquilo que hoje é conhecido como a aritmética de Peano. Desta forma, a escola italiana obteve uma concepção precisa da axiomática formal além de resultados muito interessantes. Contudo, aos italianos faltavam recursos técnicos e uma certa sensibilidade conceitual para perceber as novas exigências da concepção da axiomática formal. Uma formulação precisa da lógica não estava disponível para eles na época e isso dificultou certamente a obtenção de um conceito sintático mais acurado. Além disso, a escola italiana não conseguiu perceber a importância do problema da consistência para essa nova concepção. A importância de Hilbert em relação ao desenvolvimento da axiomática contemporanea reside no fato dele ter percebido a natureza das questões colocadas e ter se 59
Capítulo 1: O advento da axiomática formal
empenhado em buscar soluções satisfatórias tanto do ponto de vista técnico como do conceitual. Assim, o movimento de desinterpretação da axiomática permitiu a Hilbert desenvolver um projeto que complementou e tematizou diversos elementos implícitos neste movimento de esvaziamento do método axiomático visando resolver a crise dos fundamentos da matemática originada com a descoberta de paradoxos na teoria de conjuntos. O verdadeiro significado da concepção formalizada e das suas consequências só pode ser completamente entendido nesse contexto. A formalização completa da axiomática foi o resultado natural de uma série de fatores que acabaram por levar a uma concepção formal do método axiomático. Um novo padrão de rigor era exigido na investigação matemática e sua realização efetiva foi alcançada somente com a formalização completa das teorias axiomáticas.
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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e
Capítulo 2
Hilbert e os Fundamentos da Geometria Em 1899, Hilbert publicou seu livro The Foundations of Geometry que se tornaria rapidamente o paradigma da nova concepção do método axiomático. Quando Hilbert se decidiu pela investigação no campo da geometria, a sua reputação como matemático de grande habilidade já havia se firmado definitivamente. A solução do problema de Gordan na teoria dos invariantes e o seu trabalho na teoria dos corpos dos números algébricos já haviam garantido a sua fama internacional. A surpresa em Göttingen foi geral quando Hilbert se voltou abruptamente para o campo da geometria, pois desde a sua chegada à universidade, ele havia se dedicado basicamente à teoria dos corpos numéricos. No inverno de 1898-99, Hilbert ministrou um curso de geometria euclidiana que acabou se transformando no material básico do seu livro mencionado acima. Este trabalho incorporava os pontos centrais das recentes inovações que vinham ocorrendo no método axiomático. Ao contrário do que se pensa, Hilbert não foi o único criador da nova concepção da axiomática. Como vimos anteriormente, o surgimento da axiomática formal se deu pela confluência de diversos fatores em ramos distintos da matemática no final do século XIX que levaram a uma profunda alteração da concepção clássica. Na verdade, o trabalho de Hilbert se enquadra e dá um impulso decisivo a este movimento que via a alteração profunda de certos elementos básicos da axiomática como a única forma de satisfazer as necessidades de rigor crescente na investigação matemática.
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
A obra de Hilbert possui três aspectos importantes em relação ao surgimento dessa nova concepção do método axiomático. Em primeiro lugar, Hilbert demonstra sensibilidade conceitual ao tematizar e obter soluções matematicamente adequadas para problemas cruciais colocados pela nova concepção. Ele adota diversas técnicas que se enquadravam e acabaram reforçando certos componentes básicos do movimento de desinterpretação. Em segundo lugar, a axiomatização da geometria nos novos moldes foi executada com tal elegância e simplicidade que The Foundations of Geometry passou a receber uma aceitação imediata com a consequente divulgação da nova concepção de axiomática. Além disto, a reputação de Hilbert foi decisiva para a divulgação e a aceitação da geometria euclidiana, em moldes formais, junto à comunidade matemática do trabalho. The Foundations of Geometry tinha por objetivo uma proposta eminentemente matemática assim como todos os trabalhos anteriores ligados ao advento da axiomática formal. No início do livro, Hilbert afirma: A presente investigação é uma nova tentativa de estabelecer para a geometria um conjunto de axiomas completo e tão simples quanto possível que permita a obtenção dos mais importantes teoremas geométricos. Isto deve se dar de tal forma que o significado dos vários grupos de axiomas ,bem como das conclusões estabelecidas a partir de axiomas tomados ,isoladamente fiquem claros. (Hilbert 1971, p. 2)
Ao contrário da escola italiana, a obra de Hilbert mantém uma conexão estreita com a geometria euclidiana através da escolha dos termos primitivos e das relações básicas. The Foundations of Geometry pressupõe três classes de termos primitivos: pontos, retas e planos, juntamente com as relações de incidência, ordem e congru62
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
ência. Os axiomas são apresentados em cinco grupos distintos: (I) axiomas de incidência que tratam das relações de 'estar em' ou 'estar sobre' entre os termos primitivos; (II) axiomas de ordem que pretendem garantir, entre outras coisas, a existência de um número infinito de pontos em uma linha reta e a ordem serial dos mesmos; (III) axiomas que caracterizam a relação de congruência entre segmentos determinados por pares de pontos e entre ângulos; (IV) axioma das paralelas, assumido na versão de Playfair, segundo a qual, dado um ponto p não pertencente a uma dada linha l, existe no máximo uma linha que passa por p e que não intercepta l; (V) axiomas de continuidade conhecidos como o axioma de Arquimedes e o ‘axioma de completude’. O primeiro corresponde, em linhas gerais, ao processo de mensuração da distância entre dois pontos de uma linha reta com o auxílio de um segmento dado. O segundo afirma que a classe de certos elementos primitivos não poderia ser estendida de tal forma que os axiomas de ordem, congruência e incidência, juntamente com o axioma arquimediano, continuasse se verificando. O axioma de completude desempenha um papel importante quando Hilbert estabelece a consistência da sua axiomatização da geometria. O resultado final obtido por Hilbert é a construção de um sistema dedutivo para a geometria euclidiana, cuja elegância, engenhosidade e simplicidade acabaram por eclipsar totalmente as axiomatizações da geometria realizadas também nos moldes da nova concepção do método axiomático na mesma época. Além disso, o fato de Hilbert se manter bastante próximo da construção euclidiana na escolha de seus termos e relações primitivas foi, sem dúvida alguma, um fator decisivo para a divulgação e aceitação de sua obra. No que diz respeito à economia de conceitos, Hilbert é mais conservador do que os italianos. Ele deliberadamente se baseia na tradição
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria euclidiana com as suas três classes de termos primitivos pontos, linhas e planos, juntamente com as suas relações de incidência, ordem e congruência de segmentos e ângulos. Isto dá ao seu livro um charme peculiar, como se olhássemos para uma face familiar, mas transfigurada de uma forma sublime. (Weyl 1970, p. 265)
Apesar de Hilbert não esboçar nenhuma justificativa do ponto de vista conceitual, as alterações que introduziu na estrutura da axiomatização euclidiana revelam, fundamentalmente, a preocupação com o rigor na apresentação de uma teoria dedutiva que levou, em última análise, à concepção da axiomática formal. Em parte, Hilbert trabalha a questão da justificativa conceitual do seu sistema dedutivo para a geometria euclidiana na sua correspondência com Frege. O que se constata de imediato é a adoção do expediente básico da axiomática formal de identificar as bases das relações de demonstrabilidade e definibilidade. Os axiomas passam a ser considerados estipulações que os termos e as relações primitivas da teoria devem satisfazer. A estruturação da geometria se dá de forma a excluir toda e qualquer consideração estranha às estipulações iniciais. A própria escolha dos axiomas revela este tipo de preocupação que havia sido afinal um dos fatores decisivos para o esvaziamento contentual da axiomática. Assim, os axiomas do grupo II que definem a relação de ordem são introduzidos para preencher certas lacunas nas demonstrações de Euclides. Os axiomas de congruência do grupo III são assumidos de tal forma que torna desnecessária a introdução do conceito de movimento sem apelar ao ‘desconfortável’ método das superposições adotado por Euclides. Assim, a própria escolha e disposição dos axiomas revela a intenção de Hilbert de fornecer uma base suficiente a partir da qual seria possível estabelecer todos os demais enunciados da geometria euclidiana de uma forma rigorosa. 64
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
A grande inovação trazida pela obra de Hilbert no contexto específico do surgimento da concepção formal da axiomática foi o desenvolvimento de um estudo sistemático das suas propriedades. Este tipo de investigação vinha ao encontro de certas questões cruciais desta nova concepção e da forma pela qual ela foi executada reforçava elementos centrais do fenômeno de desinterpretação. Na verdade, o reconhecimento informal deste tipo de investigação acabaria adquirindo uma importância vital para a explicitação e tematização de elementos latentes na nova concepção da axiomática. O segundo capítulo do The Foundations of Geometry, “The Consistency and the Mutual Independence of the Axioms” apresenta de maneira precisa
soluções matematicamente importantes para os
diversos problemas considerados. Como o próprio título do capítulo indica, os dois principais problemas são o da investigação da consistência e da independência dos axiomas que formavam a base da nova axiomatização da geometria euclidiana. Os axiomas formulados nos cinco grupos do capítulo I não são contraditórios entre si, i.e, é impossível deduzir a partir deles, através do recurso a inferências lógicas, qualquer resultado que contradiga algum deles. Com a finalidade de demonstrar este fato, um conjunto de objetos será construído a partir dos números reais de tal forma que todos os axiomas dos cinco grupos serão satisfeitos. (Hilbert 1971, p. 29) Tendo examinado a consistência dos axiomas é interessante investigar se eles são todos mutuamente independentes. De fato, pode-se mostrar que nenhuma parte essencial destes grupos de axiomas pode ser deduzida das demais através de inferências lógicas. (Hilbert 1971, p. 32)
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
Atualmente, o problema da consistência é tratado através daquilo que é denominado frequentemente de prova de consistência relativa. O expediente utilizado por Hilbert é a construção de um modelo a partir do corpo dos números reais que satisfaz todos os enunciados básicos de sua axiomatização. O resultado obtido é que o conjunto dos axiomas apresentados no The Foundations of Geometry é consistente se a análise real clássica também for consistente. Algumas observações se fazem necessárias a respeito deste procedimento. Em primeiro lugar, o reconhecimento da necessidade de uma prova de consistência dos axiomas revelado neste trabalho é fundamental. É importante salientar que a percepção deste tipo de problema se deve a sensibilidade de Hilbert em relação à nova concepção da axiomática. Nas investigações geométricas anteriores ao trabalho de Hilbert, a consistência da geometria euclidiana jamais havia sido colocada em questão. É de se supor que a adoção do novo esquema por parte de Hilbert se deu justamente pelas vantagens de se conceber os axiomas como estipulações. Desta forma, se evitaria o duvidoso recurso ao conceito de evidência, se bloquearia o recurso a pressuposições adicionais, à intuição e, com isso, se evitaria um grau de subjetividade inerentes a tais conceitos. Além disso, seria possível a obtenção de resultados de natureza extremamente abstrata. Hilbert percebeu que todas as vantagens propiciadas por esse tipo de manobra tinham o ônus da prova de que as estipulações que estariam na base do sistema seriam compatíveis. Com tal procedimento, se evitaria a vacuidade da teoria e os riscos de obter resultados ‘falsos’. Em segundo lugar, a obtenção do resultado de consistência com o auxílio de modelos numéricos reforçava consideravelmente os princípios norteadores do esvaziamento contentual da axiomática 66
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
clássica. O significado do termo 'ponto' era fixado pelos axiomas. Por isso, se fosse atribuído a ele o sentido tradicional da geometria euclidiana ou se fosse associado a ele um par de números, isto seria completamente irrelevante do ponto de vista estritamente dedutivo. A ideia tão cara à axiomática formal de que a teoria seria mais fundamental e determinaria o seu domínio de investigação recebeu uma implementação matemática interessante por parte de Hilbert. A investigação sistemática da independência de certos teoremas geométricos em relação a certos grupos de axiomas dá um impulso decisivo à nova concepção de axiomática. Novamente, o instrumento básico de Hilbert é a construção de modelos nos quais o propósito é mostrar que um dado axioma, ou grupo de axiomas não se verificam, ao passo que todos os demais são válidos na construção considerada. É claro que o uso de modelos neste tipo de investigação não era um recurso novo. Particularmente, a escola italiana já havia utilizado tal expediente com sucesso tendo por objetivo a mesma finalidade. O que Hilbert fez foi utilizar tal recurso e sistematizar os resultados de uma forma notável do ponto de vista matemático. A investigação de Hilbert foi um passo decisivo para levantar questões metateóricas que acabaram se mostrando fecundas contemporaneamente. Neste sentido, é importante salientar os resultados obtidos em relação a vários teoremas centrais da geometria. Por exemplo, Hilbert demonstra que o famoso teorema de Desargues não é uma consequência dos axiomas de incidência. Além disto, Hilbert mostra como é possível combinar o teorema de Desargues com os axiomas de incidência a fim de obter um espaço de dimensão superior, no qual, este grupo de axiomas se verifica. O trabalho de Hilbert abriu possibilidades inusitadas no âmbito dos sistemas geométricos. A eliminação do recurso à intuição havia permitido a utilização de axiomas que, do ponto de vista lógi67
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
co, poderiam ser substituídos pelas suas respectivas negações, obtendo-se com isso resultados igualmente interessantes. Assim, na sua investigação, ele sugeriu uma série de geometrias que iam muito além das geometrias não-euclidianas em seu conteúdo contraintuitivo. A constituição das geometrias não-arquimedianas é particularmente interessante por subverter completamente a noção usual de contínuo geométrico. Esse tipo de investigação deixava claro os ganhos passíveis de serem obtidos com o esvaziamento da axiomática. Através do The Foundations of Geometry, a axiomática formal foi amplamente divulgada na comunidade matemática que a viu como uma proposta que vinha finalmente ao encontro das novas exigências de rigor na investigação matemática que haviam conduzido ao fenômeno da desinterpretação. Além disto, o tratamento dispensado por Hilbert a certas questões latentes que se colocavam a partir desta nova concepção da axiomática, como por exemplo a questão da consistência, foi fundamental para o resgate desta concepção e sua completa formalização dentro de um contexto epistemologicamente preciso. De qualquer forma, The Foundations of Geometry foi recebido como o paradigma de rigor que deveria ser alcançado na investigação axiomática de uma teoria. Inclusive, é possível detectar que muitas das avaliações realizadas na época atribuem a Hilbert certas intenções presentes no movimento de desinterpretação, mas certamente não refletiam o seu pensamento. Em 1902, Poincaré publicou no Bulletin des Sciences Mathématiques uma resenha crítica significativa respeito desta obra: Assim, Hilbert procurou colocar os axiomas sob uma forma tal que eles pudessem ser aplicados por qualquer pessoa que não compreen-
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria desse o seu significado, uma vez que ela desconheceria por completo o que seria um ponto, uma reta ou um plano. Os raciocínios, segundo ele, deveriam poder ser reduzidos a regras puramente mecânicas e, para que se pudesse desenvolver a geometria, bastaria aplicar tais regras aos axiomas sem conhecer o seu significado. Com isto, seria possível construir toda a geometria, eu não diria sem nada compreender, uma vez que deveríamos aprender o encadeamento lógico das proposições, mas ao menos sem recorrer a expedientes de natureza sensível. Poderíamos dar os axiomas a uma máquina lógica, o piano lógico de Stanley Jevons, por exemplo, e veríamos toda a geometria ser produzida a partir deles. É a mesma preocupação que inspirou certos matemáticos italianos tais como Peano e Padoa, que se empenharam em criar uma pasigrafia, quer dizer, uma espécie de álgebra universal, onde todos os raciocínios seriam substituídos por símbolos ou fórmulas. (...) A lista dos axiomas é completa ou deixamos escapar algum, cuja utilização se dá de forma inconsciente? (...) É necessário investigar se a geometria é uma consequência lógica dos axiomas estabelecidos explicitamente, ou seja, se estes axiomas uma vez entregues a uma máquina lógica poderiam produzir todas as proposições desejáveis. Em caso afirmativo, estaríamos certos de não ter esquecido nada uma vez que a nossa máquina somente poderia funcionar de acordo com regras da lógica para as quais ela foi construída. Ela ignoraria este instinto vago que denominamos intuição. (Poincaré 1902, p. 252 e 253)
O que é importante notar é que a obra de Hilbert foi julgada a partir de pressupostos já incorporados à prática matemática graças, principalmente, ao trabalho da escola italiana. Mas, a sua concepção inicial não compartilhava do ponto de vista ‘sintático’ defendido por Peano, por exemplo. De qualquer forma, Hilbert fazia parte de um movimento cujas origens são anteriores ao seu trabalho. Ele soube elaborar diversas questões do ponto de vista conceitual que acaba69
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
ram por conduzi-lo a uma concepção completamente formalizada da axiomática que resgatava e tematizava o componente sintático do movimento de desinterpretação. A polêmica estabelecida entre Frege e Hilbert deve ser entendida e analisada nesse contexto específico do surgimento da nova concepção do método axiomático. Ela deu origem a uma correspondência entre eles bem como a série de artigos “On the Foundations of Geometry” escrita por Frege em 1903 e 1906. A correspondência trocada entre eles é de interesse fundamental na medida em que é através dela que Hilbert explicita sua concepção, às vezes de uma forma um tanto obscura, a respeito da axiomática formal. O desacordo entre Frege e Hilbert pode ser entendido a partir de diversos pontos de vista. Por exemplo, alguns têm sugerido que a grande questão da controvérsia teria sido a da existência ou não de uma intuição particular que seria a fonte do conhecimento geométrico. No entanto, no meu entender, a grande questão que estava em jogo era a natureza e o próprio significado do método axiomático além dos diversos elementos associados a ele. Frege havia feito do método axiomático o instrumento básico de sua investigação. Em diversas ocasiões, ele afirma que a sua proposta, no que diz respeito ao método axiomático, deveria ser entendida como uma complementação do projeto de Euclides. Isto seria possível na medida em que as regras de inferência fossem submetidas a um controle estrito através da adoção de uma linguagem logicamente perfeita, na qual, os elementos semânticos tais como verdade, referência, entre outros, seriam de fundamental importância. Quanto à estruturação axiomática de uma teoria de acordo com tal expediente, a concepção clássica permaneceria inalterada. Nem tudo poderia ser provado. Os axiomas seriam verdades a partir das quais seria possível demonstrar todas as demais. O conceito 70
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
de verdade ocuparia um papel central sendo que a prova seria um expediente no qual tal conceito desempenharia um papel fundamental. Axiomas e definições são cuidadosamente distinguidos. As definições seriam instrumentos de natureza semântica cuja função seria o estabelecimento do significado de novos termos a partir de significados anteriormente conhecidos. Além disto, a existência de certos objetos deveria ser simplesmente assumida pela teoria. Por outro lado, como foi visto anteriormente, a tradição da qual Hilbert fazia parte entendia que o rigor poderia ser obtido somente através de uma alteração profunda da concepção clássica e da adoção de uma postura completamente diferente em relação a certos conceitos básicos. Este ideal de rigor fica claro quando Hilbert, ao responder a carta de Frege, afirma: Ao mesmo tempo, acredito também ter constituído um sistema de geometria que satisfaz as exigências mais rigorosas da lógica e, desta forma, inicio a réplica a sua carta. (Hilbert, in: Frege 1980, p. 39)
No contexto da desinterpretação, a ideia do esvaziamento semântico da axiomática era central para Hilbert, enquanto para Frege, tal esvaziamento era ininteligível. Isto fica claro quando Frege sugere que o significado dos termos primitivos não seria fixado, mas sim pressuposto pela teoria, ao que Hilbert responde de forma categórica: Penso que aqui se encontra o ponto central de nosso desentendimento; não desejo pressupor nada como conhecido. (Hilbert, in: Frege 1980, p. 39)
Neste ponto faz-se necessário notar uma manobra adotada por Hilbert que acabou tendo repercussões profundas no surgimen71
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
to dos sistemas axiomáticos formalizados, bem como na importância e no significado atribuído a eles. No entender de alguns matemáticos, a principal motivação para o advento da axiomática formal havia sido o colapso da concepção clássica. A intuição havia se mostrado pouco confiável no estabelecimento de fatos básicos e os ingredientes de ordem semântica eram vistos como elementos através dos quais pressuposições adicionais poderiam ser introduzidas. O ideal dos axiomas como estipulações as quais os termos primitivos deveriam se adequar e o ideal da prova como um procedimento puramente algébrico refletiam a convicção de que somente através de manipulações puramente mecânicas se poderia obter provas rigorosas. O comentário de Poincaré à obra de Hilbert, apresentado na página 68, deve ser entendido nesse contexto. Contudo, como tratar a questão da existência a partir dessa perspectiva de nada pressupor? É claro que a construção de uma teoria que não se aplicasse a domínio algum seria indesejável do ponto de vista matemático. A desinterpretação da axiomática não pretendia eliminar a existência de tais domínios, ao contrário, a sua proposta era a obtenção de teorias que, em nome do rigor, determinariam o seu domínio de aplicação de forma exata. Desta forma, a constituição e o desenvolvimento das teorias seriam anteriores a questões relativas a sua aplicabilidade. Mas, uma vez constituída a teoria, como saber que haveria objetos extra-teóricos em relação aos quais os seus enunciados se verificariam? É neste momento que Hilbert adota uma solução drástica e de grandes repercussões. A consistência de uma teoria seria o critério da existência dos objetos definidos e tratados por ela. Se os axiomas arbitrariamente assumidos, juntamente com todas as suas consequências, não se contradizem entre si, então eles são ver-
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria dadeiros e as coisas definidas por eles existem. Este é para mim o critério de verdade e existência. (Hilbert, in: Frege 1980, p. 39 e 40)
O tratamento dispensado à noção de verdade nesse contexto se adapta particularmente bem aos propósitos da axiomática formal. A verdade não seria uma propriedade dos axiomas tomados isoladamente, acessível através de algum tipo de intuição. A constituição da teoria completamente formal seria uma precondição para a aplicação deste conceito à totalidade dos axiomas. A imagem, tão cara à escola italiana, do conjunto de axiomas como um sistema de equações imediatamente se faz presente. Assim, Hilbert tematiza a questão da verdade de uma forma particularmente adequada no âmbito do esvaziamento da axiomática. De agora em diante, a verdade, conceito absolutamente fundamental para a concepção clássica, será tratado como parasitária à teoria não desempenhando papel algum no seu desenvolvimento estritamente dedutivo. Contudo, uma vez que a questão da existência é colocada nestes termos surge um problema que foi imediatamente detectado por Frege: Quais são os meios de que dispomos para demonstrar que certas propriedades, estipulações (ou qualquer outra forma que se deseje denominá-las) não se contradizem mutuamente? A única forma que conheço é através da apresentação de um objeto que possua todas estas propriedades, fornecer um caso em que todas as estipulações sejam satisfeitas. Seguramente, não me parece possível demonstrar a consistência de outra forma qualquer. (Frege 1980, p. 43) Existe algum meio de provar a consistência que não seja através da exibição de um objeto que possua todas as propriedades? Contudo, se temos tal objeto qual a necessidade de provarmos a sua existência através de uma prova de consistência? (Frege 1980, p. 47)
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
O surgimento da concepção sintática do método axiomático pode ser visto como uma tentativa brilhante de Hilbert para solucionar esta questão de uma forma satisfatória. Assim, a formalização completa da axiomática acabou se apresentando como uma decorrência imediata do esvaziamento do método axiomático. Em um contexto epistemologicamente específico, a utilização de tal expediente por Hilbert pode ser considerada uma complementação das transformações sofridas pelo método axiomático no século XIX. Devido a certas características do próprio programa de fundamentação, foram associadas ao formalismo certas concepções que acabaram por obliterar completamente a sua relação como o método
axiomá-
tico e com a prática matemática de uma forma geral. Entretanto, o que é importante notar é que o movimento de desinterpretação não se desenvolveu de maneira uniforme e homogênea, pois, certamente, a concepção sintática desenvolvida pelos italianos não era compartilhada por Hilbert na época da publicação do seu livro. Mas, posteriormente, os fatos acabariam por mostrar que a vinculação do esvaziamento da axiomática com uma concepção puramente sintática da axiomática se mostraria não somente natural como também epistemologicamente proveitosa. Além disso, é sintomático que matemáticos da época acolhessem o trabalho de Hilbert em um contexto que é comum à escola italiana e aplicassem, indiscriminadamente, o termo 'sistema puramente formal' às novas axiomatizações obtidas: Tendo em vista os trabalhos exaustivos de Peano (Principii di geometria, 1899), Pieri (I principii della geometria di posizione, della geometria elementare, memorie dell’acc. reale di Torino, 48 e 49 [1899-1900]), e Hilbert, não podemos mais recusar a designação de “sistema puramente formal” à geometria. (Korselt 1971, p. 43)
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Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
Nesse contexto, as pretensões de rigor ligadas aos procedimentos demonstrativos permaneciam infundadas em grande parte. Na axiomática formal, a presença latente de uma concepção puramente sintática de prova não havia recebido uma justificação conclusiva. Basicamente, a dificuldade residia na ausência de uma linguagem de natureza formal que fosse adequada para a sistematização das proposições matemáticas e que, ao mesmo tempo, permitisse a execução de procedimentos de natureza estritamente sintática em função do consequente esvaziamento semântico dos diversos elementos do discurso, inclusive, de seus componentes lógicos. No final do século XIX, a escola italiana já contava com uma linguagem desse tipo, mas ela era deficitária em aspectos cruciais para a obtenção da noção de prova pretendida. Peano havia desenvolvido um simbolismo através do qual seria possível codificar um grande número de enunciados pertencentes a diversos ramos da matemática. Contudo, tal expediente acabou por se mostrar inadequado para uma caracterização precisa dos procedimentos demonstrativos. Basta lembrar que, em seu famoso trabalho de 1889 a respeito dos números naturais, Peano apresenta um grande número de provas nas quais o recurso a regras de inferência não é explicitado. Desta forma, um grande número de demonstrações está constituído de etapas que permanecem completamente injustificadas. O surgimento de uma concepção sintática ligada a uma linguagem formal capaz de expressar adequadamente a noção de prova teve que aguardar a publicação do Principia Mathematica (19101913) que, a partir de então, passou a ser um referencial básico, tanto no que diz respeito à formalização da lógica como na investigação dos fundamentos da matemática. Apesar de Whitehead e Russell não terem concebido a sua linguagem originariamente em uma perspectiva puramente sintática, eles acabaram por fornecer um 75
Capítulo 2: Hilbert e os fundamentos da geometria
modelo que foi adotado e desenvolvido, posteriormente, em um âmbito que iria excluir completamente as considerações semânticas do contexto das linguagens formalizadas.
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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e
Capítulo 3
A Teoria da Prova como Instrumento de Fundamentação: o programa de Hilbert 3.1. O problema dos fundamentos e o resgate do conceito de evidência A partir de suas investigações nos fundamentos da geometria, Hilbert passou a considerar o método axiomático como o instrumento mais adequado para o desenvolvimento e a sistematização dos mais diversos ramos da matemática. Em 1900, Hilbert incluiu na sua lista de problemas apresentados no já mencionado Segundo Congresso Internacional de Matemáticos, duas questões que diziam respeito ao emprego do método axiomático. A primeira colocava o problema de uma demonstração de consistência da teoria dos números reais e a segunda propunha a tarefa da axiomatização das ciências físicas, nas quais, a matemática desempenhasse um papel importante. No início da segunda década do século passado Hilbert havia se tornado o grande defensor do método axiomático; em 1922, ele escrevia: Na verdade, o método axiomático é a única ajuda adequada e indispensável para a realização de qualquer investigação exata, não importa em que domínio. Ele é inatacável do ponto de vista lógico sendo ao mesmo tempo extremamente fecundo garantindo assim uma liberdade completa para a investigação. Desta forma, proceder axiomaticamente significa, neste sentido, nada mais do que desenvolver com conhecimento o tema em questão. Enquanto, num estágio anterior, sem o auxílio do método axiomático procede-se ingenuamente na medida em que se acredita em certas relações como dogmas, a abordagem a-
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Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação xiomática remove esta postura ingênua e ainda permite as vantagens da crença. (Hilbert, in: Kline 1980, p. 193)
A habilidade com que Hilbert transformou e utilizou o método axiomático influenciou de forma decisiva a compreensão tanto de sua natureza quanto de sua função. Sem exageros, Hilbert pode ser considerado como o maior propagandista da axiomática no século XX: Hilbert é o campeão da axiomática. A atitude axiomática parecia a ele ser de significação universal não somente para as matemáticas, mas para todas as ciências. Suas investigações no campo da física foram concebidas nos moldes axiomáticos. Em suas aulas ele gostava de ilustrar as aplicações deste método através de exemplos tomados da biologia, da economia, etc. A moderna interpretação epistemológica da ciência foi profundamente influenciada por ele. (Weyl 1970, p. 274)
Em um primeiro momento, é interessante notar que o problema da consistência da teoria dos números reais parecia seguir naturalmente na direção indicada pelo seu trabalho com a geometria euclidiana. Hilbert percebeu muito bem que a utilização da axiomática formal, com o seu consequente esvaziamento contentual, exigia o estabelecimento da consistência dos axiomas. Isto havia sido obtido em The Foundations of Geometry através do recurso à construção de um modelo que se utilizava dos números reais. Agora, como saber se essa teoria é consistente? O problema que era normalmente localizado no nível dos axiomas tomados isoladamente agora era colocado no nível das teorias como um todo. Obviamente, uma prova de consistência da análise via modelos geométricos estava fora de questão, por outro lado, a utilização de outros modelos parecia esbarrar em dificuldades insuperáveis. Assim, a questão da consistência, tão central para a nova 78
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
concepção da axiomática, parecia ter encontrado limitações intransponíveis. Isso parecia indicar que, ao fim e ao cabo, o expurgo do conceito de evidência não era tão fácil como se havia pensado de início. No início do século passado, Hilbert percebeu imediatamente o problema e chamava a atenção para a grande dificuldade que se anunciava na obtenção de uma prova de consistência para a teoria dos números reais. É claro que este problema passou a ser de importância vital a partir do surgimento de paradoxos na teoria de conjuntos que tornavam urgente uma solução adequada para a questão da consistência. Afinal, com o surgimento dos paradoxos se abria teoricamente a possibilidade do trabalho desenvolvido em The Foundations of Geometry estar minado na sua própria base. Desde os primórdios de seu interesse pelos problemas de fundamentação da matemática, mais precisamente em 1904, Hilbert adotou o ponto de vista segundo o qual a noção de consistência seria a categoria central no saneamento completo das bases da matemática. Portanto, desde o início de suas investigações, ele considerou o método axiomático como o instrumento privilegiado para o tratamento adequado dos problemas suscitados por diversas noções matemáticas, particularmente, a de infinito. O grande desafio que então se apresentava a Hilbert era resgatar o conceito de evidência no contexto da axiomática. Este problema era muito difícil devido a uma situação específica: como já foi dito, Hilbert se enquadrava num movimento que havia suprimido o conceito de evidência do método axiomático. Ora, devido a características internas do programa formalista, o problema que se colocava era encontrar uma justificativa inabalável para as práticas matemáticas como produtoras de conhecimento. A legitimidade dos resultados obtidos jamais esteve sob suspeita, porém, a questão era encon79
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
trar uma justificação inatacável para tais resultados. É claro que, no momento em que se concebe o problema nestes termos, o recurso, em última instância, a algum tipo de evidência se torna inevitável. A grande engenhosidade de Hilbert se revelou justamente na formulação de uma concepção através da qual seria possível reintroduzir a noção de evidência preservando, ao mesmo tempo, os ganhos obtidos por meio da desinterpretação da axiomática. Uma vez que se entende o modo pelo qual tal expediente foi concebido, é natural ver a formalização do método axiomático como complementar a todo movimento que havia levado ao advento da axiomática formal em aspectos muito importantes. As motivações básicas do programa de fundamentação defendido por Hilbert foram, por um lado, a sua insatisfação com o programa logicista e, por outro, a sua vigorosa reação à proposta intuicionista. A popularidade crescente do intuicionismo a partir da segunda década do século passado junto à comunidade matemática foi um fator que preocupou Hilbert e acabou dotando seu programa de aspectos bastante específicos. Em seu artigo “On the Foundations of Logic and Arithmetic” (1904), já é possível perceber a insatisfação de Hilbert em relação ao programa logicista. Segundo ele, todo e qualquer esforço no sentido de desenvolver a matemática a partir da lógica seria deficitário porque o desenvolvimento da lógica pressupõe certas noções matemáticas e isso, evidentemente, vicia todo o programa logicista. Em particular, a utilização por parte de Frege e Dedekind de certos princípios conjuntistas que levaram a paradoxos mostrava a impropriedade desse tipo de fundamentação. Contudo, o programa de Hilbert começou a tomar contornos mais bem definidos somente a partir de 1917 com o crescente avanço do intuicionismo. A proposta eminentemente reformadora de 80
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
Brouwer era completamente inaceitável para Hilbert. Na origem desta divergência estavam avaliações completamente distintas quanto à legitimidade da matemática clássica. Baseado em uma concepção bem definida sobre a origem e natureza do conhecimento matemático, Brouwer considerava necessária a tarefa de reconstruir esta disciplina de acordo com métodos bastante específicos ligados a tal concepção e, eventualmente, descartar como totalmente espúrios resultados anteriormente obtidos que não pudessem ser legitimados por esses métodos. A mutilação sofrida pela matemática com a adoção de tais preceitos era inaceitável para Hilbert: Aquilo que Weyl e Brouwer fazem nada mais é do que seguir o caminho aberto por Kronecker! Eles procuram salvar a matemática eliminando tudo aquilo que é incômodo. Eles acabariam por retalhar e mutilar toda a ciência. Se aderirmos a tal proposta, na forma pela qual ela é sugerida, corremos o risco de perder grande parte de nossos tesouros mais valiosos. (Hilbert, in: Reid 1970, p. 155)
Neste ponto, é importante notar que Hilbert se enquadrava em uma longa tradição matemático-filosófica segundo a qual o conhecimento matemático ocupa um lugar de destaque no esquema geral do conhecimento humano. A história da matemática era, para ele, a história de uma ciência cumulativa em relação a seus resultados que também mostra uma preocupação crescente com o rigor e a precisão dos seus métodos. Assim, Hilbert concebia o seu programa como uma proposta de justificação inatacável para uma prática preexistente legítima, fruto do trabalho incansável dos matemáticos durante séculos. Além disso, Hilbert contextualizava o seu projeto nesse processo de rigor crescente ao relacionar a sua proposta com aquela de eminentes matemáticos do século XIX que trataram de estabelecer uma base sólida para a análise: 81
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação Esta é, pois, a finalidade de minha teoria. Seu objetivo é dotar o método matemático de uma confiabilidade definitiva que a era crítica do cálculo infinitesimal não conseguiu obter. Assim, será possível concluir a tarefa que Weierstrass se propôs ao tentar estabelecer um fundamento sólido para a análise sendo que a sua iniciativa acabou se constituindo no primeiro passo, necessário e essencial, para a realização desta tarefa. (Hilbert 1981, p. 370)
O objetivo que Hilbert se propõe é o de clarificar a própria noção de infinito. Hilbert fornece importantes subsídios para que se possa entender a sua concepção sobre a natureza da matemática no seu artigo “Sobre o Infinito” (1925) bem como nos primeiros capítulos de sua obra The Foundations of Mathematics (1934-1939), escrita em conjunto com Paul Bernays. Esses elementos são de vital importância para uma percepção adequada dos motivos e da forma através da qual se deu o resgate da noção de evidência, bem como das circunstâncias que conduziram à formalização efetiva do método axiomático. Logo no início de seu artigo, Hilbert invoca o fato de que pesquisas recentes no âmbito da física e da química haviam desqualificado por completo a concepção segundo a qual os fenômenos naturais apresentariam um caráter uniforme e contínuo. No seu entender, diversas experiências haviam mostrado de forma definitiva o caráter descontínuo tanto da matéria como da energia. Além disso, resultados indicavam que o universo como um todo deveria ser concebido como algo ilimitado e, ao mesmo tempo, como algo de dimensões finitas. Desta forma, a experiência parecia ter mostrado de uma forma conclusiva que certas propriedades dos eventos físicos que poderiam corresponder à noção de infinito não se encontravam presentes na natureza. Contudo, Hilbert não considerava que tais resultados tornariam ilegítimo o emprego desta noção: 82
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação Assim, estabelecemos o caráter finito do real em duas direções: a do infinitamente pequeno e a do infinitamente grande. Contudo, pode muito bem ser o caso de que o infinito possua um lugar legítimo em nosso pensamento e que ele desempenhe a função de uma noção indispensável. (Hilbert 1981, p. 372)
De modo geral, a ideia central de Hilbert é de que as teorias científicas têm por característica o fato de não reproduzirem de uma forma perfeita aquilo que nos é acessível através da experiência. A essência de tais teorias seria a obtenção de um constructo que seria uma idealização simplificada dos fenômenos considerados e nisto residiria a sua importância e significado. Segundo Hilbert, nenhuma situação concreta seria capaz de nos fornecer de uma forma imediata algo que correspondesse à ideia do infinito como uma totalidade atual, pois a obtenção de tal noção se daria através da extrapolação daquilo que nos seria dado permitindo, assim, a constituição de uma estruturação idealizada de conceitos. Uma vez que tal representação incorporava elementos que não estavam presentes na experiência, a exigência de demonstrar que a totalidade assim obtida era consistente passava a ser de vital importância para a teoria constituída. A estratégia adotada para a legitimação do conceito de infinito será a de agregar proposições que envolvessem referências explícitas ao infinito como totalidade atual à proposição cujo conteúdo refletisse de forma completa certas relações entre elementos presentes na experiência concreta. O ponto culminante neste processo é a demonstração de que o conjunto das proposições obtido é consistente a partir de uma base epistemologicamente privilegiada. Os enunciados agregados, destituídos de qualquer significado empírico, seriam 'os elementos ideais' da teoria. A vantagem da uti-
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Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
lização de tal expediente é explicitamente reconhecida por Hilbert no domínio da geometria projetiva: Os elementos ideais 'no infinito' têm a vantagem de tornarem o sistema das leis de conexão tão simples e claro quanto possível. Além disso, a simetria entre ponto e reta permitiu a formação do princípio de dualidade na geometria que, por sua vez, se mostrou tão fecundo. (Hilbert 1981, p. 372 e 373)
É claro que nesta perspectiva a questão da legitimidade da utilização das leis da lógica passa a ser de importância crucial. No entender de Hilbert, tais procedimentos seriam legítimos unicamente quando aplicados a objetos reais. Contudo, a sua própria concepção acerca da natureza das teorias matemáticas tinha como parte integrante a introdução de elementos de natureza ‘ideal’. Ora, nada garantiria que não seríamos conduzidos a resultados equivocados se aplicassem as regras de inferência usuais em contextos nos quais tais elementos estivessem presentes. Aliás, esta seria justamente a situação que teria criado problemas no campo dos fundamentos da matemática: (...) alguma vez a inferência lógica contentual nos decepcionou ou abandonou quando a aplicamos a objetos reais ou eventos? Não, a inferência lógica contentual é indispensável e ela somente nos decepcionou quando aceitamos noções abstratas arbitrárias, em particular aquelas sob as quais um número infinito de objetos está subsumido. (Hilbert 1981, p. 376)
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Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
Desta forma, a lógica enquanto tal não poderia servir como a base a partir da qual a legitimidade da matemática estaria assegurada. A própria concepção acerca da natureza da matemática defendida por Hilbert colocava a exigência de um domínio anterior a todas as operações lógicas que fosse capaz de garantir inclusive a validade das regras de inferência. Neste contexto a questão da evidência era de vital importância. O grande problema era o tipo de evidência a ser resgatado que fosse ao mesmo tempo adequado para esta tarefa e que pudesse ser utilizado conjuntamente com o método axiomático a fim de obter provas de consistência satisfatórias do ponto de vista epistemológico. Esta nova classe de evidência era um grande desafio a ser enfrentado, pois a vinculação da evidência aos axiomas tomados isoladamente estava fora de questão. O esvaziamento contentual da axiomática realizado pelo movimento de desinterpretação influenciou fortemente a concepção de Hilbert acerca da matemática e se prestava particularmente bem à acomodação dos elementos ideais. Esta era uma vantagem proporcionada pela nova concepção do método axiomático que Hilbert pretendia utilizar ao máximo. A evidência a ser reintroduzida deveria possuir características bastante específicas. Isto se devia ao fato de que os paradoxos da teoria de conjuntos reforçavam certas tendências presentes no surgimento da axiomática formal. O conceito de evidência colocado sob suspeita e, em seguida, completamente desconsiderado pelo movimento de desinterpretação parecia ter recebido o seu golpe de misericórdia com o surgimento dos paradoxos. A partir destes problemas, certo tipo de interpretação dava a impressão de sugerir que agora, mais do que nunca, o recurso a qualquer tipo de intuição ou à aparente obviedade de certos princípios estava completamente fora de questão. Como ter certeza de que ao assumir certos enunciados, 85
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
por mais simples que fossem, não acabaria por gerar resultados contraditórios? Este tipo de fenômeno parecia desqualificar por completo o recurso a princípios não demonstrados na base de toda prática dedutiva. Toda esta situação não deixava de vir ao encontro de algumas motivações presentes no esvaziamento da axiomática que remontava à própria concepção clássica alterada por Pascal com o seu ideal de tudo demonstrar e de tudo definir. A tarefa de Hilbert era delicada, pois a utilização de algum tipo de evidência era necessária, mas qual? É claro que qualquer elemento de natureza abstrata estava descartado. Tanto o esvaziamento da axiomática como problemas com a teoria dos conjuntos pareciam ter bloqueado definitivamente o recurso a considerações de ordem abstrata. Esta nova classe de evidência a ser resgatada deveria ter como traço distintivo um caráter concreto, imediato, assim como a simplicidade absoluta e a sua consequente irredutibilidade a qualquer outro domínio de considerações. Basta lembrar que a própria legitimidade das inferências lógicas dependeria deste tipo de consideração que, por conseguinte, não deveria pressupor qualquer recurso a procedimentos de natureza lógica. A simplicidade da classe de evidência deveria ser completa porque a utilização de qualquer tipo de evidência ‘complexa’ não era desejável. A discussão ocorrida no contexto da desinterpretação acerca do conceito de evidência geométrica certamente era um fato presente para Hilbert. A simplicidade completa garantiria que o recurso a certos fatos elementares não envolveria pressuposições adicionais que, por sua vez, necessitariam de algum tipo de justificação e, eventualmente, poderiam gerar contradições. A tarefa de Hilbert era encontrar uma espécie de 'átomo epistemológico' capaz de justificar de maneira incontestável a matemática clássica, o ramo mais sólido do conhecimento humano. 86
Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
A especificação deste tipo de evidência foi a tarefa central do segundo período de investigações dos fundamentos da matemática iniciado em 1917. A solução encontrada implicava a determinação de um domínio de objetos que, juntamente com as operações às quais poderiam ser submetidos, contaria com absoluta transparência, simplicidade e segurança. O acesso a tais objetos estaria assegurado através de uma intuição perceptual que permitiria a sua apreensão de uma forma imediata sem a interferência de nenhum elemento de natureza conceitual. A investigação deste domínio de objetos faria parte daquela parte da teoria dos números a qual Hilbert adjetivou de finitária ou contentual: Como foi visto, as operações com extensões de conceitos e conteúdos, de uma forma geral, revelaram-se inadequadas e inseguras. Algo deve já estar dado a nossa faculdade de representação como précondição para o uso e aplicação tanto das inferências como das operações lógicas. Tais objetos teriam uma natureza discreta e não lógica e seriam acessíveis à intuição através da experiência imediata, independentemente de todo pensamento. Se as inferências lógicas devem ser confiáveis, então, deve ser possível apreender estes objetos em todas as suas partes, e o fato de eles diferirem um dos outros, de eles se sucederem uns aos outros é algo dado de uma forma imediata à intuição sendo impossível reduzi-los a qualquer outra coisa. Ao adotar esta posição, os objetos da teoria dos números são para mim, ao contrário do que pensavam Frege e Dedekind, os próprios signos cuja forma pode ser identificada por nós com generalidade e confiabilidade independentemente do lugar, do tempo e das condições especiais de sua produção bem como de certas diferenças insignificantes na sua execução. Aqui reside a atitude filosófica que eu acredito ser necessária para a fundamentação da matemática pura assim como para todo o pensamento científico, entendimento e comunicação de qualquer natureza. No princípio, eu poderia afirmar aqui, está o signo. (Hilbert, in: Resnik 1980, p. 81 e 82)
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Capítulo 3: A teoria da prova como instrumento de fundamentação
A teoria finitária dos números toma como elementos básicos os numerais 1, 11, 111, 1111, etc., e cada ‘1’ representa uma unidade e a sua repetição representa a concatenação. Nesta teoria, tais elementos são como objetos concretos, portanto, capazes de apreensão puramente perceptual. Contudo, para que essa disciplina possa ser adequadamente desenvolvida é necessária a introdução de novos signos cuja finalidade é possibilitar a manipulação e a transmissão de informações sobre os numerais acima mencionados. Por exemplo, o signo 2 é introduzido para designar o numeral 11; 3, o numeral 111 e assim sucessivamente. Além disto, a introdução de outros signos como +, =, 15’. Como se certificar que tal enunciado se verificaria de uma forma imediata? Apenas ‘olhar’ para as duas sequências de barras designadas pelos numerais ‘27’ e ‘15’ pode não ser o suficiente. As duas sequências de signos devem ser apresentadas de uma maneira tal que seja possível algum tipo de comparação entre elas. A questão que se coloca é saber que critério seria este que não viola o caráter de simplicidade e irredutibilidade do domínio finitário. O recurso a uma comparação da extensão das sequências de barras parece estar fora de questão porque poderíamos facilmente imaginar a sequência de signos representada por ‘15’ apresentando um maior distanciamento entre uma barra e outra do que a outra sequência. É claro que este não seria um critério adequado.
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Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
O recurso ao estabelecimento de algum tipo de relação ‘umum’ entre os componentes dos dois grupos de signos pareceria ser uma solução satisfatória. Contudo, o emprego de tal expediente nos remeteria diretamente à pressuposição de pelo menos uma teoria rudimentar que justificasse a utilização de tal procedimento. A contagem pareceria ser a saída natural para este impasse, mas tal expediente não pressuporia, por sua vez, o conceito de número ou pelo menos aquele de unidade? Não é fácil ver como este tipo de consideração poderia ser introduzido sem violar a simplicidade, uma característica tão cara a este domínio. Outro tipo de problema diz respeito à forma imediata pela qual seria possível a apreensão de enunciados da teoria finitária dos números. Este tipo de dificuldade fica evidente quando consideramos enunciados envolvendo números muito grandes. Como constatar de uma forma imediata que ‘857.342 + 120.728 = 120.728 + 857.342’ ou que ‘10.342 > 10.341’? Como ter certeza que ‘125.742 ≠ 125.743’? Este e outros tipos de considerações acabam por revelar que o privilégio epistemológico atribuído à evidência sintática é injustificável sob diversos aspectos. Este fato é importante na medida em que levamos em consideração que a exclusão dos elementos de natureza abstrata das teorias, principalmente os componentes de natureza semântica, havia se dado justamente devido ao fato de que tais elementos poderiam nos conduzir a equívocos e a utilização de certos tipos de pressuposições que, por sua vez, necessitariam de algum tipo de justificação. As considerações anteriores parecem indicar que a adoção da perspectiva sintática está longe de propiciar uma forma completamente satisfatória para a solução desse tipo de problema.
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Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
Outro aspecto problemático da proposta formalista diz respeito à forma pela qual Hilbert idealizou a extensão da perspectiva sintática para a totalidade da matemática. O exame de diversos elementos presentes nesta transição acaba por revelar que certas características atribuídas aos sistemas axiomáticos formalizados não são de todo justificáveis. O caráter de transição do domínio finitário para a matemática não-contentual, como foi visto anteriormente, é concebido como um procedimento que, partindo da teoria contentual dos números, permitiria a redução da aritmética a um mero conglomerado de fórmulas através de expedientes largamente utilizados na prática matemática. Esta forma de entender a gênese da formalização acabou por atribuir aos sistemas axiomáticos formalizados um papel privilegiado. Esse foi um dos fatores que contribuíram para o surgimento da concepção de que a matemática trataria destas formalizações ou então que elas seriam a forma mais adequada de revelar os elementos subjacentes às práticas dedutivas. No programa formalista, essa concepção recebeu o seu suporte conceitual de acordo com a maneira pela qual Hilbert entendia a natureza da matemática. A localização no domínio finitário do conhecimento matemático por excelência desempenhou um papel fundamental na compreensão da gênese do formalismo assim como em todo o contexto da desinterpretação e na utilização da noção de elemento ideal. A partir dessa perspectiva, a identificação de parte da teoria dos números com uma investigação que trataria de manipulações sintáticas foi muito importante. Porém, como foi indicado nos parágrafos anteriores, essa identificação é problemática do ponto de vista matemático e é sustentada por uma concepção empirista da matemática. Além disso, as restrições impostas por esta perspectiva são 115
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
enormes. Basta lembrar que mesmo certos enunciados passíveis de serem obtidos a partir do domínio finitário seriam não-contentuais; mesmo ramos muito básicos da matemática, como é o caso da álgebra, estariam excluídos do âmbito das considerações genuinamente matemáticas. Aliás, o exame do tratamento dispensado à álgebra por Hilbert é revelador neste contexto. A essência da álgebra é a formulação de certos tipos de enunciados gerais, mas dessa forma ela se colocaria para além do âmbito finitário. A transição da teoria dos números para a álgebra é natural na medida em que Hilbert assume que o seu objeto de estudo seria certas sequências de signos independentemente do conteúdo vinculado a eles e, por isso, seria possível a extensão das considerações finitárias ao domínio da álgebra. Mas, esta concepção é problemática sob diversos aspectos, em primeiro lugar, não é fácil compatibilizar o caráter geral dos enunciados algébricos com essa perspectiva sintática. Por outro lado, parece pouco plausível que o matemático tenha por objeto o estudo desse aparato simbólico ao desenvolver sua teoria, apesar dessa disciplina possuir uma dimensão algorítmica. É claro que esse tipo de investigação é possível, pois produziu resultados interessantes contemporaneamente. O que é duvidoso é atribuir este tipo de postura ao matemático que está interessado em desenvolver a sua teoria de forma sistemática. Seria estranho ver no desenvolvimento desta investigação uma continuação dos trabalhos de Kummer e Dedekind, dentro da perspectiva a ela atribuída por Hilbert em seu trabalho de fundamentação. Parece muito mais adequado pensar na álgebra como uma disciplina que se utiliza de um simbolismo sofisticado para estudar e sistematizar diversas propriedades de estruturas abstratas gerais. O desenvolvimento atual da álgebra parece indicar claramente essa direção com o seu estudo de noções como grupos, 116
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
monóides, classes residuais, anéis, subanéis, espaços vetoriais, homomorfismo, isomorfismo, etc. Conforme indicado acima, outro problema é a extensão do tratamento dispensado à álgebra do cálculo lógico como algo natural dando um seguimento consistente ao desenvolvimento da prática matemática. Novamente essa forma de apresentar a gênese da formalização é extremamente enganadora, pois a própria afirmação de Hilbert é ambígua se considerarmos o termo ‘prática matemática’ lato senso, a sua afirmação é falsa. Mas, caso esse termo esteja se referindo exclusivamente à ordem de considerações do programa formalista, então, a afirmação passa a ser problemática. Ela pressupõe o caráter concreto e finito da teoria dos números, a sua concepção acerca da natureza da álgebra, além de envolver um pressuposto substancial a respeito da natureza da lógica. No caso da lógica, o pressuposto de que a redução de suas noções a uma dimensão puramente sintática não acarretaria qualquer alteração conceitual é simplesmente assumido e recebe uma interpretação coerente a partir da noção de elemento ideal. As diversas noções lógicas concebidas agora como signos de um determinado tipo são meros expedientes para a construção de proposições ideais. Novamente, este tipo de consideração envolve dificuldades substanciais, porque a pressuposição de que a exclusão de elementos semânticos não alteraria de forma alguma a perspectiva a partir da qual o cálculo lógico seria considerado é simplesmente assumida. Contudo, tradicionalmente, as noções lógicas sempre haviam sido concebidas em um contexto no qual as considerações acerca do significado e da noção de verdade haviam desempenhado um papel central. Como entender a exclusão destes elementos do âmbito da lógica?
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Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
É importante notar que esse tipo de pressuposto estava completamente de acordo com os preceitos da desinterpretação. O rigor seria possível somente na medida em que os procedimentos dedutivos fossem reduzidos a uma dimensão concreta. Quando era levado em conta, o papel da verdade em tais processos era somente para ocupar um lugar secundário e de alguma forma parasitário às teorias previamente constituídas. A extensão desse pressuposto ao cálculo lógico e a sua consequente implementação técnica no contexto do programa de Hilbert acabou por influenciar todo o desenvolvimento posterior da lógica. A partir do programa formalista, os enunciados da lógica passam a ser proposições ideais e como tais são tratados a partir de uma perspectiva sintática. No programa formalista, a noção de elemento ideal é central para que a extensão do ponto de vista sintático aos sistemas axiomáticos possa ser realizada de forma inteligível. Porém, isso também acarreta vários problemas. Em primeiro lugar, Hilbert parece sugerir que a utilização da noção de elemento ideal se dá de uma forma homogênea através de uma série de exemplos. Apesar disso, se examinarmos os casos considerados veremos que o emprego de tal noção na prática matemática se dá de uma forma múltipla, dificultando a percepção de como seria possível compatibilizar esta diversidade de finalidades com os preceitos básicos da proposta formalista. Hilbert utiliza como exemplos em favor de sua tese de que todos os ‘teoremas infinitos’ são em algum sentido ‘teoremas ideais’, ilustrações extremamente diferentes, tais como: (a) o infinito da análise; (b) o infinito da geometria e (c) os números ideais da aritmética superior. A mim me parece completamente impossível considerar que todos estes exemplos foram inspirados pela mesma motivação lógica. O primeiro representa uma purificação da matemática através de um acordo para
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Capítulo 4: O fracasso do programa formalista se considerar certas noções como ‘incompletas’. Os demais podem ser considerados como uma extensão da matemática através da introdução de novos elementos tão ‘completos’ como aqueles que eles generalizam. (Hardy 1929, p. 13)
Além disso, do ponto de vista operacional o procedimento adotado por Hilbert se assemelha àquele adotado seguidamente pelos matemáticos, mas existem diferenças conceituais marcantes envolvidas neste processo. Aos elementos ideais é dada uma interpretação sintática na medida em que o conteúdo significativo de tais enunciados seria inexistente. Esse não parece ser o caso da utilização de tal expediente na matemática. A consideração de pontos de interseção de retas paralelas no infinito ilustra muito bem esta diferença. Por outro lado, não está claro no que se constituiria exatamente a ausência de conteúdo ou significado de tais proposições. Uma coisa é admitir isso, outra é admitir que uma proposição particular tal como ‘existe uma infinidade de números primos’ é ‘ideal’. Se eu não posso admitir que ‘existe uma infinidade de números primos’ não possui ‘significado’ é simplesmente porque me parece evidente qual é o seu ‘significado’. (Hardy 1929, p. 25)
Outra diferença diz respeito à função e às posteriores interpretações dadas a estes elementos na história da matemática. A motivação básica era a de preservar a utilização de certas operações matemáticas quando aplicadas a um determinado domínio. Por exemplo, a introdução dos números imaginários pode ser vista como a introdução de elementos ideais na tentativa de preservar a operação de radiciação aplicada aos reais. Contudo, existem diferenças substanciais entre este tipo de utilização e aquela efetuada por Hilbert. Os números imaginários acabaram por receber uma interpreta119
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
ção na qual eles eram tratados como pares ordenados de números reais e nada semelhante pode ser concebido no programa formalista. A essência das proposições ideais é a sua irredutibilidade ao domínio em que elas são utilizadas para efetuar a extensão de certos tipos de operação. Além disso, a motivação para a introdução destes elementos é distinta. No caso dos números imaginários é o da preservação da aplicabilidade de certas operações matemáticas. Para Hilbert, a motivação para a utilização de tal expediente era a preservação de certos princípios lógicos sem os quais não seria possível a legitimação da análise. Desta forma, a utilização das proposições ideais envolve dificuldades que tornam o seu acordo com a prática matemática problemático. Outro detalhe que frequentemente desconsiderado na avaliação do programa formalista é que a introdução das proposições ideais permanece completamente injustificada através do resultado de Gödel. Na medida em que a própria introdução desses elementos era aceitável somente a partir de sua legitimação através de provas de consistência, a impossibilidade de tais resultados torna questionável certos aspectos da concepção de Hilbert acerca da natureza da matemática. Em particular, a associação íntima entre a matemática, o método axiomático e o formalismo sugerida pelo seu programa. A forma pela qual Hilbert concebeu seu programa, acrescido por toda a problemática referente ao movimento de desinterpretação, determina uma associação intrínseca entre a matemática e os sistemas axiomáticos formalizados. Essa ligação foi estabelecida de uma maneira tão íntima que é difícil perceber se haveria algum tipo de distinção entre ambos. Em algumas passagens de seu trabalho, Hilbert identifica simplesmente a matemática com a sua apresentação formalizada. Mas, tal concepção não era compatível com certos 120
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
pressupostos do programa formalista, e é possível perceber em várias de suas obras uma distinção entre a prática matemática de um lado e os sistemas formalizados de outro. Contudo, a forma específica através da qual se chegou à concepção do método axiomático enquanto uma estrutura sintática permitiu que esta ligação íntima permanecesse. Uma atitude análoga já podia ser percebida entre os adeptos do esvaziamento da axiomática. Nesse contexto, é significativo Hilbert passe a adotar o termo ‘jogo de fórmulas’ para designar as teorias formalizadas. Assim, a prática matemática era dissociada das suas respectivas formalizações em circunstâncias bastante específicas: Os axiomas e as proposições demonstráveis, ou seja, as fórmulas resultantes desse método são cópias dos pensamentos que constituem a matemática, como ela tem sido desenvolvida até agora. (Hilbert 1981a, p. 465)
Dada esta dissociação, feita em tais circunstâncias, é possível atribuir uma série de propriedades às formalizações assim concebidas. Em primeiro lugar, esta representação sintática do método axiomático descreveria os diversos elementos presentes nas práticas dedutivas de uma forma precisa: (...) esse jogo de fórmulas é desenvolvido de acordo com certas regras precisas nas quais a técnica de nosso pensamento é expressa. (...) A ideia fundamental da minha teoria da prova não é outra senão a de descrever a atividade do nosso entendimento e elaborar um conjunto de regras de acordo com as quais o nosso pensamento de fato procede. O processo pelo qual se desenvolve o pensamento é extremamente análogo àquele de falar e escrever: formamos enunciados e os estabelecemos um após o outro. (Hilbert 1981a, p. 475)
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Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
Consequentemente, tal jogo nos forneceria uma visão realmente adequada do domínio considerado revelando as conexões existentes entre o conjunto de proposições com uma transparência absoluta. Minha proposta é eliminar de uma vez por todas as questões relativas aos fundamentos da matemática. Isto será possível na medida em que transformarmos todas as proposições matemáticas em fórmulas que poderão ser concretamente exibidas e estritamente derivadas. Desta forma, tanto as definições como as inferências matemáticas serão apresentadas de tal maneira que elas serão indubitáveis e ao mesmo tempo nos fornecerão um quadro adequado de toda esta ciência. (Hilbert 1981a, p. 464) Este jogo de fórmulas nos permite expressar todo o conteúdo da matemática de uma maneira uniforme e, ao mesmo tempo, pode ser desenvolvido de tal forma que a interconexão entre as proposições e os fatos se torne clara. (Hilbert 1981a, p. 475)
Além disso, somente através deste jogo de fórmulas é que seria possível a libertação do jugo do subjetivismo na matemática, uma das tarefas próprias de toda investigação científica. (...) é parte da tarefa da ciência nos libertar do jugo do arbítrio, do sentimento e do hábito. Assim, a sua tarefa é nos proteger do subjetivismo que já pode ser detectado nas concepções de Kronecker e, em minha opinião, encontra o seu apogeu no intuicionismo. (Hilbert 1981a, p. 475)
O rigor tão caro à matemática poderia ser obtido somente por intermédio desse jogo. Através dele seria possível a obtenção de provas rigorosas nas quais nenhum elemento seria sub-repticiamente introduzido. Nesta perspectiva descritiva, as provas não for122
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
mais receberiam uma explicitação completa com o auxílio das formalizações. Afinal, a exigência de tal tipo de procedimento seria o objetivo de toda ciência dedutiva e estaria presente inclusive no desenvolvimento da própria física: (...) o que o físico exige de uma teoria é justamente que as proposições particulares sejam derivadas a partir das leis da natureza, ou hipóteses, unicamente através de inferências; consequentemente, na base de um puro jogo de fórmulas sem que nenhuma consideração estranha seja introduzida. (Hilbert 1981a, p. 475)
Na medida em que os pressupostos presentes no surgimento da concepção sintática do método axiomático dentro do programa formalista envolvem problemas consideráveis e esse contexto justificar as conotações atribuídas a esse jogo de fórmulas, então, nada mais natural do que questionar até que ponto tais atribuições são justificáveis. É claro que o caráter essencialmente descritivo atribuído à teoria da prova poderia ser questionado. A passagem anteriormente citada é muito breve e não é possível perceber exatamente o que Hilbert pretendia ao afirmar que, através desses jogos de fórmulas, seria possível descrever de uma forma exata a maneira pela qual o nosso pensamento e entendimento efetivamente se dariam. Se considerarmos tal afirmação de um ponto de vista geral, o seu caráter se apresenta como algo duvidoso. Os procedimentos mentais parecem ocorrer de uma forma ‘não linear’ e não há nada mais estranho ao pensamento do que caminhar passo a passo a partir de um pequeno estoque de princípios de acordo com um número mínimo de regras. Novamente, a afirmação de Hilbert é implausível se for considerada em um contexto mais restrito da matemática. Que o pensamento e a compreensão ligados ao desenvolvimento de uma teoria 123
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
matemática não obedeçam ao padrão linear que Hilbert pretendia é um fato que dificilmente necessita de argumentação para ser estabelecido. Aliás, foi justamente a discrepância existente entre o jogo de fórmulas de Hilbert e a forma pela qual a prática matemática é desenvolvida que levou o lógico Gentzen à introdução dos sistemas de dedução natural. Estas discrepâncias foram minimizadas na medida em que o recurso a este tipo de expediente permitiu a utilização de um grande número de regras de inferência, bem como a representações de provas através de diagramas não lineares, entre outras coisas. Meu objetivo inicial foi o seguinte. A formalização do raciocínio lógico como foi desenvolvida por Frege, Russell e Hilbert está bastante distanciada do modo de raciocinar que é utilizado normalmente nas demonstrações matemáticas. (...) Eu quis em primeiro lugar construir um formalismo que estivesse o mais próximo possível do raciocínio real. Foi assim que obtive um ‘Cálculo da dedução natural’ (‘NJ’ para a lógica de predicados intuicionista e ‘NK’ para a lógica de predicados clássica). (Gentzen 1955, p. 4)
Além disso, o trabalho de Gödel mostrou de uma forma bastante específica que mais duas pretensões associadas a este jogo de fórmulas não eram justificáveis. Em primeiro lugar, através do recurso a sistemas formalizados não é possível eliminar o ‘subjetivismo’ da matemática completamente. A questão é entender exatamente qual a conotação atribuída por Hilbert a este termo. Se considerarmos que somente através de provas de consistência epistemologicamente significativas seria possível a obtenção de uma certeza matemática absoluta já no nível da aritmética elementar, então tal objetivo não será alcançado de uma maneira satisfatória. Mas, isto se constitui em um problema apenas no momento em que se adota uma postura ‘absolutista’ em relação ao conhecimento matemático, 124
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
como era o caso de Hilbert. Um certo resíduo de incerteza e mesmo a existência de equívocos e mal entendidos sempre estiveram presentes na história da matemática e isso não impediu o desenvolvimento dessa ciência. Em segundo lugar, a afirmação de que com a utilização do formalismo seria possível obter uma representação adequada e, consequentemente, transparente das teorias matemáticas parece também ser destituída de fundamento. Novamente, a questão que se coloca é a de sabermos qual o significado associado ao termo ‘adequado’. Contudo, a atribuição desta característica ao jogo de fórmulas não parece ser satisfatória em nenhum sentido. Se adotarmos um critério mínimo e específico, ou seja, a completude dos sistemas axiomáticos formalizados, a conclusão é inevitável: a representação sintática de ramos muito básicos da matemática é inadequada. Além disso, a transparência associada às formalizações e a referência feita por Hilbert ao fato de que através de tal expediente ‘a interconexão entre as proposições individuais e os fatos se tornaria clara’ não são passíveis de uma interpretação razoável. Grande parte dessa dificuldade está ligada à própria concepção da matemática de Hilbert. Disso resulta que um grande número de enunciados seria destituído de qualquer ‘significado’. Portanto, não fica claro como seria possível que a relação entre estas proposições e os ‘fatos’ aparecesse de uma forma mais perspícua através do jogo de fórmulas. É interessante notar que Hilbert se refere às proposições tomadas isoladamente enquanto a essência do programa formalista nos remete a um exame das proposições em conjunto, a começar pelos axiomas. Contudo, esta transparência poderia ser considerara como um facilitador na apreensão do ‘conteúdo’ do enunciado em virtude de uma explicitação completa das relações dedutivas que o envolveriam. Mas, quem afirmaria que isto ocorre na demonstração? Por 125
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista
exemplo, existe uma infinidade de números primos a partir de uma versão completamente formalizada da aritmética de Peano? Sem dúvida alguma, a prova fornecida por Euclides é superior à sua contrapartida formalizada nesse aspecto apesar de toda a sua concisão e não ‘explicitação’. Essa questão está intimamente ligada às pretensões de rigor do formalismo e teve uma influência decisiva. A ideia segundo a qual a forma mais perfeita das práticas dedutivas pode ser obtida com a noção de prova formal é consequência imediata da concepção de que o método axiomático havia obtido seu desenvolvimento pleno através de sua estrutura sintática. Como foi mostrado anteriormente, o formalismo surgiu como um novo padrão de rigor que através do movimento de desinterpretação e substituiria aquele simbolizado pela axiomática euclidiana. Entretanto, a consideração desse problema envolve uma retomada crítica do movimento de esvaziamento da axiomática e permitirá uma visão mais adequada de diversas questões envolvendo a noção de prova formal. Isso será feito no próximo capítulo, no qual será tratado o real significado da ligação entre o formalismo e o método axiomático a partir dessa perspectiva. Essa tarefa é fundamental e se coloca mediante todas as considerações tratadas nos parágrafos anteriores. Se a evidência sintática não possui o caráter privilegiado que a ela era atribuído, se a concepção da gênese do formalismo no programa formalista é contínua e consistente com a prática matemática é indefensável e, se as diversas pretensões ligadas ao formalismo decorrentes de vários pressupostos envolvidos nesta ideia de continuidade são injustificáveis, então qual a finalidade deste jogo de fórmulas? Como entender a sua relação com as axiomatizações não formalizadas e a sua relação com a matemática de uma forma geral? 126
Capítulo 4: O fracasso do programa formalista As questões mais sérias e básicas são: o que se ganha através de tal (mecânica) formalização de um ramo da matemática? (...) Como decidir se uma dada formalização é correta ou não? (Kreisel 1967, p. 225)
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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e
Capítulo 5
O Método Axiomático e o Formalismo 5.1. A axiomática formal e o contexto da desinterpretação A partir da década de trinta do século passado, o desenvolvimento de uma semântica formal, ou seja, o estudo de diversas noções semânticas associadas aos sistemas axiomáticos formalizados, foi um fator que agravou ainda mais os desentendimentos existentes na compreensão da relação entre o método axiomático e o formalismo em função de uma situação específica. Em primeiro lugar, o estudo de tais noções exigia uma modificação substancial do aparato a ser utilizado na metateoria. As várias noções semânticas passaram a ser definidas com o auxílio da teoria dos conjuntos. Esse fato alterava profundamente a perspectiva a partir da qual as teorias formalizadas passavam a ser examinadas. Contudo, nenhum tipo de revisão conceitual foi realizado e as conotações associadas aos formalismos continuavam a ser aquelas presentes no programa de Hilbert. O problema que surge é que a própria inteligibilidade das características atribuídas aos sistemas axiomáticos formalizados advinha de todo um aparato conceitual específico e isso resultava entre outras coisas em substanciais restrições nos métodos empregados em teoria da prova. Os termos ‘metamatemática’ ou ‘metalinguagem’ passaram a ser utilizados de forma bastante abrangente principalmente a partir dos trabalhos de Tarski e Carnap. As alterações introduzidas através desse tipo de postura não são triviais. Basta lembrar que no final da década de vinte do século passado, von Neumann, um discípulo de Hilbert, criticou
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
Tarski por haver axiomatizado a metalinguagem em um congresso em Bologna. Outra consequência é, através do desenvolvimento da semântica formal ou teoria de modelos, o conceito de evidência passar a ser completamente desconsiderado no desenvolvimento e no estudo dos sistemas axiomáticos. É importante notar que Hilbert pertencia a uma tradição que havia eliminado esse conceito em sua vinculação estrita com os axiomas. No momento em que também se desconsiderava esse conceito na metateoria é difícil saber como localizá-lo e até se ele possui alguma utilidade. Entretanto, a concepção de Hilbert acerca da relação entre o método axiomático e o formalismo permaneceu inalterada. A sua influência foi extraordinária entre aqueles que se interessaram em desenvolver tanto a lógica como diversos ramos da matemática, tais como aritmética, análise e teoria de conjuntos. Em 1967, por exemplo, Shoenfield publicou o livro Mathematical Logic que ainda é uma obra fundamental nesta área. Nela encontramos comentários do seguinte tipo: Um axioma (ou teorema) pode ser examinado a partir de duas perspectivas distintas. Ele pode ser considerado como uma sentença, i.e., como um objeto que aparece sobre o papel quando escrevemos o axioma. A outra forma seria considerá-lo como o significado de uma sentença, i.e., o fato expresso pelo axioma. Numa primeira abordagem poderia parecer que essa segunda maneira seria muito mais importante. É claro que o objetivo de uma sentença é transmitir o seu significado de uma forma clara e precisa. Esta é uma tarefa útil, mas não parece ter muita importância quando se trata de examinar os fundamentos da matemática. (Shoenfield 1967, p. 2)
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
Ao considerar a questão dos axiomas na matemática, um outro exemplo típico é fornecido por Rosser no livro Logic for Mathematicians (1953): Desejo deixar claro um ponto sobre o nosso uso da palavra ‘axioma’. Originariamente esta palavra foi utilizada por Euclides para designar uma ‘verdade auto-evidente’. Esse uso da palavra ‘axioma’ há muito tempo caiu em desuso nos meios matemáticos. Para nós, os axiomas são conjuntos de enunciados escolhidos arbitrariamente que, juntamente com a regra de modus ponens, são suficientes para derivar todos os enunciados que desejamos. Esse corresponde ao uso matemático standard da palavra ‘axioma’. (Rosser 1953, p. 55)
Além disso, a concepção sintática de prova é vista como o padrão de rigor dedutivo ao qual a atividade matemática deveria se adequar: Como uma condição para que o rigor seja obtido, exigimos que a prova de um teorema (da linguagem objeto) não faça nenhuma referência ou use, de alguma forma, qualquer interpretação. Sua execução deve se dar unicamente através das regras do sistema logístico, i.e., deve ser uma prova no sentido definido anteriormente para os sistemas logísticos. (...) Essa condição representa o requisito matemático usual de rigor, ou seja, que uma prova deve ser efetuada a partir dos axiomas sem que nada seja utilizado (por mais óbvio que possa parecer) que não esteja estabelecido nos axiomas. (Church 1956, p. 55)
De uma forma geral, esse estado de coisas pode ser concebido como fruto de todo o movimento que levou ao esvaziamento da axiomática e que culminou com o programa formalista de fundamentação da matemática. A ideia de que a noção de prova formal nos remete diretamente às transformações sofridas pelo método axiomáti131
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
co no final do século XIX foi muito bem observada por Tarski que escreveu em seu artigo “Truth and Proof”: Até os últimos anos do século XIX a noção de prova foi fundamentalmente de um caráter psicológico. (...) Em um determinado período, no entanto, sentiu-se necessidade de submetê-la a uma análise profunda. Isso resultou em uma restrição crescente do uso da evidência intuitiva neste contexto. Esse fenômeno provavelmente surgiu a partir de alguns desenvolvimentos específicos da matemática, em particular, do desenvolvimento das geometrias não-euclidianas. (...) Isso conduziu à introdução de uma nova noção, aquela de prova formal. Essa noção acabou se revelando um substituto adequado e um progresso essencial em relação à velha concepção psicológica. (Tarski 1969, p. 70)
Então, uma análise satisfatória do conceito de prova formal e da relação entre o método axiomático e o formalismo nos remete a uma reconsideração dos diversos fatores que levaram à concepção segundo a qual a forma clássica de se entender a axiomática seria deficitária em diversos aspectos. Como visto no primeiro capítulo, o fenômeno da desinterpretação surgiu a partir de uma série de desenvolvimentos matemáticos de grande impacto que pareciam sugerir uma outra forma de entender as práticas dedutivas, em particular o seu arranjo e organização através do método axiomático. Isso levou à concepção de que a axiomatização euclidiana envolveria ‘erros incontáveis’, muito bem ilustrada pela citação de Russell (p. 37). Era necessária uma reforma profunda dos elementos constitutivos do método axiomático para evitar tais equívocos. Afinal, que erros são estes? Em que medida tais inconvenientes nos remetem necessariamente a uma concepção formal da axiomática? E mais, até que ponto as pretensões da axio132
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
mática formal se mostraram justificáveis através do seu desdobramento com o formalismo? É importante assinalar que desde a Antiguidade havia sido observado que o trabalho de Euclides apresentava certos problemas para os quais deveria ser obtida uma solução mais adequada. Inúmeras tentativas foram feitas nesse sentido desde Apolônio até os matemáticos do século XIX. Contudo, o problema residia no fato que os matemáticos não conseguiam ver em muitos casos como isso seria possível. Por exemplo, no século XVIII, Gauss havia chamado a atenção para o papel da relação de ‘estar entre’ que se verificaria entre os pontos de uma reta e que não havia recebido um tratamento explícito em Os Elementos. Apesar disso, ele não tentou elaborar uma definição rigorosa dessa relação, tampouco deixou de utilizá-la em suas investigações. Independentemente de qualquer formalização, os matemáticos haviam percebido que certos ajustes deveriam ser feitos no trabalho de Euclides. Mas o grande problema era como fazer isso. O tratamento satisfatório de algumas questões foi obtido somente no século XIX e sugerido muitas vezes por considerações completamente estranhas ao âmbito da geometria euclidiana, mas isso não desabona a obra de Euclides. A situação parece sugerir exatamente o oposto. A existência de pressuposições implícitas na axiomatização euclidiana acabou desempenhando um papel fundamental para o advento da axiomática formal, apesar de diversos fatores parecerem indicar que a interpretação atribuída a este fenômeno foi errônea. Em primeiro lugar, Euclides não fez nenhum tipo de suposição falsa e nenhum de seus teoremas se mostrou inválido uma vez explicitadas as suas pressuposições. Portanto, a necessidade de certos axiomas adicionais, como os de ordem e continuidade, para 133
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
complementar certas demonstrações de Euclides não parece ser razão suficiente para se atribuir à sua axiomatização ‘erros incontáveis’. Qualquer pessoa que já trabalhou de uma forma sistemática com geometria sabe o quão difícil é ‘ver’ tais suposições ainda hoje. Do ponto de vista pedagógico não é aconselhável introduzir tais tipos de considerações a não ser em estágios em que o estudante esteja suficientemente maduro para perceber a sua real necessidade. Caso contrário, a sensação será de uma complicação desnecessária de fatos absolutamente elementares. A questão das suposições implícitas em uma prática dedutiva é difícil e o seu tratamento não parece ser nada trivial. O próprio Hilbert com o seu programa de fundamentação nos revela a complexidade da questão de uma forma notável. Hilbert afirmava que a matemática seria uma ciência sem pressuposições (p. 105), como mostrado no terceiro capítulo. No seu entender, a evidência de natureza sintática com a sua simplicidade absoluta seria suficiente para estabelecer os fundamentos da matemática. O recurso a expedientes de natureza sintática era inevitável no contexto da investigação científica, portanto isso não se constituiria em uma suposição adicional caso o problema fosse estabelecer uma base sólida para a matemática. Contudo, tal pretensão pode ser plenamente justificada na perspectiva formalista? Definitivamente esse não parece ser o caso porque, em primeiro lugar, a simplicidade atribuída ao âmbito finitário aparenta não resistir a uma análise minuciosa como foi visto no quarto capítulo. O recurso a algum tipo de suposição usada implicitamente por Hilbert que assegure à teoria dos números finitária todas as suas propriedades desejáveis parece inevitável. Além disso, outros aspectos do programa formalista apresentam este mesmo tipo de problema. Ao investigar a aritmética, Hilbert se utiliza dos 134
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
axiomas anteriormente empregados por Peano. Ora, por que não adotar um conjunto qualquer de sentenças? Qual a razão de escolher estes axiomas em particular? O mesmo poderia ser afirmado com respeito às regras de inferência utilizadas. Por que utilizar modus ponens e não uma outra regra qualquer? Uma vez que do ponto de vista estritamente formalista a essência desses procedimentos seria simplesmente gerar novas fórmulas a partir de fórmulas dadas, essa questão parece natural. Além disso, o que nos garante que o critério da consistência é uma condição suficiente para a existência dos elementos definidos pelo sistema? Isso não seria algo a ser demonstrado ao invés de presumido? Em certo sentido, esse resultado foi obtido por Gödel ao mostrar que todo conjunto dedutivamente consistente possui um modelo em lógica de primeira ordem através de métodos de natureza não construtiva. Problemas adicionais e nada triviais se colocam quando se trata de caracterizar unicamente o modelo pretendido. Outro tipo de problema da mesma natureza surge quando Hilbert trata as provas como sequências finitas de fórmulas com características bastante específicas do ponto de vista da teoria da prova. No artigo “Some Remarks on Axiomatized Set Theory” (1922), Skolem observou adequadamente que certas propriedades dos objetos concretos que constituiriam as provas são simplesmente assumidas quando deveriam ser objeto de prova. Skolem cita como exemplo uma prova na qual Hilbert utiliza o fato que se um signo ocorre em uma prova aritmética então este signo deve necessariamente ocorrer uma primeira vez. Em sua opinião esta é uma suposição que deveria ser provada e isso envolveria o recurso ao princípio da indução matemática irremediavelmente:
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo Embora essa propriedade possa ser evidente na base de nossa intuição perceptual de expressões finitas, uma prova formal deste fato pode ser dada somente através do recurso à indução matemática. De qualquer forma, na teoria de conjuntos nos damos o trabalho de provar que todo o conjunto finito ordenado é também bem ordenado, ou seja, todo subconjunto deste conjunto possui um primeiro elemento. Bem, por que deveríamos provar cuidadosamente esse enunciado, mas não aquele referido anteriormente, que afirma apenas a propriedade correspondente para as expressões aritméticas finitas que ocorrem nas provas? (Skolem 1922, p. 300)
Outra situação que ilustra adequadamente a complexidade da questão das suposições usadas implicitamente nas práticas dedutivas diz respeito ao axioma da escolha. A introdução deste axioma foi feita por Zermelo em 1904 e causou uma forte reação por parte dos matemáticos. Poincaré o criticou duramente por ter introduzido um princípio de natureza extremamente duvidosa. Segundo Peano, a aplicação de uma lei arbitrária um número infinito de vezes, através da qual se faria corresponder a uma classe qualquer um indivíduo pertencente a essa classe, era um procedimento inadmissível. A estas críticas se juntaram as de Borel e Baire, dois eminentes matemáticos franceses que se opuseram à utilização de tal princípio de modo veemente. Após um estudo sistemático desse axioma e sua relação com outros princípios, qual não foi a surpresa ao se constatar que ele havia sido utilizado implicitamente por alguns de seus mais ferrenhos adversários. O caso de Borel é típico. Em sua tese de doutorado, ao estudar certas propriedades ligadas às funções de variáveis complexas, Borel formula pela primeira vez o enunciado que hoje é conhecido como o teorema de Heine-Borel, no qual é possível detectar a utilização de certos princípios intimamente ligados ao axioma da 136
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
escolha. Algo análogo aconteceu com Baire e foi posteriormente descoberto por Sierpinski. Diversos teoremas estabelecidos por Baire a respeito da sua classificação das funções reais não podem ser mantidos em toda a sua generalidade sem a utilização do axioma da escolha. Dessa forma, o problema das pressuposições implícitas está longe de ser um privilégio da obra de Euclides. A questão é como se deve avaliar este tipo de ‘problema’. Se considerarmos a existência de tais elementos em um procedimento dedutivo como algo que o desqualifica como método rigoroso na obtenção de resultados, então dificilmente encontraremos em toda a história da matemática alguém que tenha sido rigoroso na execução de suas provas. A seguir, mostrarei que o apelo a provas formais não é uma solução satisfatória para essa situação sob diversos aspectos. Os adeptos da desinterpretação também criticam Euclides no que diz respeito ao caráter e à utilização de suas definições. Algumas destas críticas são em relação à existência de certas definições que não eram utilizadas posteriormente em nenhuma demonstração (p. 36 e 37). Esse fato é, do ponto de vista estritamente dedutivo, indesejável, porém, isso não é suficiente para desqualificar o tipo de definição utilizada por Euclides ou condenar Os Elementos por falta de rigor. Se considerarmos que a obra de Euclides é extremamente complexa e sistematiza um grande número de trabalhos de eminentes matemáticos gregos, então é compreensível que em um primeiro momento certas definições que poderiam ter parecido imprescindíveis para o desenvolvimento da teoria possam ter permanecido no arranjo dedutivo de todas essas proposições. Outro tipo de objeção diz respeito às definições dos termos primitivos. As críticas visam desqualificar como inapropriadas as definições de ponto, reta, etc., dadas por Euclides no início do livro 137
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
primeiro. Ele parecia não ter percebido que não era possível definir todos os termos de uma teoria uma vez que a definição, pelo seu próprio caráter, parecia exigir a existência de termos cujos significados fossem previamente conhecidos. Essa crítica procede ou não depende do estatuto que atribuimos a essas ‘definições’. Basta lembrar que Euclides não deixou nada escrito a respeito do seu entendimento acerca da natureza e da função dos diversos elementos constitutivos de uma teoria axiomática. É claro que o significado de certos termos de uma teoria deve ser simplesmente assumido. Como visto (p. 42 e 43), os gregos já haviam percebido que não era possível definir todos os termos. Isso, antes de se constituir em um defeito, seria uma exigência própria da relação de definibilidade. Contudo, nada impede que se tente dar algumas indicações a respeito desses termos primitivos, pois isso é fundamental para o desenvolvimento de uma teoria, apesar de não fazer parte dela em sentido restrito. Em sua polêmica com Hilbert, Frege compreendeu a função desse tipo de procedimento e o marcou claramente através da distinção de explicações por um lado e de definições de outro: (...) devemos admitir elementos primitivos que são indefiníveis. Uma vez que não é possível definir os elementos primitivos, devemos recorrer a algum outro tipo de expediente. Eu o denomino de explicação. O recurso a tal expediente serve tanto para o entendimento mútuo entre os diversos investigadores como para a comunicação da ciência a outras pessoas. (...) A finalidade das explicações é fundamentalmente de caráter pragmático. Uma vez que esse propósito tenha sido alcançado, devemos ficar satisfeitos com a sua utilização. Aqui, devemos ser capazes de contar com um pouco de boa vontade, de entendimento mútuo, e até com certa capacidade de adivinhação, pois, frequentemente, não podemos deixar de utilizar um modo figurativo
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo para nos expressarmos. Mas, apesar de tudo isso, podemos sempre exigir daquele que formulou uma explicação que ele conheça com segurança aquilo que ele pretende transmitir, que permaneça sempre em acordo consigo mesmo e que esteja pronto a completar e esclarecer a sua explicação toda vez que surja a possibilidade de desentendimentos, apesar das melhores intenções. (Frege 1984, p. 300 e 301)
A necessidade deste tipo de consideração parecia ter sido completamente abolida através do esvaziamento da axiomática. Uma situação específica contribuiu decisivamente para esse estado de coisas. Em The Foundations of Geometry, Hilbert adotava a nova concepção da axiomática, mas no seu tratamento da geometria se mantinha o mais próximo possível da sistematização euclidiana. Basta lembrar da observação de Weyl (p. 63 e 64), na qual, ele chama a atenção para a proximidade entre Hilbert e o trabalho de Euclides. Esse seria um dos fatores que distinguiria a sua axiomatização daquelas efetuadas pela escola italiana na mesma época. A utilização desse expediente permitiu que se criasse uma impressão generalizada de que nada era pressuposto pela teoria, e de que os termos primitivos e as relações seriam definidos pelos axiomas. Na verdade, o desenvolvimento do trabalho de Hilbert foi possível somente na medida em que um entendimento prévio dos conceitos básicos era pressuposto. Isso foi fornecido pela axiomatização euclidiana que serviu de estrutura básica através da qual Hilbert conseguiu obter uma sistematização que complementava a obra de Euclides em importantes aspectos: Quando Hilbert nos diz: ‘consideremos três classes de entes que chamaremos pontos, retas e planos’, dotados de propriedades tais como ‘por dois pontos pode-se fazer passar uma reta e uma só’, sabemos
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo muito bem que Hilbert não teria pensado em tais ‘entes’ se Euclides não tivesse vivido antes dele. (Borel, in: Maurer 1977, p. 1)
Esse é um fato reconhecido pelo próprio Hilbert em The Foundations of Mathematics. Hilbert usa o termo ‘axiomática concreta’ para designar aquilo que neste trabalho é referido pelo termo ‘axiomática clássica’ e ao discutir o método axiomático reconhece explicitamente a existência de tal tipo de pressuposição: A axiomática formal precisa da axiomática concreta como um elemento que a complementa. Isto se deve ao fato de que é através da axiomática concreta que se dá a seleção dos elementos fundamentais para os formalismos. É através dela também que se dá a aplicação de teorias formais previamente existentes no terreno concreto. (Hilbert e Bernays 1958, p. 3)
É interessante notar que na sua discussão com Frege, Hilbert recusava o recurso ao conceito de explicação baseado no princípio de que seu propósito era não pressupor nada como conhecido
(p.
64). Contudo, se examinarmos os axiomas do The Foundations of Geometry, encontraremos enunciados do tipo: ‘existem pelo menos dois pontos em uma linha reta’, ‘existem ao menos três pontos que não estão em uma linha reta’ ou ‘existem ao menos quatro pontos que não estão em um plano’. É evidente que nesses axiomas a noção de contagem é puramente assumida e com ela o conceito de número natural. Mais uma vez, isso mostra a complexidade deste tipo de problema que parece não ter sido solucionado satisfatoriamente com o advento da axiomática formal. A noção básica, que foi o ponto a partir do qual se deu toda a transformação do método axiomático, é extremamente problemática por sua própria natureza. A concepção segundo a qual os axiomas 140
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
seriam estipulações arbitrárias que definiriam os elementos básicos da teoria não parece fazer muito sentido. Nesse aspecto, a comparação efetuada pelos adeptos da desinterpretação entre os axiomas e um sistema de equações (p. 46 e 47) é reveladora. Consideremos um sistema de n equações lineares a n incógnitas. Para que se possa afirmar que este sistema de equações possui uma solução determinada, ou seja, que é possível estabelecer o valor das incógnitas x1, x2, x3, ..., xn de uma forma unívoca, é necessário lançar mão de um expediente que utiliza grandezas previamente conhecidas, a saber, os coeficientes e as constantes do sistema. A solução geral para este tipo de problema está na dependência direta da obtenção de um número n de identidades do tipo
Nxi
xi = D m
tal que xi é a incógnita cujo valor deve ser determinado, Dm é o determinante obtido da matriz dos coeficientes das equações, e Nxi é o determinante da matriz obtida mediante a substituição, na matriz original, da coluna dos coeficientes de xi pelos termos constantes do sistema. É importante notar que no lado direito da identidade acima referida só existem termos conhecidos. Nada desse tipo pode ser transposto para a concepção da axiomática formal de uma forma inteligível. Gergonne, que utilizou pela primeira vez o termo ‘definição implícita’, reconhecia inequivocamente o fato de tais ‘definições’ exigirem a existência de termos cujo significado fosse previamente conhecido: (...) se uma frase contém uma única palavra cujo significado nos é desconhecido, o enunciado desta frase poderá ser suficiente para nos revelar o seu significado. Se, por exemplo, dizemos a alguém que co-
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo nhece o significado das palavras triângulo e quadrilátero, mas que desconhece a palavra diagonal, que cada uma das duas diagonais de um quadrilátero o divide em dois triângulos, ele entenderá no que se constitui uma diagonal. (...) Poderíamos também imaginar que duas frases contendo duas palavras novas, combinadas com outras previamente conhecidas, poderiam nos ajudar a entender o sentido destas duas palavras. (Gergonne, in: Enriques 1949, p. 129)
A motivação para a introdução deste tipo de manobra na base dos sistemas axiomáticos se deu pela necessidade de obter um rigor demonstrativo impecável. Este expediente não permitiria a introdução de princípios não explicitados na teoria que, juntamente com a exclusão de diagramas geométricos, não permitiria que através da familiaridade do investigador com o tema tratado fossem introduzidas certas suposições adicionais. A questão de que a exclusão da ‘evidência geométrica’ na execução de uma prova seria condição necessária para se obter rigor é algo dependente da concepção a respeito do que seja a função de uma prova bem como dos critérios de rigor que se pretenda adotar. A obtenção de possíveis ‘sofismas geométricos’ (p. 43 e 44) não é uma razão suficiente para se excluir completamente o recurso a este expediente. No caso da demonstração de que todo triângulo é isósceles é provável que qualquer pessoa com um bom treinamento em geometria percebesse que tal conclusão poderia ser obtida somente através da construção errada de certas figuras. É importante notar que não encontramos problemas dessa natureza em nenhuma passagem da obra de Euclides. Este tipo de engano é também possível através de manipulações de caráter puramente algébrico. O caso mais simples e conhecido é a introdução em cálculos razoavelmente complicados de uma expressão no denominador de uma fração qualquer cujo valor, que não é passível de uma constatação imedia142
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
ta, é zero. Isso permite que se obtenham conclusões do tipo 1 = 2. Entretanto, este tipo de equívoco está longe de desqualificar o recurso aos cálculos algébricos. No momento em que se concebe a prova como um instrumento genuíno na produção de conhecimento e entendimento, o recurso a diagramas geométricos é imprescindível. Não é um mero acaso que a álgebra desenvolvida pelos gregos tenha tido um caráter essencialmente geométrico. Sem o recurso a certas representações sensíveis seria difícil imaginar como os matemáticos daquela época poderiam ter obtido resultados de natureza abstrata envolvendo o conceito de número, por exemplo. Ainda hoje, esse é um expediente largamente empregado nos campos mais avançados da matemática. Se rigor é a obtenção de provas ‘sem erros’, a eliminação dos diagramas pode ser o caminho mais rápido e eficiente para a produção de equívocos e confusões. Uma pessoa familiarizada com a topologia ou a teoria das equações diferenciais sabe da utilidade destas ‘visualizações’ na obtenção de novos resultados. Inclusive, esse é um ponto de vista que seria endossado por Hilbert: Dessa forma, as figuras geométricas são signos ou símbolos mnemônicos da intuição espacial e, como tais, são usadas por todos os matemáticos. Quem não utiliza juntamente com a dupla desigualdade a < b < c a figura de três pontos se sucedendo sobre uma linha reta como uma representação geométrica da relação de ‘estar entre’? Quem não se utiliza do desenho de segmentos e de retângulos, encaixando um dentro do outro, quando se trata de provar um teorema difícil sobre continuidade de funções ou da existência de pontos de condensação, com absoluto rigor? Quem poderia dispensar a figura do triângulo, do círculo e de seu centro e da imagem fornecida pelos três eixos perpendiculares? Ou, quem não utilizaria a representação
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo de um espaço vetorial ou de uma imagem de uma família de curvas ou superfícies, que é tão importante na geometria diferencial, na teoria das equações diferenciais, no fundamento do cálculo de variações e também em outras ciências puramente matemáticas? (Hilbert, in: Reid 1970, p. 79)
A alegação de que somente através do esvaziamento contentual dos axiomas seria possível alcançar o rigor demonstrativo não parece ser justificável. Essa motivação levou os adeptos da desinterpretação à desconsideração das noções semânticas, bem como ao descaso pelos conceitos de evidência e intuição associados a sentenças básicas da teoria. Ao considerarmos The Foundations of Geometry, é fácil constatarmos que seu rigor provém antes da habilidade do autor em utilizar uma série de descobertas prévias e agregá-las para obter o resultado pretendido, ao invés do alegado colapso das relações de demonstrabilidade e definibilidade. É importante salientar que Hilbert usa abundantemente o recurso a diagramas geométricos na obtenção de seus resultados no desenvolvimento de sua axiomatização. Um breve exame da obra nos revelará imediatamente uma série de problemas na sua estrutura. O primeiro diz respeito ao axioma de completude, que não se encontra na primeira edição do The Foundations of Geometry. Tudo indica que a sua introdução se deveu a uma crítica do matemático Sommer que chamou atenção para o fato de que o axioma arquimediano não era suficiente para mostrar fatos muito simples no sistema de Hilbert. Um exemplo citado por Sommer é o da impossibilidade de mostrar que uma linha reta que possui um ponto no interior de um círculo e outro fora interceptaria a circunferência deste círculo em algum ponto. Além disso, o axioma em consideração não possui uma natureza unicamente geométrica, fato reconhecido pelo seu próprio autor, por ser falso em lógica de 144
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
primeira ordem. Esse enunciado possui características muito específicas que o distinguem de todos os demais pertencendo antes à teoria que trata do sistema geométrico em consideração. Outros exemplos de imprecisões poderiam ser facilmente detectados no The Foundations of Geometry. No capítulo IV, “Teoria das áreas planas”, a noção de decomposição de um polígono P qualquer em n polígonos P1, P2, P3, ..., Pn não é completamente rigorosa. Posteriormente foi necessária a introdução de uma definição recursiva capaz de caracterizar este conceito de decomposição de forma precisa. No capítulo VII, o teorema número 65, que trata de determinadas construções geométricas, não está formulado corretamente. No apêndice da primeira edição de sua obra, Hilbert demonstrou um fato acerca das superfícies de curvatura constante positiva e posteriormente foram descobertos certos equívocos na sua prova. A correção foi feita pelo próprio Hilbert e agregada às edições posteriores como a segunda parte do suplemento V. Os adeptos da desinterpretação consideravam que a familiaridade com o tema era uma das principais causas da introdução de suposições adicionais às provas de Euclides (p. 37). O recurso ao esvaziamento dos axiomas e à utilização de expedientes de ‘natureza mecânica’ seria a garantia de que esse tipo de inconveniente não ocorreria, desde que se utilizasse a concepção formal da axiomática. Mas nesse momento surge um problema. Que matemático seria capaz de obter uma sistematização tão brilhante a não ser um familiarizado com as noções e os conceitos em questão? Que outro matemático seria capaz de determinar a partir de quais proposições básicas seria possível a organização de todo o conhecimento geométrico da época? Que outro matemático seria capaz de obter resultados tão elegantes e ordenados a partir de um número mínimo de axiomas e postulados? Que outro matemático, a não ser um profundo conhe145
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
cedor da matéria, dotado de habilidade extraordinária, poderia perceber que era necessário assumir o postulado das paralelas apesar de seu caráter problemático? Quando consideramos as inúmeras tentativas feitas durante mais de vinte séculos para provar o postulado das paralelas, muitas delas realizadas por geômetras de grande habilidade, não podemos deixar de admirar o gênio do homem que concluiu que tal hipótese, indispensável para a construção de todo seu sistema de geometria, era realmente indemonstrável. (Heath, in: Euclides 1956, p. 202)
Euclides tinha plena consciência do caráter problemático desse postulado, e isso é evidente se acompanharmos o desenvolvimento de sua axiomatização. O postulado das paralelas é usado pela primeira vez na proposição 29 do livro I quando todos os fatos que poderiam ser obtidos na teoria das paralelas já haviam sido estabelecidos. Portanto, a partir da descoberta da independência deste postulado não parece correto concluir pelo fracasso do conceito de evidência e optar pela eliminação do recurso a qualquer tipo de intuição. O mais natural talvez fosse concluir que a evidência seria uma noção mais complexa do que se havia suposto de início. Pascal, com a sua concepção dos axiomas como verdades óbvias, reforçou esse equívoco que, vinha desde o tempo de Proclus (p. 25), e Hilbert também cooperou significativamente nesse sentido através da sua concepção sintática de evidência. É necessário ressaltar que os próprios fundadores das geometrias não-euclidianas não viram no seu trabalho motivos que os levassem a adotar os vários expedientes sugeridos pelo movimento de desinterpretação. O caso da geometria hiperbólica é bastante ilustrativo a esse respeito. Lobachevsky não utilizou modelos euclidianos para demonstrar a consistência da nova geometria obtida, mas sim 146
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
para mostrar a correção da geometria euclidiana plana que poderia ser obtida como um caso particular da geometria desenvolvida por ele. O que parece ter passado despercebido pelos defensores da nova concepção da axiomática é o fato dos fundadores dessas geometrias jamais terem lançado dúvida sobre a verdade dos demais postulados. Concluir do fato de que o postulado das paralelas é independente e que o conceito de verdade é completamente dispensável da base do sistema axiomático é no mínimo temerário. Bolyai costumava se referir aos quatro primeiros postulados de Euclides como as bases da ciência absolutamente verdadeira do espaço. Outro fator que contribuiu para o advento da axiomática formal foi a retomada do interesse pelo estudo da geometria projetiva no século XIX. Na seção 1.2 foi mostrado de que forma a introdução dos chamados elementos ideais propiciou o estabelecimento do princípio de dualidade e o consequente incentivo de conceber a axiomática nos moldes formais. Apesar de tal expediente ter proporcionado resultados matemáticos interessantes, do ponto de vista conceitual, isso não faz com que sejamos forçados a aceitar as conclusões esboçadas pelos adeptos do movimento de desinterpretação. Em sua dissertação de doutorado, On a Geometrical Representation of Imaginary Forms in a Plane (1873), Frege considera especificamente o caso da introdução de pontos no infinito. A sua interpretação não parece indicar que a adoção desse expediente leva necessariamente ao esvaziamento da axiomática: Literalmente falando, um ‘ponto no infinito’ é uma contradição em termos. Isto devido ao fato de que este ponto seria o ponto final de uma distância que não possuiria fim. Portanto, a expressão é inapropriada e serve para designar o fato de que duas linhas paralelas se comportam projetivamente como linhas retas que se interceptam em um mesmo ponto. Assim, “ponto no infinito” é somente uma outra
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo expressão para aquilo que é comum a todas as paralelas, ou seja, aquilo que normalmente denominamos de direção. Assim como uma linha reta é determinada por dois pontos, ela também pode ser determinada por um ponto e uma direção. Isto é somente um caso particular de uma lei geral que afirma que toda vez que estamos tratando de relações projetivas, uma direção pode representar um ponto. Ao designar a direção como um ponto no infinito evitamos uma dificuldade que surgiria de outra forma. Isto devido à circunstância de que frequentemente devemos distinguir em um número muito grande de conjuntos de linhas retas entre aquelas que são paralelas ou não. (Frege 1984, p. 1).
Em última análise, tanto a questão da existência quanto a da verdade foram recolocadas em moldes clássicos pelo advento da formalização dos sistemas axiomáticos no contexto específico do programa formalista. A consistência é uma exigência básica desta nova concepção que levou naturalmente a este tipo de situação. O que podemos perceber no programa de Hilbert é que a existência das entidades básicas da teoria contentual dos números é simplesmente assumida assim como a verdade dos enunciados nesse domínio. As próprias características atribuídas por Hilbert a esse domínio dispensariam por completo o recurso à prova. Assim, dependendo da perspectiva adotada, o papel da verdade não é tão secundário ou dispensável como alguns gostariam de crer. O mesmo pode ser dito a respeito da existência; afinal, a razão acabou ficando ao lado de Frege em certo sentido (p. 70 e 71). É interessante notar a pertinência da crítica de Frege endereçada à economia conceitual associada à noção algébrica de prova como ela foi idealizada pelos adeptos da desinterpretação. Como visto anteriormente (p. 52 e 53), a escola italiana em particular associava ao esvaziamento semântico da noção de prova a possibilidade 148
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
de se obter um grande número de provas em domínios completamente distintos através de ‘interpretações’. Esse tipo de concepção além de sugerir fortemente que o essencial em uma prova seria o seu ‘esqueleto algébrico’, apregoava que através de uma única demonstração estaríamos realizando simultaneamente um grande número de provas. Frege chamou a atenção para uma grave confusão que estaria na base dessa concepção ao mostrar que primeiro demonstramos uma proposição geral, com o auxílio da qual seria possível obter uma série de enunciados pertencentes a domínios específicos através de inferências. Este tipo de argumentação é fundamental na medida em que ele nos permite dar conta da noção de generalidade associada a certos tipos de provas sem necessitarmos adotar os preceitos básicos da desinterpretação. Além disso, a concepção segundo a qual os axiomas seriam estipulações arbitrárias conduziu a um descaso completo da própria noção de evidência. Apesar de Hilbert ter resgatado esta noção, a sua maneira reducionista de abordá-la (p. 94 e 95) agravou consideravelmente essa situação em certo sentido. Ao comentar The Foundations of Geometry, Poincaré já havia percebido este estado de coisas: Somente o ponto de vista lógico parece interessar o professor Hilbert. Dada uma sequência de proposições, ele mostra que é possível obter todas as demais a partir deste grupo. Ele não se interessa nem pelos fundamentos destas proposições primeiras, nem pela sua origem psicológica. (...) Os axiomas são postulados simplesmente. Nada nos é dito acerca de suas origens. Desta forma, é indiferente postular tanto A quanto C. (Poincaré, in: Reid 1970, p. 63)
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No meu entender, somente nesse contexto é possível explicar a constatação de Kreisel que, ao analisar diversos resultados ligados ao desenvolvimento da lógica matemática, escreveu perplexo: O processo, seja ele qual for, que nos conduz à adoção dos axiomas é relevante para o desenvolvimento técnico da matemática. Em vez de considerar essa questão mais seriamente, os lógicos, após a descoberta de Gödel, passaram a considerá-la de uma forma menos séria! (Kreisel 1967, p. 203)
O movimento de desinterpretação via formalismo influenciou de forma decisiva a utilização do método axiomático tanto na lógica como na matemática contemporâneas através de Hilbert. Apesar do fracasso do programa formalista, o conceito de evidência continuou a ser associado com procedimentos de natureza sintática e o recurso à intuição permaneceu ligado a esses objetos concretos, finitos e de natureza discreta. Contudo, a concepção de que os axiomas são meras especulações arbitrárias é uma concepção que não resiste a um exame mais detalhado de diversos desenvolvimentos matemáticos, alguns deles são subsidiários deste modo de entender os axiomas. Por exemplo, um rápido exame do The Foundations of Geometry nos revelará que dificilmente se poderia atribuir o caráter de arbitrariedade aos axiomas utilizados por Hilbert, desconsiderando a limitação explícita exercida pelo requisito de consistência. Os enunciados que estão na base dessa axiomatização foram cuidadosamente escolhidos para fornecerem uma sistematização mais completa e concisa da geometria euclidiana. Alguns deles haviam tido uma longa história de investigação e testes de suas propriedades dedutivas. A própria adoção do postulado das paralelas na versão de Playfair parece confirmar este ponto de vista de forma contundente.
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
No início do século XX, a interpretação do surgimento de paradoxos na teoria de conjuntos como mais um elemento que viria depor contra os conceitos de evidência e de intuição repousa em uma concepção errônea daquilo que estava envolvido nesse tipo de problema. Em primeiro lugar é necessário observar que a reação à descoberta dos paradoxos não foi uniforme na comunidade matemática. Por exemplo, Cantor não demonstrou qualquer tipo de preocupação diante de tais descobertas. Ao contrário, tentou utilizar a existência de coleções inconsistentes para demonstrar o que na época era apenas uma conjectura, a saber, que todo conjunto poderia ser bem ordenado. Anos mais tarde, von Neumann tentaria algo análogo utilizando o paradoxo de Burali-Forti. Matemáticos como Hausdorff nunca demonstraram a menor preocupação com esse tipo de problema e, ao contrário do que se pensa ainda hoje, a motivação básica de Zermelo para a axiomatização da teoria de conjuntos não foi o surgimento dos paradoxos. Gödel chamou a atenção para o fato de que é possível recorrer a uma concepção de conjunto intuitiva suficiente para o desenvolvimento da matemática, e isso não revelou nenhum tipo de problema até agora. Quando se afirmam teoremas sobre todos os conjuntos (ou a existência de conjuntos em geral) se pode interpretar, sem nenhuma dificuldade, que se está afirmando que valem para conjuntos de números inteiros assim como para conjuntos de conjuntos de números inteiros etc... (respectivamente, que existem conjuntos de números inteiros etc..., que possuem a propriedade enunciada). Este conceito de conjunto segundo o qual um conjunto é algo capaz de ser obtido a partir dos números inteiros (ou quaisquer outros objetos bem definidos) mediante a aplicação iterada da operação “conjunto de” e não como
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo algo que é obtido se dividindo a totalidade das coisas que existem em duas categorias, não conduziu, nunca, a nenhum tipo de antinomia. Isto quer dizer, que o trabalho perfeitamente “ingênuo” e acrítico com este conceito de conjunto mostrou, até o momento, ser completamente autoconsistente. (Gödel 1986, v.2, p. 180)
Dessa forma é possível perceber que as diversas motivações que deram origem à concepção formal da axiomática, bem como aquelas que a reforçaram, repousam em grande parte em interpretações errôneas de diversos desenvolvimentos da matemática no final do século XIX e no início do século XX. O recurso à intuição e à evidência de algum tipo é imprescindível na construção e desenvolvimento de uma teoria dedutiva. A existência de certos objetos deve ser necessariamente assumida e a verdade desempenha um papel central quando se trata de axiomatizar uma disciplina. A verdade é um conceito que não pode ser eliminado, como mostra muito bem a citação anterior de Rosser (p. 131). Apesar de querer eliminá-la, a sua formulação da questão da evidência acaba por reintroduzir o apelo a esse conceito através da expressão 'para derivar todos os enunciados que desejamos'. Mas que enunciados são esses? São todos os teoremas, ou seja, as verdades demonstráveis de um determinado domínio da matemática. Além disso, a redução de provas a uma dimensão puramente ‘algébrica’ está longe de ser uma garantia contra erros e mal entendidos. É muito mais fácil cometer erros neste tipo de prova do que nas efetuadas por Euclides. Não é raro ter que recorrer a diagramas e aos ‘significados’ dos termos para podermos compreender uma prova formal. No momento em que estabelecemos tais considerações, é inevitável a conclusão de que é errônea a concepção segundo a qual o método axiomático teria alcançado sua realização plena através da 152
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
caracterização sintática. Como foi visto anteriormente, essa concepção havia surgido como uma ‘resultante’ do movimento de desinterpretação e do programa formalista. No quarto capítulo, mostrei de que forma esta maneira de entender a axiomática era insustentável a partir de características específicas do trabalho de Hilbert. Agora mostrei que este tipo de concepção não se justifica a partir de um horizonte mais amplo, ou seja, aquele do advento da
axiomática
formal. Nesse momento, a forma mais adequada de compreender tanto o método axiomático como o formalismo é como dois conceitos distintos porém relacionados de alguma maneira. É claro que essa relação não pode ser concebida nos moldes tradicionais nos quais o formalismo revelaria a estrutura essencial da axiomática. A tarefa que se impõe agora é a de tentar conceber essa relação de outra forma, e para isso será necessário explicitar os moldes do método axiomático. Essas considerações nos conduzirão forçosamente à uma reavaliação da noção de prova formal e, consequentemente, a uma nova maneira de avaliar o formalismo. Evidentemente o valor matemático e filosófico das formalizações é um fato que não está sendo questionado. 5.2. As teorias axiomáticas, os sistemas formalizados e a concepção sintática de prova Desde o seu início, a compreensão da natureza e da finalidade da utilização do método axiomático foi um assunto controvertido. Como apresentei no primeiro capítulo, o emprego de tal expediente foi motivo para uma ampla controvérsia entre matemáticos e filósofos gregos no sentido de tentar entender os diversos elementos constitutivos da axiomática. Esta situação foi agravada pela ênfase dada por Pascal ao componente persuasivo deste método e pelo advento da axiomática formal com a sua consequente formalização do méto153
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
do axiomático. Paradoxalmente, o resultado final foi uma crescente dificuldade no entendimento desse método apesar dele ter sido utilizado em larga escala como em nenhuma outra época. Na qualidade de ‘campeão da axiomática’ (p. 78), a influência de Hilbert contribuiu de uma forma decisiva para o estabelecimento desse estado de coisas. O primeiro ponto que deve ser assinalado é o de que a axiomatização de uma disciplina requer um ‘amadurecimento’ prévio significativo das práticas dedutivas das quais ela pretende ser uma sistematização. Inclusive, sem este desenvolvimento prévio a axiomatização pode vir a ser um empecilho para o avanço da própria disciplina. Em geral, isso significa que a axiomatização é incorporada em um estágio avançado da prática matemática. Apesar de Hilbert defender veementemente o método axiomático como a forma mais adequada para o desenvolvimento das diversas teorias matemáticas, ele reconhecia o fato da atividade matemática não utilizar explicitamente esse expediente na abordagem inicial dos seus diversos problemas. O acordo entre o pensamento geométrico e o aritmético é revelado também pelo fato de que habitualmente não somos levados a considerar através de cadeias de raciocínios, os axiomas nas investigações aritméticas mais do que os consideramos nas investigações geométricas. Ao contrário, principalmente na primeira abordagem de um problema utilizamos uma forma rápida, inconsciente e até certo ponto não muito clara de tratá-lo. Neste primeiro ataque ao problema confiamos em um certo sentimento que nos permite utilizar os símbolos aritméticos que não podem ser dispensados da mesma forma que a imaginação na geometria. (Hilbert, in: Reid 1970, p. 79 e 80)
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
Desta forma, a axiomatização de um domínio qualquer envolve uma ‘ruptura’ com importantes aspectos das práticas dedutivas que a antecederam. Nesse sentido, a axiomatização de uma teoria não reflete adequadamente esse estágio da atividade matemática que é a forma predominante de se ‘fazer matemática’. Inclusive, é de se esperar até certa perplexidade por parte dos matemáticos frente às axiomatizações. Robinson ilustra isso muito bem através de um exemplo imaginário ao tratar da história da matemática. (...) se um matemático sumério tivesse sido perguntado sobre sua opinião a respeito de Euclides ele poderia ter respondido que seu interesse era com a matemática real e não com generalizações e abstrações inúteis. (Robinson 1968, p. 189)
Contudo, esse fato antes de se constituir em um problema pode muito bem ser uma das vantagens da utilização desse método. Em geral, a sistematização e a unificação de um domínio do conhecimento através da utilização do método axiomático acaba sugerindo novos insights acerca dos diversos conceitos que examinados. Através de tal expediente alcançamos frequentemente novos resultados bem como uma melhor compreensão de resultados obtidos anteriormente. Na matemática como em várias outras disciplinas, o reordenamento de um material desenvolvido de uma forma assistemática pode ser muito mais importante do que a obtenção de novos resultados. Essa sistematização tem conduzido ao aprofundamento no entendimento de certos métodos que posteriormente são usados para a obtenção de resultados de uma generalidade bastante superior, além do consequente reconhecimento de certos princípios passados despercebidos até então.
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
O caso paradigmático foi a investigação recente em torno do axioma da escolha. Apesar de ser amplamente utilizado (como foi indicado na p. 136), tal princípio foi reconhecido explicitamente somente através da axiomatização da teoria de conjuntos feita por Zermelo. A partir de então, o axioma da escolha passou a ser examinado e utilizado de diversas formas. Por exemplo, investigações ulteriores mostraram que ele é equivalente ao princípio da tricotomia dos cardinais bem como ao teorema de boa ordem. Além disso, hoje se sabe que o axioma da escolha é uma consequência da hipótese generalizada do contínuo bem como do axioma-ε de Hilbert. A sua importância no desenvolvimento da álgebra abstrata foi reconhecida rapidamente. Já em 1910, Steinitz utilizou-o sistematicamente no desenvolvimento do estudo de corpos algebricamente fechados, fundamental para a teoria abstrata dos corpos. A partir de tais exemplos, os benefícios proporcionados pela axiomatização parecem claros tanto no avanço de resultados matemáticos como no esclarecimento da relação dedutiva mútua entre os diversos enunciados. Através deste expediente, é possível obtermos um entendimento mais adequado de conceitos complexos. Nesse ponto, é importante salientar que a ênfase dada desde Pascal, reforçada tanto pelo movimento de desinterpretação quanto pelo programa formalista, ao aspecto da justificação ligado ao método axiomático, obscureceu o caráter explanatório e de produção de conhecimento associados à axiomática. Aliás, essa questão da avaliação quanto à função dos diversos elementos constitutivos desse método remonta aos gregos e acabou sendo uma fonte de polêmica entre aqueles que tentavam entender a obra de Euclides. Esse tipo de problema é claramente perceptível em algumas provas em Os Elementos. Por exemplo, a proposição 20 do livro I afirma que em qualquer triângulo a soma de dois lados quaisquer é 156
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
sempre maior que o lado restante. Este fato foi considerado por Euclides como algo que requer prova e pressupõe no mínimo cinco teoremas demonstrados anteriormente. Mas, para que provar algo tão óbvio? Proclus registra que os epicuristas se utilizavam disso para ridicularizar o trabalho de Euclides afirmando que até um asno saberia ‘reconhecer’ a verdade de tal enunciado. No livro La Logique ou L’Art de Penser (1662), escrito em conjunto por Arnauld e Nicole, tal prova era utilizada para mostrar as deficiências da sistematização euclidiana. Afinal, o teorema 20 do livro I não era uma consequência imediata da própria noção de linha reta? O fato de querer convencer alguém da verdade de tal enunciado através de uma prova parecia ser um despropósito completo. Este fato revela as confusões e mal entendidos que podem surgir quando se trata de determinar a função dos diversos elementos constitutivos do método axiomático. Qual é o papel que desempenha a prova em uma teoria axiomatizada? É claro que o caráter de justificação é uma das dimensões importantes deste procedimento. A questão de saber a partir de que verdades básicas uma verdade previamente conhecida pode ser demonstrada acabou sendo uma das principais motivações para a adoção da axiomática nas mais diversas áreas da matemática e da lógica. Contudo, não se pode atribuir exclusivamente este caráter aos procedimentos dedutivos em uma teoria axiomática sob o risco de não se saber como interpretar fatos muito básicos, como aquele considerado no parágrafo anterior. O exame de demonstrações como a efetuada por Euclides na proposição 20 do livro I nos remete a uma reavaliação de conceitos básicos como o de axioma, evidência e da própria utilização de alguma fonte de conhecimento não demonstrativo que não é eliminável quando se trata de desenvolver uma disciplina de uma forma sistemática, conforme a seção 5.1. Afinal, qual seria a vantagem de se 157
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
obter provas de resultados tão ou mais evidentes que os próprios axiomas? A própria concepção clássica parecia retirar a importância da prova como instrumento de conhecimento a partir de certo ‘desnível’ de inteligibilidade entre os primeiros princípios e todos os demais enunciados. A maior inteligibilidade dos axiomas é que tornaria a prova um verdadeiro instrumento de entendimento e conhecimento. Como explicar esse estado de coisas? A questão do que constituía a maior inteligibilidade dos primeiros princípios foi um problema desde a antiguidade clássica e pode ser facilmente detectada nos comentários de Proclus à obra de Euclides. A inteligibilidade maior de determinado enunciado era identificada com a obviedade ou simplicidade extrema associada ao seu conteúdo. A obra de Pascal reforçou tremendamente esta forma de conceber a evidência ligada às proposições na base dos sistemas axiomáticos. Mas é claro que essa concepção foi problemática desde o início, e particularmente o postulado das paralelas não se enquadrava nessa forma de compreender a evidência. Hoje que a sua independência é um fato estabelecido, que conclusões podemos tirar disso? Apesar da associação pura e simples da evidência com algo ‘óbvio’ ser considerada bastante natural, ela não parece adequada de forma alguma. O problema reside justamente na forma de conceber essa maior inteligibilidade. A ideia de que a evidência é um conceito que permite graduações e que sua aplicação aos axiomas pode ser dada por etapas, crescendo através do desenvolvimento da teoria, parece natural e concorda com toda a história da aplicação e utilização do método axiomático. Demonstrações como as da proposição 20 do livro I serviram para reforçar a evidência associada à base do sistema e não para demonstrar a verdade do teorema. A evidência deve ser considerada como um conceito ‘complexo’ por excelência. Na 158
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
avaliação da sua aplicação a um enunciado qualquer entra considerações de ordem explanatória como a unificação de um determinado domínio de investigação, a própria simplicidade do conteúdo dos enunciados em questão bem como a obtenção de provas de resultados passíveis de serem ‘verificados’ de outra forma qualquer. Parece bastante adequado associar uma multiplicidade de finalidades ao procedimento de prova em uma teoria axiomática. Ela pode servir como elemento de justificação para a asserção de um determinado enunciado na medida em que a sua verdade pode ser obtida a partir de enunciados gerais, básicos e possuidores de um grau de confirmação extremamente elevado. Algumas demonstrações servem justamente como evidência a posteriori a respeito do ponto de partida e outras, finalmente, servem como expedientes capazes de nos fornecer acessos a verdades até então desconhecidas. De qualquer forma, o entendimento e o conhecimento estão associados a essas finalidades. O entendimento pode se dar pela produção de maior inteligibilidade que poderá resultar eventualmente em uma maior compreensão dos conceitos presentes na base do sistema, e ser um consequente reforço da evidência associada à verdade dos enunciados que estabelecem as relações entre tais conceitos. Essas diversas finalidades normalmente não estão dissociadas e apresentam inter-relações bastante complexas. Os matemáticos gregos possuíam um termo específico para designar resultados que estariam em uma zona intermediária entre essas diversas finalidades da prova. ‘Porismo’ era o termo usado para designar a descoberta de um teorema que não era objeto da investigação. A sua descoberta se dava no transcurso da demonstração de um outro teorema que, por sua vez, era o objeto de estudo que interessava ao investigador no momento:
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo Um porismo é um teorema cuja verdade se torna evidente através da demonstração de algum outro problema ou teorema sem nenhum esforço. Encontramos os porismos como se fosse por acidente, não em resposta a algum problema ou investigação. Consequentemente, nós os consideramos como frutos de nossa boa sorte. E, pode ser que os matemáticos tenham dado esse nome a eles com a finalidade de mostrar às pessoas que frequentemente se entusiasmam com algum ganho aparente que os porismos, e não o tipo de coisas que eles pressupõem, é que são os verdadeiros presentes dos deuses. Isso devido ao fato de que o seu achado está vinculado aos recursos que possuímos dentro de nós. A capacidade inesgotável que temos de conhecer acrescentam tais resultados às investigações realizadas previamente mostrando assim a riqueza inesgotável do universo dos teoremas. (Proclus 1970, p. 237).
Um importante fato que deve ser observado é que não somente a aplicação do método axiomático requer uma maturação prévia razoável do entendimento e das práticas dedutivas do domínio no qual ele vai ser utilizado, mas também a apreensão dos ganhos obtidos pelo emprego de tal método, pois isso não é algo dado inicialmente. Dois exemplos podem ser considerados a este respeito. O primeiro se refere ao The Foundations of Geometry. No artigo “The Foundation of Algebraic Geometry” (1934) , Waerden mostrou que o axioma de ordem 4 poderia ser substituído por outro a partir do qual seria possível provar tanto o axioma 4 como também o axioma de incidência 7. Isso trouxe novos insights a respeito das diversas noções geométricas envolvidas nessa axiomatização, revelando particularmente uma relação entre os axiomas de ordem e incidência até então despercebida. A prova de Waerden é interessante na medida em que o axioma de incidência 7, capaz de ser objeto de prova através das alterações sugeridas por ele, afirma que o espaço possui no máximo três dimensões. 160
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
O outro exemplo se refere à axiomatização da teoria de conjuntos. A primeira apresentação axiomática desta disciplina foi feita por Zermelo em 1908 e foi seguida de um intenso debate em torno de diversos conceitos utilizados por ele. Nessa discussão, os nomes de Fraenkel e Skolem, entre outros, desempenharam papel fundamental. Contudo, somente em 1915 foi realizada a primeira descoberta importante tendo como base a sistematização realizada por Zermelo. Neste ano, Hartogs demonstrou que o princípio da tricotomia dos cardinais implicava o teorema de boa ordem. Assim, é possível perceber que o próprio entendimento de teorias axiomatizadas se dá muitas vezes de forma gradual e lenta. A compreensão dos diversos aspectos envolvidos na sistematização de um domínio qualquer requer um esforço muito grande por parte do investigador, sendo que, em muitos casos, uma sistematização incompleta ou mesmo equivocada pode ser indispensável para o desenvolvimento da teoria desejada. A partir dessa perspectiva, na qual é possível conceber a natureza e a função do método axiomático, a própria noção de evidência deve ser cuidadosamente reconsiderada. O primeiro fato a ser observado é que, como foi visto no quarto capítulo, a evidência sintática não possui as propriedades a ela atribuídas ao longo do desenvolvimento da axiomática formal que culminou no advento dos sistemas formalizados. Isso não significa que tal tipo de evidência não deva ser considerada. O que parece ter ficado claro é que a evidência sintática não é a única a ser utilizada, pois nem sequer é suficiente para o desenvolvimento e a fundamentação da matemática. Outro problema relacionado a essa questão foi a concepção da evidência em moldes estritamente subjetivistas, principalmente a partir de Pascal. A facilidade de apreensão imediata do conteúdo de um enunciado pode ser parte da justificativa a ser apresentada para 161
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
a sua adoção. O que não é verdade é que esse elemento seja o único ou até mesmo o fator mais importante que justifique a adoção dos axiomas. A utilização de um determinado princípio no desenvolvimento de diversas teorias matemáticas anteriores à axiomatização pode muito bem ser um fator intersubjetivo que reforce a tendência a adotá-lo como algo indemonstrável do sistema axiomático a ser desenvolvido. Aqui é possível detectar um dos equívocos básicos do movimento de desinterpretação, concepção segundo a qual as axiomatizações se dariam de forma autônoma, independentemente da prática matemática. O advento do programa de Hilbert estabeleceu uma dependência da prática matemática em relação aos sistemas axiomáticos formalizados. Ora, a situação é inversa àquela sugerida por tais concepções. As axiomatizações são parasitárias da atividade matemática ,e os formalismos, por sua vez, são dependentes de ‘axiomatizações informais’ efetuadas previamente. Esta inversão obliterou completamente a reavaliação do conceito de evidência. Contudo, já no início do século XX, alguns investigadores perceberam que a evidência devia ser concebida em moldes que não fossem estritamente subjetivistas. A defesa de Zermelo acerca da adoção do axioma da escolha é reveladora a este respeito. É importante salientar que ele teve que polemizar duramente com Peano, um ‘adepto’ da desinterpretação, no sentido de lhe mostrar a relevância do conceito de evidência para essa questão: Que esse axioma, embora nunca tenha sido formulado nos livrotextos, tem sido frequentemente usado, de forma extremamente satisfatória, em diversas áreas da matemática, particularmente a teoria dos conjuntos, por investigadores como Dedekind, Cantor, F. Bernstein, Shoenflies, J. König e muitos outros, é um fato incontestável (...). Tal uso intensivo de um princípio somente pode ser explicado através de
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo sua auto-evidência, que, é claro, não deve ser confundida com sua demonstrabilidade. Não importa que esta auto-evidência seja, até certo ponto, subjetiva, pois ela é, necessariamente, uma fonte de princípios matemáticos, mesmo não sendo um instrumento utilizado nas provas matemáticas. A afirmação de Peano, de que tal conceito não tem relação alguma com a matemática, não faz justiça a fatos estabelecidos. (Zermelo 1981, p. 187)
O emprego bem sucedido de um princípio pode sem dúvida contribuir para a sua adoção como um princípio indemonstrável não somente na solução do problema para o qual ele foi originariamente utilizado, mas também para a solução e desenvolvimento de teorias ‘independentes’. A utilização do axioma da escolha em topologia, álgebra, análise funcional, teoria da medida, entre outras disciplinas, criou na comunidade matemática uma quase unanimidade sobre a sua veracidade. A própria unificação de disciplinas distintas a partir de alguns princípios pode ser um fator decisivo para a sua adoção. Este foi o caso de Cayley e da sua tentativa de obter uma teoria de grupos satisfatória. Os princípios adotados por ele pretendiam unificar partes da álgebra que haviam sido desenvolvidas separadamente até então. Entretanto, a sua proposta não foi compreendida na época porque o próprio conceito de grupo deveria aguardar uma maturação que só foi possível através da sua aplicação à geometria efetuada por Klein e Lie. Apesar disso, ainda hoje os axiomas da teoria de grupos são apresentados como estipulações completamente arbitrárias, notado particularmente por Bourbaki na página 225 do artigo “A arquitetura da matemática”. Dessa forma, as considerações que permitem o estabelecimento de certos axiomas como os princípios a partir dos quais é possível desenvolver toda uma disciplina são complexas, parasitárias das 163
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
práticas matemáticas e em grande parte a posteriori, dentro do próprio sistema. Se considerarmos a evidência de um enunciado em virtude não unicamente da sua simplicidade conceitual, mas também como algo que pode ser reforçada com o passar do tempo e com o desenvolvimento da própria teoria, é possível imaginarmos casos em que certos enunciados a princípio contestados passam a ser aceitos como ‘evidentes’ sem qualquer discussão ulterior. O caso do axioma da escolha ilustra muito bem este tipo de situação. A questão da intuição, intimamente vinculada àquela da evidência, sofreu distorções consideráveis com o advento da axiomática formal em virtude de dois fatores aparentemente contraditórios. O primeiro diz respeito a uma desconfiança crescente em relação ao conhecimento não demonstrativo, a partir de Pascal. O ideal de tudo provar e tudo definir (p. 29) acabou tendo repercussões em todo o recente desenvolvimento da axiomática. O segundo foi que através do programa formalista se reforçou consideravelmente o modo de conceber a natureza do conhecimento intuitivo. O conhecimento não demonstrativo é visto como fonte de certeza absoluta e seria justamente esta característica que lhe conferiria um lugar privilegiado no desenvolvimento da matemática. O que deve ficar claro nesse ponto é que a intuição é imprescindível em toda atividade matemática. O recurso a algum tipo de faculdade capaz de sugerir certos tipos de resultados sempre desempenhou um papel central no desenvolvimento das mais diversas teorias, independentemente de qualquer processo de natureza demonstrativa. O problema surgiu a partir de certas interpretações de resultados matemáticos no final do século XIX, que pareciam desqualificar por completo esta fonte de conhecimento. A intuição havia ‘falhado’ em alguns casos, logo, ela deveria ser descartada.
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
Contudo, parece muito mais adequado eliminar não o recurso à intuição, mas a sua associação com a certeza absoluta ou com a infalibilidade. A intuição pode e deve ser vista como uma fonte de sugestões que devem ser testadas. Através de toda a sua sistemática, o método axiomático oferece um instrumento eficiente nesse sentido. Pouco importa que o resultado final de sua aplicação nos mostre que muitas vezes as nossas ‘intuições’ a respeito de determinada matéria não estejam suficientemente maduras. O objetivo não é eliminar o recurso à ‘intuição’, mas testar e sistematizar o seu emprego para eliminar os erros que poderiam surgir de sua utilização não crítica. Além disso, devemos procurar leis gerais a partir das quais, através da dedução, possamos obter resultados verdadeiros que não conduzam a contradição e que, em instâncias cruciais, sejam confirmados pela intuição. (...) Mas, como ficou claro pela descoberta das contradições, a intuição não é infalível. Assim, um elemento de incerteza deve sempre permanecer (...). Com o tempo ele pode decrescer significativamente; contudo, a infalibilidade entre os mortais é permitida somente ao Papa. (Russell 1973, p. 194)
Desde o início do processo de esvaziamento da axiomática, a desconfiança em relação ao conhecimento não demonstrativo e os elementos abstratos foram características que marcaram profundamente todo o movimento de desinterpretação. Uma vez garantida a sua dimensão concreta, a ênfase nas práticas dedutivas esteve presente durante todo esse processo de transformação da axiomática e acabou por atribuir à prova formal características específicas. Através do advento dos sistemas axiomáticos formalizados, a prova formal passou a ser considerada como o verdadeiro paradigma de rigor demonstrativo. A ideia era que, através do recurso a esse tipo de expediente, todas as pressuposições envolvidas seriam
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explicitadas e com isso seria possível obter um controle estrito dos conceitos envolvidos nessas provas. A influência dessa concepção foi enorme. O caso de Tarski é típico. Ao comentar o formalismo em seu livro Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Theories (1941), ele observa que não seria razoável exigir dos textos da matemática que apresentassem todas as suas provas na forma completa, mas que: (...) é de se esperar, sem dúvida, que o autor de um livro-texto esteja intuitivamente seguro de que todas as suas demonstrações possam ser colocadas nessa forma e até que ele desenvolva suas investigações de tal maneira que todo leitor com algum conhecimento das técnicas do pensamento dedutivo e suficiente conhecimento de lógica contemporânea seja capaz de preencher as lacunas restantes sem muitas dificuldades. (Tarski 1977, p. 167)
O problema é que essa questão é muito mais complexa do que a observação de Tarski pode sugerir. Em primeiro lugar, não é fácil ‘ver’ onde uma determinada prova deve ser ‘preenchida’, e mesmo que a lacuna seja detectada pode ser o caso de não se saber como preenchê-la. Na seção 1.2, o teorema 1 do livro I de Os Elementos nos fornece um exemplo típico desta situação, pois não existe nenhum princípio que nos assegure a existência de um ponto de interseção entre as duas circunferências, apesar disso ser fundamental para o estabelecimento do resultado pretendido por Euclides. No século XVII, Leibniz já havia notado que a existência de tal ponto permanecia completamente injustificada a partir da axiomatização euclidiana. No entanto, o que deveria ser assumido para ‘preencher’ a lacuna da prova de Euclides foi percebido apenas no século XIX com o trabalho do matemático Killing. A própria noção de continuidade exigida neste caso recebeu uma formulação precisa somente a partir do trabalho de Dedekind. 166
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O caso dos axiomas de ordem é também elucidativo a esse respeito. É interessante notar que a necessidade desse tipo de axioma não se deu diretamente a partir de considerações a respeito das provas de Euclides, mas de certas propriedades das figuras que permanecem invariantes sob determinadas transformações de natureza muito geral. Isso se deveu graças a uma retomada do interesse pela geometria projetiva no século XIX. Nesse âmbito, as exigências que haviam passado despercebidas aparecem de forma natural e intuitiva. Tanto a geometria euclidiana como as não-euclidianas podem ser concebidas como casos particulares da geometria projetiva. Na verdade, as considerações que faltavam a Euclides eram de natureza abstrata e abriram caminho para outras muito profundas que acabaram por levar ao tratamento de estruturas bem mais gerais do que aquela estudada por ele. A questão que se coloca é de como devemos avaliar esse tipo de ‘problema’, e se a noção de prova formal representa efetivamente ‘um substituto adequado e um avanço necessário’ (Tarski, citado na p. 132) em relação a uma concepção de prova não formalizada. No momento em que se admite uma concepção como a de Tarski, pelo menos três pressupostos devem ser considerados em relação a essa questão. Em primeiro lugar, deve-se assumir que as provas não formais não são rigorosas. Em segundo, que as provas formais são absolutamente rigorosas. E, finalmente, que através do recurso ao formalismo seria possível explicitar todos os elementos da atividade dedutiva desenvolvida anteriormente. Estas três pressuposições são problemáticas e nos remetem diretamente para a questão da natureza e da finalidade das provas em matemática. É claro que o exame desta questão exigiria uma extensa discussão de diversos problemas delicados, o que certamente fugiria ao escopo desse trabalho. Contudo, uma rápida análise de 167
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
alguns aspectos dessa problemática é fundamental quando se trata de entender a natureza da relação entre o método axiomático e o formalismo. Duas questões centrais se apresentam quando perguntamos se as provas não formais são rigorosas ou não. A primeira diz respeito à própria natureza e finalidade das provas de uma forma geral, e a segunda nos remete diretamente ao problema do que seja exatamente o rigor em matemática. Ao admitirmos que o avanço do conhecimento e do entendimento é uma dimensão constitutiva da prova, a questão do rigor se torna obviamente secundária, apesar de ser um aspecto importante. A matemática avançou extraordinariamente através de uma mistura de insights e de recursos a provas que, em muitos casos, se mostraram ‘inadequadas’ quando posteriormente submetidas a um exame criterioso. Nos séculos XVII e XVIII, o desenvolvimento do cálculo infinitesimal nos oferece um belo exemplo de como foi possível a matemática progredir através de uma série de resultados cujo significado geralmente não era claro. Naquele momento a exigência de ‘provas rigorosas’ teria sido a forma mais rápida e eficiente de liquidar com um dos ramos mais elegantes e fecundos de toda matemática, ou seja, a análise. Isso sem considerar o fato de que essa exigência não teria muito sentido para um matemático da época, uma vez que ele estava estabelecendo os seus resultados de acordo com o padrão de rigor daquele período. Os ‘problemas’ continuaram no século XIX, mesmo quando se procurou obter uma fundamentação rigorosa para a análise e sanar o estado relativamente caótico em que se encontrava este ramo da matemática através dos trabalhos brilhantes de Cauchy e Weierstrass. Basta lembrar que Cauchy tentou dar uma definição precisa da integral definida e mostrar que essa definição determinaria um valor 168
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
acurado para toda função contínua, mas a sua prova é inadequada. Por exemplo, ele afirma na sua demonstração que a soma de uma série infinita de funções contínuas é contínua quando ela existe. Porém, isso é falso se não for exigido que a convergência seja uniforme. Baseados em fatos desse tipo, o que poderíamos concluir? Que o problema é de Cauchy? Dos métodos de prova empregados? Ou será que o problema está no entendimento de noções sofisticadas como as de continuidade, convergência e de suas relações mútuas? A mim me parece que tais fatos, muito comuns na história da matemática, não comprometem o rigor demonstrativo presente nesse tipo de prova, mas revelam a complexidade das noções que estão sob investigação. Outra questão que se coloca é em relação à natureza daquilo que se denomina ‘rigor’. Nos capítulos anteriores procurei mostrar de que maneira o formalismo se constituiu no ideal de rigor demonstrativo contemporaneamente. No que diz respeito às provas formais, o problema que surge é até que ponto essa pretensão é justificável. Pareceria possível atribuir a provas formais um caráter privilegiado em função de sua natureza eminentemente sintática. Isso garantiria que elas seriam demonstratio ad oculos, segundo Curry no livro Outlines of a Formalist Philosophy of Mathematics). Contudo, como visto no capítulo anterior, todas as objeções epistemológicas levantadas em relação ao âmbito finitário poderiam ser naturalmente estendidas às provas formais. O seu caráter ad oculos é justamente aquilo pode ser questionado; mas mesmo que estivesse garantido, certos problemas permaneceriam. O que seria exatamente ‘ver’ uma prova de 1500 inferências elementares? O problema de equívocos e mal entendidos foi outro elemento que motivou fortemente a drenagem semântica realizada através da noção de prova. Esse tipo de problema seria evitado reduzindo a 169
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
prova a uma estrutura de natureza concreta. Isso é verdade? A resposta parece ser negativa em qualquer sentido razoável que se encare esta questão. Em primeiro lugar, a execução de uma prova formalizada de um resultado matematicamente interessante aumenta consideravelmente as possibilidades de erro e isso se deve a vários fatores. Um deles diz respeito ao comprimento das provas e outro à notação utilizada. Por exemplo, se quisermos traduzir o axioma de ordem 3 do The Foundations of Geometry, que afirma o simples fato que dados três pontos sobre uma linha reta não mais do que um deles está entre os outros dois, teríamos que usar uma fórmula do tipo ∀A ∀B ∀C ∀a ((A ≠ B ∧ B ≠ C ∧ A ≠ C ∧ L(A, a) ∧ L(B, a) ∧ L(C, a) ∧ β(A, B ,C,)) → ( ¬β(B, A, C) ∧ ¬β(C ,A ,B))). Isto não quer dizer que o uso de linguagens formalizadas não seja interessante sob diversos aspectos. O que parece duvidoso é que esse expediente seja uma salvaguarda absoluta contra erros e mal entendidos. Neste momento seria possível a introdução de um tipo de argumento aparentemente razoável. Embora esse tipo de prova seja difícil de ser executado por seres que tenham algumas limitações, ele possui a verificação por computadores como traço principal. Obviamente, esse tipo de máquina é rápido e eficiente além de não possuir limitações comuns entre os matemáticos em termos de memória, atenção, dentre outros. Finalmente, parece que com isso tal problema teria sido solucionado definitivamente. Contudo, este não é o caso por diversas razões. No momento em que se transfere a um computador a tarefa de checar provas são feitas pressuposições substanciais. O que nos garante que o programa é correto? Será que o digitador não cometeu algum tipo de erro ao introduzir os dados? Como garantir que durante a execução do programa não houve alteração de energia no circuito que compro170
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
meta o resultado final? Além disso, como saber se a teoria que dá suporte a esses procedimentos computacionais está correta? Pareceria muito estranho recusar uma prova de Euclides porque seus procedimentos seriam pouco confiáveis e aceitar uma prova como rigorosa em função de sua verificação computacional. Trabalhos recentes na área da computação apresentaram que ,se permitirmos que os computadores trabalhem com uma margem mínima de erro, é possível a obtenção de resultados inalcançáveis de outra maneira. Pesquisadores da Universidade de Jerusalém, do MIT e da IBM realizaram estudos que mostram até a impossibilidade de se obter computacionalmente a grande maioria dos resultados decidíveis em lógica. O problema com as provas, assinalado por Rabin, é a exigência de que elas sejam corretas. Contudo, os seres humanos constantemente fazem erros, não somente na matemática, mas também em todas as suas demais investigações. Talvez seja justamente devido a isso que os seres humanos resolvem problemas e concluem as suas investigações, ao passo que os computadores, frequentemente, param por falta de tempo. Rabin se propôs a encontrar exemplos nos quais um computador não resolveria um dado problema se não lhe fosse permitido errar, mas que, em caso contrário, concluiria sua tarefa. Isso conduziu Rabin ao resultado envolvendo números primos. (Kolata, in: Epstein e Carnielli 1988, p. 3)
Problemas igualmente delicados surgem quando se atribui às provas formais um ‘caráter completo’ (ver citação de Tarski, p. 153). Quando se afirma que através das formalizações seria possível apresentar os procedimentos dedutivos em sua forma mais completa, pelo menos duas coisas são pressupostas. A primeira é que a dimensão sintática é a dimensão fundamental da prova. No meu entender,
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
essa concepção tem sua origem no movimento de desinterpretação e, pelo que foi visto até agora, não parece justificável. A segunda diz respeito à dimensão descritiva dos sistemas axiomáticos formalizados. Parece que através de provas formais seria possível descrever exaustivamente as práticas dedutivas. Contudo, vários problemas surgem quando se tenta entender o que seria exatamente essa descrição. É claro que a resposta a essa questão vai depender essencialmente da concepção que se tenha de prova. Se a prova é concebida como um expediente para a produção de entendimento e um eficiente instrumento de descoberta, a sua formalização não consegue em geral apreender tais aspectos dos processos demonstrativos. Isso porque a ‘quebra’ de uma prova em um grande número de passos frequentemente destrói tais características. A concisão das provas matemáticas é a responsável pela produção de entendimento bem como pela sua utilização como instrumento para a descoberta de novos resultados. (...) o raciocínio, sendo curto, pode apreender de um só golpe todas as suas partes de tal forma que é possível perceber imediatamente aquilo que é necessário mudar para adaptá-lo a todos os problemas que possuem a mesma natureza e podem exigir uma solução análoga. (Poincaré 1910, p. 27) Igualmente, não há uma razão óbvia de porque uma tal simplificação deva ser desejável para a atividade matemática. Uma vez que estamos extremamente familiarizados com procedimentos que através de uma única aplicação envolvem um grande número de etapas, estamos inclinados a pensar que a multiplicação da prova em um grande número de etapas serve somente para tornar mais demorada a sua execução e dificultar o seu entendimento. (Wang 1981, p. 228)
No meu entender, essa discrepância entre provas formalizadas e as demais resulta diretamente do fato de que as formalizações 172
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
não são descrições exatas das práticas dedutivas, mas ‘representações idealizadas’ das teorias ‘informais’. As diferenças entre os sistemas formalizados e a prática matemática podem ser detectadas em diversos níveis. No artigo “Gaps Between Logical Theory and Mathematical Practice” (1973), Corcoran faz um inventário interessante de tais discrepâncias. Por exemplo, muitas vezes, na prática matemática é possível detectar outro tipo de conectivo binário distinto daqueles usados normalmente nos formalismos. Ao passo que sentenças do tipo “∃y ∃z ∃x (0 = 0)”, que expressam o que se costuma denominar de quantificação vácua, ocorrem em uma teoria formalizada e não possuem nenhuma contrapartida não formal. Assim, chegamos ao cerne do nosso problema. Como vimos, a relação que foi estabelecida contemporaneamente entre o método axiomático e o formalismo não é justificável sob vários aspectos. A formalização do método axiomático não deve ser concebida como um aprimoramento da estrutura axiomática não formalizada que, enquanto tal, seria não rigorosa e deficitária por diversas razões. Ao tentarmos entender a gênese do formalismo, a maneira mais adequada de concebê-lo parece ser através de uma ruptura que deixa o método axiomático autonomamente de um lado e os sistemas formalizados de outro. A consequência imediata disso é o reconhecimento de duas estruturas distintas que mantêm entre si uma relação específica, mas que certamente não é uma relação do menos rigoroso para o mais rigoroso, do menos explícito para o mais explícito. O método axiomático pode e deve ser utilizado e entendido independentemente da sua relação com qualquer formalismo. A distinção entre essas duas estruturas fica clara quando se analisam as exigências feitas aos seus diversos elementos constituti-
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
vos bem como as respostas distintas que um determinado problema pode receber em função da perspectiva adotada. O caso dos axiomas é paradigmático. No caso das teorias axiomáticas, os axiomas são verdades básicas a partir das quais é possível se obter todo um conjunto de enunciados com características específicas. As razões que determinam a escolha de tais enunciados são múltiplas e complexas. De qualquer forma, a simples inspeção da estrutura sintática da sentença que expressa a verdade em questão está longe de ser uma condição suficiente para adotá-la como uma das proposições básicas da teoria. Mas, a situação é completamente distinta no caso dos sistemas formalizados. Os ‘axiomas’ são tomados como um conjunto de sentenças qualquer sobre o qual se faz duas exigências básicas: ser consistente e ao mesmo tempo efetivamente caracterizável. Mas, o que é um ‘axioma’ do ponto de vista estritamente sintático? A classe dos ‘axiomas’ é definida da seguinte maneira: uma fórmula é um axioma se possui uma das formas 1a, 1b, 3-8, 10, 11, 13 ou é uma das fórmulas 14-21. (Kleene 1974, p. 82) A próxima parte de nosso sistema formal é constituída pelos seus axiomas. O nosso único requisito em relação a eles é o de que cada axioma deve ser uma fórmula pertencente à linguagem do sistema formal. (Shoenfield 1967, p. 4)
Parece ser algo despropositado concluir a partir disso que a verdade e a própria noção de evidência não desempenham qualquer papel na definição dos axiomas como eles são usualmente utilizados na matemática (ver citação de Rosser na p. 139). Seria mais natural concluir que, através dos formalismos, se inaugurou um novo contexto de investigação com um outro tipo de finalidade e, consequentemente, com outros tipos de exigências. 174
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
A famosa hipótese do contínuo é um exemplo de extrema relevância que mostra como um problema pode receber ‘soluções’ distintas de acordo com o ponto de vista adotado. Na década de sessenta do século passado, Cohen demonstrou que tal enunciado relativo à cardinalidade do contínuo era independente da teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel. O que concluir a respeito de tal resultado? Depende. Do ponto de vista do formalismo, a questão foi resolvida e o enunciado em questão é indecidível. No que diz respeito à questão epistemológica, devemos dizer que um problema perde seu significado devido a uma prova de indecidibilidade somente quando o sistema de axiomas em consideração é interpretado como um sistema formal. Isto quer dizer, quando deixamos indeterminado o significado dos termos primitivos. (Gödel 1986, v. 2, p. 267)
Contudo, a questão permanece do ponto de vista da teoria axiomática. O que se tem visto contemporaneamente é a introdução de novos axiomas, na verdade axiomas de ‘infinito mais forte’ que permitam demonstrar a verdade ou a falsidade de tal enunciado. As tentativas têm sido infrutíferas até agora. O que poderia se concluir disso? Talvez que as intuições básicas que nos orientam na axiomatização da teoria de conjuntos não estão suficientemente claras para nos propiciar uma sistematização adequada de uma estrutura tão complexa como aquela subjacente à concepção iterativa de conjunto. Desta forma, devido às considerações anteriores ficou estabelecido em que moldes o método axiomático deve ser concebido bem como a sua importância para o desenvolvimento da matemática. As noções de verdade, evidência, intuição, etc., são de vital importância nesse contexto. Quanto ao formalismo, o que se viu é que ele constitui uma estrutura distinta que tem proporcionado a obtenção de
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
resultados técnicos interessantes contemporaneamente. Então, qual é a finalidade da formalização? A primeira observação que deve ser feita sobre essa questão diz respeito à relação entre os formalismos, a metamatemática e a matemática de uma forma geral. Na verdade, a metamatemática adquiriu um escopo bem maior com o fracasso do programa formalista juntamente com o advento da semântica formal. Podemos afirmar que hoje ela é parte integrante da matemática e tem sido utilizada para a obtenção de resultados interessantes em diversas disciplinas, como a álgebra e a análise. O que podemos perceber é que os diversos aspectos ligados ao formalismo são partes integrantes de disciplinas matemáticas e, como tais, podem ser desenvolvidos. A sintaxe dos sistemas formalizados está relacionada àquele tipo de consideração capaz de ser tratado no contexto da aritmética combinatória. Ao contrário do que Hilbert pensava, Gödel mostrou através da aritmetização da sintaxe que o aspecto sintático de uma teoria é algo extremamente sofisticado. Pois, adotar a estrutura sintática para uma teoria formalizada é o mesmo que adotar uma estrutura equivalente a dos números naturais. A teoria de modelos é, por sua vez, parte integrante da teoria de conjuntos. Quando essa parte da metamatemática é desenvolvida, o que estamos fazendo é empregar todo o aparato da teoria de conjuntos para definir e desenvolver diversas noções ‘semânticas’. O estudo desta disciplina se originou na década de trinta do século passado com os trabalhos pioneiros de Löwenheim e Skolem e recebeu um impulso extraordinário graças ao trabalho de Tarski. Diversos resultados matematicamente interessantes foram desenvolvidos a partir desses estudos envolvendo a noção de formalismo e importantes teoremas referentes à continuidade de funções 176
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
foram obtidos graças ao recurso a certos resultados da teoria de modelos. Particularmente, o trabalho realizado por Lorenzen que permitiu a generalização de diversos teoremas da análise empregando uma versão restrita de compacidade. Outro exemplo a ser destacado foi a utilização de certas técnicas de metamatemática por Robinson no desenvolvimento da chamada ‘análise não-standard’, que resgatou a discussão acerca do estatuto ontológico das grandezas infinitesimais que é filosoficamente interessante. Mais um exemplo, Tarski estabeleceu um importante resultado envolvendo por um lado provas algébricas e, de outro, provas analíticas de diversos teoremas da álgebra a partir da decidibilidade da teoria dos números reais. Contudo, é claro que além dessa dimensão matemática, o formalismo possui um certo vínculo que o relaciona com as teorias não formalizadas enquanto estrutura axiomática concebida em moldes sintáticos. O importante é saber em que termos essa relação deve ser concebida, ou seja, determinar o papel do formalismo entre os diversos aspectos da matemática que estão intimamente ligados às axiomatizações não formais. A questão colocada aqui visa mostrar que as formalizações são parasitárias das práticas matemáticas anteriores e, em particular, dos ‘desenvolvimentos axiomáticos’ realizados neste contexto. Assim foi com a geometria, a aritmética, a teoria de conjuntos e a teoria de grupos. A formalização é possível somente em um estágio bem avançado no qual as noções a serem formalizadas já tenham sido suficientemente ‘trabalhadas’. A formalização ‘prematura’ de qualquer disciplina pode se constituir em um verdadeiro obstáculo para o seu desenvolvimento sob diversos aspectos. Este fato foi indicado por Lakatos no artigo “What does a Mathematical Proof Prove?”: (...) mas se tentarmos formalizar uma teoria prematuramente podem ocorrer resultados extremamente indesejáveis (...) Algumas vezes
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo uma fórmula bem formada de uma teoria T pode ser indecidível nessa teoria e, contudo, pode ser decidível se ela for adequadamente interpretada em uma teoria diferente. Essa outra teoria, inclusive, pode não ser uma extensão da primeira. É muito difícil decidir em qual teoria um enunciado matemático é demonstrável. Somente para considerar alguns exemplos poderíamos tomar certos teoremas que são formalizáveis em um sistema que trata das funções de variável real, mas que são demonstráveis somente na teoria das funções de variáveis complexas, ou de teoremas formalizáveis a partir da teoria da medida, mas somente demonstráveis na teoria das distribuições e assim por diante. (Lakatos 1987, p. 68)
Um dado talvez simples, mas absolutamente central para toda essa questão é a obtenção da formalização de teorias específicas. O que se tem visto nos últimos anos é um interesse crescente pela demonstração da possibilidade de se obter uma contraparte formalizada, não por desenvolver efetivamente a teoria a partir de sua estrutura sintática. Isso parece indicar claramente que o propósito da formalização não é descrever, completar ou checar eventualmente as provas das teorias desenvolvidas informalmente. Os resultados de consistência e completude podem ser entendidos como indicadores da forma pela qual seria possível uma compreensão mais adequada do formalismo. Normalmente, esses dois resultados são considerados essenciais para um sistema formalizado. A consistência nos assegura que não é possível se obter simultaneamente a prova de um enunciado e de sua negação enquanto a completude afirma que um enunciado é demonstrável ou que a sua negação o é. Quando construímos um formalismo qualquer, a aritmética, por exemplo, o que se tenta fazer é caracterizar a noção de verdade para esse domínio de acordo com determinadas condições. O que se pretende mostrar é que a noção de verdade considerada pode ser 178
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
gerada sintaticamente. Isto quer dizer que o objetivo desejado é saber até que ponto essa noção pode ser caracterizada em termos computacionais, ou seja, até que ponto a noção de recursividade geral é suficiente para dar conta desse conceito. Essa perspectiva não parece fazer muito sentido se considerarmos o processo de ‘geração sintática’ como a explicitação completa dos procedimentos demonstrativos que antecederam o formalismo. Isto é, as perspectivas de abordagem são distintas apesar da possibilidade de existir uma ‘semelhança’ significativa entre esses dois processos, visto que o que está em jogo em ambos é o conceito de verdade. O procedimento básico é adotar no formalismo a contraparte sintática de certas verdades básicas a partir das quais se procura gerar a totalidade das sentenças que são passíveis de serem obtidas dessa maneira, através de procedimentos de natureza essencialmente mecânica, desde que esteja assegurado que eles sejam preservadores de verdade. Tanto a consistência como a completude desempenham um papel central nesse processo. O objetivo é o de garantir que a noção de verdade gerada contará com duas propriedades que lhe são fundamentais através desses requisitos que equivalem respectivamente ao princípio de não-contradição e do terceiro excluído, em certo sentido. É claro que se obtivéssemos uma caracterização desse tipo seria razoável supor que a noção de verdade do domínio em questão é passível de ser gerada sintaticamente. Esse fato seria relevante para o entendimento e posteriores desenvolvimentos de todos os conceitos presentes na teoria sob diversos aspectos. A partir dessa perspectiva, o resultado de incompletude obtido por Gödel é fundamental porque ele mostra que é possível construir uma sentença verdadeira, que pode ser expressa no sistema, em qualquer formalismo suficientemente rico para manifestar uma parte da aritmética e, ao mesmo tempo, que isso não é demonstrável. 179
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
Assim, a incompletude prova de forma precisa que o conceito de verdade não é passível de uma caracterização sintática mesmo em níveis elementares da matemática. Entretanto, não fica claro o que poderia ser concluído desse fato em relação às noções de verdade matemática e de prova, bem como, às teorias a partir das quais a formalização foi efetuada. O que parece claro é que Gödel mostrou certas limitações imanentes a todos os formalismos de um determinado tipo. A capacidade de caracterização dos sistemas formais não permite que a noção de verdade aritmética seja passível de uma representação sintática, entre outras coisas. Agora, o que se deve concluir a respeito das noções de verdade aritmética, de número natural e, inclusive, do próprio conceito de conhecimento matemático é extremamente controverso. Contudo, sem dúvida alguma, toda esta problemática foi completamente redimensionada a partir desse resultado. As conclusões capazes de serem obtidas a partir do trabalho de Gödel em relação à noção de demonstrabilidade e de definibilidade parecem ser um assunto igualmente polêmico. O próprio conceito de demonstrabilidade ou prova possui limitações intrínsecas? Ou será que a existência de formalismos essencialmente incompletos mostra que a noção obtida por nós não é a desejada? Será que o problema não reside justamente na forma pela qual essa noção é definida? Esta parece ser a conclusão à qual o próprio Gödel chegou através da sua concepção a respeito das noções de demonstrabilidade e definibilidade: É verdade que nesses casos existem certos resultados negativos (...), mas um exame mais detalhado mostra que tais resultados não impossibilitam, de forma alguma, a obtenção da definição de tais noções absolutas. O que eles excluem é o fato de determinados modos de defi-
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Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo ni-las ou, ao menos, impedem que certos conceitos muito semelhantes sejam definidos de uma forma absoluta. (Gödel 1986, v. 2, p. 150-151)
O que podemos inferir a partir dos formalismos em relação às suas contrapartes não formalizadas? Aqui devemos adotar uma postura cautelosa porque, frequentemente, conclusões precipitadas são tiradas a partir de resultados acerca de teorias formalizadas como as axiomatizações informais, por exemplo. Em primeiro lugar, temos a questão da consistência. Suponhamos que dada uma teoria informal T obtivéssemos uma formalização de T da qual fosse possível obter uma prova de consistência epistemologicamente significativa. A partir desse fato, o que poderíamos concluir a respeito de T? Que ela é consistente? Depende. A conclusão poderia muito bem ser que certos aspectos da teoria que geram inconsistência não são formalizáveis no sistema. Talvez a nossa representação sintática não capte aspectos essenciais de T que são responsáveis pela sua ‘inconsistência’, entre outras coisas. Por outro lado, suponhamos que T seja a análise e de que através de sua formalização pudéssemos chegar a demonstrar a sua inconsistência. O que concluir a partir disto? Provavelmente, que a nossa formalização não é adequada. Por quê? Ora, pelo simples fato de ‘sabermos’, até onde isto é possível, que a análise é consistente. Esse problema relativo à adequação nos remete diretamente ao problema da completude. Até que ponto a completude é um bom critério de adequação? Em grande parte, isto vai depender do que se entende por adequação. Se identificarmos adequação como a capacidade de gerar a noção de verdade do domínio em questão através de formalismos, então, teorias muito básicas da matemática não podem ter contrapartidas formalizadas adequadas. Devido ao contexto da gênese dos sistemas axiomáticos formalizados, o problema que surge é a excessiva ênfase dada ao crité181
Capítulo 5: O método axiomático e o formalismo
rio de adequação. Mesmo se tivéssemos formalizações completas de teorias tão importantes como a aritmética ou a teoria de conjuntos, isso não permitiria dispensar as teorias informais em nome desse critério de adequação. Nem alegar que obtivemos finalmente uma explicitação total dos procedimentos demonstrativos. Isso se deve ao fato de que tais formalismos seriam inadequados sob vários aspectos. Além disso, seria fácil imaginar um tipo de situação em que um dado formalismo fosse adequado mesmo sendo incompleto. De qualquer forma, o que é importante perceber é que o método axiomático não formalizado se constitui em uma unidade autônoma de grande importância para o desenvolvimento da matemática. As formalizações, por sua vez, são estruturas passíveis de um tratamento matemático preciso e podem ser fecundas para a obtenção de resultados matematicamente interessantes. Além disso, o formalismo pode ser visto, nessa relação específica com o método axiomático, como um expediente capaz de caracterizar diversos elementos envolvidos nas axiomatizações. Isso permite que os sistemas formalizados sejam uma espécie de ‘representação idealizada’ das teorias informais em certo sentido. Contudo, estão fadadas a equívocos sérios, tanto no entendimento do formalismo como do método axiomático e da atividade matemática de uma forma geral, qualquer concepção que identifique os formalismos com uma perspectiva de maior rigor, confiabilidade e de uma ‘descrição completa’ dos procedimentos de prova bem como da própria estrutura axiomática.
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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e
Conclusão Os sistemas axiomáticos formalizados surgiram em um contexto específico. A forma de entender a natureza e a função do método axiomático se alterou completamente através do programa formalista de fundamentação, que manteve uma relação bastante íntima com o movimento de desinterpretação. Hilbert foi o matemático e artífice de um programa de fundamentação ‘conservador’ que influenciou de forma decisiva o recente desenvolvimento da investigação tanto na área de fundamentos da matemática como na da lógica. A obra de Hilbert foi a peça chave de um longo processo de transformação da axiomática cujos pressupostos foram cuidadosamente examinados neste trabalho e, a título de conclusão, algumas observações devem ser feitas neste momento. Em primeiro lugar, espero ter mostrado que a tarefa de entender o real significado dos diversos elementos constitutivos do método axiomático foi algo difícil desde o seu início. Ao contrário do que normalmente se pensa, a adoção da atitude axiomática não foi fruto de uma postura dogmática e sim de uma polêmica intensa antes e depois da axiomatização euclidiana. É interessante notar que houve uma diferenciação quanto à ênfase de determinados elementos mesmo na concepção clássica e isto fica evidente no caso de Pascal e das alterações introduzidas por ele. O movimento de desinterpretação se deu a partir do entendimento e do desenvolvimento de diversos domínios da matemática. A partir de um determinado momento, constatamos que se criou um consenso em torno do fato de que a estrutura do método axiomático deveria ser concebida de uma forma distinta daquela adota183
Conclusão
da até então. Isto foi devido, justamente, a certas interpretações de resultados matemáticos da época, mas nenhum tipo de justificativa conceitual acompanhou as transformações introduzidas neste contexto. A escola italiana desempenhou um papel muito importante neste movimento, apesar dela não ter recebido a devida atenção na recente discussão da lógica e dos fundamentos da matemática. Contudo, a sua influência foi marcante. Basta lembrar que o encontro entre Russell e Peano foi fundamental para o Principia Mathematica, e que este livro, por sua vez, foi o texto básico que formou toda uma geração de lógicos e filósofos como Lewis, Church, Tarski, Carnap, Quine, Goodman, dentre outros que tanto influenciaram o desenvolvimento destas áreas nos últimos anos. Outro exemplo da grande influência deste movimento pode ser apreciado no famoso artigo de Brouwer, “Intuitionism and Formalism”, escrito em 1912. A primeira vista, poderíamos pensar que Brouwer discutia com Hilbert a respeito de diversos aspectos ligados à natureza da matemática apesar do nome dele não ser citado uma única vez neste artigo. Contudo, verificamos neste artigo que Brouwer adjetiva Peano de ‘formalista’ e faz referências explícitas a vários dos desenvolvimentos matemáticos que foram tratados aqui sob o título genérico de ‘movimento de desinterpretação’. Já naquela época Brouwer polemizava com os formalistas, mas não poderia citar Hilbert pelo simples fato de que o seu programa de fundamentação ainda não existia! O papel de Hilbert foi absolutamente central em toda esta questão da transformação do método axiomático. Isto devido ao suporte conceitual dado por ele a essas transformações bem como ao trabalho técnico resultante desta postura. Algumas observações a esse respeito são necessárias. 184
Conclusão
A primeira delas se refere à posição de Hilbert em relação à axiomática formal. Normalmente, os poucos livros que tratam deste assunto atribuem a ele os méritos da criação desta nova concepção isoladamente. Espero ter mostrado que essa forma de avaliar o papel de Hilbert nesse contexto é falsa. Pois, o que ele fez foi adotar uma postura que se adequava à nova concepção em muitos aspectos. Através do seu trabalho em fundamentos da geometria bem como do seu programa de fundamentação, ele deu um impulso considerável a esta nova concepção que passou a receber um suporte conceitual mais ou menos bem definido a partir de então. A outra observação que se impõe é a de que o programa formalista deve ser examinado em uma perspectiva mais ampla, pelo menos quando se trata da análise do conceito de método axiomático. Dessa forma, será possível perceber de que maneira a proposta de Hilbert dava sequência e complementava todo um movimento que teve suas origens na segunda metade do século XIX e entender as conotações atribuídas aos sistemas formalizados contemporaneos. A maneira usual de avaliar os formalismos deve ser substancialmente alterada conforme a análise desenvolvida no quarto e quinto capítulo. Esta análise possibilitou mostrar que a forma de conceber os diversos componentes da axiomática não é justificada tanto da perspectiva do programa formalista como da perspectiva da desinterpretação. Principalmente, a qualificação da axiomática euclidiana como pouco rigorosa e problemática parece ser destituída de qualquer fundamento. O método axiomático deve ser concebido basicamente nos moldes clássicos, e ao formalismo devem ser atribuídas as funções esboçadas na seção 5.2. Muitas questões envolvendo os procedimentos de natureza puramente sintática permanecem em aberto, porém, espero que tenha ficado clara a postura bási-
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Conclusão
ca que deve ser adotada em relação a essa questão através das indicações mencionadas anteriormente. As repercussões da postura de Hilbert em relação a essa problemática tiveram uma influência que nem sempre foi positiva na área da lógica, dos fundamentos da matemática e da própria filosofia. É claro que não se trata de questionar o valor matemático da obra de Hilbert nem a sua contribuição enquanto filósofo. Mas, certos desdobramentos ocorridos nestas áreas acabaram sendo 'indesejáveis' e a sua origem foi alguns elementos presentes na concepção de Hilbert. O primeiro deles diz respeito à questão do rigor. Através de Hilbert se difundiu, até os dias de hoje, a concepção segundo a qual a obtenção do rigor seria possível somente através de procedimentos de natureza sintática. É realmente difícil avaliar as repercussões dessa nova concepção na sua totalidade. Basta lembrar que essa maneira de entender a noção de rigor contribuiu significativamente para a formação de uma atitude que via no recurso às formalizações o método mais adequado para se obter soluções rigorosas de problemas filosóficos. Tal concepção de rigor também influenciou fortemente as recentes alterações introduzidas nos currículos escolares sob o nome de ‘matemática moderna’. Outro desdobramento a ser destacado é a postura de Hilbert diante dos problemas de fundamentação e a sua estratégia para resolvê-los. Ele encarou a sua tarefa de resgatar a matemática frente aos ‘ataques’ dos intuicionistas como algo ‘desagradável’ e que lhe tirava um tempo precioso que poderia ser utilizado de outra forma no desenvolvimento de investigações matematicamente interessantes. A sua postura sempre foi a de eliminar os problemas e não de tentar entendê-los além de, eventualmente, encaixá-los em um esquema conceitual de investigação. 186
Conclusão
A estratégia básica adotada por Hilbert no tratamento da questão dos fundamentos sugeria que seria possível solucionar matematicamente problemas de natureza filosófica. Até certo ponto, isso teve desdobramentos negativos no tratamento de questões de filosofia da matemática e da lógica. No caso da lógica, as consequências foram significativas, pois temos visto nos últimos anos infindáveis tentativas de obter soluções técnicas para problemas conceituais. Toda vez que surge uma questão acerca de noções como negação, necessidade, valores de verdade, existência, dentre outras, o que presenciamos é a imediata construção de um sistema formal que se diferencia em um dado aspecto dos sistemas ‘clássicos’ visando solucionar os problemas em questão através desse tipo de expediente. Independentemente do possível valor matemático, no meu entender tais tentativas levaram a uma ênfase exagerada da dimensão ‘algébrica’ da lógica aumentando significativamente a confusão em torno dos problemas que se pretendia solucionar. Algo análogo ocorreu com a filosofia da matemática. A matemática passou a ser identificada com as suas formalizações e a filosofia da matemática, por sua vez, passou a ser identificada com as questões de caráter metamatemático. Esta relação entre a reflexão filosófica com estudos metateóricos parece ser uma concepção errônea e até certo ponto perniciosa, apesar de seu interesse incontestável para o avanço no entendimento de determinados problemas filosóficos. Recentemente se iniciou a separação de tais investigações graças, principalmente, ao trabalho de Lakatos e seus discípulos. Contudo, sem dúvida alguma, a ‘postura formalista’ é ainda predominante nas investigações no campo da filosofia da matemática e da lógica além de ter desdobramentos nada desprezíveis na área da filosofia. Acredito que seremos levados forçosamente a alteração de 187
Conclusão
métodos e atitudes muito básicas no momento em que percebermos que as pretensões ligadas aos formalismos são injustificáveis porque o seu suporte conceitual é inadequado, e não pelo fato de se ter mostrado matematicamente as suas limitações. Inevitavelmente, isto nos conduzirá ao reordenamento de todo um conjunto de categorias centrais para a filosofia da matemática e da lógica. Com isso, talvez seja possível uma nova abordagem dos problemas centrais para essas disciplinas que nos proporcione, além disso uma reinterpretação de certos resultados técnicos ligados aos formalismos.
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Índice Apolônio 25, 133 Aristóteles 7, 9, 10, 15, 21, 45, 46, 52 Arnauld, A. 157 Arquimedes 63 Baire, R. 136, 137 Bernays, P. 82, 101, 106, 140 Bernstein, S. 162 Blok, J. 30 Bolyai, J. 7, 32, 147 Bolzano, B. 34 Boole, G. 33 Borel, A. 136, 140 Bourbaki, N. 10, 34, 163 Brianchon, C. 35 Brouwer, L. 81, 184 Burali-Forti, C. 151 Cantor, G. 151, 162 Carathéodory, C. 10 Carnap, R. 129, 184 Cauchy, A. 168, 169 Cayley, A. 163 Church, A. 131, 184 Cohen, P. 175 Corcoran, J. 173 Curry, H. 169 Dedekind, R. 34, 43, 80, 87, 116, 162, 166 Desargues, G. 67 Einstein, A. 91 Espinosa, B. 9 Euclides 7-10, 12, 15-23, 25-28, 37-43, 45, 49, 50,
64, 70, 126, 131, 133, 134, 137-140, 142, 145147, 152, 155-158, 166, 167, 171 Feferman, S. 108 Fraenkel, A. 161, 175 Frege, G. 10, 13, 56, 64, 70, 71, 73, 74, 80, 87, 110, 124, 138-140 Gauss, J. 7, 28, 32, 34, 57, 133 Gentzen, G. 108, 124 Gergonne, J. 46, 49, 50, 58, 141, 142 Goodman, N. 184 Grassmann, H. 34 Gödel, K. 107, 108, 120, 137, 150, 151, 175, 176, 180 Hamel, G. 10 Hardy, G. 119 Hartogs, F. 161 Hausdorff, F. 151 Heath, T. 146 Heine, E. 110, 136 Hilbert, D. 8, 11-13, 32, 36, 38, 47, 54, 59-68, 70-74, 77-87, 89-96, 98101, 103-125, 129, 130, 134, 135, 138-140, 143146, 148-150, 153, 154, 156, 162, 176, 183-186 Hipócrates de Chio 15 Jevons, W. 69 Killing, W. 166
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Índice
Poncelet, J. 59 Proclus 20-27, 29, 146, 157, 158, 160 Quine, W. 184 Rabin, M. 171 Riemann, G. 32, 41 Robinson, A. 155, 177 Rosser, J. 131, 152, 174 Russel, B. 37, 54, 75, 91, 124, 132, 165, 184 Saccheri, G. 28, 57 Shoenfield, J. 130, 174 Sierpinski, W. 137 Simpson, S. 108 Skolem, T. 135, 136, 161, 176 Sommer, G. 144 Steinitz, E. 156 Tarski, A. 16, 30, 31, 129, 130, 132, 166, 167, 171, 176, 177, 184 Thomae, J. 110 Turing, A. 108 van der Waerden, B. 160 Veronese, G. 53 von Neumann, J. 129, 151 Wallis, J. 28 Wang, H. 172 Weierstrass, K. 34, 82, 100, 168 Weyl, H. 64, 78, 81, 139 Whitehead, A. 75, 91 Woodger, J. 10 Zermelo, E. 10, 136, 151, 156, 161-163, 175
Kleene, S. 174 Klein, F. 43, 57, 163 Kolata, G. 171 Kolmogorov, A. 10 König, D. 162 Korselt, A. 74 Kreisel, G. 127, 150 Kronecker, L. 81, 122 Kummer, E. 116 Lakatos, I. 177, 178, 187 Legendre, A. 28 Leibniz, G. 166 Lewis, D. 184 Lie, S. 163 Lobachevsky, N. 7, 32, 57, 146 Lorenzen, P. 177 Löwenheim, L. 176 Maurer, W. 140 Mueller, I. 20, 44 Myhill, J. 108 Newton, I. 9, 10 Nicole, P. 157 Padoa, A. 48, 53-56, 58, 69 Pascal, B. 15, 28-31, 35, 49, 52, 86, 146, 153, 156, 158, 161, 164 Pasch, M. 39, 47, 53 Peano, G. 10, 47, 53, 57, 59, 69, 74, 75, 91, 126, 135, 136, 162, 163, 184 Pieri, M. 36, 37, 48, 53, 74 Pigozzi, D. 31 Playfair, J. 28, 63, 150 Poincaré, H. 34, 54, 68, 69, 72, 136, 149, 172
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