Coisa de Louco


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Portuguese Pages [191] Year 1998

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Coisa de Louco

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Lucia Castello Branco (org.)

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    ém tem verdadeiramente autoridade para f.;., da loucura colocando­ se fora dela. Sendo "a linguagem a est rutura primeira e última da loucura" (Michel Foucault), quem fala da loucura utiliza a linguagem e, ao fazê-lo, entra no . espaço da competência da loucura. E, se só de dentro da loucura se pode falar da loucura, então essa fala é louca, mas não necessariamente. É que, se nem todos os que usam a linguagem serão loucos, todos os loucos usam a linguagem e é nela que são considerados como loucos. Assim també_m é nela, na linguagem, que se manifesta essa enorme zona de �biguidade entre a loucura e a não loucura, pelo que. será difícil saber se quem fala da loucura é louco ou não. Assim se destrói qualquer possível ou impossível sombra de autoridade. Por isso eu, que toda a minha vida me coloquei transgressivamente dentro da linguagem, me sinto simultaneamente sem autoridade para falar da loucura (como presumível não louco) mas também apto e competente para o fazer (como efetivo louco da linguagem). "Poesia é loucura da forma./ Eu suspenso das coisas, plasticidade da forma./ A seriedade da forma não é nada do que parece./ É loucura, excess9, perdição/ a condição não muda." Isto escrevi eu quanto tinha 20 anos, e a condiçã não mudou. Hoje, aos 66... antes se tornou mais evidente, nas provas provadas da minha linguagem escrita, por vezes revestida de seriedade, mas onde "o desatino mantém a mesma relação com a razão que o ofuscamento com o brilho do dia." (Michel Foucault). No entanto deve ser desde já esclarecido que esse desatino ofuscante da linguagem é, para mim, a minha razão de não loucura. É que a loucura não se escreve, a loucura é-se na linguagem, "Nesse delírio, que é ao mesmo tempo do corpo e da alma, da gramática e da fisiologia, é que começam e terminam todos os ciclos da loucura." (Michel Foucault) E, já que a loucura não se escreve, escrever é que é uma loucura, um desatino que se paga caro! Razão tinham os ignorantes jornalistas que em 1915 taxaram de loucos os poetas do O,pheu, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Angelo

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    de Lima, este eficazmente encerrado por toda a vida num hospital psiquiátrico! Mas quem fala em desatino, fala muito mais em tino, e este, rigorosamente, ninguém sabe o que seja. No des, na negação, é que está a questão da recusa, da transgressão, da marginalidade, talvez apenas formas metafóricas da loucura. Mas nesta palavra des-a­ tino, destaca-se a partícula "a" que a salva de ser, fatalmente, destino. Por isso não me considero nem psicótico nem psicólogo, nem psicotriádico nem psiquiatra, nem psicopsico nem psiconada. ·Por isso não me freudo, nem me lacano, nem me foucaulto, etc., etc .. EU me EU, e eu me dano, evidentemente! - Eu curto a vida, texto X texto, tal como o moço/a que escreveu edonisticamente, numa parede:

    ... tal como eu que _fotografei essa inscrição! Eu que· há mais de. 45 ano.s .pratico como minha a linguagem das transgressões escriturais, nos in-limites do dito-escrito. Por isso eu só posso escrever para este prefácio/ profax um texto de eros-dição, nunca de erudição, porque todos os textos dizem e são de eros. Eles são a re-invenção da criação, sendo esta a manifestação fenomenal da diferença entre o ser e o não ser. Mas como quem inventa a diferença inventa ao mesmo tempo a norma em relação à qual ela se diferencia, onde estará a diferença entre o poeta e o louco? "Sabemos que talvez a mais nítida fronteira que se estabelece entre o poeta e o psicótico consiste no fato de o poeta poder, na maioria das vezes, fazer-se sujeito em meio à linguagem que o cerca e o assola, enquanto o psicótico permanece, de certo modo, irremediavelménte assujeitado a esse mundo de palavras que parece falar através dele." Isto diz-nos Lucia Castello Branco no texto que introduz este livro e penso que tem razão. Uma vez assim colocada a questão, algumas perguntas subsistem, tais como: Se poeta e psicótico são assim diferentes, quais as diferenças das suas diferenças? -

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    Quais as normas que um e outro transgridem? - Serão as normas da linguagem que o poeta domina e transgride nas suas criações as mesmas que o psicótico desconhece e por isso não cumpre? - Ou, transgredir é pura e simplesmente desconhecer? - E, o que é conhecer? - Será conhecer saber que se não pode conhecer, mas que se pode sempré escrever de um outro modo? - Mas a escrita de um outro modo não é a escrita da poesia? Esse outro será certamente diferente, senão não seria outro. Mas se esse outro, em vez de ser diferente é in-diferente, então ess-e é o louco. Isto porque "Não se lê com as palavras dos outros" (Henri Meschonnic) nem principalmente se escreve com as palavras dos outros (palavras que nos são indiferentes), já que as palavras não existem numa relação biunívoca significante/ significado, mas a relação é espectral, através de um halo variável e oscilante que as envolve, oculta e revela, na sua máxima capacidade de ser palavras. Palavras que o poeta re-inventa, contr�la e assim faz suas. Por isso "Onde há obra não há loucura" (Michel Foucault) e onde há invenção não há o outro (o demónio?) mas sim presença, já que a obra está e é ESTA, por mais transgressiva que seja. Obra feita de letras. Letras que são o veículo da presentificação que é o ato de escrever. Quem trabalha com letras e faz as suas letras aparecerem numa superfície onde nada existia anula o outro negativo, inviabilizando-o. "LETRA - É FILH D HOM" escreveu Arthur Bispo do Rosário, talvez numa tentativa desesperada de encontrar as suas letras para escrever as palavras de que precisava:

    "EU PRECISO DESTAS PALAVRAS. ESCRITA" Ou então, numa presentificação de possível epistemologia fluida do texto poético: escrever sim, mas antes o reverso. do eu. transformação. um complexeu que se diz em retextos e retratos. atos de de-mostrar o que se vê sóvendo. errância }úrica e lídica. este texto não é. ou lú(i)e(d)ica lír(ud)ica canção. mas sim. este texto não é. o texto termina aqui. também o tempespaço é outro. erro. só o tempo continua no espaçagoraqui. só o que termina aqui começalém. também o espaço continua a invadir o que foi texto. as palavras e as letras agora invisíveis. erro - erro de transmissão. aqui termina o texto aqui termina aqui termina o fim. aqui termina o texto. o nome do texto. o texto do texto. o que termina aqui. princípio. não é possível nomear (erro) numerar o texto porque termina aqui o • título. o nome. a referência. a biografia.

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    não é possível que o texto diga alguma coisa. diga o que diz. diga o seu nome. diga o que não é. o que não. o que. o. o que é possível. para lá o texto termina. o que não pode ser dito tem que ser dito. o que não podemos dizer é o que dizemos. erro. não há erro científico. aqui é o fim do nome do texto. do texto sem nome. do nome sem texto. do nome. do texto sem fim. transfigura do erro. abdução. sem. aqui não há texto. aqui não há o que há. não há o que não há. aqui não há aqui. o texto termina ali. erro de ótica. o texto é cego (homero) o texto não vê que não é texto. não vê que não é aqui que há texto. não vê aqui o texto que termina aqui. fim. post-scriptum - era uma vez um texto que terminou antes do fim. o que não era texto continuou a não ser texto. mas o que era texto além do fim transformou-se num texto que termina aqui. não: o fim virá depois. NÓS. NÓS, pronome pessoal ou substantivo plural? Outra presentificação é de F. Marques, nascido em 1931 no Funchal (Ilha da Madeira), linotipista de profissão, que uma vez me procurou dizendo que na sua vida tinha "derrubado 12 sumidades psiquiátricas e que era escritor!", trazia um livro de poemas para eu ler e opinar, mas ele sabia "que a inteligência da sexualidade burguesa me impediria de apreciar toda a profundidade ..." Um desses poemas, incontestavelmente originais, era o seguinte:

    vim = transformação nunca = pai só = marginalizado não = cultura NADA= VIDA vim do nada nunca tive nada só brincava com o nada não tive acesso a nada é por isso que gosto tanto do NADA

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    Para se ler este poema é obviamente necessário descodificá-lo de acordo com a chave que o autor fornece. Assim um segundo nível de leitura, mais profundo, revela­ nos o seguinte:

    transformação da vida pai tive vida marginalizado brincava com a vida cultura tive acesso à vida é por isso que gosto tanto da VIDA As duas faces contraditórias deste poema, urna obscura e outra luminosa, sinalizam o percurso existencial deste homem que pela cultura = escrita "derrubou 12 sumidades psiquiátricas" durante alguns internamentos· por que passou. É que F. Marques era um excelente profissional de composicão gráfica e compunha os seus poemas e textos filosóficos sobre o socialismo e sexualidade, diretamente na própria máquina de compor, uma "linotipe". Mas com a evolução tecnológica não conseguiu adaptar-se à composição informática, já que a obsoleta máquina onde produzia os poemas foi desativada e ele foi deslocado para o departamento comercial da mesma empresa, onde há anos trabalhava. Entrou então em profunda depressão e voltou a precisar de acompanhamento psiquiátrico, embora sem internamento. Até que um dia começou a mandar-me textos e mais textos escritos à mão, numa caligrafia irregular, com erros de ortografia que antes nunca cometia e assinados com o pseudônimo Ilhéu Brincalhão. Mas os textos não eram os mesmos, manifestando um baixíssimo controle da escrita, quer nas articulações morfológicas, quer nas sintáticas e, por conseguinte, semânticas. Eram escombros de textos, às vezes mesmo delirantes com raros lampejos de intuição poética, mas sobretudo de abjeção em relação a tudo, a todos e em relação a si próprio. Nada restava do anterior controle estruturante da linguagem. O Ilhéu Brincalhão era de fato mais que um pseudônimo. Era a face oculta, estilhaçada, negativa do psicótico Francisco Marques. Era o outro, demónio ou deus (?) que o estava consumindo. Em outra ocasião fui abordado por um jovem taciturno que me pediu auxílio porque queria aprender a "vestir Deus". Passada a minha primeira perplexidade, respondi­ lhe que não possuía as medidas de Deus e o jovem afastou-se sem dizer palavra. A leitura pode ser esta: o jovem queria ocultar, vestindo-o, o seu outro outro que lhe aparecia como um deus insuportável, negativo, ou seja, um demónio. O vestuário exercia

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    para de a função da escrita, isto é, qualquer coisa que recobre quer a nudez, sentida como demoníaca, do próprio corpo, quer o branco angustiante do papel (vide Mallarmé). Por outro lado, a minha resposta revela apenas a interiorização cultural da concepção judaico-cristã de Deus, como um ser maior e desmaterial, para o qual não há nome nem medida .

    . . . . . .. . . . .. . . . . . .. . .. . . . . . .. . .. . . . . . . . .. . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . .. .. . . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . Escritas/ escritos. Neste texto limitei-me a alinhar alguns fatos, experiências, idéias, procurando uma sintonia leiga com os textos, as experiências e as interpretações profissionais que integram o livro a que a sua organizadora deu o título instigante de COISA DE LOUCO. O amável pedido deste prefácio, que muito agradeço, não sei bem a que atribuí-lo, se apenas à amizade, se ao reconhecimento tácito de algumas qualidades no meu trabalho de escritor que certamente resultam de uma permanente e premente experimentação com os materiais físicos e psíquicos da escrita, de que não é ausente uma concepção do mundo como texto e um desejo de metamorfose do eu nessa mesma escrita. Manifestações estas que para mim nada têm de loucas nem de não loucas, pois são uma terceira coisa· que é o próprio meio de criar as minhas palavras e de sadi�ente sobreviver na fruição do poético, isto é, no prazer das transformações sígnicas que são a própria vida. Seja como for, muitas dessas transformações tomam a forma de perguntas para as quais não temos respostas, como é o caso da loucura, porque ela própria ilude as respostas e se metamorfoseia culturalmente nos tempos e espaços históricos. O que ontem era consensualmente loucura será que hoje ainda o é? E amanhã? Mas, felizmente, penso que também há respostas para as quais não têmos perguntas. Uma dessas respostas é a capacidade de invenção criativa a que chamamos poesia e/ou arte. Era Picasso que dizia, ao cabo de uma vida de pesquisa e experimentação, qualquer coisa como isto: EU NÃO PROCURO ' MAS ENCONTRO. E.M. de Melo e Castro

    São Paulo, Maio de 1998

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    ste livro é resultado de uma pesquisa intitulada "A Devoração da Imagem: o poético e o psicótico". Realizada durante quatro anos (1991 a 1995) com o auxilio financeiro do CNPq, nela estiveram envolvidos, durante o ano de 1991, três bolsistas de iniciação científica, alunos da Faculdade de Letras e do Departamento de Psicologia da UFMG, e um bolsista de aperfeiçoamento, psiquiatra e psicanalista. Durante o ano de 1993, mais duas bolsistas de iniciação científica, também alunas da Faculdade de Letras da UFMG, estiveram indiretamente ligadas à pesquisa, com seus projetos individuais que, de fato, constituíam-se em desdobramentos de meu projeto inicial sobre os tangenciamentos entre o poético e o psicótico. E, hoje, quando já me encontro desenvolvendo uma terceira pesquisa através do auxílio do CNPq ("Escritura e seus devaneios"), esta também um desdobramento da primeira, outras duas ex-bolsistas de iniciação científica, alunas do Mestrado em Literatura Brasileira da FALE/UFMG, trabalham em um projeto - "Quasi Modo: um livro enlouquecido" - que se fundamenta nas hipóteses lançadas (e, acredito, confirmadas) por essa pesquisa inicial. Essas alunas, Cynthia Barra e Cinara Araújo Soares, dirigem atualmente uma Oficina de Letras no Hospital-Dia do Instituto Raul Soares, de Belo Horizonte, e buscam, através dessa atividade, examinar, na fronteira da Literatura e da Psicanálise, as relações entre escritura e loucura. No primeiro ano da pesquisa sobre o poético e o psicótico, realizamos um trabalho efetivamente conjunto, em que criamos, a partir de "entrevistas" semanais

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    com pacientes psicóticos do Instituto Raul Soares e de um trabalho de oficina literária por mim realizado na Clínica Central Psíquica, de Belo Horizonte, algumas formas de abordagem do processo de escritura com pacientes psicóticos. A hipótese fundamental que norteou nosso trabalho consisti a, não em demonstrar o quanto havia de "loucura" na poesia, ou o quanto havia de "poesia" na loucura, mas, antes, em investigar que fenômenos de linguagem eram operados na psicose e de que maneira (e até que ponto) esses fenômenos tangenciavam aqueles que se operavam também na poesia. Durante toda essa investigação, estava claro para nós que o fato de os efeitos de linguagem muitas vezes se aproximarem não significava que o fator que impulsionava esses efeitos e, sobretudo, a maneira como eles se realizavam seria necessariamente análoga. Ao contrário: sabemos que talvez a mais nítida fronteira que se estabelece entre o poeta e o psicótico consiste no fato de o poeta poder, na maioria das vezes, fazer-se sujeito em meio à linguagem que o cerca e que o assola, enquanto o psicótico permanece, de certo modo, irremediavelmente assujeitado a esse mundo de palavras que parece falar através dele. Nosso trabalho, que inicialmente se restringia a uma investiga ção teórica destituída da pretensão de produzir efeitos sobre a clínica psicanalítica com psicóticos, acabou por ampliar-se além de seus objetivos, através das atividades de Oficina de Letras que fomos desenvolvendo, e, afinal, foi amplamet;tte disseminado em Belo Horizonte, sobretudo através da atuação do bolsista de aperfeiçoamento, Musso Garcia Greco. Através dos subsídios teóricos oferecidos por essa pesquisa, o bolsita conduziu a implantação das primeiras Oficinas de Arte em Belo Horizonte, no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, do Instituto Raul Soares. Esse trabalho teve seus desdobramentos, inspirando a criação de espaços de Oficina de Arte em outras instituições públicas de Belo Horizonte e de outras cidades do estado de Minas Gerais. As chamadas oficinas terapêuticas fazem parte das estratégias antimanicomiais de reabilitação social de pacientes psiquiátricos. Essas oficinas vêem na Arte um recurso para inserção do doente mental na sociedade, através da possibilidade que a Arte oferece de funcionar como fonte inesgotável de construção de novas linguagens. O trabalho com a Literatura, em particular, parece ter produzido resultados efetivamente importantes, não só por se situar no registro da Arte - e, portanto, no registro da construção de novas linguagens -, mas sobretudo por se constituir através de procedimentos que operam diretamente com a letra, com o escrito, elementos fundamentais na estrutura psicótica. Hoje, quando vemos várias instituições desenvolvendo experiências similares, quando vemos uma série de exposições locais de Letras e Artes em que a loucura e a

    ...

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    criação exibem seus territórios limítrofes, quando rec