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Portuguese Pages [137] Year 1998
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ANO 1000, ANO 2000 NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto . Assessor Editora! Jézio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editora! Acadêmico Aguinaldo José Gonçalves Álvaro Oscar Campana Antonio Celso Wagner Zanin Carlos Erivany Fantinati Fausto Foresti José Aluysio Reis de Andrade Marco Aurélio Nogueira Maria Sueli Parreira de Arruda Roberto Kraenkel Rosa Maria Feiteiro Cavalari Editor Executivo Tulio Y. Kawata Editoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti Maria Dolores Prades
GEORGES DUBY
ANO 1000, ANO 2000 NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
TRADUÇÃO
EUGÊNIO MICHEL DA SILVA MARIA REGINA LUCENA BORGES-OSÓRIO REVISÃO DO TEXTO EM PORTUGUÊS
ESTER MAMBRINI
FUNDAÇÃO
Copyright © 1995 by Les éditions Textu el Títu lo original e m francês: An 1000 an 2000.
Sur les traces de nos peurs. Copyright © 1998 da tradu ção brasileira: Fundação Edito ra da UNESP (FEU) Av. Rio Branco, 1210 01206-904 - São Paulo - SP Tei./Fax: (011) 223-9560
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Cãmara Brasileira do Livro , SP, Brasil) Duby, Georges Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos I Georges Duby; tradução Eugênio Michel da Silva, Maria Regina Lucena Borges-Osório; revisão do texto em português Ester Mambrini. - São Paulo : Fundação Editora da UNESP, 1998. - (Prismas)
Título original: An 1000 an 2000. Sur les traces ele nos peurs. ISBN 85-7139-180-7
1. Europa - Condições sociais até 1492 2. Medo - Aspectos sociais - História 3. Medo - História I. Títu lo. li. Série. 11
98-0939.
CDD-152.4609
Índice para catálogo sistemático: 1. Medo: História: Psicologia
152.4609
Editora afiliada:
Associaclón de t Universltarias
A.;,;soctação Drasücira de
de América LaUna y cl Caribc
Editoras Univcrsi l ári(!S
SUMÁRIO
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Prefácio Introdução Medos medievais, medos de hoje: um paralelo legítimo?
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O medo da miséria
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O medo do outro
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O medo das epidemias
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O medo da violência
•.
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O medo do além ANO 1000, ANO 2000. NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
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PREFÁCIO Para que escrever a história, se não for para ajudar seus contemporâneos a ter confiança em seu futuro e a abordar com mais recursos as dificuldades que eles encontram cotidianamente? O historiador, por conseguinte, tem o dever de não se fechar no passado e de refletir assiduamente sobre os problemas de seu tempo. Quando Michel Faure, para L'Express, e François Clauss, para Europe 1, solicitaram-me que dialogasse com eles, considerei útil confrontar minha experiência de historiador à sua experiência de jornalistas, sobre o que sei do ano 1000 quanto aos medos do ano 2000. Útil e legítimo. As pessoas que viviam há oito ou dez séculos não eram nem mais nem menos inquietas do que nós. Em que esses homens e mulheres acreditavam, seus sentimentos, como eles viam o mundo? A história, da maneira como é escrita hoje, esforça-se para descobri-lo, para penetrar no espírito de uma soçiedade para a qual o invisível estava tão presente, era tão digno de interesse que detinha tanto poder quanto o visível. É nisso principalmente que ela se distancia da nossa sociedade. Não apenas discernir as diferenças, mas também as semelhanças entre o que a amedrontava e o que tememos pode permitir-nos, tenho certeza, afrontar com mais lucidez os perigos de hoje.
Georges Duhy ANO 1000, ANO 2000. NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
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Medos medievais, medos de hoje: um paralelo legítimo?
Estudar e escrever a história para descobrir a vontade divina: tal é a ambição dos membros da Igreja, como aqui o monge Ruodprehet. Os anais consignam os fatos marcantes e testemunham as inquietudes dos homens perante todo desregramento da natureza. Psautier d'Egber, bispo de Treves. Cividale del Friuli, Biblioteca do Museu Arqueológico Nacional.
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ffi
Traçar um paralelo entre a Idade Média e a aurora do Terceiro Milênio para tratar dos medos de ontem e de hoje parece-lhe legítimo?
ffi O senhor percebe hoje,
no seio da sociedade, um sentimento de medo que poderia aproximarse de um sentimento de mil anos atrás?
Ü s homens e as mulheres que viviam há mil anos são nossos ancestrais. Eles falavam mais ou menos a mesma linguagem que nós e suas concepções de mundo não estavam tão distanciadas das nossas. Há, portanto, analogias entre as duas épocas, mas existem, também, diferenças, e são elas que muito nos ensinam. Não são as semelhanças que vao nos impressionar, são as variações que nos levam a fazer-nos perguntas. Por que e em que mudamos? E em que o passado pode dar-nos confiança?
Nossa sociedade é inquieta. O próprio fato de que ela se volta resolutamente na direção da sua memória é uma prova disso. Os franceses jamais comemoraram tanto. Todas as semanas festeja-se aqui e ali o aniversário de alguma coisa. Se nos apega"" mos dessa maneira à memória dos acontecimentos ou dos grandes homens de nossa história, é também para retomar confiança. É por isso que uma inquietação, uma angústia, está escondida em nosso íntimo.
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introdu ão
ffi Para compreendermos os medos de nossos ancestrais, são suficientes os dados do conhecimento sobre a Idade Média?
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Esse período de nossa história está distante e as informações são raras. É preciso, portanto, considerar a Idade Média no seu todo. Constatamos que essa sociedade foi movida, entre o ano mil e o século XIII, por um progresso material fantástico, comparável ao desencadeado no século XVIII e que prossegue até hoje. A produção agrícola multiplicou-se por cinco ou seis vezes e a população triplicou em dois séculos, nas regiões que constituem a França atual. O mundo mudava muito rapidamente. A circulação dos homens e das coisas acelerava-se. Depois, na metade do século XIV, entrou-se numa fase de quase estagnação que durou até a metade do século XVIII. Assim, por exemplo, nenhum progresso notável intervém nos transportes entre o reinado de Filipe Augusto e o de Luís XVI, a duração do trajeto de Marselha a Paris mantém-se quase a mesma durante cinco séculos. Percebemos, também, bastante claramente, a evolução das mentalidades. Nesse período de grande crescimento, como ocorre atualmente, os filhos não pensavam da mesma forma que os pais, mesmo que essa sociedade muito hierarquizada cultivasse, de maneira fundamental , o respeito aos anciãos. Veja: eis uma diferença em relação aos dias de hoje. Todavia, não podemos responder a todas as questões que nos colocamos sobre a Idade Média. Para comparar o homem medieval e o homem atual, quanto aos seus temores, é necessário abrir-se um pouco o campo, a fim de recolherem-se indicações e fatos suficientes.
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introdu ão
É preciso, também, tentarmos esquecer o que pensamos e colocarmo-nos na pele dos homens de oito ou dez séculos atrás, para penetrar na civilização da Idade Média, tão diferente da nossa. Ninguém duvidava , naquela época, que houvesse um outro mundo, além das coisas visíveis. Impunha-se, então, uma evidência: os mortos continuam a viver nesse outro mundo. Postas à parte as comunidades judaicas, todo o mundo estava convencido de que Deus havia se encarnado. Todas as culturas - emprego o plural porque junto à cultura dos membros da Igreja existiam, também, uma cultura guerreira e uma cultura camponesa - são dominadas pelas mesmas angústias em relação ao mundo. Elas partilham um sentimento geral de impotência para dominar as forças da natureza. A cólera divina pesa sobre o mundo e pode manifestar-se por este ou aquele flagelo . O que conta essencialmente é garantir a graça do céu. Isso explica o poder extraordinário da Igreja, dos servidores de Deus na terra , pois o Estado , tal como o concebemos hoje, não existia. O direito de comandar, fazer justiça, proteger, explorar o povo dispersava-se entre vários pequenos núcleos locais. Os chefes, esses homens que empunhavam a espada, a espada da justiça, sentiam-se os representantes de Deus, encarregados da manutenção da ordem que Deus quer fazer respeitar na terra.
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introdu ão
~ A consciência da
história existia na Idade Média? Tentava-se abstrair ensinamentos dela?
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Evidentemente. O que diferencia mais claramente a civilização européia das outras é que ela é essencialmente historicizante, ela se concebe como estando em processo. O homem do Ocidente tem o sentimento de que progride em direção ao futuro e, assim, ele é muito naturalmente levado a considerar o passado. O cristianismo, que impregnou fundamentalmente a sociedade medieval, é uma religião da história. Proclama que o mundo foi criado num dado momento e que, num outro, Deus fez-se homem para salvar a humanidade. A partir disso, a história continua e é Deus quem a dirige. Para conhecer as intenções divinas é necessário, portanto, estudar o desenrolar dos acontecimentos. É isso o que pensavam os homens cultos, os intelectuais daquela época, ou seja, os membros da Igreja. Todo o saber estava em suas mãos. Um monopólio exorbitante. Em um grande número de instituições religiosas, mosteiros ou catedrais, escreveu-se, portanto, a história, e sob diferentes formas. De maneira geral, anotavam-se simplesmente os acontecimentos marcantes ao longo do ano: em tal ano irrompeu uma tempestade extraordinária, as colheitas foram tardias, tal papa morreu, uma epidemia alastrouse, 6 telhado do dormitório ruiu. Assim tomava forma o que chamamos de anais. Mas, às vezes, ia-se mais longe. Um dos monges ou cônegos encarregava-se de compor verdadeiramente uma história. Os acontecimentos do passado eram retomados e colocados em ordem. Desse gênero de escritos vem
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intro~u~ão
uma grande parte do que sabemos daquele tempo. Provavelmente nós o conheçamos também pelas contribuições da arqueologia, pelos vestígios da existência dos homens que encontramos ao escavarmos a terra. Entretanto, se a Idade Média não nos parece estranha, é porque os sábios se encarregaram de escrever a história. Sabemos muito mais sobre os séculos XI e XIII europeus do que a respeito da história da Índia, por exemplo, ou da África, porque não havia, nessas regiões do mundo, a mesma vontade de registrar com exatidão o que acontecia de notável no decorrer dos dias.
ffi O que os membros da
Igreja procuravam no passado?Compreender a história dos homens ou os indícios de Deus?
ffi
Quais eram os sinais que os alenavam e como eram intetpretados?
Somente os servidores de Deus sabiam escrever e ler, e consideravam como seu dever explicar a história, de maneira a nela detectar os sinais de Deus. Estavam convencidos de que não há barreiras estanques entre o mundo real e o sobrenatural, que existem sempre passagens entre ambos e que Deus se revela naquilo que Ele criou, na natureza, mas também na maneira pela qual orientou o destino da humanidade. Encontravam-se, portanto, no exame dos fatos do passado, espécies de admoestações divinas.
Tudo o que parecia ser um desregramento na natureza era considerado um sinal anunciando os tormentos que deviam preceder o fim do mundo. Dou um exemplo: todo o mundo pensava que, segun-
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introdu~ão
do a vontade divina, a trajetória dos astros é regular. O surgimento de um cometa, isto é, de uma irregularidade, suscitava a inquietação. Um dos cronistas daquele tempo conta que, num ano, viramse no céu estrelas que se batiam umas contra as outras. Uma delas era enorme e lançava faíscas, a outra, menor, girava ao seu redor. Um outro evoca uma baleia "grande como uma ilha", avistada no Canal da Mancha. Ver surgirem bruscamente animais de dimensões anormais, monstros, fazia pensar que alguma coisa não estava bem no mundo, que ele se desorganizava. Por meio de todos esses acidentes, Deus enviava mensagens. Ele conclamava a manter-se alerta. E cabia aos sábios interpretar esses sinais e explicar o seu significado.
Para os monges do ano 1000, o mundo tem uma idade que os textos da Escritura Sagrada permitem calcular. OApocalipse anuncia como e quando o mundo acabará. Beatus de Liebana, Commentaire de I'Apocalypse (manuscrito F117/2E, f.117 v.). Soria, Burgo Osmo Catedral.
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introdu~ão
ffi A aproximação do
milênio era uma fonte de inquietação?
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Os terrores do ano 1000 constituem uma lenda romântica. Os historiadores do século XIX imaginaram que a aproximação do milênio tinha suscitado uma espécie de pânico coletivo, que as pessoas morriam de medo, que elas liquidavam tudo o que possuíam. Isso é falso. Temos, de fato, apenas um testemunho. Um monge da abadia de Saint-Benoitsur-Loire escreve: "Ensinaram-me que, no ano de 994, os padres anunciavam em Paris o fim do mundo". O monge do qual falo escreve quatro ou cinco anos mais tarde, exatamente antes do ano 1000. "Eles estão loucos", acrescenta. "Basta abrir o texto sagrado, a Bíblia, para ver, Jesus o disse, que jamais se saberá o dia, nem a hora. Predizer o futuro, pretender que esse acontecimento terrível que todo o mundo espera vá produzir-se em tal momento, é ir contra a fé." Estou certo de que existia, ao término do Primeiro Milênio, uma espera permanente, inquieta, do fim do mundo, porque o Evangelho anuncia que Cristo voltará um dia, que os mortos ressuscitarão e que ele fará a escolha entre os bons e os maus. Todo o mundo acreditava nisso e aguardava o dia da cólera que provocaria, evidentemente, o tumulto e a destruição de todas as coisas visíveis. No Apocalipse, lia-se que, quando mil anos tivessem decorrido, Satã seria libertado de suas correntes e viria, então, o Anticristo. E ver-se-ia surgir dos confins do mundo, desses lugares desconhecidos, perdidos no horizonte, para leste ou para o norte, hordas assustadoras. O Apocalipse suscitava o temor, assim como
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introdu(âo
a esperança. Porque, após as atribulações, começaria um período de paz que precederia o Juízo Final, uma era menos difícil de viver do que a cotidiana. Dessa crença alimentava-se o que chamamos de milenarismo. Quando o véu se rasgasse, iria descortinar-se um longo período em que os homens viveriam finalmente felizes, na paz e na igualdade. Repito: o homem medieval estava num estado de fraqueza extrema perante as forças da natureza, vivia numa privação material comparável àquela dos povos mais pobres da África negra contemporânea. A vida era rude e dolorosa para a maioria das pessoas. Estas tinham, portanto, a esperança de que, passado um período de provações terríveis, a humanidade se dirigiria seja para o paraíso, seja para esse mundo, livre do mal, que deveria instaurar-se após a chegada do Anticristo.
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Omedo da miséria
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No ano 1000, a miséria é geral, por isso suportável. Mas, a partir do século XII, a miséria atinge mais fortemente uma boa parte da população. Asociedade medieval, muito rígida, é, no entanto, amplamente fraternal. Siena, Hospital Santa Maria della Scala, Sala dos Peregrinos. Afresco de Domenico Di Bartolo, 1443.
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O ventre contraído pelo temor da privação)
pelo medo da fome e do amanhã) assim segue o homem do ano 1000) mal alimentado) penando para) com suas ferramentas precárias) tirar seu pão da terra . Mas esse mundo difícil) de privação) é um mundo em que a fraternidade e a solidariedade garantem a sobrevivência e uma redistribuição das magras riquezas. Partilhada) a pobreza é o quinhão comum. Ela não condena) como hoje) à solidão o indivíduo desabrigado) encolhido
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Desabrigados em Londres. Aalguns passos da City, os excluídos do desenvolvimento já não esperam mais nada. Oindividualismo venceu a solidariedade.
numa plataforma de metrô ou esquecido numa calçada. A ·verdadeira miséria aparece mais tarde, no século XII, bruscamente, nos arredores das cidades onde se amontoam os marginalizados. Vindos dos campos para aproveitar a forte onda de crescimento que sacode a Idade Média, eles encontram as portas fechadas. Desse abandono nasce um novo cristianismo, o de Francisco de Assis, predecessor dos padres operários e do abade Pierre. ANO 1000, ANO 2000- NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
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da miséria
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Na França atual, existe um medo muito forte, o medo da miséria. Como ele era na Idade Média?
O equipamento dos agricultores do ano 1000 é precário. Eles lavram a terra com arados de madeira endurecida ao fogo. No século XI, o uso do ferro e de charruas como esta se difunde e leva ao crescimento da produtividade das terras. Manuscrito NAF 24541 (f.172). Paris, Biblioteca Nacional.
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A grande maioria das pessoas vivia no que seria, para nós, uma extrema pobreza. As descobertas arqueológicas mostram isso claramente. Às margens de um lago, na região de Dauphiné, foram reveladas recentemente as fundações de um conjunto de casas que permaneceram preservadas em razão de uma elevação das águas do lago. Muitos objetos foram ali encontrados. Uma comunidade de guerreiros e agricultores ali vivia, por volta do ano 1000. Temos sob os olhos as ferramentas das quais eles estavam munidos e damo-nos conta de como esse equipamento era precário. Por exemplo, havia muito poucos utensílios de ferro. Quase tudo era de madeira. Os camponeses lavravam a terra com arados dotados de uma relha em madeira endurecida ao fogo, como na África. Assim, para cada grão semeado, ficava-se muito feliz em colher dois e meio. A produtividade da terra era ridiculamente fraca. Havia uma imensa dificuldade para se tirar dela o sustento. É preciso imaginar esses homens e essas mulheres vestidos, em grande parte, com peles de animais, mas não mais bem alimentados do que na época neolítica - falo das pessoas do povo, pois essa sociedade era estritamente hierarquizada. Os trabalhadores eram esmagados sob o peso de um pequeno grupo de exploradores, homens da guerra e homens da Igreja, que saqueava quase todo o excedente da produção. O povo vivia permanentemente no temor do amanhã. Em contrapartida, não podemos falar de miséria verdadeira, pois as relações de solidariedade e fraternidade faziam que
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a pouca riqueza fosse redistribuída. Essa terrível solidão do miserável que vemos hoje em dia, no metrô, não existia.
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miséria
ffi Essa solidariedade
parece-lhe constituir uma diferença importante?
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Fundamental. Como as sociedades africanas, as medievais eram sociedades de solidariedade. O homem estava inserido em grupos: o grupo familiar, o da aldeia, o senhorio, que era um organismo de exação, mas também de segurança social. Quando sobrevinha um período de fome, o senhor abria seus celeiros para alimentar os pobres. Esse era seu dever e ele estava convencido disso. Esses mecanismos de ajuda mútua evitaram, nessas sociedades, a miséria terrível que conhecemos hoje. Existia o medo da penúria repentina, mas não havia a exclusão de uma parte da sociedade lançada ao desespero. Era gente muito pobre, mas unida . Os mecanismos de solidariedade comuns a todas as sociedades tradicionais desempenhavam plenamente seu papel, como atualmente na África negra. Os ricos tinham o dever de dar e o cristianismo estimulava esse dever de ajudar os outros.
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I ·! ffi Desconhecia-se a
solidão, na sociedade medieval?
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Essa sociedade era gregana: os homens v1v1am em bandos. Quando penetramos na vida privada de nossos longínquos ancestrais, percebemos que estavam sempre acompanhados: dormiam em grande núme!o no mesmo leito , não havia paredes de verdade no interior das casas, apenas cortinados. Eles jamais saíam sozinhos; desconfiava-se daqueles que o faziam: eram loucos ou cri-
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da miséria
minosos. Viver assim é difícil, mas também muito consolador. Esses eremitas que penetravam na floresta para expiar seus pecados eram considerados santos, porque isolar-se era um ato de coragem absolutamente excepcional.
8 Como era a realidade das crises de fome, logo após o Primeiro Milênio?
Conservamos a narrativa de uma crise de fome que ocorreu em 1033, na Barganha, muito célebre entre os historiadores, pois foi descrita e explicada por um cronista, um monge da congregação de Cluny. No início, diz ele, houve intempéries excepcionais, tinha chovido tanto que não se pôde semear nem lavrar a terra, de tal modo que a colheita foi péssima. Havia-se guardado um pouco de grãos para as sementes, mas, no ano seguinte, a mesma coisa. Chuva, chuva, chuva ... E no terceiro ano, mais nada. Então, diz ele, foi assustador, comia-se qualquer coisa. Quando se comeram as ervas, os cactos; quando se acabou de comer as aves, os insetos, as serpentes; então, conta ele, as pessoas puseram-se a comer terra e, depois, comeram-se umas às outras. Desenterravam os mortos para comê-los. Acho que ele exagera. Enfim, como saber? Em todo caso, vemos agir a solidariedade. Esvaziaram-se os tesouros das igrejas para comprarse o grão que os especuladores guardavam em suas casas e vendiam a preço alto, e houve esforços para alimentar os mais desafortunados. Isso não
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bastou. O cronista termina afirmando - e isso é muito importante sobre a concepção do mundo naquela época - que a solução era fazer penitência. O céu enviava esse flagelo, era preciso aplacar a cólera de Deus e prostrar-se diante Dele, lamentar seus próprios pecados. O medo permanente da fome origina uma espécie de sacralização do pão, o dom essencial que Deus dá aos homens. "O pão nosso de cada dia nos dai hoje ." Isso durou muito tempo. Eu me lembro de minha avó, que fazia uma cruz sobre o pão antes de cortá-lo. Juntava-se todas as migalhas da mesa. Teria parecido impensável, vergonhoso, colocar o pão dormido na lixeira ou lançá-lo aos pássaros. Na Idade Média, e também no campo, há cem anos, esses gestos teriam sido vistos como um sacrilégio, no sentido próprio do termo. Nós ainda vivemos, durante a última guerra, esse medo da falta de alimento.
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ffi É essa mesma
inquietação que reaparece hoje com todos os apelos à solidariedade, a cada inverno, entre as pessoas que não têm o que comer, nem onde se abrigar...
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Os "Restos du coeur" ["Restaurantes do coração"], é isso. É efetivamente a tomada de consciência de que há pessoas que morrem de fome e que, amanhã, podemos estar em seu lugar. É essa inquietação que nQS ronda na França hoje, essa angústia diante do desemprego, que nos leva a perguntar: "será que eu mesmo, _será que meus filhos não vamos estar amanhã desabrigados, alimentados com a sopa popular?". Esse medo da privação oprimia
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da miséria
até o ventre os homens do século XI. Penso que ele não parou de torturá-los ao longo dos tempos. Acredito, entretanto, que se tinha muito mais confiança na solidariedade ontem do que .hoje. Infinitamente mais. Sempre existiram egoístas, pessoas que guardam as coisas para si, é evidente. Mas penso que a confiança num gesto natural de solidariedade, de partilha, estava ancorada no espírito dos homens daquele tempo. Estou convencido disso.
8 Irromperam revoltas de miseráveis na Idade Média?
Que eu saiba, não houve revoltas provocadas pela fome nos campos. É preciso lembrar que a França do ano 1000, e depois do ano de 1200, a de Filipe Augusto e de São Luís, estava arrebatada por um movimento de crescimento material extraordinário. Os ferreiros haviam-se espalhado pelas aldeias no século XI, relhas de ferro eram forjadas em todos os lugares, assim a produtividade das terras cresceu consideravelmente. Comia-se cada vez melhor nas choupanas, às vezes até mesmo pão branco. Além disso, os homens e as mulheres tinham adotado o costume de vestir-se com tecidos. O progresso era traduzido, principalmente, pela urbanização, o ren~cimento das cidades, que quase morreram na civilização puramente agrária, rural, da alta Idade Média. E foi nos arredores das cidades em crescimento, no século XII, que a miséria apareceu . Repentinamente. Como uma coisa intolerá-
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miséria
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vel. Isso era conseqüência da migração dos camponeses para a cidade. Na periferia, onde chegavam esses migrantes desenraizados, a solidariedade primitiva estava destruída. Eles tinham deixado · suas famílias para ir tentar a sorte na cidade, não tinham mais ao seu redor os primos, a paróquia . Estavam sós, dignos de pena. E o espetáculo de
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da miséria
sua mtsena provocou o rápido desenvolvimento de instituições de caridade e albergues. Foram criadas, para abrigá-los, Santas Casas, como aquela de Paris. Formaram-se as confrarias, as associações de socorro mútuo, reconstituindo uma malha de soli. dariedade nos novos bairros.
'li Essa miséria
desencadeou uma renovação do cristianismo?
Oaumento da população dos campos espalha-se pelas cidades que crescem. Constroem-se alojamentos, geralmente de madeira, à exceção dos templos. Porém, progressivamente, o pedreiro toma o lugar do carpinteiro. A fabricação de tijolos é feita no canteiro de obras, por economia e praticidade. Bible d'Utrecht (ms. Add. 38122, f.78 v.). ondres, Biblioteca Britânica.
É nesse momento, ao fim do século XII, que aparece Francisco de Assis, o homem que encarna uma transformação radical do cristianismo. Francisco quis viver humildemente com os pobres. Os novos religiosos não queriam mais ser alçados ao topo da hierarquia como os padres e os monges o eram na civilização rural, simples e calma do século XI . Ocorreu uma verdadeira reformulação do cristianismo diante dos novos problemas criados por uma espécie de efervescência da miséria. Um historiador italiano dizia que a história do cristianismo é dominada por duas figuras, a de Jesus e a de Francisco de Assis. Este último é como que um símbolo, uma grande testemunha. É verdade que o cristianismo muda radicalmente depois de 1200. Antes, ele era, para a maioria das pessoas, um conjunto de ritos, de cerimônias conduzidas por homens instalados muito confortavelmente, convencidos de dominar toda a sociedade, e que os outros, os fiéis, de longe, olhavam cantar juntos as orações e os hinos. Depois, os homens de Deus conclamaram a
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miséria
Páginas precedentes. No século XII, as cidades viram afluir massas de migrantes sem laços afetivos. As instituições de caridade e albergues desenvolveram-se, então, na Europa, para substituir a solidariedade inicial doravante suprimida. Aqui, os cuidados aos feridos prestados no Hospital Santa Maria della Scala, em Siena. Siena, Hospital Santa Maria della Scala, Sala dos Peregrinos. Afresco de Domenico Di Bartolo, 1443.
Os males atingem freqüentemente os homens e as calamidades excepcionais são, no espírito cristão, provações enviadas por Deus. Acaridade religiosa encarrega-se de aliviá-los. Aqui, cônegos dando pão aos miseráveis. Siena, Hospital Santa Maria della Scala, Sala dos Peregrinos. Afresco de Domenico Di Bartolo, 1443.
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viver segundo o Evangelho. A ação do abade Pierre, ou a iniciativa dos padres operários, dos quais se perdeu um pouco a memória, situa-se na mesma direção daquela de São Francisco. Esses homens consideravam que, como Cristo, deviam viver com os mais desafo rtunados e tentar despertar o espírito dos ricos para que seguissem seu exemplo e saíssem de sua confortável boa consciência. Os irmãos mendicantes, os dominicanos e os franciscanos agiram assim, animados pela vontade de seguir o exemplo de Cristo, de serem pobres entre os pobres. Eles não viviam de sua renda como os cônegos da catedral; iam mendigar seu pão. Ou, então, trabalhavam para ganhá-lo. Eles nada possuíam e nada queriam possuir. No início, os franciscanos e os dominicanos· eram também indivíduos sem domicílio fixo . Quando foram obrigados a viver em mosteiros, eles os construíram nos arrabaldes, o mais próximo da miséria. Descobrir a miséria, a verdadeira, fez surgir, portanto, novas maneiras de viverem sua religião. Parece-me que hoje, diante da ascensão da miséria que os poderes públicos não conseguem conter, aparece um revigoramento da solidariedade. Apesar do enfraquecimento da prática religiosa, permanece o sentimento de que é preciso ajudar o seu próximo, e esse sentimento, parece, é mais forte entre os pobres. Observe a Argélia de hoje. O que é que explica o sucesso da Frente Islâmica da Salvação, a FIS? Os militantes islâmicos, aplicando um dos preceitos do Alcorão, reconstituíram redes
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eficazes de solidariedade que preenchem uma função de assistência social que o Estado laico não consegue assegurar.
7 Os irmãos mendicantes constituíam uma ameaça, uma contestação da ordem estabelecida por parte da Igreja?
São os primórdios da Reforma que aparecem aqui. Quando os primeiros franciscanos chegaram a Paris, por volta de 1230, as pessoas perguntaramse quem eles eram e o que faziam. Eles foram confundidos com hereges. Aliás, sua maneira de viver na pobreza, trabalhando com suas mãos como os
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miséria
primeiros discípulos de Cristo, evidenciava os defeitos da Igreja institucionalizada. Esta última defendeuse, recrutou-os e esforçou-se em apagar o aspecto contestatório de Francisco de Assis. Contudo, a boa semente estava lançada, e frutificou.
ffi A que se assemelhavam
esses primeiros arrabaldes, nos quais os irmãos mendicantes trabalhavam para aliviar a miséria? De onde provinham seus habitantes? Como viviam?
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O subúrbio? No começo, é um amontoado de abrigos muito precários, uma favela, e disso, após oito séculos, nada resta. Os arqueólogos não encontram seus vestígios. O historiador tem, portanto, de imaginar, e ele tem esse direitç>. Ele vê a vida dessa gente como a dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro. De onde provinham? Vinham do campo circundante, empurrados para fora de suas terras pelo crescimento demográfico, que foi o motor essencial do progresso fantástico de que falava há pouco. Uma demografia comparável àquela dos países mais prolíficos do Terceiro Mundo atual, com taxas de mortalidade infantil muito elevadas. Um quarto das crianças morria antes dos cinco anos e outro quarto, antes da puberdade. Mas, apesar de tudo, os nascimentos eram tão numerosos que havia crescimento da população, e os indivíduos que tinham atravessado os perigos da infância e da adolescência eram resistentes. Desde algum tempo, os historiadores da Idade Média reconsideraram a idéia de que os homens daquela época morriam cedo. Escavando os cemitérios, encontraram-se esqueletos, muitos dos quais são de idosos.
ANO 1000, ANO 2000. NA PISTA DE NOSSOS MEDOS
ffi Esse crescimento
demográfico era o sinal de uma confiança no futuro, de um otimismo coletivo?
Espremida atrás de suas muralhas na alta Idade Média, a cidade transborda, n; século XII, pelo afluxo dos camponeses. Do lado de fora dessas muralhas, burgos e subúrbios espalham·se, como mostra o croqui de Moulins no I'Allier, na segunda metade do século XV. Guillaume Revel, Armo ria I d' Alivergne, Moulins (Ms. franceses 22297). Paris, Biblioteca Nacional.
Todas as avaliações sobre a população são extremamente conjecturais. O que posso dizer com alguma segurança é que a população da França, provavelmente , tenha se multiplicado por três, entre o ano 1000 e o ano de 1300. No ano de 1300, o espaço ocupado pela França atual era, certamente, povoado por 20 milhões de habitantes. Era o país mais populoso da Europa. A Inglaterra tinha apenas três milhões de habitantes. Portanto, se as conjecturas estiverem corretas, podemos estimar que no ano 1000 havia sete ou oito milhões de habitantes na França, não mais. Acho que essa expansão demográfica pode ser interpretada como um sinal de otimismo. A população européia começou a aumentar lentamente na
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da miséria
época carolíngia, e nos perguntamos por quê. É 'ffi.\:\\\.10
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