As leis sociais - Um esboço de sociologia 9788522806690


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As leis sociais - Um esboço de sociologia
 9788522806690

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Gabriel Tarde

COLEÇÃO RIZOM AS - VOL. 1

Um campo social dirigido pela técnica, pelo consumo e pelas exigências do mercado não é apenas danoso ao meio ambiente: ele é tam bém nocivo à subjetividade de seus membros. Parece mesmo haver uma relação direta: quanto mais cresce o prodigioso corpo das sociedades m odernas - mais máquinas, mais dispositivos, mais imagens, mais circulação de mercadorias - mais as subjetividades são diminuídas e amesquinhadas. Como disse Bergson, seria preciso inventar um a alma à altura desse corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades de vida. Cada cérebro é nele mesmo um rizom a que se ramifica em tantos outros rizomas; e se plantar árvores é muito bom, m elhor ainda é cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns nos outros. A c o l e ç ã o r i z o m a s , voltada para a tradução de grandes pensadores contem porâneos, foi concebida como um estímulo a esse esforço, que é de todos e de cada um.

As Leis Sociais um esboço de sociologia Tradução e notas de Frantisco Traverso Fuchs

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U niv ers id ad e

Federal Flum in en s e

editora da UFF

Editora da UFF

© 2012 by Francisco T. Fuchs (Tradução brasileira)

Sumário

Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - Niterói - CEP. 24220900 — R J — Brasil — Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: 2629-5288 - www.eduff.uff.br E-mai 1: [email protected] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Prefácio, 17

Norm alização: Uilza Cláudia Rufmo Damasceno Concepção de capa: F. T. Fuchs Capa e projeto gráfico: Marcos Antonio de Jesus Desenho da capa: M.C. Escher’s “Symmetry Drawing E21” © 2010 The M.C. Escher Company-Holland. A li rights reserved.

________ Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) T181

Nota do tradutor, 7

Tarde, Gabriel 1843-1904

Introdução, 19 Primeiro Capítulo Repetição dos fenômenos, 23

As leis sociais: um esboço de Sociologia/Gabriel Tarde; tradução e notas: Francisco Traverso Fuchs - Niterói: Editora da UFF, 2011. 114 p. ; 21cm.

Segundo Capítulo O posição dos fenômenos, 49

ISBN: 978-85-228-0669-0

Tradução de Les lois sociales. Esquisse d ’une sociologie. 1. Sociologia

I. Título

_______

CDD 301

Terceiro Capítulo A daptação dos fenômenos, 83

Universidade Federal Fluminense Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Antonio Claudio Lucas da D iretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos Seção de E ditoração e Produção: Ricardo Borges Seção de Distribuição: Luciene P. de Moraes Seção de C om unicação e Eventos: Ana Paula Campos C om issão Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos A na Maria Martensen Roland Kaleff Eurídice Figueiredo Gizlene Neder Heraldo Silva da Costa Mattos Humberto Fernandes Machado Luiz Sérgio de Oliveira Marco Antonio Sloboda Cortez Maria Lais Pereira da Silva Renato de Souza Bravo E d ito ra filia d a a

Rita Leal Paixão Simoni Lahud Guedes

A sso c ia ç ã o Bra sile ira d a s E d ito ra s U n iv e rsitá ria s

Tania de Vasconcellos

Conclusão, 109

Nota do tradutor Jean-Gabriel de Tarde nasceu em Sarlat (hoje Sarlat-la-Canéda) no ano de 1843. Passou metade da vida servindo como juiz na região de Dordogne, mas em 1894 foi nomeado diretor do serviço de estatística judiciária do Ministério da Justiça, saindo da província para viver em Paris. Dois anos depois, começou a le­ cionar na École Libre des Sciences Politiques, e posteriormente no Collège Libre des Sciences Sociales, onde proferiu as conferências reunidas neste livro. No início de 1900 obteve a cadeira de Filosofia Moderna no Collège de France,1que ocupou até 1904, ano de sua morte. Celebrado em sua época como o grande nome da sociologia francesa, Tarde polemizou com Lombroso e Durkheim e escreveu obras que ajudaram a fundar a sociologia e a criminologia moder­ nas. Já nos primeiros anos do século XX, no entanto, a situação se inverteu a favor de Durkheim, que tornou-se o principal representante da sociologia como disciplina científica, ao passo que Tarde havia sido evacua­ do para a prestigiosa (porém irrelevante) posição de mero “precursor” - e um precursor não muito bom, já que havia sido marcado para sempre pelos pecados do “psicologismo” e do “espiritualismo”.2

Muitos anos se passariam até que o panorama mudasse novamente, desta vez em favor de Tarde. Pode-se dizer que essa virada começou a acontecer em 1968, quando Gilles Deleuze o apresentou como o inventor de uma nova dialética da diferença e 1 Bergson, que também havia concorrido a essa vaga, obteve três meses depois a cadeira de Filosofia Grega e Latina, assumindo após a m orte deTarde a cadeira de Filosofia Moderna. Bergson, Henri. Mélanges, Paris, PUF, 1972, p. 415,417 e 637. 2 Latour, Bruno. Gabriel Tarde and the End o fth e Social, w ww .bruno-latour.fr/sites/default/ files/82-TARDE-JOYCE-SOCIAL-GB.pdf (acessado em 11 de agosto de 2010).

8

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

9

da repetição.3Com efeito, graças a Deleuze, Latour e outros, temos

deiras repetições, oposições e adaptações, e que a sociologia só

hoje uma ideia muito mais adequada a respeito do pensamento de

ganhará status de ciência a partir do momento em que fizer o mes­

Tarde e de sua importância.

mo. Ora, para alcançar esse objetivo, a sociologia precisa descer

As Leis Sociais, publicado originalmente em 1898 a partir de

até os “fatos elementares”, infinitesimais, que são também os fatos

uma série de conferências realizadas no ano anterior, oferece uma

“verdadeiramente explicativos”. Assim como a biologia descobriu

breve síntese do pensamento tardeano e é uma excelente introdu­

na célula e na atividade celular o fato biológico elementar, é preciso

ção à obra de Gabriel Tarde. 0 autor não apenas apresenta neste

que a sociologia descubra o fato social elementar. Isso equivale a

livro seus três conceitos fundamentais, abordados separadamente

dizer que, para ultrapassar as analogias vãs e as entidades imagi­

em livros anteriores, mas também mostra as relações existentes

nárias que ainda encontravam eco na sociologia de sua época (por

entre eles, estabelecendo toda uma hierarquia complexa entre a

exemplo, as analogias entre as sociedades e os organismos vivos,

repetição, a oposição e a adaptação ou invenção. Trabalhando simul­

a crença no suposto “gênio” de um povo ou de uma raça, a socie­

taneamente no plano da epistemologia e da ciência, Tarde procura

dade como uma espécie de “pessoa divina” exterior e superior aos

mostrar que os fenómenos físicos, biológicos e sociais se produzem

indivíduos, moldando-os sem jamais ser por eles moldada), Tarde

a partir de inumeráveis repetições, oposições e adaptações, e que

precisava descer até o plano molecular da sociedade, lá onde ela é

o conhecimento é primeiramente construído a partir da percepção

efetivamente produzida por movimentos reais: ou seja, por atos de

de repetições, oposições e adaptações “grandiosas” - vagas, impre­

indivíduos sobre indivíduos. No entanto, assim como o átomo não

cisas ou mesmo francamente errôneas - e vai ganhando contornos

é o limite absoluto da matéria, o indivíduo não constitui o termo

mais precisos à medida que repetições, oposições e adaptações

último de um campo social. Aquém do indivíduo existe algo que é

menos grosseiras vão sendo percebidas:

pré-individual, e embora o indivíduo seja o único agente social, ele mesmo só pode ser compreendido a partir dos elementos infinite­

É justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do

simais que o constituem. Esses elementos são os desejos e crenças

pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho inver­

que atravessam os indivíduos e que se propagam, se opõem e se

tido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno

adaptam em seu percurso. Não é que Tarde transforme os homens

e, pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares

em impessoais “portadores” de desejos e crenças; é antes como

verdadeiramente explicativos em último lugar.4

se o indivíduo produzisse sua diferença justamente no jogo aberto entre os desejos e crenças que o atravessam e que ele incorpora,

A tese central defendida por Tarde neste seu esboço de

opõe ou modifica, dando origem (nesse último caso) a um novo

sociologia é a de que todas as ciências atingiram a maturidade ao

desejo ou crença. Se a Ciência tem por objeto aquilo que se repete,

descobrir e compreender, em seus respectivos objetos, as verda­

apenas a Arte poderá dar conta dessas singularidades que são os indivíduos; mas se os indivíduos são sui generis, é porque cada

3 Deleuze, Gilles. DifférenceetRépétition, Paris, PUF, 1981 (1968), p. 38,104."0 conjunto da filosofia de Tarde se apresenta deste modo: uma dialética da diferença e da repetição, que funda sobre toda uma cosmologia a possibilidade de uma microssociologia.” 4 Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, Paris, Félix Alcan, 1898, p. 88.

um deles é um lance de dados único, lançado e relançado a cada momento a partir das singularidades pré-individuais (desejos e crenças) que o atravessam e constituem. E se porventura uma

10

Gabriel Tarde

As Leis Sociais

11

sociedade qualquer também apresenta esse aspecto sui generis, é

Para concluir esta breve apresentação, gostaria de chamar a

simplesmente porque ela é a integral de todos esses lances de da­

atenção para um ponto que me parece essencial. Nenhum homem,

dos, a integração dinâmica de múltiplos processos de diferenciação.

ainda que seja um visionário, consegue escapar inteiramente à sua

Atento à revolução introduzida pelo cálculo diferencial e integral,

época, e o leitor atento há de verificar, ao ler as entrelinhas (ou as

Tarde esboçará (curiosamente, numa nota de pé de página) todo

linhas mesmas) desta ou daquela passagem, que Tarde é um autor

um método sociológico baseado em registros monográficos das

do século XIX. Nada há de surpreendente nisso; em compensação,

variações pontuais de desejos e crenças.5Por fim, à guisa de con­

o que é verdadeiramente espantoso é que esse pensador intempes­

clusão, Tarde retorna a um tema esboçado na primeira conferência

tivo, que não se alinhou a nenhuma escola ou corrente ideológica,

e apresenta (ainda que à margem, como ele mesmo diz) algumas

pudesse estar tão à frente de seu tempo. Segundo Bergson, o

especulações cosmológicas sobre a natureza da própria matéria

pensamento de Tarde

(o infinitesimal no sentido absoluto), que, segundo ele, não é uma “poeira infinita” de elementos homogêneos, mas uma “multidão de

nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver nas iniciati­

virtualidades elementares”.

vas individuais e em sua irradiação a verdadeira causa do que se faz numa sociedade, e mesmo do que acontece no mundo. Seduzidos pelos admiráveis sucessos das ciências físicas, nós nos inclinamos excessivamente a construir as

Eu diria que Tarde é um autor infinitamente mais fácil de ler

ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como prin-

do que de traduzir. Suas longas frases repletas de interpolações não chegam a dificultar a leitura, mas sem dúvida põem qualquer tradu­ tor à prova. Tentei interferir o mínimo possível no estilo tardeano, ainda que algumas vezes tenha me sentido forçado, para efeito de clareza, a alterar a pontuação e o ritmo das frases. Também tentei não multiplicar desnecessariamente o número de notas, servindo-me desse recurso ora para fornecer uma rápida referência, ora para apontar uma curiosidade de estilo do texto original. Com relação ao aspecto técnico ou conceituai da tradução, houve apenas uma dificuldade realmente digna de nota.6 5 "Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso nâo é verdadeiro. Pode-se m uito bem acumular cons­ tatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados." Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, op. cit., p. 154. 6 Tarde usa como noções correlatas as locuções rayon im ita tif e rayonnement im ita tif (literalmente, "raio im itativo" e "irradiação imitativa"). Como notou Bruno Latour (op. cit.), a locução raio im itativo é um tanto extravagante, e o próprio Tarde não a usou em

Lois de L'Imitation, embora tenha usado a locução courant im ita tif (corrente im itativa). Assim, meu prim eiro im pulso foi o de usar a palavra "corrente". Entretanto, ao traduzir-se rayon por corrente quebra-se o vínculo etim ológico (e acima de tu d o o vínculo iógico) entre o rayon (do qual todos os imitadores participam ) e o rayonnement, que remete à fonte de uma novidade, ao seu inventor ou agenciador. Ficaria enfraquecida a im portante analogia que o autor estabelece entre as"correntes im itativas"e as ondas físicas: o leitor tenderia a pensar a "corrente" mais como uma "continuidade de ligação entre elos" do que como um fluxo que possui uma origem definida e qúe pode inter­ ferir em o utro fluxo, ou seja, como algo semelhante a uma onda eletromagnética. Por fim , essa escolha tornaria mais difícil, para o leitor de língua portuguesa, a distinção entre as ocorrências de rayon e de courant no texto original. M inha segunda opção foi o uso do term o onda para traduzir rayon. Nesse caso, somente o vínculo etim ológico seria perdido; e nas passagens em que Tarde realmente utiliza o term o onde (onda), ele sempre se refere explicitam ente a ondas físicas, o que tornaria mais fácil distinguir os dois usos. No entanto, embora tenha achado essa solução (onda im itativa), que foi aliás utilizada por Bergson, a mais elegante de todas, acabei optando pela tradução literal da palavra rayon e de todas as locuções de que ela participa; raio, raio imitativo, raios de exemplos. Se os próprios franceses experim entam um estranhamento diante da escolha original de Tarde, não há razão para suprim ir essa estranheza na tradução. Obviamente, essa escolha resolve, em definitivo, todas as dificuldades mencionadas acima. Por fim, a palavra "irradiação" me pareceu, em todos os casos, bem m elhor do que "influência", que é um dos significados de rayonnement e que seria uma tradução aceitável em determ inados contextos.

12

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

13

cípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis

progressiva transformação do homem num homo economicus, sim­

inelutáveis, anos representar os acontecimentos históricos

ples apêndice descartável de um sistema globalizado de produção

como resultados necessários de forças cegas, impessoais,

de bens e serviços.8

que se comporiam entre si mecanicamente. Contra essa

Diante desse quadro sombrio, a microssociologia de Tarde

tendência, que se tornou natural ao nosso espírito, toda

é uma rajada de ar fresco. Ela vem nos mostrar que tudo, absolu­

a filosofia de Tarde protesta. As sociedades humanas são,

tamente tudo, vem precisamente do infinitesimal, e que a solução

sem dúvida, atravessadas por correntes; mas na origem de

dos nossos problemas talvez não venha de um único e grandioso

cada corrente há uma impulsão, e es sa impulsão vem de um

projeto de sociedade, mas de pequenas ações e pensamentos ino­

homem. Assim como a história de cada um de nós se explica

vadores capazes de infiltrar-se como a água e espalhar-se como

pelas iniciativas tomadas e pelos hábitos contraídos, a vida

o fogo. Assim como as moléculas são o infinitesimal da vida e as

das sociedades é feita de invenções que surgiram aqui e ali

partículas são o infinitesimal da matéria, nós somos - com nossos

e das modificações duráveis a que essas invenções condu­

desejos e crenças - o infinitesimal da sociedade. E em todos os

ziram ao serem adotadas.7

níveis, a potência inventiva está no infinitesimal. Evidentemente, nossos hábitos de pensamento tendem a

O que essas palavras - e, portanto, o pensamento de Tarde

rejeitar essa maneira de perceber a realidade social. Confron­

- têm a ver com nossa existência concreta, aqui e agora, para além

tados com ela, nossa primeira reação será a de dizer que seria

(ou aquém) de todas as querelas acadêmicas? Vivemos uma época

muita pretensão pensar que podemos fazer alguma diferença na

difícil, marcada pelo fim das utopias, pela consolidação de uma

imensa ordem das coisas. Mas não seria exatamente o contrário?

ordem mundial nada auspiciosa (que valoriza somente nossa força

Não estaríamos sendo pretensiosos ao afirmar a existência de

de trabalho e nossa capacidade de consumo) e por uma crescente

limites a respeito dos quais nada sabemos? Pois a verdade é que

dissolução do campo social. E nós vivemos o fim das utopias mais

não sabemos, e jamais poderíamos saber de antemão, qual será o

ou menos do mesmo modo que Nietzsche descreveu a derrocada

alcance da menor das nossas ações e do mais casual dos nossos

dos valores superiores: como se a ausência desses projetos de

pensamentos. Hoje, quem nos sugere essa maneira de ver é a pró­

futuro decretasse a desvalorização generalizada da vida, a perda

pria ciência contemporânea (tão diferente da ciência na época de

do sentido, a total impossibilidade de ação, a vigência do cinismo.

Tarde), uma vez que o chamado efeito borboleta aplica-se também

Nós nos sentimos - e esse me parece ser o ponto crucial - peque­

às realidades sociais. Mas será que podemos atribuir essa maneira

nos demais diante das enormes mudanças que teriam de ocorrer

de ver a Gabriel Tarde sem com isso projetar retrospectivamente

e das potências que supostamente teríamos de enfrentar. Em uma

uma teoria científica relativamente recente no pensamento de um

palavra, nós nos sentimos infinitesimais diante de um onipresente

autor do século XIX? Sim, nós podemos e mesmo devemos fazê-lo,

“sistema” ao qual nada escapa e que não saberíamos ou poderíamos

como sugere este texto admirável que Bergson escreveu a respeito

modificar. Afinal, já não temos um projeto que pudéssemos opor à

de seu colega no Collège de France;

7 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélangés, op.cit., p. 799-800.

Obviamente, não estou levando em consideração projetos de sociedade de caráter explicitamente totalitário ou teocrático, ou seja, antidemocráticos por excelência.

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Gabriel Tarde

As Leis Sociais

15

Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode acar­

responderam que isso era psicologia ou inter-psicologia, e

retar consequências incalculáveis, como um simples gesto

não sociologia. Mas isso não é verdade a não ser na aparên­

individual, caindo no meio social como uma pedra na água

cia, ou numa primeira aproximação: uma micro-imitação

de uma bacia, o abala por inteiro por meio de ondas imita-

parece ir, com efeito, de um indivíduo a outro. Ao mesmo

tivas que vão sempre se alargando, ela [a obra de Tarde]

tempo, e mais profundamente, ela remete a um fluxo ou a

nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade.

uma onda, e não ao indivíduo... A imitação, a oposição e a

Revelando-nos tudo o que devemos a outrem, inventores em

invenção infinitesimais são como quanta de fluxos, que mar­

certos momentos, mas imitadores durante a vida inteira, ela

cam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação

esclarece e fortifica em nós o sentimento de solidariedade.

de crenças e desejos.10

Remetendo ao costume muitas coisas que normalmente con­ sideramos como pertencentes à natureza; fazendo remontar

O que pode acontecer quando estudantes fazem uma reivin­

apensamentos individuais, a vontades individuais, aorigem

dicação? Ou então: qual é a potência de uma ideia nova, ou talvez

de transformações profundas da sociedade e da humanida­

nem tão nova assim, porém formulada de uma nova maneira? Qual

de, ela nos desabitua a crer em fatalidades históricas; ela

é a potência da mais inocente das crenças, do mais inocente dos

nos convida a agir, a ganhar confiança em nós mesmos, a

desejos? Não se sabe, não se pode sabê-lo de antemão. Eu diria que

jamais desesperar com o presente, a encarar tranquilamente

Tarde é um autor revolucionário: a revolução é que nao era o que

o porvir. Para além da inteligência à qual se dirige, é a von­

pensávamos. “Tarde preocupou-se muito menos com a natureza

tade que ela atinge, estimula e torna mais firme.9

íntima dos elementos, seu estado original e seu estado final, do que com sua ação recíproca”.11 O segredo de um devir revolucionário,

Talvez estejamos demasiadamente acostumados a pensar

que por sinal nada tem a ver com as “metas” de uma revolução, não

em termos de grandes projetos e de grandiosas finalidades para

depende necessariamente de barricadas, mas certamente envolve

que possamos compreender de imediato o alcance dessas pala­

essa ação recíproca entre os homens —para além do otimismo e

vras. Longe de constituírem uma exaltação das prerrogativas da

do pessimismo, das utopias e distopias, para além do desespero

consciência, o que seria um total contrassenso na medida em que

e da própria esperança.

remeteria ainda ao plano dos projetos e finalidades, elas se referem a forças que atravessam os indivíduos e, consequentemente, um campo social dado. Pois esse gesto ou iniciativa “individual” de que fala Bergson envolve precisamente algo que é de outra natureza: um puro fluxo de desejo ou crença. Os partidários de Durkheim

9 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 800-801. Grifo meu.

10 Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Mille Plateaux, Paris, De minuit, 1980, p. 267. " Bergson, Henri. Préface aux "Pages Choisies"de G. Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 812.

Prefácio Neste pequeno volume, que contém a substância de várias conferên­ cias realizadas no Collège libre des sciences sociales em outubro de 1897, tentei oferecer não somente nem precisamente o resumo ou a quintessência de minhas três obras principais de sociologia geral as Leis da Imitação, a Oposição Social e a Lógica Social - mas ainda, e acima de tudo, o laço íntimo que as une. Essa conexão, que pode muito bem ter escapado ao leitor desses livros, é aqui iluminada por considerações de ordem mais geral. Elas permitem, ao que me parece, abarcar num mesmo ponto de vista esses três pedaços, pu­ blicados separadamente, de um mesmo pensamento, esses membra disjecta12de um mesmo corpo de ideias. Talvez me digam que desde o início eu poderia ter apresentado num todo sistemático o que dividi em três publicações. Mas as obras em vários volumes afugentam, e com alguma razão, o leitor contemporâneo; além disso, para que fatigar-nos com essas grandes construções unitárias, com esses edifícios completos? Se aqueles que nos acompanham terão tanta pressa em demolir essas edificações para servir-se de seus materiais ou apropriar-se de um pavilhão destacado, mais vale poupar-lhes o trabalho da demolição e entregar-lhes o pensamento em fragmen­ tos. Todavia, para uso dos espíritos singulares que se comprazem em reconstruir aquilo que se lhes oferece em estado fragmentado, tal como outros em quebrar aquilo que se lhes apresenta acabado, talvez não seja inútil juntar às partes esparsas da obra um desenho, um esboço que indique o plano de conjunto que teríamos executado com gosto se para tanto tivéssemos sentido a força e a audácia. Essa é toda a razão de ser desta pequena brochura. G.T. Abril de 1898.

12 Tradução livre: partes dispersas, separadas. (N. do T.)

Introdução

A

o percorrer o museu da história e a sucessão de seus quadros multicoloridos e heteróclitos, ao viajar através dos povos, todos eles diversos e cambiantes, a primeira

impressão do observador superficial é a de que os ienômenos da

vida social escapam a qualquer fórmula geral, a qualquer lei cien­ tífica, e que a pretensão de fundar uma sociologia é uma quimera. Mas os primeiros pastores que observaram o céu estrelado e os primeiros agricultores que tentaram adivinhar os segredos da vida das plantas devem ter ficado igualmente impressionados pela resplandecente desordem do firmamento, pela multiformidade de seus meteoros, pela exuberante diversidade das formas vegetais e animais; e a ideia de explicar o céu e a floresta por um pequeno número de noções logicamente encadeadas sob o nome de astro­ nomia e de biologia, essa ideia, se ela pudesse ocorrer-lhes, teria sido a seus olhos o cúmulo da extravagância. Com efeito, não existe menos complicação, irregularidade real e aparente capricho no mundo dos meteoros ou no interior de uma floresta virgem do que na balbúrdia da história humana. Como, então, a despeito da sinuosa diversidade dos estados celestes ou dos estados silvestres, das coisas físicas ou das coisas viventes, chegou-se a gerar e fazer crescer, pouco a pouco, um embrião de mecânica ou de biologia? Isso se deve a três condi­ ções que importa distinguir claramente para formular uma noção precisa e completa de como convém entender esse substantivo e esse adjetivo tão utilizados, ciência e científico. Em primeiro lugar, começou-se a perceber algumas similitudes no meio dessas diferenças, algumas repetições entre essas variações: os retornos periódicos dos mesmos estados do céu, das mesmas estações, o curso regularmente repetido das idades - juventude, maturidade, velhice - no seres vivos, e os traços comuns aos indivíduos de uma

20

/AsLeis Sociais

Gabriel Tarde

21

mesma espécie. Não existe ciência do individual considerado nele

Assim, a ciência consiste em considerar uma realidade qual­

mesmo; só existe ciência do geral, ou seja, do indivíduo conside­

quer sob três aspectos: as repetições, as oposições e as adaptações

rado como repetido ou suscetível de ser repetido indefinidamente.

que ela encerra, e que tantas variações, tantas dissimetrias, tantas

A ciência é uma ordenação de fenômenos encarados pelo viés

desarmonias impedem de ver. A relação entre causa e efeito não

de suas repetições. Isso não quer dizer que diferenciar não seja um

constitui, por ela mesma, o elemento próprio do conhecimento

dos procedimentos essenciais do espírito científico. Diferenciar,

científico. Se assim fosse, a história pragmática, que é sempre um

tanto quanto assimilar, é fazer ciência; mas somente na medida

encadeamento de causas e efeitos, e que sempre nos ensina que

em que a coisa que se discerne é um tipo extraído, na natureza,

tal batalha ou tal insurreição teve tais consequências, seria o mais

de um certo número de exemplares, e mesmo suscetível de ser

perfeito exemplar da ciência. Sabemos, no entanto, que a história

reeditado indefinidamente. Pode-se descobrir um tipo específico

só se torna uma ciência na medida em que as relações de causa­

e caracterizá-lo claramente, mas se ele for julgado como sendo o

lidade que ela assinala aparecem como estabelecidas entre uma

privilégio de um indivíduo único, incapaz de ser transmitido à sua

causa geral, suscetível de repetição ou repetindo-se de fato, e um

posteridade, não terá interesse para o cientista senão a título de curiosidade teratológica.

efeito geral, não menos repetido ou suscetível de sê-lo. Por outro

Repetição significa repetição conservadora, causação sim­

quando ela a postula sob o nome de função, é dissimulando-a sob

ples e elementar sem nenhuma criação, pois - como mostram a

uma equação. No entanto, a matemática é^uma ciência e mesmo o

transmissão de movimento de um corpo a outro ou a comunicação

protótipo da ciência. Por quê? Porque em parte alguma é realizada

da vida de um ser vivo ao rebento que dele nasceu - o efeito re­

uma eliminação tão completa do lado dessemelhante e individual

produz a causa de maneira elementar. Mas também a destruição

das coisas, em lugar algum elas se apresentam sob o aspecto de

dos fenômenos, e não apenas sua reprodução, é importante para a

uma repetição tão precisa e tão definida, e de uma oposição tão

ciência. Assim, seja qual for a região da realidade à qual se aplique, a

simétrica. A grande lacuna da matemática é a de não enxergar,

ciência deve buscar, em segundo lugar, as oposições que ali existem

ou enxergar mal, as adaptações dos fenômenos. Daí advém sua

e que lhe são próprias: ela estará atenta, portanto, ao equilíbrio de

insuficiência, tão vivamente sentida pelos filósofos, mesmo e

forças e à simetria das formas, às lutas entre os organismos vivos,

especialmente por geômetras como Descartes, Comte, Cournot.

aos combates de todos os seres.

lado, a matemática jamais nos mostra a causalidade em obra; e

Repetição, oposição, adaptação: essas são, repito, as três di­

Mas isso não é tudo, e nem mesmo é o essencial. É preciso,

ferentes chaves que a ciência usa para abrir os arcanos do universo.

antes de mais nada, estar atento às adaptações dos fenômenos, às

Ela busca, antes de qualquer coisa, não exatamente as causas, mas

suas relações de coprodução verdadeiramente criadora. É para

as leis de repetição, as leis de oposição, as leis de adaptação dos fe­

captar, depurar e explicar essas harmonias que o cientista trabalha;

nômenos. São três tipos de leis (e é importante não confundi-las) tão

e descobrindo-as, ele chega a constituir essa adaptação superior: a

solidárias quanto distintas: em biologia, por exemplo, a tendência

harmonia entre seu sistema de noções e fórmulas e a coordenação interna das realidades.

das espécies a se multiplicar segundo uma progressão geométrica (lei de repetição) é o fundamento da concorrência vital e da seleção (lei de oposição); e a produção de variações individuais, de aptidões

22

As Leis Sociais

Primeiro capítulo

e harmonias individuais diferentes, assim como a correlação de crescimento (lei de adaptação)13 são necessárias ao seu funcio­ namento. Mas entre essas três chaves, a primeira e a terceira são

Repetição dos fenômenos

muito mais importantes do que a segunda: a primeira é a grande chave-mestra, a terceira, mais sutil, da acesso aos tesouros mais re­ cônditos e mais preciosos; a segunda, intermediária e subordinada, revela-nos os choques e as lutas de utilidade passageira, espécie de termo médio destinado a se esvanecer pouco a pouco, embora

oloquemo-nos na presença de um grande objeto: o

C

céu estrelado, o mar, uma floresta, uma multidão, uma cidade. De todos os pontos desse objeto emanam im ­

jamais completamente, e a só desaparecer, ainda que parcialmente,

pressões que assediam os sentidos do selvagem, bem como os

depois de numerosas transformações e atenuações.

do cientista. Neste, porém, essas sensações múltiplas e inco­

Essas considerações eram necessárias para indicar o que a

erentes sugerem noções logicamente agenciadas, um feixe de

sociologia deve ser caso deseje merecer o nome de ciência, e para

fórmulas explicativas. Como ocorreu a lenta elaboração dessas

que caminhos os sociólogos devem dirigi-la se eles se importam

sensações em noções e em leis? Como o conhecimento dessas

em vê-la assumir decididamente o posto que lhe pertence. Como

coisas se tornou cada vez mais científico? Eu diria que isso

qualquer outra ciência, ela não poderá fazê-lo a não ser possuindo

aconteceu, em primeiro lugar, à medida que mais similitudes

seu próprio domínio de repetições, seu próprio domínio de oposi-

foram descobertas, ou que, depois de se ter acreditado ver

Ções e seu próprio domínio de adaptações, todos característicos

similitudes superficiais, aparentes e decepcionantes, similitu­

e exclusivos. Ela não progredirá a não ser esforçando-se, como

des mais reais e profundas foram percebidas. Em geral, isso

fizeram todas as ciências anteriores, para sempre substituir as

significa que se passou de similitudes e repetições de massa,

falsas repetições por repetições verdadeiras, as falsas oposições

complexas e confusas, a similitudes e repetições de pormenor,

por oposições verdadeiras, as falsas harmonias por harmonias

mais difíceis de captar, porém mais precisas, elementares e

verdadeiras, e para substituir repetições, oposições e harmonias

infinitamente numerosas, bem como infinitesimais. E somente

verdadeiras, porém vagas, por repetições, oposições e adaptações

depois que essas similitudes elementares foram percebidas é

cada vez mais precisas. Coloquemo-nos sucessivamente em cada

que as similitudes superiores, mais amplas, mais complexas,

um desses pontos de vista para verificar inicialmente se a evolução

mais vagas, puderam ser explicadas e reduzidas ao seu justo

das ciências em geral, e da sociologia em particular, se fez e se faz

valor. Esse progresso ocorreu cada vez que muitas origina-

no sentido que eu acabo de definir imperfeitamente, e que preten­

lidades distintas, anteriormente julgadas sui generis, foram

do definir cada vez melhor; e em seguida, para indicar as leis do

assimiladas em combinações de similitudes. Isso não quer

desenvolvimento social sob cada um desses aspectos.

dizer que a ciência, ao progredir, faça desaparecer ou mesmo diminuir a proporção de originalidades fenomenais, os aspectos

Note-se que Cuvier e os naturalistas de sua época (inclusive seu adversário Lamarck) bus­ caram, sobretudo, as leis de adaptação, enquanto Darwin e seus discípulos evolucionistas abordaram os fenômenos da vida dando preferência aos aspectos relativos às suas repeti­ ções e às suas oposições (lei de Malthus e lei da concorrência vital), embora, por certo, eles também tenham se preocupado com aquilo que importa acima de tudo, a adaptação vital.

não repetidos da realidade. É verdade que as originalidades de massa, grandes e visíveis, se dissolvem sob o olhar mais penetrante do observador, mas em proveito de originalidades

25

■As Leis Sociais

Gabriel Tarde

mais profundas e recônditas que vão se m ultiplicando inde­

às maiores, das mais rápidas às mais lentas, como a repetição in­

finidamente, juntamente com as uniformidades elementares.

cessante e contínua de um mesmo fato: a atração em razão direta

24

Apliquemos o que foi dito ao céu estrelado. Houve um início

das massas e em razão inversa ao quadrado das distâncias. E seria

de ciência astronômica a partir do momento em que pastores ocio­

ainda melhor se, explicando esse mesmo fato por meio de uma

sos e curiosos notaram a periodicidade das revoluções celestes

hipótese audaciosa, sempre perseguida e sempre obsedante, fosse

aparentes, o levantar e deitar das estrelas, os passeios circulares

possível enxergar aí o efeito da pressão de átomos etéreos, pressão

do Sol e da Lua, a sucessão regular e o retorno regular de suas

decorrente de vibrações atômicas de uma inimaginável exiguidade,

posições no céu. Mas certos astros pareciam constituir exceções

mas também de uma inconcebível multiplicidade.

em face da generalidade dessa única e grandiosa revolução circular:

Não terei razão ao dizer que a ciência astronômica trabalhou

as estrelas errantes, os planetas, aos quais se atribuía uma marcha

o tempo todo com similitudes e repetições, e que seu progresso

caprichosa, a cada instante diferente dela mesma e das demais;

consistiu em partir de similitudes e repetições únicas ou bem pouco

até que se percebeu quanta regularidade havia nessas anomalias.

numerosas, gigantescas e aparentes, para chegar a uma infinidade

Julgava-se, aliás, que todas as estrelas fixas e errantes, sóis e pla­

de similitudes e repetições infinitesimais, reais e elementares, que

netas, aí compreendidas as estrelas cadentes, eram semelhantes entre si, e só se estabelecia uma diferença marcante entre elas e ó

aliás permitiram, ao surgirem, explicar as primeiras? E será possível dizer - entre parênteses - que o céu tenha

Sol ou a Lua, que gozavam da reputação de serem os únicos astros

perdido algo de seu caráter pitoresco à medida que a astronomia

verdadeiramente originais do firmamento.

progredia? De modo algum. Em primeiro lugar, a precisão cres­

Ora, a astronomia progrediu quando, por um lado, essa

cente dos instrumentos e das observações permitiu distinguir nas

aparente rotação do céu inteiro, enorme e única, foi substituída

gravitações repetidas dos astros muitas diferenças antes desper­

pela realidade de uma inumerável quantidade de pequenas rota­

cebidas, sendo fonte de novas descobertas, notadamente a de Le

ções muito diferentes entre si, e que não apresentavam nenhuma

Verrier.15Depois o firmamento se ampliou cada vez mais, e na sua

sincronia, cada qual se repetindo indefinidamente; e quando, por

imensidade aumentada, foram acentuadas as desigualdades de

outro lado, a originalidade do Sol desapareceu, substituída por

volume, de velocidade e de particularidades físicas entre astros e

uma originalidade mais difícil de perceber, a de cada estrela, sol

grupos de astros. As variedades de configuração das nebulosas se

de um sistema invisível, centro de um mundo planetário análogo ao turbilhão de nossos planetas.

multiplicaram, e quando o uso do espectroscópio (coisa inaudita)

A astronomia deu um passo ainda maior quando as diferenças

mica dos corpos celestes, foram constatadas entre os seres que

dessas gravitações siderais, cuja generalidade sem exceções não

as povoam dessemelhanças que se pode chamar de profundas.

excluía a desigualdade de velocidade, de distância, de elipticidade,14

Enfim, percebeu-se melhor a geografia dos astros mais próximos, e

etc., desapareceram diante da lei de gravitação newtoniana, que

se julgarmos os demais a partir desses, deve-se acreditar - depois

tornou possível analisar tão maravilhosamente a composição quí­

apresentou todas as periodicidades de movimento, das menores 14 No o rig in a l, ellipticité, caráter de uma fig u ra (no caso, de uma ó rb ita ) e líp tica (N. doTJ.

15 Urbain Le Verrier, matemático e astrônomo francês que em 1846 previu, somente com base em cálculos e na observação da órbita do planeta Urano, a existência do planeta Netuno. (N.doT.)

26

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

de haver estudado os canais de Marte, por exemplo - que cada um

pelas leis da biologia, biologia animal ou vegetal, pouco importa;

dos inumeráveis planetas a gravitar sobre nossas cabeças ou sob

atualmente ambas se confundem. Mas no início se diferenciava

nossos pés possui seus acidentes característicos, seu mapa-múndi

profundamente o que hoje assimilamos, ao passo que muitas

especial, suas particularidades locais que, lá como aqui, dão a cada

coisas que hoje diferenciamos eram assimiladas. As similitudes e

canto do solo seu charme peculiar e imprimem, sem nenhuma

as repetições percebidas então, das quais se alimentava a ciência

dúvida, o amor pela terra natal no coração de seus habitantes,

nascente dos organismos, eram superficiais e decepcionantes:

sejam eles quais forem.

foram assimiladas plantas sem nenhum parentesco, cujo porte e

27

A meu ver, isso não é tudo - porém digo-o baixinho, com

folhagem eram vagamente assemelhados, enquanto era traçado

receio de incorrer na grave censura de fazer metafísica... Eu creio

um abismo entre plantas da mesma família, mas de talhe e silhueta

que é impossível explicar as dessemelhanças às quais me refiro -

bastante desiguais. A ciência botânica progrediu ao aprender que

mesmo que fossem apenas essas desigualdades de posição e essa

os caracteres mais importantes, isto é, mais repetidos e mais sig­

caprichosa distribuição de matéria através do espaço - pela hipó­

nificativos, acompanhados por um cortejo de outras similitudes,

tese, tão cara aos químicos (que são, quanto a isso, os verdadeiros

não. eram os mais visíveis; ao contrário, eram os mais recônditos,

metafísicos), de elementos atômicos perfeitamente semelhantes.

os mais sutis, ou seja, aqueles concernentes aos órgãos de repro­

Creio que a pretensa lei de Spencer sobre a instabilidade do homo­

dução: por exemplo, o fato de ter um ou dois cotilédones, ou de

gêneo nada explica, e que, por consequência, a única maneira de

não ter nenhum.

explicar a floração de exuberantes diversidades à superfície dos

E a biologia, síntese da zoologia e da botânica, nasceu no dia

fenômenos é admitir no fundo das coisas uma tumultuosa infinidade

em que a teoria celular mostrou que, tanto nos animais como nas

de elementos caracterizados individualmente. Assim, do mesmo

plantas, a célula era o elemento infinitamente repetido, primeira­

modo que as similitudes de massa foram resolvidas em similitudes

mente a célula germinal, e depois todas as outras que dela proce­

de pormenor, as diferenças de massa, grosseiras e bem visíveis,

dem; e que o fenômeno vital elementar é a repetição indefinida, em

se transformaram em diferenças de pormenor infinitamente sutis.

cada célula, dos modos de nutrição e de atividade, de crescimento

E assim como as similitudes de pormenor permitem explicar por

e de proliferação, cujo depósito tradicional ela recebeu de herança

si mesmas as similitudes de conjunto, as diferenças de pormenor,

e transmitirá fielmente à sua posteridade. Essa conformidade aos

essas originalidades elementares e invisíveis que eu vislumbro,

precedentes que se chama de hábito ou de hereditariedade - diga­

permitem igualmente explicar por si mesmas as diferenças apa­

mos, numa palavra, hereditariedade, já que o hábito é uma here­

rentes e grandiosas, o pitoresco do universo visível.

ditariedade interna e a hereditariedade é um hábito exteriorizado

Temos aí o mundo físico. No mundo vivo acontece a mesma

- é a forma propriamente vital da repetição; tal como a ondulação

coisa. Coloquemo-nos, como o homem primitivo, no meio de uma

ou, em geral, o movimento periódico, é sua forma física, tal como

floresta. Existe ali toda a fauna e flora de uma região, e nós sabe­

a imitação, como veremos, é sua forma social.

mos agora que os fenômenos tão dessemelhantes apresentados

Vemos, portanto, que o progresso da ciência dos seres

por esses diversos animais e plantas se resolvem, no fundo, numa

vivos teve como efeito derrubar gradualmente todas as barreiras

enorme quantidade de pequenos fatos infinitesimais resumidos

que existiam entre eles do ponto de vista de suas similitudes e

28

29

/)s Leis Sociais

Gabriel Tarde

repetições, substituindo, também ali, semelhanças grosseiras e

natural, se repetia na mesma ordem, era já um primeiro esboço de

aparentes, grandiosas e pouco numerosas, por semelhanças muito

sociologia. Aristóteles substituiu essa única e falsa repetição de

precisas, inumeráveis e infinitesimais, que são as únicas capazes de

conjunto, acolhida pelo quimérico talento de Platão, por repetições

explicar as primeiras. Mas ao mésmo tempo aparecem distinções

de pormenor, frequentemente verdadeiras, mas sempre muito vagas

múltiplas, e não apenas a originalidade de cada indivíduo se torna

e difíceis de acompanhar de perto; elas são formuladas em sua

mais evidente, mas também somos forçados a admitir originalida-

Política a propósito do que existe de mais superficial ou de menos

des celulares, e em primeiro lugar germinais: pois não existe nada

profundo na vida social, a sucessão de formas governamentais.

tão semelhante quanto duas células germinais, mas existirá algo

Interrompida desde então, a evolução da sociologia recomeçou ab

mais diferente do que seu conteúdo? Depois de experimentar a

ovo17 nos tempos modernos. Os ricorsi 18 de Vico são a retomada

insuficiência das explicações propostas por Darwin e Lamarck a

e a fragmentação, menos quimérica, dos ciclos antigos; essa tese,

respeito da origem das espécies - cujos termos comuns, por sinal,

tal como a de Montesquieu sobre a pretensa semelhança entre

a descendência, a evolução, permanecem para além de qualquer

civilizações surgidas sob o mesmo clima, são dois bons exemplos

contestação - é preciso convir que a causa verdadeira da espécie é

de repetições e similitudes superficiais ou ilusórias que nutriram

o segredo das células, a invenção de algum óvulo inicial possuindo

a ciência antes que ela encontrasse um alimento mais substancial.

uma originalidade particularmente fecunda.16

Chateaubriand, no seu Ensaio sobre as Revoluções, desenvolveu um

Pois bem, eu afirmo que se examinarmos uma cidade, uma

longo paralelo entre a revolução inglesa e^a revolução francesa e

multidão ou um exército, em vez de examinarmos uma floresta ou

divertiu-se com as mais superficiais comparações. Outros funda­

o firmamento, veremos que as considerações anteriores se aplicam

ram grandes pretensões teóricas sobre vãs analogias entre o gênio

à ciência social do mesmo modo que se aplicam à astronomia e à

púnico e o gênio inglês, ou entre o império romano e o império

biologia. Também aqui passamos de generalizações apressadas,

inglês... Essa pretensão de encerrar os fatos sociais em fórmulas

fundadas sobre analogias vãs e factícias, grandiosas e ilusórias, a

de desenvolvimento, que os constrangeriam a repetir-se em massa

generalizações apoiadas sobre conjuntos de pequenos fatos seme­

com variações insignificantes, foi a grande ilusão da sociologia:

lhantes, possuindo uma similitude relativamente clara e precisa.

seja sob a forma já mais precisa que Hegel lhe deu com suas sé­

Há muito tempo a sociologia trabalha para constituir-se.

ries de tríades, seja sob a forma ainda mais científica e precisa, e

Ela tentou seus primeiros balbucios a partir do momento em que

menos afastada da verdade, que ela recebeu dos evolucionistas

discerniu, ou acreditou discernir, algo de periódico e de regular no

contemporâneos. Estes, a propósito das transformações do direi­

confuso caos dos fatos sociais. A concepção antiga do grande ano

to, notadamente do regime familiar e do regime de propriedade

cíclico, ao término do qual tudo, no mundo social como no mundo

- e a propósito das transformações da linguagem, da religião, da indústria, das belas-artes - arriscaram a formulação de leis gerais

16 Essa afirmação de Tarde parece referir-se à teoria do plasma germinativo de August Weismann. 0 biólogo alemão rejeitava a hereditariedade dos caracteres adquiridos e preco­ nizava que o segredo da variação (surgimento de novas espécies) reside exclusivamente nas células germinativas e depende de alterações em seus elementos moleculares. A descoberta do ADN demonstrou que Weismann estava na direção correta, e tinha razão ao mesmo tem po contra Darwin e contra Lamarck. (N. doT.)

razoavelmente precisas que sujeitariam a marcha das sociedades, sob esses diversos aspectos, a passar e repassar pelos mesmos 17 Tradução livre: desde o início, a p a rtir do zero. (N. doT.) 18 Recorrências. (N. do T.)

30

31

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

caminhos, arbitrariamente traçados, de fases sucessivas. Era ne­

à qual ele se dirigiu para obter a chave dos fenômenos sociais era

cessário reconhecer que essas pretensas regras estão repletas de

a psicologia meramente individual, aquela que estuda as relações

exceções, e que a evolução - linguística, jurídica, religiosa, política,

internas entre impressões ou imagens no interior de um mesmo

econômica, artística, moral - não é uma rota única, mas uma rede

cérebro, e que acredita dar conta de tudo, nesse domínio, pelas

de caminhos na qual abundam as encruzilhadas.

leis de associação desses elementos internos. Assim concebida,

Felizmente, à sombra e ao abrigo dessas ambiciosas genera­

a sociologia se tornava uma espécie de associacionismo inglês

lizações, trabalhadores mais modestos se esforçavam, com mais

aumentado e exteriorizado, e perdia sua originalidade. Não é exa­

sucesso, para anotar leis de pormenor de uma solidez bem diferente.

tamente ou unicamente a essa psicologia /nfra-cerebral, é antes de

Eles eram linguistas, mitólogos, sobretudo economistas. Esses es­

tudo à psicologia inter-cerebral, que estuda o estabelecimento de

pecialistas da sociologia perceberam várias relações interessantes

relações conscientes entre muitos indivíduos, que convém pedir

entre fatos consecutivos ou concomitantes, relações que se repro­

o fato social elementar, cujos grupamentos ou combinações múlti­

duziam a cada instante nos limites do pequeno domínio que eles

plas constituem os fenômenos ditos simples, objetos das ciências

estudavam: encontra-se na Riqueza das Nações de Adam Smith, na

sociais particulares. O contato de um espírito com outro é, com

Gramática comparada das línguas indo-européias de Bopp e na obra

efeito, na vida de cada um deles, um acontecimento à parte, que

de Dietz, para ficar nesses três exemplos, uma enorme quantidade

se destaca vivamente do conjunto de seus contatos com o resto

de observações desse gênero, nas quais se exprime uma similitude

do universo e dá lugar aos estados de alma mais imprevisíveis (e

entre inumeráveis ações humanas como a pronúncia de certas con­

mais inexplicáveis pela psicologia fisiológica).20

soantes ou de certas vogais, as compras e as vendas, a produção e

Essa relação de um sujeito com um objeto que também é

o consumo de certos artigos, etc. É verdade que essas similitudes,

um sujeito não é uma percepção que em nada se assemelha à

nelas mesmas, deram lugar a leis imperfeitas, relativas ao plerumque

coisa percebida (autorizando por isso o cético idealista a colocar

fít,19quando os linguistas ou economistas tentaram formulá-las em leis; mas é porque se teve demasiada pressa para enunciá-las, antes mesmo de se discernir, no seio dessas verdades parciais, a verdade geral que elas implicam, o fato social elementar que a sociologia persegue obscuramente e que ela deve atingir para realizar-se. Muitas vezes pressentiu-se que essa explicação geral das leis ou pseudo-leis (econômicas, linguísticas, mitológicas ou outras) cabia à psicologia. Ninguém compreendeu isso com mais força e clareza do que Stuart Mill. No fim de sua Lógica, ele concebeu a sociologia como a psicologia aplicada. O problema é que ele não exprimiu seu pensamento com suficiente precisão, e a psicologia 19 Tradução livre: o usual, aquilo que geralmente acontece. (N. do T.)

20 As experiências realizadas sobre a sugestão hipnótica e sobre a sugestão em estado de vigília forneceram abundantes materiais para a futura construção da Psicologia inter-ce­ rebral.Tomarei a liberdade de remeter o leitor às tentativas de aplicação dessa psicologia ainda embrionária que realizei em todas as minha obras e particularmente no capítulo intitulado Qu'est ce qu'une société? (Lois de L'Imitation, 1890), que já havia aparecido em novembro de 1884 na Revue philosophique; em algumas páginas de minha Philosophie pénale (1890) sobre a formação de hordas criminosas (capítulo sobre o crime, p. 384 e seguintes, 1a edição); em minha comunicação intitulada Crimes des foules, discutida no Congresso de Antropologia Criminal de Bruxelas em .outubro de 1892; e no meu artigo publicado sob o título de Foules et Sectes na Revue des Deux Mondes (dezembro de 1893). Esses dois últim os estudos foram reimpressos sem modificações no meu Essais et mélanges sociologiques, em 1895 (Edições Storch et Masson, Paris-Lyon). Eu gostaria de observar en passant que o trecho da Philosophie pénale citado acima, senão o capítulo de Lois de Limitation, do qual ele não passa de um corolário, contém em substância e muito explicitamente a explicação dos fenômenos de massa que foram desenvolvidos mais tarde em outros estudos, e que ele apareceu anteriormente aos interessantes trabalhos sobre a psicologia das massas editados no estrangeiro ou na França. Digo isto não para dim inuir seu mérito, mas para responder a certas insinuações, às quais, por sinal, eu fiz justiça em outros lugares.

32

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

sua realidade em dúvida), mas antés a sensação de uma coisa

de desejo, tal como a energia de entusiasmo intelectual, de ade­

senciente, a volição de uma coisa volitiva, a crença em uma coisa

são e constrição mental, que eu chamo de crença, é uma corrente

crente, em resumo, em uma pessoa, na qual a pessoa que perce­

homogênea e contínua que, sob a variável coloração das tintas de

be se reflete e que ela não poderia negar sem negar a si mesma.

afetividade próprias a cada espírito, circula idêntica, ora dividida,

Essa consciência de uma consciência é o inconcussum q u id21 que

fragmentada, ora concentrada, e que se comunica sem alteração

Descartes procurava e que o eu individual não pôde lhe fornecer.

de uma pessoa a outra, bem como de uma percepção a outra no

Além disso, essa relação singular não é uma impulsão física, dada

interior de uma mesma pessoa.

33

ou recebida, um transporte de força motora do sujeito ao objeto

Quando eu disse que toda ciência verdadeira chega a um

inanimado ou vice-versa, conforme se trate de um estado ativo ou

domínio próprio de repetições elementares, inumeráveis e infi­

passivo, mas uma transmissão de algo interior, mental, que passa

nitesimais, é como se eu já houvesse dito que toda ciência verda­

de um sujeito ao outro sem por isso, coisa estranha, perder-se ou

deira fundamenta-se em quantidades que lhe são específicas.22

diminuir-se no primeiro. E o que pode ser assim transmitido de

A quantidade, com efeito, é a possibilidade de séries infinitas e

uma alma a outra por meio de um contato psicológico? São suas

de repetições infinitamente pequenas. Eis porque eu me permiti

sensações, seus estados afetivos? Não, isso é essencialmente

insistir sobre o caráter quantitativo das duas energias mentais

incomunicável. Tudo o que dois sujeitos podem comunicar entre

que, como dois rios divergentes, banham a dupla face do eu, sua

si tendo consciência disso, de maneira a sentir-se mais unidos e

atividade mental e sua atividade voluntária. JMegar esse caráter é

semelhantes, são suas noções e volições, seus juízos e desígnios,

declarar a impossibilidade da sociologia. Mas não se pode negá-lo

formas que podem permanecer as mesmas apesar da diferença

sem recusar a evidência, e esta é a prova de que as quantidades em

de seu conteúdo, produtos da elaboração espiritual que se exerce

questão são propriamente sociais: sua natureza quantitativa apare­

quase indiferentemente sobre signos sensíveis quaisquer. Tampou­

ce tanto melhor, e fere o espírito com maior vivacidade e clareza,

co ela difere sensivelmente passando de um espírito de tipo visual

quando são consideradas em massas mais amplas, sob a forma de

a um espírito de tipo acústico óu motor, de modo que as ideias

correntes de fé ou de paixão popular, de convicções tradicionais

geométricas de um cego de nascença são exatamente as mesmas

ou opiniaticidades costumeiras, abraçando grupos humanos mais

que geômetras dotados de visão possuem; e um plano de batalha

numerosos. Quanto mais cresce uma coletividade, e mais se eleva

sugerido por um general de humor bilioso e melancólico a generais

ou apequena uma opinião, ou seja, a crença ou o querer nacional,

de temperamento vivo e sanguíneo ou fleumático e resignado não

afirmativo ou negativo, em relação a um objeto dado - alta ou baixa

deixará de ser o mesmo: para isso basta que eles tracem a mesma

exemplarmente expressa pelas cotações da Bolsa - mais ela se tor­

série de operações, e por outro lado, que estas sejam desejadas

na suscetível de medida e comparável aos movimentos de pressão

por eles com igual força de querer, a despeito da maneira de sentir

atmosférica ou à força viva de uma queda d’água. É por isso que a

toda especial, toda individual, que leva cada um deles a desejar.

estatística se desenvolve com crescente facilidade à medida que

A energia de tendência psíquica, de avidez mental, que eu chamo 21 Tradução livre: algo firme, constante, inabalável. (N. doT.)

22 No texto original consta a palavra qualidades (em vez da palavra quantidades): "toute science vraie repose sur des qualités qui lui sont spéciales". Uma vez que o contexto não dá margem a dúvidas, optei por fazer a alteração no próprio corpo do texto. (N. doT.)

34

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

os Estados crescem; o êxito da estatística, cujo objeto próprio é

confirmariam a regra. Essa conformidade minuciosa de espíritos

35

pesquisar e discernir quantidades verdadeiras na barafunda dos

e de vontades que constitui o fundamento da vida social, mesmo

fatos sociais, é proporcional à sua obstinação de medir, no fundo,

nas épocas mais perturbadas; essa presença simultânea de tantas

por meio dos atos humanos que adiciona, massas de crenças e de

ideias precisas, de tantos fins e meios precisos em todos os espí­

desejos. A estatística dos valores da Bolsa exprime as variações

ritos e em todas as vontades de uma mesma sociedade num dado

da confiança pública no sucesso de tais ou tais empresas, na sol­

momento; nada disso é o efeito da hereditariedade orgânica que

vência de tais ou tais Estados devedores, e as variações do desejo

fez nascer homens muito semelhantes entre si, nem da identidade

público, do interesse público, ao qual se dá satisfação por essas

do meio geográfico que teria oferecido recursos mais ou menos

dívidas e por essas empresas. A estatística industrial e agrícola

iguais a aptidões mais ou menos iguais, e sim da sugestão-imitação

exprime a importância das necessidades gerais que reclamam a

que, a partir de um primeiro criador de uma ideia ou de um ato,

produção de tais ou tais artigos e a suposta conveniência dos meios

propagou gradualmente seu exemplo. As necessidades orgânicas

necessários para satisfazê-las. A consulta da estatística judiciária,

e as tendências espirituais só existem em nós num estado de vir-

em suas enumerações de processos e delitos, só é interessante

tualidades realizáveis sob as mais diversas formas, a despeito de

porque a travessia de suas linhas permite, ano após ano, a leitura

sua vaga similitude primordial; e foi a indicação de um primeiro

da progressão ou regressão dos desejos públicos engajados em vias

iniciador imitado que determinou, entre essas realizações possí­

processuais ou delituosas: por exemplo, a tendência ao divórcio

veis, a escolha de uma delas.

ou ao roubo, e também a proporção de esperanças públicas vol­

Voltemos ao casal social elementar que mencionei anterior­

tadas para certos processos ou delitos. A estatística populacional,

mente, não o casal do homem e da mulher que se amam - esse casal,

que sob muitos aspectos é meramente biológica e diz respeito à

considerado do ponto de vista sexual, é puramente vital - mas o

propagação da espécie, também é sociológica na medida em que

casal de duas pessoas, seja qual for o sexo a que elas pertencem,

diz respeito à duração e aos progressos das instituições sociais, e

no qual uma age espiritualmente sobre a outra. Eu afirmo que a

exprime o crescimento ou o decréscimo do desejo de paternidade

relação entre essas duas pessoas é o elemento único e necessário

e de maternidade, bem como da crença geral de que a felicidade é

da vida social, e que ele consiste sempre, originalmente, em uma

obtida a partir do casamento e das uniões fecundas.

imitação de um pelo outro. Porém é preciso bem compreender isto

Mas sob que condição as forças de crença e de desejo

para não cair sob o golpe de vãs e superficiais objeções. 0 incon­

acumuladas em indivíduos distintos podem ser legitimamente

testável é que dizendo, fazendo, pensando não importa o que, uma

adicionadas? À condição de ter o mesmo objeto, de incidir sobre

vez engajados na vida social, nós imitamos outrem a cada instante,

uma mesma ideia a afirmar, sobre uma mesma ação a executar.

a menos que nós inovemos, o que é raro; e ainda é fácil mostrar

Mas como se produz essa convergência de direção que torna as

que nossas inovações são, em sua maior parte, combinações de

energias individuais capazes de formar um todo social? Será espon­

exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas à vida

taneamente, por um encontro fortuito, ou por uma espécie de har­

social enquanto não forem imitadas. Vocês não dizem uma palavra

monia preestabelecida? Não, a não ser talvez em casos bem raros;

que não seja a reprodução - agora inconsciente, mas inicialmente

e mesmo essas exceções, se tivéssemos tempo para examiná-las,

consciente e desejada - de articulações verbais remontando ao

37

As Leis Soda is

Gabriel Tarde

mais longínquo passado, ainda que com um sotaque característi­

um autor que percebe na luta entre sociedades um poderoso agente

co da sua vizinhança; vocês não realizam um rito de sua religião,

de sua posterior socialização, de sua comunhão em uma sociedade

sinal da cruz, beijo no ícone, prece, que não reproduza gestos e

mais ampla elaborada por essas mesmas batalhas. Com efeito, não

fórmulas tradicionais, ou seja, formadas pela imitação dos ances­

é evidente que povos rivais ou mesmo inimigos tendem a se fun­

trais; vocês não executam uma ordem qualquer, militar ou civil,

dir à medida que assimilam suas instituições? Assim, é certo que

ou um ato qualquer de sua profissão, que não tenha sido ensinada

cada novo ato de imitação tende a conservar ou fortificar o laço

e que não tenham copiado de um modelo vivo; vocês não dão uma

social, não apenas entre indivíduos já associados, mas também

pincelada, se são pintores, não escrevem um verso, se são poetas,

entre indivíduos ainda não associados, de modo que a imitação

que não seja conforme aos hábitos ou à prosódia de sua escola;

prepara a associação de amanhã, ou seja, tece agora, por meio de

até mesmo sua originalidade é feita de banalidades acumuladas, e

fios invisíveis, aquilo que irá se tornar um laço manifesto.

36

aspira a tornar-se banal por sua vez.

Não me deterei em outras objeções que me foram feitas, pois

Assim, o caráter constante de um fato social, seja ele qual for,

elas provêm de um entendimento muito incompleto de minhas

é imitativo; e esse caráter é próprio e exclusivo dos fatos sociais.

ideias. Elas se desfazem por si mesmas aos olhos de quem se co­

Sobre esse ponto, entretanto, Giddings - que, por sinal, posicionou-

loca claramente no meu ponto de vista. No que diz respeito a elas,

-se frequentemente no meu ponto de vista sociológico - mè fez

remeto à leitura de minhas obras.

uma objeção ilusória: imita-se, diz ele, de uma sociedade a outra,

Mas não basta reconhecer o caráter imitativo de todo fenô­

e mesmo inimigos se imitam, apoderando-se de armamentos, de

meno social. Eu afirmo, além disso, que essa relação de imitação

táticas de guerra, de segredos profissionais. Assim, o campo da

existiu, na origem, não apenas entre um indivíduo e uma massa

imitação ultrapassaria o campo da sociabilidade e não poderia ser

confusa de homens (como acontecerá mais tarde), mas entre dois

a característica deste.23Mas espanta-me que tal objeção venha de

indivíduos apenas, entre os quais um, a criança, está nascendo para a vida social, e o outro, o adulto, já socializado há muito

23 Dando-se à palavra imitação a acepção larga que ela recebe num livro recente e já célebre ( 0 Desenvolvimento Mental da Criança) de Baldwin, professor de psicologia da Universidade de Princeton, pode-se dizer que a imitação é o fato fundamental, não somente da vida sociale da vida psicológica, mas da própria vida orgânica, na qual ela seria a condição para o hábito e a hereditariedade. Mas a tese desse fino psicólogo, longe de contradizer a minha, é na verdade sua veemente ilustração e confirmação. A imitação de homem a homem, tal como eu a entendo, é a decorrência da imitação de estado a estado no mesmo homem, imitação interna que eu mesmo já havia chamado de hábito e que, distinguindo-se da primeira por características suficientemente precisas, não me perm ite confundi-las. Bal­ dwin, que é antes de mais nada um psicofisiologista, explica muito bem a origem orgânica e mental da imitação, e seu papel term ina precisamente no mom ento em que começa o do psicossociólogo. É uma pena que seu livro não tenha antecedido meu livro sobre as Leis da Imitação, pois suas análises teriam sido proveitosas. Mas elas não me obrigaram a retificar em nada as leis e considerações enunciadas em minha obra. Em todo caso, seu livro é a m elhor resposta que posso dar àqueles que me censuraram por ter estendido demais o sentido da palavra Imitação. Baldwin, estendendo-o m uito mais, prova que isso não é verdade. Eu soube, durante a revisão deste texto, que Baldwin acaba de aplicar suas ideias à sociologia [Social and Ethical Interprétations in Mental Development], e que ele, seguindo um caminho independènte, foi conduzido espontaneamente a uma maneira de ver bastante análoga àquela desenvolvida no meu livro Lois de l'Imitation.

tempo, lhe serve de modelo individual. É avançando na vida que nós iremos tomar como regra modelos coletivos e impessoais, geralmente inconscientes; mas antes de falar, pensar e agir tal como nós falamos, pensamos e agimos em nosso mundo, come­ çamos por falar, pensar e agir como ele (ou ela) fala, pensa e age; e esse ele ou ela é um de nossos familiares. No fundo desse nós, se procurarmos bem, não encontraremos outra coisa além de um certo número de eles e elas que se embaralharam e se confundi­ ram ao multiplicar-se. Por mais simples que seja essa distinção, ela é esquecida por todos aqueles que contestam que a iniciativa individual tenha um papel criador numa instituição e numa obra social qualquer, e acreditam dizer alguma coisa afirmando, por

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

exemplo, que as línguas e religiões são obras coletivas, que as

natural de outrora.25 Dito de outro modo, ela repousa sobre um

massas, as massas sem nenhum dirigente, produziram o grego, o

fundamento de similitudes e de repetições elementares e verda­

sânscrito, o hebraico, o budismo, o cristianismo; e por fim, que a

deiras, infinitamente numerosas e extremamente precisas, que

explicação das formações e transformações das sociedades está

substituíram, como matéria primeira da elaboração científica, um

na ação coercitiva da coletividade sobre o indivíduo pequeno ou

pequeno número de falsas ou vagas - e decepcionantes - analogias.

grande, sempre modelado e sujeitado, e jamais na ação sugestiva e

E eu posso acrescentar que, se por causa dessa substituição o lado

contagiosa de indivíduos de elite sobre a coletividade. Na realidade,

similar das sociedades progrediu em extensão e em profundidade,

tais explicações são ilusórias, e seus autores não percebem que

seu lado diferencial também ganhou com a mudança. Sem dúvida

eludem a dificuldade principal ao postular uma força coletiva, uma

será preciso, daqui por diante, renunciar a essas diferenças factí­

similitude, sob certos aspectos, entre milhões de homens: ou seja,

cias que a “filosofia da história” estabelecia entre povos sucessivos,

o problema de saber como essa assimilação geral pôde acontecer.

espécies de grandes personagens de um único e imenso drama no

Podemos responder com precisão levando a analogia até onde

qual cada um tinha seu papel providencial a desempenhar. Conse­

eu á conduzi, até a relação intercerebral entre dois espíritos, ao

quentemente, já não é permitido compreender essa expressão, da

reflexo de um no outro, e somente então se poderá explicar essas

qual tanto se abusou, o gênio de um povo ou de uma raça (e também

unanimidades parciais, essas conspirações dos corações, essas

o gênio de uma língua, o gênio de uma religião), da mesma maneira

comunhões de espírito que, uma vez formadas e perpetuadas pela

que ela era compreendida por nossos antecessores, mesmo tão

tradição, imitação dos ancestrais, exercem uma pressão tão fre­

próximos como Renan e Taine. Emprestava-se uma originalidade

quentemente tirânica, e ainda mais frequentemente salutar, sobre

imaginária, aliás mal definida, a esses gênios coletivos, entidades

o indivíduo.24 Portanto, é a essa relação que o sociólogo deve se

ou ídolos metafísicos; a eles eram atribuídas certas predisposições,

ater, tal como o astrônomo se atém à relação entre duas massas

supostamente invencíveis, em relação a determinados tipos gra­

que atraem e são atraídas; é a ela que ele deve pedir a chave do

maticais, concepções religiosas e formas de governo; e neles eram

mistério social, a fórmula de algumas leis simples, universalmente

supostas, ao contrário, certas incompatibilidades absolutas a res­

verdadeiras, que podem ser discernidas em meio ao caos aparente da história e da vida humanas.

entre seus rivais. Por exemplo, o gênio semita seria absolutamente

O que eu tenho a ressaltar no momento é que a sociologia,

refratário ao politeísmo, ao sistema analítico das línguas modernas,

assim compreendida, difere das antigas concepções que reinavam

ao governo parlamentar; o gênio grego, ao monoteísmo; o gênio chi­

sob esse nome tal como a astronomia moderna difere da dos gregos,

nês e o gênio japonês, a todas as nossas instituições e concepções

38

ou tal como a biologia, a partir da teoria .celular, difere da história

24 Não podemos esquecer esta observação, que é das mais simples: é sempre a partir da mais tenra infância que entramos na vida social. Ora, a criança, que se volta para outrem como a flor se volta para o Sol, sofre m uito mais a atração do que o constrangimento de seu meio familiar; e durante toda a sua vida, ela irá beber avidamente os exemplos recebidos.

peito de concepções ou instituições pertencentes a estes ou aqueles

25 Em resumo, essa concepção é quase o inverso da concepção professada pelos evolucionistasunilinearese também por Durkheim:ao invés de explicar tudo pela pretensa imposição de uma lei de evolução que constrangeria os fenômenos de conjunto a se reproduzir, a se repetir identicamente numa certa ordem, ao invés de explicar o pequeno pelo grande, o detalhe pelo conjunto, eu explico as similitudes de conjunto pela acumulação de pequenas ações elementares, o grande pelo pequeno, o conjunto pelo pormenor. Essa maneira de ver está destinada a produzir na sociologia as mesmas transformações que a introdução da análise infinitesimal produziu na matemática.

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

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europeias era geral... Se os fatos protestassem contra essa teoria

- sobre atores históricos vagamente caracterizados que chama­

ontológica, seriam torturados até que fossem constrangidos a

mos de Egito, Roma, Atenas, etc., um pulular de individualidades

confessar; seria inútil mostrar a esses teóricos a profundidade

inovadoras, cada qual sui generis, marcada pelo seu próprio selo,

das transformações sofridas pela propagação de uma religião

distinto e reconhecível entre mil.

proselitista, de uma língua, ou de uma instituição como o júri, por

Assim, posso concluir mais uma vez que, pela introdução

exemplo, bem além das fronteiras de seu povo e de sua raça de

desse ponto de vista sociológico, estaremos fazendo precisamente

origem, a despeito dos obstáculos que os gênios de outras nações

o que todas as outras ciências fizeram quando substituíram um

e de outras raças deveriam inelutavelmente lhes opor. Eles respon­

pequeno número de similitudes e diferenças, falsas ou vagas, por

dem remanejando a ideia e fazendo uma distinção entre as raças

inumeráveis similitudes e diferenças precisas e verdadeiras; e isso

nobres e inventivas, as únicas investidas do privilégio de descobrir

será duplamente proveitoso para o artista e para o cientista, e

e propagar descobertas, e as raças nascidas para a servidão, que

sobretudo para o filósofo, que deve, a não ser que ele mesmo seja

não possuem nenhuma compreensão das línguas, religiões e ideias

algo distinto, sintetizar ambos.

que tomam ou parecem tomar emprestado das primeiras. Por sinal,

Mais algumas observações. Antes que se descobrisse algum

negava-se a possibilidade de que esse proselitismo conquistador de

fato astronômico elementar, como a atração descrita pela lei newto-

uma civilização sobre outras, de um gênio popular sobre outros,

niana, ou pelo menos a gravitação elíptica, houve conhecimentos

pudesse franquear certos limites, e especialmente europeizar a

astronômicos heterogêneos - uma ciência da Lua, selenologia, uma

China e o Japão. Já foi provado o contrário em relação a este último,

ciência do Sol, heliologia - mas não a astronomia. Antes que se

e em breve irá acontecer o mesmo com o Império do Meio.

descobrisse um fato químico elementar (afinidades, combinações

Mais cedo ou mais tarde, será preciso abrir os olhos para as

em proporções definidas), houve conhecimentos químicos, químicas

evidências, e reconhecer que o gênio de um povo ou de uma raça,

especiais, do ferro, do estanho, do cobre, etc., mas não a química.

ao invés de ser o fator dominante e superior dos gênios individu­

Antes que se descobrisse o fato físico essencial - a comunicação

ais que seriam seus rebentos e suas manifestações passageiras,

ondulatória do movimento molecular - houve conhecimentos fí­

é muito simplesmente uma etiqueta cômoda, a síntese anônima

sicos: ótica, acústica, termologia, eletrologia, mas não a física. A

dessas inumeráveis originalidades pessoais, que são as únicas

física tornou-se físico-química, a ciência da natureza inorgânica

verdadeiras, eficazes e ativas a cada instante, e que estão em fer­

inteira, quando entreviu a possibilidade de explicar tudo pelas leis

mentação contínua no seio de cada sociedade graças a empréstimos

fundamentais da mecânica, ou seja, quando acreditou descobrir,

incessantes e a uma fecunda troca de exemplos com as sociedades

como fato inorgânico elementar, a reação igual e contrária à ação,

vizinhas. 0 gênio coletivo, impessoal, é portanto função e não fator

a conservação da energia, a redução de todas as forças em formas

dos gênios individuais, infinitamente numerosos; ele é sua fotografia

de movimento, o equivalente mecânico do calor, da eletricidade,

compósita, e não deve ser sua máscara. E certamente não teremos

da luz, etc. Enfim, antes da descoberta das analogias existentes,

nada a lamentar, em relação ao pitoresco social capaz de suscitar

do ponto de vista da reprodução, entre os animais e as plantas,

o interesse do historiador artista, quando chegarmos a perceber

nem mesmo havia uma botânica e uma zoologia, mas botânicas e

através dessa fantasmagoria - esclarecida, mais do que dissipada

zoologias, ou seja, uma hipologia, uma cinologia, etc. Mas a des-

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A i Leis Sociais

Gabriel Tarde

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coberta de similitudes só conferia uma unidade muito parcial a

de Arquimedes, nós tivemos os devaneios alegóricos de Pitágoras

todas essas ciências esparsas, a esse.s membra disjecta da futura

e Platão. A astrologia e a magia, vestíbulo da astronomia, balbucio

biologia. A biologia somente nasceu de fato quando a teoria celular

da química, estão fundadas sobre o postulado da alegoria universal

veio mostrar o fato vital elementar, o funcionamento da célula (ou

mais do que sobre o da analogia universal; elas admitem uma har­

do elemento histológico) e sua proliferação, perpetuada pelo óvulo,

monia preestabelecida entre as posições de certos planetas e os

ele mesmo célula, de modo que a nutrição e a geração passaram a

destinos de certos homens, entre tal ação simulada e tal ação real,

ser encaradas sob um mesmo ângulo.

entre a natureza de uma substância química e a do corpo celeste

Muito bem, trata-se agora de fazer, similarmente, a ciência

que leva seu nome, etc. Não nos esqueçamos do caráter simbólico

social a partir das ciências sociais. Já houve, com efeito, ciências

dos procedimentos jurídicos primitivos, das ações da lei no direito

sociais, ao menos esboçadas, prelúdios de ciência política, de

romano, antigos tateios da jurisprudência. Notemos também - pois

linguística, de mitologia comparada, de estética, de moral, uma

a teologia foi uma ciência dos nossos ancestrais, tal como a juris­

economia política já bem avançada, muito antes que houvesse

prudência - o abuso dos sentidos figurados atribuídos aos relatos

o embrião de uma sociologia. A sociologia supõe um fato social

bíblicos por parte dos mais antigos teólogos, que viam na história

elementar. E ela o supõe com tal força que, enquanto não havia

de Jacó a cópia antecipada da história de Cristo, ou daqueles que

chegado a descobri-lo - talvez porque ele estivesse na sua cára,

simbolizavam os amores entre esposo e esposa no Cântico dos

se me perdoam essa expressão - ela sonhava com ele, ela o imagi­

Cânticos como sendo os amores entre Cristo p sua Igreja. Assim co­

nava sob a forma de uma dessas similitudes vãs e imaginárias que

meça a ciência teológica na Idade Média, assim começa a literatura

atravancam o berço de todas as ciências, e acreditava dizer algo

moderna no Roman de la Rose. Há uma grande distância entre essas

de profundamente instrutivo ao conceber uma sociedade como

ideias e as ideias da Suma de São Tomás de Aquino. Encontramos

um grande organismo, o indivíduo (ou, segundo outros, a família)

um vestígio desse misticismo simbólico ainda em nosso século, nas

como a célula social, e toda forma de atividade social como uma

obras agora esquecidas - porém dignas de serem exumadas em

função de tipo celular. Eu já fiz os maiores esforços, juntamente

razão de suas graças fenelonistas de estilo - de Père Gratry, que

com a maior parte dos sociólogos, para desembaraçar a ciência

acreditava ver no sistema solar o símbolo das relações sucessivas

nascente dessa estorvante concepção. Ainda cabe uma palavra a

entre a alma e Deus, em torno do qual, segundo ele, gira a alma.

esse respeito. O conhecimento científico sente com tal força a necessidade

Ainda segundo ele, o círculo e a elipse simbolizam toda a moral,

de apoiar-se em similitudes e repetições que, antes de possuí­

E claro que eu não posso comparar essas excentricidades

das, criou outras, imaginárias, e ficou à espera das verdadeiras;

aos desenvolvimentos parcialmente sólidos, e sempre sérios,

que está inscrita hieroglificamente nas seções cônicas.

desse ponto de vista, é preciso classificar a famosa metáfora do

que Comte, e depois Herbert Spencer, e ainda mais recentemente

organismo social entre tantas outras concepções simbólicas que

René Worms e Novicow, deram à tese da sociedade-organismo. Eu

tiveram a mesma utilidade passageira. A alegoria desempenhou

aprecio o mérito e a utilidade momentânea dessas obras, ainda

um papel imenso nas origens de todas as ciências, bem como de

que as critique. No entanto, agora generalizando o que já foi dito,

toda a literatura. Na matemática, antes das sólidas generalizações

creio.ter o direito de enunciar a seguinte proposição: o progresso

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

de uma ciência consiste em substituir as similitudes e repetições

plo, uma vez lançado num certo grupo social, a se propagar nele

exteriores, isto é, as comparações do objeto próprio dessa ciência

segundo uma progressão geométrica se esse grupo permanecer

a outros objetos, por similitudes e repetições interiores, isto é,

homogêneo. Não vejo nada de misterioso, aliás, nessa tendência.

comparações desse objeto consigo mesmo, considerado em seus

Ela significa algo de muito simples: quando, por exemplo, se faz

exemplares múltiplos e sob outros aspectos. A ideia do organismo

sentir num grupo a necessidade de exprimir uma nova ideia por

social, que encara a nação como uma planta ou um animal, corres­

meio de uma nova palavra, o primeiro a imaginar uma expressão

ponde à ideia do mecanicismo vital, que encara uma planta ou um

capaz de satisfazer essa necessidade só terá de pronunciá-la para

animal como uma entidade mecânica. Mas não foi por meio dessa

que, de boca em boca, ela seja repercutida por todos os falantes do

comparação, aprofundada e prolongada, entre um corpo vivo e um

grupo em questão, e para que se espalhe, mais tarde, nos grupos

mecanismo, que a biologia progrediu, e sim pela comparação das

vizinhos. Isso não quer dizer em absoluto que essa expressão seja

plantas entre elas, dos animais entre eles, dos corpos viventes entre

dotada de uma alma que a leva a irradiar-se desse modo, tal como

si.26E não é pela comparação entre as sociedades e os organismos

o físico, ao dizer que a onda sonora tende a espalhar-se pelo ar, não

que a sociologia deu e ainda dará grandes passos, é pela compara­

atribui a essa forma simples uma força própria, ávida e ambiciosa.27

ção das sociedades entre elas, é pelas inumeráveis coincidências

Não, é apenas um modo de falar, que serve para dizer, num caso,

entre evoluções nacionais distintas, do ponto de vista da língua,

que as forças motoras inerentes às moléculas do ar encontraram

do direito, da religião, da indústria, das artes, dos costumes: e é

nessa repetição ondulatória um caminho de escoamento; e para

sobretudo pela atenção concedida a essas imitações de homem a

dizer, no outro caso, que a necessidade particular inerente aos

homem, que fornecem a explicação analítica dos fatos de conjunto.

indivíduos humanos do grupo em questão foi satisfeita com essa

Depois desses longos preliminares, chegou o momento de

repetição imitativa, que poupa sua preguiça (análoga à inércia

expor as leis gerais que regem a repetição imitativa, que estão

material) do esforço que a invenção exige. Seja como for, não há

para a sociologia como as leis do hábito e da hereditariedade estão

razão para duvidar dessa tendência à progressão geométrica; na

para a biologia, ou as leis da gravitação para a astronomia, e as

prática, porém, ela é entravada por obstáculos de vários tipos, e é

leis da ondulação para a física. Mas eu já tratei abundantemente

raro, embora não seja extremamente raro, que os diagramas esta­

desse tema numa de minhas obras, As Leis da Imitação, à qual

tísticos relativos à difusão pública de uma nova invenção industrial

tomarei a liberdade de remeter aqueles que têm interesse nesse

mostrem essa progressão regular. Que obstáculos são esses? Há

assunto. Todavia, convém trazer à luz algo que ainda não está

aqueles que provêm da diversidade de climas e raças, mas eles

suficientemente claro, a saber, que todas essas leis decorrem, no

não são os mais fortes; o entrave maior que detém a expansão de

fundo, de um princípio superior: a tendência que possui um exem-

uma inovação social (e sua consolidação em costume tradicional) é

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alguma outra inovação igualmente expansiva que ela encontra em 26 Do mesmo modo, não foram as comparações pita^óricas entre a m atemática e as demais ciências que fizeram a matemática avançar; elas foram estéreis, ao passo que a aproximação entre a geometria e a álgebra, conduzida por Descartes, foi fecunda; mas foi somente a partir da invenção do cálculo infinitesimal, quando se desceu até o elemento matemático indecomponível cujas repetições indefinidas tudo explicam, que a fecundidade matemática apareceu em sua plenitude.

27 Tampouco o naturalista, ao dizer que uma espécie tende a se propagar segundo uma progressão geométrica, encara essa forma simples como possuindo por ela mesma, independentemente do Sol, das afinidades químicas, de todas as energias físicas que ela meramente canaliza, uma energia e uma aspiração independentes.

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seu caminho, e que, para empregar uma metáfora física, interfere nela. Com efeito, toda vez que alguém hesita entre duas maneiras de falar, entre duas ideias, entre duascrenças, entre duas maneiras de agir, está ocorrendo nele uma interferência de irradiações imitativas, de irradiações imitativas que, a partir de focos diferentes, muitas vezes distantes um do outro no espaço e no tempo (isto é, focos de inventores e imitadores individuais primitivos), se pro­ pagaram até ele. Como resolver essa dificuldade? Quais serão as influências decisivas? Essas influências, como já disse, são de dois tipos: lógicas e extralógicas. É preciso acrescentar que mesmo es­ sas últimas são lógicas em certo sentido da palavra; por exemplo, quando diante de dois exemplos, o plebeu escolhe cegamente o exemplo do patrício, o camponês escolhe o do citadino, o provin­ ciano escolhe o do parisiense. No que eu chamei de cascata de imitação, que corre de cima para baixo na escala social, por mais cega que seja a imitação, ela sempre advém de uma presunção de superioridade daquele que dá o exemplo; o modelo parece possuir, sobre o imitador, uma autoridade social. Ocorre o mesmo quando, entre o exemplo de seus ancestrais e o de um inovador estrangeiro, o homem primitivo prefere sem hesitação o primeiro, que ele julga infalível; ocorre o mesmo quando, diante do mesmo dilema, o indi­ víduo das modernas cidades faz a escolha contrária, convencido a priori de que o novo é sempre preferível ao antigo. Não obstante, uma opinião como essa, fundada sobre considerações extrínsecas à própria natureza dos dois modelos comparados, das duas ideias ou volições, merece ser cuidadosamente distinguida dos casos em que a opção é baseada num juízo sobre o caráter intrínseco das duas ideias ou das duas volições; e é para esse tipo de influências decisórias que se pode reservar o epíteto de lógicas. Por ora, nada mais direi, pois no próximo capítulo falaremos novamente desses duelos lógicos e teleológicos, elementos da oposição social. Acrescento apenas que as interferências das irra­ diações imitativas nem sempre são entraves mútuos; muitas vezes

elas são alianças mútuas e servem para acelerar, para amplificar essas irradiações; e por vezes elas ocasionam uma ideia genial que nasce de seu encontro e de sua combinação em um cérebro, como veremos no capítulo consagrado à adaptação social.

Segundo capítulo Oposição dos fenômenos m termos teóricos, o aspecto-repetição dos fenômenos é

E

o mais importante. Mas seu aspecto-oposição, em termos práticos, do ponto de vista das aplicações da ciência,

apresenta um interesse maior. E de Aristóteles até nossos dias, ele jamais cessou de ser, senão totalmente ignorado, ao menos confundido na mixórdia das diferenças sem critério. Aqui, como acima, direi que o progresso das ciências con­ sistiu na substituição de um pequeno número de oposições vãs, grosseiras e superficiais, percebidas ou imaginadas inicialmente, por oposições sutis e profundas, inumeráveis, penosamente des­ cobertas, e na substituição de oposições exteriores por oposições interiores ao assunto considerado. Esse progresso consistiu tam­ bém, devo acrescentar, na eliminação de dissimetrias ou de assi­ metrias aparentes e em sua substituição por muitas dissimetrias e assimetrias ocultas e bem mais instrutivas. Busquemos as oposições no céu estrelado. 0 dia e a noite, e inicialmente o Céu e a Terra, foram as primeiras antíteses; delas viveram as cosmogonias religiosas e os embriões da astronomia e da geologia nascentes, ou que aspiravam ao nascimento. Depois surgiram oposições mais verdadeiras, porém ainda mal compreen­ didas ou simplesmente subjetivas e superficiais: o zénite e o nadir (que não passa da antítese do alto e do baixo levada ao extremo), os quatro pontos cardeais (opostos dois a dois), o inverno e o verão, a primavera e o outono, a manhã e a tarde, meio-dia e meia-noite, o quarto crescente e o quarto minguante da Lua, etc. É verdade que todas essas oposições foram conservadas pela ciência, mas perdendo muito de sua importância e de sua significação primitivas. Para nós, o oeste é apenas uma orientação relativa à nossa posição

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em face da estrela que chamamos de Polar; para um selvagem, o

A física e a química, tal como a astronomia, começaram com

oeste é o lugar da felicidade póstuma, do descanso eterno das al­

falsos contrários. Os quatro elementos concebidos pelos primeiros

mas (que para outros é o leste). Daí decorre a orientação ritual dos

físicos se opunham dois a dois: a água e o fogo, o ar e a terra. Imagi­

templos e das tumbas. O quarto crescente e o quarto minguante

navam-se antipatias inatas entre determinadas substâncias. Vieram

da Lua certamente não têm, para nós, o sentido imaginário e tão

à luz ideias mais sãs sobre a verdadeira natureza das oposições

importante que a superstição dos agricultores primitivos (e a de

físicas e químicas quando se descobriu o caráter de algum modo

nossos camponeses) lhes atribui. De acordo com estes, a lua nova

oposto dos ácidos e bases, e sobretudo das eletricidades de nome

possui a virtude de fazer crescer rapidamente, e a lua cheia, a de

contrário, assim como a polaridade luminosa. A ideia de polaridade,

impedir que cresça qualquer coisa que se plante numa ou noutra

que desempenhou um papel tão grande nas teorias físico-químicas,

dessas duas fases lunares.28 É um vestígio da distinção antitética entre dias fastos e nefastos.

marcou um enorme progresso sobre as concepções anteriores; e

Assim, essas oposições foram conservadas, mas com um

a abrange ou está em vias de abranger. Assim como a luz, o calor

caráter superficial e convencional. Outras foram suprimidas: por

e a eletricidade aparecem como propagações esféricas ou lineares

exemplo, as oposições entre celeste e terrestre, Sol e Lua; e a im­

de vibrações infinitesimais e infinitamente rápidas, a combinação

portância destas e daquelas transferiu-se para outras, bem mais

química tende a ser considerada como um entrelaçamento de ondas

profundas. Em primeiro lugar, a descoberta da natureza elíptica,

harmoniosamente unidas: mas aqui nós já^tocamos nos domínios

agora ela mesma está sendo explicada pela noção de ondulação, que

parabólica ou hiperbólica das curvas descritas pelos astros, plane­

da adaptação. Até mesmo a atração foi muitas vezes explicada por

tas e cometas permitiu compreender a perfeita simetria das duas

pressões de vibrações etéreas. Seja como for, é evidente que as

metades de cada uma dessas curvas com relação aos dois lados do eixo central. (Eu chamei a simetria de perfeita, mas existem per­

gravitações elípticas dos astros, apesar da diferença de dimensão,

turbações, que são repetições mútuas dessas curvas, umas pelas

gundo elipses muito alongadas, e que nos dois casos existe ritmo

outras, no interior de um mesmo sistéma.) Além disso, percebeu-

ondulatório. Em suma, podemos ver como o progresso das ciências

-se que as elipses planetárias iam crescendo e decrescendo de

estendeu e aprofundou o campo da oposição, substituindo vagas

maneira alternada, com uma grande regularidade, em função das

oposições qualitativas por oposições quantitativas precisas e ritma­

oscilações em torno de uma posição de equilíbrio. Enfim, a antítese

das, tecido da teia do mundo. A maravilhosa simetria das formas

astronomicamente profunda, universal, contínua - fundamento de

cristalinas próprias a cada substância química é a tradução gráfica,

todas as outras - está na igualdade entre a atração que a massa ou

a expressão visual dessas oposições rítmicas entre os inumeráveis

molécula sofre e aquela que ela exerce. Cada massa atrai e é atraída,

movimentos que a constituem. E não seria precisamente a essa

e essa é uma das mais belas ilustrações da lei mecânica de oposi­

ritmicidade dos movimentos interiores dos corpos que se deveria

ção universal, chamada de lei de reação igual e contrária à ação.

pedir a explicação última da lei de Mendeleev, que nos mostra os

são comparáveis às ondas físicas, esse vai-e-vem de moléculas se­

grupos de substâncias formando escalas superpostas e periodica­ 28 No original: "La nouvelle lune, suivant ceux-ci, a la vertu de faire pousser rapidement, et la vieille lune d'empêcher de croître to u t ce qu'on plante à l'une ou à l'autre de ces deux phases lunaires". (N. do T.)

mente repetidas, teclado ao qual faltam, aqui e ali, algumas teclas que descobriremos com o passar do tempo?

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As Leis Sociais

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Mas ao mesmo tempo que a evolução das ciências físicas

tão assombrosa e tão estranha por sua universalidade. Mas também

permitia a descoberta de oposições e simetrias mais profundas,

foram imaginadas várias oposições vitais sem nenhuma realidade

mais claras, mais explicativas, ela também revelava assimetrias,

ou valor; pode-se incluir entre estas a oposição entre os anjos e

arritmias, inoposições ainda mais importantes. Ela mostrou, por

os demônios, já que ambos foram concebidos como espécies de

exemplo, que não existe no sistema solar nenhum corpo planetário

animais superiores. Do mesmo modo, para o selvagem, e às vezes

que retrograde, que caminhe num sentido inverso ao sentido geral;

para o iletrado de hoje, a grande oposição entre os vivos está entre

apenas alguns satélites constituem exceção. A configuração das

os seres bons e ruins para comer, entre as plantas alimentícias e

nebulosas que nossos telescópios descobrem é frequentemente

as venenosas, entre os animais úteis e os nocivos. Essa oposição

dissimétrica. Se adotarmos as ideias de Stanislas Meunier, não tere­

é subjetivamente verdadeira, mas torna-se imaginária a partir do

mos a menor razão para pensar que existe simetria entre a evolução

momento em que é objetivada, como fazem instintivamente os

e a dissolução de um sistema solar (se é que existe dissolução),

ignorantes de todas as raças. Durante muito tempo, os médicos

nem entre a formação das sucessivas camadas geológicas de um

conceberam a saúde e a doença como dois estados precisamente

planeta e sua desagregação final. A disseminação dos astros no

contrários, e as causas da doença como sendo precisamente in­

céu continua sendo o que era antes do progresso da astronomia: o

versas às causas da saúde. No fundo, o erro homeopático nasceu

que existe de mais caprichoso e pitoresco. Ao contrário, a sublime

dessa ilusão. A doença e a saúde, assim concebidas, são entidades

desordem desse espetáculo é tanto mais pungente e profunda na

verbais que o progresso da fisiologia dissipou. Longe de se opor

medida em que progride o conhecimento das forças equilibradas,

a ele, o desvio patológico é parte do funcionamento fisiológico.

simetricamente opostas, que parecem constituir tudo isso. Que

Também a dissolução individual foi encarada como o inverso da

astrônomo do presente sonharia, como fizeram os antigos, com

evolução, e a velhice, como o retorno da infância. Esse ponto de

uma Anti-Terra, uma Antichton, onde tudo seria o inverso terrestre?

vista só pôde ser totalmente eliminado depois que a embriologia

À medida que conhecemos melhor a geografia de nosso planeta,

nos permitiu conhecer a travessia de uma série de formas ances­

ficamos cada vez mais assombrados pela total ausência de simetria

trais que, evidentemente, nada têm de inversamente análogo às

na configuração dos continentes e das cadeias de montanhas, e a rede pentagonal de Élie de Beaumont já não seduz ninguém. Os

fases do declínio senil. Muito tempo depois que as ciências da vida começaram a

progressos da cristalografia permitiram a observação de dissime-

se constituir, os fisiologistas imaginaram uma oposição, factícia e

trias antes desconhecidas, cuja importância foi posta em relevo

científica ao mesmo tempo, entre a animalidade e a vegetação: para

pelos trabalhos de Pasteur; mas tudo o que posso fazer é indicar esse tema.

eles, a respiração animal é precisamente o inverso da respiração vegetal e destrói o que esta produz (a combinação de oxigênio e

As oposições grosseiras ou aparentes no mundo vivo - a vida

carbono). A fisiologia comparada, por meio dos trabalhos de Claude

e a morte, a juventude e a velhice - foram as primeiras a serem nota­

Bernard e outros, demonstrou o caráter superficial dessa inversão e

das, e também estão entre as mais antigas similitudes constatadas

a unidade fundamental da vida nos dois reinos, que não são opostos

entre as plantas e os animais, rudimento de uma biologia geral. Tampouco foi possível deixar de notar a simetria das formas vivas,

29 Ver a esse respeito a tese de GeorgesCanguilhem:ONorma/eoPafofóg/co, Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária. (N. doT.)

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55

As Leis Sociais

Gabriei Tarde

e sim divergentes. Em compensação, o progresso do saber substi­

ginárias e gigantescas entre deuses bons e deuses maus, deuses

tuiu essas oposições falsas ou vagas, que opunham entre si grupos

da luz e deuses da noite, heróis e monstros. Os metafísicos, assim

de seres, seres ou entidades de um mesmo ser, por inumeráveis e

como as mitologias, abusaram dos combates; também eles imagi­

infinitesimais oposições - inteiramente reais - na intimidade dos

naram oposições seriais, diretas e retrógradas, desenvolvimentos

tecidos, como a oposição entre a oxidação e a desoxidação de cada

da humanidade em um sentido seguidos por desenvolvimentos

célula, ou entre a acumulação e o gasto de energia. Também aqui,

em sentido inverso. Aqui, Platão e os filósofos hindus deram-se

a oposição mostrou-se muito mais fundamental e fecunda sob a forma do ritmo do que sob a forma da luta.

as mãos. Hegel, com suas ambiciosas generalizações, com sua

Ao mesmo tempo, porém, vieram à luz dissimetrias novas

e Cousin, com sua antítese imaginária entre o Oriente-infinito e a

e mais dissimuladas: para citar apenas um exemplo, o estudo das

Grécia-finita, também são excelentes espécimes das antinomias

funções cerebrais, que permitiu localizar a faculdade da linguagem

sociológicas do passado. Tudo isso foi dissipado e ninguém mais

no hemisfério esquerdo, estabeleceu uma dissimetria funcional

se dá ao trabalho de opor - sobretudo depois da surpreendente

extremamente importante entre as duas metades do cérebro. Não

europeização do Japão em alguns anos - a pretensa imutabilidade

é o único caso em que a simetria da forma entre órgãos correspon­

inata dos asiáticos à pretensa progressividade inata dos europeus.

classificação dos povos sob o estandarte de ideias antagonistas,

dentes nas duas metades do corpo —mão direita e esquerda, olho

Os economistas já prestaram um valoroso serviço à ciência

direito e esquerdo, etc. —mascara a dissimetria ou a assimetria

social substituindo a guerra, como fator-chave da história, pela

profunda de sua função. Além disso, como já notei anteriormente,

concorrência, espécie de guerra não apertas adocicada e atenu­

a muito antiga e especiosa ideia teórica segundo a qual a dissolu­

ada, mas ao mesmo tempo reduzida e multiplicada. Por fim, se

ção dos seres vivos, dos tipos viventes, havia de ser exatamente

nosso ponto de vista for adotado, será preciso considerar que,

o oposto de sua evolução, teve de desaparecer diante dos pro­

no âmago daquilo que os economistas chamam de concorrência

gressos da observação. E seja nos indivíduos, seja nas espécies,

dos consumidores ou dos coprodutores, existe uma concorrência

essa ausência de simetria entre os dois lados da vida, ascensão e

de desejos e de crenças; e se essa luta que constatamos entre

descenso, tem um sentido profundo: ela tende a provar que a vida

as formas industriais for generalizada e estendida a todas as

não é um simples jogo, apenas uma gangorra de forças por assim

formas linguísticas, religiosas, políticas, artísticas e morais da

dizer, mas uma marcha à frente, e que a ideia de progresso não é

vida social, veremos que a verdadeira oposição social elementar

um discurso vão. Ela tende a nos fazer considerar a oposição dos

deve ser buscada no próprio seio de cada indivíduo social sem­

fenômenos, suas simetrias, suas lutas e também seus ritmos, tal

pre que ele hesita entre adotar ou rejeitar um novo modelo que

como suas repetições, como simples instrumentos do progresso, como termos médios.

lhe é proposto: uma nova locução, um novo rito, uma nova ideia,

A sociologia dá lugar a considerações análogas. Na origem

pequena batalha interna, que se reproduz milhões de vezes a

(pois, sob certos aspectos, ela é bastante antiga), a sociologia

cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e

começou como mitologia; e foi mitologicamente que ela se pôs a

infinitamente fecunda da história. Ela introduz em sociologia uma

explicar toda a história por meio de lutas fantásticas, guerras ima­

tranquila e profunda revolução.

uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa

56

As Leis Sociais

Mas ao mesmo tempo, e ainda a partir desse ponto de vista,

Gabriel Tarde

57

convexo, o prazer e a dor, o frio e o quente) é a contrariedade real

revela-se o caráter simplesmente auxiliar e subordinado da oposição

ou suposta das forças pelas quais esses estados foram produzidos.

social, mesmo sob sua forma psicológica; e isso decorre da colo­

Vemos que é preciso eliminar de saída, como pseudo-oposições que

cação em evidência de muitas assimetrias ou dissimetrias que não

são, todas as antíteses das mitologias ou das filosofias da história

aparecem de imediato. Tive de traçar uma distinção (que quase não

fundadas sobre pretensas contrariedades de natureza, entre dois

encontrou opositores) entre o reversível e o irreversível em todas as

povos, duas raças, duas formas de governo: por exemplo, entre a

categorias de fatos sociais, e ficou estabelecido que o irreversível era

república e a monarquia (ver, a esse respeito, certos hegelianos),

sempre o mais importante: por exemplo, a série de descobertas da

entre o ocidente e o oriente, entre duas religiões (cristianismo e

ciência ou da indústria. Vemos aqui acentuar-se, em virtude dessas

islamismo), entre duas famílias de línguas inatas (línguas semíticas

oposições psicológicas inumeráveis que compõem a vida de todo

e línguas indo-europeias). Esses contrastes são acidentalmente e

indivíduo social, sua originalidade individual, seu gênio próprio que

parcialmente verdadeiros se encararmos as maneiras pelas quais

a nada se opõe; e tudo aquilo que chamamos de gênio de um povo,

essas coisas, em circunstâncias mais ou menos passageiras, afir­

ou se preferirmos, o gênio de uma língua, o gênio de uma religião,

mam e negam a mesma ideia, desejam e repelem o mesmo alvo;

é sua expressão coletiva e abreviativa. Também vemos efetuar-se,

mas esses mesmos contrastes são quiméricos se julgarmos, tal

pelo próprio jogo dessas pequenas oposições infinitesimais que

como pareciam acreditar muitos filósofos antigos, que a antipatia

acabei de mencionar, o lado estético da vida social, pelo qual ela

recíproca entre essas coisas é essencial, absoluta, inata.

não é comparável ou oponível a coisa alguma.

Toda oposição verdadeira implica, portanto, uma relação

Mas tudo isso não passa de um esboço bastante incompleto;

entre duas forças, duas tendências, duas direções. Mas os fenôme­

é preciso adentrar mais intimamente esse tema, tão pouco explo­

nos pelos quais essas forças se realizam podem ser de dois tipos:

rado e tão relevante. Ponhamo-nos de acordo, em primeiro lugar,

qualitativos e quantitativos, ou seja, eles podem ser formados

a respeito dos diversos sentidos dessa palavra: oposição. Vou

por fases heterogêneas ou por fases homogêneas. Uma série de

permitir-me retomar aqui a definição e a classificação que propus no

fases heterogêneas é uma evolução qualquer, que sempre pode

meu livro sobre a oposição universal. Façamos um resumo de nosso

ser concebida (erradamente ou não) como reversível, como sus­

ponto de vista atual. A oposição é vulgarmente —e erradamente —

cetível de retrogradar seguindo o caminho exatamente inverso.

concebida como um máximo de diferença. Ela é, na realidade, uma

Por exemplo, um químico extrai aguardente de uma planta por

espécie muito singular de repetição, a de duas coisas semelhantes

meio de uma série de operações químicas, o que não quer dizer

que tendem a destruir-se entre si precisamente em virtude de sua

que será possível reconstituir a planta; mas se não é possível, é

semelhança. Os opostos, os contrários, formam sempre um par,

ao menos imaginável. Esse é o sonho dos antigos filósofos no que

uma dualidade, e não são oponíveis enquanto seres ou grupos de

concerne às transformações da humanidade. Uma série de fases

seres, sempre dessemelhantes e de algum modo sui generis, e nem

homogêneas constitui essa evolução de tipo especial que se chama

mesmo como estados de um mesmo ser ou de seres diferentes,

aumento ou diminuição, crescimento ou declínio, alta ou baixa.

mas como tendências, como forças; pois a razão de percebermos

Não é necessário entrar em detalhes para notar que cada vez mais

determinadas formas ou estados como opostos (o côncavo e o

oposições dessa ordem, precisas e mensuráveis, vão se revelando

58

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

à medida que a ciência social se desenvolve com a civilização: as

signos opostos, um positivo, outro negativo, e que elas são real­

cotações da Bolsa, os diagramas estatísticos onde a alta e a baixa

mente comparáveis às quantidades objetivas, às forças mecânicas

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deste ou daquele valor - a alta e a baixa deste ou daquele gênero

dirigidas em sentidos opostos ao longo de uma mesma linha reta.

de criminalidade, do suicídio, da natalidade, dos matrimônios,

0 espaço é constituído de modo a comportar uma infinidade de

da previdência medida pelas flutuações dos livros contábeis dos

pares de direções opostas entre si, e nossa consciência é consti­

bancos ou das seguradoras, etc. - são registrados sob a forma de

tuída de modo a comportar uma infinidade de afirmações opostas

curvas ondulatórias.

a negações, uma infinidade de desejos opostos a repulsões (tendo

Eu acabo de distinguir as oposições de série (evolução e

precisamente o mesmo objeto). Sem essa dupla singularidade,

contra-evolução) das oposições de grau (aumento e diminuição).

cuja coincidência é singular, o Universo não conheceria a guerra

Mais importante ainda é a categoria das oposições de signo ou, se

e a discórdia, e todo o lado trágico da vida seria tão inconcebível

preferirmos, oposições diametrais. Embora elas sejam confundidas com as anteriores na linguagem matemática, na qual o mais e o

quanto impossível. Observação essencial: sejam quais forem as oposições (de

menos simbolizam tanto o contraste entre o positivo e o negativo

séries, degraus ou de signos), elas podem ocorrer seja entre termos

quanto o contraste entre o aumento e a diminuição, é preciso notar

realizados num mesmo ser (uma mesma molécula, um mesmo

que o crescimento e a diminuição alternados de uma mesma força

organismo, um mesmo eu), seja entre dois seres diferentes (duas

dirigida no mesmo sentido constituem uma oposição muito diferen­

moléculas ou duas massas, dois organismos, duas consciências

te daquela em que, dadas duas forças situadas numa mesma linha

humanas). Mas é importante distinguir cuidadosamente esses dois

reta, uma se dirige de A para B e a outra de B para A. Do mesmo

casos; e é importante, em primeiro lugar, do ponto de vista de outra

modo, a oposição entre o crescimento e a diminuição do crédito

distinção não menos essencial, que consiste em não confundir os

não deve ser confundida com a oposição entre esse crédito e uma

casos em que os termos são simultâneos e aqueles em que eles

dívida de igual valor; e a maior ou menor inclinação ao roubo e

são sucessivos. No primeiro caso, existe choque, luta, equilíbrio;

ao crime, numa sociedade, é bem diferente da antítese entre essa

no segundo, existe alternância, ritmo. No primeiro caso, há sempre

inclinação e a inclinação à generosidade e à filantropia. Para dar

destruição e perda de força; no segundo, não. Ora, quando eles se

de imediato uma explicação psicológica desses e de tantos outros

produzem no interior de dois seres diferentes, as oposições, sejam

contrastes sociais, notemos que o aumento e a posterior diminuição

elas de séries, de graus ou de signos, podem ser simultâneas ou

de nossa crença afirmativa em uma ideia (religiosa ou científica,

sucessivas, lutas ou ritmos; mas quando seus termos pertencem

jurídica ou política) são coisas completamente diferentes da afir­

a um mesmo ser, a um mesmo corpo ou a um mesmo eu, elas não

mação e posterior negação dessa mesma ideia; e que o aumento e a

podem ser ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas a não ser

posterior diminuição do nosso desejo por um objeto, por exemplo,

que sejam oposição de signos. Quanto às oposições de séries e

nosso amor por uma mulher, é completamente diferente do desejo

de graus, nessa hipótese, elas só comportam termos sucessivos,

por um objeto e sua posterior repulsa (nosso amor e depois nosso

alternativos. Por exemplo, não é possível que a velocidade de um

ódio por uma mesma mulher). É verdadeiramente curioso constatar

móvel numa mesma direção aumente e diminua ao mesmo tem­

que essas quantidades subjetivas, crença e desejo, comportam dois

po; isso só é possível sucessivamente; mas pode ser que ele seja

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

61

animado por duas tendências distintas, que se dirigem em sentidos

porque existem ou podem existir oposições internas (entre tendên­

contrários: é o caso do equilíbrio, muitas vezes simbolizado pela

cias diferentes de um mesmo ser, de um mesmo homem). Isso se

simetria de formas opostas, notadamente nos cristais. Do mesmo

aplica às oposições de séries e de graus tal como às oposições de

modo, não é possível que o amor de um homem por uma mulher

signos, mas sobretudo a estas. Se existem homens ou grupos de

esteja ao mesmo tempo em vias de aumentar e de diminuir, o que

homens que evoluem num sentido, enquanto outros homens ou

só é possível alternativamente; mas pode ser que ele, ao mesmo

grupos de homens evoluem no sentido inverso, por exemplo, do

tempo, ame e odeie essa mulher, antinomia do coração realizada

naturalismo ao idealismo em matéria de arte, ou do idealismo ao

em tantos crimes passionais. Não é possível que a fé religiosa de

naturalismo - ou do regime aristocrático ao regime democrático

um homem cresça e diminua ao mesmo tempo, isso só é possível

ou da democracia à aristocracia, etc. - é porque cada homem pode

sucessivamente; mas pode ser que ele carregue ao mesmo tempo

evoluir e contraevoluir dessa maneira. Se existem povos e classes

em seu pensamento, muitas vezes sem perceber, a afirmação enér­

em que a fé religiosa aumenta, ao passo que em outros povos e

gica e a não menos enérgica negação implícita de certos dogmas, a

em outras classes ela diminui, é porque a consciência de cada

afirmação simultânea de certa crença cristã e de certo preconceito

homem comporta aumentos e diminuições de intensidade de uma

mundano ou político que nega essa crença. Por fim, é evidentemente

crença. Enfim, se existem partidos políticos ou seitas religiosas que

impossível que a mesma molécula passe ao mesmo tempo por uma

afirmam e desejam precisamente o que outros partidos e seitas

série de transformações químicas e pelas transformações inversas,

negam e rejeitam, é porque o espírito e o coração de cada homem

ou que o mesmo homem perceba a um só tempo, em dois sentidos

são suscetíveis de conter o sim e o não, o “a favor e o contra , a

opostos, a mesma série de estados psicológicos, o que só seria

propósito de uma mesma ideia ou de um mesmo desígnio.

possível sucessivamente. Ao contrário, nada é mais habitual do

Ao dizer isso, estou longe de querer identificar as lutas

que ver simultaneamente, num sistema de corpos, astronômicos

exteriores com as lutas internas. Em certo sentido, elas são in­

ou outros, um corpo que vai do afélio ao periélio enquanto outro

compatíveis; com efeito, somente quando a luta interna chegou

vai do periélio ao afélio, ou um corpo que acelera enquanto outro

ao fim - quando o indivíduo, depois de ter sido lacerado por

desacelera; e nada é mais ordinário do que ver, numa sociedade,

influências contraditórias, fez sua escolha e adotou determinada

uma pessoa cuja ambição ou fé aumenta enquanto essa mesma

opinião ou resolução de preferência a outras, estabelecendo a

ambição e essa mesma fé diminuem em outra; ou então uma pessoa

paz em si mesmo - é que a guerra entre ele e os indivíduos que

que, fazendo uma viagem circular, atravessa uma série de sensa­

fizeram uma escolha oposta se torna possível. Isso não basta,

ções visuais, enquanto outra pessoa, fazendo o itinerário inverso,

entretanto, para fazer a guerra eclodir. Para tal é preciso, além

percorre na ordem contrária essa mesma gama de sensações.

disso, que esse indivíduo saiba que os outros indivíduos fizeram

A discussão de cada uma das espécies de oposições apre­

uma escolha contrária à dele. Sem isso, seria como se não existisse

sentadas aqui nos levaria demasiadamente longe. Limitemo-nos

a oposição exterior dos contrários, simultâneos ou sucessivos,

a algumas considerações gerais. Em primeiro lugar, se existem

pois ela não apresentaria em absoluto as características de uma

oposições exteriores (chamemos assim as oposições de tendência

luta exterior que a tornaria realmente eficaz. Para que haja uma

entre muitos seres, entre muitos homens); elas só são possíveis

guerra ou luta religiosa, é preciso que cada fiel de um culto saiba

62

63

AsLeisSociais

Gabriel Tarde

que os fiéis de outro culto negam exatamente o que ele afirma, e é

que todas as dúvidas e hesitações de que sofre o mais isolado

preciso que essa negação (que não é adotada imitativamente, mas

dos homens, nascido na mais selvagem das tribos, devem-se a

ao contrário, repelida por ele) se justaponha na sua consciência à

um encontro nele ocorrido, seja entre dois raios de exemplos que

sua própria afirmação, cuja intensidade é, desse modo, redobrada.

vieram interferir em seu cérebro, seja pelo cruzamento entre um

Por exemplo, para que exista concorrência econômica entre os

raio de exemplos e uma percepção dos sentidos. Ao escrever, eu

candidatos a compra de uma casa, é preciso que cada um deles

hesito frequentemente entre duas locuções sinônimas, e cada

saiba que sua vontade de possuir esse imóvel é contrariada pelos

uma delas apresenta-se como preferível à outra na circunstância

seus competidores, que querem que ele não a possua; e ele irá

dada: aqui, dois raios imitativos interferiram em mim, ou seja,

querê-la com ainda mais força ao saber que seus competidores não

duas séries de homens que, a partir do primeiro inventor de uma

querem que ele a possua. Sem essa condição, a concorrência nela

dessas palavras e do primeiro inventor da outra, chegaram até

mesma será estéril, e os economistas erraram ao não distinguir de

mim. Pois eu aprendi cada uma dessas palavras de um indivíduo

maneira suficientemente clara os casos em que não há, entre os

que a aprendeu de outro, e assim por diante, remontando até o

concorrentes, consciência de sua concorrência, e a medida muito

primeiro indivíduo que a pronunciou. (Mais uma vez, é isso que eu

variável dessa consciência, os graus infinitos que a separam da inconsciência completa.

chamo de raio imitatiuo\ e a totalidade de raios desse gênero, pro­

Eis porque eu tinha razão ao dizer que é preciso buscar a

quer cujo exemplo se propagou, é o que eu chamo de irradiação

oposição social elementar, porém não, como se poderia acreditar

imitativa. A vida social se compõe de um denso entrecruzamento

à primeira vista, na relação entre dois indivíduos que se contra­

de irradiações desse gênero, entre as quais ocorrem inumeráveis

venientes de um inventor, de um iniciador, de um inovador qual­

dizem ou se contrariam, e sim nos duelos lógicos e teológicos,

interferências.) Outros exemplos: eu sou juiz e hesito entre uma

nos combates singulares de teses e antíteses, de quereres e não-

opinião que se funda sobre uma série de decisões baseadas nas

-quereres30 cujo teatro é a consciência do indivíduo social. Sem

orientações de determinado autor, por exemplo, Marcadé ou De-

dúvida é possível que me perguntem: mas então qual é a diferença

molombe, e uma opinião oposta que se apoia numa outra série

entre a oposição simplesmente psicológica e a oposição social?

de decisões emanadas de tal outro comentador; mais uma vez,

Ela é diferente em virtude de sua causa e, sobretudo, pelos seus

interferência entre dois raios imitativos. A mesma coisa acontece

efeitos. Em virtude da causa: um solitário recebe em seus sentidos

quando eu hesito entre o gás e a eletricidade para iluminar meu

duas percepções aparentemente contraditórias, e hesita entre

apartamento. Mas quando um jovem camponês, diante do pôr do

dois juízos sensitivos: um que lhe diz que determinada mancha

sol, não sabe se deve acreditar na palavra de seu professor (que

vista a distância é um lago, outro que lhe diz o contrário; eis uma

lhe assegura que o cair da noite deve-se a um movimento da Terra

oposição interna cuja origem é inteiramente psicológica, e que é

e não do Sol) ou no testemunho de seus sentidos, que lhe dizem

um caso infinitamente raro. Pode-se afirmar sem medo de errar

o contrário, existe um único raio imitativo que, por intermédio de seu professor, liga-o a Galileu. Tanto faz, pois isso basta para

30 No original,"de vouloirs et de nouloirs" (grifo do autor). 0 term o nouloiré um neologismo de Tarde que imita a palavra latina no/o (infinitivo nolle). A palavra noto significa “não querer"e é formada por ne (não) e volo, velle (querer). (N. do T.)

que sua hesitação, sua oposição interna e individual, seja social em virtude de sua causa.

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

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Mas é sobretudo pelos seus efeitos (ou melhor, por sua inefi­

de uma sociedade em partidos. Um novo partido é sempre formado

cácia) que a oposição simplesmente individual difere da oposição

por um grupo de pessoas que adotaram, seguindo o exemplo de

social elementar, que também é, entretanto, individual. Por vezes a

outras, uma ideia ou resolução contrária à que reinava até então

hesitação do indivíduo permanece encerrada nele, e não se propaga

em seu meio, e da qual elas mesmas estavam imbuídas. Esse novo

(nem tende a se propagar) imitativamente entre seus vizinhos; nes­

dogmatismo, por outro lado, tornado mais intolerante e mais inten­

se caso, o fenômeno permanece puramente individual. Na maioria

so à medida que se difunde, suscita contra si a coalizão daqueles

dos casos, porém, a própria dúvida é quase tão contagiosa quanto

que, fiéis às tradições, fizeram exatamente a escolha contrária; e

a fé, e todo aquele que devém cético num meio fervoroso logo se

aqui teremos, face a face, dois fanatismos.

tornará o foco de um ceticismo que irá irradiar-se ao seu redor:

Seja sob sua forma dogmática e violenta, seja sob sua forma

será possível, nesse caso, negar o caráter social do estado de luta

cética e enervada, a justaposição individual de termos opostos é

interna que caracteriza cada um dos indivíduos desse grupo?

social desde que se difunda imitativamente. Se não fosse assim,

Mas encaremos a questão de uma forma ainda mais geral.

nada haveria de social em fatos como estes: a rivalidade entre

Quando o indivíduo toma consciência da contradição que existe

duas línguas, o francês e o alemão, ou o francês e o inglês, em

entre um de seus julgamentos, propósitos, ideias ou hábitos - dog­

suas respectivas fronteiras, Bélgica, Suíça, ilhas normandas; ou a

ma, fraseado, procedimento industrial, tipo de arma ou ferramenta,

rivalidade entre duas religiões igualmente limítrofes. Uma dessas

etc. -e um julgamento, propósito, ideia ou hábito de outro homem

línguas e uma dessas religiões constantemente sobrepuja a outra

ou homens, ele tem três alternativas. Ou ele se deixa influenciar

depois de incessantes combates que não ocorrem entre homens

completamente pelo outro, abandonando bruscamente sua própria

rivais, mas em cada espírito, em cada consciência, entre duas

maneira de pensar e agir; nesse caso não houve luta interna, e sim

locuções rivais, entre duas crenças rivais. Haverá algo mais inte­

vitória sem combate: apenas mais um entre os contínuos fenôme­

ressante, em termos sociais, do que essas enxurradas linguísticas

nos de imitação de que é feita a vida social. Ou então o indivíduo

e religiosas? Socialmente, tudo provém de oposições psicológicas,

é apenas parcialmente influenciado pelo outro, e esse é o caso

e é preciso voltar sempre a esse ponto. Mas também é verdade

discutido mais acima; depois do choque advém um amortecimento

que é extremamente importante evitar a confusão entre essas

de sua força, mais ou menos entravada e paralisada. Ou então ele

duas formas de oposição, uma na qual o combate de dois termos

reàge contra a ideia ou o hábito estrangeiro, contra a crença ou

justapostos tem lugar no próprio indivíduo, e outra na qual o indi­

a vontade que o afronta, e passa a afirmar ou querer ainda mais

víduo simplesmente adota um dos termos opostos (embora ambos

energicamente o que ele já afirmava e queria. Mas nesse último

estejam justapostos nele), e onde o combate, por conseguinte, só

caso, em que ele tensiona todas as energias de sua convicção ou

tem lugar nas suas relações com outros homens. A esse respeito

de sua paixão para repelir o exemplo de outrem, haverá nele uma

podemos nos perguntar, como fiz há muito tempo em um de meus

luta íntima de outro gênero, tão tonificante quanto a anterior era

primeiros artigos,31 o que seria pior para uma sociedade: estar

enervante. Ela também perturba, e ainda mais do que a outra, pre­

dividida em partidos ou seitas que se combatem em virtude de

cisamente porque é uma sobre-excitação (e não uma paralisia) das forças individuais, apta a espalhar-se contagiosamente; daí a cisão

S1 Artigo posteriormente reproduzido no meu livro Lois de 1'lmitation (prim eiro capítulo, quase in fine).

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

seus programas e dogmas opostos, em povos que guerreiam, ou

pretensamente amolengada do trabalho regular, sob o império de

ser composta por indivíduos em paz uns com os outros, mas cada

um juízo bem assentado e de uma vontade decidida. Mas será di­

qual, individualmente, em luta consigo mesmo, presa do ceticismo,

ferente no que concerne à luta exterior, à luta entre os homens? A

da irresolução ou do desencorajamento. Valerá mais essa paz de

história, se bem compreendida, mostra que a guerra evolui sempre

66

67

superfície que oculta um surdo e contínuo estado de guerra das

num certo sentido, e que essa direção, cem vezes reproduzida e

almas consigo mesmas, ou diremos que as guerras mais mortíferas,

fácil de distinguir através dos tortuosos emaranhados históricos,

as próprias guerras religiosas e todós os acessos de delírio político

nos faz prever sua gradual rarefação e sua futura desaparição. Com

nas mais sangrentas revoluções são preferíveis a esse torpor? Se

efeito, em consequência da irradiação imitativa, que trabalha, por

nós só tivéssemos escolha entre essas duas soluções, teríamos de

assim dizer, incessante e subterraneamente para estender o campo

confessar que o problema social seria estranhamente árduo. Mas

social, os fenômenos vão se estendendo; e a guerra participa desse

não parece que é exatamente assim, já que os homens, tão logo

movimento. De uma multidão infinita de guerras muito pequenas,

cessam momentaneamente de guerrear nos campos de batalha e

porém atrozes, entre pequenos clãs, passa-se a um número bem

de combater acirradamente na arena da concorrência industrial

menor de guerras um pouco maiores, porém menos odientas, entre

ou da competição política, recaem na doença profunda das al­

pequenas cidades, e depois entre grandes cidades, e depois entre

mas ansiosas, indecisas, desencorajadas, hesitantes entre seus

povos cada vez mais populosos, e chega-se, enfim, a uma era de

sacerdotes e seus doutores que se contradizem, entre as velhas máximas de uma moral respeitada da boca para fora e as práticas

conflitos muito grandiosos e raros, porém sem nenhuma ferocidade, ? entre colossos nacionais cuja própria grandeza torna pacíficos.

contrárias de uma moral que ainda não ousa formular-se? E não é

Detenho-me para notar que, por causa dessa passagem do

patente que, quando os homens põem fim ao seu esquartejamento

pequeno ao grande, do pequeno muito numeroso ao grande extre­

interior, aos seus contínuos tremores, aos empuxos de doutrinas e

mamente raro, a evolução da guerra, e de todo fenômeno social

de condutas contraditórias, será para alinhar-se em dois campos, de

em geral, parece contradizer a evolução das ciências tal como vem

acordo com as diferentes opções que fizeram, e pôr-se a guerrear?

sendo exposta aqui. No entanto, ela constitui, de fato, sua contra­

Só nos restaria escolher entre a guerra exterior ou a luta interna.

prova e confirmação. É justamente porque tudo no mundo dos fatos

Esse seria o dilema apresentado aos derradeiros sonhadores da

caminha do pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho

paz perpétua, entre os quais me incluo.

invertido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno e,

Felizmente, a verdade é menos triste e menos desesperadora. A observação mostra que todo estado de luta, exterior ou interior,

pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares verda­ deiramente explicativos em último lugar.

sempre aspira (e acaba chegando) a uma vitória definitiva ou a um

Retornemos. Em cada uma de suas etapas, em cada uma de

tratado de paz. No que concerne à luta íntima, seja qual for o nome

suas extensões, que são acima de tudo apaziguamentos, a guerra

que lhe dermos - dúvida, irresolução, angústia, desespero - isso é

diminuiu, ou ao menos transformou-se de maneira favorável ao

evidente: aqui, a luta sempre aparece como uma crise excepcional

seu ulterior desaparecimento. Cada crescimento dos Estados,

e passageira, e ninguém pensaria em considerá-la como um estado

das tribos às cidades, das cidades aos reinos, impérios, imensas

normal, ou julgá-la preferível, com suas dolorosas agitações, à paz

federações, significou a supressão dos combates numa região cada

68

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

vez mais extensa. Ainda em nossa época, há sempre sobre a Terra

um rio como o Nilo ou o Amur, ou no litoral de um pequeno mar,

regiões, mesmo que estreitas - um vale oprimido entre montanhas,

depois de ter sido (como demonstrou Metchnikoff, e como as leis

uma grande ilha, um fragmento bem recortado de uma superfície

da irradiação imitativa explicam maravilhosamente) pluvial e me­

69

continental, mais tarde o contorno de um mar interior - que foram

diterrânea, a civilização se torna oceânica, isto é, planetária; e é

percebidas durante muito tempo por seus habitantes como uma

agora, com o encerramento da época de suas crises de crescimento,

espécie de universo distinto; e quando esse pequeno universo foi

que sua grande floração poderá começar.

enfim pacificado por uma série de conquistas que reuniram todas

E verdade que, mesmo que terminem as guerras, não terão

as localidades sob um mesmo jugo, parecia que o alvo derradeiro,

fim as lutas dolorosas entre os homens. Existem outras formas de

a finalidade sempre buscada - a pacificação universal - havia sido

luta, e uma das principais entre elas é a concorrência. Mas também

atingida. Tinha-se enfim um momento de repouso no império dos

se pode aplicar à concorrência - oposição de ordem econômica e

faraós, no Império Chinês, entre os Incas do Peru, em certas ilhas do

não mais política - o que acaba de ser dito. Como a guerra, a con­

Pacífico, no Império Romano. Infelizmente, essa meta fascinante re­

corrência vai do pequeno ao grande: do muito pequeno e muito

cuava assim que era vislumbrada, e a Terra mostrava-se bem maior

numeroso ao muito grande e muito pouco numeroso. A concorrên­

do que se acreditava anteriormente; estabeleciam-se relações, que

cia, desde seu início, se apresenta sob três formas: a concorrência

logo se tornavam beligerantes, com vizinhos poderosos de cuja

entre consumidores do mesmo artigo, a concorrência entre os

existência não se havia suspeitado, e que precisavam ser conquis­

produtores de um mesmo artigo, e a concorrência entre produtor e

tados, ou pelos quais era preciso ser conquistado, para assentar

consumidor, entre vendedor e comprador do mesmo artigo. Afinal,

definitivamente a paz no mundo. A continuação das guerras é, em

se os artigos são diferentes, não há nenhuma oposição recíproca

resumo, a extensão gradual do domínio da paz. Mas essa extensão

dos desejos; há antes adaptação recíproca, quando os artigos são

não poderia ser indefinida; essa miragem ansiosa não poderia ser

suscetíveis de serem trocados entre si.

um perpétuo tormento, já que o globo terrestre possui limites e que

Mas já que estamos tocando aqui num tema dos mais deli­

estes já foram, há muito tempo, circunavegados. O que caracteriza

cados, e que não convém abordar por enquanto a não ser por um

nossa época, e em certo sentido torna-a profundamente diferente

aspecto especial, para além de qualquer opinião preconcebida,

de todo o passado (embora as leis da história se apliquem a ela tal

coletivista ou outra qualquer, façamos em primeiro lugar algumas

como outrora), é que pela primeira vez a política internacional dos

observações de uma veracidade sem margem para dúvidas. Con­

grandes estados civilizados já não abrange em suas preocupações,

corrência é uma palavra ambígua que significa - ao mesmo tempo

como antigamente, apenas um continente ou dois, mas a totalidade

ou alternadamente - concurso e luta, e é por isso que se eterniza a

do globo, e que assim se desvela o termo último da evolução da

disputa entre aqueles que, por enxergarem nessa coisa equívoca

guerra, perspectiva tão deslumbrante que mal ousamos acreditá-la,

apenas o seu aspecto de oposição, com razão a maldizem, e aque­

perspectiva de um alvo certamente difícil de realizar, mas também

les que, encarando-a pelo seu aspecto de adaptação, louvam-na

muito real; um alvo incapaz de decepcionar e que, uma vez próximo,

igualmente com razão, por causa das invenções civilizatórias que

não poderia mais retroceder. Não existe aí algo capaz de eletrizar

ela suscitou. Mas é sob seu aspecto desfavorável que nós iremos

todos os corações? Depois de ter estabelecido a Paz nos limites de

considerá-la aqui.

70

As Leis Sociais

O combate e a contradição não são em absoluto essenciais aos desejos dos diversos consumidores ou dos diversos produtores de um mesmo objeto, e nem mesmo aos desejos de consumidores e produtores quando confrontados entre si. Produtor e comprador estão sempre de acordo na medida em que um quer comprar o que o outro quer vender; nem sempre pelo mesmo preço, é verdade, mas sempre há um preço com o qual concordarão e que encerrará o debate entre eles. Os desejos dos produtores tampouco estão em contrariedade na medida em que cada um deles tem sua clientela e seus canais de distribuição que, tal como a produção, momen­ taneamente não serão capazes de expandir-se; eles só se tornam contraditórios à medida que os meios de produção se expandem e que cada um deles deseja produzir mais e apropriar-se da pro­ dução do outro. É verdade que a civilização acarreta um aumento constante dos meios de produção, e que, sendo assim, essa luta entre coprodutores é inevitável e deve tornar-se cada vez mais viva. Quanto aos desejos dos consumidores de um determinado artigo, é possível dizer que, longe de se prejudicarem mutuamente, aqueles que competem pela compra de um mesmo artigo em geral se aju­ dam mutuamente, desde que a produção desse artigo seja capaz de acompanhar o aumento da demanda: pois quanto mais houver pessoas desejosas de comprar bicicletas, mais o preço das bici­ cletas irá baixar. Os desejos dos consumidores só estão realmente em contradição naqueles casos - como acontece frequentemente com os artigos de primeira necessidade, bem como com os artigos de luxo - em que o número de exemplares da coisa desejada não consegue suprir a demanda e tampouco pode multiplicar-se tão rapidamente quanto se multiplicam, pelo contágio da moda, os

Gabriel Tarde

71

primitivos, são incessantes e inumeráveis; pouco a pouco elas são suprimidas, mas para serem substituídas por essas grandes barganhas suscitadas, nos mercados municipais, pela fixação da taxa municipal do trigo e da carne; e quando estas são suprimidas, é para dar lugar a barganhas ainda maiores, pelas discussões nas Câmaras onde se debatem projetos de lei que tendem a favorecer, pela imposição ou supressão de taxas aduaneiras, os interesses da massa de produtores ou da massa de consumidores nacionais. As sociedades cooperativas de consumo, isto é, aquelas em que o consumidor e o produtor se unem, nasceram da necessidade de pôr fim a essa espécie de concorrência, e se desenvolvem junto com ela. Também entre compradores a concorrência tende a estender-se:32 em todos os mercados primitivos, a competição por um saco de trigo ou por uma cabeça de gado está restrita a algumas pessoas; essas inumeráveis pequenas competições, que muitas vezes culminam em pequenas sociedades especulativas locais, * são substituídas, quando os mercados começam a crescer e a di­ minuir em número, por competições maiores, cada vez maiores, e estas culminam, por sua vez, ora em uniões importantes, como os sindicatos agrícolas, ora em sociedades especulativas mais vastas, os trusts e kartells gigantescos que conhecemos. Mas examinemos a concorrência mais bem estudada, e que é na realidade a mais intensa, porque é a mais consciente: a dos produtores entre si. Ela começa com rivalidades inumeráveis entre pequenos mercadores que disputam mercados minúsculos, origi­ nalmente justapostos e praticamente fechados aos demais; mas à medida que caem as barreiras que os separam, eles se confundem em mercados maiores e menos numerosos, e também as pequenas

desejos que ela suscita. Dito isso, e voltando à ideia que apresentamos há pouco, notemos que cada uma das três espécies de concorrência distin­ guidas aqui está em conformidade com a lei indicada. As pequenas barganhas entre vendedor e comprador, em todos os mercados

32 Hoje em dia, em épocas de escassez, não há um único saco de trigo no mais remoto vilarejo da Crimeia ou da América que não suscite uma competição, não mais entre vizinhos, como outrora, mas entre mercadores de todas as nações europeias; assim como não existem, em épocas normais, quadros de grandes mestres ou livros antigos no mais obscuro dos castelos franceses cuja aquisição não esteja ameaçada pela concorrência, não de alguns amadores da vizinhança, ou da província, ou mesmo da França inteira, mas de milionários americanos.

72

A s Leis Sociais

Gabriel Tarde

oficinas rivais se fundem, seja voluntariamente, seja pela força, em fábricas maiores e menos numerosas, onde o trabalho produtivo, outrora ciosamente oposto a si mesmo, agora é harmoniosamente coordenado; e a rivalidade entre essas fábricas reproduz, numa escala ainda maior, a das oficinas de outrora, até que se chega, pelo crescimento gradual dos mercados, que tendem a se tornar um único mercado, a alguns gigantes da indústria e do comércio, que também rivalizam entre si, a menos que entrem num acordo. Em resumo, a concorrência se desenvolve em círculos con­ cêntricos que vão se ampliando. Mas a ampliação da concorrência tem como condição e como razão de ser a ampliação da associação. Da associação ou do monopólio, objetar-se-á. Que seja, mas o mo­ nopólio é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema da concorrência, assim como a unidade imperial é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema da guerra. Um desses pro­ blemas pode ser resolvido pela associação dos indivíduos, assim como o outro pode ser resolvido pela confederação dos povos. De resto, o próprio monopólio, à força de estender-se, se torna mais brando, e caso ele se tornasse universal em certas modalidades de produção (termo ao qual ele tende e que Paul Leroy-Beaulieu julgou, erroneamente a meu ver, para sempre e absolutamente inatingível),33seria provavelmente mais suportável, em certos casos, 33 Um m onopólio é sempre parcial e relativo. Sem dúvida, Paul Leroy-Beaulieu tem razão ao dizer que a concorrência jamais chega ao m onopólio absoluto e completo, e o exemplo que ele menciona - o das lojas de departamentos - parece, à primeira vista, dos mais sólidos: o BonMarché, por exemplo, depois de ter suprimido a concorrência de tantas lojas pequenas, viu surgir a concorrência do Louvre, do Printemps, da Samarítaine, etc. Mas na realidade, numa certa zona e numa certa medida, cada um desses colossos do comércio m onopolizou uma situação disputada por milhares de pequenas lojas; cada uma delas tem sua própria clientela numa região que, por motivos quaisquer de capricho ou de moda, pertence-lhe com exclusividade. Na maioria dos casos, é simplesmente porque elas adquiriram, em relação a determinado artigo, a reputação de oferecer uma qualidade m elhor do que seus concorrentes. Na realidade, essa pretensa concorrência entre as lojas de departamentos (que além do mais pode ser temperada ou atenuada por entendi­ mentos entre elas, m uito mais fáceis, em função de seu número reduzido, do que entre a infinidade de pequenas lojas que elas substituíram), essa concorrência tende a tornar-se cada vez mais uma simples divisão de trabalho, ou melhor, uma grande repartição de monopólios parciais que elas partilharam ou vão, pouco a pouco, partilhando entre si.

73

do que o estado de concorrência aguda que ele teria substituído. A concorrência tende a uma monopolização, ao menos parcial e relativa, ou a uma associação de concorrentes, tal como a guerra tende ao esmagamento do perdedor ou a um tratado favorável com ele, a uma pacificação igualmente parcial e relativa. 0 crescimento dos Estados conquistadores contribuiu para isso. Estou ciente de que os grandes Estados modernos, tomando o lugar dos feudos da Idade Média, fizeram reinar uma paz bastante incompleta, e até aqui bastante curta, mas cuja extensão e duração vão aumentan­ do, tal como os exércitos grandiosos de hoje em dia. Negar que a concorrência culmine no monopólio (ou na associação) e imaginar que se está defendendo a concorrência de seus detratores é, ao contrário, recusar a única desculpa que se poderia alegar: como se, para defender o militarismo dos ataques de que ele é objeto, nos esforçássemos para demonstrar que a guerra não produz a paz depois da vitória. E bem verdade que a guerra só produz a paz para renascer da própria paz, e numa escala ainda maior; do mesmo modo, a concorrência só se apazigua momentaneamente na associação para renascer da própria associação, sob a forma de rivalidades entre associações, corporações, sindicatos e assim por diante; mas chega-se assim, finalmente, a associações gigantes que, não podendo mais expandir-se, só poderão, depois de travarem seus combates, associar-se. Existe uma terceira grande forma de luta social, a discussão. Ela está sem dúvida implicada nas formas precedentes, mas se a guerra e a concorrência são discussões, uma é a discussão com atos mortíferos, e a outra, a discussão com atos ruinosos. Falemos um pouco da pura e simples discussão que se vale de palavras. Também ela, quando evolui (pois existem numerosas e pequenas discussões privadas que não evoluem, e felizmente morrem ao nascer), evolui da maneira que descrevemos, embora o fenômeno seja nesse caso mais difícil de perceber. Lembremos que somente quando a discussão mental entre duas ideias contraditórias pre­

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

sentes no mesmo cérebro chegou ao fim é que se torna possível

costumes regionais que foram, por sua vez, finalmente substituí­

a discussão verbal entre dois homens que resolveram a questão

dos por uma legislação uniforme. A unanimidade científica, que se

de maneiras diferentes. Do mesmo modo, se a discussão verbal

constituiu lentamente e, em larga medida, por meio de uma série

escrita ou impressa que ocorre entre grupos de homens, e entre

de discussões (ora encerradas, ora revividas) entre cientistas e

grupos cada vez mais extensos, substitui a discussão verbal entre

escolas científicas, daria lugar a considerações semelhantes.

74

75

dois homens, é sob a condição de que ela tenha sido encerrada em

Entre todas as formas de discussão, existe uma, a discussão

cada um desses grupos por um acordo relativo e momentâneo, por

jurídica (o processo, civil ou comercial), que chama a atenção. Se­

uma espécie de unanimidade, inicialmente fragmentada em uma

ria verdade que também o processo pode ampliar-se, e por causa

infinidade de pequenas facções, de pequenos clãs, de pequenas

dessa ampliação mesma, caminhar em direção à sua pacificação?

igrejas, de pequenas ágoras, de pequenas escolas que se combatem,

Sim - por mais estranha que essa proposição possa parecer à pri­

e depois de muitas polêmicas, concentrada em um número muito

meira vista. Em primeiro lugar, é certo que os processos, entre os

pequeno de grandes partidos, de grandes religiões, de grandes

povos primitivos, não diferem das guerras privadas; de fato, sem

grupos parlamentares, de grandes escolas de filosofia ou arte entre

a presença soberana do Estado-juiz, a maior parte das diferenças

os quais são travados os supremos combates. Não foi assim que

entre litigantes seria resolvida na base da violência. Os processos

se estabeleceu, pouco a pouco, a unanimidade católica? Não foi

são duelos atenuados, guerras embrionárias. Reciprocamente, as

à custa de discussões muito vivas, às vezes sangrentas, entre os

guerras são processos entre nações, proces§os que seguem seu

fiéis de cada igreja local, que se chegou, nos dois ou três primeiros

desenvolvimento natural em razão da ausência de uma autoridade

séculos da Igreja, a um acordo sobre um pequeno credo, que por sua

supranacional. Assim, se compararmos as querelas judiciais que

vez estava em desacordo com o credo das igrejas vizinhas, dando

hoje ocorrem em nossos tribunais com as querelas medievais, em

lugar a colóquios, a concílios provinciais que resolviam as dificul­

que as partes eram campeões armados, ou com as querelas das

dades, mas que por vezes se contradiziam e acabavam levando

tribos germânicas, nos convenceremos de que o ardor litigioso

suas querelas para o seio dos concílios nacionais ou ecumênicos?

não cessou de adocicar-se. E eu posso acrescentar que ele se

A unanimidade política da antiga França monárquica foi produzida

adocicou por causa de suas próprias ampliações. Pode-se dizer,

do mesmo modo, e a unanimidade política da nova França, num

com efeito, que as questões jurídicas se ampliaram à medida que

sentido democrático, está igualmente em vias de produzir-se. Do

os costumes locais cederam lugar aos costumes provinciais e, por

mesmo modo se estabeleceu aquilo que de bom grado eu chamaria

fim, às leis nacionais; a cada etapa de unificação jurídica, cada

de unanimidade linguistica, ou seja, a unanimidade da língua nacio­

forma de processo, ou seja, cada dificuldade jurídica que dá lugar

nal: posteriormente às rivalidades entre dialetos e provincialismos

a duas interpretações diametralmente opostas, toma um caráter

rebeldes ao purismo ortodoxo. Também a unanimidade jurídica

mais geral. Ora, é generalizando-se dessa forma que cada espécie

se estabeleceu, há muito tempo, de maneira análoga: inumeráveis

de discussão judicial chega finalmente à sua última etapa: uma

costumes locais pacificaram milhares de discussões jurídicas dis­

decisão da Suprema Corte que elimina novas instaurações desse

tintas (mas não todas, como o mostram os processos), e depois

gênero de processo. Quantas vezes isso não aconteceu ao longo de nosso século!

esses costumes, conflitantes entre si, foram unificados em alguns

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/Is Leis Sodais

Gabriel Tarde

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Poderiam objetar-me, casualmente, que os povos se tornam

apaziguamentos intermitentes e crescentes que se alternam com

cada vez mais discutidores à medida que se civilizam, e que as

retomadas da discórdia, amplificada e centralizada, até o acordo

discussões públicas, as polêmicas na imprensa e os debates par­

final, ainda que relativo. A consequência disso - e nós temos

lamentares alimentam as discussões verbais privadas em vez de

várias outras razões para pensar assim - é que a oposição-luta

substituí-las; mas essa objeção não se sustentaria. Se selvagens

desempenha, no mundo social bem como no mundo vivente e no

e bárbaros discutem pouco - felizmente, já que a maior parte de

mundo inorgânico, apenas o papel de um termo médio, destinado a

suas discussões degenera em brigas e combates - é porque eles,

desaparecer progressivamente, a esgotar-se e eliminar a si mesma

por assim dizer, não falam e não pensam. Dado o número infinita­

em virtude de seu próprio crescimento, pelo qual ela corre em

mente pequeno de suas ideias, é surpreendente que eles briguem

direção à sua própria destruição. E chegou o momento de dizer,

com tanta frequência; e é espantoso que pessoas com tão poucos

ou de redizer mais explicitamente, qual é a verdadeira relação

interesses diferentes encontrem tantos motivos para litigar. Por

entre esses três grandes aspectos científicos do universo que eu

outro lado, se há uma coisa que mal notamos e que deveria desper­

denominei de Repetição, Oposição e Adaptação dos fenômenos.

tar nossa admiração, é que exista, em nossas cidades civilizadas,

Os dois últimos procedem do primeiro, e o segundo é ordinaria­

uma imensa corrente de ideias despertadas em nós pela conver­

mente, mas nem sempre, o intermediário entre o primeiro e o

sação e pela leitura, porém tão poucas discussões, e discussões

terceiro. É porque as forças físicas se propagam ou tendem a se

tão pouco acaloradas. Deveríamos ficar estupefatos ao ver tantos

propagar em progressão geométrica - em virtucip de sua repetição

homens pensarem e falarem e se contradizerem tão pouco, ao

ondulatória - que elas interferem entre si, ou então se adaptam e

vê-los agirem tanto e se enfrentarem tão pouco, do mesmo modo

se combinam; e suas interferências-choques parecem apenas ser­

que vemos tão poucos acidentes de trânsito em nossas ruas tão

vir para preparar suas interferências-alianças, suas combinações.

animadas e apinhadas, ou tão poucas guerras numa época de

É porque as espécies vivas tendem a se propagar em progressão

relações internacionais tão extensas e complicadas! E o que nos

geométrica - em virtude da repetição hereditária de seus exem­

colocou mais ou menos de acordo a propósito de tantos pontos?

plares individuais - que elas interferem, seja em cruzamentos

Estas três grandes coisas, elaboradas sucessivamente ao longo de

bem-sucedidos e fecundos, seja nos combates pela vida tão bem

discussões que duraram séculos: a Religião, a Jurisprudência e a

estudados pelos darwinistas (que só perceberam a interferência

Ciência. Notemos também que, num país civilizado, as discussões

vital pelo seu lado violento, no qual eles viram, com um exagero

públicas sobrepujam e muito, em importância, em candente inte­

evidente, o único ou o principal meio de criação de novas espé­

resse e mesmo em vivacidade, as discussões privadas; é o inverso

cies, ou seja, de readaptação das antigas espécies). E é também

do que ocorre num país bárbaro. Nossas sessões parlamentares

porque as realidades sociais em geral (um dogma, uma locução,

são de uma violência crescente, ao passo que o tom das discussões

um princípio científico, uma regra moral, uma prece, um proce­

nos cafés e nos salões torna-se cada vez mais doce.

dimento industrial, etc.) tendem a se propagar geometricamente

Em resumo, sob suas três formas principais - guerra, con­ corrência, discussão - a oposição-luta em nossas sociedades humanas mostra-se obediente à mesma lei de desenvolvimento:

pela repetição imitativa que elas - com ou sem êxito - interferem, ou seja, se encontram pelo seu lado dissonante em determinados cérebros, onde suscitam duelos lógicos e teleológicos, primeiro

78

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

79

germe das oposições sociais (guerras, concorrências, polêmicas),

que, adotada ou monopolizada por um dos rivais da indústria, lhe

ou então se encontram, pelo seu lado harmonizável, em cérebros

assegura o triunfo, e momentaneamente põe fim à concorrência; a

geniais (mas também em cérebros ordinários), suscitando verda­

invenção filosófica, científica, jurídica ou estética que interrompe

deiras alianças lógicas, invenções, iniciativas fecundas, fontes de

bruscamente inumeráveis discussões, mesmo que seja para dar

todas as adaptações sociais.

origem, mais tarde, a novas discussões. Eis aí a única utilidade,

Eis aí os três termos de uma série circular capaz de encadear-

a única razão de ser da oposição; mas quantas vezes a invenção

-se sem fim. Pois é repetindo-se por imitação que a invenção - a

pela qual ela clama deixa de atender ao seu chamado! Quantas

adaptação social elementar - se difunde e se fortifica, tendendo,

vezes a guerra abate o gênio ao invés de estimulá-lo! E quantos

pelo encontro de uma de suas irradiações imitativas com uma

talentos são esterilizados pelas polêmicas da imprensa, pelos de­

irradiação imitativa emanada de alguma outra invenção, antiga

bates parlamentares, pela vã esgrima dos Congressos! Tudo que

ou nova, a suscitar ora novas lutas, ora (diretamente ou por

se pode afirmar - e que confirma o que já foi dito - é que a ordem

meio dessas lutas) novas e mais complexas invenções, que em

histórica de preponderância sucessiva das três formas de luta é

breve também irão irradiar imitativamente, e assim por diante,

precisamente a de sua aptidão a estimular a inventividade: com

ao infinito. Notemos que tanto o duelo lógico como a síntese ló­

efeito, passa-se de uma era em que a guerra é preponderante a uma

gica, tanto o elemento social da oposição-luta como o elemento

fase em que a concorrência predomina, e enfim a discussão. Além

social da adaptação têm necessidade da repetição imitativa para

disso, numa sociedade que se civiliza, a troca se desenvolve mais

socializar-se, para generalizar-se e crescer. A única diferença é

rapidamente do que a concorrência, a conversação se desenvolve

que a propagação imitativa do estado de discórdia interior entre

mais rapidamente do que a discussão, e o internacionalismo, mais

duas ideias, ou mesmo do estado de discórdia exterior entre dois homens que escolheram uma dessas ideias, irá fatalmente sofrer

rapidamente do que o militarismo. Acabamos de falar somente das oposições-lutas, aquelas

um desgaste e pôr fim a essa discórdia dentro de um determinado

que acontecem entre termos simultâneos que se chocam. Quanto

tempo, pois todo combate é fatigante e culmina numa vitória; en­

às oposições-ritmos, que consistem em termos sucessivos (qua­

quanto a propagação imitativa do estado de harmonia (ao mesmo

lidades ou quantidades, pouco importa), de uma alta seguida de

tempo interno e externo) alcançado pela iluminação de uma nova

uma baixa ou de uma ida seguida de um retorno e vice-versa,

verdade, síntese de nossos conhecimentos anteriores e comunhão

pode parecer à primeira vista que elas sejam menos enigmáti­

de nosso espírito com todos os espíritos que comungam com ela,

cas do que as outras, já que não são paralisias e destruições

não tem razão alguma para deter-se e se fortificará ao avançar. Dos

mútuas de forças. No entanto, se olharmos mais de perto, esse

três termos comparados entre si, o primeiro e o último ultrapassam

vaivém de forças que constituem sucessivamente um “a favor”

largamente o segundo em altura, em profundidade, em importância

e um “contra”, ou que dizem um “sim” e um “não”, é ainda mais

e talvez em duração. A única utilidade do segundo, a oposição, é a

difícil de compreender do que o choque entre duas forças que se

de provocar uma tensão das forças antagonistas aptas a suscitar

encontram e se equilibram. Pois essas interferências destrutivas

o gênio inventivo: a invenção militar que, ao dar a vitória a um dos

têm, ao menos, um caráter acidental, não desejado, e nós sabemos

lados, momentaneamente põe fim à guerra; a invenção industrial

que elas são quase inseparáveis das interferências criadoras, tal

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81

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

como a sombra e o corpo; isso para não mencionar que, em nós,

e comum a toda atividade motora”.34 Mas a repetição, a marcha

o equilíbrio e a neutralização recíproca das tendências contrá­

regular dos fenômenos, e apenas a condição de seu itinerário, de

rias, das sugestões rivais que vêm de fora, permitem a eclosão

sua evolução, sempre mais ou menos irregular e pitoresca, e que

de nossa originalidade natural, sendo essa, possivelmente, uma

se torna mais e mais irregular e pitoresca à medida que progride.

das melhores justificativas da luta em geral. Mas o ritmo, seja ele

Ora, é só na marcha, mas de modo algum no itinerário, que o

qualitativo ou quantitativo, parece ser um jogo normal no qual

vaivém rítmico apresenta alguma precisão. E é assim até mesmo

as forças se comprazem e que foi desejado por elas. E confesso

no que diz respeito ao ritmo quantitativo, essas altas e baixas

que se eu tivesse sérias razões para considerar esse vaivém, essa

gerais que a estatística permite medir no curso de uma civilização

flutuação pueril, como algo que ocorre num plano mais amplo -

em processo de desenvolvimento. É extremamente raro, nesse

ou seja, se pensasse que a dissolução fosse exatamente o inverso

caso, que o aumento e a diminuição constatados sejam iguais ou

da evolução, a regressão o inverso da progressão, e que tudo se

semelhantes; que as curvas ascendentes de riqueza, por exemplo,

pusesse a recomeçar indefinidamente sem nenhuma orientação de

ou do preço dos valores da Bolsa, da fé religiosa, da instrução,

conjunto - eu seria tomado por um desespero schopenhaueriano.

da criminalidade, etc., se reflitam de maneira inversa nas curvas

Felizmente não é assim, e o ritmo, o ritmo mais ou menos preciso,

descendentes de mesma natureza e com as mesmas caracterís­

regular, verdadeiramente digno desse nome, mostra-se em toda

ticas. Isso é bem conhecido pelos estatísticos. Eu já me referi ao

parte, mas apenas nos detalhes dos fenômenos, sendo a própria

caráter irreversível de várias evoluções sociais, justamente as

condição de sua repetição precisa, e por isso mesmo, condição

mais importantes, e não preciso voltar a esse ponto.

de sua variação. A gravitação de um astro só se repete em razão

Para concluir, a oposição, sob suas duas grandes formas,

de suas idas e vindas elípticas; uma onda sonora ou luminosa só

revela e acentua cada vez mais seu caráter simplesmente auxiliar

se repete em razão de um ir e voltar retilíneo, circular ou elíptico;

e intermediário: como ritmo, ela só serve diretamente à repetição,

a contração de um elemento muscular e a inervação de um ele­

e indiretamente à variação, desaparecendo quando esta aparece.

mento nervoso só se propagam, num músculo ou ao longo de um

Como luta, ela só serve para suscitar a adaptação, da qual iremos

nervo, sob condição de voltarem ao seu ponto de partida. Baldwin

agora nos ocupar.

mostrou recentemente que também a imitação é “uma reação circular”, e que se pode defini-la como “uma reação muscular que procura alcançar os estímulos capazes de reconduzir aos mesmos estados, que novamente tenderão aos mesmos estímulos e assim por diante”. No livro de onde retirei essa citação, ele estende o uso da palavra imitação muito além da minha acepção, e generalizando-a ao ponto de fazê-la abranger ao mesmo tempo todo o funcionamento vital e todo o funcionamento social, ele escreve o seguinte: “O tipo de reações ou repetições circulares que nós chamamos de imitação é um tipo fundamental, sempre o mesmo

34 A tradução americana d'As Leis Sociais, prefaciada pelo próprio James Baldwin, alterou ligeiramente o texto deTarde ao incorporar a redação original das citações do livro Mental Development in the Child and the Race (3aed., p. 151 e p. 23). Como isso pode ser dealgum interesse para o pesquisador, eis aqui a reprodução desse trecho: ... Baldwin has recently shown that im itation itself is a "circular reaction,"and that it may be defined as a"brain-state due to stim ulating conditions, muscular reaction which repro­ duces or retains the stimulating conditions, same brain-state again due to same stimulating conditions, and so on." In the work from which this quotation is taken, he extends the meaning o f the word im itation far beyond that which I assigned it; and, generalizing the term in such a way as to include both the vital and the social functions, he writes: "The self-repeating or circular type o f reaction, to which the name im itation is given... is seen to be fundam ental and to remain the same, as far as structure is concerned, for all motor activity whatever." Gabriel Tarde. Social Laws, trad. Howard C. Warren, Macmillan, New York, 1899, p. 141. (N. do T.)

Terceiro capítulo Adaptação dos fenômenos

A

s explicações datias nas duas conferências anteriores já nos prepararam para compreender o verdadeiro sentido da palavra “adaptação”, que exprime o aspecto

mais profundo sob o qual a ciência aborda o universo. Veremos mais uma vez que a evolução da ciência - seja qual for o tipo de realidades às quais se aplique - consiste na passagem do gran­ de ao pequeno, do vago ao preciso, do falso ou superficial ao

verdadeiro e ao profundo; ou seja, ela consiste primeiramente em descobrir ou imaginar uma imensa harmonia de conjunto ou algumas grandes e vagas harmonias exteriores, que vão sendo gradualmente substituídas por inumeráveis harmonias interiores, um número infinito de infinitesimais e fecundas adaptações. Veremos também que a evolução da realidade, que aqui como alhures é precisamente inversa à do conhecimento, consiste numa tendência incessante das pequenas harmonias interiores a exteriorizar-se e amplificar-se progressivamente. Incidentalmente, não deixaremos de notar, como fizemos ante­ riormente, que se o progresso do saber nos faz descobrir novas e mais profundas harmonias, ele também nos revela muitas de­ sarmonias, ainda mais profundas, que antes não percebíamos. Comecemos com algumas definições ou explicações neces­ sárias. 0 que é exatamente uma adaptação, uma harmonia natural? Tomemos um exemplo fora do contexto da vida, pois nesta o vínculo teleológico entre o órgão e a função é tão claro que não precisa ser explicado: o leito de um rio. Percebe-se aqui uma montanha, ou uma cadeia de colinas, adaptada ao escoamento das águas do rio; os raios do Sol adaptados à evaporação das águas do oceano em nuvens; e os ventos adaptados ao transporte dessas nuvens para

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o cume das montanhas, de onde elas voltam a cair em chuvas que

sistema solar: pois um corte transversal da Terra mostraria, entre

alimentam as fontes, os riachos e os pequenos rios, afluentes dos

o centro e a circunferência, uma sucessão de camadas incan­

grandes cursos d água. Existe um equilíbrio móvel, um circuito de

descentes, depois solidificadas, depois líquidas, depois gasosas,

ações encadeadas que se repetem - que se repetem com variações.

cada qual necessária à seguinte, e essa sucessão seria análoga à

Pode-se dizer que um ser vivo é um circuito semelhante a esse,

encontrada nos astros, desde o Sol, no centro, até Netuno, que é

só que muito mais complicado, e onde a adaptação não é apenas

gasoso. De qualquer modo, pouco nos importa se essa analogia é

unilateral, como nesse exemplo, mas recíproca. O órgão serve à realização da função vital e, reciprocamente, a função vital serve

verdadeira ou não. Um agregado qualquer é um composto de seres adaptados

à manutenção do órgão; ao passo que, nos ciclos planetários da

entre si, seja uns com os outros, seja num conjunto subordinado

água, a montanha está adaptada ao escoamento da água, mas o

a uma função comum. Agregado significa adaptat,36 Mas, além dis­

escoamento da água, ao invés de servir à manutenção da montanha,

so, diversos agregados que possuem relações entre si podem ser

tem poi efeito o seu desnudamento e mesmo, de maneira gradual, a

coadaptados, constituindo um adaptat de um grau superior. Seria

sua supressão. É também sem nenhuma reciprocidade que o calor do Sol está adaptado à irrigação do solo.

possível distinguir, desse modo, uma infinidade de graus. Para

Lembremos que sempre se trata de uma harmonia que se

tação. A adaptação de primeiro grau é aquela que ocorre entre os

repete. Acabamos de ver um exemplo; vejamos outros. Cada pla­

elementos do sistema considerado; a adaptação de segundo grau é

neta de um sistema solar, considerado do ponto de vista mecânico,

aquela que os une aos sistemas que os cercam, àquilo que podemos

simplificar, façamos uma distinção entre apenas dois graus de adap­

ou seja, como um ponto que se move, apresenta o espetáculo de

chamar, muito vagamente, de seu “meio”. 0 ajustamento a si mesmo

uma harmonia entre sua propensão a fundir-se no Sol e sua ten­

difere muito, em toda ordem de fatos, do ajustamento a outrem,

dência a afastar-se dele tangencialmente: se essas duas forças,

tal como a repetição de si (hábito) difere da repetição de outrem

centrípeta e centrífuga, se exercessem ao longo de uma linha reta,

(hereditariedade e imitação), tal como a oposição a si mesmo (he­

haveria oposição, mas como elas são perpendiculares entre si, o

sitação, dúvida) difere da oposição a outrem (luta, concorrência).

que existe é adaptação. (Assim, na natureza, oposição e adaptação

Muitas vezes esses dois tipos de adaptação, em certa medida, se

se transformam uma na outra.)35 Ora, a gravitação do planeta é a

excluem mutuamente; é o caso das constituições políticas, onde se

repetição, a repetição variada, dessa adaptação mecânica. Mesmo

observa com bastante frequência que as mais coerentes, as mais

se o considerarmos em termos geológicos - do ponto de vista de

logicamente deduzidas (apresentando portanto o mais alto grau de

sua composição estratigráfica e físico-química

um planeta é um

adaptação de primeiro grau) são as menos adaptadas às exigências

agenciamento muito harmonioso de estratos superpostos; e se a

de seu meio tradicional e costumeiro, e que, reciprocamente, as

esse respeito dermos crédito a Stanislas Meunier, tal agenciamento

mais práticas são as menos lógicas. A mesma observação aplica-se

se repetirá em cada planeta, e mesmo na constituição geral do

às gramáticas de tantas línguas, às religiões, às belas-artes, etc.:

Também um ciclone ou trom ba d'água é uma harmonia atmosférica, um circuito de ações que se deve ao acordo entre duas forças que não se entravam mutuam ente mas se completam em sua resultante.

36 Adaptat é a 3a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino adapto (infi­ nitivo adaptare): adequar, ajustar, adaptar. 0 uso que Tarde faz do term o adaptat (como substantivo) é análogo ao uso, bem mais corrente, de outro termo latino: habitat. (N. doT.)

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a única gramática perfeita, com regras sem nenhuma exceção, é a

constelações esparsas de resplandecente desordem. Desde sempre

do... volapuque.37Ela também é aplicável aos organismos: há entre

apaixonada pela ordem, a razão humana logo teve de renunciar à

eles alguns que são perfeitos, mas que não são viáveis, e que se

sua busca pelas marcas mais evidentes de uma coordenação divi­

tornariam mais viáveis se fossem menos perfeitos. A perfeição de

na na totalidade do mundo - o Cosmos, o mais alto objeto de sua

sua acomodação pode atrapalhar sua flexibilidade.38

admiração. Ela teve de descer ao sistema solar para encontrá-las, e

Feitas essas indicações preliminares, mostremos a verdade

quanto mais ela conhecia deste pequeno mundo, mais encontrava

das duas teses enunciadas acima. Os partidários das causas finais

nos detalhes, e não no conjunto desse belo agrupamento de massas,

fizeram tudo o que podiam para desacreditar a ideia de finalidade.

os motivos para extasiar-se. Mais do que as relações entre os pró­

Não é menos certo, no entanto, que os primeiros balbucias da

prios planetas, era a relação de cada um deles com seus satélites, e

ciência datam do momento em que essa noção foi introduzida,

mais ainda, era a superfície de cada um desses globos, sua formação

mesmo que de forma mística e bem pouco racional, na concepção

geológica, seu regime de águas, que revelavam um acordo perfeito

do mundo. Diante da visão do céu estrelado, com que sonhou a

e surpreendente. Doravante, já não é mais em direção à imensa

ciência primitiva? Com uma adaptação imensa, única, quimérica,

abóbada celeste que a alma religiosa deve voltar-se para adorar a

nascida da ilusão que aprendemos a chamar de geocêntrica, segun­

sabedoria profunda que move este mundo; agora, é para o cadi­

do a qual todas as estrelas existem para a Terra; a Terra, e sobre

nho do químico que ela deverá olhar se quiser escrutar o mistério

ela uma cidade ou um burgo seriam o único foco de interesse do

das harmonias físicas mais precisas e maravilhosas, ainda mais

firmamento, perpetuamente inquieto acerca do destino desses

admiráveis do que a mixórdia estrelada: as combinações químicas.

seres efemeros que nós somos. A astrologia foi o desenvolvimento

Se, por meio do uso de um microscópio suficientemente forte, pu­

lógico dessa grandiosa e imaginária adaptação do céu à Terra e ao

déssemos perceber o interior de uma molécula, ficaríamos muito

homem. A verdadeira astronomia não somente fez desaparecer essa

mais fascinados pela mescla prodigiosa de movimentos elípticos

absurda harmonia, mas também quebrou a unidade da harmonia

e circulares que provavelmente a constituem do que com o jogo,

celeste ao dividi-la em várias harmonias parciais, tão numerosas

no fim das contas bastante simples, dos grandes piões celestes!

quantos os próprios sistemas solares, coerentes neles mesmos e

Se passarmos do mundo físico ao mundo da vida, também

simetricamente coordenados, porém ligados entre si por liames

constataremos que o primeiro procedimento da razão foi conce­

muito vagos e duvidosos, agrupados em nebulosas informes, em

ber a criação orgânica inteira, vegetal e animal, como uma única e grandiosa adaptação aos fins da humanidade, destinada à sua

37 Linguagem artificial criada em 1880 pelo clérigo alemão Johann Martin Schleyer. (N. doT.) 38 Sendo dada uma visão espiritual ou ideia, pode-se progredir intelectualmente a partir dessa ideia (que é, em geral, uma mistura de verdade e erro) em dois sentidos diferentes: (I o) Apenas no sentido de uma adaptação de primeiro grau, ou seja, de uma harmoniza­ ção gradual dessa ideia consigo mesma, de sua diferenciação e coesão interna (esse é o desenvolvimento de muitas teologias e metafísicas); (2°) No sentido de uma adaptação de segundo grau, isto é, de uma harmonização gradual dessa ideia com os dados dos sentidos, com os aportes exteriores da percepção e da descoberta (desenvolvimento científico). No primeiro caso, o progresso muitas vezes consiste em passar de um erro m enor a um erro maior.

nutrição, diversão, proteção, e também para avisá-la sobre perigos ocultos. As práticas divinatórias e o totemismo, difundidos desde as origens entre todos os povos, têm o mesmo fundamento. E os progressos do saber podem muito bem ter dissipado essa ilusão antropocêntrica, mas algo dela permaneceu no erro científico que reinou durante tanto tempo entre os filósofos naturalistas: o de re­ presentar a série paleontológica como uma ascensão em linha reta

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As Leis Sociais

até o homem, e o de encarar cada espécie viva ou extinta como uma nota num grande concerto chamado de Plano divino da natureza, edifício ideal e regular cujo apogeu era o homem. Penosamente, à força dos desmentidos acumulados pela observação, ele precisou desprender-se de uma ideia que lhe era tão cara, reconhecendo que não é nas grandes linhas da evolução dos seres (tão ramificadas e tortuosas), e nem mesmo nos grandes agrupamentos de espécies diferentes em faunas e floras regionais (apesar da notável adapta­ ção revelada nos casos de comensalismo ou em determinadas rela­ ções entre insetos e flores) que a natureza demonstra no mais alto grau sua maravilhosa potência de harmonia, mas sim nos detalhes de cada organismo. A meu ver, os partidários das causas finais39 comprometeram a ideia de finalidade ao empregá-la de maneira abusiva e errônea, mas não excessiva; ao contrário, eu poderia criticá-los por terem feito dessa ideia, com seus hábitos mentais unificadores, um uso demasiadamente restrito. Não existe um fim na natureza, um fim em relação ao qual todo o resto seria um meio; o que existe é uma multidão infinita de fins que tentam servir-se uns dos outros. Cada organismo, e cada célula de cada organismo, e talvez cada elemento celular dentro de cada célula, possui sua própria pequena providência particular. Assim, tal como antes, também aqui somos levados a pensar que a força harmonizadora - ao menos aquela com a qual a ciência tem o direito de ocupar-se, sem negar a possibilidade de que alguma outra exista - não é imensa e única, exterior e superior, mas infinitamente multiplicada, infinitesimal e interna. A bem dizer, a fonte de todas as harmonias vitais (às quais temos um acesso cada vez mais restrito à medida que nos afastamos desse ponto de partida para abranger um campo mais vasto) é o óvulo fecundado, interseção viva de linhagens que se encontraram ali, num cruzamento às vezes feliz, início de novas

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aptidões que irão, por sua vez, se difundir e propagar, graças à seleção dos mais aptos ou à eliminação dos menos aptos. Voltemo-nos para o mundo social. Os teólogos, que sempre foram (sem sabê-lo) os primeiros sociólogos, frequentemente concebem a grande rede de todas as histórias dos povos da Terra como algo que converge, desde os primórdios da humanidade, para o. advento de seu próprio culto. Leiam Bossuet. A sociologia pode muito bem ter se tornado laica, mas nem por isso libertou-se desse gênero de preocupação. Comte transpôs magistralmente o pensamento de Bossuet, que ele tinha boas razões para admirar: para ele, toda a história da humanidade converge para a era e o reino de seu próprio positivismo, espécie de neocatolicismo laico. Aos olhos de Augustin Thierry, de Guizot e de outros historiadores filósofos, todo o curso da história europeia parecia convergir, por volta de 1830, para a Monarquia de Julho... A bem dizer, Comte não fundou a sociologia, e o que ele nos oferece sob esse nome é ainda uma simples filosofia da história, embora admiravelmente deduzida; é a última palavra em termos de filosofia da história. Como todos os “sistemas” que assim foram nomeados, sua con­ cepção apresenta-nos a história humana (ou melhor, essa mixórdia confusa de novelos multicoloridos) sob a aparência de uma única e mesma evolução, representação única e solitária de uma espécie de trilogia ou de tragédia única, agenciada segundo as regras do gênero, na qual tudo se encadeia, na qual cada um dos três estados encadeados se compõe de fases ligadas entre si, cada elo adaptado e encadeado exclusivamente ao elo seguinte, e na qual tudo se precipita irresistivelmente para o grande e derradeiro desenlace. Com Spencer, deu-se um grande passo em direção a um entendimento mais salutar da adaptação social: sua fórmula de evolução social já não é aplicável somente a um Drama único, e sim a um determinado número de Dramas sociais diferentes. Ao formular leis do desenvolvimento linguístico, religioso, econômico, político,

39 No original, "les cause-finaliers" (grifo do autor), expressão usada por Voltaire no seu Dictionnaire Philosophique. (N. doT.)

moral, estético, os evolucionistas de sua escola também admitem,

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ao menos implicitamente, que essas leis estão aptas a reger todos

meio de ação ao legado secular da humanidade, e que, por meio

os povos que existem ou existirão, e não apenas uma pequena

dessa contribuição, tornaram as relações entre os homens mais

parcela de povos aos quais reservamos o privilégio de serem cha­

harmoniosas ao desenvolver a comunhão de seus pensamentos e

mados de históricos. Entretanto (ao mesmo tempo multiplicado e

a colaboração de seus esforços. De maneira inversa aos filósofos

com dimensões reduzidas), é sempre o mesmo erro que reapare­

que acabei de mencionar, constato que somente o pormenor dos

ce: o de acreditar que, para observar nos fatos sociais o gradual

fatos humanos abriga adaptações notáveis, que é ali que reside o

surgimento da regularidade, da ordem, do encadeamento lógico,

princípio das harmonias menores que podem ser percebidas num

é preciso abandonar seus detalhes, essencialmente irregulares, e

domínio mais amplo, e que, quanto mais nos elevamos de um pe­

elevar-se bem alto, até abraçar numa visão panorâmica os mais

queno grupo social bastante unido (família, escola, oficina, igreja

vastos conjuntos; que o princípio e a fonte de toda coordenação

local, convento, regimento) à cidade, à província e à nação, menos

social reside em algum fato de caráter muito geral do qual ela desce

notável e perfeita será a solidariedade. Em geral, existe mais lógica

gradualmente até os fatos particulares, porém enfraquecendo-se

numa frase do que em um discurso, e num discurso do que em uma

singularmente; e que, em resumo, o homem agita-se, mas é uma

série ou grupo de discursos; num rito singular do que em todo um

lei de evolução que o conduz.

credo; num artigo da lei do que em um código inteiro; numa teoria

Eu acredito que, de algum modo, é exatamente o contrário.

científica particular do que em todo um corpo científico; assim

Não é que eu negue que existam, entre as diversas e multiformes

como há mais lógica em cada tarefa executaçla por um trabalhador

evoluções históricas dos povos, como nos rios que correm numa mesma bacia, algumas inclinações comuns; e eu sei muito bem

do que no conjunto de sua conduta. Notemos que será assim a menos que uma potente indivi­

que, se muitos desses riachos ou rios se perdem pelo caminho, os

dualidade intervenha para regulamentar e disciplinar os fatos de

demais, por uma série de confluentes, acabam por confundir-se

conjunto. Esse tipo de intervenção, aliás, tende a se tornar cada vez

numa mesma corrente geral que, apesar de sua divisão em braços

mais frequente, pois a civilização se caracteriza pelas facilidades

diversos, não parece destinada a fracionar-se em múltiplos estuá­

que oferece à realização de um programa individual de reorgani­

rios. Mas eu também vejo que a verdadeira causa desse derradeiro

zação social; e nesse caso, nem sempre é verdade que a harmonia

rio, nascido dos demais rios, dessa preponderância final de uma

dos agenciamentos esteja em razão inversa de sua massa: muitas

evolução social (a dos povos qualificados como históricos) entre

vezes, e cada vez mais frequentemente, as massas mais volumosas

todas as outras, é a série de descobertas da ciência e de inven­

podem ser as mais harmoniosas. Por exemplo, a administração fran­

ções da indústria que se acumularam sem cessar, utilizando-se

cesa, organizada pelo gênio despótico de Napoleão, está tão bem

reciprocamente, formando sistema e feixe, e cujo encadeamento

adaptada à sua finalidade geral quanto suas menores engrenagens

dialético real, não menos sinuoso, parece refletir-se vagamente no

aos seus próprios fins; a rede de estradas de ferro da Prússia está

dos povos que contribuíram para produzi-lo. E se remontarmos

tão bem adaptada à sua finalidade estratégica quanto cada uma de

à verdadeira fonte dessa grande corrente científica e industrial,

suas estações às suas próprias finalidades comerciais ou outras;

nós a encontraremos em cada um dos cérebros geniais, obscu­

os sistemas de Kant, Hegel ou Spencer são tão coerentes em sua

ros ou célebres, que adicionaram uma verdade nova ou um novo

ordenação geral quanto algumas das pequenas teorias parciais que

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/4s Leis Sociais

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lhes servem como base. Uma legislação bem codificada pode apre­

para que, em primeiro lugar, exista um dom para o consumidor, o

sentar tanta ordem no arranjo de suas seções e capítulos quanto

dom da coisa produzida (pois a troca é a dádiva tornada mútua, e

em cada uma das leis parciais que ela reúne na relação entre suas

como tal, vem depois da dádiva unilateral), é preciso que o produtor

diversas disposições; e quando uma religião foi retrabalhada por

tenha inicialmente duas ideias: a da necessidade do consumidor ou

uma teologia vigorosa, o encadeamento de seus dogmas pode ser

donatário, e a de um meio apto a satisfazê-la. A adaptação exterior

ou parecer mais lógico do que cada um deles considerado à par­

que chamamos de dádiva, e em seguida de troca, não teria sido

te. No entanto, como é fácil perceber, esses fatos, aparentemente

possível sem essa adaptação interior de duas ideias. Do mesmo

contrários aos que foram expostos acima, na realidade contribuem

modo, a divisão de trabalho entre vários homens que executam

para mostrar que o gênio individual é a verdadeira fonte de toda

as diversas tarefas de uma mesma operação, anteriormente exe­

harmonia social. Pois essas belas coordenações tiveram de ser

cutada por um único homem, não teria sido possível se ele não

concebidas antes de ser executadas; e antes de cobrir um território

tivesse a ideia de conceber essas diversas tarefas como partes de

imenso, elas começaram a existir sob a forma de uma ideia oculta em algumas células cerebrais.

um mesmo todo, como meios para um mesmo fim. No fundo de

Diremos agora que a adaptação social elementar é, no fundo, a

qualquer associação entre homens, existe originariamente, repito, uma associação entre as ideias de um mesmo homem.

que existe entre dois homens, um dos quais responde, com palavras

Não posso aceitar a objeção de que essa adaptação das

ou ações, à questão proposta pelo outro, plenamente verbalizada

ideias entre si só merece o nome de social quando ela se exprime

ou tácita? Pois a satisfação de uma necessidade, assim como a

numa adaptação dos homens entre si. Com efeito, ela muitas vezes

solução de um problema, é uma resposta a uma questão. Diremos

se exprime de outro modo, e mais ainda, parece que esse outro

então que essa harmonia elementar consiste na relação entre dois

gênero de expressão tende a prevalecer. Depois que o trabalho

homens, na qual um deles ensina e o outro aprende, um ordena e

realizado por um único homem foi substituído por uma divisão do

o outro obedece, um produz e o outro consome, na qual um é ator,

trabalho entre muitos homens, acontece com frequência que uma

poeta, artista, e o outro é espectador, leitor, amador? Ou diremos

nova invenção faça com que uma única máquina realize todas as

que eles se reuniram e fizeram uma obra em colaboração? Sim, é

fases da operação. Nesse caso, a divisão do trabalho, a associação

isso que diremos, pois embora nessa relação entre dois homens

das tarefas entre homens, só desempenhou o papel de um termo

esteja implicada uma relação entre modelo e cópia, trata-se de algo bem diferente.

médio entre a associação de ideias do primeiro criador da obra e

A meu ver, no entanto, é preciso levar a análise ainda mais

balhadores que a ideia de gênio se encarnou; ela foi materializada

longe e, como já indiquei, buscar a adaptação social elementar no

em pedaços de ferro e madeira. E esse caso tende a generalizar-se

próprio cérebro, no gênio individual do inventor. A invenção que

com a progressiva utilização de máquinas na produção. Suponham,

está destinada a ser imitada - pois aquela que permanece encer­

embora isso seja impossível, que toda a produção humana seja

rada no espírito de seu autor não é socialmente relevante - é uma

realizada pelas máquinas. Já não haverá divisão do trabalho, pois

harmonia de ideias que é a mãe de todas as harmonias entre os

não haverá nenhum ou quase nenhum trabalho, e podemos dizer,

homens. Para que exista uma troca entre produtor e consumidor, e

se quisermos, que já não haverá harmonia social propriamente

a associação das engrenagens da máquina. Não é no grupo de tra­

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

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dita, mas que a união social aumentará; porém essa união social,

É desse progresso intrínseco que queremos falar, ou seja,

ainda mais desejável do que a harmonia, não terá sido o efeito

da tendência de uma invenção, de uma adaptação social dada, a

dessas inumeráveis e infinitesimais adaptações cerebrais? Onde

se complicar e intensificar ao adaptar-se a outra invenção, a outra

encontrar fatores sociais mais potentes do que esses fatos, que seriam puramente individuais?

adaptação, engendrando desse modo uma nova adaptação que,

Nós acabamos de ver que a evolução da sociologia a condu­

gênero, conduzirá a uma síntese mais alta, e assim por diante. Esses

ziu, tal como aconteceu em outros campos, a descer das alturas

dois progressos - o progresso de uma invenção em extensão por

quiméricas das causas vagas e grandiosas até as ações infinitesi­

meio de sua propagação imitativa, e seu progresso em compreensão,

por meio de outros encontros e outras alianças lógicas do mesmo

mais, reais e precisas. Mostremos agora, ou melhor, assinalemos

de algum modo, por meio de uma série de alianças lógicas - são

- pois falta-nos espaço para uma exposição mais detalhada - que

certamente muito distintos, porém longe de serem inversamente

a evolução da realidade social, exatamente inversa à da ciência

proporcionais (apesar da oposição habitual, concernente a outros

social, consistiu na passagem gradual de uma infinidade de har­

aspectos, entre a extensão e a compreensão das ideias), eles mar­

monias muito pequenas a um menor número de harmonias maio­

cham paralelamente e são inseparáveis. A cada aliança cerebral

res, e depois a um número muito reduzido de harmonias muito

de duas invenções em uma terceira —quando, por exemplo, a ideia

grandes, até chegar, num futuro ainda indefinido, à realização do

da roda e a ideia da domesticação do cavalo, depois de se propa­

progresso social em uma civilização única e total, tão harmoniosa

garem independentemente (talvez durante séculos), se fundiram

quanto possível. Note-se que essa lei de alargamento progressivo

e harmonizaram na ideia de carro - foi preciso, necessariamente,

não deve ser compreendida aqui como a tendência à difusão imi-

que a imitação operasse para aproximá-las em um mesmo cérebro,

tativa de uma invenção ou grupo de invenções; isso seria voltar

tal como foi preciso, para o surgimento de cada uma delas, que

à lei da imitação, que nós já conhecemos. E nem mesmo se trata

seus elementos fossem trazidos para o espírito de seus autores por

do incessante alargamento que essa irradiação imitativa propor­

meio de diversas irradiações de exemplos. Melhor ainda, a cada

ciona à harmonia social que chamamos de “divisão do trabalho”

síntese de novas invenções, geralmente é preciso uma irradiação

e que deveríamos antes chamar de “solidariedade dos trabalhos”.

imitativa mais vasta que as precedentes. Existe um entrelaçamento

Ainda que uma indústria permaneça a mesma, sem nenhum novo

contínuo entre essas duas progressões, a progressão imitativa,

progresso, a cooperação social que resulta dela crescerá à medida

uniformizadora, e a progressão inventiva, sistematizadora. Elas

que, por um lado, as necessidades de consumo que ela satisfaz, e

estão ligadas entre si por um vínculo que, sem dúvida, nada tem de

por outro, os atos de produção pelos quais ela supre essa deman­

rigoroso (pois, por exemplo, uma série de árduos teoremas pôde

da, se propagarem por imitação para além da região, inicialmente

desenrolar-se no cérebro de um Arquimedes ou de um Newton

bastante circunscrita, onde ela nasceu. Por mais importante que

sem nenhuma contribuição de elementos trazidos por sábios

seja o fenômeno de crescimento dos mercados, habitual prelúdio

estrangeiros no decorrer de cada uma dessas descobertas), mas

da federação dos povos, não é ele que está em causa aqui. A bem

esse vínculo é suficientemente costumeiro para nos fazer acreditar

dizer, é muito raro que, sem nenhum progresso intrínseco da in­

que constataremos um crescimento da extensão do campo social

dústria, esse progresso extrínseco possa realizar-se.

e da intensidade das comunicações sociais, e uma ampliação e

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

aprofundamento das nacionalidades (senão dos Estados), sempre

conhecimentos40 e também é uma adaptação social; e está longe

que crescerem a riqueza das línguas, a beleza arquitetônica das teologias, a coesão das ciências, a complexidade e a codificação das

de ser uma das menos preciosas. Antes de prosseguir, façamos algumas importantes observa­

leis, a organização espontânea ou a regulamentação dos trabalhos

ções. Em primeiro lugar, notemos a que ponto a ideia de adaptação

industriais, o regime financeiro, a coordenação e a complicação

torna-se mais clara e precisa quando passamos do mundo físico, ou

administrativas, os refinamentos e a variedade da literatura e das belas-artes.

mesmo do mundo vivo, ao mundo social. Será que sabemos com pre­

Mais uma vez, no entanto, é preciso não confundir, como

com a qual ela se combina, ou o que é a adaptação de um grão de

muitas vezes acontece, o progresso da instrução, simples fato de imi­

pólen ao óvulo que, fecundado por ele, dará nascimento a um novo

tação, e o progresso da ciência, fato de adaptação; nem o progresso

indivíduo que talvez seja o primeiro de uma nova raça? Nada sabe­

da industrialização com o progresso da indústria, ou o progresso

mos sobre isso. É verdade que, no caso da interferência entre ondas

da moralidade com o progresso da moral, ou o progresso do mili­

sonoras que, ao invés de se destruírem, se ajudam mutuamente e

tarismo com o progresso da arte militar, ou o progresso da língua,

produzem um reforço do som ou um timbre inesperado, nós estamos

entendido aqui como sua expansão territorial, com o progresso da

um pouco mais bem informados sobre a natureza do fenômeno; no

linguagem, entendido aqui como o refinamento de sua gramática

entanto, esse simples reforço do som, ou mesmo a produção desse

ou o enriquecimento de seu vocabulário. Tomemos estes dois ca­

timbre (que é uma criação original somente do,ponto de vista sub­

sos: a ciência progride enquanto a instrução para de expandir-se;

jetivo de nossas sensações acústicas) nada têm em comum com o

ou então há uma progressiva expansão da instrução enquanto a

fato, objetivamente inovador, da combinação química. Do mesmo

cisão o que é a adaptação de uma molécula ácida à molécula básica

ciência permanece estacionária. Serão eles equivalentes? E será

modo, quando duas espécies animais ou vegetais se encontram,

possível dizer, para falar um tanto vagamente, que houve nesses

ajudando e parasitando uma à outra, trata-se de um caso muito

dois casos um progresso das luzes? Não, pois essas coisas não

claro de mutualismo vital que proporciona um simples aumento

têm uma medida comum. Cada ganho da ciência, cada verdade que

de seu bem-estar e de sua propagação, e não deve ser confundido

se acrescenta ao seu agregado —ao seu adaptat —de proposições

com o caso da fecundação, que continua bastante obscuro. Mas

concordantes entre si, não é uma simples soma, mas antes uma

quando se produz uma feliz interferência, qualquer que seja, entre

multiplicação, uma confirmação recíproca. Mas cada aluno novo

duas irradiações imitativas, ela é sempre transparente para nossa

que se junta aos outros, cada nova edição de um exemplar cerebral

razão. Ela pode consistir simplesmente num estímulo mútuo - como

da ciência ensinada é apenas uma unidade extra adicionada às ou­ tras. Para sermos exatos, reconheçamos que existe aí algo mais do que uma adição: pois a comunhão de inteligência que resulta desse processo, por conta da similitude do ensinamento transmitido às diversas crianças, aumenta a confiança de cada uma delas em seus

40 Notemos de passagem que essa sim ilitude entre os ensinamentos somente é completa na escola primária, e que ela é menor na escola secundária, apesar da uniformidade dos programas de bacharelado [baccalauréat]; e ela é ainda menor nas instituições de ensino superior, onde o livre desacordo das doutrinas é tão frequente. Nota-se aqui o caráter subordinado e mediador da Contradição, da Discussão: o ensino superior, no qual ela reina, tende sempre a descambar no ensino secundário, no qual ela já é menos acentuada, e na escola primária, na qual ela não existe. Aqui as contradições dos cientistas não servem para nada, ou só servem para trazer à luz adaptações de verdades para uso futuro de professores rurais.

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

a propagação das lâmpadas a gás favoreceu a do gás e vice-versa,

observação muito perspicaz a respeito da linguagem que sustenta

ou como a propagação da língua francesa favorece a da literatura

esta minha observação geral: “qualquer que seja o comprimento”,

francesa, que por sua vez a favorece. E também é possível que essa

diz ele, “de uma palavra composta, ela jamais compreende mais

interferência tenha uma eficácia mais profunda e provoque uma

do que dois termos. Essa regra não é arbitrária: ela decorre da

invenção nova, foco de uma nova imitação irradiadora - tal como a

natureza de nosso espírito que associa suas ideias em pares.” Em

propagação do cobre, ao encontrar-se com a do estanho, sugeriu a

outra passagem relativa às figuras esquemáticas pelas quais James

ideia da fabricação do bronze, ou como o conhecimento da álgebra

Darmesteter tentou tornar visível a evolução dos sentidos das pa­

e da geometria sugeriram a Descartes a expressão algébrica das

lavras de acordo com diferentes vias, o mesmo autor escreve: “é

curvas. Mas nesse último caso, como no primeiro, vemos claramente

preciso lembrar que essas figuras complicadas só têm valor para

que a adaptação é uma relação lógica ou teleológica, e que ela sem­

o linguista: aquele que inventa o novo sentido (de uma palavra)

pre se enquadra em um desses dois tipos: ora ela é, como a lei de

esquece momentaneamente todos os sentidos anteriores, salvo um,

Newton, tal como em qualquer lei científica, uma síntese de ideias

de maneira que as ideias sempre se associam de duas em duas.” E

que anteriormente não pareciam nem confirmar-se nem contradizer-

isso sempre acontece, tal como nas oposições entre ideias, como

-se, e que agora se confirmam mutuamente como consequências

já vimos. Seria fácil, porém tedioso, mostrar a generalidade desse

de um mesmo princípio; ora ela é, como numa máquina industrial

processo; bastaria flagrar sucessivamente cada descoberta ou

qualquer, uma síntese de ações que, outrora estranhas umas às

aperfeiçoamento no momento em que ela é adiçionada à descoberta

outras, se favorecem mutuamente através de uma engenhosa coli­

anterior, seja na esfera científica, jurídica, econômica, política, ar­

gação, meios solidários para um mesmo fim. A invenção do carro

tística ou moral. Em vez disso, é preferível indicar por que é assim,

(já complexa, como sabemos), a invenção do ferro, a invenção da

e como isso se torna possível e necessário.

força motriz do vapor, a invenção do pistão, a invenção do trilho:

Por um lado, isso se deve essencialmente ao fato de que a

tantas invenções que pareciam estranhas umas às outras e que se

marcha do espirito, seu funcionamento elementar, consiste em

solidarizaram na invenção da locomotiva.

passar de uma ideia a outra ligando as duas por um juízo ou por

Em segundo lugar, quer se trate de uma síntese de ações, de

uma volição: por um juízo que mostra a ideia do atributo implicada

uma invenção científica ou industrial, religiosa ou estética (em uma

na ideia do sujeito, ou por um ato de vontade que encara a ideia

palavra, teórica ou prática), podemos chamar de “acoplamento

do meio como estando implicada na ideia da finalidade. Por outro

lógico” o procedimento elementar que a formou. Com efeito, qual­

lado, se o espírito passa de um juízo a outro juízo mais complexo,

quer que seja o número de ideias ou atos sintetizados numa teoria

e de uma volição a outra, mais compreensiva, é porque à força de

ou máquina, jamais existe uma combinação de mais do que dois

repetir-se mentalmente em virtude dessa dupla forma de imitação

elementos de cada vez, adaptados entre si no cérebro do inventor

de si mesmo, que chamamos de memória e hábito, um juízo ter­

ou de cada um dos inventores que colaboraram sucessivamente

mina por enrodilhar-se numa noção, fusão de seus dois termos

para sua formação.41 Em sua Sémantique, Michel Bréal fez uma

doravante soldados e indistintos; e uma volição, um desígnio, acaba transformando-se num reflexo cada vez menos consciente.

41 Ver, no livro Lois de 1'imitation, o capítulo sobre as leis lógicas da imitação, sobretudo p. 175 e p. 195 e seguintes; e no livro Logique Sociale, o capítulo sobre as leis da invenção.

Por causa dessa transformação inevitável - que ocorre em larga

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

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escala, socialmente, sob os nomes respeitáveis de tradição e costu­

social, estou longe de contradizer a de um certo realismo social,

me - nossos antigos juízos tornam-se aptos a integrar, agora como

que precisaria ser definido - como, repito, essas realidades sociais

noções, um novo juízo; e nossos antigos desígnios tornam-se aptos

foram produzidas? Eu admito de bom grado que, uma vez que fo­

a integrar um novo desígnio. Da mais baixa à mais alta operação

ram produzidas, elas se impõem ao indivíduo, às vezes de maneira

de nosso entendimento e de nossa vontade, esse procedimento é

coercitiva, o que é raro, e mais frequentemente por persuasão, por

o mesmo; e não existe descoberta teórica que seja algo além da

sugestão, pelo prazer singular de que gozamos, desde o berço, ao

junção judiciária de um atributo, ou seja, de antigos juízos, a um

nos impregnar com os exemplos dos mil modelos existentes em

novo sujeito, assim como não há descoberta prática que seja algo

nosso ambiente, como uma criança ao sugar o leite de sua mãe. Eu

além da junção voluntária de um meio, ou seja, de um antigo fim,

admito isso, mas como esses monumentos grandiosos aos quais

anteriormente desejado por si mesmo, a um novo fim. Por meio

me refiro foram construídos, e por quem, a não ser por homens e

dessa alternância, ao mesmo tempo tão simples e tão fecunda, de mudanças inversas que se sucedem indefinidamente, o juízo

esforços humanos? Quanto ao monumento científico, talvez o mais grandioso

e a finalidade de ontem se tornam a noção simples e o simples

de todos os monumentos humanos, não há dúvida possível. Ele

meio de hoje, que suscitarão o juízo ou a finalidade de amanhã,

foi construído sob a luz plena da história, e nós seguimos seu

e assim por diante; e foi de acordo com esse ritmo social, e tam­

desenvolvimento praticamente desde seu inicio até os dias de

bém psicológico, que todos os grandes edifícios de descobertas

hoje. Que nossas ciências tenham sido no igício uma poeira de

e invenções que despertam nossa admiração foram construídos:

pequenas descobertas esparsas e sem ligação, que foram em se­

nossas línguas, nossas religiões, nossas ciências, nossos códigos,

guida agrupadas - sendo cada um desses agrupamentos já uma

nossas administrações, e decerto nossa organização militar, nossas indústrias, nossas artes.

descoberta - em pequenas teorias que depois foram, por sua vez,

Quando consideramos uma dessas grandes coisas sociais

uma infinidade de outras descobertas, e enfim fortemente coligadas

- uma gramática, um código, uma teologia - o espírito individual

por inúmeras hipóteses lançadas sobre elas, elevadas invenções

parece tão diminuto ao pé desses monumentos, que a ideia de

do espírito unificador, tudo isso é indiscutível. Não existe lei, teoria

enxergar nele o único construtor dessas gigantescas catedrais

científica ou sistema filosófico que não exiba a assinatura de seu

parece ridícula aos olhos de alguns sociólogos; e como estes não

inventor. Tudo isso é de origem individual, tanto os materiais quanto

percebem que com isso renunciam à possibilidade de explicá-las,

os planos, os planos de conjunto e os planos de pormenor; tudo,

pode-se perfeitamente desculpá-los por serem levados a dizer que

até mesmo aquilo que agora é ensinado na escola primária e está

tais obras são eminentemente impessoais. Apenas mais um passo

difundido em todos os cérebros cultivados, foi no início o segredo

levaria a postular (como meu ilustre adversário Durkheim) que,

de um cérebro solitário, onde essa pequena lâmpada, tímida e tre-

longe de serem funções do indivíduo, elas são seus fatores, existindo

meluzente, irradiou com dificuldade numa estreita esfera, através

independentemente das pessoas humanas e governando-as despo­

das contradições, até que, fortificada por sua expansão, tornou-se

ticamente ao projetar sobre elas sua sombra opressiva. Mas como

um luminoso farol.

essas realidades sociais - pois se eu combato a ideia do organismo

fundidas em teorias mais amplas, confirmadas ou retificadas por

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

103

Mas se é evidente que a ciência foi construída desse modo,

dução desses grandes edifícios que nos dominam e nos protegem;

não é menos certo que a construção de um dogma, de um corpo

cada um de nós, por mais ortodoxo que pareça, tem sua própria

jurídico, de um governo ou de um regime econômico ocorreu da

religião, e por mais correto que pareça, tem sua própria língua,

mesma maneira; e se existem possíveis dúvidas no que diz respeito

sua própria moral; o mais vulgar dos cientistas tem sua própria

ã língua ou ã moral, é porque a obscuridade de suas origens e a

ciência, o mais rotineiro dos administradores tem sua própria arte

lentidão de suas transformações ocultam de nossos olhos a maior

administrativa. E assim como cada um tem sua pequena invenção,

parte de seu percurso, mas é muito provável que sua evolução tenha

consciente ou inconsciente, para acrescentar ao legado secular

seguido o mesmo caminho. Não é por meio de minúsculas criações

das coisas sociais das quais somos depositários passageiros, cada

de expressões imaginativas, de giros pitorescos, de novas palavras

um também gera uma irradiação imitativa (em sua esfera mais ou

ou novos sentidos que nossa língua se enriquece à nossa volta? E

menos limitada) que basta para prolongar seu achado além de sua

cada uma dessas inovações, pelo simples fato de ser geralmente

existência efêmera, e guardá-lo para os trabalhadores futuros que o

anônima, deixa por isso de ser uma iniciativa pessoal que, pouco

farão funcionar. A imitação, que socializa o individual, perpetua em

a pouco, vai sendo imitada? E não é desses achados expressivos,

toda parte as boas ideias, e ao perpetuá-las, as aproxima e fecunda.

vicejantes em cada língua, que as línguas em contato se servem

Acaso poderíamos dizer que, sendo dada a natureza eterna

reciprocamente para engrossar seu-dicionário e flexibilizar ou

das coisas e estando elas na presença do também persistente

mesmo complicar sua gramática? Não é também por uma série de

espírito humano, a ciência chegaria, mais cedo ou mais tarde, e

pequenas revoltas individuais contra a moral estabelecida, ou de

não importando por qual caminho de descobèrtas individuais, ao

pequenas adições aos seus preceitos, que essa moral sofre lentas

estágio atual e ao estágio em que nossos netos a conhecerão, e que

modificações? E não foi uma passagem através de fases suces­

sua forma futura, clara e gloriosa, já estava predeterminada desde

sivas que conduziu de uma era muito antiga, na qual as línguas

as primeiras percepções do cérebro selvagem, e que por isso o

eram inumeráveis porém muito pobres, cada uma falada por uma

acidente do gênio ou o papel do indivíduo pouco importam, ou vão

horda, uma tribo, um burgo, e em que as morais eram também

perdendo a cada dia sua importância à medida que nos aproxima­

muito numerosas, muito desiguais e muito simples, à nossa época,

mos da realidade ideal, platonicamente atrativa, cujos contornos

na qual um pequeno número de línguas muito ricas e de morais

já se deixam adivinhar? Mas se essa objeção fosse verdadeira, ela

muito complicadas estão prestes a disputar a futura hegemonia do globo terrestre?

teria de ser generalizada, e disso resultaria que, no decorrer de um

No entanto, é preciso conceder aos adversários da teoria

alternadamente umas das outras, uma irresistível atração de não

das causas individuais na história o mérito de perceber que ela foi

sei quais planos divinos, invisivelmente imperiosos, conduziria

falseada; e ela foi falseada na medida em que se falava de grandes

inevitavelmente a humanidade ao mesmo termo político, econô­

homens lá onde era preciso falar de grandes ideias, muitas vezes

mico ou outro, à mesma constituição, à mesma indústria, à mesma

surgidas em homens muito pequenos, e mesmo de pequenas ideias,

língua, à mesma legislação final... Até o momento, não há nada mais

inovações infinitesimais trazidas por cada um de nós à obra comum.

contrário aos fatos do que essa visão, pois quanto mais as diversas

A verdade é que todos nós, ou quase todos, colaboramos na pro­

civilizações que partilham a Terra - cristã, budista, islâmica - se

encadeamento qualquer de satisfações e necessidades, nascidas

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

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desenvolvem, mais sua originalidade e dessemelhança se acentu­

novidade - uma nova palavra, um novo projeto de lei, uma nova

am. Entretanto, aquilo que me agrada nessa maneira de ver é que

teoria científica, um novo projeto industrial, etc. - é evidente que

ela é idealista, mas não o bastante, sendo por isso um idealismo

a inovação não foi introduzida à força, e sim por persuasão e doce

falho. O mundo não é movido por uma só ideia ou por um peque­

sugestão. Vejam a maneira pela qual cresce o palácio das ciências.

no número de ideias situadas no ar; existem milhões e milhões

Uma teoria é longamente discutida no ensino superior antes de

que lutam pela glória de serem seus portadores. Essas ideias que

propagar-se sob a forma de uma hipótese mais ou menos prová­

agitam o mundo são as ideias de seus próprios atores: cada um

vel, e ao descer para o ensino secundário ela já se afirma mais

deles batalhou para fazer triunfar a sua, sonho de reorganização

resolutamente; mas, por via de regra, ela só se torna um autêntico

local, nacional ou internacional, que se desenvolvia ao realizar-

dogma quando chega ao ensino primário, exercendo ou tentando

-se, e que mesmo sucumbindo podia avultar-se. Cada indivíduo

exercer sobre o espírito de seus partidários infantis, que aliás se

histórico foi um projeto de uma nova humanidade, e todo o seu ser

prestam a isso com a maior boa vontade do mundo, a coerção, de

individual, todo o seu esforço individual, não passou da afirmação

modo nenhum despótica, à qual nos referimos. Em outros termos,

desse universal fragmentário do qual ele era o portador. E desse

isso significa que seu atual caráter imperioso se estabeleceu em

sem-número de ideias, desses grandes programas patrióticos ou

virtude de sua persuasão anterior, e tudo isso por propagação

humanitários que dominam, como grandes bandeiras mutuamente

imitativa. O mesmo acontece quando uma novidade industrial se

despedaçadas, a mixórdia humana, talvez apenas uma sobreviva,

difunde: ela é um capricho da elite antes de ser uma necessidade

uma única dentre miríades, porém ela mesma terá sido individual

do público e de fazer parte daquilo que se considera necessário.

em sua origem, tendo jorrado do cérebro ou do coração de um

Pois o luxo de hoje é o necessário de amanhã, pela mesma razão

homem; e eu aceito a ideia de que seu triunfo tenha sido necessá­

que o ensino superior de hoje é o ensino secundário, e mesmo o

rio, mas sua necessidade, que se revela retrospectivamente, que ninguém planejou de antemão, que ninguém poderia prever com

primário, de amanhã. Esse grande tema da adaptação social exigiria vários outros

certeza, não passa da expressão verbal da superioridade dos es­

desenvolvimentos; tomarei a liberdade de remeter o leitor ao meu

forços individuais postos ao serviço dessa concepção individual.

livro sobre a Lógica Social, onde esbocei alguns deles. Aqui, porém,

Causa final e causas eficientes se confundem aqui, e não há motivo para distingui-las.

é preciso impor limites. Não preciso insistir muito na observação,

E é justamente porque toda construção social deve todos

mais as adaptações são múltiplas e precisas, mais aumentam as

os seus materiais, e mesmo todos os seus planos, a contribuições

inadaptações sociais, dolorosas, enigmáticas, que justificam tantas

individuais, que eu não poderia admitir aquilo que chegou a ser

queixas. Mas agora estamos aptos a dizer por que as harmonias

considerado o atributo essencial da realidade social: seu caráter

naturais, assim como as simetrias naturais, raramente são perfeitas,

soberano e dominador em relação ao indivíduo. Se assim fosse,

e por que elas se misturam (ou mesmo dão origem) a desarmonias

essa realidade jamais teria se desenvolvido e esses monumentos

e dissimetrias, que por sua vez poderão contribuir para suscitar

jamais poderiam ter sido edificados, pois em cada um de seus

adaptações e oposições mais altas. É que a adaptação perfeita e a

desenvolvimentos sucessivos causados pela introdução de uma

oposição perfeita são as duas extremidades de uma série infinita,

infelizmente muito óbvia, que estabelece a seguinte relação: quanto

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

entre as quais se intercalam inumeráveis posições. Entre a confir­

giosos, e também seus costumes e leis, e até mesmo sua moral, aos

mação absoluta de uma tese por outra e a contradição absoluta en­

seus conhecimentos e necessidades, os indivíduos, principalmente

tre ambas, existe uma infinidade de contradições e de confirmações

aqueles que se sentem mais inadaptados ao seu meio (e talvez a si

parciais, sem mencionar a infinidade de graus de crença afirmativa

mesmos), também fazem esforços incessantes que desembocam

e negativa. Uma questão seguida de uma resposta: eis aí a invenção.

em pequenas descobertas acumuladas.43E de tempos em tempos

Porém mil respostas a uma questão dada são possíveis, cada vez

surge algum grande inventor, algum grande agenciador.

mais exatas e completas. Para a questão da necessidade de ver,

As desarmonias são, para as harmonias, o que as dissime-

o olho humano não é a única resposta; existem todos os olhos de

trias são para as simetrias, o que as variações são para as repeti­

insetos, de pássaros, de moluscos. Para a questão da necessidade

ções. Ora, é apenas no seio das repetições precisas, das oposições

de fixar a fala, houve apenas a resposta do alfabeto fenício.

claras, das harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais ca­

No seio de qualquer sociedade há uma infinidade de peque­

racterísticas da diversidade, do pitoresco e da desordem universais,

nas ou grandes respostas às questões, e uma infinidade de novas questões que surgem dessas mesmas respostas; e é precisamente por causa disso que existe também um considerável número de pequenas ou grandes lutas entre partidários de soluções diferentes. A luta não passa de um choque de harmonias, mas esse choque não é, por certo, a única relação entre as harmonias; sua relação mais habitual é o acordo, a produção de uma harmonia superior. A cada instante, seja falando, seja trabalhando com qualquer coisa, nós experimentamos uma necessidade e a satisfazemos, e é essa série de satisfações ou soluções que constitui o discurso ou o trabalho, e também a política (interna ou externa), a diplomacia e a guerra, todas as formas de atividade humana. Os esforços incessantemente repetidos dos indivíduos de uma nação para adaptar sua língua ao devir de seu pensamento42acabam modificando e transformando gradualmente as línguas, bem como suscitando novas línguas. Se tivéssemos feito o registro de todos esses esforços sucessivos, tal como tentou fazer o abade Rousselot num recanto de La Charente, seria possível dizer o número preciso de adaptações linguísticas elementares que foram integradas numa modificação do som ou do sentido das palavras. Para adaptar seus dogmas e preceitos reli­ 42 Ver a esse respeito a Sémantique de Michel Bréal.

43 Se quisermos fazer da sociologia uma ciência verdadeiramente experimental e nela impri­ mir o mais profundo selo de precisão, é necessário, creio eu, contar com a colaboração de um grande número de observadores devotados e generalizar o m étodo do abade Rous­ selot no que ele tem de essencial. Suponham que vinte, trinta ou cinquenta sociólogos, nascidos em diferentes regiões da França ou em outros países, redijam separadamente, com o maior cuidado e minúcia possíveis, a série de pequenas transformações - de ordem política, econômica, etc. - que eles foram capazes de observar na sua pequena cidade ou vilarejo natal, e em primeiro lugar na sua vizinhança mais imediata; suponham que, em vez de limitar-se a generalidades, ele notem os pormenores das manifestações individuais de uma alta ou baixa da fé religiosa ou da fé política, de moralidade ou imoralidade, de luxo, de conforto, de uma modificação da crença política ou religiosa, ocorridas diante de seus olhos a partir da idade em que já fossem capazes de compreendê-las, em primeiro lugar na sua própria família e no seu círculo de amizades; suponham que eles se esforcem, como o ilustre linguista citado mais acima, para chegar à fonte individual dessas peque­ nas diminuições, ou aumentos, ou transformações de ideias e tendências, que a partir dali se propagaram num certo grupo de pessoas e que se traduzem por imperceptíveis mudanças na linguagem, nos gestos, na higiene, em hábitos quaisquer; suponham tudo isso, e vocês verão que desse conjunto de monografias similares, eminentem ente instru­ tivas, seria possível extrair as mais im portantes verdades, cujo conhecimento seria útil não apenas para o sociólogo mas tam bém para o homem de Estado. Essas monografias narrativas seriam profundamente diferentes das monografias descritivas, e bem mais esclarecedoras. Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso não é verdadeiro. Pode-se m uito bem acumular constatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados. Mas aquele que conhecer bem, com precisão de detalhes, a mudança de costumes em alguns pontos particulares, durante dez anos e num único país, não poderá deixar de pôr as mãos na fórmula geral das transformações sociais e, por conseguinte, das próprias formações sociais, aplicável em todos os países e em todos os tempos. Seria bom, para tal pesquisa, aplicar um questionário a princípio bastante limitado; poder-se-ia perguntar, por exemplo, em certas regiões rurais do Sul, por que e como se introduziu e propagou o hábito de deixar de cum prim entar os proprietários ricos da vizinhança, ou sob que influências se começa a perder a fé na bruxaria, nos lobisomens, etc.

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/\s Leis Sociais

Conclusão

ou seja, as fisionomias individuais. É pouca coisa, é coisa muito passageira, uma fisionomia de homem ou de mulher, afinada pela vida social, pela vida de imitação intensa, complicada e contínua. Mas nada é mais importante do que essa nuança fugidia. E o pintor não perdeu o tempo que gastou para fixá-la, tampouco o poeta ou o romancista que a faz reviver. O pensador não tem o direito de

*

hora de terminar, e para rematar, façamos um resumo

E

das principais conclusões às quais fomos conduzidos e busquemos sua significação de conjunto. Vimos que toda

sorrir diante de seus longos esforços para captar essa coisa quase

ciência vive de similitudes, de contrastes ou de simetrias, e de

inatingível que nunca havia existido e que jamais voltará a existir.

harmonias - ou seja, de repetições, oposições e adaptações -

Não existe ciência do individual, mas só existe arte do individual. E

e indagamos qual é a lei de cada um desses três termos, bem

o cientista, ponderando que a vida universal inteira está suspensa

como a relação de cada um deles com os demais. Vimos que

na floração da individualidade das pessoas, teria de considerar o

o espírito humano, apesar de sua propensão natural - que a

trabalho do artista com uma modéstia um tanto invejosa se ele

princípio parece tão legítima - a ater-se aos maiores fenômenos,

mesmo, imprimindo necessariamente seu estilo pessoal à sua con­

aos mais imponentes, aos mais prestigiosos, para explicar os

cepção geral das coisas, não lhe desse sempre um valor estético,

menos visíveis, foi irresistivelmente conduzido a encontrar o

verdadeira razão de ser de seu pensamento.

princípio das coisas, em toda ordem de fatos, nos fatos mais recônditos, cuja fonte, a bem dizer, continua insondável para ele. Essa constatação deveria causar-lhe uma grande surpresa, mas não foi assim, pois o hábito da observação científica nos familiarizou com essa reversão da ordem sonhada pelo pen­ samento nascente. Assim, a lei da repetição, quer se trate da repetição ondulatória e gravitacional do mundo físico, ou da repetição hereditária e habitual do mundo vivo, ou da repetição imitativa do mundo social, é a tendência de passar por via de amplificação progressiva de um infinitesimal relativo a um infi­ nito relativo. A lei de oposição não é diferente: ela consiste em uma tendência a amplificar-se numa esfera sempre crescente a partir de um ponto vital. Socialmente, esse ponto é o cérebro de um indivíduo, a célula desse cérebro onde se produz, pela interferência de ondas imitativas vindas de fora, uma contra­ dição entre duas crenças ou dois desejos. Essa é a oposição social elementar, princípio inicial das mais sangrentas guerras, assim como a repetição social elementar é o fato individual do primeiro imitador, ponto de partida de um imenso contágio

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As Leis Sociais

Gabriel Tarde

de moda. A lei de adaptação, por fim, assemelha-se às ante­

pria e radiante, do fundo de um óvulo fecundado, do fundo de uma

riores: a adaptação social elementar é a invenção individual a

parte desse óvulo, de uma parte que quanto mais a procuramos,

ser imitada, ou seja, a feliz interferência entre duas imitações,

mais vai se circunscrevendo e esvanecendo, até não sei que ponto

inicialmente num único espírito; e a tendência dessa harmonia

inimaginável? Esse ponto, fonte de tamanha diferença, como julgá-

- que na origem é toda interior - é não somente exteriorizar-

-lo indiferenciado? Eu sei bem qual é a objeção que me aguarda:

-se ao se difundir, mas ainda acoplar-se logicamente, graças

a pretensa lei da instabilidade do homogêneo. Mas ela é falsa, ela

a essa difusão imitativa, com alguma outra invenção, e assim

é arbitrária, ela foi imaginada expressamente para conciliar um

por diante, até que, por meio de complicações e harmonizações

preconceito (o de acreditar que aquilo que é indistinto aos nossos

sucessivas de harmonias, apareçam essas grandes obras cole­

olhos é indiferenciado em si mesmo) com a evidência das diversida-

tivas do espírito humano: uma gramática, uma teologia, uma

des fenomenais, das exuberantes variações viventes, psicológicas

enciclopédia, um corpo de direito, uma organização natural ou

e sociais. A verdade é que apenas o heterogêneo é instável, e que

artificial do trabalho, uma estética, uma moral.

o homogêneo é essencialmente estável. A estabilidade das coisas

111

Assim, em resumo, é certo que tudo vem do infinitesimal, e

está em razão direta de sua homogeneidade. A única coisa na Na­

acrescentemos, é provável que tudo a ele retorne. Ele é o alfa e o

tureza que é (ou parece ser) perfeitamente homogênea é o Espaço

ômega. Tudo o que constitui o universo visível, acessível às nossas

geométrico, que não mudou desde Euclides. Tem-se a intenção de

observações, tudo isso provém, como sabemos, do invisível e do

dizer simplesmente que o menor germe de heterogeneidade, ao

impenetrável, de um nada aparente do qual sai, de maneira ines­

ser introduzido num agregado relativamente homogêneo, como o

gotável, toda a realidade. Se nós refletíssemos sobre esse estranho

fermento na massa, provocará nele uma diferenciação crescente?

fenômeno, ficaríamos admirados com a potência do preconceito, ao

Isso eu contesto: num país ortodoxo, de unanimidade religiosa ou

mesmo tempo popular e científico, que faz com que todo mundo -

política, a introdução de uma heresia ou de uma dissidência tem

tanto um Spencer como um desavisado - olhe para o infinitesimal

muito mais chances de ser rapidamente reabsorvida ou expulsa do

como algo insignificante, ou seja, homogêneo, neutro, sem nada

que de crescer às expensas da Igreja ou da política reinantes. Eu não

de característico ou espiritual. Ilusão inextirpável! E ainda mais

nego a lei de diferenciação em suas aplicações orgânicas ou sociais,

inexplicável na medida em que também nós, como todos os seres,

mas ela estará sendo muito mal compreendida caso impeça a visão

estamos destinados a voltar em breve, pela morte, a esse infinitesi­

da lei de uniformização crescente que se mistura e se entrelaça

mal de onde saímos, esse infinitesimal tão desprezado, que poderia

com ela. Na realidade, a diferenciação da qual se quer falar é antes

muito bem ser, no fundo - quem sabe? - todo o verdadeiro além, o

a adaptação da qual falamos; por exemplo, a divisão do trabalho

único refúgio póstumo, procurado em vão nos espaços infinitos...

em nossas sociedades não passa da associação ou coadaptação

Seja como for, que razão teríamos para julgar a priori, sem conhecer

progressiva de trabalhos diversos por meio de invenções sucessi­

o mundo elementar, que apenas o mundo visível, o mundo espa­

vas. Circunscrita em seus primórdios às tarefas caseiras, ela vai se

çoso e volumoso, é o teatro do pensamento, a sede de fenômenos

repetindo e ampliando sem cessar, estendendo-se primeiramente

variados e viventes? Como podemos supor tal coisa, quando a cada

à cidade, na qual as diversas tarefas, outrora semelhantes umas às

instante vemos emergir um ser individual, com sua fisionomia pró­

outras, porém diferenciadas interiormente, tornam-se diferentes

112

113

As Leis Sociais

Gabriel Tarde

umas das outras, mas separadamente mais homogêneas; depois

tece a grande batalha pela vida que elimina os menos adaptados.

torna-se nacional, e em seguida internacional. Assim, não é verdade

Dessa forma, o subsolo misterioso do mundo fenomenal seria tão

que a diferença vá aumentando, pois se a cada instante aparecem

rico em diversidades - embora sejam outras diversidades - quanto

novidades e outras diferenças, também desaparecem antigas

o patamar das realidades superficiais.

diferenças; e levando em conta essa consideração, não teremos

Mas, no fim das contas, a metafísica aqui esboçada é de es­

nenhuma razão para pensar que a soma das diferenças, se é que

cassa importância em relação a tudo que foi exposto até aqui, e é

é possível somar coisas que não têm uma medida comum, tenha

entre parênteses que eu lanço essa hipótese, fazendo observar que,

aumentado no universo. Algo muito mais importante do que um sim­

mesmo rejeitada, ela deixará de pé as considerações mais sólidas

ples aumento de diferença acontece sem cessar: a diferenciação da

e positivas apresentadas anteriormente. Ela tão somente permite

própria diferença. A própria mudança vai mudando, e num sentido

abarcar, sob um mesmo ponto de vista, os dois tipos de verdades,

determinado, que nos encaminha de uma era de diferenças cruas

aparentemente estranhas entre si, que nós colhemos ao longo de

e justapostas, como de cores berrantes que não combinam, para

nosso caminho, a saber: aquelas que dizem respeito à progressão

uma era de diferenças harmoniosamente nuançadas. Seja lá o que

regular das repetições, das lutas, das harmonias universais, ao

se possa pensar dessa maneira de ver, é inconcebível que, segundo

aspecto regular do mundo, alimento da ciência; e aquelas relativas

a hipótese de uma substância homogênea eternamente submetida

ao aspecto selvagem do mundo, presa extraordinária da arte em

à disciplina niveladora e coordenadora das leis científicas, tivesse

perpétua renovação em face do que parece ser a eterna necessidade

jamais podido existir um universo como o nosso, deslumbrante

do diverso, do desordenado, graças ao próprio funcionamento da

em seu desmedido luxo de surpresas e caprichos. 0 que poderia

assimilação, da simetrização, da harmonização universais. Nada

nascer a partir do perfeitamente semelhante e perfeitamente regra­

é mais fácil de compreender do que essa aparente anomalia, se

do, a não ser um mundo eterna e imensamente tedioso? Do mesmo

supormos que as originalidades subfenomenais das coisas traba­

modo, a essa concepção corrente do universo como formado por

lham não para apagar-se, mas para florescer num nível mais alto.

uma poeira infinita de elementos, todos semelhantes no fundo e

A partir disso, tudo se explica; e assim como as relações

dos quais a diversidade teria emergido sabe-se lá como, eu me

mútuas entre os nossos três termos, repetição, oposição, adapta­

permito opor minha concepção particular que o representa como

ção, são facilmente inteligíveis quando consideramos a repetição

a realização de uma multidão de virtualidades elementares,44cada

progressiva como algo que funciona a serviço da adaptação que

qual caracterizada e ambiciosa, cada qual trazendo em si seu uni­

ela propaga e que, por suas interferências, ela desenvolve - mas

verso distinto, seu universo próprio e de sonho. Pois o número de

também como algo que às vezes funciona a favor da oposição, que

projetos abortados por ele é infinitamente maior do que o número

por interferências de outro tipo, ela também condiciona - pode-se

de projetos desenvolvidos; e é entre os sonhos concorrentes, entre

igualmente acreditar que todas as três colaboram para o floresci­

os programas rivais, muito mais do que entre os seres, que acon­

mento da variação universal sob suas formas individuais e pessoais mais elevadas, mais amplas e mais profundas.

44 Ver a esse respeito o estudo Monadologie et Sociologie, publicado em EssaisetMélanges, Paris-Lyon, Storck et Masson, 1895. [Existe uma tradução brasileira: Monodologia e socio­ logia e outros ensaios, trad. de Paulo Neves, São Paulo, Cosac Naify, 2007. (N. do T.)]

(Outubro de 1897)