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Portuguese Pages [56] Year 2011
Gabriel Tarde
COLEÇÃO RIZOM AS - VOL. 1
Um campo social dirigido pela técnica, pelo consumo e pelas exigências do mercado não é apenas danoso ao meio ambiente: ele é tam bém nocivo à subjetividade de seus membros. Parece mesmo haver uma relação direta: quanto mais cresce o prodigioso corpo das sociedades m odernas - mais máquinas, mais dispositivos, mais imagens, mais circulação de mercadorias - mais as subjetividades são diminuídas e amesquinhadas. Como disse Bergson, seria preciso inventar um a alma à altura desse corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades de vida. Cada cérebro é nele mesmo um rizom a que se ramifica em tantos outros rizomas; e se plantar árvores é muito bom, m elhor ainda é cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns nos outros. A c o l e ç ã o r i z o m a s , voltada para a tradução de grandes pensadores contem porâneos, foi concebida como um estímulo a esse esforço, que é de todos e de cada um.
As Leis Sociais um esboço de sociologia Tradução e notas de Frantisco Traverso Fuchs
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U niv ers id ad e
Federal Flum in en s e
editora da UFF
Editora da UFF
© 2012 by Francisco T. Fuchs (Tradução brasileira)
Sumário
Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - Niterói - CEP. 24220900 — R J — Brasil — Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: 2629-5288 - www.eduff.uff.br E-mai 1: [email protected] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Prefácio, 17
Norm alização: Uilza Cláudia Rufmo Damasceno Concepção de capa: F. T. Fuchs Capa e projeto gráfico: Marcos Antonio de Jesus Desenho da capa: M.C. Escher’s “Symmetry Drawing E21” © 2010 The M.C. Escher Company-Holland. A li rights reserved.
________ Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) T181
Nota do tradutor, 7
Tarde, Gabriel 1843-1904
Introdução, 19 Primeiro Capítulo Repetição dos fenômenos, 23
As leis sociais: um esboço de Sociologia/Gabriel Tarde; tradução e notas: Francisco Traverso Fuchs - Niterói: Editora da UFF, 2011. 114 p. ; 21cm.
Segundo Capítulo O posição dos fenômenos, 49
ISBN: 978-85-228-0669-0
Tradução de Les lois sociales. Esquisse d ’une sociologie. 1. Sociologia
I. Título
_______
CDD 301
Terceiro Capítulo A daptação dos fenômenos, 83
Universidade Federal Fluminense Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Antonio Claudio Lucas da D iretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos Seção de E ditoração e Produção: Ricardo Borges Seção de Distribuição: Luciene P. de Moraes Seção de C om unicação e Eventos: Ana Paula Campos C om issão Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos A na Maria Martensen Roland Kaleff Eurídice Figueiredo Gizlene Neder Heraldo Silva da Costa Mattos Humberto Fernandes Machado Luiz Sérgio de Oliveira Marco Antonio Sloboda Cortez Maria Lais Pereira da Silva Renato de Souza Bravo E d ito ra filia d a a
Rita Leal Paixão Simoni Lahud Guedes
A sso c ia ç ã o Bra sile ira d a s E d ito ra s U n iv e rsitá ria s
Tania de Vasconcellos
Conclusão, 109
Nota do tradutor Jean-Gabriel de Tarde nasceu em Sarlat (hoje Sarlat-la-Canéda) no ano de 1843. Passou metade da vida servindo como juiz na região de Dordogne, mas em 1894 foi nomeado diretor do serviço de estatística judiciária do Ministério da Justiça, saindo da província para viver em Paris. Dois anos depois, começou a le cionar na École Libre des Sciences Politiques, e posteriormente no Collège Libre des Sciences Sociales, onde proferiu as conferências reunidas neste livro. No início de 1900 obteve a cadeira de Filosofia Moderna no Collège de France,1que ocupou até 1904, ano de sua morte. Celebrado em sua época como o grande nome da sociologia francesa, Tarde polemizou com Lombroso e Durkheim e escreveu obras que ajudaram a fundar a sociologia e a criminologia moder nas. Já nos primeiros anos do século XX, no entanto, a situação se inverteu a favor de Durkheim, que tornou-se o principal representante da sociologia como disciplina científica, ao passo que Tarde havia sido evacua do para a prestigiosa (porém irrelevante) posição de mero “precursor” - e um precursor não muito bom, já que havia sido marcado para sempre pelos pecados do “psicologismo” e do “espiritualismo”.2
Muitos anos se passariam até que o panorama mudasse novamente, desta vez em favor de Tarde. Pode-se dizer que essa virada começou a acontecer em 1968, quando Gilles Deleuze o apresentou como o inventor de uma nova dialética da diferença e 1 Bergson, que também havia concorrido a essa vaga, obteve três meses depois a cadeira de Filosofia Grega e Latina, assumindo após a m orte deTarde a cadeira de Filosofia Moderna. Bergson, Henri. Mélanges, Paris, PUF, 1972, p. 415,417 e 637. 2 Latour, Bruno. Gabriel Tarde and the End o fth e Social, w ww .bruno-latour.fr/sites/default/ files/82-TARDE-JOYCE-SOCIAL-GB.pdf (acessado em 11 de agosto de 2010).
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As Leis Sociais
Gabriel Tarde
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da repetição.3Com efeito, graças a Deleuze, Latour e outros, temos
deiras repetições, oposições e adaptações, e que a sociologia só
hoje uma ideia muito mais adequada a respeito do pensamento de
ganhará status de ciência a partir do momento em que fizer o mes
Tarde e de sua importância.
mo. Ora, para alcançar esse objetivo, a sociologia precisa descer
As Leis Sociais, publicado originalmente em 1898 a partir de
até os “fatos elementares”, infinitesimais, que são também os fatos
uma série de conferências realizadas no ano anterior, oferece uma
“verdadeiramente explicativos”. Assim como a biologia descobriu
breve síntese do pensamento tardeano e é uma excelente introdu
na célula e na atividade celular o fato biológico elementar, é preciso
ção à obra de Gabriel Tarde. 0 autor não apenas apresenta neste
que a sociologia descubra o fato social elementar. Isso equivale a
livro seus três conceitos fundamentais, abordados separadamente
dizer que, para ultrapassar as analogias vãs e as entidades imagi
em livros anteriores, mas também mostra as relações existentes
nárias que ainda encontravam eco na sociologia de sua época (por
entre eles, estabelecendo toda uma hierarquia complexa entre a
exemplo, as analogias entre as sociedades e os organismos vivos,
repetição, a oposição e a adaptação ou invenção. Trabalhando simul
a crença no suposto “gênio” de um povo ou de uma raça, a socie
taneamente no plano da epistemologia e da ciência, Tarde procura
dade como uma espécie de “pessoa divina” exterior e superior aos
mostrar que os fenómenos físicos, biológicos e sociais se produzem
indivíduos, moldando-os sem jamais ser por eles moldada), Tarde
a partir de inumeráveis repetições, oposições e adaptações, e que
precisava descer até o plano molecular da sociedade, lá onde ela é
o conhecimento é primeiramente construído a partir da percepção
efetivamente produzida por movimentos reais: ou seja, por atos de
de repetições, oposições e adaptações “grandiosas” - vagas, impre
indivíduos sobre indivíduos. No entanto, assim como o átomo não
cisas ou mesmo francamente errôneas - e vai ganhando contornos
é o limite absoluto da matéria, o indivíduo não constitui o termo
mais precisos à medida que repetições, oposições e adaptações
último de um campo social. Aquém do indivíduo existe algo que é
menos grosseiras vão sendo percebidas:
pré-individual, e embora o indivíduo seja o único agente social, ele mesmo só pode ser compreendido a partir dos elementos infinite
É justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do
simais que o constituem. Esses elementos são os desejos e crenças
pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho inver
que atravessam os indivíduos e que se propagam, se opõem e se
tido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno
adaptam em seu percurso. Não é que Tarde transforme os homens
e, pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares
em impessoais “portadores” de desejos e crenças; é antes como
verdadeiramente explicativos em último lugar.4
se o indivíduo produzisse sua diferença justamente no jogo aberto entre os desejos e crenças que o atravessam e que ele incorpora,
A tese central defendida por Tarde neste seu esboço de
opõe ou modifica, dando origem (nesse último caso) a um novo
sociologia é a de que todas as ciências atingiram a maturidade ao
desejo ou crença. Se a Ciência tem por objeto aquilo que se repete,
descobrir e compreender, em seus respectivos objetos, as verda
apenas a Arte poderá dar conta dessas singularidades que são os indivíduos; mas se os indivíduos são sui generis, é porque cada
3 Deleuze, Gilles. DifférenceetRépétition, Paris, PUF, 1981 (1968), p. 38,104."0 conjunto da filosofia de Tarde se apresenta deste modo: uma dialética da diferença e da repetição, que funda sobre toda uma cosmologia a possibilidade de uma microssociologia.” 4 Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, Paris, Félix Alcan, 1898, p. 88.
um deles é um lance de dados único, lançado e relançado a cada momento a partir das singularidades pré-individuais (desejos e crenças) que o atravessam e constituem. E se porventura uma
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sociedade qualquer também apresenta esse aspecto sui generis, é
Para concluir esta breve apresentação, gostaria de chamar a
simplesmente porque ela é a integral de todos esses lances de da
atenção para um ponto que me parece essencial. Nenhum homem,
dos, a integração dinâmica de múltiplos processos de diferenciação.
ainda que seja um visionário, consegue escapar inteiramente à sua
Atento à revolução introduzida pelo cálculo diferencial e integral,
época, e o leitor atento há de verificar, ao ler as entrelinhas (ou as
Tarde esboçará (curiosamente, numa nota de pé de página) todo
linhas mesmas) desta ou daquela passagem, que Tarde é um autor
um método sociológico baseado em registros monográficos das
do século XIX. Nada há de surpreendente nisso; em compensação,
variações pontuais de desejos e crenças.5Por fim, à guisa de con
o que é verdadeiramente espantoso é que esse pensador intempes
clusão, Tarde retorna a um tema esboçado na primeira conferência
tivo, que não se alinhou a nenhuma escola ou corrente ideológica,
e apresenta (ainda que à margem, como ele mesmo diz) algumas
pudesse estar tão à frente de seu tempo. Segundo Bergson, o
especulações cosmológicas sobre a natureza da própria matéria
pensamento de Tarde
(o infinitesimal no sentido absoluto), que, segundo ele, não é uma “poeira infinita” de elementos homogêneos, mas uma “multidão de
nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver nas iniciati
virtualidades elementares”.
vas individuais e em sua irradiação a verdadeira causa do que se faz numa sociedade, e mesmo do que acontece no mundo. Seduzidos pelos admiráveis sucessos das ciências físicas, nós nos inclinamos excessivamente a construir as
Eu diria que Tarde é um autor infinitamente mais fácil de ler
ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como prin-
do que de traduzir. Suas longas frases repletas de interpolações não chegam a dificultar a leitura, mas sem dúvida põem qualquer tradu tor à prova. Tentei interferir o mínimo possível no estilo tardeano, ainda que algumas vezes tenha me sentido forçado, para efeito de clareza, a alterar a pontuação e o ritmo das frases. Também tentei não multiplicar desnecessariamente o número de notas, servindo-me desse recurso ora para fornecer uma rápida referência, ora para apontar uma curiosidade de estilo do texto original. Com relação ao aspecto técnico ou conceituai da tradução, houve apenas uma dificuldade realmente digna de nota.6 5 "Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso nâo é verdadeiro. Pode-se m uito bem acumular cons tatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados." Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, op. cit., p. 154. 6 Tarde usa como noções correlatas as locuções rayon im ita tif e rayonnement im ita tif (literalmente, "raio im itativo" e "irradiação imitativa"). Como notou Bruno Latour (op. cit.), a locução raio im itativo é um tanto extravagante, e o próprio Tarde não a usou em
Lois de L'Imitation, embora tenha usado a locução courant im ita tif (corrente im itativa). Assim, meu prim eiro im pulso foi o de usar a palavra "corrente". Entretanto, ao traduzir-se rayon por corrente quebra-se o vínculo etim ológico (e acima de tu d o o vínculo iógico) entre o rayon (do qual todos os imitadores participam ) e o rayonnement, que remete à fonte de uma novidade, ao seu inventor ou agenciador. Ficaria enfraquecida a im portante analogia que o autor estabelece entre as"correntes im itativas"e as ondas físicas: o leitor tenderia a pensar a "corrente" mais como uma "continuidade de ligação entre elos" do que como um fluxo que possui uma origem definida e qúe pode inter ferir em o utro fluxo, ou seja, como algo semelhante a uma onda eletromagnética. Por fim , essa escolha tornaria mais difícil, para o leitor de língua portuguesa, a distinção entre as ocorrências de rayon e de courant no texto original. M inha segunda opção foi o uso do term o onda para traduzir rayon. Nesse caso, somente o vínculo etim ológico seria perdido; e nas passagens em que Tarde realmente utiliza o term o onde (onda), ele sempre se refere explicitam ente a ondas físicas, o que tornaria mais fácil distinguir os dois usos. No entanto, embora tenha achado essa solução (onda im itativa), que foi aliás utilizada por Bergson, a mais elegante de todas, acabei optando pela tradução literal da palavra rayon e de todas as locuções de que ela participa; raio, raio imitativo, raios de exemplos. Se os próprios franceses experim entam um estranhamento diante da escolha original de Tarde, não há razão para suprim ir essa estranheza na tradução. Obviamente, essa escolha resolve, em definitivo, todas as dificuldades mencionadas acima. Por fim, a palavra "irradiação" me pareceu, em todos os casos, bem m elhor do que "influência", que é um dos significados de rayonnement e que seria uma tradução aceitável em determ inados contextos.
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cípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis
progressiva transformação do homem num homo economicus, sim
inelutáveis, anos representar os acontecimentos históricos
ples apêndice descartável de um sistema globalizado de produção
como resultados necessários de forças cegas, impessoais,
de bens e serviços.8
que se comporiam entre si mecanicamente. Contra essa
Diante desse quadro sombrio, a microssociologia de Tarde
tendência, que se tornou natural ao nosso espírito, toda
é uma rajada de ar fresco. Ela vem nos mostrar que tudo, absolu
a filosofia de Tarde protesta. As sociedades humanas são,
tamente tudo, vem precisamente do infinitesimal, e que a solução
sem dúvida, atravessadas por correntes; mas na origem de
dos nossos problemas talvez não venha de um único e grandioso
cada corrente há uma impulsão, e es sa impulsão vem de um
projeto de sociedade, mas de pequenas ações e pensamentos ino
homem. Assim como a história de cada um de nós se explica
vadores capazes de infiltrar-se como a água e espalhar-se como
pelas iniciativas tomadas e pelos hábitos contraídos, a vida
o fogo. Assim como as moléculas são o infinitesimal da vida e as
das sociedades é feita de invenções que surgiram aqui e ali
partículas são o infinitesimal da matéria, nós somos - com nossos
e das modificações duráveis a que essas invenções condu
desejos e crenças - o infinitesimal da sociedade. E em todos os
ziram ao serem adotadas.7
níveis, a potência inventiva está no infinitesimal. Evidentemente, nossos hábitos de pensamento tendem a
O que essas palavras - e, portanto, o pensamento de Tarde
rejeitar essa maneira de perceber a realidade social. Confron
- têm a ver com nossa existência concreta, aqui e agora, para além
tados com ela, nossa primeira reação será a de dizer que seria
(ou aquém) de todas as querelas acadêmicas? Vivemos uma época
muita pretensão pensar que podemos fazer alguma diferença na
difícil, marcada pelo fim das utopias, pela consolidação de uma
imensa ordem das coisas. Mas não seria exatamente o contrário?
ordem mundial nada auspiciosa (que valoriza somente nossa força
Não estaríamos sendo pretensiosos ao afirmar a existência de
de trabalho e nossa capacidade de consumo) e por uma crescente
limites a respeito dos quais nada sabemos? Pois a verdade é que
dissolução do campo social. E nós vivemos o fim das utopias mais
não sabemos, e jamais poderíamos saber de antemão, qual será o
ou menos do mesmo modo que Nietzsche descreveu a derrocada
alcance da menor das nossas ações e do mais casual dos nossos
dos valores superiores: como se a ausência desses projetos de
pensamentos. Hoje, quem nos sugere essa maneira de ver é a pró
futuro decretasse a desvalorização generalizada da vida, a perda
pria ciência contemporânea (tão diferente da ciência na época de
do sentido, a total impossibilidade de ação, a vigência do cinismo.
Tarde), uma vez que o chamado efeito borboleta aplica-se também
Nós nos sentimos - e esse me parece ser o ponto crucial - peque
às realidades sociais. Mas será que podemos atribuir essa maneira
nos demais diante das enormes mudanças que teriam de ocorrer
de ver a Gabriel Tarde sem com isso projetar retrospectivamente
e das potências que supostamente teríamos de enfrentar. Em uma
uma teoria científica relativamente recente no pensamento de um
palavra, nós nos sentimos infinitesimais diante de um onipresente
autor do século XIX? Sim, nós podemos e mesmo devemos fazê-lo,
“sistema” ao qual nada escapa e que não saberíamos ou poderíamos
como sugere este texto admirável que Bergson escreveu a respeito
modificar. Afinal, já não temos um projeto que pudéssemos opor à
de seu colega no Collège de France;
7 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélangés, op.cit., p. 799-800.
Obviamente, não estou levando em consideração projetos de sociedade de caráter explicitamente totalitário ou teocrático, ou seja, antidemocráticos por excelência.
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Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode acar
responderam que isso era psicologia ou inter-psicologia, e
retar consequências incalculáveis, como um simples gesto
não sociologia. Mas isso não é verdade a não ser na aparên
individual, caindo no meio social como uma pedra na água
cia, ou numa primeira aproximação: uma micro-imitação
de uma bacia, o abala por inteiro por meio de ondas imita-
parece ir, com efeito, de um indivíduo a outro. Ao mesmo
tivas que vão sempre se alargando, ela [a obra de Tarde]
tempo, e mais profundamente, ela remete a um fluxo ou a
nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade.
uma onda, e não ao indivíduo... A imitação, a oposição e a
Revelando-nos tudo o que devemos a outrem, inventores em
invenção infinitesimais são como quanta de fluxos, que mar
certos momentos, mas imitadores durante a vida inteira, ela
cam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação
esclarece e fortifica em nós o sentimento de solidariedade.
de crenças e desejos.10
Remetendo ao costume muitas coisas que normalmente con sideramos como pertencentes à natureza; fazendo remontar
O que pode acontecer quando estudantes fazem uma reivin
apensamentos individuais, a vontades individuais, aorigem
dicação? Ou então: qual é a potência de uma ideia nova, ou talvez
de transformações profundas da sociedade e da humanida
nem tão nova assim, porém formulada de uma nova maneira? Qual
de, ela nos desabitua a crer em fatalidades históricas; ela
é a potência da mais inocente das crenças, do mais inocente dos
nos convida a agir, a ganhar confiança em nós mesmos, a
desejos? Não se sabe, não se pode sabê-lo de antemão. Eu diria que
jamais desesperar com o presente, a encarar tranquilamente
Tarde é um autor revolucionário: a revolução é que nao era o que
o porvir. Para além da inteligência à qual se dirige, é a von
pensávamos. “Tarde preocupou-se muito menos com a natureza
tade que ela atinge, estimula e torna mais firme.9
íntima dos elementos, seu estado original e seu estado final, do que com sua ação recíproca”.11 O segredo de um devir revolucionário,
Talvez estejamos demasiadamente acostumados a pensar
que por sinal nada tem a ver com as “metas” de uma revolução, não
em termos de grandes projetos e de grandiosas finalidades para
depende necessariamente de barricadas, mas certamente envolve
que possamos compreender de imediato o alcance dessas pala
essa ação recíproca entre os homens —para além do otimismo e
vras. Longe de constituírem uma exaltação das prerrogativas da
do pessimismo, das utopias e distopias, para além do desespero
consciência, o que seria um total contrassenso na medida em que
e da própria esperança.
remeteria ainda ao plano dos projetos e finalidades, elas se referem a forças que atravessam os indivíduos e, consequentemente, um campo social dado. Pois esse gesto ou iniciativa “individual” de que fala Bergson envolve precisamente algo que é de outra natureza: um puro fluxo de desejo ou crença. Os partidários de Durkheim
9 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 800-801. Grifo meu.
10 Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Mille Plateaux, Paris, De minuit, 1980, p. 267. " Bergson, Henri. Préface aux "Pages Choisies"de G. Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 812.
Prefácio Neste pequeno volume, que contém a substância de várias conferên cias realizadas no Collège libre des sciences sociales em outubro de 1897, tentei oferecer não somente nem precisamente o resumo ou a quintessência de minhas três obras principais de sociologia geral as Leis da Imitação, a Oposição Social e a Lógica Social - mas ainda, e acima de tudo, o laço íntimo que as une. Essa conexão, que pode muito bem ter escapado ao leitor desses livros, é aqui iluminada por considerações de ordem mais geral. Elas permitem, ao que me parece, abarcar num mesmo ponto de vista esses três pedaços, pu blicados separadamente, de um mesmo pensamento, esses membra disjecta12de um mesmo corpo de ideias. Talvez me digam que desde o início eu poderia ter apresentado num todo sistemático o que dividi em três publicações. Mas as obras em vários volumes afugentam, e com alguma razão, o leitor contemporâneo; além disso, para que fatigar-nos com essas grandes construções unitárias, com esses edifícios completos? Se aqueles que nos acompanham terão tanta pressa em demolir essas edificações para servir-se de seus materiais ou apropriar-se de um pavilhão destacado, mais vale poupar-lhes o trabalho da demolição e entregar-lhes o pensamento em fragmen tos. Todavia, para uso dos espíritos singulares que se comprazem em reconstruir aquilo que se lhes oferece em estado fragmentado, tal como outros em quebrar aquilo que se lhes apresenta acabado, talvez não seja inútil juntar às partes esparsas da obra um desenho, um esboço que indique o plano de conjunto que teríamos executado com gosto se para tanto tivéssemos sentido a força e a audácia. Essa é toda a razão de ser desta pequena brochura. G.T. Abril de 1898.
12 Tradução livre: partes dispersas, separadas. (N. do T.)
Introdução
A
o percorrer o museu da história e a sucessão de seus quadros multicoloridos e heteróclitos, ao viajar através dos povos, todos eles diversos e cambiantes, a primeira
impressão do observador superficial é a de que os ienômenos da
vida social escapam a qualquer fórmula geral, a qualquer lei cien tífica, e que a pretensão de fundar uma sociologia é uma quimera. Mas os primeiros pastores que observaram o céu estrelado e os primeiros agricultores que tentaram adivinhar os segredos da vida das plantas devem ter ficado igualmente impressionados pela resplandecente desordem do firmamento, pela multiformidade de seus meteoros, pela exuberante diversidade das formas vegetais e animais; e a ideia de explicar o céu e a floresta por um pequeno número de noções logicamente encadeadas sob o nome de astro nomia e de biologia, essa ideia, se ela pudesse ocorrer-lhes, teria sido a seus olhos o cúmulo da extravagância. Com efeito, não existe menos complicação, irregularidade real e aparente capricho no mundo dos meteoros ou no interior de uma floresta virgem do que na balbúrdia da história humana. Como, então, a despeito da sinuosa diversidade dos estados celestes ou dos estados silvestres, das coisas físicas ou das coisas viventes, chegou-se a gerar e fazer crescer, pouco a pouco, um embrião de mecânica ou de biologia? Isso se deve a três condi ções que importa distinguir claramente para formular uma noção precisa e completa de como convém entender esse substantivo e esse adjetivo tão utilizados, ciência e científico. Em primeiro lugar, começou-se a perceber algumas similitudes no meio dessas diferenças, algumas repetições entre essas variações: os retornos periódicos dos mesmos estados do céu, das mesmas estações, o curso regularmente repetido das idades - juventude, maturidade, velhice - no seres vivos, e os traços comuns aos indivíduos de uma
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/AsLeis Sociais
Gabriel Tarde
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mesma espécie. Não existe ciência do individual considerado nele
Assim, a ciência consiste em considerar uma realidade qual
mesmo; só existe ciência do geral, ou seja, do indivíduo conside
quer sob três aspectos: as repetições, as oposições e as adaptações
rado como repetido ou suscetível de ser repetido indefinidamente.
que ela encerra, e que tantas variações, tantas dissimetrias, tantas
A ciência é uma ordenação de fenômenos encarados pelo viés
desarmonias impedem de ver. A relação entre causa e efeito não
de suas repetições. Isso não quer dizer que diferenciar não seja um
constitui, por ela mesma, o elemento próprio do conhecimento
dos procedimentos essenciais do espírito científico. Diferenciar,
científico. Se assim fosse, a história pragmática, que é sempre um
tanto quanto assimilar, é fazer ciência; mas somente na medida
encadeamento de causas e efeitos, e que sempre nos ensina que
em que a coisa que se discerne é um tipo extraído, na natureza,
tal batalha ou tal insurreição teve tais consequências, seria o mais
de um certo número de exemplares, e mesmo suscetível de ser
perfeito exemplar da ciência. Sabemos, no entanto, que a história
reeditado indefinidamente. Pode-se descobrir um tipo específico
só se torna uma ciência na medida em que as relações de causa
e caracterizá-lo claramente, mas se ele for julgado como sendo o
lidade que ela assinala aparecem como estabelecidas entre uma
privilégio de um indivíduo único, incapaz de ser transmitido à sua
causa geral, suscetível de repetição ou repetindo-se de fato, e um
posteridade, não terá interesse para o cientista senão a título de curiosidade teratológica.
efeito geral, não menos repetido ou suscetível de sê-lo. Por outro
Repetição significa repetição conservadora, causação sim
quando ela a postula sob o nome de função, é dissimulando-a sob
ples e elementar sem nenhuma criação, pois - como mostram a
uma equação. No entanto, a matemática é^uma ciência e mesmo o
transmissão de movimento de um corpo a outro ou a comunicação
protótipo da ciência. Por quê? Porque em parte alguma é realizada
da vida de um ser vivo ao rebento que dele nasceu - o efeito re
uma eliminação tão completa do lado dessemelhante e individual
produz a causa de maneira elementar. Mas também a destruição
das coisas, em lugar algum elas se apresentam sob o aspecto de
dos fenômenos, e não apenas sua reprodução, é importante para a
uma repetição tão precisa e tão definida, e de uma oposição tão
ciência. Assim, seja qual for a região da realidade à qual se aplique, a
simétrica. A grande lacuna da matemática é a de não enxergar,
ciência deve buscar, em segundo lugar, as oposições que ali existem
ou enxergar mal, as adaptações dos fenômenos. Daí advém sua
e que lhe são próprias: ela estará atenta, portanto, ao equilíbrio de
insuficiência, tão vivamente sentida pelos filósofos, mesmo e
forças e à simetria das formas, às lutas entre os organismos vivos,
especialmente por geômetras como Descartes, Comte, Cournot.
aos combates de todos os seres.
lado, a matemática jamais nos mostra a causalidade em obra; e
Repetição, oposição, adaptação: essas são, repito, as três di
Mas isso não é tudo, e nem mesmo é o essencial. É preciso,
ferentes chaves que a ciência usa para abrir os arcanos do universo.
antes de mais nada, estar atento às adaptações dos fenômenos, às
Ela busca, antes de qualquer coisa, não exatamente as causas, mas
suas relações de coprodução verdadeiramente criadora. É para
as leis de repetição, as leis de oposição, as leis de adaptação dos fe
captar, depurar e explicar essas harmonias que o cientista trabalha;
nômenos. São três tipos de leis (e é importante não confundi-las) tão
e descobrindo-as, ele chega a constituir essa adaptação superior: a
solidárias quanto distintas: em biologia, por exemplo, a tendência
harmonia entre seu sistema de noções e fórmulas e a coordenação interna das realidades.
das espécies a se multiplicar segundo uma progressão geométrica (lei de repetição) é o fundamento da concorrência vital e da seleção (lei de oposição); e a produção de variações individuais, de aptidões
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As Leis Sociais
Primeiro capítulo
e harmonias individuais diferentes, assim como a correlação de crescimento (lei de adaptação)13 são necessárias ao seu funcio namento. Mas entre essas três chaves, a primeira e a terceira são
Repetição dos fenômenos
muito mais importantes do que a segunda: a primeira é a grande chave-mestra, a terceira, mais sutil, da acesso aos tesouros mais re cônditos e mais preciosos; a segunda, intermediária e subordinada, revela-nos os choques e as lutas de utilidade passageira, espécie de termo médio destinado a se esvanecer pouco a pouco, embora
oloquemo-nos na presença de um grande objeto: o
C
céu estrelado, o mar, uma floresta, uma multidão, uma cidade. De todos os pontos desse objeto emanam im
jamais completamente, e a só desaparecer, ainda que parcialmente,
pressões que assediam os sentidos do selvagem, bem como os
depois de numerosas transformações e atenuações.
do cientista. Neste, porém, essas sensações múltiplas e inco
Essas considerações eram necessárias para indicar o que a
erentes sugerem noções logicamente agenciadas, um feixe de
sociologia deve ser caso deseje merecer o nome de ciência, e para
fórmulas explicativas. Como ocorreu a lenta elaboração dessas
que caminhos os sociólogos devem dirigi-la se eles se importam
sensações em noções e em leis? Como o conhecimento dessas
em vê-la assumir decididamente o posto que lhe pertence. Como
coisas se tornou cada vez mais científico? Eu diria que isso
qualquer outra ciência, ela não poderá fazê-lo a não ser possuindo
aconteceu, em primeiro lugar, à medida que mais similitudes
seu próprio domínio de repetições, seu próprio domínio de oposi-
foram descobertas, ou que, depois de se ter acreditado ver
Ções e seu próprio domínio de adaptações, todos característicos
similitudes superficiais, aparentes e decepcionantes, similitu
e exclusivos. Ela não progredirá a não ser esforçando-se, como
des mais reais e profundas foram percebidas. Em geral, isso
fizeram todas as ciências anteriores, para sempre substituir as
significa que se passou de similitudes e repetições de massa,
falsas repetições por repetições verdadeiras, as falsas oposições
complexas e confusas, a similitudes e repetições de pormenor,
por oposições verdadeiras, as falsas harmonias por harmonias
mais difíceis de captar, porém mais precisas, elementares e
verdadeiras, e para substituir repetições, oposições e harmonias
infinitamente numerosas, bem como infinitesimais. E somente
verdadeiras, porém vagas, por repetições, oposições e adaptações
depois que essas similitudes elementares foram percebidas é
cada vez mais precisas. Coloquemo-nos sucessivamente em cada
que as similitudes superiores, mais amplas, mais complexas,
um desses pontos de vista para verificar inicialmente se a evolução
mais vagas, puderam ser explicadas e reduzidas ao seu justo
das ciências em geral, e da sociologia em particular, se fez e se faz
valor. Esse progresso ocorreu cada vez que muitas origina-
no sentido que eu acabo de definir imperfeitamente, e que preten
lidades distintas, anteriormente julgadas sui generis, foram
do definir cada vez melhor; e em seguida, para indicar as leis do
assimiladas em combinações de similitudes. Isso não quer
desenvolvimento social sob cada um desses aspectos.
dizer que a ciência, ao progredir, faça desaparecer ou mesmo diminuir a proporção de originalidades fenomenais, os aspectos
Note-se que Cuvier e os naturalistas de sua época (inclusive seu adversário Lamarck) bus caram, sobretudo, as leis de adaptação, enquanto Darwin e seus discípulos evolucionistas abordaram os fenômenos da vida dando preferência aos aspectos relativos às suas repeti ções e às suas oposições (lei de Malthus e lei da concorrência vital), embora, por certo, eles também tenham se preocupado com aquilo que importa acima de tudo, a adaptação vital.
não repetidos da realidade. É verdade que as originalidades de massa, grandes e visíveis, se dissolvem sob o olhar mais penetrante do observador, mas em proveito de originalidades
25
■As Leis Sociais
Gabriel Tarde
mais profundas e recônditas que vão se m ultiplicando inde
às maiores, das mais rápidas às mais lentas, como a repetição in
finidamente, juntamente com as uniformidades elementares.
cessante e contínua de um mesmo fato: a atração em razão direta
24
Apliquemos o que foi dito ao céu estrelado. Houve um início
das massas e em razão inversa ao quadrado das distâncias. E seria
de ciência astronômica a partir do momento em que pastores ocio
ainda melhor se, explicando esse mesmo fato por meio de uma
sos e curiosos notaram a periodicidade das revoluções celestes
hipótese audaciosa, sempre perseguida e sempre obsedante, fosse
aparentes, o levantar e deitar das estrelas, os passeios circulares
possível enxergar aí o efeito da pressão de átomos etéreos, pressão
do Sol e da Lua, a sucessão regular e o retorno regular de suas
decorrente de vibrações atômicas de uma inimaginável exiguidade,
posições no céu. Mas certos astros pareciam constituir exceções
mas também de uma inconcebível multiplicidade.
em face da generalidade dessa única e grandiosa revolução circular:
Não terei razão ao dizer que a ciência astronômica trabalhou
as estrelas errantes, os planetas, aos quais se atribuía uma marcha
o tempo todo com similitudes e repetições, e que seu progresso
caprichosa, a cada instante diferente dela mesma e das demais;
consistiu em partir de similitudes e repetições únicas ou bem pouco
até que se percebeu quanta regularidade havia nessas anomalias.
numerosas, gigantescas e aparentes, para chegar a uma infinidade
Julgava-se, aliás, que todas as estrelas fixas e errantes, sóis e pla
de similitudes e repetições infinitesimais, reais e elementares, que
netas, aí compreendidas as estrelas cadentes, eram semelhantes entre si, e só se estabelecia uma diferença marcante entre elas e ó
aliás permitiram, ao surgirem, explicar as primeiras? E será possível dizer - entre parênteses - que o céu tenha
Sol ou a Lua, que gozavam da reputação de serem os únicos astros
perdido algo de seu caráter pitoresco à medida que a astronomia
verdadeiramente originais do firmamento.
progredia? De modo algum. Em primeiro lugar, a precisão cres
Ora, a astronomia progrediu quando, por um lado, essa
cente dos instrumentos e das observações permitiu distinguir nas
aparente rotação do céu inteiro, enorme e única, foi substituída
gravitações repetidas dos astros muitas diferenças antes desper
pela realidade de uma inumerável quantidade de pequenas rota
cebidas, sendo fonte de novas descobertas, notadamente a de Le
ções muito diferentes entre si, e que não apresentavam nenhuma
Verrier.15Depois o firmamento se ampliou cada vez mais, e na sua
sincronia, cada qual se repetindo indefinidamente; e quando, por
imensidade aumentada, foram acentuadas as desigualdades de
outro lado, a originalidade do Sol desapareceu, substituída por
volume, de velocidade e de particularidades físicas entre astros e
uma originalidade mais difícil de perceber, a de cada estrela, sol
grupos de astros. As variedades de configuração das nebulosas se
de um sistema invisível, centro de um mundo planetário análogo ao turbilhão de nossos planetas.
multiplicaram, e quando o uso do espectroscópio (coisa inaudita)
A astronomia deu um passo ainda maior quando as diferenças
mica dos corpos celestes, foram constatadas entre os seres que
dessas gravitações siderais, cuja generalidade sem exceções não
as povoam dessemelhanças que se pode chamar de profundas.
excluía a desigualdade de velocidade, de distância, de elipticidade,14
Enfim, percebeu-se melhor a geografia dos astros mais próximos, e
etc., desapareceram diante da lei de gravitação newtoniana, que
se julgarmos os demais a partir desses, deve-se acreditar - depois
tornou possível analisar tão maravilhosamente a composição quí
apresentou todas as periodicidades de movimento, das menores 14 No o rig in a l, ellipticité, caráter de uma fig u ra (no caso, de uma ó rb ita ) e líp tica (N. doTJ.
15 Urbain Le Verrier, matemático e astrônomo francês que em 1846 previu, somente com base em cálculos e na observação da órbita do planeta Urano, a existência do planeta Netuno. (N.doT.)
26
As Leis Sociais
Gabriel Tarde
de haver estudado os canais de Marte, por exemplo - que cada um
pelas leis da biologia, biologia animal ou vegetal, pouco importa;
dos inumeráveis planetas a gravitar sobre nossas cabeças ou sob
atualmente ambas se confundem. Mas no início se diferenciava
nossos pés possui seus acidentes característicos, seu mapa-múndi
profundamente o que hoje assimilamos, ao passo que muitas
especial, suas particularidades locais que, lá como aqui, dão a cada
coisas que hoje diferenciamos eram assimiladas. As similitudes e
canto do solo seu charme peculiar e imprimem, sem nenhuma
as repetições percebidas então, das quais se alimentava a ciência
dúvida, o amor pela terra natal no coração de seus habitantes,
nascente dos organismos, eram superficiais e decepcionantes:
sejam eles quais forem.
foram assimiladas plantas sem nenhum parentesco, cujo porte e
27
A meu ver, isso não é tudo - porém digo-o baixinho, com
folhagem eram vagamente assemelhados, enquanto era traçado
receio de incorrer na grave censura de fazer metafísica... Eu creio
um abismo entre plantas da mesma família, mas de talhe e silhueta
que é impossível explicar as dessemelhanças às quais me refiro -
bastante desiguais. A ciência botânica progrediu ao aprender que
mesmo que fossem apenas essas desigualdades de posição e essa
os caracteres mais importantes, isto é, mais repetidos e mais sig
caprichosa distribuição de matéria através do espaço - pela hipó
nificativos, acompanhados por um cortejo de outras similitudes,
tese, tão cara aos químicos (que são, quanto a isso, os verdadeiros
não. eram os mais visíveis; ao contrário, eram os mais recônditos,
metafísicos), de elementos atômicos perfeitamente semelhantes.
os mais sutis, ou seja, aqueles concernentes aos órgãos de repro
Creio que a pretensa lei de Spencer sobre a instabilidade do homo
dução: por exemplo, o fato de ter um ou dois cotilédones, ou de
gêneo nada explica, e que, por consequência, a única maneira de
não ter nenhum.
explicar a floração de exuberantes diversidades à superfície dos
E a biologia, síntese da zoologia e da botânica, nasceu no dia
fenômenos é admitir no fundo das coisas uma tumultuosa infinidade
em que a teoria celular mostrou que, tanto nos animais como nas
de elementos caracterizados individualmente. Assim, do mesmo
plantas, a célula era o elemento infinitamente repetido, primeira
modo que as similitudes de massa foram resolvidas em similitudes
mente a célula germinal, e depois todas as outras que dela proce
de pormenor, as diferenças de massa, grosseiras e bem visíveis,
dem; e que o fenômeno vital elementar é a repetição indefinida, em
se transformaram em diferenças de pormenor infinitamente sutis.
cada célula, dos modos de nutrição e de atividade, de crescimento
E assim como as similitudes de pormenor permitem explicar por
e de proliferação, cujo depósito tradicional ela recebeu de herança
si mesmas as similitudes de conjunto, as diferenças de pormenor,
e transmitirá fielmente à sua posteridade. Essa conformidade aos
essas originalidades elementares e invisíveis que eu vislumbro,
precedentes que se chama de hábito ou de hereditariedade - diga
permitem igualmente explicar por si mesmas as diferenças apa
mos, numa palavra, hereditariedade, já que o hábito é uma here
rentes e grandiosas, o pitoresco do universo visível.
ditariedade interna e a hereditariedade é um hábito exteriorizado
Temos aí o mundo físico. No mundo vivo acontece a mesma
- é a forma propriamente vital da repetição; tal como a ondulação
coisa. Coloquemo-nos, como o homem primitivo, no meio de uma
ou, em geral, o movimento periódico, é sua forma física, tal como
floresta. Existe ali toda a fauna e flora de uma região, e nós sabe
a imitação, como veremos, é sua forma social.
mos agora que os fenômenos tão dessemelhantes apresentados
Vemos, portanto, que o progresso da ciência dos seres
por esses diversos animais e plantas se resolvem, no fundo, numa
vivos teve como efeito derrubar gradualmente todas as barreiras
enorme quantidade de pequenos fatos infinitesimais resumidos
que existiam entre eles do ponto de vista de suas similitudes e
28
29
/)s Leis Sociais
Gabriel Tarde
repetições, substituindo, também ali, semelhanças grosseiras e
natural, se repetia na mesma ordem, era já um primeiro esboço de
aparentes, grandiosas e pouco numerosas, por semelhanças muito
sociologia. Aristóteles substituiu essa única e falsa repetição de
precisas, inumeráveis e infinitesimais, que são as únicas capazes de
conjunto, acolhida pelo quimérico talento de Platão, por repetições
explicar as primeiras. Mas ao mésmo tempo aparecem distinções
de pormenor, frequentemente verdadeiras, mas sempre muito vagas
múltiplas, e não apenas a originalidade de cada indivíduo se torna
e difíceis de acompanhar de perto; elas são formuladas em sua
mais evidente, mas também somos forçados a admitir originalida-
Política a propósito do que existe de mais superficial ou de menos
des celulares, e em primeiro lugar germinais: pois não existe nada
profundo na vida social, a sucessão de formas governamentais.
tão semelhante quanto duas células germinais, mas existirá algo
Interrompida desde então, a evolução da sociologia recomeçou ab
mais diferente do que seu conteúdo? Depois de experimentar a
ovo17 nos tempos modernos. Os ricorsi 18 de Vico são a retomada
insuficiência das explicações propostas por Darwin e Lamarck a
e a fragmentação, menos quimérica, dos ciclos antigos; essa tese,
respeito da origem das espécies - cujos termos comuns, por sinal,
tal como a de Montesquieu sobre a pretensa semelhança entre
a descendência, a evolução, permanecem para além de qualquer
civilizações surgidas sob o mesmo clima, são dois bons exemplos
contestação - é preciso convir que a causa verdadeira da espécie é
de repetições e similitudes superficiais ou ilusórias que nutriram
o segredo das células, a invenção de algum óvulo inicial possuindo
a ciência antes que ela encontrasse um alimento mais substancial.
uma originalidade particularmente fecunda.16
Chateaubriand, no seu Ensaio sobre as Revoluções, desenvolveu um
Pois bem, eu afirmo que se examinarmos uma cidade, uma
longo paralelo entre a revolução inglesa e^a revolução francesa e
multidão ou um exército, em vez de examinarmos uma floresta ou
divertiu-se com as mais superficiais comparações. Outros funda
o firmamento, veremos que as considerações anteriores se aplicam
ram grandes pretensões teóricas sobre vãs analogias entre o gênio
à ciência social do mesmo modo que se aplicam à astronomia e à
púnico e o gênio inglês, ou entre o império romano e o império
biologia. Também aqui passamos de generalizações apressadas,
inglês... Essa pretensão de encerrar os fatos sociais em fórmulas
fundadas sobre analogias vãs e factícias, grandiosas e ilusórias, a
de desenvolvimento, que os constrangeriam a repetir-se em massa
generalizações apoiadas sobre conjuntos de pequenos fatos seme
com variações insignificantes, foi a grande ilusão da sociologia:
lhantes, possuindo uma similitude relativamente clara e precisa.
seja sob a forma já mais precisa que Hegel lhe deu com suas sé
Há muito tempo a sociologia trabalha para constituir-se.
ries de tríades, seja sob a forma ainda mais científica e precisa, e
Ela tentou seus primeiros balbucios a partir do momento em que
menos afastada da verdade, que ela recebeu dos evolucionistas
discerniu, ou acreditou discernir, algo de periódico e de regular no
contemporâneos. Estes, a propósito das transformações do direi
confuso caos dos fatos sociais. A concepção antiga do grande ano
to, notadamente do regime familiar e do regime de propriedade
cíclico, ao término do qual tudo, no mundo social como no mundo
- e a propósito das transformações da linguagem, da religião, da indústria, das belas-artes - arriscaram a formulação de leis gerais
16 Essa afirmação de Tarde parece referir-se à teoria do plasma germinativo de August Weismann. 0 biólogo alemão rejeitava a hereditariedade dos caracteres adquiridos e preco nizava que o segredo da variação (surgimento de novas espécies) reside exclusivamente nas células germinativas e depende de alterações em seus elementos moleculares. A descoberta do ADN demonstrou que Weismann estava na direção correta, e tinha razão ao mesmo tem po contra Darwin e contra Lamarck. (N. doT.)
razoavelmente precisas que sujeitariam a marcha das sociedades, sob esses diversos aspectos, a passar e repassar pelos mesmos 17 Tradução livre: desde o início, a p a rtir do zero. (N. doT.) 18 Recorrências. (N. do T.)
30
31
As Leis Sociais
Gabriel Tarde
caminhos, arbitrariamente traçados, de fases sucessivas. Era ne
à qual ele se dirigiu para obter a chave dos fenômenos sociais era
cessário reconhecer que essas pretensas regras estão repletas de
a psicologia meramente individual, aquela que estuda as relações
exceções, e que a evolução - linguística, jurídica, religiosa, política,
internas entre impressões ou imagens no interior de um mesmo
econômica, artística, moral - não é uma rota única, mas uma rede
cérebro, e que acredita dar conta de tudo, nesse domínio, pelas
de caminhos na qual abundam as encruzilhadas.
leis de associação desses elementos internos. Assim concebida,
Felizmente, à sombra e ao abrigo dessas ambiciosas genera
a sociologia se tornava uma espécie de associacionismo inglês
lizações, trabalhadores mais modestos se esforçavam, com mais
aumentado e exteriorizado, e perdia sua originalidade. Não é exa
sucesso, para anotar leis de pormenor de uma solidez bem diferente.
tamente ou unicamente a essa psicologia /nfra-cerebral, é antes de
Eles eram linguistas, mitólogos, sobretudo economistas. Esses es
tudo à psicologia inter-cerebral, que estuda o estabelecimento de
pecialistas da sociologia perceberam várias relações interessantes
relações conscientes entre muitos indivíduos, que convém pedir
entre fatos consecutivos ou concomitantes, relações que se repro
o fato social elementar, cujos grupamentos ou combinações múlti
duziam a cada instante nos limites do pequeno domínio que eles
plas constituem os fenômenos ditos simples, objetos das ciências
estudavam: encontra-se na Riqueza das Nações de Adam Smith, na
sociais particulares. O contato de um espírito com outro é, com
Gramática comparada das línguas indo-européias de Bopp e na obra
efeito, na vida de cada um deles, um acontecimento à parte, que
de Dietz, para ficar nesses três exemplos, uma enorme quantidade
se destaca vivamente do conjunto de seus contatos com o resto
de observações desse gênero, nas quais se exprime uma similitude
do universo e dá lugar aos estados de alma mais imprevisíveis (e
entre inumeráveis ações humanas como a pronúncia de certas con
mais inexplicáveis pela psicologia fisiológica).20
soantes ou de certas vogais, as compras e as vendas, a produção e
Essa relação de um sujeito com um objeto que também é
o consumo de certos artigos, etc. É verdade que essas similitudes,
um sujeito não é uma percepção que em nada se assemelha à
nelas mesmas, deram lugar a leis imperfeitas, relativas ao plerumque
coisa percebida (autorizando por isso o cético idealista a colocar
fít,19quando os linguistas ou economistas tentaram formulá-las em leis; mas é porque se teve demasiada pressa para enunciá-las, antes mesmo de se discernir, no seio dessas verdades parciais, a verdade geral que elas implicam, o fato social elementar que a sociologia persegue obscuramente e que ela deve atingir para realizar-se. Muitas vezes pressentiu-se que essa explicação geral das leis ou pseudo-leis (econômicas, linguísticas, mitológicas ou outras) cabia à psicologia. Ninguém compreendeu isso com mais força e clareza do que Stuart Mill. No fim de sua Lógica, ele concebeu a sociologia como a psicologia aplicada. O problema é que ele não exprimiu seu pensamento com suficiente precisão, e a psicologia 19 Tradução livre: o usual, aquilo que geralmente acontece. (N. do T.)
20 As experiências realizadas sobre a sugestão hipnótica e sobre a sugestão em estado de vigília forneceram abundantes materiais para a futura construção da Psicologia inter-ce rebral.Tomarei a liberdade de remeter o leitor às tentativas de aplicação dessa psicologia ainda embrionária que realizei em todas as minha obras e particularmente no capítulo intitulado Qu'est ce qu'une société? (Lois de L'Imitation, 1890), que já havia aparecido em novembro de 1884 na Revue philosophique; em algumas páginas de minha Philosophie pénale (1890) sobre a formação de hordas criminosas (capítulo sobre o crime, p. 384 e seguintes, 1a edição); em minha comunicação intitulada Crimes des foules, discutida no Congresso de Antropologia Criminal de Bruxelas em .outubro de 1892; e no meu artigo publicado sob o título de Foules et Sectes na Revue des Deux Mondes (dezembro de 1893). Esses dois últim os estudos foram reimpressos sem modificações no meu Essais et mélanges sociologiques, em 1895 (Edições Storch et Masson, Paris-Lyon). Eu gostaria de observar en passant que o trecho da Philosophie pénale citado acima, senão o capítulo de Lois de Limitation, do qual ele não passa de um corolário, contém em substância e muito explicitamente a explicação dos fenômenos de massa que foram desenvolvidos mais tarde em outros estudos, e que ele apareceu anteriormente aos interessantes trabalhos sobre a psicologia das massas editados no estrangeiro ou na França. Digo isto não para dim inuir seu mérito, mas para responder a certas insinuações, às quais, por sinal, eu fiz justiça em outros lugares.
32
As Leis Sociais
Gabriel Tarde
sua realidade em dúvida), mas antés a sensação de uma coisa
de desejo, tal como a energia de entusiasmo intelectual, de ade
senciente, a volição de uma coisa volitiva, a crença em uma coisa
são e constrição mental, que eu chamo de crença, é uma corrente
crente, em resumo, em uma pessoa, na qual a pessoa que perce
homogênea e contínua que, sob a variável coloração das tintas de
be se reflete e que ela não poderia negar sem negar a si mesma.
afetividade próprias a cada espírito, circula idêntica, ora dividida,
Essa consciência de uma consciência é o inconcussum q u id21 que
fragmentada, ora concentrada, e que se comunica sem alteração
Descartes procurava e que o eu individual não pôde lhe fornecer.
de uma pessoa a outra, bem como de uma percepção a outra no
Além disso, essa relação singular não é uma impulsão física, dada
interior de uma mesma pessoa.
33
ou recebida, um transporte de força motora do sujeito ao objeto
Quando eu disse que toda ciência verdadeira chega a um
inanimado ou vice-versa, conforme se trate de um estado ativo ou
domínio próprio de repetições elementares, inumeráveis e infi
passivo, mas uma transmissão de algo interior, mental, que passa
nitesimais, é como se eu já houvesse dito que toda ciência verda
de um sujeito ao outro sem por isso, coisa estranha, perder-se ou
deira fundamenta-se em quantidades que lhe são específicas.22
diminuir-se no primeiro. E o que pode ser assim transmitido de
A quantidade, com efeito, é a possibilidade de séries infinitas e
uma alma a outra por meio de um contato psicológico? São suas
de repetições infinitamente pequenas. Eis porque eu me permiti
sensações, seus estados afetivos? Não, isso é essencialmente
insistir sobre o caráter quantitativo das duas energias mentais
incomunicável. Tudo o que dois sujeitos podem comunicar entre
que, como dois rios divergentes, banham a dupla face do eu, sua
si tendo consciência disso, de maneira a sentir-se mais unidos e
atividade mental e sua atividade voluntária. JMegar esse caráter é
semelhantes, são suas noções e volições, seus juízos e desígnios,
declarar a impossibilidade da sociologia. Mas não se pode negá-lo
formas que podem permanecer as mesmas apesar da diferença
sem recusar a evidência, e esta é a prova de que as quantidades em
de seu conteúdo, produtos da elaboração espiritual que se exerce
questão são propriamente sociais: sua natureza quantitativa apare
quase indiferentemente sobre signos sensíveis quaisquer. Tampou
ce tanto melhor, e fere o espírito com maior vivacidade e clareza,
co ela difere sensivelmente passando de um espírito de tipo visual
quando são consideradas em massas mais amplas, sob a forma de
a um espírito de tipo acústico óu motor, de modo que as ideias
correntes de fé ou de paixão popular, de convicções tradicionais
geométricas de um cego de nascença são exatamente as mesmas
ou opiniaticidades costumeiras, abraçando grupos humanos mais
que geômetras dotados de visão possuem; e um plano de batalha
numerosos. Quanto mais cresce uma coletividade, e mais se eleva
sugerido por um general de humor bilioso e melancólico a generais
ou apequena uma opinião, ou seja, a crença ou o querer nacional,
de temperamento vivo e sanguíneo ou fleumático e resignado não
afirmativo ou negativo, em relação a um objeto dado - alta ou baixa
deixará de ser o mesmo: para isso basta que eles tracem a mesma
exemplarmente expressa pelas cotações da Bolsa - mais ela se tor
série de operações, e por outro lado, que estas sejam desejadas
na suscetível de medida e comparável aos movimentos de pressão
por eles com igual força de querer, a despeito da maneira de sentir
atmosférica ou à força viva de uma queda d’água. É por isso que a
toda especial, toda individual, que leva cada um deles a desejar.
estatística se desenvolve com crescente facilidade à medida que
A energia de tendência psíquica, de avidez mental, que eu chamo 21 Tradução livre: algo firme, constante, inabalável. (N. doT.)
22 No texto original consta a palavra qualidades (em vez da palavra quantidades): "toute science vraie repose sur des qualités qui lui sont spéciales". Uma vez que o contexto não dá margem a dúvidas, optei por fazer a alteração no próprio corpo do texto. (N. doT.)
34
As Leis Sociais
Gabriel Tarde
os Estados crescem; o êxito da estatística, cujo objeto próprio é
confirmariam a regra. Essa conformidade minuciosa de espíritos
35
pesquisar e discernir quantidades verdadeiras na barafunda dos
e de vontades que constitui o fundamento da vida social, mesmo
fatos sociais, é proporcional à sua obstinação de medir, no fundo,
nas épocas mais perturbadas; essa presença simultânea de tantas
por meio dos atos humanos que adiciona, massas de crenças e de
ideias precisas, de tantos fins e meios precisos em todos os espí
desejos. A estatística dos valores da Bolsa exprime as variações
ritos e em todas as vontades de uma mesma sociedade num dado
da confiança pública no sucesso de tais ou tais empresas, na sol
momento; nada disso é o efeito da hereditariedade orgânica que
vência de tais ou tais Estados devedores, e as variações do desejo
fez nascer homens muito semelhantes entre si, nem da identidade
público, do interesse público, ao qual se dá satisfação por essas
do meio geográfico que teria oferecido recursos mais ou menos
dívidas e por essas empresas. A estatística industrial e agrícola
iguais a aptidões mais ou menos iguais, e sim da sugestão-imitação
exprime a importância das necessidades gerais que reclamam a
que, a partir de um primeiro criador de uma ideia ou de um ato,
produção de tais ou tais artigos e a suposta conveniência dos meios
propagou gradualmente seu exemplo. As necessidades orgânicas
necessários para satisfazê-las. A consulta da estatística judiciária,
e as tendências espirituais só existem em nós num estado de vir-
em suas enumerações de processos e delitos, só é interessante
tualidades realizáveis sob as mais diversas formas, a despeito de
porque a travessia de suas linhas permite, ano após ano, a leitura
sua vaga similitude primordial; e foi a indicação de um primeiro
da progressão ou regressão dos desejos públicos engajados em vias
iniciador imitado que determinou, entre essas realizações possí
processuais ou delituosas: por exemplo, a tendência ao divórcio
veis, a escolha de uma delas.
ou ao roubo, e também a proporção de esperanças públicas vol
Voltemos ao casal social elementar que mencionei anterior
tadas para certos processos ou delitos. A estatística populacional,
mente, não o casal do homem e da mulher que se amam - esse casal,
que sob muitos aspectos é meramente biológica e diz respeito à
considerado do ponto de vista sexual, é puramente vital - mas o
propagação da espécie, também é sociológica na medida em que
casal de duas pessoas, seja qual for o sexo a que elas pertencem,
diz respeito à duração e aos progressos das instituições sociais, e
no qual uma age espiritualmente sobre a outra. Eu afirmo que a
exprime o crescimento ou o decréscimo do desejo de paternidade
relação entre essas duas pessoas é o elemento único e necessário
e de maternidade, bem como da crença geral de que a felicidade é
da vida social, e que ele consiste sempre, originalmente, em uma
obtida a partir do casamento e das uniões fecundas.
imitação de um pelo outro. Porém é preciso bem compreender isto
Mas sob que condição as forças de crença e de desejo
para não cair sob o golpe de vãs e superficiais objeções. 0 incon
acumuladas em indivíduos distintos podem ser legitimamente
testável é que dizendo, fazendo, pensando não importa o que, uma
adicionadas? À condição de ter o mesmo objeto, de incidir sobre
vez engajados na vida social, nós imitamos outrem a cada instante,
uma mesma ideia a afirmar, sobre uma mesma ação a executar.
a menos que nós inovemos, o que é raro; e ainda é fácil mostrar
Mas como se produz essa convergência de direção que torna as
que nossas inovações são, em sua maior parte, combinações de
energias individuais capazes de formar um todo social? Será espon
exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas à vida
taneamente, por um encontro fortuito, ou por uma espécie de har
social enquanto não forem imitadas. Vocês não dizem uma palavra
monia preestabelecida? Não, a não ser talvez em casos bem raros;
que não seja a reprodução - agora inconsciente, mas inicialmente
e mesmo essas exceções, se tivéssemos tempo para examiná-las,
consciente e desejada - de articulações verbais remontando ao
37
As Leis Soda is
Gabriel Tarde
mais longínquo passado, ainda que com um sotaque característi
um autor que percebe na luta entre sociedades um poderoso agente
co da sua vizinhança; vocês não realizam um rito de sua religião,
de sua posterior socialização, de sua comunhão em uma sociedade
sinal da cruz, beijo no ícone, prece, que não reproduza gestos e
mais ampla elaborada por essas mesmas batalhas. Com efeito, não
fórmulas tradicionais, ou seja, formadas pela imitação dos ances
é evidente que povos rivais ou mesmo inimigos tendem a se fun
trais; vocês não executam uma ordem qualquer, militar ou civil,
dir à medida que assimilam suas instituições? Assim, é certo que
ou um ato qualquer de sua profissão, que não tenha sido ensinada
cada novo ato de imitação tende a conservar ou fortificar o laço
e que não tenham copiado de um modelo vivo; vocês não dão uma
social, não apenas entre indivíduos já associados, mas também
pincelada, se são pintores, não escrevem um verso, se são poetas,
entre indivíduos ainda não associados, de modo que a imitação
que não seja conforme aos hábitos ou à prosódia de sua escola;
prepara a associação de amanhã, ou seja, tece agora, por meio de
até mesmo sua originalidade é feita de banalidades acumuladas, e
fios invisíveis, aquilo que irá se tornar um laço manifesto.
36
aspira a tornar-se banal por sua vez.
Não me deterei em outras objeções que me foram feitas, pois
Assim, o caráter constante de um fato social, seja ele qual for,
elas provêm de um entendimento muito incompleto de minhas
é imitativo; e esse caráter é próprio e exclusivo dos fatos sociais.
ideias. Elas se desfazem por si mesmas aos olhos de quem se co
Sobre esse ponto, entretanto, Giddings - que, por sinal, posicionou-
loca claramente no meu ponto de vista. No que diz respeito a elas,
-se frequentemente no meu ponto de vista sociológico - mè fez
remeto à leitura de minhas obras.
uma objeção ilusória: imita-se, diz ele, de uma sociedade a outra,
Mas não basta reconhecer o caráter imitativo de todo fenô
e mesmo inimigos se imitam, apoderando-se de armamentos, de
meno social. Eu afirmo, além disso, que essa relação de imitação
táticas de guerra, de segredos profissionais. Assim, o campo da
existiu, na origem, não apenas entre um indivíduo e uma massa
imitação ultrapassaria o campo da sociabilidade e não poderia ser
confusa de homens (como acontecerá mais tarde), mas entre dois
a característica deste.23Mas espanta-me que tal objeção venha de
indivíduos apenas, entre os quais um, a criança, está nascendo para a vida social, e o outro, o adulto, já socializado há muito
23 Dando-se à palavra imitação a acepção larga que ela recebe num livro recente e já célebre ( 0 Desenvolvimento Mental da Criança) de Baldwin, professor de psicologia da Universidade de Princeton, pode-se dizer que a imitação é o fato fundamental, não somente da vida sociale da vida psicológica, mas da própria vida orgânica, na qual ela seria a condição para o hábito e a hereditariedade. Mas a tese desse fino psicólogo, longe de contradizer a minha, é na verdade sua veemente ilustração e confirmação. A imitação de homem a homem, tal como eu a entendo, é a decorrência da imitação de estado a estado no mesmo homem, imitação interna que eu mesmo já havia chamado de hábito e que, distinguindo-se da primeira por características suficientemente precisas, não me perm ite confundi-las. Bal dwin, que é antes de mais nada um psicofisiologista, explica muito bem a origem orgânica e mental da imitação, e seu papel term ina precisamente no mom ento em que começa o do psicossociólogo. É uma pena que seu livro não tenha antecedido meu livro sobre as Leis da Imitação, pois suas análises teriam sido proveitosas. Mas elas não me obrigaram a retificar em nada as leis e considerações enunciadas em minha obra. Em todo caso, seu livro é a m elhor resposta que posso dar àqueles que me censuraram por ter estendido demais o sentido da palavra Imitação. Baldwin, estendendo-o m uito mais, prova que isso não é verdade. Eu soube, durante a revisão deste texto, que Baldwin acaba de aplicar suas ideias à sociologia [Social and Ethical Interprétations in Mental Development], e que ele, seguindo um caminho independènte, foi conduzido espontaneamente a uma maneira de ver bastante análoga àquela desenvolvida no meu livro Lois de l'Imitation.
tempo, lhe serve de modelo individual. É avançando na vida que nós iremos tomar como regra modelos coletivos e impessoais, geralmente inconscientes; mas antes de falar, pensar e agir tal como nós falamos, pensamos e agimos em nosso mundo, come çamos por falar, pensar e agir como ele (ou ela) fala, pensa e age; e esse ele ou ela é um de nossos familiares. No fundo desse nós, se procurarmos bem, não encontraremos outra coisa além de um certo número de eles e elas que se embaralharam e se confundi ram ao multiplicar-se. Por mais simples que seja essa distinção, ela é esquecida por todos aqueles que contestam que a iniciativa individual tenha um papel criador numa instituição e numa obra social qualquer, e acreditam dizer alguma coisa afirmando, por
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As Leis Sociais
Gabriel Tarde
exemplo, que as línguas e religiões são obras coletivas, que as
natural de outrora.25 Dito de outro modo, ela repousa sobre um
massas, as massas sem nenhum dirigente, produziram o grego, o
fundamento de similitudes e de repetições elementares e verda
sânscrito, o hebraico, o budismo, o cristianismo; e por fim, que a
deiras, infinitamente numerosas e extremamente precisas, que
explicação das formações e transformações das sociedades está
substituíram, como matéria primeira da elaboração científica, um
na ação coercitiva da coletividade sobre o indivíduo pequeno ou
pequeno número de falsas ou vagas - e decepcionantes - analogias.
grande, sempre modelado e sujeitado, e jamais na ação sugestiva e
E eu posso acrescentar que, se por causa dessa substituição o lado
contagiosa de indivíduos de elite sobre a coletividade. Na realidade,
similar das sociedades progrediu em extensão e em profundidade,
tais explicações são ilusórias, e seus autores não percebem que
seu lado diferencial também ganhou com a mudança. Sem dúvida
eludem a dificuldade principal ao postular uma força coletiva, uma
será preciso, daqui por diante, renunciar a essas diferenças factí
similitude, sob certos aspectos, entre milhões de homens: ou seja,
cias que a “filosofia da história” estabelecia entre povos sucessivos,
o problema de saber como essa assimilação geral pôde acontecer.
espécies de grandes personagens de um único e imenso drama no
Podemos responder com precisão levando a analogia até onde
qual cada um tinha seu papel providencial a desempenhar. Conse
eu á conduzi, até a relação intercerebral entre dois espíritos, ao
quentemente, já não é permitido compreender essa expressão, da
reflexo de um no outro, e somente então se poderá explicar essas
qual tanto se abusou, o gênio de um povo ou de uma raça (e também
unanimidades parciais, essas conspirações dos corações, essas
o gênio de uma língua, o gênio de uma religião), da mesma maneira
comunhões de espírito que, uma vez formadas e perpetuadas pela
que ela era compreendida por nossos antecessores, mesmo tão
tradição, imitação dos ancestrais, exercem uma pressão tão fre
próximos como Renan e Taine. Emprestava-se uma originalidade
quentemente tirânica, e ainda mais frequentemente salutar, sobre
imaginária, aliás mal definida, a esses gênios coletivos, entidades
o indivíduo.24 Portanto, é a essa relação que o sociólogo deve se
ou ídolos metafísicos; a eles eram atribuídas certas predisposições,
ater, tal como o astrônomo se atém à relação entre duas massas
supostamente invencíveis, em relação a determinados tipos gra
que atraem e são atraídas; é a ela que ele deve pedir a chave do
maticais, concepções religiosas e formas de governo; e neles eram
mistério social, a fórmula de algumas leis simples, universalmente
supostas, ao contrário, certas incompatibilidades absolutas a res
verdadeiras, que podem ser discernidas em meio ao caos aparente da história e da vida humanas.
entre seus rivais. Por exemplo, o gênio semita seria absolutamente
O que eu tenho a ressaltar no momento é que a sociologia,
refratário ao politeísmo, ao sistema analítico das línguas modernas,
assim compreendida, difere das antigas concepções que reinavam
ao governo parlamentar; o gênio grego, ao monoteísmo; o gênio chi
sob esse nome tal como a astronomia moderna difere da dos gregos,
nês e o gênio japonês, a todas as nossas instituições e concepções
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ou tal como a biologia, a partir da teoria .celular, difere da história
24 Não podemos esquecer esta observação, que é das mais simples: é sempre a partir da mais tenra infância que entramos na vida social. Ora, a criança, que se volta para outrem como a flor se volta para o Sol, sofre m uito mais a atração do que o constrangimento de seu meio familiar; e durante toda a sua vida, ela irá beber avidamente os exemplos recebidos.
peito de concepções ou instituições pertencentes a estes ou aqueles
25 Em resumo, essa concepção é quase o inverso da concepção professada pelos evolucionistasunilinearese também por Durkheim:ao invés de explicar tudo pela pretensa imposição de uma lei de evolução que constrangeria os fenômenos de conjunto a se reproduzir, a se repetir identicamente numa certa ordem, ao invés de explicar o pequeno pelo grande, o detalhe pelo conjunto, eu explico as similitudes de conjunto pela acumulação de pequenas ações elementares, o grande pelo pequeno, o conjunto pelo pormenor. Essa maneira de ver está destinada a produzir na sociologia as mesmas transformações que a introdução da análise infinitesimal produziu na matemática.
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As Leis Sociais
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europeias era geral... Se os fatos protestassem contra essa teoria
- sobre atores históricos vagamente caracterizados que chama
ontológica, seriam torturados até que fossem constrangidos a
mos de Egito, Roma, Atenas, etc., um pulular de individualidades
confessar; seria inútil mostrar a esses teóricos a profundidade
inovadoras, cada qual sui generis, marcada pelo seu próprio selo,
das transformações sofridas pela propagação de uma religião
distinto e reconhecível entre mil.
proselitista, de uma língua, ou de uma instituição como o júri, por
Assim, posso concluir mais uma vez que, pela introdução
exemplo, bem além das fronteiras de seu povo e de sua raça de
desse ponto de vista sociológico, estaremos fazendo precisamente
origem, a despeito dos obstáculos que os gênios de outras nações
o que todas as outras ciências fizeram quando substituíram um
e de outras raças deveriam inelutavelmente lhes opor. Eles respon
pequeno número de similitudes e diferenças, falsas ou vagas, por
dem remanejando a ideia e fazendo uma distinção entre as raças
inumeráveis similitudes e diferenças precisas e verdadeiras; e isso
nobres e inventivas, as únicas investidas do privilégio de descobrir
será duplamente proveitoso para o artista e para o cientista, e
e propagar descobertas, e as raças nascidas para a servidão, que
sobretudo para o filósofo, que deve, a não ser que ele mesmo seja
não possuem nenhuma compreensão das línguas, religiões e ideias
algo distinto, sintetizar ambos.
que tomam ou parecem tomar emprestado das primeiras. Por sinal,
Mais algumas observações. Antes que se descobrisse algum
negava-se a possibilidade de que esse proselitismo conquistador de
fato astronômico elementar, como a atração descrita pela lei newto-
uma civilização sobre outras, de um gênio popular sobre outros,
niana, ou pelo menos a gravitação elíptica, houve conhecimentos
pudesse franquear certos limites, e especialmente europeizar a
astronômicos heterogêneos - uma ciência da Lua, selenologia, uma
China e o Japão. Já foi provado o contrário em relação a este último,
ciência do Sol, heliologia - mas não a astronomia. Antes que se
e em breve irá acontecer o mesmo com o Império do Meio.
descobrisse um fato químico elementar (afinidades, combinações
Mais cedo ou mais tarde, será preciso abrir os olhos para as
em proporções definidas), houve conhecimentos químicos, químicas
evidências, e reconhecer que o gênio de um povo ou de uma raça,
especiais, do ferro, do estanho, do cobre, etc., mas não a química.
ao invés de ser o fator dominante e superior dos gênios individu
Antes que se descobrisse o fato físico essencial - a comunicação
ais que seriam seus rebentos e suas manifestações passageiras,
ondulatória do movimento molecular - houve conhecimentos fí
é muito simplesmente uma etiqueta cômoda, a síntese anônima
sicos: ótica, acústica, termologia, eletrologia, mas não a física. A
dessas inumeráveis originalidades pessoais, que são as únicas
física tornou-se físico-química, a ciência da natureza inorgânica
verdadeiras, eficazes e ativas a cada instante, e que estão em fer
inteira, quando entreviu a possibilidade de explicar tudo pelas leis
mentação contínua no seio de cada sociedade graças a empréstimos
fundamentais da mecânica, ou seja, quando acreditou descobrir,
incessantes e a uma fecunda troca de exemplos com as sociedades
como fato inorgânico elementar, a reação igual e contrária à ação,
vizinhas. 0 gênio coletivo, impessoal, é portanto função e não fator
a conservação da energia, a redução de todas as forças em formas
dos gênios individuais, infinitamente numerosos; ele é sua fotografia
de movimento, o equivalente mecânico do calor, da eletricidade,
compósita, e não deve ser sua máscara. E certamente não teremos
da luz, etc. Enfim, antes da descoberta das analogias existentes,
nada a lamentar, em relação ao pitoresco social capaz de suscitar
do ponto de vista da reprodução, entre os animais e as plantas,
o interesse do historiador artista, quando chegarmos a perceber
nem mesmo havia uma botânica e uma zoologia, mas botânicas e
através dessa fantasmagoria - esclarecida, mais do que dissipada
zoologias, ou seja, uma hipologia, uma cinologia, etc. Mas a des-
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A i Leis Sociais
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coberta de similitudes só conferia uma unidade muito parcial a
de Arquimedes, nós tivemos os devaneios alegóricos de Pitágoras
todas essas ciências esparsas, a esse.s membra disjecta da futura
e Platão. A astrologia e a magia, vestíbulo da astronomia, balbucio
biologia. A biologia somente nasceu de fato quando a teoria celular
da química, estão fundadas sobre o postulado da alegoria universal
veio mostrar o fato vital elementar, o funcionamento da célula (ou
mais do que sobre o da analogia universal; elas admitem uma har
do elemento histológico) e sua proliferação, perpetuada pelo óvulo,
monia preestabelecida entre as posições de certos planetas e os
ele mesmo célula, de modo que a nutrição e a geração passaram a
destinos de certos homens, entre tal ação simulada e tal ação real,
ser encaradas sob um mesmo ângulo.
entre a natureza de uma substância química e a do corpo celeste
Muito bem, trata-se agora de fazer, similarmente, a ciência
que leva seu nome, etc. Não nos esqueçamos do caráter simbólico
social a partir das ciências sociais. Já houve, com efeito, ciências
dos procedimentos jurídicos primitivos, das ações da lei no direito
sociais, ao menos esboçadas, prelúdios de ciência política, de
romano, antigos tateios da jurisprudência. Notemos também - pois
linguística, de mitologia comparada, de estética, de moral, uma
a teologia foi uma ciência dos nossos ancestrais, tal como a juris
economia política já bem avançada, muito antes que houvesse
prudência - o abuso dos sentidos figurados atribuídos aos relatos
o embrião de uma sociologia. A sociologia supõe um fato social
bíblicos por parte dos mais antigos teólogos, que viam na história
elementar. E ela o supõe com tal força que, enquanto não havia
de Jacó a cópia antecipada da história de Cristo, ou daqueles que
chegado a descobri-lo - talvez porque ele estivesse na sua cára,
simbolizavam os amores entre esposo e esposa no Cântico dos
se me perdoam essa expressão - ela sonhava com ele, ela o imagi
Cânticos como sendo os amores entre Cristo p sua Igreja. Assim co
nava sob a forma de uma dessas similitudes vãs e imaginárias que
meça a ciência teológica na Idade Média, assim começa a literatura
atravancam o berço de todas as ciências, e acreditava dizer algo
moderna no Roman de la Rose. Há uma grande distância entre essas
de profundamente instrutivo ao conceber uma sociedade como
ideias e as ideias da Suma de São Tomás de Aquino. Encontramos
um grande organismo, o indivíduo (ou, segundo outros, a família)
um vestígio desse misticismo simbólico ainda em nosso século, nas
como a célula social, e toda forma de atividade social como uma
obras agora esquecidas - porém dignas de serem exumadas em
função de tipo celular. Eu já fiz os maiores esforços, juntamente
razão de suas graças fenelonistas de estilo - de Père Gratry, que
com a maior parte dos sociólogos, para desembaraçar a ciência
acreditava ver no sistema solar o símbolo das relações sucessivas
nascente dessa estorvante concepção. Ainda cabe uma palavra a
entre a alma e Deus, em torno do qual, segundo ele, gira a alma.
esse respeito. O conhecimento científico sente com tal força a necessidade
Ainda segundo ele, o círculo e a elipse simbolizam toda a moral,
de apoiar-se em similitudes e repetições que, antes de possuí
E claro que eu não posso comparar essas excentricidades
das, criou outras, imaginárias, e ficou à espera das verdadeiras;
aos desenvolvimentos parcialmente sólidos, e sempre sérios,
que está inscrita hieroglificamente nas seções cônicas.
desse ponto de vista, é preciso classificar a famosa metáfora do
que Comte, e depois Herbert Spencer, e ainda mais recentemente
organismo social entre tantas outras concepções simbólicas que
René Worms e Novicow, deram à tese da sociedade-organismo. Eu
tiveram a mesma utilidade passageira. A alegoria desempenhou
aprecio o mérito e a utilidade momentânea dessas obras, ainda
um papel imenso nas origens de todas as ciências, bem como de
que as critique. No entanto, agora generalizando o que já foi dito,
toda a literatura. Na matemática, antes das sólidas generalizações
creio.ter o direito de enunciar a seguinte proposição: o progresso
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As Leis Sociais
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de uma ciência consiste em substituir as similitudes e repetições
plo, uma vez lançado num certo grupo social, a se propagar nele
exteriores, isto é, as comparações do objeto próprio dessa ciência
segundo uma progressão geométrica se esse grupo permanecer
a outros objetos, por similitudes e repetições interiores, isto é,
homogêneo. Não vejo nada de misterioso, aliás, nessa tendência.
comparações desse objeto consigo mesmo, considerado em seus
Ela significa algo de muito simples: quando, por exemplo, se faz
exemplares múltiplos e sob outros aspectos. A ideia do organismo
sentir num grupo a necessidade de exprimir uma nova ideia por
social, que encara a nação como uma planta ou um animal, corres
meio de uma nova palavra, o primeiro a imaginar uma expressão
ponde à ideia do mecanicismo vital, que encara uma planta ou um
capaz de satisfazer essa necessidade só terá de pronunciá-la para
animal como uma entidade mecânica. Mas não foi por meio dessa
que, de boca em boca, ela seja repercutida por todos os falantes do
comparação, aprofundada e prolongada, entre um corpo vivo e um
grupo em questão, e para que se espalhe, mais tarde, nos grupos
mecanismo, que a biologia progrediu, e sim pela comparação das
vizinhos. Isso não quer dizer em absoluto que essa expressão seja
plantas entre elas, dos animais entre eles, dos corpos viventes entre
dotada de uma alma que a leva a irradiar-se desse modo, tal como
si.26E não é pela comparação entre as sociedades e os organismos
o físico, ao dizer que a onda sonora tende a espalhar-se pelo ar, não
que a sociologia deu e ainda dará grandes passos, é pela compara
atribui a essa forma simples uma força própria, ávida e ambiciosa.27
ção das sociedades entre elas, é pelas inumeráveis coincidências
Não, é apenas um modo de falar, que serve para dizer, num caso,
entre evoluções nacionais distintas, do ponto de vista da língua,
que as forças motoras inerentes às moléculas do ar encontraram
do direito, da religião, da indústria, das artes, dos costumes: e é
nessa repetição ondulatória um caminho de escoamento; e para
sobretudo pela atenção concedida a essas imitações de homem a
dizer, no outro caso, que a necessidade particular inerente aos
homem, que fornecem a explicação analítica dos fatos de conjunto.
indivíduos humanos do grupo em questão foi satisfeita com essa
Depois desses longos preliminares, chegou o momento de
repetição imitativa, que poupa sua preguiça (análoga à inércia
expor as leis gerais que regem a repetição imitativa, que estão
material) do esforço que a invenção exige. Seja como for, não há
para a sociologia como as leis do hábito e da hereditariedade estão
razão para duvidar dessa tendência à progressão geométrica; na
para a biologia, ou as leis da gravitação para a astronomia, e as
prática, porém, ela é entravada por obstáculos de vários tipos, e é
leis da ondulação para a física. Mas eu já tratei abundantemente
raro, embora não seja extremamente raro, que os diagramas esta
desse tema numa de minhas obras, As Leis da Imitação, à qual
tísticos relativos à difusão pública de uma nova invenção industrial
tomarei a liberdade de remeter aqueles que têm interesse nesse
mostrem essa progressão regular. Que obstáculos são esses? Há
assunto. Todavia, convém trazer à luz algo que ainda não está
aqueles que provêm da diversidade de climas e raças, mas eles
suficientemente claro, a saber, que todas essas leis decorrem, no
não são os mais fortes; o entrave maior que detém a expansão de
fundo, de um princípio superior: a tendência que possui um exem-
uma inovação social (e sua consolidação em costume tradicional) é
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alguma outra inovação igualmente expansiva que ela encontra em 26 Do mesmo modo, não foram as comparações pita^óricas entre a m atemática e as demais ciências que fizeram a matemática avançar; elas foram estéreis, ao passo que a aproximação entre a geometria e a álgebra, conduzida por Descartes, foi fecunda; mas foi somente a partir da invenção do cálculo infinitesimal, quando se desceu até o elemento matemático indecomponível cujas repetições indefinidas tudo explicam, que a fecundidade matemática apareceu em sua plenitude.
27 Tampouco o naturalista, ao dizer que uma espécie tende a se propagar segundo uma progressão geométrica, encara essa forma simples como possuindo por ela mesma, independentemente do Sol, das afinidades químicas, de todas as energias físicas que ela meramente canaliza, uma energia e uma aspiração independentes.
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seu caminho, e que, para empregar uma metáfora física, interfere nela. Com efeito, toda vez que alguém hesita entre duas maneiras de falar, entre duas ideias, entre duascrenças, entre duas maneiras de agir, está ocorrendo nele uma interferência de irradiações imitativas, de irradiações imitativas que, a partir de focos diferentes, muitas vezes distantes um do outro no espaço e no tempo (isto é, focos de inventores e imitadores individuais primitivos), se pro pagaram até ele. Como resolver essa dificuldade? Quais serão as influências decisivas? Essas influências, como já disse, são de dois tipos: lógicas e extralógicas. É preciso acrescentar que mesmo es sas últimas são lógicas em certo sentido da palavra; por exemplo, quando diante de dois exemplos, o plebeu escolhe cegamente o exemplo do patrício, o camponês escolhe o do citadino, o provin ciano escolhe o do parisiense. No que eu chamei de cascata de imitação, que corre de cima para baixo na escala social, por mais cega que seja a imitação, ela sempre advém de uma presunção de superioridade daquele que dá o exemplo; o modelo parece possuir, sobre o imitador, uma autoridade social. Ocorre o mesmo quando, entre o exemplo de seus ancestrais e o de um inovador estrangeiro, o homem primitivo prefere sem hesitação o primeiro, que ele julga infalível; ocorre o mesmo quando, diante do mesmo dilema, o indi víduo das modernas cidades faz a escolha contrária, convencido a priori de que o novo é sempre preferível ao antigo. Não obstante, uma opinião como essa, fundada sobre considerações extrínsecas à própria natureza dos dois modelos comparados, das duas ideias ou volições, merece ser cuidadosamente distinguida dos casos em que a opção é baseada num juízo sobre o caráter intrínseco das duas ideias ou das duas volições; e é para esse tipo de influências decisórias que se pode reservar o epíteto de lógicas. Por ora, nada mais direi, pois no próximo capítulo falaremos novamente desses duelos lógicos e teleológicos, elementos da oposição social. Acrescento apenas que as interferências das irra diações imitativas nem sempre são entraves mútuos; muitas vezes
elas são alianças mútuas e servem para acelerar, para amplificar essas irradiações; e por vezes elas ocasionam uma ideia genial que nasce de seu encontro e de sua combinação em um cérebro, como veremos no capítulo consagrado à adaptação social.
Segundo capítulo Oposição dos fenômenos m termos teóricos, o aspecto-repetição dos fenômenos é
E
o mais importante. Mas seu aspecto-oposição, em termos práticos, do ponto de vista das aplicações da ciência,
apresenta um interesse maior. E de Aristóteles até nossos dias, ele jamais cessou de ser, senão totalmente ignorado, ao menos confundido na mixórdia das diferenças sem critério. Aqui, como acima, direi que o progresso das ciências con sistiu na substituição de um pequeno número de oposições vãs, grosseiras e superficiais, percebidas ou imaginadas inicialmente, por oposições sutis e profundas, inumeráveis, penosamente des cobertas, e na substituição de oposições exteriores por oposições interiores ao assunto considerado. Esse progresso consistiu tam bém, devo acrescentar, na eliminação de dissimetrias ou de assi metrias aparentes e em sua substituição por muitas dissimetrias e assimetrias ocultas e bem mais instrutivas. Busquemos as oposições no céu estrelado. 0 dia e a noite, e inicialmente o Céu e a Terra, foram as primeiras antíteses; delas viveram as cosmogonias religiosas e os embriões da astronomia e da geologia nascentes, ou que aspiravam ao nascimento. Depois surgiram oposições mais verdadeiras, porém ainda mal compreen didas ou simplesmente subjetivas e superficiais: o zénite e o nadir (que não passa da antítese do alto e do baixo levada ao extremo), os quatro pontos cardeais (opostos dois a dois), o inverno e o verão, a primavera e o outono, a manhã e a tarde, meio-dia e meia-noite, o quarto crescente e o quarto minguante da Lua, etc. É verdade que todas essas oposições foram conservadas pela ciência, mas perdendo muito de sua importância e de sua significação primitivas. Para nós, o oeste é apenas uma orientação relativa à nossa posição
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em face da estrela que chamamos de Polar; para um selvagem, o
A física e a química, tal como a astronomia, começaram com
oeste é o lugar da felicidade póstuma, do descanso eterno das al
falsos contrários. Os quatro elementos concebidos pelos primeiros
mas (que para outros é o leste). Daí decorre a orientação ritual dos
físicos se opunham dois a dois: a água e o fogo, o ar e a terra. Imagi
templos e das tumbas. O quarto crescente e o quarto minguante
navam-se antipatias inatas entre determinadas substâncias. Vieram
da Lua certamente não têm, para nós, o sentido imaginário e tão
à luz ideias mais sãs sobre a verdadeira natureza das oposições
importante que a superstição dos agricultores primitivos (e a de
físicas e químicas quando se descobriu o caráter de algum modo
nossos camponeses) lhes atribui. De acordo com estes, a lua nova
oposto dos ácidos e bases, e sobretudo das eletricidades de nome
possui a virtude de fazer crescer rapidamente, e a lua cheia, a de
contrário, assim como a polaridade luminosa. A ideia de polaridade,
impedir que cresça qualquer coisa que se plante numa ou noutra
que desempenhou um papel tão grande nas teorias físico-químicas,
dessas duas fases lunares.28 É um vestígio da distinção antitética entre dias fastos e nefastos.
marcou um enorme progresso sobre as concepções anteriores; e
Assim, essas oposições foram conservadas, mas com um
a abrange ou está em vias de abranger. Assim como a luz, o calor
caráter superficial e convencional. Outras foram suprimidas: por
e a eletricidade aparecem como propagações esféricas ou lineares
exemplo, as oposições entre celeste e terrestre, Sol e Lua; e a im
de vibrações infinitesimais e infinitamente rápidas, a combinação
portância destas e daquelas transferiu-se para outras, bem mais
química tende a ser considerada como um entrelaçamento de ondas
profundas. Em primeiro lugar, a descoberta da natureza elíptica,
harmoniosamente unidas: mas aqui nós já^tocamos nos domínios
agora ela mesma está sendo explicada pela noção de ondulação, que
parabólica ou hiperbólica das curvas descritas pelos astros, plane
da adaptação. Até mesmo a atração foi muitas vezes explicada por
tas e cometas permitiu compreender a perfeita simetria das duas
pressões de vibrações etéreas. Seja como for, é evidente que as
metades de cada uma dessas curvas com relação aos dois lados do eixo central. (Eu chamei a simetria de perfeita, mas existem per
gravitações elípticas dos astros, apesar da diferença de dimensão,
turbações, que são repetições mútuas dessas curvas, umas pelas
gundo elipses muito alongadas, e que nos dois casos existe ritmo
outras, no interior de um mesmo sistéma.) Além disso, percebeu-
ondulatório. Em suma, podemos ver como o progresso das ciências
-se que as elipses planetárias iam crescendo e decrescendo de
estendeu e aprofundou o campo da oposição, substituindo vagas
maneira alternada, com uma grande regularidade, em função das
oposições qualitativas por oposições quantitativas precisas e ritma
oscilações em torno de uma posição de equilíbrio. Enfim, a antítese
das, tecido da teia do mundo. A maravilhosa simetria das formas
astronomicamente profunda, universal, contínua - fundamento de
cristalinas próprias a cada substância química é a tradução gráfica,
todas as outras - está na igualdade entre a atração que a massa ou
a expressão visual dessas oposições rítmicas entre os inumeráveis
molécula sofre e aquela que ela exerce. Cada massa atrai e é atraída,
movimentos que a constituem. E não seria precisamente a essa
e essa é uma das mais belas ilustrações da lei mecânica de oposi
ritmicidade dos movimentos interiores dos corpos que se deveria
ção universal, chamada de lei de reação igual e contrária à ação.
pedir a explicação última da lei de Mendeleev, que nos mostra os
são comparáveis às ondas físicas, esse vai-e-vem de moléculas se
grupos de substâncias formando escalas superpostas e periodica 28 No original: "La nouvelle lune, suivant ceux-ci, a la vertu de faire pousser rapidement, et la vieille lune d'empêcher de croître to u t ce qu'on plante à l'une ou à l'autre de ces deux phases lunaires". (N. do T.)
mente repetidas, teclado ao qual faltam, aqui e ali, algumas teclas que descobriremos com o passar do tempo?
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Mas ao mesmo tempo que a evolução das ciências físicas
tão assombrosa e tão estranha por sua universalidade. Mas também
permitia a descoberta de oposições e simetrias mais profundas,
foram imaginadas várias oposições vitais sem nenhuma realidade
mais claras, mais explicativas, ela também revelava assimetrias,
ou valor; pode-se incluir entre estas a oposição entre os anjos e
arritmias, inoposições ainda mais importantes. Ela mostrou, por
os demônios, já que ambos foram concebidos como espécies de
exemplo, que não existe no sistema solar nenhum corpo planetário
animais superiores. Do mesmo modo, para o selvagem, e às vezes
que retrograde, que caminhe num sentido inverso ao sentido geral;
para o iletrado de hoje, a grande oposição entre os vivos está entre
apenas alguns satélites constituem exceção. A configuração das
os seres bons e ruins para comer, entre as plantas alimentícias e
nebulosas que nossos telescópios descobrem é frequentemente
as venenosas, entre os animais úteis e os nocivos. Essa oposição
dissimétrica. Se adotarmos as ideias de Stanislas Meunier, não tere
é subjetivamente verdadeira, mas torna-se imaginária a partir do
mos a menor razão para pensar que existe simetria entre a evolução
momento em que é objetivada, como fazem instintivamente os
e a dissolução de um sistema solar (se é que existe dissolução),
ignorantes de todas as raças. Durante muito tempo, os médicos
nem entre a formação das sucessivas camadas geológicas de um
conceberam a saúde e a doença como dois estados precisamente
planeta e sua desagregação final. A disseminação dos astros no
contrários, e as causas da doença como sendo precisamente in
céu continua sendo o que era antes do progresso da astronomia: o
versas às causas da saúde. No fundo, o erro homeopático nasceu
que existe de mais caprichoso e pitoresco. Ao contrário, a sublime
dessa ilusão. A doença e a saúde, assim concebidas, são entidades
desordem desse espetáculo é tanto mais pungente e profunda na
verbais que o progresso da fisiologia dissipou. Longe de se opor
medida em que progride o conhecimento das forças equilibradas,
a ele, o desvio patológico é parte do funcionamento fisiológico.
simetricamente opostas, que parecem constituir tudo isso. Que
Também a dissolução individual foi encarada como o inverso da
astrônomo do presente sonharia, como fizeram os antigos, com
evolução, e a velhice, como o retorno da infância. Esse ponto de
uma Anti-Terra, uma Antichton, onde tudo seria o inverso terrestre?
vista só pôde ser totalmente eliminado depois que a embriologia
À medida que conhecemos melhor a geografia de nosso planeta,
nos permitiu conhecer a travessia de uma série de formas ances
ficamos cada vez mais assombrados pela total ausência de simetria
trais que, evidentemente, nada têm de inversamente análogo às
na configuração dos continentes e das cadeias de montanhas, e a rede pentagonal de Élie de Beaumont já não seduz ninguém. Os
fases do declínio senil. Muito tempo depois que as ciências da vida começaram a
progressos da cristalografia permitiram a observação de dissime-
se constituir, os fisiologistas imaginaram uma oposição, factícia e
trias antes desconhecidas, cuja importância foi posta em relevo
científica ao mesmo tempo, entre a animalidade e a vegetação: para
pelos trabalhos de Pasteur; mas tudo o que posso fazer é indicar esse tema.
eles, a respiração animal é precisamente o inverso da respiração vegetal e destrói o que esta produz (a combinação de oxigênio e
As oposições grosseiras ou aparentes no mundo vivo - a vida
carbono). A fisiologia comparada, por meio dos trabalhos de Claude
e a morte, a juventude e a velhice - foram as primeiras a serem nota
Bernard e outros, demonstrou o caráter superficial dessa inversão e
das, e também estão entre as mais antigas similitudes constatadas
a unidade fundamental da vida nos dois reinos, que não são opostos
entre as plantas e os animais, rudimento de uma biologia geral. Tampouco foi possível deixar de notar a simetria das formas vivas,
29 Ver a esse respeito a tese de GeorgesCanguilhem:ONorma/eoPafofóg/co, Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária. (N. doT.)
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As Leis Sociais
Gabriei Tarde
e sim divergentes. Em compensação, o progresso do saber substi
ginárias e gigantescas entre deuses bons e deuses maus, deuses
tuiu essas oposições falsas ou vagas, que opunham entre si grupos
da luz e deuses da noite, heróis e monstros. Os metafísicos, assim
de seres, seres ou entidades de um mesmo ser, por inumeráveis e
como as mitologias, abusaram dos combates; também eles imagi
infinitesimais oposições - inteiramente reais - na intimidade dos
naram oposições seriais, diretas e retrógradas, desenvolvimentos
tecidos, como a oposição entre a oxidação e a desoxidação de cada
da humanidade em um sentido seguidos por desenvolvimentos
célula, ou entre a acumulação e o gasto de energia. Também aqui,
em sentido inverso. Aqui, Platão e os filósofos hindus deram-se
a oposição mostrou-se muito mais fundamental e fecunda sob a forma do ritmo do que sob a forma da luta.
as mãos. Hegel, com suas ambiciosas generalizações, com sua
Ao mesmo tempo, porém, vieram à luz dissimetrias novas
e Cousin, com sua antítese imaginária entre o Oriente-infinito e a
e mais dissimuladas: para citar apenas um exemplo, o estudo das
Grécia-finita, também são excelentes espécimes das antinomias
funções cerebrais, que permitiu localizar a faculdade da linguagem
sociológicas do passado. Tudo isso foi dissipado e ninguém mais
no hemisfério esquerdo, estabeleceu uma dissimetria funcional
se dá ao trabalho de opor - sobretudo depois da surpreendente
extremamente importante entre as duas metades do cérebro. Não
europeização do Japão em alguns anos - a pretensa imutabilidade
é o único caso em que a simetria da forma entre órgãos correspon
inata dos asiáticos à pretensa progressividade inata dos europeus.
classificação dos povos sob o estandarte de ideias antagonistas,
dentes nas duas metades do corpo —mão direita e esquerda, olho
Os economistas já prestaram um valoroso serviço à ciência
direito e esquerdo, etc. —mascara a dissimetria ou a assimetria
social substituindo a guerra, como fator-chave da história, pela
profunda de sua função. Além disso, como já notei anteriormente,
concorrência, espécie de guerra não apertas adocicada e atenu
a muito antiga e especiosa ideia teórica segundo a qual a dissolu
ada, mas ao mesmo tempo reduzida e multiplicada. Por fim, se
ção dos seres vivos, dos tipos viventes, havia de ser exatamente
nosso ponto de vista for adotado, será preciso considerar que,
o oposto de sua evolução, teve de desaparecer diante dos pro
no âmago daquilo que os economistas chamam de concorrência
gressos da observação. E seja nos indivíduos, seja nas espécies,
dos consumidores ou dos coprodutores, existe uma concorrência
essa ausência de simetria entre os dois lados da vida, ascensão e
de desejos e de crenças; e se essa luta que constatamos entre
descenso, tem um sentido profundo: ela tende a provar que a vida
as formas industriais for generalizada e estendida a todas as
não é um simples jogo, apenas uma gangorra de forças por assim
formas linguísticas, religiosas, políticas, artísticas e morais da
dizer, mas uma marcha à frente, e que a ideia de progresso não é
vida social, veremos que a verdadeira oposição social elementar
um discurso vão. Ela tende a nos fazer considerar a oposição dos
deve ser buscada no próprio seio de cada indivíduo social sem
fenômenos, suas simetrias, suas lutas e também seus ritmos, tal
pre que ele hesita entre adotar ou rejeitar um novo modelo que
como suas repetições, como simples instrumentos do progresso, como termos médios.
lhe é proposto: uma nova locução, um novo rito, uma nova ideia,
A sociologia dá lugar a considerações análogas. Na origem
pequena batalha interna, que se reproduz milhões de vezes a
(pois, sob certos aspectos, ela é bastante antiga), a sociologia
cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e
começou como mitologia; e foi mitologicamente que ela se pôs a
infinitamente fecunda da história. Ela introduz em sociologia uma
explicar toda a história por meio de lutas fantásticas, guerras ima
tranquila e profunda revolução.
uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa
56
As Leis Sociais
Mas ao mesmo tempo, e ainda a partir desse ponto de vista,
Gabriel Tarde
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convexo, o prazer e a dor, o frio e o quente) é a contrariedade real
revela-se o caráter simplesmente auxiliar e subordinado da oposição
ou suposta das forças pelas quais esses estados foram produzidos.
social, mesmo sob sua forma psicológica; e isso decorre da colo
Vemos que é preciso eliminar de saída, como pseudo-oposições que
cação em evidência de muitas assimetrias ou dissimetrias que não
são, todas as antíteses das mitologias ou das filosofias da história
aparecem de imediato. Tive de traçar uma distinção (que quase não
fundadas sobre pretensas contrariedades de natureza, entre dois
encontrou opositores) entre o reversível e o irreversível em todas as
povos, duas raças, duas formas de governo: por exemplo, entre a
categorias de fatos sociais, e ficou estabelecido que o irreversível era
república e a monarquia (ver, a esse respeito, certos hegelianos),
sempre o mais importante: por exemplo, a série de descobertas da
entre o ocidente e o oriente, entre duas religiões (cristianismo e
ciência ou da indústria. Vemos aqui acentuar-se, em virtude dessas
islamismo), entre duas famílias de línguas inatas (línguas semíticas
oposições psicológicas inumeráveis que compõem a vida de todo
e línguas indo-europeias). Esses contrastes são acidentalmente e
indivíduo social, sua originalidade individual, seu gênio próprio que
parcialmente verdadeiros se encararmos as maneiras pelas quais
a nada se opõe; e tudo aquilo que chamamos de gênio de um povo,
essas coisas, em circunstâncias mais ou menos passageiras, afir
ou se preferirmos, o gênio de uma língua, o gênio de uma religião,
mam e negam a mesma ideia, desejam e repelem o mesmo alvo;
é sua expressão coletiva e abreviativa. Também vemos efetuar-se,
mas esses mesmos contrastes são quiméricos se julgarmos, tal
pelo próprio jogo dessas pequenas oposições infinitesimais que
como pareciam acreditar muitos filósofos antigos, que a antipatia
acabei de mencionar, o lado estético da vida social, pelo qual ela
recíproca entre essas coisas é essencial, absoluta, inata.
não é comparável ou oponível a coisa alguma.
Toda oposição verdadeira implica, portanto, uma relação
Mas tudo isso não passa de um esboço bastante incompleto;
entre duas forças, duas tendências, duas direções. Mas os fenôme
é preciso adentrar mais intimamente esse tema, tão pouco explo
nos pelos quais essas forças se realizam podem ser de dois tipos:
rado e tão relevante. Ponhamo-nos de acordo, em primeiro lugar,
qualitativos e quantitativos, ou seja, eles podem ser formados
a respeito dos diversos sentidos dessa palavra: oposição. Vou
por fases heterogêneas ou por fases homogêneas. Uma série de
permitir-me retomar aqui a definição e a classificação que propus no
fases heterogêneas é uma evolução qualquer, que sempre pode
meu livro sobre a oposição universal. Façamos um resumo de nosso
ser concebida (erradamente ou não) como reversível, como sus
ponto de vista atual. A oposição é vulgarmente —e erradamente —
cetível de retrogradar seguindo o caminho exatamente inverso.
concebida como um máximo de diferença. Ela é, na realidade, uma
Por exemplo, um químico extrai aguardente de uma planta por
espécie muito singular de repetição, a de duas coisas semelhantes
meio de uma série de operações químicas, o que não quer dizer
que tendem a destruir-se entre si precisamente em virtude de sua
que será possível reconstituir a planta; mas se não é possível, é
semelhança. Os opostos, os contrários, formam sempre um par,
ao menos imaginável. Esse é o sonho dos antigos filósofos no que
uma dualidade, e não são oponíveis enquanto seres ou grupos de
concerne às transformações da humanidade. Uma série de fases
seres, sempre dessemelhantes e de algum modo sui generis, e nem
homogêneas constitui essa evolução de tipo especial que se chama
mesmo como estados de um mesmo ser ou de seres diferentes,
aumento ou diminuição, crescimento ou declínio, alta ou baixa.
mas como tendências, como forças; pois a razão de percebermos
Não é necessário entrar em detalhes para notar que cada vez mais
determinadas formas ou estados como opostos (o côncavo e o
oposições dessa ordem, precisas e mensuráveis, vão se revelando
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As Leis Sociais
Gabriel Tarde
à medida que a ciência social se desenvolve com a civilização: as
signos opostos, um positivo, outro negativo, e que elas são real
cotações da Bolsa, os diagramas estatísticos onde a alta e a baixa
mente comparáveis às quantidades objetivas, às forças mecânicas
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deste ou daquele valor - a alta e a baixa deste ou daquele gênero
dirigidas em sentidos opostos ao longo de uma mesma linha reta.
de criminalidade, do suicídio, da natalidade, dos matrimônios,
0 espaço é constituído de modo a comportar uma infinidade de
da previdência medida pelas flutuações dos livros contábeis dos
pares de direções opostas entre si, e nossa consciência é consti
bancos ou das seguradoras, etc. - são registrados sob a forma de
tuída de modo a comportar uma infinidade de afirmações opostas
curvas ondulatórias.
a negações, uma infinidade de desejos opostos a repulsões (tendo
Eu acabo de distinguir as oposições de série (evolução e
precisamente o mesmo objeto). Sem essa dupla singularidade,
contra-evolução) das oposições de grau (aumento e diminuição).
cuja coincidência é singular, o Universo não conheceria a guerra
Mais importante ainda é a categoria das oposições de signo ou, se
e a discórdia, e todo o lado trágico da vida seria tão inconcebível
preferirmos, oposições diametrais. Embora elas sejam confundidas com as anteriores na linguagem matemática, na qual o mais e o
quanto impossível. Observação essencial: sejam quais forem as oposições (de
menos simbolizam tanto o contraste entre o positivo e o negativo
séries, degraus ou de signos), elas podem ocorrer seja entre termos
quanto o contraste entre o aumento e a diminuição, é preciso notar
realizados num mesmo ser (uma mesma molécula, um mesmo
que o crescimento e a diminuição alternados de uma mesma força
organismo, um mesmo eu), seja entre dois seres diferentes (duas
dirigida no mesmo sentido constituem uma oposição muito diferen
moléculas ou duas massas, dois organismos, duas consciências
te daquela em que, dadas duas forças situadas numa mesma linha
humanas). Mas é importante distinguir cuidadosamente esses dois
reta, uma se dirige de A para B e a outra de B para A. Do mesmo
casos; e é importante, em primeiro lugar, do ponto de vista de outra
modo, a oposição entre o crescimento e a diminuição do crédito
distinção não menos essencial, que consiste em não confundir os
não deve ser confundida com a oposição entre esse crédito e uma
casos em que os termos são simultâneos e aqueles em que eles
dívida de igual valor; e a maior ou menor inclinação ao roubo e
são sucessivos. No primeiro caso, existe choque, luta, equilíbrio;
ao crime, numa sociedade, é bem diferente da antítese entre essa
no segundo, existe alternância, ritmo. No primeiro caso, há sempre
inclinação e a inclinação à generosidade e à filantropia. Para dar
destruição e perda de força; no segundo, não. Ora, quando eles se
de imediato uma explicação psicológica desses e de tantos outros
produzem no interior de dois seres diferentes, as oposições, sejam
contrastes sociais, notemos que o aumento e a posterior diminuição
elas de séries, de graus ou de signos, podem ser simultâneas ou
de nossa crença afirmativa em uma ideia (religiosa ou científica,
sucessivas, lutas ou ritmos; mas quando seus termos pertencem
jurídica ou política) são coisas completamente diferentes da afir
a um mesmo ser, a um mesmo corpo ou a um mesmo eu, elas não
mação e posterior negação dessa mesma ideia; e que o aumento e a
podem ser ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas a não ser
posterior diminuição do nosso desejo por um objeto, por exemplo,
que sejam oposição de signos. Quanto às oposições de séries e
nosso amor por uma mulher, é completamente diferente do desejo
de graus, nessa hipótese, elas só comportam termos sucessivos,
por um objeto e sua posterior repulsa (nosso amor e depois nosso
alternativos. Por exemplo, não é possível que a velocidade de um
ódio por uma mesma mulher). É verdadeiramente curioso constatar
móvel numa mesma direção aumente e diminua ao mesmo tem
que essas quantidades subjetivas, crença e desejo, comportam dois
po; isso só é possível sucessivamente; mas pode ser que ele seja
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As Leis Sociais
Gabriel Tarde
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animado por duas tendências distintas, que se dirigem em sentidos
porque existem ou podem existir oposições internas (entre tendên
contrários: é o caso do equilíbrio, muitas vezes simbolizado pela
cias diferentes de um mesmo ser, de um mesmo homem). Isso se
simetria de formas opostas, notadamente nos cristais. Do mesmo
aplica às oposições de séries e de graus tal como às oposições de
modo, não é possível que o amor de um homem por uma mulher
signos, mas sobretudo a estas. Se existem homens ou grupos de
esteja ao mesmo tempo em vias de aumentar e de diminuir, o que
homens que evoluem num sentido, enquanto outros homens ou
só é possível alternativamente; mas pode ser que ele, ao mesmo
grupos de homens evoluem no sentido inverso, por exemplo, do
tempo, ame e odeie essa mulher, antinomia do coração realizada
naturalismo ao idealismo em matéria de arte, ou do idealismo ao
em tantos crimes passionais. Não é possível que a fé religiosa de
naturalismo - ou do regime aristocrático ao regime democrático
um homem cresça e diminua ao mesmo tempo, isso só é possível
ou da democracia à aristocracia, etc. - é porque cada homem pode
sucessivamente; mas pode ser que ele carregue ao mesmo tempo
evoluir e contraevoluir dessa maneira. Se existem povos e classes
em seu pensamento, muitas vezes sem perceber, a afirmação enér
em que a fé religiosa aumenta, ao passo que em outros povos e
gica e a não menos enérgica negação implícita de certos dogmas, a
em outras classes ela diminui, é porque a consciência de cada
afirmação simultânea de certa crença cristã e de certo preconceito
homem comporta aumentos e diminuições de intensidade de uma
mundano ou político que nega essa crença. Por fim, é evidentemente
crença. Enfim, se existem partidos políticos ou seitas religiosas que
impossível que a mesma molécula passe ao mesmo tempo por uma
afirmam e desejam precisamente o que outros partidos e seitas
série de transformações químicas e pelas transformações inversas,
negam e rejeitam, é porque o espírito e o coração de cada homem
ou que o mesmo homem perceba a um só tempo, em dois sentidos
são suscetíveis de conter o sim e o não, o “a favor e o contra , a
opostos, a mesma série de estados psicológicos, o que só seria
propósito de uma mesma ideia ou de um mesmo desígnio.
possível sucessivamente. Ao contrário, nada é mais habitual do
Ao dizer isso, estou longe de querer identificar as lutas
que ver simultaneamente, num sistema de corpos, astronômicos
exteriores com as lutas internas. Em certo sentido, elas são in
ou outros, um corpo que vai do afélio ao periélio enquanto outro
compatíveis; com efeito, somente quando a luta interna chegou
vai do periélio ao afélio, ou um corpo que acelera enquanto outro
ao fim - quando o indivíduo, depois de ter sido lacerado por
desacelera; e nada é mais ordinário do que ver, numa sociedade,
influências contraditórias, fez sua escolha e adotou determinada
uma pessoa cuja ambição ou fé aumenta enquanto essa mesma
opinião ou resolução de preferência a outras, estabelecendo a
ambição e essa mesma fé diminuem em outra; ou então uma pessoa
paz em si mesmo - é que a guerra entre ele e os indivíduos que
que, fazendo uma viagem circular, atravessa uma série de sensa
fizeram uma escolha oposta se torna possível. Isso não basta,
ções visuais, enquanto outra pessoa, fazendo o itinerário inverso,
entretanto, para fazer a guerra eclodir. Para tal é preciso, além
percorre na ordem contrária essa mesma gama de sensações.
disso, que esse indivíduo saiba que os outros indivíduos fizeram
A discussão de cada uma das espécies de oposições apre
uma escolha contrária à dele. Sem isso, seria como se não existisse
sentadas aqui nos levaria demasiadamente longe. Limitemo-nos
a oposição exterior dos contrários, simultâneos ou sucessivos,
a algumas considerações gerais. Em primeiro lugar, se existem
pois ela não apresentaria em absoluto as características de uma
oposições exteriores (chamemos assim as oposições de tendência
luta exterior que a tornaria realmente eficaz. Para que haja uma
entre muitos seres, entre muitos homens); elas só são possíveis
guerra ou luta religiosa, é preciso que cada fiel de um culto saiba
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AsLeisSociais
Gabriel Tarde
que os fiéis de outro culto negam exatamente o que ele afirma, e é
que todas as dúvidas e hesitações de que sofre o mais isolado
preciso que essa negação (que não é adotada imitativamente, mas
dos homens, nascido na mais selvagem das tribos, devem-se a
ao contrário, repelida por ele) se justaponha na sua consciência à
um encontro nele ocorrido, seja entre dois raios de exemplos que
sua própria afirmação, cuja intensidade é, desse modo, redobrada.
vieram interferir em seu cérebro, seja pelo cruzamento entre um
Por exemplo, para que exista concorrência econômica entre os
raio de exemplos e uma percepção dos sentidos. Ao escrever, eu
candidatos a compra de uma casa, é preciso que cada um deles
hesito frequentemente entre duas locuções sinônimas, e cada
saiba que sua vontade de possuir esse imóvel é contrariada pelos
uma delas apresenta-se como preferível à outra na circunstância
seus competidores, que querem que ele não a possua; e ele irá
dada: aqui, dois raios imitativos interferiram em mim, ou seja,
querê-la com ainda mais força ao saber que seus competidores não
duas séries de homens que, a partir do primeiro inventor de uma
querem que ele a possua. Sem essa condição, a concorrência nela
dessas palavras e do primeiro inventor da outra, chegaram até
mesma será estéril, e os economistas erraram ao não distinguir de
mim. Pois eu aprendi cada uma dessas palavras de um indivíduo
maneira suficientemente clara os casos em que não há, entre os
que a aprendeu de outro, e assim por diante, remontando até o
concorrentes, consciência de sua concorrência, e a medida muito
primeiro indivíduo que a pronunciou. (Mais uma vez, é isso que eu
variável dessa consciência, os graus infinitos que a separam da inconsciência completa.
chamo de raio imitatiuo\ e a totalidade de raios desse gênero, pro
Eis porque eu tinha razão ao dizer que é preciso buscar a
quer cujo exemplo se propagou, é o que eu chamo de irradiação
oposição social elementar, porém não, como se poderia acreditar
imitativa. A vida social se compõe de um denso entrecruzamento
à primeira vista, na relação entre dois indivíduos que se contra
de irradiações desse gênero, entre as quais ocorrem inumeráveis
venientes de um inventor, de um iniciador, de um inovador qual
dizem ou se contrariam, e sim nos duelos lógicos e teológicos,
interferências.) Outros exemplos: eu sou juiz e hesito entre uma
nos combates singulares de teses e antíteses, de quereres e não-
opinião que se funda sobre uma série de decisões baseadas nas
-quereres30 cujo teatro é a consciência do indivíduo social. Sem
orientações de determinado autor, por exemplo, Marcadé ou De-
dúvida é possível que me perguntem: mas então qual é a diferença
molombe, e uma opinião oposta que se apoia numa outra série
entre a oposição simplesmente psicológica e a oposição social?
de decisões emanadas de tal outro comentador; mais uma vez,
Ela é diferente em virtude de sua causa e, sobretudo, pelos seus
interferência entre dois raios imitativos. A mesma coisa acontece
efeitos. Em virtude da causa: um solitário recebe em seus sentidos
quando eu hesito entre o gás e a eletricidade para iluminar meu
duas percepções aparentemente contraditórias, e hesita entre
apartamento. Mas quando um jovem camponês, diante do pôr do
dois juízos sensitivos: um que lhe diz que determinada mancha
sol, não sabe se deve acreditar na palavra de seu professor (que
vista a distância é um lago, outro que lhe diz o contrário; eis uma
lhe assegura que o cair da noite deve-se a um movimento da Terra
oposição interna cuja origem é inteiramente psicológica, e que é
e não do Sol) ou no testemunho de seus sentidos, que lhe dizem
um caso infinitamente raro. Pode-se afirmar sem medo de errar
o contrário, existe um único raio imitativo que, por intermédio de seu professor, liga-o a Galileu. Tanto faz, pois isso basta para
30 No original,"de vouloirs et de nouloirs" (grifo do autor). 0 term o nouloiré um neologismo de Tarde que imita a palavra latina no/o (infinitivo nolle). A palavra noto significa “não querer"e é formada por ne (não) e volo, velle (querer). (N. do T.)
que sua hesitação, sua oposição interna e individual, seja social em virtude de sua causa.
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As Leis Sociais
Gabriel Tarde
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Mas é sobretudo pelos seus efeitos (ou melhor, por sua inefi
de uma sociedade em partidos. Um novo partido é sempre formado
cácia) que a oposição simplesmente individual difere da oposição
por um grupo de pessoas que adotaram, seguindo o exemplo de
social elementar, que também é, entretanto, individual. Por vezes a
outras, uma ideia ou resolução contrária à que reinava até então
hesitação do indivíduo permanece encerrada nele, e não se propaga
em seu meio, e da qual elas mesmas estavam imbuídas. Esse novo
(nem tende a se propagar) imitativamente entre seus vizinhos; nes
dogmatismo, por outro lado, tornado mais intolerante e mais inten
se caso, o fenômeno permanece puramente individual. Na maioria
so à medida que se difunde, suscita contra si a coalizão daqueles
dos casos, porém, a própria dúvida é quase tão contagiosa quanto
que, fiéis às tradições, fizeram exatamente a escolha contrária; e
a fé, e todo aquele que devém cético num meio fervoroso logo se
aqui teremos, face a face, dois fanatismos.
tornará o foco de um ceticismo que irá irradiar-se ao seu redor:
Seja sob sua forma dogmática e violenta, seja sob sua forma
será possível, nesse caso, negar o caráter social do estado de luta
cética e enervada, a justaposição individual de termos opostos é
interna que caracteriza cada um dos indivíduos desse grupo?
social desde que se difunda imitativamente. Se não fosse assim,
Mas encaremos a questão de uma forma ainda mais geral.
nada haveria de social em fatos como estes: a rivalidade entre
Quando o indivíduo toma consciência da contradição que existe
duas línguas, o francês e o alemão, ou o francês e o inglês, em
entre um de seus julgamentos, propósitos, ideias ou hábitos - dog
suas respectivas fronteiras, Bélgica, Suíça, ilhas normandas; ou a
ma, fraseado, procedimento industrial, tipo de arma ou ferramenta,
rivalidade entre duas religiões igualmente limítrofes. Uma dessas
etc. -e um julgamento, propósito, ideia ou hábito de outro homem
línguas e uma dessas religiões constantemente sobrepuja a outra
ou homens, ele tem três alternativas. Ou ele se deixa influenciar
depois de incessantes combates que não ocorrem entre homens
completamente pelo outro, abandonando bruscamente sua própria
rivais, mas em cada espírito, em cada consciência, entre duas
maneira de pensar e agir; nesse caso não houve luta interna, e sim
locuções rivais, entre duas crenças rivais. Haverá algo mais inte
vitória sem combate: apenas mais um entre os contínuos fenôme
ressante, em termos sociais, do que essas enxurradas linguísticas
nos de imitação de que é feita a vida social. Ou então o indivíduo
e religiosas? Socialmente, tudo provém de oposições psicológicas,
é apenas parcialmente influenciado pelo outro, e esse é o caso
e é preciso voltar sempre a esse ponto. Mas também é verdade
discutido mais acima; depois do choque advém um amortecimento
que é extremamente importante evitar a confusão entre essas
de sua força, mais ou menos entravada e paralisada. Ou então ele
duas formas de oposição, uma na qual o combate de dois termos
reàge contra a ideia ou o hábito estrangeiro, contra a crença ou
justapostos tem lugar no próprio indivíduo, e outra na qual o indi
a vontade que o afronta, e passa a afirmar ou querer ainda mais
víduo simplesmente adota um dos termos opostos (embora ambos
energicamente o que ele já afirmava e queria. Mas nesse último
estejam justapostos nele), e onde o combate, por conseguinte, só
caso, em que ele tensiona todas as energias de sua convicção ou
tem lugar nas suas relações com outros homens. A esse respeito
de sua paixão para repelir o exemplo de outrem, haverá nele uma
podemos nos perguntar, como fiz há muito tempo em um de meus
luta íntima de outro gênero, tão tonificante quanto a anterior era
primeiros artigos,31 o que seria pior para uma sociedade: estar
enervante. Ela também perturba, e ainda mais do que a outra, pre
dividida em partidos ou seitas que se combatem em virtude de
cisamente porque é uma sobre-excitação (e não uma paralisia) das forças individuais, apta a espalhar-se contagiosamente; daí a cisão
S1 Artigo posteriormente reproduzido no meu livro Lois de 1'lmitation (prim eiro capítulo, quase in fine).
As Leis Sociais
Gabriel Tarde
seus programas e dogmas opostos, em povos que guerreiam, ou
pretensamente amolengada do trabalho regular, sob o império de
ser composta por indivíduos em paz uns com os outros, mas cada
um juízo bem assentado e de uma vontade decidida. Mas será di
qual, individualmente, em luta consigo mesmo, presa do ceticismo,
ferente no que concerne à luta exterior, à luta entre os homens? A
da irresolução ou do desencorajamento. Valerá mais essa paz de
história, se bem compreendida, mostra que a guerra evolui sempre
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superfície que oculta um surdo e contínuo estado de guerra das
num certo sentido, e que essa direção, cem vezes reproduzida e
almas consigo mesmas, ou diremos que as guerras mais mortíferas,
fácil de distinguir através dos tortuosos emaranhados históricos,
as próprias guerras religiosas e todós os acessos de delírio político
nos faz prever sua gradual rarefação e sua futura desaparição. Com
nas mais sangrentas revoluções são preferíveis a esse torpor? Se
efeito, em consequência da irradiação imitativa, que trabalha, por
nós só tivéssemos escolha entre essas duas soluções, teríamos de
assim dizer, incessante e subterraneamente para estender o campo
confessar que o problema social seria estranhamente árduo. Mas
social, os fenômenos vão se estendendo; e a guerra participa desse
não parece que é exatamente assim, já que os homens, tão logo
movimento. De uma multidão infinita de guerras muito pequenas,
cessam momentaneamente de guerrear nos campos de batalha e
porém atrozes, entre pequenos clãs, passa-se a um número bem
de combater acirradamente na arena da concorrência industrial
menor de guerras um pouco maiores, porém menos odientas, entre
ou da competição política, recaem na doença profunda das al
pequenas cidades, e depois entre grandes cidades, e depois entre
mas ansiosas, indecisas, desencorajadas, hesitantes entre seus
povos cada vez mais populosos, e chega-se, enfim, a uma era de
sacerdotes e seus doutores que se contradizem, entre as velhas máximas de uma moral respeitada da boca para fora e as práticas
conflitos muito grandiosos e raros, porém sem nenhuma ferocidade, ? entre colossos nacionais cuja própria grandeza torna pacíficos.
contrárias de uma moral que ainda não ousa formular-se? E não é
Detenho-me para notar que, por causa dessa passagem do
patente que, quando os homens põem fim ao seu esquartejamento
pequeno ao grande, do pequeno muito numeroso ao grande extre
interior, aos seus contínuos tremores, aos empuxos de doutrinas e
mamente raro, a evolução da guerra, e de todo fenômeno social
de condutas contraditórias, será para alinhar-se em dois campos, de
em geral, parece contradizer a evolução das ciências tal como vem
acordo com as diferentes opções que fizeram, e pôr-se a guerrear?
sendo exposta aqui. No entanto, ela constitui, de fato, sua contra
Só nos restaria escolher entre a guerra exterior ou a luta interna.
prova e confirmação. É justamente porque tudo no mundo dos fatos
Esse seria o dilema apresentado aos derradeiros sonhadores da
caminha do pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho
paz perpétua, entre os quais me incluo.
invertido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno e,
Felizmente, a verdade é menos triste e menos desesperadora. A observação mostra que todo estado de luta, exterior ou interior,
pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares verda deiramente explicativos em último lugar.
sempre aspira (e acaba chegando) a uma vitória definitiva ou a um
Retornemos. Em cada uma de suas etapas, em cada uma de
tratado de paz. No que concerne à luta íntima, seja qual for o nome
suas extensões, que são acima de tudo apaziguamentos, a guerra
que lhe dermos - dúvida, irresolução, angústia, desespero - isso é
diminuiu, ou ao menos transformou-se de maneira favorável ao
evidente: aqui, a luta sempre aparece como uma crise excepcional
seu ulterior desaparecimento. Cada crescimento dos Estados,
e passageira, e ninguém pensaria em considerá-la como um estado
das tribos às cidades, das cidades aos reinos, impérios, imensas
normal, ou julgá-la preferível, com suas dolorosas agitações, à paz
federações, significou a supressão dos combates numa região cada
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As Leis Sociais
Gabriel Tarde
vez mais extensa. Ainda em nossa época, há sempre sobre a Terra
um rio como o Nilo ou o Amur, ou no litoral de um pequeno mar,
regiões, mesmo que estreitas - um vale oprimido entre montanhas,
depois de ter sido (como demonstrou Metchnikoff, e como as leis
uma grande ilha, um fragmento bem recortado de uma superfície
da irradiação imitativa explicam maravilhosamente) pluvial e me
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continental, mais tarde o contorno de um mar interior - que foram
diterrânea, a civilização se torna oceânica, isto é, planetária; e é
percebidas durante muito tempo por seus habitantes como uma
agora, com o encerramento da época de suas crises de crescimento,
espécie de universo distinto; e quando esse pequeno universo foi
que sua grande floração poderá começar.
enfim pacificado por uma série de conquistas que reuniram todas
E verdade que, mesmo que terminem as guerras, não terão
as localidades sob um mesmo jugo, parecia que o alvo derradeiro,
fim as lutas dolorosas entre os homens. Existem outras formas de
a finalidade sempre buscada - a pacificação universal - havia sido
luta, e uma das principais entre elas é a concorrência. Mas também
atingida. Tinha-se enfim um momento de repouso no império dos
se pode aplicar à concorrência - oposição de ordem econômica e
faraós, no Império Chinês, entre os Incas do Peru, em certas ilhas do
não mais política - o que acaba de ser dito. Como a guerra, a con
Pacífico, no Império Romano. Infelizmente, essa meta fascinante re
corrência vai do pequeno ao grande: do muito pequeno e muito
cuava assim que era vislumbrada, e a Terra mostrava-se bem maior
numeroso ao muito grande e muito pouco numeroso. A concorrên
do que se acreditava anteriormente; estabeleciam-se relações, que
cia, desde seu início, se apresenta sob três formas: a concorrência
logo se tornavam beligerantes, com vizinhos poderosos de cuja
entre consumidores do mesmo artigo, a concorrência entre os
existência não se havia suspeitado, e que precisavam ser conquis
produtores de um mesmo artigo, e a concorrência entre produtor e
tados, ou pelos quais era preciso ser conquistado, para assentar
consumidor, entre vendedor e comprador do mesmo artigo. Afinal,
definitivamente a paz no mundo. A continuação das guerras é, em
se os artigos são diferentes, não há nenhuma oposição recíproca
resumo, a extensão gradual do domínio da paz. Mas essa extensão
dos desejos; há antes adaptação recíproca, quando os artigos são
não poderia ser indefinida; essa miragem ansiosa não poderia ser
suscetíveis de serem trocados entre si.
um perpétuo tormento, já que o globo terrestre possui limites e que
Mas já que estamos tocando aqui num tema dos mais deli
estes já foram, há muito tempo, circunavegados. O que caracteriza
cados, e que não convém abordar por enquanto a não ser por um
nossa época, e em certo sentido torna-a profundamente diferente
aspecto especial, para além de qualquer opinião preconcebida,
de todo o passado (embora as leis da história se apliquem a ela tal
coletivista ou outra qualquer, façamos em primeiro lugar algumas
como outrora), é que pela primeira vez a política internacional dos
observações de uma veracidade sem margem para dúvidas. Con
grandes estados civilizados já não abrange em suas preocupações,
corrência é uma palavra ambígua que significa - ao mesmo tempo
como antigamente, apenas um continente ou dois, mas a totalidade
ou alternadamente - concurso e luta, e é por isso que se eterniza a
do globo, e que assim se desvela o termo último da evolução da
disputa entre aqueles que, por enxergarem nessa coisa equívoca
guerra, perspectiva tão deslumbrante que mal ousamos acreditá-la,
apenas o seu aspecto de oposição, com razão a maldizem, e aque
perspectiva de um alvo certamente difícil de realizar, mas também
les que, encarando-a pelo seu aspecto de adaptação, louvam-na
muito real; um alvo incapaz de decepcionar e que, uma vez próximo,
igualmente com razão, por causa das invenções civilizatórias que
não poderia mais retroceder. Não existe aí algo capaz de eletrizar
ela suscitou. Mas é sob seu aspecto desfavorável que nós iremos
todos os corações? Depois de ter estabelecido a Paz nos limites de
considerá-la aqui.
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As Leis Sociais
O combate e a contradição não são em absoluto essenciais aos desejos dos diversos consumidores ou dos diversos produtores de um mesmo objeto, e nem mesmo aos desejos de consumidores e produtores quando confrontados entre si. Produtor e comprador estão sempre de acordo na medida em que um quer comprar o que o outro quer vender; nem sempre pelo mesmo preço, é verdade, mas sempre há um preço com o qual concordarão e que encerrará o debate entre eles. Os desejos dos produtores tampouco estão em contrariedade na medida em que cada um deles tem sua clientela e seus canais de distribuição que, tal como a produção, momen taneamente não serão capazes de expandir-se; eles só se tornam contraditórios à medida que os meios de produção se expandem e que cada um deles deseja produzir mais e apropriar-se da pro dução do outro. É verdade que a civilização acarreta um aumento constante dos meios de produção, e que, sendo assim, essa luta entre coprodutores é inevitável e deve tornar-se cada vez mais viva. Quanto aos desejos dos consumidores de um determinado artigo, é possível dizer que, longe de se prejudicarem mutuamente, aqueles que competem pela compra de um mesmo artigo em geral se aju dam mutuamente, desde que a produção desse artigo seja capaz de acompanhar o aumento da demanda: pois quanto mais houver pessoas desejosas de comprar bicicletas, mais o preço das bici cletas irá baixar. Os desejos dos consumidores só estão realmente em contradição naqueles casos - como acontece frequentemente com os artigos de primeira necessidade, bem como com os artigos de luxo - em que o número de exemplares da coisa desejada não consegue suprir a demanda e tampouco pode multiplicar-se tão rapidamente quanto se multiplicam, pelo contágio da moda, os
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primitivos, são incessantes e inumeráveis; pouco a pouco elas são suprimidas, mas para serem substituídas por essas grandes barganhas suscitadas, nos mercados municipais, pela fixação da taxa municipal do trigo e da carne; e quando estas são suprimidas, é para dar lugar a barganhas ainda maiores, pelas discussões nas Câmaras onde se debatem projetos de lei que tendem a favorecer, pela imposição ou supressão de taxas aduaneiras, os interesses da massa de produtores ou da massa de consumidores nacionais. As sociedades cooperativas de consumo, isto é, aquelas em que o consumidor e o produtor se unem, nasceram da necessidade de pôr fim a essa espécie de concorrência, e se desenvolvem junto com ela. Também entre compradores a concorrência tende a estender-se:32 em todos os mercados primitivos, a competição por um saco de trigo ou por uma cabeça de gado está restrita a algumas pessoas; essas inumeráveis pequenas competições, que muitas vezes culminam em pequenas sociedades especulativas locais, * são substituídas, quando os mercados começam a crescer e a di minuir em número, por competições maiores, cada vez maiores, e estas culminam, por sua vez, ora em uniões importantes, como os sindicatos agrícolas, ora em sociedades especulativas mais vastas, os trusts e kartells gigantescos que conhecemos. Mas examinemos a concorrência mais bem estudada, e que é na realidade a mais intensa, porque é a mais consciente: a dos produtores entre si. Ela começa com rivalidades inumeráveis entre pequenos mercadores que disputam mercados minúsculos, origi nalmente justapostos e praticamente fechados aos demais; mas à medida que caem as barreiras que os separam, eles se confundem em mercados maiores e menos numerosos, e também as pequenas
desejos que ela suscita. Dito isso, e voltando à ideia que apresentamos há pouco, notemos que cada uma das três espécies de concorrência distin guidas aqui está em conformidade com a lei indicada. As pequenas barganhas entre vendedor e comprador, em todos os mercados
32 Hoje em dia, em épocas de escassez, não há um único saco de trigo no mais remoto vilarejo da Crimeia ou da América que não suscite uma competição, não mais entre vizinhos, como outrora, mas entre mercadores de todas as nações europeias; assim como não existem, em épocas normais, quadros de grandes mestres ou livros antigos no mais obscuro dos castelos franceses cuja aquisição não esteja ameaçada pela concorrência, não de alguns amadores da vizinhança, ou da província, ou mesmo da França inteira, mas de milionários americanos.
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oficinas rivais se fundem, seja voluntariamente, seja pela força, em fábricas maiores e menos numerosas, onde o trabalho produtivo, outrora ciosamente oposto a si mesmo, agora é harmoniosamente coordenado; e a rivalidade entre essas fábricas reproduz, numa escala ainda maior, a das oficinas de outrora, até que se chega, pelo crescimento gradual dos mercados, que tendem a se tornar um único mercado, a alguns gigantes da indústria e do comércio, que também rivalizam entre si, a menos que entrem num acordo. Em resumo, a concorrência se desenvolve em círculos con cêntricos que vão se ampliando. Mas a ampliação da concorrência tem como condição e como razão de ser a ampliação da associação. Da associação ou do monopólio, objetar-se-á. Que seja, mas o mo nopólio é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema da concorrência, assim como a unidade imperial é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema da guerra. Um desses pro blemas pode ser resolvido pela associação dos indivíduos, assim como o outro pode ser resolvido pela confederação dos povos. De resto, o próprio monopólio, à força de estender-se, se torna mais brando, e caso ele se tornasse universal em certas modalidades de produção (termo ao qual ele tende e que Paul Leroy-Beaulieu julgou, erroneamente a meu ver, para sempre e absolutamente inatingível),33seria provavelmente mais suportável, em certos casos, 33 Um m onopólio é sempre parcial e relativo. Sem dúvida, Paul Leroy-Beaulieu tem razão ao dizer que a concorrência jamais chega ao m onopólio absoluto e completo, e o exemplo que ele menciona - o das lojas de departamentos - parece, à primeira vista, dos mais sólidos: o BonMarché, por exemplo, depois de ter suprimido a concorrência de tantas lojas pequenas, viu surgir a concorrência do Louvre, do Printemps, da Samarítaine, etc. Mas na realidade, numa certa zona e numa certa medida, cada um desses colossos do comércio m onopolizou uma situação disputada por milhares de pequenas lojas; cada uma delas tem sua própria clientela numa região que, por motivos quaisquer de capricho ou de moda, pertence-lhe com exclusividade. Na maioria dos casos, é simplesmente porque elas adquiriram, em relação a determinado artigo, a reputação de oferecer uma qualidade m elhor do que seus concorrentes. Na realidade, essa pretensa concorrência entre as lojas de departamentos (que além do mais pode ser temperada ou atenuada por entendi mentos entre elas, m uito mais fáceis, em função de seu número reduzido, do que entre a infinidade de pequenas lojas que elas substituíram), essa concorrência tende a tornar-se cada vez mais uma simples divisão de trabalho, ou melhor, uma grande repartição de monopólios parciais que elas partilharam ou vão, pouco a pouco, partilhando entre si.
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do que o estado de concorrência aguda que ele teria substituído. A concorrência tende a uma monopolização, ao menos parcial e relativa, ou a uma associação de concorrentes, tal como a guerra tende ao esmagamento do perdedor ou a um tratado favorável com ele, a uma pacificação igualmente parcial e relativa. 0 crescimento dos Estados conquistadores contribuiu para isso. Estou ciente de que os grandes Estados modernos, tomando o lugar dos feudos da Idade Média, fizeram reinar uma paz bastante incompleta, e até aqui bastante curta, mas cuja extensão e duração vão aumentan do, tal como os exércitos grandiosos de hoje em dia. Negar que a concorrência culmine no monopólio (ou na associação) e imaginar que se está defendendo a concorrência de seus detratores é, ao contrário, recusar a única desculpa que se poderia alegar: como se, para defender o militarismo dos ataques de que ele é objeto, nos esforçássemos para demonstrar que a guerra não produz a paz depois da vitória. E bem verdade que a guerra só produz a paz para renascer da própria paz, e numa escala ainda maior; do mesmo modo, a concorrência só se apazigua momentaneamente na associação para renascer da própria associação, sob a forma de rivalidades entre associações, corporações, sindicatos e assim por diante; mas chega-se assim, finalmente, a associações gigantes que, não podendo mais expandir-se, só poderão, depois de travarem seus combates, associar-se. Existe uma terceira grande forma de luta social, a discussão. Ela está sem dúvida implicada nas formas precedentes, mas se a guerra e a concorrência são discussões, uma é a discussão com atos mortíferos, e a outra, a discussão com atos ruinosos. Falemos um pouco da pura e simples discussão que se vale de palavras. Também ela, quando evolui (pois existem numerosas e pequenas discussões privadas que não evoluem, e felizmente morrem ao nascer), evolui da maneira que descrevemos, embora o fenômeno seja nesse caso mais difícil de perceber. Lembremos que somente quando a discussão mental entre duas ideias contraditórias pre
As Leis Sociais
Gabriel Tarde
sentes no mesmo cérebro chegou ao fim é que se torna possível
costumes regionais que foram, por sua vez, finalmente substituí
a discussão verbal entre dois homens que resolveram a questão
dos por uma legislação uniforme. A unanimidade científica, que se
de maneiras diferentes. Do mesmo modo, se a discussão verbal
constituiu lentamente e, em larga medida, por meio de uma série
escrita ou impressa que ocorre entre grupos de homens, e entre
de discussões (ora encerradas, ora revividas) entre cientistas e
grupos cada vez mais extensos, substitui a discussão verbal entre
escolas científicas, daria lugar a considerações semelhantes.
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dois homens, é sob a condição de que ela tenha sido encerrada em
Entre todas as formas de discussão, existe uma, a discussão
cada um desses grupos por um acordo relativo e momentâneo, por
jurídica (o processo, civil ou comercial), que chama a atenção. Se
uma espécie de unanimidade, inicialmente fragmentada em uma
ria verdade que também o processo pode ampliar-se, e por causa
infinidade de pequenas facções, de pequenos clãs, de pequenas
dessa ampliação mesma, caminhar em direção à sua pacificação?
igrejas, de pequenas ágoras, de pequenas escolas que se combatem,
Sim - por mais estranha que essa proposição possa parecer à pri
e depois de muitas polêmicas, concentrada em um número muito
meira vista. Em primeiro lugar, é certo que os processos, entre os
pequeno de grandes partidos, de grandes religiões, de grandes
povos primitivos, não diferem das guerras privadas; de fato, sem
grupos parlamentares, de grandes escolas de filosofia ou arte entre
a presença soberana do Estado-juiz, a maior parte das diferenças
os quais são travados os supremos combates. Não foi assim que
entre litigantes seria resolvida na base da violência. Os processos
se estabeleceu, pouco a pouco, a unanimidade católica? Não foi
são duelos atenuados, guerras embrionárias. Reciprocamente, as
à custa de discussões muito vivas, às vezes sangrentas, entre os
guerras são processos entre nações, proces§os que seguem seu
fiéis de cada igreja local, que se chegou, nos dois ou três primeiros
desenvolvimento natural em razão da ausência de uma autoridade
séculos da Igreja, a um acordo sobre um pequeno credo, que por sua
supranacional. Assim, se compararmos as querelas judiciais que
vez estava em desacordo com o credo das igrejas vizinhas, dando
hoje ocorrem em nossos tribunais com as querelas medievais, em
lugar a colóquios, a concílios provinciais que resolviam as dificul
que as partes eram campeões armados, ou com as querelas das
dades, mas que por vezes se contradiziam e acabavam levando
tribos germânicas, nos convenceremos de que o ardor litigioso
suas querelas para o seio dos concílios nacionais ou ecumênicos?
não cessou de adocicar-se. E eu posso acrescentar que ele se
A unanimidade política da antiga França monárquica foi produzida
adocicou por causa de suas próprias ampliações. Pode-se dizer,
do mesmo modo, e a unanimidade política da nova França, num
com efeito, que as questões jurídicas se ampliaram à medida que
sentido democrático, está igualmente em vias de produzir-se. Do
os costumes locais cederam lugar aos costumes provinciais e, por
mesmo modo se estabeleceu aquilo que de bom grado eu chamaria
fim, às leis nacionais; a cada etapa de unificação jurídica, cada
de unanimidade linguistica, ou seja, a unanimidade da língua nacio
forma de processo, ou seja, cada dificuldade jurídica que dá lugar
nal: posteriormente às rivalidades entre dialetos e provincialismos
a duas interpretações diametralmente opostas, toma um caráter
rebeldes ao purismo ortodoxo. Também a unanimidade jurídica
mais geral. Ora, é generalizando-se dessa forma que cada espécie
se estabeleceu, há muito tempo, de maneira análoga: inumeráveis
de discussão judicial chega finalmente à sua última etapa: uma
costumes locais pacificaram milhares de discussões jurídicas dis
decisão da Suprema Corte que elimina novas instaurações desse
tintas (mas não todas, como o mostram os processos), e depois
gênero de processo. Quantas vezes isso não aconteceu ao longo de nosso século!
esses costumes, conflitantes entre si, foram unificados em alguns
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/Is Leis Sodais
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Poderiam objetar-me, casualmente, que os povos se tornam
apaziguamentos intermitentes e crescentes que se alternam com
cada vez mais discutidores à medida que se civilizam, e que as
retomadas da discórdia, amplificada e centralizada, até o acordo
discussões públicas, as polêmicas na imprensa e os debates par
final, ainda que relativo. A consequência disso - e nós temos
lamentares alimentam as discussões verbais privadas em vez de
várias outras razões para pensar assim - é que a oposição-luta
substituí-las; mas essa objeção não se sustentaria. Se selvagens
desempenha, no mundo social bem como no mundo vivente e no
e bárbaros discutem pouco - felizmente, já que a maior parte de
mundo inorgânico, apenas o papel de um termo médio, destinado a
suas discussões degenera em brigas e combates - é porque eles,
desaparecer progressivamente, a esgotar-se e eliminar a si mesma
por assim dizer, não falam e não pensam. Dado o número infinita
em virtude de seu próprio crescimento, pelo qual ela corre em
mente pequeno de suas ideias, é surpreendente que eles briguem
direção à sua própria destruição. E chegou o momento de dizer,
com tanta frequência; e é espantoso que pessoas com tão poucos
ou de redizer mais explicitamente, qual é a verdadeira relação
interesses diferentes encontrem tantos motivos para litigar. Por
entre esses três grandes aspectos científicos do universo que eu
outro lado, se há uma coisa que mal notamos e que deveria desper
denominei de Repetição, Oposição e Adaptação dos fenômenos.
tar nossa admiração, é que exista, em nossas cidades civilizadas,
Os dois últimos procedem do primeiro, e o segundo é ordinaria
uma imensa corrente de ideias despertadas em nós pela conver
mente, mas nem sempre, o intermediário entre o primeiro e o
sação e pela leitura, porém tão poucas discussões, e discussões
terceiro. É porque as forças físicas se propagam ou tendem a se
tão pouco acaloradas. Deveríamos ficar estupefatos ao ver tantos
propagar em progressão geométrica - em virtucip de sua repetição
homens pensarem e falarem e se contradizerem tão pouco, ao
ondulatória - que elas interferem entre si, ou então se adaptam e
vê-los agirem tanto e se enfrentarem tão pouco, do mesmo modo
se combinam; e suas interferências-choques parecem apenas ser
que vemos tão poucos acidentes de trânsito em nossas ruas tão
vir para preparar suas interferências-alianças, suas combinações.
animadas e apinhadas, ou tão poucas guerras numa época de
É porque as espécies vivas tendem a se propagar em progressão
relações internacionais tão extensas e complicadas! E o que nos
geométrica - em virtude da repetição hereditária de seus exem
colocou mais ou menos de acordo a propósito de tantos pontos?
plares individuais - que elas interferem, seja em cruzamentos
Estas três grandes coisas, elaboradas sucessivamente ao longo de
bem-sucedidos e fecundos, seja nos combates pela vida tão bem
discussões que duraram séculos: a Religião, a Jurisprudência e a
estudados pelos darwinistas (que só perceberam a interferência
Ciência. Notemos também que, num país civilizado, as discussões
vital pelo seu lado violento, no qual eles viram, com um exagero
públicas sobrepujam e muito, em importância, em candente inte
evidente, o único ou o principal meio de criação de novas espé
resse e mesmo em vivacidade, as discussões privadas; é o inverso
cies, ou seja, de readaptação das antigas espécies). E é também
do que ocorre num país bárbaro. Nossas sessões parlamentares
porque as realidades sociais em geral (um dogma, uma locução,
são de uma violência crescente, ao passo que o tom das discussões
um princípio científico, uma regra moral, uma prece, um proce
nos cafés e nos salões torna-se cada vez mais doce.
dimento industrial, etc.) tendem a se propagar geometricamente
Em resumo, sob suas três formas principais - guerra, con corrência, discussão - a oposição-luta em nossas sociedades humanas mostra-se obediente à mesma lei de desenvolvimento:
pela repetição imitativa que elas - com ou sem êxito - interferem, ou seja, se encontram pelo seu lado dissonante em determinados cérebros, onde suscitam duelos lógicos e teleológicos, primeiro
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germe das oposições sociais (guerras, concorrências, polêmicas),
que, adotada ou monopolizada por um dos rivais da indústria, lhe
ou então se encontram, pelo seu lado harmonizável, em cérebros
assegura o triunfo, e momentaneamente põe fim à concorrência; a
geniais (mas também em cérebros ordinários), suscitando verda
invenção filosófica, científica, jurídica ou estética que interrompe
deiras alianças lógicas, invenções, iniciativas fecundas, fontes de
bruscamente inumeráveis discussões, mesmo que seja para dar
todas as adaptações sociais.
origem, mais tarde, a novas discussões. Eis aí a única utilidade,
Eis aí os três termos de uma série circular capaz de encadear-
a única razão de ser da oposição; mas quantas vezes a invenção
-se sem fim. Pois é repetindo-se por imitação que a invenção - a
pela qual ela clama deixa de atender ao seu chamado! Quantas
adaptação social elementar - se difunde e se fortifica, tendendo,
vezes a guerra abate o gênio ao invés de estimulá-lo! E quantos
pelo encontro de uma de suas irradiações imitativas com uma
talentos são esterilizados pelas polêmicas da imprensa, pelos de
irradiação imitativa emanada de alguma outra invenção, antiga
bates parlamentares, pela vã esgrima dos Congressos! Tudo que
ou nova, a suscitar ora novas lutas, ora (diretamente ou por
se pode afirmar - e que confirma o que já foi dito - é que a ordem
meio dessas lutas) novas e mais complexas invenções, que em
histórica de preponderância sucessiva das três formas de luta é
breve também irão irradiar imitativamente, e assim por diante,
precisamente a de sua aptidão a estimular a inventividade: com
ao infinito. Notemos que tanto o duelo lógico como a síntese ló
efeito, passa-se de uma era em que a guerra é preponderante a uma
gica, tanto o elemento social da oposição-luta como o elemento
fase em que a concorrência predomina, e enfim a discussão. Além
social da adaptação têm necessidade da repetição imitativa para
disso, numa sociedade que se civiliza, a troca se desenvolve mais
socializar-se, para generalizar-se e crescer. A única diferença é
rapidamente do que a concorrência, a conversação se desenvolve
que a propagação imitativa do estado de discórdia interior entre
mais rapidamente do que a discussão, e o internacionalismo, mais
duas ideias, ou mesmo do estado de discórdia exterior entre dois homens que escolheram uma dessas ideias, irá fatalmente sofrer
rapidamente do que o militarismo. Acabamos de falar somente das oposições-lutas, aquelas
um desgaste e pôr fim a essa discórdia dentro de um determinado
que acontecem entre termos simultâneos que se chocam. Quanto
tempo, pois todo combate é fatigante e culmina numa vitória; en
às oposições-ritmos, que consistem em termos sucessivos (qua
quanto a propagação imitativa do estado de harmonia (ao mesmo
lidades ou quantidades, pouco importa), de uma alta seguida de
tempo interno e externo) alcançado pela iluminação de uma nova
uma baixa ou de uma ida seguida de um retorno e vice-versa,
verdade, síntese de nossos conhecimentos anteriores e comunhão
pode parecer à primeira vista que elas sejam menos enigmáti
de nosso espírito com todos os espíritos que comungam com ela,
cas do que as outras, já que não são paralisias e destruições
não tem razão alguma para deter-se e se fortificará ao avançar. Dos
mútuas de forças. No entanto, se olharmos mais de perto, esse
três termos comparados entre si, o primeiro e o último ultrapassam
vaivém de forças que constituem sucessivamente um “a favor”
largamente o segundo em altura, em profundidade, em importância
e um “contra”, ou que dizem um “sim” e um “não”, é ainda mais
e talvez em duração. A única utilidade do segundo, a oposição, é a
difícil de compreender do que o choque entre duas forças que se
de provocar uma tensão das forças antagonistas aptas a suscitar
encontram e se equilibram. Pois essas interferências destrutivas
o gênio inventivo: a invenção militar que, ao dar a vitória a um dos
têm, ao menos, um caráter acidental, não desejado, e nós sabemos
lados, momentaneamente põe fim à guerra; a invenção industrial
que elas são quase inseparáveis das interferências criadoras, tal
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como a sombra e o corpo; isso para não mencionar que, em nós,
e comum a toda atividade motora”.34 Mas a repetição, a marcha
o equilíbrio e a neutralização recíproca das tendências contrá
regular dos fenômenos, e apenas a condição de seu itinerário, de
rias, das sugestões rivais que vêm de fora, permitem a eclosão
sua evolução, sempre mais ou menos irregular e pitoresca, e que
de nossa originalidade natural, sendo essa, possivelmente, uma
se torna mais e mais irregular e pitoresca à medida que progride.
das melhores justificativas da luta em geral. Mas o ritmo, seja ele
Ora, é só na marcha, mas de modo algum no itinerário, que o
qualitativo ou quantitativo, parece ser um jogo normal no qual
vaivém rítmico apresenta alguma precisão. E é assim até mesmo
as forças se comprazem e que foi desejado por elas. E confesso
no que diz respeito ao ritmo quantitativo, essas altas e baixas
que se eu tivesse sérias razões para considerar esse vaivém, essa
gerais que a estatística permite medir no curso de uma civilização
flutuação pueril, como algo que ocorre num plano mais amplo -
em processo de desenvolvimento. É extremamente raro, nesse
ou seja, se pensasse que a dissolução fosse exatamente o inverso
caso, que o aumento e a diminuição constatados sejam iguais ou
da evolução, a regressão o inverso da progressão, e que tudo se
semelhantes; que as curvas ascendentes de riqueza, por exemplo,
pusesse a recomeçar indefinidamente sem nenhuma orientação de
ou do preço dos valores da Bolsa, da fé religiosa, da instrução,
conjunto - eu seria tomado por um desespero schopenhaueriano.
da criminalidade, etc., se reflitam de maneira inversa nas curvas
Felizmente não é assim, e o ritmo, o ritmo mais ou menos preciso,
descendentes de mesma natureza e com as mesmas caracterís
regular, verdadeiramente digno desse nome, mostra-se em toda
ticas. Isso é bem conhecido pelos estatísticos. Eu já me referi ao
parte, mas apenas nos detalhes dos fenômenos, sendo a própria
caráter irreversível de várias evoluções sociais, justamente as
condição de sua repetição precisa, e por isso mesmo, condição
mais importantes, e não preciso voltar a esse ponto.
de sua variação. A gravitação de um astro só se repete em razão
Para concluir, a oposição, sob suas duas grandes formas,
de suas idas e vindas elípticas; uma onda sonora ou luminosa só
revela e acentua cada vez mais seu caráter simplesmente auxiliar
se repete em razão de um ir e voltar retilíneo, circular ou elíptico;
e intermediário: como ritmo, ela só serve diretamente à repetição,
a contração de um elemento muscular e a inervação de um ele
e indiretamente à variação, desaparecendo quando esta aparece.
mento nervoso só se propagam, num músculo ou ao longo de um
Como luta, ela só serve para suscitar a adaptação, da qual iremos
nervo, sob condição de voltarem ao seu ponto de partida. Baldwin
agora nos ocupar.
mostrou recentemente que também a imitação é “uma reação circular”, e que se pode defini-la como “uma reação muscular que procura alcançar os estímulos capazes de reconduzir aos mesmos estados, que novamente tenderão aos mesmos estímulos e assim por diante”. No livro de onde retirei essa citação, ele estende o uso da palavra imitação muito além da minha acepção, e generalizando-a ao ponto de fazê-la abranger ao mesmo tempo todo o funcionamento vital e todo o funcionamento social, ele escreve o seguinte: “O tipo de reações ou repetições circulares que nós chamamos de imitação é um tipo fundamental, sempre o mesmo
34 A tradução americana d'As Leis Sociais, prefaciada pelo próprio James Baldwin, alterou ligeiramente o texto deTarde ao incorporar a redação original das citações do livro Mental Development in the Child and the Race (3aed., p. 151 e p. 23). Como isso pode ser dealgum interesse para o pesquisador, eis aqui a reprodução desse trecho: ... Baldwin has recently shown that im itation itself is a "circular reaction,"and that it may be defined as a"brain-state due to stim ulating conditions, muscular reaction which repro duces or retains the stimulating conditions, same brain-state again due to same stimulating conditions, and so on." In the work from which this quotation is taken, he extends the meaning o f the word im itation far beyond that which I assigned it; and, generalizing the term in such a way as to include both the vital and the social functions, he writes: "The self-repeating or circular type o f reaction, to which the name im itation is given... is seen to be fundam ental and to remain the same, as far as structure is concerned, for all motor activity whatever." Gabriel Tarde. Social Laws, trad. Howard C. Warren, Macmillan, New York, 1899, p. 141. (N. do T.)
Terceiro capítulo Adaptação dos fenômenos
A
s explicações datias nas duas conferências anteriores já nos prepararam para compreender o verdadeiro sentido da palavra “adaptação”, que exprime o aspecto
mais profundo sob o qual a ciência aborda o universo. Veremos mais uma vez que a evolução da ciência - seja qual for o tipo de realidades às quais se aplique - consiste na passagem do gran de ao pequeno, do vago ao preciso, do falso ou superficial ao
verdadeiro e ao profundo; ou seja, ela consiste primeiramente em descobrir ou imaginar uma imensa harmonia de conjunto ou algumas grandes e vagas harmonias exteriores, que vão sendo gradualmente substituídas por inumeráveis harmonias interiores, um número infinito de infinitesimais e fecundas adaptações. Veremos também que a evolução da realidade, que aqui como alhures é precisamente inversa à do conhecimento, consiste numa tendência incessante das pequenas harmonias interiores a exteriorizar-se e amplificar-se progressivamente. Incidentalmente, não deixaremos de notar, como fizemos ante riormente, que se o progresso do saber nos faz descobrir novas e mais profundas harmonias, ele também nos revela muitas de sarmonias, ainda mais profundas, que antes não percebíamos. Comecemos com algumas definições ou explicações neces sárias. 0 que é exatamente uma adaptação, uma harmonia natural? Tomemos um exemplo fora do contexto da vida, pois nesta o vínculo teleológico entre o órgão e a função é tão claro que não precisa ser explicado: o leito de um rio. Percebe-se aqui uma montanha, ou uma cadeia de colinas, adaptada ao escoamento das águas do rio; os raios do Sol adaptados à evaporação das águas do oceano em nuvens; e os ventos adaptados ao transporte dessas nuvens para
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o cume das montanhas, de onde elas voltam a cair em chuvas que
sistema solar: pois um corte transversal da Terra mostraria, entre
alimentam as fontes, os riachos e os pequenos rios, afluentes dos
o centro e a circunferência, uma sucessão de camadas incan
grandes cursos d água. Existe um equilíbrio móvel, um circuito de
descentes, depois solidificadas, depois líquidas, depois gasosas,
ações encadeadas que se repetem - que se repetem com variações.
cada qual necessária à seguinte, e essa sucessão seria análoga à
Pode-se dizer que um ser vivo é um circuito semelhante a esse,
encontrada nos astros, desde o Sol, no centro, até Netuno, que é
só que muito mais complicado, e onde a adaptação não é apenas
gasoso. De qualquer modo, pouco nos importa se essa analogia é
unilateral, como nesse exemplo, mas recíproca. O órgão serve à realização da função vital e, reciprocamente, a função vital serve
verdadeira ou não. Um agregado qualquer é um composto de seres adaptados
à manutenção do órgão; ao passo que, nos ciclos planetários da
entre si, seja uns com os outros, seja num conjunto subordinado
água, a montanha está adaptada ao escoamento da água, mas o
a uma função comum. Agregado significa adaptat,36 Mas, além dis
escoamento da água, ao invés de servir à manutenção da montanha,
so, diversos agregados que possuem relações entre si podem ser
tem poi efeito o seu desnudamento e mesmo, de maneira gradual, a
coadaptados, constituindo um adaptat de um grau superior. Seria
sua supressão. É também sem nenhuma reciprocidade que o calor do Sol está adaptado à irrigação do solo.
possível distinguir, desse modo, uma infinidade de graus. Para
Lembremos que sempre se trata de uma harmonia que se
tação. A adaptação de primeiro grau é aquela que ocorre entre os
repete. Acabamos de ver um exemplo; vejamos outros. Cada pla
elementos do sistema considerado; a adaptação de segundo grau é
neta de um sistema solar, considerado do ponto de vista mecânico,
aquela que os une aos sistemas que os cercam, àquilo que podemos
simplificar, façamos uma distinção entre apenas dois graus de adap
ou seja, como um ponto que se move, apresenta o espetáculo de
chamar, muito vagamente, de seu “meio”. 0 ajustamento a si mesmo
uma harmonia entre sua propensão a fundir-se no Sol e sua ten
difere muito, em toda ordem de fatos, do ajustamento a outrem,
dência a afastar-se dele tangencialmente: se essas duas forças,
tal como a repetição de si (hábito) difere da repetição de outrem
centrípeta e centrífuga, se exercessem ao longo de uma linha reta,
(hereditariedade e imitação), tal como a oposição a si mesmo (he
haveria oposição, mas como elas são perpendiculares entre si, o
sitação, dúvida) difere da oposição a outrem (luta, concorrência).
que existe é adaptação. (Assim, na natureza, oposição e adaptação
Muitas vezes esses dois tipos de adaptação, em certa medida, se
se transformam uma na outra.)35 Ora, a gravitação do planeta é a
excluem mutuamente; é o caso das constituições políticas, onde se
repetição, a repetição variada, dessa adaptação mecânica. Mesmo
observa com bastante frequência que as mais coerentes, as mais
se o considerarmos em termos geológicos - do ponto de vista de
logicamente deduzidas (apresentando portanto o mais alto grau de
sua composição estratigráfica e físico-química
um planeta é um
adaptação de primeiro grau) são as menos adaptadas às exigências
agenciamento muito harmonioso de estratos superpostos; e se a
de seu meio tradicional e costumeiro, e que, reciprocamente, as
esse respeito dermos crédito a Stanislas Meunier, tal agenciamento
mais práticas são as menos lógicas. A mesma observação aplica-se
se repetirá em cada planeta, e mesmo na constituição geral do
às gramáticas de tantas línguas, às religiões, às belas-artes, etc.:
Também um ciclone ou trom ba d'água é uma harmonia atmosférica, um circuito de ações que se deve ao acordo entre duas forças que não se entravam mutuam ente mas se completam em sua resultante.
36 Adaptat é a 3a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino adapto (infi nitivo adaptare): adequar, ajustar, adaptar. 0 uso que Tarde faz do term o adaptat (como substantivo) é análogo ao uso, bem mais corrente, de outro termo latino: habitat. (N. doT.)
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a única gramática perfeita, com regras sem nenhuma exceção, é a
constelações esparsas de resplandecente desordem. Desde sempre
do... volapuque.37Ela também é aplicável aos organismos: há entre
apaixonada pela ordem, a razão humana logo teve de renunciar à
eles alguns que são perfeitos, mas que não são viáveis, e que se
sua busca pelas marcas mais evidentes de uma coordenação divi
tornariam mais viáveis se fossem menos perfeitos. A perfeição de
na na totalidade do mundo - o Cosmos, o mais alto objeto de sua
sua acomodação pode atrapalhar sua flexibilidade.38
admiração. Ela teve de descer ao sistema solar para encontrá-las, e
Feitas essas indicações preliminares, mostremos a verdade
quanto mais ela conhecia deste pequeno mundo, mais encontrava
das duas teses enunciadas acima. Os partidários das causas finais
nos detalhes, e não no conjunto desse belo agrupamento de massas,
fizeram tudo o que podiam para desacreditar a ideia de finalidade.
os motivos para extasiar-se. Mais do que as relações entre os pró
Não é menos certo, no entanto, que os primeiros balbucias da
prios planetas, era a relação de cada um deles com seus satélites, e
ciência datam do momento em que essa noção foi introduzida,
mais ainda, era a superfície de cada um desses globos, sua formação
mesmo que de forma mística e bem pouco racional, na concepção
geológica, seu regime de águas, que revelavam um acordo perfeito
do mundo. Diante da visão do céu estrelado, com que sonhou a
e surpreendente. Doravante, já não é mais em direção à imensa
ciência primitiva? Com uma adaptação imensa, única, quimérica,
abóbada celeste que a alma religiosa deve voltar-se para adorar a
nascida da ilusão que aprendemos a chamar de geocêntrica, segun
sabedoria profunda que move este mundo; agora, é para o cadi
do a qual todas as estrelas existem para a Terra; a Terra, e sobre
nho do químico que ela deverá olhar se quiser escrutar o mistério
ela uma cidade ou um burgo seriam o único foco de interesse do
das harmonias físicas mais precisas e maravilhosas, ainda mais
firmamento, perpetuamente inquieto acerca do destino desses
admiráveis do que a mixórdia estrelada: as combinações químicas.
seres efemeros que nós somos. A astrologia foi o desenvolvimento
Se, por meio do uso de um microscópio suficientemente forte, pu
lógico dessa grandiosa e imaginária adaptação do céu à Terra e ao
déssemos perceber o interior de uma molécula, ficaríamos muito
homem. A verdadeira astronomia não somente fez desaparecer essa
mais fascinados pela mescla prodigiosa de movimentos elípticos
absurda harmonia, mas também quebrou a unidade da harmonia
e circulares que provavelmente a constituem do que com o jogo,
celeste ao dividi-la em várias harmonias parciais, tão numerosas
no fim das contas bastante simples, dos grandes piões celestes!
quantos os próprios sistemas solares, coerentes neles mesmos e
Se passarmos do mundo físico ao mundo da vida, também
simetricamente coordenados, porém ligados entre si por liames
constataremos que o primeiro procedimento da razão foi conce
muito vagos e duvidosos, agrupados em nebulosas informes, em
ber a criação orgânica inteira, vegetal e animal, como uma única e grandiosa adaptação aos fins da humanidade, destinada à sua
37 Linguagem artificial criada em 1880 pelo clérigo alemão Johann Martin Schleyer. (N. doT.) 38 Sendo dada uma visão espiritual ou ideia, pode-se progredir intelectualmente a partir dessa ideia (que é, em geral, uma mistura de verdade e erro) em dois sentidos diferentes: (I o) Apenas no sentido de uma adaptação de primeiro grau, ou seja, de uma harmoniza ção gradual dessa ideia consigo mesma, de sua diferenciação e coesão interna (esse é o desenvolvimento de muitas teologias e metafísicas); (2°) No sentido de uma adaptação de segundo grau, isto é, de uma harmonização gradual dessa ideia com os dados dos sentidos, com os aportes exteriores da percepção e da descoberta (desenvolvimento científico). No primeiro caso, o progresso muitas vezes consiste em passar de um erro m enor a um erro maior.
nutrição, diversão, proteção, e também para avisá-la sobre perigos ocultos. As práticas divinatórias e o totemismo, difundidos desde as origens entre todos os povos, têm o mesmo fundamento. E os progressos do saber podem muito bem ter dissipado essa ilusão antropocêntrica, mas algo dela permaneceu no erro científico que reinou durante tanto tempo entre os filósofos naturalistas: o de re presentar a série paleontológica como uma ascensão em linha reta
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até o homem, e o de encarar cada espécie viva ou extinta como uma nota num grande concerto chamado de Plano divino da natureza, edifício ideal e regular cujo apogeu era o homem. Penosamente, à força dos desmentidos acumulados pela observação, ele precisou desprender-se de uma ideia que lhe era tão cara, reconhecendo que não é nas grandes linhas da evolução dos seres (tão ramificadas e tortuosas), e nem mesmo nos grandes agrupamentos de espécies diferentes em faunas e floras regionais (apesar da notável adapta ção revelada nos casos de comensalismo ou em determinadas rela ções entre insetos e flores) que a natureza demonstra no mais alto grau sua maravilhosa potência de harmonia, mas sim nos detalhes de cada organismo. A meu ver, os partidários das causas finais39 comprometeram a ideia de finalidade ao empregá-la de maneira abusiva e errônea, mas não excessiva; ao contrário, eu poderia criticá-los por terem feito dessa ideia, com seus hábitos mentais unificadores, um uso demasiadamente restrito. Não existe um fim na natureza, um fim em relação ao qual todo o resto seria um meio; o que existe é uma multidão infinita de fins que tentam servir-se uns dos outros. Cada organismo, e cada célula de cada organismo, e talvez cada elemento celular dentro de cada célula, possui sua própria pequena providência particular. Assim, tal como antes, também aqui somos levados a pensar que a força harmonizadora - ao menos aquela com a qual a ciência tem o direito de ocupar-se, sem negar a possibilidade de que alguma outra exista - não é imensa e única, exterior e superior, mas infinitamente multiplicada, infinitesimal e interna. A bem dizer, a fonte de todas as harmonias vitais (às quais temos um acesso cada vez mais restrito à medida que nos afastamos desse ponto de partida para abranger um campo mais vasto) é o óvulo fecundado, interseção viva de linhagens que se encontraram ali, num cruzamento às vezes feliz, início de novas
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aptidões que irão, por sua vez, se difundir e propagar, graças à seleção dos mais aptos ou à eliminação dos menos aptos. Voltemo-nos para o mundo social. Os teólogos, que sempre foram (sem sabê-lo) os primeiros sociólogos, frequentemente concebem a grande rede de todas as histórias dos povos da Terra como algo que converge, desde os primórdios da humanidade, para o. advento de seu próprio culto. Leiam Bossuet. A sociologia pode muito bem ter se tornado laica, mas nem por isso libertou-se desse gênero de preocupação. Comte transpôs magistralmente o pensamento de Bossuet, que ele tinha boas razões para admirar: para ele, toda a história da humanidade converge para a era e o reino de seu próprio positivismo, espécie de neocatolicismo laico. Aos olhos de Augustin Thierry, de Guizot e de outros historiadores filósofos, todo o curso da história europeia parecia convergir, por volta de 1830, para a Monarquia de Julho... A bem dizer, Comte não fundou a sociologia, e o que ele nos oferece sob esse nome é ainda uma simples filosofia da história, embora admiravelmente deduzida; é a última palavra em termos de filosofia da história. Como todos os “sistemas” que assim foram nomeados, sua con cepção apresenta-nos a história humana (ou melhor, essa mixórdia confusa de novelos multicoloridos) sob a aparência de uma única e mesma evolução, representação única e solitária de uma espécie de trilogia ou de tragédia única, agenciada segundo as regras do gênero, na qual tudo se encadeia, na qual cada um dos três estados encadeados se compõe de fases ligadas entre si, cada elo adaptado e encadeado exclusivamente ao elo seguinte, e na qual tudo se precipita irresistivelmente para o grande e derradeiro desenlace. Com Spencer, deu-se um grande passo em direção a um entendimento mais salutar da adaptação social: sua fórmula de evolução social já não é aplicável somente a um Drama único, e sim a um determinado número de Dramas sociais diferentes. Ao formular leis do desenvolvimento linguístico, religioso, econômico, político,
39 No original, "les cause-finaliers" (grifo do autor), expressão usada por Voltaire no seu Dictionnaire Philosophique. (N. doT.)
moral, estético, os evolucionistas de sua escola também admitem,
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ao menos implicitamente, que essas leis estão aptas a reger todos
meio de ação ao legado secular da humanidade, e que, por meio
os povos que existem ou existirão, e não apenas uma pequena
dessa contribuição, tornaram as relações entre os homens mais
parcela de povos aos quais reservamos o privilégio de serem cha
harmoniosas ao desenvolver a comunhão de seus pensamentos e
mados de históricos. Entretanto (ao mesmo tempo multiplicado e
a colaboração de seus esforços. De maneira inversa aos filósofos
com dimensões reduzidas), é sempre o mesmo erro que reapare
que acabei de mencionar, constato que somente o pormenor dos
ce: o de acreditar que, para observar nos fatos sociais o gradual
fatos humanos abriga adaptações notáveis, que é ali que reside o
surgimento da regularidade, da ordem, do encadeamento lógico,
princípio das harmonias menores que podem ser percebidas num
é preciso abandonar seus detalhes, essencialmente irregulares, e
domínio mais amplo, e que, quanto mais nos elevamos de um pe
elevar-se bem alto, até abraçar numa visão panorâmica os mais
queno grupo social bastante unido (família, escola, oficina, igreja
vastos conjuntos; que o princípio e a fonte de toda coordenação
local, convento, regimento) à cidade, à província e à nação, menos
social reside em algum fato de caráter muito geral do qual ela desce
notável e perfeita será a solidariedade. Em geral, existe mais lógica
gradualmente até os fatos particulares, porém enfraquecendo-se
numa frase do que em um discurso, e num discurso do que em uma
singularmente; e que, em resumo, o homem agita-se, mas é uma
série ou grupo de discursos; num rito singular do que em todo um
lei de evolução que o conduz.
credo; num artigo da lei do que em um código inteiro; numa teoria
Eu acredito que, de algum modo, é exatamente o contrário.
científica particular do que em todo um corpo científico; assim
Não é que eu negue que existam, entre as diversas e multiformes
como há mais lógica em cada tarefa executaçla por um trabalhador
evoluções históricas dos povos, como nos rios que correm numa mesma bacia, algumas inclinações comuns; e eu sei muito bem
do que no conjunto de sua conduta. Notemos que será assim a menos que uma potente indivi
que, se muitos desses riachos ou rios se perdem pelo caminho, os
dualidade intervenha para regulamentar e disciplinar os fatos de
demais, por uma série de confluentes, acabam por confundir-se
conjunto. Esse tipo de intervenção, aliás, tende a se tornar cada vez
numa mesma corrente geral que, apesar de sua divisão em braços
mais frequente, pois a civilização se caracteriza pelas facilidades
diversos, não parece destinada a fracionar-se em múltiplos estuá
que oferece à realização de um programa individual de reorgani
rios. Mas eu também vejo que a verdadeira causa desse derradeiro
zação social; e nesse caso, nem sempre é verdade que a harmonia
rio, nascido dos demais rios, dessa preponderância final de uma
dos agenciamentos esteja em razão inversa de sua massa: muitas
evolução social (a dos povos qualificados como históricos) entre
vezes, e cada vez mais frequentemente, as massas mais volumosas
todas as outras, é a série de descobertas da ciência e de inven
podem ser as mais harmoniosas. Por exemplo, a administração fran
ções da indústria que se acumularam sem cessar, utilizando-se
cesa, organizada pelo gênio despótico de Napoleão, está tão bem
reciprocamente, formando sistema e feixe, e cujo encadeamento
adaptada à sua finalidade geral quanto suas menores engrenagens
dialético real, não menos sinuoso, parece refletir-se vagamente no
aos seus próprios fins; a rede de estradas de ferro da Prússia está
dos povos que contribuíram para produzi-lo. E se remontarmos
tão bem adaptada à sua finalidade estratégica quanto cada uma de
à verdadeira fonte dessa grande corrente científica e industrial,
suas estações às suas próprias finalidades comerciais ou outras;
nós a encontraremos em cada um dos cérebros geniais, obscu
os sistemas de Kant, Hegel ou Spencer são tão coerentes em sua
ros ou célebres, que adicionaram uma verdade nova ou um novo
ordenação geral quanto algumas das pequenas teorias parciais que
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lhes servem como base. Uma legislação bem codificada pode apre
para que, em primeiro lugar, exista um dom para o consumidor, o
sentar tanta ordem no arranjo de suas seções e capítulos quanto
dom da coisa produzida (pois a troca é a dádiva tornada mútua, e
em cada uma das leis parciais que ela reúne na relação entre suas
como tal, vem depois da dádiva unilateral), é preciso que o produtor
diversas disposições; e quando uma religião foi retrabalhada por
tenha inicialmente duas ideias: a da necessidade do consumidor ou
uma teologia vigorosa, o encadeamento de seus dogmas pode ser
donatário, e a de um meio apto a satisfazê-la. A adaptação exterior
ou parecer mais lógico do que cada um deles considerado à par
que chamamos de dádiva, e em seguida de troca, não teria sido
te. No entanto, como é fácil perceber, esses fatos, aparentemente
possível sem essa adaptação interior de duas ideias. Do mesmo
contrários aos que foram expostos acima, na realidade contribuem
modo, a divisão de trabalho entre vários homens que executam
para mostrar que o gênio individual é a verdadeira fonte de toda
as diversas tarefas de uma mesma operação, anteriormente exe
harmonia social. Pois essas belas coordenações tiveram de ser
cutada por um único homem, não teria sido possível se ele não
concebidas antes de ser executadas; e antes de cobrir um território
tivesse a ideia de conceber essas diversas tarefas como partes de
imenso, elas começaram a existir sob a forma de uma ideia oculta em algumas células cerebrais.
um mesmo todo, como meios para um mesmo fim. No fundo de
Diremos agora que a adaptação social elementar é, no fundo, a
qualquer associação entre homens, existe originariamente, repito, uma associação entre as ideias de um mesmo homem.
que existe entre dois homens, um dos quais responde, com palavras
Não posso aceitar a objeção de que essa adaptação das
ou ações, à questão proposta pelo outro, plenamente verbalizada
ideias entre si só merece o nome de social quando ela se exprime
ou tácita? Pois a satisfação de uma necessidade, assim como a
numa adaptação dos homens entre si. Com efeito, ela muitas vezes
solução de um problema, é uma resposta a uma questão. Diremos
se exprime de outro modo, e mais ainda, parece que esse outro
então que essa harmonia elementar consiste na relação entre dois
gênero de expressão tende a prevalecer. Depois que o trabalho
homens, na qual um deles ensina e o outro aprende, um ordena e
realizado por um único homem foi substituído por uma divisão do
o outro obedece, um produz e o outro consome, na qual um é ator,
trabalho entre muitos homens, acontece com frequência que uma
poeta, artista, e o outro é espectador, leitor, amador? Ou diremos
nova invenção faça com que uma única máquina realize todas as
que eles se reuniram e fizeram uma obra em colaboração? Sim, é
fases da operação. Nesse caso, a divisão do trabalho, a associação
isso que diremos, pois embora nessa relação entre dois homens
das tarefas entre homens, só desempenhou o papel de um termo
esteja implicada uma relação entre modelo e cópia, trata-se de algo bem diferente.
médio entre a associação de ideias do primeiro criador da obra e
A meu ver, no entanto, é preciso levar a análise ainda mais
balhadores que a ideia de gênio se encarnou; ela foi materializada
longe e, como já indiquei, buscar a adaptação social elementar no
em pedaços de ferro e madeira. E esse caso tende a generalizar-se
próprio cérebro, no gênio individual do inventor. A invenção que
com a progressiva utilização de máquinas na produção. Suponham,
está destinada a ser imitada - pois aquela que permanece encer
embora isso seja impossível, que toda a produção humana seja
rada no espírito de seu autor não é socialmente relevante - é uma
realizada pelas máquinas. Já não haverá divisão do trabalho, pois
harmonia de ideias que é a mãe de todas as harmonias entre os
não haverá nenhum ou quase nenhum trabalho, e podemos dizer,
homens. Para que exista uma troca entre produtor e consumidor, e
se quisermos, que já não haverá harmonia social propriamente
a associação das engrenagens da máquina. Não é no grupo de tra
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dita, mas que a união social aumentará; porém essa união social,
É desse progresso intrínseco que queremos falar, ou seja,
ainda mais desejável do que a harmonia, não terá sido o efeito
da tendência de uma invenção, de uma adaptação social dada, a
dessas inumeráveis e infinitesimais adaptações cerebrais? Onde
se complicar e intensificar ao adaptar-se a outra invenção, a outra
encontrar fatores sociais mais potentes do que esses fatos, que seriam puramente individuais?
adaptação, engendrando desse modo uma nova adaptação que,
Nós acabamos de ver que a evolução da sociologia a condu
gênero, conduzirá a uma síntese mais alta, e assim por diante. Esses
ziu, tal como aconteceu em outros campos, a descer das alturas
dois progressos - o progresso de uma invenção em extensão por
quiméricas das causas vagas e grandiosas até as ações infinitesi
meio de sua propagação imitativa, e seu progresso em compreensão,
por meio de outros encontros e outras alianças lógicas do mesmo
mais, reais e precisas. Mostremos agora, ou melhor, assinalemos
de algum modo, por meio de uma série de alianças lógicas - são
- pois falta-nos espaço para uma exposição mais detalhada - que
certamente muito distintos, porém longe de serem inversamente
a evolução da realidade social, exatamente inversa à da ciência
proporcionais (apesar da oposição habitual, concernente a outros
social, consistiu na passagem gradual de uma infinidade de har
aspectos, entre a extensão e a compreensão das ideias), eles mar
monias muito pequenas a um menor número de harmonias maio
cham paralelamente e são inseparáveis. A cada aliança cerebral
res, e depois a um número muito reduzido de harmonias muito
de duas invenções em uma terceira —quando, por exemplo, a ideia
grandes, até chegar, num futuro ainda indefinido, à realização do
da roda e a ideia da domesticação do cavalo, depois de se propa
progresso social em uma civilização única e total, tão harmoniosa
garem independentemente (talvez durante séculos), se fundiram
quanto possível. Note-se que essa lei de alargamento progressivo
e harmonizaram na ideia de carro - foi preciso, necessariamente,
não deve ser compreendida aqui como a tendência à difusão imi-
que a imitação operasse para aproximá-las em um mesmo cérebro,
tativa de uma invenção ou grupo de invenções; isso seria voltar
tal como foi preciso, para o surgimento de cada uma delas, que
à lei da imitação, que nós já conhecemos. E nem mesmo se trata
seus elementos fossem trazidos para o espírito de seus autores por
do incessante alargamento que essa irradiação imitativa propor
meio de diversas irradiações de exemplos. Melhor ainda, a cada
ciona à harmonia social que chamamos de “divisão do trabalho”
síntese de novas invenções, geralmente é preciso uma irradiação
e que deveríamos antes chamar de “solidariedade dos trabalhos”.
imitativa mais vasta que as precedentes. Existe um entrelaçamento
Ainda que uma indústria permaneça a mesma, sem nenhum novo
contínuo entre essas duas progressões, a progressão imitativa,
progresso, a cooperação social que resulta dela crescerá à medida
uniformizadora, e a progressão inventiva, sistematizadora. Elas
que, por um lado, as necessidades de consumo que ela satisfaz, e
estão ligadas entre si por um vínculo que, sem dúvida, nada tem de
por outro, os atos de produção pelos quais ela supre essa deman
rigoroso (pois, por exemplo, uma série de árduos teoremas pôde
da, se propagarem por imitação para além da região, inicialmente
desenrolar-se no cérebro de um Arquimedes ou de um Newton
bastante circunscrita, onde ela nasceu. Por mais importante que
sem nenhuma contribuição de elementos trazidos por sábios
seja o fenômeno de crescimento dos mercados, habitual prelúdio
estrangeiros no decorrer de cada uma dessas descobertas), mas
da federação dos povos, não é ele que está em causa aqui. A bem
esse vínculo é suficientemente costumeiro para nos fazer acreditar
dizer, é muito raro que, sem nenhum progresso intrínseco da in
que constataremos um crescimento da extensão do campo social
dústria, esse progresso extrínseco possa realizar-se.
e da intensidade das comunicações sociais, e uma ampliação e
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aprofundamento das nacionalidades (senão dos Estados), sempre
conhecimentos40 e também é uma adaptação social; e está longe
que crescerem a riqueza das línguas, a beleza arquitetônica das teologias, a coesão das ciências, a complexidade e a codificação das
de ser uma das menos preciosas. Antes de prosseguir, façamos algumas importantes observa
leis, a organização espontânea ou a regulamentação dos trabalhos
ções. Em primeiro lugar, notemos a que ponto a ideia de adaptação
industriais, o regime financeiro, a coordenação e a complicação
torna-se mais clara e precisa quando passamos do mundo físico, ou
administrativas, os refinamentos e a variedade da literatura e das belas-artes.
mesmo do mundo vivo, ao mundo social. Será que sabemos com pre
Mais uma vez, no entanto, é preciso não confundir, como
com a qual ela se combina, ou o que é a adaptação de um grão de
muitas vezes acontece, o progresso da instrução, simples fato de imi
pólen ao óvulo que, fecundado por ele, dará nascimento a um novo
tação, e o progresso da ciência, fato de adaptação; nem o progresso
indivíduo que talvez seja o primeiro de uma nova raça? Nada sabe
da industrialização com o progresso da indústria, ou o progresso
mos sobre isso. É verdade que, no caso da interferência entre ondas
da moralidade com o progresso da moral, ou o progresso do mili
sonoras que, ao invés de se destruírem, se ajudam mutuamente e
tarismo com o progresso da arte militar, ou o progresso da língua,
produzem um reforço do som ou um timbre inesperado, nós estamos
entendido aqui como sua expansão territorial, com o progresso da
um pouco mais bem informados sobre a natureza do fenômeno; no
linguagem, entendido aqui como o refinamento de sua gramática
entanto, esse simples reforço do som, ou mesmo a produção desse
ou o enriquecimento de seu vocabulário. Tomemos estes dois ca
timbre (que é uma criação original somente do,ponto de vista sub
sos: a ciência progride enquanto a instrução para de expandir-se;
jetivo de nossas sensações acústicas) nada têm em comum com o
ou então há uma progressiva expansão da instrução enquanto a
fato, objetivamente inovador, da combinação química. Do mesmo
cisão o que é a adaptação de uma molécula ácida à molécula básica
ciência permanece estacionária. Serão eles equivalentes? E será
modo, quando duas espécies animais ou vegetais se encontram,
possível dizer, para falar um tanto vagamente, que houve nesses
ajudando e parasitando uma à outra, trata-se de um caso muito
dois casos um progresso das luzes? Não, pois essas coisas não
claro de mutualismo vital que proporciona um simples aumento
têm uma medida comum. Cada ganho da ciência, cada verdade que
de seu bem-estar e de sua propagação, e não deve ser confundido
se acrescenta ao seu agregado —ao seu adaptat —de proposições
com o caso da fecundação, que continua bastante obscuro. Mas
concordantes entre si, não é uma simples soma, mas antes uma
quando se produz uma feliz interferência, qualquer que seja, entre
multiplicação, uma confirmação recíproca. Mas cada aluno novo
duas irradiações imitativas, ela é sempre transparente para nossa
que se junta aos outros, cada nova edição de um exemplar cerebral
razão. Ela pode consistir simplesmente num estímulo mútuo - como
da ciência ensinada é apenas uma unidade extra adicionada às ou tras. Para sermos exatos, reconheçamos que existe aí algo mais do que uma adição: pois a comunhão de inteligência que resulta desse processo, por conta da similitude do ensinamento transmitido às diversas crianças, aumenta a confiança de cada uma delas em seus
40 Notemos de passagem que essa sim ilitude entre os ensinamentos somente é completa na escola primária, e que ela é menor na escola secundária, apesar da uniformidade dos programas de bacharelado [baccalauréat]; e ela é ainda menor nas instituições de ensino superior, onde o livre desacordo das doutrinas é tão frequente. Nota-se aqui o caráter subordinado e mediador da Contradição, da Discussão: o ensino superior, no qual ela reina, tende sempre a descambar no ensino secundário, no qual ela já é menos acentuada, e na escola primária, na qual ela não existe. Aqui as contradições dos cientistas não servem para nada, ou só servem para trazer à luz adaptações de verdades para uso futuro de professores rurais.
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a propagação das lâmpadas a gás favoreceu a do gás e vice-versa,
observação muito perspicaz a respeito da linguagem que sustenta
ou como a propagação da língua francesa favorece a da literatura
esta minha observação geral: “qualquer que seja o comprimento”,
francesa, que por sua vez a favorece. E também é possível que essa
diz ele, “de uma palavra composta, ela jamais compreende mais
interferência tenha uma eficácia mais profunda e provoque uma
do que dois termos. Essa regra não é arbitrária: ela decorre da
invenção nova, foco de uma nova imitação irradiadora - tal como a
natureza de nosso espírito que associa suas ideias em pares.” Em
propagação do cobre, ao encontrar-se com a do estanho, sugeriu a
outra passagem relativa às figuras esquemáticas pelas quais James
ideia da fabricação do bronze, ou como o conhecimento da álgebra
Darmesteter tentou tornar visível a evolução dos sentidos das pa
e da geometria sugeriram a Descartes a expressão algébrica das
lavras de acordo com diferentes vias, o mesmo autor escreve: “é
curvas. Mas nesse último caso, como no primeiro, vemos claramente
preciso lembrar que essas figuras complicadas só têm valor para
que a adaptação é uma relação lógica ou teleológica, e que ela sem
o linguista: aquele que inventa o novo sentido (de uma palavra)
pre se enquadra em um desses dois tipos: ora ela é, como a lei de
esquece momentaneamente todos os sentidos anteriores, salvo um,
Newton, tal como em qualquer lei científica, uma síntese de ideias
de maneira que as ideias sempre se associam de duas em duas.” E
que anteriormente não pareciam nem confirmar-se nem contradizer-
isso sempre acontece, tal como nas oposições entre ideias, como
-se, e que agora se confirmam mutuamente como consequências
já vimos. Seria fácil, porém tedioso, mostrar a generalidade desse
de um mesmo princípio; ora ela é, como numa máquina industrial
processo; bastaria flagrar sucessivamente cada descoberta ou
qualquer, uma síntese de ações que, outrora estranhas umas às
aperfeiçoamento no momento em que ela é adiçionada à descoberta
outras, se favorecem mutuamente através de uma engenhosa coli
anterior, seja na esfera científica, jurídica, econômica, política, ar
gação, meios solidários para um mesmo fim. A invenção do carro
tística ou moral. Em vez disso, é preferível indicar por que é assim,
(já complexa, como sabemos), a invenção do ferro, a invenção da
e como isso se torna possível e necessário.
força motriz do vapor, a invenção do pistão, a invenção do trilho:
Por um lado, isso se deve essencialmente ao fato de que a
tantas invenções que pareciam estranhas umas às outras e que se
marcha do espirito, seu funcionamento elementar, consiste em
solidarizaram na invenção da locomotiva.
passar de uma ideia a outra ligando as duas por um juízo ou por
Em segundo lugar, quer se trate de uma síntese de ações, de
uma volição: por um juízo que mostra a ideia do atributo implicada
uma invenção científica ou industrial, religiosa ou estética (em uma
na ideia do sujeito, ou por um ato de vontade que encara a ideia
palavra, teórica ou prática), podemos chamar de “acoplamento
do meio como estando implicada na ideia da finalidade. Por outro
lógico” o procedimento elementar que a formou. Com efeito, qual
lado, se o espírito passa de um juízo a outro juízo mais complexo,
quer que seja o número de ideias ou atos sintetizados numa teoria
e de uma volição a outra, mais compreensiva, é porque à força de
ou máquina, jamais existe uma combinação de mais do que dois
repetir-se mentalmente em virtude dessa dupla forma de imitação
elementos de cada vez, adaptados entre si no cérebro do inventor
de si mesmo, que chamamos de memória e hábito, um juízo ter
ou de cada um dos inventores que colaboraram sucessivamente
mina por enrodilhar-se numa noção, fusão de seus dois termos
para sua formação.41 Em sua Sémantique, Michel Bréal fez uma
doravante soldados e indistintos; e uma volição, um desígnio, acaba transformando-se num reflexo cada vez menos consciente.
41 Ver, no livro Lois de 1'imitation, o capítulo sobre as leis lógicas da imitação, sobretudo p. 175 e p. 195 e seguintes; e no livro Logique Sociale, o capítulo sobre as leis da invenção.
Por causa dessa transformação inevitável - que ocorre em larga
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Gabriel Tarde
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escala, socialmente, sob os nomes respeitáveis de tradição e costu
social, estou longe de contradizer a de um certo realismo social,
me - nossos antigos juízos tornam-se aptos a integrar, agora como
que precisaria ser definido - como, repito, essas realidades sociais
noções, um novo juízo; e nossos antigos desígnios tornam-se aptos
foram produzidas? Eu admito de bom grado que, uma vez que fo
a integrar um novo desígnio. Da mais baixa à mais alta operação
ram produzidas, elas se impõem ao indivíduo, às vezes de maneira
de nosso entendimento e de nossa vontade, esse procedimento é
coercitiva, o que é raro, e mais frequentemente por persuasão, por
o mesmo; e não existe descoberta teórica que seja algo além da
sugestão, pelo prazer singular de que gozamos, desde o berço, ao
junção judiciária de um atributo, ou seja, de antigos juízos, a um
nos impregnar com os exemplos dos mil modelos existentes em
novo sujeito, assim como não há descoberta prática que seja algo
nosso ambiente, como uma criança ao sugar o leite de sua mãe. Eu
além da junção voluntária de um meio, ou seja, de um antigo fim,
admito isso, mas como esses monumentos grandiosos aos quais
anteriormente desejado por si mesmo, a um novo fim. Por meio
me refiro foram construídos, e por quem, a não ser por homens e
dessa alternância, ao mesmo tempo tão simples e tão fecunda, de mudanças inversas que se sucedem indefinidamente, o juízo
esforços humanos? Quanto ao monumento científico, talvez o mais grandioso
e a finalidade de ontem se tornam a noção simples e o simples
de todos os monumentos humanos, não há dúvida possível. Ele
meio de hoje, que suscitarão o juízo ou a finalidade de amanhã,
foi construído sob a luz plena da história, e nós seguimos seu
e assim por diante; e foi de acordo com esse ritmo social, e tam
desenvolvimento praticamente desde seu inicio até os dias de
bém psicológico, que todos os grandes edifícios de descobertas
hoje. Que nossas ciências tenham sido no igício uma poeira de
e invenções que despertam nossa admiração foram construídos:
pequenas descobertas esparsas e sem ligação, que foram em se
nossas línguas, nossas religiões, nossas ciências, nossos códigos,
guida agrupadas - sendo cada um desses agrupamentos já uma
nossas administrações, e decerto nossa organização militar, nossas indústrias, nossas artes.
descoberta - em pequenas teorias que depois foram, por sua vez,
Quando consideramos uma dessas grandes coisas sociais
uma infinidade de outras descobertas, e enfim fortemente coligadas
- uma gramática, um código, uma teologia - o espírito individual
por inúmeras hipóteses lançadas sobre elas, elevadas invenções
parece tão diminuto ao pé desses monumentos, que a ideia de
do espírito unificador, tudo isso é indiscutível. Não existe lei, teoria
enxergar nele o único construtor dessas gigantescas catedrais
científica ou sistema filosófico que não exiba a assinatura de seu
parece ridícula aos olhos de alguns sociólogos; e como estes não
inventor. Tudo isso é de origem individual, tanto os materiais quanto
percebem que com isso renunciam à possibilidade de explicá-las,
os planos, os planos de conjunto e os planos de pormenor; tudo,
pode-se perfeitamente desculpá-los por serem levados a dizer que
até mesmo aquilo que agora é ensinado na escola primária e está
tais obras são eminentemente impessoais. Apenas mais um passo
difundido em todos os cérebros cultivados, foi no início o segredo
levaria a postular (como meu ilustre adversário Durkheim) que,
de um cérebro solitário, onde essa pequena lâmpada, tímida e tre-
longe de serem funções do indivíduo, elas são seus fatores, existindo
meluzente, irradiou com dificuldade numa estreita esfera, através
independentemente das pessoas humanas e governando-as despo
das contradições, até que, fortificada por sua expansão, tornou-se
ticamente ao projetar sobre elas sua sombra opressiva. Mas como
um luminoso farol.
essas realidades sociais - pois se eu combato a ideia do organismo
fundidas em teorias mais amplas, confirmadas ou retificadas por
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As Leis Sociais
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Mas se é evidente que a ciência foi construída desse modo,
dução desses grandes edifícios que nos dominam e nos protegem;
não é menos certo que a construção de um dogma, de um corpo
cada um de nós, por mais ortodoxo que pareça, tem sua própria
jurídico, de um governo ou de um regime econômico ocorreu da
religião, e por mais correto que pareça, tem sua própria língua,
mesma maneira; e se existem possíveis dúvidas no que diz respeito
sua própria moral; o mais vulgar dos cientistas tem sua própria
ã língua ou ã moral, é porque a obscuridade de suas origens e a
ciência, o mais rotineiro dos administradores tem sua própria arte
lentidão de suas transformações ocultam de nossos olhos a maior
administrativa. E assim como cada um tem sua pequena invenção,
parte de seu percurso, mas é muito provável que sua evolução tenha
consciente ou inconsciente, para acrescentar ao legado secular
seguido o mesmo caminho. Não é por meio de minúsculas criações
das coisas sociais das quais somos depositários passageiros, cada
de expressões imaginativas, de giros pitorescos, de novas palavras
um também gera uma irradiação imitativa (em sua esfera mais ou
ou novos sentidos que nossa língua se enriquece à nossa volta? E
menos limitada) que basta para prolongar seu achado além de sua
cada uma dessas inovações, pelo simples fato de ser geralmente
existência efêmera, e guardá-lo para os trabalhadores futuros que o
anônima, deixa por isso de ser uma iniciativa pessoal que, pouco
farão funcionar. A imitação, que socializa o individual, perpetua em
a pouco, vai sendo imitada? E não é desses achados expressivos,
toda parte as boas ideias, e ao perpetuá-las, as aproxima e fecunda.
vicejantes em cada língua, que as línguas em contato se servem
Acaso poderíamos dizer que, sendo dada a natureza eterna
reciprocamente para engrossar seu-dicionário e flexibilizar ou
das coisas e estando elas na presença do também persistente
mesmo complicar sua gramática? Não é também por uma série de
espírito humano, a ciência chegaria, mais cedo ou mais tarde, e
pequenas revoltas individuais contra a moral estabelecida, ou de
não importando por qual caminho de descobèrtas individuais, ao
pequenas adições aos seus preceitos, que essa moral sofre lentas
estágio atual e ao estágio em que nossos netos a conhecerão, e que
modificações? E não foi uma passagem através de fases suces
sua forma futura, clara e gloriosa, já estava predeterminada desde
sivas que conduziu de uma era muito antiga, na qual as línguas
as primeiras percepções do cérebro selvagem, e que por isso o
eram inumeráveis porém muito pobres, cada uma falada por uma
acidente do gênio ou o papel do indivíduo pouco importam, ou vão
horda, uma tribo, um burgo, e em que as morais eram também
perdendo a cada dia sua importância à medida que nos aproxima
muito numerosas, muito desiguais e muito simples, à nossa época,
mos da realidade ideal, platonicamente atrativa, cujos contornos
na qual um pequeno número de línguas muito ricas e de morais
já se deixam adivinhar? Mas se essa objeção fosse verdadeira, ela
muito complicadas estão prestes a disputar a futura hegemonia do globo terrestre?
teria de ser generalizada, e disso resultaria que, no decorrer de um
No entanto, é preciso conceder aos adversários da teoria
alternadamente umas das outras, uma irresistível atração de não
das causas individuais na história o mérito de perceber que ela foi
sei quais planos divinos, invisivelmente imperiosos, conduziria
falseada; e ela foi falseada na medida em que se falava de grandes
inevitavelmente a humanidade ao mesmo termo político, econô
homens lá onde era preciso falar de grandes ideias, muitas vezes
mico ou outro, à mesma constituição, à mesma indústria, à mesma
surgidas em homens muito pequenos, e mesmo de pequenas ideias,
língua, à mesma legislação final... Até o momento, não há nada mais
inovações infinitesimais trazidas por cada um de nós à obra comum.
contrário aos fatos do que essa visão, pois quanto mais as diversas
A verdade é que todos nós, ou quase todos, colaboramos na pro
civilizações que partilham a Terra - cristã, budista, islâmica - se
encadeamento qualquer de satisfações e necessidades, nascidas
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desenvolvem, mais sua originalidade e dessemelhança se acentu
novidade - uma nova palavra, um novo projeto de lei, uma nova
am. Entretanto, aquilo que me agrada nessa maneira de ver é que
teoria científica, um novo projeto industrial, etc. - é evidente que
ela é idealista, mas não o bastante, sendo por isso um idealismo
a inovação não foi introduzida à força, e sim por persuasão e doce
falho. O mundo não é movido por uma só ideia ou por um peque
sugestão. Vejam a maneira pela qual cresce o palácio das ciências.
no número de ideias situadas no ar; existem milhões e milhões
Uma teoria é longamente discutida no ensino superior antes de
que lutam pela glória de serem seus portadores. Essas ideias que
propagar-se sob a forma de uma hipótese mais ou menos prová
agitam o mundo são as ideias de seus próprios atores: cada um
vel, e ao descer para o ensino secundário ela já se afirma mais
deles batalhou para fazer triunfar a sua, sonho de reorganização
resolutamente; mas, por via de regra, ela só se torna um autêntico
local, nacional ou internacional, que se desenvolvia ao realizar-
dogma quando chega ao ensino primário, exercendo ou tentando
-se, e que mesmo sucumbindo podia avultar-se. Cada indivíduo
exercer sobre o espírito de seus partidários infantis, que aliás se
histórico foi um projeto de uma nova humanidade, e todo o seu ser
prestam a isso com a maior boa vontade do mundo, a coerção, de
individual, todo o seu esforço individual, não passou da afirmação
modo nenhum despótica, à qual nos referimos. Em outros termos,
desse universal fragmentário do qual ele era o portador. E desse
isso significa que seu atual caráter imperioso se estabeleceu em
sem-número de ideias, desses grandes programas patrióticos ou
virtude de sua persuasão anterior, e tudo isso por propagação
humanitários que dominam, como grandes bandeiras mutuamente
imitativa. O mesmo acontece quando uma novidade industrial se
despedaçadas, a mixórdia humana, talvez apenas uma sobreviva,
difunde: ela é um capricho da elite antes de ser uma necessidade
uma única dentre miríades, porém ela mesma terá sido individual
do público e de fazer parte daquilo que se considera necessário.
em sua origem, tendo jorrado do cérebro ou do coração de um
Pois o luxo de hoje é o necessário de amanhã, pela mesma razão
homem; e eu aceito a ideia de que seu triunfo tenha sido necessá
que o ensino superior de hoje é o ensino secundário, e mesmo o
rio, mas sua necessidade, que se revela retrospectivamente, que ninguém planejou de antemão, que ninguém poderia prever com
primário, de amanhã. Esse grande tema da adaptação social exigiria vários outros
certeza, não passa da expressão verbal da superioridade dos es
desenvolvimentos; tomarei a liberdade de remeter o leitor ao meu
forços individuais postos ao serviço dessa concepção individual.
livro sobre a Lógica Social, onde esbocei alguns deles. Aqui, porém,
Causa final e causas eficientes se confundem aqui, e não há motivo para distingui-las.
é preciso impor limites. Não preciso insistir muito na observação,
E é justamente porque toda construção social deve todos
mais as adaptações são múltiplas e precisas, mais aumentam as
os seus materiais, e mesmo todos os seus planos, a contribuições
inadaptações sociais, dolorosas, enigmáticas, que justificam tantas
individuais, que eu não poderia admitir aquilo que chegou a ser
queixas. Mas agora estamos aptos a dizer por que as harmonias
considerado o atributo essencial da realidade social: seu caráter
naturais, assim como as simetrias naturais, raramente são perfeitas,
soberano e dominador em relação ao indivíduo. Se assim fosse,
e por que elas se misturam (ou mesmo dão origem) a desarmonias
essa realidade jamais teria se desenvolvido e esses monumentos
e dissimetrias, que por sua vez poderão contribuir para suscitar
jamais poderiam ter sido edificados, pois em cada um de seus
adaptações e oposições mais altas. É que a adaptação perfeita e a
desenvolvimentos sucessivos causados pela introdução de uma
oposição perfeita são as duas extremidades de uma série infinita,
infelizmente muito óbvia, que estabelece a seguinte relação: quanto
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As Leis Sociais
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entre as quais se intercalam inumeráveis posições. Entre a confir
giosos, e também seus costumes e leis, e até mesmo sua moral, aos
mação absoluta de uma tese por outra e a contradição absoluta en
seus conhecimentos e necessidades, os indivíduos, principalmente
tre ambas, existe uma infinidade de contradições e de confirmações
aqueles que se sentem mais inadaptados ao seu meio (e talvez a si
parciais, sem mencionar a infinidade de graus de crença afirmativa
mesmos), também fazem esforços incessantes que desembocam
e negativa. Uma questão seguida de uma resposta: eis aí a invenção.
em pequenas descobertas acumuladas.43E de tempos em tempos
Porém mil respostas a uma questão dada são possíveis, cada vez
surge algum grande inventor, algum grande agenciador.
mais exatas e completas. Para a questão da necessidade de ver,
As desarmonias são, para as harmonias, o que as dissime-
o olho humano não é a única resposta; existem todos os olhos de
trias são para as simetrias, o que as variações são para as repeti
insetos, de pássaros, de moluscos. Para a questão da necessidade
ções. Ora, é apenas no seio das repetições precisas, das oposições
de fixar a fala, houve apenas a resposta do alfabeto fenício.
claras, das harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais ca
No seio de qualquer sociedade há uma infinidade de peque
racterísticas da diversidade, do pitoresco e da desordem universais,
nas ou grandes respostas às questões, e uma infinidade de novas questões que surgem dessas mesmas respostas; e é precisamente por causa disso que existe também um considerável número de pequenas ou grandes lutas entre partidários de soluções diferentes. A luta não passa de um choque de harmonias, mas esse choque não é, por certo, a única relação entre as harmonias; sua relação mais habitual é o acordo, a produção de uma harmonia superior. A cada instante, seja falando, seja trabalhando com qualquer coisa, nós experimentamos uma necessidade e a satisfazemos, e é essa série de satisfações ou soluções que constitui o discurso ou o trabalho, e também a política (interna ou externa), a diplomacia e a guerra, todas as formas de atividade humana. Os esforços incessantemente repetidos dos indivíduos de uma nação para adaptar sua língua ao devir de seu pensamento42acabam modificando e transformando gradualmente as línguas, bem como suscitando novas línguas. Se tivéssemos feito o registro de todos esses esforços sucessivos, tal como tentou fazer o abade Rousselot num recanto de La Charente, seria possível dizer o número preciso de adaptações linguísticas elementares que foram integradas numa modificação do som ou do sentido das palavras. Para adaptar seus dogmas e preceitos reli 42 Ver a esse respeito a Sémantique de Michel Bréal.
43 Se quisermos fazer da sociologia uma ciência verdadeiramente experimental e nela impri mir o mais profundo selo de precisão, é necessário, creio eu, contar com a colaboração de um grande número de observadores devotados e generalizar o m étodo do abade Rous selot no que ele tem de essencial. Suponham que vinte, trinta ou cinquenta sociólogos, nascidos em diferentes regiões da França ou em outros países, redijam separadamente, com o maior cuidado e minúcia possíveis, a série de pequenas transformações - de ordem política, econômica, etc. - que eles foram capazes de observar na sua pequena cidade ou vilarejo natal, e em primeiro lugar na sua vizinhança mais imediata; suponham que, em vez de limitar-se a generalidades, ele notem os pormenores das manifestações individuais de uma alta ou baixa da fé religiosa ou da fé política, de moralidade ou imoralidade, de luxo, de conforto, de uma modificação da crença política ou religiosa, ocorridas diante de seus olhos a partir da idade em que já fossem capazes de compreendê-las, em primeiro lugar na sua própria família e no seu círculo de amizades; suponham que eles se esforcem, como o ilustre linguista citado mais acima, para chegar à fonte individual dessas peque nas diminuições, ou aumentos, ou transformações de ideias e tendências, que a partir dali se propagaram num certo grupo de pessoas e que se traduzem por imperceptíveis mudanças na linguagem, nos gestos, na higiene, em hábitos quaisquer; suponham tudo isso, e vocês verão que desse conjunto de monografias similares, eminentem ente instru tivas, seria possível extrair as mais im portantes verdades, cujo conhecimento seria útil não apenas para o sociólogo mas tam bém para o homem de Estado. Essas monografias narrativas seriam profundamente diferentes das monografias descritivas, e bem mais esclarecedoras. Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso não é verdadeiro. Pode-se m uito bem acumular constatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados. Mas aquele que conhecer bem, com precisão de detalhes, a mudança de costumes em alguns pontos particulares, durante dez anos e num único país, não poderá deixar de pôr as mãos na fórmula geral das transformações sociais e, por conseguinte, das próprias formações sociais, aplicável em todos os países e em todos os tempos. Seria bom, para tal pesquisa, aplicar um questionário a princípio bastante limitado; poder-se-ia perguntar, por exemplo, em certas regiões rurais do Sul, por que e como se introduziu e propagou o hábito de deixar de cum prim entar os proprietários ricos da vizinhança, ou sob que influências se começa a perder a fé na bruxaria, nos lobisomens, etc.
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/\s Leis Sociais
Conclusão
ou seja, as fisionomias individuais. É pouca coisa, é coisa muito passageira, uma fisionomia de homem ou de mulher, afinada pela vida social, pela vida de imitação intensa, complicada e contínua. Mas nada é mais importante do que essa nuança fugidia. E o pintor não perdeu o tempo que gastou para fixá-la, tampouco o poeta ou o romancista que a faz reviver. O pensador não tem o direito de
*
hora de terminar, e para rematar, façamos um resumo
E
das principais conclusões às quais fomos conduzidos e busquemos sua significação de conjunto. Vimos que toda
sorrir diante de seus longos esforços para captar essa coisa quase
ciência vive de similitudes, de contrastes ou de simetrias, e de
inatingível que nunca havia existido e que jamais voltará a existir.
harmonias - ou seja, de repetições, oposições e adaptações -
Não existe ciência do individual, mas só existe arte do individual. E
e indagamos qual é a lei de cada um desses três termos, bem
o cientista, ponderando que a vida universal inteira está suspensa
como a relação de cada um deles com os demais. Vimos que
na floração da individualidade das pessoas, teria de considerar o
o espírito humano, apesar de sua propensão natural - que a
trabalho do artista com uma modéstia um tanto invejosa se ele
princípio parece tão legítima - a ater-se aos maiores fenômenos,
mesmo, imprimindo necessariamente seu estilo pessoal à sua con
aos mais imponentes, aos mais prestigiosos, para explicar os
cepção geral das coisas, não lhe desse sempre um valor estético,
menos visíveis, foi irresistivelmente conduzido a encontrar o
verdadeira razão de ser de seu pensamento.
princípio das coisas, em toda ordem de fatos, nos fatos mais recônditos, cuja fonte, a bem dizer, continua insondável para ele. Essa constatação deveria causar-lhe uma grande surpresa, mas não foi assim, pois o hábito da observação científica nos familiarizou com essa reversão da ordem sonhada pelo pen samento nascente. Assim, a lei da repetição, quer se trate da repetição ondulatória e gravitacional do mundo físico, ou da repetição hereditária e habitual do mundo vivo, ou da repetição imitativa do mundo social, é a tendência de passar por via de amplificação progressiva de um infinitesimal relativo a um infi nito relativo. A lei de oposição não é diferente: ela consiste em uma tendência a amplificar-se numa esfera sempre crescente a partir de um ponto vital. Socialmente, esse ponto é o cérebro de um indivíduo, a célula desse cérebro onde se produz, pela interferência de ondas imitativas vindas de fora, uma contra dição entre duas crenças ou dois desejos. Essa é a oposição social elementar, princípio inicial das mais sangrentas guerras, assim como a repetição social elementar é o fato individual do primeiro imitador, ponto de partida de um imenso contágio
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As Leis Sociais
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de moda. A lei de adaptação, por fim, assemelha-se às ante
pria e radiante, do fundo de um óvulo fecundado, do fundo de uma
riores: a adaptação social elementar é a invenção individual a
parte desse óvulo, de uma parte que quanto mais a procuramos,
ser imitada, ou seja, a feliz interferência entre duas imitações,
mais vai se circunscrevendo e esvanecendo, até não sei que ponto
inicialmente num único espírito; e a tendência dessa harmonia
inimaginável? Esse ponto, fonte de tamanha diferença, como julgá-
- que na origem é toda interior - é não somente exteriorizar-
-lo indiferenciado? Eu sei bem qual é a objeção que me aguarda:
-se ao se difundir, mas ainda acoplar-se logicamente, graças
a pretensa lei da instabilidade do homogêneo. Mas ela é falsa, ela
a essa difusão imitativa, com alguma outra invenção, e assim
é arbitrária, ela foi imaginada expressamente para conciliar um
por diante, até que, por meio de complicações e harmonizações
preconceito (o de acreditar que aquilo que é indistinto aos nossos
sucessivas de harmonias, apareçam essas grandes obras cole
olhos é indiferenciado em si mesmo) com a evidência das diversida-
tivas do espírito humano: uma gramática, uma teologia, uma
des fenomenais, das exuberantes variações viventes, psicológicas
enciclopédia, um corpo de direito, uma organização natural ou
e sociais. A verdade é que apenas o heterogêneo é instável, e que
artificial do trabalho, uma estética, uma moral.
o homogêneo é essencialmente estável. A estabilidade das coisas
111
Assim, em resumo, é certo que tudo vem do infinitesimal, e
está em razão direta de sua homogeneidade. A única coisa na Na
acrescentemos, é provável que tudo a ele retorne. Ele é o alfa e o
tureza que é (ou parece ser) perfeitamente homogênea é o Espaço
ômega. Tudo o que constitui o universo visível, acessível às nossas
geométrico, que não mudou desde Euclides. Tem-se a intenção de
observações, tudo isso provém, como sabemos, do invisível e do
dizer simplesmente que o menor germe de heterogeneidade, ao
impenetrável, de um nada aparente do qual sai, de maneira ines
ser introduzido num agregado relativamente homogêneo, como o
gotável, toda a realidade. Se nós refletíssemos sobre esse estranho
fermento na massa, provocará nele uma diferenciação crescente?
fenômeno, ficaríamos admirados com a potência do preconceito, ao
Isso eu contesto: num país ortodoxo, de unanimidade religiosa ou
mesmo tempo popular e científico, que faz com que todo mundo -
política, a introdução de uma heresia ou de uma dissidência tem
tanto um Spencer como um desavisado - olhe para o infinitesimal
muito mais chances de ser rapidamente reabsorvida ou expulsa do
como algo insignificante, ou seja, homogêneo, neutro, sem nada
que de crescer às expensas da Igreja ou da política reinantes. Eu não
de característico ou espiritual. Ilusão inextirpável! E ainda mais
nego a lei de diferenciação em suas aplicações orgânicas ou sociais,
inexplicável na medida em que também nós, como todos os seres,
mas ela estará sendo muito mal compreendida caso impeça a visão
estamos destinados a voltar em breve, pela morte, a esse infinitesi
da lei de uniformização crescente que se mistura e se entrelaça
mal de onde saímos, esse infinitesimal tão desprezado, que poderia
com ela. Na realidade, a diferenciação da qual se quer falar é antes
muito bem ser, no fundo - quem sabe? - todo o verdadeiro além, o
a adaptação da qual falamos; por exemplo, a divisão do trabalho
único refúgio póstumo, procurado em vão nos espaços infinitos...
em nossas sociedades não passa da associação ou coadaptação
Seja como for, que razão teríamos para julgar a priori, sem conhecer
progressiva de trabalhos diversos por meio de invenções sucessi
o mundo elementar, que apenas o mundo visível, o mundo espa
vas. Circunscrita em seus primórdios às tarefas caseiras, ela vai se
çoso e volumoso, é o teatro do pensamento, a sede de fenômenos
repetindo e ampliando sem cessar, estendendo-se primeiramente
variados e viventes? Como podemos supor tal coisa, quando a cada
à cidade, na qual as diversas tarefas, outrora semelhantes umas às
instante vemos emergir um ser individual, com sua fisionomia pró
outras, porém diferenciadas interiormente, tornam-se diferentes
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As Leis Sociais
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umas das outras, mas separadamente mais homogêneas; depois
tece a grande batalha pela vida que elimina os menos adaptados.
torna-se nacional, e em seguida internacional. Assim, não é verdade
Dessa forma, o subsolo misterioso do mundo fenomenal seria tão
que a diferença vá aumentando, pois se a cada instante aparecem
rico em diversidades - embora sejam outras diversidades - quanto
novidades e outras diferenças, também desaparecem antigas
o patamar das realidades superficiais.
diferenças; e levando em conta essa consideração, não teremos
Mas, no fim das contas, a metafísica aqui esboçada é de es
nenhuma razão para pensar que a soma das diferenças, se é que
cassa importância em relação a tudo que foi exposto até aqui, e é
é possível somar coisas que não têm uma medida comum, tenha
entre parênteses que eu lanço essa hipótese, fazendo observar que,
aumentado no universo. Algo muito mais importante do que um sim
mesmo rejeitada, ela deixará de pé as considerações mais sólidas
ples aumento de diferença acontece sem cessar: a diferenciação da
e positivas apresentadas anteriormente. Ela tão somente permite
própria diferença. A própria mudança vai mudando, e num sentido
abarcar, sob um mesmo ponto de vista, os dois tipos de verdades,
determinado, que nos encaminha de uma era de diferenças cruas
aparentemente estranhas entre si, que nós colhemos ao longo de
e justapostas, como de cores berrantes que não combinam, para
nosso caminho, a saber: aquelas que dizem respeito à progressão
uma era de diferenças harmoniosamente nuançadas. Seja lá o que
regular das repetições, das lutas, das harmonias universais, ao
se possa pensar dessa maneira de ver, é inconcebível que, segundo
aspecto regular do mundo, alimento da ciência; e aquelas relativas
a hipótese de uma substância homogênea eternamente submetida
ao aspecto selvagem do mundo, presa extraordinária da arte em
à disciplina niveladora e coordenadora das leis científicas, tivesse
perpétua renovação em face do que parece ser a eterna necessidade
jamais podido existir um universo como o nosso, deslumbrante
do diverso, do desordenado, graças ao próprio funcionamento da
em seu desmedido luxo de surpresas e caprichos. 0 que poderia
assimilação, da simetrização, da harmonização universais. Nada
nascer a partir do perfeitamente semelhante e perfeitamente regra
é mais fácil de compreender do que essa aparente anomalia, se
do, a não ser um mundo eterna e imensamente tedioso? Do mesmo
supormos que as originalidades subfenomenais das coisas traba
modo, a essa concepção corrente do universo como formado por
lham não para apagar-se, mas para florescer num nível mais alto.
uma poeira infinita de elementos, todos semelhantes no fundo e
A partir disso, tudo se explica; e assim como as relações
dos quais a diversidade teria emergido sabe-se lá como, eu me
mútuas entre os nossos três termos, repetição, oposição, adapta
permito opor minha concepção particular que o representa como
ção, são facilmente inteligíveis quando consideramos a repetição
a realização de uma multidão de virtualidades elementares,44cada
progressiva como algo que funciona a serviço da adaptação que
qual caracterizada e ambiciosa, cada qual trazendo em si seu uni
ela propaga e que, por suas interferências, ela desenvolve - mas
verso distinto, seu universo próprio e de sonho. Pois o número de
também como algo que às vezes funciona a favor da oposição, que
projetos abortados por ele é infinitamente maior do que o número
por interferências de outro tipo, ela também condiciona - pode-se
de projetos desenvolvidos; e é entre os sonhos concorrentes, entre
igualmente acreditar que todas as três colaboram para o floresci
os programas rivais, muito mais do que entre os seres, que acon
mento da variação universal sob suas formas individuais e pessoais mais elevadas, mais amplas e mais profundas.
44 Ver a esse respeito o estudo Monadologie et Sociologie, publicado em EssaisetMélanges, Paris-Lyon, Storck et Masson, 1895. [Existe uma tradução brasileira: Monodologia e socio logia e outros ensaios, trad. de Paulo Neves, São Paulo, Cosac Naify, 2007. (N. do T.)]
(Outubro de 1897)