As Américas na Primeira Modernidade [2] 9788553700332


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As Américas na Primeira Modernidade [2]
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AS AMÉRICAS NA PRIMEIRA MODERNIDADE

(1492 - 1750) Vol.2

AS AMÉRICAS NA PRIMEIRA MODERNIDADE (1492 - 1750) Vol.2 ORGANIZADORES

JORGE CAÑIZARES-ESGUERRA LUIZ ESTEVAM DE O. FERNANDES MARIA CRISTINA BOHN MARTINS

AS AMÉRICAS NA PRIMEIRA MODERNIDADE (1492 - 1750) Vol.2 Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes Maria Cristina Bohn Martins Organizadores 1ª Edição - Copyright© 2018 Editora Prismas Todos os Direitos Reservados. Revisão ortográfica e gramatical de responsabilidade do autor. Editor Chefe: Vanderlei Cruz - [email protected] Diagramação: Danielle Paula Capa e Projeto Gráfico: Danielle Paula Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz Bibliotecária CRB 9-626

A512

As Américas na primeira modernidade (1492-1750) / organização de Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2018. v.2: il.; 23cm ISBN: 978-85-537-0033-2 1. América – História, 1492-1750. 2. América – Condições econômicas. 3. América – Condições sociais. 4. Historiografia. I. Cañizares-Esguerra, Jorge (org.). II. Fernandes, Luiz Estevam de O. (org.). III. Martins, Maria Cristina Bohn (org.). CDD 980.012 (22.ed) CDU 980

Editora Prismas Ltda. Fone: (41) 3030-1962 Rua Morretes, 500 - Portão 80610-150 - Curitiba, PR www.editoraprismas.com.br

Apresentação A coleção As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750) surgiu como um projeto delineado por um grupo de colegas nucleados em torno do Grupo de Pesquisas (CNPq) “História da América: fontes e historiografia”. Era nosso desejo proporcionar a professores e alunos interessados nesta área um conjunto de estudos que refletisse sobre o avanço do conhecimento relativo aos estudos históricos latino-americanos nos últimos anos. Desde então, ao grupo inicial se reuniu uma série de outros colegas que, a partir de suas diferentes especialidades, contribuíram para que nosso projeto chegasse ao ponto em que hoje se encontra. Podemos assim apresentar ao público o segundo dos três volumes que vão compor a Coleção. Como no volume anterior, publicado em 20171, os capítulos desta obra apresentam, sintetizam e discutem o que há de mais atual na pesquisa e no conhecimento sobre a história americana em diversos temas, envolvendo, por exemplo, as formas pelas quais organizaram suas vidas os descendentes dos conquistadores; os fluxos que se processaram entre o Novo e o Velho Mundo de pessoas, objetos e riquezas e ideias; a escravidão e os movimentos de contestação que conectaram as Américas com a cena global na “era das revoluções”. Além disto, cada capítulo é acompanhado por um balanço historiográfico do tema tratado e de dois documentos que podem ser matrizes de novas interrogações para os leitores. Mais uma vez, as respostas às questões geradas em torno dos temas abordados que pudemos aqui reunir foram elaboradas por um conjunto de renomados especialistas do Brasil e do exterior, a quem queremos agradecer empenhadamente. De sua competência resulta a evidente qualidade dos estudos que compõem este segundo volume de 1 O primeiro volume da coleção As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750) é composto por sete capítulos. São eles: “Os índios: povos ancestrais, sujeitos modernos”; “A conquista da América como uma História emaranhada: o intercâmbio de significados de uma palavra controversa”; “Fama, fé e fortuna: o tripé da conquista”; “O lapso do rei Henrique VII: inveja imperial e formação da América Britânica”; “Meio ambiente e trocas atlânticas”; “Saberes e livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na Carrera de Indias” e “Entre textos, contextos e epistemologias: apontamentos sobre a Polêmica do Novo Mundo”.

As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750), que nossos leitores logo poderão identificar. Como no caso de seu antecessor, este foi também organizado buscando sintetizar os enfoques que tem sido conferidos para temas que recentemente passaram a interessar aos historiadores (caso, por exemplo, das “sociabilidades”), assim como para temas clássicos (caso das “fronteiras” ou das revoluções independentistas). O primeiro capítulo do volume, intitulado “Sociabilidades criollas na América Hispânica”, foi desenvolvido por Anderson Roberti dos Reis e Luis Guilherme Assis Kalil, professores da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), respectivamente. Os autores, especialistas em História Colonial das Américas, atuam em vários Grupos de Pesquisa como o “GEHA - Grupo de Estudos de História das Américas” e “História das Américas: fontes e historiografia” (CNPq). Tal estudo abre nosso livro trazendo para o debate uma série de temas que despertam atualmente forte atenção da historiografia colonial americana. Abordam, assim, a necessidade de discutirmos a validade de conceitos genéricos como “peninsulares” e “criollos”, bem como de superarmos definitivamente as histórias que, privilegiando as disputas entre eles, buscavam as “origens” do nacional na época da colônia. Depois disto, também de maneira feliz, distinguem as principais expressões do debate que passou a apontar as possibilidades analíticas abertas ao questionar-se a ideia de uma relação colonial marcada pela completa subordinação ao Estado absoluto metropolitano, bem como o “hispano-centrismo” da maioria das abordagens clássicas. Concluindo, desta maneira, que devemos estar atentos à “agência dos criollos, assim como a de indígenas, mestiços e africanos”, propõem que suas vivências e formas de sociabilidade podem ser elementos centrais à compreensão da história americana. Advertem, por isto, que sua contribuição para esta obra consistirá em uma abordagem “sobre seus lugares e formas de sociabilidade em diferentes períodos e regiões da porção hispânica do continente”, para passar a analisar um conjunto delas que se expressavam por meio de devoções e festas religiosas, por exemplo. O capítulo 2 é de autoria de Fernanda Sposito, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e José Carlos Vilardaga, professor da mesma universidade, membro do Laboratório de Pesquisa em Histórias das Américas (LAPHA) daquela

IES e do Grupo de Pesquisas do CNPq “História das Américas: fontes e historiografia”. “Fronteiras nas Américas: alianças, identidades e conflitos (séculos XVI a XVIII)” trata de um tema que se tornou chave para a historiografia americana desde a contribuição introduzida por Frederick J. Turner em finais do século XIX. Sobre ele, Sposito e Villardaga realizaram um esforço de análise e síntese que principia apresentando elementos de uma visão clássica: a história dos mais importantes tratados que marcaram as relações entre os impérios coloniais ibéricos. Depois disto, tendo apontado o debate conceitual sobre o tema e ressaltado a contribuição de perspectivas interdisciplinares para a reflexão a seu respeito, advogam a necessidade de compreendermos a fronteira como “zona” e não como “linha”. Neste sentido, os autores apresentam-na como locus de confrontos e acordos com outras potências, de conflito e negociação com grupos indígenas, de atuação de ordens missionárias, de troca e comércio oficial ou clandestino. Assim sendo, sua análise permite verificar o quanto foram espaços marcados pelo dinamismo e interação entre os mais diversos agentes envolvidos no processo de colonização. Além, portanto, de estabelecer a necessidade de desnaturalizarmos nossa compreensão sobre as fronteiras para percebê-las como fruto de processos históricos, os autores ressaltam as contribuições de estudos recentes sobre estes espaços em seu aspecto integrador. Isto é, na geração de “zonas de contato” ou transculturação na acepção de Mary L. Pratt (1999), sem é claro, obliterar o caráter violento e assimétrico presente, muitas vezes, nos “encontros coloniais” processados nas áreas de fronteira. Além de incorporar à sua análise regiões pouco frequentadas na literatura disponível em língua portuguesa, casos do Caribe e das colônias inglesas na América do Norte, outra contribuição essencial trazida por Sposito e Vilardaga a esta obra pode ser apontada na atenção que conferiram aos limites entre os povos indígenas na América. Sobre isto eles se questionam a respeito de como se apresentavam as demarcações entre os diferentes grupos nativos e como elas incidiram sobre o processo de conquista e colonização. Além disto, analisam a questão sob o instigante conceito de redes ameríndias, capaz de colocar em xeque rígidos e atomizados modelos de espacialidade. O capítulo seguinte, de número 3, “Pessoas e bens em circulação (1492-1750)”, foi desenvolvido pela professora Ofelia Rey Castelao,

da Universidade de Santiago de Compostela (USC). Como sabemos, o tema das trocas envolvendo as colônias americanas e suas metrópoles europeias tem um largo percurso historiográfico. Recentemente, porém, ele vem sido enriquecido por reflexões que ultrapassam a análise da circulação da prata ou de outros bens econômicos, consideram fontes que não são unicamente as oficiais e conduzem suas análises a partir de variações ou comparações entre de escalas de observação. O trabalho da pesquisadora do Grupo de Investigación de Historia Moderna é uma profícua contribuição neste sentido. Ele se inicia com uma sofisticada apresentação do movimento populacional entre a Europa, a África e o Novo Mundo na Idade Moderna. Uma série de questionamentos guiam a reflexão da autora. Quantos espanhóis e portugueses se dirigiram à América e de onde eles provinham? O que motivou este movimento populacional e de que forma ele marcou o Novo e o Velho Mundo? Como participaram dele os habitantes de outras regiões europeias, como os Países Baixos? Como podemos analisar, dentro deste quadro, o trânsito relativo às Ilhas Britânicas? E o que sabemos, à luz dos conhecimentos atuais, sobre os retornos? Quais os impactos do trânsito forçado de africanos? Num segundo momento, ela passa a estudar a circulação de bens e produtos, chamando a atenção para o dado de que alguns deles (milho e batata) chegaram a modificar o sistema agrícola europeu, no que qualifica como um dos mais importantes resultados materiais do contato com a América. Também os negócios em torno do açúcar e dos metais, do tabaco, dos produtos tintóreos, entre outros, os efeitos diretos e indiretos de sua produção e circulação, interessaram à autora. Sobre a questão do comércio internacional, ela indaga se é possível falar de globalização entre 1492 e 1750, uma vez que o contato entre áreas econômicas diferentes e muito afastadas, que puderam relacionar-se entre si ao redor do mundo, tinha, então, baixa incidência. Ele limitava-se, recorda a autora, a zonas próximas da costa ou a cidades portuárias e atingia camadas específicas da população. Apesar de colocar em discussão a noção de “globalização” para aquela realidade, Rey Castelao não deixa de compreender que se trata de um comércio verdadeiramente global, cujas características e repercussões discute e analisa. O capítulo se encerra com um importante panorama do debate historiográfico sobre temas essenciais, como o desastre demográfico da

população indígena provocado pela chegada dos europeus e o número e evolução da emigração transatlântica, considerando a questão-chave das migrações interiores na Europa, anteriores e paralelas à projeção extra-europeia a partir do século XV. Depois, Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde se dedica a estudar o tema da escravidão em chave comparada, nos traz “A escravidão hispano-americana: uma perspectiva de longa duração”. O propósito deste que é o capítulo 4 da obra consiste em apresentar uma visão abrangente sobre a escravidão hispano-americana, embora reconheça que se deva considerar as variações regionais e temporais. A partir da ideia de que na “longa duração” desenvolveu-se uma certa “identidade institucional, que confere uma unidade orgânica ao fenômeno”, o autor sustenta ser possível contrastar a experiência castelhana com outras que lhe foram contemporâneas e, ainda, chegar a uma melhor compreensão sobre a maneira como novos arranjos foram sendo constituídos ao longo do tempo. Assim, Lourenço da Silva nos apresenta um panorama sobre a escravidão na América Espanhola (de índios e negros) que se estende até o século XIX, não sem antes trazer a questão dos antecedentes ibéricos desta instituição. Depois disto, historia o tema dos motins e das ações para repressão da rebeldia escrava. O capítulo se conclui com uma importante discussão historiográfica centrada na revalorização atual da obra de Frank Tannembaum, “Slave and Citizen: The Negro in the Americas” (1946). Tannenbaum, depois de ter aberto a vertente de estudos comparativos entre as diversas regiões escravistas americanas, teve criticado o pressuposto básico de sua obra que sustentava uma certa benignidade do escravismo nas colônias hispano-americanas, quando comparado ao que ocorria nas Treze Colônias inglesas da América do Norte. Segundo nos permite acompanhar Silva Junior, estudos recentes passaram a revalorizar sua obra, destacando que ela distinguiu a importância do Direito na demarcação das condições muitas vezes contrastantes a que os escravos estavam submetidos, bem como reconheceu brechas legais existentes nas colônias ibéricas para a reclamação de certos “direitos” por parte dos escravos, inspirando muitos trabalhos atuais. Os capítulos 5 e 6 tratam das estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico Norte e Ibérico, respectivamente. O primei-

ro deles, de autoria de Richard J. Ross, voltado às colônias inglesas no Novo Mundo, inicia recordando que elas foram fundadas sob uma variedade de interesses e não constituíram um sistema legal único ou uniforme. Em meio a um conjunto plural de instituições, normas e culturas legais regionalizadas, o autor - professor da Universidade de Illinois e especialista em temas relativos ao desenvolvimento dos sistemas legais americanos em perspectiva comparada, destaca que seus sistemas jurídicos mantiveram notável distância em relação às leis dos povos nativos. Estes não foram, com efeito, considerados súditos da Coroa, nem houve empenho em promover sua “civilização”, de forma bastante diferente do que ocorreu nos territórios colonizados pela Espanha estudados no capítulo seguinte, o que contribuiu para complexificar a ordem legal destes últimos. Isto não implica, como revela a análise do autor, que as estruturas jurídicas e legais das colônias inglesas fossem simples. Suas constituições, como sabemos, diferenciaram-se entre as colônias reais, de proprietário e corporativas, e este pluralismo era acentuado pela interação entre jurisdições estatais e não estatais potencialmente conflituosas. Como lembra Ross, o Conselho Privado inglês, o Parlamento, o Almirantado, o Tesouro e Serviços Aduaneiros, a hierarquia da Igreja Anglicana, afirmavam ser responsáveis por regular aspectos da vida da colônia, sem que houvesse clara hierarquia ou divisão entre elas e as autoridades locais. Além disto, os colonos adicionavam suas contribuições aos princípios legais que traziam da Inglaterra, uma vez que seus forais lhes garantiam o direito de criar suas próprias ordenações, contanto que estas não ferissem as leis da Inglaterra. É o caso da escravidão, analisado pelo autor, que lhe serve para concluir que legislação sobre ela foi a contribuição mais “inovadora e abominável” das colônias norte-americanas para a tradição jurídica anglo-americana. Particularmente instigante, é acompanhar a análise do autor de “As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico Norte” sobre a dinâmica pela qual, ao final do século XVII, surgiram aspectos comuns nas constituições coloniais - em suas organizações internas de poder e suas relações com a Inglaterra – e se estendeu aos colonos a tradição de “autogoverno pelo comando do Rei”, numa espécie de reconhecimento da necessidade da participação ativa dos colonos para o governo de territórios longínquos. Assim sendo, as estruturas constitucionais que emergiram ao longo do século XVII pressupunham um governo limitado e controle local, baseados na aquiescência dos proprietários coloniais.

Entretanto, as colônias não gozavam de independência formal e seus direitos de autogoverno, ainda que fossem significativos, não eram ilimitados. Porém, conforme podemos acompanhar na instigante análise do autor, se, para os administradores do império, os colonos não tinham as mesmas liberdades e proteções constitucionais que os ingleses metropolitanos, os “americanos” passaram a contestar essa interpretação sobre o seu status constitucional, reivindicando para si os mesmos direitos e proteções dos que viviam no reino. Os esforços de redução da autonomia dos colonos, que acompanham o crescimento da importância do comércio transatlântico, esbarraram em uma série de fatos centrais, entre os quais o controle local das instituições legais e de tomada de decisões. O texto é, assim, uma excelente contribuição para compreendermos a forma pela qual o esforço de centralização imperial “provocou resistência local e deflexão”, ajudando a explicar o formato da política colonial e, ainda, as dinâmicas do movimento revolucionário. Por sua vez, “As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico ibérico” foram objeto do capítulo elaborado pelo professor argentino Raúl  Fradkin (Universidade de Buenos Aires), especialista na história social rioplatense, e Marco Antônio Silveira, professor da Universidade Federal de Ouro Preto e um dos líderes do Grupo de Pesquisas “Justiça, Administração e Luta Social”. Ele inicia com uma reflexão sobre a necessidade de as Coroas ibéricas construírem modos de governo que permitissem enfrentar os inéditos desafios introduzidos pela colonização do Novo Mundo. Com efeito, lembram, as matrizes institucionais e tradições jurídicas e políticas preexistentes, embora fossem fontes de inspiração e legitimação, não eram suficientes para fazer frente à novidade americana. Além disto, as confrontações entre as monarquias, assim como as formas de interação entre elas, vieram a ser, também, um aspecto central para a configuração das estruturas coloniais. Recordam, depois, a necessidade de discutir-se sobre os modos de constituição e exercício do poder nas monarquias de Antigo Regime, haja vista a necessidade - em sociedades marcadas pelo apego à tradição e aos privilégios - de conciliar e negociar incansavelmente com vários focos de interesse, pelo que, na prática, governar não era apenas o exercício do poder régio. De acordo com eles, um exercício historiográfico necessário é o de compreender como as autoridades da época conseguiram inovar e criar novas estruturas de governo, valen-

do-se de recursos limitados e sofrendo a resistência da tradição. Outra importante questão desenvolvida pelos autores foi a necessidade de os monarcas conciliarem a “prudência”, buscando o bem comum e soluções pactuadas, segundo a tradição escolástica, e as “razões de Estado”, que deviam impulsionar decisões necessárias para manter e ampliar o domínio de povos e territórios. Junto a isto, refletem sobre como, por outro lado, as transformações que se estabelecem ao longo do período em foco introduziam novos desafios, dos quais um dos mais evidentes foi a necessidade de desenvolver formas de exploração dos recursos que posicionassem as economias metropolitanas no mercado mundial em formação, mas, ao mesmo tempo, levassem em conta os anseios dos grupos sociais dominantes em cada espaço colonial. Sem a cooperação ativa desses grupos, a sobrevivência do próprio sistema colonial podia ser inexequível, embora, contraditoriamente, seu fortalecimento pudesse ser uma ameaça à afirmação da autoridade das monarquias. Depois de analisarem, ainda, o tema da delinquência e dos conflitos, Fradkin e Silveira apontam, em suas conclusões, que é preciso sublinhar a capacidade de resistência evidenciada pelas as elites locais americanas, assim como que a sobrevivência do império espanhol foi possível dada a flexibilidade de suas instituições e práticas. Finalmente, o capítulo 7, o último deste volume, resulta da contribuição de Kristie Flannery (Universidade do Texas), especialista em história atlântica e história dos impérios modernos em chave comparada. “A Era global das revoluções e seus descontentamentos (1760 a 1834)” apresenta uma necessária reflexão sobre os efeitos dos movimentos anticoloniais americanos em perspectiva global. A partir de um ponto de vista diferente daquele que é esposado por boa parte da historiografia, Flannery optou por enfrentar o que chamou de “grande paradoxo da Era das Revoluções”, lembrando que, paralelamente ao seu “caráter democratizante”, esta também foi uma época em que impérios e a instituição da escravidão “foram não apenas preservadas, mas drasticamente expandidas”. Segundo a autora, as revoltas anticoloniais, que liquidam impérios seculares, acabam, por outro lado, impelindo as potências imperiais a expandir seus territórios na direção de áreas ainda não conquistadas ao redor do globo. O objetivo principal de Flannery, no capítulo, está em evidenciar que esses eventos estiveram imbricados e influenciaram-se

mutuamente, e que devemos compreender os processos políticos que trouxeram maior liberdade para uma grande parte da população mundial sem desconectá-los daqueles que, contrariamente, levaram à perda de liberdade e autonomia para outra parte dela. Organizado cronologicamente, o texto inicia com uma análise das rebeliões multicêntricas anticoloniais que eclodiram nas treze colônias norte-americanas da Grã-Bretanha, no vice-reinado espanhol do Peru e no império global de Portugal nas décadas de 1760 a 1780. Depois, ele conecta a Revolução Francesa, que eclodiu em Paris em 1789, e a revolução dos escravos que foi deflagrada na colônia francesa produtora de açúcar conhecida como São Domingos em 1791. Finalmente discute como a invasão da Península Ibérica por Napoleão, em 1808, desencadeou a dissolução do império da Espanha na América e a consolidação do regime monárquico no mundo luso. Antes de brindar o leitor com um rico roteiro bibliográfico, K. Flanerry estabelece que “as contradições gritantes da Era das Revoluções ficam mais claras quando aumentamos o zoom do Atlântico para uma área global”, conclusão que fica sustentada pela análise excelente da autora. **** Além de reiterar nosso agradecimento aos autores dos estudos que compõem a obra que aqui apresentamos, gostaríamos de reconhecer nosso débito com aqueles que realizaram as traduções dos artigos escritos em língua estrangeira para o português: Renato Denadai da Silva, Juliana Jardim de Oliveira e Oliveira, Fernanda Luiza Teixeira Lima e Isabela Backx. Agradecemos a Rui A. Fernandes pela revisão textual e a Filipe Cotta Barbosa, Guilherme de Castro Martins de Carvalho e Renato Denadai da Silva pela revisão técnica. Enquanto damos continuidade ao trabalho de preparação do volume 3 de As Américas na Primeira Modernidade, desejamos a todos uma boa leitura! Jorge Cañizarres-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins

Sumário Capítulo 1 - Sociabilidades criollas na América Hispânica............. 17 Anderson Roberti dos Reis e Luis Guilherme Assis Kalil

Capítulo 2 - Fronteiras nas Américas: alianças, identidades e conflitos (séculos XVI a XVIII)....................................................................51 Fernanda Sposito e José Carlos Vilardaga

Capítulo 3- Pessoas e bens em circulação (1492-1750)................ 101 Ofelia Rey Castelao

Capítulo 4 - A escravidão hispano-americana: uma perspectiva de longa duração........................................................................... 147 Waldomiro Lourenço da Silva Júnior

Capítulo 5 - As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico Norte........................................................................ 181 Richard J. Ross

Capítulo 6 - As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico ibérico...................................................................... 213 Marco Antonio Silveira e Raúl Fradkin

Capítulo 7 - A Era global das revoluções e seus descontentamentos ...279 Kristie Flannery

Capítulo 1 Sociabilidades criollas na América Hispânica Anderson Roberti dos Reis Luis Guilherme Assis Kalil

Introdução É conhecido dos historiadores o elemento conflitivo que caracterizou as sociedades coloniais. A América, descoberta ou inventada como tal, nasceu em meio a múltiplas tensões. A experiência antilhana reduziu drasticamente as populações indígenas e chamou à consciência homens que procuravam pela medida entre a exploração da mão de obra, necessária à manutenção dos domínios espanhóis, e a preservação dos nativos. Em um púlpito da Ilha Hispaniola, às vésperas do Natal de 1511, frei Antônio de Montesinos, em nome da comunidade dominicana, admoestava sua audiência e condenava a crueldade e a servidão a que estavam submetidos os indígenas. Sentados à sua frente estavam alguns dos homens encarregados do governo civil da ilha, a quem a exortação atingiu em cheio. No ano seguinte, notavam-se ecos daquele sermão no espírito das Leis de Burgos, editadas com a expectativa de fundamentar juridicamente os mecanismos coloniais, principalmente as encomiendas.2 O também dominicano Bartolomé de Las Casas, que ouvira o sermão de Montesinos, consagrou em seus relatos a “destruição das Índias”, encarnando a defesa dos nativos ante a violência com a qual se havia gestado a história da América. 2 Tratava-se da concessão feita pela Coroa em favor dos colonos do direito de cobrança de impostos e da exploração da mão de obra de um determinado número de indígenas, cujos cuidados espirituais e materiais passavam a ser de responsabilidade dos encomenderos. Os repartimientos, que substituíram as encomiendas em algumas regiões do continente, funcionavam de outro modo: era um sistema, administrado por funcionários reais, de recrutamento e distribuição rotativa dos índios pelas áreas produtivas de modo que eles trabalhassem, contra pagamento, por jornadas delimitadas e depois regressassem a seus povoados de origem, até que novo recrutamento os enviasse a outras regiões.

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A etapa continental da colonização não foi mais pacífica. Além da persistência das encomiendas, as campanhas militares para conquistar as principais cidades indígenas resultaram em conflitos e mortes. Antes de derrotar os mexicas em México-Tenochtitlan, Hernán Cortés teve de sobrepujar a oposição de Diego Velásquez, governador de Cuba, com quem rivalizou durante as expedições à costa mexicana, além de superar as mortes de espanhóis e grupos indígenas aliados na fuga durante os enfrentamentos da “Noite Triste”. Pedro de Valdivia, que havia liderado várias frentes da conquista espanhola na região do atual Chile, terminou seus dias emboscado na batalha de Tucapel, em 1553, durante a guerra araucana. Nos Andes, o desfecho das campanhas de Francisco Pizarro foi sucedido por quatro décadas de agitação civil, ora em razão da resistência inca em Vilcabamba, ora como efeito das pretensões dos conquistadores e de seus descendentes, que reivindicavam mais direitos do que a Coroa espanhola estava disposta a ceder. Os filhos dos conquistadores, transcorrida uma geração, conviveram em sociedades igualmente marcadas por dissensões e negociações constantes, porém mais heterogêneas. Apesar de ter permanecido, durante o período colonial, no vocabulário e no horizonte de autoridades civis e religiosas, o projeto de constituir duas repúblicas separadas e harmônicas – uma de “espanhóis”, outra de “índios” – foi constantemente desafiado pela presença de criollos, mestiços, africanos, mouros, judeus, entre outros. Com frequência, governadores e vice-reis denunciavam em seus relatos os vícios a que se entregavam os espanhóis vagabundos “desta terra”, enfatizando também os perigos de franquear cavalos e armas a índios, mestiços e negros. O medo de rebeliões e motins não se dissipou mesmo durante o século XVII, com os altos funcionários reais mantendo-se atentos a possíveis distúrbios. Se institucionalmente a conquista espanhola parecia se assentar em meados do século XVI, sobretudo com a criação dos vice-reinos da Nova Espanha e do Peru a partir de 1535, e a fundação de sedes episcopais em importantes cidades, as sociedades coloniais permaneciam inquietas. A rebelião liderada por Martín Cortés, herdeiro legítimo do conquistador do México e II Marquês do Vale de Oaxaca, em 1565 na Nova Espanha expressa bem uma nota do desconcerto social que marcava os vice-reinos espanhóis naquele momento e desafiava o ordenamento jurídico e político proposto pela Coroa. No cerne desse motim notava-se uma 18 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

antinomia, que se tornaria mais frequente do que gostariam os letrados de Madri, entre o progressivo desejo de controle por parte da Monarquia e as aspirações de famílias e grupos locais. Nesse caso específico, o conflito decorria da política espanhola adotada após as Leis Novas de 1542, que abolia a perpetuidade do regime de encomiendas e criava restrições aos repartimientos, criando impasses à exploração da mão de obra indígena e às pretensões senhoriais dos encomenderos. Quando se observa que, em 1545, cerca de quarenta por cento (577 de uma população de 1385) dos colonos espanhóis no México possuía encomiendas (Zavala, 1935; Frutos & Zarandieta, 2001, 306), compreendem-se o impacto daquela política e as razões que permitiram a Martín Cortés e aos irmãos Alonso e Gil González Ávila plasmarem uma rebelião que, no limite, pretendia suspender o poder real na Nova Espanha em favor das grandes famílias locais. O desfecho do motim, contudo, não alentava os grupos locais. Sem granjear o apoio de todos os colonos e diante da rápida reação da Coroa, o movimento foi sufocado pelas autoridades reais e seus líderes, presos ou decapitados em praça pública. Martín Cortés, cuja participação foi dúbia em alguns momentos, teve o pescoço preservado, mas foi obrigado a jurar obediência e retornar à Espanha. A conjura mexicana não foi o único movimento desse tipo. Outros tumultos ocorridos na América durante os séculos XVI e XVII mantiveram em alerta os conselheiros, ministros e monarcas da Casa de Áustria. As mesmas Leis Novas que insuflaram os ânimos no México na década de 1560 haviam antes servido de estopim para as ações de Gonzalo Pizarro e um grupo de encomenderos, em 1544, contra o primeiro vice-rei do Peru, Blasco Núñez de Vela, que acabou preso e decapitado durante os conflitos, deixando inconclusa sua missão de aplicar aquela legislação. Ao final, em 1548, a Coroa retomou o controle da situação e Pizarro não teve melhor sorte nem tampouco conseguiu preservar sua cabeça. Na região da Audiência de Quito, em 1592, outra determinação castelhana, a fixação do imposto das alcabalas, elevou o nível de tensão nos Andes e serviu de gatilho para nova rebelião. Para além da insatisfação com a imposição do tributo, o motim expressava a desarmonia existente entre os magistrados da Audiência, representantes do poder real, e as elites quitenhas aninhadas no Cabildo, descontentes com a pressão fiscal não pactuada e também com o desprestígio frente às autoridades espanholas. Nas serras de Quito ainda se ouviam os ecos As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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das Leis Novas, dos discursos de Las Casas em Valladolid e das disputas em torno das encomiendas e repartimientos. Esses exemplos, que poderiam ser acrescidos de outros tantos extraídos do século XVII e do período bourbônico, evidenciam um elemento central das sociedades coloniais: as tensões e contradições decorrentes dos interesses defendidos pelos diferentes grupos sociais, que exigiam da Monarquia a perene habilidade de concertar conveniências e reivindicações. Especificamente, os casos parecem sugerir a contraposição mais aguda entre as elites criollas locais, ligadas à terra e dispostas a se estabelecerem frente aos demais agentes, e a Monarquia espanhola, ciosa do ordenamento de seus vice-reinos, que se materializava na América por meio de instituições civis e religiosas, cujos altos escalões eram ocupados majoritariamente por peninsulares, em geral com poucos vínculos – combatidos pela Coroa – nos locais em que prestavam seus serviços ao rei. Se não foi a única fonte de tensões, tal polarização ocupou a imaginação de muitos historiadores contemporâneos, que buscaram as mais diversas chaves analíticas a fim de apreender os fundamentos das sociedades coloniais americanas: luta de classes, organização estamental, estratégias patrimoniais, sociedades corporativas, casuísmo jurídico, probabilismo filosófico etc. Entre tais leituras, uma se destacou em razão de sua fortuna historiográfica e política. Trata-se da interpretação de cunho nacionalista que com frequência identificou no universo social das colônias americanas a prefiguração das cores e formas das bandeiras hasteadas após as independências. Assim, em muitos casos, as tensões políticas e sociais que antecederam (e às vezes persistiram após) a criação dos estados-nação hispano-americanos no século XIX foram projetadas no passado colonial a fim de buscar as raízes destes países. Não é difícil imaginar por que, nessa chave de leitura, quase sempre foram privilegiadas as contradições entre os grupos criollos – enfatize-se: aqueles nascidos e/ou vinculados às terras do Novo Mundo – e a Monarquia espanhola, tomada por opressora, atribuindo-se àqueles certas aspirações nacionalistas frequentemente sufocadas por Madri. A abordagem histórica de um “passado nacional” é sedutora, porque cria laços de identidade e harmoniza as diferenças e, por isso mesmo, politicamente necessária, sobretudo quando se observam os jovens estados constituídos nas primeiras décadas do século XIX. Por uma operação quase metonímica, na qual 20 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

se relega o tempo a segundo plano, Quito se transforma em Equador; Assunção, em Paraguai; Oruro, em Bolívia; o local, em nacional. Política, produção histórica e memória aparecem afinadas pelo mesmo diapasão, desafiando os historiadores a vencer o sentido teleológico dado. Se é certo que a projeção do manto nacional sobre o passado colonial não cobriu apenas os grupos criollos, uma vez que indígenas e mestiços também foram importantes – com intensidades e lógicas diferentes a depender da região – no processo de formação dos imaginários nacionais, as teorias explicativas das independências direcionaram o foco aos primeiros, principalmente por conta do acirramento das tensões que os envolveram no século XVIII. Uma linha contínua parecia se estender, retrospectivamente, entre o início do século XIX e meados do século XVI, atando todos, dos “insurgentes” aos encomenderos, das guerras de independência às insatisfações com as Leis Novas, como se os rebelados quitenhos de 1592 tivessem iniciado um processo que desembocaria nas independências mais de duzentos anos depois. Há algumas décadas, o interesse crescente pelos papéis desempenhados por grupos criollos em diferentes circunstâncias e contextos coloniais tem permitido questionar os limites desta interpretação de corte nacionalista. Noções como a de “patriotismo criollo” proposta por David Brading (Brading, 1991), tão atraente quanto sofisticada, pela nem sempre compreendida distinção entre pátria e nação, possibilitaram novas incursões nas sociabilidades criollas a fim de compreender as razões que presidiam as atitudes daqueles homens e mulheres em relação aos peninsulares (denominados, a depender da região, como gachupines, chapetones ou godos), indígenas, mestiços, africanos e afro-americanos. Como resultado, compreendeu-se melhor que as generalizações, como sói acontecer quando não temperadas pelo exame de casos específicos, são insuficientes à análise histórica, a começar pela que designava por criollos os descendentes de espanhóis nascidos nas Américas. Em primeiro lugar, deve-se observar que a definição dos “espanhóis” como os súditos da Coroa hispânica que desembarcaram no Novo Mundo homogeneíza habitantes de diferentes regiões e reinos: castelhanos, andaluzes, estremadurenhos, bascos etc. Ao menos desde o célebre testamento da rainha Isabel, que associou as terras do Novo Mundo ao reino de Castela, houve uma série de tentativas de se organizar quem poderia se estabelecer nas Índias. Ainda que nunca cumpridas As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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totalmente, havia proibições ao embarque de judeus, hereges, mouriscos, entre outros, ao mesmo tempo em que, em determinados períodos, flamengos, genoveses, portugueses e alemães receberam autorização real. As dificuldades de se identificar como espanhóis todos os súditos europeus que habitavam as possessões hispânicas na América ficam evidentes quando se nota a forte presença de portugueses em Lima durante a União Ibérica ou a atuação de “alemães” – termo igualmente genérico e anacrônico – associados aos banqueiros Welser na região de Nova Granada na primeira metade do século XVI, onde, além de organizarem expedições em busca do Eldorado, fundaram cidades e estabeleceram o comércio de escravos indígenas. Outro exemplo são as disputas ocorridas em Potosí nas primeiras décadas do século XVII. Neste caso, para além de uma divisão entre criollos e espanhóis, houve um embate entre bascos3 – que controlavam cerca de dois terços das minas da região – contra os “vicunhas”, denominação pejorativa reservada a outros peninsulares, em especial, andaluzes e castelhanos. Durante anos, as disputas pelo controle sobre as terras, cargos públicos e a cobrança de impostos por parte das autoridades potosinas geraram ataques a funcionários e propriedades reais, além de acusações mútuas, agressões e assassinatos, que provocaram uma intervenção direta da Coroa na região, substituindo alguns de seus principais oficiais na tentativa de concertar os interesses dos diferentes grupos de peninsulares e seus descendentes. Problematização semelhante vem sendo apontada em relação ao conceito de criollo. Para alguns pesquisadores, a definição que se pauta apenas no local de nascimento e na ascendência dos pais seria restrita demais. Seguindo estes critérios, não haveria espaço, por exemplo, para descendentes de espanhóis com indígenas. Na tentativa de ampliar a definição, Horst Pietschmann (1986; cf. Guerra & Annino, 2003, 47-84) propõe uma concepção dos criollos como os grupos que abarcam os descendentes de espanhóis cujo centro da vida social e econômica se encontrava na América. Nessa perspectiva, mestiços e peninsulares estabelecidos no Novo Mundo também poderiam ser enquadrados nesse conceito, tornando complexa a análise histórica e dificultando a compreensão da realidade colonial escorada unicamente na simplista oposição atemporal entre criollos e espanhóis. 3 Responsáveis, em 1603, pela fundação de uma das primeiras confrarias do vice-reino do Peru.

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Neste capítulo, o leitor não encontrará uma história dos criollos americanos, mas abordagens sobre seus lugares e formas de sociabilidade em diferentes períodos e regiões da porção hispânica do continente. Inicialmente, serão apresentadas as diferentes possibilidades de compreensão dos grupos criollos quando estas são postas em relação às formas políticas atribuídas à Coroa espanhola. O argumento a ser desenvolvido é relativamente simples: a análise dos lugares e papéis sociais atribuídos aos criollos está associada ao entendimento que se tem do sistema político espanhol e das interações mantidas com suas possessões americanas. Caso se assuma, hipoteticamente, que a Espanha se constituiu como um Estado absolutista, as possibilidades de análise dos setores criollos abrem-se em uma direção. Já a partir da concepção de uma “Monarquia corporativa”, outras sendas poderão ser percorridas. Na segunda parte, são apresentadas algumas das formas de sociabilidade e de entretenimentos urbanos partilhados nos círculos criollos a fim de evidenciar sua variedade e sentidos. Na última parte, além das considerações finais, estão disponíveis uma seção com documentos e um breve roteiro historiográfico.

Os criollos ante a Coroa Hispânica Entre patriotas e degenerados Para além dos questionamentos expostos na introdução sobre quem seriam os criollos, deve-se examinar, ainda que brevemente, a historicidade desse conceito. Utilizada inicialmente para denominar os escravos negros nascidos fora da África (Elliott, 2006, 352-367), essa palavra, a partir do final do século XVI, passou a ser empregada na Espanha para se referir aos seus descendentes que habitavam o Novo Mundo. No entanto, sua utilização na América não foi uniforme. Segundo Juan Carlos Garavaglia (Garavaglia, 2008, 93-102), há referências aos criollos em documentos produzidos em locais como a Nova Espanha desde o século XVI. Contudo, em outras partes do continente, como na região do rio da Prata, tal palavra só passou a ser empregada no século XVIII, com um sentido diferente, referindo-se, geralmente, aos mestiços que pertenciam às classes populares.4 4 A historicidade e a multiplicidade de significados atribuídos ao conceito de criollo nos levaram à decisão de mantermos sua grafia em espanhol.

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Entre os europeus, o termo ganhou certa carga pejorativa, que enfatizava o processo de degeneração que ocorreria com os habitantes do Velho Mundo caso permanecessem por um longo período na América. Desde as referências feitas na segunda metade do século XVI pelo franciscano espanhol Bernardino de Sahagún à “mala inclinación” dos peninsulares que viviam ou de seus descendentes nascidos no Novo Mundo até a constatação do nobre prussiano Alexander von Humboldt, no início do século XIX, de que na Nova Espanha o europeu mais miserável via-se como superior aos brancos nascidos neste continente, havia a crença de que o contato prolongado com a natureza americana, especialmente, por exemplo, em aspectos como sua umidade excessiva, geraria resultados deletérios entre os europeus.5 Por outro lado, autores como o jurista Juan de Solórzano y Pereira e o religioso Juan de Palafox adotaram posturas identificadas como “pró-criollos”, associando os ataques sofridos por esse grupo às disputas pelas nomeações por parte da Coroa aos cargos oficiais.6 Na tentativa de rebater tais acusações, autores criollos dos séculos XVII e XVIII negaram a possibilidade de a natureza americana degenerar os europeus ou seus descendentes, sendo responsáveis pela formulação do que Jorge Cañizares-Esguerra (1999, 33-68). designou como “astrologia patriótica”7 ou, mais amplamente, uma epistemologia patriótica criolla.

5 Solange Alberro (2006) apresenta uma lista das principais críticas associadas aos criollos (“la pereza, la holgazanería, sus variantes y corolarios, la ociosidad, la molicie, el abandono, la falta de previsión y cuidado, el descuido, la inercia, la desidia, la inconstancia y la inestabilidad”) e diferencia os ataques feitos por autores do norte da Europa, como o naturalista francês conde de Buffon e o pensador escocês William Robertson, daqueles realizados por espanhóis. De acordo com a pesquisadora, enquanto para estes as críticas se restringiriam aos criollos, para os primeiros a visão negativa se estenderia também aos espanhóis metropolitanos. 6 As questões envolvendo o acesso dos criollos aos cargos oficiais da Coroa espanhola na América são o resultado de um intenso e prolongado debate historiográfico abordado, ainda que lateralmente, por parte expressiva da bibliografia citada ao final do capítulo e identificado por vários autores, entre eles David Brading, como um elemento fundamental para o desenvolvimento de um patriotismo criollo associado às reações diante das reformas propostas pelos reis bourbônicos durante o século XVIII e ao processo de independência. 7 Segundo o historiador, a astrologia patriótica desenvolvida por autores criollos teria suscitado, muito antes dos europeus, argumentações raciais pautadas em determinismos biológicos.

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Entre o Leviatã e a agência local Ademais dos argumentos de europeus ou criollos sobre o lugar ocupado por esse grupo dentro das possessões espanholas no Novo Mundo, da Coroa espanhola como um todo ou mesmo da humanidade – tema vasto e fascinante que, no entanto, foge às limitações deste capítulo – é igualmente necessário refletir sobre algumas interpretações historiográficas produzidas a respeito das sociedades que se formaram na América hispânica e dos lugares atribuídos aos criollos em seu interior. Mais do que um levantamento exaustivo de livros, teses e artigos, serão apresentadas algumas obras cujas interpretações, na maioria dos casos, estabeleceram diálogos entre si. Um modelo explicativo que alcançou grande destaque durante décadas – especialmente, mas não apenas, dentro da historiografia brasileira – e que ainda persiste em algumas interpretações recentes é o que identifica duas formas antagônicas de ocupação do continente por parte das Coroas europeias: as colônias de povoamento e exploração (Cf. Novais, 2005). Entre outros autores que analisaram as Américas hispânica, portuguesa e inglesa valendo-se dessa lógica, pode-se citar Edmundo O’Gorman (1992). Em seu clássico livro sobre a invenção da América, o historiador afirma que o contato dos europeus com o continente teria aberto dois caminhos a serem percorridos pelas sociedades americanas: o da imitação, adotado nas áreas de colonização ibérica, e o da originalidade, restrito às porções inglesas do continente, único local em que a ideia de Novo Mundo teria, de fato, se materializado. Seguindo tal lógica, O’Gorman caracteriza as sociedades desenvolvidas na América hispânica como marcadas pelos “ideais senhoriais e burocráticos dos conquistadores e povoadores espanhóis, empenhados em obter privilégios, prêmios, encomiendas e empregos”, responsáveis por organizar um sistema de exploração dos nativos e de se conformarem em colher riquezas onde Deus as havia semeado.8 8 Interpretação oposta já havia sido apresentada na década de 1930, nos Estados Unidos, por Herbert E. Bolton, para quem as Américas compartilhariam alguns aspectos comuns. (Cf. The epic of greater America, 1933, 448-174). Criticada e pouco adotada por seus contemporâneos (um de seus principais opositores foi, não por acaso, Edmundo O’Gorman, que o acusou de ignorar as dimensões culturais e os grandes contrastes existentes no continente), a proposta de Bolton vem sendo recuperada nas últimas décadas por autores que a associam às perspectivas de História Atlântica ou de Impérios negociados. (Cf. Cañizares-Esguerra, 2006; Bushnell &

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Em sentido semelhante e também sublinhando a exploração espanhola na América, Perry Anderson enquadrou a Monarquia dos Habsburgo em sua teoria do absolutismo. Partindo de uma abordagem marxista, o historiador inglês, ainda que ressalte a inexistência de um reino totalmente unificado e o surgimento de uma “aristocracia criolla” a partir do século XVII, reforça o papel desempenhado pelas colônias americanas: fornecedoras de metais preciosos.9 Nessa perspectiva, não apenas as sociedades criollas, mas outros elementos, como as próprias cidades americanas, perdem destaque, ocupando apenas um local de passagem que conectaria as riquezas naturais e minerais do Novo Mundo aos portos europeus. A partir da década de 1980, estudos que questionavam certas premissas e teorias sobre as sociedades que se desenvolveram no continente americano ganharam destaque. Em oposição à perspectiva que identificava dois modelos antagônicos de ocupação no Novo Mundo, Richard Morse reforçou a existência de uma matriz moral, intelectual e espiritual comum às tradições ibero e anglo-americanas. Para esse pesquisador norte-americano, as sociedades surgidas na América ibérica não poderiam ser analisadas com base na ideia de que teria havido na região um desenvolvimento frustrado, mas sim como resultado de uma opção cultural específica, uma resposta diferente – mas não inferior – à formulada pela porção inglesa do continente ao “pacote moderno”. Opção esta que, segundo Morse, permitiria a identificação de um projeto colonial para as porções ibéricas do continente, único local onde teria havido uma preocupação constante e sistemática com as questões da América (Morse, 1988). Nesse mesmo período, uma série de estudos passou a levantar questionamentos crescentes quanto à existência de um Estado absolutista, que teria transplantado suas instituições nas terras americanas, bem como perspectivas que identificavam, nos moldes propostos por autores como Immanuel Wallerstein, a existência de centros e periferias dentro dos impérios que se formaram no período. Para alguns autores, Greene; Daniels & Kennedy, 2002, 1-14). 9 O que Anderson (2004, 58-82) denomina como “pilhagem das Américas” teria sido fundamental para a própria natureza do Estado espanhol, ainda que tivesse produzido resultados danosos tanto na agricultura quanto na manufatura peninsular, tornando-a um escoadouro de mercadorias estrangeiras.

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a concepção de um Estado Leviatã poderia ser substituída por outras, como a de “Monarquias compósitas” proposta por John H. Elliott. Em artigo que obteve um duradouro impacto historiográfico (Elliott, 1992, 48-71), Elliott argumenta que as Coroas europeias se estruturaram ao longo do século XVI de acordo com uma lógica que buscava manter instituições, leis e costumes específicos a cada uma de suas partes, bem como estabelecer relações de apoio mútuo com as elites locais. No entanto, ele identificou especificidades no caso das possessões espanholas na América: haveria, neste caso, uma “união acessória”, onde um reino é reconhecido juridicamente como parte de outro, no caso, Castela. As reticências quanto aos espaços de negociação que existiriam nas interações entre as Coroas europeias e as sociedades desenvolvidas na América geraram críticas por parte de diversos autores. Ainda que com muitas diferenças e particularidades, pesquisadores como Jack P. Greene, António Manuel Hespanha e João Fragoso vêm ressaltando os aspectos negociados e a importância dos poderes locais nas relações entre as sociedades americanas, seja em sua porção inglesa ou na portuguesa, e delas com o Velho Mundo (Cf. Greene, 1994; Hespanha, 1994; Fragoso, Gouvêa & Bicalho, 2001; Fragoso & Gouvêa, 2010). Processo semelhante pode ser identificado em pesquisas produzidas nas últimas décadas sobre a América hispânica, como as realizadas por Serge Gruzinski, que propõe o conceito de “Monarquia católica” em detrimento da ideia de um Império espanhol centralizado. Para o pesquisador francês, a relação colonial, associada às noções de dependência política e exploração econômica, seria apenas uma das dimensões que caracterizariam as diferentes partes da Monarquia. Aproximando-se da perspectiva analítica das “histórias conectadas”, endossada por autores como Sanjay Subrahmanyam, Gruzinski combate o que ele considera ser uma visão hispanocêntrica nas abordagens sobre a Monarquia espanhola, ressaltando a importância dos estudos que enfatizam as interações locais e dessas com outras regiões do mundo (Gruzinski, 2001, 175-195). Seguindo essa proposta, as análises sobre as sociedades criollas deveriam ampliar seu enfoque para além dos contatos estabelecidos com Castela. No caso da Nova Espanha, por exemplo, as atenções em relação às frotas que partiam anualmente para Cádiz ou Sevilha deveriam ser divididas com aquelas que chegavam periodicamente ao porto de Acapulco, proveAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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nientes de Manila.10 As dinâmicas no circuito da prata potosina também são ilustrativas. Para além das remessas de minérios enviadas à Coroa, a circulação do metal exerceu papel determinante não apenas no espaço peruano, mas também nas conexões com outras partes da América hispânica (como a região do Prata, de onde partiam escravos africanos provenientes das terras portuguesas em direção às zonas de mineração) ou com outras partes do globo, suprindo a necessidade de moedas em locais como as colônias inglesas na América ou no Império chinês. A postura adotada por Gruzinski recebeu críticas por parte de autores como Bartolomé Yun Casalilla, para quem tal análise sobre as possessões espanholas minimizaria o caráter desigual dessa relação ao tirar o peso do poder político, do domínio e da violência presente nos Impérios.11 Em relação à América hispânica propriamente, o pesquisador espanhol ressalta o interesse da Monarquia em impedir o desenvolvimento de uma nobreza local e, consequentemente, o que ele identifica como a impossibilidade da criação de laços entre os nobres castelhanos e as elites americanas.12 No entanto, para além das divergências entre a ênfase nas forças centrífugas ou centrípetas dentro da Coroa espanhola – que, segun10 Em outra obra, Gruzinski (2012) afirma que a ligação marítima estabelecida entre Manila e Acapulco “acarretou um novo posicionamento das Índias no globo: além de ter promovido a abertura das portas da Ásia aos habitantes da Nova Espanha e do Peru, ela aproximou consideravelmente o Oriente do litoral da Nova Espanha”. 11 Casalilla utiliza tanto “Império” quanto “Monarquia compósita” ao se referir à Coroa hispânica. Assim como Elliott, o autor espanhol identifica uma diferença entre as relações estabelecidas entre os reinos que integravam a Monarquia compósita espanhola e as estabelecidas com sua colônia americana. Mesmo assim, o autor aponta algumas ressalvas em relação ao conceito utilizado pelo historiador inglês, afirmando que sua abordagem o completa, mas também se distancia dele, ao enfatizar a circulação das elites e os “laços horizontais” entre os diferentes reinos que compunham a Monarquia (Casalilla, 2009). Ao analisar as denominações de Império e Monarquia na Espanha do período, Ronald Raminelli ressalta que, à exceção de Carlos V, os demais reis espanhóis não se intitularam imperadores (ainda que houvesse menções em documentos oficiais): “o uso da palavra ‘império’ era estranho aos letrados espanhóis contemporâneos [...] para diferenciar a Espanha do Sacro Império, humanistas como Nebrija defendiam o emprego do termo Monarquia. Além de particularizar, tal recurso pretendia igualmente demonstrar a superioridade espanhola por meio de sua força expansiva e suas possessões na América, África e Ásia” (Raminelli, 2013). 12 A abordagem de Casalilla recebeu críticas por parte de João Fragoso, para quem sua proposta reforça a imagem da América espanhola como conquista ou como um Império colonial de uma Monarquia compósita, o que minimizaria a importância dos pactos e negociações entre as elites criollas e Madri. Em contraponto, Fragoso sugere a adoção do conceito de Monarquia pluricontinental, que “tende a sublinhar tais acordos entre os que ocupavam os cargos honrosos da república (município) e a Coroa” (Fragoso, Guedes & Krause, 2013).

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do Xavier Gil Pujol (1991, 119-144), não seriam antagônicas, mas interdependentes –, a complexidade das interpretações permite supor que os círculos criollos mantinham relações muito mais amplas e complexas com a Coroa e com os demais grupos sociais do que pressupunham certas abordagens. Ao mesmo tempo em que as instituições reais impunham uma série de restrições aos vice-reis enviados ao Novo Mundo (como a proibição de obterem propriedades em sua jurisdição, de se casarem ou serem padrinhos de pessoas da região), na tentativa de evitar a criação de laços com os locais, houve, especialmente ao longo do século XVII, movimentos no sentido contrário, como a intensificação da política de venda de cargos que, em grande parte, foram adquiridos por criollos.13 Como exemplos de uma abordagem que ressalta a complexidade das relações estabelecidas entre Castela e os homens e mulheres nas Américas, tendo em vista o papel ocupado pelos criollos, são ilustrativos os estudos recentes realizados por Arndt Brendecke. Ao analisar a busca por informações sobre o Novo Mundo por parte da Coroa, o pesquisador alemão ressalta que, além do “ideal absolutista do rei onisciente”, deve-se observar a posição de destaque dos poderes locais, ocupados em grande parte por criollos, que seriam responsáveis tanto pelo fornecimento de informações quanto pela verificação da veracidade das mesmas.14 Dessa forma, e retomando o que se afirmou na introdução, pode-se notar que as reflexões sobre as sociedades criollas são, em alguma medida, tributárias do modo como se concebem as relações entre a Coroa espanhola e seus domínios americanos. No entanto, independentemente das profundas diferenças existentes entre os autores e propostas de abordagens citados acima, observa-se que, em geral, a agência dos 13 David Brading, ao analisar a compra de cargos oficiais pelo que ele denomina como “magnatas criollos”, afirma que, no começo do século XVIII, esse grupo chegou a desempenhar um papel em sua sociedade similar ao ocupado pelas aristocracias europeias no Velho Mundo. Já Horst Pietschmann afirma que a infiltração crescente dos criollos nas estruturas administrativas, especialmente através da compra de cargos, gerou uma fase de relativa autonomia que poderia ser observada, por exemplo, através de interpretações laxas da legislação metropolitana na tentativa de adaptá-la aos interesses e situações locais. (Guerra & Annino, 2003, 15-46; 47-84) 14 Entre outras fontes, Brendecke analisa as relaciones de méritos y servicios enviadas periodicamente à Coroa por súditos de diversas localidades, que deveriam ser acompanhadas por declarações de juízes locais: “The involvement of local judges did, of course, delegate some competence back to the colony, recognizing that, in practice, the central institution of the Council of the Indies was not able to assess the truthfulness of incoming reports without consulting the expertise of local actors. The court had to relocate decisions from the centre to the advisors of the centre, or even further down the peripheries” (Brendecke; Blockmans et. al., 2009, 235-252).

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criollos, assim como a de indígenas, mestiços e africanos, vem ganhando atenção crescente, tornando suas vivências e formas de sociabilidade elementos centrais à compreensão da história americana.

Formas das sociabilidades criollas Duas repúblicas A dinâmica da vida social frequentemente rechaça projetos gestados com a finalidade de organizá-la, de lhe conferir certa forma. Ordenador, esse desejo amiúde se vê frustrado diante de arranjos e combinações inesperados. As sociedades, apesar de inseridas em uma ordem, são forjadas também pelos imprevistos. A proposta castelhana de, após a conquista, organizar as sociedades americanas em duas repúblicas pode ser tomada como exemplo de um projeto que, com a passagem do tempo, sucumbiu ao pulso irregular da vida coletiva. A ideia tinha contornos gerais simples. Recorria-se à concepção clássica de república como uma sociedade política dotada dos meios necessários para se governar, e não como uma forma de governo, a fim de constituir duas grandes comunidades: a de brancos e a de índios. Embora se distinguissem pelo critério étnico subjacente à sua designação, ambas integravam o mesmo corpo, a Monarquia católica espanhola, e respondiam ao mesmo sistema legal, o direito indiano (Lempérière, 2001) – apesar de isso não significar plena igualdade entre elas (Morse, 1988; Bethell, 1997, 73). Religiosos, letrados, vice-reis e toda sorte de homens versados no debate jurídico-político em torno da expansão castelhana usaram com frequência os termos “duas repúblicas”, “república de espanhóis” e “república de índios” para caracterizar o ordenamento social americano, principalmente nos séculos XVI e XVII. Não raro, esses sujeitos externaram certa preocupação com a mescla das duas repúblicas. Tal inquietação manifestou-se nas primeiras décadas de institucionalização das conquistas, especialmente por meio da atuação de religiosos que alegavam ser pernicioso aos nativos o contato com os colonos espanhóis, cujas ações expressavam vícios como a avareza, a cobiça e a luxúria. O padre José de Acosta, jesuíta que viveu no Peru nos anos 1570, registrou em seu De Procuranda Indorum Salute os excessos cometidos pelos 30 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

colonos, alegando que os principais obstáculos à evangelização provinham dos espanhóis (Acosta, 1984). De algum modo, a proposta de isolamento dos ameríndios indicava tanto um projeto de cristianização e civilização, ao reduzi-los à vida em pueblos, como uma forma oficial de resguardá-los da exploração por parte de encomenderos. A projeção das duas repúblicas como comunidades distintas, apartadas e em certa medida autônomas não resistiu às vicissitudes da vida social no Novo Mundo, principalmente nas áreas urbanas. O ordenamento imaginado não suportou a diversidade de interesses e a imprevisibilidade das relações entre os diferentes grupos sociais nos vice-reinos. Afinal de contas, quem era o espanhol que comporia a “república dos espanhóis”? Quem era o nativo da “república de índios”? Na prática, as essências supostas por essa fórmula se esfacelavam frente às vivências nas cidades americanas. Com frequência, criollos divergiram dos peninsulares e entre si, missionários afrontavam seculares e religiosos de outras ordens, vice-reis mobilizavam homens armados contra juízes da audiência, que respondiam àqueles ataques na mesma moeda. Também entre os indígenas a pretendida redução de muitos grupos a uma república não resistiria à multiplicidade de suas ações após (e durante) as conquistas. Os variados interesses, por vezes contrários entre si, permitiriam supor, quase sem risco de erro, que o modelo de duas repúblicas na América não sobreviveria. À medida que transcorriam as décadas e se ampliavam as relações sociais e étnicas, a trama se tornava cada vez mais complexa. As mestiçagens biológicas e culturais, imprevistas e indesejadas no ideal ordenador, implodiram aquele projeto. Mestiços, mulatos e zambos não se acomodavam em nenhuma das repúblicas e evidenciavam a presença da população negra, ampliando a heterogeneidade das formações sociais no Novo Mundo. Em algumas cidades da América Central, no final do período colonial, conta-nos Richard Morse, as vilas espanholas e índias atraíam tantos grupos étnicos que se tornaram pueblos de ladinos (Morse, 1988, 78). Em Lima, por exemplo, a tentativa do vice-rei Francisco de Toledo, conhecido por suas reformas durante a década de 1570, de isolar os índios em um bairro chamado el Cercado fracassou e os nativos seguiram vivendo junto aos demais grupos do vice-reino (Chocano Mena, s/d, 28). À semelhança do que ocorria em outros locais, o cotidiano urbano no México dos séculos XVI e XVII sugeria uma permanente mescla de indivíduos e grupos (Gonzalbo Aizpuru, 2009, 187). As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Vivendo coletivamente O modelo das duas repúblicas indicava, no entanto, um elemento central à lógica das sociedades coloniais americanas, marcadas pela herança dos critérios de distinção social ibéricos e, de modo geral, europeus: o nascimento. As condições de nascimento eram responsáveis pela inserção do sujeito em determinado grupo, valorizando-se quase sempre critérios ligados à pureza de sangue. À diferença da obsessão hispânica por controlar os resquícios judaicos e muçulmanos entre seus súditos, nas cidades americanas as autoridades se ocuparam também com as mesclas entre espanhóis, índios e africanos, cujos frutos frequentemente careceram de prestígio e legitimidade social. Antes mesmo do parto, projetava-se para o recém-nascido, segundo sua genealogia, um lugar naquela sociedade. Contudo, outros fatores além do dado biológico, como a honra, o comportamento público, a situação familiar, a posição econômica, o reconhecimento profissional e a performance social também exerciam influência determinante. Uma pessoa “nascia sendo o que era”, mas sua trajetória diante da comunidade poderia ratificar ou não aquela posição. Daí certos historiadores, há algum tempo, sugerirem com razão o uso da categoria calidad para compreender a organização das sociedades hispano-americanas, uma vez que ela abrange dimensões mais amplas do que os fatores estritamente familiares e fisionômicos, embora a cor da pele não tenha sido ignorada (Cf. Hering Torres; Bonilla, 2011,451-470; Ramírez Hernández, 2013; Gonzalbo Aizpuru, op. Cit, 60-65, 278-279; Alberro & Gonzalbo Aizpuru; 2013; Chocano Mena, s/d, 13). Em vez de uma sociedade de castas (Cf. Seed, 1982, 569-606) – embora este termo fosse utilizado à época –vislumbra-se assim uma sociedade colonial dividida segundo a calidad dos sujeitos. Nascia-se no interior de um grupo e vivia-se coletivamente. A probanza da pureza de sangue era o primeiro passo para se viver em uma sociedade hierarquizada e organizada corporativamente. Contando com poucas condições favoráveis a individualidades, os sujeitos tomavam parte da vida social e tornavam concreta sua existência ante as autoridades civis e religiosas por meio de grupos e corporações. Colégios, a universidade, ordens religiosas, irmandades, cabildos, grêmios e confrarias são alguns exemplos de associações que, criadas em torno de um motivo comum, garantiam uma posição a seus integrantes, bem como assegu32 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

ravam certa coesão social desejada pela Coroa e pela Igreja. Alguém que não pertencesse a um ou vários desses grupos ficava à margem da vida coletiva e via suas chances de alcançar honra e privilégios chegarem perto de zero. É certo que o ingresso em muitos desses grupos era parcialmente limitado por critérios relacionados ao nascimento, conquanto se conheçam episódios em que a genealogia e o sangue não constituíram impeditivos. Pode-se lembrar, a título de exemplo, o caso da Real Universidade do México, que não restringiu, pelo menos até a segunda metade do século XVII, a entrada de mestiços e mulatos, cujo apreço de seus contemporâneos suplantava a alegada ilegitimidade de seu nascimento (Gonzalbo Aizpuru, Op. cit., p. 66-67). Imaginadas inicialmente como um ente bipartite, as sociedades americanas mostraram-se mais complexas, sobretudo nas áreas urbanas e mais povoadas. Hierarquizadas e desiguais, é fato, mas não completamente estáticas como sugere a visão tradicional acerca de uma sociedade de castas, uma vez que existiam chances de mobilidade, por menores que fossem (Traslosheros, 1994, 59). Nesse cenário, as corporações concorriam para a organização da vida social, criando laços entre seus integrantes por meio de normas, crenças, valores comuns e garantindo sua existência material e simbólica frente a outros grupos e às autoridades. Ao unir pessoas com interesses semelhantes, essas associações dispunham também das condições necessárias para estabelecer mecanismos de controle social por meio da vigilância mútua exercida pelos próprios membros. Assim, a incorporação dos indivíduos no universo social hispano-americano tendia a ocorrer antes pela atuação de tais agremiações do que pela existência de duas repúblicas.

Sociabilidades criollas No começo do século XVII, um padre jesuíta identificava no México um problema cuja solução ele considerava ser urgente. A conquista militar havia sido acompanhada por um projeto de evangelização dos indígenas que tomou a atenção das ordens religiosas, principalmente nas cidades ao redor da capital do vice-reino. Os esforços missionários foram majoritariamente direcionados à conversão dos nativos, em busca da eliminação das idolatrias e da redução daqueles grupos As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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à vida civilizada. Porém, indagava Juan Sánchez Baquero, que atenção foi dispensada aos “moradores espanhóis”? E aos filhos dos filhos dos conquistadores e primeiros pobladores, a “nova juventude”, que lugar lhes cabia naquela sociedade? Segundo Baquero, os “santos missionários” que evangelizaram o Novo Mundo se ocuparam devidamente com os indígenas, mas pouco zelaram pela juventude hispânica, gerando um vazio que, segundo sua crônica, deveria ser preenchido pela Companhia de Jesus. As respostas desse padre alegavam a falta de cuidado com os espanhóis nascidos no México e recomendavam uma reflexão sobre o lugar social ocupado pelos criollos (Baquero, 1945, 42 ss.). O relato de Baquero, portanto, sugeria a seguinte pergunta: qual teria sido o lugar dos grupos criollos nas sociedades americanas coloniais? Caso se aceitasse sem reservas o modelo das duas repúblicas, a solução poderia ser apontada de modo simples: a república de espanhóis, distantes e apartados de indígenas, africanos e mestiços, logo, segundo o religioso, fora do alcance das ações iniciais da Igreja e da Monarquia. Sabe-se, contudo, que a separação entre tais repúblicas não se concretizou, na medida em que as mesclas eram uma realidade nas Américas e que, sob a abstração “espanhóis”, encontravam-se tantos grupos diferentes e indiferentes entre si quanto aqueles denominados pelo termo “índios”. Nesse sentido, partir da divisão entre repúblicas, cuja existência era mais efetiva nos discursos jurídicos do que na prática, parece ser uma escolha pouco promissora para compreender algumas das condições materiais e simbólicas das sociabilidades criollas. Daí a opção por observar certas formas corporativas de organização da vida social daqueles grupos, em busca não de uma suposta unidade criolla, mas das próprias relações, disputas e proximidades entre si e com outros grupos que os levaram a se congregar a fim de se afirmar socialmente.

Santos e devoções Os cultos a santos talvez tenham sido a principal expressão dos modos de sociabilidade, identidade e integração dos criollos nas Américas, especialmente a partir do século XVII. Pelo menos do ponto de vista historiográfico. Não foram poucos os historiadores que se dispuseram a ressaltar as relações entre o surgimento de devoções e de 34 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

novos santos e a emergência de identidades criollas em várias regiões do continente.15 Neste caso, os setores clericais desempenharam importante papel, na medida em que religiosos criollos, mas também peninsulares com fortes vínculos locais, trabalhavam para evidenciar a presença divina em sua terra. E terra, aqui, é sinônimo de pátria, conforme seu sentido no século XVII, compreendida como o lugar onde se havia nascido e com o qual se criavam laços afetivos – distante, portanto, de seus significados mais recentes e das acepções do vocábulo nação. Assim, podiam-se notar diferentes manifestações de patriotismo no interior de um mesmo vice-reino. Tal foi o caso, por exemplo, das devoções surgidas na Audiência de Quito durante o século XVII após uma sequência de desastres naturais (terremotos, inundações e estiagens). Para enfrentar os temores que rondavam as cidades da região, os jesuítas fizeram circular entre os fiéis os relatos dos milagres operados por Mariana de Jesús (1618-1645), estimulando uma devoção em torno de uma penitente nascida em Quito que, ainda jovem, havia oferecido sua vida em troca do bem-estar de sua terra. Embora tenha sido beatificada apenas no século XIX e canonizada em 1950, os rumores hagiográficos sobre aqueles milagres criavam as condições adequadas para os criollos quitenhos afirmarem a importância de sua pátria, principalmente diante de Lima, que era capital do vice-reino e contava com uma devoção bem estabelecida em torno daquela que se tornaria a primeira santa das Américas: a patrona de Lima e do Novo Mundo, Santa Rosa. Depois, o próprio episcopado fomentou em Guápulo, perto de Quito, o culto à Virgem de Guadalupe ou de Guápulo, esperando criar naquele santuário um lugar de peregrinação e reafirmar a posição da cidade e uma espécie de identidade local, que teve na arte barroca da Escuela de Quito uma expressão concreta e complexa (Cf. Narváez Lora, 2010, 129-160; Kennedy Troya, 2001). Observando outra região do continente, nota-se na elite eclesiástica de Puebla semelhante busca por preeminência no processo de beatificação da monja María de Jesús, iniciado em meados do século XVII e inspirado posteriormente pela beatificação e canonização de Rosa de Lima, com o fito de rivalizar com a capital do vice-reino, México (Rubial García, 1999; Buxo & Herrera, 1994, 104). 15 Para exemplos, ver o roteiro bibliográfico ao final deste capítulo.

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Os relatos hagiográficos constituíram um elemento decisivo no surgimento e consolidação das devoções e cultos locais. Ao lado das imagens, cujo aparecimento realçava o caráter miraculoso de determinada devoção, esses textos faziam circular narrativas modelares, recheadas de exemplos virtuosos, capazes de criar valores e crenças comuns a seus leitores. Servindo muitas vezes como forma de entreter homens e mulheres que preferiam as histórias de santos a novelas de cavalaria, a literatura hagiográfica se tornou um efetivo meio de transmissão de valores entre os grupos alfabetizados, também sendo difundida oralmente em leituras públicas, sermões, confissões e demais espaços de socialização (Rubial García, 1999, 108-109). Ao relatar as vidas de santos nas cidades americanas, os hagiógrafos contribuíam para criar laços entre os grupos e sua terra natal, tornada então distinta por ter sido berço de uma determinada santidade. Se os peninsulares viram o aumento significativo do número de santos espanhóis a partir do século XV, os criollos esperavam também confirmar a fertilidade espiritual de sua terra. Nos dois vice-reinos existentes no período, vários casos de veneráveis foram enviados a Roma para início do processo de beatificação. Poucos desses casos foram concluídos, dentre os quais dois se destacam por sua representatividade: Felipe de Jesús, um franciscano criollo da Nova Espanha, que morreu como mártir em missão no Japão e foi beatificado em 1627; e Isabel Flores de Oliva, uma donzela criolla da capital do Peru beatificada em 1668 e canonizada três anos depois como Santa Rosa de Lima. Ainda que outros processos de beatificação tenham ocorrido, essas duas figuras do século XVII se somavam à devoção a diferentes advocações marianas – a Virgem de Guadalupe de Tepeyac, no México, certamente é um bom exemplo – na construção de um sobrenatural que permitia aos criollos não apenas a partilha de elementos comuns aos lugares em que nasceram ou onde viviam, mas também a criação de formas de sociabilidade e entretenimento.

Confrarias Os cultos a santos motivaram também uma importante forma de organização corporativa da vida social nas cidades americanas: as confrarias. Presentes no Novo Mundo desde os primeiros momentos 36 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

após as conquistas, as confrarias eram associações eclesiásticas ou gremiais que ofereciam assistência espiritual e material a seus sócios (e, em casos especiais, a não-sócios) que careciam de algum auxílio. Por meio da religiosidade, ajuda mútua e amparo fraternal, pretendia-se oferecer alívio em situações delicadas, como a morte, instabilidades políticas ou desastres naturais. Com os recursos monetários recolhidos pelas doações, esmolas, fundos obtidos em festas, capellanías e cotas cobradas para o ingresso de novos associados, almejava-se assistir financeiramente a própria comunidade (CF. Wobeser, 2005). No primeiro caso, tratava-se da salvação eterna; no segundo, da sobrevivência material. Embora a devoção a um santo patrono tenha sido a marca das confrarias religiosas, os ritos católicos pautaram o funcionamento das comunidades leigas, indígenas, mestiças e africanas. Nas diferentes regiões das Américas, as confrarias fizeram parte do cotidiano de peninsulares, criollos, mestiços, indígenas e africanos. As manifestações de solidariedade, caridade e piedade contribuíam para certa harmonia entre os grupos sociais, desejada pelas autoridades civis e eclesiásticas, mas também para o fortalecimento das relações e da sensação de pertencimento entre os integrantes daquelas corporações, cujas práticas eram reguladas por estatutos elaborados pelas próprias associações. Do ponto de vista católico, a corporação proporcionava os meios convenientes à salvação de seus confrades, que, por sua vez, deveriam cumprir seus deveres exemplarmente, conformando uma “economia da salvação eterna”, segundo a feliz expressão de Asunción Lavrin (Lavrin, 2015, 49). Pertencer a uma ou várias confrarias era sinal do status de determinada pessoa, tendo havido congregações mais ou menos abertas ao ingresso indiscriminado (social, étnico, gremial, sexual etc.), ainda que o(a) postulante tivesse condições financeiras de bancar a cota de entrada. Em geral, os grêmios que reuniam praticantes do mesmo ofício eram mais restritos, enquanto outras congregações acomodavam grupos étnicos diferentes – embora isso não significasse necessariamente integração entre eles, já que em alguns casos as reuniões, construções de altares, procissões e festas ocorriam separadamente (Guerra, 2000, 27-28). Um caso representativo pode ser encontrado na Confraria do Rosário, promovida pelos dominicanos em meados do século XVI na cidade de Santa Fé de Bogotá, atual Colômbia. Ela se dividia em três ramos: o masculino, o feminino e o indígena, os dois primeiros formados por As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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personagens distintos da cidade, enquanto a seção nativa era composta por homens e mulheres. Para as atividades corriqueiras, cada ramo se reunia separadamente, situação que se alterava nas ações mais importantes, como manter e adornar a capela da Virgem do Rosário e preparar sua festa anual (Plata, 2015, 79-109). Os criollos e os peninsulares vinculados à confraria estavam ligados às elites políticas locais e enxergavam nessas circunstâncias a oportunidade de evidenciar seus lugares sociais e reforçar, no interior da associação, as relações de poder existentes em outros espaços. Nesse sentido, ao construir capelas e altares, promover procissões, orações e festas, as confrarias ofereciam a seus sócios várias ocasiões de sociabilidade, nas quais se afirmavam valores e crenças comuns, cultivavam-se virtudes desejáveis à manutenção do grupo e à coesão social, mas também se expressavam as formas da organização, da hierarquização e das disputas que atravessaram as sociedades americanas.

As festas como cenário político As festividades em homenagem ao santo patrono constituíram importantes ocasiões de diversão e entretenimento para os confrades e sua coletividade, permitindo-lhes comungar imagens, ritos e crenças comuns. Mas não foram as únicas. Os dias festivos se espalhavam por todo o ano e pontuavam o calendário religioso e civil de espanhóis e índios. Em geral, as comemorações nas cidades da América colonial significavam uma ruptura com o tempo do cotidiano, sem, contudo, esfacelar as hierarquias estruturadoras da vida social (Kennedy Troya, 1996, 137-152; Gonzalbo Aizpuru, 2009, 305). De modo apenas aparentemente contraditório, suspendiam-se por um momento o ritmo, as atividades laborais e os papéis desempenhados no dia a dia, para se reafirmarem, de modo simbólico e à vista de todos, o ordenamento, as hierarquias e as relações sociais. As festividades eram um gatilho para a ativação de certas memórias. Cerimônias cristãs como a ocorrida no México em 1699 poderiam acabar em pancadaria se cada ordem religiosa não respeitasse o lugar que lhe cabia na procissão que levava o Santíssimo Sacramento, e que na verdade representava seu lugar na sociedade (Rubial García, 2005, 169). Circunstâncias como essa mostram quão significativo era manter a lógica corporativa e organizadora do cotidiano nos tempos de festa. 38 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

As festas religiosas foram as mais frequentes e faustosas nas sociedades vice-reais americanas, principalmente no século XVII. Entre elas, a de Corpus Christi teve destaque especial por seu sentido no conjunto dos ritos católicos após o Concílio de Trento, pelo esplendor da procissão e por acolher diferentes expressões artísticas, como a música, a dança e o teatro (Cf. Santos, 2005; Jancsó & Kantor; 2001). Em várias cidades, a elite dirigente criolla, reunida nos ayuntamientos, financiou e organizou tais festejos em parceria com confrarias, grêmios e paróquias (Dolores Bravo; Rubial García, 2005, 449-451). Dar-se a ver era importante e a festa oferecia a oportunidade para esses grupos e corporações se posicionarem ante as principais autoridades civis e religiosas esperadas no evento, expressando sua condição social e histórica. Em 1608, em Potosí, nos dias subsequentes à cerimônia de Corpus Christi, os criollos da cidade promoveram diversos festejos e entretenimentos para demonstrar suas qualidades. Em seis dias, realizaram-se diferentes atividades, comédias, saraus, corridas de touros, jogos, com a finalidade de expor aos vecinos, forasteiros e demais moradores suas habilidades, riquezas e nobreza (García Pabón, 1995; Cf. Prodanov, 2002, 102). Se em muitas circunstâncias os festejos religiosos, compreendidos como ocasiões de sociabilidade, permitiam aos setores criollos disputar a preeminência entre si e reafirmar a ordem social existente, em algumas regiões eles tornaram possível a participação e expressão efetivas de outros grupos, como os ameríndios, agregando elementos nativos à comemoração. Alexandra Kennedy Troya aponta que, em Quito, mesmo após as restrições tridentinas, a nobreza indígena continuou participando de diversas festas, recorrendo àquele espaço para exibir símbolos que os diferenciariam dos outros nativos, dos peninsulares e dos criollos (Kennedy Troya, 2001, 142-143; Cf. García Pabón, 1995, 428-431). Menos faustosas e frequentes, mas igualmente relevantes como oportunidades de socialização, as festas públicas organizadas pelas autoridades civis ofereceram um palco privilegiado para as parcelas criollas, especialmente nas cidades que não eram as capitais dos vice-reinos e não contavam, portanto, com um ambiente cortesão. Nestas sedes, boa parte dos festejos ocorreu nos entornos dos palácios vice-reais, muitas vezes ligados ao nascimento, morte ou ascensão de um monarca em Castela, ou por ocasião da chegada de um novo alter ego do monarca. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Entre os séculos XVI e XVII, a relação estabelecida nas festas de recepção ou em outras comemorações palacianas entre a corte e os grupos criollos abrangia dois movimentos simultâneos. O vice-rei patrocinava a celebração para evidenciar sua legitimidade e autoridade – representada nos adornos, arcos, pinturas, roupas e nas próprias encenações – frente às elites civis e religiosas locais, ao passo que estas (e mesmos alguns membros das nobrezas indígenas) pretendiam se mostrar ao novo mandatário a fim de ocupar um lugar de distinção. Por exemplo, em uma das portas do arco construído pelo cabildo de Lima para receber o Marquês de Cañete, em 1589, via-se uma pintura de Eneias e seu pai, Anquises, para retratar o vice-rei e o monarca espanhol, respectivamente, sob o tema da obediência filial. Segundo Alejandra Osorio, pode-se interpretar tal representação em sentido criollo, ao converter o vice-rei em fundador de uma pátria criolla, à semelhança do modelo romano codificado na trajetória de Eneias (Cf. Osorio, 2006, 767-831). Nesse sentido e de acordo com a precisa formulação de Antonio Rubial García, a festa constituía um cenário político (Rubial García, 2009). Se as celebrações cortesãs, de modo geral, não tinham data fixa e dependiam da chegada ou patrocínio vice-real, o calendário de festas civis na Nova Espanha previa uma cerimônia relevante para afirmação da presença hispânica. Tratava-se do Paseo del Pendón, festejo realizado no dia 13 de agosto pelas autoridades do vice-reino, por peninsulares assentados no Novo Mundo e por criollos para comemorar a vitória de Hernán Cortés sobre os mexicas (Dolores Bravo, 2009, 454). O símbolo principal da cerimônia era um estandarte com os escudos de armas do México e da Monarquia espanhola levado à frente dos desfiles, que em algumas ocasiões podiam ser acompanhados de corridas de touros, música e celebrações religiosas. Ao dedicar um dia do ano para comemorar o triunfo da conquista, as elites dirigentes das cidades da Nova Espanha, como também de outras regiões das Américas, reforçavam e socializavam a memória fundadora de sua condição histórica. Mais do que em outras ocasiões, nessa a cerimônia constituía um espaço privilegiado para as sociabilidades e expressão das perspectivas histórico-políticas dos grupos criollos.

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Considerações Finais Faz já algum tempo que a história não se resume a um encadeamento cronológico dos fatos. As teorias, os modelos e tipos, as generalizações em variadas escalas são práticas correntes na boa historiografia, que se beneficiou do diálogo frutífero e ainda promissor, embora nem sempre consensual, com a teoria social e com a filosofia para aprimorar seus métodos e abordagens. A busca pelo que é único e irrepetível continua no horizonte dos historiadores, sem, contudo, se transformar num fim em si mesma. As múltiplas formas de histórias comparativas, conectadas, atlânticas estão na praça para evidenciar tal condição. Compreender certo evento em suas particularidades constitui um passo fundamental, assim como o é atribuir-lhe sentido, inserindo-o num conjunto explicativo maior. Subjaz aí um importante desafio que há muito se impõe aos historiadores: a medida das generalizações. Este capítulo sobre as sociabilidades criollas fez algumas generalizações e apontou os limites de outras. Partiu-se, inicialmente, do pressuposto de que as sociedades americanas coloniais foram atravessadas por relações conflitivas, o que não deixa de ser um modelo na medida em que se valorizam o recorrente e o geral a fim de propor uma mirada sobre mais de dois séculos de história, conquanto não se ignorassem os espaços e possibilidades de negociação e de concerto de interesses em disputa, conforme se sugeriu. Dessa concepção geral seguiu-se com frequência uma outra, que aqui se considerou pouco promissora: a de que houve uma oposição perene entre os interesses de criollos e peninsulares. Em primeiro lugar, porque as próprias definições de criollo e peninsular supõem uma identidade que reduz demasiadamente a variedade de grupos num momento, especialmente antes do início do século XVIII, em que nem sempre aqueles agentes históricos assim se reconheciam. Em segundo lugar, porque tal oposição, pouco matizada, é antes fruto da transposição de certas leituras nacionalistas sobre os processos de independência no começo do século XIX para realidades anteriores que pouco ou nada respondiam às lógicas de conteúdo nacional. Se é verdade que houve disputas constantes entre grupos locais e súditos espanhóis, tais contendas nem sempre tinham ligação com a condição em si de criollo ou peninsular, mas sim com interesses mais terrenos: terras, cargos, mão de obra ou “simplesmente” o lugar de cada um na procissão de As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Corpus Christi. Em algumas regiões, a exemplo das principais cidades da Nova Espanha, parece ter havido uma distinção mais clara entre os dois grupos ainda no século XVI; em outras, como nas áreas urbanas do rio da Prata, os limites e critérios de identificação eram menos nítidos. Como ente, a sociedade criolla, no singular, não existe, e como modelo soa pouco útil. Por isso, privilegiaram-se aqui as sociabilidades criollas, noção menos cerrada porque supõe as relações, os contatos e considera, portanto, as múltiplas presenças de outros grupos. Tal escolha permitiu, nas páginas anteriores, associar a compreensão dos grupos criollos nas Américas ao entendimento que se tem da natureza política da expansão hispânica. O argumento que subsidiou este texto recoloca a questão das generalizações teóricas: a teoria que se partilha sobre a natureza da Monarquia espanhola moderna fornece as chaves conceituais para a compreensão das sociedades americanas e, por conseguinte, das sociabilidades criollas. Se mais ou menos centralizada; se mais ou menos absoluta; se mais ou menos corporativa; a depender da opção feita, entre as múltiplas possíveis, abre-se tal ou qual perspectiva. Em todos os casos, os fatos serão iluminados pelo farol oferecido no modelo – o que em si não constitui empecilho, desde que os primeiros não sejam desconsiderados em favor do segundo e que não se ignore o dado fundamental de que as construções modelares são por definição simplificadoras da realidade e não devem com ela coincidir. Nesse sentido, o estudo das formas de sociabilidades criollas esboçadas neste capítulo permite, por um lado, colocar elaborações conceituais mais amplas (sobre sistemas políticos, econômicos, sociais) em perspectiva histórica, testando sua validade para um conjunto particular de casos; e, por outro, oferecer chaves e oportunidades para a formulação de novos modelos explicativos. Os processos específicos (o funcionamento das confrarias, as devoções, os entretenimentos urbanos, as festividades civis e religiosas) poderiam, assim, temperar as generalizações, franqueando aos historiadores as portas para a elaboração de outros aportes teóricos. Tal pode ser o caso da discussão em torno das festas urbanas, para mencionar um dos itens analisados acima. As festividades, por exemplo, servem tanto à ratificação de um poder (da Coroa ou da Igreja) por meio das representações e dos elementos simbólicos, como à sua suspensão momentânea, valendo-se dos mesmos meios. Ainda que não se configurem como manifestações homogêneas, não seria um dis42 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

parate imaginar uma teoria das festas urbanas na América hispânica, desde que tal generalização mantenha vivo o gosto pelas evidências e particularidades históricas.

Roteiro bibliográfico Obras gerais sobre a sociedade colonial americana: entre vários outros exemplos de livros publicados no Brasil que abordam a sociedade colonial na América hispânica, ver os primeiros volumes da coletânea organizada por Leslie Bethell: História da América Latina (Edusp, 1997), a obra de Stuart B. Schwartz e James Lockhart: América Latina na época colonial (Record, 2002), o segundo volume da História do Novo Mundo: as mestiçagens, de Serge Gruzinski e Carmen Bernand (Edusp, 2007) e o levantamento bibliográfico realizado por John Manuel Monteiro e Francisco Moscoso: América Latina colonial (Bibliografia básica, CELA, 1990). Patriotismo criollo: em relação às sociedades criollas, um dos temas mais abordados pela historiografia nas últimas décadas é o que trata do desenvolvimento de um sentimento de patriotismo em diferentes regiões da América espanhola, em especial, a partir do final do século XVI. Sobre este tema, ver os escritos de Jacques Lafaye: Quetzalcóatl y Guadalupe; La formación de la conciencia nacional de México, 1531-1813 (FCE, 1977) e Enrique Florescano: Memoria mexicana; Ensayo sobre la reconstrucción del pasado: época prehispánica-1821 (Contrapuntos, 1987). Uma obra central sobre esta temática é a de David Brading: Orbe Indiano; De la monarquía católica a la República criolla, 1492-1867 (FCE, 1991), seguida por escritos como a coletânea de artigos editada por Juan M. Vitulli e David M. Solodkow: Poéticas de lo criollo; la transformación del concepto ‘criollo’ en las letras hispanoamericanas (siglo XVI al XIX) (Corregidor, 2009) e, especificamente sobre a região da Nova Espanha, por textos de Enrique Florescano: De la patria criolla a la historia de la nación (Secuencia (nueva época), n. 52, 7-39, 2002), Solange Alberro: El águila y la cruz. Orígenes religiosos de la conciencia criolla (México, siglos XVI-XVII, FCE; El Colegio de México, 1999) e Antonio Annino: 1808, el ocaso del patriotismo criollo en Mexico (Historia y política, n. 19, 39-73, 2008); para uma visão mais ampla sobre a América Ibérica no século XIX que também aborda esta questão em alguns de seus capítulos iniciais, ver a coletânea organizada As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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por Annino em conjunto com François Xavier-Guerra: Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX (FCE, 2003). Em relação ao vice-reino do Rio da Prata, ver o artigo de Juan Carlos Garavaglia: Una breve nota acerca de los ‘patriotas criollos’ en el Río de la Plata (Prohistoria, n. 12, 93-102, 2008) onde o autor analisa a utilização e os significados atribuídos à palavra criollo na região; algo relativamente semelhante é feito por Luis Gómez Acuña para o Peru: Lo criollo en el Perú republicano: breve aproximación a un término elusivo (Histórica, vol. XXXI, n. 2, 115-166, 2007). Também sobre esta região, ver os escritos de Bernard Lavallé: Las promesas ambíguas; Criollismo colonial en los Andes (Instituto Riva Agüero, 1993, entre vários outros) e Margarita Eva Rodríguez García: Criollismo y Patria en la Lima ilustrada (1732-1795) (Miño y Dávila Editores, 2006). Sobre a região da Colômbia e Venezuela, ver Carl Henrik Langebaek: Los herederos del pasado; Indígenas y pensamiento criollo en Colombia y Venezuela (Universidad de los Andes, 2009); para a Guatemala, conferir os estudos produzidos na década de 1970 por André Saint-Lu: Condición colonial y conciencia criolla en Guatemala (Editorial Universitaria, 1978) e Severo Martínez Peláez: La patria del criollo: ensayo de interpretación de la realidad colonial guatemalteca (Editorial Universitaria Centroamericana, 1973). Outra abordagem que alcançou ampla repercussão nos últimos anos é a de Jorge CañizaresEsguerra, que trabalha com o conceito de epistemologia patriótica criolla: Como escrever a história do Novo Mundo: histórias, epistemologias e identidades no Mundo Atlântico do século XVIII (Edusp, 2011). Monarquia, império, coroa: em um balanço historiográfico publicado recentemente (Empire: the concept and its problems in the historiography on the Iberian empires in the Early Modern Age, Culture & History Digital Journal, vol. 3, n. 1, 1-10, 2014), os historiadores Horst Pietschmann e Christian Hausser criticaram a falta de preocupação presente em grande parte da historiografia que analisa o conceito de império em tentar definir este termo bem como diferenciá-lo de outros, como “monarquia” ou “mundo”. Para uma reflexão sobre este conceito tendo a América como objeto central, ver a obra de Anthony Pagden: Lords of all the World; Ideologies of Empire in Spain, Britain and France, c.1500-c.1800 (Yale University Press, 1995). Entre outros exemplos de autores que utilizam o conceito de império para analisar a Coroa hispânica no período, ver J. H. Parry: The Spanish Seaborne Empire (Hutchinson, 1966) e John H. Elliott: Imperial Spain: 1469-1716 (Penguin, 1990), que o associa à 44 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

perspectiva de “monarquias compósitas” e, em obra recente, adota uma abordagem comparada entre os impérios espanhol e inglês em relação às suas possessões americanas: Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America, 1492-1830 (Yale University Press, 2006). Para interpretações que questionam uma perspectiva imperial associada a uma lógica absolutista, ver, além de outras obras do autor citadas ao longo do capítulo, o livro de Serge Gruzinski: As quatro partes do mundo; história de uma Mundialização (EUFMG, 2014). Nele, o pesquisador francês trabalha com o conceito de “Monarquia católica” em uma abordagem que se aproxima da proposta de “histórias conectadas” defendida por Sanjay Subrahmanyam em seus estudos sobre a Ásia: Connected Histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia (Modern Asian Studies, vol. 31, n. 3, 735-762, 1997), mas também sobre a América: Holding the World in Balance: the connected histories of the Iberian Overseas Empires, 1500-1640 (American Historical Review, 112(5), 1359-1385, 2007). Uma proposta para pensar as monarquias ibéricas como policêntricas, à diferença tanto dos modelos absolutistas como da própria noção de monarquia compósita, tem sido discutida com frequência e foi sistematizada por historiadores vinculados à Red Columnaria em uma obra programática editada por Pedro Cardim, Tamar Herzog, Gaetano Sabatini e José Javier Ruiz Ibáñez: Polycentric Monarchies; How did Early Modern Spain and Portugal achieve and maintain a Global Hegemony? (Sussex Academic Press, 2012). Vida cotidiana e formas de sociabilidade: para obras que buscam abarcar toda a América hispânica, ver Georges Baudot: La vida cotidiana en la América española en tiempos de Felipe II (FCE, 1992), Magdalena Chocano Mena: La América colonial (1492-1763). (Cultura y vida cotidiana, Madri, 2000) e o artigo de Manuel Hernández González: Historiografía reciente sobre la cultura y la vida cotidiana en la América Colonial (1995-2005) (Chronica Nova, n. 32, 51-66, 2006). Da vasta produção acerca do vice-reino da Nova Espanha, ver, além das obras citadas ao longo do capítulo, os estudos realizados por historiadores como María Alba Pastor: Crisis y recomposición social. Nueva España en el tránsito del siglo XVI al XVII (FCE, 1999) e os volumes iniciais da coleção Historia de la vida cotidiana en México (FCE, 2005) organizada por Pilar Gonzalbo Aizpuru; sobre a região da Venezuela, ver Carlos F. Duarte: La vida cotidiana en Venezuela durante el período hispánico As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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(Fundación Cisneros, 2001); para a região do vice-reino do Prata, ver os primeiros volumes das coletâneas Historia de la vida privada en la Argentina (Taurus, 1999), organizada por Fernando Devoto e Marta Madero, e Nueva Historia Argentina (Editorial Sudamericana, 2000), de Enrique Tandeter; sobre o vice-reino do Peru, James Lockhart analisa os primeiros passos da sociedade peruana em seu El mundo hispanoperuano; 1532-1560 (FCE, 1982) e, para o período imediatamente anterior ao processo de independência, as obras de Alberto Flores Galindo: La ciudad sumergida: aristocracia y plebe en Lima, 1760-1830 (Editorial Horizonte, 1991) e, mais recentemente, de John R. Fisher: Bourbon Perú, 1750-1824 (Liverpool University Press, 2003). A respeito das santidades nas regiões dos vice-reinos da Nova Espanha e do Peru, ver Teodoro Hampe Martínez: Santidad e identidad criolla: estudio del proceso de canonización de Santa Rosa (Centro de Estudios Regionales Andinos Bartolomé de las Casas, 1998), Antonio Rubial García: La santidad controvertida. Hagiografía y conciencia criolla alrededor de los venerables no canonizados de Nueva España (FCE, 1999), Miguel León-Portilla: Tonantzin Guadalupe. Pensamiento náhuatl y mensaje cristiano en el “Nican mopohua” (FCE, 2000), David Brading: La Virgen de Guadalupe: imagen y tradición (Taurus, 2002), Richard Nebel: Santa Maria Tonatzin Virgen de Guadalupe: continuidad y transformación religiosa en México (FCE, 2005) e Verónica Salles-Reese: De Viracocha a la Virgen de Copacabana: representación de lo sagrado en el Lago Titicaca (Plural, 2008). Dentro da extensa produção a respeito das confrarias na América hispânica, ver estudos como as compilações de textos organizadas por Eduardo Carrera (et. al.): Las voces de la fe. Las cofradías en México (siglos XVII-XIX) (Ciesas, 2011) e Juan Guillermo Muñoz Correa (et. al.): Cofradías, capellanías y obras pías en la América Colonial (UNAM, 1998), além dos balanços bibliográficos realizados por Walter Vega para a região do vice-reino do Peru: Cofradías en el Perú Colonial: una aproximación bibliográfica (Diálogos en Historia, n. 1, 137-152, 1999) e por Marcial Sánchez Gaete: Desde el Mundo Hispano al Cono Sur americano. Una mirada a las Cofradías desde la historiografía en los últimos 50 años (Revista de Historia y Geografía, n. 28, 59-80, 2013) que apresentam um grande número de referências.

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Extratos de documentos Nesta seção, foram incluídos três documentos em verso produzidos na Nova Espanha entre o final do século XVI e início do XVII que apresentam, através de diferentes pontos de vista, representações que então circulavam sobre os criollos, os peninsulares e as terras do Novo Mundo. A decisão por textos de uma mesma região deu-se pelo fato de serem contemporâneos, além de, especialmente entre os dois primeiros, estabelecerem um diálogo direto entre si. Os textos iniciais são sonetos anônimos publicados originalmente em 1604 que apresentam acusações mútuas em relação à atuação de criollos e peninsulares na cidade do México (retirados de Mendes Plancarte, 1991). No primeiro deles, um gachupín traça um panorama extremamente negativo da natureza e da sociedade que teria se desenvolvido em terras americanas: “Minas sin plata, sin verdad mineros, mercaderes por ella codiciosos, caballeros de serlo deseosos, con mucha presunción bodegoneros. Mujeres que se venden por dineros, dejando a los mejores muy quejosos; calles, casas, caballos muy hermosos; muchos amigos pocos verdaderos. Negros que no obedecen sus señores; señores que no mandan en su casa; jugando sus mujeres noche y día; colgados del Virrey mil pretensores; tianguez,16 almoneda, behetría…17 Aquesto, en suma, en esta ciudad pasa”. 16 Possível referência a tianguis, palavra náuatle que se refere ao mercado local. 17 Termo que define um local onde os próprios habitantes elegem seus líderes, mas também utilizado no sentido de confusão ou desordem. Em texto contemporâneo ao soneto acima, o jesuíta José de Acosta definiu as behetrías como forma de organização precária praticada no período por indígenas de regiões como a Flórida e o Brasil, “que no tienen ciertos reyes, sino conforme a la ocasión que se ofrece en guerra o paz, eligen sus caudillos como se les antoja”. (Acosta, 1985, 64).

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No segundo soneto, o narrador criollo rebate acusações referentes ao “nuestro mexicano domicilio”, apontando a ingratidão dos espanhóis que permanecem no continente por longos períodos em busca de ascensão social, ao mesmo tempo em que criticam essas terras: “Viene de España por el mar salobre a nuestro mexicano domicilio, un hombre tosco, sin ningún auxilio, de salud falto y de dinero pobre. Y luego que caudal y ánimo cobre, Le aplican en su bárbaro concilio Otros como él, de César y Virgilio Las dos coronas de laurel y robre [roble].18 Y el otro, que agujetas y alfileres vendía por la calles, ya es un Conde en calidad, y en cantidad un Fúcar;19 y abomina después del lugar donde adquirió estimación, gusto y haberes; y tiraba la jábega20 en Sanlúcar”. O terceiro documento selecionado é um pequeno trecho do poema épico Canto intitulado Mercurio, escrito no início do século XVII pelo professor, presbítero e escritor estremadurenho, que vivia há anos no Novo Mundo, Arias de Villalobos (IN García, 1907, 261-264).21 Nele, o poeta traça um panorama altamente elogioso da capital da Nova Espanha a partir das festivi18 De acordo com Mendes Plancarte (1991, 137), expressão onde “le otorgan reputación de cultura y de benemeréncia pública”. 19 Referência aos Függer, importante família de banqueiros alemães que manteve estreitas relações com Carlos V. 20 Rede de pescar. 21 O título completo do poema é: Canto intitulado Mercurio. Dase razón en él, del estado y grandeza de esta gran ciudad de México Tenoxtitlan, desde su principio, al estado que hoy tiene; con los príncipes que la han gobernado por nuestros reyes. Apesar de escrito por volta de 1603, o poema foi publicado apenas em 1623 (com alterações em algumas passagens, como as referentes às datações) como parte de uma obra mais extensa. Para informações biográficas sobre Arias de Villalobos e uma análise sobre sua descrição da Cidade do México (Cf. Pullés-Linares, 2010, 73-93).

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dades realizadas quando da chegada do vice-rei Juan de Mendoza y Luna, terceiro Marquês de Montesclaros, em 1603: “[...] Pues si á la Corte hace el real ornato, De ornato real en nuestra Corte hay sobra: Coches, braveza, estados, aparato; Que, aunque en títulos falta, en esto sobra. Si allá tienen al Rey por inmediato, Que como causa en sus efectos obra, Por potencial virtud de su presencia, Presente está aquí el Rey, por su potencia. Allá celebran á los ricos hombres, Grandes, por su riqueza, entre los chicos; Mas si riqueza engendra grandes nombres, Grandes veréis aquí, y muy grandes ricos, Condes, marqueses y otros sobrenombres. Si tienen quien les sirva de hocicos, Por vasallaje, que los fuerza á honrallos, Aquí hay también señores de vasallos. […] Haber que se ganó, ciento y dos años,22 Y hoy ser Babel y emporio de naciones; Tan madre natural de los extraños, Que echa á los (que) parió, por los rincones. Y por trajinación de pro y de daños, Parido haber millones de millones, Sin los que al Rey, y al trato y mercancía, Saca de sí y despide cada día Tarde llegaron los conquistadores A aprender de la abeja y la hormiga; 22 O poeta toma como ponto de referência para o início da história da cidade o ano de 1521, quando a cidade de México-Tenochtitlan foi invadida definitivamente pelo exército de espanhóis e indígenas liderado por Hernán Cortés.

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Pues la prosperidad se les fué en flores, Y aquel que guarda, halla y no mendiga. De encomendados, hay comendadores, Que éstos guardaron bien granos de espiga; Mas los que á sus veranos dieron rienda, Vino el Invierno y fuése la encomienda”.

Capítulo 2 Fronteiras nas Américas: alianças, identidades e conflitos (séculos XVI a XVIII) Fernanda Sposito José Carlos Vilardaga

Analisar a fronteira, em seus múltiplos contextos, desperta um duplo olhar inicial: ao mesmo tempo em que, como fenômeno, ela busca criar definições e limites concretos e tangíveis, também, em seu sentido conceitual, ela é pouco precisa e de definição difícil. O termo é comumente utilizado nos mais diversos campos do conhecimento, abarcando, por exemplo, a crítica literária e os estudos da linguagem (as “fronteiras metafóricas” do campo da cultura) e a psicanálise, na qual o conceito se aproxima tanto dos momentos de ruptura quanto das chamadas zonas “cinzentas”. Na ciência política e nas relações internacionais, o termo ganha amplo sentido, trafegando entre o simbólico e o formal, deslizando entre a noção de zona de fronteira e de linha de demarcação. Nessa, cumpre um papel espacial, mas é também temporal, pois de modo geral essa linha se sustenta sobre uma base política e um poder constituído no tempo (Raffestin; Oliveira, 2005, 9-15). Nos estudos da geografia o termo faz sobressair seu sentido espacial, mas também se associa intimamente à ação humana, que define e transforma os espaços em territórios. Neste caso, uma das preocupações é mostrar como limites e fronteiras ora se aproximam, ora se afastam, já que a fronteira muitas vezes vai para além dos limites, propiciando contatos (Moraes, 2000). Ao mesmo tempo que o limite define bordas, a fronteira transborda em inúmeras situações. A possibilidade de compreender a fronteira como um espaço que demarca diferenças, ao mesmo tempo que propicia encontros, é a maior riqueza dessa análise. Na antropologia o termo faz valer sua polissemia, abarcando as fronteiras reais, simbólicas e imaginárias, mostrando-se um tema privi50 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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legiado para os estudos das identidades e etnias. Para esse último caso, os estudos sobre fronteiras étnicas propõem, por exemplo, que os limites postos nunca devam ser vistos como impermeáveis, mas sim como processos abertos e maleáveis (Barth; Poutignat, 1997). Em verdade, parece que o significado e uso do conceito de fronteira são muito mais atrelados às várias epistemologias que os acompanham do que a uma definição ampla e bem demarcada. O assunto também foi amplamente abordado pelo campo da História, que, de modo geral, compreendeu o termo sob o ponto de vista contextual, evitando as grandes definições atemporais. Mesmo assim, alguns autores procuraram elaborar uma teoria da fronteira, e os historiadores do tema foram especialmente férteis nos Estados Unidos da América, onde chegou a formar-se uma “Escola da Fronteira” (Cf. Weber; Solano & Bernabeu, 1991, 61-84). O pioneiro e marcante trabalho de Frederick Jackson Turner, “O significado da fronteira na história americana”, apresentado em 1883, no contexto da Exposição Universal de Chicago, causaria forte impacto alguns anos depois, tornando-se onipresente em materiais didáticos e cartilhas norte-americanas (Turner; Knauss, 2004, 23-54). Turner participava de um evento que comemorava – com um ano de atraso – os quatrocentos anos da descoberta da América. O núcleo duro de sua tese buscava exprimir as diferenças entre as fronteiras europeias e americanas, demarcando as influências que a fronteira exerceu sobre as instituições e sobre a própria sociedade americana, sendo, assim, um dos elementos fundamentais de sua formação histórica e de sua identidade. Vista como móvel e libertadora, a fronteira teria criado um homem simples, igualitário e prático. A visão de Turner, essencialista em sua forma de ver a fronteira, geraria muitos apoiadores, mas também muitos críticos, que questionaram a visão idílica da fronteira turneriana, que minimizava as populações indígenas, a violência e os intercâmbios fronteiriços. Além disso, ignorava completamente os assentamentos espanhóis na América do Norte (Weber, 1991). Uma “Nova História do Oeste” passou a ver a fronteira não mais como a separação entre civilização e mundo selvagem, mas como os limites sociais e geográficos dos impérios coloniais na América (Guy; Sheridan, 1998, 3-15). A seara aberta pelo historiador norte-americano foi percorrida por alguns autores que, como ele, compreenderam a fronteira na América como um dos seus elementos formativos mais essenciais, como 52 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

o peruano Victor Belaúde e o mexicano Silvio Zavala. Algumas vezes, buscaram também as comparações, mas dessa feita entre as fronteiras americanas anglo-saxônicas e ibéricas. Nesses estudos, muitas vezes lastimou-se a ausência de um “mito da fronteira” ibero-americano, como aquele gestado por Turner, já que na tese do autor americano a fronteira fora fundamental para a formação da democracia, enquanto na tradição latino-americana a fronteira separava a civilização da barbárie (Wegner, 2000). De todo modo, o tema já estava presente, mesmo que de modo colateral, na seminal obra de Sarmiento, o Facundo (1845), opondo, ainda no século XIX, as instâncias da civilização urbana e do campo bárbaro. Nessa toada, a fronteira, para vários autores latino-americanos, teria fomentado o surgimento de tipos sociais muito característicos, mais ou menos incorporados às mitologias nacionais, como os gaúchos platinos, os huasos chilenos e os charros mexicanos. Para os historiadores, a fronteira foi vista, de modo geral, mais como zona do que como linha, e seria definida na América Latina a partir de seus diversos tipos: indígenas, missioneiras, cimarronas, de exploração mineral, agrícolas e pecuária, e também políticas, jogando um importante papel no processo de colonização americano (Hennessy, 1978). Fruto de importantes diálogos da história com a antropologia, da etno-história, e da geografia, a temática da fronteira na América Latina vem percorrendo uma trajetória comum que partiu das fechadas visões marcadamente nacionalistas prevalescentes até a década de 1980, para concepções contemporâneas que enxergam fronteiras como lugares de permeabilidade, hibridismos e formadores de espaços (Prado, 2012, 318-333). Foram entendidas como internas aos processos de expansão levados a cabo por um ou outro império colonial, mas foram também externas em seus pontos de contato em espaços disputados por esses mesmos impérios (Quarleri, 2009). Deixaram de ser vistas como naturalizadas e uniformes, tornando-se um processo dinâmico e extremamente heterogêneo. Plenamente histórico. Nos últimos anos, a visão sobre a fronteira tem ressaltado mais seu aspecto integrador, que aproxima culturas e gera zonas de contato, de mestiçagem ou de transculturação. O desafio aí é não perder de vista o caráter violento e assimétrico presente muitas vezes nesses “encontros”. É sobre parte desse amplo universo de fronteiras nas Américas entre os séculos XV e XVIII que este capítulo se debruça, analisanAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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do-as em suas ambiguidades, como pontos de conflito e beligerância, mas também como locais de encontro e alianças. O historiador espanhol Francisco Solano já disse que, na América, fronteira e linha de demarcação não coincidiram nunca (Solano; Bernabeu, 1991, 189). Assim, nada melhor do que começar analisando um dos grandes marcos na tentativa do estabelecimento de uma linha demarcatória para as Américas: o Tratado de Tordesilhas, que dividiu o Mar Oceano, e suas terras, entre Espanha e Portugal. É, sem dúvida, um dos atos fundadores da colonização americana.

Tordesilhas e a divisão do mundo Era já meados do ano de 1494, mais precisamente em 7 de junho, na pequena vila fronteiriça de Tordesilhas, na beira do rio Douro, que os agentes diplomáticos dos reinos de Portugal e de Castela e Aragão assinaram um tratado de importância fundamental tanto para as pretensões expansionistas coevas de Portugal e Espanha, quanto para as relações geopolíticas de vários reinos europeus nos anos vindouros. O documento, que seria ratificado pelos reis de Castela e Aragão, Isabel e Fernando, em 2 de julho, e, pelo rei português D. João II, em 5 de setembro, teria fortes implicações para o continente recém-encontrado pelos europeus, mas ainda desconhecido em sua natureza e singularidade. Era, até certo ponto, um documento inusitado já que, ao dividir o Mar Oceano por uma linha meridiana, definida a 370 léguas do arquipélago do Cabo Verde, traçava uma fronteira num espaço desconhecido. Era sobretudo um exercício de imaginação, pois os conhecimentos e recursos disponíveis na época não permitiam qualquer precisão. Conheciam-se as latitudes, mas não as longitudes. As léguas tinham padrões mutantes e, ademais, não se especificou a partir de qual das ilhas do arquipélago começaria a medição. Entre a mais oriental – Boa Vista – e a mais ocidental – Santo Antônio - há uma diferença de quase três graus (Albuquerque, 1973). O Tratado de Tordesilhas expressava toda uma época de profunda alteração na concepção do mundo. Para Antonio Marques, seus autores eram “homens de um mundo que se esfuma e que assentam os pés num outro que ainda não conhecem” (Almeida, 2000, 8). Cumpriam, 54 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

à risca, a tríade de seu tempo: descoberta, invenção e inovação, tentando praticar a aritmetização da realidade. Em seu texto, breve, dizia literalmente que: “se faça e asygne pello dito mar oceano huma raya ou linha direta de poolo a poolo, scilicet, do pollo ártico ao pollo antarctico que he de norte a sul”. Nele, ainda se previa que uma expedição seria preparada para definir esses limites, o que nunca aconteceu. O Tratado também revela uma forte e naturalizada presunção - ancorada num enorme entusiasmo messiânico e num profundo desejo de poder dos soberanos envolvidos - de divisão do mundo à revelia de quaisquer dos habitantes dos territórios envolvidos (Gruzinski, 1999). De qualquer modo, ele teria repercussões na cartografia produzida nos anos posteriores, elaborada sobretudo a partir da opinião de práticos e navegantes. A linha, que cruzava a embocadura do rio Amazonas ao Norte, teve uma trajetória mais elástica ao Sul, cobrindo desde Cananeia até as proximidades do Rio da Prata. Sua variação obedeceu sobretudo à realidade física e aos mais diversos condicionantes, dentre eles invasões, tratados, apropriações e domínio de fato, causando amplos desdobramentos nas relações entre Portugal e Espanha na América Meridional (Magalhães; Torres, 1994, 91-101). De qualquer modo, mais ou menos levado a sério, o Tratado prevalecerá até o século XVIII, quando o Tratado de Madri (1750) já será a expressão de uma nova realidade, mais concreta, científica e diplomática, das relações entre os ibéricos nesses mesmos territórios. O Tratado de Tordesilhas previa, a rigor, um semi-meridiano em 1494 e pode-se imaginar que ele ficou numa certa penumbra até a segunda década do século XVI, já que não é citado nem na segunda viagem de Colombo, nem na carta que D. Manuel escreveu ansioso aos reis de Castela e Aragão para comunicar as descobertas de Vasco da Gama, ambas já sob o signo do acordo. A sua precisão só passou a ser uma obsessão de Carlos V e D. João III quando ficaram preocupados em regular a presença de espanhóis e portugueses nos mares orientais, recém-abertos pela via do Pacífico através da expedição de Fernão de Magalhães, que chegara às Molucas. Em 1524, uma nova Junta de especialistas reuniu-se alternadamente em cada lado da fronteira europeia luso-castelhana para repensar as fronteiras ibéricas no além-mar. Entre Elvas, território português, e Badajóz, castelhano, tentou-se definir um meridiano que atravessasse o globo (Gonzalez; Torres, 1994, 311-325). As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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De qualquer modo, diante da dificuldade de calcular as longitudes, só suplantada no século XVIII, a linha era bastante fluida. A história do Tratado parecia acompanhar, assim, num curto espaço de tempo, a gradativa reunião e “descoberta” de um mundo que era, até então, bastante fragmentado (Bennassar; Novaes, 1998) Todavia, se por um lado o Tratado de Tordesilhas necessitou de ampla imaginação para sua definição, por outro devemos compreendê-lo como o ponto final de uma longa série de bulas papais e tratados estabelecidos nas décadas anteriores, que o embasaram em sua forma final. Desde os primeiros passos portugueses em sua expansão marítima, as bulas foram devidamente providenciadas junto ao papado como forma de legitimar, preservar e publicizar as conquistas lusitanas. No tempo ainda do quase lendário Infante D. Henrique (1394-1460), as bulas pareciam seguir estritamente as solicitações feitas pelos representantes portugueses. Uma das primeiras, a Dum Diversas, de 18 de junho de 1452, autorizava o rei português a conquistar e submeter sarracenos, pagãos e infiéis “inimigos de Cristo”. Estabelecia ainda a captura de seus bens e territórios, reduzindo-os à escravidão perpétua e transferindo suas propriedades e terras ao rei de Portugal. A seguinte, Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, autorizava o reino a submeter e converter pagãos do Marrocos às Índias, termo que nesse momento compreendia praticamente todo o Oriente. Assegurava ainda os monopólios portugueses sobre suas descobertas futuras ao sul do temível Cabo Bojador, finalmente sobrepujado em 1534. Ela proibia expressamente que qualquer nação infringisse o direito português. Por fim, a Inter caetera, de 13 de março de 1456, do papa Calisto III, confirmava as anteriores e concedia à Ordem de Cristo, da qual o Infante D. Henrique era o administrador, a jurisdição espiritual sobre as regiões conquistadas no presente e no futuro (García Y García; Torres, 1994, 293-310). A necessidade de preservar as conquistas portuguesas na costa ocidental africana tinha várias origens. Uma delas era a preocupação direta em relação a Castela, reino vizinho com o qual Portugal tinha uma longa história de identidades e rivalidades. Mesmo que o reino castelhano estivesse bem atrás do português no processo de expansão marítima no século XV, o assentamento de Castela nas Canárias e a presença de navios castelhanos continuamente comercializando na costa africana incomodavam os portugueses. Esse clima de concorrência alimentaria o que 56 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

já foi chamado de “expansionismo preemptivo”, que sinaliza para ações portuguesas que respondem continuamente a uma ameaça real ou virtual dos vizinhos rivais, como que impulsionando Portugal numa lógica de movimento espelhada com Castela (Alencastro; Novaes, 1998, 193-207). Não se pode, de fato, analisar o Tratado de Tordesilhas, bem como os desdobramentos fronteiriços ibéricos na América, sem se levar em conta a longa história fronteiriça entre os reinos de Portugal e Castela na Península. A própria formação territorial de ambos os reinos, a partir do século XVI, deve ser analisada, muitas vezes, em relação direta com a dinâmica territorial americana (Herzog, 2015). O reino português já se encontrava praticamente consolidado, inclusive em termos de fronteiras, em 1249, quando terminou a conquista do Algarve, ao Sul. As fronteiras com Castela foram formalizadas em 1297, mas a relação com o assemelhado e entrelaçado reino vizinho será bastante tumultuada e marcada por inúmeros conflitos ao longo da Idade Média. A antiga fronteira (raya) entre Portugal e Espanha na Europa era na verdade mais uma franja do que uma linha, sobretudo quando não coincidia com algum acidente geográfico. Os viajantes que transpunham algumas dessas áreas de fronteira poderiam só se aperceber disso quilômetros depois. Onde não houvesse um rio, um vale profundo, uma garganta, a raya se tornava imprecisa, situando-se por vezes nos limites das vilas ou cidades. Foi sempre um tema de discussão entre os reinos e pontuada por fortalezas e castelos, alguns fixos e tradicionais, outros mais instáveis. Seu traçado teria uma conformidade um pouco mais regular somente ao final do século XV. Nesse século, a centralização gradativa dos reinos implicou também em tentativas de construir uma política uniforme para a raya, até mesmo com atuações sobre os “senhores de fronteira”, uma nobreza que ajudava a fracionar o território fronteiriço. A figura do rei se faria cada vez mais presente nas fronteiras, como em todas as partes (Martín; Torres, 1994, 29-51). De qualquer forma, como um historiador disse uma vez: é mais fácil dividir o mundo do que um palmo de terra, e o exemplo ibérico é o mais apropriado para confirmar a tese (Magalhães, 1994, 96). Onde havia rios e vales, ou serras e montanhas, as definições eram mais fáceis, mas onde não existiam esses marcos, a indefinição daria o tom. Essas fronteiras e suas populações sofreram as vicissitudes dos conflitos políticos entre os dois reinos, alternando momentos de paz As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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com intenso trato comercial com outros de guerra, nos quais as relações eram proibidas, pelo menos aquelas que envolviam comércio com os chamados produtos vedados, como armas, montarias e trigo. Os mercadores e também os moradores de fronteiras, muitas vezes donos de terras em ambos os lados, eram os que mais sofriam em períodos belicosos. Seja como for, o contrabando foi uma constante na relação entre os reinos, fosse em tempos de paz ou guerra. As fronteiras ibéricas também foram tensionadas pelas aduanas, somente abolidas por um breve período entre 1582-1590, durante o reinado de Felipe II e no contexto da União das Coroas Ibéricas. Ademais, o tema dos exilados - e das respectivas extradições - também foi um ponto de atrito entre ambos os reinos. O exílio dos Bragança e seus aliados em Castela depois da punição e retaliação de D. João II; e a fuga dos judeus da Espanha no contexto de sua expulsão no final do século XV são dois exemplos disso. Entre 1325 e 1411 os dois reinos viveram em constante clima de beligerância e guerra, o que se revelaria catastrófico especialmente para a população que habitava a amplíssima fronteira. Esses conflitos se associavam a questões dinásticas, problemas de controle da região do Gibraltar e até mesmo aos desdobramentos dos conflitos da Guerra dos Cem Anos (1337-1453). A Revolução de Avis (1383-85) se fez sobretudo a partir da vitória do Mestre de Avis, em Aljubarrota, sobre as tropas castelhanas de João I de Castela, que invadira o reino português em busca de sua anexação em nome de sua esposa Beatriz, candidata ao trono de Portugal. Um tratado seria assinado em 1411, o que asseguraria relativa paz entre os reinos, mesmo que alimentada por um constante ambiente de desconfiança. As tensões atingiram um novo ápice em 1475, quando o rei de Portugal, D. Afonso V, alimentando o sonho de fundir as Coroas de Portugal e Castela através de seu casamento com sua sobrinha Joana conhecida como a Beltraneja, filha de Henrique IV de Castela -, invadiu o reino castelhano em 1475. A guerra, que arrasou dezenas de povoados de fronteira, terminou com a assinatura do Tratado de Alcaçovas, em 1479. Através dele, o Reino de Portugal abria mão de suas pretensões ao trono de Castela, reconhecia o direito desse reino ao arquipélago das Canárias, bem como à sua conquista do reino de Granada. Essa conquista, que encerra em parte as fronteiras ibéricas castelhanas, só será 58 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

concluída em 1492, ano simbólico para a Espanha: além dessa anexação, o ano presenciou a expulsão dos judeus do reino, a divulgação da primeira gramática castelhana de Antonio Nebrija e a chegada de Colombo à América. A somatória desses eventos, lidos a posteriori, configura bem um império cristão que se pretende expansionista e homogêneo (Vincent, 1992). Para o reino português, Castela e Aragão reconheciam através do tratado os direitos de Portugal sobre as ilhas Madeira, Açores e a costa africana. Esse tratado, ratificado em 1480, teve seus princípios reafirmados na bula papal de Sisto IV, Aeterni regis, e pode ser considerado uma primeira partilha do mundo. Na compreensão de D. João II, rei de Portugal, o tratado assegurava o norte das ilhas Canárias a Castela e o Sul, ao reino português, através de um paralelo. Pelo menos foi esse o argumento que o rei utilizou anos mais tarde para fazer valer seus interesses depois do retorno de Colombo de sua primeira viagem às Índias. O retorno do navegador genovês em 1493 - que tentara a sorte anos antes em Portugal - passando por Lisboa, acionou os esforços da diplomacia portuguesa e instalou a tensão na corte lisboeta. O fato é que a velha proeminência portuguesa junto ao papado havia dado lugar à influência de Fernando e Isabel sobre o valenciano Rodrigo Bórgia, intitulado Alexandre VI, que nesse mesmo ano proclamou a bula Inter cetera, na qual outorgava-se aos Reis Católicos todos os territórios descobertos ou a descobrir na direção das chamadas Índias, para além de uma linha situada a cem léguas dos Açores e Cabo Verde, numa prefiguração do que seria Tordesilhas um ano depois. O Tratado é, portanto, uma resposta diplomática, negociada, da bula de 1493, na qual já se sentiam os primeiros ecos da realidade americana. Ao final, D. João II conseguiu garantir a hegemonia portuguesa na África, bem como a futura rota para a Índia, aberta em 1498 com Vasco da Gama. Por fim, ainda lhe restou um bom bocado da América Meridional, naquele momento mais suspeito que efetivo, apesar da questionável tese do “sigilo dos descobrimentos”, que defende a ideia de que ao par das viagens conhecidas, existiram várias outras feitas às escondidas (Cortesão, 1960). Aos Reis Católicos, assegurados em sua hegemonia castelhana-aragonesa, a assinatura do Tratado garantiu as plataformas marítimas canarinas e um oceano de possibilidades no continente que se abria aos desejos expansionistas europeus. As fronteiras As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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externas na América, imaginadas nas linhas demarcatórias dos Tratados quatrocentistas, passariam efetivamente a ser traçadas no cotidiano do processo de conquista, nos limites impostos pelas variadas fronteiras internas e nas negociações dos dois lados do Atlântico. As fronteiras passaram a se organizar, dessa forma, no jogo de relações e negociações estabelecido pela multiplicidade de agentes locais diretamente envolvidos na organização desses espaços. Assim, como afirma Tamar Herzog, a partir dessa fronteira feita “no chão”, não faz sentido encampar uma visão que tradicionalmente opôs as fronteiras europeias, entendidas como naturais, das coloniais, chamadas de artificiais, pois teriam sido pensadas e traçadas conforme vontades extemporâneas advindas da Europa (Herzog, 2015). O que interessa ressaltar aqui é que, fadados a viver uma relação fronteiriça tão antiga, intensa e contínua em território europeu, os ibéricos reproduziriam essa sina em outros espaços e continentes, em especial no território americano. Os reinos ibéricos, concorrentes empedernidos, trançariam ainda mais seus domínios e suas linhagens, até o ponto da tão almejada reunião das Coroas (1580-1640), só que sob batuta castelhana, no reinado de Felipe II. Mas outros reinos europeus logo dariam o ar da graça nos territórios e mares divididos com tanta reserva e presunção pelos reinos da Península Ibérica. O Atlântico, fronteira natural de Portugal, também era de Castela, Aragão, França, Inglaterra e dos territórios do Sacro Império Romano Germânico desde muito antes das primeiras aventuras lusas em terras africanas, na tomada de Ceuta em 1415.

O Caribe e a América do Norte Em 1609, um panfleto holandês intitulado Mare Liberum, de Hugo Grotius (1583-1645) trouxe à tona, em vocabulário jurídico, o tema da legitimidade da posse dos mares por portugueses e espanhóis. Enquadrado na luta de independência dos Países Baixos contra a monarquia Habsburgo assentada na Espanha, o texto apregoava o direito natural dos povos de navegarem livremente pelos mares: “o mar, imenso em demasia para ser possuído por este ou por aquele, e, além disso, maravilhosamente disposto para o uso de todos, tanto para a navegação 60 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

como para a pesca” (Apud Gesteira, 2006, 233). Grotius questionava a autoridade das bulas papais e reivindicava o direito dos outros reinos usufruírem dos mares. Em especial, tentava garantir as já bem estabelecidas redes comerciais neerlandesas, que envolviam as mercadorias da América, África e Ásia. Por isso mesmo, se posicionava contra a pirataria e até mesmo contra a guerra aberta contra os reinos ibéricos. Assim, as terras americanas em regime de “contrato” com os naturais, reconhecia ele, pertencia aos reinos que delas usufruíam. Isso, por outro lado, abria a possibilidade de ocupação de espaços considerados “vazios” (Apud Gesteira, 2006, 233). De qualquer modo, o panfleto estava plenamente inserido na contestação dos direitos das monarquias ibéricas, naquela altura vivendo um desejado – mas até certo ponto inesperado – período de reunião das Coroas em nome dos Habsburgo de Espanha (15801640). A incorporação do patrimônio português à Coroa de Felipe II parecia transformar o ideal da monarquia católica, pretensamente universal, numa realidade que se estendia pelos quatro cantos do mundo. As fronteiras tornaram-se mundiais. Como afirma Gruzinski: Durante esse longo meio século, a Península Ibérica em sua integralidade, uma boa parte da Itália, os Países Baixos meridionais, as Américas espanhola e portuguesa, da Califórnia à Terra do Fogo, as costas da África ocidental, regiões da Índia e do Japão, oceanos e mares longínquos compuseram o “planeta filipino” sobre o qual, a cada meia hora, a missa era celebrada (2014, 46).

A “posse” ibérica destas terras e mares, dilatada nessa conjuntura, já vinha sendo contestada desde longa data. De fato, as queixas flamengas podem até ser consideradas tardias (Stols, s/d, 1279-1295). Há uma frase famosa, supostamente dita pelo rei francês Francisco I, que, apesar de duvidosa, sintetiza bem uma certa apreciação de outros reinos europeus em relação à divisão do mundo iniciada em 1494 e continuada em 1524. Teria dito: “gostaria muito que me mostrassem o artigo do testamento de Adão que divide o mundo entre meus irmãos, imperador Carlos V e o rei de Portugal, excluindo-me da sucessão”. Ela coloca em pauta um questionamento francês, holandês e também inglês que justificaria sobremaneira uma série de iniciativas mais ou menos sistemáticas de ferir os interesses ibéricos nas Américas. Uma delas seria a chamada As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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pirataria, outra o chamado comércio ilegal, ou contrabando. Em grande parte das vezes, as duas coisas andavam juntas. O rei francês, por exemplo, apoiaria firmemente os armadores comerciais de Honfleur, Rouen e Dieppe, que navegariam continuamente pela costa atlântica meridional comercializando pau-brasil com os indígenas, bem como as iniciativas de Jean Ango (1480-1551) na chamada Terra Nova, no Atlântico Norte, onde os franceses praticariam sistematicamente a pesca. Ango é um exemplo da junção entre as atividades comerciais, da qual era um importante representante, com o chamado corso, ao qual se dedicou ativamente com licença real. Um de seus comandados, Jean Fleury (1485-1525), foi um dos primeiros corsários a atuar intensamente na rota do Atlântico, tendo, inclusive, a fama de ter capturado, na altura dos Açores, um dos navios que trazia o quinto real das riquezas do México enviado por Hernán Cortez. Tanto no imaginário, quanto na retórica da época, a presença de navios de outras bandeiras nos territórios ibero-americanos de além-mar, mesmo que muitas vezes tivessem somente intenções comerciais, era vista como simples corso ou pura pirataria. Em verdade, os navios poderiam forçar, até por meios violentos, as arribadas para abastecimento e provisão, direito incluído, por exemplo, num esboço inglês de legislação marítima: o Estatuto de Ofensas no Mar, de 1535. Isso daria margem a muita confusão interpretativa quanto às ações mercantis e/ou corsárias. 23 No fundo, essa distinção fluida espelha o momento do próprio mercantilismo, no qual atividades comerciais, guerra, incentivo estatal e religião andavam imbricados no mesmo processo. Nesse sentido, não se pode negar, que muitas ações corsárias e de pirataria vinham acompanhadas de intensa luta religiosa, reverberando, nos novos mares e terras descobertos, os conflitos de religião que marcavam a Europa nos séculos XVI e XVII. Enfrentar os papistas católicos ou os pérfidos protestantes nos mares era um capítulo de uma luta muito maior, e romper o Tratado de Tordesilhas era quase uma obrigação. O huguenote Jacques de Sore, por exemplo, atemorizou Cuba entre as décadas de 1550-1560, saqueando e incendiando suas cidades e portos, prendendo o bispo, afogando jesuítas e roubando igrejas. Fazia isso com o objetivo claro de ofender os católicos. Em compensação, boa parte dos primeiros 23 A diferença tradicional entre as duas reside, comumente, no caráter mais oficial e estatal do primeiro, e na ação individual do segundo. (Duran, 2011).

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prisioneiros da Inquisição instalada no México em 1571 era composta por protestantes corsários e piratas capturados na região caribenha ou sobreviventes de naufrágios (Fernandes, 2014, 172-201). O Tratado de Cateau-Cambresis, de 1559, assinado entre Espanha e França, encerrara um dos principais conflitos europeus, em torno da Itália, mas permitia que para além do primeiro meridiano Atlântico e ao sul do Trópico de Câncer, não haveria paz. Tal perspectiva manteve o impulso dos armadores e navegantes franceses da Normandia, por exemplo. Centrados nas ações de tratos comerciais, pesca e corso, os franceses pouco interesse tiveram em projetos coloniais sistemáticos nesses primeiros dois séculos da colonização das Américas, mas isso não significa que não experimentaram algumas situações. As experiências fracassadas dos huguenotes no Canadá (1535-1543), França Antártica (1555-1560), na Baía de Guanabara e Flórida (1562-1565), bem como a dos católicos na França Equinocial (1612-1615), reúnem desde propostas de construção de uma “república cristã nos trópicos”, até um empreendimento comercial voltado ao tráfico caribenho. Os franceses ainda voltariam ao Canadá em 1604, agora com maior sucesso, e atuariam na Guiana a partir de 1624, com apoio direto do Cardeal Richelieu. Mas seria somente com a ascensão do ministro Colbert (1661-1683) que uma política marítima e colonial começaria a ganhar forma junto ao reino francês. Nesse sentido, os franceses atuariam na grande “fronteira imperial” do Caribe. As amplas dimensões do território e a infinidade de ilhas que compõem o espaço caribenho, ao lado de uma dificuldade concreta de defender uma região que apresentava interesses bastante desiguais para os espanhóis, tornaram o Caribe o espaço ideal para a ação e presença das outras potências coloniais. O local foi palco da ação dos corsários – a serviço dos Estados -, ou dos piratas – mais independentes. Mas foi principalmente o cenário para o surgimento de dois tipos sociais muito peculiares: os bucaneiros, instalados em comunidades de origem diversificada no Norte da ilha La Hispaniola, dedicados à produção de carnes defumadas para o tráfico comercial com os navios de corso e comércio; e os filibusteiros, instalados inicialmente nas ilhas Tortuga, também ao norte de La Hispaniola, dedicados ao comércio clandestino no Caribe e ao ataque sistemático aos navios espanhóis de qualquer natureza (Apestegui, 2000). A ocupação da região norte da Ilha se deu As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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em função do abandono daquele território por cédula real espanhola de Felipe III, em 1603, na qual se projetava a concentração dos espanhóis na parte leste e sul da ilha, para melhor defendê-la. O efeito foi o oposto: muitos colonos espanhóis preferiram mudar para Cuba, enquanto a parte norte ficou aberta para a ocupação de colonos de outros reinos. De fato, aos poucos esses bucaneiros e filibusteiros passaram a ocupar as terras da ilha de São Domingos, onde se tornaram pioneiros nas plantations do que mais tarde seria Saint Domingue (Haiti), joia da Coroa francesa no século XVIII, com sua produção de algodão, tabaco, anil e principalmente açúcar. Tudo isso ancorado no trabalho de quase meio milhão de escravos africanos em fins dos setecentos. De modo geral, a historiografia sobre o Caribe tem como temas privilegiados de análise o extermínio indígena, o tráfico negreiro, a escravidão e as plantations, a crioliozação e a chamada cimarronaje. Foram sociedades que, apesar de terem sido multiétnicas e ocupadas por diferentes grupos, partilharam processos históricos, ritmos de vida, vegetação, clima e paisagens (Schwartz, 2006-2007, 28-43). Esse mundo marcado pela exploração sistemática e avassaladora de indígenas e negros, bem como pelas renhidas disputas coloniais, gestou um locus ideal para as discussões dos estudos pós-coloniais e seus debates sobre identidades (Hall, 2005). Termos como Antilhanidade ou Crioulidade, este mais abrangente, ganharam força para se pensar em sociedades caribenhas com geografia, história e cultura partilhadas, mas que guardam amplo espaço para a preservação da diversidade e do dinamismo (Bernabé, Chamoissean; Confiant, 1989). Isso pode ser exemplificado quando pensamos as relações entre as partes espanhola e francesa da ilha de La Hispaniola, que foram oficialmente tensionadas sob o ponto de vista das cortes europeias, mas seriam de modo geral pacíficas no cotidiano. A São Domingos espanhola tornou-se produtora de gado, com suas carnes e couros abastecendo não só Saint Domingue, como outras ilhas da região (Soler, 1991, 163-185). Por outro lado, entre as duas partes, ao sudoeste do atual território dominicano, nas chamadas montanhas do Maniel, Serra do Baoruco, desde a segunda década do século XVI refugiavam-se escravos negros, que se miscigenaram aos grupos indígenas remanescentes, compondo comunidades trans-étnicas de refugiados, chamadas de cimarrones em espanhol, ou marronages em francês. Promoviam incursões 64 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

e ataques às plantações e vilas próximas, de modo geral em retaliação, e seu tamanho só foi crescendo na medida em que a escravidão aumentou, com a exploração do açúcar e a importação maior de escravos. Poderia ser considerada uma fronteira cimarrón, que incomodava as autoridades de ambas as partes da ilha, mas que assim mesmo conseguiu construir uma intensa rede de relações comerciais com as populações coloniais francesas e espanholas que viviam nas cercanias (Deive, 1985). O mesmo se deu com os chamados Garifunas, populações miscigenadas de negros escravos com populações indígenas Caribe e Arawak, que vivem ainda hoje em territórios do Belize, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Praticam uma religião e um idioma mesclado entre práticas nativas, africanas, católicas e protestantes e simbolizam a mestiçagem colonial caribenha, fazendo valer a formação de novas identidades surgidas no processo de conquista e colonização da América. A etnogênese de fronteira é presente também na região entre o Suriname, Guianas e Brasil, onde os cimarrones compostos por uma mistura de vários grupos indígenas, negros de diversas etnias e colonos brancos espanhóis, portugueses, franceses e holandeses, compunham mais uma dessas sociedades trans-étnicas. Ocupavam espaços fronteiriços pouco demarcados, erguendo uma teia de relações comerciais com os mais distintos colonos assentados na região, fossem pequenos agricultores, taberneiros ou comerciantes, vendo-os mais como aliadosdo que como inimigos (Gomes, 2011, 631-644). Os habitantes da região ao norte da Borgonha, os holandeses, em guerra incansável de independência contra o império espanhol desde 1568, também se aventuraram pelos mares atlânticos e caribenhos. Cornelius Jol (1597-1641), conhecido como “pie de palo”, por exemplo, era almirante da Companhia das Índias Ocidentais e um temível corsário que assolou as frotas espanholas e portuguesas no Atlântico. Assediou as costas caribenhas, brasileiras e mexicanas. Pieter Van Der Does (1562-1599), recebeu o comando de 74 navios com quase 9.000 homens para atacar as rotas de conexão da América com a Espanha. Sua expedição foi um fracasso, mas demonstra cabalmente a força que esses embates atlânticos tinham para as rivalidades europeias e para os projetos coloniais, cada vez mais inter-relacionados. Desde 1612 os holandeses se instalaram num trecho na Guiné e passaram a promover intenso tráfico com o Caribe, onde partilharam de feitorias em Aruba, Bonaire, Sabá, dentre outras ilhas nas Antilhas. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Curaçao, uma das principais, foi tomada por Johannes Van Welberck em 1634. No local existiam 32 espanhóis, que foram insuficientes para efetuar qualquer defesa da ilha. O lugar tornou-se um centro de redistribuição de escravos negros trazidos da Guiné. Além do Caribe, os holandeses instalaram-se na América do Norte - na ilha de Manhattan, onde fundaram Nova Amsterdã, cedida aos ingleses em 1667 (depois da Paz de Breda) no Brasil, onde efetuaram um primeiro ataque em Salvador (1624-25) e depois ocuparam vastas porções do Nordeste brasileiro entre 1630-1654, e no Suriname, que depois de algumas tentativas isoladas de colonização, teve uma experiência mais duradoura entre os anos de 1683 e 1698, com o governador Aerssen Van Sommeldjik. Assim como os franceses, os ingleses também afrontaram claramente as pretensões ibéricas nas Américas, em especial no final do século XVI e inícios do XVII. Isso ocorreu quando a Rainha Isabel I (1533-1603), depois de ter frustrado as pretensões matrimoniais de Felipe II, entrou numa luta global contra o império espanhol, o que incluía a peleja pelos mares, na qual a derrota da Invencível Armada de 1588 foi um importante capítulo. A excomunhão da rainha inglesa daria ao conflito um sentido religioso fundamental. Inicialmente, os ingleses se aventuraram na saída pelo Noroeste, na região da Terra Nova, utilizando-se para isso até mesmo dos conhecimentos de experimentados pilotos portugueses e espanhóis, que colocavam sua prática e conhecimentos de mundo sendo desvelado a serviço de múltiplas empresas. Sebastião Caboto, por exemplo, depois de ter servido aos espanhóis, se mudou para a Inglaterra, onde serviria aos ingleses, o que lhe rendeu a acusação de traição por parte de Carlos V. Como no caso francês, as iniciativas inglesas de corso, pirataria, comércio e experimentações coloniais andariam juntas, sendo mais ou menos bem-sucedidas, em função das conjunturas e da maturação dos projetos coloniais de cada reino. O primeiro ataque pirata a uma possessão espanhola teria sido inglês, em 1527, na ilha de São Domingos. Desde a segunda metade do século XVI, quando a Espanha formatou seu sistema de frotas anuais e de monopólios comerciais, o contrabando seria uma das práticas privilegiadas nessas redes de relações meio violentas, meio comerciais, que contavam com a conivência de muitos colonos espanhóis, visto o acesso mais barato às mercadorias ilegais. Grande parte dos corsários ingleses começou como traficantes 66 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

comerciais, como o célebre sir John Hawkins, que negociava com São Domingos e Venezuela os escravos negros que trazia da África. Foi, por outro lado, o terror das frotas que vinham da Nova Espanha e um dos grandes articuladores da marinha inglesa. Um de seus jovens discípulos, o também sir Francis Drake, atuou largamente nos mares do Sul, cruzando o estreito de Magalhães e chegando ao Pacífico. Como Hawkins, era um comerciante com acordos comerciais no Caribe e um corsário quase mítico, que numa só expedição em 1585 atacou a Espanha, as Canárias, São Domingos e Cartagena. Assim como franceses e holandeses, os ingleses estariam nessa espécie de partilha do Caribe, tendo a ilha da Jamaica como base de seu sistema de feitorias e entrepostos comerciais na região. Ali se assentaram em 1655, depois de expulsarem os espanhóis. Muitos escravos negros aproveitaram o conflito para se refugiarem nas montanhas do interior, onde, como em outras partes, miscigenaram-se com grupos indígenas Taino, compondo comunidades livres de marrons que sobreviveriam até o século XVIII. Com quase um século de atraso em relação aos ibéricos, o que teria importantes repercussões nos projetos e expectativas coloniais, já que as experiências lusitanas e espanholas serviriam de modelo para a Inglaterra, esse reino também se lançaria à aventura da colonização continental no século XVII. Um dos maiores propagandistas dos projetos coloniais na corte de Isabel I, Richard Hakluyt (1552-1616), dizia com forte proselitismo protestante e comercial que, “se o governo das Índias Orientais e Ocidentais ficar na mão de um só príncipe, elas não receberão tecidos ingleses nem nos venderão seus produtos”. As primeiras iniciativas de colonização continental na América do Norte, ainda em 1584-85, foram feitas por Walter Raleigh (1552-1618) - ele também um misto de cortesão, comerciante, corsário e colonizador – e seria o ponto inicial de uma gradativa ocupação dos territórios da costa leste da América do Norte, que formariam as chamadas 13 colônias. O território seria sobretudo um local onde os tradicionais embates com o império espanhol dariam lugar principalmente às rivalidades franco-inglesas. As propostas coloniais de Raleigh, de concessão de terras, pagamento de quintos reais e demanda por minérios, não apresentavam, em essência, grandes diferenças dos empreendimentos ibéricos. O império inglês pensou-se, geralmente, a si mesmo como uma antítese do império espanhol baseado na conquista territorial. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Considerou-se, ao longo do século XVII, como um império essencialmente comercial e livre. Focado muito mais nas colônias caribenhas do que nas possessões continentais, o império só foi tardiamente estimulado a gerir o potencial econômico dessas regiões, passando a tentar interferir em seus rumos ainda no final do século XVII através de medidas aduaneiras e políticas, de maneira muito próxima das políticas mercantilistas aplicadas por espanhóis, portugueses e franceses. Essas medidas tiveram resultados variáveise somente aos poucos passaram a representar uma coerente política colonial, o que tornaria o império inglês nas Américas um espaço integrado e interdependente ao longo da primeira metade do século XVIII (Elliott, 2006). Os primeiros empreendimentos mais duradouros aconteceram em 1609, na recém batizada Virgínia. A vila de Jamestown serviria de pivô na colonização inglesa daquele território, a partir de grandes propriedades ancoradas no modelo de plantation. Na Virgínia, chegou-se a construir extensas linhas de paliçadas que serviam de fronteira entre a área colonial, as terras indígenas e o wilderness. Dali os colonos projetavam uma expansão ao interior pelo rio Ohio, barrada de modo geral pela presença francesa e suas alianças indígenas. No contexto da chamada Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que oporia franceses e ingleses em território americano, cada um mobilizando suas próprias redes de alianças com os índios, muitos colonos pressionaram as fronteiras. A vitória inglesa na Guerra e a derrota do cacique Pontiac - que liderara uma ampla resistência ao avanço dos colonos ingleses -, ao contrário de abrir o território, fechou-o, já que, contrariando as expectativas, a Coroa britânica procurou pacificar a região, acertando com os indígenas a soberania sobre o território a oeste dos montes Apalaches. O mítico – e literário – Daniel Boone desobedeceria às ordens da Coroa e avançaria pelos Apalaches com sua família e outros tantos colonos em 1767. Caçador de animais e índios, Boone fundaria o que mais tarde seria o território do Kentucky e sua imagem pautaria uma das primeiras representações do homem de fronteira, o cowboy norte americano, ainda na década de 1780. O mito do Oeste nascia praticamente junto à sua própria expansão, ganhando cada vez mais projeção no século XIX, até atingir o estatuto de construtor da identidade nacional americana nas letras de Turner. No Norte, na colônia de Nova Inglaterra, a ocupação mais tardia, na década de 1620-30, também colocaria em oposição os colonos, 68 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

a maioria puritanos, aos indígenas. A chamada Guerra do Rei Felipe (1675-76) teve como oponentes o cacique Algonquino Metacom contra os ingleses. A vitória dos colonos abriu as terras para uma nova expansão, mas, ao contrário da Virgínia, foi ancorada no modelo de pequena propriedade familiar. As fronteiras das Treze Colônias muitas vezes se alargaram como resultado dos conflitos europeus. O fim da Guerra de Sucessão Espanhola (1703-1713) rendeu aos colonos ingleses toda a região do rio Hudson e a Acádia no Canadá francês. Abriu a cobiçada região dos Grandes Lagos, antes controlada pelas alianças comerciais entre franceses e indígenas, aos colonos de Nova Iorque e Pensilvânia. Em trabalho comparativo sobre a ocupação colonial dos ingleses e dos espanhóis na América, John Elliott encontrou diversos pontos de afinidades e também de diferenças. De modo geral, entendeu que a justificativa da posse do território era comum a ambos e baseada sobretudo na ideia de res nullius, ou de não beneficiamento. A terra não ocupada era considerada vazia e, portanto, legitima de ser apropriada. Como os espanhóis, os ingleses rebatizavam territórios, muitas vezes com o adjetivo “Nova”, como forma de erguer simbolicamente uma nova história europeia em território americano; cartografavam os espaços e instituíam comunidades políticas que sustentavam a posse. Patrícia Seed, que também buscou uma análise da posse na América sob perspectiva comparada, conclui que os ingleses, por outro lado, sustentavam sua legitimidade de ocupação no cercamento físico de suas terras e no seu beneficiamento através do plantio e da construção de casas e adjacentes (Seed, 1999). Elliott ainda constata que, embora muito menos importante para a ocupação e ampliação das fronteiras que na América espanhola, a fundação de vilas e cidades também seria importante para os ingleses. Em 1700, somente na Nova Inglaterra, existia algo como 120-140 núcleos urbanos. William Penn fundou a cidade da Filadélfia, reforçando essa importância e impondo um modelo urbano que, se não era inspirado no modelo espanhol, era também típico dos ideais urbanísticos do Renascimento, prevendo um formato quadricular, com ruas amplas e uniformes e construções feitas em linha (Elliott, 2006). De qualquer forma, as chamadas Treze Colônias, que se formaram gradativamente e de forma bastante heterogênea ao longo do século XVII, permaneceram basicamente limitadas à costa leste do Atlântico até o século XVIII, quando os rios que corriam para o interior passaram As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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a alimentar projetos de expansão para os colonos, que não pararam de chegar em ritmo acelerado ao longo dos setecentos. Ingleses, escoceses, irlandeses, alemães e huguenotes franceses formaram um contingente que pressionava pela ampliação das terras, assim como favorecia a especulação de terrenos nessa expansão. Mas a grande diferença em relação à América espanhola talvez estivesse, para Elliott, na relação com os grupos indígenas e a forma pela qual os grupos foram entendidos nos respectivos projetos coloniais. A republica de los indios, a encomienda e a catequese tornavam a submissão e o domínio das gentes uma das principais bases da estrutura colonial espanhola. Os ingleses, sem encomienda e sem tributos indígenas – apesar das tentativas frustradas de tributar e submeter os índios - e sem um projeto sistemático de catequese, acabaram estruturando uma sociedade pautada na exclusão, ao contrário da hispânica, sustentada na inclusão dos indígenas. Representariam como que fronteiras de relacionamento que dariam a base de formação das respectivas sociedades, mesmo que essas estivessem sujeitas às porosidades. A quase ausência de casamentos inter-étnicos (houve mesmo legislação contrária), as limitadas experiências escravistas (como nas Carolinas), as fragmentadas e voluntariosas missões religiosas (como as do pastor John Eliot), assim como um discurso persistente que sustentava que o convívio com o indígena significaria a degeneração do cristão branco, deram o tom dessa diferença. Para o historiador John Elliott, segundo interpretações de contemporâneos e pautadas na experiência inglesa na Irlanda, as paliçadas de fronteiras protegiam os colonos dos índios, mas serviam também para proteger os colonos de si mesmos, evitando um contato visto como degenerativo. Não havia, conforme esse autor, espaço para intermediários entre a plena anglicização e a total exclusão. Nunca chegou a ser uma sociedade mestiça e, mesmo que as fronteiras pudessem ser entendidas como porosas e zonas de interação e conflito, o predomínio da relação foi pautado na exclusão (Elliott, 2003). Portanto, na visão deste autor, as fronteiras coloniais inglesas entre os séculos XVII e XVIII podem ser consideradas – de forma genérica – como sendo de exclusão, enquanto as espanholas seriam de inclusão. Mas o território da América do Norte ainda presenciou as fronteiras entre ingleses e espanhóis na Flórida, onde os núcleos coloniais da Espanha sempre foram frágeis e pouco sustentáveis, e nas fronteiras da Nova Espanha, que compreendiam os territórios atuais do 70 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Novo México, Arizona, Califórnia e Texas. A chamada fronteira norte da Nova Espanha sempre foi uma questão sensível para a administração colonial espanhola. Os avanços e incursões indígenas na zona norte eram sempre um sinal de alerta às estruturas montadas e centralizadas na cidade do México. A fronteira setentrional foi sendo ocupada gradativamente na medida em que se descobriam minas e se buscava barrar o avanço de sociedades indígenas nômades. O local tornou-se território de presídios, missões religiosas, exploração agrícola e pastoril associada à exploração mineral. A exploração colonial do território a Noroeste, na península da Baixa Califórnia, começou ainda no tempo de Hernán Cortez e foi sucedida por várias expedições marítimas que buscavam reconhecer a costa do Pacífico no sul da América do Norte, demarcando rios e portos naturais. Mas foi somente em 1697 que os jesuítas fundaram a primeira missão na Baixa Califórnia. As missões se alastrariam pela região de modo a se tornar a principal instituição espanhola naquela fronteira até a expulsão da ordem jesuítica dos territórios espanhóis em 1767. A penetração jesuítica foi acompanhada pelos presídios, organizados para apoiar as missões que vinham enfrentando a resistência violenta de diversos grupos indígenas. A situação se tornou mais tensa entre fins do XVII e começo do XVIII, tendo havido conflitos entre missionários e colonos, quando a exploração mineral ao norte do rio Mayo e na província de Sonora atraíram levas contínuas de colonos em busca de mão de obra. As revoltas indígenas de Seri, Pima e Apache sacudiram a região. Ao longo do século XVIII, a Espanha bourbônica demonstraria um gradativo empenho em consolidar o domínio sobre aquele vasto território, tentando articular, via rio Colorado, um eixo de ocupação que chegasse ao porto de Monterey. A Coroa apoiou as missões jesuíticas e mandou construir presídios na tentativa de barrar os avanços ingleses e, inusitadamente, o russo, que naquela altura avançava pelo Pacífico Norte a partir do Alasca. A descoberta do estreito que separava o extremo asiático do Alasca, feita pelo navegador dinamarquês – a serviço dos russos - Vitua Behring, em 1741, abriria ainda mais o caminho ao império russo em expansão (Albert; Solano & Bernabeu, 1991, 85-118). A fronteira hispânica na América do Norte seria um dos temas privilegiados da historiografia norte-americana sobre as fronteiAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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ras, especialmente para aquela que se contrapôs às hegemônicas teses de Turner. Herbet Eugene Bolton, fundador da chamada “Escola da Fronteira”, talvez seja o nome mais importante nessa perspectiva. Discípulo de Turner, Bolton voltou seu olhar para uma fronteira distinta daquela que separava o avanço da “civilização” sobre o wilderness: a fronteira hispânica na América setentrional. Invertendo a fórmula de Turner, preocupou-se mais com a influência dos espanhóis sobre as fronteiras do que com a influência das fronteiras sobre os espanhóis. A partir dessa premissa, Bolton construirá a tese que compreendia as missões religiosas espanholas como instituições típicas de fronteiras, cumprindo o papel que muitas vezes os encomenderos cumpriram em outras regiões de conquista. Bolton colocou em perspectiva as missões da Alta Califórnia, da Baixa Califórnia, Sinaloa e Sonora; as do Novo México, Texas, Arizona; e também as da Flórida. Nelas todas, cumpriam o duplo papel de instituição estatal e clerical, reunindo funções do Estado e da Igreja e cumprindo funções militares, religiosas e civilizacionais: “no sólo servían para cristianizar la frontera, sino también para expandirla, dominarla y civilizarla” (Bolton; Solano & Bernabeu, 1991, 47). Bolton ainda comparava as fronteiras do Norte do império espanhol às do Sul, especialmente às do Paraguai. Ali, nas partes meridionais da América, os jesuítas ergueriam, a partir de 1609, missões que funcionaram tanto como instituições de fronteiras internas, pois a região era um dos limites de expansão dos espanhóis, quanto externas, pois eram adjacentes às áreas do império português. Elas reforçam o que pode ser entendido como um certo padrão dos jesuítas de atuarem em áreas consideradas difíceis, como o Rio da Prata, a Baixa Califórnia, o Chaco, Mojos y Chiquitos e junto aos Diaguita do Valle Calchaquíes (Quarleri, 2009). A comparação entre a fronteira norte e sul do império espanhol foi feita também por Donna Guy e Thomas Sheridan. Eles reiteram o que consideram similaridades entre ambas regiões, como o aspecto periférico, a atuação missioneira, a gestação de tipos como os cowboys e os gauchos; mas localizam significativas diferenças ambientais e históricas: clima mais árido no Norte e mais úmido no Sul; maior isolamento comercial do Norte e maior articulação à bacia do Prata no Sul; embates entre potências coloniais distintas. Mas, tanto no Norte, quanto no Sul, entendem que as populações indígenas construíram importantes e so72 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

fisticados mecanismos de resistência e adaptação à presença europeia, adotando, seletivamente, objetos, rituais e símbolos, sem que isso significasse necessariamente o que, durante muito tempo, a antropologia e a histórica chamaram de aculturação, um conceito que denota sobreposição de culturas (Guy; Sheridan, 1998, 3-15).

Os reinos europeus nas redes ameríndias O processo de conquista da América, iniciado a partir de 1492 com a chegada de Cristóvão Colombo à ilha Hispaniola, deu vazão às aproximações entre dois universos: as culturas europeias e os mundos ameríndios. Claro que, se falamos aqui de “dois universos”, referimo-nos apenas a um modelo esquemático. Sabe-se que os europeus na Época moderna se organizavam a partir de distintos reinos, portadores de idiomas, religiões, modelos políticos e sociais bastante distintos, tanto internamente quanto um em relação ao outro. Mesmo que os reinos europeus mantivessem zonas de contato e influência entre si ao longo dos séculos, reservavam também especificidades culturais e, para garantir sua soberania e seu poderio, inúmeras vezes mantinham-se em guerra. Por que muitas vezes nos recusamos a adotar este mesmo padrão de entendimento ao falarmos dos povos ameríndios? Já de início identificados erroneamente como índios, ou seja, habitantes das Índias – onde Colombo inicialmente imaginava ter chegado em 1492 – essas populações são comumente pensadas como portadoras de uma unidade cultural. De mesma forma que qualificamos os povos europeus no parágrafo anterior, devemos analisar os nativos da América da época dos descobrimentos a partir da ideia de diversidade. Mesmo que os números sobre o passado sejam baseados em estimativas e em testemunhos não fidedignos, o esforço de quantificar os ameríndios pode nos auxiliar para dimensionar o impacto dessa amplitude de povos e culturas. Os números são oscilantes, variando conforme as linhas interpretativas, os vestígios documentais ou materiais sobre os quais se basearam. Indícios arqueológicos sugerem que a presença humana na América teria se iniciado há 12 mil anos atrás ou que, na verdade, iniciara-se há 35 mil anos antes do presente. Sobre quantos eram os ameríndios quando da chegada dos europeus por volta de 1500, os números vão de uma estimativa As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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conservadora de 8 milhões até às cifras mais generosas de 100 milhões de pessoas (Cunha, 2009, 10-14). Mais do que adotar uma ou outra quantificação, há que se conhecer os critérios sobre os quais se basearam cada uma delas, não ignorando os debates em torno do tema. De todo modo, os vestígios arqueológicos e as descrições de cronistas obrigam a nos afastar das imagens de vazio demográfico, que muitas vezes justificaram o avanço das fronteiras da conquista da América pelos invasores europeus ao longo dos séculos. Com isso, desconstrói-se a ideia de que este continente tenha sido descoberto e ocupado pelos europeus, substituindo-se pela interpretação de que a América foi invadida, saqueada e conquistada pelos estrangeiros. Além das ideias de “descobrimento” e “vazio” como elementos desqualificadores da presença humana na América antes da chegada dos europeus, devemos tomar cuidado com a forma como essas sociedades eram descritas. “Bandos”, “hordas”, “reinos”, “Impérios”, “nações” imprimem as noções políticas e civilizacionais a partir das quais os europeus da Era Moderna compreendiam as sociedades humanas. O entendimento sobre as sociedades ameríndias até meados do século XX foi colocado num quadro valorativo e classificatório relativo aos grupos humanos. Dentro desses modelos, acreditava-se que a humanidade evoluiria a partir de grupos primitivos, como bandos ou hordas, até atingir um padrão de organização política através dos Estados, que representariam o ápice dessa escala evolutiva (Cf. Arcuri, 2007, 305-320). No entanto, essa tipologia mais atrapalha do que ajuda nosso entendimento sobre a diversidade societária e política ameríndia, pois muitas informações que foram fornecidas pelos observadores estrangeiros sobre os indígenas no passado (e até mesmo no presente, a respeito de grupos que não se enquadram nos padrões ocidentais), carregam parte do estranhamento e dos preconceitos desses testemunhos. Iniciamos nosso trajeto em direção aos territórios indígenas na América no contexto da conquista europeia a partir do final do século XV. Muitos estudiosos, em diferentes vertentes interpretativas, atribuíram o sucesso da conquista europeia às fissuras internas entre as sociedades da própria América. De um lado, tinha-se a noção de que a organização política de certos povos era muito rudimentar, que seriam tribos errantes, invasoras e incivilizadas. Por isso, a conquista pelos europeus dos Caribe (Antilhas) e dos Tupi (Brasil) seria plenamente justificável, 74 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

pois findaria a usurpação que esses grupos teriam praticado contra outros povos ameríndios, que por sua vez seriam supostamente originários (Varnhagen, 1956, 23-56). Ao abordar os grandes Impérios da América pré-colonial, os Asteca no México e os Inca no Peru, interpretações mais refinadas tentam explicar por que houve a vitória dos invasores europeus sobre populações indígenas organizadas militarmente e infinitamente maiores do que a dos exércitos de conquista europeus. Dentre outros fatores, um dos motivos principais seriam as disputas políticas internas e as insatisfações dos povos submetidos em relação aos soberanos desses Impérios indígenas (Bernand; Gruzinski, 1997, 333-334: 508-520). Adentramos agora no universo das fronteiras, que é o tema deste capítulo, abordando, em linhas gerais, como estavam colocados esses limites entre os povos indígenas na América. Com isso, surgem algumas questões: como e quais eram essas separações; como foram alterados ou instrumentalizados pelos europeus? Os fluxos e refluxos dos índios na América remetem-nos, por sua vez, a um conceito recentemente trabalhado pelos antropólogos, que nos parece aqui eficiente para entender esse processo: a noção de redes ameríndias. Esse conceito apresenta os espaços dentro dos quais se conectam os distintos grupos, as chamadas fronteiras, onde se expressam as conexões e as trocas (Latour, 1994, 9; Gallois, 2005, 15-17). Com a noção de redes, compreendemos a plasticidade existente entre os diversos povos, deixando de colocá-los dentro de um modelo rígido de espacialidade, como se estivessem atomizados e separados em grupos inimigos e incomunicáveis. Também admitimos que, mesmo em clima de guerras interétnicas, podem ser operadas trocas de produtos, pessoas e saberes. Assim, a América não só era densamente povoada, como era dinâmica, em trânsito, em redes. Foi exatamente nessa espacialidade, tentando sobrepor-se ou caminhar por essas redes, que os europeus avançaram. Uma primeira constatação acerca de seu avanço sobre territórios e fronteiras indígenas foi o efeito fatalmente despovoador. De acordo com cronistas como Bartolomeu de Las Casas, Pedro Mártir e Zuazo, a dizimação que atingiu a ilha Hispaniola, por exemplo, causara a morte de cerca de 2 milhões de nativos ao longo de 30 anos. Os índios daquela região foram identificados pelos espanhóis como Arawak e Taino, com os quais se aliaram. Os grupos que apresentaram resistência foram chamados genericamente de Caribe (Bernand; Gruzinski, As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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1997, 279-280). No caso das partes conquistadas pelos portugueses na América, que aportaram inicialmente na Bahia em 1500, o efeito da dizimação fez-se sentir de maneira avassaladora entre os povos que foram se aliando aos brancos e que ocupavam a costa litorânea atlântica. Os chamados genericamente Tupi, que eram considerados mais amistosos, quando aceitaram a aliança em vez da guerra, sofreram o impacto que as condições de confinamento, trabalhos e doenças lhes legaram. O padre jesuíta José de Anchieta estimava que, dos 40 mil índios que viviam nas aldeias controladas pelos jesuítas na Bahia a partir de 1560, cerca de 10% teria sobrevivido vinte anos depois (Anchieta, 1933, 377). No caso da América espanhola, logo na chegada da primeira expedição de Colombo, os conquistadores passaram a receber seu quinhão em terras e nativos, através do repartimiento dos mesmos, como lhes legava a tradição castelhana. Aos poucos, os regimes de trabalho forçado, como as encomiendas, trazidas do Velho Mundo, e as mitas e as yanaconas, adaptadas de modelos de trabalho compulsório indígenas pré-existentes, foram reduzindo a expectativa de vida dos nativos. Mais fatais, porém, foram as guerras contra os índios, com as expedições com armas de fogo e práticas de tortura para submeter os grupos e pessoas recalcitrantes. Também a guerra imunológica fez o seu papel, ceifando vidas através de doenças contra as quais os índios não tinham anticorpos, como sarampo, malária, gripe. A partir de então, acompanhando um debate teológico sobre a conquista espiritual dos povos encontrados pela cristandade, teve início uma reposição demográfica para diversas regiões da América, particularmente para aquelas atreladas à produção comercial para o mercado europeu. Através de um sistema econômico atlântico, baseado no tráfico transcontinental de seres humanos, a escravidão africana seria adotada na América. Em linhas gerais, o discurso cristão que respaldava essa prática baseava-se na lógica de que os africanos seriam salvos pelo cristianismo através da escravidão, enquanto os ameríndios seriam salvos através da conversão (Alencastro, 2000; Bonciani, 2010). Essa nova frente de expansão e reposição demográfica, que se daria com a vinda de africanos para a América, seria consolidada quase um século depois da chegada dos europeus ao continente. No entanto, o avanço do modelo ocidental e o recuo das fronteiras indígenas foi um processo contínuo ao longo do período colonial: um sinônimo de guerras, esbulhos de terras e assassinatos de 76 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

ameríndios, processo que, se diga de passagem, manteve-se mesmo dentro dos Estados nacionais americanos a partir do século XIX. A faceta das disputas e mortes é um dos lados da contenda. De acordo com Donna Guy e Thomas Sheridan, a lógica da fronteira seria a de terras em disputa, em que nenhum dos grupos seria detentor do monopólio da violência. Essas disputas se expressariam através de diferentes tipos de organização, população e tecnologia. No caso das sociedades ameríndias, o preço cobrado pelos interesses imperiais europeus teria um alto custo em termos de exploração do trabalho, o que teria levado à destruição ou desarticulação dessas sociedades (Guy; Sheridan, 1998, 10-11). No entanto, como frisado em outros momentos deste capítulo, o fenômeno das fronteiras deve ser percebido também através dos intercâmbios, das mestiçagens e da construção de novas identidades. A categoria de “índios coloniais”, que representaria os grupos e indivíduos que se colocaram sob o domínio dos europeus, pode ser entendida como o trânsito entre mundos. Isso porque os índios aliados eram obrigados a abandonar vários dos padrões de suas culturas de origem, uma vez submetidos às políticas coloniais. Eram apartados de suas sociedades, perdiam territórios, convertiam-se a religiões cristãs, adotavam hábitos e idiomas europeus. Além disso, eram compelidos a regimes de trabalho sob controle dos europeus, devendo pagar-lhes tributos. Os espanhóis, por exemplo, compreendiam que a melhor maneira de “integrar” a população nativa era concentrá-la e reduzi-la em povoados, os chamados pueblos. Tal processo, inicialmente violento, passou a ser regulado pelas Ordenanzas de descubrimiento, población y pacificación de las Índias, em 1573. Nelas, substituiu-se retoricamente o termo “conquista” por “pacificação” e estimulou-se a atração e redução indígena através do que se chamou de “dádivas” e pela caridade. As Ordenanzas buscavam oficializar a separação da Republica de los españoles da Republica de los índios, como duas instâncias apartadas – mas relacionadas – fisicamente, estruturadas no modelo urbano espanhol. Tal perspectiva, que agrupava os indígenas em núcleos urbanos orbitando em torno das cidades espanholas, fora experimentada ainda nas ilhas por Nicolás de Ovando em 1503, e depois reiterada pelas Leis de Burgos de 1513 e pelas Leis Novas de 1542. O modelo, já chamado de “utópico”, não cumpriria seu destino segregacionista, já que as várias formas de mestiçagem, os mediadores culturais, as relações cotidianas estabeleciAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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das pelo trabalho dos repartimientos e as ações catequéticas criariam as zonas de contatos e a aproximação entre as duas Republicas (Folguera; 2001; Romero, 2005). A despeito de toda essa alteração de modelos indígenas “originários”, continuavam sendo reconhecidos como “índios” dentro do universo colonial e essa condição resultava em algumas garantias. Para além dos relatos de extermínios e guerras, a história dos povos ameríndios e do avanço dos europeus sobre suas fronteiras deve ser analisada também na chave dessas alianças e acordos. Mesmo existindo as atrocidades mencionadas, diversos outros tipos de arranjos foram estabelecidos pelos reinos europeus com vários grupos indígenas em toda a América ao longo dos séculos. Houve tratados de paz com aqueles que eram reconhecidos como líderes políticos das chamadas parcialidades ou aldeias na América. Os acordos feitos pelos reinos português, espanhol, inglês, francês e holandês aconteciam desde que os índios de determinado grupo tivessem um território de posse exclusiva sua e que não fossem sujeitos ao trabalho escravo. De qualquer modo, as formas de reconhecimento da posse da terra e da legitimidade política dos grupos indígenas variou muito entre os reinos europeus. Para ingleses, e também para os espanhóis e portugueses, o fato do indígena não “beneficiar” a terra serviu muitas vezes como uma das justificativas para retirar dele o direito de uso e usufruto, servindo assim para alimentar o rol de legitimações das ações de conquista e expulsão, juntamente com os tradicionais argumentos religiosos. Todavia, as promessas e acordos muitas vezes incluíam cessar-fogo por parte do reino europeu aliado, ao passo que esse mesmo reino usaria seu exército para proteger tal sociedade indígena contra os europeus de outros reinos e os grupos indígenas inimigos. Esse recurso de proteger os índios contra o assédio dos reinos inimigos se torna particularmente dramático no caso das zonas de fronteira. Um caso paradigmático pode ser visualizado nos pontos de contato entre os domínios portugueses e espanhóis na América Meridional, cujos limites permaneceram indefinidos até os tratados do século XVIII, especialmente o Tratado de Madri (1750) e o de Santo Ildefonso (1777). Entre a capitania de São Vicente (depois Capitania de São Paulo) e a província do Paraguai (depois desmembrada em duas: uma de mesmo nome e outra denominada de Rio da Prata), havia todo um jogo retórico, baseado em 78 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

conflitos reais, acionado pelos Guarani. Esses, divididos em centenas de aldeias espalhadas por um território que compreende partes dos atuais sul e centro-oeste do Brasil, nordeste da Argentina, Uruguai e Paraguai, podiam procurar os espanhóis para se proteger dos chamados bandeirantes portugueses, ou, ao contrário, escaparem para o lado português, fugindo do controle que as reduções jesuíticas espanholas procuravam exercer sobre eles (Sposito, 2012). As culturas, obviamente, jamais permanecem estáticas ao longo do tempo. Nesse sentido, os índios respondiam e agiam frente ao processo colonial através de uma “resistência adaptativa”, segundo expressão de Steve Stern (1992, 1-34). Certamente que a adaptação serviu para os dois lados da contenda, pois os europeus também tiveram que se adaptar a modos, modelos e ambientes ameríndios. Muitos indivíduos e sociedades indígenas destruídas pela colonização se reagrupariam, ajustadas ou em posição de enfrentamento em relação às estruturas coloniais. A resistência externa pode ser visualizada através dos grupos recalcitrantes ao projeto colonial, que originalmente já estavam distantes dos núcleos coloniais, ou deles fugiram, atuando como “muros” ou “fronteiras” à expansão europeia (Farage, 1991; Puntoni, 2002). Mas havia também a resistência interna ao mundo colonial, como por exemplo nas aldeias de índios sob controle de missionários ou particulares, denominadas também de pueblos, misiones, reducciones no período, ou aldeamentos pela historiografia. Em novos espaços e segundo outros modelos, os índios reconstruiriam suas identidades através do contato com outros grupos, gerando o que os antropólogos chamam de etnogênese (Boccara, 2007; Monteiro, 2001; Wilde; 2009)., constituindo as identidades dos “índios misturados” (Oliveira, 1998). Esse processo se refere à emergência de novas identidades surgidas entre os grupos indígenas da América, como reação à experiência colonial ou nacional.

Plasticidade e limites fronteiriços na América Diversas frentes de expansão europeia seguiam ao encontro do continente americano, descobrindo suas dimensões, seus caminhos, seus limites, seus povos. Ao longo da década de 1510, os espanhóis seguiam nas ilhas caribenhas, chegando em Cuba, Jamaica e Porto Rico. Avançando para o norte da América, na mesma época, As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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teve-se o encontro da Flórida e das Carolinas. Na América Central e na Venezuela, os conquistadores aportaram na década seguinte. Ao encontrarem a península de Yucatán entre 1517 e 18, no golfo do México, os espanhóis, admirados com o tipo de organização social e padrão cultural que encontram (nativos vestindo roupas de algodão, cultivando roças e portando ouro), classificaram o local como “grande Cairo” (Bernand & Gruzinski, 1997, 308). A chegada do conquistador Hernán Cortez ao México data de 1519 e a conquista efetiva da cidade México-Tenochtitlán, capital da confederação Mexica (Asteca), habitada, estima-se, por 20 milhões de pessoas, ocorreu em 1521. A leitura que Bernard e Gruzinski fazem desse processo é que Cortez foi vitorioso na conquista do centro do Império justamente por se apropriar das redes, das disputas internas, aliando-se a povos como os Maia, Nahua e Totonaque, o que lhe permitiu atingir o centro do Império Mexica, controlado por Montezuma (Bernand & Gruzinski, 1997, 333-4). Também para Miguel León-Portilla, foi o ódio de Totonaca, Tlaxcalteca, dentre outros povos, que permitiu aos espanhóis imprimir a derrota ao poder Mexica (León-Portilla, 1990, 36). Os europeus na América do Sul também iriam trilhar caminhos e rotas que os levassem a povos que detivessem maior poder e riquezas materiais, segundo a lógica do mercantilismo moderno. O Estreito de Magalhães, no extremo sul do continente americano, foi atingido por Fernando Magalhães e Sebastián Elcano em 1520. Do istmo do Panamá, na América Central, Francisco Pizarro e Diego Almagro partiram em expedições em direção ao sul desde 1524. Em 1527, na fronteira entre os atuais Equador e Colômbia, encontraram grandes embarcações com exércitos e homens adornados de ouro e prata, episódio que, de acordo com Serge Gruzinski e Carmen Bernard, marcaria os contatos iniciais com o Império Inca do Peru (Bernand & Gruzinski, 1997, 473-481). Na região do chamado Circuncaribe, envolvendo povos que habitavam os Andes, o norte da Colômbia e as terras baixas do Caribe, havia uma conexão entre sociedades existentes na baixa América Central (Costa Rica e Panamá) e no norte da Venezuela. De acordo com Mary W. Helmes, objetos de ouro, tecidos e artefatos com função ritualística eram intercambiados e ostentados pelas elites de grupos como os Muisca ou Chibcha, Quimbaya, Cenú e Tairona, que habitavam essa ampla região (Helms et al., 1990, p. 41-44). Ao que tudo indica, essas 80 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

redes não estavam diretamente relacionadas com o domínio dos Inca, um pouco mais ao sul do continente. O Tawantinsuyu, o “Império dos quatro cantos”, estendia-se sobre vastas terras e povos na cordilheira dos Andes, de Quito no Peru, a Santiago no Chile, sendo barrados ao sul pelos Mapuche e a leste pelos Chiriguano (Murra; León-Portilla, 1990). Esse Império, por sua vez, que pautava sua expansão a partir do pagamento de tributos, de deslocamentos forçados de povos para serem súditos do inca, também ofereceria aos conquistadores a possibilidade de atuar dentro de seus conflitos internos. Dois sucessores do inca disputavam o direito de ocupar a liderança política que o pai exercera, demonstrando as próprias dificuldades de alcance e soberania por parte de um Império que se pretendia tão amplo: o inca Huascar era apoiado pela elite de Cusco, ao sul; o inca Atahualpa, apoiado pela elite de Quito, ao norte (Bernand & Gruzinski, 1997, 491-495). Mesmo derrotado por Pizarro em 1532 em Cajamarca e feito prisioneiro, Atahualpa ordenou o assassinato do meio irmão em Cusco. Temendo o poderio do inca, que ainda detinha vasta área de influência, os espanhóis o mataram em 1533 (Bernand & Gruzinski, 1997, 508-52). Assim, os europeus em trânsito pelas Américas chegavam ao litoral, percorriam penínsulas, ilhas, continentes, descobrindo milhares de sociedades indígenas, que podiam estar organizadas em aldeias, povoados nas selvas, ou dispostas em núcleos urbanos, que por sua vez se conectavam por estradas e canais. Para encontrar esses mundos, os invasores andavam por caminhos íngremes, desertos, rios caudalosos, muitas vezes aproveitando-se das embarcações dos nativos. Adentravam densas florestas, tendo como guias os índios que conseguiam convencer – através de alianças ou guerras – a conduzi-los. Cachoeiras, pântanos, grandes altitudes, terrenos insalubres muitas vezes impunham limites físicos ao trânsito e à comunicação. Apesar da conquista militar de povos indígenas pelos europeus, dos tratos de aliança política e até dos laços consanguíneos estabelecidos entre os ameríndios e os estrangeiros, a entrada na América não se deu de maneira homogênea. Tal perspectiva reforça a tese de que o chamado processo de “conquista da América” foi prolongado no tempo e heterogêneo espacialmente, ao contrário da tradicional visão que entendia a queda dos Mexica e dos Incas como um marco final da conquista As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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americana (Restall, 2006). Conforme dito acima, em muitas regiões as conexões territoriais entre as partes conquistadas não eram possíveis. Além dos mencionados acidentes geográficos que podiam impedir a comunicação, havia sociedades indígenas belicosas, que não permitiam a entrada de outros índios e de europeus em seus territórios. Assim, fronteiras naturais e fronteiras humanas impunham-se à livre circulação do território americano. O reino espanhol dividiu a América – então denominada pela Espanha como “Índias de Castela” – basicamente em dois centros administrativos, que por sua vez possuíam instâncias locais de poder, como as Reales Audiencias. No século das conquistas, instalou dois Vice Reynos: o de Nova Espanha ao norte, na cidade do México em 1535, e o do Peru ao sul, na cidade de Lima em 1543. Em outro contexto, no século XVIII foram criados o Vice Reyno de Nova Granada, capital Bogotá, na atual Colômbia (1717), e o Vice Reyno do Rio da Prata, em Buenos Aires, na atual Argentina (1776), demonstrando a necessidade de novos centros que dessem conta da complexidade administrativa a partir daquele momento. Na América do Sul, por exemplo, parte do vice-reino do Peru, na província do Paraguai (que englobava porções dos territórios dos atuais Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil), a circulação dos europeus sofria sérios limites. O Rio da Prata, que desemboca no Oceano Atlântico, na cidade de Buenos Aires, poderia ter sido a porta de entrada para as ricas jazidas que se imaginava haver por ali, daí o rio ter sido assim denominado pelos conquistadores. No entanto, o encontro do Peru se deu através do Panamá em direção ao sul. Quando os europeus descobriram a prata no Peru – em Potosí – passou a haver um interesse das Coroas ibéricas em buscar acesso à região a partir do estuário do Rio da Prata. Assim, enquanto os portugueses fundaram as vilas de São Vicente (1532) e Santos (1533), Espanha marcou sua ocupação na América do Sul com a fundação de Buenos Aires (1535) e Assunção (1536). No entanto, rios não navegáveis, pântanos, além da presença dos Paiaguá por rios e dos Guaycuru por terra, tornavam bastante dificultosas as viagens de exploradores espanhóis e portugueses que saíam de São Paulo e Assunção tentando chegar ao Peru. O caminho mais factível, por questões geográficas e geopolíticas, foi a província de Tucumán, a oeste do atual território da Argentina (Canabrava, 1984; Vilardaga; 2014). Assim mesmo, os grupos indígenas 82 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

que viviam no chamado Valle dos Calchaquíes, na região tucumenha, impuseram feroz resistência ao avanço espanhol. O local foi palco de inúmeras rebeliões ao longo de todo o século XVII, inclusive uma de grandes dimensões liderada por um “lendário” mestiço de origem mourisca, Pedro Bohorquez. Durante grande parte do século XVI e XVII, o Valle foi uma verdadeira fronteira para o avanço dos colonizadores espanhóis, que ergueram as cidades de Salta e Jujuy, no atual noroeste argentino, exatamente para tentar conter os grupos Diaguita (Mandrini, 2012). A política implantada pelo vice-rei do Peru, Francisco de Toledo (1569-1581), buscou estabilizar o vice-reinado, que ainda enfrentava uma rebelião inca liderada por Tupac Amaru I e a insatisfação dos conquistadores, que viam suas encomiendas tolhidas pelas Leyes Nuevas de 1542. Num amplo leque de medidas, Toledo tentou garantir os monopólios da prata potosina através de Lima, a melhor exploração econômica das minas, a regulação da mita, a consolidação das fronteiras e a diminuição das pressões indígenas (Brading, 1991). Nesse sentido, tanto Assunção, quanto Santiago de Estero e Tucumán deveriam representar os limites da expansão centrada no mundo peruano e assentada em Lima e Potosí. Todavia, um circuito regional pressionava no sentido do Atlântico, no qual as mesmas cidades que deveriam ser o limite da expansão passaram a ser ponto de partida para novas expedições e para a criação de novas vilas e cidades. A ocupação do Guairá e a fundação de Santa Fé, em 1579, e de Buenos Aires, re-fundada em 1580, cumpriam essa função. Aos poucos surgia uma rota que conectava as minas potosinas ao Atlântico através de Tucumã e Buenos Aires. Cerceada pela Coroa, assim mesmo nela se formou um amplo mercado trans-regional e transatlântico de comércio legal e ilegal (Moutoukias, 1988). As cidades no império espanhol cumpriam um papel central no processo de expansão e alargamento de fronteiras, simbolizando o domínio territorial e a submissão dos grupos nativos. Baseada no modelo da chamada Reconquista, essa expansão aliviava as tensões geradas com a chegada de novos colonos, que buscavam suas próprias encomiendas e repartimientos. Alijados inicialmente, engajavam-se em expedições caudilhescas com a promessa de tornarem-se encomenderos em novas terras e vilas criadas no bojo do processo. Era um movimento que se auto alimentava. Entre 1580 e 1630, na América espanhola, as cidades passaram de 225 a 331, ou seja, quase 50% em 50 anos. Segundo John Elliott, “ideal de As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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la ciudad como una comunidad perfecta estaba profundamente arraigado en la mentalidad hispânica y se consideraba contrario a la naturaleza que los seres humanos vivieran alejados de la sociedad” (Elliott, 2006, 76). No Chile, por sua vez, os Mapuche, povos que habitavam a chamada Araucanía, no sul do território, criaram uma fronteira humana a partir do rio Bío-Bío, resistindo à entrada de europeus em seu território. Isso não significa negar os intercâmbios, já que os Mapuche incorporaram vários hábitos europeus, como o uso do cavalo (também adotado pelos Guaycuru do Paraguai e pelos Apache e Comanche na América do Norte). Os próprios Mapuche, se foram vistos durante séculos como um grande muro à expansão europeia, devem ser enxergados no processo de trocas e etnogênese gerada pela colonização, como defende Guillaume Boccara. Expandindo-se para a região dos pampas no Rio da Prata, os Mapuche misturaram-se com os povos do sul, o que demonstra a construção de novas identidades indígenas a partir da colonização. Ademais, organizaram importantes rotas comerciais que articularam muitas comunidades e grupos indígenas, estabelecendo contínuos e vantajosos tratos com os colonos de fronteira (Boccara, 2007). No outro extremo da América, ao norte do México, havia o chamado Grande Norte Espanhol, hoje representado pela porção oeste dos Estados Unidos, sobre o qual já falamos um pouco aqui. No século XIX, a região seria parte do cenário da chamada “marcha para o Oeste”, um processo de enfrentamento dos descendentes de europeus contra as populações indígenas e espanholas que ali viviam há séculos. Os projetos e discursos expansionistas do século XIX, que além dos Estados Unidos, pautaram muitas ideologias nacionalistas na América nessa mesma época, difundiam a visão da “civilização” branca, de matriz europeia, vencendo a barbárie indígena, negra e mestiça habitante da América. No entanto, como ressaltou Richard Slatta, estudioso da figura do cowboy, o vaqueiro, explorador que avançava para além dos limites de sua sociedade e que esteve presente em diversas regiões da América ao longo do período colonial e para além dele, é, essencialmente, um mestiço. No Grande Norte Espanhol populações de diferentes etnias e culturas interagiram durante séculos. A pecuária e a adoção de cavalos, trazidos pelos espanhóis e portugueses em distintas regiões de fronteiras, propiciaram aos Apache, Sioux e Comanche, sociedades da região, um ganho em termos de desenvolvimento técnico, incremen84 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

tando sua agricultura e mobilidade (Slatta, 1990; Jones; Guy; Sheridan, 1998, 99-101). Para Slatta, o cowboy expressa um fenômeno americano que não se restringiu às fronteiras do atual Estados Unidos, como usualmente se imagina. Geograficamente, eles estavam situados em locais bastante distintos: cowboys (Alberta/Canadá e oeste do Estados Unidos); vaqueros (norte do México e Califórnia); gaúchos (Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul); Hauso/guaso (Chile); llaneros (Venezuela e Colômbia); vaqueiros (sertão nordestino do Brasil), charros (México) e paniolo (Havaí) (Slatta, 1990, 1-3). Para o autor, as fronteiras podem ser enxergadas como “membranas”, pois, ainda que haja uma dominação do europeu sobre o nativo da América, as influências passam de um lado a outro (Slatta, 1990, 223). Assim, mesmo na figura mítica construída do cowboy dos Estados Unidos, que seria um tipo branco, descendente de ingleses, conquistador do oeste ao longo do século XIX, os séculos de contatos entre os espanhóis e os índios que viviam naqueles territórios, em períodos precedentes, não podem ser ignorados. Outra frente de expansão europeia sobre a América foi desempenhada pelas ordens religiosas. O ideário da propagação da fé cristã foi combustível para a procura de novas terras por parte dos reinos católicos, que justificava a expansão ultramarina como meio para promover o aumento do número de fiéis. Assim, tal discurso embasou a construção da soberania dos Estados europeus que, através da conquista militar e do estabelecimento de rotas de comércio, resultou na montagem de Impérios ultramarinos. Muitas vezes as vitórias militares e as conquistas comerciais eram justificadas como o meio para conversão de gentios e perseguição aos infiéis. No próprio discurso dos jesuítas, por exemplo, uma das ordens que mais atuaram na conversão dos índios no Novo Mundo, a máxima era de que a vida civil, nos moldes europeus, à qual os índios deveriam ser obrigados a viver, era o meio de salvar suas almas. Esse projeto foi concretizado no modelo das aldeias jesuítas (ou misiones, reducciones, pueblos, aldeamentos). Ele foi formulado para o Brasil na década de 1560, pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega e adotado na América espanhola, na Província do Paraguai, somente na década de 1610 (Eisenberg, 2000; Sposito, 2012). Também os dominicanos e franciscanos tiveram papel marcante tanto na conversão dos povos ameríndios, quanto no discurso que embasava a presença europeia e seu papel na América (Ruiz, 2002; Bonciani, 2010). Montesinos, Francisco de Vitória e Bartolomeu de As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Las Casas notabilizaram-se por questionar as atrocidades e assassinatos cometidos pelos europeus contra os índios no início da conquista da América e formular alguns postulados sobre os direitos dos índios, que influenciaram o campo filosófico, com desdobramentos para o surgimento e a legitimação do direito e do Estado modernos (Ruiz, 2002; Eisenberg, 2000). Essa menção à evangelização e ao papel da Igreja Católica nas colonizações ibéricas é necessária para a compreensão do fenômeno das fronteiras no mundo colonial, pois muitas vezes padres e missionários funcionavam como “pontas de lança” na expansão territorial e na conquista dos povos, justificando que vinham pacificar e salvar os índios. Assim, vários depoimentos de padres jesuítas permitem vislumbrar o avanço dessas frentes e ao mesmo tempo o quanto teriam de pelejar para conseguir penetrar na complexa teia das redes ameríndias. Da província do Paraguai, por exemplo, os jesuítas escreviam no início do século XVII, relatando a terra como habitada por “mil nações bárbaras”, passíveis de conversão (Cortesão, 1951, 209-210). Na outra ponta da América do Sul, o padre jesuíta Antonio Vieira, missionando na região amazônica em 1660, informava ao rei sobre o mosaico de identidades, povos e alianças. Dizia Vieira que os grupos Topinambá e Poguiguará (conforme sua grafia) haviam sido recentemente aldeados. A obtenção dessas alianças foi fruto da chegada dos missionários à foz do rio Amazonas, onde essas “nações”, outrora amigas dos portugueses, naquele momento estavam em guerra contra os lusos e aliadas aos holandeses. Esse cenário de guerras fazia com que a ilha dos Nheengaíba se tornasse uma “fortaleza natural” contra a presença portuguesa na região, processo que teria sido revertido pela ação missionária. No entanto, a ação dos jesuítas, de acordo com Vieira, rompeu o cerco beligerante, com a assinatura pelos líderes indígenas de um termo jurídico de vassalagem ao rei português. Dessa feita, índios dos grupos Mamayná, Aroan, Anayá (subdivididos em Mapuá, Gujará e Pixipixí), além dos Tricujú da terra firme, que compunham um total de 40 mil índios, passaram para o lado português (Vieira, 1735, 21-54). Já no século XVIII, os jesuítas espanhóis, sediados em Quito, passaram a questionar o avanço português pelo Alto Amazonas. A partir do Pará e do Maranhão, os portugueses invadiam o que era considerada a fronteira oriental da Real Audiencia, a Província amazônica de 86 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Maynas. Na ocasião, padres como Samuel Fritz denunciavam os portugueses com o Tratado de Tordesilhas em mãos. A região era percorrida por contrabandistas e os meandros das relações entre missões, presídios, aldeias indígenas e comerciantes luso-castelhanos tornam aquele território um laboratório riquíssimo para se observar as experiências fronteiriças (Gonzalez, 2013, 85-123). Ali se percebe uma extensa rede de relações envolvendo distintas etnias na região amazônica no século XVII, que não iniciaram seus contatos a partir da invasão europeia, mas foram por ela atingidas. Assim, ainda que se tornassem escravos de particulares, vassalos do rei ou aldeados pelos missionários, estavam acessando os fluxos e as novas redes de relações colocadas pelos invasores. Os ameríndios, além de suas rotas tradicionais, passaram a percorrer os caminhos também traçados por portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses. Ali, como em outras partes da América, ao mesmo tempo que poderiam ser dominados por um desses reinos, poderiam também negociar espaços, adquirir mercadorias, barganhar alianças ou abrir ofensiva contra outro reino inimigo. A fluidez das fronteiras durante a colonização da América pode ser visualizada através do trajeto seguido pelo governador da província do Paraguai, Luis Céspedes Xeria. Essa autoridade, nomeada na Corte de Madri em 1628, partiu da Europa, desembarcando alguns meses depois na Bahia. Dali seguiu ao Rio de Janeiro, onde se casou com D. Vitória de Sá, sobrinha do governador daquela capitania, demonstrando que as uniões matrimoniais entre espanhóis e portugueses na América meridional não eram algo incomum (Vilardaga, 2014). Para se precaver na longa travessia até a cidade de Assunção, onde assumiria seu posto, o governador abasteceu-se de víveres, tropas e índios em São Paulo, percorrendo um caminho bastante conhecido pelos portugueses que dali atingia os domínios espanhóis. O trajeto da capitania de São Vicente até o Paraguai e o Rio da Prata era percorrido desde o século XVI – nos dois sentidos - por aventureiros, comerciantes, missionários e pelos bandeirantes, ou sertanistas, que tinham como objetivo capturar índios Guarani do Paraguai e levá-los como escravos ao Brasil, prática que foi se tornando mais frequente desde a década de 1580. Antes de chegar a Assunção, no entanto, Céspedes Xeria percorreu a região do Guairá (onde se localiza o atual Estado do Paraná no Brasil), As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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local mais extremo a leste na província do Paraguai onde havia espanhóis instalados (Annaes do Museu Paulista. 1925, 15-42). Foi justamente percorrendo esse caminho de maneira oficial, evidenciando uma série de tratos e laços havidos entre espanhóis, portugueses, índios Tupi do Brasil e Guarani do Paraguai, que o governador espanhol se complicou. Xeria foi acusado de contrabandear índios e mercadorias por rota proibida, ao sair do Brasil em direção a Assunção por terra. Além disso, indispôs-se com os padres jesuítas das missões estabelecidas entre os índios, ao se posicionar favoravelmente aos encomenderos do Guairá, moradores da região que haviam recebido mercê do rei, autorizando-os a possuírem índios que lhes prestassem serviços. A disputa entre moradores e religiosos pelo controle da mão de obra indígena era uma questão presente em várias partes da América, onde os índios se constituíam na principal força de trabalho. Mais do que tomar partido do lado dos moradores espanhóis, Céspedes Xeria também teria se aliado aos bandeirantes portugueses, sendo acusado de nada ter feito para impedir uma grande bandeira que se dirigiu ao Guairá entre 1628 e 1629, ou, pior ainda, de ter aberto caminho para os lusos aos domínios espanhóis. De fato, as ações bandeirantes ou sertanistas praticadas pelos paulistas nos anos seguintes levaram à despovoação das cidades espanholas e à escravização de cerca 60 mil Guarani, retirados do Paraguai e levados ao Brasil em poucos anos (Sposito, 2012). De qualquer modo, a ocupação da América era milimetricamente negociada pelos povos, originários ou invasores, que pretendiam nele permanecer, fazendo valer a máxima da fronteira como “terra contestada”, conforme visto anteriormente. Se a proeminência ibérica foi um fato no início da conquista da América, logo a anuência papal para a partilha do Novo Mundo entre Espanha e Portugal passou a ser contestada. Hugo Grotius, como visto anteriormente, questionou o domínio do continente americano pelo mero título papal, caso não houvesse uma posse efetiva do território pretendido. Isso gerou uma nova ordem de disputa territorial entre os reinos europeus no século XVII, que, além das guerras e conquistas, levou-os à busca de maior precisão cartográfica, como meio de efetivar a ocupação (Kantor, 2007). Somente com os tratados de limite estabelecidos entre as potências europeias no século XVIII, demarcando e barganhando os seus domínios na América, é que esses limites políticos e físicos seriam efetivamente demarcados. Com a paz de Utrech (1712-5), que culminou 88 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

com a dinastia Bourbon assumindo o trono da Espanha no início do século XVIII, houve um rearranjo geopolítico também na América: a França perdeu seu território na América do Norte para a Espanha; Portugal cedeu à Espanha a Colônia do Sacramento, que havia sido fundada pelos portugueses em 1680 na margem oriental do Rio da Prata, evidenciando as disputas entre esses reinos por aquela região desde o início da colonização. Na região amazônica, embora Portugal tenha ficado com o território na foz do rio Amazonas, todo o Alto Amazonas ainda se mantinha indefinido e a solução do impasse se resolveria somente com os tratados efetuados nas décadas seguintes (Kantor, 2007). Com os Tratado de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777) buscou-se estabelecer de maneira definitiva os marcos entre a América espanhola e a América portuguesa. As comissões de demarcação, levadas a cabo pela Espanha e Portugal na América do Sul, geraram uma nova “guerra de mapas”, em que os agentes e comissários encarregados das demarcações recorreram a um conjunto de mapas recentes ou até mesmo do século XVII para poder definir onde ficavam as linhas divisórias. O que se depreende desse movimento é que várias distorções cartográficas foram feitas num ou noutro ponto dos mapas para favorecer ora um, ora outro reino. Alexandre de Gusmão, responsável pela demarcação do lado português, praticou muitas dessas alterações nas representações dos mapas para atender aos interesses de seu reino. As autoridades espanholas, por sua vez, que conheciam menos a região que os lusos, acabaram aceitando delimitações que não eram fidedignas (Ferreira, 2007). O Tratado de Madri, em síntese, estabeleceu uma partilha no Prata para buscar equilibrar as perdas: a Colônia do Sacramento (no atual Uruguai) passaria definitivamente a pertencer ao território espanhol; em troca, a Espanha cederia parte das missões jesuíticas que havia em seu território: sete dessas missões ou pueblos passaram a pertencer ao reino português (ocupavam parte do território onde hoje é o estado brasileiro do Rio Grande do Sul). Importante pontuar que muito do conhecimento sobre os territórios em litígio usado pelas autoridades foi obtido através de sujeitos que sempre percorreram essas fronteiras. Jesuítas que missionavam no Sul e na região de Mojos e Chiquitos na Bolívia, por exemplo, além de sertanistas paulistas que transitavam do Mato Grosso a São Paulo, a partir da descoberta do ouro, mostraram que, mesmo nos tratados estabelecidos pelas autoridades diplomáticas dentro de seus gabinetes, havia As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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que se considerar a história e a vivência de populações que estiveram, durante séculos, nas bordas desses Impérios (Carvalho, 2014).

Considerações Finais As fronteiras americanas representaram um dos fatores formativos mais essenciais no processo de colonização. Esteve na gênese da expansão ibérica pelos mares que levaram lusos e castelhanos às terras mais tarde chamadas de América. Representaram os limites, mais ou menos transponíveis, da expansão europeia em todas as partes do continente. Foram local do embate e acordo com outras potências, de conflito e negociação com os mais diversos grupos indígenas, de atuação sistemática de ordens missionárias, de troca, comércio e contrabando. As fronteiras, vistas hegemonicamente aqui mais como zona do que linha, foram espaços profundamente dinâmicos, fazendo interagir os mais diversos agentes envolvidos no processo de colonização. Para além de tal e qual fronteira, elas dificilmente foram vivenciadas com exclusividade e isolamento, e muito menos devem ser pensadas como o lugar do “vazio”, do simples trânsito ou da contravenção sistemática. Continuamente alargadas tanto em suas dimensões internas, quanto externas, representam acima de tudo a vitalidade e as contradições do(s) “encontro(s)” de culturas, modos de vida e rearranjos postos em cena com a chegada dos europeus à América. Nesse sentido, a fronteira pode ser considerada uma das personagens mais presentes da colonização americana, pois acompanhou cada desenrolar deste tumultuoso processo, desde Colombo até as formações dos Estados Nacionais, no século XIX, e além. Talvez devêssemos recuperar a dialética da fronteira e reconciliar Turner e Bolton. A fronteira agiu sobre os homens, assim como os homens agiram sobre as fronteiras.

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Vários textos respaldaram a escrita deste capítulo e auxiliam a compreensão da conquista da América e a construção da colonização no continente, sem tratar diretamente do tema das fronteiras:

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SPOSITO, Fernanda. Santos, heróis ou demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e colonizadores na América Meridional (São Paulo e Paraguai/Rio da Prata, séculos XVI-XVII). Tese de Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP, 2013. SCHWARTZ, Stuart. “Os furacões e a formação das sociedades caribenhas”. Revista USP, São Paulo, 72, p.28-43, dez-fev de 2006-2007. VILARDAGA, José Carlos. São Paulo no império dos Felipes: Conexões na América Meridional (1580-1640). São Paulo: Intermeios, 2014 VINCENT, Bernard. 1492. Descoberta ou invasão? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

Livros e artigos sobre a expansão ibérica, Tordesilhas e as disputas dos mares.

ALBUQUERQUE, L. O Tratado de Tordesilhas e dificuldades técnicas da sua aplicação rigorosa. Separata da Revista da Universidade de Coimbra. Coimbra, 1973. ALMEIDA, Antonio A. Marques de. “Ler o mundo e imaginar o possível. Conhecimento e representação do mundo no tempo de Tordesilhas”. Revista USP, São Paulo, 45, p.6-15, março-maio de 2000. APESTEGUI, Cruz. Los ladrones del mar. Piratas en el Caribe. Corsarios, filibusteros y bucaneros. 1493-1700. Barcelona: Lunwerg Editores, 2000. Os capítulos de Luiz Felipe Alencastro, “A economia política dos descobrimentos”, e de Bartolomé Bennassar, “Dos mundos fechados à abertura do mundo”, ambos em: NOVAES, Adauto (org.) A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. DURAN, Leandro Domingues. A construção da pirataria: o processo de formação do conceito de “pirata” no período moderno. São Paulo: Annablume, 2011. FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. “Hereges nos mares de Deus: a ação de corsários como episódio das guerras de religião no século XVI”. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.7, n.1, jan-jun de 2014; p.172-201. GESTEIRA, Heloisa Meireles. “Da liberdade dos mares: guerra e comércio na expansão neerlandesa para o Atlântico”. Revista de História, USP, 154, 1º 2006, 221-249. STOLS, Eddy. “Flandes ante el tratado de Tordesillas y el monopólio colonial ibérico”. Congresso Internacional: El Tratado de Tordesillas y su época; p.1279-1295. Os capítulos de Joaquim Romero Magalhães, “Fronteras y espacios: Portugal y Castilla”, Luis Arias Gonzalez et.alli, “Tensiones entre castellanos y portugueses en la primeira vuelta al mundo (1519-1522)”, Antonio Garcia y Garcia, “Las donaciones pontifícias de territórios y su repercusión en las relaciones entre Castilla y Portugal” e José Luis Martin Martin, “La frontera hispano-portuguesa en la guerra, en la paz y el comercio”, todos em: TORRES, Ana Maria C. (org.) Las relaciones entre Portugal y Castilla en la época de los descubrimientos y la expansion colonial. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1994.

Alguns artigos e livros de história, antropologia e etnologia servem como respaldo para compreender as organizações indígenas, seus modos e suas especificidades:

ARCURI, Márcia M. Tribos, Cacicados ou Estados? A dualidade e centralização da chefia na organização social da América pré-colombina. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo: USP, 17, 2007, p. 305-20 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.) História dos Índios no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp/Companhia das Letras, 2009(1992) GALLOIS, Dominique Tilkin (org.). Redes de Relações nas Guianas. São Paulo: Humanitas, 2005 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. São Paulo: Ed. 34, 1994 MANDRINI, Raúl. La Argentina aborigen. De los primeiros pobladores a 1910. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2012.

Especialmente sobre as transformações das identidades indígenas em face à colonização, lidando com a construção de novas culturas, as misturas, o trânsito entre fronteiras, tem-se os seguintes textos: ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indígenas. Identidades e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Phillipe (org.). Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Ed. UNESP, 1997. BOCCARA, Guillaume Boccara. Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e reestruturação entre os Mapuche da época colonial. Tempo, nº 23, 2007. CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos Impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014. FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Anpocs, 1991. GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009. HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e Mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. MONTEIRO, John Manuel. Entre o Etnocídio e a Etnogênese: Identidades Indígenas Coloniais. In: MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de História Indígena e Indigenismo. Tese de Livre Docência em Etnologia. Campinas: IFCH/Unicamp, 2001. GOMES, Flávio. “Etnogénesis en las fronteras entre Brasil, Surinam y Guayana Francesa, siglos XVII-XX: más aproximaciones”. Antíteses, Londrina, n.4, v.8, p.631-644, jul-dez de 2011. OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, terri-

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torialização e fluxos culturais. Mana, vol. 4, nº 1, 1998. OPERÉ, Fernando. Historias de la frontera. El cautiverio en la América Hispànica. Buenos Aires: Corregidor, 2012. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec/Edusp/Fapesp, 2002. STERN, Steve J. Paradigms of Conquest: History, Historiography. Journal of Latin American Studies, Vol. 24, Supplement S1 / March 1992, p. 1- 34. WILDE, Guillermo. Religión y poder en las misiones de Guaraníes. Buenos Aires: Editorial SB, Serie Historia Americana, 2009.

Alguns textos específicos sobre o tema das fronteiras:

FERREIRA, Mário Clemente. O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid. Varia História. Vol. 23, nº 37. Jan/Junho 2007. GUY, Donna J.; SHERIDAN, Thomas E. On Frontiers: The Northern and Southern Edges of the Spanish Empire in the Americas. In: GUY, Donna J.; SHERIDAN, Thomas E. (ed.). Contested Ground. Comparatives Frontiers on the Northern and Southern Edges of the Spanish Empire. Tucson: The University of Arizona Press, 1998. JONES, Kristine L. Comparative Raiding Economies: North and South. In: GUY, Donna J.; SHERIDAN, Thomas E. (ed.). Contested Ground. Comparatives Frontiers on the Northern and Southern Edges of the Spanish Empire. Tucson: The University of Arizona Press, 1998l GONZALEZ, Juan Sebastian Gomez. “Invasores portugueses y reacciones jesuíticas en la disputa por una frontera americana. Maynas, 1700-1711” In: El siglo XVIII americano. Estudios de Historia Colonial. Medelin, Colombia: Universidad Nacional de Colombia, 2013, p.85 – 123. HENNESSY, Alistair. The frontier in Latin American History. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1978. HERZOG, Tamar. Frontiers of possession. Spain and Portugal en Europe and Americas. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2015. KANTOR, Iris. Usos diplomáticos da ilha-Brasil polêmicas cartográficas e historiográficas. Varia História. Vol. 23, nº 37. Jan/Junho 2007. LANGFUR, Hal. “Frontier/Fronteira: a transnational reframing of Brazil’s inland colonization”. History Compass, 12/11, p. 843-852, 2014. MORAES, Antonio Carlos Robert de. Bases da formação territorial do Brasil. O território colonial brasileiro no ‘longo’ século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000. PRADO, Fabrício. “The fringes of empires: recente scholarship on colonial frontiers and borderlands in Latin America”. History Compass, 10/4, p.318-333, 2012. QUARLERI, Lia. Rebelión y guerra en las fronteras del Plata. Guaraníes, jesuítas e impérios coloniales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. RAFFESTIN, Claude. A Ordem e a Desordem. Ou os paradoxos da fronteira. In: OLIVEIRA, Tito C. M. (org.) Territórios sem Limites. Campo Grande, MS, Editora da UFMS, 2005, pp. 9-15.

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SLATTA, Richard W. Cowboys of the Americas. New Haven/London: Yale University Press, 1990. SLATTA, Richard W. Gauchos and the Vanishing Frontier. Lincoln: University of Nebraska Press, 1992. Os textos de Francisco Solano, “Contactos hispano-portugueses en America a lo largo de la frontera brasileña.”; de Rosario Sevilla Soller, “Santo Domingo, frontera francoespañola. Consecuencias de la presencia francesa em la isla Española” e de Salvador Bernabeu, “La frontera californica: de las expediciones cortesianas a la presençia convulsiva de Galvez (1534-1767)”. Todos na coletânea: SOLANO, Francisco de; BERNABEU, Salvador (coords). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera. Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Centro de Estudos Históricos: Madrid, 1991. Sobre o conceito de fronteira na História dos Estados Unidos e a obra de Frederick Turner: FARAGHER, John (org.). Rereading Frederick Jackson Turner. New Haven: Yale University Press, 1998 KNAUSS, Paulo (org.). O Oeste Americano: quatro ensaios de história americana. Rio de Janeiro: EdUFF, 2004. LOPES, Maria Aparecida de S. Frederick Turner e o lugar da fronteira na América. In: GUTIÉRREZ, Horacio et al. Fronteiras. Paisagens, personagens, identidades. Franca/São Paulo: UNESP/Olho D’Água, 2003. TURNER, Frederick Jackson. The Significance of the Frontier in American History. In: The Frontier in American History. New York: Dove, 1996 (1893). WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste. A Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2000. Os textos de Herbert Eugene Bolton, “La msion como institucion de la frontera en el septentrion de Nueva España” e de David Weber, “Turner , Los Boltonianos y las Tierras de Frontera.” Publicados na coletânea de SOLANO, Francisco de; BERNABEU, Salvador (coords). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera. Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Centro de Estudos Históricos: Madrid, 1991.

Extratos de documentos Documento 1 Um personagem bastante comum nas fronteiras americanas foi o chamado cativo. Ao longo da colonização, esses homens e mulheres, adultos e crianças, brancos, mestiços e negros, capturados por índios, permaneceram em cativeiro por tempos variados e viveram as mais diferentes experiências. Alguns foram adotados, “indianizados” ou tornaram-se agentes de mestiçagem, outros foram torturados e escravizados. Em alguns locais, como na fronteira Mapuche do Chile, foi um fenômeno contínuo e extenso. Ao longo As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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do tempo, os ocasionais relatos dos que regressavam despertaram um misto de curiosidade, repulsa e compaixão. Transcrevemos aqui um pequeno trecho, do que se pode chamar de uma experiência positiva de cativeiro. O capitão Francisco Núñez de Pineda y Bascuñan, foi um cativo chileno no contexto da pacificação e dos tratados entre espanhóis e Mapuches. Foi capturado depois de uma batalha, na qual foi ferido, em 1628. Ficou prisioneiro por seis meses, nos quais esforçou-se por conhecer os indígenas. Em seu texto, descreve os banquetes alimentares, já adaptados às grandes quantidades de carne bovina, e as rivalidades entre tribos e os conflitos com os espanhóis. Abaixo segue sua emocionada despedida: Con estas razones, que pronuncié con alguna ternura, respondieron las viejas lastimadas con lágrimas en los ojos y ayes y suspiros en los lábios, diciendo: ay! ay! que se nos va nuestro capitán y compañero; a cuya imitación de las demás muchachas, principalmente la mestiza con los muchachos mis amigos, levantaron de punto los sollozos y voces lastimadas de manera que me obligaron a llorar con ellas, y a decirles, que si no tuviera padre, a quien amaba tiernamente, y entre los mios no fuera tan solicitado (como lo habian visto) con tan repetidos mensajes, que tuviesen por cierto que no dejara su amada companhia, porque me habían obligado com extremo sus agasajos, sus cortesias, sus amores y regalos, a corresponderles con voluntad y afecto.24

MAPA 1. Le Nouveau Monde Descouvert et Illustre de Nostre Temps. André Thevet.1575.Paris.Disponível em: < http://www.cartografiahistorica. usp.br/> (Acesso em 13/10/2015)

Documento 2 Planisfério de Alberto Cantino (1502). Primeiro mapa conhecido que contém a referência ao Tratado de Tordesilhas e já com partes do Brasil.

24 Trecho retirado de: OPERÉ, Fernando. Historias de la frontera. El cautiverio en la América Hispànica. Buenos Aires: Corregidor, 2012; p.111

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MAPA 2. Nova Totius Americae Descriptio. Frederick de Wit. 1660. Amsterdã. Disponível em: < http://www.cartografiahistorica.usp.br/> (Acesso em 13/10/2015)

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MAPA 3. Carte tres curieuse de la Mer du Sud, contenant des remarques nouvelles et tres utiles non seulement sur les ports et iles de cette mer, mais aussy sur les principaux pays de l’Amerique tant Septentroinale que Meridionale, avec les noms & la route des voyageurs par qui la decouverte en a ete faite. Henri Abraham Chatelain. 1719. Amsterdã Disponível em: < http:// www.cartografiahistorica.usp.br/> (Acesso em 13/10/2015)

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Capítulo 3 Pessoas e bens em circulação (1492-1750) Ofelia Rey Castelao

As profundas mudanças demográficas e econômicas que ocorreram no mundo entre 1492 e meados do século XVIII como resultado da “descoberta” da América significaram uma transformação tão intensa que só é possível enumerar seus sintomas e ordená-los em torno do conceito de circulação. Como veremos, o termo “globalização”, amplamente utilizado nos últimos tempos, é talvez excessivo para o período em questão. Sobre este tema muito se tem publicado, especialmente desde a comemoração de 1992, uma vez que vivemos, nos dias de hoje, uma globalização a plenos pulmões e uma circulação acelerada de pessoas, bens e informação. Algumas questões clássicas permanecem na bibliografia, mas houve uma revisão dos métodos de pesquisa e de análise, especialmente a comparação e a dialética entre o global e o regional, entre o macro e o micro-histórico. Em suma, o que se aceita é que, apesar do enorme custo humano que supôs a unificação do globo, produziu-se uma reciprocidade entre Europa, América, Ásia e África no marco de uma nova economia: por um lado, a importação de plantações adaptadas de umas áreas às outras serviu para aumentar a produção mundial de alimentos e para sustentar o crescimento demográfico. Por outro lado, a aquisição de amplos territórios levou a transferências de população em grande escala, como nunca antes havia ocorrido. A expansão europeia ultramarina nasceu impulsionada pelo comércio e buscava especialmente benefícios comerciais, mas, para obtê-los, foi preciso conquistar territórios ou instalar feitorias cujos lucros foram parar majoritariamente nas metrópoles. Alguns portos europeus – Lisboa, Antuérpia, Amsterdã – que desempenhavam um papel principal nos grandes circuitos tradicionais intra-europeusse transformaram em pontos de conexão com o tráfego colonial e em centros redistribuidores para mercadorias que chegavam da África, da América e da Ásia As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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com destino à Europa. Esse continente manteve durante o período de 1492 a 1750 um modelo de baixa pressão demográfica, que lhe permitiu dispor de uma renda superior à necessária para sua subsistência, além de um poder aquisitivo que lhe permitiu o consumo de produtos coloniais que não eram vitais – café, açúcar, tabaco –, mas comprados para satisfazer necessidades mais supérfluas, ligadas tão somente ao prazer de seu consumo. Tratava-se, portanto, de um consumo de luxo protagonizado pelas classes endinheiradas, mas constituía um mercado cada vez mais generalizado pelo qual lutaram as potências navais portuguesa, holandesa e britânica. A intensificação do comércio barateou os preços e cada vez mais pessoas desfrutaram ou se beneficiaram das importações.

A circulação de pessoas O impacto da chegada dos europeus à América não será o foco deste capítulo, que se centrará na circulação das pessoas e seu contexto histórico. No entanto, é necessário mencionar a transformação demográfica ocorrida na América desde 1492, tanto pelo colapso motivado pelas doenças que advieram do contato dos nativos deste continente com os europeus e africanos, quanto pelos realocamentos de população para cobrir as necessidades de mão de obra indígena que derivavam dos déficits populacionais assim gestados. Tema chave e tradicional, revisado pelos cálculos de Cook e Borah (1960), o certo é que a expansão das doenças provocou uma mortalidade elevada na América: as epidemias de varíola, sarampo, tifo entre outras enfrentadas em 1519/21, 1534, 1545, 1550, 1559-63, 1576-80, 1595, entre outras, foram desastrosas e somente no fim do século XVI a população indígena desenvolveu anticorpos contra algumas dessas infeções, o que fez as crises epidêmicas se atenuarem a partir de 1620. O resultado disso foi o maciço desaparecimento da população indígena, com efeitos mais fortes em áreas densamente povoadas e agrárias do México e do Peru, zonas destruídas pelas doenças europeias, pela febre amarela e pela malária, as duas últimas trazidas pelos escravos africanos. O impacto foi menor nas áreas menos habitadas, como o Brasil, que contava com aproximadamente dois milhões e meio de indígenas na época da chegada dos portugueses, constituindo um território de ocu102 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

pação menos densa. Não esqueçamos que, no século XVII, na América do Norte britânica, os indígenas foram mortos ou expulsos e, se em 1700 três quartos dos habitantes eram de indígenas, em 1800 estes atingiam a cifra de apenas 3% da população. O desastre demográfico foi compensado com a imigração ibérica, com o aumento do número de mestiços e principalmente com a importação de escravos africanos: de 1525 a 1600, aproximadamente 75.000 escravos foram conduzidos à América espanhola e 50.000 à América portuguesa. O déficit de mão de obra – de 1,2% a 2,2% ao ano – levou esse número a atingir aproximadamente 1,3 milhões (830.000 para as Américas espanhola e portuguesa) no período compreendido entre os anos 1600 e 1700. Mas esse aporte não foi suficiente para que a América recuperasse suas cifras demográficas iniciais. Para isso foi mais importante o fato de que o potencial econômico americano aumentaria a longo prazo, graças aos novos cultivos trazidos da Europa e também aos animais, como cavalos e mulas, que proporcionaram uma maior capacidade de carga e de transporte. Ao contrário dos africanos, a população nativa americana não se incorporou à circulação demográfica, pois não houve tráfico de escravos das Índias para a Europa. Tal circulação se deu a partir da Europa e foi precedida de uma mobilidade intra-europeia, cujas causas obedeceram mais a padrões regionais do que globais. Antes de 1492, grupos de trabalhadores e de colonos eram obrigados a percorrer longas distâncias devido ao descompasso entre o crescimento da população e a oferta de trabalho em seus lugares de origem. Nesse caso não se tratava apenas da pressão populacional, mas do fato que as áreas migratórias se caracterizavam por um déficit laboral advindo de condições naturais, econômicas, demográficas e sociais específicas. As áreas de recepção eram sobretudo zonas agrárias de monoculturas, portos e grandes cidades que ofereciam mais oportunidades econômicas. Desse modo, a necessidade de emigrar variava de acordo com a área e dependia das relações entre a população e o território, a propriedade e o uso da terra, a produção agrária, os recursos industriais, o emprego e os salários, além de situações demográficas específicas. A Europa possuía 81,8 milhões de habitantes em 1500, 104,7 milhões em 1600, e, até 1700, não superara os 115 milhões, o que demonstra que a emigração para a América não esteve motivada pela pressão demográfica, mas pela escassez de destinos atrativos e pelo As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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interesse em obter lucros ou simplesmente melhores condições de vida. Por essa razão as migrações extra-europeias possuíam um alto índice de retorno, gerando uma intensa circulação entre os espaços. Espanha e Portugal enviaram pessoas à América muito antes do que o resto da Europa, diferenciando-se dos outros países europeus em razão de seu domínio colonial sobre o território que hoje constitui a América Latina e outras partes do continente. No caso espanhol, não foi um movimento imediato, pois a colonização das Antilhas, pretendida desde a segunda viagem de Colombo, foi dificultada pela dureza do clima e pela dificuldade em se conseguir ouro. Os Reis Católicos fomentaram a ida ao continente desde 1495, oferecendo terras, manutenção e outras facilidades para assegurar as atividades econômicas essenciais e limitar a mestiçagem, promovendo as viagens de artesãos, agricultores e de famílias. Além disso, foi imposta uma seleção aos povoadores, o que reservou a América aos súditos da Coroa de Castela, excluindo todos os súditos dos outros territórios hispânicos. Por essa razão, os reis estabeleceram a “licença de passagem”, controlada pela Casa de Contratação de Sevilha desde 1509, evitando que fossem para as Índias os mouros, os judeus, os convertidos, os condenados e, claro, os estrangeiros. No entanto, a necessidade de povoadores fez com que, a partir de 1511, as saídas fossem facilitadas e ocorressem campanhas de recrutamento, que foram rapidamente organizadas para as expedições de conquista ou para levar famílias de lavradores, fornecendo-lhes passagens, terras etc. Por outra parte, flexibilizou-se a passagem de estrangeiros, especialmente quando Carlos I25 abriu a América a seus súditos, ocasião que foi aproveitada pelos alemães para iniciar a colonização da Venezuela. Felipe II optou por limitar essa passagem novamente e manter o monopólio castelhano; seus sucessores adotaram diferentes resoluções (em um ou outro sentido) de acordo com as variadas circunstâncias. Em outras palavras, a viagem à América foi um movimento livre, mas não espontâneo, e a política migratória oscilou segundo as necessidades de cada momento. Os portos de saída – Sevilha e Cádiz– se transformaram em núcleos de atração de migração e envolveram os movimentos migratórios internos com os transatlânticos, de modo que a rápida criação de vias de comunicação e redes 25 NT: No Brasil, Carlos I de Espanha é mais conhecido como Carlos V (referindo-se ao fato de ser o quinto deste nome no trono do Sacro Império).

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de contato facilitou a expansão hispânica ultramarina. O resultado foi o estabelecimento de uma colonização que garantiu o predomínio metropolitano durante o período que aqui nos interessa. Quantos espanhóis se dirigiram à América e de onde eles provinham? As estimativas de M. Mörner (1975) continuam sendo respeitadas pelos historiadores: 250.000 no século XVI e 190.000 na primeira metade do XVII, com uma média de 2.584 pessoas por ano, número que aumentou de 1.235 no período compreendido entre 1506 e 1540 para 3.929 entre 1561 e 1600, com oscilações. O número máximo de viajantes foi alcançado no período compreendido entre 1601 e 1625, com 111.312 viajantes (4.452 por ano). No entanto, estes não são números alarmantes: Castela mandou, anualmente, quatro pessoas para cada dez mil de seus habitantes, apesar de que, ao tratar-se em sua maioria de homens jovens, a perda de potencial demográfico era maior, já que eles compunham aproximadamente um quinto da população. De 1625 a1640, a emigração decaiu, sendo que, na primeira metade do século XVIII, ela ainda era moderada, ou ao menos o número de pessoas que saíam por Cádiz era inferior ao do século XVI, alcançando aproximadamente dois mil ao ano. Além disso, entre meados do XVII e meados do XVIII produziu-se uma profunda mudança na origem dos emigrados, a qual passa do Sul ao Norte espanhol, feito que se consolidou até a emigração em massa dos séculos XIX e XX. A Espanha era um território pouco povoado em relação à sua superfície, mas cresceu muito de 1530 a 1591 – de 4,7 milhões de habitantes a algo entre 6 e 8 milhões em 1700, tendo suportado sem problemas a emigração à América durante o século XVI graças a uma produção agrária em ascensão, ao crescimento das cidades e a vívidas atividades comerciais e industriais. Mas em seu interior havia uma grande variedade de comportamentos demográficos, econômicos e sociais, que se traduziram em importantes diferenças nas zonas que enviaram emigrantes à América. Até meados do século XVII, a maioria dos viajantes que se dirigiam às Índias era de Andaluzia (em torno de 40%), Estremadura e Nova Castela (30%), sendo outros 20% de Castela, a Velha e Leão; o Norte apenas contribuiu com cerca de 5%. No mapa a seguir, quanto mais escura a cor maior o número de emigrantes. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Mapa 1: Emigrantes de Espanha à América

No entanto, essas grandes regiões migratórias receberam durante esse período uma intensa imigração de substituição, protagonizada por homens das regiões ao norte. As áreas migratórias se caracterizavam por possuir um habitat concentrado e por serem as mais urbanizadas da Espanha, tendo uma economia agrícola de latifúndio e grandes plantações, um modelo familiar nuclear e um sistema igualitário de transmissão das heranças. A forte crise do século XVII, em especial da população urbana de Andaluzia e das Castelas, paralisou a emigração dessas regiões para a América. O norte, ao contrário, se incorporou paulatinamente à emigração ultramarina: se tratava de uma área pouco urbanizada, de economia agrícola em pequenas propriedades e policultura, modelo familiar de tamanho maior e um sistema de heranças desigual, que sofria um problema de relativa superpopulação. A partir de 1650, a introdução do milho nas plantações provocou um intenso crescimento e consolidou a emigração como um recurso necessário para completar a renda familiar e liberar o excedente demográfico. Uma pequena parte dos que foram para a América eram conquistadores, funcionários e clérigos. Em sua maioria eram castelhanos, mas pouco se sabe sobre eles. O que está mais claro é que eram, em grande parte, provenientes dos centros urbanos e que a participação da área 106 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

rural foi escassa até o século XVIII. Não era fácil dirigir-se à América por conta própria: as viagens transatlânticas estiveram limitadas pela capacidade de transporte dos navios da “Carreira da Índia”, pela dificuldade dos procedimentos administrativos e pelos custos envolvidos. Isso favoreceu a ação dos recrutadores, que possibilitavam a participação das pessoas em expedições em troca de pagamentos futuros por parte dos emigrados. Sessenta e cinco por cento dos que saíram de maneira legal aparecem nos registros oficiais como criados, mas, na realidade, muitos eram viajantes que tiveram sua travessia paga a crédito por seus amos. As limitações também favoreceram a emigração clandestina: relatórios e licenças eram falsificadose os capitães e as tripulações dos navios colaboravam nos embarques ilegais, apesar das duras penas previstas em sucessivas leis publicadas desde 1552. A presença ilegal na América, especialmente a de estrangeiros, foi regularizada pela monarquia em muitas ocasiões, por meio de negociações e pagamentos. Uma das características do caso hispano é a enorme mobilidade dos espanhóis na América em busca de novas oportunidades. Outra, foi a emigração familiar, modesta na primeira metade do século XVI, mas intensa na segunda. Uma lei de 1497, dos Reis Católicos, favoreceu a presença de mulheres e, a partir de 1513 – especialmente a partir de 1546 –, a Coroa obrigou os homens casados a levarem suas mulheres ou a mandarem buscá-las quando já estivessem neste lado do Atlântico. Isso foi repetido em 1549 e em 1681. Em 1539, Carlos V proibiu a viagem de mulheres solteiras, com exceção daquelas destinadas a casar-se com colonizadores, proibição que foi confirmada por Felipe II. A viagem de famílias inteiras é muito importante para explicar a concentração de imigrantes em certas áreas da América. Em geral, as que provinham de regiões ou localidades espanholas se instalavam nos mesmos lugares, o que serviu para a criação de redes de relacionamento, de inserção e de ajuda. As famílias também foram essenciais para organizar a sociedade americana segundo o modelo metropolitano, já que elas levaram a lei e o sistema familiar castelhano. Por seu lado, as mulheres levaram valores sociais e morais, além de traços da cultura material. Estima-se que 1.153 mulheres foram para a América entre 1493-1539 (cerca de 6% do total de pessoas que vieram), 1.480 entre 1540-1559 (16,4%), 5.013 entre 1560 e 1579 (28,5%), 2.472 entre 1580 e 1599 (26%), 5.764 entre 15981621 (30,5%) e, em seguida, a proporção caiu: em 1765 elas eram apeAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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nas 15,8%. Entre 1540 e 1579, cerca de metade das mulheres migradas eram da Andaluzia, sendo que entre 1580 e 1621 elas eram por volta de 60%; Nova Castela contribuiu com cerca de 14% a 17%; Estremadura em torno de 14%, enquanto que Castela, a Velha, e Leão passaram de 16,4% em meados do século XVI a somente 3% no final do século. Essas mulheres eram em sua maioria urbanas, casadas ou viúvas – apesar de viajarem acompanhadas de muitas meninas –, sendo que muitas delas aparecem nos registros como empregadas. Uma parte significativa delas não prosperou devido à abundância da oferta de serviço doméstico local e à falta de outras oportunidades. No século XVIII, o número de saídas legais – e clandestinas – aumentou e os fatores de expulsão atuaram com mais claridade: o preço relativo ao dia de viagem diminuiu – mais intercâmbios, melhores formas de financiamento –, as redes migratórias funcionavam ativamente e o Estado revitalizou a colonização de regiões americanas importantes do ponto de vista econômico ou militar. Em 1765, a emigração era quase só de homens, dos quais aproximadamente 80% eram solteiros e em grande proporção procedentes dos territórios rurais do norte espanhol. O modelo de migração familiar foi pouco frequente, exceto nas expedições de colonização levadas a cabo desde o final do século XVII e ao longo do XVIII. Nestes casos, as famílias eram originárias principalmente das Ilhas Canárias: a demanda por colonos na América e a superpopulação dessas ilhas motivou, em 1678, a permissão para que delas saíssem, a cada ano, até cinco famílias para cada cem toneladas de mercadoria. Foi o chamado direito de famílias, suprimido em 1764. Em suma, a circulação migratória no Atlântico havia mudado de maneira bastante clara se comparada ao período da conquista. Quanto a Portugal, devemos ter em mente que era um pequeno país que, em 1500, possuía apenas um milhão de habitantes. No censo de 1527-1532, havia 1,4 milhão; no século XVI, a população do país cresceu rapidamente e, depois da crise que ocorreu no final desse século, continuou crescendo até 1610-1619. Posteriormente, entrou em uma fase de estagnação, que ocorreu mais cedo e com mais força no sul do que no centro e no norte. Em 1640, possuía 1,9 milhão de habitantes e 2 milhões em 1700, voltando a crescer novamente na primeira metade do século XVIII até atingir 2,6 milhões em 1760. Mesmo antes de 1500, um número significativo de portugueses deixou seu país à medida que 108 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

novos territórios eram descobertos; desde o século XV e ao longo do XVI, eles chegaram às ilhas do Atlântico, ao norte da África, ao Golfo da Guiné, aos portos da África oriental, Ormuz, Índia, Malásia, China e Timor. Na África, desde 1520 havia colonos não oficiais – contabilizados –, sendo que, no fim do século XVI, muitas pessoas que ocupavam cargos importantes em Senegâmbia, Guiné e Cabo Verde estavam casadas com africanas. Não se tratava de um verdadeiro assentamento, mas eram claramente portugueses ali residindo de forma estável. Por outro lado, estima-se que os navios que passaram pelo Cabo da Boa Esperança em direção à Ásia entre 1500 e 1599 transportaram mais de 198.000 portugueses, dos quais nove por cento não chegaram ao seu destino. Retornaram 121.767, mas somente chegaram à Europa 105.305. Ou seja, somente regressaram 53%, e no século XVII, 44%, já que foram 132.343 e voltaram 58.711. Assim, ao contrário da Espanha, Portugal enviou pessoas para outros destinos, sendo possível afirmar que a emigração representou um caráter estrutural da sua população. No século XV ela se deu em razão da escassez de empregos, dos reduzidos ganhos dos trabalhos e da falta de cidades consumidoras. Também se deve levar em conta o fator de atração que exerceu a América, assim como ocorreu no caso espanhol. No entanto, Portugal demorou a começar a ocupação do Brasil, pois não era fácil encontrar colonos dispostos a migrar, de modo que, no início, o contingente dos que vieram era composto em boa parte de exilados ou degredados. As condições no Brasil não eram favoráveis ao assentamento devido aos ataques de índios – especialmente depois que a relação relativamente pacífica com os indígenas, correspondente ao período das feitorias (1502-1534) e anterior à uma ocupação mais estável, foi quebrada –, à incômoda presença dos franceses e à baixa rentabilidade do território. Sendo assim, a ocupação mais efetiva do território foi adiada até o período das Capitanias Hereditárias (1534). Quando o cultivo de açúcar foi iniciado, a necessidade de mão de obra tornou-se grande e as únicas soluções eram fornecer facilidades de assentamento – a doação de terras para a criação de engenhos, por exemplo – ou a compra de escravos, uma prática iniciada por Duarte Coelho em troca das mercadorias europeias que este trazia para vender no Brasil. No entanto, os índios representavam um tipo de mão de obra pouco produtiva e sua escravidão agravou a situação, levando a rebeliões em 1545 e no ano As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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seguinte. A reorganização dos índios em aldeias, que foi confiada aos jesuítas, favoreceu a expansão das infecções – como em 1562, por exemplo. Por isso, desde 1560 recorreu-se à importação de negros africanos em grande escala: em 1577, eles já eram a maioria em alguns engenhos de açúcar e, em 1580, perfaziam um terço dos escravos de Pernambuco. A ocupação até então se manteve nas áreas costeiras, os núcleos urbanos eram pequenos e pobres, com pouca população branca. As tentativas levadas a cabo pela Coroa ao final do século XVI para fixar os índios perto das populações colonizadoras fracassaram. Por outro lado, não era fácil para os brancos o matrimônio com as europeias devido à escassez destas, razão pela qual predominaram as relações pessoais consideradas irregulares. Houve a falta de um modelo familiar ao estilo castelhano que favorecesse a estabilização. Quantos portugueses emigraram no século XVI? Considerase que houve entre duas mil a cinco mil saídas anuais em direção ao leste, Marrocos, Brasil e império hispânico; especialmente para os dois últimos no final do século XVI e começo do XVII. A taxa de migração é estimada em 0,3% ao ano entre 1527 e 1640, semelhante à taxa de crescimento demográfico nesse período. Em 1620, o litoral já estava dominado e iniciou-se o avanço ao interior, trazendo como efeito a diminuição da população costeira. Por outro lado, a emigração para a América foi reduzida para 0,15% em 1640-1700 devido à diminuição da população portuguesa, que se deu em razão da guerra com a Espanha (1640), e das menores perspectivas econômicas no Brasil. No século XVII, os imigrantes se concentravam na zona açucareira do nordeste (Pernambuco e Bahia). Desde fins do século XVI e até o XVIII, certa urbanização foi produzida, resultante da organização administrativa do espaço – a Bahia, por exemplo, passou de 14.000 habitantes em 1585 para 25.000 em 1723. A contribuição portuguesa era insuficiente para as necessidades laborais brasileiras, de modo que aproximadamente quinhentos mil escravos africanos foram importados no século XVII. Uma nova leva da emigração portuguesa resultou da descoberta de ouro e diamantes no Brasil. Nas primeiras décadas do século XVIII, estima-se que viajaram, anualmente, de oito a dez mil pessoas, tendo a taxa migratória subido para 0,4% na primeira metade do século, a mesma taxa de crescimento da população em Portugal. Nessa nova fase, os emigrantes se dirigiram para o Rio de Janeiro e para São Paulo 110 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

– que atingiram, respectivamente, uma população de 40.000 e 20.000 pessoas em 1750 – e especialmente Minas Gerais. O boom da mineração fez com que Portugal perdesse uma quinta parte de sua população jovem do sexo masculino, levando a Coroa a tentar controlar o fluxo com uma legislação restritiva, a qual visava a aumentar a população e a oferta de mão de obra em Portugal. Estas tentativas não lograram êxito. De qualquer maneira, a imigração portuguesa foi cada vez menos suficiente e a exploração de ouro em Minas Gerais precisou cada vez mais de mão de obra africana em regime de escravidão. A partir de 1699 o comércio negreiro foi liberado e até 1750 o crescimento da população escrava atingiu seu auge, com cerca de 1,7 milhões de pessoas. Tal como no caso espanhol, as migrações portuguesas oscilaram em função das flutuações econômicas e de circunstâncias estruturais regionais e mesmo locais, as quais se combinaram às mudanças, à dinâmica geral e aos fatores de atração – os descobrimentos, a abertura do império castelhano depois da união entre Portugal e Espanha, o ouro brasileiro. O fluxo para o Brasil reflete as diferenças regionais de crescimento e o contraste entre regimes demográficos e mecanismos de reprodução social diferenciados dentro de Portugal. Aqueles que foram para as Índias na primeira metade do século XVI provinham de todas as regiões. No último terço do mesmo século, contudo, houve maior afluxo da região noroeste da península ibérica. Em 1590, por exemplo, é possível verificar que 59% vinham do norte do Portugal continental, do Minho acima de tudo, e menos de dez por cento do sul do rio Tejo. Desses, constatou-se que 70% eram cristãos velhos. O porto era Lisboa, que atuava, tal qual Cádiz no caso espanhol, como elo de ligação entre Portugal e as colônias. O Brasil mineiro atraiu homens jovens que possuíam a intenção de voltar ricos depois de vários anos. Isso respondia a uma estratégia familiar de emprego de trabalho, de mobilidade social e de reprodução familiar, na qual o filho emigrante havia sido formado para cruzar o Atlântico e levantar recursos. Deve-se levar em conta que o sistema de herança, essencialmente igualitário, era o mesmo desde a Idade Média, mas praticava-se em benefício de apenas um filho. Esta era a chave do sistema familiar do noroeste português para garantir as condições materiais de reprodução intergeracional das famílias camponesas, de modo que eram os segundos filhos que possuíam a necessidade de emigrar. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Fora da Península Ibérica, o dinamismo de determinadas regiões europeias motivou movimentos migratórios derivados do impacto colonial. Na costa noroeste – especialmente nos Países Baixos – a atividade comercial e industrial gerou, a partir do início do século XVII, um polo de atração de imigrantes da Alemanha, da Bélgica, do interior dos Países Baixos e da França. O sistema se desenvolveu ao mesmo tempo em que as estruturas do império colonial holandês adquiriam firmeza, e a criação da Companhia das Índias Orientais (VOC) em 1602 e das Índias Ocidentais (WIC) em 1621 precisou de muitas pessoas a seu serviço. Milhares de marinheiros estrangeiros se alistaram nos navios mercantes ou nos navios de guerra que construíram o império comercial holandês. Cerca de um milhão de pessoas passaram pelo sul da África em direção ao oceano Índico nos séculos XVII e XVIII. Uma parte significativa destas eram funcionários holandeses da VOC: no século XVII, 317.800 homens, dos quais retornaram 102.300 (32%); no século XVIII, foram 655.200 homens, retornando 220.200 (34%), devido à alta mortalidade. A emigração para a América era diferente: estima-se que, em dois séculos, a Holanda contribuiu com uma emigração líquida de cerca de dez mil pessoas – a WIC possuía no Brasil em 1639 cerca de dez mil funcionários, mas apenas quatro mil em 1642 – já que o retorno era muito frequente. O movimento das ilhas britânicas foi mais tardio. No século XVI, foi insignificante, mas, entre 1580 e 1640, o crescimento demográfico permitiu suprir o pessoal necessário para as empresas marítimas inglesas. Os fatores econômicos e sociais se misturaram com outros em determinados momentos: aqueles que emigraram para a Nova Inglaterra na década de 1630 – cerca de 21.000 em doze anos – o fizeram em família, sob motivos religiosos, embora muitos fossem artesãos urbanos e jovens solteiros em busca de uma nova vida. Estima-se que no século XVII foram para a América cerca de 300.000 pessoas, que eram em grande parte servants26– 23,3% eram mulheres –, em sua maioria ingleses; no século XVIII foram também escoceses e irlandeses, sendo que a porcentagem de mulheres entre os servants caiu para 9,8%. No total, para as Índias Ocidentais iriam aproximadamente 190.000 pessoas, a 26 NT: Tais servos ou serviçais eram usados, na Inglaterra, majoritariamente no serviço doméstico. Na América, a tendência ao trabalho nas lavouras e demais afazeres fora da casa aumentou consideravelmente.

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maior parte antes de 1660 – incluindo os 21.000 dos anos trinta. Na primeira metade do século XVIII, o fluxo é de cerca de 50.000 à América e de 20.000 às Índias Ocidentais. Dos escoceses, 7.000 foram entre em 1650 e 1700 e 33.000 entre 1700 e 1760. A partir de 1630 também emigraram irlandeses: em 1678 havia 3.466 deles nas ilhas de Nevis, Montserrat e São Cristóvão, em Barbados. Deve-se acrescentar entre 70 e 100 mil alemães na América britânica e cerca de 27.000 pessoas na América francesa, um terço no Canadá e o restante em Louisiana. A importação de escravos africanos constituiu uma parte essencial da ocupação a partir de 1625/1650, tanto no continente quanto no Caribe. No total, antes de 1800, a Europa mandou à América aproximadamente um milhão de espanhóis e meio milhão de portugueses; a migração britânica ao Caribe pode haver atingindo o número de 250.000 pessoas entre 1.630 e 1.780 e, se incluirmos os franceses e holandeses, o número de pessoas que chegou à América pode atingir dois milhões. Mas estes números são muito mais baixos se comparados aos milhões de escravos levados da África. Estes sofreram com uma elevada taxa de mortalidade e uma menor capacidade de reprodução, devido à dificuldade de formar famílias e ao fato de que mais de três quartos deles eram homens. A emigração para a América não implicou em perda de população para a Europa, assim como não foi a riqueza enviada da América que causou o crescimento da população europeia no século XVI. A razão deste foi o aumento da produção agrícola, assim como a expansão da indústria e do comércio. Independentemente disso, o impacto das espécies americanas adaptadas na Europa, especialmente o milho e, mais tarde, a batata, foram essenciais para os europeus que nunca emigraram: esse foi, sem dúvida, o resultado material mais importante do contato com a América. Muito além dos números, os europeus aproveitaram o vazio demográfico criado pela mortalidade dos índios para desenvolver a agricultura europeia, a mineração e a pecuária extensiva. Eles também levaram a cultura material e doméstica de seus lugares de origem, embora seus assentamentos costumassem seguir as dinâmicas dos diferentes grupos, de modo que não houve um modelo único ou geral. Desse modo, os espanhóis, por exemplo, diferentemente de outros colonizadores, vinham de cidades e se estabeleceram em cidades, ou as criaram de As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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acordo com suas necessidades administrativas, econômicas ou de comunicação, o que lhes permitiu um domínio territorial de maior alcance se comparado ao obtido pelos portugueses. Finalmente é necessário enfatizar que o Atlântico foi palco de inúmeros retornos, motivados pelo sucesso ou pelo fracasso econômico. Além disso, as informações que conhecemos sobre esta movimentação de pessoas provêm de documentos oficiais. Dessa maneira, não é possível calcular a emigração real, pois toda a migração ilegal e clandestina fica de fora dos documentos oficiais. Por último, devemos salientar que os movimentos foram oscilantes e dispersos em seu comportamento, de modo que não se pode falar de um modelo global, mas de muitos modelos regionais.

A circulação de bens nas regiões ibéricas do Atlântico É muito difícil diferenciar a circulação de pessoas da circulação de bens, pois são as necessidades e os interesses dos seres humanos que explicam a produção – ou a extração – de bens, sua difusão e sua movimentação. Podemos distinguir vários tipos de movimento de acordo com a natureza dos produtos mobilizados – agrícolas, industriais –, mas, aqui, nos importam mais as diferenças entre aqueles que geraram impacto com pequenas quantidades e aqueles que, ao não se adaptarem no espaço consumidor, geraram uma intensa circulação. O primeiro movimento teve o efeito de transformar as áreas receptoras sem movimentar grandes números: o exemplo mais claro é o dos cereais (trigo, em especial) e o das espécies animais (especialmente o gado) levados pelos espanhóis à América e, sobretudo os que passaram da América para a Europa, especialmente o milho e, muito mais tarde, a batata, cuja implantação no Velho Mundo modificou o sistema agrícola daquele continente. Nesses casos, a transferência entre continentes foi feita em pouca quantidade, mas sua adaptação permitiu a resolução de problemas de alimentação em grandes áreas, formando parte dos sistemas econômicos atuais. O segundo movimento, responsável por produzir uma verdadeira circulação, é o que nos interessa. Trata-se dos produtos levados pelos europeus a outras regiões e que, uma vez adaptados, produziam maiores quantidades a preços mais baixos – a cana-de-açúcar é o mais 114 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

significativo deles, havendo mais tarde o café e algodão –, e aqueles que, uma vez “descobertos” e incorporados ao gosto dos consumidores europeus, foram impulsionados nessas outras regiões para cobrir uma demanda crescente: o tabaco é sem dúvida o mais importante deles. Assim, o contato gerou impactos diferentes de acordo com esses dois tipos de movimento, mas sua explicação não é simples, pois a cronologia e os ritmos de circulação se sobrepõem em determinados momentos e acabam sendo consecutivos, em razão de que os consumidores queriam cada vez maiores quantidades a preços reduzidos, levando a mudanças das zonas produtoras com certa rapidez. A esse modelo correspondem os produtos agrícolas, mas, no caso dos metais, é necessário ajustá-lo, uma vez que as modificações nas áreas de produção reagiram principalmente à localização das jazidas e seu esgotamento. Além disso, não devemos esquecer que, dentre os bens que circulavam entre a América e a Europa, não se encontravam as especiarias, a que os europeus estavam acostumados desde a Idade Média. As especiarias asiáticas continuaram sendo muito importantes na circulação e acabaram por integrar a América em seu mercado consumidor, de modo que, para pôr em contato consumidores e produtores, os circuitos ficaram cada vez mais complexos e foram submetidos ao gosto dos primeiros. Obviamente, muito acima de qualquer outro produto, eram os metais, principalmente o ouro, os bens que os europeus realmente procuravam fora de seu continente, sendo o elemento econômico que fez funcionar a mecânica comercial globalizada.

Os metais A produção e o comércio de metais constituem o tema que mais tem interessado os historiadores, pois era com tais produtos que se pagavam todos os demais bens e se facilitava a circulação. A produção da prata na Europa viveu um notável desenvolvimento desde a metade do século XV, mas seu preço era elevado. Uma série de melhoras técnicas na sua extração reduzira os custos de produção. Isso somou-se a um boom mineiro na Europa central, permitindo que a prata abundasse. No entanto, foi o ouro que induziu os europeus a buscá-lo fora de seu continente. Os primeiros a fazê-lo foram os portugueses, que conquistaram As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Ceuta (1415) e outros núcleos situados no Marrocos, Madeira (1419) e Açores (1431). Apesar de não se haver encontrado o metal nessas ilhas, a tomada de Ceuta foi de grande importância, pois modificou o comércio mediterrâneo do ouro e permitiu a Portugal cunhar moedas a partir dele. Os portugueses encontraram ouro logo depois em Serra Leoa e, sobretudo, em São Jorge da Mina (Costa do Ouro): o montante encontrado no Rio do Ouro intensificou as ambições e induziu Portugal a solicitar ao Papa, em 1455, a exploração exclusiva desses territórios, o que lhe foi concedido. Para atender ao negócio aurífero foi criada em 1509 a Casa da Mina. Entre 1504 e 1507 chegaram à metrópole mais de quatrocentos mil quilos desse metal, cifra reduzida a 371.578 quilos em 1543-45. Durante esse período, Portugal desviou a seu favor o ouro do Magrebe e do Mediterrâneo, o que foi feito posteriormente também com as Índias Orientais. No entanto, a Espanha substitui Portugal na corrida pela obtenção do ouro e da prata. Os espanhóis procuraram o primeiro desde a sua chegada à América, encontrando-o em São Domingos, Porto Rico e Cuba. Num primeiro ciclo, compreendido entre 1494 e 1525, tratava-se de ouro de aluvião, mas logo foram encontrados os tesouros acumulados pelos incas e pelos astecas. As cifras não são exatas e os cálculos variam segundo os historiadores, mas acredita-se que, de 1503 a 1510, foram levados à Espanha 4.950 quilos de ouro; 9.153 quilos entre 1511 e 1520; e 4.899 quilos entre 1521 e 1530. Apesar disso, a produção da prata foi maior e mais significativa, em razão do descobrimento de minas no Peru (Potosí) em 1545 – as quais superaram qualquer previsão – e no México (Zacatecas, Guanajuato), em funcionamento entre 1546 e 1556. Essa produção crescente foi combinada com a mita – um sistema de trabalho que assegurava o fornecimento constante de mão de obra – e a amálgama, uma melhoria técnica aplicada no México entre 1559 e 1562 e no Peru entre 1570 e 1572. Essa técnica foi desenvolvida inicialmente apenas com o mercúrio levado da Espanha (das minas de Almadén) até o descobrimento das minas de Huancavélica, cuja produção, apesar de tudo, não era suficiente – aproximadamente 215 toneladas anuais –, obrigando a América a importar 363 toneladas anuais de mercúrio da Espanha. Desse modo, produziu-se uma dupla circulação, a qual era bastante desigual, sendo contrária aos interesses da América e benéfica para a 116 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Europa, que em troca dos metais enviava manufaturas por meio de um regime comercial pautado no monopolismo. No total, a produção americana de metal foi calculada por E.J. Hamilton (1934) em 263,9 toneladas de prata entre 1503 e 1550, subindo para 7.175 toneladas entre 1551 e 1700; e, de ouro, foram outras 58,4 a 95,1 toneladas de ouro nos mesmos períodos. No entanto, menos importante do que os números foram os efeitos econômicos da chegada massiva de metais à Europa, fosse por meios legais ou fraudulentos. Independentemente de saber se a maior parte dos metais ficou na América e se a sua chegada à Espanha gerou a inflação dos preços – duplicados entre 1500 e 1550 e quadruplicados no período compreendido entre 1500 para 1600 –, o fato é que a abundância dos metais assegurou a circulação monetária em um período pouco dinâmico para a economia. Além disso, graças ao pagamento, feito à Coroa, da quinta parte das negociações realizadas pela Casa de Contratação, os metais garantiram à monarquia espanhola uma fonte de dinheiro que lhe permitiu sua expansão e a manutenção da guerra permanente na Europa, que sob Felipe II gerou um forte endividamento. Do ponto de vista comercial, os comerciantes iam a Sevilha para vender seus bens e para fazer seus negócios com a Espanha e a América em troca de metais, de modo que uma grande parte destes se dirigiu à Europa para manter o comércio e expansão transoceânica. Outros efeitos indiretos também devem ser ressaltados: a mineração prolongou a ação dos núcleos urbanos mineiros sobre o território americano, sendo necessário reorganizá-los para que pudessem se relacionar com as regiões agrícolas e os portos. Isso ocorreu no México com Guanajuato e com Zacatecas, e no Peru com Potosí, que se ligava às regiões litorâneas, conectando-se com a Espanha via Arequipa, Lima, Panamá ou Buenos Aires. No Brasil os portugueses não encontraram metais nessas proporções. Mesmo no século XVII, o ouro obtido das minas – mesmo que cunhado – não desempenhou um papel decisivo nas variações do estoque monetário do império. No entanto, quando o ouro das Gerais foi descoberto – a princípio nos rios e posteriormente nos filões – sua extração e exploração chegou a substituir o açúcar em valor econômico. Em 1699, chegaram a Lisboa 725 kg desse metal; em 1701 foram 1.785

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kg; 9.000kg em 1714; 25.000kg no ano de 1720; 20.000 kg em 172527. Embora de modo irregular, a extração de ouro aumentou até a metade desse século. De 1700 a 1750 foram recebidas em Portugal entre 490 e 510 toneladas, alcançando-se o máximo entre 1735 e 1750, sem contar com o ouro que se perdia nas fraudes. Apesar desse irresolúvel problema, a partir de 1695 os dificuldades monetárias da metrópole foram resolvidas, pois a Coroa recebia um quinto dessa produção, além de outras taxas, de modo que Lisboa, a capital do império, tornou-se uma das cidades europeias mais ricas. Uma parte dos gastos era feita no Brasil, não nas minas, nas quais os investimentos eram realizados pelos “mineiros latifundiários”, mas para pagar com o ouro a maior parte das importações – a proibição de manufaturas na colônia era o que compensava o ouro. Por meio das importações estrangeiras, como acontecia com os tesouros espanhóis, o ouro brasileiro chegava à Holanda, à França, ao Mar do Norte e Báltico, inclusive à Espanha. Em suma, M. Morineau (1985) calculou que, em toneladas, as quantidades que foram levadas de ouro e prata da América para a Europa foram, respectivamente, 150 e 7.500 no século XVI; 158 e 26.168 no século XVII; 1400 e 39.157 no XVIII. Mas esses metais fluíram também para fora da Europa: a rota do Cabo, pelo sul da África, era um dos caminhos principais desse fluxo em direção ao oriente; os outros eram o Mar Báltico, em direção à Rússia e à Ásia central; rumavam ao Levante, pela via do Golfo Pérsico, e, pelo Mar Vermelho, em direção à Índia. As exportações de ouro e prata a partir da Europa ocidental em direção ao Báltico foram de 2.475 toneladas na primeira metade do século XVII e 2.800 na segunda, constituindo também um número significativo na primeira metade do século XVIII. Ao Mediterrâneo oriental chegavam cerca de 2.500 toneladas por meio de cada uma dessas rotas; da Holanda para a Ásia, 425, 775 e 2.200 toneladas, respectivamente, e da Inglaterra para a Ásia, 250, 1.050 e 2.450. O Japão possuía prata, mas esta também chegava da América à Ásia pela rota Acapulco-Manila. Entre 1550 e 1560, a China recebeu 2.244 toneladas de prata do Japão, das Filipinas e dos portugueses de Macau, tendo recebido desses mesmos países 2.835 toneladas entre 1600 e 1640; 1.694 toneladas entre 1641 e 1685 – principalmente do Japão –, e até fins do século XVII apenas 178 tonela27 Desde 1730, a prata e os diamantes se uniram ao ouro.

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das, quase que exclusivamente vindas das Filipinas. Ou seja, os metais americanos converteram-se no fio condutor da economia geral, servindo para pagar os outros produtos que circulavam no mundo conhecido.

O açúcar Devido a sua importância econômica, há uma extensa bibliografia que explica com clareza que, devido à falta de especiarias, foi essencial para os europeus localizar na América terras em que pudessem cultivar com êxito a cana-de-açúcar, produto cuja demanda nos mercados europeus, especialmente nos do noroeste, era cada vez mais importante. Antes de 1492 existia uma produção de açúcar nas zonas do Mediterrâneo, negociada, sobretudo, pelos portugueses, já que estes se haviam transformado nos distribuidores desse e de outros produtos destinados às elites europeias, especialmente daquelas pertencentes às cidades comerciais do noroeste. Desde 1415, Portugal possuía um comércio organizado com o norte da Itália e o noroeste europeu (Flandres), no qual Lisboa era um núcleo essencial e o açúcar desempenhava um importante papel. O cultivo da cana foi fundamental para o Chipre, ilha que produzia cerca de 880 mil toneladas por ano em 1456. Nessa altura, os portugueses se limitavam a comercializar a cana, mas a descoberta das ilhas atlânticas – Madeira e São Tomé – propiciou-lhes as terras onde cultivar o produto, de modo que, em meados do século XV, Madeira já produzida aproximadamente oitenta toneladas anuais, atingindo em torno de 2.500 toneladas em 1500, enquanto o Chipre reduziu sua produção para 375 toneladas e entrou em uma crise definitiva. Posteriormente, os espanhóis levaram a cana para as Ilhas Canárias. Tanto nessas ilhas como naquelas dominadas pelos portugueses, a cana mudou a paisagem, causou desmatamentos e seu cultivo exigiu crescentes aportes de mão de obra – fosse de colonos ou escravos –, mas seus modelos de exploração e de comercialização foram diferentes. Nas Ilhas Canárias, a cana definiu uma economia específica e modificou as estruturas sociais ao ter como base a exploração direta – concentração de terras e águas – e uma legislação rigorosa sobre a comercialização, cujo fim era garanti-la nas melhores condições. Em troca, a monarquia concedeu isenções fiscais As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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e franquias, favorecendo também a instalação de colonos. A comercialização não sofreu muitas intervenções, sendo que nas Ilhas Canárias foi permitida a presença de comerciantes nacionais ou estrangeiros – flamencos e genoveses. Na Madeira, a legislação se centrava nas safras e nos engenhos, talvez por causa da autonomia do município no século XVI e da participação dos governantes. No caso português, é importante notar que a expansão do cultivo de cana, o processamento de açúcar e seu transporte precisaram de mais capital do que o disponível e que esse dinheiro veio da Alemanha, Itália e dos Países Baixos. Essa intervenção foi facilitada porque Portugal sofria, então, de uma insuficiência de cereais, particularmente grave na segunda metade do século XVI, o que obrigou o país a importá-los do Mediterrâneo e, quando este não pôde mais garantir seu fornecimento, teve que recorrer à região do Báltico. Em contrapartida, Portugal exportava sal para peixarias nórdicas, assim como as especiarias asiáticas e o açúcar. Os Países Baixos eram o epicentro deste comércio e Antuérpia era o principal centro de redistribuição: basta dizer que, entre 1535 e 1551, chegaram a esse porto 342 navios portugueses, carregados, sobretudo, de açúcar da Madeira e de São Tomé, embora o valor econômico das especiarias fosse maior. Portugal possuía outra rede com a Liga Hanseática28 e negociava também com a Inglaterra, mas, de modo geral, o tráfego direto em nessas áreas era escasso. Na segunda metade do século XVI, Antuérpia foi abalada por problemas religiosos e políticos, o que dirigiu o peso econômico que ela desfrutava para Amsterdã. Desde então, a rota de Portugal em direção ao norte e ao Báltico beneficiou cada vez mais os holandeses, franceses e alemães, entre outros. Com isso, a dependência dos portugueses frente aos poderosos capitalistas do norte interferiu no comércio geral português, especialmente no do açúcar, cuja demanda cresceu ao longo do século XVI conforme melhorava a situação econômica do noroeste europeu e as classes urbanas poderosas passavam a demandar o produto com maior intensidade. Foi nesse contexto que o cultivo da cana foi levado ao Brasil, embora a produção para os mercados europeus começasse apenas por volta de 1550. Em 1570, o domínio do açúcar brasileiro era claro, devido 28 NT: Associação de cerca de 100 cidades mercantis alemãs ou sob influência germânica, tendo Lubeck como centro, que tinha forte influência ou mesmo o monopólio comercial do Norte da Europa e Báltico desde o período medieval.

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em grande parte ao estabelecimento de um sistema de escoamento. Em 1580, a Madeira produzia apenas 500 toneladas por ano, ao passo que São Tomé produzia 2.200 e o Brasil 2.300. Em 1612, este último produzia cerca de 9.900 toneladas anuais, tornando-se o principal fornecedor da Europa por meio dos 150 navios que a cada ano partiam de Portugal ao restante da Europa. O número de engenhos de açúcar abertos ao redor de lugares navegáveis – especialmente na Bahia de Todos os Santos – nos fornece uma ideia da crescente importância da produção: em 1570 havia cerca de 60; entre 1583 e 1585 esse número elevou-se para 121 (84% em Pernambuco e na Bahia); até 1610 eram 192 engenhos, alcançando 350 entre 1612 e 1629. Nesse contexto, o açúcar brasileiro alterou o mercado atlântico e conseguiu dominá-lo até 1630, apesar de passar por um período politicamente turbulento e muitos obstáculos. Que condições permitiram atingir tal nível e domínio? Vitorino Magalhães Godinho (1981) voltou-se para a semelhança entre a evolução da produção açucareira no Brasil e a conjuntura econômica e demográfica na Europa, a qual passou por períodos positivos entre 1534-1545 e 1551-1575 e negativos entre 1551 e 1576-1581, que, ainda assim, não prejudicaram a demanda pelo açúcar. Tais circunstâncias foram aproveitadas de várias maneiras: A) Pelos portugueses: o cultivo de açúcar no Brasil foi fundamental para a colonização do território e para a instalação do Governo Geral (1550-1580). Fixou-se um sistema comercial que não era livre, pois havia restrições quanto ao transporte, mas não era monopólio da Coroa portuguesa, nem mercantilista em sua filosofia. B) Pelos setores mercantis: a partir de meados do século XVI, combinou-se o capital para o cultivo da cana em áreas do litoral brasileiro à participação de navios estrangeiros para escoar a crescente produção. Era uma questão imperial caracterizada pela mobilidade dos mercadores e de seu capital em um sistema cooperativo e de correspondência. Um grande número de comerciantes do noroeste da Europa, radicados em Portugal, e de portugueses radicados no noroeste da Europa, superaram as barreiras institucionais e políticas impostas ao comércio, o que permitiu a este perdurar até 1630. De 1550 a 1630 as cidades do norte - Amsterdã especialmente, mas também Hamburgo e Antuérpia - viram suas fortunas aumentarem graças à redistribuição do açúcar brasileiro, da qual controlavam 75%, já que os mercados encontravam-se As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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naquela região. Em Portugal, os níveis de comercialização em Lisboa, Porto e Viana também se beneficiaram, embora fossem muito sensíveis às mudanças políticas e militares. A comunidade de cristãos novos de Amsterdã desempenhou um papel importante, mas os circuitos mercantis do açúcar dependiam menos de uma filiação racial ou religiosa do que dos circuitos de comércio. A empresa familiar era a unidade básica desse comércio e as famílias comerciantes mais prósperas possuíam membros em vários centros, cooperando umas com as outras em redes de enorme força. As complicações para a produção açucareira no Brasil apareceram em vários momentos; mesmo assim, o país manteve seu domínio durante um longo período. O primeiro problema se deu com a ruptura entre os Países Baixos e a Espanha – à qual Portugal estava vinculado desde 1580 – e com a transferência do poder econômico de Antuérpia a Amsterdã. Os comerciantes portugueses se mudaram para essa próspera cidade, mas não lograram evitar o aumento do contrabando, resultante do embargo imposto pela Espanha à Holanda. Com isso, um comércio bem estabelecido foi declarado ilegal e vários grupos participaram de atividades de pirataria. Com o tempo e investimentos em barcos, a Holanda acabou por garantir o domínio sobre boa parte do espaço que era antes de Portugal. Em segundo lugar, a saturação do mercado europeu em 1600, que coincidiu com o estancamento da produção de prata americana: de 1612 a 1629, ocorreu uma drástica diminuição dos preços. O mercado se saturou, mas não em decorrência de maior qtdd de engenhos, sim do aumento da produtividade. O sistema produtivo brasileiro se baseava na produção da cana por parte de lavradores brancos e portugueses que possuíam capital suficiente para assegurar as terras, mas não para arcar com os custos de adaptação destas, apenas pelo roçar a terra para obter os alimentos. Para adaptar à terra à cana era necessário o capital de senhores de engenho, que dispunham do necessário para comprar escravos e para mantê-los – o maior dos gastos. No entanto, o principal fator que transformou a produção açucareira foi o nascimento da WIC holandesa em 1621, pois sua intromissão no comércio de açúcar a instigou a tomar a Bahia entre 1624 e 1625. Apesar de abandoná-la depois de uma derrota militar, a WIC holandesa obteve êxito em ocupar as regiões produtoras do noroeste do Brasil em 1630 e em controlar a comercialização do produto. Portugal conseguiu 122 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

recuperar esses espaços produtores, mas o açúcar estava taxado de modo a assegurar os lucros da Coroa e possuía um sistema fiscal forte. Em 1700, o Brasil ainda produzia 20.000 toneladas de açúcar anualmente, mas pouco resistia à concorrência do Caribe britânico – que produzia aproximadamente 22.000 toneladas –, do francês – cuja produção girava em torno de 10.000 toneladas – e das outras zonas caribenhas – que produziam aproximadamente 5.000 toneladas. O Brasil ficou para trás na primeira metade do século XVIII: em 1760, produziu 28.000 toneladas, frente às 71.000, 81.000 e 20.000 que produziam, respectivamente, os territórios acima citados. Nessa época, o açúcar estava incorporado à dieta dos setores sociais europeus mais amplos, mas já havia produtos mais importantes no comércio.

Os demais produtos Antes de meados do século XVIII, os demais produtos comercializados não alcançaram a magnitude e importância geral do açúcar, embora alguns – como os corantes – alcançassem seu auge, atingissem um impacto regional significativo – como a criação de gado e a madeira – e dessem indícios claros do papel que desempenhariam após 1750 – caso de outros artigos como o tabaco e o cacau. Os produtos tintóreos eram necessários para a indústria têxtil europeia e, diferentemente das especiarias, eram encontrados na América. Os espanhóis obtiveram Pau de Campeche em São Domingo e em Cuba, tendo-o impedido mediante proibições que fosse importado de outros lugares para a Espanha. Fraudes, contrabando e o desabastecimento levaram seu comércio a ser declarado livre em 1548. Dessa forma, a produção se centrou na península de Yucatán. Uma variação dos chamados paus-de-tinta, o pau-brasil, foi uma espécie muito importante no Brasil, onde foi explorada desde o começo: nas viagens de reconhecimento posteriores a 1501, constatou-se o interesse pela madeira, negociada com a população indígena em troca de produtos que ela valorizava, como facas e machados. A primeira expedição feita com o fim de explorar essa madeira realizou-se em 1504 por um barco francês, mas nessa mesma época os portugueses instalaram sua primeira feitoria e, ao longo do século XVI, estabeleceram uma As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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corrente de postos comerciais, tornando o pau-brasil o produto mais explorado antes do açúcar. A Coroa possuía seu monopólio, mas o rei Dom Manuel o arrendou a um consórcio de Fernando de Loronha no período compreendido entre 1502 e 1505. Como resultado, calcula-se que aproximadamente dez barcos saíram do Brasil carregados de pau-brasil e escravos. Em 1505, realizou-se a renovação desse arrendamento por mais dez anos a outro consórcio liderado por Loronha, durante os quais fica autorizada a comercialização de 20.000 quintais29 anuais de pau-brasil em troca de uma renda de quatro mil cruzados ao ano, além da proibição de que o brasil30 fosse importado também da Ásia. Devido ao lucro obtido, a Coroa passou a deter a administração direta desse produto a partir de 1515, enviando em 1516 uma expedição para eliminar o contrabando praticado pelos franceses, os quais possuíam grande interesse nas tinturas para a indústria têxtil de Ruão e de outros núcleos. As tentativas diplomáticas que procuraram acabar com essa transgressão do monopólio foram infrutíferas, de modo que Portugal reagiu de maneira mais eficaz para evitar que os franceses abrissem feitorias no Brasil, o que foi feito em 1534 com o estabelecimento das capitanias hereditárias. Ao mesmo tempo os colonos se dedicaram ao açúcar, fazendo com que a partir de 1540 o pau-brasil passasse a um segundo plano. O fim desse produto foi também o fim das feitorias. O pau-brasil era enviado a Lisboa e depois a Amsterdã, de onde era transportado para toda a Europa como pó para tinturas. 29 NT: Antiga unidade de peso espanhola. Cada quintal equivalia aproximadamente a 100kg. 30 NT: Aqui cabe um esclarecimento sobre o nome brasil associado a um corante de cor avermelhada. Sigamos as palavras da especialista Malou Von Muralt: “um grande número de madeiras tintoriais, espalhadas pelas Antilhas, México e na região antigamente denominada Índias Ocidentais, fornecia o que os espanhóis chamavam de palo de tinte (pau-de-tinta) ou, de forma mais genérica, de brasil, o que contribuiu, e muito, para a confusão [para identificar a quais espécies de fato o nome deveria se referir]. De fato, todas essas árvores ou arbustos fazem parte da família das leguminosas: trata-se de espécies pertencentes aos gêneros Caesalpinia, Peltophorume Haematoxylon, que fornecem madeiras tintórias de qualidade variável. Uma infinidade de nomes comuns e comerciais as designava: pau-brasil, paupernambuco, brasileto, brasilete das Antilhas, brasilete das Bahamas, brasilete da Jamaica, pau da Nicarágua, pau de Santa Marta, pau da Califórnia, Bloodwood, Redwood, Peachwood etc., sem que seja sempre possível estabelecer com exatidão a que espécies esses nomes se referem. [...]Falar do uso do pau-brasil na tintura leva-nos imediatamente a distinguir dois grandes períodos históricos. O primeiro estende-se da Antiguidade ao século XV e refere-se exclusivamente ao brasil de origem asiática, Caesalpinia sappan L. O segundo período começa em 1492, com a descoberta da América, para terminar no século XIX com a descoberta das anilinas sintéticas. À madeira de sapão vem, então, somar-se toda sorte de brasis e de brasiletes provenientes do Novo Mundo, principalmente a Caesalpinia echinata Lam. do Brasil”. (Revista Usp, 2006, 172-173).

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O pau-brasil não era a única tintura que interessava à indústria têxtil. No início do século XVII, nos Açores, a cana-de-açúcar foi substituída pela planta pastel. Na segunda metade do século XVII, o índigo acabou com o pastel. Os novos produtos, como o índigo da Guatemala ou a cochonilha de Oaxaca, cujo cultivo e extração se valiam da mão-de-obra local já existente, abriram espaços econômicos. A produção autônoma do índigo e da cochonilha permitiu que muitas comunidades indígenas conseguissem aliviar o peso da dominação colonial por meio da reorganização da produção. Isso lhes permitiu conservar sua língua, sua cultura e seus costumes, já que, diversamente de outros produtos, foi possível manter uma relação diferente graças à mão-de-obra escassa e de uma produção de alto valor. Os indígenas mesoamericanos e andinos revelaram uma capacidade de adaptação ao comércio ibérico, precisamente graças à sua capacidade artesanal têxtil, em que aplicavam suas tinturas naturais. Quanto a outros produtos de consumo humano, o tabaco era conhecido desde a chegada dos espanhóis. Seu cultivo para comercialização se iniciou no fim do século XVI em diversas áreas entre o Caribe e o rio Orinoco, com o objetivo de assentar os colonos e de obter ingressos fiscais de um crescente consumo. Entre 1605 e 1606, São Domingo já contava com 95 estabelecimentos tabaqueiros apenas na jurisdição de Santiago de los Caballeros. Em 1606, visando a reduzir o contrabando praticado por ingleses, holandeses e franceses, a Coroa espanhola proibiu o seu cultivo em outras ilhas, mas, na época, a província continental de Caracas já havia alcançado exportações de tabaco de aproximadamente 130.000 libras. Tais cifras reduziram-se drasticamente a partir dessa proibição, mas em 1620 as principais áreas de cultivo já eram a Ilha de Trinidade, Cumana, Guiana e Barinas, estando também consolidadas em Cuba, La Hispaniola, Porto Rico e Ilha de Margarita. A monarquia hispânica estabeleceu seu primeiro monopólio com o tabaco em 1620, criando nesse mesmo ano a primeira fábrica em Sevilha, política que foi continuada no século XVIII com os Bourbons. Durante duas décadas o tabaco – depois do vinho e junto ao açúcar – foi a exportação mais importante das áreas espanholas para a Inglaterra e o aumento de seu consumo foi peça chave na arrecadação fiscal no fim do século XVII, apesar da queda de seu preço, motivada pela concorrência com outras zonas. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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No Brasil, a importância da produção do açúcar era seguida pela do tabaco, já que interessava muito a Portugal e à África. O melhor produto era enviado exclusivamente a Lisboa, mas era permitido que o tabaco de pior qualidade fosse trocado por escravos na África, onde chegou a ser muito consumido. Entre 1680 e 1710, aproximadamente quatrocentos barcos saíram da Bahia – onde se concentravam 90% da produção – em direção à África, sendo que os navios negreiros de La Rochelle faziam escala em Lisboa para adquirir o tabaco, pois na África esse produto passara a ser mais valorizado do que o ouro. Entre 1710 e 1720, a produção brasileira alcançou 135.000 rolos de tabaco, que caíram para 76.200 entre 1741 e 1750, quando o produto brasileiro já passava apenas por Lisboa. Na época, era o cultivo mais importante na América britânica, sendo essencial em Virgínia, mesmo que esta produzisse um tabaco muito diferente daquele do sul. Seu cultivo assegurou o êxito do assentamento inglês, iniciado desde 1620 a leste do Caribe. A Virgínia exportou 28 milhões de libras em 1700 e 80 milhões em 1740. Depois de ser elaborado na Inglaterra, reexportava-se entre 85% e 90% do tabaco, razão pela qual a circulação desse produto era mundial. O cacau era cultivado no México antes da chegada dos espanhóis, mas depois da conquista ele se tornou insuficiente e foi necessário importá-lo da Venezuela e do Equador, onde sua produção aumentou significativamente. O consumo crescente – em meados do século XVII, o cacau já era importante na Espanha, Inglaterra e Holanda – e a necessidade de menos mão de obra em relação à cana, levaram a que a superfície dedicada ao plantio de cacau atingisse certa importância. A América central foi a principal produtora até o momento em que a Venezuela começou a fazer-lhe concorrência. Em 1622, já era possível visualizar a importância desta, que alcançou seu auge entre 1696 e 1700. Em 1720, a Venezuela possuía mais de 4,5 milhões de árvores e, entre 1700 e 1756, saíram desse território 2.235.278 libras de cacau. Dessas, 27% foram enviadas à Espanha 42,2% ao México e aproximadamente 30,2% foram contrabandeadas, via Curaçao, para Amsterdã. Para este último destino, afluíram, no mesmo período e pela mesma via, mais de meio milhão de arrobas de origem indeterminada, além de 127.310 vindas de Porto Rico e 56.437 das Barinas. Quanto à pecuária, os espanhóis levaram para a América os cavalos, as mulas, os burros, as vacas, os bois, as ovelhas e os porcos, 126 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

modificando o sistema natural. A criação destes se deu em territórios secundários e pouco habitados, onde podiam ser criados em liberdade e auxiliar a cobrir o déficit de energia humana – o que favoreceu a colonização no século XVI. Além disso, desde a segunda metade do século XVI, o uso do cavalo e dos bovinos permitiu aos indígenas nômades frear o avanço ibérico nas áreas periféricas. Por meio dos assentamentos forçados, as fazendas agrícolas e as estâncias prosperaram –e muitas foram cercadas-, ao mesmo tempo em que aparecia uma verdadeira casta de senhores do gado. Sob o domínio de Felipe II, a Espanha atingiu o auge da produção de couros procedentes das Antilhas, Nova Espanha, Honduras e Terra Firme, comércio que entrou em queda a partir do fim do século XVI. O maior desenvolvimento ocorreu no México, onde se passou de quinze mil bovinos em 1532 a um milhão em 1620. A criação mexicana se estendeu ao sul, especialmente ao Prata e ao Brasil. Nesse último, a pecuária chegou a partir de Cabo Verde entre 1533 e 1534 e foi estimulada pelos portugueses. Os bois e os cavalos eram necessários para a tração nos engenhos de açúcar, para produzir carne e sebo, mas foram também utilizados para evitar a perda de terras cultiváveis com cana, sendo levados para as zonas da costa onde não havia engenhos, o que permitiu a conquista de novas terras em regiões indígenas (caso da Paraíba entre 1574 e 1587 e do Rio Grande do Norte em 1590). O Brasil produziu peles nas capitanias do sul e também exportou gado vivo para Portugal e África. A produção de peles foi muito importante nas regiões do Prata e sua exportação foi crescente, mas ocorreu mais no século XVIII do que no período aqui abordado. A madeira, apesar de abundante nos grandes territórios americanos e deficiente no império português, não produziu uma circulação importante. Em 1605, foi imposta a necessidade de licença para o corte de árvores, a qual não era respeitada. O transporte do produto era monopólio real, mas foi cedido a particulares mediante contrato. A Coroa recuperou o controle da atividade de 1612 a 1625, ano em que a Companhia de Jesus recebeu o monopólio do corte no Brasil e iniciou as atividades para explorá-lo. Durante o século XVII, o seu comércio foi limitado, salvo no caso de madeiras de alto valor. O êxito comercial das exportações de bens importantes para a Europa produziu na América do Sul e no Caribe uma profunda transformação, que logo atingiu a América britânica. Para os grandes produAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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tores, desenvolveu-se uma rede comercialização que, no caso espanhol, se amparou em um regime de monopólio; no caso português, de controle sem monopólio, e nos países emergentes – como a Holanda – por meio de companhias protegidas. Além disso, deve-se levar em conta que à sombra desses produtos se favoreceu a distribuição, no Atlântico, de outros bens menores – têxteis, ferro, especiarias –; que o êxito das plantações na América ativou o consumo local de peixe e de outros produtos; que as colônias americanas compraram barcos e que o mercado americano tornou-se cada vez mais importante. E sobretudo: a América se integrou a uma rede mundial à qual dedicamos as páginas seguintes em razão de sua importância na circulação globalizada de mercadorias.

As rotas e a integração de territórios: África e Ásia As análises econômicas feitas sobre o impacto americano na economia focaram sua atenção no Atlântico, devido à importância da incorporação da América em um sistema pré-existente, modificando de forma drástica sua estrutura e funcionamento. Mas isso também se deu porque a África era vista apenas como um lugar de passagem para a Ásia e como provedora de escravos. A América produzia açúcar, algodão e outros bens que eram exportados para a Europa ocidental para serem consumidos ou convertidos em manufaturas, que, por sua vez, eram enviadas em parte para a África, como pagamento pelos escravos que eram importados pela América para cobrir seu déficit de mão de obra. Essa configuração se estabeleceu sobre a base das interconexões anteriores a 1492. A partir de então, porém, surgiu uma complexa rede de interdependências que foi consequência das viagens dos descobridores dos séculos XV e XVI. Atualmente, destaca-se que as conexões eram muito mais amplas, pelo menos no século XVIII, quando, por exemplo, os têxteis que eram trocados por escravos na costa oeste da África eram manufaturados na Índia e as manufaturas europeias podiam ser trocadas por vestimentas indígenas, mais apropriadas para os gostos e o clima africano. Ao mesmo tempo, o papel da América foi sendo reajustado à medida que foram estudados os papeis da África e da Ásia. A conexão mundial aberta com a viagem de Magalhães e Elcano pelo sul da América não 128 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

teve os mesmos efeitos comerciais que a passagem pelo sul da África, aberta antes pelos portugueses. A incorporação das Filipinas foi mais relevante para efeitos mercantis, especialmente desde o estabelecimento do Galeão de Manila, ou seja, o trânsito de um barco anual que desde 1600 atravessou o Pacífico unindo dois espaços econômicos diferentes. Mas a conexão da América com a Ásia por meio desse oceano era difícil, pois este não era muito conhecido e também porque ainda não se havia penetrado nos continentes. A seda da China era um dos produtos fundamentais da circulação entre Acapulco e Manila e teve seu apogeu entre 1604 e 1620. Grande parte dos produtos chegava de Acapulco à costa leste da América, partindo daí para a Europa, mas esse comércio decaiu com o declive da prata americana e da concorrência holandesa, passando a seda a ser consumida somente na América espanhola. As rotas desse lado do Pacífico tiveram uma vida muito intensa e mutante, mas marcada pela crescente importância dos holandeses e ingleses. Os portugueses foram obrigados a admitir os ingleses em Macau em 1584 e, posteriormente, outros estrangeiros, que adotaram esse território como mercado chave de chá, porcelana, seda e ouro. Os holandeses se estabeleceram no Japão em 1609 e, em 1622, tomaram as ilhas chinesas. Para recuperá-las, em 1624 os chineses lhes concederam a liberdade de comércio em Formosa, a partir de onde os holandeses interceptaram a circulação entre China e Filipinas, além do comércio da seda em direção à Europa. Os espanhóis conseguiram reestabelecer as comunicações com Macau e, em 1629, abriram um porto em Formosa, o qual foi ocupado pela Holanda em 1642. Depois de ocupar Macau, os holandeses se apossaram do comércio com a China até 1662. A troca de ouro era muito favorável na China: franceses, ingleses e holandeses adquiriam prata na América do Sul por meio de contrabando e a trocavam pelo outro metal em Cantão. Desde 1702, todas essas nações foram autorizadas a ficar em Cantão em troca de altas taxas, pois a China já controlava esse comércio. Para o intercâmbio global, a rota oriental era muito mais ativa – não era à toa que a Ásia e a África mantinham uma conexão antiga com a Europa. Desde 1360 e até 1470, a costa africana foi objeto de prospecção por parte da Coroa portuguesa: Ceuta foi conquistada primeiro e logo aconteceu o mesmo com as ilhas de Madeira e Açores. Em 1433, o Cabo do Bojador foi dobrado; Senegal foi abordado em As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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1455, Serra Leoa em 1446 e a ilha de Cabo Verde em 1456. Os avanços continuaram em direção ao sul e, em 1471, cruzou-se o Equador. Mas a conquista mais importante dos portugueses foi a abertura da rota meridional, que integrou a África nos circuitos mundiais. Portugal dominou a rota africana e a aproveitou de maneira intensa no século XV. A partir da África, os portugueses enviavam à Europa numerosos escravos, colonizaram Madeira, Açores e Cabo Verde para explorar madeiras, mel, trigo, vacas etc. e aproveitaram a situação estratégica dos Açores nas rotas oceânicas. Ao produzir tais feitos quase em paralelo ao descobrimento da América, abria-se a possibilidade de uma conexão planetária, a qual não demoraria em produzir-se, embora não fosse economicamente rápida nem intensa. A Coroa portuguesa pretendia controlar tudo, mas essa tarefa era praticamente impossível. Na África, produzia-se uma concorrência pelos preços e não era possível evitar a ação dos comerciantes sem licença. Além disso, a concessão papal de 1455 foi questionada por Castela, que conquistou as ilhas Canárias. Os embaixadores portugueses lutavam pelo monopólio para assegurar o lucro que procuravam os comerciantes, mas para sustentá-lo a Coroa tinha que assumir a segurança, o que era caro, e o Estado era incapaz de supervisionar tudo, de sorte que a participação privada e de oficiais do governo colaborou na diluição do monopólio. A navegação no Atlântico sul foi feita por meio de pequenos capitais, tendo a Coroa portuguesa participado com dinheiro e proteção para o domínio da atividade, processo de que participaram ricos comerciantes e oficiais do governo. A Coroa não possuía aspirações territoriais, nem pretendia conquistar territórios, mas espaços econômicos, de modo que somente se estabeleceram feitorias para regular o comércio. A incursão militar e a conquista de Angola foram o resultado de uma disputa comercial que levou a uma guerra em 1579, constituindo uma exceção. Por outro lado, a partir do fim do século XV, os portugueses tiveram que negociar e subornar os poderes locais e, ao longo do século XVI, foram obrigados a negociar. A África estava fragmentada, mas os estados africanos desempenharam seu papel no comércio, limitando as atuações europeias, beneficiando-se da concorrência entre os comerciantes africanos e colocando obstáculos legais e técnicos entre os vendedores europeus e os compradores africanos. Grupos locais estavam por trás dessas inovações, derivadas da concorrência entre os estados europeus. 130 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

No século XVI, os portugueses tiveram um êxito relativo ao excluir os estrangeiros, mas era impossível manter o poder no mar, pois os africanos não eram seus súditos e mantinham relações com comerciantes estrangeiros. De uma maneira crescente, cada Estado europeu acreditava que podia impor sua jurisdição e exercer um monopólio para evitar riscos a seus comerciantes, obter lucros e assegurar um comércio contínuo. Foi o que fez a Holanda, cujos ataques ao monopólio português se fortaleceram em finais do século XVI com o pretexto de que, legalmente, Portugal havia sido anexado pela Espanha em 1580. Baseando-se também na recém-criada ideia de liberdade dos mares, as companhias holandesas – depois de atacar o Brasil em 1624 – se estabeleceram em Angola em 1641 e em São Tomé em 1647. Em torno de 1660, holandeses e ingleses dominavam a Costa do Ouro. Como os portugueses, os holandeses tentaram empregar sua capacidade militar para limitar a concorrência e incrementar seus lucros, mas não puderam fazê-lo diante da concorrência dos ingleses, suecos, dinamarqueses etc. Ou seja: a África era objeto de interesse de todos. Até 1650, a África comprava ferro e tecidos. Os portugueses exportavam para esse continente peças de ferro e compravam ferro em Serra Leoa para vender na Senegâmbia, enquanto os holandeses vendiam ferro escandinavo e alemão. Os têxteis africanos não eram piores que os europeus, mas eram diferentes, e os portugueses comercializavam muitos tecidos do Kongo para exportar ao leste de Angola. A zona que mais importava era a Costa do Ouro, que em meados do século XVII comprava vinte mil metros anuais de tecidos da Europa e da Ásia. Por sua vez, a África exportava bens semi-manufaturados para a Europa, inclusive têxteis que eram comprados devido a seu exotismo. A situação da África modificou-se no fim do século XVII em benefício dos ingleses. Estes fundaram uma companhia na África ocidental (1618) e estabeleceram postos na Senegâmbia (1631), além de criar, entre 1660-1670, a Royal Adventurers into Africa, com monopólio do comércio desde Senegal até Boa Esperança. Entre 1672 e 1708/13, houve também a African Co. of England, que controlava a circulação triangular no Atlântico. No entanto, devido à falta de experiência e de meios, as perdas de homens e mercadorias foram enormes. Portugal cedeu Tânger à Inglaterra em 1662 e os ingleses tornaram-se fortes no As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Marrocos. Graças ao Tratado de Utrecht31, a Inglaterra controlou Serra Leoa, enquanto os holandeses, a Costa do Marfim, ao passo que a França ficou com a Guiné. Entretanto, o aspecto mais importante desse tratado foi o fortalecimento da Inglaterra com o “asiento de negros32”, obtendo da Espanha o chamado “navio de permiso”, ou seja, o direito de levar quinhentas toneladas anuais de mercadoria para as feiras de Veracruz e Cartagena, um direito que foi explorado ao máximo. Apesar disso, o contrabando era a principal fonte de lucro para os ingleses. Além do interesse econômico na África, esta também era o lugar de passagem em direção à Ásia pela rota oriental. Esse comércio foi estudado por Jan de Vries, que comcentrou-se no fato de que, durante três séculos, quase todo o comércio marítimo entre os extremos da Eurásia foi feito por meio de companhias europeias. A Carreira da Índia da Coroa portuguesa dominou a passagem africana no século XVI, mas foi afastada pela Companhia das Índias Orientais inglesa – criada em 1600, refundada em 1657 e 1693, e sucedida em 1709 pela United EIC – e pela VOC holandesa, às quais se uniram a Danish East India Co (1616-1650) e a francesa Companhia de Colbert (1664), entre outras. Segundo os cálculos de J. de Vries (2003), de 1500 a 1510, 150 barcos portugueses partiram da Europa em direção à Ásia (171 de 1470 a 1510), mas o número decaiu logo (96 de 1511 a 1520; 80/81 entre 1521 e 1540; aproximadamente 50 entre 1571 e 1580), e desde 1621 a 1630 a decadência se acentuou. A Holanda apresentou movimento inverso: entre 1591 e 1600 enviou 65 barcos e chegou a enviar 238 entre 1661 e 1670, 280 entre 1701 e 1710, 382 entre 1721 e 1730, apesar de estancar depois. Quanto à Inglaterra, esta se incorporou pouco antes de 1600 e viveu um aumento constante até 1671-80 (124 barcos), chegando a 180/190 em 1750. A França não desempenhou um papel importante até o período de 1661-1670, quando enviou 24 barcos, mas chegou ao nú31  NT: A Paz de Utrecht consistiu de uma série de acordos firmados nos Países Baixos (entre 1713 e 1715), pondo fim à guerra da sucessão espanhola (1701–1714), na qual entraram em conflito interesses de várias potências europeias. 32 NT: A palavra espanhola asiento designava um tratado comercial ou contrato entre uma nação ou grupo e a Coroa espanhola, regulando uma rota ou monopólio comercial de um produto. Ao fim da Guerra da Sucessão Espanhola, um direito de asiento foi concedido por 30 anos para a Inglaterra. Denominados de “asientos de negros”, tais acordos concediam o monopólio sobre o tráfico de escravos em troca de uma porcentagem direta sobre os lucros da companhia que o explorasse.

132 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

mero de 109 entre 1731 e 1740 e a 124 entre 1741 e 1750. A Dinamarca passou de 6/12 no século XVII a 18 entre 1700 e 1710, e 33 até 1750. Ou seja, no século XVI, no total, passou-se de 151 barcos entre 1500 e 1510 a 50 entre 1560 e 1570, recuperando-se a partir dos anos oitenta e crescendo constantemente no século XVII e na primeira metade do XVIII até chegar a 700 barcos entre 1741 e 1750. Entre 1580 e 1620 o monopólio português foi destroçado pela emergência das companhias inglesa e holandesa, embora os portugueses não tenham desaparecido. No século XVII a área de expansão era o oceano Índico, onde as condições políticas, antes favoráveis aos lusos, estavam sendo modificadas: em 1621, holandeses e ingleses expulsaram os portugueses de seus portos; em 1622, de Ormuz; em 1641, de Malaca e em 1655, de Colombo. Tudo isso ocasionou perdas enormes aos portugueses na segunda metade do século. No total, durante o período que aqui nos interessa, foi a Holanda, não Portugal, a se destacar em relação às toneladas movimentadas. Entre 1500 e 1795 passaram por El Cabo 10.785 barcos e 6.731.745 toneladas, havendo retornado 7.737 barcos e 5.052.327 toneladas (aproximadamente 75%). O que mais chama a atenção é que o volume de comércio entre a Europa e a Ásia não regrediu em meados do século XVII, quando a Europa estava em plena crise: depois de uma decadência entre 1620 e 1639, o volume comercial evoluiu positivamente, a despeito da crise europeia. Quanto aos produtos, nos séculos XVI e XVII a Ásia enviava à Europa pimenta e especiarias, além de sedas. A pimenta compunha 83% do peso dos bens que chegavam da Ásia a Lisboa em 1548, e 60% em 1603. No entanto, esse domínio acabou no poder da VOC holandesa: do valor total de suas compras na Ásia, entre 1619 e 1621, as especiarias eram 17,5%; a pimenta era 56,5% e os têxtis perfaziam 16%. Entre 1648 e 1650, a pimenta e as especiarias somavam 68%, mas entre 1668 e 1670 apenas 42,5%; entre 1698 e 1700, apenas 23%. Mas a forte queda da pimenta e das especiarias foi compensada com o crescimento dos têxteis asiáticos. As vendas em Amsterdã eram muito mais valiosas: entre 1648 e 1650 26,3% correspondiam às especiarias; 32,8% à pimenta e 17,5% aos têxteis. No fim do século XVII os números eram, respectivamente, 24,8%, 13,2% e 43,4%, mas já se uniam a novos produtos, como o chá e o café, com 4%. Já entre 1738 e 1740, esses dois produtos somavam uma quarta parte do valor. O controle da VOC sobre as especiarias se As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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devia, sem dúvida, ao controle sobre os preços. No entanto, a posição estratégica das especiarias no comércio asiático, o alto risco de ataques ao transporte, a sensibilidade política das exportações desde a Europa e o fato de que fosse um comércio em troca da prata, comportavam riscos, o que levou à procura de outras alternativas. A Holanda vendeu pouco na Ásia – que era autossuficiente –, subsistindo com o comércio inter-índico e com feitorias no Índico e no Pacífico. A VOC aproveitou o comércio intra-asiático para fortalecer-se com a prata – o Japão a possuía – e levava manufaturas europeias e meios de pagamento para europeus assentados na Ásia. O algodão da Índia foi o destaque a partir de 1660: os calicoes eram importados como produtos de luxo pelos holandeses, ingleses e franceses. Em 1610, as oficinas hindus produziam dez milhões de jardas de tecido para o mercado do sudeste e do centro da Ásia, e apenas um pouco para a Europa. Apesar disso, a partir de 1650, entre 35 e 40 milhões iam para a Europa. Em 1684, a companhia inglesa da Índia importava 45 milhões. Em 1700, esses têxteis estavam por toda a Europa e pela América. Quanto à Inglaterra, esta criou a frota do Índico em 1601 e os comerciantes criaram a Companhia das Índias Orientais para traficar especiarias, mas eram impedidos pelos tratados com a Espanha. Sua atividade foi limitada até 1672, mas, ainda assim, instalaram-se feitorias por todas as partes. Exportavam para a Europa índigo e tecidos de algodão, salitre e pimenta, entre outros, em troca de tecidos finos, chumbo, estanho e moedas de prata. A companhia obtinha grandes lucros com o comércio inter-índico e, em 1661, passou a dedicar-se exclusivamente ao fluxo Inglaterra-Índia, abandonando o inter-índico aos particulares. Na primeira metade do século XVIII, importava algodão em fios, seda, calicó, chá e café. De sua parte, a França, na época de Henrique IV, fundou sua própria Companhia das Índias Orientais (1604), que não prosperou. Sua revitalização ocorreu com Luis XIII e outras foram criadas, como a Companhia do Oriente, que ocupou as ilhas da Reunião. Durante o reinado de Luis XIV, especificamente em 1664, o ministro Colbert abriu outra companhia visando a povoação de Madagascar, o que não chegou a acontecer. De maneira definitiva, o comércio no Índico era muito complexo, mas constituiu uma verdadeira economia de circulação, já que não havia investimentos ali, e apenas podemos dizer que era colonial por134 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

que todos os lucros eram enviados à metrópole. A diferença para com a América fica evidente. Em todo caso, para o que nos interessa, esse comércio vinculou os quatro continentes em uma economia cada vez mais globalizada. Diferentemente do que ocorria na América, a África e a Ásia não foram povoadas pelos europeus, que mantiveram espaços concretos com finalidades comerciais, mas sem se assentar neles tal como ocorreu no Novo Mundo.

Debates historiográficos O debate sobre a movimentação humana da Europa para a América se desenvolveu na historiografia clássica ao redor de duas questões: o desastre demográfico da população indígena provocado pela chegada dos europeus e o número e evolução da emigração transatlântica. O primeiro não constitui o objetivo destas páginas, pois estamos abordando a circulação, mas não podemos esquecer que desde os cálculos de Cook e Borah muitos outros foram feitos para comprová-los ou corrigi-los. Nesse sentido, a principal novidade foi trazida com a ideia da “globalização viral” (Crosby, 1986) e do intercâmbio de doenças entre grupos humanos que entraram em contato sem poder proteger-se uns dos outros: europeus, africanos, asiáticos e americanos protagonizaram uma “globalização de contágios” que foi muito desigual em seus efeitos, mas que foi involuntária. A história demográfica proporciona, há muito tempo, cifras, datações, evoluções e características diferenciadas, mas a maioria dos estudos deu prioridade às populações estáveis. Na historiografia anglo-saxã, por exemplo, não houve interesse pela investigação a respeito da emigração inglesa porque o estudo sobre as pessoas que abandonavam a Inglaterra não interessava, exceto para explicar porque estas o faziam, de modo que a atenção sobre este tema surgiu na América (Canny, 1994), o que carrega significado mais sociopolítico do que histórico. As migrações demoraram a ser um tema importante, com exceção dos grandes movimentos transoceânicos e seus efeitos sobre a população americana. Em ambos os casos, a dificuldade de encontrar documentação fiável fez com que os dados e hipóteses da historiografia clássica não fossem discutidos. No entanto, a partir do Quinto Centenário do “descobrimento” As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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em 1992, as pesquisas avançaram em direção a outro foco de estudos: a mobilidade das pessoas dentro da Europa como um fato anterior e necessário para o encontro com a América, e o duplo sentido da migração extra-europeia, ou seja, de ida e volta e, portanto, de circulação. O atraso no estudo desses temas se explica pelas dificuldades em encontrar documentação confiável. As fontes e seus dados são descontínuos no espaço e no tempo, não são comparáveis, nem sistemáticos, além de deixar de fora os movimentos clandestinos. Na Espanha, o Estado registrou desde inícios do século XVI as saídas em direção à América por meio das “licenças de passageiros”, os passaportes e os arquivos de campanhas de colonização, mas a emigração clandestina apenas pode ser calculada por meio da documentação local espanhola e americana (censos, arquivos paroquiais e municipais), sistematizada por R. Konetzke em 1945. Os registros de saída por Sevilha foram a base da pesquisa de M. Mörner, cujos cálculos foram revisados em muitas ocasiões sem que fossem resolvidos alguns problemas, como a identificação dos passageiros como emigrantes, a duplicação dos que viajavam várias vezes e as saídas ilegais por meio das ilhas Canárias e de Portugal, entre outros. Por outra parte, as fontes deixam entrever mais sobre aqueles que fizeram algo mais do que emigrar, pouco dos emigrantes que fracassarame muito pouco sobre as mulheres. Nos anos noventa do século XX, produziu-se uma mudança nos objetivos das investigações desenvolvidas, a qual foi auxiliada pelo diálogo com a antropologia, a geografia e a linguística, no sentido de compreender o alcance, as formas e o significado dos movimentos humanos e as diferenças de nível econômico, social e cultural que ocultam. Introduziu-se também o conceito globalizador de processus migratório, que aborda a sucessão cronológica das migrações, unifica os casos individuais às grandes viagens intercontinentais, assim como os deslocamentos espontâneos aos organizados, além de introduzir as ideias de retorno, rotação e circulação. Graças a essa mudança, levantou-se uma questão-chave: as migrações interiores na Europa, anteriores e paralelas à projeção extra-europeia a partir do século XV. Numerosos estudos concordaram que antes de 1500 a Europa estava em movimento. Foram historiadores britânicos e escandinavos (Bade, Moch, Luccassen etc.) que trouxeram esta questão à luz e definiram um modelo que explica a passagem dos europeus para a África e a América como o resultado de 136 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

uma intensa circulação conjunta, cuja aclaração supera o determinismo demográfico clássico. Esse movimento intra-europeu obedecia a uma complexa mecânica de interações econômicas, demográficas, espaciais, sociais, políticas e mentais, que questionam a ideia – também clássica – do push & pull e introduzem a de “tomada de decisões”, ou seja, a consideração sobre as circunstâncias nas quais as pessoas optavam por sair de onde viviam, substituindo também as divisões políticas e fronteiras por conceitos como os de “espaço de vida”. Essas modificações no modo de entender as migrações impuseram a necessidade de se passar dos estudos macro – que abarcavam apenas os grandes movimentos humanos – aos estudos micro ou de médio alcance, já que a tomada de decisões era feita no âmbito familiar, local e regional. Em expansão ou em recessão, o contexto mais próximo impunha aos emigrantes uma perspectiva particular, mais ou menos favorável à sua mobilidade e à sua integração no lugar de chegada. Assim, por exemplo, R. Rowland (1991) estudou a emigração portuguesa como um fenômeno global relacionado ao mutante contexto brasileiro, mas também às estruturas sociais e aos regimes demográficos regionais. As perspectivas local e regional foram aplicadas também aos espaços de chegada na América (Robinson, 1990). A superação das ideias clássicas tem trazido outros efeitos positivos: A) A inclusão dos movimentos forçados na avaliação geral das migrações transoceânicas: os escravos vistos como pessoas e não como mercadorias, assim como sua importância no povoamento americano (Klein, 1999). B) A integração dos movimentos humanos motivados pela circulação econômica, ou seja, as viagens de transporte e comércio, já que estas afetaram milhares de homens envolvidos nas companhias comerciais, os quais, em muitos casos, morreram nas perigosas travessias ou se assentaram nos portos de acolhimento (De Vries, 2003). C) O papel das mulheres, que quase não mereceu atenção nos estudos clássicos, apesar de estas comporem uma parte As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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essencial da emigração familiar impulsionada pela Coroa espanhola no século XVI ou nas expedições de povoamento dos séculos XVII e XVIII apoiadas às vezes pelos governos – foi o caso da França nos territórios vazios que controlava. Deve-se, porém, superar a visão excepcional e elitista, pois ainda faltam estudos acerca das mulheres anônimas, sendo necessário também realizar análises com novos métodos, como as histórias de vida ou o estudo de redes (Boxer, 1993). Quanto aos bens, a pergunta-chave é se é possível falar de globalização entre 1492 e 1750. A abundante bibliografia que se ocupou disso nos últimos anos não é unânime, mas, de modo geral, se aceita que antes do século XIX não é adequado falar de um mundo globalizado, pois o contato entre áreas econômicas diferentes e muito afastadas, que puderam relacionar-se entre si ao redor do mundo, ocorreu com baixa incidência, limitado a zonas próximas à costa ou a cidades portuárias, a grupos sociais ricos e a economia monetarizada (Camps, 2013). Desde o momento em que o mar foi introduzido como elemento a ser considerado na análise histórica da economia europeia (Braudel, 1949), superando-se uma história colonial centrada em países, avançou-se em direção ao objetivo de explicar o mecanismo geral da economia. No entanto, manteve-se uma perspectiva eurocêntrica acompanhada da ideia do baixo nível de desenvolvimento das sociedades indígenas. P. Chaunu, F. Mauro e Magalhães Godinho introduziram o Atlântico e o mundo não ocidental nessa análise, mas foi I. Wallerstein quem o converteu no centro de sua obra e do World system analysis (1974). Esse giro favoreceu a América: a chamada História Atlântica supera o estudo de países e continentes em separado, atentando-se às suas conexões desde o século XV, quando a navegação levou ao intercâmbio de pessoas e produtos. Mas essa história é questionada, pois sustenta o domínio dos europeus e pouco valoriza a participação de africanos e ameríndios na construção desse mundo (Grady; Fulola; Roberts, 2008). Entre seus defensores, se justifica que foi no eurocentrismo que os países ocidentais alcançaram êxito, e que sua experiência é útil para entender as raízes do desenvolvimento econômico, mas também se reconhece que o sucesso foi alcançado por meio da violência sobre os demais (Maddison, 2006). 138 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Mas como era o mundo atlântico depois que os portugueses abriram a rota das Índias Orientais? A pergunta nos obriga a olhar para outro continente: a história atlântica concedeu à África e aos africanos um papel passivo, segundo o qual o comércio africano estava nas mãos dos europeus e era destrutivo e desigual, baseado no benefício obtido pela força. Diante disso, J. Thornton ressaltou (1992) que os africanos souberam desenvolver atividades comerciais por sua iniciativa e elaborar manufaturas para competir com a produção europeia, e que não seria possível entender a África sem compará-la com a Ásia. A superioridade política e comercial sobre os africanos era clara no mar, mas não o era na terra. Os africanos comercializavam em seus próprios termos em seu continente e foram capazes de repelir os ataques dos europeus, organizando-se em diferentes frentes e impondo a necessidade de negociar condições e de chegar a acordos. Nesta perspectiva, a África era apenas produtora de escravos, como aparece no esquema do “comércio triangular”, expressão criada para explicar a integração da América e para definir práticas de intercâmbio que se desenvolveram no Atlântico entre a África, a América e a Europa a partir do descobrimento e até o século XIX. Essa expressão carrega a ideia de que o comércio triangular se desenvolveu dentro do sistema colonial das monarquias absolutas emergentes da primeira idade moderna, de que foi peça-chave em seus objetivos de alcançar o poder (Finlay, 1990). E a Ásia? I. Wallerstein considerava que o comércio da Europa com a Ásia se limitava a um intercâmbio de produtos de luxo entre dois mundos econômicos autônomos, superficial e incapaz de transformar os sistemas econômicos, de tal modo que as companhias europeias na Ásia eram parasitas que aprenderam a explorar as economias mais avançadas do este. Essa perspectiva foi questionada por J. de Vries (2003), ao estudar a convergência global estabelecida por meio da rota do Cabo no século XVII. De Vries se questionou se os europeus estavam preparados para expandir os enormes recursos humanos, financeiros e materiais para esse comércio; se ele foi chave para a criação do moderno mundo econômico e qual papel desempenhou o dinheiro nas oportunidades de prosperidade regionais. As cifras deste autor demonstram que os fluxos monetários afetaram o contexto macroeconômico, mas que a expansão da rota do Cabo esteve mais relacionada à capacidade de consumo da As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Europa e das companhias de reduzir custos, do que a uma verdadeira transformação econômica mundial. Por fim, como se integrou a América nesse cruzamento entre a Europa, a África e a Ásia? A resposta inicial está nos portugueses, que conectaram os três continentes a partir da sua experiência africana no século XV. P. Chaunu (1964) tentou colocar o Brasil no sistema de comunicação naval mundial, e o mesmo fizeram Mauro (1986) e os historiadores portugueses e brasileiros já mencionados, estabelecendo que a economia brasileira não era dependente do Atlântico luso-brasileiro, mas de elementos determinantes do grande comércio atlântico, mesmo que indiretamente. Logicamente a América também se integrou por meio dos espanhóis, que a conectaram com a Ásia através das Filipinas e do Pacífico, assim como das redes comerciais (Böttcher; Hausberger; Ibarra, 2011). As forças que favoreceram e criaram obstáculos ao desenvolvimento econômico do mundo americano no período colonial mantiveram uma dura luta entre 1492 e 1750, a qual tem sido estudada por numerosos pesquisadores e sintetizada em obras a de R. Romano (2004). O Atlântico britânico desempenhou um papel impreciso (Armitage; Braddick, 2002), ao menos em comparação à Holanda. Sobretudo, a integração foi feita de acordo com a disponibilidade do dinheiro, talvez o único elemento que conectou os quatro continentes: a prata fluiu desde a Idade Media da Europa central em direção à Ásia, por meio, primeiramente, de Veneza, e depois por meio dos portugueses e outros intermediários europeus do império otomano (Munro, 2000). Como vimos, este foi um dos grandes temas da história econômica do século XX: cifras de movimento e consequências diferenciadas têm sido a chave de diversas análises, mesmo que se tenha dado uma importância maior às implicações políticas que às sociais, e mais ainda aos grandes impactos que aos efeitos sobre a população comum. Em todo caso, de maneira geral, concorda-se que a transferência transatlântica de bens se baseou na natureza assimétrica e violenta do intercâmbioe que, enquanto se desenvolveu uma crescente homogeneização e interlocução entre as sociedades, a expansão dos horizontes europeus gerou interesses diversos e culturas materiais divergentes (Aram; Yun, 2014).

140 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Extratos de documentos Tabela 1. Dados da população europeia e africana na América britânica Continente

Caribe

Europeus

Africanos

Europeus

Africanos

1650-75

34.300

14.000

60.900

2000

1676-1700

67.000

9.800

1625-50 1651-75

1701-25 1726-50

6000

69.800 42.000

108.800

1.000

9.000

64.600

37.400

27.100

96.800

53300

32.900

182400

342.100

17500

266900

Tabela 2. Entradas de ouro e de prata na Espanha, segundo os dados de P. Vilar 1521-1530

1531-1540

1541-1550

1551-1560

Ouro (kg)

Prata (kg)

14.466

86.193

?

24.957

42.262

1561-1570

11.530

1581-1590

12.101

1571-1580

1591-1600

9.429

19.451

148

177.573

303.121

942.858

1.118.592

2.103.027

2.707.262

Textos que discutem o efeito das riquezas americanas na Europa Martín González de Cellorigo, advogado da Real Chancelaria, Memorial de la política necesaria y útil restauración de la república de España Dirigido al rey don Felipe III. Valladolid, 1600: De como a República da Espanha de sua grande riqueza tirou tamanha pobreza: As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Tem posto tanto os olhos nossa Espanha na contratação das Índias, de onde a ela chegam ouro e prata, que deixou a comunicação dos Reinos seus vizinhos, e se todo o ouro e a prata que seus naturais no Novo Mundo encontraram e vão descobrindo chegassem a ela, não a fariam tão rica, tão poderosa, como sem eles ela o seria. O que, mais além do que a experiência ensinou, se fundamenta em uma razão política, que é universal em todos os reinos, a muitos dos quais o ouro e a prata destruíram... Que não há coisa mais perniciosa que a riqueza de uns e a extrema pobreza de outros, no que está muito descompensada a nossa República. Seria uma consequência que ao tirar o ouro e a prata da Espanha, que não parece este Reino senão quando tem suas riquezas pela lei do depósito, as restituísse aos outros reinos, como senhores delas. E isto procede de não querer advertir que a verdadeira riqueza não consiste em ter trabalhado, cunhado ou em pasta, muito ouro ou muita prata, que com a primeira perturbação se acabam, mas em aquelas coisas que embora com o uso se consumam, em seu gênero se conservam.

Michel de Montaigne, escritor e filósofo francês, 1533-1592: Os benefícios desta conquista (da América), apesar de estarem em mãos de um príncipe prudente e grande administrador (Felipe II) tem respondido pouco às esperanças que tiveram seus predecessores vendo a grande abundância de riquezas que se encontravam nestas terras novas... A causa consiste em que o uso da moeda era inteiramente desconhecido naquelas terras, e por consequência se encontrou reunida, como numa exposição ou alarde, toda a riqueza que os poderosos reis de tais países haviam obtido esgotando suas minas para fabricar a grande quantidade de vasos e estátuas com que enfeitavam seus palácios e templos. Ao contrário, nosso ouro está todo investido e em circulação, e sem parar o distribuímos e alteramos em mil formas, propagando-o e dispersando-o. Suponhamos o que aconteceria se nossos reis houvessem acumulado e imobilizado todo o ouro que tivessem podido encontrar durante vários séculos.

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Capítulo 4 A escravidão hispano-americana: uma perspectiva de longa duração Waldomiro Lourenço da Silva Júnior

O processo de expansão econômica notavelmente impulsionado pelas Grandes Navegações originou uma integração planetária profundamente hierarquizada. Uma divisão internacional do trabalho, complementar em termos globais, foi ganhando forma no movimento histórico do capitalismo, combinando-se a processos culturais, políticos e religiosos. Mas esse movimento em tempo algum esteve a priori destinado à proletarização ou à compulsoriedade. As formas e os ritmos de exploração foram arquitetados historicamente a partir de condições bastante objetivas relacionadas à viabilidade econômica e institucional. O estabelecimento de enclaves na costa africana, a partir do século XV, a lucratividade crescente do comércio transatlântico e a validação jurídica do trabalho escravo tornaram o cativeiro dos negros a base de múltiplas atividades produtivas no Novo Mundo. Entre 1525 e 1867, cerca de 12,5 milhões de pessoas foram violentamente embarcadas em navios negreiros na costa africana, dando vazão a um dos principais movimentos diaspóricos da história da humanidade. Em seus quatro primeiros séculos de existência, a escravidão foi uma das marcas essenciais da economia-mundo capitalista, integrada, em escala local e planetária, a várias outras modalidades de exploração dos trabalhadores. Ao todo, a América espanhola absorveu algo em torno de 1,6 milhão de africanos, perfazendo 12,7% do total indicado acima. Desse montante, 889.990 desembarcaram na ilha de Cuba, dos quais 816.216 chegaram após 1800.33 Este período encerraria, como denotam os dados do tráfico, o ponto mais alto da escravidão em Cuba e no Império colonial espanhol. Naquele momento, houve uma transformação estrutural 33 Os números do tráfico negreiro foram extraídos da base de dados on-line: . O total exato mencionado na fonte é de 1.591.244 pessoas.

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quanto à relevância econômica e social da escravidão. No entanto, uma série de princípios e costumes pregressos permaneceram no horizonte, especialmente no que diz respeito à prática da alforria e à forma de equacionar as tensões sociais. O que se pretende neste capítulo, sem negar variações regionais e temporais, é propiciar uma visão abrangente sobre a escravidão hispano-americana. Evidentemente, o sistema de escravidão espanhol não foi sempre o mesmo. Contudo, foi desenvolvida na longa duração uma certa identidade institucional, que conferiu uma unidade orgânica ao fenômeno, o que ajuda não apenas a contrastar a experiência castelhana das outras, mas a compreender melhor a maneira como novos arranjos foram delineados ao longo do tempo.

Os precedentes da escravidão hispânica A escravidão não era nenhuma novidade no momento em que o Atlântico se descortinou para as ambições europeias. A imagem de uma prática abandonada em função da construção do feudalismo não se encaixa nessa história. A prática estava bastante viva e arraigada na Península ibérica. Em função das relações conflituosas com o Islã, o cativeiro havia sido preservado nos reinos cristãos daquela região durante a Idade Média, diferentemente do restante da Europa ocidental. Entre os séculos XII e XIV, cristãos e muçulmanos escravizaram-se mutuamente. Escravos africanos também eram conhecidos de longa data. Pela mesma época, chegavam cativos subsaarianos por meio de caravanas controladas por mercadores islamitas (Verliden, 1934, 283-448; Blackurn, 2003, 47-122). Em meio àquela experiência, foi desenvolvido um amplo repertório normativo. As Siete Partidas – compilação legislativa e doutrinária redigida em Castela entre os anos de 1256 e 1265 por ordem do rei Afonso X, o Sábio – constituíram um marco fundamental no campo jurídico, condensando diversos preceitos e disposições que permaneceriam em vigor durante séculos, incluindo toda a era colonial. Baseadas no direito costumeiro, em preceitos derivados de Aristóteles, Sêneca e Santo Isidoro, em normativas locais como o Fuero Real e, essencialmente, no Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano – segundo o qual a escravidão, contrariando o direito natural, havia sido instituída pelo direito das gentes –, as Partidas propiciariam um tratamento norma148 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

tivo para aspectos centrais da escravização e das relações de escravidão (Gallo, 1980; 1005-1038; De La Fuente, 2004, 37-68; Silva Júnior, 2013, 35-66). Se, por um lado, os escravizados eram equiparados a bens móveis ou instrumentos de trabalho, por outro lado garantia-se a possibilidade de término individual do cativeiro. O ahorramiento podia ser realizado com notável liberalidade. Inexistia a obrigatoriedade de formalização notarial. A liberdade podia ser conferida “em igreja ou fora dela, ou diante do juiz, ou em outra parte, ou em testamento, ou sem testamento, ou por carta”. Existia também a possibilidade de prescrição. Aquele escravo que vivesse reconhecidamente como uma pessoa livre, pelo período de dez anos, assegurava o direito (Lucena Salmoral; Andrés-Gallego, 2000, 22; Silva Junior, 2013, 77-90). Ao mesmo tempo, procurava-se resguardar a integridade física dos cativos. Nenhum senhor poderia ferir, deixar passar fome ou atentar contra a vida dos seus escravos, a não ser para defender sua família. Neste ponto, a moralidade cristã era combinada à razão política. Desde Roma presumia-se que os excessos dos senhores atentavam contra a res publica por incitarem reações imprevisíveis por parte dos cativos. Esta é a raiz do direito dos escravos à proteção judicial. Aqueles que fossem vítimas de sevícias por parte de seus senhores poderiam prestar queixa às autoridades judiciais. Caso comprovados maus-tratos, o amo deveria ser obrigado a vender seu escravo. Isto demonstra que o poder senhorial tinha alguns limites (Lucena Salmoral; Andrés-Gallego, 2000, 536; Silva Júnior, 2013, 146). Claro que a legislação produzida na e para as colônias espanholas extravasou consideravelmente o teor das Siete Partidas, mas nunca chegou a subverter os seus pontos essenciais, especialmente no que dizia respeito à alforria. Pelo contrário, houve um alargamento do leque de direitos originalmente reconhecido. Em determinadas circunstâncias, escravos conseguiriam explorar as brechas legais e acessar a justiça para reivindicar a liberdade ou apresentar queixas contra maus-tratos, explorando as leis em seu favor com o auxílio de funcionários letrados nomeados para representá-los (De La Fuente, 2004, 7-22). Os senhores sempre mantiveram em suas mãos o poder sobre a manutenção da disciplina e a exploração do trabalho, mas o papel do estado na intermediação das relações era relativamente pronunciado, ao menos em termos formais. Não se tratava apenas da instituição de um certo aparato de proteção. De forma mais aguda que a Coroa portuguesa, o governo castelhano As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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fazia um esforço notável para reservar para a sua alçada a aplicação de punições mais severas contra escravos prófugos e revoltosos, incluindo açoites mais numerosos, mutilações e a pena capital. A lógica era a mesma, evitar o confronto interpessoal para amenizar as tensões (Silva Junior, 2013, 113-154). Além de um conjunto pregresso de normas, princípios e costumes pertinentes ao cativeiro, os espanhóis, assim como os lusitanos, haviam tido experiências recentes com a produção açucareira, atividade econômica ajustada à exploração do trabalho escravo. No século XV, haviam sido estabelecidas plantações de cana de açúcar nas ilhas Atlânticas, contando com investimentos de mercadores genoveses. Em conformidade com os termos do Tratado de Alcáçovas (1479), que selou o fim da Guerra de Sucessão de Castela, os espanhóis concentraram suas atividades nas ilhas Canárias, enquanto os portugueses espalharam-se por um leque mais amplo de territórios insulares localizados entre as costas da Península e do noroeste africano, obtendo os seus melhores resultados na ilha da Madeira (Philips Junior, 1989, 167-168). Muito embora trabalhadores livres tenham participado, naquele momento foi estabelecida uma conexão fundamental entre o fabrico do açúcar e o trabalho de negros escravizados, cuja oferta vinha sendo ampliada havia algum tempo pelas expedições lusitanas subsequentes à conquista de Ceuta (1415), contando com o referendo da Igreja pela bula Romanus Pontifex (1455). Em fins do século, após o célebre Tratado de Tordesilhas (1494), seria cristalizada uma segmentação competitiva dos empreendimentos ultramarinos de portugueses e castelhanos, com os primeiros se concentrando na rota africana para o oriente e os segundos apostando suas fichas na conquista e ocupação do Novo Mundo a partir da exploração das ilhas caribenhas (Cf. Elliot, 1963; Idem, 1997, 135-194; Haring, 1966; Bernand; Gruzinski, 1997, 271-312; Alencastro, 2000, 29).

A disseminação do trabalho escravo As populações ameríndias foram as primeiras vítimas do cativeiro hispânico nas Américas. Antes mesmo da ciência a respeito das dimensões continentais das terras encontradas, teve início a escravização dos índios pelas mãos dos primeiros exploradores. O próprio Cristóvão 150 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Colombo foi responsável pelo início do processo. Em sua segunda viagem, o navegador capturou diversos indígenas da ilha de Hispaniola e propôs abertamente o seu cativeiro aos Reis Católicos, com alegações de cunho essencialmente mercadológico: “Vean Vuestras Altezas si se habrán de cautivar, que creo que después acá, cada año se podrán haber de ellos, y de las mujeres, infinitos. Crean que cada uno valdría más que de tres negros de Guinea en fuerza y ingenio, como verán por los presentes que agora envío” (Lucena Salmoral, 2000, 50). O projeto era transformar o comércio de cativos indígenas em um negócio mais lucrativo do que o de africanos, controlado pelos portugueses. O interesse maior era vendê-los na Europa, explorando a lucratividade gerada pelo tráfico transoceânico (Reséndez, 2016, 27-28). Nos primeiros meses de 1495, 500 taínos escravizados foram colocados em quatro caravelas e enviados à Espanha. No dia 12 de abril, os monarcas recomendaram que os cativos fossem vendidos em Andaluzia, sem maiores especificações ou escrúpulos. Mas, apenas quatro dias depois, os primeiros questionamentos sobre a legitimidade da escravização dos índios vieram à tona na esfera governamental: “Por otra letra nuestra vos hubimos escrito que ficiesedes vender los indios que envió el Almirante don Cristóbal Colón en las carabelas que agora vinieron, y porque nos queríamos informarnos de letrados, teólogos y canonistas si, con buena conciencia, se pueden vender éstos por esclavos o no” (Lucena Salmoral, 2000, p. 51). O efeito imediato desta averiguação não seria a suspensão da escravização dos ameríndios, mas o adiamento de uma resolução mais efetiva por parte da monarquia. Enquanto isso, novas remessas com centenas de cativos seriam enviados à Europa pelo almirante Colombo e seus irmãos. Até o final do século, algo em torno de 1490 indígenas seriam transportados até Castela provenientes da ilha de Hispaniola (Caballos, 1997, 31-72). Em 1500, com base no tal parecer de estudiosos, cujo texto é desconhecido, foi expedida a primeira provisão declarando os indígenas súditos da monarquia castelhana e, portanto, livres da imposição injustificada do cativeiro. O projeto de escravização dos habitantes do Novo Mundo e de sua canalização para uma rede de tráfico pelo Atlântico voltada ao atendimento da demanda europeia de trabalhadores fracassou (Caballos, 1997, 31-72). Decerto, isto não representou o fim do cativeiro indígena, em geral. O que os tais juristas, teólogos e canonistas conseguiram As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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interditar, naquele momento, foi a escravidão indiscriminada dos índios (Lucena Salmoral, 2000, p. 54). Determinados costumes e ações, como a antropofagia e a resistência à conquista, continuariam justificando a redução ao cativeiro. Em 5 abril de 1502, desembarcou em Santo Domingo o novo governador, o frei Nicolás de Ovando. Entre suas incumbências estava a organização da exploração do trabalho indígena. A Coroa deu total chancela para que Ovando e os capitães descobridores seguissem com a escravização dos indígenas resistentes, como se lê na Real Cédula expedida em 30 de outubro de 1503: “[...] si todavía los dichos caníbales resistieren e no quisieren recibir e acoger en sus tierras a los capitanes e gentes que por mi mandado fueren a hacer los dichos viajes, e oírlos para ser doctrinados en las cosas de Nuestra Santa Fe Católica, e estar en mi servicio e so mi obediencia, los puedan cautivar e cautiven para los llevar a las tierras e islas donde fueren, e para que los puedan traer e traigan a estos mis reinos e señoríos e otras cualesquier partes e lugares do quisieren e por bien tuvieren, pagándonos la parte que de ellos nos pertenezca, e para que los puedan vender e aprovecharse de ellos, sin que por ello caigan e incurran en pena alguna, porque trayéndolos destas partes, y sirviéndose de ellos los cristianos, podrán ser más ligeramente convertidos e atraídos a nuestra Santa Fe Católica.” (apud Lucena Salmoral, 2000, p. 54).

Como se poder ler, o cativeiro, caminho mais curto para a conversão dos rebeldes ao cristianismo, era apontado como a solução que salvaria o corpo da morte terrena e a alma da danação eterna. O destino daqueles que impusessem menor resistência não seria muito melhor. Real Provisão de 20 de dezembro de 1503 trouxe as diretrizes legais para os repartimientos, estabelecendo que: “en adelante compeláis y apremiéis a los dichos indios que traten e conversen con los cristianos de la dicha isla e trabajen en sus edificios, en coger e sacar oro e otros metales, e en hacer granjerías e otros mantenimientos para los cristianos vecinos e moradores de la dicha isla, e hagáis pagar a cada uno el día que trabajare el jornal e mantenimiento que según el jornal de la tierra e de la persona e del oficio vos pareciere que debiere haber, mandando a cada cacique que tenga cargo de cierto nú-

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mero de los dichos indios para que los haga ir a trabajar donde fuere menester”. (apud Lucena Salmoral, 2000, 55).

Assim, autorizava-se uma espécie de compulsão remunerada dos ameríndios “submissos”, sem maiores especificações sobre o rigor disciplinar, a duração dos serviços ou o valor pago pelo trabalho nos repartimientos, o que deu margem para que os repartidores agissem sem grande controle. Na mesma época, começava a ser estruturado um mercado americano para cativos africanos. Os espanhóis foram os primeiros a terem recursos para o tráfico negreiro destinado ao Novo Mundo. Colombo novamente abriu o caminho, levando negros cativos logo em sua segunda viagem, em 1493 (Lucena Salmoral, 2000, 137) Dez anos depois, em 29 de março de 1503, a rainha Isabel chegou a proibir o ingresso de escravos africanos, atendendo a uma solicitação de Ovando, que havia escrito informando que eles “se huían, juntábanse con los indios, enseñábanles malas costumbres y nunca podían ser cogidos” (Lucena Salmoral, 2000, 138). Mas a medida não fez fortuna. Em 1505, a Coroa autorizou novos envios da África para a Hispaniola para os serviços das minas de ouro, em comum acordo com o mesmo governador Ovando, que a essa altura já havia se convencido das vantagens daqueles trabalhadores: “A lo que decís que se envíen más esclavos negros, pareceme que es bien, y aún tengo determinado de enviar hasta cien esclavos negros, para que éstos cojan oro para mi, e con cada diez de ellos ande una persona de recaudo que haya alguna parte del oro que se hallare [...]” (Lucena Salmoral, 2000, 545).

O tráfico transatlântico seguiu relativamente módico, mas constante, atingindo a escala do milhar no início do reinado de Carlos I (o Carlos V do Sacro Império Romano Germânico), que assumiu o trono em 1516. O novo monarca concederia licenças para o tráfico direto entre África e América (uma de 4000 escravos para o flamengo Laurent De Gouvenot e outra bem inferior, de 400 escravos, para Jorge de Portugal). Outro ponto a destacar do governo de Carlos I é o processo gradual de restrição legal da escravização dos ameríndios. Isso foi resultado da articulação entre as condições objetivas em torno da mobilização e exploração dos trabalhadores e as conclusões extraídas dos debates juríAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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dico-teológicos ocorridos na época. Homens como Francisco de Vitoria (1492-1546), Bartolomé de las Casas (1474-1566), Domingo de Soto (1494-1560), Melchor Cano (1509-1561), José de Acosta (1539-1600), Juan de Solórzano y Pereira (1575-1653), entre outros, engajaram-se em longas reflexões a respeito da suscetibilidade dos povos dominados à escravização com base no discurso aristotélico da servidão natural e a partir dos títulos consagrados na cultura do direito comum. As opiniões variaram, mas convergiram para uma doutrina que reprovou o cativeiro indígena e, de forma mais ou menos direta, endossou o africano (Pagden, 1986; Zeron, 2011; Añoveros, 2000; Hespanha, 2001). Não se chegou a essa posição de um dia para a noite. Foram décadas de debates e controvérsias. Juristas e teólogos divergiam e os colonos impunham obstáculos. O governo oscilou bastante, especialmente com o desencadeamento da conquista dos grandes impérios indígenas, a começar pelo mexica, em 1519 (Elliott, 1997; Gruzinski, 2001; Restall, 2006). Em 26 de junho de 1523, o rei enviou instruções a Hernán Cortés, autorizando a guerra e a redução dos índios recalcitrantes ao cativeiro, siempre que se les hagan los requerimentos prescritos. Nos anos seguintes, diversas disposições seriam emitidas a fim de conter os “abusos dos soldados” que saíam a promover a guerra com a finalidade explícita de fazer novos escravos. Em 9 de novembro de 1526, Carlos I chegou a interditar a obtenção de novos cativos indígenas pelo comércio ou por meio de guerra, mas isto foi imediatamente relativizado em instruções enviadas oito dias depois, orientando que a escravização por meios belicistas seria, sim, permitida, desde que respaldada por pareceres emitidos por religiosos (Lucena Salmoral, 2000, 566-576). Um passo adiante seria dado no fim da década, quando em 2 de agosto de 1530 o rei assinou nova provisão endereçada para todas as Índias. Conforme o texto da normativa, as informações reiteradas a respeito dos danos enormes causados pela conduta desenfreada dos conquistadores teriam deixado o monarca sem outra alternativa a não ser proibir que se fizessem novos escravos índios. Os cativos existentes permaneceriam em sua condição, mas deveriam ser matriculados para que se evitassem abusos. No entanto, as batalhas de conquista novamente refreariam a inclinação antiescravista do governo espanhol. Em março de 1533, a exemplo de Cortés, Francisco Pizarro recebeu provisão autorizando 154 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

a realização de guerra contra os indígenas do Peru. Permissão semelhante seria endereçada ao governador da Guatemala na mesma época. Finalmente, em 20 de fevereiro de 1534, devido aos “inconvenientes” causados aos conquistadores “ao Serviço de Deus e da Coroa”, Carlos I resolveu revogar a provisão de 1530, em 20 de fevereiro de 1534. No texto da nova provisão, procurou-se uma espécie de meio-termo, estabelecendo-se algumas condições para a escravização. A principal delas foi proibir que mulheres e crianças (menores de 14 anos) pudessem ser feitas cativas. Mas os conquistadores ficavam autorizados a se servirem delas em suas casas e em outras ocupações na condição de naborías (estatuto jurídico no qual eram enquadrados os servos indígenas repartidos entre espanhóis). Esta solução não surtiu efeito. Dois anos depois o rei teve que enviar cédula ordenando a soltura de mulheres e crianças índias tornadas escravas. Por essa época, o problema do declínio demográfico se mostrava cada vez mais agudo. Seriam realizados alguns esforços por parte do governo para interditar o tráfico de cativos indígenas entre os diferentes territórios. Proibiu-se, também, que os caciques locais escravizassem seus inimigos para vender aos castelhanos. Por outro lado, para resguardar a mão de obra existente, vedou-se a possibilidade de que o casamento entre escravos índios e negros resultasse na liberdade. Assim, não se mexia muito na estrutura. Tais medidas não passavam de paliativos. O que se observava na virada para a década de 1540 era a adoção de uma política voltada à regulamentação do cativeiro indígena, não à sua supressão. Enquanto isso, outras peças eram movidas naquele tabuleiro. A cúpula da Igreja Católica em Roma, por ação do Papa Paulo III, posicionou-se de forma contrária à escravização dos ameríndios, com a emissão de breves entre 1537 e 1538, facultando aos Arcebispados a faculdade de excomungar aqueles que a promovessem. O argumento era o de que os nativos das terras recém descobertas, “aunque estén fuera del seno de la Iglesia, no están privados, ni se les puede privar, de su libertad, ni de la posesión de sus cosas, ya que como hombres y, por tanto, capaces de fe y salvación, no deben ser destruidos con la esclavitud, sino atraídos a la vida con las predicaciones, buenos consejos y otros médios” (apud Lucena Salmoral, 2000, 634). As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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O grande articulador dessa disposição foi o frei Bartolomé de Las Casas, que iniciara, na Nova Espanha, a escrita de sua emblemática obra, Brevísima relación de la destrucción de las Indias, descrevendo as atrocidades promovidas pelos conquistadores (Las Casas, 1993; Cf. Fernández, 1996; Chartier, 2016). O resumo de seus relatos chegou às mãos do monarca espanhol, reforçando a pressão para uma mudança de postura com relação à escravidão dos índios, facilitada pelo sistema encomendas (Munguía, 2003, 193-205; Añovros, 2000). Finalmente, após amplas discussões, foi realizada uma revisão normativa por meio das Leyes Nuevas (Leyes y ordenanzas nuevamente hechas por S. M. para la governación de las Indias y buen tratamento y conservación de los Indios), aprovadas em 20 de novembro de 1542. Dispositivo amplo, que tocava em aspectos variados da administração colonial, estabeleceu o seguinte em relação aos indígenas: “Ordenamos y mandamos que de aquí adelante por ninguna causa de guerra, ni otra alguna, aunque sea so título de rebelión, ni por rescate, ni de otra manera, no se pueda hacer esclavo indio alguno, y queremos sean tratados como vasallos nuestros de la Corona de Castilla, pues lo son.” (apud Lucena Salmoral, 2000, 661).

Concepción García-Gallo escreveu que, com este ato, a escravidão na América espanhola se tornou “privativa da raça negra” (GarcíaGallo, 1980, 1010). Mas não foi simples assim. A vigência dessa determinação passou por todos os problemas frequentes à implementação da legislação ultramarina, desde a resistência dos colonos até a vacilação das diferentes esferas do governo colonial. De fato, é possível observar uma crescente africanização do cativeiro na América espanhola, com uma correspondente elevação dos indígenas à condição de vassalos da Coroa castelhana. No coração das unidades de exploração da América espanhola, na Mesoamérica e nos Andes, foi possível mobilizar as massas de trabalhadores indígenas de outras formas, em especial mediante o recrutamento agrícola sazonal, que remontava as práticas pregressas da mita dos povos andinos e do coatequitl dos mesoamericanos. No início do século XVII, acentua-se um processo de diversificação das modalidades de trabalho, até mesmo com um crescente assalariamento dos trabalhadores, inclusive das minas de prata. Mas a escravidão indígena

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persistiu ao longo do tempo, chegando até o século XIX, fosse de forma legal, a partir de autorizações periódicas da Coroa liberando a escravização de índios insubmissos (de dentro dos domínios) ou “bárbaros” (das regiões fronteiriças), fosse de forma francamente ilegal. Desse modo, é equivocado pensar em uma total africanização do cativeiro nas Índias de Castela, muito embora o cativeiro dos negros tenha se tornado predominante em termos gerais (MacLeod, 1999, 219-269; Lucena Salmoral, 2000, 90-117; Blackurn, s/d, 161-200; Blackurn, 2011, 29-48; AndrésGallego, 2005; Cf. Zavala, 1975; Zavala, 1981; Zavala, 1984-1991). A escravidão africana disseminou-se primeiramente nas Antilhas, em plantações de cana de açúcar, mediante a reprodução das práticas anteriormente testadas nas ilhas atlânticas. Em meados 1558, os ingenios espanhóis estabelecidos no Caribe, especialmente na região de Santo Domingo, chegaram a enviar cerca de 60 mil arrobas a Sevilha. Nas décadas seguintes, devido ao dispêndio da indústria açucareira e ao aumento da mineração, a atividade entrou em declínio. O sistema de frotas anuais estabelecido em 1561 para proteção dos carregamentos dos ataques de piratas também prejudicou a plantação caribenha, deitando por terra a vantagem em relação aos ingenios canários, que era o tempo mais breve para a colheita (cerca de seis meses). A exploração de escravos africanos seria, durante algum tempo, dependente da extração de prata nos grandes vice-reinados continentais, com uma presença demográfica importante em Lima e na Cidade do México. Paulatinamente, escravos negros seriam empregados também em atividades ligadas ao transporte, ao embarque e ao desembarque de mercadorias nos portos, em estabelecimentos têxteis, na construção civil, em serviços domésticos e até em ofícios militares. A mineração de ouro concentraria a utilização de braço cativo africano no território estendido de Nova Granada até o sul da região andina, em zonas distantes das comunidades indígenas (Klein, 1987, 33-57; Cf. Bowser, 1974; Cf. Bennett, 2009). É importante lembrar que o império espanhol não controlava zonas de fornecimento de trabalhadores na África. O país dependia totalmente da parceria com estrangeiros. Uma importação mais massiva de escravos se daria no período entre 1595 e 1640, registrando-se o ingresso de algo em torno de 268 mil cativos, na época em que vigorou o asiento com os portugueses (Vilar, 1977). Na segunda metade do século XVII, negociantes genoveses e holandeses sucederiam os lusitanos no As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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negócio. No início da centúria seguinte, caberia à companhia francesa da Guiné o transporte de africanos até que a South Sea Company, da Inglaterra, obtivesse o asiento após o Tratado de Utrecht (1713). Sua atividade durou até o final da década de 1730. Oscilando entre asientos e licenças, redes de contrabandistas e a estagnação, o panorama do tráfico hispano-americano só começaria a mudar na época do Reformismo Bourbônico, quando o governo buscou alavancar a plantação escravista nos domínios castelhanos (Lucena Salmoral, 2000, 341-347). Por meio do tratado assinado em El Pardo, em 24 de março de 1778, a Espanha recebeu de Portugal as ilhas de Ano Bom e Fernando Pó na costa da Guiné, com abertura para acesso aos portos do rio Gabão, Camarões, São Domingos, Cabo Formoso e outros distritos adjacentes (Castro, 1856, 264; Cf. Cantús, 2004, 28). Esses territórios surgiam como a oportunidade para o estabelecimento inédito de uma plataforma nacional para o fornecimento de escravos, com local de descanso, armazenagem e registro (Tinajero, 1996, 39; Sanchez; Péres-Lila, 1990, 400). Para Dolores García, não foi por acaso que, apenas seis meses depois do acerto com os portugueses, Carlos III baixou o Reglamento y Aranceles Reales para el Comercio Libre de España a Indias (12 de outubro de 1778), que completou o processo iniciado em 1765, pondo fim ao sistema de frotas e de exclusividade portuária, liberalizando a circulação no interior do império (Cantús. 2004, 36). Caso Ano Bom e Fernando Pó cumprissem o papel ambicionado, o problema do provimento de cativos se resolveria internamente. Mas o projeto foi um total fracasso. As razões principais encontram-se na ausência total de infraestrutura e no estado do comércio de escravizados na região. Tratava-se de um setor pululado de traficantes ingleses e com um potencial de expansão pouco promissor. As atividades na região vinham declinando desde meados do século, deslocando-se para as áreas ao sul da linha equatorial (no Congo e em Angola, no caso dos vassalos portugueses). Além do que, a Espanha, a partir de 1779, entrou na Guerra de Independência dos Estados Unidos ao lado da França. O novo conflito atrapalhou as transações oceânicas e bloqueou o já difícil engajamento dos mercadores hispânicos no trato da Guiné. (Cantús. 2004, 29-90). Ao mesmo tempo, a situação fechou as portas para o ingresso legal de negreiros britânicos em Cuba, região central da nova política escravista da Coroa espanhola. A saída natural 158 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

foi uma aproximação a mercadores norte-americanos, muito embora os ingleses seguissem injetando cativos na ilha de modo clandestino ou por meio de testas-de-ferro locais, licenciados momentaneamente para o transporte de escravos. Tal foi o caso de Miguel Antonio de Herrera e da viúva de Cárdenas de Monte Hermoso, que chegaram a ser repreendidos oficialmente por transferirem seu benefício a comerciantes da Inglaterra (Tinajero. 40-41; Cantús, 2004, 80). Após a cessação do conflito, a Coroa espanhola cedeu ao pragmatismo e acertou um contrato para o fornecimento de escravos com a casa Baker e Dawson, de Liverpool. O primeiro acordo, fechado em 1784, previu a introdução de 4000 escravos em Trinidad e o mesmo em Caracas, com isenção de direitos. Dois anos depois, a companhia inglesa assumiu o mercado cubano, tendo Felipe Allwood como representante estabelecido em Havana. Entre 1786 e 1789, ela introduziu algo em torno de 5.786 escravos na ilha. Aos membros da elite criolla ficava claro que os comerciantes hispanos não estavam aptos a atender as necessidades de mão de obra da economia local. Tampouco estavam satisfeitos com a persistência do privilégio no setor para estrangeiros, tendo em vista os ingressos ainda insuficientes e os preços elevados que o regime vinha propiciando. Entradas abundantes a preços razoáveis só seriam obtidos com a decretação da livre concorrência com a participação de nacionais e estrangeiros, sem mais contratos, licenças ou asientos (Rawley; Behrendt, 2005, 186). A liberdade para o comércio de escravos foi finalmente concedida por meio da Real cédula editada em 28 de fevereiro de 1789, mas apenas para Caracas e as Antilhas Maiores por um período de dois anos, em caráter experimental. A destinação dos escravos aportados deveria ser preponderantemente o setor agrícola, nas plantações, engenhos e afins. A utilização de cativos para serviços domésticos era desestimulada com imposição de tributos (Samoral, 2000, 342). Entre 1791 e 1804, a liberação foi sucessivamente prorrogada, outros portos locais foram autorizados e o comércio negreiro se intensificou, tendo sido desembarcados oficialmente cerca de 108.376 africanos nos domínios castelhanos, destes 86.2782 apenas na ilha de Cuba.34 Como destaca David Eltis, houve, então, uma integração inédita da ilha espanhola ao circuito cari34 Disponível em: . Acesso em: 26 de abril 2015.

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benho do tráfico, possibilitando um nivelamento dos preços em relação aos cativos que adentravam as demais praças antilhanas (Eltis, 1987, 36). Apenas a essa altura, no início do século XIX, foi eliminado o mais grave entrave para o desenvolvimento da economia local, que era a falta de força de trabalho, consolidando-se um alinhamento entre a oligarquia havanesa e o gabinete de Madri. Entre 1820, quando o tráfico entrou para um período de “ilegalidade permitida”, e 1866, ano de ingresso do último navio negreiro, entraram mais de 635 mil cativos contrabandeados apenas na Perla de las Antillas. Nesse contexto, a ilha passou por uma verdadeira revolução econômica e ambiental, alterando profundamente sua posição no império espanhol, que começava a se fragmentar em virtude dos processos de independência desencadeados com a ocupação napoleônica. As exportações de açúcar superariam as 160 mil toneladas nos anos 1840, abocanhando 20% do mercado mundial. A produção de café cresceria de forma intensa até a mesma época, perdendo espaço gradativamente em virtude da concorrência com o produto brasileiro (Fraginals, 2009, 99; Fraginals, 1978, 139; TorresCuevas, 1994, 272).

As políticas de controle da rebeldia escrava A resistência ao cativeiro surgiu logo nos primeiros tempos da ocupação espanhola. De imediato, ganhariam materialidade temores de alianças entre ameríndios e africanos. A revolta deflagrada em Santo Domingo no ano de 1519, sob a liderança do cacique taíno conhecido como Enriquillo, contou com a adesão dos negros. Pouco depois, em 21 de dezembro de 1521, na mesma ilha, teve início a primeira rebelião de escravos africanos de que se tem registro nas Américas. Cerca de 20 escravos começaram um levante no engenho do vice-rei Diogo Colombo (filho primogênito de Cristóvão Colombo), aproveitando que os proprietários estavam envolvidos nas festividades natalinas. Com a adesão de escravos de haciendas próximas, cerca de quarenta revoltosos promoveram uma série de distúrbios entre os povoados da localidade. Por volta de 12 espanhóis teriam sido mortos por sua ação. O vice-rei, que não se encontrava em sua hacienda, atuou com rapidez, mobilizando tropas para o controle dos rebeldes. Em poucos dias, após alguns enfrentamen160 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

tos, a rebelião foi controlada (Deive, 1989, 33-35; Franco; Price, 1981, 43; Lucena Salmoral, 2000, 140; Navarrete, 2003, 26; Lopez, 2004, 296). Pela primeira vez os cativos se rebelaram abertamente e de forma organizada, com uma atuação no sentido de ampliar o movimento, buscando a libertação de escravos de outras fazendas. Os indícios levam a crer que houve uma articulação prévia à rebelião, com encontros e conversações para a coordenação das ações e a fixação da data para a sua realização. A origem comum dos escravos, em sua maior parte “da língua dos jolofes” (grupo étnico do oeste africano), teria facilitado a comunicação e, por conseguinte, a organização do movimento (Deive, 1989, 34-36). Isto informaria a política espanhola subsequente a respeito da importação de cativos. Por meio de cédula de 28 de setembro de 1532, foi proibida a introdução de jolofes “por ser, como diz que são, soberbos e inobedientes e revolvedores e incorrigíveis” (Deive, 1989, 145; 609). A partir de então, a Coroa espanhola buscou criar uma espécie de filtro para o tráfico. Também foram impostas restrições para a entrada de mulatos, maometanos e ladinos (definidos então como negros que haviam vivido mais de um ano na Espanha ou em Portugal, “que enviavam seus amos peninsulares para desfazer-se deles a causa de suas ‘malas costumbres’”).35 Mais do que origem propriamente, a unidade, a identidade preservada ou recriada, era um fator importante para a rebeldia escrava. A comunidade cultural existente entre os escravos jolofes (wolofes) do engenho de Diego Colón teria sido essencial para a organização daquela rebelião (Deive, 1989, 36). Convergindo em relação à política estatal, a estratégia que a classe senhorial buscaria adotar seria inibir, na medida do possível, a coesão por meio da composição de escravarias etnicamente diversificadas, o que também se buscou empregar na América portuguesa, sobretudo após a experiência com Palmares (Laviña, 1998, 139-151; Lara, 1996, 88; Lara, 2007, 158-165; Florentino; Góes, 1977). A repercussão da rebelião de 1521 foi além da restrição à importação do grupo étnico preponderante entre seus participantes. Em 6 de janeiro de 1522, aprovou-se em Santo Domingo um conjunto de normas dedicadas à prevenção de novos levantes, ao resgate de fugitivos e à punição de novos atos de rebeldia: eram as Ordenanzas de Negros, documento composto por 23 itens. O texto, elaborado pelo vice-rei, oidores e outros 35 Em meados do século XVI, o critério seria afixado da seguinte forma: somente poderiam ser importados escravos bozales, que não fossem muçulmanos ou gelofes. (Deive, 1989, 145; 609).

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oficiais locais, passou pela aprovação real, tornando-se extensivo a todas as povoações da ilha de Hispaniola e San Juan de Puerto Rico, principais regiões escravistas daquele momento. Trata-se de um documento jurídico de grande relevância, tendo inaugurado uma fórmula seguida em regulamentos posteriores (Lucena Salmoral, 2000, 142). Primeiramente, foi estabelecido um prazo de 20 dias para que os cativos que se encontravam em fuga retornassem ao domínio de seus senhores. Para as fugas que ocorressem a partir daquele momento, estabeleceu-se o prazo de 10 dias, tanto para a denúncia pelos senhores quanto para a aplicação das penalidades aos fugitivos – amputação de um dos pés após os primeiros 10 dias, e morte por enforcamento, se pego no vigésimo primeiro dia em diante. Vale destacar, para termos comparativos, que apesar de algumas tentativas nesse sentido, a fuga não era crime na América portuguesa. As sanções impostas pela legislação lusa normalmente incidiam sobre aqueles que promoviam, facilitavam ou se beneficiavam da fuga dos escravos. A punição dos fugitivos era assunto doméstico (Lara, 1988, 295). Já os espanhóis, sem deixar de penalizar promotores e beneficiários, adotaram uma política clara de criminalização da fuga, com a imposição de penas duríssimas para a evasão em si e para outros delitos cometidos em seu curso (Lucena Salmoral, 2000, 165; 187). A reincidência, o tempo de ausência e a formação de palenques apareceriam como agravantes, aumentando ainda mais a intensidade das punições. Pela letra das Ordenanzas, nenhum escravo poderia circular entre uma fazenda e outra, ainda que fosse em dias festivos, a não ser que estivesse na companhia de seus senhores ou de “pessoas que deles tenham cargo ou com sua licença e mandado, a qual não se dê sem justa causa”, sob pena de 50 açoites, na primeira vez, e de corte de um dos pés, na segunda. Além de reduzir a possibilidade de fuga no trânsito entre as haciendas, o objetivo era impedir a realização de encontros que resultassem no ajuste de ações coordenadas entre cativos de diferentes propriedades (Lucena Salmoral, 2000, 560). Além disso, determinou-se a criação de uma força repressiva contra a cimarronaje, que, com certas alterações e ajustes, integraria várias outras ordenanzas de polícia editadas posteriormente. Entre as atribuições do ejecutor, oficial responsável pela implementação das disposições impressas nas ordenanzas, estaria a realização de diligências e averiguações constantes, ao longo das quais acei162 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

taria denúncias sobre fugas e outros excessos cometidos pelos escravos, administrando as penalidades cabíveis. Cuadrilleros ficariam obrigados a acompanhar o ejecutor e a cumprir suas ordens, caso contrário deveriam pagar uma multa de dez pesos de ouro; após o início de uma expedição, eles só poderiam retornar depois da captura do fugitivo, sob pena de vinte pesos de ouro. Todo aquele que ferisse ou assassinasse algum fugitivo durante as perseguições ficaria isento de punições. Além disso, qualquer pessoa ficava autorizada a prender um cativo em suspeição de fuga, devendo entregá-lo ao ejecutor ou à justiça, pelo que receberia a recompensa de um peso às custas do senhor (Lucena Salmoral, 2000, 562). O financiamento de todo aquele aparato seria feito por meio de um fundo depositado em uma Arca. O dinheiro viria, basicamente, da aplicação de multas diversas, além de um novo tributo criado especificamente para aquele fim (um peso de ouro por escravo). A Arca ficaria na casa do tesoureiro local e teria três chaves (Lucena Salmoral, 2000, 563). Como foi indicado, iniciativas semelhantes não se limitaram a Santo Domingo, constando de diversas outras ordenanzas elaboradas para diversas regiões da América espanhola ao longo do tempo (Lucena Salmoral, 2000, 210-213; 242). Mas, em termos gerais, o estabelecimento do fundo encontrou uma resistência aguda dos proprietários de escravos, via de regra avessos ao pagamento dos tributos e multas fixados para o custeio do aparato repressivo (Samoral, 2000, 387). Ao que parece, é possível assumir como tônica uma conclusão semelhante à de Silvia Lara para o caso luso-brasileiro, “contra as inevitáveis fugas dos escravos os senhores tomavam suas medidas, cada um cuidando de si e dos seus” (Lara, 1996, 85). Nos momentos de maior agitação, eram realizadas as chamadas guerras contra los cimarrones, campanhas militares pontuais realizadas para destruir um determinado palenque, debelar uma rebelião ou submeter fugitivos que estivessem trazendo especial abalo à ordem pública, por vezes com mando e apoio da metrópole, por vezes baseadas unicamente na iniciativa local (Lucena Salmoral, 2000, 590). No cotidiano, diante das dificuldades de financiamento de rondas permanentes, recorreu-se muito frequentemente a rancheadores, profissionais equivalentes aos capitães do mato da América portuguesa, que passariam a ser nomeados por cabildos e Audiencias para a realização de buscas, com premiação paga diretamente pelos senhores (Guillot, 1961, 64-66). As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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A via do acordo também foi explorada em casos de grande impasse. Quando os instrumentos disponíveis falhavam e a guerra aberta parecia demasiadamente custosa e ineficaz, o governo colonial espanhol estabeleceu tratados de anistia com os cimarrones que estabelecessem a paz. Emblemático nesse sentido foi o caso do palenque mexicano dos yanguicos, localizado no pico de Orizaba, em Veracruz (Lucena Salmoral, 2000, 165). Em 1609, após resistirem a anos de ofensivas, os cimarrones, liderados por Gaspar Yanga, aceitaram um tratado de paz com as autoridades espanholas. Em troca da deposição das armas, foi reconhecida a liberdade de todos que haviam fugido para lá antes de setembro de 1608, e o palenque recebeu status de um pueblo livre, batizado de San Lorenzo de los Negros, com seu próprio governo, chefiado por Yanga, cabildo e justiça maior. Os negros do novo pueblo se comprometeram a ajudar os espanhóis na captura de escravos que fugissem daquele momento em diante. Tratados semelhantes seriam firmados em Cartagena, no Panamá e em Nova Granada (Davidson; Price 1981, 43; Valiente Ots, 2008-2009, 399-421). Novamente estabelecendo um ponto de comparação, vale mencionar que acordos semelhantes não chegaram a integrar de forma frequente a política portuguesa em relação a mocambos e quilombos. O tratado firmado com Gangazumba em 1678, embora importante para a história de Palmares, foi excepcional (Lara, 2008, 108-112). Isto se explica pelas diferenças formativas entre Portugal e Espanha. O reconhecimento de comunidades independentes, com autonomia política, jurídica e territorial, era uma característica básica do processo político espanhol. O que a Coroa espanhola fez em relação a certos palenques mais resistentes foi desdobrar um procedimento que já carregava desde a unificação dinástica na Península. Nas palavras de Sérgio Buarque: “Em terras de Castela continuavam, na ocasião dos descobrimentos, a prevalecer as normas jurídicas peculiares ao direito castelhano. Nos estados integrantes de Aragão, mantinha-se da mesma forma a vigência de seus direitos particulares: aragonês, catalão, valenciano e maiorquino. Navarra, incorporada ao reino aragonês, conservou durante os primeiros tempos, dentro da Península, sua condição de Estado soberano e independente” (Holanda, 1994, 327-328).

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Portugal, por seu turno, era um condado que se fortaleceu, conquistou sua independência, formou uma monarquia autônoma e se expandiu além-mar; não fez parte de sua conformação enquanto unidade política a incorporação de outros reinos ou unidades autônomas. Pelo contrário, a sua própria autonomia sempre esteve em risco. O reconhecimento de um estado quilombola dentro do estado português talvez representasse uma indesejável dilatação daquele risco que ameaçava a soberania portuguesa permanentemente (Silva Júnior, 2013, 113-152).

O tratamento dos escravos Em seu ensaio sobre história comparada, Eugene Genovese distinguiu três acepções básicas para a noção de tratamento no mundo da escravidão. Uma primeira diz respeito às condições de vida no dia-a-dia, mesuradas pela quantidade e qualidade de comida, vestimentas, moradia, jornada e condições gerais de trabalho; uma segunda, inclui segurança familiar, oportunidades de independência social e religiosa e outros desenvolvimentos culturais; e uma terceira que remete ao acesso à liberdade e à cidadania (Genovese; Foner; Genovese, 1969, 203). No império espanhol, as três acepções estavam costuradas no ordenamento jurídico, não propriamente em nome do humanitarismo, mas para manter a ordem na sociedade. As Siete Partidas constituíam a referência básica também quanto a este aspecto. Na Quarta Partida, era previsto que “si algún hombre fuese tan cruel a sus siervos que los matase de hambre o les hiriese o les diese tan gran lacerío que no lo pudiesen sufrir, que entonces se pueden quejar los siervos al juez. E el de su oficio debe pesquerir en verdad si es así: e si lo hallare por verdad debe los vender e dar el precio a su señor” (Lucena Salmoral, 2000, 536). Este postulado, que recupera quase sem alterações o que já estava nas Institutas romanas (I.1.8.1), constitui a base jurídica para queixas dos escravos e para iniciativas voltadas à melhoria das condições de vida (De la Fuente, 2007, 659-692). Nas ordenanzas dominicanas de 1528, os maus-tratos foram claramente associados à rebeldia: “porque parece ser que algunas veces los tales negros esclavos se alzaren por los malos tratamientos así en el comer, como en el beber, como en los castigos excesivos que les As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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dan sin causa por las personas que los tienen a su cargo”. Na sequência, especificava-se o mínimo de vestimentas e alimentos aos cativos, recomendando-se folgas aos domingos e dias festivos. Um visitador ficaria responsável por fiscalizar e incitar os senhores a cumprirem com as ditas obrigações, podendo até mesmo obrigá-los a vender um de seus escravos para custear a alimentação e vestido dos demais.36 Outras ordenanzas lançadas em Havana, em 1574, além de fixar os provimentos mínimos, estabelecia a obrigação da venda do escravo maltratado, justificando que “hay muchos que tratan con gran crueldad sus esclavos, azotándolos con gran crueldad y mechándolos con diferentes especies de resina, y los asan y hacen otras crueldades de que mueren, y quedan tan castigados y amedrentados que se vienen a matar ellos, y a echarse a la mar, o a huir o alzarse, y con decir que mató a su esclavo no se procede contra ellos”. Os procedimentos ficariam por conta do cabildo e, aos moldes de Santo Domingo, também deveria haver um visitador que averiguaria as condições de tratamento (Samoral, 2000, 772-775). Medidas semelhantes seriam editadas diretamente pela Coroa espanhola. Em 1683, atualizando o disposto nas Partidas, o monarca advertiu todas as Audiencias e governadores indianos, sob o discurso humanitário cristão, a tomarem cuidado particular em evitar que os cativos fossem castigados cruelmente. O texto dizia que “siempre que se averiguase exceso de sevicia en los amos, se les obligue a venderlos [os escravos] y además a que se les castigue” (Samoral, 2000, 930-931). Em 1710, o monarca voltaria a recomendar especial vigilância sobre os castigos impostos pelos senhores, determinando que se “no dejen de continuar los referidos esclavos en la debida servidumbre y sujeción a sus dueños, ni que tomen alientos para las fugas que acostumbran ejecutar, que dimanan, muchas veces, del imprudente rigor del castigo, y que probado que sea el exceso de éste en el esclavo, puedan los referidos Gobernadores y Justicias precisar a sus amos a que les” (Samoral, 2000, 948-949).

O que fica de toda essa trama legislativa é, primeiro, a forma como o estado espanhol se colocava na mediação das relações sociais de 36 De acordo com Lucena, estas ordenanzas serviram de base para a elaboração do Código Negro Francês. (Samoral, 2000, 154-155).

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escravidão e, segundo, as regras com as quais os cativos tinham que lidar para tentar superar as suas dificuldades e a sua própria condição por meio da alforria. O escravismo castelhano pode ser descrito como um sistema relativamente aberto à alforria e às iniciativas dos escravos no judiciário, que procurava incessantemente impor limites legais às ações dos senhores. Por outro lado, a reiteração das medidas contrárias aos maus-tratos dá conta de seu sucessivo fracasso. As especulações sobre uma suposta brandura da escravidão espanhola ficaram para trás.

Roteiro bibliográfico Na primeira metade do século XX, ganhou fôlego o contraponto entre a escravidão na América ibérica e na América anglo-saxônica. A peça fundamental foi o livro de Frank Tannenebaum: Slave and Citizen, publicado em 1946, que estabeleceu um paradigma para os estudos comparativos sobre a escravidão negra nas Américas. A ideia central do autor é a de que as diferenças de ordem moral e jurídica existentes entre os regimes escravistas determinaram as relações interétnicas estabelecidas após a emancipação. Uma pretensa situação mais favorável encontrada pelos cativos nas possessões luso-hispânicas resultaria em um menor preconceito racial nos países latino-americanos. A sociedade racista e estratificada dos Estados Unidos seria decorrência de um regime bem mais severo e restritivo.37 Para configurar a escravidão portuguesa e a espanhola, Tannenbaum tomou como base uma constatação histórica procedente, qual seja, a sobrevivência desse fenômeno na Península Ibérica no período em que havia praticamente desaparecido da Europa ocidental. Mais importante até do que a continuidade da prática escravista teria sido 37 O autor sugere que a escravidão na América se dividia em três grupos: em um extremo estaria o grupo formado por britânicos, americanos (do Norte), holandeses e dinamarqueses; no outro, portugueses e espanhóis; os franceses ocupariam uma espécie de lugar intermediário. O primeiro grupo distinguir-se-ia por não possuir uma tradição escravista e de leis relativas à escravidão; suas instituições religiosas estariam pouco preocupadas com a situação dos negros. Já o grupo ibérico teria uma tradição e uma legislação escravista, bem como uma convicção de que a personalidade espiritual do escravo transcendia sua condição. Aos franceses também faltaria a tradição e a legislação, masteriam os mesmos princípios religiosos de portugueses e espanhóis. Frank Tannenbaum. Slave and Citizen: The Negro in the Americas. New York: Alfred A. Knopf, 1946, p.65.

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a sobrevivência de uma longa tradição legal acerca da escravidão, herdada do Código de Justiniano. Toda aquela longa tradição normativa, condensada nas Siete Partidas, reconheceria a humanidade dos escravos, protegendo-os e dando-lhes condições para a obtenção da liberdade.38 A bem da verdade, é importante registrar que oposição entre a severidade do escravismo anglo-americano e a brandura do regime ibérico não foi criação de Tannenbaum. A imagem enternecida da escravidão luso-brasileira, em especial, foi construída em grande medida a partir de relatos de viajantes que percorreram a América portuguesa durante o século XIX, tais como Auguste de Saint-Hilaire, Henry Koster, João Maurício Rugendas, George Gardner, John Luccock. Nesses textos, o tratamento dispensado aos escravos no Brasil não raro era caracterizado como pouco rígido, senão benevolente. Tais narrativas divulgariam para o exterior o suposto “paraíso racial” brasileiro, servindo de base para formulações que buscavam ressaltar o “inferno racial” norte-americano. Como destacou Celia M. Marinho de Azevedo, os abolicionistas estadunidenses estiveram entre os que se valeram daquele contraponto, buscando destacar a singular severidade dos senhores de escravos sulistas e o forte racismo já perceptível àquela altura39. Além disso, nas Cortes de Lisboa (1820-22) e na Assembleia Nacional Constituinte do Rio de Janeiro (1823), deputados brasileiros valeram-se de argumentos similares para defender a continuidade da escravidão no Brasil 40. Tampouco Tannenbaum foi o primeiro investigador a acenar para uma legislação espanhola comparativamente mais benéfica para os escravos. Vide as palavras de José Antonio Saco:

de otras naciones europeas que tuvieron colonias en el Nuevo Mundo. De aquí provino la abundancia de libertos que desde los primeros tiempos de la conquista hubo en los dominios españoles” 41.

“es justo reconocer [...] que la legislación española fue mucho más templada y benéfica para con los negros esclavos que la

Deste modo, Tannenbaum nada mais fez do que recuperar e desenvolver argumentos ideológicos que já haviam estado em voga muito antes. Ao fazê-lo, deu nova força à visão atenuadora da escravidão ibero-americana, inaugurando uma série de estudos comparativos entre as diversas regiões escravistas.42 O trabalho de Stanley Elkins está nessa série, tendo oposto uma América do Norte capitalista (secularizada e sem controles institucionais) às colônias portuguesas e espanholas (baseadas em culturas conservadoras, paternalistas, norteadas por instituições legais e eclesiásticas, que teriam gerado uma escravidão mais “moderada”). A diferença não estaria tanto no bem-estar dos escravos latino-americanos, mas em seu reconhecimento enquanto seres humanos43. Entretanto, a partir da década de 1960, a dicotomia estabelecida entre a escravidão latino-americana e a anglo-americana passou a ser criticada de maneira sistemática. Buscou-se demonstrar que nenhuma colônia detinha o monopólio da brandura ou da crueldade; que o uso da violência foi um instrumento básico e recorrente para manutenção da estrutura de dominação senhorial de um canto a outro do continente; que o tráfico transatlântico conferiu certa uniformidade ao fenômeno da escravidão; que fatores como oscilações de mercado, de produção, guerras externas, entre outros, influíam na intensidade da exploração da força de trabalho dos negros cativos. O estudo de David Brion Davis foi um expoente dessa vertente 44 crítica. Para ele, as diferenças nacionais e culturais foram exageradas por

38 Um dado importante a ser mencionado é que Tannenbaum baseou-se largamente na obra de Gilberto Freyre para caracterizar o papel distinto ocupado pelos negros na América ibérica e na anglo-saxã. O sociólogo fiou-se explicitamente nos seguintes estudos freyrianos: Brazil: An Interpretation. New York: Alfred A. Knopf, 1945 e O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940. 39 Celia Maria Marinho de Azevedo. Abolocionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. 40 Sobre as estratégias e argumentos utilizados por parlamentares para fundamentação do projeto escravista na América ibérica nesse período, ver: Márcia Regina Berbel & Rafael de Bivar Marquese. “A escravidão nas experiências constitucionais ibéricas, 1810-1824”. Texto apresentado no seminário internacional Brasil: de um Império a outro (1750-1850), realizado no Departamento de História da USP em setembro de 2005.

41 Idem, p.53. José Antonio Saco. Historia de la esclavitud de la raza africana en el Nuevo Mundo, Barcelona, 1879, t.4, p.222. 42 Silvia Hunold Lara. Campos da Violência. Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.98. 43 Stanley M. Elkins. Slavery. A Problem in American Institutional and Intellectual Life. Chicago: The University of Chicago Press, 1959. Ver também: Herbert S. Klein. Slavery in the Americas. A Comparative Study of Cuba and Virginia. Chicago: The University of Chicago Press, 1967. 44 David Brion Davis. “A contradição contínua da escravidão: uma comparação entre América Inglesa e a América Latina”, pp.255-295. In: O Problema da escravidão na cultura ocidental (1ªedição: 1966. trad. Port.). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. Para uma perspectiva crítica à linha estabelecida a partir da obra de Tannenbaum cf. também: Marvim Harris.

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autores como Tannenbaum e Elkins, sendo que “todos os proprietários americanos de escravos compartilhavam certos pressupostos e problemas centrais”. De acordo com o autor, exceto no que diz respeito às barreiras legais para a alforria, as características principais da escravidão norte-americana também se encontravam entre espanhóis e portugueses. Isto é, em toda parte o negro era um bem móvel e transferível, cuja força de trabalho e bem-estar era controlada por outrem. Davis questiona o grau de observância das leis e destaca que tanto no direito anglo-americano quanto no ibero-americano, ou mesmo no romano, o escravo era concebido como um bem ou instrumento de trabalho, ao mesmo tempo que como um ser humano.45 No entanto, Davis não refuta um ponto essencial, as diferenças com respeito à alforria, reconhecendo que os negros tiveram mais oportunidades de obterem a liberdade nas possessões ibéricas do que nas colônias inglesas e Estados Unidos. Ora, a facilidade para a manumissão é um dos argumentos centrais de Tannenbaum para definir o contraste entre e a América Latina e a anglo-saxônica. Assim sendo, não teria aquele autor mais nada a nos ensinar sobre a legislação escravista? Essa questão serviu de mote para um fórum de debate ocorrido em 2004. A discussão foi introduzida através do texto elaborado pelo historiador cubano Alejandro de la Fuente. Em seu texto, o estudioso reafirmou a relevância do livro de Frank Tannenbaum, não apenas por haver estabelecido os termos do debate, mas, também, por expor a importância do direito na demarcação das condições muitas vezes contrastantes sob as Patterns of Race in the Americas. Nova York: Greenwood Publishing Group, 1964; Arnold A. Sio. “Interpretations of Slavery: The Slave Status in the Americas”, in: Comparative Studies in Society and History, 1965, VII, pp.289-308. 45 Davis, op.cit. p.277. Foi fundamental o diálogo estabelecido por Davis com os trabalhos dos cientistas sociais da chamada “Escola de São Paulo”, os quais denotam uma realidade bem mais dura do que aquela delineada na obra de Gilberto Freyre. Cf. Paula Beiguelman. Formação política do Brasil. São Paulo: [s.n.], 1967; Fernando Henrique Cardoso. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. Emília Viotti da Costa. Da Senzala à Colônia. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966. Octavio Ianni. As Metamorfoses do Escravo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. É preciso lembrar, porém, que o ponto de partida para essa linha de estudos está no final da década de 1950; ver: Roger Bastide e Florestan Fernandes. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958 (2.ª ed.). Os seguintes trabalhos obtiveram resultados semelhantes, podendo ser enquadrados nessa mesma tendência: Stanley J. Stein. Vassouras. A brazilian Coffe Country, 1850-1900. Cambrige: Havard University Press, 1957; Charles R. Boxer. Relações Raciais no Império Colonial Português, 1415-1825. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967; Suely R. R. de. Queiroz. A Escravidão Negra em São Paulo – Um Estudo das Tensões Provocadas pelo Escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

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quais os escravos estavam submetidos. O autor pondera que, a despeito dos significativos esforços para demonstrar que os regimes escravistas foram similares em sua essência e que as diferenças existentes decorreram de condições materiais e não da legislação, uma discussão significativa permanece: a proporção da população liberta sempre foi maior nas Américas espanhola e portuguesa do que nos Estados Unidos. No entender de De la Fuente, o insight de Tannenbaum de que a frequência da manumissão influenciou, mais do que qualquer outro fator, o resultado último da escravidão continua de pé. De acordo com este historiador, embora as sociedades pós-emancipação latino-americanas não tenham sido a utopia racial uma vez pensada, foram diferentes dos Estados Unidos num aspecto fundamental: não criaram uma segregação institucional. Assim, apesar das críticas sofridas, Slave and Citizen conserva sua relevância e ainda pode engendrar temas de pesquisa bastante factíveis. Para Alejandro de la Fuente, um deles é o exame das brechas legais existentes nas colônias ibéricas para a reclamação de certos “direitos” por parte dos escravos. Pensando mais especificamente na escravidão cubana, o estudioso acena para o encurtamento da distância entre os dispositivos legais e o protagonismo social dos negros cativos a partir do conceito de “reclamación de derechos”. O autor reconhece que Tannenbaum atribuiu à legislação um exagerado poder de transformação social. Segundo sua ótica, eram os escravos, ao efetuarem pressões e reivindicarem certos benefícios, que conferiam significado concreto aos direitos abstratos regulados pelas leis positivas.46 Nos últimos anos, tem ocorrido uma espécie de resgate do debate iniciado por Tannenbaum, por autores como Robert J. Cottrol e o mesmo Alejandro de la Fuente, em estudos conjuntos com Ariela Gross.47 De la Fuente & Gross, por meio de uma análise sobre as relações entre direito e escravidão em Cuba, Louisiana e Virginia, se debruçaram sobre os esforços legislativos locais, os arranjos costumeiros e os apelos judiciais feitos pe-

46 Alejandro de la Fuente. “La esclavitud la ley...”, p. 39. 47 Robert J. Cottrol.  The Long, Lingering Shadow: Slavery, Race, and Law in the American Hemisphere. Athens: University of Georgia Press, 2013, pp.2-21; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Comparative Studies of Law, Slavery and Race in the Americas. University of Southern California Legal Studies Working Paper Series (February, 2010). Disponível em: . Acesso em: 04/10/2017; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes of Cuba, Louisiana and Virginia: a Comparison. North Carolina Law Review, n.91 (2013), pp.1699-1756. 48 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, op.cit. O posicionamento crítico de Gross & De la Fuente diz respeito ao procedimento adotado por Herbert Klein em trabalho de 1967, que contrapôs de maneira estrita os estatutos locais da Virginia às leis metropolitanas para Cuba. Cf. Herbert S. Klein. Slavery in the Americas: A Comparative Study of Virginia and Cuba. Chicago: The University of Chicago Press, 1967. 49 A referência direta neste ponto é ao artigo da historiadora Keila Grinberg: Freedom Suits and Civil Law in Brazil and the United States. Slavery & Abolition (2001), 22, pp.66-82. 50 Vernon Valentine Palmer. The Origins and Authors of the Code Noir. Louisiana Law Review, v.56, n.2 (1996). Disponível em: . Acesso em: 24 de ago. 2013; Alan Watson. The Origins of the Code Noir Revisited. TUL. L. REV., n.71 (1997), pp.1041–1055. 51 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, pp.1708-1716.

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cio-política fariam com que os breves ganhos da população negra livre da Virginia fossem achatados, em meio ao avanço da ideologia racial e aos conflitos internos em torno da escravidão nos Estados Unidos (a partir de 1806, seriam novamente impostas barreiras legais à manumissão). Na Luisiana, incorporada aos Estados Unidos em 1803, após um novo e breve domínio francês, restrições também seriam impostas, mas persistiria um sistema legal híbrido, com contínuas remissões a preceitos espanhóis e franceses para o respaldo de reclamações de liberdade, com alguma margem de sucesso. Em Cuba, o bem estabelecido conjunto de princípios legais e costumeiros associados à manumissão continuaria em franca operação. A sua sedimentação ao pé da volumosa presença de egressos impediria que a elite proprietária cubana pudesse embarreirar legalmente o acesso à alforria, “a despeito do desenvolvimento de uma economia de plantação na ilha”52. Esse modelo explicativo articula elementos importantes para o esclarecimento das diferenças legais e de suas implicações nas regiões abordadas ao longo de todo o processo. No entanto, há outros aspectos que poderiam contribuir para o enriquecimento do quadro. É preciso ter em conta os traços constitutivos dos ordenamentos jurídicos destacados, que vão além da presença prévia de normas relativas à escravidão e da opção analítica de abordar ou não as normas locais, problema que destacam na historiografia. Em termos comparativos, havia no interior do império britânico, ordenado sob a tradição da common law, um grau diferenciado de autonomia jurídica e um peso específico da jurisprudência para a fixação das normas. Isto ajuda a explicar porque foi possível a permanência de um sistema híbrido na Luisiana. Desse modo, mesmo que houvesse um arcabouço prévio sobre a escravidão na Inglaterra que sancionasse o ato privado da alforria, a sua assimilação não necessariamente teria os mesmos efeitos sociais, demográficos observados para o cenário ibero-americano.53 É inegável que a pressão exercida pelos escravos em busca de sua liberdade e pela presença massiva de negros e mulatos entre a população livre ajuda a explicar por que os precedentes concernentes à transição da escravidão para a liberdade não apenas foram mantidos, como foram am52 Idem, p.1707. 53 Alan Watson. Slave Law in the Americas. Athens: University of Georgia Press, 1989, pp.6382; Idem. The Evolution of Law. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001, pp.234247; Paul Finkelman (ed.). Slavery & the Law. Madison: Madison House, 1997, pp.379-418.

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pliados em um dado momento.54 Ocorre, porém, que, da maneira como o argumento é desenvolvido por Gross & De la Fuente, os senhores de escravos cubanos e ibero-americanos, por extensão, aparecem como impotentes diante da injunção dos precedentes e do movimento desencadeado pelos próprios cativos. O problema é que o ímpeto generalizado dos senhores de escravos contra a alforria, que os autores sugerem, não é empiricamente demonstrado. Além do que, o seu argumento pressupõe uma contradição entre a grande plantação, a prática da manumissão e os interesses da classe senhorial que não existia.55

Extratos de documentos A seguir, os leitores poderão ter acesso à Real cédula de 8 de abril de 1778, por meio da qual o governo espanhol, avançando em relação às Siete Partidas, confirmou o direito dos escravos à alforria onerosa, determinando que nenhum senhor poderia se furtar a outorgar a carta de liberdade ao escravo de sua propriedade que apresentasse a soma correspondente ao seu preço integral, podendo ser compelido em juízo a fazê-lo mediante avaliação pericial. O mesmo documento validou a antiga prática da coartação, suscitando dúvidas sobre o status dos coartados (se equivalente ao dos escravos inteiros, como eram chamados). Consequentemente, abreviava-se o controle senhorial sobre o término do cativeiro, já que originalmente a manumissão era uma prerrogativa senhorial. Legislação semelhante só surgiria no Brasil em 1871, com a promulgação da chamada Lei do Ventre Livre. Entretanto, na medida em que a mobilidade social dos escravos foi sempre inferior aos mecanismos de reposição da mão de obra (comércio e nascimento) e o domínio senhorial manteve suas prerrogativas essenciais quanto à disciplina, ao manejo da força de trabalho e às demais 54 Alejandro de la Fuente. Slavery and claims-making in Cuba: The Tannenbaum debate revisited. Law and History Review, vol. 22, 2004, pp. 339-69; Idem. La esclavitud, la ley, y la reclamación de derechos en Cuba: repensando el debate de Tannenbaum. Debate y Perspectivas. Cuadernos de Historia y Ciencias Sociales, n.4, 2004, p. 37-68; Idem. Su único derecho: los esclavos y la ley. Debate y Perspectivas. Cuadernos de Historia y Ciencias Sociales, n.4, 2004, p. 7-22; Idem. Slaves and the Creation of Legal Rights in Cuba…, op.cit; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Comparative Studies of Law, Slavery and Race in the Americas. University of Southern California Legal Studies Working Paper Series (February, 2010), pp.3-40. Disponível em: . Acesso em: 04/06/2010; Silva Júnior. A escravidão e a lei..., pp.35-66. 55 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, pp.1707; 1724.

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formas de alforria, aquela normativa não assumiu um caráter corrosivo ou antiescravista. Pelo contrário, ela se ajustou ao sistema, constituindo um dos pilares para o avanço da escravidão cubana no século XIX. O outro documento é uma carta de liberdade da região de Pinar del Río em Cuba. Seus termos dialogam diretamente com o teor da Real Cédula de 1778.56

Doc. 1. Real Cédula de 8 de abril de 1778.

El Rey. Governador y Capitán General de la Isla de Cuba, y ciudad de San Cristóbal de la Havana. Con motivo de las dudas y disputas ocurridas en esta Capitanía Gral, en orden a la paga de la Alcabala que causavan las ventas voluntarias ó involuntarias de parte de los Amos de los Negros, y Mulatos, declaré y mandé por Rl Cédula de 21 de Junio, que se observase en esa Isla el mismo método, y reglas que en Nueva España, y el Perú, reducidas, entre otras; a que la Alcavala de los esclavos que se vendiesen por mandato de la Justicia á causa de alguna vejación, ó malos tratamientos que experimentasen de sus Amos, fuese la satisfacción de cuenta de estos enteramente, en pena de haber faltado a la humanidad, y racionales modos con que estaban obligados a tratarlos, sin que pudieran alterar el precio en que los adquirieron: que quando el que los poseía los enagenara por venta, o cesion, por pura voluntad, y conveniencia suya, y sin que el esclavo huviese cometido delito que le estrechara á deshacerse de él havía también de se de su cuenta la paga de Alcavala, sin arbitrio de alterar el precio en que lo compró, pero que si el mismo esclavo daba causa con su mal proceder a que lo enagenara, y la Justicia la calificava de suficiente, en este caso, entregará de pronto el vendedor el importe del derecho referido, y le aumentará el precio del esclavo, por haberse contemplado ser este un medio racional, que al mismo tiempo que penaba el delito, servía de freno al siervo para contenerlo en su deber, por el temor de que a proporcion de sus graves faltas havía de subir su valor, y por consecuencia la imposivilidad de adquirir la libertad á que naturalmente anhelan todos: que quando los esclavos entregasen á sus Señores el importe de su valor, adquirido por medios honestos, bien 56 Para uma análise do contexto de publicação dessa Real Cédula e uma comparação com o caso brasileiro, (Cf. Silva Júnior, 2015, 72-102).

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fuesen industriales, ó por suplementos de parientes, ó amigos suyos, con el fin de redimirse del cautiverio, ó servidumbre, fueran obligados los Dueños á otorgarles llana, y jurídicamente la carta de libertad, y los Títulos en cuya virtud los poseían, quedando cancelados, y anotados en sus respectivos lugares, sin que les fuese facultativo, en este caso, pedir más precio, ni recibir otra cosa, que la cantidad que exhivieron al tiempo de su adquisición, aunque alegasen que les havían enseñado algunos oficios, ó habilidades extraordinarias, porque todo se debía sacrificar a beneficio de la libertad en que siempre, ó las más vezes interesaba el público, cuya utilidad preponderaba, á la privada del particular, y que en este supuesto, no se contribuyera cosa alguna por razón de Alcavala, pues no la havía cuando el esclavo adquiría la libertad por los insinuados medios, ó por pura liberalidad de su Dueño, en reconocimiento de sus buenos servicios; y finalmente que quando el esclavo entregara a su Amo parte del precio que le costó, con el fin de que rebajado de su valor principal quedase éste más moderado, y él en mayor aptitud de conseguir su libertad, se anotase la rebaja en el instrumento que servía de Título, para que constase en todo evento, y que si acaeciese que antes de completar el total importe de su rescate, mudase el esclavo se otorgase el instrumento con deducion de aquella partida que dio en cuenta de su libertad, y la Alcavala se regulase, y cobrase unicamente de la cantidad a que quedara reducido su valor, también en obsequio de la propia libertad; cuya declaración habiéndose confirmado por otra Real Cedula de 27 de septiembre de 1769, con solo la diferencia, de que por lo que tocaba a los esclavos coartados; que estos no pudieran mudar de Amo sin la voluntad de éste, á excepción de los casos expresados y prevenidos por derecho y que llegado a verificarse el traspaso, y venta de ellos, pagase de su precio el Comprador la Alcavala, dió cuenta el Marqués de la Torre vro antecesor en carta de 26 de Febrero de 1773 de haberle entregado el Ayuntamiento de esa ciudad, y el Síndico Personero del Comun, una difusa representación que acompañó testimoniada, sobre la inteligencia que debía darse a varios de los puntos comprendidos en las dos citadas Reales Cedulas, exponiendo entendian los Juristas de esa Ciudad (a excepción de muy pocos) que su disposición prohivía indistintamente a los dueños de los esclavos la alteración del precio de su primera adquisición, para todos los casos en que se tratara de su venta, ó libertad; sin otra diferencia que la de poder sobrecargar el importe del Rl derecho de Alcavala al esclavo 176 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

perverso, quando por su mala conducta se viera el Amo necesitado á deshacerse de él; con cuyo motivo añadió el Marqués de la Torre, que acaso se huviera omitido este recurso, á haberse opinado de otro modo, acomodandose los Consultores a la modificación con que los menos preocupados entendían mis Rls disposiciones, quienes diferenciaban (a su parecer fundadamente) las relatibas a las ventas de las que se contraían á libertades en lo substancial distinguiendo para ello dos grados de mejoramiento en los esclavos, uno ordinario y natural, y otro industrial y extraordinario siendo el primero el de los Negros de Guinea, que se provee esa Isla para las labores, mejorándose naturalmente de su bozalidad, y nativa rudeza, aprendiendo el idioma y primeros rudimentos de la Religión, recibiendo el Bautismo, y exercitándose después en el trabajo a que eran destinados, en cuyo grado ordinario tenían la comun estimación de trescientos pesos y los del 2º que eran aquellos que salían más habiles, y aplicados á algun oficio, ó ocupación particular adquiriendo Maestria, ascendian a superior estimación, correspondiente a la utilidad de su servicio, versandose la misma diferencia en los Criollos Negros, y Mulatos a beneficio de la disciplina y de la edad; y después de hacer el mencionado vro antecesor varias difusas reflexiones sobre la inteligencia de las dos referidas Rs Cedulas, concluyó su citada carta exponiendo se persuadía a que no era mi Rl ánimo pribar á los Dueños de esclavos de esa Isla del derecho al más valor de su mejoramiento extraordinario sino quando se tratara inmediata, y directamente de su libertad, y que en toda venta podrían aprovecharse de él con equidad y justicia, menos quando mereciesen perder el aumento ordinario, por pena de sus malos tratamientos, y que si vendían los esclavos por precisarlos estos con su mal proceder, y no valían más que el precio ordinario ó tenían coartación á alguno inferior, podría cargar el importe de la Alcavala, en pena de su mala versación, lo que no les sería licito quando los vendieran, sin otro motivo, que el de su propia conveniencia, sobre cuyo pie variaría mucho la razón de esos vecinos, y se evitaría la minoración del derecho de Alcavala, que en otros términos sería irremediable. Visto lo referido en mi Consejo de las Indias, con lo que en su inteligencia y de los antecedentes informó la Contaduría Gral y expuso mi Fiscal, y consultándome sobre ello en 17 de Febrero proximo pasado, he resuelto, sin embargo de lo determinado en las dos Rs Cds de 21 de Junio de 1768 y 27 de Septiembre de 1769, declarar, como por la presente mi Rl Cedula declaAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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ro, para obviar dudas, y recursos en adelante, que los dueños de esclavos no coartados, han de tener la libertad de venderlos por el precio en que convinieren con los compradores, segun la menor, ó mayor estimación que tuvieren que quando los Amos por justas causas fueren obligados por autoridad de la Justicia á vender sus esclavos enteros, sea por el precio en que se tasasen judicialmente en concepto al valor que tenían en aquella actualidad, pero que si hubiese comprador que los quiera tomar sin tasación conviniendose para ello con el Dueño, en tal caso puedan celebrar su ajuste, sin que sea lícito a la Justicia impedirlo, no obstante que por ella se haya obligado al Dueño á venderlos, á menos que para minorar el precio de la Alcavala, no se adbierta alguna colusion entre el comprador, y vendedor: que los esclavos coartados, no se puedan vender en más precio que el de la coartación ó el del resto de ella, pasando con este mismo grabamen al comprador: que en todos estos casos satisfaga el vendedor el derecho de Alcabala, regulado su importe por el precio en que efectivamente se verifique la venta, procurando siempre precaver todo fraude: que si el esclavo coartado con su mal proceder diere motivo á su enagenación calificada quesca su culpa, pueda el Amo aumentar al precio de la coartación el importe de la Alcavala, que ha de satisfacer en los términos referidos; y finalmente declaro, que no deben pagar este derecho los esclavos enteros, ni los coartados que se rescataren a si propios con dinero adquirido por medios lícitos, quedando obligados los Amos conforme á la costumbre, á darles sin detención la libertad, siempre que apronten el precio correspondiente regulándose este en los no coartados por el valor que en la actualidad tubieren á justa tasación, si Dueño y siervo no se conviniesen, pues por lo que toca á los coartados, no deben estos satisfacer por su libertad más cantidad que aquella que falte a completar el precio que se fixó al tiempo de la coartación; y para que todas las referidas declaraciones se observen en lo sucesivo precisa, y inviolablemente no obstante lo determinado en las expresadas Rs Ceds de 21 de Junio de 1768 y 27 de Septiembre de 1769 (las quales derogo y doy por de ningun valor, ni efecto, en quanto sean contrarias á lo dispuesto en ésta) os ordeno, y mando hagais publicar por Bando esta mis Resolución para que llegue á noticia de todos los vecinos y moradores de esa Isla, pasando copia de ella a ese Intendente, y dando las demás órdenes, y disposiciones que correspondan a su observancia, en inteligencia de que por Despacho de este día se comunica al Regente, y Oidores de 178 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

mi Rl Audiencia de Sto Domingo, para que se hallen con esta noticia en los casos que convengan; por ser así mi voluntad, y que del presente se tome la razón en la propia Contaduría General. Fecha en el Pardo á ocho de Abril de 1778.=Yo el Rey=Por mdo del Rey ntro Sor=Antonio Ventura de Taranco.57

Doc. 2. Carta de liberdade conferida na região tabaqueira de Pinar del Río, Cuba, no ano de 1854, mediante compensação em dinheiro.

Sépase que yo el licenciado Don Miguel Quintanó como apoderado de Don Francisco Betancourt según consta del que me confirmó en ocho de marzo anterior por ante el capitán interino de Consolación cuyo poder es suficiente juro no estarme revocado y original de agregó a esta escritura otorgo: que liberto y ahorro de toda sujeción cautiverio y servidumbre a un negro nombrado Juan Macuá que quedó entre los bienes de Doña Rita Betancourt de quién es albacea mi pasavante la cual le confiere por la suma de cuatrocientos pesos que escribió en el juicio testamentario cursado por esta escribanía de cuya cantidad le doy por entregado y otorgo recibo en formal con las renunciaciones necesarias en virtud de lo cual y no estando gravado según lo certifica el anotado del ramo en la que se agrega aposto a los bienes de la propiedad y posesión que al expresado negro habían y tenían que lo cedo y traspaso inviolablemente en su hecho y causa propia para que como persona libre pueda tratar contratar comparecer en juicio otorgar escritura testamento y los demás actos y cosas permitidas a las personas libres mando en toda su espontanea voluntad y los obligo a que esta le será cierta y segura en todo y sin contradicción de ninguna especie. En cuyo testimonio es fecha en el Pueblo de Pinar del Río en once de enero de mil ochocientos y cincuenta y cuatro. Yo el escribano doy fe conozco al otorgante que firmó siendo testigos Don Tomás Álvarez, Don José Y Raveno y Don Felipe Hernández vecinos y presentes.58 57 Archivo Nacional de Cuba. Reales Cédulas y Ordenes. Legajo 14. No. 120. Trata-se de uma normativa muito importante, na medida em que consolidou as bases legais para a obtenção da alforria onerosa em Cuba. A transcrição deste documento foi feita e cedida pelas historiadoras Aisnara Perera e María de los Angeles Meriño, às quais agradeço. 58 Carta de libertad otorgada por Miguel Quintanó a favor del negro nombrado Juan Macuá por ser esclavo de su poderdante Francisco Betancourt como albacea de su hermana Rita. Archivo Provincial de Pinar del Río (Cuba), t.1, exp.22, 11 de janeiro de 1853.

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Capítulo 5 As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico Norte Richard J. Ross

As colônias inglesas no Novo Mundo não constituíam um sistema legal único e uniforme. Ao contrário, corporações, proprietários e “aventureiros” particulares, operando mais ou menos sob a autorização da Coroa, criaram uma variedade de colônias, cada uma com suas ordens legais distintas. As primeiras colônias norte-americanas foram marcadas por um pluralismo de instituições, normas e culturas legais regionalizadas. E, contudo, subjacente a este pluralismo, havia características semelhantes. De uma ponta a outra da costa atlântica, era possível observar uma justiça predominantemente leiga, compromissos constitucionais comuns e um engajadamento simultâneo a uma resistência a um Império Britânico cada vez mais interventor. Mas antes mesmo que esta história se desenvolvesse, assim que chegaram, os colonos tiveram que resolver como eles tratariam as leis dos povos nativos que haviam ali encontrado.

O relacionamento do colono com as leis dos povos nativos Todos os papéis emitidos pela Coroa Inglesa autorizando a colonização da América do Norte diziam muito pouco, quando diziam, sobre o status da lei nativa, obscurecendo os termos de sua interação com a Coroa e com as ordenações coloniais. Acima de tudo, os ingleses não aceitavam se submeter às leis nativas. Na prática, os nativos americanos se relacionavam de formas variadas em relação aos sistemas legais dos colonos. Estas relações podem ser colocadas em um espectro. Índios que viviam nas cidades coloniais se submetiam às leis dos colonos. Membros de tribos que reconheciam a soberania inglesa, mas viviam coletivamente As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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em comunidades indígenas ou dentro das fronteiras coloniais, mantinham uma relação mais seletiva, mais ad hoc. Os índios nestas tribos não levavam as suas disputas às cortes inglesas. Particularmente na tribo Chesapeake, crimes e problemas relativos ao comércio eram mais prontamente tratados como problemas comuns que deveriam ser resolvidos politicamente, não como ofensas litigiosas individuais. Os caciques indígenas e os líderes coloniais assumiam as responsabilidades pelas ofensas dos seus povos e faziam reparações através de punições aos meliantes, oferecendo compensações às vítimase restaurando as relações através da diplomacia e da oferta de presentes. Apesar de isso também ocorrer na Nova Inglaterra, por lá era mais comum que os índios invocassem ou fossem forçados para dentro de um sistema legal colonial nesse tipo de disputas intercomunais (tipicamente aquelas envolvendo crime, sexo e casamento, venda de terras, fronteiras e trocas comerciais). As autoridades coloniais ansiavam por expandir o alcance teórico de suas jurisdições sobre as comunidades indígenas, colocando importantes disputas dentro de suas próprias cortes e ao seu critério, mas na prática eles não tratavam as questões legais concernentes aos nativos americanos. Por último, para além das fronteiras coloniais, as tribos independentes exerciam uma soberania quase inata. Elas podiam aceitar as decisões advindas das leis coloniais em casos particulares, mas apenas como resultado de negociações diplomáticas. Comparados com outras primeiras colônias europeias além-mar, os sistemas jurídicos ingleses na América do Norte mantiveram um notável grau de distância em relação às leis dos povos nativos. Colônias da Companhia das Índias Orientais em Madras, Bombaim e Calcutá, por exemplo, operaram sob pactos ou contratos com os chefes nativos, o que limitou o controle inglês sobre os seus homens no exterior e demandou pelo menos alguma consideração em relação às leis nativas. Em casos específicos, os tribunais da Companhia desenvolveram procedimentos para a aplicação das leis hindu e muçulmana aos que haviam aderido àquelas religiões. Ao contrário, os ingleses na América do Norte, ao invés de firmarem contratos ou pactos com os nativos, justificavam a colonização através do desenvolvimento das terras desocupadas. Eles não se sentiam obrigados a tratar as leis dos povos nativos como uma das diversas leis locais, transnacionais e imperiais, cuja interação complexa governava os assuntos dentro de suas colônias. O alcance das leis nativas se tornou uma questão de diplomacia mais do que um problema 182 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

de “escolha de lei” dentro das principais áreas de colonização europeia. As leis nativas importavam politicamente, mas não exerciam poder de lei sobre os colonizadores. Uma comparação com o Império Espanhol ajuda a iluminar ainda mais as razões e as implicações da limitada abordagem inglesa. Nos séculos XVI e XVII, colonos castelhanos viviam em número muito menor dentre os milhões de indígenas. Os espanhóis esperavam que a maioria dos nativos fossem incorporados ao império na medida em que os colonos viviam do trabalho e dos tributos indígenas, evangelizavam índios, reordenavam suas cidades, os convidavam ou os arrastavam para dentro de seus tribunais imperiais e tentavam, parcialmente, “hispanizar” os seus costumes e governos. Contrariamente, os colonos da América do Norte britânica encontraram populações indígenas infinitamente menores nas regiões do Piedmont e da planície costeira atlântica. O número de indígenas foi reduzido entre 80% a 90% durante o período colonial, caindo de centenas de milhares para dezenas de milhares de pessoas, enquanto as populações europeias aumentavam, de aproximadamente 70.000 pessoas em 1660 para 1.270.000 em 1760. A remoção dos nativos americanos tinha um componente que não era somente numérico, mas também geográfico. Apenas uma minoria dos indígenas sobreviventes continuou a residir nas principais áreas de colonização europeia. A maioria vivia nos interiores ou atrás de uma linha de fronteira porosa e de movimento contínuo. A relativa falta de interesse dos colonos nas transações legais dos nativos no interior e na fronteira era possível porque, diferentemente dos espanhóis, os ingleses não viviam do trabalho e dos impostos indígenas. O sistema legal colonial não calibrava nem garantia a extração de trabalho, dinheiro e bens dos povos indígenas, nem coordenava investimentos econômicos de larga escala (como a mineração e a remessa de barras de ouro e prata na América do Sul) que dependiam de indígenas de diversas jurisdições locais. Os colonos não fizeram nenhum esforço sistemático para “anglicizar” os sistemas jurídicos das comunidades americanas como no modelo (em grande parte ineficiente) da campanha de cristianização. Os ingleses também não seguiram a política espanhola de tratar os indígenas como súditos ou vassalos da Coroa. A não ser que fossem naturalizados, os índios permaneciam como estrangeiros. Tipicamente, os oficiais coloniais sabiam menos dos princípios legais indígenas do que os seus pares na As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Índia britânica e na América espanhola. O que se destaca na América inglesa, portanto, é o grau relativamente alto de separação entre a lei colonial e a lei nativa.

Pluralismo legal, culturas regionais legais e escravidão Se a indisposição dos ingleses em tratar os costumes nativos como uma forma legal a que os colonos deveriam ser submetidos acabou por reduzir a complexidade da sua ordem legal, por outro lado essa complexidade ainda era considerável devido ao pluralismo legal inerente à colonização além-mar. O pluralismo legal ocorre quando múltiplos corpos estatais e não estatais propõem normas, resolvem disputas e impõem sanções dentro de um dado território ou sobre um grupo social particular e, contudo, não são parte de um único “sistema” hierárquico, sob uma mesma autoridade coordenadora. Em casa, os Estados europeus colonizadores, como a Inglaterra, mantinham ordens jurídicas que se faziam pluralísticas através de diversas dimensões. Os seus monarcas governavam monarquias “compósitas”, compostas de territórios com tradições constitucionais diversas. Uma multiplicidade de tribunais reais, senhoriais, urbanos e eclesiásticos competiam entre si e exerciam uma variedade de formas da lei. O pluralismo legal herdado dos Estados europeus muitas vezes se fazia ainda mais complexo no Novo Mundo. Para começar, as constituições das colônias inglesas não eram uniformes. Apesar de assuntos específicos variarem de colônia para colônia, particularmente nos primeiros anos de colonização emergiram três tipos básicos de governo. As Colônias Reais eram controladas diretamente pela Coroa. O monarca indicava o governador e o seu conselho, que aprovava legislações junto com uma assembleia popularmente eleita. O governador executava as leis, convocava e suspendia assembleias, apontava juízes e oficiais mais baixos e também podia vetar a legislação. O conselho funcionava como uma casa superior nas colônias com legislaturas bicamerais e, junto com o governador, ocupava a mais alta corte de apelação dentro da colônia.

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Nas colônias de proprietário59, a Coroa concedia um território definido a um indivíduo ou a um grupo que “possuía” a colônia em forma de propriedade passível de ser herdada. Como nas relações feudais, a posse passava de mão em mão de acordo com a autoridade governamental. O proprietário, normalmente residente na Inglaterra, indicava o governador da colônia, que agia em seu nome enquanto exercia poderes similares ao de um governador real. Apesar de os primeiros proprietários reivindicarem o direito de proclamar leis, ao final do último terço do século XVII eles já compartilhavam este poder com as assembleias, cujo consentimento à legislação e cobrança de impostos era necessário. Finalmente, as colônias corporativas60 exerciam amplos poderes de autogoverno, que se baseavam em cartas régias ou em costumes e práticas. Elas também selecionavam, direta ou indiretamente, através da assembleia, os governadores e seus assistentes (cujo poder se assemelhava aos dos conselheiros dos governadores). A ausência de um governador real ou proprietário com extenso controle sobre o governo, bem como o número reduzido de oficiais e juízes, rendeu às colônias corporativas algo que os contemporâneos descreveram como um ethos “democrático”. Ao longo do tempo, através da entrega voluntária ou forçada das cartas régias, a Coroa transformou algumas colônias de proprietário e corporativas em colônias reais, que se tornam preponderantes no século XVIII. A interação entre jurisdições estatais e não estatais potencialmente conflituosas aumentou ainda mais este pluralismo. O Conselho Privado inglês61, o Parlamento, o Almirantado, o Tesouro e Serviços Aduaneiros, a hierarquia da Igreja Anglicana, cada um afirmava ser responsável por regular determinados assuntos na colônia, sem claras linhas divisórias ou hierárquicas entre elas e as autoridades locais. Igrejas, universidades, propriedades senhoriais, plantations, senhores de terras (manors), patroonships62, capitães da marinha real e corporações comer59 NT: O termo no original é proprietary colony. Exemplos: Carlos II presenteou a Nova Holanda a seu irmão mais jovem, o Duque de York, que a nomeou Nova York. O mesmo monarca cedeu a William Penn uma imensa área, batizada Pensilvânia. 60 NT: Corporate colonies, também conhecidas como Charter colonies. A área da baída de Massachussets, Rhode Island e Connecticut são exemplos desse tipo de colônia. 61 NT: Os Privy councils são conselhos de assessores e conselheiros diretos do rei. 62 NT: Patroonship era o “sistema de colonização concebido em Amsterdã em 1628 e aplicado pelos holandeses na Nova Holanda (ou New Netherland): terras, a título de feudo perpétuo, eram concedidas aos empreendedores, os patroons (...)” (Cf. Bernand; Gruzinski, 2006, 746).

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ciais e filantrópicas reivindicavam jurisdições de legitimidade incerta. Cada um reivindicava zonas de controle disputadas por governos coloniais e oficiais imperiais. As colônias conseguiam controlar apenas de forma imperfeita os enclaves étnicos, ao passo que os colonos holandeses e alemães se eximiram de facto das ordenações e costumes ingleses. Alguns territórios – Nova York e Jamaica, por exemplo – passaram de um Estado europeu para outro, gerando tensões entre novas e antigas ordens jurídicas. As colônias do Novo Mundo englobavam múltiplas zonas de relacionamentos instáveis e variáveis umas com as outras e em relação aos centros imperiais. De modo que a compra de foros, apelações oportunistas, a ignorância seletiva de leis inconvenientes e uma verdadeira confusão eram abundantes no período. As colônias eram pluralísticas não apenas em suas jurisdições, mas também em suas normas. Havia uma incerteza persistente sobre como integrar uma variedade de formas de leis geradas pela metrópole e pelos colonos, que carregavam consigo princípios dos diversos tipos de leis usados na Inglaterra: a Common law (leis consuetudinárias), estatutos parlamentares, leis locais, comerciais e religiosas; e normas usadas nas cortes de Equidade63, Almirantado e Pequenas Causas64. Colonos na Nova Inglaterra aplicavam preceitos bíblicos, principalmente em seus estatutos fundacionais, ao passo que os sulistas se apoiavam em leis escravistas do império romano ou espanhol. Os colonos podiam olhar para essas amplas fontes de lei e adicionar muitas invenções próprias, porque os seus forais garantiam que eles poderiam criar as suas próprias ordenações, contanto que estas não “repugnassem” as leis da Inglaterra. Mas quais eram as “leis da Inglaterra” e como elas se estendiam ao Novo Mundo? Os administradores imperiais por vezes argumentavam que as colônias, como territórios “conquistados”, usufruíam da lei inglesa não por direito, mas por consentimento da Coroa. Contrário a esta noção, uma posição maximalista afirmava que todo direito previsto na Common law e estatutos parlamentares que fossem apropriados às condições das colôniasali se aplicavam. Uma posição intermediária, 63 NT: A court of equity era uma corte autorizada a aplicar princípios de “equidade”, complementares ou não, previstos em outras “cortes de lei”. 64 NT: As Courts of Requests eram tribunais judiciários “inferiores” na Inglaterra, criados por atos especiais do parlamento, com jurisdição local para tratar de assuntos “menores”, normalmente conflitos advindos das camadas mais baixas da população ou ações envolvendo pequenas dividas (até 40 shillings).

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adotada pelo Conselho Privado em 1772, afirmava que todos os estatutos parlamentares criados antes da data de colonização das colônias se aplicavam a elas. Um estatuto aprovado após a colonização se aplicava apenas se nomeasse uma colônia ou se a legislação na América a adotasse especificamente. Toda a Common law, gerada antes ou depois da colonização, estava atrelada à colônia (a não ser que fosse inconsistente com a sua natureza). Não apenas esses quadros discordavam entre si, mas cada um era profundamente questionável. Se os colonos usufruíam das leis inglesas apenas por anuência da Coroa, será que o silêncio implicava em um consentimento tácito? Se a lei inglesa se aplicava apenas se fosse consistente com a “condição” de uma província, o que acontecia quando colonos com diferenças religiosa, ética e social discordavam sobre o propósito e a natureza de suas colônias? E quem arbitraria tal conflito? Os ecos dessas disputas foram ouvidos desde os primeiros dias da colonização até o início do processo de independência, até porque a lei inglesa se desenvolvia em questões como independência judicial, procedimentos criminais, herança e cobrança de dívidas. Ainda menos claras eram as regras que governavam a aplicabilidade das normas transnacionais de comércio, guerra, crimes de fronteira e navegação, e pirataria. O império espanhol se deparou com discussões semelhantes sobre a relação entre as ordenações coloniais e as leis castelhanas (que automaticamente se aplicavam ao Novo Mundo). A partir do início do século XVII, a Coroa reduziu estas incertezas concedendo ao Conselho de Índias o poder de especificar o conteúdo de uma “lei das Índias” que fosse particular ao Novo Mundo. O Conselho também declarou quais ordenações religiosas e bulas papais seriam promulgadas na América. No império inglês, nenhuma instituição teve papel análogo ao Conselho de Índias, decidindo, previamente, qual elemento da lei metropolitana atrelava as colônias ou não, por serem irrelevantes ou perniciosas em relação às condições americanas. Colonos e administradores imperiais tiveram que discutir sobre esses assuntos em meio a processos e disputas políticas. As colônias inglesas também eram plurais devido ao desenvolvimento de culturas legais regionais. Os diferentes objetivos, compromissos ideológicos e experiências sociais dos colonos da Nova Inglaterra, Nova York e Nova Jersey, do Vale do Delaware, de Chesapeake e das terras baixas do Sul produziam diferentes ordens legais. Como exemplo, iremos focar nas duas principais colônias do século XVII: Massachussets e Virgínia. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Puritanos engajados lideraram o início da colonização em Massachussets. Determinados a criarem uma sociedade mais correta e cristianizada, insistiram para que a igreja e o Estado trabalhassem juntos, guiando a população a uma regeneração moral. Eles lembravam aos cristãos-novos do “pacto nacional” (national covenant) com Deus e se envolviam em uma introspecção moral e “vigília sagrada”. Massachussets controlava a imigração e exilava os dissidentes, buscando minimizar os desafios ideológicos. Apenas os membros da igreja participavam das eleições que abrangiam a colônia como um todo, preservando o controle nas mãos dos “eleitos”. No entanto, dentro do confinamento dessa missão religiosa, a colônia lutava por um modelo de autoridade comunal e consensual. Os oficias da colônia eram eleitos anualmente e a participação no governo municipal era bastante difundida. Massachussets codificava as suas leis e oferecia tribunais descentralizados nos municípios e comarcas, dispensando uma justiça rápida e não-técnica. Em contraste, os agricultores na Virgínia buscavam primordialmente ganhos materiais em detrimento de uma regeneração social. Os barões do tabaco, que controlavam as terras e o trabalho servil, exerciam a autoridade legal como resultado de sua proeminência econômica e social. Mesmo depois que a colônia instituiu uma assembleia, tribunais de condados, paróquiase outras marcas distintivas da normalidade inglesa, os homens insignes da Virgínia faziam uso de um estilo de justiça muito mais autoritário do que a norma colonial, buscando assegurar o governo sobre uma população agitada, composta desproporcionalmente por homens jovens. Ainda assim, a pouca presença institucional nos níveis abaixo dos condados e a colonização dispersa propiciaram que uma elite de “mão pesada” e certa propensão à violência agisse para minar a efetividade das decisões legais. A característica mais distintiva da Virgínia e outras colônias sulistas era a lei de escravidão. A maior parte dos africanos que trabalhavam na Virgínia e em Maryland no começo do século XVII era de trabalhadores não livres, mas não necessariamente escravos. O status desses trabalhadores variava, alguns se assemelhavam à servidão temporária, outros eram escravos por toda a vida e outros escravos hereditários. Nesse período, a Virgínia não possuía um código para a escravidão. A partir da década de 1660, a Virgínia e outras colônias do sul começaram a desenvolver uma legislação para a escravidão que 188 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

fosse reconhecível, composta por fragmentos dos estatutos de escravidão de Barbados e da Roma antiga, bem como do direito civil, da lei marcial e das regras de conduta inglesas para criados e vadios. Quando finalmente articulada, a lei de escravidão acabou por vincular as vidas da grande maioria dos africanos nas colônias sulistas e (de modo mais ameno) nas colônias do Norte, excetuando-se uma minoria de negros livres. A própria Inglaterra não possuía leis para a escravidão, nem criou um código de escravidão para suas colônias americanas, como o fizeram os impérios espanhol e francês. Diferentemente, ela permitiu às colônias que criassem tais leis como uma espécie de lei “metropolitana” que divergia da lei inglesa e que anulava a prerrogativa por liberdade contida no Direito Natural. A legislação sobre escravidão foi a contribuição mais “inovadora” e abominável das colônias norte-americanas para a tradição jurídica anglo-americana. Tal conjunto legal tinha uma série de propósitos. Primeiramente, ele definia a escravidão. Os escravos eram propriedades (“chatell”) sob o comando de seus senhores por toda a vida. O status da mãe escrava determinava o status de seus filhos, de modo que crianças nascidas de um senhor branco com uma escrava negra permaneceriam escravos. A escravidão era mais racial do que religiosa. A conversão de religiões africanas para o cristianismo não trazia a liberdade. Podiam ser escravos os africanos e os indígenas, mas não os brancos. Em segundo lugar, as colônias impuseram regulamentos de conduta rigorosos sobre os escravos e empoderaram seus senhores para o uso de força extraordinária, permitindo até mesmo a morte acidental dos escravos durante o processo de disciplina. Em terceiro lugar, de certo modo a legislação sobre a escravidão restringia a potencial crueldade dos senhores de escravos e garantia níveis mínimos de alimentação, vestimenta e abrigo. Quarto, os códigos escravistas encorajavam o racismo ao interferir sobre a fraternização entre europeus e africanos, proibindo o sexo interracial e assegurando que os escravos seriam tratados de modo bem mais degradante do que os servos temporários (indentured servants) brancos. Por fim, as colônias estimulavam ou forçavam todos os brancos, mesmo aqueles que não possuíam escravos, à cooperarem na manutenção do sistema escravagista. As leis de escravidão recompensavam os brancos que perseguissem escravos fugitivos e compeliam condestáveis a capturá-los e transportá-los. Os europeus ficavam proibidos de fazer comércio ou se As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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entreterem com africanos sem o consentimento de seu senhor. E no começo do século XVIII, todos os brancos, inclusive aqueles não detentores de escravos, eram demandados a vigiar escravos. Os senhores regulamentavam o trabalho de seus escravos, enquanto toda a sociedade (branca) deveria cooperar no policiamento de escravos que afetavam potencialmente a segurança pública.

Semelhanças por debaixo do pluralismo: simplificação institucional e tradições constitucionais Ao mesmo tempo em que o ambiente do Novo Mundo ampliava certas formas de pluralismo jurídico, ele também incentivava a simplificação do desenho institucional e da prática legal. Isto é observável ao largo de diferentes regiões jurídicas e entre as colônias corporativas, de proprietário e reais. Os colonizadores haviam deixado para trás um país notável por suas redes numerosas de jurisdições interligadas, de responsabilidades justapostas. Ao longo dos séculos, a Inglaterra havia desenvolvido tribunais para assuntos específicos – como as cortes da Common law, de Equidade, de Almirantado, de floresta e mineração. As instituições da Common law ficavam lado a lado com os tribunais dirigidos pela igreja, os de prerrogativas reais, de nobres e de senhores de terras. Os colonizadores estavam livres de boa parte dessa complexidade. Apesar de algumas cortes especializadas ainda legitimarem as ofensas de escravos, equidade e outros assuntos específicos, a maioria das questões era canalizada através de uma pirâmide de cortes locais e de comarcas de jurisdição geral e, no topo da pirâmide, um tribunal que se estendia sobre toda a colônia – composto tipicamente pelo governador, pelo conselho ou, em algumas colônias no século XVII, pela assembleia como um todo. Juízes de paz compunham os tribunais de comarca e tratavam as pequenas causas individualmente. Enquanto os tribunais modernos se especializavam na adjudicação, os tribunais coloniais lidavam com um espectro mais amplo de responsabilidades. Eles inspecionavam a construção de estradas, supervisionavam a venda de servos e escravos, definiam preços e salários, licenciavam advogados e donos de tavernas e cuidavam dos pobres. Eles cobravam e recolhiam impostos. Levantavam tropas e garantiam o seu 190 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

abastecimento. Os tribunais eram administrativos e, de certo modo, corpos executivos além de judiciais. No século XVII, foram poucos os advogados treinados que imigraram para a América do Norte. Aqueles que o fizeram e os aprendizes que eles treinaram lidaram com o grosso da prática nas cortes superiores. Em tribunais locais e nos de condados, os litigantes normalmente representavam a si mesmos ou adotavam como advogados escrivães, xerifes, funcionários públicos ou leigos que haviam se familiarizado com os procedimentos legais locais através de observação e participação. Os advogados treinados como aprendizes e alguns poucos matriculados nos Inns of Courts65formavam uma pequena minoria dos principais oficiais administrativos e jurídicos nas colônias da América do Norte. Senhores de terra, mercadores, agricultores e descendentes das famílias de elite eram os que forneciam a maioria dos juízes supremos, locais e de condado; dos conselheiros dos governadores; prefeitos e os selectmen66; bem como os juízes de paz. Estes juristas leigos e administradores preferiam uma justiça não técnica e discricionária e deixavam de lado as ordenanças consideradas inconvenientes. Os magistrados, escolhidos mais pela proeminência social do que pelas suas competências legais, exaltavam a “justiça” e o “bom comum” (common sense), olhando com desdém para as “minúcias” legais. Ao passo que os tribunais ingleses faziam uso de uma mistura de leis inglesas, francesas e latinas, os tribunais coloniais operavam apenas a partir da lei inglesa. Os colonos se concentravam no corpo das disputas e despachavam a partir dos meandros dos procedimentos legais ingleses, com suas regras complexas de pleito e seus termos obscuros. Para os padrões ingleses, os tribunais coloniais pareciam informais, baratos e rápidos. Eram considerados comunais na medida em que eram socialmente e intelectualmente acessíveis e dominados por notáveis locais e não por indicações imperiais e advogados treinados. As colônias pluralísticas se assemelhavam não apenas na estrutura de seus tribunais informais e leigos, mas em alguns de seus compromissos constitucionais centrais. Esta afirmação depende de certo ponto 65 NT: São agremiações de juristas conhecidos como barristers, um tipo de advogado especializado em litígios e na aplicação da Common Law. 66 NT: Nas cidades da Nova Inglaterra, a população masculina, adulta e livre, reunia-se anualmente para votar leis e orçamentos. Para fiscalizar e executar tais medidas aprovadas em assembleia, elegiam-se um grupo, normalmente 3 pessoas: os selectmen, literalmente “os selecionados”.

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de vista. Por um lado, cada colônia vivia sob seu próprio foral que, juntamente com as regras e costumes que evoluíram ao longo do tempo, ajudavam a criar uma “constituição” diferente em cada colônia. Mas, visto de outra perspectiva, ao final do século XVII surgiram aspectos comuns nas constituições coloniais – em suas organizações internas de poder e suas relações com a Inglaterra. Após incertezas iniciais, os ingleses estenderam aos colonos a sua consolidada tradição de “autogoverno pelo comando do Rei”. Não havia como ser diferente, uma vez que eles não tinham as necessárias capacidades fiscais, militares e administrativas para governar terras tão distantes sem a participação ativa dos colonos. Isso significava que a Coroa não comandava, mas negociava com os colonos. As estruturas constitucionais que emergiram ao longo do século XVII pressupunham um governo limitado e controle local, baseados no consentimento, ou pelo menos na aquiescência dos proprietários coloniais. Apesar de certa hesitação por parte da Coroa, todas as colônias ostentavam assembleias eleitas ao final do século. Isto não era comum no contexto norte-americano. Os espanhóis e franceses proibiam corpos representativos eleitos. A relação constitucional entre as colônias e a Inglaterra era instável e provocava desentendimentos. As colônias não gozavam de uma independência formal, nem haviam sido integradas como parte do reino da Inglaterra, como o país de Gales no século XVI. As colônias eram comumente denominadas como domínios, exercendo significativos, mas não ilimitados direitos de autogoverno. Mas o que isso significava de fato? Os administradores do império discordavam sobre os colonos do além-mar terem, de fato, as mesmas liberdades e proteções constitucionais que os ingleses metropolitanos. Alguns argumentavam que um governo mais rígido, sem as pompas próprias do constitucionalismo inglês, seria mais apropriado, devido à fragilidade das sociedades norte-americanas, à distância em relação à metrópole e ao exemplo das autoritárias colônias da Roma antiga, bem como das colônias inglesas na Irlanda. De acordo com esta visão, a Coroa não deveria estender aos colonos todas as proteções dos estatutos e da Common law inglesa. E como a Inglaterra havia criado as assembleias coloniais através de um “favor” Real, a Coroa também poderia limitar as suas prerrogativas, tratando-as mais como conselhos de governo de corporações locais do que como um corpo análogo à Câmara dos Comuns. 192 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Ao final do século XVII, estes colonos, que se entendiam como cidadãos ingleses e viviam além-mar, passaram a contestar essa interpretação sobre o seu status constitucional, reivindicando para si os mesmos direitos e proteções que os ingleses do reino. Cada vez mais os colonos asseguravam os benefícios dos estatutos e da Common law, não através da afirmação de sua aplicabilidade na América, mas através da silenciosa incorporação deles no trabalho cotidiano das assembleias e tribunais. Através da lenta, mas irredutível importação de ideias e procedimentos incorporados do constitucionalismo inglês, as assembleias aprofundavam a sua afirmação como versões locais da Câmara dos Comuns. Elas usavam o poder de controle sobre a receita de impostos para aumentar ainda mais os seus poderes frente a governadores que não tinham o prestígio e a proteção da Coroa inglesa. Algumas importantes características da sociedade colonial os ajudavam nesse sentido. A amplidão geográfica das colônias norte-americanas tornava a garantia do consentimento de cidades e plantations distantes uma necessidade prática. O próprio espaço militava contra métodos mais autoritários de governo, assim como a dificuldade de arregimentar colonos dispostos a imigrarem e trabalharem sem garantias de auto-governo e direitos constitucionais. Apesar de as disputas em torno dos poderes das assembleias coloniais e da aplicabilidade da lei inglesa perdurarem ao longo do processo de independência norte-americana, foi no século XVII que foram assentadas as bases para os desenvolvimentos futuros. O Estado de direito, o governo representativo e a primazia do consentimento se tornaram pontos centrais do constitucionalismo na América do Norte inglesa.

Centralização, anglicização e seus limites No curso do século XVII, as colônias se tornaram mais valiosas para a Coroa à medida que o comércio transatlântico aumentava. Através de uma série de Atos de Navegação, a Coroa inglesa buscou reduzir a participação estrangeira nos mercados coloniais, exigindo que determinados produtos fossem transportados em navios ingleses e coloniais e passassem por portos ingleses antes de serem transportados. Após a Restauração (1660) e, particularmente, após a Revolução As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Gloriosa (1688-1689), a Coroa decidiu aumentar o controle sobre as colônias, até então habituadas a uma presença imperial leve. O império tomou uma série de medidas no sentido de aumentar e fortalecer a aplicação dos Atos de Navegação: despachou inspetores de alfândega para viverem no Novo Mundo e fundou tribunais de vice-almirantado permanentes, que procediam sem júri. Transformou colônias de proprietários em colônias reais, dentro das quais a Coroa passou a indicar advogados treinados (ao invés dos notáveis locais) como advogados-gerais e chefes de justiça. O Conselho Privado estabeleceu os Lordes de Comércio67 (1675-96) e o Conselho de Comércio (16961782) para coletar informações sobre as condições norte-americanas e esboçar instruções para os governadores reais, aumentando, desta forma, a vigilância sobre o governo e o judiciário coloniais. Por insistência da Coroa, as poucas assembleias que atuavam como a mais alta corte de apelação perderam este direito para as Cortes Superiores de Judicatura, preenchida pelo governador e seu conselho, aumentando o seu poder judicial não apenas frente aos representantes eleitos pelo povo, mas também sobre os tribunais locais. Todas estas medidas aumentaram a supervisão da Coroa e reduziram a autonomia dos colonos. Esta autonomia também foi reduzida pela crescente determinação do Conselho Privado em revisar os estatutos coloniais e opiniões jurídicas. Já no último quarto do século XVII, particularmente na virada para o século XVIII, o Conselho Privado examinava a legislação colonial com a intenção de desautorizar os estatutos que eram incompatíveis como as leis da Inglaterra ou que enfraqueciam os Atos de Navegação ou as prerrogativas reais. Após 1690, o Conselho derrubou cerca de 470 dos mais de 8.500 estatutos revisados. O Conselho também ouviu apelações de processos que envolviam um considerável valor em disputa, normalmente acima de £200, ainda que variável. O mesmo órgão analisava apenas as apelações da mais alta corte colonial (que poderia ser a do governador e do Conselho). Não ouvia os casos de tribunais intermediários de apelação, nem de tribunais de primeira instância; nem revertia convicções criminais ou vereditos de júris. Litigantes chegaram a enviar

cerca de 250 apelações à Inglaterra entre 1670 e a Independência (Cf. Bilder, 2008; Grossber; Tomlins, 2008, 69). A revisão dos estatutos e apelações feitas pelo Conselho permitiu à Coroa proteger os seus interesses principais, ao passo que admitia uma considerável variação jurídica local. A crescente vigilância da Coroa, somada ao crescimento do comércio transatlântico, acabou por minar o sistema herdado do século XVII de uma justiça acessível, informal e leiga, criando pressões para um sistema legal mais formal e advocatício. Colonos que comercializam através de fronteiras coloniais ou em redes de mercadores internacionais, assim como os que tentavam comissionar ou resistir aos administradores imperiais, aos Atos de Navegação e às revisões efetuadas pelo Conselho Privado, eram empurrados em direção aos precedentes e procedimentos ingleses como uma língua franca legal. Advogados treinados que conseguiam navegar nesse universo se tornaram cada vez mais valiosos para os litigantes. Os governadores reais, oficiais imperiais e os advogados, que cada vez mais surgiam como procuradores-gerais, juízes de cortes superiores e conselheiros para os poderosos, não se afastavam dos aspectos técnico-legais. Pelo contrário, os aceitavam e até mesmo insistiam neles. Juízes e advogados davam cada vez mais atenção aos meandros dos pleitos e procedimentos do que às implicações dos precedentes da Common law inglesa. O historiador John Murrin (1966; 1983, 540-72) denominou esses processos conectados como uma “anglicização” dos sistemas jurídicos coloniais. A anglicização também tinha outro lado. O termo faz alusão ao desenvolvimento de uma forma mais “inglesa” de governança sobre as colônias a partir do último terço do século XVII em diante. Teria envolvido a criação de judiciários mais hierarquizados, a eliminação da jurisdição de apelação das Assembleias e o deslocamento de algumas medidas de controle daqueles que nasciam deste lado do Atlântico, através da indicação de inspetores de alfândega, juízes de vice-almirantado e advogados (barristers)68 ingleses nas supremas cortes coloniais. Além disso, as características distintas e até mesmo utópicas das colônias do século XVII, que haviam nascido de visões tidas como marginais ou

67 NT: Os Lords of Trade and Plantations ou simplesmente Lords of Trade (posteriormente chamado Board of Trade, aqui traduzido como Conselho de Comércio) era um departamento de governo britânico cuja função era fomentar, fiscalizar e arbitrar o “comércio e indústria”, sendo um comitê do Privy Council.

68 Barristers são uma categoria de advogados específicos na tradição jurídica inglesa. Seriam advogados mais especializados em litígios, que atuam nos tribunais e pertencem a uma Agremiação de estilo Inn – ver nota 07 –, diferindo de outra categoria de advogados na Inglaterra, os solicitors.

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suprimidas na metrópole, acabaram se desfazendo com o tempo. A sagrada disciplina das colônias da Nova Inglaterra foi se desfazendo, assim como os experimentos neofeudais de algumas das primeiras colônias de proprietário, as tentadoras iniciativas políticas absolutistas na Jamaica e em Nova York e o compromisso ao “experimento sagrado” Quaker na Pennsylvania. Os dois lados da anglicização reduziram as peculiaridades das ordens legais nas diversas colônias inglesas e incentivaram a convergência dessas ordens em direção uma a outra e em direção à Inglaterra. Esses desenvolvimentos no direito andavam de mãos dadas com outras formas contemporâneas de anglicização: a crescente semelhança entre a cultura da elite colonial, as estruturas militares e os padrões de consumo coloniais em relação aos da metrópole, além da formação de uma identidade inglesa mais profunda e autoconsciente. Ainda assim, a anglicização do direito e a centralização imperial não conseguiram varrer tudo o que havia anteriormente. Apesar de sua importância, uma parte significativa do controle local e da diversidade persistiu nos sistemas legais coloniais. A supervisão imperial foi estreitada em relação aos padrões de “governo solto” do século XVII, mas de modo algum em termos absolutos. Primeiramente, o século XVII testemunhou não apenas um controle melhorado por parte da Coroa, mas também uma resistência mais sofisticada e mais coordenada em relação à superintendência metropolitana. Os colonos se tornaram adeptos da defesa de suas leis e instituições legais através do lobby e da mobilização de grupos de interesse em Londres, utilizando uma retórica Whig69 anti-privilégio. Em segundo lugar, o termo “centralização” obscurece aquilo que Jack Greene (1994) chamou de qualidade “negociada” do império inglês – a forma pela qual as práticas governamentais se faziam não como consequência dos pronunciamentos feitos em Londres, mas por um processo de barganha através do qual se obtinha o consentimento ou a aquiescência das colônias. O império inglês, diante de suas divisões políticas e de suas modestas capacidades fiscais, militares e administrativas, estava inclinado a negociar com as elites coloniais ao invés de confrontar vigorosamente as resistências. Em terceiro lugar, a noção de centralização superestima as ambições e a constância das autoridades imperiais inglesas. A centralização não era vista como um fim em si 69 NT: Os Whig compunham o partido que reunia as tendências dos setores liberais no Reino Unido.

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mesma, mas como um meio de assegurar prerrogativas e administrar o comércio em benefício do país materno e de seus grupos de mercadores mais bem conectados. Mesmo nesse sentido limitado, as iniciativas centralizadoras se mostram inconsistentes e hesitantes, sujeitas a adiamentos e alterações causadas por substituições dos administradores imperiais e vicissitudes na política interna inglesa. Em quarto lugar, os esforços imperiais em aumentar o controle se deparava com um dos fatos centrais na América colonial: o controle local das instituições legais e das tomadas de decisão. A supervisão imperial equivalia, como observou Stephen Botein (1981, 130), “a pouco mais do que uma sobreposição aos hábitos localizados de governança colonial”. Os funcionários apontados pela Coroa se concentravam nas capitais e nos maiores portos, somando cerca de vinte oficiais por província, menos ainda nas colônias corporativas ou de proprietário. Instituições de comarcas e municípios, ocupadas por notáveis das vizinhanças, forneciam o suporte principal da governança cotidiana. Junto com os jurados, eles refletiam e defendiam os costumes comunitários, que guiavam o cumprimento das prioridades e a resolução de disputas. Mesmo quando nomeados pelos governadores reais, os oficiais mais baixos – policiais, escriturários, selectmen, juízes de paz e xerifes – minavam as indesejadas políticas imperiais através do controle das investigações e da execução das leis, ou simplesmente através da inoperância. Os oficiais da Coroa, desde o governador até os xerifes e juízes de paz não conseguiam exercer efetivamente a sua autoridade sem a cooperação das comunidades locais e os seus representantes nas assembleias, que poderiam se articular para resistir às iniciativas imperiais indesejadas. Em quinto lugar, o império inglês também encontrava dificuldades para disseminar o seu entendimento sobre as leis e sobre os quadros normativos e políticos que explicavam os propósitos e significados da lei. Os notáveis locais dominavam a comunicação da lei bem como a sua administração. Consideremos, como contraponto, as Américas espanhola e francesa. Nesses impérios, advogados treinados e oficiais da Coroa controlavam todos os níveis do judiciário, com exceção dos mais baixos. Castela e França conscientemente controlavam quais conhecimentos legais atravessavam o Atlântico e utilizavam os oficiais da Coroa, advogados, igrejas e escolas para disseminar o entendimento do imperador sobre a lei. Com este objetivo, o império espanhol abriu caAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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nais múltiplos e alternativos de comunicação jurídica para a sua extensa rede administrativa no Novo Mundo, que alcançava até o nível mais local das vilas. O reino de Castela introduziu o entendimento imperial sobre o direito na sociedade colonial não apenas através de seu extenso sistema administrativo, mas também através das universidades e da Igreja Católica. Em comparação, o sistema inglês teria mantido apenas linhas de comunicação indiretas e mediadas entre Londres e os governadores coloniais, assembleias e cortes superiores. Os ingleses construíram poucas linhas diretas de transmissão para os oficiais mais baixos e notáveis locais. Eles não tinham uma rede administrativa robusta no interior ou uma igreja apoiada pelo Estado. As diversas seitas e congregações na América inglesa podiam facilmente reelaborar o entendimento imperial da lei, bem como transmiti-lo para a sociedade colonial. Em grande parte, os colonos aprenderam a lei inglesa através de redes sociais que competiam entre si e que tinham interesses próprios. As redes de sociabilidade se mostravam fundamentais para a circulação das leis, muitas vezes na forma oral ou de manuscritos, e por vezes aumentando a habilidade de agentes negligentes ou autointeressados em enterrar ou transformar as mensagens e as perspectivas jurídicas da Coroa. A Coroa inglesa gozava apenas de uma modesta influência sobre essas redes de sociabilidade, principalmente porque ela falhava em conceder patrocínio sistemático aos intermediários das informações jurídicas que fossem confiáveis, como o fizeram os franceses. Em sexto lugar, e por último, a limitação mais profunda sobre a centralização era o fato de que o alcance do Estado, imperial ou colonial, não era tão firme e tão difundido como se poderia parecer. Para além das colônias da costa, as instituições legais eram desorganizadas e muitas vezes inexistentes. Nas áreas interioranas elas eram atrasadas, deixando largas faixas coloniais subgovernadas. Mesmo em regiões colonizadas há tempos, as disputas faccionais e constitucionais frequentemente suscitavam questões em relação à legitimidade do governo. Colonizadores holandeses e mais tarde alemães mantinham enclaves étnicos em que buscavam administrar os seus assuntos com o mínimo de interferência da lei inglesa. “Governos privados” como plantações, igrejas, escolas, fábricas, senhores de terra e, acima de tudo, famílias, resolviam disputas e criavam regras com mais frequência do que o Estado. De fato, uma das tarefas centrais do Estado era empoderar e regular esses atores “priva198 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

dos”, que eram os principais criadores e intérpretes das leis. Muitas colônias haviam começado como corporações anônimas ou proprietárias, de modo que o “Estado” era por si só um governo parcialmente privado. Ofuscado por uma miríade de governos privados, a lei Estatal não era executada de maneira confiável pelos oficiais, e, muitas vezes, tinha seu cotidiano afetado através da mediação com esses governos privados. Em suma, a América do Norte britânica do século XVIII se assemelhava a outros corpos políticos no sentido de que o direcionamento do Estado rumo a um controle mais rígido da lei se confrontava com barreiras sociais, institucionais e ideológicas. Mas os corpos políticos desenhados entre a Nova Inglaterra e a Geórgia não eram simplesmente terras modernas. Eram colônias entrelaçadas em um império – um império sem dinheiro que ansiava por cobrar impostos destas províncias, que pouco contribuíam. As especificidades de como a centralização imperial provocou resistência local e deflexão, bem como inspirou a acomodação estratégica e a aprovação seletiva nos ajudam a explicar o formato da política colonial e, posteriormente, as dinâmicas do movimento revolucionário.

Roteiro bibliográfico Assuntos gerais: Visões gerais sobre o direito norte-americano no início do período colonial podem ser encontradas em: Stephen Botein: Early American Law and Society (New York, 1983); e Peter Charles Hoffer: Law and People in Colonial America, revised ed. (Baltimore, 1998). Também são interessantes os primeiros capítulos de: Lawrence M. Friedman: A History of American Law, 3rd ed. (New York, 2005); e Kermit L. Hall: The Magic Mirror: Law in American History (New York, 1989). Artigos essenciais que cobrem boa parte desse campo de pesquisa estão presentes em três coleções: David Flaherty (ed.): Essays in the History of Early American Law (Chapel Hill, 1969); Michael Grossberg and Christopher Tomlins (eds.): The Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (15801815) (Cambridge, 2008); e Christopher L. Tomlins and Bruce H. Mann (eds.): The Many Legalities of Early America (Chapel Hill, 2001). As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Direito indígena e colonial: Justificativas para a colonização britânica aparecem em três tópicos diferentes: as reivindicações britânicas face aos outros Estados colonizadores no Novo Mundo; reivindicações imperiais britânicas face aos colonos, com os seus próprios pontos de vista em relação à jurisdição e autoridade; e reivindicações britânicas face aos povos nativos. Nestes debates, os argumentos em relação à soberania (como estender o domínio político sobre os territórios nativos) e sobre a propriedade (como tomar ou comprar parcelas de terra) estão relacionados, mas não se reduzem um ao outro. Sobre as teorias de colonização em perspectiva comparada, ver: J. H. Elliott: Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America 1492-1830 (New Haven, 2006); John Thomas Juricek: English Claims in North America to 1660: A Study in Legal and Constitutional History (PhD dissertation, University of Chicago, 1970); Ken MacMillan: Sovereignty and Possession in the English New World: The Legal Foundations of Empire, 1576–1640 (Cambridge, 2006); e Anthony Pagden: Lords of All the World: Ideologies of Empire in Spain, Britain and France, c.1500-c.1800 (New Haven, 1995). A vasta literatura sobre a desapropriação das terras dos povos nativos pelos colonos – uma questão envolvendo lei, ideologia e questões práticas– foi elaborada de modo muito inteligente em Stuart Banner: How the Indians Lost Their Land: Law and Power on the Frontier (Cambridge, Mass., 2005). Sobre interações jurídicas cotidianas entre os povos nativos e colonos, ver Katherine Hermes: “The Law of Native Americans, to 1815,” In: Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Christopher L. Tomlins and Michael Grossberg (Cambridge, 2008), 32-62; e Yasuhide Kawashima: Puritan Justice and the Indian: White Man’s Law in Massachusetts, 1630-1763 (Middletown, Conn., 1986). Pluralismo legal: Sobre o significado e os usos do conceito de “pluralismo legal” e sobre as suas habilidades de somar uma nova dimensão sobre objetos diversos como construção do Estado, relações inter-imperiais, conflitos culturais, acomodações e transformações religiosas, ver: e.g., Lauren Benton: Law and Colonial Cultures: Legal Regimes in World History, 1400-1900 (Cambridge, 2002); Benton, “Atlantic Law: Transformation of a Regional Legal Regime,” In: The Oxford Handbook of 200 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

The Atlantic World 1450-1850, ed. Nicholas Canny and Philip Morgan (Oxford, 2011), 400-416; Benton and Richard J. Ross: eds. Legal Pluralism and Empires, 1500-1850 (New York, 2013); Eliga H. Gould: “Zones of Law, Zones of Violence: The Legal Geography of the British Atlantic, circa 1772,” William and Mary Quarterly 55 (2003): 471-510; Daniel J. Hulsebosch: Constituting Empire: New York and the Transformation of Constitutionalism in the Atlantic World, 1664-1830 (Chapel Hill, 2005); e Richard J. Ross: “Puritan Godly Discipline in Comparative Perspective: Legal Pluralism and the Sources of ‘Intensity’,” American Historical Review 113 (2008): 975-1002. O império britânico: trabalhos modelos que colocam as estruturas administrativas e jurisdicionais no centro incluem: A. Berriedale Keith: Constitutional History of the First British Empire (Oxford, 1930); Leonard W. Labaree: Royal Government in America (New Haven, 1930); e, especialmente, Charles M. Andrews: The Colonial Period of American History, 4 vols. (New Haven, 1934-38). Herbert L. Osgood produziu um trabalho fundacional sobre a distinção entre as colônias corporativas e proprietárias: “The Corporation as a Form of Colonial Government (pts. I-III),” Political Science Quarterly 11 (1896): 259-277, 502-533, 694715; e “The Proprietary Province as a Form of Colonial Government (Parts I, II, and III),” American Historical Review 2, 3 (1897-98): 644664, 31-55, 244-65. Mary Sarah Bilder examinou a interação da regulamentação imperial e o autogoverno imperial em: “English Settlement and Local Governance,” In: The Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 63-103. Desde a década de 1950, pesquisadores têm expandido o tema da história imperial, alargando o entendimento do que efetivamente mantém um império unido. Para isso, eles examinaram as redes econômicas, sociais, intelectuais e políticas que surgiram em torno do aparato imperial e que auxiliaram na integração do Atlântico inglês. A construção do império passou a se assemelhar não tanto a uma imposição da fiscalização administrativa e controle do comércio pela metrópole, mas a um processo multilateral de negociação, recrutamento e ajustamento cultural que limitava certas ambições “centralizadoras”. Nesta As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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linha está o distinto trabalho de Bernard Bailyn: The Origins of American Politics (New York, 1968); Christine Daniels and Michael V. Kennedy (eds.): Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 15001820 (New York, 2002); Richard R. Johnson: Adjustment to Empire: The New England Colonies, 1675-1715 (Leicester, 1981); Stanley N. Katz: Newcastle’s New York: Anglo-American Politics, 1732-1753 (Cambridge, Mass., 1968); Alison Gilbert Olson: Anglo-American Politics, 16601775: The Relationship Between Parties in England and Colonial America (New York, 1973); Alison Gilbert Olson: Making the Empire Work: London and American Interest Groups, 1690-1790 (Cambridge, 1992); Jack P. Greene: Peripheries and Center: Constitutional Development in the Extended Polities of the British Empire and the United States, 1607-1788 (Athens, Ga., 1987); Jack P. Greene: Negotiated Authorities: Essays in Colonial Political and Constitutional History (Charlottesville, 1994); e Michael G. Kammen: A Rope of Sand: The Colonial Agents, British Politics, and the American Revolution (Ithaca, 1968). A mudança na orientação da história imperial pode ser percebida ao se comparar os volumes 1 de J. Holland Rose, et. al.: The Cambridge History of the British Empire (Cambridge, 1929) ao trabalho recente da Oxford History of the British Empire, especialmente os volumes 1, 2, e 5 (1998-2001). Para trabalhos em assuntos específicos, veja sobre o Conselho Privado e sobre a revisão da legislação colonial e julgamentos da corte superior: Mary Sarah Bilder: The Transatlantic Constitution: Colonial Legal Culture and the Empire (Cambridge, Mass., 2004); Elmer B. Russell: The Review of American Colonial Legislation by the King in Council (New York, 1915); Joseph H. Smith: Appeals to the Privy Council from the American Plantations (New York, 1950); e Joseph H. Smith: “Administrative Control of the Courts of the American Plantations,” In: David Flaherty (ed.). Essays in the History of Early American Law (Chapel Hill, 1969), 281-335. Sobre o vice-almiranteado e serviços de alfândega, ver: Charles M. Andrews: “Introduction: Vice-Admiralty Courts in the Colonies,” In: The Records of the Vice-Admiralty Court of Rhode Island, 1716-1752, ed. Dorothy S. Towle (Washington, 1936), 1-79; Thomas C. Barrow, Trade and Empire: The British Customs Service in Colonial America, 1660-1775 (Cambridge, Mass., 1967); e Carl Ubbelhode: The Vice-Admiralty Courts and the American Revolution (Chapel Hill, 1960). 202 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Culturas jurídicas regionais: A reconstrução das culturas jurídicas regionais emerge e depende de uma enorme literatura acadêmica que delineou as diferenças nas histórias econômica, demográfica, intelectual e cultural de várias regiões da América do Norte britânica. Os principais artigos e monografias formam uma lista muito extensa para serem citados. Trabalhos que sintetizaram essa literatura considerável incluem: David Hackett Fischer: Albion’s Seed: Four British Folkways in America (Oxford, 1989); Jack P. Greene: Pursuits of Happiness: The Social Development of Early Modern British Colonies and the Formation of American Culture (Chapel Hill, 1988); and Michael Zuckerman: “Regionalism” In: A Companion to Colonial America, ed. Daniel Vickers (Blackwell, 2003), 311-33. Trabalhos que colocam no centro de seus argumentos a cultura jurídica regional incluem: David Thomas Konig: “Regionalism in Early American Law,” In: The Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 144-77; e Christopher Tomlins: Freedom Bound: Law, Labor, and Civic Identity in Colonizing English America, 1580–1865 (Cambridge, 2010). William E. Nelson adotou uma abordagem mais segmentada ao revigorar as comparações de colônia a colônia em uma série de trabalhos ainda em andamento: The Common Law of Colonial America, Volume I: The Chesapeake and New England 1607-1660 (Oxford, 2008); and The Common Law in Colonial America, Volume II: The Middle Colonies and the Carolinas, 1660-1730 (Oxford, 2013). Escravidão: As primeiras leis de escravidão nas colônias norte-americanas eram parte de um sistema mais amplo de normas, pressões e incentivos que estruturavam as relações entre senhores, escravos e a sociedade de modo geral. Trabalhos centrados especificamente nas estruturas de adjudicação e na relação entre “governos particulares” de plantations e os tribunais estatais incluem: A. Leon Higginbotham, Jr.: In the Matter of Color: Race and the American Legal Process: The Colonial Period (New York, 1978); Thomas D. Morris: Southern Slavery and the Law, 16191860 (Chapel Hill, 1996); Philip J. Schwarz: Twice Condemned: Slaves and the Criminal Law of Virginia, 1705-1865 (Baton Rouge, 1988); Schwarz: Slave Laws in Virginia (Athens, 1996); e William M. Wiecek: “The Statutory Law of Slavery and Race in the Thirteen Mainland As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Colonies of British America,” William and Mary Quarterly 34 (1977): 258-80. Jonathan A. Bush explicou como a estrutura constitucional do império britânico permitiu às colônias que aprovassem ordenações de escravos como uma espécie de lei local, “municipal”, apesar da proibição da escravidão na metrópole e da ausência de um código imperial sobre a escravidão. Ver Bush: “Free to Enslave: The Foundations of Colonial American Slave Law,” Yale Journal of Law and the Humanities 5 (1993): 417-470. Artigos recentes que contrastam as legislação de escravidão na América inglesa, espanhola e francesa, incluem: Alejandro de la Fuente and Ariela J. Gross: “Comparative Studies of Law, Slavery and Race in the Americas,” Annual Review of Law and Social Science 6 (2010): 469-85; and Sally E. Hadden: “The Fragmented Laws of Slavery in the Colonial and Revolutionary Era,” in: The Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg e Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 253-87. Anglicização da lei: A dissertação de John M. Murrin e uma série de artigos têm avançado na ideia de que as colônias no século XVIII, ao invés de se tornarem mais “americanas” ou “democráticas”, na verdade se tornavam mais “anglicizadas”. As suas ordens jurídicas convergiam em direção às normas e padrões ingleses e, neste processo, reduziu-se parte da diversidade do século XVII. Ver Murrin, “Anglicizing an American Colony: The Transformation of Provincial Massachusetts” (PhD dissertation, Yale University, 1966); “The Legal Transformation: The Bench and Bar of Eighteenth-Century Massachusetts,” in Colonial America: Essays in Political and Social Development, ed. Stanley N. Katz and John M. Murrin (New York, 1983), 540-72; and “Political Development,” in Colonial British America: Essays in the New History of the Early Modern Era, ed. Jack P. Greene and J.R. Pole (Baltimore, 1984), 408-56. Trabalhos que dedicam atenção particular ao direito, ao mesmo tempo que expandem, desafiam e reorientam esta tese, incluem: Cornelia Hughes Dayton, “Turning Points and the Relevance of Colonial Legal History,” William and Mary Quarterly 50 (1993): 7-17; Dayton: Women before the Bar: Gender, Law, and Society in Connecticut, 1639-1789 (Chapel Hill, 1995); James A. Henretta, “Magistrates, Common Law Lawyers, Legislators: The Three Legal Systems of British America,” in Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Christopher 204 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

L. Tomlins and Michael Grossberg (Cambridge, 2008), 555-92; David T. Konig: Law and Society in Puritan Massachusetts: Essex County, 1629-1692 (Chapel Hill, 1979); Bruce H. Mann: Neighbors and Strangers: Law and Community in Early Connecticut (Chapel Hill, 1987); e William M. Offutt, “The Atlantic Rules: The Legalistic Turn in British North America,” in The Creation of the British Atlantic World, ed. Elizabeth Mancke and Carole Shammas (Baltimore, 2005), 160-81. Comunicações jurídicas: historiadores do período inicial dos impérios modernos inglês, francês e espanhol têm discutido há muito tempo como a distância e a comunicação lenta e irregular interferiam na fiscalização metropolitana sobre as colônias no Novo Mundo e estimulavam estruturas negociadas de poder. Pesquisadores tendem a enfatizar a interrelação das redes administrativas, econômicas e sociais. Parte destes trabalhos tem se dedicado continuamente à comunicação do direito: Kenneth J. Banks: Chasing Empire Across the Sea: Communications and the State in the French Atlantic, 1713-1763 (Montreal, 2002); Tamar Herzog: “Ritos de Control, Prácticas de Negociación: Pesquisas, Visitas y Residencias y las Relaciones entre Quito y Madrid (1650-1750),” in Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica, ed. Jose AndresGallego (Madrid, 2000); Tamar Herzog: Upholding Justice: Society, State, and the Penal System in Quito (1650-1750) (Ann Arbor, 2004); Richard J. Ross, “Legal Communications and Imperial Governance: British North America and Spanish America Compared,” in The Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 104143; e Ian K. Steele, The English Atlantic, 1675-1740: An Exploration of Communication and Community (New York, 1986).

Extratos de documentos Observadores no século XVIII discordavam sobre a melhor maneira de caracterizar os primeiros sistemas jurídicos americanos. A seguir estão dois pontos de vista diferentes – uma avaliação positiva feita por Jeremiah Dummer e uma crítica por Thomas Pownall. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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(1) Treinado como pastor, Jeremiah Dummer serviu como agente da colônia de Massachussets em Londres entre os anos 1710-21. Contrário a um projeto de lei proposto na Câmara dos Comuns, que iria anular os forais de Massachussets, Connecticut e outras colônias, Dummer publicou um panfleto defendendo essas colônias contra as acusações de corrupção, governos arbitrários e interferência sobre os Atos de Navegação. Em meio a este argumento maior, Dummer apresentou um relato simpático às cortes da Nova Inglaterra, destacando a sua acessibilidade e justiça.

Jermiah Dummer, A Defense of the New England Charters (Boston, 1721), 21-23 [grafia e pontuação foram atualizados]: Nos governos de forais (charters), “todos os funcionários, civis e militares são eleitos pelo povo, anualmente”. Não pode haver “sobre os próprios governantes maior obrigação na execução da justiça do que o fato de que disso depende a sua eleição no próximo ano. Por isso a escolha frequente de magistrados tem sido um pilar central sobre o qual todos aqueles que visam a liberdade nos seus esquemas do governo têm se apoiado”. Esses governos, “longe de cercearem a liberdade do sujeito, a tem melhorado em alguns artigos importantes, os quais a circunstância das coisas na Grã-Bretanha talvez não demande ou não admita facilmente. Para ilustrar alguns: Houve desde o princípio uma repartição erguida por lei em todo país em que as transferências de terra são inseridas na integra após o reconhecimento por parte do outorgante perante um juiz de paz, meio pelo qual muitas fraudes são impedidas; e nenhuma pessoa poderá vender a sua propriedade por duas vezes, ou receber mais dinheiro do que ela realmente vale. Medidas foram igualmente tomadas para a segurança da vida e da propriedade do sujeito em matéria de júri, que não é entregue pelo xerife do condado, mas escolhido pelos habitantes da cidade antes da audiência do tribunal. E esta eleição está sob a mais exata regulamentação, a fim de evitar a corrupção, tanto quanto a prudência humana pode fazê-lo...” [Nota: xerifes ingleses eram acusados​​ de compra de júri em casos de crimes de pessoas de alto gabarito, o que não acontecia na Nova Inglaterra, de acordo com Dummer].

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“A reparação em seus tribunais de justiça é fácil, rápida e barata. Todos os processos estão em inglês e não são admitidas falácias e objeções, pelo contrário, a questão geral é sempre dada e assuntos especiais são colocados em evidência, economizando tempo e despesa. E, neste caso, um homem não está susceptível a perder sua propriedade por um vício de forma; nem é o mérito da causa construído a depender das sutilezas do funcionário. De acordo com uma das leis do país, nenhuma ordem judicial pode ser abatida por um erro circunstancial, como um pequeno equívoco ou alguma informalidade. E por outra lei, está definido que cada advogado que retire uma ordem judicial do gabinete do secretário deve endossar seu sobrenome sobre elae ser obrigado a pagar à parte adversa seus custos e encargos em caso de não instauração de processo penal ou desistência, ou se o requerente receber uma sentença de deserção ou se tenha algum julgamento sobre ele. O mesmo Ato ainda garante que, se o requerente sofrer um processo por deserção/despacho de improcedência por desvio de ação do advogado, ele será obrigado a elaborar novo mandado sem taxa, caso a parte desejar reabrir o processo. Eu não posso deixar de pensar que todos, com exceção de alguns senhores de túnica e advogados, irão pensar que esta é uma lei saudável e bem calculada em benefício do sujeito. Para o rápido despacho das causas, as declarações fazem parte da ordem judicial na qual o caso é total e particularmente desenvolvido. Se se trata da matéria de fato, o fato é anexado ao mandado e cópias de ambos são entregues ao réu, o qual, quatorze dias antes da audiência, é obrigado a pleitear diretamente, sendo a matéria então julgada. Enquanto na prática da Corte Real70 [na Grã-Bretanha], perde-se de três a quatro meses após a apresentação do mandado, antes de a causa ser levada a apreciação”. “Nem estão as pessoas da Nova Inglaterra oprimidas pelos infinitos atrasos e despesas presentes nos processos em Chancery, onde ambas as partes são frequentemente arruinadas pelas cobranças e pela delonga do processo. Mas assim, como em todos os outros países, com exceção apenas da Inglaterra, ...[direito e equidade] são considerados iguais e nunca divididos”. [Nota: Na Inglaterra, os tribunais de direito civil (common law) tratavam questões de direito, enquanto o Tribunal de Chancery tratava de questões específicas, consideradas questões de 70 “King’s Bench” refere-se ao lugar ocupado pelo Rei, que presidia este tribunal na Corte.

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“equidade”. Na Nova Inglaterra, os tribunais de jurisdição geral lidavam tanto com as questões de direito quanto com as de equidade, poupando o litigante os custos e as dores de cabeça do sistema de jurisdição repartida da Inglaterra]. (2) Thomas Pownall, nascido na Grã-Bretanha, foi governador de Massachusetts entre 1757-60. Quando ele retornou à Inglaterra, sugeriu reformas a serem feitas no império no intuito de garantir a fidelidade das colônias em agitação. Diferentemente de Dummer, Pownall fornece uma uma avaliação negativa das cortes coloniais. Onde o agente colonial Dummer enxergou acessibilidade, velocidade e informalidade, o administrador imperial Pownall encontrou injustiça, ignorância e confusão. Em resposta, Pownall demandava maior controle real sobre as jurisdições rebeldes no Novo Mundo. Thomas Pownall, The Administration of the Colonies, Wherein their Rights and Constitutions are Discussed and Stated71, 4ª ed. (Londres, 1768), 102-109 [ortografia e pontuação modernizadas]: “É regra universalmente adotada por todas as colônias, uma vez que elas levaram consigo para a América, a Common Law da Inglaterra, com o poder de tal parte dos estatutos (com exceção dos que dizem respeito à jurisdição eclesiástica) como estavam em vigor no momento da sua criação. No entanto, como não há uma regra fundamental que diga quais são os estatutos admissíveis e quais não se admitem a todos, admitem também o pleno estabelecimento da jurisdição eclesiástica, da qual fugiram para este lugar selvagem em busca de refúgio. E uma vez que eles fazem distinções, admitindo alguns e rejeitando outros, quem deverá traçar esta fronteira e onde ela deve passar? Além disso, como o direito civil em si nada mais é do que a prática e a determinação dos tribunais sobre questões de direito conduzida por precedentes, nos lugares onde as circunstâncias e as pessoas de um país em sua relação com os estatutos e do direito civil diferem tão intensamente, isto significa que o direito civil destes deve, em seu curso natural, se tornar diferente, e às vezes até mesmo contrário ou, pelo menos incompatível, com o direito 71 NT: “A Administração das Colônias, Concernente à Discussão e Afirmação de seus Direitos e Constituição”.

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comum da Inglaterra, de modo que em alguns casos as determinações decorrentes tanto do estatuto quanto do direito civil devem ser rejeitadas. Isso torna as judicaturas nesses países vagas e precárias, perigosas, se não arbitrárias. Isto produz necessariamente (mesmo com todos os cuidados na formação e execução de suas leis provinciais), um direito civil neste país diferente, incompatível se não contrário e independente ao do país mãe, do que se depreende que nada pode ser mais desvantajoso ao sujeito, e nada mais depreciativo do poder do governo do país mãe, e a partir desse máxima fundamental de que os colonos não devem ter leis contrárias às da metrópole. “ “Eu não posso evitar citar uma longa, mas muito precisa observação do autor da história de Nova York. “O estado de nossas leis abre as portas para muita controvérsia. A incerteza em relação a elas torna a propriedade precária e muito nos expõe à decisão arbitrária de maus juízes. O direito civil da Inglaterra é geralmente recebido junto com tais estatutos, como foram decretados antes que nós tivemos nossa própria legislatura, mas nossos tribunais exercem uma autoridade soberana para determinar quais partes do direito civil e dos estatutos devem ser estendidos, pois deve-se admitir que a diferença das circunstâncias necessariamente nos requer rejeitar, em alguns casos, a determinação de ambos. Em muitos casos, eles estenderam também até mesmo os atos do parlamento aprovados após termos uma legislação distinta, o que aumenta em muito a nossa confusão. A prática de nossos tribunais não é menos incerta do que a lei. Algumas regras inglesas são adotadas, outras rejeitadas. Duas coisas, portanto, parecem ser absolutamente necessárias para a segurança pública. Em primeiro lugar, a aprovação de um ato que determine a extensão das leis inglesas. Em segundo lugar, que os tribunais ordenem um conjunto geral de normas para a regulamentação da prática”. [Pownall discute as objeções coloniais em relação ao direito da Coroa britânica de erguer tribunais nos Estados Unidos. Ele continua:] “Se a partir deste ponto de vista consideramos os defeitos que podem ser encontrados nos tribunais provinciais, estes apontam para a necessidade de se criar um tribunal geral de apelação para solucionar estes problemas. Mas se olharmos para o único modo de recurso que atualmente existe, veremos quão inaplicável, quão inadequado é o tribunal. Eu não poderia, em um único olhar, descrever melhor os defeitos dos tribunais provinciais nestes governos pueris do que pela descrição As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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feita pelo nosso Lorde Hale, Chefe de Justiça, de nossos tribunais de comarca nos primórdios do nosso próprio governo, em que ele menciona: “Primeiro, a ignorância dos juízes, que eram desvinculados do país. Em segundo lugar, o fato de que esses vários tribunais geravam uma variedade de leis, especialmente nos diversos municípios, para as decisões ou julgamentos feitos por diversos tribunais e vários juízes e magistrados independentes, os quais não tinham interesse comum entre eles em suas varias magistraturas, de modo que, no decorrer do tempo, havia, em vários condados diversas leis, costumes, regras e formas de processo. Em terceiro lugar, que todos os negócios, a qualquer momento eram resolvidos por partidos e facções, e aqueles de grande poder e interesse no condado facilmente se sobrepunham aos outros em suas próprias causas, ou naquelas em que tinham interesse”. “Diante do primeiro artigo deste paralelo, não será nenhuma desonra para muitos cavalheiros sentados nos bancos dos tribunais nas colônias, dizer que eles não são e que não se pode esperar que sejam advogados, ou ensinados na lei. E no segundo artigo, é certo que, embora se trate de uma máxima fundamental da administração colonial o fato de que as colônias não devem ter leis contrárias às leis da GrãBretanha, ainda assim diante de todas as flutuações de resoluções e da confusão na construção e na prática da lei nas diversas e muitas colônias, é certo que a prática de seus tribunais e de seu direto civil,não apenas difere um dos outros, mas consequentemente difere também daqueles da Grã-Bretanha. Em todas as colônias o direto civil é recebido como base e corpo principal do direito. Mas sendo cada colônia investida de um poder legislativo, a lei comum é assim continuamente alterada de modo que (como um grande advogado das colônias afirmou), “devido à diversidade das resoluções, em seus respectivos tribunais superiores, e dos diversos novos atos ou leis produzidas solidariamente, os vários sistemas de legislações dessas colônias se tornam mais e mais variados, não somente entre si, mas também das leis da Inglaterra”. “Sob o terceiro artigo, temo que a experiência pode muito bem dizer quão poderosa, mesmo nos tribunais, é sentida a influência dos líderes de partido nas disputas entre indivíduos. Mas, nestes governos populares, e onde cada funcionário executivo depende do apoio temporário, lamentável, e eu diria quase arbitrário, para os deputados do povo, não será nenhuma injustiça... sugerir quão pouco a Coroa ou os direitos 210 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

de governo, em oposição ao espírito da democracia, ou mesmo às paixões populares, pode esperar desse apoio, de sua manutenção e tutela que os tribunais, mesmo pela constituição, deveriam assegurar para a Coroa. Também não seria injustiça alguma para qualquer das colônias, apenas para marcar este lugar, o quão difícil, e até mesmo se é praticável em alguma corte civil, o julgamento de qualquer pessoa diante da violação das leis de comércio, ou em qualquer assunto das receitas da Coroa”.

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Capítulo 6 As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico ibérico Raúl Fradkin Marco Antonio Silveira

A colonização da América Durante os séculos XV e XVI as monarquias ibéricas se transformaram em sedes de vastos impérios coloniais. Isto as obrigou a introduzir modificações substanciais no modo como eram governadas até então e a experimentar múltiplas alternativas para construir modos de governo de tão amplos e diversos territórios. Os dilemas e desafios eram de uma dimensão e uma complexidade inéditas para os dispositivos e tecnologias de poder até então disponíveis, e os modos de governo que terminaram por se configurar não emanaram de um plano preconcebido, nem de uma orientação que estivesse definida com precisão desde o começo. Sem dúvida, se apoiaram nas matrizes institucionais e nas tradições jurídicas e políticas preexistentes, mas essas, no máximo, somente podiam oferecer fontes de inspiração e recursos de legitimação. Porém, a magnitude e diversidade dos problemas a resolver as tornavam completamente insuficientes. Tiveram, portanto, que sofrer transformações, a maioria das quais surgiu de testes fracassados e adaptações às múltiplas realidades dos domínios coloniais. Constituíram-se, assim, nesses espaços configurações extremamente diversas, que, longe de serem estáticas, sofreram muitas mutações. Convém enfatizar que esse processo se desenvolveu no marco das mutáveis relações entre ambas as monarquias. Os reinos de Castela e Portugal competiram desde o início do século XV pela primazia no novo quadro mundial que se gestava, mas enfrentaram essa concorrência a partir das múltiplas interações e entrelaçamentos que possuíam entre si. Desde o século XIII as relações entre ambos haviam sido marcadas por As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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enfrentamentos e alianças, uma situação que começou a se estabilizar durante o século XIV com a consolidação das dinastias de Avis e Trastâmara à frente das Coroa portuguesa e castelhana, respectivamente, ainda que, até 1476, as possibilidades de uma união entre ambas as Coroas tenham sido aventadas em diversas oportunidades. No entanto, em seguida, a união entre os reinos castelhano e aragonês lançou as bases para a formação de uma monarquia unificada dos reinos hispânicos e também para sua competitiva intervenção na expansão atlântica que Portugal havia começado muito antes. Como é conhecido, essa intensa competição deu lugar a uma primeira divisão do domínio do mar em 1479 e dos territórios por conquistar em 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. Porém, os entrelaçamentos e as disputas continuaram ao ritmo dos resultados que a expansão ultramarina gerava e dos inéditos recursos que a conquista da América vinha fornecendo aos herdeiros do trono castelhano e aragonês - em particular a Carlos V, imperador do Sacro Império Romano Germânico, que em 1516 foi coroado como rei da Espanha, instaurando a nova dinastia dos Habsburgos na Coroa hispânica. Tal situação se consolidou em 1566, com ascensão ao trono de seu filho, Filipe. O novo monarca era soberano de Espanha e de boa parte dos domínios que haviam pertencido ao seu pai, o imperador: Milão, Nápoles, Sicília, Países Baixos e as Índias associadas à Coroa castelhana. Um ponto de inflexão se operou em 1580, quando Filipe logrou ser consagrado também rei de Portugal, estabelecendo uma união dinástica entre ambas as Coroas e formando uma monarquia dual. Nela, a monarquia portuguesa recebeu uma gama de garantias jurisdicionais a respeito das leis e do idioma do reino, bem como o compromisso de ser governada por ministros lusos e por um conselho que haveria de compartilhar a autoridade máxima com um vice-rei de sangue real. O único rei da Espanha que ostentou o título de imperador foi Carlos V. Os vastos e heterogêneos domínios de seus sucessores não eram apresentados formal e oficialmente como partes integrantes de um império. Os espanhóis, de início, não empregavam a noção de “império”, pois no imaginário político da época ela cabia apenas ao Sacro Império Romano. Ainda assim, não deixaram de pensar em termos imperiais a ponto de a expressão “o Império das Índias” ter adquirido crescente circulação durante o século XVII. Por outro lado, a denominação dos domínios americanos como “colônias” só começou a se generalizar no 214 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

século XVIII, primeiro na documentação privada da alta elite administrativa e somente mais tarde de maneira pública. Essas questões, claro, geraram discussões, disputas e definições doutrinárias. Assim, por exemplo, Juan de Solórzano Pereira, um dos mais influentes tratadistas hispânicos, definia duas formas pelas quais um território recém adquirido poderia se unir aos domínios de um rei. Uma era a denominada “união acessória”, pela qual um reino, província ou território passava a ser considerado juridicamente parte integrante de um reino, de modo que seus habitantes deveriam desfrutar teoricamente dos mesmos direitos e ficarem submetidos às mesmas leis, ainda que não se reconhecesse nesses territórios a existência de instituições representativas preexistentes. Este, justamente, seria o caso das Índias espanholas, que foram incorporadas juridicamente à Coroa de Castela. Outra forma de união era denominada aeque principaliter, na qual os reinos incorporados deveriam continuar a ser tratados como entidades distintas, conservando suas leis, foros, privilégios, assembleias e instituições representativas: tal foi o caso de Aragão, Valência, Catalunha, Sicília e Nápoles, as Províncias dos Países Baixos e Portugal, de modo que suas elites locais desfrutavam de um grau importante de autogoverno. Deste modo, entre 1580 e 1640 a monarquia hispânica funcionou como um exemplo característico das chamadas “monarquias compostas”, isto é, um complexo de corpos políticos agregados de natureza e estatutos muito diferentes, que reconheciam um mesmo rei e que, mais do que funcionar em torno de um único centro, eram, na realidade, uma monarquia “policêntrica”. E isto a tal ponto que na monarquia hispânica a Corte somente fixou residência permanente em Madri em meados do século XVI, a cidade se convertendo formalmente em sua capital apenas em princípios do século seguinte. Seu crescimento havia sido fulminante: a vila, que possuía tão-só uns 5.000 habitantes a princípios do século XVI, superava os 100.000 na década de 1620. Mas não era a cidade mais povoada: Sevilha – a sede comercial do novo império – havia passado de 70.000 para 150.000. A “monarquia dual” hispano-portuguesa perdurou até 1640 e sua crise derivou da instauração de uma nova dinastia em Portugal, a dos Bragança. Teve início, então, uma fase de confrontação na Península Ibérica até 1668, a qual se reproduziu em seus domínios coloniais, especialmente na região do Rio da Prata. Deste modo, a guerra entre ambas as monarAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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quias marcou a realidade peninsular e suas sequelas alcançaram o interior do reino castelhano: em 1706, pela primeira vez, tropas estrangeiras entraram em Madri e obrigaram o rei a fugir. A guerra também foi modificando a imagem pública dos monarcas, os quais passaram a ser representados não somente como príncipes sábios, mas também como heróis guerreiros. Não por acaso os exércitos se converteram, durante o século XVIII, num instrumento decisivo da vontade do monarca e num setor primordial de recrutamento da nova elite administrativa. Em boa medida, esse aspecto expressava também a rivalidade que havia se estabelecido entre outras potências imperiais emergentes, dado que a Coroa portuguesa se orientou em direção a uma aliança cada vez mais estreita com a Grã-Bretanha. Essa situação teve um ponto de inflexão a partir da Guerra de Sucessão Espanhola, ocorrida entre 1701 e 1713, um conflito dinástico que se transformou numa ampla contenda internacional e que levou à instauração da dinastia dos Bourbon – a mesma que reinava em França – à frente da Coroa espanhola. A decisão do novo monarca de Espanha de abrir ao comércio francês seus domínios coloniais e a concessão do asiento de escravos72 à Companhia da Guiné estimularam a decisão britânica e holandesa de apoiar os partidários espanhóis que defendiam a manutenção da Coroa sob o controle da dinastia Habsburgo. Nesse contexto, Portugal incorporou-se à “grande aliança” antibourbônica. A América não ficou alheia a essa confrontação, como indicam os ataques franceses ao Rio de Janeiro em 1710 e 1711. Dessa forma, desde a primeira década do século XVIII a coligação entre as monarquias espanhola e francesa teve como correlato quase obrigatório a mantida entre portugueses e britânicos. As confrontações pelo predomínio na Europa tiveram inevitável repercussão nos domínios coloniais. Nesse contexto, um evento histórico decisivo foi a chamada Guerra dos Sete Anos (1756-1763), na qual novamente Espanha e Portugal tornavam a se enfrentar e a integrar alianças rivais. Tratou-se de uma autêntica guerra mundial que teve enormes repercussões nas colônias americanas, não apenas porque elas também foram palco dos enfrentamentos, especialmente no Rio da Prata, como também porque promoveu decisivas transformações nas políticas dos Estados europeus em relação a suas colônias na América. 72 NT: Para entender o que era um asiento de escravos cf. nota 8 do capítulo 3.

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As competições, confrontações e interações entre ambas as monarquias constituem, deste modo, um aspecto capital na configuração das estruturas coloniais. A pioneira expansão portuguesa nas ilhas do Atlântico e na costa africana durante o século XV se transformou tanto numa experiência que orientaria a expansão inicial dos castelhanos no Caribe, quanto num laboratório experimental da conquista da América. Nas ilhas atlânticas, os portugueses ensaiaram um modo de governo e exploração baseado em acordos de concessão que a monarquia outorgava a membros da nobreza. Tratava-se do regime de capitanias hereditárias, que na década de 1530 também seria implantado no Brasil. Nelas, por sua vez, foi-se gestando o sistema de plantation escravista, que deslocou para as ilhas a estancada produção açucareira peninsular. Tais estratégias eram possibilitadas, em última instância, pela obtenção de capitais junto a mercadores florentinos e genoveses, que converteram Lisboa em uma de suas principais praças. Com o tempo, feitorias estabelecidas na costa da África se converteram em ativos nós de intercâmbio mercantil, articulando o comércio de ouro e escravos, os quais, a par das especiarias da Índia, haveriam de se converter, a partir do século XVI, em estrelas do mercado mundial em formação. O ponto decisivo dessa experiência foi que ela não somente se transformou na base de sustentação para a reprodução ampliada do impulso expansionista, mas também fundamentou a experiência castelhana nas Canárias, onde a população foi submetida, escravizada ou exterminada. Deste modo, seguindo o modelo português, a Coroa de Castela assinou capitulações com particulares dispostos a interferir no comércio luso, organizando as chamadas “sociedades de armada” e forjando um modelo organizativo que demonstraria sua eficácia na América. De modo análogo, o incremento do fluxo mercantil a partir das ilhas atlânticas e da África tornou Lisboa o epicentro das redes mercantis do norte e do sul da Europa, levando, em 1480, à formação de uma instituição que regularia o comércio colonial, a chamada Casa da Mina. Esta, por sua vez, serviu de modelo para que os castelhanos organizassem em Sevilha a Real Casa de Contractación de las Índias em 1503. Porém, essas experiências se mostraram insuficientes e inadequadas quando da conquista do México a partir de 1519 e, logo depois, do Peru, a partir de 1531. Ambas as conquistas mudaram radicalmente a situação e as perspectivas, e desafios inéditos foram enfrentados: enquanto para Portugal o principal domínio colonial era o “Estado da As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Índia”, pois o Brasil não oferecia recursos equivalentes na época, a Coroa castelhana havia conquistado territórios que contavam com metais preciosos capazes de transformá-la em potência de primeira ordem. Não obstante, entre o desejo e a realidade havia uma enorme distância. Em meados do século XVI, a Coroa espanhola teria de reconhecer que as possibilidades de reprodução da economia colonial com base na exploração dos metais preciosos americanos eram incertas e estavam ameaçadas pela brusca queda da população indígena, pelas limitações do sistema produtivo, que continuava dependendo das tecnologias e saberes autóctones, e ainda por sua limitada capacidade de governar efetivamente os novos domínios frente à ambição e às aspirações ilimitadas dos núcleos de conquistadores. A crise, que foi muito acentuada na década de 1560, permitiu uma profunda reformulação do governo colonial. Deste modo, a situação começou a se modificar a partir da década de 1570 e as inovações introduzidas nas formas de mineração e no governo das comunidades indígenas se mostraram rapidamente exitosas, especialmente nos Andes e em particular no cerro de Potosí, que se converteu, até a década de 1630, no principal centro de produção de prata do mundo e em uma das cidades mais populosas do Ocidente. Convém ressaltar que as décadas de máxima expansão da produção mineradora de Potosí foram também as da união da dinastia hispano-portuguesa. As relações entre ambos os processos foram múltiplas, não apenas pelo fortalecimento político e militar que a riqueza da mineração outorgou à monarquia espanhola, mas também porque os efeitos de atração do mercado potosino se fizeram sentir por quase toda a América do Sul e também no tráfico de escravos vindos das costas africanas. Negociantes sediados no Rio de Janeiro, por exemplo, utilizavam o metal de Potosi, obtido no Rio da Prata, para fomentar trocas comerciais que envolviam o Brasil, a África e as Índias orientais. Além disso, outras transformações significativas estavam ocorrendo, como a expansão da produção açucareira no Nordeste brasileiro, que se consolidou na passagem para o Seiscentos. No entanto, a partir de meados do século XVII, as dinâmicas econômicas regionais – tanto na América espanhola quanto na portuguesa – tenderam a se diferenciar notavelmente. Deste modo, em um contexto de crise geral da economia europeia, enquanto a produção mi218 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

neradora dos Andes entrava em uma fase de declínio e recessão (de que se recuperararia a partir da década de 1730), a da Nova Espanha – jurisdição que abrangia a parte meridional da América do Norte e a América Central – sofreria menor contração. A partir da década de 1670, fenômeno que se estendeu em plenitude durante o século XVIII, Potosí chegou mesmo a se transformar na principal região produtora de prata do mundo e na principal colônia do império espanhol. Enquanto isso, uma mudança substancial estava ocorrendo no Brasil: desde o final do século XVII a expansão da produção aurífera na região que se tornaria a Capitania de Minas Gerais dinamizou diversos mercados regionais, articulando-se à ocupação dos sertões da Bahia, de Pernambuco e do Piauí pela criação de gado. Durante a primeira metade do século XVIII, o principal eixo econômico da América lusa deslocou-se mais para o sul, onde o porto do Rio de Janeiro galvanizava o comércio aurífero e servia de referência para a anexação de novas áreas, em especial as do Rio Grande, cuja ocupação foi estimulada também pelas disputas em torno da Colônia do Sacramento. Pela mesma época, entre o último quartel do século XVII e o último do XVIII, a produção açucareira do Nordeste do Brasil enfrentou a baixa de preços, a competição holandesa e a concorrência das ilhas do Caribe, onde o açúcar prosperou. Estes últimos aspectos estavam diretamente ligados à dinâmica dos conflitos entre as Coroas ibéricas na Europa. A ocupação de Pernambuco e de regiões adjacentes pelos holandeses em 1630 – que se estendeu por mais de duas décadas - resultou, em boa medida, das lutas que os batavos travaram contra a Espanha para manter sua independência. Após a Restauração de 1640, que pôs fim à União Ibérica, os portugueses e seus colonos do Atlântico tiveram de enfrentar a ameaça da Holanda, que chegou ainda a ocupar Angola, um foco fundamental no tráfico de escravos. Em tais circunstâncias, o interesse de Portugal pela Colônia do Sacramento aumentou, já que sua ruptura em relação a Castela tornava indispensável a manutenção de um entreposto no Rio da Prata capaz de sustentar o contrabando de metais preciosos e de outros produtos oriundos da América espanhola. A informação disponível permite registrar que, a seu modo e ritmo, as sociedades coloniais americanas assistiram, ainda que com altos e baixos, a um crescimento econômico e demográfico notável durante o século XVIII e, em alguns casos, até antes. Isso, junto à crescente disputa interimperial, explica As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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as tentativas de reformular o governo colonial. Mas havia algo mais: a configuração das sociedades coloniais em meados do século XVIII era muito diferente da fisionomia que cada uma delas possuía no XVI, quando suas bases se constituíram. Embora muitas vezes opaca à observação dos historiadores e menos conhecida que as fases de conquista ou de reformismo imperial, uma longa, diversa e complexa história havia transcorrido e resultado em sociedades e modos de governo coloniais que frequentemente eram bastante distintos daqueles desejados pelas autoridades imperiais. Ao se observar o processo histórico colonial em longo prazo e sem enfatizar as notáveis diferenças regionais, pode-se afirmar que as monarquias ibéricas enfrentaram uma série de desafios recorrentes que, em mais de uma conjuntura, se tornaram abertamente contraditórios entre si. Deviam garantir a defesa dos territórios, assim como, na medida do possível, impulsionar sua ampliação, mas ao mesmo tempo tinham de assegurar que uma parte significativa dos excedentes fluísse para as metrópoles imperiais. Compatibilizar ambas as necessidades era extremamente complexo e, por vezes, impossível. Deviam desenvolver formas de exploração dos recursos que posicionassem as economias metropolitanas no mercado mundial em formação, mas ao mesmo tempo tinham que satisfazer as ambições dos grupos sociais dominantes em cada espaço colonial. Sem a cooperação ativa desses grupos, a sobrevivência do próprio sistema colonial era inviável, mas seu fortalecimento poderia constituir uma ameaça para a afirmação da autoridade das monarquias nos territórios conquistados. Portanto, as Coroas dependiam deles, embora tivessem de impedir que se autonomizassem. Essas monarquias eram católicas e os impérios que forjavam se legitimavam por sua missão religiosa, mas seus monarcas não estavam dispostos a se subordinar nem ao Papado, nem à Igreja, e estavam menos dispostos ainda a permitir que estes exercessem uma autoridade competitiva nas colônias.

Os vários sentidos da prudência Um dos problemas cruciais enfrentados pelas Coroas ibéricas consistiu na tarefa de governar extensões territoriais e povos tão diversificados quanto os da América. Essa tarefa tornava-se ainda mais 220 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

complicada em decorrência da competição travada pelos diversos países europeus, que precisavam posicionar-se ora frente à busca de hegemonia pelas potências na própria Europa, ora diante da conquista de mercados promissores nas várias partes do mundo. É certo que, pelo menos até a metade do século XVII, aproximadamente, as situações de Espanha e Portugal eram distintas. Embora ambos os reinos possuíssem domínios ultramarinos e estendessem suas rotas comerciais pelos diversos continentes, os espanhóis, associados à dinastia Habsburgo, exerciam pretensões de hegemonia na Europa que os portugueses não tinham condições de almejar, fosse por sua posição periférica, fosse pela menor infiltração das dinastias lusas. Após o fim da União Ibérica, em 1640, o protagonismo espanhol na Europa havia perdido muito de seu brilho, mas, ainda assim, o império hispânico continuou a apresentar uma complexidade maior que a experimentada pelo império português. Em linhas gerais, apesar de suas diferenças, as duas monarquias organizavam-se segundo um mesmo modelo. Para compreendê-lo, é primeiro necessário dissociá-lo da visão que geralmente se tem do chamado absolutismo. Este conceito é comumente evocado para expressar uma situação na qual o monarca não apenas centralizava amplos mecanismos de tomada de decisão, como também os meios através dos quais tais decisões eram colocadas em prática. Nada mais distante da realidade vivida pelas monarquias ibéricas do Antigo Regime. Quando se comparam, por exemplo, as condições técnicas que se encontram à disposição dos atuais Estados, alguns deles capazes de monitorar via satélite o que se passa em qualquer porção do mundo, com aquelas com que contavam os reinos seiscentistas ou setecentistas, percebem-se logo os limites enfrentados por estes últimos. Certas decisões relativas a uma determinada região colonial na América demoravam meses para serem tomadas e aplicadas, dadas as demoras resultantes dos meios de comunicação e dos trâmites administrativos. Além disso, os monarcas enfrentavam a concorrência de outros poderes no interior do próprio império. Embora formalmente coubesse ao rei dar a última palavra nos diversos assuntos respeitantes a seus domínios, conselhos e tribunais de tipos variados analisavam enorme quantidade de papéis provindos de uma vasta gama de localidades, antes que fossem submetidos à apreciação régia. Tais instâncias, fossem administrativas, fiscais, militares, eclesiásticas ou judiciais, possuíam certa As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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autonomia no que dizia respeito tanto à sua formação quanto às decisões tomadas. As instituições que formavam o Estado moderno estavam inseridas em sociedades estamentais e, portanto, baseadas no privilégio. A distinção entre nobres e plebeus – para indicar um só exemplo – criava, por si só, uma infinidade de estamentos diferentes, bem como graus de nobreza diversos. As sociedades de Antigo Regime eram juridicamente hierarquizadas, as distinções sociais sendo expressas até mesmo no modo de se vestir ou no acesso a determinados cargos e posições. Tratava-se de sociedades tradicionais, ou seja, sociedades em que se valorizava mais a manutenção da ordem, dos costumes e das tradições do que as novidades e inovações. As estruturas de governo, nesse contexto, não poderiam se desvincular do quadro social caracterizado pelo apego à tradição e aos privilégios. Ainda que os monarcas ibéricos, no decorrer do Antigo Regime, tenham efetuado inovações nas diversas sociedades que compunham seus impérios e mesmo nas instituições estatais, tiveram de curvar-se constantemente às demandas de grupos sociais e às decisões de conselheiros, magistrados e representantes dos poderes locais. Era necessário negociar incansavelmente com os vários focos de interesse, sendo simplesmente impossível governar através da mera imposição da vontade régia. Destaque-se ainda que as instituições de Estado não eram propriamente impessoais. Pelo contrário, compreendia-se como natural que as nomeações fossem feitas com base em sistemas pessoais de troca, neles desempenhando papel importante a vida cortesã que cercava o monarca. Por vezes, decisões simples, como a nomeação de um mero escrivão em determinada localidade da América, dependia de uma cadeia de pressões que alcançava um conde ou marquês com acesso ao rei. Além disso, havia dois outros tipos de limites experimentados pelas Coroas. De um lado, as comunidades espalhadas pelos reinos e pelas diferentes partes do império demandavam que as leis régias não afetassem os costumes praticados localmente, em especial se fossem bastante antigos e arraigados. De outro, certas famílias da nobreza tinham a regalia de estabelecer por conta própria autoridades responsáveis por exercer a justiça e cobrar impostos em suas terras. Ou seja, além da concorrência derivada de conselhos, tribunais, poderes locais e grupos cortesãos, havia aquela advinda das comunidades e das principais famílias nobres. A situação mostrava-se ainda mais difícil porque a 222 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Igreja Católica possuía também seus privilégios, sendo o principal deles o de instituir uma estrutura judicial própria, na qual seus membros seriam julgados. Esta e outras prerrogativas faziam com que padres e frades se esquivassem do pagamento de impostos e só aceitassem ser contestados por delitos cometidos na justiça eclesiástica. O conjunto dos limites apontados causava inúmeras dificuldades para o exercício do poder régio. As próprias fontes do direito, com base nas quais julgavam-se os vassalos, eram diversificadas e por vezes contraditórias entre si: os costumes locais, as leis pátrias (isto é, outorgadas pelos monarcas), o direito canônico, o direito romano, as prescrições feitas por tribunais e comentadores. Uma vez que no julgamento de casos concretos havia argumentos jurídicos para todos os gostos, o conflito se instalava no interior das próprias estruturas administrativas e judiciais. As diferenças entre os impérios espanhol e português achavam-se já na constituição dos dois reinos ibéricos. Enquanto Portugal forjou-se mantendo certa homogeneidade administrativa, a Espanha era o resultado da articulação de várias regiões relativamente autônomas que orbitavam em torno da corte situada em Castela: Leão, Aragão, Catalunha, Astúrias etc. Algumas dessas regiões, tendo sido outrora reinos, possuíam cortes e instâncias de administração próprias. Essa forma de organização, que visava a reforçar o poder do rei sediado em Madri, articulando-o, pela via da negociação, a territórios, cortes e estruturas variados, estendeu-se também a outras partes da Europa dominadas pela Espanha, como na Itália e nos Países Baixos, bem como aos vice-reinados americanos. Já a corte portuguesa, sediada em Lisboa, abarcava um território que não conheceu instâncias concorrentes do mesmo gênero. Na América lusa, a interiorização da atividade colonizadora se deu de forma mais lenta e, embora tenha sido criado um governo-geral na Bahia em 1548 – transferido para o Rio de Janeiro em 1763 -, somente no século XVIII seus titulares passaram a ostentar regularmente a alcunha de vice-rei. Seja como for, o modelo de organização do governo, conforme se disse acima, foi basicamente o mesmo nos dois impérios. O rei era considerado legibus solutus, isto é, capaz de, em última instância, criar e modificar as leis. No entanto, ao legislar, devia respeitar os limites do direito divino e natural, da tradição e dos privilégios, consultando prudentemente secretários, conselheiros, magistrados, governadores etc. Essa As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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atuação prudente era o que, segundo a doutrina, distinguia o monarca do tirano: se este atuava livremente sem nada respeitar, aquele governava e legislava respeitando os limites que o circundavam. Pode-se dizer que durante o Antigo Regime, especialmente nos séculos XVII e XVIII, os monarcas ibéricos tiveram de lidar o tempo todo com um dilema, ora atuando dentro dos limites que lhes eram colocados, ora procurando ampliar seu poder de ação adotando medidas que alteravam costumes e privilégios e modificavam as estruturas do próprio Estado. Esse dilema foi profundamente debatido na Península Ibérica por diversos autores que se debruçaram sobre o exercício do governo. A literatura sobre o tema era bastante antiga, mas ganhou força à medida que os Estados modernos se constituíram e se desenvolveram, alcançando as várias partes do globo através do comércio e da expansão ultramarina. O debate tornou-se especialmente acirrado com a eclosão da reforma protestante e da reação que os católicos lhe impuseram. Enquanto a Inglaterra, a França, os Países Baixos, os reinos nórdicos e vastas regiões germânicas foram tomados por diferentes vertentes do protestantismo, a Península Ibérica permaneceu amplamente católica. Nos séculos XVI e XVII, ao mesmo tempo em que franceses e ingleses enfrentavam guerras civis marcadas pelo crivo religioso, espanhóis e portugueses fortaleciam a Inquisição e estimulavam a perseguição de hereges. Nesse contexto, os debates sobre os modos de exercer o governo foram, em Portugal e Espanha, fortemente marcados pelo pensamento católico, destacando-se os autores da tradição escolástica. Desempenhou papel decisivo nesse debate a ordem jesuíta, criada em 1534 no quadro da contrarreforma católica, bem como pensadores articulados em torno da universidade espanhola de Salamanca. Apesar de suas variantes, a tradição escolástica propunha que os reinos resultavam de pactos irrevogáveis (ou revogáveis apenas em condições extremas e precisamente definidas), através dos quais os principais estamentos sociais – a nobreza, o clero e o povo – haviam transferido o poder para o monarca visando à manutenção da ordem social. A reprodução dessa ordem se daria na medida em que, por um lado, a sucessão dos reis era garantida pela existência de dinastias e, por outro, os privilégios e as prerrogativas dos estamentos pactuantes eram preservados pelo poder régio. Como dito acima, o monarca, na qualidade de legibus solutus, tinha o poder de criar leis, mas deveria fazê-lo res224 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

peitando a ordem divina e natural e os privilégios estabelecidos. Nesse sentido, atitudes marcadamente inovadoras adotadas pelos reis tendiam a ser vistas com desconfiança e como uma agressão a prerrogativas e, consequentemente, à própria ordem social. A explicação da doutrina escolástica sobre a sociedade e o poder valia-se amplamente da metáfora do corpo: assim como o corpo humano, que possui diversos membros, cada um com suas características próprias, mas todos governados pela cabeça, a sociedade seria estruturada como um conjunto orgânico em que o rei, como cabeça desse corpo social, deveria governá-lo, respeitando as características e os privilégios de cada uma de suas partes. Por isso, considerava-se como a principal virtude do monarca a capacidade de agir com prudência, isto é, de tomar decisões e estabelecer leis buscando respeitar os direitos estamentais e visando a conciliar os conflitos que resultassem do choque entre as várias partes do corpo social. Tal orientação deveria ser também seguida na administração dos domínios coloniais, evitando-se a adoção de medidas impositivas em prol de soluções consensuais. Ainda segundo a doutrina escolástica, a relação do rei com seus súditos previa um tipo particular de reciprocidade: enquanto cabia aos vassalos servir o monarca, colocando à sua disposição seus bens e sua própria vida, era dever deste último agir com liberalidade, isto é, recompensar esses serviços através da concessão de graças e mercês, que assumiam a forma de títulos, pensões, doações de cargos etc. Por exemplo, um colonizador que conquistasse, a seu próprio custo, determinada região da América, combatendo povos autóctones e enfrentando os perigos de uma natureza desconhecida, apresentaria ao monarca uma relação de seus feitos com vista a obter alguma graça, fosse um título militar ou nobiliárquico, fosse o direito de governar em nome do rei a região conquistada. Não é preciso dizer, porém, que o modelo escolástico, embora previsse a existência de conflitos e estimulasse sua resolução através de meios consensuais, não era capaz de lidar com a complexidade da vida real, muito mais diversificada e competitiva. Os chamados conflitos jurisdicionais – embates entre agentes nomeados pelo rei, que disputavam entre si o direito de exercer poder sobre certas áreas e certos assuntos – foram inúmeros no Antigo Regime, inclusive no ambiente colonial, sendo sua solução às vezes simplesmente impossível. Sendo assim, a prudência do monarca e de seus conselheiros nem sempre produzia efeitos práticos As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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e viáveis. Além disso, era inevitável que os reis se vissem diante da necessidade de inovar com o intuito de levar adiante determinadas reformas ou mesmo para tornar eficaz a prática de governo. Por vezes tais tentativas de inovação aumentavam sensivelmente a tensão na corte, sendo nela constantes as lutas faccionais, ou em uma parte qualquer do império – lembre-se a esse respeito a recorrência de revoltas por todo o território de colonização ibérica, boa parte delas ligadas a questões fiscais. Havia ainda uma diferença entre a arte de governo e a arte de Estado. A primeira abarcava as noções escolásticas indicadas acimas, tendo como meta fundamental a realização do bem comum. Se o rei governava, criava leis, distribuía graças e mercês, respeitava privilégios e procurava conciliar conflitos, fazia-o porque, segundo a doutrina, manter a ordem significava manter as condições indispensáveis para se alcançar o bem comum. A arte do Estado, por sua vez, tinha por objetivo manter e ampliar o domínio exercido pela Coroa sobre suas possessões – tarefa nada fácil diante da concorrência existente entre os reinos e as repúblicas europeias e da grande extensão das conquistas ultramarinas. Nesse sentido, a doutrina escolástica convivia com outra vertente de pensamento, que em parte se alimentava dela: a literatura da razão de Estado. Esta última procurava ensinar aos reis e às autoridades diversas lições sobre como dominar territórios e povos, considerando principalmente os casos de grande necessidade, como os que resultavam da ameaça de guerra com um reino vizinho ou da eclosão de rebeliões no ultramar. Ainda que a maioria dos teóricos da razão de Estado retomasse o argumento escolástico segundo o qual o monarca deveria agir dentro dos limites estabelecidos por Deus e pela natureza, discorriam com mais largueza sobre as situações extremas em que seria indispensável agir de modo mais incisivo, dissimulado e mesmo violento para se evitar a perda de territórios e da obediência devida. Assim, a prudência escolástica, calcada na busca do bem comum através da conciliação de contextos conflituosos e da busca de soluções consensuais e pactuadas, coexistia com a prudência de Estado, que visava antes de tudo a tomar as medidas que fossem necessárias para manter e ampliar o domínio de povos e territórios. Era com base nessas duas linhas doutrinárias que os reis ibéricos se moviam em meio à complexidade das estruturas administrativas e sociais. Geralmente, era preciso analisar com cuidado caso a caso e escolher a melhor maneira de agir, decidindo se era ou não caso de inovar ou de agir de forma extrema. 226 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Território, administração e justiça na América espanhola Durante o século XVI, em um contexto cambiante e carregado de transformações, disputas e contradições relativas à definição da ordem colonial em formação, foram se definindo tendências dominantes: a substituição da figura do conquistador-governador pela do governador-administrador e, logo depois, a afirmação de um governo do império; e o fortalecimento nas colônias de uma casta de administradores letrados, entre os quais os juízes possuíam um papel determinante. Já no Caribe se haviam posto em evidência problemas que seriam recorrentes: as amplas concessões outorgadas aos conquistadores não poderiam ser respeitadas se a Coroa pretendesse exercer sua autoridade nas colônias. Mas foi a conquista do México que abriu uma situação extremamente mais complexa, pois nela se enfrentava a difícil tarefa de organizar o governo estável e duradouro de sociedades densas e complexas e ao mesmo tempo desmontar o poder que havia adquirido a casta de conquistadores-encomenderos, que ameaçava se converter em uma ordem “neofeudal”. A mudança começou a se esboçar a partir de 1523, quando a Nova Espanha foi colocada sob a tutela direta do rei e se estabeleceram as primeiras audiências (Santo Domingo e México) e bispados (Santo Domingo, Panamá, Cuba, Puebla e México). Esse processo começou a se aprofundar com a conquista do Peru e se manifestou mediante a organização dos vice-reinos da Nova Espanha (1535) e Peru (1542), de novas audiências (Nicarágua, Guatemala, Michoacán, Chiapas, Guadalajara, Bogotá, Caracas, Cartagena, Popayán, Lima, Cusco, Quito e Assunção) e das capitanias militares (Santo Domingo, Guatemala e Chile) No entanto, em meados do século XVI esse era ainda um processo incipiente, embora já mostrasse plenamente o papel decisivo das estruturas eclesiásticas e das audiências no nascente emaranhado institucional. O declínio da população indígena ameaçava as possibilidades de se forjar uma economia colonial e as disputas políticas levaram a um momento de inflexão: a sanção das Leis Novas de 1542, as quais pretendiam anular os poderes jurisdicionais dos encomenderos sobre os índios submetidos e recuperar a autoridade da soberania real sobre os súditos. A aplicação dessas leis gerou enormes resistências e elas tornaram evidente que o poder efetivo dos vice-reis era ainda muito limitaAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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do. Em particular, a resistência foi especialmente intensa no Peru, onde se desencadeou uma guerra civil, na qual os encomenderos encabeçados por Gonzalo Pizarro não somente enfrentaram a aplicação das leis como destituíram e degolaram o vice-rei Blasco Nuñez Vela. A pacificação negociada ficou nas mãos do clérigo Pedro de La Gasca, que presidia a Audiência de Lima e se apoiava em uma momentânea coalizão entre religiosos, oficiais régios e senhores étnicos, que introduziu uma regulação política no regime de encomienda. Em 1549 se taxaram pela primeira vez as rendas de encomienda, abrindo-se um espaço de negociação com os chefes indígenas para se estabelecer o volume dos excedentes que deveriam ser pagos. Estabeleceu-se, assim, um princípio doutrinário que haveria de deixar profundas raízes: o domínio, para ser legítimo, deveria se basear no consentimento. Deste modo, depois da derrota de Gonzalo Pizarro, a autoridade vice-real apontou na direção do abrandamento na aplicação das Leis Novas e aproveitou para ampliar as margens de exercício de sua autoridade. Conciliando as aspirações dos encomenderos e os interesses imediatos do Estado, criou as condições para que o sistema de exações vigente erodisse, o que resultou na lenta decadência da encomienda, na abolição paulatina dos serviços pessoais exigidos dos índios e na comutação do tributo em espécie. Porém, durante a década de 1560, uma profunda crise da economia colonial habilitou uma mudança de rumo que deu início a uma nova fase na configuração da ordem jurídica e política colonial e estabeleceu as estruturas que haveriam de governar sem modificações substanciais até meados do século XVIII. Em boa medida, essa foi a tarefa que empreenderam no Peru o vice-rei Francisco de Toledo (1569-1581) e, na Nova Espanha, o vice-rei Martín Enríquez de Almansa (1568-1580), seguindo as instruções elaboradas na Junta Magna de 1568. A tarefa desses vice-reis não se limitou a aumentar a transferência de recursos das colônias, pois era muito mais complexa. Deste modo, sob o reinado de Filipe II, a política que começou a se desenvolver concebia uma ordem social e política fundada na “utilidade econômica”, associando o “útil” para a Real Hacienda com o “justo” para os índios e buscando obter um vínculo estreito entre a nova elite administrativa em formação e as autoridades eclesiásticas. Por isso, nessa Junta Magna se refinaram os argumentos que sustentavam os “justos títulos” da Coroa castelhana sobre as Índias e se delineou uma reformulação das estratégias de evangelização. Também se estabeleceu uma reorganização 228 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

do clero indiano e do papel que, no disciplinamento social e não somente na vida eclesiástica, deveriam desempenhar os tribunais da Inquisição criados em 1579 no México e em Lima e em 1610 em Cartagena. O exemplo paradigmático da política reformista foi oferecido pelo Peru, onde o novo vice-rei foi transformado em visitador-geral, uma decisão que abria um eixo de conflitos com a Audiência de Lima, mas estava destinada a reafirmar a soberania da Coroa e obter a “definitiva pacificação” do reino, submetendo a resistência do Estado neo-Inca de Vilcabamba e executando o último Inca em 1572. A partir desse momento, as autoridades visaram a definir uma nova ordem sociopolítica e consolidar o governo das duas Repúblicas, a dos Espanhóis e a dos Índios. Nessa altura, a sanção das Ordenanças de Novos Descobrimentos e Povoações anunciava que a política de “pacificação”73 dos territórios passara a ser prioritária, tendo chegado o momento de impor o respeito pela lei régia e pela justiça e de substituir os conquistadores e encomenderos como fiadores da ordem social. Isso não significava acabar com a encomienda, mas sim transformar os encomenderos em uma nova casta nobiliárquica, buscando uma solução de compromisso entre seus interesses, os da Coroa e os da nobreza indígena. Portanto, reforçaram-se disposições várias, como as que proibiam os encomenderos de possuir terras em zonas de encomienda, ou as que vetavam o trabalho gratuito indígena e a obrigação de pagar o tributo em dinheiro. Também foram ampliadas as possibilidades dos colonos não pertencentes à elite encomendera, através da garantia de que um dos dois alcaides de cada cidade não seria nela recrutado. Essa política teve como objetivo reafirmar a soberania da Coroa, retomar as prerrogativas régias e estabelecer um controle muito mais efetivo dos territórios, aumentando também a autoridade do vice-rei frente às Audiências. Obviamente, essas políticas não se implementaram com a mesma intensidade em todo o vice-reino peruano, nem foram idênticas às que se impuseram no novo-hispano. Porém, o que aqui importa salientar é que a arquitetura institucional foi se tornando mais densa, complexa e ramificada. Deste modo, estabeleceram-se novas audiências (Charcas, Quito e Chile), bispados (Oaxaca, Yucatán, Charcas, Chile, Trujillo, Arequipa e Tucumán) e capitanias gerais (Yucatán e Porto Rico), sendo 73 NE: sobre o conceito de pacificação, cf. volume 1 desta coleção, capítulo 2.

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instalados ainda dois consulados (México e Lima), corporações mercantis que também funcionavam como tribunais de comércio. Não obstante, as audiências eram insuficientes para governar as imensas jurisdições de ambos os vice-reinos. Para resolver tal desafio, foram se constituindo diversas estruturas de governo provincial: em primeiro lugar, as gobernaciones e, em uma escala mais reduzida, as alcaldías mayores e os corregimientos. Em contrapartida, as criações institucionais foram muito escassas durante o século XVII: somente se instituíram temporariamente uma audiência (a de Buenos Aires, entre 1661 e 1671), um bispado (nessa mesma cidade) e uma capitania geral (Cuba). Foi, portanto, na segunda metade do século XVI que se organizaram novas estruturas e elites administrativas, produzindo-se uma autêntica “revolução no exercício do governo”. Contudo, as evidências sugerem que, para as primeiras décadas do século XVII, tanto a expansão da conquista como a transformação do governo colonial encontraram seus limites, e, com isso, as relações entre Espanha e América tenderam a se modificar. Havia-se tornado evidente que a monarquia não era um sistema político e institucional estático, mas que estava submetida a pressões constantes, sendo o principal motor da mudança as necessidades da tributação real. Percebeu-se também que os limites encontrados pelo fortalecimento da autoridade régia tiveram como correlato a consolidação das oligarquias locais em ambos os lados do Atlântico. Não obstante, ainda que implicasse debilitação da Coroa, na América isso não se traduziu em movimentos separatistas, como aconteceu na Península Ibérica em 1640, mas sim em uma redefinição das relações entre as elites locais e a Coroa. Quiçá nenhuma outra situação tornou essa redefinição mais evidente que o acontecido com o projeto da União de Armas, que a monarquia impulsionou na década de 1620. Ele pretendia coordenar a ação de todas as formações armadas do império; no entanto, as autoridades coloniais e os grupos dominantes locais lograram transformar essa exigência de envio de tropas em uma contribuição monetária de 350.000 ducados no Peru e de 250.000 na Nova Espanha. Mais ainda, a aplicação efetiva desse compromisso se aplicou no Peru dez anos mais tarde. Essa disputa teve também outras consequências e o fracasso da União de Armas conduziu nas colônias ao desenvolvimento de seus próprios mecanismos de defesa e à formação dos primeiros corpos milicianos. Militar e economicamente, os laços entre as Índias e a Espanha haviam se tornado muito mais frouxos e necessariamente estavam submetidos a repetidas ne230 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

gociações com as oligarquias locais, vendo-se forçadas as autoridades reais a estreitarem suas relações com elas se quisessem governar seus territórios. O que foi dito acima é suficiente para se perceber com clareza que a configuração da ordem jurídica e política na América, bem como o emaranhado de estruturas administrativas que deveriam sustentá-la, não foram o resultado de um plano preconcebido, nem tampouco de um transplante mecânico de instituições castelhanas. Esse processo foi extremamente mais complexo e esteve atravessado pelas tensas e por vezes contraditórias relações entre as normas que emanavam da Coroa e as práticas sociais e políticas dos atores coloniais locais. O direito imperante era parte de um complexo normativo forjado na Castela medieval, no qual a religião possuía um predomínio avassalador. Tinha uma configuração pluralista que reconhecia diferentes legitimidades e se caracterizava pelo casuísmo, de modo que a lei emitida pela autoridade real era somente um de seus componentes, nem sempre o decisivo, na administração da justiça, competindo com a jurisprudência, as obras dos tratadistas e, sobretudo, com os costumes aceitos localmente. Esse contexto permite compreender que tanto a doutrina como a liturgia e a retórica política da monarquia hispânica apresentavam o rei mais como um juiz supremo do que como um legislador supremo. E isso fez com que, na administração judicial, o papel mais relevante coubesse antes aos juízes do que propriamente às leis. Essa questão é decisiva para se compreender o papel que desenvolveram os juízes na configuração do governo colonial. A ampliação e consolidação da máquina administrativa foram, sem dúvida, uma consequência central da configuração de um império que alcançou dimensões planetárias. Ainda assim, as condições da época impediram que o governo efetivo dos domínios coloniais pudesse se realizar por meio da força militar. Além disso, a monarquia esteve afundada em intermináveis conflitos bélicos na Europa. Mesmo diante dessas ressalvas, qualquer análise deve considerar que a extensa e heterogênea administração imperial era um conjunto articulado por relações de parentesco, amizade, favor, clientela e outros tipos de solidariedade, laços sociais que não se mostravam inconciliáveis com a ordem que a Coroa pretendia impor a seus agentes por meio de um heterogêneo conjunto de disposições74. 74 NE: Para um aprofundamento dessas questões, cf capítulo 1 deste volume.

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A administração se converteu, assim, na ferramenta primordial para governar o império e em seu topo se encontravam o rei e o Conselho de Índias. Dada a relação especial que as Índias mantinham com a Coroa de Castela, nelas não se reproduziram as instituições representativas que eram o centro da vida política nos domínios europeus da monarquia, mas, seguindo-se um modelo já conhecido, se instaurou em 1523 o Conselho de Índias, que desde 1561 teve sede permanente em Madri. Esse conselho expressava o poder crescente da nova administração letrada, recrutada majoritariamente entre a nobreza e o clero. Não obstante, é duvidoso que muitos dos 249 conselheiros que o integraram até 1700 fossem conhecedores das realidades coloniais, dado que tão somente sete haviam antes ocupado algum emprego em uma audiência americana. Porém, esse conselho possuía uma intervenção decisiva na designação de vice-reis e altos funcionários coloniais, assim como na definição das instruções que recebiam. Deste modo, longe de ser um tipo de instituição representativa das colônias ante a Corte, era um espaço institucional para articular as relações e formular as políticas da administração imperial. Isto não quer dizer que os grupos dominantes coloniais não pudessem ter suas demandas e reivindicações ouvidas na Corte, mas para isso deviam apelar a outros procedimentos: as petições enviadas por meio dos vice-reis, a designação de procuradores por parte dos cabildos americanos ou os recursos de súplica. Não eram procedimentos judiciais, mas sim recursos dirigidos ao legislador que, sem colocar em xeque sua autoridade para impor uma legislação específica, denunciavam inconveniências e serviam para reivindicar a validade de direitos e privilégios. Deste modo, eram considerados como um direito fundamental dos súditos e se expressavam na fórmula se obedece, pero no se cumple [“se obedece, mas não se cumpre”]. Convém, então, atentar ao funcionamento dessas estruturas coloniais de governo e administração de justiça. A formação dos vice-reinos retomava a experiência iniciada em Aragão durante o século XIV e generalizada pelos Reis Católicos para o governo de seus domínios, com a clara exceção de Castela. A adoção desta instituição visava não somente a consolidar a autoridade real, mas também a entrelaçar mais firmemente a Coroa à nobreza castelhana, já que dela se originou a grande maioria dos vice-reis dos séculos XVI e XVII. Com os vice-reis começou a se configurar uma estrutura administrativa mais complexa, assim como uma vida cortesã no México e 232 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

em Lima. No entanto, sua situação era muito diferente daquela de seus colegas europeus, pois na Europa a instituição vice-real funcionava muito limitada pelos conselhos que representavam os diferentes territórios frente ao rei. Na América, pelo contrário, os vice-reis tinham de lidar com as audiências, tribunais aos quais foi atribuída a jurisdição suprema. Porém, os vice-reis eram autoridades temporárias que permaneciam geralmente seis ou sete anos no cargo, ainda que alguns tenham governado durante duas décadas Uma visão simplificada das estruturas institucionais poderia sugerir a imagem de uma pirâmide perfeitamente escalonada, na qual o rei e o Conselho de Índias estariam no topo, seguidos dos vice-reinos e das audiências, que possuíam jurisdições territoriais de menor alcance, nas quais existiam distritos menores, geralmente denominados gobernaciones, corregimientos e alcaldías mayores. Contudo, esta é uma imagem completamente anacrônica e, quando se atenta ao funcionamento efetivo do dispositivo institucional, pode-se construir uma visão radicalmente distinta: a Corte funcionava como o eixo de uma roda cujos raios eram as audiências, enquanto estas eram, por sua vez, eixos de uma série de rodas cujos raios se estendiam às províncias de suas respectivas jurisdições. As audiências, por outro lado, não eram todas idênticas em atribuições e competências, dividindo-se basicamente em três tipos: as audiências vice-reais, situadas nas capitais, cujas sessões eram presididas pelo vice-rei; as audiências pretorianas, que exerciam o governo de uma jurisdição e se comunicavam diretamente com o rei e o Conselho das Índias; e as audiências subordinadas, que não possuíam poderes de governo. Por outro lado, as audiências das capitais vice-reais assumiam temporariamente o governo do vice-reinado quando acabava o governo de um vice-rei e ainda não havia chegado um novo. Ainda que fosse se adaptando às realidades americanas, esse modelo judicial foi adotado do castelhano e regulado pelas Ordenanzas ditadas em fins do século XV, as quais prescreviam a condição de pessoa pública ao magistrado, o segredo de suas decisões e sua colegialidade. E foi justamente esse modelo que se impôs na América à medida que se ia substituindo o poder militar dos conquistadores pelo poder civil dos letrados, uma orientação politica que claramente correspondia à matriz católica da ordem jurídica. A decisão de fortalecer o papel das audiências foi simultânea à sanção das Leis Novas e apontava para a mesma As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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direção: anular as autoridades jurisdicionais dos conquistadores e configurar um novo tipo de governo colonial e de administração de justiça. Por isso, as audiências americanas tiveram maiores atribuições do que as peninsulares, situação que foi reforçada por sucessivas disposições e por argumentações dos tratadistas. Vistas em conjunto, essas disposições expressavam um tipo de juiz ideal baseado no distanciamento do meio social sobre o qual possuía jurisdição, o que se testemunha na repetida proibição de contrair matrimônio no próprio distrito sem licença real. No entanto, essa pretensão foi encontrando seus limites claros durante a segunda metade do século XVII, em um processo que desgastava significativamente a autoridade régia sobre a justiça nas Índias. Assim, em 1687, a Coroa começou a vender cargos a ouvidores das audiências, alterando com isso a política de nomeação, já que habilitava o recrutamento de membros das elites locais, um fenômeno que expressava o crescente poder desses grupos e as consequências da formação das primeiras universidades na América. A rigor, a prática de venda de empregos públicos havia começado em meados do século XVI envolvendo cargos de escrivania e dos cabildos, ampliando-se significativamente durante o século XVII, quando abarcou aqueles ligados à arrecadação de impostos, tesourarias, tribunais de contas e administração provincial. No início do século XVIII, foram colocados à venda o emprego de vice-rei do Peru e postos no Conselho das Índias. Essa foi uma das vias por meio das quais as elites coloniais americanas foram adquirindo um enorme poder na estrutura administrativa, forçando um tipo de exercício negociado da autoridade. O dispositivo institucional contava, ademais, com outras práticas e figuras que se converteram em espaços de negociação politica. Neste sentido, uma instituição decisiva foi a visita, pois era um procedimento de controle extraordinário e externo que permitia vigiar as ações de vice-reis e audiências, reafirmar a autoridade do rei e estabelecer novos equilíbrios entre os grupos de poder local. Dessa forma, o tempo em que atuaram os visitadores gerais pode ser considerado como de redefinição das formas de governo colonial; através das visitas, a Coroa aspirava reconstituir os laços de obediência e lealdade de seus súditos. Para nosso tema se trata de uma questão relevante, pois essas visitas procuravam reafirmar o papel da justiça na ordem colonial. Assim aconteceu, por exemplo, no Peru durante a gestão do visitador Toledo no sé234 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

culo XVI e se repetiria na crítica conjuntura de 1640 na Nova Espanha, quando Juan de Palafox y Mendoza, bispo de Puebla, foi nomeado visitador do vice-reino para julgar o vice-rei. Outra instância institucional decisiva foram os juízos de residência a que eram submetidos os governantes coloniais ao término de seu mandato. Era uma instituição de origem castelhana que tinha como função controlar os comportamentos dos funcionários do governo, colher informação sobre as deficiências da administração e produzir reformas. Por isso, a ela deveriam se submeter todos os funcionários, especialmente os vice-reis e ouvidores de audiência. Os juízos de residência possuíam duração variável, mas sempre se constituíam de duas etapas distintas: uma pesquisa secreta e outra pública. Na primeira etapa, o juiz designado interrogava testemunhas, colhia informações e podia receber denúncias anônimas, motivo pelo qual sua instância decisiva era o interrogatório de testemunhas. A partir disso o juiz levantava as acusações contra o acusado e era realizado o julgamento. Portanto, na prática, o juízo de residência se transformava em um espaço de disputa política entre as facções locais e suas clientelas, mas ao mesmo tempo cumpria uma importante função simbólica, na medida em que se convertia em um ritual político de reafirmação da autoridade régia e da justiça como eixo da ordem. Distritos menores estiveram a cargo de alcaydes mayores e corregidores. Ainda que confundidos muitas vezes, pode-se dizer que os primeiros eram geralmente letrados que constituíam uma instância de apelação, enquanto os segundos eram juízes leigos com atribuições de governo e de primeira instância civil e criminal em nível local. Contudo, as realidades podiam se distanciar dessa descrição genérica, e em meados do século XVII a instituição de alcaides maiores estava completamente generalizada no Vice-reino da Nova Espanha e no Caribe, enquanto que os corregedores estavam muito mais difundidos no Vice-reino do Peru. Uns e outros foram figuras pensadas como agentes da autoridade superior, começaram a tomar forma na década de 1520 e em meados do século começaram a ser designados também para o governo dos povoados de índios. Porém, se os territórios a cargo das audiências podiam ser divididos em corregimientos, não era obrigatório que assim acontecesse. De toda sorte, a figura do corregedor adquire plena centralidade quando se considera o governo da “república de índios”. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Essa centralidade foi muito evidente no Vice-reino do Peru, onde a introdução desta instituição, que exercia ao mesmo tempo a função de governo e justiça maior sobre um conjunto de reduções indígenas, ocupou um papel decisivo nas disputas entre autoridades régias, encomenderos e senhores étnicos, dado que foi imaginada para interferir e limitar seu poder. Afinal, esses agentes reais teriam a seu cargo a arrecadação tributária e, para implementar suas funções, começaram a designar aguaciles indígenas que ostentavam a vara da justiça hispânica, enquanto ao mesmo tempo ascendiam na hierarquia comunitária. A política adotada visava à formação de reduções, agrupando e realocando as comunidades indígenas em povoados de matriz hispânica. Essas reduções foram integradas a 614 distritos administrativos denominados repartimientos, cada um dos quais sob o comando de um chefe indígena ou curaca. Por sua vez, esses repartimientos foram agrupados em 80 províncias ou corregimientos, à frente dos quais era designado um corregidor de índios, o qual era, ao mesmo tempo, o encarregado de administrar justiça, regular as relações mercantis dessas comunidades e assegurar a arrecadação tributária, assim como as prestações de mita. Essa figura institucional, concebida como uma ferramenta para subtrair as comunidades do poder dos encomenderos, afirmar a autoridade real e a capacidade arrecadadora da Real Fazenda, sofreu mutações. Nas primeiras décadas do século XVII, quando começou a ser vendável, tornando-se acessível a comerciantes que se habilitassem a obtê-lo, o cargo de corregedor vinha adquirindo um perfil muito diferente do planejado: seus ocupantes se autonomizavam em relação às autoridades superiores e converteram as comunidades governadas em um mercado cativo, submetidas à divisão forçada. Foi esse tipo de prática mercantil que converteu a compra do cargo em algo extremamente atrativo, tornando os corregedores e seus aliados curacas no alvo principal dos protestos comunitários. A trajetória desta instituição resulta, assim, emblemática e demonstra que o fortalecimento da autoridade centralizada e da administração da justiça havia sido efêmero. Além disso, os corregedores haviam se transformado em uma instância de poder local que operava em benefício das redes mercantis a que pertenciam, em detrimento dos interesses da Real Fazenda. Já as audiências eram tão somente uma instância superior de administração de justiça e constituíram o ideal de uma justiça efetuada 236 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

por juízes letrados. Porém, existia outra decisiva instância jurídica: os alcaldes dos cabildos, surgidos no próprio ato de fundação de uma cidade. Esses poderiam ser letrados ou não, mas aquilo que os tornava juízes era sua condição de vecinos da cidade e sua eleição anual como membros do cabildo. Por isso o cargo de alcalde ordinário não devia ser posto à venda, sendo geralmente eleitos dois vecinos leigos que pudessem ocupar o cargo durante metade do ano cada um, ou, como aconteceu em muitos cabildos, encarregarem-se um das causas civis e outro das criminais. Os cabildos, na qualidade de corporação da cidade entendida como corpo político dotado de jurisdição, administravam a justiça ordinária e não foram todos idênticos, ainda que respondessem a uma mesma matriz. Neles se fez sentir com especial força a venda de cargos, especialmente a partir de 1606, quando se generalizou, afastando nitidamente a experiência americana do modelo castelhano. Até então, a maior parte dos postos dos cabildos era monopolizada pelas famílias beneméritas e de encomenderos, o que deixava grupos de colonos novos e enriquecidos fora do governo local. Deste modo, a alienação em leilão público dos ofícios capitulares significou uma mudança de fato, tendo resultado de um processo que tinha sido adiado, apesar das disposições em contrário ditadas, por exemplo, pelo vice-rei Toledo, que havia anteriormente ordenado que a eleição se fizesse em igual número entre encomenderos e vecinos sem encomendas. Os cabildos não administravam apenas a justiça ordinária nas cidades, pois seu exercício se ramificava pelo conjunto de sua jurisdição. A eles recorria uma gama diversa de juízes subalternos, como os alcaldes de la Santa Hermandad e diversos tipos de juízes pedáneos e comissionados. Trata-se de uma dimensão decisiva para se compreenderem as práticas jurídicas, na medida em que eles exerciam o governo da população dispersa pelos campos, onde não era factível constituir um dispositivo firme de juízes letrados. Em seu lugar, desde começos do século XVII, foram aparecendo essas figuras de origem castelhana, que deveriam, por um lado, exercer a baixa justiça em causas como assaltos em estradas, mortes e ferimentos em áreas despovoadas e, por outro, articular as relações entre as autoridades da sede urbana e a população rural. Ainda que os cabildos fossem autorizados a nomear esse tipo de agentes em 1555, a figura tardou a se generalizar e não o fez em todas as regiões do mesmo modo. Assim, por exemplo, na Nova Espanha foram substituídos As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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por alcaldes de la Mesa e logo por um juizado especificamente dedicado ao julgamento desses delitos cotidianos, o Tribunal de la Acordada, com seus juízes provinciais dependentes. Em outras regiões, como no Rio da Prata, as nomeações por parte dos cabildos estavam já generalizadas no início do século XVII, mas em número muito reduzido, uma situação que iria se modificar radicalmente em fins do século XVIII, quando esse tipo de juízes pedâneos se multiplicou, dedicando-se a perseguir “a gente ociosa, vagabunda e perdida” que vivia “em partes desertas, sem vecindad”. Em geral, se tratava de juízes leigos, designados anualmente entre os vecinos, ainda que não possuíssem nem voz, nem voto em seu cabildo e não lhes fosse exigido saber ler e escrever, pois administravam um tipo de justiça oral e sumária. A administração de justiça na “República de Índios” colocou problemas específicos e definiu estratégias diferenciadas. A esse respeito, um dos maiores dilemas enfrentados pelas autoridades coloniais foi definir o lugar e o papel que deveriam cumprir a nobreza indígena e as chefaturas comunitárias. Após a experiência caribenha, na qual os conquistadores se dedicaram a exterminar sistematicamente esses tipos de hierarquias, as conquistas do México e Peru abriram perspectivas diferentes e se inclinaram a apoiar-se nelas para governar as comunidades reduzidas. Não se tratava, por certo, de deixá-las inalteradas, mas sim de adaptá-las a novas regras e inscrevê-las em novas instituições. Não obstante, a solução desse dilema foi mais fruto da experiência e das disputas do que um plano previamente estabelecido. Deste modo, durante o reinado de Carlos V, em geral se pretendeu preservar o direito dos senhores de índios de governar seus vassalos, mas essa política mudou radicalmente durante o reinado de Filipe II, cuja administração se orientou muito claramente a destruir esses senhorios, ainda que preservando os cacicados comunais e buscando convertê-los na engrenagem de articulação entre governo colonial e comunidades. No entanto, se intentou simultaneamente produzir uma hispanização do modo de governo comunal, instaurando-se cabildos indígenas no estilo dos espanhóis. Aparentemente, a experiência foi ensaiada primeiro em Tlaxcala em meados do XVI, e logo começou a se reproduzir pelo resto da América espanhola, mesmo que sofrendo múltiplas adaptações. Dessa maneira, enquanto no centro da Nova Espanha a autoridade dos senhores étnicos foi rapidamente desintegrada, em outras áreas, como Oaxaca ou Iucatã, 238 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

perdurou por muito mais tempo, ainda que em ambas as situações a coexistência das formas de autoridade hispanizadas e as hierarquias cacicais tenha sido tão perdurável como conflituosa, na medida em que os macehuales encontraram no sistema espanhol de cargos um caminho de ascensão social que colocava em questão a autoridade dos caciques. No Peru, o desmoronamento dos grandes senhorios também possibilitou essa coexistência entre hierarquias de curacas e regime de cabildos. Inicialmente se proibiu que os caciques ocupassem cargos nos cabildos e se pretendeu que seus alcaldes tivessem competências judiciais restritas a delitos menores, servindo como auxiliares da justiça ordinária hispânica. No entanto, com o tempo, conseguiram ampliar suas atribuições e ainda reconstruir formas de justiça comunitária. A ordem jurídica colonial, as estruturas que a sustentavam e as práticas sociais, políticas e culturais que habilitou foram produto da mestiçagem institucional e normativa. Fundava-se e se legitimava em sua matriz castelhana, mas em seu desenvolvimento foi-se afastando dela, configurando um sistema jurídico flexível que podia funcionar porque não prevalecia uma ordem legal uniforme, sistemática e integral, mas, ao contrário, uma múltipla e pluralista. A tal ponto foi assim que a vasta produção normativa elaborada e reelaborada desde os tempos da conquista somente viria a ter uma tentativa de ordenamento e sistematização em 1680, com a Recopilación de Leyes de Indias, ainda que nem ela tenha conseguido anular a vasta gama de disposições então vigentes que habilitavam as estratégias dos atores para se aproveitarem em benefício próprio dos interstícios e contradições normativas, sem colocar em perigo sua fidelidade à monarquia. A intensa e conflituosa intenção de reforma da ordem colonial que se impôs na segunda metade do século XVI teve efeitos perduráveis, na medida em que definiu as estruturas e dispositivos básicos que haveriam de reger o governo e a administração da justiça. Porém, como foi visto, durante o século XVII foi perdendo intensidade e capacidade de execução. As elites coloniais e ainda as comunidades indígenas desenvolveram capacidades de adaptação e resistência para amortecer as intenções centralizadoras das autoridades régias, para absorver a administração colonial em suas redes de relações sociais e para transformar os próprios princípios e normas nos quais se fundamentava a legitimidade da monarquia em recursos para a defesa de suas posições e privilégios. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Entende-se, portanto, que as maiores inovações nas estruturas institucionais formadas no final do século XVI se produziram apenas no século XVIII, a partir das políticas reformistas da nova dinastia reinante, os Bourbon. Elas foram realizadas especialmente após a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que demonstrou a extrema debilidade defensiva do império na América, possibilitando uma nova política fundada na concepção da defesa total: um aumento sistemático das forças militares regulares nos principais pontos costeiros, um alistamento massivo dos súditos das colônias nas milícias, inclusive das castas, e um aumento extremo da pressão fiscal. Para que isso fosse factível, a Coroa teve que proceder a novas criações institucionais. Desse modo, foram organizados novos vice-reinos em territórios que haviam pertencido ao Peru (Nova Granada em 1789 e Rio da Prata em 1776), mas as maiores mudanças se produziram apenas na década de 1780 com a constituição das audiências de Buenos Aires, Caracas e Cusco, e a introdução do regime de intendências nos vice-reinados rio-platense, peruano e novo-hispano. A orientação que terminou por se impor buscava obter uma efetiva centralização da autoridade e substituir uma alta elite ligada à administração que até então havia sido recrutada entre a nobreza e o clero por outra surgida do âmbito militar. Por sua vez, pretendia desalojar as elites locais que haviam conquistado posições centrais na administração por funcionários de carreira de origem peninsular. Bem o demonstraram as designações de ouvidores para as audiências: se até 1687 tão somente um punhado havia nascido na América, entre esse ano e 1750 quase a metade teve essa origem. Desde então, essa situação voltaria a mudar radicalmente, ainda que um quarto das designações tenham recaído sobre americanos. Todavia, mais acentuado foi esse processo entre os burocratas nomeados para administrar as intendências, que em sua enorme maioria foram recrutados entre a expandida oficialidade militar, apesar de que essa se nutria cada vez mais de filhos de famílias americanas enobrecidas. Seja como for, o que as políticas reformistas buscavam era desmontar os equilíbrios de poder local forjados desde princípios do século XVII e que haviam dado forma às sociedades coloniais. As ambiciosas políticas concebidas em Madri iriam se mostrar não somente infrutíferas, mas também extremamente conflituosas.

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Território, administração e justiça na América portuguesa A extensão do território ocupado pelos portugueses na América, como era de se esperar, variou desde o descobrimento, em 1500, até a independência do Brasil, em 1822. Pode-se dizer que esse avanço na ocupação territorial, sempre acompanhado do aumento da população não autóctone, se deu num sentido que ia do litoral para o interior. Em outras palavras, a dinâmica da colonização lusa foi em grande medida a da interiorização, fenômeno que dependeu do enfrentamento dos obstáculos geográficos e da assimilação de conhecimentos adquiridos pelos indígenas. Em 1494, por meio do tratado assinado em Tordesilhas, espanhóis e portugueses procuraram regular a posse das descobertas em andamento na América, definindo como referência a distância de 360 léguas a oeste de uma das ilhas de Cabo Verde: as áreas que ficassem ao nascente de tal referência seriam de Portugal e as que estivessem ao poente seriam de Espanha. Embora nunca tenha havido uma demarcação efetiva dos limites traçados pelo Tratado de Tordesilhas, a verdade é que a interiorização lusa, principalmente no século XVIII, transbordou-os amplamente. De modo geral, a ocupação da América portuguesa se deu em seis fases distintas, sendo a primeira delas, entre 1500 e 1532, aquela em que, após o descobrimento, foram fixadas feitorias em Pernambuco, Cabo Frio e Rio de Janeiro para a exploração do pau-brasil através do regime de contrato. Num segundo momento, de 1532, ano da expedição de Martim Afonso de Sousa, a 1548, foram criadas as primeiras vilas e estabelecido o sistema de capitanias hereditárias, que consistiu na divisão do litoral em fundos territoriais, bem como em sua distribuição a donatários responsáveis por promover a colonização. Uma terceira fase vai de 1548, quando foi criado o governo-geral com sede em Salvador, Bahia, a 1580, ano em que se constituiu a União Ibérica. Durante esse período, deu-se, além da instalação da base do que viriam a ser as estruturas administrativas na colônia, o desenvolvimento mais efetivo dos engenhos de açúcar. Na terceira fase, entre 1580 e 1640, período da União Ibérica, consolida-se a atuação do tráfico e a escravidão africana, especialmente nas grandes unidades produtivas do Nordeste, e ocorrem as invasões holandesas. A consolidação do complexo canavieiro estimula a expansão da pecuária pelos sertões dos rios Parnaíba e São Francisco. Entre 1640 e As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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1750, um quinto momento que se inicia com a restauração da Coroa portuguesa, os holandeses são expulsos e a ação sertaneja de paulistas e baianos leva à descoberta e exploração das jazidas auríferas. Estas estimulam grandemente a ocupação de áreas de fronteira, promovendo a organização de mercados regionais que envolvem áreas estendidas, verticalmente, do Rio Grande de São Pedro ao sertão nordestino e, horizontalmente, dos portos do litoral aos confins de Goiás e Mato Grosso. Na sexta e última fase, marcada pelo pombalismo e pelo reformismo ilustrado, a interiorização continua a ocorrer, envolvendo mais intensamente a Amazônia e as áreas fronteiriças aos domínios espanhóis. Em 1750 e 1777, são assinados, respectivamente, os tratados de Madri e de Santo Ildefonso, que definem os limites entre os dois impérios ibéricos na América. O impacto do empreendimento colonizador sobre a demografia na América foi muito expressivo, não apenas em termos quantitativos, como também no que diz respeito à variedade étnica da população. É inegável que o contato com os colonizadores desestruturou inúmeras comunidades indígenas, levando à diminuição ou mesmo ao aniquilamento de algumas etnias. Além disso, a chegada de portugueses foi acompanhada da vinda de africanos, cuja origem era também bastante variada, abarcando grupos étnicos com línguas e estruturas sociais distintas. Descontados os indígenas, que em algumas partes do litoral foram quase dizimados, a população da América lusa, que girava em torno de uns 300 mil habitantes no final do século XVII, alcançou a cifra de aproximadamente dois milhões no final da centúria seguinte. Esse significativo aumento populacional no período derivou de três aspectos principais: o desenvolvimento econômico gerado pela descoberta das minas de ouro; a expansão do tráfico negreiro, que fez ingressar uma expressiva quantidade de africanos no Brasil; e a miscigenação, responsável pelo crescimento vertiginoso da população mestiça nas várias partes da vasta região colonizada. É difícil definir com precisão as diversas origens dos cativos africanos chegados ao Brasil, mas seus principais portos de embarque foram a Costa da Guiné, na África Ocidental, Angola, na Central, e Moçambique, na Oriental. Os vínculos entre a Bahia e a Guiné, rota de entrada de sudaneses, e os mantidos entre o Rio de Janeiro e Angola, por meio do quais se deu o ingresso de bantos, foram decisivos na conformação das populações das capitanias de norte e sul do Brasil. 242 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Não há precisão quanto ao número de indígenas que habitavam o Brasil na época da invasão portuguesa, mas sabe-se que eram alguns milhões. O entendimento de que esse número não era pequeno põe em xeque a hipótese de um território vazio e aberto à colonização. As nações indígenas se dividiam em quatro grupos linguísticos principais: tupis, jês, caribes e aruaques. Os dois primeiros compunham famílias linguísticas derivadas de estoques mais amplos: o macro-tupi e o macro-jê. Este último deve ter se constituído entre os rios São Francisco e Araguaia, difundindo-se a partir desse ponto no Planalto Central, numa faixa oeste-sudeste. São jês ou tapuias os xakriabás, xerentes, xavantes e kaiapós. Botocudos e maxakalis compõem o grupo macro-jê. A área de dispersão inicial do estoque macro-tupi deve ter sido a região entre os rios Madeira e Xingu. Nesse grupo, destaca-se o ramo tupi-guarani, cujo padrão de migração indica um movimento circular que passa pela Bolívia e pelo Paraguai, dirigindo-se para o litoral atlântico. Pertencem a esse ramo os carijós ou guaranis, ao sul, os tamoios, no litoral sudeste, os tupiniquins, no sul da Bahia, os tupinambás e caetés, no nordeste, e os potiguares, mais ao norte. Os cronistas que visitaram o Brasil ou dele tiveram notícias informaram que, no século XVI, as populações indígenas da costa eram significativas. A redução de população, no entanto, foi intensa após a conquista, sendo motivada pelas guerras, pelas expedições de captura de escravos, pelas crises de epidemia e fome, pela destribalização que a criação de aldeamentos promovia e, como não podia deixar de ser, pelo interesse econômico associado às terras que os autóctones ocupavam. A instituição do governo geral em 1548 não implicou a extinção do regime de capitanias hereditárias, sendo seu objetivo o de auxiliá-las e articular o empreendimento colonizador. O primeiro govenador, Tomé de Sousa (1549-1553), trouxe consigo extenso regimento que visava a erigir uma grande cidade protegida por fortalezas, apoiar as povoações, ministrar justiça e tratar dos interesses régios, principalmente os relativos à cobrança de impostos. Para isso foram estabelecidos, como base da estrutura administrativa, além do próprio governo, os postos de provedor-geral, ouvidor-geral e capitão-geral, responsáveis, respectivamente, pelos assuntos referentes à Fazenda, à Justiça e à defesa do litoral. As capitanias deveriam remeter-se a Salvador, a nova capital do Brasil, embora pudessem manter comunicação direta com a Coroa. A As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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ocupação efetiva do território era feita em grande medida espontaneamente, a posse de terras resultando da simples fixação do colono com seus escravos, sem regulação formal. Esta existia, no entanto, e tomava como fundamento o antigo sistema de sesmarias, regime de distribuição de terras através do qual a Coroa portuguesa reconhecia formalmente a concessão, mas demandava em troca – o que, aliás, nem sempre era cumprido – o cultivo efetivo da área doada. A estrutura inicial resultante do governo geral não podia deixar de ter desdobramentos no decorrer das décadas e dos séculos em razão seja do desenvolvimento de novas atividades econômicas, seja da expansão dos povos nas várias partes da América. Em linhas gerais, pode-se dizer que as regiões colonizadas se dividiam em dois tipos. O primeiro incluía os casos de áreas que, dada a produção de mercadorias de grande aceitação internacional, ganhavam certa densidade econômica e atraíam o tráfico atlântico de escravos. O Nordeste açucareiro e as Minas Gerais são casos paradigmáticos desse modelo. O segundo tipo, pelo contrário, envolvia regiões litorâneas ou do interior que, embora fossem capazes de gerar excedentes, não alcançavam densidade econômica significativa, valendo-se comumente da mão de obra local, isto é, indígena. Foi o que ocorreu, por exemplo, com São Paulo e a Amazônia nos séculos XVI e XVII. Ainda assim, além de haver formas intermediárias entre ambos os tipos, era possível, no decorrer do tempo, passar de um para o outro. Foi o que aconteceu com São Paulo. Sua ocupação teve início com a criação da Capitania de São Vicente, uma das hereditárias instituídas na década de 1530. A partir do povoamento litorâneo, os colonizadores subiram a serra e começaram a se espalhar pelo planalto, onde foram surgindo lavouras que, entre outros produtos, cultivavam o trigo, gramínea fundamental na alimentação europeia. O trigo planaltino descia para o porto de Santos nas costas de escravos indígenas e de lá, através da navegação de cabotagem, era vendido em vários pontos da costa americana, na qual vivia a maioria da gente oriunda da Europa. Apesar de garantir certa rentabilidade, a produção do trigo não gerava a densidade econômica obtida pelos exportadores do açúcar nordestino. No entanto, após a descoberta do ouro em Minas Gerais, em Mato Grosso e Goiás, o planalto paulista recebeu forte impulso econômico ao tornar-se importante entreposto comercial que ligava as regiões auríferas aos portos do mar ou mesmo a outras áreas produtivas. A densidade 244 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

alcançada na ocasião foi acompanhada do ingresso expressivo de mão de obra africana, bem como da criação de uma capitania sediada na Vila de São Paulo em 1720. A ocupação do território e o desenvolvimento de núcleos produtivos em diferentes partes da América portuguesa geraram mudanças na estrutura administrativa, sendo uma delas a coexistência entre as capitanias hereditárias e aquelas governadas diretamente pela Coroa. Estas últimas resultavam ora da aquisição, por parte da monarquia, de algumas hereditárias, ora da criação de capitanias novas em áreas interioranas. As capitanias hereditárias, no entanto, só foram completamente extintas em 1759. Na segunda metade do século XVIII, a evolução da estrutura administrativa havia constituído um sistema complexo que abarcava as funções cruciais do governo, da justiça, da defesa e da fiscalidade. Em 1763, a capital do Brasil, em decorrência da exploração aurífera, foi deslocada para o Rio de Janeiro. A essa altura, era governada por um vice-rei. Este, responsável por inúmeros assuntos que envolviam o governo fluminense e de outras regiões coloniais, tinha assento também no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, instância judicial máxima no âmbito colonial, composta também por um chanceler e por outros magistrados. A Relação do Rio havia sido erigida em 1751, mas dede o início do século XVII funcionava ao norte o Tribunal da Relação da Bahia. A criação do título de vice-rei contribuiu para a consolidação da importância da sede do Estado do Brasil, mas não significou o estabelecimento de um poder central efetivo na própria colônia ou de uma instância correlata aos vice-reinados da América espanhola. Além disso, no decorrer dos séculos foram sendo forjadas estratégias de divisão administrativa, mesmo que provisórias, com o intuito de facilitar o governo do extenso território brasílico. Este foi o caso da criação, em 1574-1578 e 1608-1612, de uma Repartição Sul. Ademais, entre 1621 e 1772 a região da Amazônia constituiu, com denominações diferentes, uma unidade administrativa à parte, diretamente ligada a Lisboa. No início da segunda metade do século XVIII, por exemplo, a América portuguesa era formada pelo Estado do Brasil e pelo Estado do Grão-Pará e Maranhão. No início do século XIX, o Brasil possuía dezesseis capitanias da Coroa: Rio Negro, Grão-Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande de São Pedro. Cada uma delas possuía um governador responsável pela administração de seu respectivo território em diferentes níveis. Ainda que formalmente tais governadores devessem certa obediência ao vice-rei, na prática gozavam de grande autonomia, mantendo contatos diretos com o monarca e os órgãos centrais da administração metropolitana. Os governadores podiam deter também o título de capitão-general, posto máximo da hierarquia militar. Cabia-lhes, portanto, dirigir as tropas de sua capitania, zelando por sua boa formação. As tropas não eram, porém, todas iguais, podendo-se descrever três gêneros delas. O mais importante era o composto pelos soldados pagos, que, por receberem soldos e tendencialmente serem escolhidos entre os mais eficientes, constituíam o fundamento da ordem militar colonial. Às tropas pagas eram atribuídas as tarefas mais relevantes do ponto de vista dos interesses da Coroa. O segundo gênero eram as tropas auxiliares, dirigidas por sargentos-mores pagos que tinham o dever de sustentar, vestir e armar os soldados que lhes estavam subordinados. Tais milícias possuíam funções próprias, mas comumente auxiliavam o governador e as tropas pagas na realização de tarefas pelos vastos e arredios territórios das capitanias. Por fim, o terceiro gênero compunha-se das ordenanças, tropas de caráter local que resultavam da organização dos homens adultos de bairros e arraiais, visando à defesa dos municípios. Havia ainda destacamentos militares irregulares, não associados a nenhum dos três gêneros descritos acima, e mesmo de existência provisória. Uma vez que a maior parte dos soldados não era paga e estava subordinada aos homens poderosos das localidades, os únicos capazes de ostentar os títulos de comando e sustentar as tropas, sua atuação trazia certa instabilidade social, pois muitas vezes agiam segundo seus próprios interesses ou os de seus comandantes, abusando de seu poder e violentando os povos. Seja como for, através das diferentes tropas os governadores tinham acesso ao que acontecia nas mais recônditas partes de suas capitanias, procurando resolver certos conflitos por meio da atuação militar. As capitanias coexistiam com circunscrições territoriais denominadas comarcas, nas quais se instituíam ouvidorias. Embora os agentes que as dirigiam, os ouvidores, fossem letrados nomeados pelos reis visando ao exercício da justiça, suas funções eram bem mais amplas, abarcando o auxílio aos governadores, o controle das câmaras muni246 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

cipais e de outras instituições locais, o apoio a tarefas relacionadas ao fisco, a participação em juntas, a visita a regiões comarcãs e a realização de atividades administrativas diversas. Dados os limites financeiros da monarquia, as ouvidorias coloniais eram poucas e abarcavam territórios bastante extensos, o que dificultava a ação dos ouvidores. Em Minas Gerais, por exemplo, havia, na metade do século XVIII, apenas quatro ouvidores para lidar com uma capitania de aproximadamente 500 mil km². Apesar de atuarem constantemente de forma conjunta e complementar, eram muito comuns os conflitos entre governadores e ouvidores em torno das atribuições e prerrogativas que lhes cabiam. Contribuía para tal situação o fato de os ouvidores terem estudado em universidades, seguindo carreiras de direito, enquanto os governadores, embora não descurassem das letras, haviam tido por vezes formação militar. Assim, não se pode deduzir da divisão em capitanias e ouvidorias que os ouvidores fossem meros executores das ordens ditadas pelos capitães-generais. Pelo contrário, o próprio monarca reconhecia aos ouvidores certa autonomia de ação, conferindo-lhes o direito de remeter à Coroa queixas contra supostos abusos cometidos pelos governadores. Mencione-se que, contrariamente ao que ocorreu na América espanhola, durante a colonização do Brasil não foram estabelecidas universidades em seu território e, portanto, os letrados de origem americana tiveram de se formar em instituições europeias, especialmente na Universidade de Coimbra. Na circunscrição territorial de cada ouvidoria, achavam-se um ou mais núcleos urbanos, cada um deles estendendo-se pelos seus termos, isto é, por áreas que, juntas, compunham os municípios. A maioria das urbes possuía o título de vila, havendo pouquíssimas cidades, como, na segunda metade dos Setecentos, a de Salvador, a do Rio de Janeiro, a de Mariana e a de São Paulo. Os termos das vilas e cidades, também bastante extensos – o de Mariana, por exemplo, abrangia 60 mil km² -, envolviam áreas rurais ocupadas por sítios e fazendas, regiões inabitadas e cobertas por vegetação virgem, terras de ocupação indígena e arraiais – pequenos povoados que congregavam as populações dispersas pelas roças e sertões. Os municípios, depois de fundados, instalavam suas câmaras, órgãos responsáveis por exercer funções políticas, administrativas e judiciais básicas. Eram compostas geralmente por seis oficiais - dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador – auxiliados por escrivães, um tesoureiro e outros agentes de segundo escalão. Os oficiais As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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eram eleitos pelo restrito grupo da nobreza local, os chamados homens bons, e, quando reunidos, formavam o senado da câmara, responsável por fixar as normas de funcionamento da vida cotidiana, multar os que as desrespeitavam, fiscalizar a atuação de comerciantes e artesãos, embargar obras e trocar correspondências com camaristas de outros municípios, com ouvidores e governadores, e mesmo com o rei. Os oficiais da câmara também nomeavam juízes de vintena para atuarem em um ou mais arraiais. Cabia aos vintenas procurar conciliar partes conflitantes nos povoados, informar os camaristas e outras autoridades sobre assuntos diversos e elaborar documentos a serem utilizados em procedimentos judiciais. Os responsáveis por estes eram os juízes ordinários, que tinham alçada tanto no cível quanto no crime. Por serem eleitos pelos homens bons, comumente eram leigos que careciam, para despachar, do auxílio de letrados formados em universidade. Em pouquíssimos municípios, porém, havia juízes de fora, assim chamados por serem letrados nomeados pelo rei para presidirem a câmara e exercerem as funções judiciais dos ordinários. Nesse sentido, as câmaras constituíam a primeira instância da justiça colonial. Processos nelas sentenciados podiam receber apelação para a segunda instância, desempenhada pelos ouvidores, desta subirem ainda para um dos dois tribunais de relação, e daí para Portugal. Não por acaso, certas demandas judiciais levavam anos ou décadas para receberem sentenças definitivas. Nos prédios de muitas câmaras, além das salas de sessões e audiências, funcionavam também as cadeias, organizadas de forma a dividir os presos segundo sua condição social. Uma vez que, por falta de recursos ou má administração, muitas câmaras encontravam-se nos limites da falência, seus prédios eram rústicos e arruinados, sendo por isso comum a fuga de presos. Além da prisão em si, era possível a aplicação de penas que implicavam a realização de trabalhos forçados, o degredo para outras partes da América ou do império e também a morte – esta última por vezes dependendo da aquiescência das juntas de justiça, órgãos compostos por governadores e letrados para sentenciar casos graves. Os governadores e ouvidores tinham também deveres relativos à arrecadação dos diferentes tipos de impostos e à perseguição ao contrabando. Visto que as formas de taxação e de sua cobrança variavam bastante de capitania para capitania e, por vezes, de município para município, espalhavam-se pela América portuguesa provedorias ligadas à Real 248 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Fazenda. Na segunda metade do século XVIII, reformas na área fiscal, visando à melhoria na contabilidade e no controle da arrecadação, instituíram o Erário Régio, havendo nas capitanias unidades suas denominadas de Juntas da Real Fazenda. Cabia-lhes principalmente administrar a cobrança de impostos através do regime de contratos, que implicava a arrematação em praça pública, por particulares, do direito de cobrar um determinado tipo de taxa em circunscrição territorial específica. Os interessados podiam, por exemplo, arrematar o contrato dos dízimos de Minas Gerais. Formalmente, indivíduos abonados e seguros ofereciam à Coroa o pagamento de determinada quantia para poder cobrar na capitania do ouro o imposto do dízimo durante três anos. Caso o valor cobrado pelo contratante fosse maior que a quantia oferecida na arrematação, ele lucrava; caso contrário, perdia. No exercício da cobrança, os contratadores contavam com o apoio das tropas. As arrematações eram encaminhadas pelas provedorias ou juntas da Real Fazenda e tendiam a ser muito tensas, pois envolviam variados interesses econômicos, geralmente articulados às principais autoridades régias, inclusive as que compunham os órgãos fiscais. Além disso, também em função de problemas inesperados ou de arranjos clientelares, muitos contratadores passavam anos e mesmo décadas sem saldar os valores das arrematações, causando prejuízos significativos às finanças da Coroa. Entre os contratos mais importantes estavam os do dízimo – que, embora referente ao sustento da Igreja Católica, era cobrado pela Coroa -, o das entradas, que recaía sobre as mercadorias que ingressavam em determinada região, e o das passagens dos rios, cobrados sobre a travessia de cursos fluviais. Durante a colonização, ramos decisivos da produção e do comércio estiveram sob o controle de contratadores, situação que gerou tensões consideráveis em razão dos prejuízos causados aos colonos, dos excessos praticados durante as cobranças e das queixas de caráter antifiscal. Pode-se citar os expressivos exemplos relativos ao sal, à pesca da baleia, ao tabaco e aos diamantes. A Igreja Católica, para além de sua importância em termos de crenças e organização da vida comunitária, também impactava a sociedade colonial por desdobrar-se em estruturas jurídico-administrativas próprias. No final do século XVIII, estavam constituídas as dioceses da Bahia, do Maranhão, do Pará, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de São Paulo, do Mato Grosso e de Goiás. A diocese baiana foi a única instância elevada à categoria de arcebispado até o As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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fim do período colonial. Nele foi elaborada, no início dos Setecentos, a legislação que, com base nas decisões do Concílio de Trento, visava a ordenar a atuação da Igreja no Brasil. Trata-se das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Cada diocese, encabeçada por um bispo ou prelado, auxiliado por um cabido – conselho composto por dignitários aptos, em tese, a ajudar no governo diocesano -, dividia-se em comarcas eclesiásticas encarregadas a vigários da vara. Assim como nem sempre o território dos bispados tinha o mesmo contorno das circunscrições das capitanias, as comarcas eclesiásticas não coincidiam com as civis, dirigidas, como se viu, pelos ouvidores. Os vigários da vara deviam cumprir orientações dos bispos, instruir processos judiciais e observar a atuação do clero. As comarcas eclesiásticas, por sua vez, subdividiam-se em freguesias, circunscrições cujas sedes eram as paróquias encabeçadas por vigários. Nas vastas áreas das freguesias localizavam-se ainda capelas de espécies diferentes: as pertencentes a conventos, as ligadas a irmandades leigas, as que eram erigidas pelos povos nos arraiais e as existentes em fazendas. Toda essa estrutura era atravessada por conflitos intermináveis: os bispos sofriam resistência no interior dos próprios cabidos, comumente rachados em facções; os vigários cobravam valores altos pelos serviços religiosos e disputavam entre si a cobrança deles; autoridades eclesiásticas e civis disputavam encarniçadamente a jurisdição sobre determinados assuntos. Em relação a este último aspecto, é importante observar que a organização da Igreja se fundamentava no Padroado, regime através do qual o papa cedia ao monarca a prerrogativa de administrar as estruturas eclesiásticas em sua dimensão temporal, mas não na espiritual. É por essa razão que os dízimos eram cobrados pela Coroa através de contratos. A princípio, essa cobrança deveria reverter para a própria Igreja, contribuindo, por exemplo, para a edificação ou reforma de templos ou para o pagamento dos salários dos padres. No entanto, era recorrente que os recursos dos dízimos fossem antes utilizados em áreas que não diziam respeito à Igreja. Nem todo o clero secular, composto por padres, coadjutores e capelães, recebia salários, sendo mais comuns os vigários encomendados (os que não recebiam) do que os colados (que recebiam). Na prática, o sustento da estrutura eclesiástica cotidiana recaía sobre os fregueses, que tinham de pagar pelos mais variados serviços. Dentre eles destacavam-se as conhecenças, cobradas com exorbitância na época 250 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

da Quaresma, ocasião em que todo freguês era obrigado a confessar e comungar. No geral, o comportamento do clero não se distinguia muito daquele experimentado pelos leigos, sendo vários padres tidos como dissolutos e simoníacos. Para tentar controlar os próprios membros da Igreja, bem como a vida dos fregueses – sendo o combate à mancebia uma constante -, os bispos realizavam as visitas pastorais, excursões por partes do território do bispado com o intuito de conhecer práticas ilícitas, punir os supostos culpados e avaliar se os templos estavam em condições para celebrar o culto divino. Paralelamente, havia uma estrutura judicial especificamente ligada à Igreja: o Juízo Eclesiástico, presidido pelo vigário-geral. Além de julgar questões relativas ao clero como foro privilegiado, conforme se mencionou acima, essa instância judicial conhecia casos que envolviam o desrespeito à doutrina católica, como as mancebias, o adultério, a sodomia etc. Mencione-se que, embora no Brasil não tenha sido instituído um tribunal da Inquisição, agentes inquisitoriais espalhavam-se pelas urbes e arraiais e participavam das visitas pastorais, sempre visando a identificar casos de séria agressão à doutrina, especialmente os que envolviam bruxos e feiticeiros. Os que fossem considerados perigosos eram remetidos às instâncias da Inquisição em Portugal. O clero secular coexistia com o regular, isto é, com aquele composto por frades e freiras ligados a conventos e ordens religiosas específicas, como a dos jesuítas, capuchinhos, franciscanos, beneditinos etc. Já no governo geral de Tomé de Sousa chegaram os primeiros missionários pertencentes à Companhia de Jesus, chefiados por Manuel da Nóbrega. Desde então, dezenas de ordens e casas conventuais espalharam-se pelo Brasil, devendo obedecer a autoridades específicas, os chamados provinciais, localizados quer na própria América, quer em Lisboa ou ainda em Roma. Também os regulares foram motivo de acentuada tensão na sociedade colonial, não só pela influência política que exerciam sobre os agentes régios e os potentados locais, como também porque deixavam seus conventos e levavam vidas bastante mundanas. Não eram incomuns ainda os embates entre as diferentes ordens, devendo-se ressaltar que, longe de se apartarem do luxo, não deixavam em regra de possuir escravos e propriedades. Os jesuítas chegaram a controlar engenhos de importância no Nordeste açucareiro. A influência política e ideológica que alcançaram, bem como o a capacidade econômica de que dispunham – por vezes excessivamente superdimensionada –, levaAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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ram a Coroa, na época do marquês de Pombal, poderoso ministro do rei D. José I, a expulsá-los do império em 1759. A par das ordens regulares estabeleceram-se também as irmandades leigas, associações religiosas formadas por gente que não pertencia ao clero. Elas se organizavam em função das diferenças estamentais, havendo irmandades de brancos, negros e mestiços, podendo as divisões serem ainda mais acentuadas ao separarem proprietários de terra e comerciantes ou africanos e crioulos. As mais prestigiadas delas, compostas pelos grupos dirigentes locais, eram a Ordem Terceira de São Francisco, a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo e a Santa Casa de Misericórdia. As populações negras tendiam a agrupar-se em torno das irmandades de Nossa Senhora do Rosário, de Santa Efigênia e de São Benedito. As irmandades foram importantes em toda a América portuguesa, principalmente por exercerem atividades voltadas ao auxílio material e espiritual de seus membros. Porém, nas Minas Gerais desempenharam papel mais que decisivo, já que desde o início da ocupação da região a Coroa proibiu o estabelecimento nela de ordens regulares, com receio de que os frades causassem prejuízos à manutenção da ordem e ao combate ao contrabando. Seja como for, em todo o Brasil as associações leigas, devido à sua composição, canalizaram conflitos sociais e políticos típicos de uma sociedade escravista e colonial. A organização civil e eclesiástica desenvolvida na América portuguesa articulava-se a órgãos centrais localizados em Lisboa. Eram eles que, por exemplo, procuravam controlar a atuação de governadores e magistrados através das residências, isto é, de investigações sobre como um agente régio havia se comportado no posto, realizadas após o fim de seu mandato. O Conselho Ultramarino recebia petições e correspondências vindas de todo o império, atuando com afinco na resolução de problemas administrativos, principalmente nos conflitos que abarcavam as próprias autoridades. A Mesa do Desembargo do Paço, por sua vez, embora também atuasse como tribunal, respondia pela evolução da carreira dos ministros que, no reino ou nas regiões ultramarinas, serviam como desembargadores, ouvidores, provedores e juízes de fora. O Tribunal da Relação do Porto e a Casa de Suplicação eram instâncias de caráter judicial que recebiam apelações de processos, alguns deles vindos das mencionadas relações da Bahia e do Rio de Janeiro. Já a Mesa de Consciência e Ordens procurava lidar com os assuntos eclesiásticos que eram da alçada do 252 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

rei, o que envolvia, portanto, toda a estrutura de bispados submetida ao Padroado. Ainda que parte dos requerimentos e cartas endereçadas a esses tribunais e conselhos fosse remetida ao monarca para que este desse a palavra final, não deixava de haver embates e ambiguidades. Por vezes, um mesmo assunto era submetido, por vias diferentes, à apreciação de duas das instâncias mencionadas, cada uma delas tomando decisão que contrariava a adotada pela outra. Nesse contexto, a solução de certos problemas se arrastava pelos anos, restando significativa margem de manobra para as autoridades locais e os membros das comunidades. Após o fim da União Ibérica, em 1640, a Coroa lusa procurou criar mecanismos através dos quais se ampliasse sua capacidade de centralizar as tomadas de decisão. Foi nesse contexto que surgiu o mencionado Conselho Ultramarino. Mas foi no século XVIII, em decorrência, entre outros fatores, do crescimento econômico e demográfico desencadeado pelas descobertas auríferas, que tais tentativas de centralização se mostraram mais intensas. Teve, nesse aspecto, especial relevância a nomeação como ministro, pelo rei dom José I, de Sebastião José de Carvalho e Melo, intitulado depois marquês de Pombal. Entre 1750 e 1777, diversas medidas pombalinas almejaram fortalecer o poder régio e gerar condições para que a economia portuguesa se tornasse superavitária. Para isso, Carvalho e Melo adotou uma política voltada ao esvaziamento do poder da nobreza e do clero junto ao Estado; à reorganização da estrutura fiscal portuguesa por meio da criação do Erário Régio; ao incentivo da diversificação da economia colonial; a estratégias de cooptação dos grupos dominantes locais; à reforma do modo de tutelar as populações indígenas e à reestruturação do comércio luso, com o intento de aumentar o controle metropolitano sobre os produtos coloniais – o que resultou, por um lado, em restrições aos interesses ingleses e, por outro, na criação das companhias monopolistas do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, e de Pernambuco e Paraíba, em 1759.

Delitos, conflitos e guerras na América espanhola A Coroa castelhana defendeu sua soberania (imperium) e seus direitos de propriedade (dominium) sobre os territórios e povos conquistados se baseando nas Bulas de Doação de 1493, marco doutrinário da As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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teologia política católica. Assim, recorreu à doutrina da “guerra justa”, que postulava o direito de guerrear contra qualquer “tirano” que impedisse a prédica do catolicismo e convertia os conquistadores em juízes com direitos para decidir sobre os bens, as famílias e os próprios vencidos, que podiam ser subjugados. Com esse fim, apelou-se a uma fórmula jurídica e ritual, a leitura do requerimento, mediante a qual os índios eram intimados para que consentissem em sua conversão em vassalos da Coroa, no reconhecimento dos justos títulos desta e da autoridade papal e na aceitação da prédica dos ministros da Igreja. Desde o início, portanto, as relações com os povos conquistados se definiram dentro desse marco político e em 1503 se proclamou que os índios que aceitassem essa vassalagem seriam considerados livres e deveriam ser entregues em encomienda. É certo que entre as definições jurídicas e doutrinárias e as práticas políticas da conquista houve enormes distâncias, dada a própria natureza das expedições encampadas pelos conquistadores: se elas se legitimavam nas capitulações que a Coroa pactuava com os adelantados, cada expedição era realizada por uma hoste, uma empresa transitória organizada e financiada por atores privados, que eram retribuídos com a concessão de mercês de terras e repartimientos de índios em proporção ao papel que haviam desempenhado. Não obstante, seu êxito dependia de sua capacidade de estabelecer alianças com chefes indígenas que contribuíam com suas próprias forças. Tais alianças definiram situações muito diferentes entre os povos conquistados. Por volta do início do século XVII, os alcances da conquista estavam basicamente definidos e o domínio castelhano não se sustentava em forças armadas provenientes da Europa, sendo que a defesa ou expedições punitivas sobre territórios indígenas não conquistados ficaram a cargo de formações milicianas. Nelas tiveram um papel decisivo os encomendeiros e seus séquitos, mas também foram integrados os novos vecinos e, em caso de necessidade, membros das castas e, nas regiões de fronteira, as tribos de “índios amigos” e “índios aliados”. As expedições enfrentavam grupos que resistiam ao poder colonial, qualificados como “infiéis” segundo a doutrina da guerra justa. Em meados do século XVII começaram a se delinear novos dispositivos de defesa fronteiriça e as alianças com tribos não submetidas passaram a se formalizar através de tratados negociados nos parlamentos, isto é, cerimônias que fixavam os serviços e compensações, assim como estabeleciam modos de adminis254 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

trar justiça na fronteira. Por sua vez, em algumas missões da Companhia de Jesus se organizaram milícias ao estilo hispânico; as da área guaranítica foram reconhecidas formalmente em 1643 como “milícias do Rei”, transformando-se na principal força de guerra da sociedade hispano-colonial no Rio da Prata até meados do século XVIII. O serviço de milícias se transformou em uma prática social e política que oferecia mecanismos de integração à comunidade, possibilitava a configuração de identidades coletivas locais e permitia a acumulação de posições de prestígio e honra que convalidavam as de poder social. Consagrado como ideal social, o serviço miliciano impunha obrigações, mas também concedia direitos, ainda que sua utilidade especificamente militar fosse limitada e sujeita a múltiplas negociações entre as autoridades régias e os vecindarios coloniais. Para resolver essa situação surgiram reformas promovidas a partir de meados do século XVIII, quando a Coroa promoveu uma expansão inédita das forças militares regulares, enviadas da Península Ibérica para guarnecer as principais praças costeiras. Porém, ao mesmo tempo, buscou-se generalizar a atuação das milícias. Para se obter a cooperação das elites locais em seu recrutamento e financiamento, reconheceu-se às chamadas milícias “disciplinadas” o gozo do foro militar. Deste modo, aumentou a influência política de sua oficialidade, assim como ampliou-se significativamente o âmbito da jurisdição militar, que agora não abarcava somente as tropas regulares, mas também os milicianos, excluídos da jurisdição ordinária que exerciam os cabildos. Dado o caráter corporativo da ordem colonial e o pluralismo da ordem jurídica, as disputas jurisdicionais entre as autoridades foram um aspecto central das lutas políticas coloniais. No princípio, essas disputas foram particularmente intensas entre as autoridades régias, as eclesiásticas e os encomenderos, visto que a questão principal girava em torno do exercício da jurisdição sobre os índios. Essa questão passou a ser prioritária por volta da década de 1560, quando se reconheceu aos índios o direito de governar suas comunidades segundo um modelo hispanizado e, portanto, de acessar a justiça e litigiar ante juízes espanhóis, ainda que submetidos a uma relação tutelar. Um passo decisivo nesse sentido foi a instauração de um Juzgado General de los Indios em Lima, com menor amplitude na Nova Espanha, presidido pelo vice-rei. Ele implicava a criação de uma jurisdição específica e levava o modelo das As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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duas Repúblicas à administração da justiça. Tratava-se de um grande experimento jurídico e político que consagrava a ficção ideológica do pacto entre o rei e seus súditos indígenas e tendia a anular a autoridade jurisdicional dos encomenderos e a diminuir a tutela eclesiástica. Desta forma, apareceu nas audiencias a figura do “protetor e defensor de naturais”, função que até então havia sido exercida pelos bispos. Esse protetorado era uma rede institucional que se ramificava nos partidos e pueblos da jurisdição de cada audiência e estava a cargo de funcionários leigos que, muitas vezes, competiam com os defensores de naturais designados pelos cabildos. Não obstante, nem todas as causas judiciais que envolviam os índios tramitaram nesse juizado: aquelas de menor monta e mesmo algumas penais estavam sob a jurisdição de alcaldes indígenas que integravam os cabildos dos pueblos de índios e reduções, ainda que fossem supervisionados pelos párocos. Ainda assim, o marco conceitual adotado, que convertia o Estado antes de tudo em administrador da justiça, criava uma situação contraditória, pois os mesmos princípios jurídicos e institucionais que legitimavam as exações também deixavam margem para que os índios pudessem recorrer a fim de limitar sua exploração. Deste modo, a administração da justiça se converteu em âmbito propício para que os pueblos e os caciques reclamassem suas terras, questionassem o cálculo dos tributos e criticassem os abusos das autoridades, buscando a proteção de uma instância superior. Diversos estudos têm demonstrado a eficácia desta forma de resistência, mas também suas contraditórias implicações. Embora seu êxito tenha debilitado as possibilidades de enfrentamentos radicais contra a dominação colonial, envolveu os colonizadores em disputas políticas e jurídicas que erodiam seus privilégios e permitiam aos pueblos aproveitar as fissuras e disputas jurisdicionais. O recurso à justiça ou à negociação política não foram, obviamente, os únicos modos de resistência indígena, sendo que as comunidades combinaram flexivelmente o uso de meios legais de resistência com a ação direta, inclusive violenta, contra seus dominadores, proprietários de terra, corregidores, além de párocos e caciques. Deste modo, o tumulto local, aparentemente desorganizado e espontâneo, foi extremamente frequente e se tornou generalizado durante o século XVIII, como aconteceu na Nova Espanha na década de 1760 e, sobretudo, na área andina, onde desde a década de 1720 se assistiu 256 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

a uma crescente proliferação de motins e revoltas locais e regionais, transformadas, em fins da década de 1770, em uma insurreição geral, a mais séria ameaça para a sobrevivência da ordem colonial. Em todo caso, o que importa sublinhar é que nem mesmo na situação de insurreição aberta se abandonava o recurso à demanda judicial. As principais conjunturas de rebeldia indígena coincidiram com situações de crise política na ordem colonial e em particular com as visitas que se estenderam em ambos os vice-reinados, colocando em extrema tensão interna o bloco colonial dominante e suas instituições. As disputas jurisdicionais tiveram especial intensidade nas cidades, dado que elas eram sedes de autoridades dotadas de jurisdição própria: os funcionários reais (no vice-reino, na gobernación ou no corregimiento, segundo o caso), as audiências (em todo o território a seu cargo), os bispados (em sua diocese) e os cabildos (no núcleo urbano e na área rural que lhes correspondia). Essas sobreposições forjavam uma ordem jurídica na qual cada instância exercia sua própria jurisdição, defendendo seus foros e privilégios. Não se pode estranhar, portanto, que toda vez que a Coroa buscava acentuar os poderes de seus funcionários estalassem sérios conflitos com as audiências e os bispos, que resultavam em lutas políticas com ativa participação das plebes urbanas e ainda dos índios que viviam nos pueblos circundantes. Assim o testemunham, por exemplo, os tumultos populares que se produziram na cidade do México durante o século XVII. Em 1624, as novas políticas do vice-rei o colocaram em situação de enfrentamento com a audiência e com o arcebispo, autoridades que aproveitaram um massivo tumulto popular para depô-lo sob acusação de haver atuado como um tirano. Nesse movimento intervieram entre 20.000 e 30.000 pessoas, entre elas um amplo número de indígenas que protestavam contra as novas exigências impostas pelo vice-rei. Todavia, mais grave ainda foi o tumulto de 1692, que outra vez teve como principais protagonistas os índios que viviam nos bairros da cidade, cuja sublevação esteve claramente dirigida contra o “mau governo” exercido pelas autoridades. Especialmente contra o vice-rei foram impelidos inumeráveis setores da plebe urbana multiétnica, que causaram o incêndio de importantes edifícios administrativos, dos arquivos do governo, da casa do corregidor e dos estoques dos mercadores da praça principal, demonstrações de ira popular que alcançavam todo o estamento espanhol. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Ambos os episódios, somente dois entre muitos outros que se poderiam citar, demonstram os limites que possuía o ideal de segregação residencial que prescrevia o modelo das duas Repúblicas, um marco jurídico e político segundo o qual os espanhóis deviam viver nas cidades e os índios em seus pueblos de redução. O mundo social real era, ao contrário, muito mais complexo e instável, não somente porque numerosos indígenas viveram nas cidades e habitaram seus próprios bairros, mas também porque as cidades se transformaram em espaços privilegiados dos processos de mestiçagem e de configuração de plebes multiétnicas. Obviamente, a cronologia desses processos foi extremamente variada, mas as evidências sugerem que se acentuaram notoriamente durante o século XVIII, dado o crescimento econômico e demográfico. Com isso, aumentaram o temor e o medo da plebe entre as elites urbanas, especialmente quando, entre 1765 e 1767, eclodiram sonoros tumultos em múltiplos pueblos e cidades, desde Guanajuato, Michoacán ou San Luis Potosí, na Nova Espanha, até Santa Fé de Bogotá ou Quito, em Nova Granada, ou Arequipa, no Peru. Se havia algo em comum era que demonstravam a limitada capacidade de controle social sobre a plebe e seus bairros periféricos. Esses temores e a aspiração de instaurar um novo modo de vida “civilizada” proporcionaram a generalização de instituições de governo que já se vinham ensaiando. Assim, os cabildos que contavam com seus próprios “defensores de naturais” começaram a transformá-los em “defensores de pobres”, que intervinham como procuradores das castas ante a justiça capitular. Por sua vez, quando a Coroa sancionou a “Real Cédula sobre educação, trato e ocupações dos escravos” em 1789, argumentando a necessidade de colocar limites aos abusos dos senhores e mayordomos, garantir os princípios da religião e tornar compatíveis a escravidão e a tranquilidade pública, também dispôs que se instauraria a figura do “protetor de escravos”. A decisão gerou uma enorme resistência nas oligarquias indianas, a ponto de sua aplicação ser suspensa pouco depois. De toda maneira, as evidências indicam que muitos escravos apelaram à mediação dos defensores para reclamar contra seus senhores em causas envolvendo a manumissão e para denunciar abusos, maus tratos ou obstáculos para cumprir obrigações religiosas. Deste modo, a administração de justiça buscava desalentar outras formas de resistência, mas ao mesmo tempo esse contexto normativo criava tensões e contradições entre escravistas e juízes, fissuras que parecem ter sido aproveitadas por muitos escravos. 258 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

De modo simultâneo, porém, se definiram novos dispositivos de controle social. Assim, durante o século XVIII, os cabildos foram delineando uma nova geografia urbana, apoiando-se na estrutura paroquial, assim como se generalizou uma nova figura institucional destinada a exercer funções policiais, perseguir contraventores e servir de auxiliar de justiça ordinária na tramitação de causas criminais: os “alcaldes de bairro” e seus “tenentes”. Ao mesmo tempo, nas principais cidades foram se instalando hospícios e asilos destinados a confinar e concentrar os mendigos. Foi então que uma antiga figura delitiva ganhou maior centralidade e adquiriu novo perfil: as novas concepções que atribuíam a origem da criminalidade ao ócio se mesclaram com o medo da plebe e converteram a perseguição da “vadiagem” em uma prioridade. Deste modo, a figura do “vagabundo”, que no século XVI se aplicava a espanhóis, mulatos e mestiços que viviam entre os índios, foi empregada a um crescente número de sujeitos (com diversas práticas sociais), tornando-se também um recurso central para tentar disciplinar a população livre sem residência fixa e trabalho estável. Nas áreas rurais, o controle da numerosa população, geralmente livre e mestiça, bem como a perseguição da “vagabundagem”, passaram a ser prioritários e de modo geral se combinaram com a repressão a uma ameaça de maior envergadura para a ordem social: o bandoleirismo, uma prática comumente alimentada pelo crescente número de desertores das milícias e do exército. Para esse último caso as autoridades recorreram tanto à obtenção da cooperação ativa dos proprietários de terra, quanto a toda uma gama de dispositivos institucionais. Uma das estratégias mais ambiciosas procurou multiplicar o número de paróquias rurais e de juízes territoriais, empregando-os como agentes para realocar e concentrar em novos “pueblos” a população campesina dispersa. Ao mesmo tempo, passou-se a exigir dessa população o cumprimento de prestações milicianas, e para isso se intentou organizar uma ramificada rede de companhias locais cuja função primordial era tanto a defesa da localidade, quanto a perseguição da delinquência. Não obstante, o controle institucional das populações campesinas das áreas fronteiriças era extremamente difícil. Essas populações ocupavam novas terras e passavam a produzir nelas invocando muitas vezes os direitos que emanavam de seus serviços milicianos. Quando formavam um povoado, também exigiam contar com seus próprios juAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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ízes e, dentro do possível, convertê-lo em vila dotada de seu próprio cabildo. Muitas vezes tais demandas encontraram apoio nas autoridades superiores, que viam nesse povoamento a estratégia mais adequada para assegurar a expansão e defesa das fronteiras, mas, ao mesmo tempo, suscitaram intensas disputas jurisdicionais entre os cabildos de distintas cidades, que viam recortadas suas competências e perdiam sua jurisdição sobre essas populações. Além disso, a essas disputas se agregou, no último terço do século XVIII, um desafio maior: a intenção das autoridades do vice-reino de militarizar o governo das áreas fronteiriças.

Delitos, conflitos e guerras na América portuguesa Também na América portuguesa foram comuns os conflitos jurisdicionais entre as diversas instâncias voltadas ao exercício do governo. Na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII, por exemplo, os embates envolviam, entre outros, o vice-rei, o tribunal da Relação, a ouvidoria, a câmara municipal, a Real Fazenda, o bispado e as tropas. As lutas travadas pelas diversas autoridades mesclavam-se ainda às pretensões de autonomia por parte de conventos e congregações leigas que abrigavam grupos sociais e profissionais distintos. Mas os conflitos encarnecidos entre os membros das diversas instâncias administrativas não constituíam prerrogativa do Rio de Janeiro. Pelo contrário, estendiam-se por todo o território brasílico, formando grupos faccionais que, via de regra, articulavam autoridades e homens poderosos das diversas localidades. Ficaram famosas as destrutivas brigas travadas pelo primeiro bispo de Mariana, em Minas Gerais, contra não apenas certas autoridades régias, como também membros de seu próprio cabido. Tais conflitos jurisdicionais seguiam, no geral, três sentidos distintos. O primeiro deles advinha do próprio modo de organizar a administração imperial, indicado mais acima. A monarquia lusa não consistia numa estrutura burocrática racionalmente estruturada e hierarquizada. Na verdade, a criação de instituições nas várias partes do império não era regulada pelo esforço de estabelecer cuidadosamente os limites de atuação de cada um. Daí resultavam sobreposições jurisdicionais e, consequentemente, embates entre as diversas autoridades. As disputas por jurisdição envolviam tanto a afirmação da dignidade dos oficiais envol260 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

vidos, quanto o desejo de não perder recursos obtidos através da atuação neste ou naquele território, ou ainda nesta ou naquela matéria. A Coroa e os órgãos centrais da administração procuravam beneficiar-se de tais conflitos na medida em que por meio deles era possível ter notícias sobre o comportamento de todos os agentes envolvidos. Um segundo sentido dos conflitos jurisdicionais relacionava-se aos vínculos mantidos entre as autoridades nomeadas pelos reis e os membros dos grupos locais. Dada a fragilidade institucional da monarquia, expressa nos limites técnicos da época e na distância em relação à sede do império, todo agente régio, ao chegar a uma determinada comarca ou capitania para exercer suas funções, precisava conhecer como se estruturavam as facções locais e posicionar-se frente a elas. No decorrer da colonização, alguns governadores foram expulsos do posto que ocupavam por tentarem implementar políticas que afrontavam os interesses locais, muitas delas determinadas pelo próprio monarca. Assim, os conflitos entre autoridades e instâncias administrativas expressavam os embates entre facções constituídas numa vila, comarca ou capitania, o contrário também ocorrendo, uma vez que disputas entre um governador e um ouvidor, ou entre este e um juiz de fora, estimulavam as fricções faccionais. Um terceiro sentido abarca as relações entre a Coroa e a Igreja. É certo que ambas as instituições, em termos gerais, complementaram-se na tarefa de colonizar os domínios ultramarinos, a evangelização das populações autóctones ou escravas servindo de mote na justificação da presença portuguesa na América. O regime de Padroado reforçava os vínculos seculares e eclesiásticos visto que criava condições para que o rei erigisse bispados visando propagar freguesias e legitimar a ocupação de territórios. Porém, a Igreja, ao possuir estrutura jurídica própria e atuar na vigilância do comportamento dos moradores de vilas e arraiais, colocava limites ao poder régio, nem sempre tolerados pelos agentes nomeados pelo monarca. Tais conflitos diziam respeito ao regalismo, isto é, aos esforços da Coroa no sentido de ampliar sua capacidade de agir por meio de estratégias que restringissem o alcance de poderes concorrentes, inclusive os da Igreja. Os intentos regalistas foram mais intensos na segunda metade do século XVIII, especialmente quando o marquês de Pombal expulsou os jesuítas do império e transferiu a administração dos povos indígenas para mãos seculares. Existiram, contudo, durante As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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todo o Antigo Regime. Outro tema que preocupou diferentes monarcas foi a tendência do clero, regular e secular, de acumular bens através da aquisição de valiosas propriedades coloniais e da cobrança excessiva pelos serviços religiosos. Indivíduos e grupos que compunham as camadas intermediárias ou mais baixas nas sociedades coloniais procuravam valer-se das brechas deixadas pelos embates travados entre autoridades e poderosos. Entre eles destacam-se os pardos, filhos de mulheres de ascendência negra que ora beneficiavam-se de bens deixados pelos pais brancos, ora buscavam alcançar certos direitos usando os caminhos judiciais. Como o número de mestiços aumentou no decorrer da colonização, ampliando-se sensivelmente no século XVIII, tornaram-se comuns as pressões para que ocupassem posições sociais mais vantajosas. A trajetória dos pardos é apenas um capítulo do tema mais amplo que envolve as lutas em torno da estratificação social na colônia. Embora os lugares de maior prestígio fossem tendencialmente reservados aos homens ricos que buscavam distinguir-se obtendo patentes e insígnias, destacando-se os oriundos de Portugal, surgiram condições para que os brancos nascidos na América se projetassem e que indivíduos de ascendência indígena ou africana conquistassem espaço. Nada disso ocorreu, no entanto, sem que houvesse uma infindável quantidade de combates diários abarcando, por exemplo, processos de injúria ou disputas entre irmandades. A sociedade colonial, nesse sentido, experimentou uma luta constante, vivida de maneira molecular nas diversas localidades, ligada aos problemas da estratificação de diversas camadas e grupos sociais. Para além desse tipo de embate, as autoridades preocuparam-se bastante com o controle das populações indígenas, escravas e forras, bem como com a eclosão de revoltas e motins. Durante quase todo o período colonial, não foram criados códigos específicos que lidassem amplamente com a questão dos índios e cativos – e isto a despeito do Regimento das Missões de 1686. Do ponto de vista da Coroa, no que se refere aos autóctones, procurou-se desde cedo circunscrever certos limites à destruição das comunidades indígenas, dada sua importância para a ocupação das terras conquistadas e a defesa das áreas de fronteira. Estabeleceu-se logo uma diferença entre os índios mansos que se aliavam aos colonizadores e os ditos selvagens, capazes de impor dura resistência. 262 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Para os primeiros previa-se no geral os chamados descimentos, isto é, o abandono de suas aldeias com vista à constituição de outras formas de povoamento, organizadas segundo modelos fixados pela Coroa, por missionários ou pelos colonos – os aldeamentos. Parte significativa dos aldeamentos, que na prática implicavam a desarticulação do modo de viver autóctone, foi administrada por jesuítas, contra os quais se debateram constantemente os colonos. Em tese, os índios submetidos eram considerados livres, podendo sua mão de obra ser utilizada pelos colonos em troca de pagamento de salário. No cotidiano da colonização, contudo, a liberdade era substituída ora pela tutela dos missionários, ora pela escravização dos colonos, que, como ocorria abundantemente em São Paulo, não se eximiam de atacar os próprios aldeamentos para capturar índios. A escravização era formalmente permitida quando se tratava dos índios selvagens que agiam como inimigos dos colonizadores. Todavia, só podiam ser legalmente escravizados em caso de resgate – ou seja, quando, sendo prisioneiros de outras tribos indígenas, eram trocados por mercadorias – ou de guerra justa. Esta última implicava o combate contra os autóctones quando havia legítima razão, geralmente associada a uma pretensa ofensa praticada pelos índios inimigos. Na prática, porém, não apenas se abusava da tese da guerra justa, sendo inúmeros povos atacados sem motivo justificado, como também, conforme dito há pouco, os próprios índios mansos e aldeados, considerados livres, eram acossados pelos colonos. Isso apesar da existência formal, desde cedo, de um procurador dos índios. Por essa razão, a Coroa, durante o período colonial, tendeu, por um lado, a restringir os motivos de guerra justa e, por outro, a limitar a escravização. Em 1609 e 1680, por exemplo, a Coroa chegou a declarar a liberdade de todos os autóctones americanos, dados os intensos abusos cometidos e o extermínio de vastas populações. Nas duas ocasiões, entretanto, o monarca teve de voltar atrás, modificando a legislação poucos anos depois. É que a reação dos colonos foi vigorosa, os jesuítas, identificados com as tentativas de formalizar a liberdade indígena, sendo expulsos de São Paulo, no primeiro caso, e do Maranhão, no segundo. Durante a administração pombalina, a Coroa voltou à carga, declarando novamente o fim da escravidão indígena em 1755. Tal decisão foi acompanhada de outras medidas, como a elevação de aldeamentos à As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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categoria de vila, a já mencionada expulsão dos jesuítas e a instituição do Diretório dos Índios – código que secularizava a administração das populações autóctones. Também essas medidas foram ineficazes para abolir os excessos. O controle da população escrava e forra também consistiu num problema sério para a Coroa e os colonos brancos. A preocupação com a vadiagem da gente livre e liberta, comum a toda a América lusa, expressava não somente a pressão para que a mão de obra existente gerasse riqueza, mas também o receio de que perturbasse a ordem e aumentasse a criminalidade. Esta última foi bastante arraigada no período colonial, uma vez que as instâncias judiciais e militares ficavam aquém da vastidão do território. Inúmeros crimes, fossem interpessoais ou relativos à propriedade, ficavam impunes a despeito dos esforços empreendidos pelas autoridades. Em boa parte deles, os escravos apareciam tanto como ofensores quanto como vítimas. Nem sempre os cativos achavam-se sob o olhar vigilante de feitores. Pelo contrário, gozavam por vezes de mobilidade, transitando por fazendas, arraiais e vilas. Não por acaso, quando envolvidos em alguns dos crimes, encontravam-se distantes das senzalas. A fuga escrava era um problema disseminado, mas nem todas elas significavam adesão a quilombos. Na verdade, cativos podiam fugir para escapar a castigos previstos ou mesmo para punir seus senhores, que ficavam por dias sem o ganho de sua mão de obra. Seja como for, os quilombos se generalizaram, sendo compostos não só por escravos fugidos, mas também por mestiços, indígenas e até homens brancos buscando escapar à justiça. O de Palmares, localizado no atual estado de Alagoas, foi o maior deles, articulando diversos núcleos e arregimentando milhares de pessoas. Estendeu-se por décadas durante o século XVII, tendo sido destruído a duras penas. Na primeira metade do século XVIII, no contexto de exploração aurífera, formou-se outro quilombo de grande dimensão, o do Ambrósio, também se alongando no tempo e opondo resistência. Contudo, a maioria dos mocambos coloniais distinguia-se de Palmares e Ambrósio, possuindo poucos membros. Enquanto os grandes quilombos, por serem sedentários, buscavam locais distantes e inacessíveis e desenvolviam estrutura agrícola e pastoril, os pequenos tendiam a circular em torno de vilas, fazendas e estradas, sobrevivendo de ataques e roubos de mercadorias. Por isso, ainda que a maior parte dos mocambos fosse de pequeno ou médio porte, não deixavam de 264 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

ser letais. As sociedades coloniais se viam na necessidade de conviver com seus constantes ataques, dos quais resultavam destruição e morte. Quando a situação se tornava insustentável em determinado lugar, o recurso aos soldados do mato era superado pela organização de expedições cujo objetivo era adentrar as áreas onde se escondiam os quilombolas e combatê-los. Nem expedições, nem soldados, porém, foram capazes de evitar a criação de quilombos e sua atuação nas regiões urbanas e rurais. Por fim, as autoridades coloniais tiveram de lidar com revoltas abertas, que foram se tornando mais ameaçadoras à medida que o tempo passava e a América se desenvolvia econômica e demograficamente. O fim da União Ibérica e a consequente restauração da independência portuguesa tornou-se um marco decisivo. Com o intuito de legitimar a nova dinastia de Bragança, diversos autores lusos evocaram o argumento de que a deposição de um rei – no caso o rei espanhol – era legítima se ele agia como tirano. Nesse sentido, a independência lusa e a ascensão brigantina derivariam da restauração de uma ordem monárquica agredida pela tirania espanhola. A tese do combate à tirania em defesa do bom governo, entretanto, acabou sendo amplamente utilizada nas diversas partes do império, visando a crítica a determinadas políticas, bem como à atitude de governadores e outras autoridades. A ela juntou-se um outro tipo de argumento: o de que os colonos, por terem conquistado territórios para a Coroa, desenvolvido áreas inóspitas e combatido índios, quilombolas e estrangeiros, mereciam ser recompensados e reconhecidos. Após o fim da Insurreição Pernambucana (1645-1654), por exemplo, quando os holandeses foram definitivamente expulsos do Brasil, os combatentes e seus descendentes nunca deixaram de recordar junto à Coroa o quanto mereciam ser recompensados por tamanho feito. Toda revolta, de uma maneira ou de outra, não deixava de ser um ataque dirigido à Coroa na medida em que a simples existência de perturbações e desobediências era considerada uma ameaça à ordem. Embora diversos revoltosos se valessem do raciocínio segundo o qual um determinado motim questionava a ação de certas autoridades, mas não a monarquia, sabia-se que o ataque a governadores, ouvidores ou outros agentes não deixava de significar uma ameaça ao poder régio. A Coroa, no entanto, ciente de seus limites no combate a rebeliões, tendeu a ponderar as decisões a serem tomadas, utilizando amplamente o recurso do perdão com o intuito de apaziguar os ânimos. As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Certos conflitos colocaram em choque diferentes grupos inseridos na sociedade colonial. Dois exemplos desse tipo referem-se ao século XVIII e eclodiram quase ao mesmo tempo. Um deles foi a Guerra dos Emboabas, ocorrida no início da ocupação da região aurífera, entre 1707 e 1709. O embate contrapôs, de um lado, os paulistas oriundos de São Paulo e Taubaté, que, na qualidade de descobridores das minas, desejavam controlar sua exploração e as atividades a ela ligadas; e, de outro, os forasteiros denominados de emboabas, vindos de Portugal e de outras partes do Brasil com o intuito de enriquecer com as possibilidades abertas pela descoberta do ouro. O confronto desdobrou-se em diversos combates que, por fim, resultaram na vitória emboaba, definindo o peso que os reinóis passariam a ter na formação da sociedade aurífera. Em 1710 e 1711, por sua vez, desenrolou-se a Guerra dos Mascates, que opôs os proprietários de terra de Pernambuco, sediados em Olinda e endividados em razão da crise da economia açucareira, aos comerciantes situados em Recife e credores dos latifundiários olindenses. Em ambos os casos, delineiam-se dois pontos em comum. Por um lado, os conflitos se desenvolvem como guerra travada entre grupos de particulares armados. De outro, a oposição, em boa medida, se dá entre nascidos na América e migrantes portugueses. Embora, no decorrer da história colonial, ambos os grupos tenham por vezes se articulado através de casamentos e associações em negócios, a tensão entre brasílicos e reinóis sempre se fez presente na América lusa, constituindo parte dos conflitos relativos à estratificação social. Não se pode enxergar em tais embates o desejo explícito e articulado de romper os laços coloniais. Eles expressam muito mais as contradições de sociedades compostas por indivíduos e grupos de origem e formação diversificadas, bem como marcadas por dinâmicas econômicas complexas. Seja como for, a confrontação do poder régio, como dito acima, não deixa de ser um elemento importante para a compreensão desses movimentos. Esse aspecto tornou-se especialmente saliente na região aurífera da primeira metade do Setecentos, quando ocorreram inúmeros motins que desafiavam as autoridades. A Revolta de Vila Rica, em 1720, e os motins do sertão, ocorridos em torno do rio São Francisco em 1736, contestaram a própria cobrança do quinto, o imposto concernente à exploração do ouro. No primeiro caso, colocando a questão de maneira geral, mineradores poderosos se opuseram à criação de casas de 266 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

fundição, método de cobrança que consistia em retirar a quinta parte do ouro no momento em que era fundido em barras. No último, homens poderosos e grupos populares rebeldes tentaram impedir que fosse estendida para o sertão a capitação, outro método de cobrança do quinto baseado no número de escravos e de estabelecimentos comerciais. Nas revoltas ocorridas na região aurífera do período, e em outras desencadeadas em diferentes partes da América, estava sempre em jogo a capacidade da Coroa de se fazer presente e respeitada nos domínios ultramarinos, objetivo alcançado parcialmente e de maneira problemática.

Conclusão Um dos principais debates da historiografia americanista girou em torno da natureza histórica do sistema colonial e das razões que poderiam explicar suas características. Por volta dos anos sessenta e setenta do século XX, esse debate estava centrado em torno de três grandes opções: a América colonial era o resultado do transplante da matriz feudal ibérica; era um produto do sistema capitalista em formação; ou um conjunto de formações sociais diversas, mas especificamente coloniais. Nos anos oitenta, tenderam a se delinear duas interpretações predominantes. Por um lado, aquelas que explicavam as características das sociedades coloniais destacando o papel que desempenhavam na economia-mundo, constituída por três grandes áreas: uma central, situada no norte da Europa ocidental; uma semiperiférica, localizada ao sul da Europa e particularmente em Espanha e Portugal; e as periferias coloniais. Por outro, interpretações alternativas que, sem menosprezar a dimensão relacionada à economia-mundo, postularam de maneira mais incisiva o caráter específico das várias configurações sociais na América, articulando-as à capacidade de resistência dos grupos sociais submetidos, assim como aos interesses das elites locais, ora contraditórios, ora complementares frente aos interesses metropolitanos. Tais discussões foram em grande medida tributárias de vertentes várias do pensamento marxista - expressas, por exemplo, nos conceitos de sistema colonial e de modo de produção -, bem como das ricas discussões que se deram no âmbito da CEPAL ou da teoria da dependência. Desde então, tais debates não deixaram de ressurgir, ainda que tenham mobilizado problemas e facetas diferentes. Dado que as As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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discussões precedentes haviam sublinhado a extrema diversidade das formações sociais coloniais, tornou-se necessário analisar em profundidade suas relações com as metrópoles imperiais e considerá-las como um campo de forças instáveis e em tensão. Por si só essa constatação ratificou o entendimento de que não se podiam considerar apenas as economias, devendo-se de fato estudar de modo muito mais sistemático as formas sociais, políticas e jurídicas da dominação colonial e das próprias monarquias ibéricas. Deste modo, partindo-se do reconhecimento da matriz indubitavelmente baixo-medieval da ordem jurídica constituída na América, alguns autores insistiram em que se tratava de um transplante, de uma transposição ou de uma implantação premeditada e planificada. Contudo, quando a investigação passou do plano prescritivo para a análise das práticas dos agentes sociais, assinalou-se de imediato que as realidades sociais, jurídicas e institucionais americanas eram muito mais diversas e diferentes, e que não era possível entendê-las tão somente como anomalias de um modelo ideal. Tratava-se de produtos peculiares, resultantes de autênticos processos de mestiçagem institucional, os quais tornaram factível a estruturação político-administrativa dos territórios. Desta maneira, os debates historiográficos sobre a natureza da ordem colonial se entrelaçaram com aqueles que estavam retomando os pressupostos sobre a formação dos Estados modernos e em particular os modos de constituição e exercício do poder nas monarquias de Antigo Regime. A partir de diferentes perspectivas, essas monarquias deixaram de ser consideradas como exemplos históricos de Estados centralizados e absolutistas para serem entendidas como “monarquias compostas”, como conjuntos políticos heterogêneos, agregados e unidos por um laço dinástico, reconhecidos por uma mesma Coroa, embora mantivessem estruturas e instituições próprias. Formulações desse tipo – que variam em certa medida quando são confrontados os casos de Espanha e Portugal – não poderiam deixar de impactar os estudos coloniais, ainda que a inscrição dos domínios americanos no heterogêneo conjunto das monarquias compostas se abra à controvérsia. Como consequência, uma antiga discussão foi retomada: qual era o lugar das Índias nas monarquias ibéricas? O retorno desta questão possibilitou a emergência de interpretações que desafiaram as convenções, sendo que duas delas foram particularmente significativas. Por um lado, as propostas daqueles auto268 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

res que, baseando-se no vocabulário político e no marco jurídico da época, consideraram que as Índias eram reinos da monarquia e, portanto, não poderiam ser consideradas como colônias. No entanto, esse tipo de interpretação foi questionada não somente em razão das óbvias transferências de excedentes das economias coloniais para as metropolitanas por vias fiscais e comerciais, mas também devido ao destaque merecido por algumas das peculiaridades da ordem jurídico-política colonial, merecendo atenção o fato de que as regiões americanas se estruturaram tendo como fundamento populações bastante diversas e desconhecendo certas instâncias de representação constitutivas do Antigo Regime europeu, tais como cortes e parlamentos. Por outro lado, os autores que questionaram decididamente o modelo de análise centro-periferia propuseram que as monarquias ibéricas, embora estendessem seus domínios em escala planetária, careciam de um centro organizador e eram, a rigor, autenticamente “policêntricas”, conferindo às elites americanas um papel ativo e determinante para seu funcionamento e configuração. Deste modo, tem-se produzido uma revisão crítica do uso da noção de absolutismo na definição do regime político vigente das monarquias ibéricas. Antes de tudo porque estudos recentes têm mostrado que essas monarquias se sustentavam e funcionavam apoiando-se em um emaranhado de redes sociais, algumas das quais eram, em muitos casos, mais antigas que elas próprias. Tal questão é decisiva quando se propõe a avaliar as formas de constituição do poder nos domínios americanos, pois essas redes articulavam as elites locais não somente com suas respectivas Coroas e organismos centrais de governo, mas também entre elas mesmas, ultrapassando muitas vezes as próprias fronteiras dos impérios. Deste modo, e apesar das aspirações dos monarcas, boa parte dos historiadores se inclina atualmente a postular que sua autoridade efetiva estava submetida a importantes restrições, chegando-se a propor, talvez com certo exagero, que o regime político efetivamente existente deveria ser definido como um “absolutismo negociado”. Todos esses debates têm colocado em primeiro plano a questão dos usos próprios do conceito de Estado e de sua pertinência para analisar as realidades americanas. Através das contribuições de uma nova historiografia do direito e da administração de justiça, uma pujante corrente historiográfica tem proposto um paradigma interpretativo denominado jurisdicionalista, que questiona decididamente a existência As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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de um Estado e mais ainda a de um Estado centralizado. Desta maneira, tem-se postulado que se pode compreender melhor essas formações políticas como cenários de um processo de integração corporativa que permite a formação de unidades maiores, mas sem produzir a dissolução das menores, o que implica considerar a dimensão política do Antigo Regime como parte de uma cultura específica que apelava para dispositivos muito diferentes aos empregados pelo Estado contemporâneo. Afinal, uma cultura jurisdicionalista desse tipo, formada na Baixa Idade Média, concebia o poder político como o poder de dizer o direito, achando-se ancorada em uma arraigada cosmovisão religiosa. Este novo paradigma, ainda que muito influente, não goza de completa aceitação, e outros autores têm buscado um uso mais refinado e adaptado às realidades americanas da noção de Estado. Assim, por exemplo, atendendo às evidências proporcionadas pelos estudos dedicados ao exercício da jurisdição na Hispanoamérica, tem-se proposto que a longo prazo a mais decisiva não foi a vice-real, mas outras de menor alcance, como as audiências e as gobernaciones. Postula-se, então, a noção de “protoestado” para definir essas estruturas de governo na medida em que foram as que delinearam a formação dos Estados independentes. A partir de uma perspectiva em parte semelhante, outros autores têm sublinhado a capacidade de resistência que demonstraram as elites locais americanas, bem como o fato de que o império espanhol pôde sobreviver durante três séculos pela flexibilidade de suas instituições e práticas e por sua capacidade de incorporar no âmbito político muitos grupos sociais distintos que controlavam o poder local. Deste modo, as repetidas lutas políticas coloniais não produziram um questionamento aberto da soberania real – com exceção da guerra civil no Peru, no século XVI – mas não deixaram de erodir a eficácia dos intentos de centralização do poder expressos na instauração dos vice-reis em 1530-1540, nas reformas políticas de finais do século XVI ou na presença de visitadores gerais a em meados do XVII e do XVIII. Como se tem destacado, sem o freio da presença do rei na América, os bispos e as audiências se consideravam como iguais aos vice-reis, o que é melhor compreendido ao se considerar que na cultura política da época a religião, a justiça e a prudência eram três termos-chave. Daí a importância assinalada às audiências na estrutura de governo e sua apresentação como a própria imagem do rei-juiz. De fato, a análise 270 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

da composição das audiências se transformou em um indicador bastante preciso da capacidade efetiva da Coroa de controlar o governo colonial. De qualquer modo, e apesar dos desacordos interpretativos, os estudos recentes tendem a coincidir em algumas questões centrais. Primeiramente, na importância cardeal que possuíam os diferentes âmbitos de administração de justiça na estruturação das relações de poder coloniais. Depois, também se tem confirmado a vinculação das elites locais e regionais de diversos tipos, tanto hispanocriollas como indígenas, com essa administração. Além disso, qualquer exame preciso do funcionamento da ordem colonial não pode se limitar a considerar os níveis superiores da administração, devendo ter em conta especialmente as formas de configuração, funcionamento e transformação do poder local, isto é, os pontos de contato entre Estado e sociedade. Isso impõe a necessidade de não pensar o Estado somente como uma superestrutura e de ter em conta que seu poder se exercia tanto através de magistrados e sacerdotes quanto de soldados. Deste modo, quando se observa a questão no âmbito local, nota-se que é preciso considerar as mediações e expandir o conceito de Estado para além das instâncias centrais da autoridade soberana para que se possa abarcar um campo maior de expressões institucionais e de relações sociais, englobando-se todos os agentes que participavam de alguma interação identificável. Um terceiro aspecto sobre o qual existem evidências amplamente convergentes aponta para o papel decisivo das concepções sobre a justiça na definição dos contornos e componentes da cultura política colonial e em sua apropriação seletiva e criativa pelos mais variados setores sociais. Deste modo, as noções de “bom governo” (isto é, um governo justo e cristão) e de “mau governo” (uma “tirania”) foram extremamente difundidas, informando e legitimando as ações de protesto, inclusive as violentas. As comunidades indígenas estabeleceram, através da administração de justiça, grande parte de suas relações com a monarquia e com as autoridades coloniais. Valendo-se desse âmbito como espaço de resistência, forjaram cambiantes alianças e desenvolveram suas próprias concepções políticas. Por fim, mencione-se que as novas perspectivas delineadas acima não alijaram o problema da dominação, tornando-o, pelo contrário, mais complexo e multifacetado. Há certamente vários caminhos a serem trilhados pela historiografia dedicada ao universo colonial, devendo-se As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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destacar aquele que, distinguindo de maneira não estreita o problema do bom governo da questão relativa à conservação dos domínios, traz à cena a literatura sobre razão de Estado. Tendo se constituído no final da Idade Média e no início da Idade Moderna, ela desempenhou papel importante junto aos arbitristas e a todos aqueles que se interessavam por equacionar os modos de exercer o domínio em contextos caracterizados pela pluralidade de poderes. Pode-se mesmo dizer que, no século XVII, dado o quadro de crise, a Espanha tornou-se, por meio do tema da decadência, um dos cernes dos manuscritos e impressos que discutiram a razão de Estado. Evidentemente, não se trata aqui de se propor a retomada de visões anacrônicas, visto que uma literatura desse tipo, produzida com afinco nos séculos XVI e XVII, só poderia referir-se a uma espécie de Estado: a que estava ao alcance de sua vista. Não há mesmo contradição entre, de um lado, as noções de monarquia composta ou pluralidade de poderes e, de outro, a produção de uma literatura sobre a razão de Estado, isto é, sobre os meios através dos quais um reino ou um império se conservavam e se ampliavam. As respostas para perguntas dessa natureza não podiam deixar de levar em consideração a fragilidade técnica existente na época e a necessidade de se medirem a todo tempo as correlações de força. Ainda que o Estado do Antigo Regime estivesse escorado na defesa da tradição, não poderia ter sobrevivido sem inovações e rupturas. Cabe à historiografia buscar compreender como as autoridades da época conseguiram inovar, criar novas estruturas, enfrentar guerras na Europa e no Ultramar valendo-se sempre de recursos limitados e sofrendo a resistência da tradição. A isto dedicou-se a literatura sobre razão de Estado, infelizmente ainda bastante negligenciada entre os americanistas.

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mente a cultura jurídica dessas instituições e suas práticas.

Brasileira, 2005.

Para a análise das estruturas de governo territorial no Vice-reino da Nova Espanha se recomenda a leitura do livro de Borah e o artigo de Cañeque, que esclarece as formas da vida política nesse vice-reino. Para analisar as reformas da ordem colonial no Vice-reino do Peru durante o século XVI se recomenda o livro de Merluzzi. Por sua vez, o livro de Andrien permite examinar as vicissitudes dessas transformações durante o século XVII e os dilemas enfrentados pelo governo colonial.

SCHWARTZ, S. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. trad. São Paulo: Perspectiva, 1979.

Uma questão de decisiva importância é a análise das formas de governo das comunidades indígenas e suas relações com as autoridades coloniais e a ordem jurídica. Neste sentido, se recomenda a leitura do artigo de Owensby e dois livros clássicos: o de Gibson sobre os astecas e o de Stern centrado na experiência histórica desenvolvida em Huamanga, no Peru. Para refletir sobre os debates suscitados acerca das relações dos escravos com a administração de justiça se recomenda a leitura do artigo de De la Fuente.

América portuguesa

BOXER, C. R. O império colonial português. trad. Lisboa: Edições 70, 1969. BOXER, C. R. A idade de ouro no Brasil. trad. 2ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1969. Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831). São Paulo: Departamento de História, USP, 1994. CUNHA, M. C. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, Fapesp, 1992. FALCON, F. C. A época pombalina. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1993. FIGUEIREDO, L. R. O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII-XVIII. In: FURTADO, J. F. Diálogos oceânicos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 197-254. FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.) O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FRAGOSO, J.; FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. HESPANHA, A. M. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, s/d. (História de Portugal, dir. José Mattoso, v. 4). HOLANDA, S. B. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. 5ª ed. São Paulo: Difel, 1982, t. 1. MARAVALL, José Antonio. Teoría del Estado en España en el siglo XVII. 2ª ed. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. MONTEIRO, J. M. Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. PRADO JR., C. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. RUSSELL-WOOD, A. J. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História, São Paulo: FFLCH/USP, v. 55, nº 109, 1977, p. 25-79. RUSSELL-WOOD, A. J. Escravos e libertos no Brasil Colonial. trad. Rio de Janeiro: Civilização

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SOUZA, L. M. Desclassificados do ouro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. SOUZA, L. M. O sol e a sombra. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. WEHLING, A.; WEHLING, M. J. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. A bibliografia indicada acima apresenta alguns estudos que tratam de temáticas relativas ao exercício da administração e da justiça na América portuguesa, bem como abordagens que expressam diferenças historiográficas. Visões de conjunto sobre a colonização do Brasil são encontradas nos trabalhos de Boxer, Holanda e Wehling & Wehling. Elas podem ser complementadas com a Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831), que ajuda a situar os fatos em seus contextos históricos específicos. Os estudos de Monteiro e Cunha são bastante relevantes para a compreensão, respectivamente, da dinâmica da exploração das populações autóctones e da legislação indigenista. Embora mais direcionado para a realidade mineira, o livro de Russell-Wood sobre escravos e libertos fornece uma rica análise de conjunto sobre a questão. O problema da vadiagem é investigado por Souza em seu trabalho a respeito dos desclassificados em Minas. O artigo de Figueiredo apresenta uma importante síntese sobre as revoltas imperiais e a linguagem nelas utilizada. Na obra organizada por Hespanha, são discutidas as concepções doutrinárias de matriz católica que procuraram ordenar as sociedades de Antigo Regime e foram apropriadas na colônia americana. Nela explica-se bem o tema da prudência. O trabalho de Maravall, por sua vez, esquadrinha a literatura sobre razão de Estado produzida nos séculos XVI e XVII. O artigo de Russell-Wood e o livro de Schwartz fornecem uma visão geral sobre o funcionamento da justiça colonial, focando, respectivamente, a dinâmica das câmaras municipais e a dos tribunais de Relação. O livro de Souza sobre o sol e a sombra na administração colonial dialoga com o trabalho de Fragoso, Bicalho & Gouveia e com o de Fragoso & Florentino. O debate procura avaliar a validade do conceito de sistema colonial quando aplicado à colonização portuguesa, contrapondo-o a dois aspectos: de um lado, a constituição de identidades e vínculos comerciais que articulariam as várias partes do império; de outra, a elaboração na sociedade colonial de estruturas de reprodução da desigualdade, ancoradas no enraizamento tanto de grupos locais quanto daqueles formados por reinóis. Em linhas gerais, encontra-se no cerne do debate a análise sobre em que medida metrópole e colônia implicavam contradição ou identidade.

Extratos de documentos 1. Provisión que se manda al marqués don Francisco de Pizarro para que pudiese continuar las conquistas de las provincias del Perú, 8 de marzo de 1533. “… Por ende, como mejor podemos, os rogamos y requerimos que entendáis bien esto que os hemos dicho, y toméis para entenderlo y deliberar sobre ello el tiempo que fuere justo, y reconozcáis a la Iglesia por señora y superiora del universo mundo, y al Sumo Pontífice, llamado Papa, en su nombre, y al Emperador y Reina doña Juana, nuestros señores, en su lugar, como a superiores y Reyes de esas islas y tierra firme, por virtud de la dicha donación y consintáis y deis lugar que estos padres religiosos os declaren y prediquen lo susodicho. […]… Y si así no

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lo hicieseis o en ello maliciosamente pusieseis dilación, os certifico que con la ayuda de Dios, nosotros entraremos poderosamente contra vosotros, y os haremos guerra por todas las partes y maneras que pudiéramos, y os sujetaremos al yugo y obediencia de la Iglesia y de sus Majestades, y tomaremos vuestras personas y de vuestras mujeres e hijos y los haremos esclavos, y como tales los venderemos y dispondremos de ellos como sus Majestades mandaren, y os tomaremos vuestros bienes, y os haremos todos los males y daños que pudiéramos, como a vasallos que no obedecen ni quieren recibir a su señor y le resisten y contradicen…” 2. Ley 21, Título III, Libro VI de la Recopilación de Leyes de Indias de 1680. “Prohibimos y defendemos, que en las Reducciones, y Pueblos de Indios puedan vivir, ó vivan Españoles, Negros, Mulatos, ó Mestizos, porque se ha experimentado, que algunos Españoles, que tratan, traginan, viven, y andan entre los indios, son hombres inquietos, de mal vivir, ladrones, jugadores, viciosos, y gente perdida, y por huir los Indios de ser agraviados, dexan sus Pueblos, y Provincias, y los Negros, Mestizos, y Mulatos, demás de tratarlos mal, se sirven de ellos, enseñan sus malas costumbres y ociosidad, y también algunos errores, y vicios, que podrán estragar, y pervertir el fruto que deseamos en orden a su salvaci6n, aumento, y quietud; y mandamos, que sean castigados con graves penas, y no consentidos en los Pueblos; y los Virreyes, Presidentes, Gobernadores y Justicias tengan mucho cuidado de hacerlo executar donde por sus personas pudieren, ó valiéndose de Ministros de toda integridad: y en quanto á los Mestizos, y Zambaygos, que son hijos de Indias, nacidos entre ellos, y han de heredar sus casas, porque parece cosa dura separarlos de sus padres, se podrá dispensar.” 3. Ley 14 del Título IX del Libro VI de la Recopilación de Leyes de Indias de 1680. “Ordenamos que ningún Encomendero de Indios, ni su muger, padres, hijos, deudos, criados, ni huéspedes, Mestizos, Mulatos, ni Negros, libres ó esclavos, puedan residir, ni entrar en los Pueblos de su encomienda, porque de esta comunicación, y asistencia resulta, que los naturales son fatigados con servicios personales, á sin causa, ni razón los obligan, ocupándoles en traer yerba, y frutas, que van á buscar por larga distancia, pescar, moler y amasar trigo, en que pasan grandes, y excesivos trabajos, y molestias, aunque sea con pretexto de utilidad de los indios, ó curarlos, ó curarse, por gozar de la diferencia de temple, pena de cincuenta pesos, aplicados por tercias partes, á nuestra Cámara, Juez, y Denunciador. Y mandamos á nuestras Justicias Reales, que no lo consientan, ni permitan, y executen la dicha pena, y encargamos á los Prelados Eclesiásticos, que castiguen. Y corrijan los excesos, que en esto hicieren los Doctrineros.” 4. Carta de Palafox al Rey, México, 23 de setiembre de 1644. “Estas Provincias no se arriesgan quando se hace Justicia, sino quando deja de hacerse, y puede mas la violencia que las Leyes de VM y se salen los Magistrados con la misma inmunidad del exceso que pudieran del mérito, y no ha havido hasta hoy Monarquía desde el principio del Mundo que se haya perdido por hacer Justicia, y muchas sí que se han perdido con brevedad por no hacerla, que gozo tienen señor (o que provecho) los vasallos de VM en que se hagan poderosos los magistrados con su perdición y ruina, si quanto estos grangean se les quita de aquéllos.” 5. Carta de José de Anchieta sobre a catequese dos índios. “Ensinam-lhes os padres todos os dias pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa, para os que a quiserem ouvir antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos na escola, onde aprendem a ler e escrever, contar e outros bons costumes, pertencentes à polícia cristã; à tarde tem outra doutrina particular a gente que toma o Santíssimo Sacramento. Cada dia vão os padres visitar os enfermos com alguns índios deputados para isso; e se têm algumas necessidades particulares, lhes acodem a elas; sempre lhes ministram os sacramentos necessários [...] O castigo que os índios têm é dado por seus meirinhos feitos pelos governadores e não

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há mais que quando fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em um tronco um dia ou dois como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da justiça […] Os padres incitam sempre aos índios que façam sempre suas roças e mais mantimentos, para que, se for necessário, ajudem com eles aos portugueses por seu resgate, como é verdade que muitos portugueses comem das aldeias, por onde se pode dizer que os padres da Companhia são pais dos índios, assim das almas como dos corpos”. 6. Carta do governador Fernão de Sousa Coutinho de 1º de julho de 1671. “Há alguns anos que, dos negros de Angola fugidos ao rigor do cativeiro e fábricas dos engenhos desta capitania, se formaram povoações numerosas pela terra dentro entre os Palmares e matos, cujas asperezas e faltas de caminhos os têm mais fortificados por natureza do que pudera ser por arte e, crescendo cada dia em número, se adiantam tanto no atrevimento que com contínuos roubos e assaltos fazem despejar muita parte dos moradores desta capitania mais vizinhos aos seus mocambos, cujo exemplo e conservação vai convidando cada dia aos mais que fogem, por se livrar do rigoroso cativeiro que padecem, e se verem com a liberdade lograda no fértil das terras e segurança de suas habitações, podendo-se temer que com estas conveniências cresçam em poder de maneira que, sendo tanto maior o número, pretendam atrever-se a tão poucos como são os moradores desta capitania a respeito dos seus cativos [...]”. 7. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. “Logo, se o pretexto (bem que outro fosse o fim) da sublevação era impedir a lei do príncipe nas casas de fundição e moeda, que atendiam à sustentação e aumentos do reino, fechando-se tão facilmente com a chave daquelas casas às nações estrangeiras a porta por onde sempre entraram a senhorear-se da maior parte do nosso ouro, e que qualquer canto dos seus domínios, mais que as cortes do Brasil e Portugal, se achava abundante, visto está que, respeitando a lei que se impugnava ao estado, não tocava a determinação do castigo aos legistas, senão a El-Rei, como política, e por consequência ao seu substituto e delegado. E mal andaria o Conde se por mãos da justiça castigara, neste caso, aos culpados, pois é sem questão que quando o príncipe lhe cometeu as suas vezes, não foi para que ele cedesse do direito real, fazendo tributárias ao arbítrio dos ouvidores resoluções que só eram regalia do trono”. 8. Consulta do Conselho Ultramarino a Sua Majestade, no ano de 1732, feita pelo conselheiro Antônio Rodrigues da Costa. “O perigo interno que têm os Estados, e nasce dos mesmos vassalos, consiste na desafeição e ódio que concebem contra os dominantes, o qual ordinariamente procede das injúrias e violências com que são tratados pelos governadores, da iniquidade com que são julgadas as suas causas pelos ministros da Justiça, e da dificuldade, trabalho, despesa e demora de que necessitam para recorrerem à Corte para se queixarem das sem-razões que padecem e injustiças que lhe[s] fazem, e de lhes ser preciso remirem as vexações que lhes fazem ou conseguirem as suas melhoras a peso de ouro; e também nasce muito principalmente do encargo dos tributos, quando entendem que são exorbitantes; e se lhes fazem intoleráveis, se persuadem que não houve causa justa e inevitável para se lhes imporem”.

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Capítulo 7 A Era global das revoluções e seus descontentamentos (1760 a 1834) Kristie Flannery

Guerra é um negócio arriscado. Não importa se você vence ou não o conflito. A Guerra dos Sete Anos (1754-1763) foi travada entre todos os grandes impérios europeus e seus muitos aliados e inimigos em torno dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico, bem como do Mar Mediterrâneo, pelo controle do território e populações que pagavam tributos. Os impérios dragados para esta primeira guerra verdadeiramente global contraíram muitas dívidas para construir navios de guerra, fabricar armas e muniçõese para vestir, alimentar e transportar seus enormes exércitos e forças navais. Como consequência do conflito, governos imperiais foram forçados aumentar a taxação sobre diversas de suas respectivas populações para levantar dinheiro destinado ao pagamento das imensas dívidas de guerra. Esta política de austeridade do século XVIII, combinada com ideias revolucionárias disseminadas por todos os lados, desencadeou uma onda de revoltas contra estados imperiais em colônias e metrópoles. Os homens e mulheres que viveram este período turbulento “muitas vezes sentiram que o mundo havia entrado em uma nova era caótica, quando, para melhor ou pior, velhas restrições e certezas deixaram de ser aplicadas” (Geggus; Gaspar, 1997). Este capítulo considera as principais revoltas contra impérios e monarquias europeias que eclodiram ao redor do mundo de 1760 a 1834, a “Era das Revoluções”. Organizado cronologicamente, este texto começa com a discussão das rebeliões multicêntricas anticoloniais que eclodiram nas treze colônias norte-americanas da Grã-Bretanha, no vice-reinado espanhol do Peru e no império global de Portugal nas décadas de 1760 a 1780. Em seguida, serão examinadas a Revolução Francesa, que eclodiu em Paris em 1789, e a revolução dos escravos, deflagrada na colônia francesa produtora de açúcar conhecida como São As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Domingos em 1791. Por último, este capítulo investiga como a invasão da Península Ibérica por Napoleão, em 1808, desencadeou a dissolução do império da Espanha na América e a consolidação do regime monárquico no mundo luso. Qual era a natureza essencial da Era das Revoluções e as suas consequências? Historiadores têm tradicionalmente enfatizado seu caráter democratizante. Na década de 1950, o historiador britânico R. R. Palmer (2014, 5) afirmou que este período “significou um novo sentimento em direção a uma espécie de igualdade, ou pelo menos um desconforto com formas mais antigas de estratificação social e classificação formal.” Na década de 1960, o historiador marxista Eric Hobsbawn (1962) insistiu Hobsbawn insistiu que a Revolução Industrial andava de mãos dadas com o liberalismo, política de massas e democracia. Em seu estudo da Era das Revoluções Atlânticas publicado no ano 2000, Marcus Rediker e Peter Linebaugh (2000) sugerem que era uma época na qual os radicais das camadas mais comuns das sociedades, incluindo “camponeses rebeldes, levelers75, piratas e escravos revoltosos”, realizaram “avanços na práxis humana – os Direitos da Humanidade, a greve, a doutrina da ‘Lei maior’76 – que acabariam por abolir o trabalho compulsório e a escravidão nas plantations”. Este capítulo, contudo, apresenta uma visão diferente. Ele confronta o grande paradoxo da Era das Revoluções. Por um lado, foi uma época em que as pessoas derrubaram governos coloniais, decapitaram reis e rainhas e estabeleceram repúblicas, mas também foi uma época em que impérios e a instituição da escravidão foram não apenas preservados, mas drasticamente expandidos. As guerras de independência que se propagavam nas Américas, tornando colônias em estados nacionais, coincidiram perfeitamente com “os tentáculos rapidamente espalhados do imperialismo europeu para a região do oceano Índico, para o Sudeste Asiático e para a Austrália e Pacífico Sul.” (Anderson et. al., 2014). Este capítulo analisa os processos centrais que produziram essas contradições, enfatizando que revoltas contra a monarquia e o império, em toda parte, 75 NT: Os levelers foram um grupo de radicais formado durante a Revolução Inglesa. Advogavam a ideia de igualdade jurídica e a tolerância religiosa. 76 NT: a ideia de higher law pressupõe que mesmo um Estado de direito pode gerar efeitos perversos na sociedade. Logo, certos princípios (escritos ou de bom senso) sobre equidade, justiça e moralidade tem que estar acima da lei e de todos.

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tomaram as dimensões de guerras civis. Todavia as entidades políticas permaneceram leais a reis e rainhas, enquanto houve o reconhecimento de que Estados também expandiram sua capacidade de coerção e uso de violência para reforçar o seu poder. (Bayly, 2004; Id., 1989).

A Revolução Americana Após a Guerra dos Sete Anos, a Grã-Bretanha impôs uma série de novos impostos e tarifas sobre suas colônias para levantar fundos para pagar suas dívidas de guerra. O Stamp Act (Lei do Selo) de 1765, por exemplo, obrigou as pessoas nas colônias a comprar selos emitidos pelo governo para dar força legal a uma vasta gama de documentos, incluindo testamentos, títulos de terra, licenças para bebidas e passaportes. Estas reformas levaram as colônias a explodir em protestos violentos contra a pressão da metrópole sobre seus súditos. Em outubro de 1765 manifestantes em St. Kitts and Nevis roubaram e queimaram selos do governo, enquanto, na cidade de Nova York, cerca de 2000 pessoas saquearam e incendiaram a casa do governador britânico (O’Shaughnessy, 1994). O Parlamento britânico aboliu a Lei do Selo em 1766, em resposta a esta onda de revoltas, mas preservou outras medidas impopulares de angariação de fundos, incluindo altos impostos sobre produtos britânicos importados para a América do Norte. Economias imperiais levaram colônias norte-americanas da Grã-Bretanha a uma depressão econômica profunda no início da década de 1770. Os colonos, como a população de colonos brancos era conhecida, cada vez mais culpavam o péssimo governo britânico pelas restrições econômicas que sofriam, começando a exigir independência e liberdade, embora estes conceitos significassem coisas diferentes para pessoas diferentes. Elites coloniais frequentemente interpretavam “liberdade” como uma maior autonomia da Grã-Bretanha na gestão dos assuntos coloniais, enquanto seções da camada trabalhadora que viviam e trabalhavam nas cidades portuárias americanas procuravam “independência” do recrutamento forçado para a marinha real britânica (Magra, 2013). Atos públicos de rebelião contra os britânicos se tornaram mais frequentes. Multidões cobriam com piche e penas funcionários aduaneiros que tentavam cobrar impostos considerados ilegítimos (Klooster, As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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2009, 19). Em dezembro de 1773, uma multidão de Boston roubou 90.000 libras de chá de navios da Companhia das Índias Orientais e as jogou no porto para protestar contra o novo monopólio desta mercadoria obtido pela Companhia. A Grã-Bretanha respondeu a Boston tea party (Festa do Chá de Boston) com repressão crescente. O parlamento britânico despachou milhares de soldados através do Atlântico para ocupar Boston, ameaçando usar a força para suprimir a dissidência e substituir membros do Conselho de Massachusetts eleitos localmente por funcionários diretamente nomeados pelo governador britânico, efetivamente destruindo a democracia limitada que existia na colônia. Colônias britânicas norte-americanas enviaram delegados a dois Congressos continentais na cidade da Filadélfia para coordenar uma resposta unificada para a crise política que confrontavam. No Segundo Congresso Continental, em julho de 1775, eles resolveram pedir ao rei Jorge III para que reconsiderasse. Vassalos americanos do rei permaneceram confiantes de que a crise poderia ser resolvida pacificamente e de uma maneira que preservaria “a união entre a nossa Pátria e estas colônias” (Loughran, 2006). Mas a Oliver Branch petition, uma nota escrita pelo Congresso Continental, em maio de 1775, na qual se reafirmava lealdade a Jorge III e se expressava desejo imediato de reconciliação, não conseguiu ganhar o apoio do rei. Em agosto, era a vez do monarca responder com a emissão da “Proclamação para Suprimir a Rebelião e Sedição”, confirmando que ele não iria negociar com os colonos rebeldes e usaria a força para derrotar a rebelião americana. Começava, assim, a guerra americana de independência. Foi só depois que foram disparados os primeiros tiros da guerra que o antimonarquismo se tornou predominante nas colônias. Quando ele chegou à imprensa em 1776, o ensaio político de Thomas Paine em favor das repúblicas, intitulado Senso Comum, se tornou o livro mais vendido na América do Norte em todo o século XVIII. Paine escreveu em linguagem simples para que pessoas comuns pudessem entender. Ele se inspirou na Bíblia para argumentar que a monarquia era um sistema fundamentalmente falho e não cristão de governo. Ele afirmou que “no início dos tempos do mundo, de acordo com a cronologia das Escrituras, não havia reis; a consequência que foi, não houve guerras; é o orgulho dos reis que lança a humanidade em confusão.” Revelando o antissemitismo de seu mundo social, Paine também alegou que “a monarquia 282 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

está classificada nas escrituras como um dos pecados dos judeus, pelo que lhes é reservada uma maldição” (Paine, 2004). Evidentemente, a ascensão do republicanismo não se correlaciona necessariamente com o declínio da religião. Entretanto, nem todos os americanos compartilharam ideias de Paine sobre o regime monárquico. Na verdade, colonos foram profundamente divididos pela guerra. Aproximadamente um terço da população colonial permaneceu fiel ao seu rei e formou milícias para lutar com os britânicos contra forças patriotas ou pró-independência. As razões para a lealdade eram complexas. Certamente a religião inspirou fidelidade a Jorge III, pois o rei era o chefe da Igreja Anglicana. Os escravos eram um grande e importante grupo de fiéis: milhares se juntaram ao exército do império após o governador britânico da Virgínia, Lord Dunmore, prometer-lhes a liberdade em troca do serviço militar (Fowler, 2009; Landers, 2010, 15-54; Pybus; Candlin; Petterd, s.d.). Patriotas americanos advinham de uma aliança inquieta entre a aristocracia colonial e as pessoas comuns: pequenos agricultores, artesãos e trabalhadores. Além de lutar pela independência da Grã-Bretanha, este último grupo lutou por uma democracia maior e por igualdade econômica. Em contraste com os britânicos, os líderes patriotas geralmente se recusaram a alforriar escravos que se juntaram a sua causa. Os pais fundadores da América definitivamente pensaram sobre o destino dos escravos na nação que estavam construindo: em um primeiro rascunho da Declaração de Independência, Thomas Jefferson atacou o comércio de escravos, condenando a Grã-Bretanha por ser “determinada a manter aberto um mercado onde os homens devem ser comprados e vendidos” e por “suprimir todas as tentativas legislativas para proibir ou restringir esse comércio execrável” (Armitage, 2007, 161-162). No entanto, depois de muito debate, esta cláusula foi omitida da versão final da Declaração assinada em 4 de Julho de 1776, garantindo que esta fosse omissa sobre a escravidão. A guerra americana de independência terminou em 1783, quando a Grã-Bretanha e os novos Estados Unidos da América concordaram em firmar a paz. O fim da guerra significou que a colônia tinha derrubado com sucesso um poder imperial pela primeira vez na história do mundo atlântico. Mas será que este evento significou que “um novo sentimento em prol de um determinado tipo de igualdade” que estaria sendo varrido da superfície da Terra? As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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Para responder a esta pergunta, devemos evidenciar que a jovem República dos Estados Unidos da América criou as condições para a rápida expansão da escravidão dentro de suas fronteiras. A Lei Noroeste, adotada em 1787, proibia a escravidão ao norte do rio Ohio, ao mesmo tempo em que protegia esta instituição no sul. A população escrava do país cresceu de menos de 700 mil em 1790 para quase 4 milhões à época da eclosão da Guerra Civil Americana em 1861. A Revolução Americana não só falhou em acabar com a escravidão como também falhou em enfraquecer o imperialismo. De acordo com o historiador Eliga Gould, a Declaração de Independência estabeleceu as bases legais para os Estados Unidos se tornarem um império em seus próprios termos (Gould, 2012). Ao afirmar seu direito de “assumir entre os poderes da Terra, posição igual e separada, em que as Leis da Natureza e do Deus da Natureza nos autorizam”, os Estados Unidos declararam seu direito de colonizar as pessoas e terras que permaneceram não conquistadas por poderes europeus. Enquanto a Era das Revoluções progredia, os Estados Unidos lançavam suas próprias guerras de conquista, tomando o controle dos territórios dos Creek e dos Seminole na Primeira Guerra Seminole (1816-1819). Assim, em vez de oferecer uma alternativa aos impérios europeus, os novos Estados Unidos os imitavam. Além disso, a Revolução Americana desencadeou a expansão agressiva do Império Britânico nos mundos da Índia e do Oceano Pacífico. Mesmo antes do final da década de 1780, a Grã-Bretanha utilizou trabalho de presidiários para estabelecer novas colônias em Serra Leoa, na costa oeste da África e em Sydney, na costa leste da Austrália (Christopher, 2011; Anderson, 2012; Anderson, 2013; Marshall, 2005) Esta década também viu as Coroas britânica, francesa e espanhola patrocinarem viagens científicas de descobertas para o Oceano Pacífico, estabelecendo as bases para projetos de colonização que iriam florescer no longo século XIX (Gascoigne, 2014, 129-182).

A Rebelião de Tupac Amaru Enquanto a Guerra Americana de Independência era travada 284 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

na América do Norte, o Império Espanhol na América do Sul chocava-se com uma grande revolta anticolonial no Vice-Reino do Peru. Tudo começou em novembro de 1780, quando o cacique indígena José Gabriel Condorcanqui, mais conhecido pelo seu nome de guerra Tupac Amaru, sequestrou e executou publicamente Antonio Arriaga, o corregedor da cidade de Tinta. Este evento culminou em um levante em massa que se alastrou por todo o sul da Cordilheira dos Andes. Nas semanas seguintes à execução de Arriaga, Tupac Amaru e sua esposa Micaela Bastidas Puyucaha atraíram dezenas de milhares de seguidores, a maioria dos quais camponeses indígenas. O casal liderou enormes tropas que marcharam de cidade em cidade destruindo manufaturas têxteis e cadeias: símbolos poderosos do poder imperial. A rebelião atingiu o pico em dezembro de 1780, quando 40.000 rebeldes sitiaram Cuzco, segunda capital do vice-reinado. Os espanhóis e seus aliados locais suprimiram a rebelião em abril de 1781, quando funcionários do governo colonial prenderam e executaram Tupac Amaru e sua família, juntamente com outros líderes rebeldes. Este evento continua a ser marginalizado na maioria dos estudos da Era das Revoluções no Atlântico ou do mundo todo, talvez porque tenha resultado em derrota. Mas, como o historiador Alberto Galindo Flores nos lembra, “sua derrota não significa que o movimento de Tupac Amaru não fosse revolucionário, ele apenas indica uma frustração de anseios coletivos.” (Flores Galindo, 2010, 81). Contemporâneos estavam convencidos de que essa revolta chegou perto de destruir o império sul-americano da Espanha por dentro (Flores Galindo, 2010, 80). Como o primeiro-ministro do rei espanhol Carlos IV, Manuel Godoy, observou: “ninguém ignora [o fato de] que todo o Vice-Reino do Peru e parte do Rio da Plata foram quase perdidos em 1781.” (Walker, 1999, 53). Tupac Amaru articulou os objetivos principais de sua revolta contra a Espanha na execução pública de Arriaga. Em quíchua77, ele anunciou a abolição das várias políticas impopulares que a Espanha tinha recentemente introduzido no Peru para extrair mais riquezas das comunidades locais. Como as reformas desastrosas da Grã-Bretanha na América do Norte, estas iniciativas espanholas foram em grande parte 77 NT: o quíchua é uma família de línguas indígenas andina, ainda praticada por cerca de 10 milhões de pessoas entre Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Era a língua franca no império Inca.

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impulsionadas pela necessidade de angariar fundos para as crescentes dívidas de guerra feitas pela Coroa. Tupac Amaru aboliu a alcabala, o imposto geral de vendas que aumentou de 2% para 6% entre 1772 e 1776, além dos direitos aduaneiros, que se tornou mais um fardo após a Coroa construir novas casas aduaneiras para recolher o imposto em todo o sul dos Andes neste mesmo período. Tupac Amaru também rescindiu o reparto de mercancías, um sistema que permitiu que corregidores obrigassem as comunidades indígenas a comprar mercadorias a preços inflacionados, e cortou a mita, o modelo de trabalho forçado para as mortais minas de prata de Potosí. A rebelião de Tupac Amaru foi revolucionária porque teria transformado radicalmente a sociedade colonial se tivesse sido bem-sucedida. (Flores Galindo, 2010, 86). A alcabala, o reparto, e a mita78 constituíram os mecanismos essenciais pelos quais a Espanha explorou os indígenas andinos, naquilo que era, afinal, a parcela fundamental do império. Significativamente, Tupac Amaru e seus seguidores não confiaram em filosofias importadas da América do Norte ou Europa para erguerem-se contra o domínio colonial espanhol. Em vez disso, a rebelião foi inspirada pela ideologia da utopia andina: a crítica coerente do domínio colonial que surgiu organicamente nos Andes. Essa visão de mundo distinta combinou uma memória romanceada dos Andes pré-hispânicos sob o domínio Inca como um período de justiça social, harmonia e prosperidade com o plano de ação futura, que defendia a derrubada de usurpadores espanhóis e da restauração de uma monarquia Inca indígena. Galindo Flores (2010, 3-52) demonstra que a utopia andina era anterior à Era das Revoluções. Esta ideologia já havia sido citada no início do século XVII, em Comentarios Reales, pelo Inca Garcilasco de la Vega. Ela sobreviveu e foi alimentada por séculos de domínio colonial espanhol nas canções, peças e murais. Tupac Amaru evocou-a explicita78 NT: A alcabala era o imposto mais importante do Antigo Regime que taxava o comércio e era aquele que mais renda produzia ao setor imobiliário; já o reparto era um sistema pelo meio do qual se obrigava os pueblos a comparem bens a preços muito acima dos de mercado, favorecendo empresários comerciais e os cofres públicos (por meio dos impostos recolhidos). Índios que não comprassem bens em reparto podiam ser presos. Como se endividavam para conseguir crédito e adquirir forçosamente os bens de reparto, muitos trablahvam por algum tempo nas minas. A mita, por sua vez, era uma forma de trabalho servil destinada às minas, especialmente na região de Potosí. Oficialmente, apenas 3 lugares no Peru tiveram mita, com apoio estatal. Isso não significava que outras formas de trabalho compulsório não fossem empregadas em diversos outros sítios.

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mente, adotando o nome do último Inca assassinado por conquistadores espanhóis em 1572, com a pretensão de ser seu descendente direto e herdeiro da Coroa Inca. Ele também incorporou simbolismos Incas em suas vestes: usava o uncu ou túnica indígena adornada com uma “corrente de ouro com um sol Inca.” (Walker, 2014, 3-24). Como a Guerra Americana de Independência, a rebelião de Tupac Amaru se transformou em uma guerra civil. As forças monarquistas que derrotaram os homens de Tupac Amaru no cerco de Cuzco incluíram regimentos espanhóis e milícias, expedidos de Lima, bem como milícias andinas patrocinadas pelas elites indígenas locais, que irresistivelmente permaneceram leais à Espanha. Existem várias razões pelas quais indígenas andinos colaboraram com os espanhóis para acabar com a insurgência. O historiador David Garret aponta que elites foram alienadas por Tupac Amaru com sua “insistência de que ele era o único candidato ao sangue Inca” (Garrett, 2004, 606). Além disso, as elites indígenas reconheceram que estavam para perder sua posição privilegiada na sociedade colonial se a rebelião fosse bem-sucedida, e sofreriam a ira do estado colonial se falhassem (Cahill, 2003). O bispo de Cuzco minou de vez as bases de apoio à rebelião por meio da distribuição de panfletos em todo os Andes, afirmando que Tupac Amaru tinha queimado conventos e casas de culto, e que seus seguidores seriam excomungados da Igreja79. Certamente esta informação desencorajou católicos devotos de apoiar a insurgência. A natureza extremamente violenta da rebelião também contribuiu para sufocar o apoio popular a Tupac Amaru: historiadores estimam que 100.000 índios e 10.000 espanhóis foram mortos durante a revolta. Este derramamento de sangue tornou-se um poderoso incentivo para restaurar a relativamente pacífica ordem colonial (Flores Galindo, 2010, 96). Embora pareça contraintuitivo, a rebelião de Tupac Amaru, em última análise, fortaleceu o Império Espanhol na América do Sul. O Estado respondeu à insurgência com uma repressão sem precedentes, começando com a terrível execução pública de Tupac Amaru, sua esposa, seu filho de dez anos de idade e de outros líderes rebeldes na praça central de Cuzco. Na frente de uma grande multidão, Tupac Amaru e sua família sofreram tortura, sendo suas línguas cortadas enquanto eles ainda estavam 79 “Excommunication of Tupac Amaru and His Followers” (1781?) in

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vivos. Depois que foram mortos, seus corpos foram despedaçados e então mostrados nas cidades e vilas em todo o Vice-Reinado. Esta foi a estratégia terrível que o Estado utilizou para deixar claro o que aconteceria a qualquer um que fosse corajoso o suficiente para ousar desafiar o domínio colonial. No rescaldo dessas execuções, a Espanha também implementou uma campanha para destruir a cultura indígena nos Andes, que o historiador Charles Walker (2014, 259) descreve como tentativa de “genocídio cultural”. A Coroa restringiu o uso do quíchua, destruiu retratos de Incas e proibiu o uso do vocábulo “Inca” como nome ou título. A Coroa também proibiu certos tipos de vestimentas, danças, bem como literaturas indígenas que desafiassem o domínio espanhol, incluindo os Comentarios Reales80. Estes foram os elementos de uma “revolução imperial” que reforçaram a autoridade espanhola.

Conspirações anticoloniais no Império Português No final do século XVIII levantes contra o domínio colonial também ocorreram no império global de Portugal. Em 1787, as autoridades coloniais em Goa descobriram um grupo de padres e milicianos do alto escalão que, alienados pela discriminação sistemática contra indivíduos nascidos no Estado da Índia, estavam tramando um golpe para substituir o governo vice-real por uma nova república “na qual os chamados ‘nativos’ iriam governar a si mesmos”. O governo reprimiu brutalmente essa rebelião antes que ela realmente começasse, prendendo 47 suspeitos que foram julgados e considerados culpados do “abominável delieto de rebellião, e alta traição.”81 Alguns dos conspiradores receberam a pena de morte enquanto outros foram condenados a trabalhos forçados na Casa de Pólvora de Goa, ou desterrados para Angola e Moçambique. O Estado The Tupac Amaru Rebellion and Catarista Rebellions: An Anthology of Sources, (Indianapolis: Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2008), 74-75. 80 NT: livro muito famoso e de ampla circulação escrito pelo Inca Garcilaso de la Vega e publicado na Europa. 81 The conspirators “intentaram subtrahir todo este Estado da sujeição, obediência, e governo da dita Senhora* destruir a forma deste, e formar huma nova republica, em que os chamados Naturaes por hum conselho de camará geral governassem, e usassem da soberania, e de todo o mero, e mixto império. ue participaram primeiro o objecto da rebelliào aos seus semelhantes na profissão ecclesiastica….” Documento No.3 Sentença (Goa, 1788) in

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deportou mais de uma dezena de padres envolvidos na conspiração para Portugal, onde ficaram presos por muitos anos para evitar que se tornassem mártires pela independência (Bayly, 2004). Em 1789, outra conspiração anticolonial aconteceu no Brasil. Na cidade mineira de Vila Rica, em Minas Gerais, o ex-oficial militar e dentista ocasional Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, como era conhecido, participou do planejamento de uma revolução contra o domínio português na América do Sul. Tiradentes não era um homem pobre: ele era dono de uma farmácia e de uma pequena fazenda. As 84 pessoas (incluindo 15 oficiais militares e 7 padres) que, em maior ou menor grau, planejavam participar da “Inconfidência Mineira” também provinham da elite de Minas, de famílias de comerciantes ricos, proprietários de minas, plantações e escravos. Os conspiradores queriam estabelecer uma “República de Mazombos” (homens nascidos no Brasil de pais brancos europeus) (Ferreira Furtado, 2014, 115-116). Eles planejavam se rebelar no momento em que o governo colonial estava no que parecia ser o auge de sua impopularidade e, portanto, mais vulnerável ao ataque: quando anunciara o recolhimento da derrama, ou impostos atrasados sobre o ouro. Eles também anteciparam que soldados e milicianos se juntariam ansiosamente à revolta e lutariam contra o exército da Coroa, que, inevitavelmente, seria enviado a partir do Rio de Janeiro para esmagar a revolta (Marchant, 1941). Notavelmente, os conspiradores decidiram contra a libertação da grande população escrava de Minas, argumentando que a nova república precisaria de escravos para trabalhar nas suas minas e fazendas. Enquanto a rebelião de Tupac Amaru foi agitada por uma ideologia marcadamente andina, a Inconfidência Mineira foi inspirada na Guerra Americana de Independência. Marinheiros que cruzavam o Atlântico viajando entre cidades portuárias, como Lisboa e Londres, Havana e Salvador, trouxeram notícias sobre a Revolução Americana para o Brasil (Rediker, 2014, 9-29). Esta informação também circulou pelos oceanos em páginas impressas de livros, mesmo que os governos proibissem textos “sediciosos”. Tiradentes sempre levava consigo o livro francês Recueil de Lois Constitutives des Etats de L’Amerique, que incluía cópias da Declaração de Independência americana e as constituições Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, “A Conjuração de 1787 em Goa, E Varias Cousas Desse Tempo: Memoria Histórica,” (Nova Goa: Imprensa Nacional, 1875).

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de vários Estados que formavam os novos Estados Unidos da América. (Ferreira Furtado, 2014, 128-131; Araújo, 2005, 235-270). Entre 1786 e 1787, um estudante brasileiro em Montpellier, possivelmente ligado à conspiração nas Gerais, escreveu a Thomas Jefferson, então embaixador na França pré-revolucionária, confidenciando os planos: “Eles consideram a Revolução Norte-Americana como um precedente para a sua”, escreveu o norte-americano ao seu Congresso; “pensam que os Estados Unidos é que poderiam dar-lhes um apoio honesto e, por vários motivos, simpatizam conosco (...) no caso de uma revolução vitoriosa no Brasil, um governo republicano seria instalado.” (Kenneth, 1989, 8). Não foi preciso um grande trabalho de detetive para se descobrir a conspiração de Minas. Tiradentes e os demais não eram homens discretos e fizeram pouco esforço para manter seus planos revolucionários em segredo. Em Vila Rica, Tiradentes discursou publicamente sobre a injustiça do governo imperial. Brasileiros, criticou, seriam os “filhos pobres da América, perpetuamente morrendo de fome, sem nada de próprio”, porque Portugal roubara os frutos dos seus trabalhos. (Ferreira Furtado, 2014, 124-125). Em uma ocasião, quando estava bebendo em uma pousada no Rio de Janeiro, Tiradentes brindou à saúde da república brasileira independente que ele esperava se transformasse em realidade. Mas o gerente e outros espectadores não eram fãs deste plano e prontamente o denunciaram às autoridades. Este rebelde cometeu o erro de supor que seus compatriotas compartilhavam sua paixão pela independência, quando, ao invés disso, a maioria se considerava vassala fiel da Coroa. Assim como a revolução na América do Norte influenciou a Inconfidência Mineira, ela também criou um sentimento de uma crise geral do império que formou a gravidade da resposta do Estado à revolta planejada. Tiradentes e seus co-conspiradores foram detidos e presos em maio de 1789. Em 1792, após três anos de longa investigação sobre a conspiração (a Devassa), Tiradentes foi executado na frente de uma grande multidão. A rainha portuguesa Maria ordenou diretamente que, após a morte do rebelde “lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila Rica aonde em o lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será divido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas...” (Salgado, 2008, 492). Mantendo a lógica da resposta espanhola para a rebelião de Tupac Amaru, a rainha fundamentou que este espetáculo violento mostraria 290 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

claramente a força do Estado e desencorajaria outros que considerassem atacá-lo no futuro.

As Revoluções Francesa e Haitiana A França entrou em crise no final de 1788, sinalizando que a onda de rebeliões que varreram o mundo não era restrita a colônias ultramarinas da Europa. A Coroa francesa estava praticamente falida e incapaz de pagar as dívidas acumuladas com a Guerra dos Sete Anos e com o apoio aos Estados Unidos em sua guerra de independência. Parlements regionais da França bloquearam reformas fiscais de emergência que teriam, eventualmente, levantado fundos para manter o reino solvente. Em resposta, o rei Luís XVI dissolveu os parlements e convocou uma reunião dos Estados Gerais, o conjunto que representava os três Estados do reino: o clero (Primeiro Estado), a nobreza (Segundo Estado) e as pessoas comuns (Terceiro Estado). Os Estados não eram convocados desde 1614. Os Estados Gerais reuniram-se no Palácio Real de Versalhes em maio de 1789. Em junho, o Terceiro Estado se revoltou, rebatizou-se como “Assembleia Nacional” e ordenou que todos os impostos fossem abolidos ao invés de autorizá-los. O historiador Wim Klooster (2009) afirma que este foi o ato fundador da Revolução Francesa, uma vez que foi o momento em que a Assembleia “apossou-se da soberania em nome da nação francesa.” O conflito entre o rei e a Assembleia insubordinada intensificou-se rapidamente. Luís trancou a Assembleia do lado de fora da sala de reunião dos Estados Gerais. Seus membros, então, se reuniram novamente em um dos campos de tênis do Palácio e fizeram um juramento prometendo dar à França uma constituição. O rei, por sua vez, reuniu milhares de soldados nos arredores de Paris, em preparação para um ataque à Assembleia, o que levou a cidade a rebelar-se para defender seu novo governo. Em 14 de julho, massas de trabalhadores, artesãos, comerciantes e soldados desertores atacaram e tomaram a prisão da Bastilha, uma verdadeira fortaleza no centro de Paris que funcionava como um armazém de pólvora: o rei era impotente para detê-los. Nos meses seguintes, os parisienses derrubaram a Bastilha, tijolo por tijolo, até que nenhuma uma única pedra deste símbolo da autoridade As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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real restasse (Rudé, 1967, 45-60). De Paris, a Revolução Francesa se espalhou rapidamente para o campo. Campesinos atacaram senhores de terra, saqueando e incendiando suas casas senhoriais e os livros onde eram registradas dívidas camponesas. A Assembleia Nacional aboliu as obrigações feudais, a fim de controlar a anarquia no campo. Em 26 de agosto, a Assembleia emitiu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que afirmava que “Todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, com “direitos naturais e imprescritíveis do homem” como “liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” (Armitage, 2007). A linguagem sexista da Declaração não passou despercebida pelas mulheres francesas. Olympe de Gouges desafiou a exclusão das mulheres, escrevendo uma alternativa, a “Declaração da Mulher e Cidadã” (Klooster, 2014, 109110; Assmann, 2007). A Declaração francesa foi claramente influenciada por e ecoou a Declaração da Independência dos Estados Unidos, que já afirmara que “todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. No entanto, a Revolução Francesa foi muito além dos esforços norte-americanos para reorganizar a sociedade. Após a abolição das obrigações feudais, a Assembleia Nacional francesa tomou medidas significativas para tomar o poder da Igreja Católica, expropriando e vendendo bens da Igreja, dissolvendo ordens religiosas e proclamando a igualdade civil para os católicos, judeus e protestantes. Em setembro de 1792, a Convenção Nacional da França, sucessora da Assembleia Nacional, aboliu a monarquia e declarou uma república na França. Em janeiro do ano seguinte, o governo executou o antigo rei, Luís XVI, agora um cidadão comum conhecido como Luís Capeto, na frente de um número estimado de 20.000 parisienses. Meses mais tarde, sua esposa e ex-rainha Maria Antonieta teve o mesmo destino. Amplos setores da sociedade francesa se opuseram aos ataques do Estado revolucionário sobre a Igreja e a Coroa. A guerra civil eclodiu em grande parte do ocidente e sul da França em 1792 e 1793, quando contrarrevolucionários franceses se organizaram em um exército católico e real para lutar contra as tropas do governo. Outras monarquias europeias estavam aterrorizadas com a possiblidade da Revolução Francesa se espalhar para além das fronteiras do país. O comitê secreto criado pelo Parlamento britânico para investigar o possível contágio de ideolo292 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

gias revolucionárias expressou grave preocupação de que “os países mais distantes imitarão a rebelião da França, e toda a Europa será reduzida a um estado de anarquia e confusão, ao passo em que uma grande revolução pode apressar os governos existentes do mundo ao fim.”82 A necessidade de conter a “ameaça francesa” levou vários Estados europeus a declarar guerra à França, incluindo Grã-Bretanha, Áustria, Espanha, Portugal e Prússia. As revolucionárias guerras francesas facilitaram a rápida expansão das forças coercitivas do Estado em toda a Europa. A Marinha Real Britânica, por exemplo, triplicou em tamanho de 1793 a 1815 (Bayly, 1989, 3). A República Francesa realizou um recrutamento para levantar um enorme exército de centenas de milhares de homens fortes para derrotar seus inimigos internos e externos. Durante os anos que, infamemente, ficaram conhecidos como o “Período do Terror” (1793-1794), a República condenou pelo menos 17 mil de seus supostos inimigos à morte para reforçar a sua autoridade. Como C. A. Bayly (2004, 88) observou, o Estado mais forte, mais intrusivo, “foi o legado mais potente da Era das Revoluções.” Fora da Europa, a Revolução Francesa interrompeu o status quo político em colônias ultramarinas da França, especialmente em São Domingos, que era, na época, a colônia produtora de açúcar mais rentável do mundo. Em 1789, brancos e negros livres de São Domingos tornaram-se amargamente divididos quanto ao significado e às implicações da Declaração dos Direitos do Homem e outras novas leis francesas que, aparentemente, desafiaram a desigualdade racial institucionalizada e a escravidão da colônia. Das plantações para as ruas da capital colonial Le Cap, os escravos foram expostos a pesados debates políticos sobre a medida em que a liberdade e a igualdade se aplicaria aos negros livres e mulatos. Inspirados por essas ideias radicais, os escravos lançaram sua própria revolução em 1791. Ela começou como uma revolta na periferia de Le Cap em agosto e, rapidamente, cresceu como a maior revolta de escravos na história do mundo atlântico. Até dezembro, dezenas de milhares de escravos rebeldes tinham destruído mais de 1000 fazendas de açúcar e café, matando pelo menos 400 brancos. 82 An Account of the Treason and Sedition, Committed by the London Corresponding Society, the Society for Constitutional Information, the Other Societies: ... And the Whole of the Two Reports, Presented to the Hon. House of Commons, by the Secret Committee, (London: Printed for J. Downes, 1794). Capítulo 10: “Revolt of the Provinces” in

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No meio desta revolução escrava, São Domingos tornou-se outra frente nas guerras revolucionárias francesas. Nesta colônia caribenha, a República Francesa se viu lutando tanto com brancos insurgentes que estavam determinados a preservar sua posição privilegiada e a hierarquia racial nas quais assentavam suas fundações, como com os exércitos britânicos e espanhóis que invadiram a ilha. Certamente influenciados pela necessidade de ganhar apoio militar dos escravos que já haviam se libertado, a Convenção Nacional Francesa aboliu formalmente a escravidão em todas as colônias em 4 de fevereiro de 1794, confirmando que “todos os homens, sem distinção de cor, residentes nas colônias são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos assegurados pela Constituição”.83 Touissant L’Ouverture, um ex-escravo, levantou um exército de 20.000 homens recém-libertados para lutar contra os inimigos estrangeiros e domésticos da França. Em 1796, a França fez de L’Ouverture Vice-Governador de São Domingos, depois que os britânicos retiraram as tropas da colônia. Em 1801, L’Ouverture elaborou uma Constituição para São Domingos que declarava: “Neste território, não podem existir escravos; a servidão está permanentemente abolida. Todos os homens dentro de São Domingos nascem, vivem e morrem livres e franceses.” Outra cláusula garantia que todos os cidadãos, “não importando sua cor”, poderiam exercer qualquer emprego e as únicas distinções entre eles seriam aquelas com base em “virtudes e talentos.” (Blackburn, 2006, 647). Esta lei procurou proteger as liberdades duramente conquistadas pela população local de um possível futuro no qual o governo francês pudesse tentar retirá-las. A relação calorosa de L’Ouverture com a França arrefeceu após 1799, quando Napoleão Bonaparte efetivamente tornou-se chefe de Estado da República em um golpe de Estado. Em 1802, Napoleão enviou um grande exército para o Caribe para recolonizar São Domingos. As forças de Napoleão conseguiram capturar e deportar L’Ouverture para a França, onde ele viria a morrer na prisão. No entanto, milícias de São Domingos e a febre amarela frustraram a tentativa de reconquista. Em 1804, os ex-escravos da ilha proclamaram a República independente do Haiti, recuperando o nome Taíno da ilha. O novo imperador do William Doyle, The Oxford History of the French Revolution (2002, 220-246). 83 “French National Convention, Abolition Decree (1794)” In The French Revolution and Human Rights: A Brief Documentary History (Hunt, 1996, 115–116).

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Haiti, Jean-Jacques Dessalines, supervisionou o massacre dos brancos que permaneceram lá. O historiador David Geggus sustenta que tanto a mudança de nome quanto o massacre celebraram a política de “ruptura com a Europa” e “evidenciavam que a independência do Haiti carregara uma mensagem mais radical do que a dos Estados Unidos duas décadas antes.” (Geggus, 1997, 18).

A dissolução do império da Espanha na América Não obstante a derrota do exército de Napoleão no Haiti, a primeira década do século XIX foi marcada pela rápida expansão do império de Napoleão na Europa. Ele conquistou quase todo continente até 1810. Sua invasão da Península Ibérica, em 1808, desencadeou eventos que levariam ao colapso do império da Espanha na América. Em fevereiro, dezenas de milhares de tropas francesas se espalharam ao longo dos Pireneus e tomaram o controle de Pamplona e Barcelona. Em março, o Rei Carlos IV abdicou em favor de seu filho, o novo rei Fernando VII. Em agosto, Napoleão depôs Fernando VII e fez o seu próprio irmão, José Bonaparte, rei da Espanha e das Índias. Os habitantes do Império Espanhol, em sua maioria, rejeitaram a autoridade de Bonaparte. Em toda a Espanha, comunidades empenhadas em restabelecer o trono a Fernando VII formaram juntas locais e regionais para coordenar a resistência armada contra os franceses. Em setembro, esses vários grupos se uniram para formar uma Junta Central para governar a Espanha até que o legítimo monarca recuperasse o poder. Até o final de 1808, este órgão convocou representantes de todos os territórios da Espanha na Europa e nas Índias a participar de uma reunião das Cortes, uma assembleia nacional que criaria uma constituição moderna para a nação espanhola transcontinental. A invasão francesa da Espanha veio como um choque para organizações políticas coloniais, que reagiram à notícia com demonstrações públicas de lealdade ao rei Fernando VII. Em Santiago de Chile, criollos adornaram seus chapéus com botões ostentando o retrato do rei, enquanto “jóvenes del comercio” desfilaram pelas ruas de Guadalajara ostentando pinturas do monarca. (Stein; Stein, 2014, 197; Kloster, 2009, 117-157). Os governadores dos pueblos indígenas de San Juan e Santiago As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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na Nova Espanha estavam entre os muitos que emitiram declarações públicas articulando sua fidelidade a Fernando. Eles declararam: Las Parcialidades de Indios de esta corte, sus pueblos y barrios anexos… En estas terribles circunstancias,… son los primeros que sacrificarán sus cortos bienes propios y comunes, su repsos y tranquilidad, sus hijos y familias, y hasta la última gota de su sangre, por no rendir vasallaje a [Bonaparte] quien so merece el justo enojo de nuestra nación.84

Tal evidência de lealdade à Espanha sugere que não havia nada de inevitável sobre o colapso do império espanhol no início do século XIX. Como o historiador David Sartorius (2013, 3) observa, colônias espanholas não eram “nenhum barril de pólvora, nenhum emaranhado de tensões contradições prestes a se incendiar” inflamadas em guerras de independência. O trono espanhol, no entanto, criou uma crise de soberania que se espraiou de Barcelona para Bajío e Buenos Aires. Colônias espanholas não aceitaram automaticamente a suprema autoridade da Junta Central e pueblos por todo o império estabeleceram suas próprias juntas para governar na ausência do rei. Em setembro de 1808, comerciantes poderosos do México tomaram o poder do Vice-rei Iturrigaray, diante dos rumores de que ele estaria agitando uma luta de independência mexicana, e instalaram em seu lugar o marechal Pedro Garibay, oficial militar de mais alta patente na Nova Espanha (Stein; Stein, 2014, 95-130). Garibay e seus apoiadores se mantiveram fiéis a Fernando, e não perderam tempo em silenciar republicanos em seu meio. O governo deteve dissidentes, como Frei Melchor de Talamantes, que alegou que “las Colonias pueden legítamente separase de sus Metrópolis” em várias situações, incluindo “cuando la Metrópoli es subyugada por otra nación.” (Melchor de Talamantes, 18080; Villicaña, 1995; Baliño, 2009). Este era um padrão que se repetia em todo o império. Em 1810 e 1811, juntas locais atuando em nome do rei substituíram os vice-reis de Nova Granada e do Rio da Prata, bem como os governadores das Capitanias Gerais da Venezuela e do Chile. Exibindo o mesmo forte discurso monarquista que as juntas adotaram, os membros da Primera Junta Nacional de Gobierno de Chile fizeram um juramento para de84 Rodríguez, 2008, 257; Geggus; Gaspar, 1997, 18.

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fender Fernando e seu reino “hasta con la última gota de su sangre”.85 Como o historiador Jeremy Adelman (2008, 332) aponta, estas juntas eram “modelos de colônias reacomodadas em formações imperiais, uma tentativa para um acordo que permitiria estabilizar (e não para dissolver) regimes [imperiais].” Governos coloniais enviaram prata e outros recursos para a Espanha para apoiar a guerra contra a França, enquanto Fernando VII permanecia no exílio. Por exemplo, em 1814 a Real Hacienda de Manila doou 11.783 camisas e 12.515 pares de calças para o exército espanhol na Europa. 86 A Espanha simplesmente não poderia ter sustentado esta guerra sem suas colônias, que foram literalmente colocando roupas nos corpos dos seus soldados. As razões pelas quais os súditos coloniais permaneceram leais ao seu rei em seu momento mais vulnerável são complexas. De acordo com o historiador econômico Carlos Marichal, vassalos esperavam que Fernando VII acabaria por reconhecer e recompensar sua generosidade. Embora Marichal (2007, 48) também nos lembre que nem todas as doações eram voluntárias, funcionários coloniais no México tomaram verbas de cajas de comunidades indígenas sem o seu consentimento. No entanto, não devemos descartar o quanto uma identidade latino-americano católica comum formou a base de uma lealdade profunda e duradoura a Fernando VII em ambos os lados do Atlântico e do Pacífico (Eastman, 2012; Rodríguez, 2012). Muitos homens e mulheres nas colônias eram dedicados a seu Deus, rei e pátria, da mesma forma com que os nacionalismos modernos permitem às pessoas afirmar que amam e defenderiam seus países (Sartorius, 2013, 8). No entanto, este período de crise viu grandes levantes acontecerem nas colônias americanas da Espanha. Uma grande e famosa insurreição no México começou no dia 16 de setembro de 1810, quando Padre Miguel Hidalgo y Costilla, o pároco de Dolores, soou os sinos da igreja e pediu aos seus paroquianos que se levantassem contra os espanhóis. As forças do governo capturaram e executaram Hidalgo em meados de 1811, mas não antes que ele tivesse várias vitórias importantes em lugares como o rico centro de mineração de Guanajuato, onde os rebeldes vitoriosos procederam execuções em massa de realistas. No 85  Acta del Cabildo de Santiago (18 de Septiembre de 1810) http://www.historia.uchile.cl/CDA/ fh_article/0,1389,SCID%253D14355%2526ISID%253D516%2526JNID%253D27,00.html 86 (Philippines National Archives (PNA) Cartas 2195, 2196).

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entanto, o historiador Eric Van Young (2007; 2001, 265- 266) enfatiza que sacerdotes, aldeões e camponeses indígenas que se rebelaram não “bradavam slogans revolucionários sobre os direitos do homem, tampouco defendiam programas políticos elaborados para a reforma imperial, autonomia política e independência da Espanha”. Em vez disso, eles foram levados pela ambição pessoal e por queixas locais. Estes não foram movimentos anticoloniais coerentes que visavam a estabelecer repúblicas independentes. A Constituição adotada pelas Cortes de Cádiz, em 1812, foi a primeira “grande revolução política” dentro do Império Espanhol (Rodríguez, 1820). Passou por um conjunto de cerca de 301 deputados, incluindo 67 das colônias, e revisou o pacto colonial. A assembleia transformou a Espanha e suas colônias em um único Estado-nação. Limitou os poderes do monarca e instituiu autoridade para um legislativo democraticamente eleito, que incluiria representantes de territórios ultramarinos da Espanha.87 Ao definir os espanhóis como sendo “todos os homens nascidos livres e domiciliados nos domínios da Espanha, e seus filhos,” a Constituição fez espanhóis, mestiços e índios iguais perante a lei, finalizando o estatuto legal dos indígenas como menores de idade que necessitariam de proteção da Coroa. A Constituição de 1812 ainda cumpriu várias das exigências radicais de Tupac Amaru feitas duas décadas antes: aboliu tributos impostos aos índios, o reparto e a mita, estabelecendo, assim, indígenas livres de regimes de servidão. A notificação enviada ao Cabildo de Lima aconselhando o término da tributação proclamava que “los malhadados indios respirarán ya, y verán que por primera vez al cabo de tres siglos ha habido quien abogue por ellos hasta conseguir quitarles de encima esa carga abrumadora.” (Bazán Díaz, 2013, 245). Mas os homens e mulheres de ascendência africana não puderam respirar tão livremente. A Constituição de 1812, em grande parte, excluiu os afrodescendentes da nova cidadania da nação espanhola global e deixou o comércio de escravos e a escravidão intactos.88 Apesar 87 Não obstante, o sistema de eleição de deputados para as Cortes garantiram que as colônias muito mais populosas não dominassem o parlamento. Enquanto a Espanha tinha o direito de eleger um representante a cada 50.000 membros de sua população, cada ayuntamiento nas colônias podia mandar apenas um representante para as Cortes. 88 Embora o Artigo 22 tenha criado uma abertura para africanos e afrodescendentes se tornarem espanhóis: ele deu às Cortes o poder de conceder cidadania aos filhos homens e legítimos de negros livres que “prestaram eminentes serviços à pátria, ou para aqueles que se distinguiam por

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das suas falhas, os historiadores concordam amplamente que as organizações políticas multiétnicas de territórios europeus ultramarinos e da Espanha apoiaram largamente a Constituição e o sistema de governo por ela preconizado. No Peru, um grupo de insignes plebeus era tão fiel à Constituição que seus membros carregavam pedaços do documento com eles onde quer que fossem (Walker, 1999, 92). Embora seja perigoso para os historiadores tentarem trilhar os caminhos da história alternativa e considerar o que poderia ter acontecido se os fatos históricos ocorressem de forma diferente da que efetivamente ocorreu, parece que a Constituição de 1812 poderia ter salvo o Império Espanhol, ainda que de uma forma profundamente distinta da lei anterior. Mas a unidade imperial começou a desmoronar depois que Fernando VII foi restaurado ao trono em 1814. Determinado a governar o império como um monarca absoluto, o rei aboliu a Constituição e destitui as Cortes apenas seis semanas depois de sua reentrada gloriosa em Madri. Esta negação da autonomia e soberania solicitada pelas colônias americanas da Espanha fizeram com que estas se preparassem para ir à guerra para garantir sua independência. Por volta de 1824, quase todas as colônias americanas da Espanha já haviam se transformado em estados nacionais (Portillo Valdés, 2006). Como um rosário de guerras se desfiando neste capítulo, podemos pensar as revoltas da América espanhola contra a monarquia como guerras civis travadas entre patriotas americanos e monarquistas americanos; estes últimos aliados aos 47.000 soldados espanhóis enviados da Europa para esmagar as rebeliões. Vários fatores influenciaram tais alianças. No início do século XIX, novas identidades proto-nacionais e nacionais surgiram, advindas daquela fidelidade encorajadora de pueblos a seus tão distantes monarcas. Em 1820, as pessoas que previamente se viam identificadas como católicas pertencentes a uma monarquia hispânica transcontinental começam a se ver como venezuelanos, chilenos e mexicanos. De acordo com o historiador José María Portillo Valdés (2006), esta revolução na identidade foi fortemente influenciada pelas Juntas que surgiram em toda a América após 1808. Certamente, o desejo de libertação social também influenciou o lugar em que os realistas se puseram. Um patriota, capitão José Antonio seus talentos, diligência e conduta”, desde que fossem legitimamente nascidos de pais livres. (Cf.

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Páez, recrutou soldados nas terras baixas do leste da Venezuela, oferecendo-lhes “a liberdade pessoal, propriedades e saques a título de compensação para qualquer homem que o seguisse em batalha” (Adelman, 2007, 279-280). No Rio da Prata, em 1815, o líder revolucionário José Gervasio Artigas (1815) emitiu um Reglamento de Tierras que concedia terras aos “negros libres, los zambos89 de esta clase, los indios y los criollos pobres” e prometia que até os “más infelices seran los más privilegiados.” (Valdés, 2006, 282). Mas os patriotas não estavam sozinhos nesta tática de oferecer incentivos para apoio de seus subalternos. A historiadora Marcela Echeverri mostra que, entre 1809 e 1819, o Governador do Popoyán, no Vice-Reino de Nova Granada, negociou com os escravos, bem como com os índios, para garantir o apoio deles contra as forças patriotas. Ofereceu liberdade aos escravos que concordassem em ir para a batalha contra os rebeldes e, depois que o rei Fernando reintroduziu o tributo indígena em 1814, negociou para reduzir as obrigações de tributo dos povos indígenas que se juntaram ou doaram armas para o exército monarquista. Para ambos, escravos e índios, neste caso específico, uma aliança com monarquistas locais e, por extensão, com a Coroa espanhola, foi uma resposta estratégica diante circunstâncias incertas. (Echeverri, 2011; 2009). O realismo no Peru foi um caso especial. Memórias da rebelião Tupac Amaru ainda ardiam intensamente na memória dos peruanos e contribuíram para o endurecimento das divisões entre as populações indígenas e não indígenas do vice-reino por muito tempo no século XIX. O legado duradouro do grande levante andino pôs em xeque o desenvolvimento de uma base ampla de política anticolonial, fazendo com que a independência do Peru só fosse alcançada em 1824, quando exércitos estrangeiros derrotaram as forças monarquistas locais (Walker, 1999).

Cuba: a ilha “sempre fiel” O império espanhol não foi completamente destruído na Era Sartorius, 2013, 29-31; Chust Calero, 1995, 199-201). 89 NT: no Brasil, essa mestiçagem entre índios e negros ficou mais conhecida como cafuzo ou caboré.

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das Revoluções. Em 1824, o rei Fernando VII de Espanha concedeu formalmente a Cuba o título de “sempre fiel”, em reconhecimento da lealdade duradoura da ilha à Coroa. A fidelidade da colônia para o rei estava profundamente ligada à revolução do açúcar e dos escravos experimentada tardiamente nos séculos XVIII e XIX. A população escrava de Cuba aumentou de cerca de 39.000 em 1774 para 287.000 em 1827, acompanhando o rápido crescimento da indústria de açúcar da colônia. A ilha se tornou o maior produtor mundial de açúcar por 1820. (Sartorius, 2013, 27; Ferrer, 2014, 5). Este desenvolvimento não foi uma anomalia perversa da Era das Revoluções, mas sim um efeito direto de levantes do Atlântico. Ironicamente a Revolução Haitiana permitiu a rápida expansão da produção de açúcar e da escravidão em Cuba. A revolta de escravos em Santo Domingos paralisou a produção de açúcar na colônia francesa, criando uma nova oportunidade para os plantadores cubanos de intervir e atender a demanda global por um produto tão lucrativo. Além disso, engenheiros e outros técnicos especialistas migraram para Cuba em ondas de refugiados brancos, levando a maquinaria ociosa de usinas de açúcar de Santo Domingos (Ferrer, 2014, 102). Na década de 1790, a Espanha temia que os escravos cubanos seguissem o exemplo dos “negros franceses” do Haiti e tentassem criar sua própria república negra. Oficiais da colônia aprovaram uma série de leis destinadas a impedir a “haitianização” de Cuba, isolando a ilha das rebeliões que sacudiram o mundo atlântico. A Coroa proibiu que “negros crioulos educados, comprados em colônias estrangeiras”, entrassem em Cuba, pois acreditava que tinham o potencial para plantar sementes de rebelião em comunidades de escravos de Cuba. A ordem era que apenas Bozales (escravos nascidos na África) poderiam entrar nas colônias espanholas (Ferrer, 2014). Mas os cubanos desobedeceram tais regras. Sedentos por lucros, as elites responsáveis pelas plantações na ilha compraram escravos, em leilões em Havana, oriundos de portos de todo o Caribe revolucionário. Como a historiadora Ada Ferrer (2014) aponta: “as estruturas que mantiveram a escravidão e servidão [...] eram exatamente as mesmas que ajudaram a fazer circular o exemplo e o apelo revolucionário de negros e escravos.” Dado o constante movimento de pessoas entre Cuba e outras partes do mundo atlântico em rebelião, não é de se surpreender que as ideias radicais tenham circulado e inspirado os escravos da colônia a se As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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revoltarem. Em março de 1812, os escravos se sublevaram na plantação de açúcar de Peñas-Altas, nos arredores de Havana, matando o engenheiro, seus dois filhos e os superintendentes brancos. A revolta se espalhou para outras duas plantações antes dos rebeldes serem capturados. O Estado não hesitou em usar a violência para prevenir a escalada do movimento. A polícia prendeu e interrogou centenas de pessoas suspeitas de terem conexões com a rebelião. A investigação e julgamento dos acusados provou que o episódio de Peñas-Altas estava ligado a uma série de rebeliões de escravos que haviam eclodido em torno de Porto Príncipe, no início daquele ano, revelando a existência de uma conspiração, em toda a ilha, de escravos e libertos. José Antonio Aponte, um carpinteiro moreno e livre que vivia em Havana, foi o líder da trama. A guarda encontrou um libro de pinturas feito por Aponte. Além de mapas de guarnições militares de Havana, que foram a chave para o planejamento da rebelião, todos desenhados à mão, o livro de Aponte continha esboços de soldados negros derrotando brancos e um desenho de George Washington. Testemunhas confessaram que também tinham visto retratos de líderes revolucionários haitianos, incluindo Toussaint L’ Ouverture, na casa de Aponte, revelando que, rotineiramente, Aponte discutia tais imagens com milicianos negros livres em reuniões em sua casa, dando-nos pistas de como histórias clandestinas de revoluções recém-ocorridas podem ter inspirado o surgimento de um movimento abolicionista e anticolonial em Cuba (Ferrer, 2014, 62-63; Childs, 2006). O governo colonial enviou forças para a repressão da conspiração escrava de Cuba. O Estado executou publicamente vinte e quatro rebeldes, incluindo Aponte. Todos sofreram a indignidade de serem decapitados e terem seus corpos mutilados exibidos em público. Outros 78 rebeldes foram condenados a chicotadas públicas e 170 foram condenados ao exílio em outras partes do Império Espanhol (Childs, 2006, 22; 76). A repressão brutal sobre a rebelião de Aponte pareceu ter conseguido desencorajar os escravos e negros livres a arriscar outro levante potencialmente sem êxito. Apenas em 1844 os escravos de Cuba tentariam outra revolta em massa contra a escravidão e a dominação colonial (Reid-Vazquez, 2011). Cuba ainda estava se recuperando da rebelião de Aponte, quando, em 1815, “o Libertador” Simón Bolívar expressou sua frustração com a indisponibilidade dos cubanos em lutar por sua independência. 302 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

Ele perguntou: “Mas não são as pessoas dessas ilhas americanas? Não estão oprimidas? Será que não desejam sua própria felicidade?” (Bolívar, 1978). Bolívar estava cego para o quanto a escravidão e o espectro de rebeliões de escravos eram capazes de diluir as aspirações das elites cubanas por autonomia. Aquelas elites julgaram que talvez uma aliança com a Coroa fosse a melhor maneira de preserva o sistema de escravidão que as fizeram ricas.

A revolução monárquica no mundo Luso-Atlântico A invasão de Portugal por Napoleão induziu uma resposta sem precedentes da monarquia portuguesa. Quando as tropas francesas marcharam por toda a Espanha em direção a Lisboa, em novembro de 1807, o Príncipe Regente de Portugal, Dom João VI, tomou a decisão radical de abandonar a Europa e restabelecer sua corte no Brasil (Arruda, 2008). Em uma esquadra de quinze navios lotados, Dom João atravessou o Atlântico com sua família, altos funcionários do governo, a biblioteca real, maquinários de imprensa e membros da nobreza portuguesa e do alto clero. Esses refugiados chegaram ao Brasil no início de 1808, transformando o Rio de Janeiro na nova capital do império português, que se estendia até Angola e Moçambique e, de lá, até Macau. O Conde de Ega descreveu a vinda para o Brasil como “a maior de todas as revoluções do sistema político em geral” (Schultz, 2000, 7). Esta “revolução” foi indubitavelmente bem-sucedida em salvar a monarquia no mundo luso, mas, ao menos inicialmente, também veio como um choque: nunca antes um monarca europeu tinha pisado na América, e muito menos tentara governar um império global a partir de uma colônia. Como a historiadora Kirsten Schultz aponta, a relocalização da corte “desafiou as antigas hierarquias políticas, culturais e econômicas do império [...] e exigiu uma redefinição da legitimidade política dentro do mundo português.” (Ferrer, 2014, 36). A relocação da monarquia portuguesa implicou diversas mudanças para aumentar sua legitimidade no rescaldo da sua fuga humilhante da Península Ibérica (Schutz, 2000, 7). O espaço físico do Rio de Janeiro foi refeito para refletir a grandeza da corte real. A Coroa patrocinou a construção de um novo teatro real e de calçadas, a instalaAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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ção de iluminação pública, bem como de sistemas de aterros sanitários e esgoto, de modo que a cidade pudesse refletir o prestígio da monarquia. Esta transformação do espaço foi acompanhada por uma transformação de ideias sobre a Europa e América que legitimaram o deslocamento da monarquia para o hemisfério sul. Em panfletos políticos impressos no Rio, o continente europeu foi frequentemente retratado como “ímpio, decadente, corrupto”, enquanto a América era tratada como virtuosa. A Coroa também subsidiou a publicação de literatura pró-monarquia, e subornou os autores de literatura antimonarquia para ficar em silêncio. Essa nova proximidade da família real alimentou nos brasileiros uma simpatia, ao menos localmente, pela monarquia. A Coroa garantiu o apoio da elite fluminense através da concessão de títulos reais para as pessoas mais ricas do Rio (Malerba, 2000). Durante séculos as populações coloniais comemoravam as coroações, casamentos, nascimentos e mortes de seus reis e rainhas distantes. Mas, depois de 1808, elas puderam ser testemunhas oculares desses eventos. Por exemplo, em 1818, grandes multidões de brasileiros se reuniram para assistir à coroação de Dom João como rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, após a morte de sua mãe (Schultz, 2001). O novo rei mantinha audiências regulares, em que pessoas de diferentes classes sociais e etnias, incluindo os escravos, tiveram a chance de pedir-lhe diretamente proteção (Schultz, 2001, 63-69; 194). Este tipo de acesso a Dom João forjava uma certa lealdade em seus vassalos brasileiros. No entanto, a supressão violenta de rebeliões que eram contra a autoridade da Coroa nos faz recordar do papel da força bruta desempenhado na preservação da monarquia Luso-Atlântica. A revolta de Pernambuco eclodiu em março de 1817, quando um grupo de fazendeiros e comerciantes ricos, nascidos no Brasil, junto de oficiais do exército, prenderam o governador da província e declararam Pernambuco uma república autônoma. Os líderes desta rebelião eram ávidos leitores de constituições estaduais e federais dos EUA, como Tiradentes tinha sido, e aspiravam criar um Estado independente nos moldes dos Estados Unidos da América (Schultz, 2001). A República de Pernambuco sobreviveu por dois meses antes da Coroa recuperar o controle da região. A marinha real do Rio posicionou o bloqueio do porto de Recife, fazendo com que os rebeldes ficassem privados de suprimentos, antes de mobilizar soldados leais para retomar a província. Para evitar que outras 304 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

rebeliões se desenvolvessem no futuro, a monarquia tornou crime o porte de armas, tornando efetivo o desarmamento da população local (Fitz, 2008). A Coroa também destruiu os quilombos perto da capital para sufocar as rebeliões negras (Cabral de Mello, 2004). Isto acabou por ser “uma considerável forma de modelar os limites do Estado, especialmente nas regiões mais afastadas.” (Bayly, 1989, 107). Todos os estudantes brasileiros de história sabem que a escravidão aumentou incrivelmente no Brasil durante a Era das Revoluções. Pelo menos 700 mil africanos foram vendidos como escravos no Rio de Janeiro, de 1790 a 1830 (Paquette, 2013, 323-324). Nem Brasil, nem Portugal testemunharam a emergência e a disseminação do movimento abolicionista nesse período. Como em Cuba, os imensos lucros gerados pela mão de obra escrava, quando se juntavam ao pavor da haitianização (alimentado pela presença de quilombos por todo o reino, como nos lembra o historiador Marcus de Carvalho (2016), foram fortalecendo, no contexto, a aliança entre as elites brasileiras e a monarquia. Naquela época, as elites brasileiras pareciam mais aptas a criticar a escravidão pelo impacto considerado adverso sobre a composição racial do país do que pela profunda imoralidade daquele sistema de produção (Cabral de Mello, 2004). Mas, enquanto o apoio à monarquia ganhou força no Brasil, ele perdia ímpeto em Portugal, na medida em que a metrópole deslocada irritava-se cada mais e mais com a ocupação britânica de suas cidades e a recusa da monarquia em voltar à Europa. A imprensa portuguesa lamentava o novo “estatuto humilhante, prejudiciale inábil” daquela outrora orgulhosa capital, agora legada ao estado “de uma colônia.” (Paquette, 2013, 77-80). À época, parecia que Portugal se transformaria em uma república, pois, em agosto de 1820, as elites do Porto formaram uma Junta e convocaram as Cortes para adotar uma nova constituição. O rei D. João regressou a Portugal para resolver a crise, deixando seu filho, D. Pedro, para governar o Brasil como regente. Em setembro de 1821, a corte portuguesa votou para abolir a condição de Reino do Brasil, de modo que o território sul-americano seria, mais uma vez, transformado em uma colônia governada a partir de Lisboa. Mas Pedro desafiou as Cortes e declarou o Brasil independente. Tão dramático como o grito do novo imperador de “Independência ou Morte”, às margens do riacho do Ipiranga, possa parecer ter sido, uma independência declarada por As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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um governante pertencente a uma família real europeia distava um longo caminho da decapitação de Luís XVI ou da independência orquestrada por ex-escravos no Haiti. Portugal entrou em guerra civil após a morte de D. João VI, em 1826. O herdeiro natural ao trono, aparentemente, seria Pedro. Escolhendo permanecer no Brasil, o imperador nomeou como rainha sua filha, Maria, à época com meros 7 anos de idade, e seu irmão Miguel, após muita negociação, como regente. Ambos estariam sob uma nova constituição, de matriz mais liberal. O país acabou dividido entre os partidários da filha, D. Maria, e os de seu tio, D. Miguel, que lançou um golpe de Estado para apoderar-se trono. O historiador Gabriel Paquette (2013, 235-315) descreveu o conflito como “a última revolução Atlântica”. Nem todas as revoluções da época eram contra a monarquia. O movimento para apoiar Miguel (“Miguelismo”) era composto por ideias heterogêneas e agendas vagamente unidas pela forte oposição ao espírito igualitário daquela época. O “Miguelismo” era xenófobo, particularmente “anglofóbico”, ultracatólico e procurava impor a volta da monarquia absoluta. A guerra terminou quando o Imperador do Brasil, D. Pedro, abdicou do trono brasileiro em nome de seu filho D. Pedro II e voltou para Portugal como rei. Assim, a Era das Revoluções conclui-se com Braganças no trono do Brasil e de Portugal. Significativamente, Paquette demonstra que as bases do crescimento futuro do império português foram estabelecidas durante aquela época. Em um momento em que a maioria das elites não poderia conceber Portugal sem colônias, os intelectuais começaram a explorar a possibilidade de que a África poderia se tornar “uma nova América” para Portugal. Em seu ensaio de 1834, Sebastião Xavier Botelho escreveu: “na África [...] podemos recuperar muito do que perdemos com a separação do Brasil de Portugal.” (Paquette, 2013, 101). A Era das Revoluções criou as condições para a África e outros territórios não conquistados do mundo fossem divididos entre impérios concorrentes ao longo do restante do século XIX (Osterhammel, 2014, 392-468).

Conclusão 306 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

As contradições gritantes da Era das Revoluções ficam mais claras quando aumentamos o zoom do Atlântico para uma área global. No final do século XVIII e início do século XIX, observados simultaneamente, temos, por um lado, a Revolução Haitiana que transforma a maior sociedade escravocrata do Caribe em um estado independente governado por ex-escravos e seus descendentes, e, de outro, a expansão sem precedentes da escravidão e o tráfico de escravos em Cuba, Brasil e em outros locais. Em todo o continente americano há uma onda de revoltas anticoloniais destruindo impérios seculares, empurrando as potências imperiais a expandir seus territórios agressivamente para locais ainda não conquistados ao redor do globo. Este capítulo demonstrou que esses processos foram dissonantes, emaranhados e influenciaram-se mutuamente. É impossível compreender os processos políticos que culminaram com maior liberdade para uma grande parte da humanidade sem confrontar os desenvolvimentos profundamente interligados que levaram à perda de liberdade e autonomia para outra grande parte da população mundial. (Bayly, 2004, 88).

Roteiro bibliográfico A Era das Revoluções O conceito de “Era das Revoluções” foi criado por R. R. Palmer em The Age of the Democratic Revolution: A Political History of Europe and America, 1760-1800 ed. David Armitage, (Princeton, 2014). Uma interpretação marxista muito importante desse conceito foi feita por Eric J. Hobsbawm, em The Age of Revolution: 1789-1848 (London, 1962). Tais estudos eram notavelmente eurocêntricos e anglocêntricos, pondo grande foco na Grã-Bretanha, suas colônias norte-americanas e na França. As dimensões atlânticas mais abrangentes da Era das Revoluções foram estudadas em Marcus Rediker e Peter Linebaugh: The Many-Headed Hydra: Sailors, Slaves, Commoners, and the Hidden History of the Revolutionary Atlantic (Boston, 2000); e em Wim Klooster: Revolutions in the Atlantic World: A Comparative History (New York, 2009). As dimensões globais dessa era foram estudadas por C. A Bayly, em The Birth of the Modern World, 1780-1914: Global Connections and Comparisons (Malden, MA, As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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2004); e por David Armitage e Sanjay Subrahmanyam: eds., The Age of Revolutions in Global Context, c. 1760-1840 (New York, 2010).

A Revolução Americana Para uma visão concisa da Revolução Americana, ver o relevante capítulo no livro de Wim Klooster: Revolutions in the Atlantic World: A Comparative History (New York, 2009); Para uma interpretação da Revolução vista de baixo, Chris Magra: “Anti-Impressment Riots and the Origins of the Age of Revolution,” International Review of Social History 58 (2013): 131-151. Estudos sobre o realismo incluem Maya Jasanoff: Liberty’s Exiles: American Loyalists in the Revolutionary World (New York: 2011); David J. Fowler: “Loyalty Is Now Bleeding in New Jersey: Motivations and Mentalities of the Disaffected,” em The Other Loyalists: Ordinary People, Royalism, and the Revolution in the Middle Colonies, 1763-1787 eds. Joseph S. Tiedemann, Eugene R. Fingerhut, and Robert W. Venables (Albany: 2009); e também os capítulos iniciais de Jane G. Landers: Atlantic Creoles in the Age of Revolutions (Cambridge, Mass: 2010). Como fonte primária publicada, ver David Armitage, The Declaration of Independence: A Global History (Massachusetts, 2007), que mostra a Declaração como um gênero e traça seu impacto transnacional. A ideia controversa de que a Revolução Americana assentou as fundações do império americano é apresentada por Eliga H. Gould: Among the Powers of the Earth: The American Revolution and the Making of a New World Empire (Cambride, Mass: 2012). Estudos sobre a expansão do imperialismo britânico depois da perda das 13 colônias incluem: P. J. Marshall’s: The Making and Unmaking of Empires: Britain, India, and America, C. 1750-1783 (Oxford: Oxford University Press, 2005); Emma Christopher: A Merciless Place: The Fate of Britain’s Convicts after the American Revolution (New York: 2011); Clare Anderson: Subaltern Lives: Biographies of Colonialism in the Indian Ocean World, 1790-1920 (Cambridge: 2012).

Rebelião de Tupac Amaru

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Leituras indispensáveis sobre a rebelião de Tupac Amaru incluem Alberto Flores Galindo: In Search of an Inca: Identity and Utopia in the Andes, (New York, 2010); e Charles F. Walker: The Tupac Amaru Rebellion (Cambridge, Massachussetts, 2014). Sobre a resposta da nobreza andina à rebelião, ver David Cahill, “Nobleza, Identidad y Rebelión: Los Incas Nobles Del Cuzco Frente a Túpac Amaru (1778-1782).” Historica XXVII, no. 1 (2003): 9-49. O impacto de longo prazo sobre a sociedade peruana é estudado por Charles F. Walker, em Smoldering Ashes: Cuzco and the Creation of Republican Peru: 1780-1840 (Durham, 1999). Uma excelente coletânea de fontes primárias pode ser encontrada em Ward Stavig e Ella Schmidt, eds. The Tupac Amaru Rebellion and Catarista Rebellions: An Anthology of Sources (Indianapolis, 2008).

As Revoluções Francesa e Haitiana Para panoramas sobre a Revolução Francesa, consultar o clássico de George Rudé: The Crowd in the French Revolution (1967), e William Doyle: The Oxford History of the French Revolution (Oxford, 2002). Uma importante coletânea de fontes primárias é encontrada em Tania Machado Morin: Virtuosas e Perigosas: as mulheres na Revolução Francesa (São Paulo, 2014). Estudos conectando a Revoluçao Francesa à Haitiana e outras rebeliões contemporâneas numa perspectivas mais abrangente de um mundo atlântico incluem: David Patrick Geggus e David Barry Gaspar eds., A Turbulent Time: The French Revolution and the Greater Caribbean (Bloomington, 1997) e Robin Blackburn, “Haiti, Slavery, and the Age of the Democratic Revolution,” The William and Mary Quarterly 63, no. 4 (2006): 643–73.

A dissolução do império da Espanha na América Muitos trabalhos mais recentes consideram a lealdade do império espanhol a Fernando VII no bojo da expansão napoleônica sobre a Espanha: cf., por exemplo, José María Portillo Valdés: Crisis Atlántica: Autonomía e Independencia en La Crisis de La Monarquía Hispana (Madrid, 2006); Scott Eastman: Preaching Spanish Nationalism across the Spanish Atlantic, 1759-1823. (Baton Rouge, 2012); e Jaime E. Rodríguez: We are As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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now the true Spaniards: Sovereignty, Revolution, Independence, and the emergence of the Federal Republic of Mexico, 1808-1824 (Stanford, California, 2012). Para uma visão sobre o funcionamento das Cortes de Cádiz, ver Marissa Bazán Díaz: La Participación Política de Los Índigenas Durante Las Cortes de Cádiz: Lima en El Ocaso Del Régímen Español (1808-1814) (Lima, 2013). Um importante estudo de caso das rebeliões que eclodiram na América durante as guerras napoleônicas foi feito por Eric Van Young: The Other Rebellion: Popular Violence, Ideology, and the Mexican Struggle for Independence, 1810-18 (Stanford, Califorina, 2001). Para as guerras (civis) subsequentes em torno da ideia de independência, ver Jeremy Adelman: Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic (Princeton and Oxford, 2007), 279-80; Marcela Echeverri, “Los Derechos de Indios y Esclavos Realistas y La Transformación Política en Popayán, Nueva Granada (1808-1820)” Revista de Indias LXIX, no. 246 (2009): 45-72.

Cuba: a ilha “sempre fiel” As conecções entre a revolução haitiana e a rápida expansão da produção açucareira e da escravidão são exploradas por Ada Ferrer: Freedom’s Mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution (New York Cambridge University Press, 2014). Para analisar a lealdade cubana à Espanha, sugerimos os capítulos iniciais de David Sartorius: Ever Faithful: Race, Loyalty, and the Ends of Empire in Spanish Cuba (Durham, 2013). Sobre o uso da violência por parte do Estado, cf. Matt D. Childs, The 1812 Aponte Rebellion in Cuba and the Struggle against Atlantic Slavery (Chapel Hill, 2006) e Michele Reid-Vazquez: The Year of the Lash: Free People of Color in Cuba and the Nineteenth-Century Atlantic World (Athens, Georgia, 2011).

A revolução monárquica no mundo Luso-Atlântico Para um panorama da historiografia sobre a independência do Brasil, cf. Jurandi Malerba: “As Independências do Brasil: ponderações teóricas em perspectiva historiográfica,” História, V.24, N.1 (2005), 99126, e os ensaios de István Jancsó, ed., Independência: história e historiografia (São Paulo, 2005). A Era das Revoluções no Estado da Índia 310 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

é notavelmente ausente de tais discussões. Para a rebelião de Goa em 1787, cf. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara: A Conjuração de 1787 em Goa, e Varias Cousas Desse Tempo (Nova Goa, 1875). Para a Inconfidência Mineira, Júnia Ferreira Furtado, “Seditious Books and Libertinism in the Captaincy of Minas Gerais (18th Century Brazil): The Library of Naturalist José Vieira Couto,” Revista Complutense de Historia de América 40 (2014): 115-16; e Karine Salgado, “O Direito no Brasil Colônia à luz da Inconfidência Mineira,” Revista Brasileira de Estudos Políticos 98 (2008): 479-93. Importantes estudos sobre a transferência da Corte ao Brasil incluem: Jurandir Malerba: A Corte no exílio: Civilização e Poder no Brasil às vésperas da independência, 1808 a 1821 (São Paulo, 2000); e Kirsten Schultz: Tropical Versailles: Empire, Monarchy, and the Portuguese Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821 (New York, 2001). Para a revolta em Pernambuco, consultar Evaldo Cabral de Mello: O nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial de 1817 a 1824 (São Paulo, 2004); Marcus J. M. Carvalho, “O outro lado da Independência: quilombolas, negros e pardos em Pernambuco (Brazil), 1817–23,” LusoBrazilian Review 43, no. 1 (2006), 1-30. As histórias interconectadas de Portugal e Brasil na Era das Revoluções são analisadas por Gabriel Paquette, em Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions: The Luso-Brazilian World, C. 1770-1850 (Cambridge, 2013).

Extratos de documentos Trechos da Carta do Governador Geral das Ilhas Filipinas Mariano Fernández de Folgueras ao Senhor Presidente e vocais da Suprema Junta de España e Indias que governa a mando de Sua Magestade Fernando VII ( Manila, 25 de Abril de 1809) Arquivo Nacional das Filipinas, Cartas 2195 Os trechos a seguir são da carta do Governador Geral das Filipinas Mariano Fernández de Folgueras enviada para a Junta Central da Espanha em abril de 1809. Nesta comunicação, o Governador confirma que recebeu a notícia da Coroação de Fernando VII e, em seguida, da invasão francesa da Espanha, e descreve as respostas patrióticas e fortemente leais de Manila a esses eventos. De muitas maneiras, a reação de Manila para as crises na Europa refletiu a de outras capitais coloniais do império global da Espanha: afirmanAs Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

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do abertamente a fidelidade política aos seus monarcas, enquanto estavam ausentes, por meio da criação de uma junta local. A lealdade de Manila é ainda mais siginificativa quando consideramos a grande distância entre a colônia (a única capitania espanhola na Ásia) e a metrópole. Esta carta lança dúvidas sobre as alegações de que o Império Espanhol estava enfraquecido em 1809 e que sua dissolução era inevitável. É claro que os historiadores devem considerar a possibilidade do Governador ter exagerado o amor da população colonial pelo seu Rei. Mas o fato de Manila ter levantado quase 200 mil reales em doações para a guerra contra Napoleão, de pessoas físicas e jurídicas, incluindo de milícias, confrarias e de ordens religiosas, enviados para a Junta Central com esta carta, sugere que a lealdade ao monarca distante era importante naquele momento. El resultado de esta Junta (y en el momento de terminarse) se anunció al Publico por repetidas salvas de toda la Artilleria de la Plaza, y por la harmonia de las Musicas miltares de los Cuerpos de la Guarnicion á que correspondio el Pueblo con un enthusiasm tál que sin embargo de esta ostension publica equivalente á la mas formal proclama por la sincera miró con impacienca las horas que se tardaban en verificar el acto de ceremonia. Semejantes sentimenos, que no pude ver sin el goze y effusion de Corazon, que es propio de un buen español, me hizo precipitar los apressos del acto de Proclamacion, y el Aytuntamiento de la N[uestra] C[iudad] correspondió con su acostumbrada eficacia y lealtad á terminus que superando las demoras que necesarriamente traen consigo los preparativos publicos, se verificó con la debida solemnidad y Pompa el acto publico entre las aclamaciones y vivas mas afectuoso dirigidos á nuestro amado y deseado Rey y Señor Don Fernando 7o, haviendo durado las iluminacciones, salvas de Artilleria y Fusileria, y demas funciones publicas quarto dias consecutivos. En fin, Serenismo Señor, nuestros corazones han sido los que hán proclamado al Rey, se hán manifestado dignos de ser españoles, y hán reconosido los sabios y patrioticos trabajos de vuestra alteza unidos con los esfuerzos, valor, y acendrada lealtad de la grande Nacion española como los salvadores de la Patria... En fin, Serenisimo Señor, los votos, los deseos, y el anhelo de todos los que havitamos las Islas Filipinas son unos mimos y todos diri312 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2

gios á la mas pura y sincera fidelidad á nuesro armado y deseado Rey, y Señor Don Fernando 7o: á complacernos en la cierta y lisongera idea de que á estas horas de halla tranquilo en el seno de su armada España por las sabias disposissiones de vuestra alteza por la energia, y heroic valor de la mayor de las Naciones: á mirar con una Santa embidia la Gloria de que se cubren los españoles que pisar el terreno de las españas de que nos hallamos privados por la inmensa distancia, y mares que nos separan: y ambicionar con la sinceridad de nuestros corazones los momentos en que acredito con nuestra sangre que somos dignos vasallos del mayor y mas armado de los monarcas. An Account of the Treason and Sedition, Committed by the London Corresponding Society, the Society for Constitutional Information, the Other Societies: ... And the Whole of the Two Reports, Presented to the Hon. House of Commons, by the Secret Committee. London: Printed for J. Downes, No.240, Temple-Bar, Strand, 1794.

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