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Portuguese Pages [107]
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Af ica no rasil Estudar o encontro do português com línguas, povos e culturas africanas e indígenas é fundamental para a compreensão do chamado
português b~-asileiro. Africano Brasil tem por objetivo identificar os traços linguísticos atribuídos ao contato do português com as línguas africanas que aqui aportaram no período da colonização. As palavras de origem africana que se perpetuaram no território brasileiro constituem uma maneira de conceituar e categorizar a realidade.
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isso que este livro -
escrito por renomados especialistas na área - demonstra através da abordagem de questões q ue ajudam a entender melhor a formação do português brasileiro, como a apropriação do léxico de origem africana, a contribuição semântica no vocabulário, o exame da sintaxe e outros processos linguísticos. Mais que um livro de linguística, esta obra revela um sentimento de profundo respeito pelos povos africanos e pelas suas línguas, cristalizações de sua maneira de ver o mundo.
José Luiz Fiorin • Margarida Petter • Bernard Caron Emílio Bonvini • Esmeralda Vailati Negrão • Evani Viotti Jean-Louis Rougé • Nicolas Quint • Tania Alkmim
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editora
Promovendo a Circulaç.lo do Saber
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Africa no Brasil A partir do início do século XIX a relação entre as línguas africanas e o portugu ês falado no Brasil começa a atrair a atenção de estu-
África no Brasil
diosos; antes disso pensava-se ape-
a formação da língua portuguesa
nas na influência tupi, excluindo o elemento africano da constituição do Brasil.
Africa no Brasil apresenta as relações das línguas africanas com o português brasileiro indagando sobre suas influências diretas e indiretas. O português passou ou não por uma fase de crioulização? É uma língua sernicrioula? As línguas
José Luiz Fiorin Margarida Petter (organizadores)
África no Brasil a formação da língua portuguesa
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editora contexto
Sumário
Copyright© 2008 Margarida Maria Toddoni Pener T odos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)
Capa e dittgmmaçiio Gustavo S. Vilas Boas
Revisiio Margarida Petter e José Luiz Fioo·in
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ctro) {Câmara Brasilei ra do Livro, S P, I3rasi1) África no Brasi l :a formação da lfngua portuguesa I Margarida Petter, José Luiz Fiorin (organizadores) . 2. ed., I" reimpressão.- São Paulo: Contexto, 2014.
Prefácio ....................... .......... .................. ....................................................7 Lista de línguas .............. ... .. ............... ............ ............ ................ ................ 13
Vários autores.
Línguas africanas e português falado no Brasil ................ ................ ........... 15
ISI3N 978-85-7244-382- l
1. Brasil - Civilização - I nfl uências africanas- Li nguíst ica 2. Linguagem c cultura - I3rasil I. Pcrter, Margarida. li. Fiorin, José Luiz. 07-8819
CDD- 469.1
Índices pa ra catálogo sistemát ico: 1. Português: Brasil : l nAuências africanas : Linguíst ica 469.1
Emitia Bonvini
A inexistência de crioulo no Brasil.. ................................................. .......... 63 jean-Louis Rougé
A realização do sujeito em português do Brasil: deriva versus crioulização .. ........... .................................... ..........................75 Nicolas Quint
As línguas vernáculas urbanas na África: o caso do sheng ........................... 89 EDITORA C oN TEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, 520- Alto da Lapa 05083-030 - São Paulo - S P PA11X: ( li ) 3832 5838 [email protected] m.br www.ed itoraconrcxro.com.br
Bemt11d Caron
Os vocábulos de origem africana na constituição do português falado no Brasi\_ .... ...... ........................................ ............... 101 Emílio Bonvini
Palavras da África no Brasil de ontem e de hoje ....................................... 145 Tania Alkmim e Mrtrgarida Petter
Estratégias de impessoalização no português brasileiro ........... ...... ........... . 179 Esmemlcla Vtti/ati Negrão e Evani Viotti
Os organizadores .......... .......... .... ...... ............ ...................... ........... .......... 205 Proibida a reprodução total ou parcial. O s infrarores serão processados na fo rma da lei.
Os autores ............... ..... .............. ............................... .............................. 207
Prefácio "É próprio da imaginação histórica edificar mitos que, muitas vezes, ajudam a compreender antes o tempo que os forjou do que o universo remoto para o qual foram inventados." Alfredo Bosi, Dialética da colonização.
Todo sentimento nacional constrói-se sobre origens, mitos, inícios heroicos. Os mitos de origem da nação brasileira, forjados no romantismo, como o que aparece, em O guamni, de Alencar, por exemplo, mostram que o povo brasileiro descende de portugueses e índios. O mito é sempre uma coincidentia oppositorum. Este de que falamos opera com a união da natureza com a cultura, ou seja, dos valores americanos com os europeus. O Brasil seria assim a sÍntese do velho e do novo mundo. A nação brasileira aparece, depois de um dilúvio, em cujadescriçãose juntam os mitos das duas civilizações constitutivas da nação brasileira, o de Noée o de Tamandaré. O povo brasílico é resultado da fusão do sangue português com o sangue tupi. Esse mito exclui o elemento africano na formação da nacionalidade. O índio não constituía nenhum perigo à ordem vigente, fundada na escravidão dos negros. Por outro lado, a ideia de que ele não se adaptava à escravidão servia para constituir o mito de um homem com espírito de liberdade e coragem, qualidades necessárias para ser um dos heróis fundadores. No final do século XIX, aparecem as "teorias" do caráter nacional brasileiro, embasadas em doutrinas raciais, que buscam explicar o atraso de nosso país pela existência em nossa formação social de raças "inferiores" e de mestiços. À teoria racista, une-se a ideia da determinação geográfica, que explica o desenvolvimento ou não de um país pelo ambiente físico. Mesmo aquelas obras que são consideradas antirracistas, como O muLato, de Aluísio Azevedo, combatem o preconceito contra o mulato, com base numa ideia de branqueamento do Brasil. O mestiço não poderia ser estigmatizado porque estava aproximando-se do branco e afastando-se do negro. Com Gilberto Freyre, busca-se descrever e explicar o Brasil por meio do processo de miscigenação, mostrando que nosso país se forma a partir da contribuição de portugueses, índios e africanos. A partir daí, começa-se a considerar eufórica a mescla. A cultura brasileira passa a descrever-se como uma cultura da mistura, do sincretismo.
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África no Brasil
A maneira como a língua portuguesa fo i vista parece correr paralelamente a esse breve esboço sobre a explicação da formação do povo bras ileiro. No Romantismo, começa-se a discutir a natureza da língua falada no Brasil. O guarani, por exemplo, mostra, além da fundação da nacionalidade, a constituição da língua falada no Brasil. Sua identidade é correlata à do homem brasileiro, cuja origem o romance descreveu. Não se trata do português tal como é falado em Portugal, mas de um português modificado pela natureza brasileira. A língua falada no novo país é um reflexo, na sintaxe e no léxico, das suavidades e asperezas da natureza da América. É uma fusão também da cultura com a natureza. Alencar não preconiza que se fale tupi, mas esse português mod ificado no Brasil. No período das explicações racistas sobre a compos ição de nosso povo, preconiza-se a volta aos cânones do falar lusitano, o único a gozar do prestígio da correção e da existência. Os falares populares brasileiros são vistos como erro, como fruto da ignorância e da incapacidade de bem pensar. Quando se começa a falar da contribuição de portugueses, de índios e de negros na formação da nacionalidade, principia-se a enfatizar a influência das línguas africanas e indígenas no português brasileiro. As afirmações de seu estatuto crioulo ou semicrioulo parecem corresponder ao período de euforização da mestiçagem, do sincretismo, da mistura na cultura brasileira e na constituição do povo brasileiro. Se já na fundação da Universidade de São Paulo se criou uma cátedra de Língua Tupi-Guarani e se os estudos de línguas indígenas difundiram-se pelo país, a mesma coisa não aconteceu com os estudos da Linguística Africana. Pouquíssimos pesquisadores dedicam-se, ainda hoje, a esse ramo do conhecimento. Muito do que se falou sobre a influência de línguas africanas no português brasileiro ou so bre a questão da crioulização ou da semicrioulização não estava fundado em sólidos conhecimentos das línguas dos escravos que foram trazidos para o Brasil. O primeiro catedrático de Tupi-Guarani insistia em que a cadeira dessa língua deveria ser colocada no mesmo patamar em que se situam as de G rego e de Latim. Por isso, ela não se ocuparia de ensinar, de modo prático, a língua, mas teria uma orientação histórico-comparada. Não in teressa aqui discutir o acerto ou o erro dessa diretriz. O que importa é que se procurou dar ao estudo das línguas indígenas um estatuto acadêmico de nobreza, o que jamais foi concedid o à inves tigação das línguas africanas. Este livro que ora apresentamos ao público procura apresentar trabalhos sobre a questão das relações das línguas africanas com o português brasileiro. Numa área tão carente de bibliografia, temos a certeza de que esta obra será um importante subsídio para o conhecimento dessa questão. Os capítulos deste livro foram produzidos por pesquisadores brasileiros e franceses participantes do projeto financiado pela CAPES e pelo COFECUB, "A participação das línguas africanas na constituição do português brasileiro", que tem por objetivo identificar os eventuais traços linguísticos que podem ser atribuídos ao
Prefácio
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contato do português com as linguas africanas que aqui aportaram no período da coloniz.-'1ção. O lado brasileiro foi coordenado pela Professora Margarida Petter, que dirige, na Universidade de São Paulo, um atuante grupo de pesquisa em Linguística Africana. O grupo de pesquisadores franceses, coordenado inicialmente pelo Professor Bernard Caron e atualmente pela Professora Martine Yanhove, pertence ao Laboratório "Linguage m, Línguas de Culturas da África Negra" (LLACAN) do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), de Paris. Nas culturas da África negra, a palavra é dotada de energia vital, tem o poder de ma nipular forças, é fon te d e conhecimento e, por isso, deve ser valorizada e manejada com prudência. Para Hampâté Bâ, escritor, etnólogo e sábio africano, que se considerava "diplomado na grande U niversidade da Palavra, ensinada à sombra dos baobás", é a solidez do laço existente entre o homem e a sua palavra, mais forte nas sociedades orais, que confere valor ao testemunho, à tradição oral (Histoiregénérafe de l'Afi'ique, 1986; 99). Foi esse modo de transmissão da palavra que se reproduziu no Brasil, pelo contato vivenciado entre pessoas, falantes de línguas africanas, depositá rios de práticas sociais e conhecimentos específicos, e falantes de outras línguas (indígenas e portuguesa, inicialmente), também portadores de experiências e conhecimentos próprios. As palavras africanas que aqui se perpetuaram não fazem parte apenas de uma lista de lexemas, mas constituem, antes, uma manei ra de conceituar, de categorizar a realidade, cuja presença pode ser observada até mesmo quando nenhuma forma linguística africana pode ser identificada. E mílio Bonvini discute, de man eira muito ampla, a questão da relação entre línguas africanas e o português: atualizao trabalho publicado naLangages, 130, de junho de 1998, "Portugais du Brésil et langues africaines", escrito em coautoriacom Margarida Petter, e acrescenta novos dados fundamentados por documentos obtidos em pesquisa inédita, ao mesmo tempo em que reitera posição contrária à hipótese de umacrioulização p révia do português brasileiro. Jea n-Lo uis Rougé, a partir do estudo da situação linguística de São Tomé, mostra por que o português brasileiro não passou por uma fase de crioulização nem pode ser considerado um semicrioulo. Nicolas Quint oferece mais evidências linguísticas para essa interpretação por meio do estudo comparado da perda das desinências número-pessoais dos verbos numa série de linguas românicas e das marcas de pessoa e de número no crioulo cabo-verdiano, para evidenciar que a redução das marcas morfológicas da flexão verbal e o aumento do preenchimento da posição de sujeito no português brasileiro devem ser atribuídos a uma deriva românica. Bernard Caron apresenta-nos a questão do surgimento de novas línguas urbanas na África, oriundas do contato de línguas africanas e europeias, analisando mais detidamente o sheng, lingua urbana de Nairóbi, no Quênia. Em outro capítulo, Em íl io Bonvini, apoiado em farta documentação histórica, analisa a apropriação do léxico de origem africana pela língua portuguesa e avalia a contribuição semântica, e não apenas lexical, de línguas africanas
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África no Brasil
no vocabulário do português brasileiro. Margarida Petter e Tania Alkmim estudam min uciosamen te a incorporação de palavras africanas atualmente em uso no português brasileiro, observando seu registro desde o século XIX, ao mesmo tempo em que destacam a estabilidade e o dinamismo de sua utilização em contextos específicos. Esmeralda Vailati Negrão e Evani Viotti examinam a sintaxe de algumas formas de im pessoalização utilizadas no português brasileiro contemporâneo, que possui uma estrutura semelhante à encontrada no quimbundo, língua cuja ausência de passiva foi descrita desde o século XVII, para mostrar que as influências das línguas africanas no português brasileiro não se dão, muitas vezes, de maneira direta, mas por meio de processos amplos de incorporação de certos padrões linguísticos. Como se percebe, é um vasto leque de problemas e questões que aj uda.rão a entender melhor a formação do português brasileiro. É necessário justificar uma decisão tomada neste livro. Foram aportuguesados todos os nomes de línguas africanas e elas sempre aparecem grafadas em letras minúsculas. É preciso que se explique essa resolução. Há uma "convenção para a grafia dos nomes tribais", estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia em reunião realizada em 1953 e publicada na Revista de Antropologia (1954: 150-152), que estabelece como devem ser grafados os nomes dos povos indigenas. Os pontos principais são que os nomes "tribais" devem ser sempre escritos com inicial m aiúscula, sendo facultativo seu uso quando forem tomados como adjetivos; eles, quer usados como substantivos quer como adjetivos, não terão flexão de gênero e de número, a não ser que sejam de origem portuguesa ou modicamente aportuguesados. Em primeiro lugar, cabe afirmar que a convenção trata de nomes de povos e não de línguas. Em segundo, quando são adjetivos, essas palavras podem flexionar-se e ser escritas com inicial minúscula. Feitas essas ressalvas, há vários aspectos a considerar. As razões linguísticas que embasam essas normas são inconsistentes. Por exemplo, justifica-se o fato de não fazer a fl exão do plural, porque há a possibilidade de as palavras já estarem no plural ou, ainda, de que a forma do plural não exista nas línguas indígenas correspondentes. O problema de estar ou não no plural não tem o menor sentido, pois quando uma palavra se incorpora a um outro idioma, ela adquire nele uma configuração fônica e é essa que importa para o fa lante. Por exemplo, as palavras emprestadas do árabe pelo português, como alfaiate, trazem já o artigo definido. No entanto, não passa pela cabeça de ninguém dizer que diante desses vocábulos não se pode colocar o artigo definido do português. Quanto ao fato de o plural não existir numa dada língua não significa que, quando uma palavra entra noutra língua que tem essa categoria, ela não tenha que expressá-la quando participa da construção de uma frase. C aso contrário, teríamos uma agramaticalidade na língua que incorpora o vocábulo. O respeito às formas linguísticas dos povos indígenas não permite desrespeitar as outras línguas. Outros dizem que não se pluralizam os nomes de povos indígenas porque, se é verdade que essas etnias não têm países, elas constituem um povo e não apenas
Prefácio
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uma somatória de pessoas. Também os portugueses e os brasileiros constituem um povo e, apesar disso, as normas ortográficas do português mandam que nomes de povos e de línguas sejam grafados com inicial minúscula. No entanto, n ão são esses nossos argumentos mais fortes para escrever os nomes de línguas com inicial minúscula e para flexioná-los de acordo com o sistema da língua portuguesa. D epois de vários an os de estudo dos fenômenos discursivos, o que a Linguística de década de 50 desconhecia, e das exigências de uma linguagem poliricamente correta, sabemos que o discurso mostra seu di reito e seu avesso. Os manuais de redação dos jornais proscrevem termos claramente discriminatórios e ofensivos, como crioulo ou negão, para referir-se a um negro. No entanto, não admitem igualmente que se utilizem expressões como afrodescendente ou cidadão de tipo negroide, porque sabem que o uso de termos escolhidos com excessivo cuidado denota exatamente, pela atenção especial, uma atitude preconceituosa. O discurso acaba por revelar o que pretendia esconder. Não é uma atitude respeitosa grafar com inicial maiúscula ou não flexionar em gênero e número. Atitude respeitosa é tratar com absoluta igualdade, o que significa, na grafia de nomes de povos indíge nas e africanos, escrever como se escrevem todos os demais. Na verdade, se há um termo profundamente discriminatório é o adjetivo tribais no nome da convenção. Não se usa tribal para fazer referência a portugueses, franceses, alemães, suecos e islandeses. Eles são povos. Porque então os povos indígenas são tribos? Finalmente, como muitas línguas faladas por esses povos ainda não são escritas, não aportuguesar é escrever à ma neira de ingleses e franceses e não respeitar as formas linguísticas africanas ou indígenas. No entanto, para permitir que o leitor interessado no estudo dessas línguas possa reconhecer os nomes pelos quais elas são identificadas n a literatura intern acional, ap resentamos anexa uma lista com as design ações correspondentes às formas que pro pomos em português. Em algumas línguas bantas, diz-se que o pensamento reside no coração, transita pela cabeça e é reproduzido na fala. Este livro, sem perder o rigor científico, pretende revelar um sentimento de profundo respeito pelos povos africanos e pelas suas línguas, cristalizações de suas maneiras de ver o mundo. Por isso, pode-se dizer que nasceu no coração de um grupo de pesquisadores que não acredita em superioridades e inferioridades de raças, de povos, de línguas, mas apenas em diferenças, com que se deve conviver, sem preconceitos, sem discriminações, sem ressentimen tos, sem ódios. Esse grupo acredita ainda que o estudo do encontro do português com línguas, povos e culturas africanas e indfgenas é fundamental para a compreensão do chamado
português brasileiro.
Os organizadores
Lista de línguas
Grupos linguísticos, famílias e línguas africanas citados nos trabalhos, seguidos de designações encontradas na literatura africanista.
Acla (Nda) Acoli (Acoli) Adamaua-ubanguiana (Adamawa-ubangian, Adamawa-oubanguiai ne) Afro-asiático (Afro-Asiatic) Aiqui (Aiki) Aja (Adja) Amá.rico (Amharic, Amharique) Bambara (Bambara, Bamanakan) Banco (Bantu) Baulê (Bawle, Baou.lé) Beja (Bedja) Benuê-congolesa (Bcnuc-Congo) Berom (Berom) Betê (Bété) Cai nji (Kainji) Camba (Kamba) Cambari (Kambari) Canioca (Kanioka) Canúri (Kanuri) C hádica (Chadic) C hádico/Chadiano (Tchadiquc, Chad ic) C h iluba-cassai (Ciluba-Kasai) C h ilucazi (Chi.l uchazi) C hilunda (Cilunda) C hinhungue (Nyunguwe, C inyungue, C inyungwe, l era, Tere, Yungue) C hinji (Shinj i) C hoam bo (Tzchoambo) C hôcue (Colcwe, Ciolcwe, Tshokwe, Uchokwe, Quioco, Kioko, Shioko) Chona (Shona) C huabo (Chuwabo, C hwabo, Cuwabo) Coissan (Khoisan) Conde (Konde) Cordof..1.nês (Kordof.mian) Cossa (Xhosa, Isixhosa, Xosa, Cafre)
Cross-River (Cross-River) C uá (kwa) C ua mbi (Kwambi) C uaniama (Kwanyama) Cuchítico (Couchirique, Cushitic) D cfoidc (D efoid) Dêndi (D end i, Dendawa) D inca (Dinka) Diúla (Jula, Dioula, Dyula) Doluo (Dholuo) D uala (Doua.la, Diwala, Dwala) Ecoide (Ekoid) Edoide (Edoid) Efique (Efik) Eve (Ewe) Fon (Fon) Pula (PetJ, Fulani, Fulfu lde, Fu lbe) Gbaia (Gbaya) G be (Gbe) Grassfields (Grassfields) Guári (Gwari) Gueze (Gueze) Guraguc (Gouragué, Gurage) Gurúnsi (Gurunsi, Grunce) Hadza (Hatsa, Hadzapi) Hauçá (Hawsa, Haoussa) Herero (Orj iherero, Ochiherero, Ochilelelo) H ind ubil (Hindoubill) Iaca-holo (Yaca-Holo) Ibíbio (Ibibio) lbo (Igbo) lboide (lgboid) ldomoide (ldomoid) Ijó (Ijo) lmbai (Mbay) lmbangala (Mbangala) lncúm bi (Nkumbi)
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África
no Brasil
lndem bo (Ndembo) Indo (Ndo) l ndonga (Nd onga) lngambai (Ngambay) lngandi (Ngand i) lngbi ndi (Ngbandi, Ngwandi , Mongwandi, Baza) lnguni (Nguni) fnharnbane (Tonga, Bironga, Tonga-inhambane, Shengwe) Jscanto (Iscamtho) luoio /flore (lwoyo) Jucunoide Ottkunoid) Kru (Kru) Lango (Lwo, Lango, Lwoo, Langi) Lfbico-berbere (Lybico-Berbere) Luena/Luvale (Luvalc, Lwena, Chiluvale, Lovalc, Lubale) Lugbara (Lugbara) Lula (luya, luluyia, luhya) Luo (D holuo, Luo) Macua (M.akhuwa, Omalma) Maí (Mahi, M.axi, Maxi-Gbe) M.andê (Mande) Mangbeto (Mangberu) Maninca (Maninka) Manjaco (Mandjaquc, Manjaca) Massai (Maasai) Massanja (Masanja) M aribâni (Matibani) Monocutuba (Mo nokuruba) Moore (Moore, Mossi) N haneca (Nyaneka) Nia nja (Nyanja) Nigero-congolesa (Niger-Congo) Nilo-saariana (Nilo-Saharan) Nuchi (Nouchi) Nupe (Nupe, Nufawa) Nupoide (Nupoid) Ochicuanian1a (Ocikwanyama) Ochigangucla (O chigangela) Omórico (Omotic, Omotique)
Pende (Pende) Plaroidc (Plaroid) Q uicongo (Kikongo) Quicuio (Kikuyo, G ikuyo) Quimbundo (Kimbundu, Mbundu) Quindongo (Kindongo) Quiniabemba (Kinyabem ba) Quissama (Kisama) Quissangala (Kisangala) Quissicongo (Kisikongo) Quissolongo (Kisolongo) Quissundi (Kisuundi) Quivili (Kivili) Quizombo (Kisombo) Ruanda-rundi (Rwanda-rundi) Salampasso (Salampasu) Sandaue (sandawi, sandawe, sandaui) Senu fo (Senoufo) Sessoto (Sesotho) Songai (Songhai, Songay) Son gic (Songye) Sosso (Susu, Soso) Soto-tsuana (Sotho-Tswana) Suaíli/ quissuaíli (Swahili , Kiswahili) Sucuma-Niamuêzi (Sukurna-Nyamwezi) Taracoide (làracoid) Tcq uc (Teke) Terda (Tcda) Tigré (Tigre) Tigrínia (Tigrinya) Tivoide (Tivoid) Tsossiral (Tsotsiraal) Tsuana (Tswana, Setswana) Tsua-ronga (Tswa- Ro nga) Tuaregue (Touareg) Uolofe (Wolof) Urobo {Urhobo) Uruunda (Uruunda) Zagaua (Zaghawa) Zarma (Zarma, D yerma, Dyarma, Djerma)
Observações: 1. Manteve-se a grafia com k do nome do grupo linguís tico kru, para evitar qualquer confusão com o adjetivo português em. 2. Mantiveram-se em inglês as designações Cross-river e Grassjields, porque são topônimos, cuja tradução, Cruzamento do rio e Campos de relva, não faria o meno r sentido em português.
Línguas africanas e português falado no Brasil Emilio Bonvini
O debate A relação entre o português falado no Brasil e as línguas africanas atraiu a atenção dos estudiosos pelo menos desde o início do século XIX. Primeiramente pressuposta, depois afirmada, em seguida matizada ou negada, ela foi objeto de um vivo debate, desenvolvido, sobretudo no século XX, em termos seja de "influência", seja de "semicrioulização" ou ainda de "crioulização". Geralmente, essa relação foi concebida unidirecionalmente, indo das línguas africanas para o português, en carando-se as primeiras quase exclusivamente em relação à língua portuguesa e, ademais, sob um ângulo pejorativo, como um fator potencialmente danoso, suscetível de trazer prejuízo à integridade da língua herdada desde a época dos descobrimentos no século XVI. Para compreender melhor esse debate, convém traçar seu histórico. É na segunda metade do século XIX que o problema das influências das línguas africanas no português falado no Brasil é claramente enunciado. Cabe a Nina Rodrigues (Os afticanos no Brasil, redigido entre 1890 e 1905, mas publicado somente em 1932) o mérito de tê-lo form ulado de maneira precisa, mas também de tê-lo contextualizado em relação aos trabalhos científicos da época, particularmente os de Macedo Soares (1 880-1886) e de João Ribeiro. Este último, em seu Dicionário gramatical (1897), no verbete Elemento negro, tinha-se já exprimido a respeito do assunto: Sob a denominação de Elemento Negro designamos toda espécie de alterações produzidas na linguagem b ras ileira p o r inAuência das línguas africanas pelos escravos introduzidos no Brasil. Essas alterações não são tão superficiais como afirmam alguns estudiosos; ao con trário, são bastante profund as, não só no que diz respeito ao vocabulário, mas até ao sistema gramatical do idioma {1897: 219).
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África no Brasil
Rodrigues apoia-se nesse texto, mas acentua mais nitidamente suas implicações: ... não tem crédiw a errônea suposição de que fosse quase nula a influência das lrnguas preras no fala r brasileiro, quando muito se limitando a legar ao português alguns termos africanos. Menos nessa riqueza de vocabulário do que nas construções sintácticas e modos de dizer, se deve buscar a origem de numerosos desvios populares brasileiros do. genuíno português da vel ha metrópole (1932: 125).
E conclui com um verdadeiro programa de pesquisa a efetuar no Brasil: A solução do problema lingulstico no Brasil reclama, pois, a inversão dos term os em que geralmente o temos visto posto até hoje. Não se traca de conhecer a linguística africana pelo estudo aprofundado das línguas dos escravos importados. Cessado o tráfico, tornou-se isso quase inexequível. Trata-se, em primeiro lugar, de saber quais fo ran1 as lfnguas africanas faladas no Brasil e, em segundo lugar, tomando conhecimento dos modernos estudos sobre elas realizados na África, apreciar a influência que exerceram sobre o português falado no Brasil (1 932: 126).
Confessando, entretan to, com toda a honestidade, sua falta de preparo para abordar essa segunda parte, ele limita sua contribuição ao inventário das línguas africanas faladas no Brasil. No século XX, o debate sofreu uma série de deslocamentos temáticos. Num primeiro momento, passou-se do problema da " língua brasileira" para o da "língua portuguesa". N um segundo, abandonou-se o tema da "inRuência africana" a fim de concentrar-se no da "crioulização". Finalmente, por volta do fim do século, sobretudo no Brasil, contestou-se a existência de Lun processo de crioulização e optou-se seja por uma "deriva trazida da Europa", seja por uma situação resultan te de um emprego oral.
A língua brasileira vs. a língua portuguesa A problemática da relação entre as línguas africanas e o português do Brasil (PB), no século XX, colocou-se desde os anos 30. Desde o começo, buscou-se evidenciar a participação daquelas na constituição da varian te brasileira do português. Esse debate desenvolveu-se em dois planos indepe ndentes, o lingtústico e o ideológico, prolongando assim as preocupações nascidas por ocasião da independência do Brasil em 1822. Tratava-se, na época, de marcar a diferença entre o Brasil e Portugal. A ideologia nacionalista orientou então os estudos linguísticos na direção da pesquisa dos elemen tos autóctones diferenciadores, engendrados pela presença das línguas indígenas e africanas. Os intelectuais da nova nação deveriam trabalhar na descoberta dessa especificidade e, a despeito do fato de que a maioria deles não era linguista ou estava pouco preparada para essa tarefa, seus trabalhos tiveram uma grande ressonância nos meios acadêmicos. No que concerne às línguas africanas, como já se viu, podem-se distinguir do is momentos, que correspondem a dois tipos de análise: o primeiro é caracterizado pela afirmação da inAuência africana no PB, e o segundo, pela hipótese da crioulização do português do Brasil em contato com as línguas africanas.
Línguas africanas e português falado no Brasil
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Influência africana vs. crioulização Dois textos, publicados em 1933, inauguram o debate. O primeiro, A influência afticana no português do Brasil, de Renata Mendonça, traça o itinerário da origem, banta ou sudanesa, dos afri canos transplantados para o Brasi l e apresenta uma exposição sumária da gramática das línguas africanas, assim como um inventário de palavras e de particularidades do português do Brasil que o autor considera de origem africana. O segundo, O elemento afta-negro na língua portuguesa, de Jacques Raimundo, segue o mesmo esquema, baseando suas observações numa pesquisa mais p recisa sobre as línguas africanas. Com exceção de algumas diferenças de detalhes de suas exposições, os dois concluem que a maior parte dos aspectos característicos do PB se deve à inRuência das línguas africanas, principalmente o quimbundo e o iorubá. No final dos anos 30, a questão da denominação da língua nacional já fo ra esvaziada. A nova política da educação, no domínio da língua, considerava língua portuguesa a denominação da língua falada no Brasil. Como nota Pinto, "dentre as consequências da nova política educacional, de convergência de esforços públicos e privados, que no campo da língua consistia na sustentação da ortodoxia, porém mediante a renovação das metas, dos métodos e dos processos, ressalta o esvaziamento definitivo, ao fim do período 20-45, da velha questão da língua brasileira" (1 98 1: XXXIX). A formação gramatical e literária dos antigos defensores da denominação língua brasileira, que frequentemente apelavam para dados exrralinguísticos a fim de explicar fatos de língua, deu lugar à formação propriamente linguística, que começou nos anos 30. Os trabalhos com caráter científico produzidos pelos novos pesquisadores sublinhavam a unidade cultural e linguística luso-brasileira, sendo a língua concebida como o reRexo e a expressão da cultura. Melo resume essa nova posição: A verdade é que os elementos portugueses de nossa cultura foram elaborados, amalgamados co m os elemem os indígenas e negro-africanos, além das influências mais recentes de outros fatores. Mas é certo que o elemento português prevaleceu, dando uma nota mais sensível de europeidade a nossa cultura (sublinhado pelo auto r) (1946: 29).
Nesse novo contexto, tornava-se obsoleto insistir sobre as diferenças resultantes das inRuências não europeias. O importante era fundar essa unidade linguística, expressa na fórmula unidade na diversidade. Silva Neto (1950), Melo (1946) e Elia (1940), eruditos de sólida formação filológica, reexaminam a influência africana. Diminuem sua importância e introduzem, no debate, a hipótese da crioulização, terna tratado pela primeira vez pelo português Adolfo Coelho (1880), que classificou o PB com os crioulos afro-por tugueses, definindo-os como dialetos do português europeu. Silva Neto (1950) sustenta que n o Brasil houve somente falares africanos episódicos, crioulos e semicrioulos, que eram apen as uma deformação e uma
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simplificação do português. Seus ves tígios atuais são os dialetos rurais. Foi a ascensão social do m estiço que transfo rmou o português padrão em ideal linguístico e levou ao desaparecimento dos crio ulos e semicrio ulos. Melo (1946) desenvolve um aspecto apenas levem ente tocado por Silva Neto, a ideia de que aquilo que a presença africana faz é somente acelerar as tendências latentes da língua portuguesa. Inspirado pelo conceito de deriva de Sapir, Melo desqualifica os aspectos crioulizantes que teriam um correlato românico ou pertenceriam a uma fase arcaica da língua, pois eles refletiriam o desenvolvimento ou a manutenção de um aspecto interior do português, independente de toda influência externa. Sílvio Elia (1 979: 142-147) estabelece uma oposição conceptual entre crioulo e semicrioulo. Este seria um estágio preparatório para o crioulo, uma língua m ista. Não teria havido crioulos no Brasil, somente semicrioulos, cuja característica era ser apenas uma simplificação da língua portuguesa. Como o português não integrou traços das línguas africanas, não sofreu influência delas; a situação de contato não produziu fusão de cultura, que seria ligada aos crioulos, ela simplesmente provocou a assim ilação de LUna cultura por o utra, o q ue estaria ligado aos semicri oulos. Castro (1976, 1980) repropõe a questão da influência em termos linguísticos e culturais, partindo do prindpio de que a presença maciça de falantes nativos de lfnguas negro-africanas na população brasileira da época da Colônia e do Império devia fatalmente deixar traços linguísticos. Ela admite uma influência africana no português do Brasil, mas não o considera um crioulo, pois o português do Brasil é desprovido de traços fo rmais suscetíveis de ser com parados aos crioulos falados nas antigas colônias inglesas, fra ncesas e holandesas do Cari be. Mais recen temente, linguistas estrangeiros, os norte-americanos G . G uy (198 1, 1989) e]. Holm (1987), reavivaram o debate sobre a hipótese de crioulização do PB . Guy (1981, 1989), trabalhando no quadro da teoria variacionista, analisou as diferenças existentes entre o português popular do Brasil e o português padrão. Concluiu q ue essas distinções não se devem a uma evolução linguística natural, mas mostram um processo de crioulização que teria ocorri do no passado, deixando, entretanto, traços no presente. Suas conclusões baseiam-se em dados morfossintáticos, mais precisamente na variação da concordância de número entre sujeito e verbo e entre substantivo, adjetivo e determinante. John H olm (1987), apoiando sua análise em dados comparativos de diferentes crioulos de base ibérica, considera o português do Brasi l como um semicrioulo. Ele faz um estud o comparad o das expressões id iomáticas do português vernacular brasileiro (PVB), "língua normalmente falada pelos brasileiros do estrato social mais baixo com pouca instrução" (1994: 5 1), e de línguas africanas e crioulos. Segundo o autor, essa prova léxico-semântica confirma as conclusões de seus estudos m orfossintáticos anteriores: a existência de um paralelismo entre as expressões do PVB e das línguas
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africanas "é consistente com o crescente consenso de que o PVB é um semicrioulo, ou seja, uma língua que resultou de um prolongado contacto entre uma língua crioula e uma não crioula" (1994: 59). G uy e Holm encontram apo io para suas teses em dados sócio-históricos, mais precisamente demográficos. O Brasil absorveu aproximadamente 40% dos escravos transportados para as Américas, isto é, cerca de 3,6 mi lhões de indivíduos; a abolição no Brasil só ocorreu tardiamente, em 1888. Em certas regiões, houve concentrações demográficas afro-brasileiras bastante elevadas, de maneira que, em certos períodos, a população afro-brasileira era ni tidamente superior à europeia. Partindo da mesma posição teórica de G uy e Holm , Alan N. Baxter, especialista em crioulos de base portuguesa, conduz, em 1987/1988, uma pesquisa junto a uma comunidade afro-brasileira de descendentes de escravos, perto de H elvécia, no sul da Bahia, cuja particularidade já tinha sido observada por Ferreira (1969) . Resultados preliminares desse trabalho (J 992) evidenciam traços morfossintáticos que não se encontram na maior parte dos dialetos rurais: (i) o emprego das form as da 3a pessoa do singular do presente do indicativo para indicar estados e ações pontuais e contín uos q ue se situam no passado; (ii) o emprego variável das formas da 3a pessoa d o singular d o presente do indicativo em contextos nos quais se utilizam normalmente as formas do infinirivo; (i ii) marca variável da 1a pessoa do singular; (iv) dupla negação; (v) variação da concordância de número e de gênero no SN; (vi) proposições relativas sem pronome; (vii) presença variável do artigo definido no SN com referência definida. Segundo Baxter, as co nclusões desse estu do ind icam que: (i) o dialeto de Helvécia apresenta traços q ue sugerem um processo irregular de aq uisição e de transmissão de língua do tipo característico das línguas crioulas; (ii) o sistem a verbal encontrado nos dialetos rurais do português do Brasil pode ser derivado de dialetos como o de Helvécia, desenhando assim um processo d e descrioulização. Para que essas conclusões possam contribuir para compreender a configuração e as tendências atuais da língua falada na zo na rural brasileira, o autor preconiza a necessidade de pesq uisara existência e a extensão desses faros em outras comunidades, situadas em o utros pontos do território brasileiro. Esses estudos poderão assim explicar a distância que separa os dialetos rurais do português padrão e a orientação dos processos de mudança que se encontram na zona rural.
Contestação Numa direção oposta à da crioulização e à da influência das lfnguas africanas no português do Brasil, estabelece-se a argum entação de Naro. Em dois artigos (1973a; 1978), ele abordou a realidade h istórica dos pidgins, formados, de seu ponto de vista, a partir de uma simplificação pelos falantes adultos da lfngua de base, com vistas a faci litar a comunicação com os falantes não nativos. Sua conclusão funda-se
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na reconstrução da origem do pidgin português que teria servido de base para os criou los portugueses. Segundo Naro, o pidgin português ter-se-ia formado na Europa e os portugueses tê-lo-iam ensinado aos falantes de línguas africanas. Por essa razão, afasta-se a hipótese de uma influência do substrato das línguas africanas na formação do pidgin português e dos crioulos que dele derivaram. A contestação da existência de um processo de crioulização do português apresentada por Naro também se funda em argumentos extralinguísticos, entre os quais se assinalam: (i) a preexistência da uma "língua geral", que inibiu o desenvolvimento de um crioulo e (ii) a ausência de mistura de diversas populações africanas de línguas diferentes, havendo, ao contrário, uma concentração majoritariamente iorubd na Bahia e banta nos outros estados, o que não poderia favo recer a constituição de crioulos. Deve-se a retomada recente do debate sobre a crioulização do PB a Fernando Tarallo, por meio do texto "On the Alleged Creole Origin o f Brazilian Portuguese: Untarget Syntactic C h anges", apresentado no ateliê "Créole Located in Time and Space" (LSA lnstitute, CUNY, New York, 1986) e publicado no Brasil em 1993. Tarallo considera pouco provável a hipótese da crioulização, porque, se o português brasileiro se originasse realmente de um crioul o de base portuguesa, ele deveria ainda situar-se na fase da descrioulização, prosseguindo na direção da língua-alvo, o português europeu . Entretanto, as mudanças sintáticas caminham no sentido contrário, isto é, no sentido de um distanciamento do português europeu. Ele conclui afirmando que a rigidez da língua escrita padrão manteve bastante próximos os dialetos português e brasileiro. São as gramáticas da língua falada que mostram que este tomou caminhos diferentes. A presença africana no PB, interpretada como um fator de crioulização, não recebeu boa acolhida da parte dos linguistas brasileiros. O texto de Tarallo não provocou nenhuma réplica, somente uma resposta favorável, o trabalho de Naro e Scherre (1993: 437-454). Nesse artigo, os autores defendem que o português popular do Brasil resulta de uma "convergência de causas": (i) reconhecem a participação de aloglotas, mas afirmam que ela não chegou a consti tuir uma língua mista de português e de línguas indígenas ou africanas, de modo a justificar a existência de um pidgin ou crioulo; (ii) suspeitam, no entanto, que "a pidginização em si, quase endênúca no Brasil desde o início da Colô nia (e antes, tanto no caso da 'língua de preto' da Europa e, provavelmente, das línguas gerais tupi e africanas), tenha influenciado no desenvolvimento do português brasileiro" (1993: 441 ); (iii) sublinham como sendo mais significativo que "o impulso motor do desenvo lvimento do português do Brasil veio já embutido na deriva secular da língua de Portugal. Se as sem entes trazidas de lá germinaram mais rápido e cresceram mais fortes é porque as condições, aqui, mostraram-se mais propícias devido a uma confluência de motivos" (1993: 450). Em trabalho recentemente publicado, os autores reiteram essas afirmações, apo iados em
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fatos linguísticos observados nas línguas românicas e em resultados de pesquisas sobre a variação de número na concordância nominal no Brasil (2007: 25-47). Esse debate, q ue já conta com mais de um século, está lo nge de acabar. As formulações sucessivamente propostas, umas depois das outras, modificadas ou rejeitadas, fazem transparecer o caráter claramente indeciso do caminho, assim como a incerteza quanto aos resultados. Tudo não parece ultrapassar o estágio das hipóteses. Impõe-se, por conseguinte, a necessidade de um prosseguimento da pesquisa, desde que ela seja conduzida por novas perspectivas teóricas e, sobretudo, por dados suplementares devidamente estabelecidos. Diversas questões parecem, com efeito, emergir desse percurso. A primeira concerne à profundidade histórica e à extensão dos dados utilizados para apoiar hipóteses formuladas uma depois da o utra ("língua brasileira" vs. "língua portuguesa"; "influência" vs. "crioulização" vs. "deriva"). No que diz respeito à história, esperar-se-ia encontrar fatos precisos, devidamente identificados e datados, suscetíveis de servir de "provas" históricas. Infelizmente não é esse o caso. Essa carência diz respeito, sobretudo, às línguas africanas, que se presume ser o ponto de partida, senão a causa, da inflexão dada ao português. f surpreendente a ausência de dados históricos relativos à presença e à identidade efetiva de línguas africanas faladas em solo brasileiro. Tal falta de dados precisos, hiswricamenre verificados e datados concernentes às línguas africanas, retira todo valor probatório das hipóteses, aliás, formuladas muitas vezes de maneira repetitiva, fazendo delas apenas conjecturas de trabalho. A segunda interrogação incide sobre o "espaço" Iinguístico considerado, a saber, o português falado no Brasil. A hipótese da relação das línguas africanas com o português é geralmente vista, levando-se em conta exclusivamente o Brasil. Por isso, o português é frequentemente tratado como uma peça linguisticamente destacada, desconectada do português falado em outros lugares, em particular do português falado na África dita lusófona. Esse fechamento, que conduz a considerar a língua portuguesa falada no Brasil como uma "ilha", é historicamente inexato. Com efeito, oscontatosenrrea língua portuguesa e as línguas africanas tiveram lugar seja previamente, seja paralelamente, tanto em Portugal quanto na África, durante pelo menos cinco séculos. A terceira questão diz respeito à metodologia utilizada. Quando se aproximam as línguas africanas e a língua portuguesa, seja no caso de opção pela "influência" ou pela "crioulização", a argumentação apoia-se frequentemente em dados léxico-semânticos ou morfossintáticos, às vezes em ambos. Sobretudo quando se trata destes últimos, parece justificável interrogar-se sobre a legitimidade do procedimento que consiste em utilizar critérios tipológicos para pronunciar-se a respeito de uma realidade de ordem genética. Explicando melhor, tal procedimento apoia-se em certos traços das línguas africanas e em sua similaridade com os da lfngua portuguesa falada no Brasil para pronunciar-se sobre a evolução desta última em relação à que é atestada
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em Portugal. Esse caminho é discutível e mesmo fundamentalmente errado, como demonstrou a história da linguística do século XIX, quando os primeiros comparatistas, pri ncipalmente Friedrich Schlegel (1772- 1829) e August Wilhelm Schlegel (1 7671845), utilizaram a tipologia como ponto de partida para o estabelecimento de um parentesco genético, chegando assim, com base na estrutura morfológica, à famosa divisão tripartite das línguas: isolantes, aglutinantes e flexionais. Esses tipos refletiriam três estágios evolutivos das línguas e das famílias de línguas, sendo o último o mais elevado, o que a pesquisa ulterior desmentiu e também condenou. A mesma coisa aconteceu em relação às línguas africanas, ainda no século XIX, quando a classificação das línguas se fez essencialmente com base num critério estrutural único, a saber, a presença ou ausência de afixos de classes nominais. Por esse critério, o banto (conj unto das línguas de "prefixo nominal") constituía o tipo p uro e, por isso, foi considerado por Lepsius (1880) como o "original africano" o u o "tipo original das línguas de classes" (Meinhof, 1889-1910), o que permitiu chegar a uma hierarquização (evidentemente errônea e sem fundamento!) das outras línguas africanas em relação a ele, com o estabelecimento de um estágio "semibanto", intermediário, representado ora por línguas que ainda não tinham evoluído completamente na direção de um estatuto inteiramente banto (Schleicher, 1891), ora por línguas que tinham perdido parcialmente os traços iniciais ainda preservados em banto (Torrend , 189 1). Todas essas elucubrações mostram-se hoje sem qualquer fu ndamen to pelo próprio faro de q ue elas se apeiam num p rocedimento inapropriado. Tend o p resente no espírito essas diversas in terrogações, exam inaremos primeiram ente os dados histó ricos relativos às línguas africanas faladas em solo brasileiro e, em seguida, ten taremos fazer uma reflexão metodológica sobre as consequências de tal p resença.
Línguas africanas: da África para o Brasil As líng uas do contine nte africano Antes de tratar das línguas africanas faladas em território brasileiro, convém avaliar da maneira mais precisa possível, embora sucinta, a realidade linguística do continente africano, tal como ela se apresenta na atualidade. Esse continente é um espaço geográfico imenso. No plano lingufstico, ele abriga sozinho quase um terço das línguas do m undo. Segundo o inventário estabelecido pelo Ethnologue (Gordon, 2005), as línguas africanas seriam mais de 2000 (2092 precisamente). Para além do número preciso exp osto, o valor dessa en umeração é constituir uma espécie de estimativa suscetível de ser modificada por pesquisas suplementares.
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O con junto dessas línguas, conforme os últimos estudos, reparte-se em quatro grandes troncos ou filas: o nigero-congolês (Niger-congo) (1495 línguas), o afro-asiático (Afro-asiatic) (353 línguas), o nilo-saariano (Nilo-saharian) (197 línguas) e o coissan (Khoisan) (22 línguas). Essa repartição, proposta e sistematizada por J. H . Green berg nos anos 1950-1963, foi adotada, mais tarde, pela grande maioria dos linguistas africanistas, com algumas revisões concernentes à reorganização interna de cada tronco. Eis, sucintamente, os principais dados recentes de cada um deles.
Nigero-congolês (1495 líng uas) O termo nigero-congolês substituiu o antigo termo nigero-cordofonês proposto inicialmente por]. H. Green berg (1966 [1963]). Esse tronco é geograficamente o mais extenso, cobrindo praticamente toda a área que vai, do oeste ao leste, do Senegal até o Quênia e, ao sul, até a Cidade do Cabo na África do Sul, com exceção de um pequeno espaço da África Austral ocupado pelas línguas coissan. Ele é constituído de nove famílias linguísticas (em minúsculas em itálico suas línguas principais) apresentadas aqui em ordem geográfica, além do dogon, língua isolada: atlântica: fola, uoloft, manjaco, balanta; mandê: bambara, m aninca, diúla; gur: senufo, moore; e subfamilia gurúnsi; kru: grebo, betê; cuá: baulê, eve, fo n e subgrupo gbe; ijoide: ij6; benuê-congolesa; adamaua-ubanguiana: banda; ingbandi, gbaia; cordofonesa. A família benuê-congolesa é a mais vasta geograficamente e também a mais importante pelo número de suas línguas e de seus falantes. Ela subdivide-se, por sua vez, em onze subfamílias, das quais dez são situadas principalmente na Nigéria: defoide: iorubá, igafa; edoide: edo, urobo; nupoide: nupe, ibira, guári; idomoide: idoma, igede; iboide: ibo; cross-river: efique, ibíbio, ogoni; cainji: cambari; platoide: berom; tarocoide; jucunoide. A décima primeira subfamília é a bantoide, que se subd ivide em dois ramos: bantoide do norte, com línguas faladas na parte leste da Nigéria e oeste de Camarões, e bantoide da sul, extremamente vasta, com diversos subgrupos, ecaide, tivoide, grassfields, sendo o p rincipal o banto propriamente dito, constituído de centenas de línguas distribuídas numa imensa área geográfica que vai do sudeste da Nigéria e do C hade até a ponta sul da África. A classificação tradicional do conj unto das línguas bantas foi estabelecida por M. Guthrie nos anos 70. Guarda ainda um interesse prático. É baseada em zonas geolinguísticas, designadas por letras do alfabeto (A, B, C .. .), subdivididas cada uma por dezenas segundo o grupo de línguas. A título de exemplo, do norte para o sul e do oeste para o leste, os principais grupos linguísticos são assim classificados: A. 20 duala; B. 70 teque; C. 70 tetela; D . 60 ruanda-rundi; E. 50 quicuio-camba; F. 10 sucuma-niamuêzi; G. 40 suaíli; H. 10 congo; H . 20 quimbundo; H. 30 iaca-holo; K. 1O chôcue; L. 1O pende; L. 30 fuba; L. 50 funda; M. 30 conde; M. 40 bemba; N. 30 nianja; P 30 macua; R. 10 umbundo; R. 20 cuaniama, indonga; R. 30 herero; S. 10 chona; S. 30 soto-tsuana; S. 40 inguni: cassa, zulu; S. 50 tsua-ronga.
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Deve-se notar que a classificação recente do banto propriamente dito difere daquela encontrada nas classificações antigas. Enquanto, até os anos 50, esse conjunto de línguas tinha sido tratado como uma famfl ia plena e separada, e muitas vezes como "a famflia" de referência, exercendo, aos olhos de alguns, o papel de representante-tipo do "original africano", a classificação linguística considera-o hoje, a despeito do número impressionante de suas llnguas e de seus falantes, como um membro do subgrupo bantoide do Sul, pertencente à sub família bantoide, que se insere na famflia benuê-congolesa, que é uma porção do tronco nigero-congolês. Essa classificação não diminui em nada sua importância no plano linguístico. Consideradas certas tradições que se encontram ainda, às vezes, nos escritos de vulgarização, convém lembrar que todos esses termos (nigero-congolês, atlântico, mandê, gur, cuá, kru ... bantoide, banto .. . ), que designam troncos, famílias, subfamílias, grupos e subgrupos, são termos puramente "linguísticos", válidos no quadro dessa disciplina. Foram concebidos por profissionais corno etiquetas que pernútem reagrupar, da maneira mais coerente possível, linguas distintas umas das outras. Foram forjados essencialmente como termos "operatórios" para a pesquisa linguistica permi rindo operar reagrupamentos de línguas, numa perspectiva seja "tipológica", seja "genética". É, por isso, que sua criação geralmente pode ser datada. Sua existência ou sua pertinência podem, por essa razão, ser questionadas, a todo momento, em face de novos dados, ou ainda em virtude de perspectivas científicas diferentes ou renovadas. É esse contexto linguístico que dá valor científico a seu emprego. Ocorre, porém, que alguns desses termos são tomados de empréstimo por outras disciplinas e utilizados em contextos outros que n ão o linguístico, para designar, por exemplo, real idades exrralinguísticas, tais como povos, culturas, religiões, fi losofias, etc. Fora de seu contexto linguístico original, seu sentido não coincide mais com aquele delimitado pela pesquisa lingufstica. Seria então ilusório, senão abusivo, pretender fundamentar uma argumentação de tipo extralinguístico em bases pretensamente linguísticas. Tome-se o caso do termo banto. Até o ano de 1862, ele não servia, nem na África nem alhures, no Brasil inclusive, de modo algum, para designar wna língua ou um grupo de línguas. Nas línguas africanas em que ele aparecia, seu sentido era simplesmente o de "pessoas", "homens", resultante da junção do prefixo /ba-/ "plural": 'eles, elas' e do radical I -tu/ ou I-ntul 'pessoa'= "pessoas, seres humanos". Sua forma podia, aliás, variar segw1do as línguas: banto (quicongo); wdntu (quissicongo); àtit (quimbundo) ; watu (suaíli), etc. Como termo técnico da Linguística, foi empregado pela primeira vez por W H. I. Bleek, em 1862, para designar uma família de linguas que se caracteriza pelo emprego do prefixo /ba-/ no plu ral, retomando assim o que fizera antes dele o grande explorador H. Barth, que tinha proposto já o termo ba- fanguages. Nessa época, entretanto, para W. H. I. Bleek, o termo banto tinha um sentido mais amplo do que o atual, incluindo também línguas da África ocidental de hoje:
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Mem bros dessa família, que chamamos a família 'Bil-ntu', estão também distribuídos em partes do oeste da África, até o oeste d e Serra Leoa .. . Eles estão aqui intercalados particularmenre com membros das línguas da famíliagor(fula, uolofe, ga, etc.), que pertence à mesma classe de Hnguas que a fam fi ia 'Bâ-ntu' e forma com ela a seção africana dessa classe... ,
que ele denomina "a classe prefixo-pronominal" (Bieek, 1862/69: 2). Assim, a definição do termo banto correspondia mais ou menos ao que os linguistas de hoje designam com o termo nigero-congofês. Foi mais tarde que o termo banto foi restringido e reservado para as línguas da parte sul da África. Em conclusão, corno termo da Linguistica, o vocábulo banto é bastante recente. Como tal, no plano histórico, ele nada rem a ver com a história da escravidão.
Afro-asiático (353 línguas) O termo afro-asiático, criado por J. Greenberg, substitui o termo mais antigo camito-semítico, para designar línguas ates tadas desde os primeiros documentos escritos da história da humanidade há mais de cinco milênios e repartidas sobre vasto território, que vai, a oeste, do oceano Atlântico, na África do Norte, passando pela zona saeliana, até o Oriente Próximo, a leste do continente africano. Sua classificação interna atual é constituída de seis fam ílias: líbico-berbere: tuaregue, berbere; chadiana: hauçd; cuchítica: beja, afor, oromo, somali; omótica; egípcio-copta antigo egípcio, copta; semítica: hebraico, drabe, cuja divisão concernente ao continen te africano é representada pelo afro-semítica (ou etíope-semítica), que compreende uma parte norte: gueze, tigré, tigrínia, e uma parte sul: amdrico, gurague. Dessas famílias, a chadiana é a subfamilia que engloba o maior número de línguas (perto de 200), das quais o hauçd sozinho conta com mais de 50 milhões de falantes .
Nilo-soaria no ( 197 línguas) O tronco nilo-sam·iano estende-se do Mali à Etiópia e do Egito à Tanzânia e tem, segundo estimativas, entre 90 e 180 línguas, que são faladas por grupos humanos extremamente variados. O próprio estatuto de tronco continua um tema controverso, porque a questão que se coloca em relação a ele é a de saber se se trata realmente de um tronco no sentido genético ou de uma justaposição de grupos não aparentados. Baseada na classificação de Greenberg, a ordenação atual propõe os seguintes grupos: songai: songai e suas variantes dialetais dêndi e zarma, nos confins do N íger, de Burkina Passo e do Mal i; saariano: canúri, teda, zagaua, no oeste e no norte do lago C h ade (Níger e Nigéria); maban: maban, aiqui, nos confins do C hade e do Sudão;fiu·, no leste do Sudão, Darfur; sudanês central: sar, imbai, ingambai no C hade meridional e no sudoeste do Sudão e lugbara, indo, mangbeto no nordeste da República Democrática do Congo (ex-Zaire) e no norte de Uganda; línguas nilóticas: luo, dinca, nuer, fango, acoli, massai, faladas no Sudão meridional, em Uganda, no leste do Quênia e no norte da Tanzânia.
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Coissan (22 línguas) As línguas coissansão atualmente faladas em Botsuana e na Namíbia, mas a maioria delas desapareceu ou está em via de desaparecimento. Alguns enclaves existem no norte da África do Sul, no sul de Angola e em Zâmbia. Também há duas línguas isoladas (hadza, sandaue) na Tanzânia. A classificação de Greenberg ( 1963) subdivide a família Coissan em três ramos: Norte, Centro e Sul. Entretanto, coloca-se em relação a ela a questão de saber se se trata de uma família linguística ou de um conjunto de línguas que convergiram. As línguas coissansão frequentemente conhecidas como línguas de d iques.
Línguas africanas do tráfico e línguas dos cativos Desse vasto conjunto de línguas africanas, quais são as que foram atingidas pela escravidão? Além disso, quais são as que atravessaram o Atlântico e chegaram ao Brasil? Enfim, que línguas africanas foram realmente faladas em território brasileiro? Para responder a essas questões, convém inicialmente operar uma distinção entre, de um lado, as línguas faladas pelos cativos africanos no continente africano, an tes de atravessar o Atlântico com destino ao Brasil; de outro, as línguas faladas por esses mesmos cativos, uma vez tendo chegado ao solo brasileiro, isto é, como escravos negros brasileiros. As duas realidades não coincidem necessariamente. É preciso apoiar-se em dados históricos do tráfico, sobretudo aqueles relativos ao comércio desenvolvido entre os dois lados do Atlântico, porque o tipo de tráfico e de comércio praticados pelos portugueses seguramente favo receu certa seleção das línguas africanas atingidas pelo tráfico e modificou o estatuto linguístico de algumas delas.
Os ciclos do tráfico A transplantação das línguas africanas para o Brasil foi con comitan te à importação dos escravos africanos, que começou em terras brasileiras, na metade do século XVI 1 e prosseguiu até o século XIX. Ela flutuou segundo os di versos ciclos que a caracterizaram. Distinguem-se habitualmente (Vianna Filho, L. 1946: 28; Mattoso, 1979: 22) quatro grandes ciclos de importação de escravos para o Brasil: (i) no século XVI, o ciclo da Gui né, sendo os escravos principalmente sudaneses, originários da África situada ao norte do equador; (ii) no século XVII, o ciclo do Congo e de Angola, que trouxe ao Brasil negros da zona banta; (iii) no século XVIII, o ciclo da costa de Mina, que atingiu de novo negros sudaneses. A partir da metade do século XVIII, esse ciclo desdobrar-se-á num ciclo propriamente baiano: o ciclo da baía do Benim; (iv) no século XIX, os escravos vieram um pouco de cada lugar, mas com predominância de negros vindos de Angola e de Moçambique.
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Essa repartição em ciclos só é válida em suas grandes linhas, porque o fim de um ciclo não estan ca totalmente a chegada de homens negros vindos ela região do ciclo precedente e, ademais, a metrópole portuguesa teve sempre a polftica de misturar as diferentes etnias para impedir a concentração de africanos de mesma origem numa mesma região. As razões econômicas ligadas a esses ciclos ele importação são: nos séculos XVI e XVII, a cultura da can a-de-açúcar e do fumo; no século XVIII, a exploração das minas de ouro e de diamantes, mas também a cultura elo algodão, do arroz e a colheita de especiarias; no século XIX, a cultura do café. Com efeito, foi esse liame estreito entre ciclos de importação de escravos e razões econômicas que regulou o tráfico tanto no tempo quanto no espaço, adaptando-o aos lugares e aos acontecimentos. Donde o caráter fluido e evolutivo de cada ciclo, fundamentado essencialmente numa realidade humana mutável, em função da identidade étnica dos falantes, de seu número, mas também de suas línguas. Ademais, a fisionomia de cada ciclo difere em função dos principais atores: o tipo de tráfico praticado pelos portugueses é sensivelmente diferente daquele dos holandeses ou dos franceses da mesma época.
O tráfico do lado dos portugueses Para melhor apreender, ao mesmo tempo, a identidade dos escravos e das línguas atingidas pelo tráfi co, é preciso ter presentes ao espírito os principais fatores e acontecimentos históricos que caracterizaram o tipo de tráfico praticado em direção do Brasil. Façamos um resumo. Durante todo o século XVI, os portugueses detinham o m onopólio do tráfico, desde o porto de Arguim, as ilhas de Cabo Verde, até o fo rte de São Jorge de Mina (até 1637), passando pela ilha de São Tomé, acima do equador. Esta será para os portugueses o primeiro grande centro de distribuição de escravos levados do continente. Depois, nos séculos XVII e XVIII, será Angola que exercerá esse papel cen tralizador, por intermédio de dois reinos negros, que prosperarão entre 1670 e 1750: um ao sul, denominado Benguela; outro ao norte, chamado Ndongo donde o título ngólà, exclusivo dos chefes desse reino, que servirá para forjar o termo Angola para designar em seguida o conjunto do país- que será o grande reservatório de homens negros para o tráfico brasileiro (Mattoso, 1979: 26). D urante esse período, a iniciativa privada encarregar-se-á progressivamente do tráfico, havendo, no século XVIII, companhias domiciliadas no Brasil, cuja importância, dinamismo e flexibilidade levarão a estabelecer um comércio direto entre o Brasil e a África, evitando, assim, a etapa em·opeia e subtraindo-o, por causa disso, do esquema clássico do comércio triangular que os outros países colonizadores conhecem. Essa nova política nasceu na sequência da iniciativa brasileira de Salvador Correia de Sá e Benavides ( 1602-1686) de reconquistar Angola, pela expulsão dos holandeses do porto de Luanda, em 1648. Na realidade, no entanto, desde 1559, os portugueses estabelecidos no Brasil encarregaram-se de aprovisionar de mão de obra negra suas terras brasileiras (Boxer, 1973: 236-254).
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Para além dessas grandes linhas históricas, é útil sublinhar alguns outros pontos-chave que permitem apreender melhor a especificidade do tráfico praticado nos séculos XVII e XVIII, na zona costeira da África que vai do sul do atual Gabão até a atual Angola, e que interessa de perto o Brasil. O primeiro ponto concerne ao papel inicial da ilha de São Tomé. C olonos portugueses nela instalaram-se a partir de 1485 e aí desenvolveram a cultura de cana-de-açúcar, tendo como corolário uma necessidade crescente de mão de obra para as plantações. D esde 1500 seus habi tantes receberam do rei de Portugal o privilégio de comerciar em roda a costa, desde o Golfo da Gui.né até o reino do Congo. Eles foram os primeiros a organizar o tráfico no Congo, que só começará realmente depois de 151 O. Desde a primeira metade do século XVI, eles praticavam um comércio de cabotagem ao longo das costas do Golfo da Guiné, vendendo num porto os escravos comprados em outro. De outro lado, na mesma época, eles comerciavam regularmente com Angola. AJiás, é o comércio entre São Tomé e Luanda que permitirá ao rei do Ndongo (Angola), por volta do primeiro quartel do século XVI, libertar-se completamente de seus laços de vassalagem com o reino do Congo e aproximar-se finalmente de Luanda. Seu exemplo será imitado, em seguida, pelas populações periféricas e marítimas do reino do Congo. Elas libertar-se-ão pouco a pouco de seu domínio e acabarão por se transformar, de antigos vassalos, em estados que faziam corretagem e serviam, assim, de intermediários para os europeus no comércio com o interior em razão de sua situação privilegiada de habi tantes da costa. Foi o caso de Loango e de Soio no século XVII. Esses estados acabarão por enfraquecer o reino do Congo, que declinará paulatinamente e acabará por desaparecer no fim do século XVII, depois da batalha de Ambuila (1665) , um reino então desagregado, mas também despovoado pelo tráfico (Randles, 1968: 130-132). Mais tarde, esses estados comerciantes conhecerão um desenvolvimento. Nos séculos XVIII e XIX, seu número crescerá e seu papel será formar um anteparo para os negociantes europeus (que raramente se afastavam de seus barcos para alem da praia) e os dois novos impérios do interior: o reino Bateque do Mucoco, situado ao norte do reino do Congo, e o império Lunda do Muataianvo, situado a leste, para além do rio Cuango. Para a história da escravidão no Brasil, convém lembrar os nomes dos principais estados corretores: a) os da costa: Loango, reino independente desde 1587; os holandeses aí praticaram o tráfico a partir de 1637; Cacongo (porto: Malemba) eAngoi (porto: Cabinda), independentes desde 1637, onde o tráfico será florescente até a primeira metade do século XIX; Soio (porto: Mpinda), independente desde 1648, com comércio mantido pelos holandeses; MussuJ (porto: Ambriz), independente no século XVIII, com comércio sustentado pelos ingleses; b) os do interior, na fronteira oriental da colônia portuguesa de Angola: Matamba e Caçanje (Randles, 1968: 197-20 1). Quanto à ocupação do território pelos portugueses, é preciso sublinhar que a antiga Angola, dominada pelos portugueses entre 1575 e 1880, limitava-se a uma estreita
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faixa de terra entre os rios Bengo e Cuanza, estendendo-se para o interior por cerca de 300 km. Benguela era um território separado e apenas foi englobado na nova Angola no final do século XIX. A penetração fez-se progressivamente: Luanda (1575), Ambaca (1616), PungoAndongo (1671), Malange (1838), depois Caçanje (1870), cujo reino fo ra fundado no primeiro quartel do século XVII pelos jagas (Randles, 1968: 212-219). O tipo de tráfico mudou também. No início, empreenderam-se guerras contra os negros sem a menor provocação, com a única finalidade de capturar escravos. Depois elas foram substituídas, no primeiro quartel do século XVII, por um comércio dito "pacífico", embora muitas vezes feito com a ajuda de meios coercitivos. Esse comércio estava nas mãos dos brancos instalados em Luanda, que confiavam as mercadorias aos pombeiros, mercadores iti nerantes negros ou mestiços. No interior, ele era supervisionado por agen tes oficiais do governo de Luanda (capitães-mores). Caçanje era considerado o principal mercado de todo o interior. As rotas comerciais eram as seguintes: a primeira, em seguida à descoberta de Diogo Cão, ligava a costa a São Salvador, capital do reino do Congo. Ela foi prolongada após 1530 até as vizinhanças do reino de Bateque, nos arredores de Stanley Pool, que se to rnará um dos principais viveiros do tráfico. Nesse entretempo, Luanda começará, desde 1548, a exercer um papel como porto de exportação de escravos. No fim do século XVI, duas novas rotas vão ser criadas a partir de Stanley Pool: uma ligando diretamen te esta cidade a Luanda (Pumbo-Luanda) e outra a Loango (Pumbo-Loango). Paralelamente, um comércio de cabotagem era praticado pelos portugueses entre Luanda e Loango. Depois da ocupação holandesa de Angola (1649), outras rotas substituirão o caminho Luanda-Stanley Pool: Luanda-Ambuila (1649), Luanda-Matamba (1660) e Lua.nda-Caçanje (1658), a mais importante até o século XIX. Entretanto, um fato novo produziu-se em seguida: Caçanje e Matamba, que eram, sobretudo, caçadores de escravos durante a segunda metade do século XVII, transformaram-se por sua vez em estados comerciantes, gerindo assim o fluxo de escravos provenientes do império de Lunda, situado para além do rio Cuango, o que lhe permitia n ão somente controlar o tráfico de escravos, mas também extorquir os que o faziam. Segundo Birmingham (1996: 152), os lundas teriam então respondido, estabelecendo um contato através do Congo com os portos do Norte, o que explicaria a longa crise de exportação de escravos do porto de Luanda no decorrer do século XVIII. Será apenas no início do século XIX que o tráfico conhecerá de novo um grande impulso (Randles, 1968: 173-174, 219-223) . Naturalmente, os dados supracitados demandam ser completados por aqueles relacionados ao ciclo da costa de Mina, que atingiu novamente, no século XVIII, os negros ditos sudaneses e particularmente, embora não exclusivamente, os africanos de uma zon a da costa que atualmente compreende os seguintes países: Gana, Togo, Benim e N igéria.
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Línguas africanas do tráfico Pode-se, agora, tentar uma estimativa das línguas concernentes ao tráfico. Consideradas as regiões de origem dos escravos, seu número parece reduzido em relação à quantidade total de línguas inventariadas recentemente na África. Há uma explicação para isso. Até o fim do século XVIII, o interior da África permanecia praticamente desconhecido, pois os europeus só frequentavam as costas em razão dos numerosos obstáculos naturais que tornavam difíceis os deslocamentos para o interior tanto por via aquática quanto por via terrestre. Levando-se em conta esses limites geográficos, ainda assim o número real de linguas atingidas pelo tráfico é significativo. Elas repartem-se basicamente em duas áreas de proveniência: a) a área oeste-africana, caracterizada pelo maior número de línguas, tipologicamente muito diversificadas:
atlântica: fula (fulfulde), uolofe, manjaco, balanta; mandê (sobretudo, o mandinga); bambara, maninca, diúla; gur: sub família gurúnsi; cuá (subgrupo gbe) : eve,fon, gen, aja (designadas pelo termo jeje no Brasil); ijoide: ij'ó; benuE-congolesa: defoide: falares iorubás designados no Brasil pelo termo nagô-queto; edoide: edo; nupoide: nupe (tapa); iboide: ibo; cross-river: efique, ibíbio; afro-asiático: chádica: hauçá; nilo-saariano: saariana: canúri. b) a área austral, essencialmente do subgrupo banto- limitada à costa oeste (atuais repúblicas do Congo, República Democrática do Congo e Angola) e somente mais tarde estendendo-se à costa leste (Moçambique) -,caracterizada por um número muito reduzido de línguas, tipologicamente homogêneas, mas faladas pelo maior número de cativos: H . 10 congo (quicongo): quissolongo, quissicongo (quissangala), quizombo, quissundi (falada pelos bacongos, numa zona correspondente ao antigo reino do Congo) e quivíli, iuoio (fiote), quiombe (faladas em Cabinda e em Loango); H. 20 quimbundo (falada pelos ambundos, na região central de Angola, correspondendo ao antigo reino de N dongo), quissama, quindongo; H . 30 iaca-holo: iaca, imbangala, chinji; K. 10 chôcue: uchôcue, ochinganguela, chilucazi, luena (luva/e);
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L. 30 luba: chiluba-cassai (lulua); L. 50 funda: chilunda, urunda; P. 30 macua: omacua; R. 10 umbundo (falado pelos ovimbundos na região de Benguela, em Angola): umbundo, olunianeca; R. 20 cuaniama, indonga: ochicuaniama, cuambi; R. 30 herero: ochiherero.
Os cativos e suas línguas Mas que dizer a respeito dos próprios falantes, a saber, dos cativos africanos? Evidentemente, é muito difícil responder tal questão. Entretanto, algumas luzes podem emergir, quando se consideram as modalidades de tráfico praticado pelos portugueses em Angola. Embora geográfica e historicamente circunscritas, são essas mesmas modalidades que prevaleceram no comércio direto de Angola com o Brasil. Desde o início, o tráfico era essencialmente um comércio a longa distância, pois ele exigia estabelecer, primeiramente, trocas com regiões afastadas, tanto mais que habitualmente os escravos vendidos nos portos dos estados comerciantes provinham de outras etnias. Era o pombeim que se encarregava de viajar pelo interior para trocar mercadorias (tecidos ou outros objetos) por escravos, mas também por marfim. Retornando, os escravos eram destinados a ser exportados ou a ser utilizados na costa a serviço dos habitantes do estado corretor. As exportações faziam-se por três pontos principais: da região ao norte do rio Congo (ex-Zaire), por Loango e pelos portos vizinhos de Malemba e Cabinda; do Congo, pelo porto de Pinda na foz do rio; de Angola, por Luanda (Randles, 1968: 177). A esses portos, é preciso acrescentar também o de Benguela. Esse tipo de comércio levou a criar, nos lugares de embarque, entrepostos de cativos, cada vez mais permanentes, fixos e organizados. No mais das vezes, meses eram necessários para completar a carga de um navio. No Congo, em Angola, em Benguela, os portugueses privilegiaram o "depósito fixo" (barracão), instalação onde empregados permanentes dispunham de tempo para reunir um grande número de cativos e entregá-los juntos aos negreiros. Os cativos, geralmente enfraquecidos pela viagem do interior para a costa, recebiam aí cuidados especiais antes de ser embarcados e, se a partida demorasse, eles trabalhavam a terra para dela retirar os mantimentos necessários para sua alimentação (Boxer, 1973: 243) . Uma variante desse sistema, utilizada em Angola pelos portugueses, consistia em estabelecer um depósito de cativos não em terra firm e, mas num grande navio permanentemente ancorado num porto, a fim de tornar um grande número de cativos menos vulnerável aos ataques exteriores. Essa organização particular do tráfico, diretamente orientado para o mercado brasileiro, criou as condições linguísticas favoráveis à emergência de uma nova situação
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linguísrica para os cativos, transitória, é verdade, mas que pôde influi r, por sua duração e sua renovação regular, naquela que ocorrerá em seguida no Brasi l. Essa situação caracteriza-se por uma concentração forçada e pro longada de falantes de línguas africanas diferentes, mas tipologicamente próximas, o que pôde conduzir, no caso de Angola, à adoção do quimbundo como língua veicular, falada em Luanda e ao longo do rio C uanza até sua foz; no mesmo período, deu-se um contato igualmente forçado e prolongado com a língua portuguesa, falada no interior primeiramente pelos pombeiros (recrutadores de cativos) e, em seguida, na costa africana pelos negreiros brasi leiros, que eram às vezes seus futuros senhores. Não se pode esquecer, ademais, o período da viagem marítima, que se passava nos porões dos navios e que durava aproximadamente trinta e cinco dias de Luanda a Recife, quarenta, até Salvador e dois meses, até o Rio de Janeiro. Em Angola e provavelmente no Brasil, a lingua portuguesa da época já integrara, em sua variante local, u m número importante de termos africanos, de que dão testem unho os escritos desse período: 87 termos em 1622-163 5 ( Colectânea documental de Fernão de Sousa), 160, em 1680 (Olivei ra de Cadornega), mais de 400 termos atestados na edição italiana da narrativa de Cavazzi (1687). Vários cativos estavam já familiari zados com o português falado em Angola ou eram seus falantes. Paralelamente, para os escravos que continuavam a transitar pela ilha de São Tomé, ocorria um contato prolongado com o falar da ilha, um crioulo de base portuguesa, que levava o nome do lugar onde era falado (hoje é a língua oficial de São Tomé). Aliás, é nessa ilha que nasce um pidgin original, o angolar, empregado pelos descendentes de an tigos escravos de origem angolana cujo navio encalhara na ilha em razão de um naufrágio, quando ele estava navegando para as Américas. A primeira experiência linguística dos cativos originários da área bam a foi, assim, a de um pl urilinguismo forçado e concen tracionário, que res ultou, antes mesmo de sua partida para o Brasil, no provável emprego de uma lfngua veicular african a (o quimbundo) e numa certa fam iliaridade com a língua de seus futuros senhores. Isso terá como consequência o fato de que, para numerosíssimos escravos negros brasileiros, originários de Angola, o plurilinguismo brasileiro - línguas africanas transplantadas, língua portuguesa, dos senhores - com que serão confrontados não será vivido como uma experiên cia primeira e inédita. Num e noutro caso, tratar-se-á, pelo menos, do já "ouvido", o que pode explicar, ao mesmo tempo, a adoção de uma língua veicular africana e, em certos casos, o emprego imediato da língua falada pelos senhores.
As línguas dos escravos no Brasil Q ue sabem os de fato das línguas faladas pelos escravos no Brasil ? Há testemunhos escritos sobre elas?
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Antes de responder a essas questões, duas considerações impõem-se. A primeira é de ordem metodológica. Como já se afirmou na primeira parte a propósito do histórico dos debates sobre a relação entre línguas africanas e língua portuguesa, privilegiar-se-á sempre um procedimento científico que se apoie sobre fatos, isto é, dados realmente atestados e historicamente datados. São esses dados e não hipóteses que devem servir de suporte à argumentação e à interpretação. As hipóteses nada comprovam. A segunda reflexão diz respeito às línguas africanas que foram trazidas da África para o Brasil. Qualquer que seja sua identidade e sua antiguidade, trata-se sempre de línguas desenraizadas de seu nicho ecológico, submetidas, além disso, ao perigo de diversas rupturas. D aí decorre seu estado de degradação. A ruptura semântica foi, sem dúvida, a que mais se sentiu: para os africanos deslocados, o sentido das palavras tornou-se brutalmente obsoleto ou passou a "girar em falso", porque elas não refletiam mais a realidade africana, mas, ao mesmo tempo, ainda não tinham apoio na nova realidade, constituída de noções diferentes e de denominações novas (plantas, farmacopeia, caça, animais, novas técnicas e novos p rodutos de consumo). A outra ruptura foi de ordem dialógica, pois essas mesmas lfnguas foram confrontadas com contatos linguísticos inabituais: novas línguas convivendo no mesmo espaço (outras línguas africanas decorrentes do tráfico, línguas ameríndias, língua portuguesa falada pelos senhores), sem esquecer a perda de seu valor identitário consecutivo ao nivelamento da língua resultante do desaparecimento das variantes dialetais. Malgrado a escassez bem compreensível de documentos escritos, em razão da situação histórica inteiramente nova e da ausência de estatuto social reconhecido dos escravos, há alguns documentos, q ue podem servir de índices e também de balizas para esboçar a história da presença de línguas afri canas na si tuação linguística decorrente da escravidão. Cronologicamen te, pode-se ter em co nta os seguintes documentos:
Século XVII : quimbundo fa lado no Brasil, gramatizado em Salvador da Bahia O primeiro documento escrito data do fim do século. Tinha o título de Arte da ltng;ua de Angola e seu autor foi Pedro Dias, sacerdote jesuíta. Foi redigido no Brasil, mas publicado em Lisboa com as segui ntes informações catalográficas: Arte da lingoa de
Angola, oeferecida a Virgem Senhm"a N do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Pedro Dias da Companhia de jestt. Lisboa, na Officina de Miguel Deslandes, Impressor de Sua Magestade. Com todas as licenças necessarias. Anno 1697. 48 p. Esse documento é um real acontecimento linguístico (Bonvini, 1996). Ele é, primeiramente, uma prova histórica do emprego de uma língua africana no Brasil no século XVII. Permite, em seguida, descobrir a política linguística estabelecida pelos jesuítas. Tem, sobretudo, uma importância significativa no plano linguístico, de três
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pontos de vista: é objetivamente a primeira descrição gramatical do qui mbundo, redigida, além disso, a partir de dados recollúdos no próprio Brasil; contém, em seu texto, observações que permitem mostrar o olhar que um falante do português dessa época lançava sobre uma língua africana tipologicamente diferente da sua; é enfim o testemw1ho do português utilizado no século XVII no Brasil, nos meios cultos. Por sua importância e pelo próprio fato de que ele é praticamente ignorado no Brasil, convém dem orar um pouco sobre a história e o conteúdo desse texto. Citemos, inicialmente, as informações dadas sobre ele e seu autor pelo historiador da Companhia de Jesus no Brasil, Padre Serafim Leite, S. J. (Leite, 1947: 9-11): Ped ro Dias, português, nasceu em 1622 na Vila de Gouveia. Foi menino para o Brasi l e entrou na Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro, com 19 anos de idade, a 13 de julho de 1641. Versado non mediocriterem D ireito C ivil e Canôn ico e em Medicina. Assinalou-se como homem de extremosa caridade para com os pobres e pretos de África, a cujo serviço colocou os seus conhecimentos médicos e os curava pelos próprios meios e com rem édios por ele mesmo manipulados. Levado por este amor aos escravos, e para mais faci lmente os tratar, aprendeu a língua de Angola (não se diz qua ndo: já a sabia em 1663) e escreveu a Cramdtica da mesma língua para que outros a aprendessem. Quando fal eceu na Baia, a 25 de janeiro de 1700, os negros correram em multidão à Igreja do Colégio e teve o que hoje talvez di riamos funerais nacionais (p. 9-1 0).
Em seguida, ele lembra que: ... no breve Cat. Scriptores Provinciae Brttsifiensis, onde se lê q ue a Arte fo i escrita para uso dos Padres da Companhia no Brasil, que se ocupam na conversão dos pretos trazidos de Angola (p. I O).
Termina pelo conteúdo de uma carta do próprio autor, "Carta do Pe. Pedro D ias ao Pe. Geral Tirso Gonzales, da Baia, 3 de Agosto de 1694": Dizq ueconcluiu a Arte da línguadeAngob:t., movido pela necessidade espiritual em que jazem os angolanos. Compô-la segundo as regras da gramática e foi revista e aprovada pelo P.• Miguel Cardoso, natural de Angola, muito versado nessa língua, e a manda agora o Provincial para se imprimir, pedindo ao Geral a ind ispensável licença. Estão à espera dela muitos novos e até velhos, que trabalham com estes miserabilíssimos e ignorandssi.mos homens, e não se acha nenhuma Gramática desta língua, nem no Brasil nem no Reino de Angola. Tinha também começado um Vocabofdrio Português-Angolano; e logo q ue o co ncl uir vai compor o Vocaboldrio Angob:t.no-Português. Assim se acabará a dificuldade em aprender esta língua (p. 10).
Esse testemunho do Padre Serafim Leite constitui, por assim dizer, a prova externa de que essa primeira gramática foi redigida no Brasil. Entretanto, uma prova interna surge da análise do próprio texto. Já o próprio título dessa gramática é insólito em relação aos títulos habituais dos trabalhos da época consagrados às línguas africanas, realizados fora do Brasil. Em troca, esse título é facilmente compreendido, se é colocado num contexto brasileiro, pois retoma, embora parcialmente, o título do livro do "pc loseph de Anch ieta da Cõpanhia de Iesu" consagrado à língua tupi,
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lfngua veicular na época, Arte de gramatica da lingua mais usada na costa do Brasil escrito um s.éculo_ antes (1595). Em seguida, o subtftulo: oefirecida a Virgem Senhor~ N do Rosarto, May, e Senhor-a dos mesmos Pretos' em que 0 empr·ego de " mesmos" sena · redundante se t~vesse sido redi~ido em Angola. Enfim, a nota na parte inferior da capa: Com todas as lzcenças necessanas. Entre essas, os três primeiros imprimátmes foram dados pelas autoridades da Com panhia de Jesus da Bal1ia, respectivamente, Antonio Cardoso ( .. . digno de se imprimir. Collegio da Bahia 13 de junho de I69Õ), Francisco de Lima ( .. . está conforme com o idioma de Angola. Collegio da Bahia 24 de junho de 169Õ), ~exandre de G usmão ( ... a qual fo i revista, & aprovada por pessoas peritas na
mesma lmgua de Angola; & por verdade dei essa assinada como meu sinal, & se/fada com o se/lo de meu Officio. Bahia, 7 de junho de I69Ô). São, entretanto, algumas reflexões do próprio Dias no interior de sua descrição gra.matical- argumento interno ao texto - que sugerem que ela teve por objeto 0 quzmbundo falado no Brasil. Diante de certas variantes linguísticasencontradas no Brasil, por duas vezes, Dias remete a uma situação linguística que deveria corresponder à de Angola: " ... costumaõ muitas vezes usar dellas os Ambundos, pondo hias por outras, por causa das variedades das linguasAngolanas" (p. 1O); " .. .deve ser pela variedade das terras, & nações" (p. 24). Tais observações seriam inúteis se o texto tivesse sido redigido em Angola, pois lá seria fácil identificar tais "variedades das línguas Angolanas". . N um primeiro momen to (Bonvini, 1996), tín hamos considerado que 0 quzmbundo descrito por Dias era o falado na Bahia. É possível. Entretanto, os dados supracitados trazidos por Leite incitam a reavaliar essa hipótese inicial. Ele sublinha, com efeito, que Dias "entrou na Companh ia de Jesus, no Rio de Janei ro, com 19 a~ os de idade, a 13 de julho de 1641" e que "aprendeu a língua de Angola (não se d tz quando: já a sabia em 1663)". O contexto histórico de 1641 não é anódino. Se esse ano coincide com a ocupação de Luanda pelos holandeses, que a consideravam 0 melhor mercado de escravos do mundo, no Brasil ele sucede a um ano de pertmbações, tanto no Rio como em Santos e em São Paulo, que ocorrem depois da publicação do Breve do Papa Urbano VIII a respeito da liberdade dos ameríndios. Em 1640, revoltas antijesuíticas tiveram lugar no Rio de Janeiro (Boxer, 1973: 144-148). Um episódio, n~l~s ocorrido, significativo para nosso propósito, é assim evocado: "O populacho cnncou acerbamente os jesuítas por possuírem mais de seiscentos escravos só em um colégio do Rio, m as os padres procuraram justificar-se alegando que os escravos 'eram quase todos negros"' (Boxer, 1973: 147). É nesse contexto que o jovem D ias iniciou sua formação completa ("em Direito Civil e Canônico e em Medicina") , provavelmente no mesmo colégio. Não seria nada surpreendente que ele se tivesse familiarizado, no próprio Rio, com o quimbundo, ap rendendo-o e praticando-o com aqueles "pobres e pretos de África, a cujo serviço colocou os seus conhecimen tos médicos", segundo a fórm ula de Leite.
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Outros dados permitem induzir que o quimbundo era utilizado pelos jesuítas em outros lugares do Brasil e que o critério do conhecimento ou da prática dessa língua condicionava a designação do pessoal, testemunhando assim, desde essa época, verdadeiro estabelecimento de uma política linguística em grande escala. Com efeito, em Brásio (1973), encontra-se um texto consagrado aos "africanos" que acederam ao sacerdócio ou à vida religiosa no mundo (886-925). Nele o termo "africano"
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corresponde a "todo o indivíduo que nasceu . .. no continente africano" (891). De modo particular, ele estabelece uma lista de 280 nomes, e ntre os quais, onze concernentes ao Brasil, dos quais sete têm o conhecimento da língua mencionado como aptidão ou talento que justifica a designação: 23 -Ir. Jerónimo de Corte Real, S.J ., natural de Angola, faleceu em Pernambuco em 1625, era excelente nas lfnguas lati na e de Angola... (896). 54 - Padre João de Araújo, angolano, entrou na Companhia na Baía, em 1764, com 15 anos de idade. Foi insigne na língua de Angola ... (900). 62- Pad re Manuel da Lima, natural de Luanda, deve ter nascido por 1667. Entrou na Companhia em 1683, na Bala. Sabia a língua dos pretos angolanos... (90 1). 63- Padre Miguel Cardoso. Nasceu em Luanda em 1659. Entrou na Companhia, na Bala, em 1674. Foi Reitor do colégio do Recife (1702) e do Rio de Janeiro (1716). Faleceu Provincial do Brasil, em Santos, com 62 anos, em 1721. Foi um dos mais ilustres filhos de Angola ... (901). 64 - Padre Francisco de Lima nasceu em Luanda, em 1664. Ingressou na Companhia, no Colégio da Baia, em 1683. Foi conh ecedor profundo da lfngua de Angola. Faleceu no Recife ... (90 I). 65 - Padre A.nrónio Cardoso, natural de Luanda ... nasceu em 1669. Entrou na Companhia de Jesus no Colégio da Bala em 1684. Sabia a língua dos negros de Angola. Foi Reitor do Seminário de Belém da Cachoeira (Baía) e duas vezes do Colégio do Rio de Janeiro ... (90 1). 69 - Padre Francisco da Vide. Oriundo de Luanda, tinha 27 anos em 1694. Alistou-se na Companhia, no Brasil, em 1686. Sabia com perfeição a língua de Angola. Consagrou a vida aos negros africanos na região do Rio de Janeiro.. . (902).
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que ia muito além da Bal1ia. É claro que havia um grande contingente de escravos africanos na Bahia (23.000 em 1660, segundo testem unho do Padre Antônio V ieira), catequizados na língua de Angola; m as os d ad os acima citados deixa111 supor que muitos outros escravos negros oriundos de Angola, mas dispersos em so lo brasileiro, falavan1 essa língua, que manifestava assim seu papel de língua veicular, adquirido já em Luanda, conforme o que se escreveu acima a propósito das línguas dos cativos. No plano científico, a obra de Dias é de um interesse inegável, tanto para a África quanto para o Brasil. O interesse para a África e, particularmente, para a história da linguística africana (Bonvini, 1996) deriva, antes d e mais nada, do fato de que se trata da primeira gramática sistemática do quimbundo, na qual se abordam sucessivan1ente os seguintes temas: os nominativos (4-8), os pronomes primitivos [eu, tu, ele, nós, vós, eles] (8), os pronomes demonstrativos (9) , os pronomes relativos (9-10), os nomes demonstrativos (10), a conjugação dos verbos (11 -21), o verbo negativo (21-22), 0 verbo substantivo (22), os verbos d efectivos ["imperfeitos"] (23), os gêneros (23-24), os pretéritos (24-27), os pretéritos mais que perfeitos (28-31), a composição do nome verbal (31 -32), os aumentativos (32-33), sintaxe (33), regras do nominativo (35), verbo infinitivo (35), nome adjetivo (35-37), relativo (37-39), os substa ntivos contínuos [sintagmas nominais] (39), pergunta-resposta (39-40), genitivo depois de um nome [posse] (40), partitivos (40), superlativos (41), verbos neutros (41 -42) , verbos ativos (42-43), dativos e acusativos (43), verbos ablativos (43), verbos passivos (43), "propria pagorum" [locativos] (43-44), gerundivos (45), advérbios (45-47), interjeição (47), conjunção (47), 'para' [final] (47-48). Entretanto, o que faz a originalidade dessa obra é o fato de que, tendo-a redigido "segundo as regras d a gramática" (Carta doPe. Pedro D ias ... Baía, 3 de Agosto de 1694), ele deixo u de lado o modelo latino dos "casos", que ele considerava inadequado para o tratamento do que é chan1ado hoje "classes nominais", características do quimbundo, mas também, de maneira mais an1pla, das
preciso sublinhar também que, apesar da ausên cia de menção explicita de conhecimentos linguísticos, foi precisamente o Padre Miguel Cardoso que supervisionou a redação da Arte da Língua de Angola, de Pedro Dias, justamente em virtude de seu conhecimento
línguas nigero-congolesas. Ele diz explicitan1ente: "Naõ tem esta língua declinações, nem casos; mas tem singular, & plurar (p. 4)". Por essa tomada de posição teórica e metodológica, ele punha fim ao debate sobre a interpretação das classes nominais que m arcara, desde muitos decênios, os primeiros trabalhos a respeito das línguas africanas. Ele procurava, então, formular regras relativas à passagem do singular ao
do quimbundo. Os jesuítas dessa lista, naturais de Luanda ou de Angola, evidentemente, não eram
p lural, limitando-se, assim, apenas ao plano formal. O de bate prosseguirá até o fim do século XIX com a elaboração (aliás, laboriosa) da noção de "classes nominais" . O
público visado pelos trabalhos linguísticos de Dias. Ademais, os nomes geográficos evocados na listagem dos sete a ngolanos (Pernambuco, Recife, Bahia, Rio de Janeiro)
que é preciso notar, no entanto, é que a questão do modelo latino dos "casos" para as "classes nominais" nas línguas africanas foi resolvida no Brasil. No que se refere ao Brasil e co m a distância do tempo, a obra de Dias constitui
"Língua d e Angolà', nessa época, d esignava o quimbundo falado em Luanda. É
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não recobrem a totalid ade dos lugares em que h avia colégios jesuítas no Brasil. Não obstante, a insistência no conhecimento da língua de Angola, assim como a variedade dos lugares de exercício do ministério deixam entrever que, no século XVII, o quimbundo era a língua africana de referência para uma extensão geográfica
um duplo testemunho. Em primeiro lugar, ela tes temunha o emprego corrente e habitual, no século XVII, no Brasil, de uma lfngua africana, o quimbundo, falado por escravos originários de Angola, numa área geográfica extensa, não limitada apenas ao
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Línguas africanas e português falado no Brasil
África no Brasil
estado da Bahia (cf dados supracitados). O s exemplos da gramática de Dias mostram clarameme que se trata de uma língua em sua integralidade, próxima da que é falada atualmente em Angola. Não se trata, de manei ra nenhuma, de um pidgin ou de uma llngua mista. Isso é capital. É importante igualmem e não negligenciar a data de redação dessa gramática: ela precede somente de um ano a destruição do Quilombo de Palmares (1695). Ora, diversos autores concordam em afirmar que, nesse quilombo, falava-se uma l!ngua de tipo banto, que poderia tornar verossímil a hipótese de que essa Hngua poderia ser o quimbundo descri to por Dias. Em segundo lugar, esse texto testemunha o olhar lançado por um "falante" português do século XVII, e culto além do mais, sobre uma língua africana. Esse olhar aparece, antes de mais nada, como um "espanto" diante da "estranheza" gramatical dessa l!ngua, percebida e vivida como diferente em relação a sua próp ria língua, o português, mas também ao latim, Hnguas consideradas até então padrões de referência. A título de exemplo, eis o que escreve Dias: Página 4: Dos nominativos Página 7-8: Todos os adjecrivos tem sómenre h ia forma, sem differença degenero, nem casos, v.g. Quiambore, causa boa. Muruüambore, pessoa boa. Porém quando se poem a partícula, Qui, fazem adverbios, & to mam a sign ificaçaõ do adjectivo, v.g. Quiambote, mui to bem. Página 23-24: Dos gêneros "Naõ tem esta lingua Generos; explicaõ-se porém pelos sexos femenino, ou masculino. v.g. Yalla, macho. Ngana yaalla, senhor. Muhetu, femea. Ngana ya muheru, senhora, &c." Página 11: Conjugação Para sabermos por que letra começa o verbo, polohemos no Tmperativo, sem algum acrescentamento, nem antes, nem depois; porque neste caso se poem o verbo simplezmence com suas letras, & syllabas cssenciaes. Página 2 1: Do verbo negativo Tem o verbo negativo a mesma conjugação que o verbo, Cuzóla, de que fallamos, ao qual acrescentando esta palavra Caná, antes, ou depo is do verbo, fica negativo. v.g. Canangazóla, naõ amo, Canánggiba, não matei. Porém posta anres, & depois do verbo, nega com efficacia. v.g. Canángagiba caná, não matei não. Tem outras negações com variedade de tempos, & pessoas, singular, & pl urar, postas antes do verbo; as partículas pessoaes para o singul. saõ: 1. Quené. 2. Cu. 3. Ca. (...) Página 4 1: ... nessa língua duas negações exageraõ o q? se nega. Página 24: Dos pretéritos Tem os verbos desta lí ngua geralmente tres preteriras perfeitos; o I . significa ha pouco tempo; o 2. que ha mais tempo; o 3 . que ha mu ito mais tempo... Página 43: Verbum passivum 22: Naõ tem esta lingua verbo passivo, donde para dizerem, D eos he amado dos homens, dizem, O mala azo la nzarnbi, os homens amão a Deos: pondo o verbo na activa. Tambem para dizerem, os homens saõ amados de si, dizem O mala arizola, os homens se am ão a si ... Página 43: Naõ tem os Ambundos (como já dissemos) verbo passivo, mas usaó do verbo acrivo.
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Página 45: Advérbios Além dos adverbios ord inarios, todas as terceiras pessoas de ambos os nwneros si ngular, & plurar wmadas neutralmeme, & assim mesmo os adjectivos, servem de adverbios, v.g. Quiámbote, bem.
"Concordância de gênero", "passiva", "dupla negação" ... eis o que parecia insólito para um falante português do século XVII diante de uma língua africana. No século XX, esse espanto recai sobre o próprio português, ao menos em sua variante dita popular.
Século XVIII: uma língua veicular africana falada em Minas Gerais Trinta e quatro anos depois do aparecimento do texto A rte da língua de Angola, de Pedro D ias, Antonio da Costa Peixoto redigiu, em Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica de Ouro Preto, um outro texto, desta vez sobre uma língua "mina" . Uma primeira versão data de 173 1 e é conservada na Biblioteca Nacional de Lisboa (n° 3052 do Fundo Geral). Dez an os depois, em 174 1, o mesmo autor fez uma segunda versão sob o título Obra nova de Lingoa g. nl de mina, traduzida, ao nosso Igdioma por Antonio
da Costa Peixoto, Naciognal do Rn. • de Portugal, da Província de Entre Douro e Minho, do concelho de Filgr. completada por um p rólogo de duas páginas suplementares e de uma 41
,
"advertência" final. Essa versão está conservada na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (Códice CXVI/1- 14b). Trata-se de um m anual destinado aos "senhores de escravos, e hinda os que não tem", a fim de evitar, pelo conhecimento e a prática dessa língua, "tantos insul tos, ruhinas, estragos, roubos, mortes, e finalm.~< muitos cazos atrozes". No prólogo, o autor precisa que seu trabalho consiste em "traduzir ao nosso igdioma porrugues, a lingoa g.al de Minna", sem pretensões literárias: "Não a descrevo com aquelle fundam .10 e distinção que a nossa pulicia pede, cauza de me faltarem as letras nos annos que a elles me pudera aplicar". Tanto no plano histórico quanto linguístico, esse texto apresenta um interesse particular, porque ele concerne a uma situação até então inédita: no espaço reduzido do quadrilátero mineiro "Vila Rica, V ila do Carmo, Sabará, Rio dos Montes", a necessidade de explorar intensivamente ouro e diamantes, descobertos no século XVIII, chegou a uma concentração maciça de cerca de 100.000 escravos em média por ano. Eles eram originários da costa do Benim - chamada M ina e situada, grosso modo, entre Gana e a Nigéria- e renovados regularmente durante um período de uns 40 a 50 anos. Esse texto permaneceu como manuscri to e era desconhecido até 1945, quando a segunda versão, a de 1741, foi finalmen re publicada em Lisboa por Luís Silveira, sob o título Obra nova de Língua geral de Mina de António da Costa Peixoto (Silveira L. 1945), acompanhado de um importante "comentário filológico" de Edmundo Correia Lopes, intitulado "O s trabalhos de Costa Peixoto e a língua evoe no Brasil" (p. 45-66).
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África nó Brasil Línguas a fric anos e português falado no Brasil
Do comentário de Correia Lopes, vamos reter algumas observações que, numa perspectiva linguistica, parecem-nos particularmenre interessantes. Já no início, ele afirma: "Por Ogunu, Gumt, Gu ou alada, entende-se uma variedade do Fon ou daomé, um dos dialectos que constituem a lingua Evoe (eve) ... O dialecto em questão foi no Brasil setecentista a língua geral da Mina ... " (p. 45). A partir dessa constatação, colocam-se duas questões. A primeira é saber se "o gu era o dialecto materno de todos os escravos oriundos da Costa da M ina". Ele responde a ela pela negativa, afirmando que "os contemporâneos de Costa Peixoto sabiam perfeitamente que o gu não era a língua materna de todos os escravos que o falavam no Brasil", o que lhe permitia concluir que: "por isso mesmo o autor das obras de língua mina lhe chama língua geral" (p. 46). A segunda questão incide sobre o próprio estado da língua em relação a seu estado de partida, sua conformidade com seu estado de origem: "Do facto de estar subordinado no Brasil a uma língua oficial e domillante, sendo falado por muitos indivíduos cuja língua materna era outra, teria o gu sofrido grande contaminação na sua pureza?" (p. 46). A resposta de Correia Lopes é taxativa: é impossível responder a essa questão de uma maneira satisfatória, por duas razões que concernem à própria obra. A primeira é de ordem geral: "As obras de Costa Peixoto são muito rudimentares ... Apresentam-nos uma linguagem paupérrima, arrancada, não sabemos como, a negros que podiam não ser dos que a falavam melhor" (p. 46). A segunda é metodológica e incide sobre o número reduzido de exemplos. Em sua opinião, não se pode mais falar de uma língua mista: "não se trata de uma mistura de línguas" (p. 47). Ele conjectura que se trata antes de uma língua num estado um tanto quanto empobrecido: "Passando por muitas bocas em que não era senão hóspede, usada como meio de dissimulação por muitos escravos que falariam melhor o português, pode a linguagem africana ter perdido certo número de recursos próprios e, já por esse motivo, já, sobretudo, por influência do português, modificado pouco ou muito a sua sintaxe de posição, o seu vocabulário ... " (p. 4 7). Daí ele deduz que, para os pesquisadores, o interesse dessa Obra está, de fato, no nível do vocabulário: "Para os investigadores brasileiros ela terá simplesmente a utilidade de um vocabulário accessível onde encontrar as palavras que estiveram em uso no Brasil, uma ou outra das quais pode ainda ter deixado vestígios" (p. 47). No domínio da gramática, ao contrário, "as obra do curioso de Filgueiras diferem muito mais das gramáticas de hoje por ignorância do autor que por evolução da língua" (p. 47). Isso não o impede de tentar estabelecer uma diferença, limitada, entretanto, à fonética, en tre a língua falada no Brasil e a língua africana atual (p. 5 5-63), porque, no que concerne à morfologia e à sintaxe dos verbos, ele estima que o texto é "estéril". O conjunto de noções que ele constrói em torno desse texto relativamente breve é, no entanto, bastante significativo no plano linguistico. Trata-se da questão da "língua geral" oposta à "língua materna outra" e também da "I inguagem africana" que se presume "ter perdido certo número de recursos próprios ... por influência do português". Esse último aspecto parece tanto mais espantoso, porque, na mesma época, isto é, no fim do
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século XIX e, sobretudo, a partir dos anos trinta do século XX, afirmava-se o inverso do português, que se presumia ter sido influenciado por línguas africanas. Bem recentemente, Yeda Pessoa de Castro (2002) consagra-lhe um estudo de uma amplitude diferente. Apoiando-se na análise de Correia Lopes, ela centra 110 falar fon sua própria análise da língua "mina", inclusive fazendo dele seu "paradigmà', porque ela estima que "o fongbe destaca-se como [a língua] majoritária no repertório da 'língua geral de mina', além de se mostrar a mais significativa do seu grupo no processo de configuração da linguagem litúrgica das religiões afro-brasileiras, razões por que foi tomada como paradigma no estudo ... " (p. 54). São essencialmente critérios estatísticos que fundamentam sua escolha tanto mais que a língua fon é "majoritária no vocabulário de Costa Peixoto (82%)" (p. 68). A utilidade desses cálculos é inegável, pois eles permitem dispor de ordens verificáveis de grandeza. Entretanto, no plano linguístico, seu valor argumentativo é quase nulo: o argumento estatístico não atinge nunca o estatuto de "prova" linguística, servindo apenas para constituir uma presunção. A "prova" linguística repousa exclusivamente em argumentos linguísticos. No caso do vocabulário de Costa Peixoto, para chegar a uma conclusão válida, teria sido preciso fazer preliminarmente um estudo comparativo e sistemático entre esse vocabulário e os diferentes vocabulários dos diversos falares do mesmo subgrupo linguístico, isto é, o gbe, a fim de demonstrar, unicamente com base em critérios linguísticos, com quais desses falares ele tem uma relaçáo específica e exclusiva. Na ausência dessa comparaçáo, ignoramos completamente quais são exatamente os falares a que, e em que proporção, esse vocabulário concerne. Em outras palavras, se os dados estatísticos sugerem, em primeiro lugar, o fo n, isso ocorre também do ponto de vista linguístico a ponto de excluir, nitidamente, todos os outros falares como sendo linguisticamente não pertinentes? Sem prova linguística, haverá sempre dúvida sobre a origem exata do vocabulário da língua "mina". Lembremos de passagem que, para os linguistas de hoje, o fon faz parte do gbe, que é uma "language unir" (grupo de línguas) , que engloba 51 "dialetos" (Capo, 1991 : 1-6). D aí sua designação atual pelo termo "fongbe", literalmente "fon-idioma". A contribuição essencial desse estudo reside, na verdade, na contextualização, com ajuda de uma documentação particularmente extensa e pertinente, do próprio manuscrito, tanto no p lano sócio-histórico quanto ernolinguístico. Essa contextualização concorre seguramente para melhor compreender o sentido do vocabulário específico em língua "mina", aclarando, por vezes de uma maneira nova, o sentido de certos termos aparentemente obscuros, tais como gamlimno 'gente' e cobo, de 'cové', região de agrupamento maí. Ela permite, além disso, apreciar melhor, num plano etnossócio-histórico, os minidiálogos do texto original. Nesse estudo, o vocabulário de C osta Peixoto foi reorganizado em ordem alfabética (p. 67-93) e retomado, em seguida, por áreas temáticas (p. 171- 185). Os minidiálogos do manuscrito foram "reconstruídos": "Os diálogos (... ) reconstruímos
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Do comentário de Correia Lopes, vamos reter al gumas observações que, numa perspectiva linguística, parecem-nos particularmente interessantes. Já no início, ele afirma: "Por Ogunu, Gunu, Gu ou alada, entende-se wna variedade do Fon ou daomé, tun dos dialectos que constituem a lingua Evoe (eve) ... O dialecto em questão foi no Brasil setecentista a língua geral da Mina . . ." (p. 45). A partir dessa constatação, colocam-se duas questões. A primeira é saber se "o gu era o dialecto matemo de todos os escravos oriundos da Costa da Miná'. Ele responde a ela pela negativa, afirmando que "os contemporâneos de Costa Peixoto sabiam perfeitamente que o gu não era a lingua materna de todos os escravos que o falavam no Brasil", o que lhe permitia concluir que: "por isso mesmo o autor das obras de língua mina lhe chama língua geral" (p. 46) . A segunda questão incide sobre o próprio estado da língua em relação a seu estado de partida, sua conformidade com seu estado de origem: "Do facto de estar subordinado no Brasil a um a língua oficial e dominante, sendo falado por muitos indivíduos cuja língua materna era outra, teria o gu sofrido grande contaminação na sua pureza?" (p. 46). A resposta de Correia Lopes é taxativa: é impossível responder a essa questão de uma maneira satisfatória, por duas razões que concernem à própria obra. A primeira é de ordem geral: "As obras de Costa Peixoto são muito rudimentares... Apresentam-nos wna linguagem paupérrima, arrancada, não sabemos como, a negros que podiam não ser dos que a falavam melhor" (p. 46). A segunda é metodológica e incide sobre o número reduzido de exemplos. Em sua opinião, não se pode mais falar de wna Língua mista: "não se trata de LUna mistura de línguas" (p. 47). Ele conjectura que se trata antes de wna língua num estado wn tanto quanto empobrecido: "Passando por muitas bocas em que não era senão hóspede, usada como meio de dissimulação por muitos escravos que falariam melhor o português, pode a linguagem africana ter perdido certo número de recursos próprios e, já por esse motivo, já, sobretudo, por influência do português, modificado pouco o u muito a sua sintaxe de posição, o seu vocabulário ..." (p. 47). Daí ele deduz que, para os pesquisadores, o interesse dessa Obra está, de fato, no nível do vocabulário: "Para os investigadores brasileiros ela terá simplesmente a utilidade de wn vocabulário accessível onde encontrar as palavras que estiveram em uso no Brasil, uma ou outra das quais pode ainda ter deixado vestígios" (p. 47). No domínio da gramática, ao contrário, "as obra do curioso de Filgueiras diferem muito mais das gramáticas de hoje por ignorância do autor que por evolução da língua" (p. 47). Isso não o impede de tentar estabelecer wna diferença, limitada, entretanto, à fonética, entre a língua falada no Brasil e a lingua africana atual (p. 5 5-63), porque, no que conceme à morfologia e à sintaxe dos verbos, ele estima que o texto é "estéril". O conjunto de noções que ele constrói em torno desse texto relativamente breve é, no entanto, bastante significativo no plano linguístico. Trata-se da questão da "Língua geral" oposta à "língua m aternaoutrà' e também da "linguagem africaná' que se preswne "ter perdido certo número de recursos próprios ... por influência do português". Esse último aspecto parece tanto mais espantoso, porque, na mesma época, isto é, no fim do
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século XIX e, sobretudo, a partir dos anos trin ta do século XX, afirmava-se 0 inverso do português, que se presumia ter sido influenciado por línguas africanas. Bem recentemente, Yeda Pessoa de Castro (2002) consagra-lhe um estudo de uma amplitude diferente. Apoiando-se na análise de Correia Lopes, ela centra no falar fon sua própria análise da língua "mina", inclusive fazendo dele seu "paradigma", porque ela estima que "o fongbe destaca-se como [a língua] majoritária no repertório da 'língua geral de mina', além de se mostrar a mais significativa do seu grupo no processo de configuração da linguagem litúrgica das religiões afro-brasileiras, razões por que foi tomada como paradigma no estudo .. ." (p. 54). São essencialmente critérios estatísticos que fundamen tam sua escolha tanto mais que a língua fo n é "majoritária no vocabulário de Costa Peixoto (82%)" (p. 68). A utilidade desses cálculos é inegável, pois eles permitem dispor de ordens verificáveis de grandeza. Entretanto, no plano linguístico, seu valor argumentativo é quase nulo: o argumento es tatístico não atinge nunca o estatuto de "prova" linguística, servindo apenas para constituir uma presunção. A "prová' linguística repousa exclusivamente em argumentos linguísticos. No caso do vocabulário de Costa Peixoto, para chegar a uma conclusão válida, teria sido preciso fazer preliminarmente um estudo comparativo e sistemático entre esse vocabulário e os diferentes vocabulários dos diversos falares do mesmo subgrupo li nguístico, isto é, o gbe, a fim de demonstrar, unicamente com base em critérios linguísticos, com quais desses falares ele tem uma relação específica e exclusiva. Na ausência dessa comparação, ignoramos completamente quais são exatamente os falares a que, e em que proporção, esse vocabulário concerne. Em outras palavras, se os dados estatísticos sugerem, em primeiro lugar, o fon, isso ocorre também do ponto de vista linguístico a ponto de excluir, nitidamente, todos os outros falares como sendo linguisticamente não pertinentes? Sem prova linguística, haverá sempre dúvida sobre a origem exata do vocab ulário da língua "mina". Lembremos de passagem que, para os linguistas de hoje, o fon faz parte do gbe, que é uma "Ianguage unit" (grupo de línguas), q ue engloba 51 "dialetos" (Capo, 1991 : 1-6). Daí sua designação atual pelo termo "fongbe", literalmente "fon-idioma". A contribuição essencial desse estudo reside, na verdade, na contextualização, com ajuda de um a documentação particularm ente extensa e pertinente, do próprio manuscrito, tanto no plano sócio-his tórico quanto etnoli nguístico. Essa contextualização con corre seguramente para melhor compreender o sentido do vocabulário específico em língua "miná', aclarando, por vezes de uma maneira nova, o sentido de certos termos aparentemente obscuros, tais como gamfimno 'gente' e cabo, de 'cové', região de agrupamento maí. Ela permite, além disso, apreciar melhor, num plano etnossócio-histórico, os minidiálogos do texto original. Nesse estudo, o vocabulário de Costa Peixoto foi reorganizado em ordem alfabética (p. 67-93) e retomado, em seguida, por áreas temáticas (p. 17 1-1 85) . Os minidiálogos do manuscrito foram "reconstruídos": "Os diálogos( ... ) reconstruimos
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do manuscrito de Costa Peixoto" (a fim de pôr) "'em destaque': a) o enfrentamento nas relações humanas entre senhores e negros, escravos fugidos ou forros, b) seu processo de socialização e c) suas atividades profissionais e econômicas" (p. 151). Os linguistas, de sua parte, lamentarão não dispor, em sua integralidade e em sua textualidade mesma, o texto original do "manual" de Costa Peixoto, permitindo-lhes por esse meio apreender melhor seu co texto, isto é, as unidades textuais que precedem e seguem as diferentes partes. O estudo propriamente linguístico está no final da obra e tem por título: A língua fim (p. 187-195). Ele é, entretanto, limitado à morfologia e à sintaxe, pois a fonologia foi anteriormente examinada quando do estudo do vocabulário. As observações relativas à sintaxe propriamente dita (p. 188-189) merecem atenção: Do ponto de vista sintático, os esquemas são simples ... o esquema canônico da frase é: C irc. + S +V+ C+ circ. k marcas verbais se reduzem a: 1. Forma progressiva: ma.. . (p. 188); 2. Forma futuro: na... (p. 188); 3. Forma passado: ko (já) ... (p. 189); 4. Forma negativa: (p. 189): ma (entre o sujeito e o verbo) Gam màtim, não tenho a chave. Fon/Gun gã ma fi). Adi matim, não tenho sabão. Fon ai ma fi). Hémá bouhã, não corta não. Fon e ma gbo a. ma.... o ... ou - na .... a> ma... a (negação enfática) (c f. Francês "ne.. .pas"). E màcodugehâ, ainda se não batizou não. Fon e ma ko duje a. Emácógibih â, ainda não pariu não. Fon e ma ko j'ivi a. Emàtim num ré hâ, não tem nada. Fon ai ma fi nu ndé a (p. 189). A ausência de conclusão nesse estudo morfossintático deixa uma interrogação, porque ele apresenta o risco de induzir em erro o leitor não avisado, deixando-o eventualmente crer que há coincidência entre a morfossintaxe da língua geral de mina de Costa Peixoto e a da línguafon. Tal conclusão, não formulada explicitamente, mas aparentemente veiculada pela apresentação dos dados, seria seguramente inexata. Com efeito, desde o início e ao longo de todo esse estudo, em particular no caso específico dos "diálogos", toda a demonstração parece repousar numa ambiguidade de fundo. Os exemplos são quase sistematicamente uaduzidos, palavra por palavra, para a língua fon, na qual cada termo e cada frase da língua "mina" encontra, em face, seu correspondente em língua fon . Essa colocação sistemática em paralelo corre o risco de sugerir que há coincidência entre as duas línguas, tanto no nível de cada um dos signos quanto da
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estrutura sintática da frase. Na realidade, não se trata de uma verdadeira "tradução" no sentido habitual da palavra, isto é, de uma tentativa de fazer que o que estava enunciado numa língua o seja também na outra, tendendo à equivalência semântica e expressiva dos dois enunciados. Uma verdadeira tradução deve respeitar a identidade sintática de cada uma das duas línguas em presença. Aqui, temos antes uma "transliteração", graças à qual se faz corresponder, de uma maneira quase automática, a cada signo de uma língua (Ll) um signo na outra (L2). O resultado é linguisticamente surpreendente: as duas línguas, colocadas face a face, correspondem-se formalmente, com raras exceções, tanto no nível das palavras (signos linguísticos) quanto da sintaxe. Na primeira fase da análise, a utilidade desse procedimento é incontestável, pois permite ao leitor de hoje descobrir a divisão real da língua "mina", cuja linearidade torna o texto opaco, revelando assim que, de fato, se Costa Peixoto pôs em evidência o léxico da língua, ele ignorava completamente sua sintaxe subjacente. Entretanto, o texto assim reconstituído não permite concluir que há coincidência sintática entre o fon falado hoje e o texto "mina" de Costa Peixoto. Enuncia-se então uma questão de fundo: a sintaxe do fon revelada por esse procedimento de "transliteração" coincide realmente com a sintaxe do fon falado no Benim? Para responder a essa questão, examinemos mais de perto, entre os exemplos acima citados, aqueles que serviram para ilustrar o 4o item "Forma negativa" (p. 189). Analisando a primeira série, aquela caracterizada pelo "ma (entre o sujeito e o verbo)", pode-se logo afirmar que o emprego do morfema /mal não corresponde à negação de mesmo tipo atestada em fon. Nos três exemplos citados, trata-se de frases do tipo assertivo. Ora, a negação das frases assertivas em fon faz-se com o emprego do morfema negativo la/ e não /mal. Além disso, o morfema é colocado depois do verbo ou no fim da frase e não "entre o sujeito e o verbo". A respeito disso, convém ir ao texto de B. Segurola (1963) . Convém lembrar que essa obra, reeditada em B. Segurola e]. Rassinoux (2000), é o texto de referência escolhido por Pessoa de Castro para tratar da parte do "dicionário" que comporta termosfon (p. 69). Rapidamente, dar-nos-emos conta de que há emfon duas formas de negação, uma que emprega o morfema la/ e a outra, o morfema /mal: O mor(ema liil: "la/ depois de um verbo ou no fim da frase indica a negação: É se
a: ele não emendeu, ele não compreende" (p. 1). Esse tipo de negação aplica-se aos enunciados assertivos e corresponde à verdadeira forma de base da negação em língua fon. O mor(ema /mal: "ma, má, mo: negação com empregos muito diversos: muitas vezes reforçada pela pardcula "n€"; em correlação com a partícula "a" imerrogativa; para reforçar a partícula negativa "ií", ou negativo-interrogativa "acê' ou "a ê'; ma ... ó: negação empregada também em cerras orações subordinadas (finais, impedimenro, recusa, interdição); ma...gé : não mesmo" (p. 342).
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Essa segunda forma de negação aplica-se aos enunciados não assertivos (injuntivo-negativos, interrogativos, interrogativo-negativos). Reenco ntram-se essas duas formas principais de negação igualmente em numerosos textos orais publicados por Guédou (1985), linguista e etnolinguista originário do Benim, falante nativo do fon (nascido na periferia de Abomey), que escreveu uma importante e grandiosa obra: "Linguagem e cultura entre os fon do Benim". Eis três exemplos, dois da forma "assertivà' e o terceiro da "injuntivo-negativa": -I a/ em posição final: à
sú tà kwé d //você/ pagar/ cabeça/dinheiro/ não// "você não pagou o imposw"
xó nyf kànllnzó clé d /I palavra/ser/animal-trabalho/algum/ não// "a palavra não é uma tarefa do animal" - ma... ó "injuntivo-negativo":
fàn cló xó mí tõn me ó //não/rerumbar/lançar/palavralnós de/em/não// "não faça barulho durante nossa falá' mã
Diante dessas múltiplas formas de negação atestadas no fon do Benim, Costa Peixoto utiliza apenas duas formas, a primeira raramente, a segunda com mais frequência: /mal diante do verbo, contrariamente ao que ocorre no fim do Bcni m; /mal ... .lhâ ~ há/, com emprego generalizado, contrariamenre ao fon do Benim onde o em prego é resn·i ro.
Com base nesses dados, fica claro que a sintaxe de negação da língua "mina" de Costa Peixoto não coincide com aquela atestada na línguafon. Ela também não coincide, rigorosamente falando, com a dos principais falares gbe, conforme o quadro que segue: Negação
Mi na ('Peixoto')
Eve/Aja
Assertiva
ma ... há
me ... à dé ... o {'não ... não')
('não... não')
(' ... não')
('não .. .')
me gà- ... o mé-glt-dzl hà à não cante!'
nugbà-... o m'tgbltjó à ' não parta! '
má ... ó mrl /elo 'não (o) cüga!' niÍ mà j'ii m) ó ' não me matem
m à ... bló mlt wá bló à não venha!'
('não ... não') Injwuivonegativa
ma ... hã mrldóhtí 'não digas não!' mdgume há 'não me mareis!'
.
Gen mú ...
o
Fon
G un
... á
mà .. .
.
o
.
Põe-se en tão a questão de saber donde vem exatamente a construção sintática da negação da língua "min a" de Costa Peixoto, assim como seu recurso quase sistemático à dup la negação. Cabe mesmo perguntar-se se essa dupla negação não seria mais um "decalque" do português local da época.
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De outro lado, notar-se-á a ausência na língua "mina" de alguns faros sintáticos que são característicos das línguas do grupo gbe: construções seriais dos verbos, nas quais cada verbo pode ser focalizado ou interrogado; construções clivadas do predicado; sintaxe de tipo alienável para as partes do corpo; emprego de pronomes logofóricos. A ausência desses traços sintáticos permite afirmar claramente que a língua "mina", do ponto de vista sintático, não coincide nem com a língua fon nem com qualquer outra língua do grupo gbe. Impressiona-nos, enfim, a ausência de períodos complexos, com exceção de um caso de uma oração cond icional. Q ual é, então, a verdadeira sintaxe da língua "mina" em relação ao português falado p or Peixoto? Esperando uma resposta a essas questões, mantemos nossa hipótese inicial (Bonvini e Petter, 1998), a saber, que a língua "minà' corresponderia a um falar veicular, mas acrescentando que, na verdade, este úl timo se encontrava numa fase de pidginização (Manessy, 1995: 22-27), isto é, uma fase em que a língua estava submetida ao tríplice fenômeno de "adaptação"(= reinterpretação segundo um modelo estrangeiro), de "simplificação" (= diminuição do número de manifestações externas dos mecanismos gramaticais e melhoria de seu rendimento funcional) e de "redução" (= redução a zero da complexidade do sistema linguístico). Ademais, uma língua com vocação supralocal, proveniente de línguas africanas do grupo gbe (subfamília cuá), forjada no Brasil, para ultrapassar a dispersão engendrada pela copresença de diversos falares tipologicamente semelhantes. Ela consti tuía assim a mais prática e, li nguisticamente, a mais econômica solução.
Século XIX: plurilinguism o africano e língua portuguesa d os escravos negros O século XIX coincide com a úl tima fase do tráfico negreiro (Vianna Filho, 1946: 78-91), cujas datas mais significativas são: 1815: proibição do tráfico negreiro ao norte do equador; 1826: convenção entre Brasil e Inglaterra para a extinção do comércio de escravos na costa da África; 1831: proibição do tráfico de escravos para o Brasil, por lei de 07/ 11 ; 1850 : extinção do tráfico no Brasil, pela lei Euzébio de Queiroz. O tráfico ao norte do equador, intenso desde o início do século, prosseguirá mesmo depois de 1815, mas de uma maneira clandestina e orientado principalmente para as regiões situadas mais no interior. A decisão de 181 5, porém, deslocando o tráfico "oficial" mais para o sul do equador, con tri buirá bastante para expandi-lo para além das zonas tradicionais e, sobretudo, para in tensificá-lo. Por consequência, nessa primeira metade do século, o t ráfico conhecerá um crescimento sem precedente. É somente a partir de 1840 que a campanha internacional contra a escravidão e a vigilância preventiva das águas do Atlântico pela marinha britânica conseguirão,
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progressivamente, neutralizar e, finalmente, suprimir essa atividade que predominou durante três séculos. Em 1836, Portugal proibirá o transporte de escravos por mar; em 1854, vedará a entrada na colônia (Angola) por via terrestre, isto é, dos escravos provindos do império LW1da; é somente em 1878 que a escravidão será oficialmente abolida (Randles, 1968: 223-224). Essa siwação, na verdade, contribuiu para acentuar no Brasil um plurilinguismo africano de que diversos documentos dão testemunho.
Plurilinguismo africano Banto da Á frica Austral
O primeiro testemunho é dado por Adrien Balbi (1826: 224-226), qu e menciona "um feliz acaso, (depois de) conhecer Maw-ice Rugendas, ocorrido há pouco no Brasil .. . podemos preencher algumas das imensas lacW1as que existem na linguística da África Austral". É preciso não esq uecer que, nessa época, Bleek não tinha ainda nascido e que grande parte da África Austral continuava "terra incognita", sobretudo, no plano linguístico. Daf o interesse particular de suas reflexões: ... M. Rugendas reve a boa idei a de interrogar numerosos africanos que o abominável comércio de escravos traz ainda rodos os anos para este império do Novo Mundo. Ele conseguiu, por esse meio, obter uma grande quamidade de noções tão curiosas quanto importantes sobre os costumes e as línguas desses in fe lizes habitantes da África ...
Ele lamenta, porém, a perda de certos documentos: "É realmente lamentável que, tendo desaparecido uma pane desses manuscritos, M. Rugendas não possa dar-nos os vocabulários mo lua, mina, caçanje e outros que ele tin ha recolhido ... " É interessante notar o emprego dos termos mina e caçanje para designar, de fato, grandes grupos linguísticos. E ainda acrescentar: "Devemos, no entanto, a sua amabilidade o massanja, o choambo e o m atibâni que não o são menos por causa da posição que ocupam as nações que falam essas línguas. Segundo M. Rugendas, os massanjas vivem no in terio r do Congo, precisamente no norte de Benguela. Os choambos e os matibânis vivem na costa de Moçambique" . Na realidade, na obra de Balbi, as línguas são designadas pelos nomes dos povos que as falam , as três últimas c01-respondem provavelmente e respectivamente ao imbangala (H. 30) em Angola, ao chuabo (P. 30) e a um falar tanga (inhambane) (S. 60). Ele faz um quadro comparativo de 26 palavras dessas três lfnguas seguindo a "ortografia portuguesa", o qual lhe permite estabelecer que "o choambo e o matibâni pertencem à família cafre, enquanto o massa nja deve se r classificado com os idiomas da fa mília congolesa". Chegados a este ponto, que nos seja permitido fazer uma aproximação à guisa de parêntese. Como já foi dito, graças aos dados lingufsticos recolhidos junto aos escravos africanos por Dias, no Brasil, no século XVII, foi elaborada a primeira g ramática
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sistemática da língua quimbundo, a primeira também a mostrar a inadequação do modelo latino dos "casos" para interpretar as classes nominais. Graças ao m es mo tipo de dados, mas desta vez coletados no século XIX, na aurora mesma do estabelecimento da linguística comparada pelos irmãos Schlegel (1808 e 1818), uma miniex periência comparativa permitia a A. Balbi classificar três línguas africanas do tipo banto, alguns decênios antes dos grandes trabalhos de W. H . l. Bleek. É por um método análogo que, vinte e cinco anos m ais tarde, S. Koelle (1854) escreverá Pofyglotta afticana com base em dados recolhidos junto a antigos escravos em Freetown, em Serra Leoa, no qual ele estabelecerá uma classificação geotipológica de cerca de 300 línguas africanas. Plurilinguismo afric ano na Bahia
O plurilinguismo africano no Brasil só será efetivamente atestado no final do século XIX, graças ao testemunho de Nina Rodrigues. Sua demonstração foi concebida como uma resposta concreta ao apelo urgente lançado em 1879 por Sflvio Romero para se fazerem trabalhos consagrados "ao estudo das línguas e das religiões africanas", que é citado textualmente por Nina Rodrigues (1977 [1890-1905] : 16 -17) : "Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiq ues, benguelas, mon joos, congos, cabindas, caçanges . .. vão morrendo. O melhor ensejo, pode-se dizer, está passando com a benéfica ex tinção do tráfico". É nesse estado de espírito q ue N ina Rodrigues empreende seu levantamento linguístico e ernográfico junto aos africanos que viviam, na época, na cidade de Salvador. Seu testemunho era ainda mais importante, porque, a partir da segunda metade do século XIX, uma mudança profunda operava-se na Bahia. Como escreve Vianna Filho (1946) , na sequência do desenvolvimento da cultura do café, instalava-se no país, uma nova modalidade do tráfico ... Era o eixo econômico do país que se deslocava para o sul. E com ele ia tam bém o negro, que havia feito a riqueza do norte e agora seguia para enriquecer o sul. Com ele iniciava-se tam bém a m udança do cemro político do país.
Foi uma época de desco ncentração eco nômica , durante a qual: "a Bahia despovoava-sede escravos. Em 1815 teria500.000. Em 1874 não seriam mais de 173.639" (p. 90-91). É à luz desse duplo contexto, extinção da escravatura e desconcentração, que é necessário situar os dados geolinguísticos recolhidos por Nina Rodrigues. Eles referem-se a seis !fnguas, atestadas seja em documentos escritos, seja sob a forma oral em palavras recolhidas diretamente junto a africanos ainda vivos na época: "nagô ou iorubá; jeje, êuê ou ewe; haussá; kanúri (língua dos bornus); tapa, nifê ou nupê; língua dos negros gurúnces, g'runcis" . N. Rodrigues observa, no entanto, que "as línguas africanas faladas no Brasil sofreram para logo grandes alterações, já com a aprendizagem do português por parte dos escravos, já com a da língua africana adotada como língua geral pelos negros aclimados ou ladinos(= os escravos negros que já conheciam a língua, os usos e costumes do país)" (p. 122). "Destarte, ao desembarcar no Brasil, o negro novo(= recém -chegado) era
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obrigado a aprender o português, para falar com os senhores brancos, com os mestiços e os negros crioulos, e a língua geral para se entender com os parceiros ou companheiros de escravidão" (p. 123). Ele precisa, além disso, que, entre as línguas africanas, "duas, as que foram adotadas com o línguas gerais, predominavam no país; a n agô ou iorubá na Bahia, a quimbunda ou congolesa no norte e no sul" (p. 129). Seu leva ntamento limitar-se-á a coletar dados lexicais suscetíveis de ser explorados por especialistas e chegará a uma lista de 122 palavras, apresentadas sob a forma de quadro sinótico, pertencentes a cinco línguas africanas faladas ainda correntemente na Bahia em sua época: "grunce" (gurúnsi), "jeje (maí?)" (eve-fon), "hauça~)) , canun e tapa nupe . N ina Rodrigues desenvolve igualmente um comentário (p. 129-14 1) sobre as línguas africanas introduzidas no Brasil, que são repartidas em duas seções: "línguas sudanesas, ou do grupo central, e línguas austrais, línguas cafreais, ou do grupo banto". Desse comentário, tomemos, em particular, o que ele escreve a propósito do nagô ou iorubá. Depois de lembrar seu papel de "língua geral desempenhado na Bahia" (p. 130) , ele nota que: CC
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A língua nagô é, de fato, muito falada na Bahia, seja por quase todos os velhos africanos das diferentes nacionalidades, seja por grande número de crioulos e mu latos. Quando neste Estado se afirma de uma pessoa que esta fala língua da Costa, entende-se invariavelmente que se trata do nagô. Ela possui mesmo entre nós uma certa feição literária que eu suponho não ter tido nenhuma ou tra língua africana no Brasil, salvo talvez o haussá escri to em caracteres árabes pelos negros muçulmis. E que muitos negros que aprenderam a ler e a escrever corretamente esta língua em Lagos, nas escolas dos missionários, têm estado na Bahia e aqui o têm ensinado a negros baianos que já a falavam (p. 132).
N ina Rodrigues fala de "uma certa feição literá.rià '. A propósito disso, convém notar que o iorubá foi uma das primeiras línguas da África Ocidental a conhecer LUna tradição escrita, graças a diferentes trabalhos linguísticos, notadamente os clássicos de Samuel Ajayi C rowther sobre o vocabulário (1843) e a gramática (1852). Depois, a língua iorubd, que tem uma vintena de dialetos, tornou-se uma das três principais línguas da N igéria (com o hauçá e o ibo). Ela adquire o estatuto de língua padrão ("Standard Yoruba") e é objeto de ensino desde a escola primária até a universidade, ao menos em certas universidades. Como escreve, num estudo recente, J . Benga Fagborun (1994: 10- 11), a lingua iorubá passou a ser escrita há cerca de cento e cinquenta anos. Desde então, tem uma forma reconhecida ou uma lwiné... Esse tipo de língua é usado na escola (para ensinar nativos e estrangeiros) ; nos meios de comunicação de massa; nos lugares públicos como igrejas e reuniões políticas. É a língua usada na literatura.
Em outras palavras, o fato de essa lingua passar a ser escrita e, por isso, passar a ter novos usos, sobretudo literários ("Literary Yoruba"), introduz nela importantes inovações, não somente lexicais, mas também estruturais, tanto morfossintáticas como
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morfossemânticas. Essas inovações aparecem, sobretudo, no uso que dela fazem os escritores iorubás, mas elas derivam também do impacto do inglês sobre a significação e a própria estrutura do enunciado iorubá. J. Benga Fagborun traça sua história, mas, ao mesmo tempo, desvela a maneira como a língua nivelou as formas dialetais, importando itens de outras línguas. Daí sua conclusão: Essa base histórica da koiné iorubá mostrou que ela não foi nunca um dialeto histórico falado {em seu sencido mais amplo). Foi antes uma língua criada pelos escritores iorubás a parti r do núcleo de vários dialetos e outras línguas (p. 37).
Essas observações deveriam contribuir para apreender melhor a especificidade do iorubá atestado no Brasil em relação ao iorubá da Nigéria.
O português falado pelos africanos A citação acima de Nina Rodrigues pôs em evidência que "ao desembarcar no Brasil, o negro novo(= recém-chegado) era obrigado a aprender o português, para falar com os senhores brancos, com os mestiços e os negros crioulos" (p. 123). Mas como ele o falava? Hoje dispomos de poucos documentos da primeira metade do século XIX que perm item responder a essa questão de maneira satisfatória. Os primeiros testem unhos escritos sobre esse tema, citados por Silva Neto (1963: 109), são de Saint-Hilaire ( 1820) e de Schlichthorst ( 1824). Eles são panicula.rmen te lamentáveis, impressionistas e superficiais, quando notam que os escravos "conservam alguma coisa de infantil, eles chegam a fazer-se entender em três meses, mas, como as crianças, têm dificuldade de pronunciar o r e a sequência st". Essas observações, feitas por viajantes em busca de exotismo, deixam transparecer certa visão do falante inculto - e escravo, além disso - , que con tribuiria, com sua pronúncia, para deteriorar a língua portuguesa. Imitações do falar dos negros ("falar xacoco") aparecem também na literatura em 183 1. Esses documentos, no entanto, não bastam para fazer uma ideia minimamente precisa do modo real, próprio dos africanos, de exprimir-se em português. Já pelo final do século, os testemunhos fazem-se mais precisos, embora sejam reduzidos. É o caso do emprego generalizado, entre os negros de origem banta, do morfema /Zi-/ como prefixo, tanto no nível da palavra isolada, quanto no dos sintagmas de determinação e do enunciado complexo. A extensão desse emprego foi mesmo sublinhada como emblemática da maneira de exprimir-se dos negros no Brasil. João Ribeiro (1897: 271) sublinhou-lhe a importância, notando que sua presença no enunciado contribui para criar uma estrutura ali terativa característica das línguas bantas: O s negros no Brasil quando faliam o porruguez repetem por alliteração a particula
prefixa (i tálico no texto) inicial em rodo o corpo da phrase:
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Línguas africanas e português falado no Brasil
África no Brasil
Z'ere
Elle
Z'mandou Mandou
Z'dizé dizer
Este facro é uma reminiscencia da gramm arica geral das línguas do bantú: a concordância por ali iteração.
É preciso, no entanto, notar que, malgrado sua semelhança, o morfema Zi-[~ 3i] dos "negros no Brasil" não coincide com o classificador jl- 'plural' da classe 1O do quimbundo, que era sua função inicial. Em seu emprego recente, esse morfema não é mais uma marca de classe, mas um morfema plurifuncional, suscetível de intervir em diversos níveis da estrutura gramatical de uma maneira generalizada: nomes, sintagmas de determinação, enunciados. Concluindo, o estudo real e sistemático da maneira como os negros brasileiros se exprimiam em português no século XIX está por ser feito2 .
Século XX: a s línguas a fric a nas, línguas confinadas Dois acontecimen tos caracterizaram o fim do século XIX: primeiro, a abolição da escravatura (1888); depois, a nova distribuição econômica representada pela cultura do café que levou a uma redistribuição geográfica da massa dos ex-escravos e de seus descendentes. O prim eiro aco ntecimento teve como efeito quase imediato o declínio progressivo e, finalmente, a extinção da maior parte das línguas africanas que estavam ligadas até então à escravidão e que tinham sido regularmente al imentadas, durante mais de três séculos, por um aporte maciço de escravos em zonas geográficas bem definidas, geralmente delimitadas pelo tipo de produção econômica: cana-de-açúcar, tabaco, mineração. Nessas zonas, certas !ing uas africanas tinham-se sucedido, ao longo do tempo, sob a forma de !ingua veicular ("!ingua geral") : qui mbundo, "mi nà', io rubá, permitindo, ao mesmo tempo, que o português coexistisse com as línguas african as, ao longo dessa sucessão, sob a forma de alternância de códigos. A nova conjuntura econômica, que levou a uma redistribuição geográfica da m assa de ex-escravos, operou igualmente uma mutação linguística. De um lado, a utilização da líng ua portuguesa estendeu-se a toda a população negra e, além disso, ao impor-se no dia a dia, pôs fim à alternância inicial e secular de códigos entre a língua portuguesa e as línguas africanas. De outro lado, as antigas línguas, principalmente as veiculares (quimbundo, "mina", iorubá) foram confinadas a um uso "interno", específico de um a determinada população, como ferramentas de preservação identitária, de autodefesa e de sua afirmação como grupo. Elas foram "refuncionalizadas" como línguas de especialidade n um contexto de clandestinidade, aprendidas ou transmitidas, seja sob a forma de línguas cultuais reservadas aos cultos ditos afro-brasileiros, seja sob a forma de linguas "secretas".
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Línguas cultuais Elas foram empregadas, desde o século XIX, nos cultos ditos afro-brasileiros. Estes sã~ principalmente d_e dois tipos: os da espécie candomblé, mais próximos da tradição
afnca.11~, e os d~ e~péc1e um~~:da, que justapõem diversas tradições, africana, indígena e europe1a (catoliCismo e espmnsmo) . Os ca.~1domblés, segundo suas subdivisões internas (nagô-queto, jeje, angola ... ), empregam diversas línguas: iorubá (majoritária), eve-fon (jeje), q uimb undo-quicongo (angola) ... , que são consideradas como ma.~·cas identitárias e uti lizadas da mesma maneira que os rituais, para distinguir as diferentes sortes de culto. No plano linguístico, trata-se mais de formas pidginizadas, em razão da p roveniência de seu fundo lexical e da ausência do func ionamen to gramatical característico da língua epônima de referência. O acesso a elas é, na verdade, difícil pelo fato de serem reservadas, no mais das vezes, aos iniciados. Elas servem de suporte ao ritual: cânticos, saudações, nomes-mensagens de iniciados. Destinam-se também à comunicação no interio r da comunidade cultual. Nos cultos de tipo umbanda, ao contrário, a língua é bastante próxima do português brasileiro dito popular, mas demarca-se dele por seu vocabulário, por seu sem antismo e por marcas morfossintácicas, segundo a entidade espirirual que a utiliza. Como se presume que são proferidas por entidades, recebidas pelo médi um em estado de transe, a pesquisa sobre essas línguas torna-se ainda mais difícil. Ademais, existe uma especificidade linguística própria a cada entidade, de forma que se podem facilmente distinguir, pela sua maneira de expressar-se, os Caboclos (espíritos aperfeiçoados de ancestrais indígenas autóctones), as Crianças (espíritos infantis), as Pombagiras e os Exus (espíritos das trevas).
Línguas secretas São línguas utilizadas pelas populações negras isoladas, constituídas geralmente de descendentes de antigos escravos e, às vezes, de antigos quilombolas. Elas são emblemáticas como núcleos de "resistência" cultural negro-africa.11a e foram assinaladas em diversas localidades de Minas Gerais. Até agora, no entanto, apenas duas dentre elas foram estudadas e são, por isso, mais conhecidas: a de Tabatinga (Queiroz, 1998), situada num bairro pobre da periferia de Bom Despacho, e a do Cafundó (Vogt e Fry, 1996), comunidade rural negra situada em Salto de Pirapora, a 150 km de São Paulo. Elas têm em comum o fato de ser uma espécie de código secreto que serve, de preferên_cia, como meio de ocul tar as conversas, principalmente em presença de estranhos. E provável que essas lín guas ten ham exercido essa mesma função no passado a fim de esconder dos senhores as palavras trocadas entre os escravos, sobretudo q uando eles planejavam fugas. Hoje elas continuam a exercer esse papel, mas, frequentemente, transpostas para outros conflitos sociais. No plano linguístico, essas línguas partilham um fundo lexical do tipo banto, mas enquanto a do Cafundó se aproxima de uma forma pidginizada, a de Tabatinga
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avizinha-se mais daquilo que se designa como "português popular brasileiro". Além disso, a língua de Tabatinga parece constituir um exemplo dpico de substituição simbólica. Com a queda do regime de escravidão, ela foi uti lizada mais para marcar as diferenças entre os brancos e os negros: o que conta principalmente é que os brancos não têm acesso a ela (Queiroz 1984: 20).
Em direção a uma "reafricanização" Por vo lta dos anos 70, um fenôm eno novo, que recebe o nome de "reafricanização", produziu-se no seio dos cultos afro-brasi leiros. No plano linguístico, traduziu-se pela valorização quase exclusiva da língua iorubá. Esse movimento exprime de fato o desejo de uma maior autenticidade no que concerne à "africanidade" dos cultos. A pedido de seus responsáveis (pais e mães de santo) e sob o impulso de intelectuais nigerianos, cursos de iorubá foram ministrados, não somente aos iniciados, mas também a todos aqueles que desejavam aprofundar a prática do candomblé. Um turismo local organizado para a Nigéria e transmissões televisivas tanto de cultos afro-brasileiros quanto dos cultos correspondentes na Nigéria amplificaram a tendência a uma determinada "ioruban ização" desses cul tos, o que levou certos "pais de santo" a alinhar seus próprios rituais aos modelos importados da Nigéria, m esmo no caso dos cultos até então estranhos a esses modelos. Esse tipo de "reafricanização" chegou, com muita frequência, a uma solução redutora no plano linguístico, pois a autenticidade linguistica afri cana foi assimilada ao emprego exclusivo da llngua iorubá da N igéria, enquanto no Brasil a real idade histórica mostra que o vocabulário de base das línguas cultuais é muito mais diferenciado. AE principais línguas cultuais de referência são: a) eve, fon, gun, maf para os cultos do tipo "jeje mina"; b) iorubá (nagô) (dialetos falados na Nigéria Ocidental e o nagô, do reino de Q uero, do Benim) para os cultos do tipo "nagô, gueto, ijexá"; c) quicongo-quimbundo-umbundo para os cultos do tipo "angola, congo-angola, etc." (cf. Castro, 2001: 81-82).
Para uma abertura teórica e metodológica Alternância de códigos Na sequência deste percurso histórico, fica muito claro que nenhum documento devidamente identificado e datado m enciona a existência, no curso desses quase cinco séculos, de um crioulo no Brasil. Ao contrário, os documentos inventariados colocam-se todos a favo r da existência de uma alternância de códigos ("code switching") na q ual a língua portuguesa serve constantem ente de polo de referência em relação às
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línguas africanas que se sucederam, geralmente a título de língua veicular: no século XVII, o quimbundo; no século XVIII, a língua "mina"; no XIX, principalmente a língua iorubd, mas também, em alternância, outras linguas: gunénsi, jeje (maí?), eve-fon, hauçá, canúri e tapa (nupe). Todas as línguas africanas chegadas ao Brasil foram, na verdade, l!nguas retiradas de seu nicho ecológico, submetidas a diversas rupturas- fonológicas, morfossintáticas e semân ricas - , niveladas pela ausência de variantes dialetais e confrontadas com novos contatos linguísticos. Os dados históricos fazem aparecer nitidamente uma mudança de seu estatuto linguistico. Na sua primeira fase, o quimbundo, na realidade, já veicular em Angola antes de ser trazido para o Brasil, exerce, entretanto, neste último, o papel integral de língua por, ao menos, duas razões: sua utilização na escrita num contexto religioso, já na própriaAngola, sob a form a de catecismo, em 1642 ("Gentio de Angola.. ."), depois sua gramatização no Brasil por Pedro Dias ( 1697). Numa segunda fase, passou-se claramente ao estatuto de língua veicular africana assumido pela língua "mina" de Costa Peixoto (1 73 1-1741). Depois, no século XIX, é um plurilinguismo africano que se afirma, graças ao qual diversas línguas da África coexistiram numa só região, embora ignoremos ainda seu estatuto sociolinguístico. Enfim, no século XX, um número mui to limitado de línguas (eve-fon, iorubd, quimbundo) foi "refuncionalizado" como línguas de "resistêncià' cultural negro-africana. O iorubá é também a única que parece ter sido objeto de uma tentatjva de "reafricanização". Como em nenhum lugar se menciona a presençahistóricade um crioulo africano de base portuguesa, a despeito do fato de que seguramente escravos transitaram, antes de sua chegada ao Brasil, por l ugares de espera onde se falava esse tipo de crioulo (ilhas de São Tomé, Ano Bom e Cabo Verde), é razoável pensar que, na maior parte dos casos e numa d uração de vários séculos, a única opção linguística deixada aos escravos que desembarcavam no Brasil fo i a de wna "ai ternância de códigos" do tipo "co de swi tchi n g", obrigados que eram a optar seja pelo emprego do português, seja pelo de uma llngua africana, veicular ou não, já empregada por aqueles que os precederam.
Empréstimos lexicais A reAexão acadêmica, relatada na primeira parte, incidiu mais sobre o eventual impacto das línguas africanas sobre o português falado no Brasil do que sobre as próprias llnguas africanas. De m odo muito particular, ela focalizou sua atenção, de um lado, nos numerosos empréstimos lexicais das línguas africanas, designados, às vezes, com o "africanismos"; de outro, em alguns traços fo nológicos, morfológicos e sintáticos, interpretados como marcas diferenciadoras que permitem distinguir o português dito popular do português chamado acadêmico ou padrão, com vistas a fundamentar a existência ou não de um processo de crioulização.
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A propósito dos empréstimos lexicais, convém lembrar que, qualquer que seja seu número (estimativas recentes avaliam-nos em mais de 3000), as palavras de origem africana são claramente em menor número do que as de origem indígena (tupi-guarani). Uma verdadeira análise sistemática e paralela dos dois tipos de empréstimos nunca foi feita e, no entanto, ela aportaria um im portante esclarecimento sobre os contatos das línguas do período da escravidão e, finalmente, sobre a identidade lexical do português falado atualmente no Brasil. Além disso, tendo a integração dos termos de origem africana sido feita em épocas diferentes, é inexato colocá-los todos no mesmo plano. Alguns desses empréstimos foram, aliás, integrados ao português nu ma época anterior a seu em prego brasileiro e suas formas atuais, ao figurar no português atual do Brasil, permi tem caracterizá-los como pertencentes a uma segunda geração de empréstimos. A primeira, que é também a mais próxima da língua-fonte, encontra-se já, por exemplo, no português falado em Angola no século XVI e no começo do XVII. De outro lado, entre os empréstimos, conviria separar os termos de especialidade, isto é, os termos técnicos em pregados no interior dos cultos afro-brasileiros- muitas vezes facilmente reconhecíveis porque não estão ainda submetidos ao nivelamento fonológico da lfngua portuguesa-, daqueles que estão realmente integrados ao léxico do português e são utilizados fora dos limites setoriais do vocabulário de especialidade. Enfim, em matéria de realidade lexical, é inapropriado e muito restritivo empregar o conceito de "infl uêncià' exercida por uma língua-fonte (aqui, línguas africanas) sobre uma língua-alvo (n o caso, o português). Trata-se antes da capacidade desta última língua de apropriar-se dos termos necessários a sua própria expressividade, qualquer que seja sua origem.
Traços fo nológicos, m orfológicos e sintáticos Se o argumento da presença de termos de origem africana foi invocado sobretudo pelos defensores da hipótese de uma influência das línguas africanas, o argumento dos traços fonológicos, morfológicos e sintáticos foi notadamente empregado em apoio às teses em favor da "crioulização" e da "semicrioulização". Hol m ( 1992) resume claramente seus principais traços: a) fonologia: estrutura silábica CV, processo de desnasalização, palatalização, alternância de Le r; b) morfologia: flexão verbal reduzida, ausência de concordância sujeito-verbo, marca de número no primeiro termo do sintagma nom inal, emprego do pronome objeto, referência definido/indefi nido; c) si ntaxe: marca pré-verbal; predicação não verbal, dupla negação, focalização do predicado, equivalência reflexivo/ passivo, redobro, tere estar, falar p'a, preposições ni, na, 0. A utilidade desse inventário é incontestável, como também o é sua aproximação com os crioulos. C onviria, n o entanto, hierarquizar esses traços. Com efeito, como sublin ha Manessy (1995: 49) ,
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de um ponto de vista descritivo, (essas) características [... ] podem ser classificadas comodamente em duas categorias, segundo elas favoreçam a perceptibilidade do enunciado ou sua inteligibilidade. Dizem respeito à in teligibilidade os processos concernentes à expressão das categorias gramaticais e das relações sintáticas.
Essa distinção é importan te, porque ela condiciona, em parte, a interpretação ulterior dos dados. Entretanto, apenas tomar em consideração traços fonológicos, morfológicos e sintáticos não permite chegar a u ma conclusão aceitável . A interpretação desses traços exige ser confrontada e reavaliada com a ajuda de outras aproximações linguísticas, tanto sincrônicas quanto diacrônicas, p rimeiro, in loco, no Brasil, em seguida, fora do Brasil. N o próprio Brasil, uma primeira aproximação impõe-se com o tupi, pois também em relação a ele o termo "influência" foi empregado. Serve de prova o próprio título do artigo de Robl: ''Alguns problemas da influência tupi na fonética e morfologia do português popular do Brasil". Entretanto, o autor precisa em sua conclusão que o contacto linguísrico entre portugueses e tupis não implicou na in trodução de elementos gramaticais tupínicos no português do Brasil, tirante uns rrês sufixos, de pouca vitalidade, aliás. Na realidade, o que houve foram adaptações foné ticas e reduções morfológicas, sem alteração, porém, do sistema, vale dizer, verificou-se apenas uma ação alogl6tica, que acentuou o caráter conservador e, principalmente, acelerou a deriva inovadora: duas tendências do português do Brasil, a partir do sécu lo XVl (1 985: 177).
Essa última reflexão conduz-nos a um segundo tipo de aproximação que convém estabelecer, mas desta vez, com o português falado em Portugal, o português da história, mas tam bém dialetal. Révah convida-nos a isso. D epois de ter criticado a afirmação de Gonçalves Viana no século XIX, segundo a qual a maior parte das particularidades da pronúncia brasileira "não são relíquias do português continental de outras eras, mas sim um produro crioulo, um defeito de pronúncia estrangeira ... ", ele apoia-se em diversos trabalhos que incidem sobre o conjunto do territó rio brasileiro, entre os quais Odialecto caipira, de Amadeu Amaral, para constatar que "o sistema fonético e morfológico é mais ou menos o mesmo em toda parte e os traços distintivos que isolam, em certa medida, o falar caipira são arcaísmos portugueses bem caracterizados, que seria impossível atribuir à influência tupi". Ele acrescenta: "O que levou os filólogos brasileiros a aceitar tão facilmente a denominação de 'd ialetos crioulos' para seus falares populares foi , de fato, o sistema morfológico cujo caráter português lhes pareceu impossível defender. .. Atribuem-se essas simplificações escandalosas aos indígenas e aos negros que teriam sido in capazes de assimilar o sistema morfológico da língua-padrão luso-brasileirà' (1959: 277). Ele não nega, de maneira absoluta, toda influência tupi ou, sobretudo, africana, mas sublinha que a simplificação morfológica foi, "antes de tudo, provocada por duas leis fonéticas (queda do -s no final das palavras e desnasalização do e)". Precisa, logo em seguida, que "simplificações morfológicas da mesma natureza e da mesma origem fonética encontram-se em Portugal" (1959: 277-278).
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A posição metodológica de Révah leva-nos a insistir na necessidade de operar um terceiro tipo de aproximação, que se revela indispensável, se não se quer encerrar o português falado no Brasil numa espécie de "ilha" linguística. Vários traços linguísticos evocados, tanto fonológicos quanto morfológicos e sintáticos, são igualmente atestados no português falado em dois outros países situados ao sul do equador e historicamente ligados ao Brasil: Angola e Moçambique. Estudos recentes, apresentados sob a forma de tese, notadamente dois feitos por franceses, puseram em relevo, de maneira sistemática, traços similares no português falado em cada um desses dois países: para o português de Moçambique, M. Laban (1999) e para o da Angola, J.-P. Chavagne (2005). Um e outro, quando é o caso, estabelecem rem issões, tanto para as semelhanças quanto para as diferenças, seja ao português falado no Brasil, seja ao falado em Portugal, seja a um ou outro dos países africanos implicados. Por isso, é possível fazer uma comparação sistemática dos dados numa escala mais ampla. Tal comparação é muito mais necessária do lado brasileiro, porque o Brasil, durante séculos, foi o motor principal das relações atlânticas, em particular com Angola. Esses contatos linguísticos foram ininterruptos. Mas hoje eles se agigantaram, porque o Brasil reexporta sua língua por potentes meios- ensino, literatura e mídia- tanto para Angola como para Moçambique. A essas aproximações, conviria acrescentar aquelas, mais recentes, provindas de outras línguas, europeias e não europeias. Em si, o conjunto dessas aproximações deveria permitir estabelecer, no português falado no Brasil, a especificidade de cada aporte. Entretanto, coloca-se em relação a elas uma questão de fundo: essas aproximações, por mais variadas que sejam, bastarão para apreender a verdadeira identidade do português falado no Brasil? Uma observação de ordem metodológica do africanista Manessy daria a impressão de negá-lo: ... os autores que creem descobrir, em estados anteriores ou con temporâneos, o esboço dos traços que caracterizam tal variedade veicular (ou tal crioulo que dela provém) são vítimas de um erro de perspectiva. Eles imputam à substância da língua o que é apenas o efeito contingente de um certo modo de sua utilização. Em todos os tempos e em todos os lugares, uma língua, qualquer que seja sua estrutura, é suscetível de conhecer empregos que desencadeiam a operação de processos latentes, normalmente contidos pelas exigências do bom uso. O fato notável é que essa operação produza resultados similares, independentemente dos materiais linguísticos a que é aplicada (1996: 6 1).
É verdade que G. Manessy exprime-se dessa maneira a propósito das línguas veiculares, mas seu ponto de vista parece ter um alcance mais geral. Descentrando a problemática, da natureza intrínseca da língua para a de sua utilização, ele dirige a atenção para uma realidade que se situa para além dos limites geográficos e tipológicos das línguas. Modificações análogas são atestadas na maior parte das grandes farrúlias linguísticas africanas, qualquer que seja sua diversidade tipológica, até no árabe, e mesmo nas línguas dos colonizadores, inglês, francês,
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português. Para estas últimas, a norma dominante não é sempre a forma padrão, escolar e administrativa. Formas vernáculas coexistem, caracterizadas pela simplificação das estruturas gramaticais e por um relaxamento da tradição sociocultural que permite libertar a língua das coerções normativas.
Línguas africanas: línguas orais Como já se explicou, as línguas africanas historicamente atestadas no Brasil foram essencialmente línguas orais. Somente o quimbundo teve escrita e foi gramatizado e, num grau menor, também a língua "mina". O tempo, aliás, obliterou esses dois acontecimentos e isso se deu mais facilmente porque eles foram produzidos por falantes aloglotas. Entretanto, mesmo na ausência de escrita e de gramatização, as línguas africanas, ao vir da África, conheciam já certa codificação ligada ao uso da fala. Ela manifesta-se sob forma de "interditos" de proferimento relativos ao espaço, ao tempo e aos interlocutores e também sob forma de aprendizagem das manipulações das imagens e dos símbolos (análoga a nossa retórica), conjunto de regras específicas das sociedades ditas de tradição oral. Embora num grau menor, encontram-se no Brasil formas análogas no emprego das línguas e da "fala" no seio dos cultos do tipo candomblé, onde coexiste, aliás, uma verdadeira tradição oral africana (Bonvini 1989), que se manifesta pelo valor intrínseco atribuído à noção de fala (ritualizada na iniciação e na adivinhação) e aos textos orais que ela utiliza (narrativas, contos, provérbios, cânticos e diversos textos ligados a atividades rituais). Nada disso, ao contrário, ocorre no culto de tipo umbanda, onde é o português que predomina. Como já se disse, quanto à língua portuguesa utilizada pelos escravos e seus descendentes, importa distinguir seu uso no interior dos cultos (na umbanda, sobretudo) daquele que tem lugar fora deles. Com efeito, não está em causa o mesmo nível de língua. No primeiro caso, trata-se de uma língua de especialidade, que difere, aliás, segundo as entidades espirituais implicadas.
Os escravos africanos: a log lotas Num e noutro caso, entretanto, tratando-se de descendentes de escravos, é preciso estabelecer o princípio de que a língua portuguesa falada resulta, na partida pelo menos, da apropriação, no local de trabalho, da língua dominante, feita por aloglotas mantidos socialmente à margem da comunidade que a praticava. Isso pode explicar a existência ou a coexistência de estados sucessivos de apropriação sob forma de aproximações no domínio da língua, primeiro no plano semântico-lexical e depois no morfossintático. Trata-se, sobretudo, de uma língua estritamente oral e
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não normatizada, no duplo sentido de ausência de um uso reconhecido, definido, codificado, até ensinado, e ausência igualmente da codificação tradicional da "fala" própria às sociedades africanas, de "tradição oral", que se acaba de evocar. Isso implica que as condições de seu emprego são mais importantes do que o cuidado de executar uma norma, acomodando-se sua utilização prática muito bem a aproximações na estruturação e no agenciamento dos enunciados. Se se acrescentam os fatos de que, de um lado, seu uso é marcado por um determinismo funcional que privilegia a eficácia e a economia de esforço e que acaba por reduzir a língua a ser apenas um instrumento de comunicação e, de outro lado, de que os falantes aloglotas da época da escravidão não eram "neutros", mas carregados de hábitos, de reflexos, de pressupostos histórica e culturalmente marcados, sobretudo no plano semântico-cognitivo, torna-se fácil conceber que essa mesma língua está mais próxima de um conjunto de usos de enunciação do que de regularidades condicionadas por normas codificadas. Por esse motivo , é sem sentido conceber essa realidade linguística como uma entidade coerente e "monolítica" e também querer estabelecer como regras gramaticais o que, na realidade, é somente um conjunto de usos enunciativos. É, sobretudo, excessivo tentar modelizá-la sob forma de "gramática", no sentido clássico da palavra, e compará-la, de um lado, com as línguas africanas de origem, em termos de superestrato ou substrato, e, de outro, com a língua portuguesa normatizada. Em relação a esta última, levando em conta a diversidade das línguas que, historicamente, en traram em contato, africanas e não africanas, é indubitavelmente preferível prever uma gramática de tipo "poliletal" ("hiperlíngua"?). Sempre segundo M anessy (1995: 14-1 5), "a ausência de uma norma reconhecida põe às claras modos de exercício da linguagem mascarados nas línguas 'normais' pela pressão do bom uso, que cria a ilusão de uma unidade factícia, aliás, sociolinguisticamente necessária à perenidade do falar", tornando-se a existência da norma indispensável para justificar o sentimento de constituir uma comunidade. É preciso provavelme nte imputar à conjunção dos reflexos histórica e culturalmente marcados dos falantes e desses modos de exercício da linguagem certos processos (simplificação, redução) fonológicos e morfossintáticos comuns ao português do Brasil chamado popular e aos pidgins, crioulos e línguas veiculares da África negra, sem, por isso, estabelecer uma dependência direta entre um e outros. É possível e provável que escravos que falavam crioulo tenham vindo para o Brasil, mas isso não basta para provar que houve uma influência dos crioulos africanos no português do Brasil. Metod oIogi camente, parece impo rtan te p ensar, primeiro, a realidade linguística brasileira como o resul tado de uma configuração sociolinguística que lhe é própria e da qual é necessário não excluir também a possibilidade do aparecimento de novos falares, sem que haja, por essa razão, filiação contínua e arborescente a partir de uma língua de
Línguas afric anas e p ortuguês fa lado no Brasil
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origem (Manessy, 1995: 14). É indispensável não separar a análise dos fatos da língua de sua significação social, sobretudo quando se trata de interpretar a variação e a adaptação do instrumento linguístico às tarefas que ele deve assumir, num contexto onde, além de tudo, a pressão normativa é relaxada ou ausente e onde as modificações observadas não resultam obrigatoriamente das tendências inerentes aos sistemas linguísticos. Enfim, um outro elemento a levar em consideração é o caráter institucional que uma língua adquire no seio da comunidade ou, mais exatamente, a representação que os falantes se fazem daquilo que constroem no enunciado. Os crioulos são habitualmente assumidos como idiomas de comunidades distintas da de origem. A ausência dessa representação no Brasil em relação ao português falado em confronto com o escrito e normatizado impede de considerar o primeiro como um crioulo. Ao contrário, nos cultos de umbanda, as variedades de expressão em que aparecem mais claramente traços "aberrantes" em relação ao português padrão e mais próximos daqueles atestados em alguns crioulos da África são explicitamente assumidas como elementos característicos de uma língua diferente, peculiar às "entidades" que são veneradas nesses cultos. Entretanto, em virtude da ausência de estudos sistemáticos, nada permite determinar se se trata de reminiscências de estados de línguas antigamente faladas ou de línguas novas atribuídas a essas entidades.
Conclusão A exposição que acaba de ser feita é, antes de tudo, descritiva. Tentou-se descrever, numa visão um tanto quanto panorâmica, também no plano histórico, as diferentes facetas da relação "línguas africanas - língua portuguesà' no Brasil. Essa relação não foi das mais simples. Instaurada há séculos e inscrita no próprio coração do tráfico, ela desenvolveu-se no Brasil num jogo de alternâncias e de contatos linguísticos em que as línguas africanas exerceram, sucessivamente, um papel cada vez menos determinante em face daquele preenchido pela língua portuguesa. Elas passaram de u m estatuto inicial de língua plena e generalizada (quimbundo), primeiro, ao de língua veicular e pidginizada ("mina"), em seguida ao de língua veicular (iorubá) geograficamente circunscrita e limitada a um contexto plurilíngue e africano, para acabar numa fase de extinção progressiva, por falta de renovação suficiente de seus falantes, sobrevivendo finalmente apenas em lugares confinados, sob forma de línguas cultuais ou secretas. Paralelamente, o português afirmou-se progressivamente, até atingir, em sua fase atual, o estatuto de língua oficial de referência. Entretanto, esse mesmo português, durante séculos, foi constantemente colocado à prova de um uso inabitual, o de uma maioria de falantes, na época da escravidão, essencialmente "aloglotas", prenhes de hábitos e reflexos linguísticos, notadamente no plano semântico-cognitivo, que lhe
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Línguas a fricanas e português falado no Brasil
eram estranhos. Durante séculos, ele foi submetido a um determinismo funcional q ue privilegia a eficácia e a economia de esforço. É desses contatos m últiplos e constantes que, provavelmente, resultam sua flexibilidade e, ao mesmo tempo, sua fluidez estruturais, mas também seu dinamismo interno, feito de resistência e de inovação. Certamente, o essencial não está no fato de que sua estrutura tenha ou não permanecido intangível e idêntica a si mesma, mas de que ela tenha sido objeto de constantes reconstruções. Para compreender tal realidade movente e inovadora, os conceitos de "influência" e de "crioulização" revelaram-se insuficientes, para não dizer inadequados. No p resente, é altamente desejável que outros conceitos operatórios os substituam.
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Morfossintaxe É no nível morfossintático que o caráter desse português é mais marcante. O bservam-se entre outros: • desaparecimento dos artigos definidos (no conjunto de textos que recolhi, não se encontra um só artigo) e utilização de isso como único determinante e também como pronome: Isso língua di Moçambique que eu esquece. Isso gente di Sele também tem lingua dele. Nosso fala só isso língua, língua só. Tudo hota que está na minha pé é pata ensinat isso língua. Cabou com foba di banana, isso banana mesmo nosso come casca. Isso tumba tá lá. Isso di Monteforte ( . .) era bom; • redução, no sintagma nominal, da concordância de número: um nome precedido de quantificador não recebe a marca de plural, como por exemplo, oito dia, muito raça, muito criança, doji maxim espetado;
A
inexistência de crioulo no Brasil
• desrespeito à concordância de gênero:
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mia pai, uma home, uma branco,
muyeri novo, bonitu;
• pronomes pessoais sujeitos: io/eu, osê, eli/el, nôsso/no, elis/eji; • funcionamento de todos os pronomes como complemento, com exceção
• •
de io: io sptiqu' el; kiriapanga, nosso dansava eli; capatas avisa osê; para a primeira pessoa, o pronome complemento é mi: patron pergunta mi; eu, ninguem manda mi trabayar ni matu; apagamen to possível de prepos ições: nun se tera deles maji et parte Moçambique; Santarem qu' ela muriu; eji da porrada gente; no caso dos verbos, conservação da flexão de tempo, mas muito raramente a de pessoa; os verbos aparecem mais frequentemente na forma da terceira pessoa: io esquece; io esqueceu; tempo que nôsso nasceu; no fartava; Kiriapanga nôsso dansava ele; eji matava gente; mias kompayero quando trabaya, recebe pagamento.
No conjunto dos textos recolhidos, a proporção de concordância sujeito-verbo, segundo a pessoa, é a seguinte: 1a pessoa do singular: 45% realizada 55% não realizada 2a pessoa do plural: 5% 95% 3a pessoa do plural: 10% 90% Pode-se no tar, a propósito da primeira pessoa do singular, que a concordância se faz quase sistematicamente quando o radical do verbo m uda da primeira para a terceira pessoa: assim teremos quase sempre io posso em vez de io podi. A ausência de concordância sujeito-verbo tem uma consequência natural: o emprego quase obrigatório de pronomes pessoais sujeito onde o português padrão não os utiliza:
• desaparecimento do subjuntivo, que é substituído pelos tempos correspondentes do indicativo correspondentes;
• existência da dupla negação: non comprende non; aqui, non sai non; capataz non vai La non; osê non brinca non;
• término de inte rrogações com o interrogativo:
osê quexará ondi?; osê
nasceu quando?;
• emprego de um relativo único que (realizado indiferentemente /ku/ ou /ki/), particularmente nos numerosos casos de topicalização: tempo que falava co mi rmom; roça que Bisentina nasceu; isso di Monteforti que nôsso nasceu era bom; patron pode sta Lá que non ouve; isso banana que nôsso come casca; mia roça que io nó viu, maji ni outro roça matava, si; non tem ninguem que fala co ele.
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África no Brasil
Léxico Do ponto de vista lexical, chama a atenção o fato de que os termos de origem africana são pouco numerosos e geralmente pertencem a domínios bem específicos: vegetação, culinária, "cultura". A influência do crioulo santornense sobre o português também não é importante, pelo menos à primeira vista. Hoje, na verdade, observa-se urna alternância de código interfrástica, com o emprego de frases inteiras em forro, entre os tangas instalados na cidade. Para dar urna visão completa e, so bretudo, para permitir a compreensão da evolução desse sistema, seria necessário falar um pouco sobre a forte variação sociolinguística dos informantes nas plantações, em função da idade, do sexo e da posição social (para alguns, falar português bem pode ter sido um objetivo que permitia atingir funções mais gratificantes; geralmente as mulheres falam uma língua mais afastada do português padrão). A escolarização recente das crianças tem um impacto não somente sobre o português que elas falam mas também sobre o de seus pais, o que introduz novas variações no seio da comunidade.
O Português dos tangas e a crioulização Na perspectiva deste trabalho, três pontos, que se completam, são de grande importância:
O português dos tongas e o português vernacular do Brasil
A inexistê nc ia de crio ulo no Brasil
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- no nível fonético, ieismo, alternância /b/vs. /v/, aférese, síncope, diferentes tipos de apócope; -no plano morfossintático, ausência do artigo em certas sequências, falta de concordância substantivo + adjetivo, utilização da forma verbal de 3a pessoa em lugar da 1a pessoa, o uso do io como pronome sujeito de primeira pessoa singular. Outros tantos fatos semelhantes são encontrados no PDT: será por acaso? A análise do falar de Helvécia feita por Ferreira e a do PDT apresentada aqui são relativamente sumárias e é muito provável que as semelhanças sejam ainda mais nwnerosas. Podemos mesmo acrescentar que há mais semelhanças entre o PDT e o falar de Helvécia do que entre os diferentes crioulos portugueses.
O PDT não é um crioulo O português falado pelos tongas não é um crioulo. Ele não é marcado por uma ruptura tipológica com o português e, dificilmente, pode ser analisado sem uma referência constante ao português normatizado. O PDT é aparentado a um conjunto de variedades nascidas da ossificação de interlínguas do português, que são transmitidas em um contexto no qual o português fu nciona, sempre parcialmente, como língua alvo- mesmo se esse alvo é difuso (sobre cenários possíveis de transmissão do português entre os tongas, ver Baxter (2002)). A propósito, é interessante observar que não existem tongas bilíngues português/PDT. Um tanga que adquire o português normatizado abandona as variedades aproximativas, inclusive nas situações em que seus interlocutores utilizam o PDT. Para melhor explicar esse fato e, em particular, o que chamamos "ruptura tipológica", vamos apresentar dois exemplos que ilustram claramente a diferença entre os sistemas e que, além disso, estão no centro da questão das semelhanças entre o PDT e o falar de Helvécia: - ao tratar do SN, aiirmei que se observava aí uma redução das concordâncias de gênero; no caso dos dois crioulos de São Tomé, é a própria noção de gênero nominal que desaparece; - a propósito dos verbos, observa-se uma redução da flexão de pessoa que pode, também, ser analisada como não respeito à concordância sujeito-verbo; em forro e em angolar, trata-se de outra coisa pois, com o desaparecimento das flexões verbais, é o conj un to do sistema verbal que é reconstruído, sobre a base de uma oposição aspectual entre o perfectivo (forma não marcada) e o não perfectivo (forma marcada). As marcas aspectuais e temporais são antepostas ao lexema verbal.
O PDT, tal como foi descrito aqui, apresenta enormes similitudes, tanto fonéticas quanto gramaticais, com as variedades do português vernacular brasileiro (doravante PVB) mais distantes do português padrão do Brasil. Sobre essas variedades, H. de Mello (1996) diz: "( ... ) são faladas em comunidades afro-brasileiras que, aparentemente, ficaram relativamente isoladas da sociedade principal ( ... ) Esses dialetos têm traços não portugueses, como a concordância variável de gênero no SN e somente uma forma verbal para todas as pessoas em alguns tempos verbais". Sabe-se que essas variedades foram apresentadas por certos pesquisadores (entre eles Holm) como resultado de um processo de "descrioulização" 1• Dentre essas variedades, o falar de Helvécia - apresentado por Mello (1996) como a variedade mais conservadora e retrato da origem dos referidos dialetos- é, significativamente, o que apresenta mais
O PDT não é resultado de um processo de descrioulização
semelhanças com o PDT. Ao considerar as principais características apontadas por Ferreira em seu esboço de descrição de 1985, observamos as seguintes similitudes:
A formação dessas variedades santomenses é suficientemente recente para que encontremos testemunhos bem precisos que nos permitem aiirmar que nenhum crioulo
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preexistiu ao PDT. Os trabalhadores contratados no final do século XIX e no início do XX chegavam do interior das terras angolanas ou moçambicanas e aprendiam o português nas roças, sendo estas organizadas de tal maneira que os primeiros serviçais e seus descendentes (os tongas), até a independência, não tiveram praticamente contato com os crioulos falados na ilha de São Tomé. As três observações feitas acima nos levam, inicialmente, a evitar as abordagens que desde Coelho (1886) veem o português do Brasil ora como um crioulo, ora como uma consequência de um fenômeno de descrioulização. Com efeito, a ausência de ruptura tipológica constatada no PDT é válida também - e talvez mais válida aindapara as diversas variedades do PVB. Além disso, se o PDT se formou sem a presença anterior de um crioulo, não vemos nenhuma razão para considerar que as variedades do PVB - muito semelhantes ao PDT - se originaram de um fenômeno de descrioulização. Somos, então, logicamente, levados a procurar outras explicações para a formação das variedades do PVB. O exemplo santomense oferecerá pistas aos especialistas do PVB? É na descrição das situações históricas e linguísticas observadas em São Tomé que procuraremos elementos que poderiam explicar por que, nesta ilha, em situações à primeira vista comparáveis, houve a formação de crioulos no século XVI, ao passo que, nos séculos XIX e XX, assiste-se a um outro fenômeno- a emergência de variedades não padrão do português (prefiro evitar expressões como semicrioulo ou semicrioulização, que introduzem confusão e não simplificam o debate). A diferença entre a formação dos crioulos de São Tomé e a do PDT deve-se, antes de mais nada, ao fato de que no primeiro caso estamos em presença da construção de um novo sistema a partir de um material particularmente lexical originado do português. Ao longo dessa reconstrução, irão operar as influências de diferentes línguas em presença (línguas de substrato, português) e também as tendências mais universais. No segundo caso, a emergência do PDT, como foi sugerido anteriormente, deve-se, em um primeiro momento, aos processos ligados à aprendizagem incompleta e errática do português. Tais diferenças de "estratégias" são explicadas, em parte, por uma desigualdade de exposição à língua nas duas situações, desigualdade quantitativa ou qualitativa. Esse fato faz-nos debruçar, inicialmente, sobre a origem do material a partir do qual os crioulos de São Tomé foram constru ídos. Retomando-se uma tese clássica das explicações dos fenômenos de crioulização, podemos perguntar-nos se, em São Tomé, os africanos foram particularmente expostos não ao português, mas a alguma coisa que seria aparentada a um pidgin português, talvez a língua franca portuguesa dos marinheiros, cuja utilização é atestada nas costas do golfo da Guiné em diferentes períodos. Ou- por que não ?- expostos à famosa língua de preto2 • Além disso, é provável que nos primeiros tempos e talvez mesmo antes da chegada dos africanos a São Tomé, desenvolveu-se entre estes, em contato com os portugueses, um sistema de comunicação elementar bem semelhante à variedade linguística de
A inexistência d e c rioulo no Brasil
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base - Basic Variety- descrita por Klein c Perdue (1977) entre os migrantes na Fran ça e na Alemanha3 . Assim, nas suas relações com os portugueses, os africanos poderiam ter se contentado com um sistema baseado em um léxico limitado a nomes e verbos não flexionados para resolver seus problemas de comunicação com os europeus. Os enunciados seriam pragmaticamen te estruturados- o lugar das palavras sendo, desde o início, determinado por sua importância na compreensão do propósito - o que corresponde à estruturação habitual dos pidgins4• Aliás, V éronique (200 5), ao tratar da formação dos crioulos franceses, pergunta-se, a propósito da Basic Váriety, se tal sistema fossilizado ou estabilizado não constitui de fato um pidgin. Certamente, não podemos limitar a explicação da emergência do crioulo à insuficiência da exposição à lfngua portuguesa nas plantações de São Tomé. A "crioulização" é um processo extremamente complexo que põe em ação diferentes motivações de ordem sócio e psicolinguística e a língua emergente tem de responder não mais às simples necessidades de comunicação, mas é obrigada a preencher todas as exigências materiais e simbólicas da sociedade em formação, dos diferentes grupos sociais e indivíduos que a compõem. No entanto, a insuficiência de exposição ao português explica o fato de que essa língua não tenha se desenvolvido realmente, assim como sua maneira errática e incompleta. A presença portuguesa, até o século XIX, jamais foi maciça na ilha de São Tomé. Segundo Valentim Fernandes (1 506- 1510), no início do século XVI, sua população chegava a 2000 escravos, 1000 homens livres "moradores" e 5 ou 6 mil escravos nos entrepostos à es pera de partir para outras terras. Segundo a mesma fonte, entre os "moradores", 200 viviam na cidade. Observe-se que esses moradores não eram todos portugueses. Nos anos seguintes, a população portuguesa diminui, até quase desaparecer no decorrer do século XVII, tendo a administração voltado para os mina son 'filhos da terra', descendentes dos primeiros escravos li bertos e dos primeiros mestiços. Além disso, o tipo de organização das plantações, antes do século XIX, não favoreceu o contato com a língua portuguesa. Os escravos em São Tomé não eram alimentados pelos seus senhores. Eles recebiam um pequeno pedaço de terra, o kinté (do português quinta~ , que lhes permitia assegurar a subsistência e no qual viviam com suas famílias 5. A situação tornou-se muito diferente quando o cacau e o café foram introduzidos em São Tomé. Como foi mencionado anteriormente, as roças foram organizadas segundo o modelo brasileiro de casa grande e senzalas. Além disso, os portugueses, que voltaram maciçamente para a ilha, estavam presentes nas plantações; os dirigentes, os técnicos e os contramestres eram lusófonos e utilizavam exclusivamente o português em seus contatos com os serviçais, contatos bastante intensos e longos para que os serviçais desenvolvessem sistemas transicionais - as interlínguas - suficientemente
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estruturados q ue pod iam transmitir a seus filhos sem acesso à escolarização e a um ensino formal da língua portuguesa. Esses filhos, os tongas, serviram-se dessa variedade emergente para a comunicação com os lusófonos, m as também entre si, em alternância com algumas línguas africanas, na vida q uotid iana. Foi tam bém nessa língua que os tongas educaram, ao m enos parcialmente, seus filhos. Estamos, então, em um processo bastante diferen te da crioulização, sem considerar q ue haja em nenh um momento uma
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-parecia ser determi nado pela interação de um número peq ueno de prind pios de o rganização; - era largamente (embora não totalmente) independente das fomes espedficas da organização das Hnguas-alvo; - era simples, versátil c alran1ente efi ciente para a maioria dos propósioos. Chamamos esse sistema de Variedade Básica" (Klein e Perdue, 1992). ~ Ver também a oposição operada por Givón: "gramatical vs. pré-gramatical discurse processing" (Givón, 2005). 5
O kinté ~ o centro d a vida social sanroonense c, em certas expressões, como kinté glnndji, essa palavra recebe a acepção de "família".
real ruptura com a língua portuguesa. Q uanto à influência das línguas de su bstrato, consideramos q ue esta tomou a forma de interferência (particular mente, no nível fonológico), como o corre no caso do falar de q ualquer aprendiz.
Bibliografia BAXTER, Alan (1992). "A contribuição das comu nidades afro-brasi leiras isoladas para o debaoe sobre a criouJização prévia um exemplo do estado da Bahia". In: D'ANDRADE, Ernesoo; K.onM, Alain (eds.). Actns do Colóquio sobr~ "Crioulos d~ bt1u l~ximl portugu~stl~ Lisboa: Colibri, p. 7-35. _ _ _ _ (2002). 'Semicreolization'? The Resrrucrured Portuguese of rhe Tongas ofSão Tomé- a Consequence of LI Acquisition in a Special Conract Situation.}oumn/ oJPortugum LinguisJics. Lisboa, 1:7-39.
Conc lusão Nossa hipó tese é, pois, q ue, em vista das sim ilitudes estruturais gritantes presentes nas variedades do PVB m ais afastadas do português padrão e no PDT, e levando em conta as certezas existentes sobre a história do PDT, não há nenhuma necessidade de postular um a o rigem crioula para o PVB. Essas semelhanças levam-nos a postular que a exposição à língua portuguesa assim com o sua transmissão se desenrolaram em pro po rções, condições e segundo modos comparáveis aos observados para os primeiros ancestrais de fala ntes das variedades do PVB nas comunidades isoladas e para os tongas e seus pais, transportados para São Tomé. Isto não é nada surpreendente q uando se considera que o modelo de o rganização das p lantações de cacau e café de São To mé fo i importad o do Brasil. A referida exposição foi suficientemente impo rtante p ara que se desenvolvessem competências em português, desvianres, é verdade, mas forres o bastante para que não fosse necessário construir um sistema linguístico em rup tura com o português e suficientemente com pletas de m odo a possibilitar sua transmissão. (Tradução: Tania Alkmim)
_ _ _ _ (2004). "T he Dovelopment o f Variable NP Plural Agreement in a Rest rucnored African Variery o f Port uguese". 1n: EscurtE, Genevieve; ScHWEGLER, Armin (eds.). Crtol~s. Contnct nud Lnugunge Cbnng~: Liuguistics nnd Socin/ implimtiom. Amsrerdam: John Benjamins. COELHO, Adolfo ( 1967 [1880-1886]). Os d ialetos românicos ou neolarinos na Africa, Asia e Aonerica. Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, nova edição. In: MoRAJs-BARBOSA, J. Estudos linguisticos crioulos. Lisboa: Academia lnoernacional de Cultura Portuguesa. FERNANDES, v. (1951 r1506-151 O]). Descriprion de In côu occidtntnl~ d'Afi·ique (Stnégnl nu Cnp de Monte, Arcbipels). Edição e trad ução de Th. Monod, A. Teixe ira d a Mora e R Malony. Bissau: Centro de Estudo da Guiné Portuguesa. PERI st. sabi, dexa /'s~bi, 'd_çj'B/ saber, deixar. vs. Fogo sabê, Maio dixâ /sB'b~, di'S~I. vs. São Vicente sabê, tchá /sB'b~, 'tS~.
Como as diversas variantes cabo-verdianas são geneticamente aparentadas e a sua gramática apresen ta numerosas semelhanças, é muito provável que a acentuação paroxítona das bases verbais santiaguenses constitua um a evolução secundária própria desta variante (Quin t, 2003: 176; 200 1: 75-76; Pereira, 20 00: 39 [nota 29]). Assim, as bases verbais do conjunto das variantes cabo-verdianas derivariam do infinitivo português. Logo, no que diz respeito ao cabo-verdiano, não houve nenhuma erosão progressiva das flexões pessoais do verbo: pelo co ntrário, o sistem a de flexão verbal da língua co nstruiu-se, desde o início (ou seja: desde a fase de crioulização), a partir de uma só forma do verbo português (o infinitivo) . Quanto às marcas pessoais de sujeito nessa língua, estas foram (re)criadas a partir de uma série pronominal que provém (pelo menos em parte) dos pronomes tônicos o bliquos do PE 12 (e não dos pronomes sujeitos, como no caso do PB). Portanto, a gênese do sistema das marcas pessoais de sujeito do verbo cabo-verdiano não se assemelha, de modo algum, às tendências evolutivas observadas em PB. Embora as informações sobre as origens exatas das bases verbais em outros crioulos com base lexical portuguesa sejam m ais escassas, o que fo idito a propósito do cabo-verdiano parece valer, pelo m enos, para a maioria dos crio ulos afro-portugueses em que: (i) o verbo não conhece nenhuma flexão sintética de pessoa e o uso (quase) obrigató rio de pronomes pré-verbais sujeitos é universal nessas línguas (Doneux & Rougé, 1988: 9; Ferraz, 1979: 61-68; Günther, 1973: 65; M aurer, 1988: 40; 1995: 58-63; Munteanu, 1996: 303; Teyssier, 1988);
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(ii) a maioria das bases verbais parece ser derivada do infinitivo português (Ferraz, 1979: 38; Maurer apud Munteanu, 1996: 328; Scantamburlo, 1999: 150; Teyssier, 1988: 477) 13 • Ou seja, no que diz respeito às marcas de pessoa e à origem das bases verbais, o cabo-verdiano santiaguense pode ser considerado como um representante prototípico de um modelo comum ao conjunto dos crioulos com base lexical portuguesa da África. Como acabamos de ver que, no domínio das marcas verbais de pessoa, o cabo-verdiano não atesta as mesmas tendências evolutivas que o PB, isso significa que a redução do paradigma das formas verbais pessoais sintéticas do PB e o consequente preenchimento da posição de sujeito nessa variante do português não podem ser considerados como um traço crioulo (ou crioulizante).
Conclusão Os dados e comparações expostos nas seções anteriores permitem demonstrar dois fatos fundamentais no que diz respeito à questão da crescente tendência para o preenchimento da posição de sujeito em PB: 1. o preenchimento da posição de sujeito em PB, mediante pronomes sujeitos pré-verbais, aparece diretamente ligado ao enfraquecimento do paradigma verbal pessoal sintético na variante brasileira da língua portuguesa. Esta ligação já foi estabelecida por outros autores (cf discussão em Duarte, 2000: 18-20) . No entanto, quando comparamos os fenômenos observados em PB com o que se passa em outras línguas românicas, constatamos que as tendências evolutivas do PB contemporâneo não constituem de modo algum um caso isolado: no que diz respeito às marcas pessoais de sujeito, o PB tem um comportamento exatamente conforme ao das outras variedades românicas perifi!ricas. Ou seja, o preenchimento da posição de sujeito em PB pode ser explicado por uma deriva histórica (erosão progressiva das marcas sintéticas pós-verbais e sua
substituição por pronomes pessoais sujeitos pré-verbais) que se observa no conjunto da zona neolatina. 2. Por outra parte, a análise do sistema das marcas p essoais de sujeito num crioulo afro-português (o cabo-verdiano) e a demonstração da origem in finitiva das bases verbais desta mesma língua nos permitem compreender até que ponto o sistema do PB difere do dos crioulos (africanos) com base lexical portuguesa no que diz respeito às marcas verbais de sujeito. Logo, fica comprovado que o preenchimento da posição de sujeito em PB não está relacionado com um processo de crioulização (ou seja, aos mecanismos evolutivos que levaram ao aparecimento das
línguas crioulas).
A realização d o sujeito e m português d o Brasil
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Enfim, além da questão particular do preenchimento da posição de sujeito em PB, este estudo permite, a meu ver, realçar um princípio de valor geral: para uma boa compn:ensão dos mecanismos e tendências evolutivas do PB, as comparações do PB oral com o PE (cuja realidade linguística é não raras vezes descrita de maneira bastante aproximativa no contexto cul tural brasileiro 14) e/ou o PB escrito não bastam:
(i) do mesmo modo que o PE, o PB é derivado do latim e, portanto, muitas vezes as comparações com outras línguas e falares neolatinos (como vimos mais acima) ajudam de maneira significativa a esclarecer as peculiaridades da variante brasileira da língua portuguesa; (ii) o PB, do mesmo modo que os crioulos com base lexical portuguesa, pertence ao conjunto linguístico do português ultramarino (Teyssier 1984b: 14-15), ou seja, às modalidades linguísticas que surgiram no seguimento da expansão marítima de Portugal na era moderna, as quais apresentam vários pontos comuns, em particular no que tange ao léxico, que as distinguem todas do PE (PE cão, há vs. PB cachorro, tem = cabo-verdiano katchor, tem: c( Quint, 2005: 125). Pelo fato de o PB ser incluído no português ultramarino, muitas vezes as comparações dessa variante do português com as demais variedades crioulas do português ul tramarino podem ser profícuas, apesar de o PB apresentar também diferenças muito importantes em relação aos sistemas crioulos; (iii) para concluir, cabe salientar que, além do português, várias outras línguas têm contribuído de modo apreciável para a formação do PB, destacando-se como línguas de substrato o tupi (língua ameríndia) e várias línguas africanas (em particular os idiomas bantos e os do Golfo do Benim, como o iorubá e as línguas da 'zona calabari') a par das diversas línguas trazidas pelos imigrantes europeus e asiáticos (alemão, italiano, japonês, etc.). No que diz respeito à questão do preenchimento da posição de sujeito em PB, parece pouco verossímil que alguma dessas línguas tenha desempenhado um papel significativo. No entanto, é muito possível que elas tenham tido certa influência em outros pontos do sistem a do PB (ou pelo menos de certas variantes do PB). Logo, compreender as origens das particularidades do PB in1plica levar em conta um importante leque de variedades lingufsticas das mais diversas famílias e grupos filogenéticos. (Revisão: Márcia Oliveira)
Lista das abreviaturas INF = INFinitivo; IP2SG = 2a Pessoa do Singular do ImPerativo; PB = Português Brasileiro; pcl. = português clássico; PE = Português Europeu; PI3SG = 3• pessoa do singular do presente do indicativo; st. = (cabo-verdiano) santiaguense (variante da ilha de Santiago) .
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Notas 1
Este capftulo resulta de uma pesquisa comum com Márcia Oliveira sobre a q uestão da sintaxe dos pronomes do português brasileiro e da possível participação africana nessa área da gramática da ICngua. Os dados aqui expostos das llnguas românicas e do cabo-verdiano e as análises que os acompanham são meus e, por isso, assumo a autoria (e as imperfeições) d esce arrigo. No entanto, agradeço a Márcia O liveira, cujas observações contribuíram para melhora r o con teúdo e os argumentos deste texto.
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O termo 'português brasileiro', nesre cap ítulo, restringe-se à norma culta f..Uada nas cidades do Rio de Janeiro c São Paulo (sudeste do pais).
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Alguns linguistas consideram que a perda d a flexão verbal acarreta o preench imento da posição de sujeito (por exem plo, Duarte, 1996; 2000 c Galves, 1993). Outros consideram que esse faro não está ligado à redução do paradigma flexionai do verbo, mas a uma estratégia para recuperar a interpretação referencial de sujeitos nulos, a proeminência discursiva (Negrão, 1999 e Negrão c Yiotri, 2 000}.
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Neste capítulo, o português europeu corresponde à norma culta d a cidade d e Lisboa, que serve d e referên cia para o conjunto do território po rtuguês.
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Em francês escrito oficial, a forma da I' pessoa do plural do verbo é nous cbttmom. No entanto, na língua falada contemporânea, a forma on cbtt/1/t quase que substituiu a forma normativa, daí a minha decisão de inclui-la no quadro como forma da I • pessoa do plural para o fra ncês (falado) moderno. O fato d e a flexão sintética do verbo romeno dist inguir regularmente pelo menos 5 das 6 pessoas do modelo latino explica provavelmente que, na m aioria dos casos, o preen chim ento da p osição de sujeito median te um pronome pessoal n ão seja a regra em romen o moderno (bem como em espanhol argentino: cf. acima). Do mesm o modo, as confi.ISões muito frequentes cmrc as form as siméricas de 1' e 3' pessoa do plural (f'ts~nmnl =cttnttmos I cttnrtm erc.} em occirano de Albon (Quint, I 999: 54-55), fàzem com que, neste falar, muitos q uadros de flexão verbal só constem d e 5 formas pe.'Soais distintas. No entanto, na prática quotidiana, o uso sistem ático do pronome pessoal não é a n orm a nessa variante da língua occirana. Co n trasta ndo com o restante do artigo, escolhi aqui o irem cabo-verd iano que signi fica 'sttber' (c não 'cttntttr') para ilust..ar a Aexão pessoal do verbo cabo-verdiano. C o m efeiro, o sistema verbal do cabo-verdiano funciona segundo princípios bastante diferentes dos que regem o verbo da maioria das línguas românicas. Assim, n ão existe um equivalente unívoco do presente do indicativo em crioulo de Cabo Verde. O verbo forte (ou esrarivo) cabo-verdia no sabi, 'sttbtr', quando combinado com os pronomes pessoais sujeito na ausência de qu alq uer outra marca segmenta!, remete a u ma situação remporal bastante próxima da que se expressa em romance (e em latim) com o presenrc do indicativo. No entanto, na maioria dos casos, o verbo fraco (ou de ação) cabo-verdian o kánta, 'cttntar', com uma fl exão idêntica, não remete para uma situação presen te, m as passad a (para mais pormenores sobre verbos forres e fracos em cabo-verdiano, cf. Quinr, 2003: 243-249; 2000a: 235-243, 248-252}, daí a minha escolh a d e s abi no Quttdro 6 como modelo cabo-verdiano, a fi m de manter u m q uadro remporaluniforme para os exemplos cabo -vcrdianos e ro mances.
• Bu é a forma coloquial (correspondendo aproximativamente ao tu do francês ou do PE), ao passo que nhu e nha são formas de tratamento respeitoso, respectivamente masculino e feminin o. '
A realização do sujeito em português do Brasil
África no Brasil
Existem casos em que o pronome sujeito pode não ser expresso em cabo-verd iano (Baptista, 2002; Quint, no p relo (b)). No enranro, no nosso entender, esses casos explicam-se sempre por contexros sintáticos o u semânticos bastante particulares. Regra geral, n um enunciad o simples, o uso do pronome pessoal sujeito pode ser considerado como a norma em cabo-vcrdiano falado.
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Salvo menção particular, a transcrição dos érim os porcugueses dos termos cabo-verdianos segue a pron úncia do português clássico (séculos XVI-XVII), ou seja, o português tal como se f..Uava quando da formação do cabo-verdiano santiaguen se. Para as normas d e pronúncia do português clássico , cf. "leyssier, 1997 [1980].
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Para rornar mais d ara a demonstração, men ciono un icamente as formas do PI3SG nas comparações que seguem já que, no q u e range ao s verbos regulares, P13SG e IP2SG são rigorosam eme homófonas em p ortuguês.
" Esta observação vale em particular no que diz respeito ao pronome sujeito cabo-verdiano da 1• pessoa do singular, m -1~1 (cf. Quttdro 6), que obviamente não pode p rovir do português m. Para mais pormenores sobre a questão d a origem do paradigma dos pro nomes pessoais sujeiros em cabo-verdiano, cf. Quint, 2000a: 169- 170. u Jean -Lo uis Rougé (2000: 8 I -9 5) insiste (com razão) em mostrar que o infinitivo não d eve ser considerad o como a tmica forma subjacente a rodas as bases verbais dos crioulos afro-portug ueses. No entanto, os d ados dispon íveis rendem a confirmar que o infinitivo é a form a que essas línguas selecionaram de modo preferencial no paradigma verbal português. Assim, na gramática do principense de Günrher (1973: 192}, a maior p arte d os verbos têm a acen tuação o x!rona típica do infinitivo português: fatá, foltttr, fezé, four... É possível que as sllabas acentuadas descritas pdos aurores mais amigos a propósito dos crio ulos do Golfo da Guiné tenham de ser consideradas com o sllabas associadas com tons altos (Maurer, 2005; Rougé, 20 00: 85}; ma_ç se a sllaba final dos verbos criou los estiver
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regularmente associada com um tom alro, isso não anula d e modo algum a hi pótese da origem in finit iva, já q ue é bastante com preensível que a sílaba final acentuada do infinitivo português tenha sido reintcrprerada como u m rom alto em uma língua tonal. " A título de exem plo, Fernando Tarallo (1996: 5 1), para a pergunta "Pnulo viu Mttritt onttm?", apresenta duas resposras, contrastivas, en1 PB e em PE respectivamente: "Sim, ele viu ..; uSiJn, n viu ... No entanto, em semelhan re contexto (oração afirmativa independente com pausa (vlrgu la) entre o advérbio sim e o resto da frase), o p ronome objeto 11 deve ser posposto em PE. Ou seja, independentemen te do valor pragmático (que não tenciono discutir aqui) d a resposta PE sugerid a por "làrallo, essa mesma resposta é morfo logicamente agramatical em PE já que, nesta variedade da língua portuguesa, o complexo verbo-objeto teria d e ser realizado viu-11.
Bibliografia BAPTISTA, Marlyse (2002). "Cape Vcrdcan as a Radically Pro-Drop Language". Comunicação apresentada na conferência anual da SPCL, São Francisco, 3-6 d e janeiro 2006.
BAXTEI~ Alan N. (1992). ''A contribuição das comunidades afro-brasileiras isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do estado da Bahia". In: D'ANDRADE, Ernesto; KIHM, Alain (orgs.). Acttts do colóquio sobrt "Crioulos dt base lexicttl portugtmtt': Lisboa: Colibri, p. 7-35 . DoNEUX, J ean Léonce; RouGÉ, J ean-Louis (1988). /::11 ttpprcnant le créolt lt Bissttu ou Ziguincb01: Paris: l:Harmauan. DuARTE, Maria Eugênia Lamoglia ( 1996). "Do pronome nulo ao pronome plen o: a trajetória do sujeito no português d o Brasil". In: RosE JUS, lan; I púlúkáanri (101); pore "escola" > síkóóla (!OI); port: "sabão"> nzába, sabún i, zabú.ngu (105); port: "farinha"> fadína (1 04); port: "retrato" > luráálutu (l 05).
O estoque lexical Se considerarmos, agora, o conjunto dos vocábulos de origem africana atestados no português falado no Brasil, do ponto de vista de sua acumulação, isto é, como estoque lexical, duas constatações se impõem. Em primeiro lugar, esse estoque lexical constituiu-se progressivamente. Resulta de um longo processo histórico de mais de cinco séculos, contínuo e complexo, que começou em Portugal no século XV, continuou na África nos séculos seguintes e, paralelamente, no Brasi.l, onde se desenvolveu de modo extenso. Foi durante esse longo processo que se deu a integração progressiva dos termos africanos emprestados nesse imenso reservatório que representa hoje o potenciallexical português. Surgido de um processo histórico que se prolongou por vários séculos, é possfvel caracterizar esse longo período de integração como uma fase de "sedimentação lexical" durante a qual certos vocábulos foram integrados com o custo de uma reaclap tação formal e semântica, enquanto outros vocábulos concorrentes fo ram excluídos. Essa integração, condicionada pelo acaso dos acontecimentos históricos, faz com que essa sedimentação lexical seja constantemente submetida a rupturas e, às vezes, a desagregações. Daí a necessidade de abordá-la, ao menos na sua configuração atual, como uma sequência de estratificações sucessivas. No plano metodológico, essa observação impõe que se baseie na história a compreensão dos fatos, a saber, a existência e o conteúdo desse estoque lexical. Somente os dados disponíveis, realmente atestados e historicamente datados, podem servir de suporte à argumentação e à interpretação. As hipóteses (por exemplo, as evocadas acima) não podem de modo algum servir de prova. Essa é uma exigência fundamental de um procedimento científico. Por outro lado, no que se refere aos dados lexicais em si,
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oriundos de línguas africanas e virtualmente constitutivos do léxico português, convém separar os que foram integrados aqui mesmo, no Brasil, dos que foram integrados no exterior, seja em Portugal numa primeira fase, seja na África na sequência, nos territórios onde a presença portuguesa foi determinante. A segunda observação diz respeito ao próprio conjunto dos empréstimos feitos das linguas africanas, como estoque lexical. Uma análise atenta desse conjunto permite no tar que essa totalidade lexical, no seu estado atual, não é homogênea. Ela se constituiu de descontinuidades semân ticas. Contextos discursivos heterogêneos, simultâneos ou sucessivos- escravidão, economia açucareira, produção de minérios, vida urbana, religião ... , mas também resistências culturais - disseminados no tempo e no espaço, contribuíram para criar insular idades semânticas sob a forma de vocabulários de especialidade. É assi m que esse conjunto lexical é antes um conglomerado de vocabulários, alguns cultuais e religiosos, outros técnicos (exploração agrícola e de minérios), outros socioeconômicos. Essa ausência de homogeneidade é, aci ma de tudo, ampliada pela variedade e alternância das línguas africanas implicadas, isto é, das línguas "fontes" que foram sucessivamente solicitadas, no tempo e no espaço, em função dos acontecimentos históricos. Essa segunda observação conduz a uma exigência metodológica suplementar. Não somente importa não colocar em pé de igualdade o conjunto do estoque le.Jcical dos empréstimos, mas também depreender e mesmo enfatizar essa mesma não homogeneidade. Para alcançar essa exigência, sugeri mos efetuar uma oposição dupla, de um lado en tre "vocabulário de base" e "vocabulário comum", de outro entre "vocabulário comum" e "vocabulário de especialidade". É à luz dessa dupla oposição que vamos exam inar, primeiramente, os vocábulos das línguas africanas historicamente faladas no Brasil, identificadas em documentos escritos, em seguida os empréstimos em seu emprego atual no Brasil.
Os vocábulos de línguas africa nas historicame nte fa ladas no Brasil No plano histórico- isto é, baseado em dados identificados e datados-, foram certamente faladas no Brasil as seguintes linguas africanas (cf. texto "Línguas africanas e português falado no Brasil" aqui publicado):
Século XV II: língua quimbunda falada no Brasil, "gramatizada" em Salvador, Bahia Trata-se da Arte da língua de Angola, de Pedro Dias S.I. , redigida no Brasil, mas publicada em Lisboa em 1697. Um levantamento dos termos quimbundos atestados
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nessa gramática permite depreender 227 vocábulos, que são dados isoladamente ou em frases, na forma de exemplos oferecidos em apoio à descrição dessa língua. Esses exemplos foram escolhidos com um fim didático, de onde decorre o caráter um pouco artificial de seu emprego. Seu conteúdo toca, entretanto, vários domínios lexicais: corpo humano, tempo, espaço, animais, plantas, parentesco, instrumentos, profissões, situação social, escravidão, religião. Na língua efetivamente falada, eles eram evidentemente muito mais numerosos. O autor até mesmo havia proposto publicar dois dicionários: português - quimbundo e quimbundo - português, mas esse objetivo não foi atingido.
Século XVIII: língua "minna", língua veicular africana falada em Minas Gerais Um manuscrito, concebido como um manual de aprendizagem da língua, destinado aos senhores de escravos, foi redigido em Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica de Ouro Preto, por Antonio da Costa Peixoto sob o título de Obra nova de Lingoa g."1 de mina. Esse texto, fundamental para a época da exploração das minas, contém, de acordo com uma primeira contagem, provavelmente incompleta, 831 vocábulos, que tocam um largo espectro de domínios: partes do corpo, excreções corporais, vestuário, ornamentos, produtos agrícolas, produtos de criação e leiteiros, charcutaria, criação de aves, gado pequeno, ferramentas, fazenda e produtos da faze nda, cana-de-açúcar, aquecimento, utensílios, tabaco, profissões, pessoas, geografia, classes sociais, auto ridades públicas, habitação, religião, alimentação, clima, calendário, higiene, família e parentesco, qualidades, escravos fugitivos, ouro: garimpo e comércio, número e peso. Essa longa lista respeita a própria ordem utilizada pelo autor no manual. A despeito das aparências, esse vocabulário não corresponde ao tipo de vocabulário que designamos como vocabulário comum. Trata-se antes de um vocabulário de especialidade, aquele específico do contexto da exploração das minas, universo quotidiano do escravo da época na zona mineira, um universo ao mesmo tempo fechado e intransponível.
Século XIX: listas de palavras de línguas africanas faladas em São Salvador de Bahia, coletadas por Nina Rodrigues nos anos 1890-1905 (Rodrigues, 1977 [ 1890- 1905]: 143-146) grunce, língua nigero-congolesa da subfamília gur, subgrupo grusi ou gurúnsi, falada no Togo, Gana, Benim e Burkina Faso: 172 vocáb ulos; jeje (maí?), língua nigero-congolesa da subfamília cuá, grupo gbe, falada no Togo e no Benim: 86 vocábulos;
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hauçá, lingua da fam ília afro-asiática, subfamília chádica, falada na Nigéria: 88 vocábulos; canúri, língua nilo-saariana, subfamília saariana, falada na Nigéria, Chade e N íger: 88 vocábulos; tapa (nupe), língua nigero-congolesa da subfamflia benuê-congolesa, subgrupo nupoide, falada na Nigéria: 60 vocábulos.
Os vocábulos de origem a fricana na constituição do português falado no Brasil
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comprido
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guálócó
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zêrúgurn
quialeba
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su sú
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carne
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lua
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kika
çum
uórá
kumboli
eçó
morher
mãe
nohê
umá(u)
nócê
uá
iá-n1
nan
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montanha
pun (u)
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boca
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baghi
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É preciso entender por comum um vocabulário que está aberto a todas as noções, não é limitado a uma categoria de objetos e é constiruído de termos que se poderiam designar como aplicáveis aos diferentes contextos da vida quotidiana. Por vocabuldrios de especialidade deve-se entender um conj unto de termos reservados a domínios delimitados e específicos de conhecimentos ou de atividades e empregos. Por isso eles são essencialmente limitados, até mesmo exclusivos. Fora do Brasil, encontra-se um n úmero importa nte de vocáb ulos de línguas africanas integrados há séculos ao português. Sempre nos limites que nos impusemos desde o início, a saber, de só utilizar documento certificados e datados, consideramos apenas listas de palavras estabelecidas a parti r de documentos escritos entre 1680 e
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1789, ou seja, um pouco mais de um século, relativos ao português falado em Portugal ou ao português falado em Angola (Bonvini, 2002) .
tradicional que predomina. Entre todos esses termos, 16 somen te coincidem , com poucas variantes, com os atestados no Brasil: badé, bolo, cacimbas, calunga,foba, ganga,
Português de Portugal
ganga-ia-nzumba, libata, macota, marimba, moringa, mulemba, quijila, quilombo, zambi-a-mpungu e zimbo. Nessa lista, badé, bolo, ganga-ia-nzumba, !ibata, marimba, moringa, mulemba, quijila, zambi-a-mpungu são novos em relação aos apresentados
Bluteau (17 12) Nessa obra encontramos 91 termos, dos quais 15 são considerados pelo autor como originários de Angola (bumba, candonga, candongueiro, catinga, macaco, marakutâ, minha minha, moxinga, mubango, palava: pombeiro, qutgila, quiminha, quiseco, quitumbata), 7 termos como sendo atestados no Brasil (beijú, cacimbas, macuma, maribonda, mazombo I muzombo, mocama'os e molêque) . Moraes (17 89) Na sua primeira edição, intitulada Dicionario da Língua portugueza composto pelo padre D. Raphael Bluteau, reformado, e acrescentado, Antonio de Moraes Silva retoma a quase totalidade dos termos de Bluteau (1712) acrescentando somente uma dezena de novos termos atestados no Brasil, dos quais três são formas derivadas: bugiganga,
cafoné, calhambola, encafurnar-se, mamona, mandingueiro, marimbar, matombo, mogangueiro, mucama e parapanda. O vocabulário registrado por esses dois autores é antes do tipo vocabulário de especialidade, em razão dos termos relativos a técnicas ou à escravidão.
Português de Angola Heintze (1622-1635) Seu levantamento comporta 105 termos, dos quais somente 16 figuram entre os atestados no Brasil (cf Novo Aurélio- século XXI): casimba, foba, ganga, infoca, libambo, macota, macuta, malafo (marafa, marafo), moleca, moleque, pombeiro, querimbo (carimbo) , quilombo, quitanda, senzala, tanga e zimbo. Dentre esses, dois (casimba e moleque) foram reconhecidos como tal por Bluteau (1712) .
Cadornega (1681) Esse texto inclui 161 termos, na maior parte, referentes ao vocabulário militar. Desses, 15 são igualmente atestados no Brasil, às vezes sob uma forma aproximativa: ambundo, banzar, calunga, casima, foba, ganga, gonges, libambos, makaia, macotas, mucama, pombeiro, quilombo, quitanda, zombi. Em relação aos precedentes, os termos novos em Cadornega são: ambundo, banzar, calunga, gonges, makaia e zombi. Nenhum termo m ilitar chegou ao Brasil.
Cavazzi (1687) É o vocabulário mais extenso: 349 termos. Cobre domínios muito variados (botânica, zoologia, dados etnográficos e hist6ricos), mas é a terminologia da religião
pelos autores precedentes.
Corrêa (1782) Esse autor é brasileiro e passou diversos anos em Angola. Encontramos 89 termos em sua obra, acompanhados frequentemente de uma explicação em português. Desses, 20 são atestados no Brasil: alod, calhambola, cubata, entanga,fieba, ganga, Libata, libambo, macotas, macuta, milongo, mucambas, pango, pumbeiros, quilombo, quitanda, quitandeira, sanzala, tungas, zimbo. Assim, no espaço de pouco mais de tun século, mais de 700 termos são atestados em Angola como sendo empréstimos das línguas africanas locais, do quicongo e, talvez mais, do quimbundo. Evidentemente, esses empréstimos não são obra de falantes nativos das línguas africanas em questão, mas de aloglotas, estrangeiros a essas línguas, falantes portugueses essencialmente. Um número sign ificativo desses termos figura hoje ainda no português falado em Angola. Trata-se, todavia, como já observamos, essencialmente de um "vocabulário de especial idade", administrativo, militar, rel igioso, mas também do tráfico: o vocabulário atestado em Cadornega (1680) contém mais vocábulos pr6prios ao domínio militar, enquanto o de Cavazzi (1687) contém preferencialmente, mesmo que não exclusivamente, vocábulos específicos ao domínio religioso. Em Angola, esses termos de especialidade diminuíram à medida que a necessidade dessa especialização se reduzia até o desaparecimento total, enquanto o vocabulário que era mais ligado à vida quotidiana se manteve até hoje, a despeito de seu número reduzido. Notar-se-á, sobretudo, que o número de termos de origem africana p resentes nesses diferentes textos e transferidos a seguir para o Brasil é particularmente reduzido em relação ao seu número atual, que se conta em centenas, até mesmo em milhares de vocábulos. Esse fato , em si, não é surpreendente e poderia ser imputado aos limites mesmos dos doctunentos escritos dessa época, cujos objetivos eram manifestamente refletir uma outra realidade, externa ao Brasil. A diferença importante entre o número reduzido desses vocábulos que chegaram em seguida ao Brasil e o número maior de palavras de origem africana presentes no português atual do Brasil poderia encontrar uma explicação plausível nos limites dos documentos escritos da época. No entanto, antes de adotar tal explicação, convém analisar de mais perto o conjunto dos termos atualmente contabilizados no português do Brasil. C om efeito, no Brasil, o estoque lexical dos termos de origem africana vindos da África Ocidental é muito importante também, embora seja mais recente.
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Entretanto, esse não é o verd ad eiro critério a ser valorizado. O que caracteriza essencialmente o estoque lexical de origem africana atestado no Brasil é a não homogeneidade de seu conteúdo. Essa não homogeneidade resulta de uma desproporção terminológica consecutiva à presen ça maciça de termos pertencente ao vocabulário religioso, diretamente associados aos cultos ditos afro-brasileiros e mais precisamente aos do tipo candomblé. Esse vocabulário, por definição, mas também na sua realidade, está circunscrito a um tipo particular de emprego. Por isso ele é, essencialmente, um vocabulário de esp ecialidade. Mais ainda: seu uso é também ritualizado e os vocábulos, frequentemente fixados em fórmulas intangíveis e se possível imutáveis, pertencem ao universo do sagrado. No quadro dos cultos, esse vocabulário "especializado" funda a legitimidade de seu emprego. Ocorre algo bem diverso, quando se trata de incluí-los no léxico do português falado atualmente no Brasil. Efetivamente, o que afirma a respeito disso Yeda Pessoa de Castro é bastante esclarecedor. Tratando da língua de santo nos candomblés da Bahia, ela escreve: .. . o repertório especifico da liturgia dos can domblés se conservo u estranho ao domín io da llngua portuguesa, enquanto seu vocabulári o necessariamente se cristalizou mais, tendendo a se modificar menos, no momento em que foi aceito pela comunidade sociorreligiosa como meio primordial de con ta tar as suas divindades, e o acesso ao seu conhecimento, como fato r preponderante de in tegração e identidade etnorrel igiosa do grupo. Diante desta percepção, a tendência é manterasuaconti nu idade, colaborando todos, de maneira mais ou menos consciente, no sentido de evitar que esse repertório sofra variações prejudiciais à sua compreensão- mesmo na eventualidade de criações individuais... (200 1: 83-84).
A esse vocabulário religioso atestado na Bahia, seria conveniente acrescentar o vocabulário dos diferentes cultos afro-brasileiros praticados em todo o Brasil, qualquer que seja sua língua africana de referência, mesmo os de tipo umbanda, assim como o vocabulário não religioso atestado nos grupos antigos de resistência (quilombos) e o empregado nas ifnguas consideradas "secretas" (Cafundó, Tabatinga ... ). É o conj unto dessas considerações que nos incitam, no p lano metodológico, a operar uma distinção clara entre vocabulário comum e vocabulário de especialidade. Os vocabulários de especialidade- tão frequente e abundantemente depreendidos pelos lexicógrafos- não são, estritamente falando, pelo seu funcionamento e emprego, verdadeiros empréstimos. São essencialmente unidades lexicais completas, que pertencem exclusivamente às ifnguas africanas empregadas nesses cultos ou nessas comunidades de descendentes de escravos, qualquer que seja seu estatuto linguístico específico. O funcionamento dessas línguas, com forte valor identitário, permanece paralelo ao da língua portuguesa, que é considerada como se situando num espaço ao mesmo tempo exterior e diferente. Com base no conjunto desses dados - línguas africanas efetivamente faladas no Brasil e empréstimos das línguas africanas realizados em Portugal ou diretamente na África- pode-se afirmar que esses empréstimos foram essencialmente obra de falantes
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do português que, para expressar uma realidade diferente daquela que era, inicialmente, a sua, emprestaram das ifnguas africanas as palavras que a designavam, conseguindo assim integrar essas mesmas palavras ao português, depois de um tratamento linguístico apropriado. Não foi certamente uma tarefa de falantes africanos, os quais falavam uma língua africana. A presençasimul tânea de línguas diferentes, resultando numa situação de línguas em contato, acarretou a integração de certos termos da língua do outro (L2) na língua dos falantes (L 1) . O exem pio de Angola é esclarecedor: aconteceram empréstimos bilaterais, o português emprestou do quimbundo e o q uimbundo do português. É dessa bipolaridade da relação que nasceu o empréstimo. Este não parece ter sido o caso da relação entre o quimbundo e o português, no Brasil no século XVII. O texto de P. Dias não apresenta nenhum empréstimo, tanto n um sentido quanto noutro, o que parece antes sugerir a existência, nessa época, de uma situação bilíngue de tipo "alternância de código", na qual os falantes se exprimem numa ou noutra língua exclusivamente. As duas línguas estão certamente copresentes, mas não interferem ainda de modo suficiente uma na outra a ponto de produzir empréstimos linguísticos suficientemente estáveis . Em contrapartida, não existe nenhum documento histórico suscetível de provar a existência de qualquer tipo de processo de crioulização. Os limites de nossa documentação não nos permitem considerar o histórico dos diferentes empréstimos tomados individualmente. É possível, senão provável, que sua integração tenha sido efetuada no Brasil mesmo. As pesquisas futuras conseguirão talvez prová-lo. Pretendemos simplesmente balizar, no seu conjunto, a problemática relativa aos termos de origem africana atestados no português falado no Brasil, com base em documentos escritos, examinando antes o processo de sua integração ao português, em seguida demonstrando a não homogeneidade de seu conteúdo, a fim de melhor enfatizar seu estatuto linguístico de empréstimo, testemunho privilegiado de uma situação até então inédita de contato de línguas.
Léxico e transferência semântica: da sedimentação à inovação Vocábulos de origem africana estão presentes no português falado hoje no Brasil. É um fato. Eles foram transferidos da África para o Brasil, é certo. Mas o que aconteceu com o sentido? Pode-se realmente afirmar que o termo africano que chegou ao Brasil guardou o mesmo sentido que tinha na África, como pareceriam deixar supor alguns comentários? Se a resposta for afirmativa, em que estado esse sentido chegou? Integralmente? Parcialmente? A semântica das palavras atuais coincide com a que elas tinham no
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continente africano, seria então africana e pré-brasileira, ou ela é antes uma semântica própria ao Brasil e, por isso, brasileira? Interrogações análogas poderiam ser formuladas: que semân tica deveria ter chegado ao Brasil; que semântica efetivamente chegou ou não chegou aqui; em que se transformou, depois, essa semântica? Essas in terrogações obrigam-nos a examinar de perto a configuração semântica (semema) do vocábulo chegado ao Brasil e compará-la constantemente com a atestada na África. Teoricamente, no que se refere à translação sem ântica da África ao Brasil, poder-se-iam considerar três situações distintas: (a) Palavras de origem africana chegaram ao Brasil e mantiveram , integral ou parcialmente, seu som e seu sentido inicial de partida. (b) Palavras de origem africana chegaram ao Brasil, mas desprovidas de seu sentido "africano" inicial, tendo adquirido, desde sua chegada, um sentido diferente e novo. Por isso, seu sentido de origem, não tendo chegado ao Brasil, teria ficado do outro lado do A tl ântico. (c) O sentido inicial de partida, isto é, aquele atestado no continente africano, teria chegado ao Brasil, mas sem o vocábulo africano que lhe servia de suporte. Seria este último, desta vez como suporte, que teria ficado na África. Essa última situação, à primeira vista estranha, corresponde de fato ao "decalque lingufstico", de que voltaremos a falar. A repartição precedente do estoque lexical em vocabulário de base, vocabulário comum, vocabulários d e especialidade, válida em si, pareceria aqui inoperante em vista de um tratamento adequado da semântica. Com efeito, o vocabulário de base das línguas africanas faladas no Brasil não foi integrado ao estoque lexical do português como empréstimo. Ele deixou mesmo de existir com o desaparecimento da língua ("quimbundo", de Dias; "mina", de Peixoto). Os termos dos vocabulários de especialidade, por sua vez e com raras exceções (recentemente o termo axé entrou no vocabulário comum do português do Brasil), situam-se fora da problemática aqu i tratada. Por essas razões, os desenvolvimentos que vão seguir só deveriam dizer respeito, em princípio, ao vocabulário comum . Todavia, tratando-se de semântica, mantemos a d istinção entre vocabulário de base e vocabulário comum em razão de seu valor operatório.
Vocabulário de base, gramaticalização, decalques semânticos O vocabulário de base histórico, certamente, desapareceu. Ignoramos toda a importância real que ele pode ter assumido no século XVII no Brasil, visto que ignoramos seu emprego contexrual exato. Os exemplos do texto de Dias, artificialmente construídos, dão apenas o sentido muito esquemático das palavras. Eles não permitem
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atingir a plenitude d o sentido q ue eles assumiam, na época, aos o lhos dos próprios falantes como africanos e escravos. Entretanto, no plano linguístico, a não integração do vocabulário de base africano ao estoque lexical do português falado no Brasil não é seguramente um fato anódino. Com efeito, nas línguas africanas em questão, alguns desses mesmos vocábulos foram reinvestidos num processo que se designa hoje como gramaticalização. Graças a esse processo, um vocábulo do léxico passa de um emprego puramente lexical, e por isso de uma semântica lexical, a um emprego também gramatical e, por esse meio, a uma semântica gramatical. Durante esse processo, o vocábulo de partida sofre, certamente, alguma perda sem ântica (dessemantização), mas ao mesmo tempo adquire valores e propriedades novas, m ais precisamente, uma significação gramatical estreitamente ligada a seu emprego em contextos linguísticos novos. Compreende-se melhor, então, por que, com o desaparecimento terminológico do vocabuldrio de base, foi igualm ente a semântica gramatical dos diferentes vocábulos que, em princípio, deve ter desaparecido. Par a ter uma ideia do conteúdo dessa semântica, convém comparar os dados do vocabuldrio de base aci ma dep reendidos (cf quadro 1) com os examinados por H eine, B. & T. Kuteva (2002) no World lexicon ofgrammaticalization. Uns trinta termos estão implicados e agrupados aqui em quatro séries nas quais figura em primeiro lugar o termo que pertence ao vocabulário de base, seguido, entre parênteses, do sentido gramatical depreendido por H eine, B. &T. Kuteva (2002) em línguas africanas, em letras maiúsculas e precedido por(>): (1) terminologia do corpo: 'back: dorso, costas (> ATRÁS - CAUSA ANTERIOR- ENTÃO - PARA C IMA (ESPAC IAL); 'belly: bm·riga (> EM (ESPACIAL) - EM (TEMPORAL); 'breast : p eito(> FRENTE); 'eye: olho(> ANTESFRENTE) ; 'foot: pé(> PARA BAIXO); 'hand: mão(> AGENTE - C INCOTER- posse); 'head: cabeça(> FRENTE - INTENSIVO-REFLEXIVO - MEIOPARA C IMA) ; 'liver: figado (> LOCATIVO); 'mouth: boca(> FRENTE) ; 'neck : pescoço(> LOCATIVO) . (2) pessoas: 'chitd: criança (> DIMINUTIVO - PARTITIVO); 'fother: pai (>MACHO) ; 'man', homem(> EXCLAMAÇÃO - MAC HO- TERC EIRA PESSOA-PRON); 'mother: mãe(> F~MEA) ; 'person: p essoa (> PRONOME INDEFINIDO - PRONOME PESSOAL, PRIMEIRA DO PLURAL); woman: mulher (> F~MEA) . (3) números: one: um(>SOZINHO-INDEFINIDO-SOMENTEOUTROMESMO- SINGULATIVO- ALGUM- JUNTO); 'two' dois (> DUAL- SN E) ; 'three: três (> TRIAL, PLURAL). (4) verbos: 'come: vir(> CONSECUTIVO- HORTATIVO - VENITIVO: 'come from' > ABLATIVO (LOCATIVO, TEMPORAL) - PASSADO PRÓXIMO; ' come to '> BENEFACTIVO- MUDANÇA DE ESTADO - FUTURO -
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PROPÓSITO); JaLL: cair (> PARA BAIXO); 'give: dar(> BENEFACTIVO CAUSATIVO - INTERESSE- DATIVO -PROPÓSITO) ; 'know: saber (> HABITUAL); 'say' dizer (> CAUSA - COMPLEMENTIZADOR CONDICIONAL-PROPÓSITO-CITATIVO-SÍMILE-SUBORDINADOR); 'sit: estar sentado(> CONTÍNUO - CÓPULA- HABITUAL); 'stand: ficar de pé (> CONTÍNUO- CÓPULA). (5) locativos: 'here: aqui (> CAUSA - DEMONSTRATIVO); 'in: em, no (espacial) (> CONTÍNUO -TEMPORAL); 'near: perto de (> ADVERTNO, PROXIMATNO); 'there: ali (>DEMONSTRATNO). Essa lista, convém destacar, está voluntariamente limitada exclusivamente a vocábulos pertencentes ao vocabulário de base. Ela não esgota evidentemente a totalidade dos recursos de gramaticalização atestados nas linguas africanas envolvidas. Após sua leitura, uma questão nos vem à mente: o termo em língua africana, certamente, desapareceu, mas o que ocorreu com o sentido gramatical que lhe estava associado? É possível imaginar que esse sentido subsistiria ai nda no português falado atualmente no Brasil? A resposta a essa questão, pelo que sei, é negativa. Efetivamente, com base nos dados levantados no Dicionário Houaiss da llngua portuguesa (200 1), nada permite inferir uma coincidência entre fatos de gramaticalização destacados acima nas línguas africanas e aq ueles encontrados no português falado hoje no Brasil. Os raros casos de convergência- por exemplo 'pronom e indefinido' e ' interjeição' para 'homem'; 'fêm ea de animal que teve crias' para 'mãe'; 'artigo indefinido, pronome indefinido' para 'um'- correspondem de fato a generalidades que se encontram igualmente em lfnguas não africanas. Seria, no entanto, desejável q ue urna pesquisa aprofundada e mais sistemática fosse empreendida por especialistas em língua portuguesa. Ainda no plano semântico, uma in terrogação suplementar coloca-se sobre a presença eventual de décalques linguísticos oriundos de línguas africanas, em particular quando seu conteúdo se relaciona diretamente com vocábulos pertenceo tes ao vocabulário de base. Já evocamos, na introdução, essa eventualidade, aparentemente estranha, que implicaria que o sentido inicial de partida de um vocábulo de uma lingua africana, falada no continente africano, chegasse ao Brasil, independentemente do vocábulo africano que lhe servia de suporte. A noção de decalque linguístico corresponde a essa situação. Com efeito, designa-se como decalque linguístico o fato de que uma língua A, para denominar uma noção nova, traduz uma palavra, simples ou complexa, pertencente a uma língua B, em uma palavra simples que já existe na língua ou uma palavra complexa fo rmada também de palavras q ue já existem na língua. Tanto num caso como noutro, há adição de um sentido novo no âmbito da língua A, em prestado da língua B. Nesse aspecto em relação somente ao nível semântico, poderíamos também designar esse fato como decalques semânticos. O decalque distingue-se do empréstimo
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propriamente dito pelo fato de que, neste caso, a palavra estrangeira (língua B) é integrada tal qual na língua que a toma emprestado (língua A). Apresentamos dois exemplos de decalque semântico de noções do vocabulário de base: beber e comer. Tanto para um quanto p ara outro, vamos servir-nos de um emprego contextualizado, conforme o que ensinava E. Benveniste: ... as noções semânricas, muiro mais complexas, mais difíceis de objerivar e, sobrerudo, de form alizar, por esrar investidas na "subsrância" exrralinguística, exigem primeirarnenre uma descrição dos empregos, único elemenro a permirir a definição de um se nrido. Essa descrição, por sua vez, requer que nos li berremos das falsas evidências, das referências às categorias semânticas "universais", das confusões entre os dados a estudar e a língua do descritor (Benvenisre, 1966: 307).
Beber beber fumo: Aurélio XXI: Beber fumo. Bras. N.E. Pop. 1. 'Fumar, pitar'. Essa expressão encontra seu correspondente exato no quicongo: nua e mfomo 'fumar tabaco' (Bendey 1887: 402). Uma expressão idêntica encontra-se em fon (Segurola & Rassinoux 2000: 368): nu azà 'beber fumaçà para 'fumar'. Essa língua recorre igualmente à expressão: nu sigá ' beber cigarro' por 'fumar um cigarro', que é bastante frequente nas línguas africanas. O laço beber+ fumaça existe também em árabe clássico, mas não em línguas europeias (francês, inglês ou alemão). No português de Angola e de Moçambique, prefere-se empregar a expressão
beber tabaco 'fumar tabaco'. É exatamente essa última expressão que se encontra em q uimbundo: kunua kué makania 'beber o tabaco'. Ela chamou a atenção, no século XIX, de H. Chatelain (1964 [1894]: 479): " ... em quimbundo, em vez de se dizer fumar tabaco diz-se beber tabaco. O fumo é classificado como líquido". Em contrapartida beber no sentido de 'sofrer; padecer, supo rtar' (Houaiss); 'sofrer, suportar, aguentar' (Aurélio XXI), atestado no Brasil, é encontrado igualmente em quim bundo (Assis Júnior, 1941: 2 19): kunua ndaka 'beber injúrià ('suportar, sofrer'), mas esse sentido tam bém é frequente em 11nguas não africanas, europeias inclusive. Não se pode, então, considerá-lo como um decalque semântico propriamente dito.
Comer Essa noção, no português falado no Brasil, cobre um campo semântico particularmente extenso. É o caso também de numerosas línguas no mundo. N isso não há nada de surpreendente. Comer é ao mesmo tempo um universal da experiência e um universal linguístico. No plano linguístico, esse termo apresenta, frequentemente, forte polissemia'.
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África no Brasil
Aurélio XXI: [Do lar. comedere, pela var. vulg. *comere.] V. r. d. I. Introduzir (a limcncos) no estômago, pe la boca, mastigando-os e engolindo-os; tomar, abocar. 2. Fig. Gastar em com ida. 3. Dilapidar, dissipar, desbaratar, consumir. 4. Acreditar facilmente em; admitir sem exame (dito ou faro mentiroso). 5. Destruir, consumir. 6. Consumir, corroer. 7. Absorver, tragar, consumir. 8. Om itir, sup rimir. 9. Roubar, furtar. 10. El iminar (uma ou mais pedras do adversário), no jogo de damas e no de xadrez. 11 . Pop. Consumir (combustível); beber. 12. Chulo. Possui r sexualmente; copular com; papar, traçar, faturar. V r. i. 13. Provar, experimemar. V rransobj. 14. Considerar, tomar, ter. V inr. 15. Tomar alimento. 16. Alimemar-se. 17. Causar comichão ou prurido. 18. Lucrar, cometendo fraude; roubar. Vp. 19. Morrilicar-se, consumir-se.
S. m. 20. Comida ( I e 3).
Entre esses sentidos, tomaremos particularmente o que figura no no 12: 'possuir sexualmente; cop ular co m; papar, traçar, faturar', co nsiderado pelo Aurélio XXI como "ch u lo" e por nouazss u . como "ta b u1smo ' "A . parentemen te, esse sentido não figura no português de Portugal, nem , por exemplo, em francês. Podem os perg untar-nos se esse sentido não corresponderia a um decalque semântico de uma ou mais lfnguas africanas. U m a interrogação suplementar seria então: esse decalque fo i forjado no próprio Brasil, o u antes, no continente africano, isto é, antes de sua transferência para o Brasil?Respo nder a essas perguntas com base em documen tos datados é quase impossível, m esmo que não seja em razão da autocensura provável por parte dos autores, sobretudo os de uma época um po uco an tiga. Importa, entretanto, precisar q ue, ao nosso conhecimento - excetuando-se 0 caso do hauçá assinalado por G ouffé (1 966: 90-91 , 106) e sem excluir a existência even tual de empregos análogos do gên ero "ch ulo" ou "insulto"-, as líng uas afr icanas d isting uem geralmente duas noções, representadas cada uma por dois verbos d istin tos: de um lado a noção de 'comer', de o utro a noção de 'acasalar-se'. Essa última noção é, todavia, reser vada aos animais. É o caso, por exemplo, do fon (línguagbe; Rassinoux,
Os vocábulos de origem africana na constituição do português falado no Brasil
127
2000: 5; Segurola e Rassinoux, 2000: 192) e também do cassem (língua gurúnsi (Bonvini, 2006, no prelo)), lfngua na qual o emprego da noção de 'acasalar-se' para os humanos só é tolerada nwn contexto de tipo "chulo" ou "insulto". Em quimbundo, língua de Angola particularmente relacionada à escravidão e também ao Brasil, as d uas noções são também claramente distintas. D e um lado há o verbo kúria [< ku (infinitivo)+ dya] com o sentido de 'comer'. Em seguida há o verbo kukombola [< ku (infin itivo) + kombola], cujo sentido é d uplo: na forma transitiva significa 'comprar negócio por atacado', enquanto na forma intransitiva significa 'copular'. Esse fato nos perm ite afirmar claramente que, em q uimbundo, a noção de 'copular' é formalmente d istinta da de 'comer'. Em consequência, pretender atribuir a kúria 'comer' o sentido de 'copular', equivaleria, no plano linguístico, a operar indevidam ente uma transferência do sentido de um verbo para outro. Há, enfim, um terceiro verbo, kurikombwesa que admite doissentidos: (a) 'vender-se: prostituir-se'; (b) 'acasalar-se' (AssisJwúor, 1941: 195,223). No plano formal, kurikombwesaé wnaseguência complexa, mais precisamente um "composto verbal", que reúne dois verbos dist intos: kuria [< ku (i nfinitivo) + dya] com o sentido de 'comer' e kukombuésa [< ku (infi nitivo)+ kombuésa] com o sentido de 'vender por atacado' e que compartilha o mesmo radical-komb- com o verbo kukombola 'comprar negócio por atacado', m as no sentido oposto. Em consequência, kurikombwesa analisa-se assim: ku- + -dya- + -kombuésa ('infi nitivo' + 'co mer'+ 'vender por atacado'). A partir de então, compreende-se melhor seu sentid o duplo: (a) 'vender-se: prostituir-se'; (b) 'acasalar-se'. A existência de do is verbos distintos para duas noções igualmente distintas, de um lado o verbo {kú)ria 'comer', de outro o verbo {ku-)kombofa 'copular', permite afastar a hipótese de que o sentido de 'comer' atestado no português falado no Brasilcorrespondendo ao q ue figura sob o n úmero 12 do Aurélio XXI, 'possuir sexualmente; copular com; papar, traçar, fatu rar' -seria um decalq ue semântico do verbo quimbundo {kú)ria 'comer' . Em contrapartida, a existência do verbo kurikombwesa com o duplo sentido de 'ven de r-se: prostituir-se', mas também 'acasalar-se', poderia permitir a manutenção da hipótese de um eventual decalq ue semântico a partir deste último verbo. Em contexto lú stórico de escravidão e de tráfico, não seria nada espantoso que alguns falantes portugueses da época, totalmente comprometidos com o tráfico, tivessem recuperado no próprio local, isto é, no território angolano, esse decalque semântico, referente aos anim ais, para aplicá-lo aos h umanos, traduzindo assim concretamente o olhar que tinham sobre os cativos, que eles consideravam e tratavam como animais. É esse decalque que deve ter chegado, em consequência, ao Brasil, mas trazendo inerente o estatuto de desvio linguístico expresso nos dicionários pelas rubricas "chuJo" ou "tabuísmo".
Voca bulário comum e inovação semântica Deixando por instante o caso dos decalques linguísticos, podemos examinar a q uestão dos em préstimos propriam ente ditos q ue dependem do vocabulário comum.
Q uadro 2. Cronologia - Porrugal I Angola I Brasil.
1'0
co
>,
PT-J Barros
A-Heintze
A-Cadomega
A-Cavazzi
1552 8
1.622.105
1.680.1 61
1.687.349
PT-Bluteau A-BR- Corrêa
1712 85
1782 89
BR-Moraes
Aur XXI
1789 12
2000
aio
aio
aloâ
aluá I
ambundo
=i'
o·
Q :J
o
CC
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ambundo Angola
atabaque
'Angola
ara baque
badé
# badé
banzar banze ira
bolo
baia
'baia
bambelear
bambolear
bambo
bambo
banzar
•banzar
'"banzo
banzeiro
•banzeiro
*banzativo
birimbao
"berim bau
boçal
boçal
bolo
'bolo
bujamé
*bujamé bugiganga
bumba
c.asimba
casima
cassima
bumba
buzio
búzio
cachimbar
'cachimbar
cachimbo
'cachimbo
cacimbas
""'cacimba
cafraria
cafraria
cafuné
cafuné
encafurnar~se
*cafurna
calham bola
*quilombola
encafuar
cafundó
cafundoca
cambada
"cambada
cambar
...cambar
cambayo
•cambaio
candonga
#candonga
candongueiro
#candongueiro
canga
·canga
cangar
• cangar
carcunda, cacunda
•corcunda
carcundo
"corcunda
"'catinga
cubala encafurnar-se
• encafúrnado
enranga fuba
fuba
forro
*forro
fuJa
•fuJa
fu lo .
fuJo
•fuJo
furna
furna
furna
ganda
#ganda
gandú
gandú
ganga
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calungagem
calungo
calungueita
calungueiro
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Q. (1)
cambota
ca.mbuca
candonguice candongagem
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encafúrnado
fuba
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o
encafurnar
#calumba "'calunga
ganga
cacimbeiro
cafuca
cogoré
ganga
cacimbar
cafrice
catinga
ganga
cacimbão
cafre
calunga
ganda
cacimbado
•cafua
calumba
fuba
caclúmbada
cafila
calham bola
fuba
cachimbador
cafres
ca.furna
calunga
#bugiganga
-
-o
ginja
'ginja
w
o
gonges grumetc:
grumc:tc:
Guiné
#guiné
~-
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a ~
ialofo ichô •jnfuca
infuca inhamc
inhamc
libambo
libambos li bata
inhamc
libambo
li bambo
li bata
#libata
macoras
"'macora
macuta
...macura
macaco macaca
ma coras
maca ta macuma
macuta makaia
#macaia
--•macaia --malafa
makanha mal:tfo malúco
#maluco
mamote
.. mamote:
mandinga
mancüngueiro
maca.io marafo
·mandinga
manCÜngado
mangalaça
#mangalaça
manga! aço
mango na
mangona
mangonar
marabutos
•maraburo
marafona
•marafona
mandingar
mandingaria
manCÜngueiro
mandinguento
marimba
marakurâ
"macuta
maribonda
"maribondo
marimbas
"marimba
mangonear
marimbau
I
..
marimbar
•marimbar
marimbo
o
marombe
ma[ombo
"'
dárá. - o nível 3 ou linguagem popular da Bahia (LP). Por exemplo: PONGAR (origem banca) (LP) 'subir ou saltar do veículo em movimento', do quicongo pongula; JABACULÊ (origem banca) (LP) 'gorjeta', 'dinheiro', do quicongo/ quimbundo kubakula > bakule 'tributado', 'dado em tributo'. - o n1vel4 ou a linguagem cuidada e correo te, familiar na Bahia (BA) . Por exemplo: BARABADÁ (origem cuá) (BA) 'tumulto', 'confusão', ' bate-boca', do iorubá barà baràl bdjàjà; BABA (origem banca) (BA) (geralmente precedido de 'bater um') 'partida de futebol jogada na rua ou na praia', do quicongo/ quimbundo bàba 'jogar', 'arremessar'. - nivel5 ou o português do Brasil em geral (BR). Por exemplo: CANDONGA (origem banta) 'fuxico', 'falsidade', 'manha', ' lisonja enganosa', do quicongo kandongal quimbundo kabonga; MOCOTÓ (origem banca) 1. 'tornozelo', 'pernas grossas' do quicongo/ quimbundo ma-kooto pernas, patas. 2. 'patas de bovinos, sem casco, usadas como iguaria do mesmo nome'; 'mão de vaca', do quicongo/ quimbundo ma-kooto. Como resultado final de sua pesquisa, a autora aponta o registro de 3517 vocábulos de origem africana, sendo 1322 de origem banca (quicongo, quimbundo e umbundo), 1299 de origem oeste-africana (iorubá, fon) , 3 de origem imprecisa (banca ou oeste-africana) e 853 colocados sob a rubrica formação brasileira (os casos de decalques de línguas africanas, como por exemplo, O DE COMER 'qualquer comida, seja uma refeição completa ou uma merenda', traduzido do quicongo/ quimbundo kudia 'o de comer'; os casos de vocábulos híbridos, isto é, derivados de lexemas africanos já considerados, como, por exemplo, MOLEQUEIRA < MOLEQUE). Para efeito da c~ nstituição do cmpus do presente trabalho, inicialmente, estabeleceu-se· uma lista com cerca de 400 vocábulos pertencentes aos níveis 3, 4 e 5 (linguagem popular, cuidada e corrente na Bahia e português do Brasil em geral), isto é, sem os vocábulos integrantes dos níveis 1 (linguagem de santo) e 2 (linguagem do povo de santo). A referida lista foi submetida a um número restrito de informantes, naturais de Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Campinas (SP) 8 , com o objetivo de verificar o conhecimento, ou não, dos vocábulos selecionados, de acordo com o seguinte modelo de ficha: Palavra banzo caxumba
Conhecimento s1m sim
Observações do informante Também coisa de escravo
muvuca
Sim
Usado por gente jovem
157
Com base nesses resultados- isto é, a partir dos vocábulos identificados e reconhecidos- elaborou-se uma segunda lista com 249 vocábulos, que foi sub metida a 125 pessoas, em cinco cidades brasileiras, com o mesmo objetivo da etapa anterior: Macapá (AM): 17; Rio deJaneiro (RJ): 20; São Paulo (SP): 20; Salvador (BA): 48; Vitória da Conquista (BA): 10; Barreiras (BA): 20 9 • Após o exame dos resultados do segundo inquérito, foram excluídos termos referentes a: regionalismos evidentes (como, por exemplo, bocapiu 'sacola de palha', usado na Bahia); religião (por exemplo, orixá, pemba, lemanja'); música (por exemplo, berimbau, samba); comidas reconhecidamente de origem africana (por exemplo, vatapá, caruru) e palavras chulas (por serem termos de coleta difícil e por não estarem nos registros dos dicionários considerados, particularmente os do século XIX). A análise da aplicação dessa segunda lista permitiu a iden tificação de 56 vocábulos, que são comuns ao universo dos informantes pesquisados. A partir de uma análise inicial dos resultados obtidos, constamos que os dados poderiam ser organizados em três categorias: Categoria 1: inclui termos que podem ser usados em qualquer interação social, contrastando com as outras duas categorias (30 vocábulos): abadá - 'túnica', 'traje para o carnaval, uniforme de um grupo'; banzo- 'tristeza', 'saudade de pessoas e lugares familiares'; caçamba - 'depósito de lixo' e 'carroceria de caminhão'; cachaça - 'aguardente', 'pinga'; cachimbo - 'aparelho para fumar'; caçula- ' filho mais novo'; candango - 'trabalhador que construiu Brasília'; canga - 'instrumento para prender o pescoço dos animais'; capanga - 'bolsa' e 'guarda-costas'; carimbo- 'marca e instru mento para marcar'; caxumba - 'parotidite'; cochilar- 'dormitar'; corcunda- 'corcova, giba'; dengo - 'manha, comportamento infantil', meiguice'; fubá- 'farinha de milho'; gibi- 'rev:sta ~~quadrinhos'; macaco - símw ; maconha - 'droga'; macumba- 'feitiço', 'prática de feitiçaria'; marimbondo- 'vespa'; miçanga- 'conta de vidro'; molambo- 'pedaço de pano velho, rasgado', 'trapo'; moleque - 'menino'; moringa - 'bilha'; quilombo - 'refúgio de negros fugidos'; quiranda - 'lugar de venda de frutas e legumes'; qui tu te- ' iguaria fina'; senzala- ' habitação de escravo'; tanga- 'peça reduzida de vesruário' e 'vestuário feminino de banho'; xingar - 'ofender com palavras'.
158
Palavras da África no Brasil de ontem e de hoje
África no Brasil
Categoria 2: co nstituída de termos informais, de uso coloqui al que, eventualmente, dependendo da situação, são substituídos por outros (9 vocábulos) : bamba - 'exímio', 'hábil'; bambambã- 'o mais enrendido', 'o especialista'; banguela - 'desdentado', 'falta de denre'; cafuné - 'carinho feito na cabeça com a ponra dos dedos'; carimba/catim bei ro- 'manha', 'astúcia'; catinga - 'mau cheiro'; mandinga - 'feitiço'; muamba - 'contrabando'; muxoxo- 'gesro de desdém com estalo de Hngua no céu da boca' .
Categoria 3: em que constam termos marcadamente informais, de uso restrito (17 vocábulos): angu - 'co nfusão' 10; babaca- 'bobo'; babau- 'acabou! '; biboca- 'habitação ou local ruim'; bunda - 'nádegas'; cafofo - 'esconderijo'; cafundó- 'lugar mtúro distante'; cambada- 'bando de vagabundos, corja'; cucuia - 'malogro, acabou! ; muquifo- 'habitação muiro núm, precária, suja'; 'biboca'; muquirana- 'avarenro', 'pão-duro'; muvuca- 'confusão, algazarra, mistura de coisas ou de pessoas'; muxiba - 'pelancà; guizumba- 'confusão'; sacana - 'mau caráter'; ziquizira - 'azar'; 'doença indefinida'; zumbi- 'alma penada'; 'maldormido'.
Os vocábulos que constam da lista acima serão cotejados, para o século XIX, com o Diccionario brazileiro da língua portuguesa, de A. ]. de Macedo Soares, e Diccionario de vocabulos brazileims, do Visconde de Beaurepaire-Rohan; para o século XX, com A Influência afi'icana no português do Brasil, de Renato Mendonça (1933), e O elemento afi-o-negro na língua portuguesa, de Jacques Raimundo (1933). Esses quatro trabalhos se destacam, na época de sua publicação, pela amplitude e sistematicidade dos registros feitos, com claro compromisso de realizar um trabalho lexicográfico efetivo, o que os tornou modelos para outras pesquisas sobre os brasileirismos, regionalismos e africanismos. Para efeito de consideração do uso atual nossa referência foi o trabalho de Borba (2002) Diciondrio de usos do português do Brasil, pelo seu pioneirismo no registro de usos do português brasileiro contemporâneo. Em nossa avaliação, tal confronto oferece evidências sobre a historicidade dos vocábulos, permitindo, de um lado, avaliar sua integração e vitalidade- já que foram registrados e permanecem em uso-, de outro, observar a manutenção ou eventuais mudanças de significado.
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Comparação da lista com autores dos sécu los XIX e XX Quanto à comparação apresentada a seguir, é importante informar que m antivemos as etimologias dos vocábulos em estudo apontadas por Macedo Soares e Beaurepaire, muitas vezes discutíveis ou mesmo equivocadas. Além disso, em alguns casos não indicadas.
Século XIX Os termos da categoria 1, registrados por Beaurepaire e Macedo Soares, distribuem-se em dois grupos: a) os que mantêm os mesmos significados atuais, b) os que manifestam diferença de significado, em relação ao uso atual. a) Com o mesmo sentido atual, encontramos os seguin tes vocábulos: banzo,
cachimbo, caçula, canga, capanga, carimbo, caxumba, cochilar, fubd, miçanga, molambo, moringa, quilombo, quitanda, quitute, senzala e xingar. Alguns desses vocábulos são registrados apenas por um dos autores. Vemos, assim, que somente Macedo Soares assinala: CACHIMBO: 'aparellw para fumar'; originado do termo da língua bunda quixima. CANGA: 'peça que serve para prender o boi no pescoço'; originado do termo da língua congo cu-canga 'atar, prender'; o autor indica um segundo significado: 'espécie de mineral argiloso e pardacento na província de São Paulo'. CARIMBO: 'sinete, marca'; originado do termo da lfngua bunda quirimba 'marca, selo' . DENGO: Macedo Soares registra dengo, que tem a varianre dengue ' requebro, quindins, graça de uma pessoa', e a forma derivada mendengue, cuj o sentido é 'sujeito dengoso, req uebrado, cheio de quindins, de partes, de histórias, de coisas'. Ele atesta, tam bém, em outro verbete, dengo com significado de 'pequeno' sendo usado como 'apelido famil iar de menino', de origem africana (do termo bunda ndengo), não considerado na presente pesquisa. M IÇANGA [missanga, miçanga] : 'conta de vidro'; originado do termo bunda missanga.
Apenas em Beaurepaire, encontramos: MORINGA: 'bi lha de barro para água'; o autor indica a forma variante moringue.
Um grupo de vocábulos é registrado de maneira quase idêntica pelos dois autores: MOLAMBO: 'trapo, andrajo'; Macedo Soares [mofambo, mulambo] aponta que tem origem na língua bunda. QUILOMBO: par·aos dois autores, o vocábulo significa 'esconderijo de escravos fu gidos' e ésinônimo de mocambo, assim como o derivado quifombofa'escravo refugiado em quilombo'. Apenas Beaurepaire aponta como origem a língua bunda, em que significa 'acampamento'. QUITUTE: 'iguaria deli cada'; Beaurepaire indica o derivado quituteiro 'pessoa hábil em preparar quitute'.
160
África nó Brasil
SENZALA: 'moradia de escravos'; os dois autores apontam a forma variante sanzala e a língua bunda, na qual o termo sign ifica 'coabi tação, morada' (Macedo Soares), 'povoação' (Beaurepaire), como origem. XINGAR: 'insultar com palavras'; ambos indicam etimologia bw1da (para Macedo Soares, e cuxinga, cuxinghila 'injuriar com palavra' e, para Beaurepaire, de cu-rit'xinga); os autores registram os derivados xingação, xingador e xingamento (Beaurepai re apenas este).
Quanto aos outros vocábulos dessa categoria, observamos: BANZO: Beaurepaire registra apenas a forma verbal banzar 'ficar pensativo e em estado de cogitação sobre qualquer notícia que não é de fácil explicação'. Na mesma direção, mas um pouco mais espedfico, Macedo Soares acrescenta o sen tido de 'estar pensativo, triste' e destaca o uso original do termo, ligado à condição escrava: 'sofrer de nostalgia co mo os negros da costa quando vi nham para cá, e ainda depois de cá estarem'. Macedo Soares registra o termo banzo 'mole, triste' e o derivado banzeiro 'profundamente triste e sem motivo'. Os dois autores aponram o étimo cu-banza 'estar pensativo e pesaroso', da língua bunda. CAÇULA: os dois autores apontam o mesmo sentido 'filho ou filha mais jovem' e a mesma etimologia da língua bunda (cazulê 'o mais moço da família', para Macedo Soares). Beaurepaire registra a forma variante caçulé [cassulé, cassula] e Macedo Soares, a forma caçulê, que considera a mais próxima do étimo africano. Este último autor registra também a forma masculina caçulo 'o mais moço', observando ser esta menos usual que as outras duas (caçula e caçulê). Macedo Soares registra ainda, em verbete distinto, o termo caçula com sentido de 'o ato de socar o milho no pilão', derivado do étimo bunda cuçula; igual a caçula, 'pilar, socar', não considerado na pesquisa. CAPANGA: os dois autores registram os sentidos: 1. 'valentão sempre armado, que serve de guarda-costa a quem paga'; 2. 'pequena bolsa usada a tiracolo por viajantes para carregar objetos necessários'. Com relação ao sentido 2, Macedo o considera originado do tupi-guarani. Beaurepaire, que não sugere etimologia para nenhum dos sentidos, anota moçó como sinônimo de capanga. CAXUMBA: embora os dois autores assinalem o sentido de 'doença que afeta o pescoço', os autores divergem na origem da doença: para Macedo Soares, que indica origem bunda, trata-se de amidalite e, para Beaurepaire, de parotidite. COCHILAR: os dois autOres registram o sentido de 'dormitar' (Beaurepaire cuchilar) e tan1bém o derivado cochilo 'aro de cochilar'. Macedo Soares assinala, para o derivado, também o sentido de 'descuido'. Ambos apontam uma origem africana: provável para Beaurepaire, enquanto para Macedo Soares, o étimo é cucoxila 'modorrar'. FUBÁ: para Beaurepaire, o termo refere-se à 'farinha de milho ou de arroz moída'. Macedo Soares restringe o sentido do termo a 'farinha de milho', embora registre sua aplicação a outros cereais, bulbos, etc., como em fobd de arroz,fobá de jacatupê (legwninosa encontrável na região do rio Paranapanema, utilizada pelos índios). Ele também assinala o uso figurado: jàzer tudo em fubd, isto é, 'fazer tudo virar poeira, ficar em polvorosa'. QUITANDA: os dois autores registram o significado 'mercado de gêneros como frutas, hortaliças, aves, pescados, etc'. Para Beaurepaire, que aponta o sentido figurado de 'ocupação', como no exemplo ''A clínica é a minha quitanda", o termo é de origem bunda. Macedo Soa res assinala os sentidos de 'venda ambulante' e o de 'objeros vendidos em rabulei ro' e, sem se manifestar sobre a etimologia do vocábulo, observa que significa 'cama, liteira, maca' em suaíli. Eles tan1bém anotam os seguintes derivados: quitandeiro/ quitandeira e quitandar. Os dois au tores registram ainda o sentido negativo que a forma feminina quitandeira assume, de 'mulher sem educação, que usa de termos e modos grosseiros'.
Palavras da África no Brasil de ontem e de hoje
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b) Com diferença de significado em relação ao uso atual (modificação com especialização ou apagamento de um dos significados), encontram-se caçamba, cachaça, candango, corcunda, macaco, marimbondo, moleque, tanga. Dentre os vocábulos acima listados, apenas um deles foi registrado por somente um dos dois dicionaristas: CANDANGO: Macedo Soares apresenta o sentido, hoje desconhecido, de 'nome com que os africanos designam os portugueses', indicando etimologia bunda. No uso atual, o termo é aplicado aos operários construtores de Brasília.
Quantos aos outros vocábulos, vemos: CAÇAMBA: os dois dicionaristas ind icam o sentido de ' balde preso em uma corda para retirar de algwnlugar' e registram a expressão popular "a corda e a caçamba", que descreve a relação entre pessoas inseparáveis, como no ditado popular ''Aonde vai a corda vai a caçamba". Eles também registram o sentido de 'estribo em forma de ch inelà. Macedo Soares oFerece ainda dois outros sentidos: 'balde em geral' e 'nome dado por garotos ao carro de aluguel, considerado injurioso pelos condutores'. No uso awal, permanece apenas o sentido de' recipiente', como apa1·ece em caçamba de lixo e (caminhão) caçamba. Vale observar que a expressão popular guarda o mesmo sentido registrado, embora as pessoas desconheçam o significado do vocábulo caçamba como 'balde' e a relação entre este e a corda. CACl-lAÇA: Macedo Soares e Beaurepaire registram o termo, que nomeia tipos de aguardente distinto daquele conhecido hoje como cachaça. Beaurepaire aponra o sentido de 'aguardente feita com o mel ou borras do melaço', observando que é diferente daquela feita com calda da cana chamada de cana ou caninha. Ele indica que, na Bahia e outras provlncias do norte, dão o nome de cachaça "à escuma grossa, que, na primeira fervura, se tira do suco da cana na caldeira, onde se alimpa, para passar às tachas, depois de bem depurado, e ajudado com decoada de cal ou cinza". Macedo Soares registra, além daquele indicado por Beaurepaire, o sentido de 'escuma grossa, contendo impurezas, que se rira do cozimento do caldo da cana'. Os dois autores apresentam o sentido figurado de 'paixão predominante', também observado hoje, como no exem pio, A cultura das flores éa minha cachaça. Apenas Macedo Soares indica a acepção de 'bêbado'. Como derivados, os autores indicam cachaceira 'lugar onde se deposita a cachaça' e 'bebedeira' (apenas Macedo Soares) e cachaceiro. CO RCUNDA: Macedo Soares considera que tanto corcunda como carcunda são "corruptelas eruditas" de CACUNDA 'dorso, costas' (originado da língua bunda ca-cunda), por aproximação com corcova 'giba, bossa'. Daí, os sen tidos da fo rma derivada cacundeiro 1. 'carregador q ue leva carga nas costas'; 2. 'a nimal q ue na tropa gosta de andar atrás dos outros, pelas costas' e 'homem de baixa cond ição'. O autor não deixa claro o sentido atual de 'pessoa com deformidade nas costas' quando se consultam os verbetes relacionados: cacundo (adjetivo) 'carcundo, co rcunda', carcunda (ver cacunda e cacundo). Aparentemente, Macedo Soares indica o sentido atual ao exemplificar, sem nenhum comentário, o verbete cacundo 'carcundo, corcundo' com o adágio popular "Quem dá o que deu fica cacundo", que, parafraseado em termos atuais, corresponde a "Quem dá o que deu fica corcunda". No verbete corcunda, ele relaciona sentidos hoje desconhecidos: 1. 'qualificativo dado aos portugueses'; 2. 'termo aplicado ao Partido Restaurador'; e 3. 'termo aplicado ao Partido Conservador' . Beaurepai re registra apenas a forma cacunda e também aponta o sentido de 'dorso ou costas', observando que, na língua bunda, ricunda significa 'costas'. Ele levanta a hi pótese de que cacunda seja uma alteração do termo vulgar corcunda (o termo não vulgar seria giba ou gibosidade), que as pessoas " incultas" passaram a usar também com o sentido de 'dorso, costas', sem qualquer deformidade.
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MACACO: Beau repaire c Macedo Soares assinalam o signifi cado de 'tipo de símio' e o de 'máquina para suspender peso', encontrados no uso atual. Beau repaire indica ai nda um sentido hoje desconhecido, 'pilar em cuja construção se empregam apenas dois tijolos por camada'. Macedo Soares ind ica os derivad os macaca, macacão e macacage e, como étimo, o vocábulo bunda macacu, apresentando o utros sentidos, que podem ser relacio nados ao de 'macaco-animal', 'sujeito esperto'; 'sujeito feio e engraçado' e também os de 'tipo de árvore' c 'inseto coleóptero', esses úl timos não detectados no uso atual. MARlMBONDO: 'espécie de vespa'; etimologia bunda (para Macedo Soares, do vocábulo marimbundu); Beaurepai re registra a forma maribondo e observa que na língua bunda se diz, indiferentemente, maribondo, maribundo, malibundo. Macedo Soares atesta a forma derivada marimbonclada 'ferroada do marimbondo' e também um segundo significado, hoje desconhecido, de 'iguaria de carne desfiada com outros preparos'.
Macedo Soares e Beaurepaire registram de m odo bem semelhante os seguintes vocábulos: MOLEQUE I MULEQUE: ambos apontam o mesmo significado: 'criança I jovem I escravo ou negro' e a mesma origem, da língua bun da. Beaurepaire observa que, no tempo de escravidão, era injurioso aplicar o termo a negrinhos livres. Eles assinalam também o senrido de 'pessoa de mau procedimen to, digno de um moleque'. Macedo Soares apresenra ai nda o sentido de 'gaiato, engraçado'. Como se pode no tar, o termo guardava uma relação explícita com a condição de negro e escravo, sendo hoje aplicável de modo amplo a crianças e a qualquer pessoa q ue se comporte de maneira irresponsável, como uma criança. Os dois autores apon tam um bom número de derivados: moleca, molecada, molecagem I molequeira, molecáo, molecar I molequem; molecote, molequice c também pé de moleque, que nomeia o tipo de doce fei to com amendoi m torrado e um bolo, característico das festas de São João no Nordeste, à base de mandioca, ovos, leite de co co e outras especiarias. Beaurepaire aponta também, em um verbete d istinto , o significado de 'barra de ímã com a qual se extraem as partículas de ferro, que estão misturadas com o ouro em pó'. TANGA: os dois autores apresentam o sentido de 'pedaço de pano das d imensões de um lençol, que servia de vestuário aos negros novamente chegados ao Brasil' e indicam origem bun da (Macedo Soares, ntanga, tanga 'pano'). Marcado originalmente como 'vestuáJio de escravo africano', o termo hoje corresponde a: 1. 'peça red uzida de vestuário' , como na expressão "ficar de tanga", isto é, 'ficar na m iséria', em que tanga está associada ao vestuário indígena; e 2. 'um tipo de vestuário feminino de banho, de tamanho bem reduzido'.
Em relação aos vocábulos da categoria 1, não foram registrados os seguintes: abadá, gibi, maconha e macumba. Quanto aos vocábulos maconha e macumba, parece interessante fazer alguns comentários. Com a mesma significação de maconha, encontramos, em Macedo Soares, liamba e pango, e em Beaurepaire, liamba, pango e riamba, atualmente desconhecidos. Quanto aos significados evocados, hoje, por macumba, vemos que os dois autores registram candombe e candomblé. Macedo Soares e Beaurepaire apontam para candombe uma etimologia africana (para Macedo Soares, da língua bunda) e o sentido de 'folguedo ou dança de negros', mas o primeiro dos autores assinala também o de ' batuque sagrado, dança ritual, com p rática de feitiçaria, com cantigas em língua angolense, conguesa ou suaíle' e
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o de 'baile ou dança de gente reles'. O vocábulo derivado candombeiro 'dançador ou frequentado r de candombe' aparece nos dois autores. Eles também atestam o significado de candombe como 'tun tipo de rede para pescar'. Quanto a candomblé, verifica-se mais uma vez convergência no registro do significado do vocábulo, 'batuque de negros com prática de feitiçaria' (que Macedo Soares vê também em candombe). Quanto à etimologia, os autores indicam uma provável origem africana, tendo Macedo Soares se pronunciado sob a forma de interrogações: "vocábulo bunda? suaíle? fongbê?". Há, ainda, o registro do sentido de 'quartinho escuro em que se guardam coisas velhas, inúteis'. Na categoria 2, encontramos registrados pelos dois dicionaristas os seguintes vocábulos: cafimé, catinga, mandinga, muamba, muxoxo. Com relação aos vocábulos dessa categoria, vemos também que alguns termos mantiveram o mesmo sentido registrado por Macedo Soares e Beaurepaire e outros não. a) Com o mesmo significado atual Os autores registram de forma semelhante os seguintes vocábulos: CAFUNÉ: eles apontam o mesmo significado 'gesto carinhoso que simula catar piolho na cabeça' e também o de 'os cocos menores do cacho de dendê', este último desconhecido atualmente. Macedo Soares aponta a língua bunda como o rigem. MUXOXO: os autores indicam o sentido 'movimento com a boca, estalando os lábios, para exprimir contrariedade, desdém'. Macedo Soares apresenra o termo bunda muxiôxo 'murmurar', como éti mo.
b) Com diferença de sentido em relação ao uso atual CATI NGA: os dois autores apontam dois significados distintos do vocábulo. O primeiro corresponde a 'cheiro de desagradável do corpo, especial mente de negros', tendo origem em vocábulo tupi, catinga. Eles registram os derivados: catingar, catingoso/ catinguento! catingueiro (este último, apenas Macedo Soares). Beaurepaire também atesta a aplicação de catinga a certas plantas que exalam aroma, como por exem plo, a catinga-de-mulata, que chei ra a anis. No uso atual, observa-se o sentido geral de 'mau cheiro', sem se restringir ao corpo c destituído de qualquer relação com pessoas negras. O segundo significado é o de 'espécie de mato, com vegetação esparsa, rala' , também, segundo eles, de o rigem indígena, conhecido hoje. Como derivado, ambos registram catingueiro 'rês que se esconde ou vive na catinga' e 'morador da catinga' . Os dois autores indic.un o sentido figurado de 'avarento' para o vocábulo catinga, mas estabelecem relações diferentes com os dois significados apontados. Assi m é q ue para Macedo Soares, o sen tido de 'avarento' deriva de 'vegetação esparsa, rala', isto é, de 'mato mesquinho'. Quanto a Beaurepai re, o sentido de 'avarento' talvez advenha do fato de considerar o avarento tão repulsivo quanto o fedo rento. Tal sentido figurado é desconhecido atualmente. MANDINGA: apenas Macedo Soares registra, com os sentidos: 1. 'ane de fechar o corpo'; 2. 'feiti çaria' e 3.'dificu ld ades imprevistas, obstáculos não naturais'. No uso atual, permanece o sentido geral de 'fei tiçaria', dentro do qual os sentidos apontados pelo autor cabem perfeitamente.
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MUAMBA: os dois auro res atestam o significado 'fraude, engano doloso, velhacaria'. Eles também relatam a história do termo: era uma invenção popular recente paJa expressar 'desvio de recursos públicos' que acabou por assumir o sentido geral de 'transação ilícita'. No uso atual, muamba designa 'produto co mercializado de forma ilegal'. Macedo Soares considera que o vocábulo tem origem indígena, embora aponte, sem qualquer comentário, o termo bunda muamba 'maleta, piCLtá' como homônimo. Beau repaire anota o derivado muambeiro 'pessoa que faz negócios ilfciros', que no uso atual corresponde a 'pessoa que comercializa produtos de forma ilegal'.
Os seguintes vocábulos da categoria 2, em uso, não constam dos registros de Macedo Soares e de Beaurepaire: bamba 11, bambambã, banguela, catimbalcatimbeiro. Q uanto à categoria 3, Macedo Soares e Beaurepaire registraram os seguintes vocáb ulos: angu, biboca, bunda, cafofo, cafundó, muquirana, muxiba, quizumba,
sacana e zumbi. Entre os termos anteriormente listados, quatro deles têm o mesmo sentido observado no uso atual: ANGU: os dois autores ind icam o sentido 'espécie de comida' (não considerado para efeito do presente trabalho). Apenas Macedo Soares indica o sentido 'mistura confusa, rrapalhada', observado também no uso atual. Beaurepaire registra esse sentido no vocábulo anguzada 'qualquer fenômeno moral em que se observa a maior confusão' . BUNDA: apenas Macedo Soares atesta o sentido de 'o assento, as nádegas'. Ele acrescenta ainda o sentido 'onde se bate', provavelmente porque indica, como étimo, o termo bunda cu-bunda 'bater'. O auror observa que o vocábulo é considerado chulo em Portugal mas que, no Brasil, é popular c "muito aceitável". Atualmente, o termo é de uso geral, não estando restri to à ca mada popular mas ao estilo ou registro bem informal. CAFUNDÓ: os dois autores registram o sentido de 'luga r ermo, de difícil acesso', exatamente como é observado no uso atual (em geral, costuma-se dizer cafundó do Judas). MUXIBA: para os do is autores, o significado é 'pelanca, carne magra' c se origina do termo bunda muxiba 'an éria, veia' (Macedo Soares considera também urna possível origem indígena).
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QU IZ UMBA: somente Macedo Soares atesta o vocábulo, além da fo rma variante
quizomba, com o sentid o de 'a rapaziada', e indica etimologia bunda. No uso atual, corrcspo nde a 'bagunça, confusão'. SACANA: o registro só aparece em Macedo Soares, que aponta o sentido de 'copular, forn icar', distin co do sentido arual de 'pessoa sem vergo nha, mau caráter'. O autor assinala como origem cu-socttntt, sem dizer a que Irngua o termo pertence (provavelmente, esteja se referindo à língua bunda). ZUM BI: Macedo Soares registra o sentido geral de 'alma do outro mundo ou ser sobrenatural , que assusta c mete medo às pessoas' e também o de 'mandachuva, fig ura po!Itica dominante de uma região, de uso popular'. Para ele, o vocábulo é de origem bunda. Beaurepai re, que ra.mbém invoca etimologia bunda, aponra um sentido mais estreito: 'ente fantástico que, segundo a crendice vulgar, vagueia no interi or das casas em horas morras, pelo que se recomenda muito a quem tiver de percorrer os aposentos às escuras que esteja sempre de olhos fechados, para não encarar com ele'. Esse autor ind ica ainda o sen tido figurado de 'pessoa que tem o costume de só sair à noi te'. No uso atual, zumbi guarda uma relação com o sentido de 'aLna do outro mundo' c 'ser morto-vivo' e, figuradamcn te, é apli cado para descrever o estad o de 'alguém mal-dormido, zonzo'.
Da categoria 3, os seguintes vocábulos não foram registrados pelos dois dicionaristas: babaca, babau, cambada, cucuia, muquifo, muvuca e ziquizira. Q uanto ao vocábulo babaca, cabe assinalar que Macedo Soares e Beaurepaire registram babaqum'tl e apontam o sentido 'caipira, roceiro, matuto', m as o primeiro autor indica também o de 'rolo, abobalhado', tal como se observa no uso atual de babaca.
Século XX Os vocábulos registrados por R. Mendonça (1933) e por J. Raimundo (1933) mantiveram, em grande parte, seu significado nas três categorias. Convém observar que Raimundo utiliza o termo ambundo que, na verdade, nomeia o povo, em lugar da designação da lingua quimbundo, falada pelo povo ambundo.
Com diferença de sentido em relação ao uso atual, encontramos os seguintes vocábulos: biboca, cafofo, muquir'tlna, quizumba, sacana e zumbi.
a) Na categoria 1, com o mesmo sentido atual, são atestados os seguintes termos: banzo, cachaça, cachimbo, caçula, canga, capanga, caxumba, cochilar, corcunda,
BIBOCA: Macedo Soares e Beaurepaire assinalam o sentido de 'buraco, escavação for mada por água' e atr ibuem a ele um a origem indígena. Beaurepaire acrescem a a informação de que as bibocas nos terrenos comam diffcil o trânsito e aponta um segundo sentido, 'qualquer terreno brenhoso, de difícil trânsito'. Os dois autores atestam o sentido figurado de 'casinha de palha', que deve estar na base do sentido arual de 'habitação precária, situada em lugar esquisito ou suspeito'. CAFOFO : apenas Macedo Soares registra, com o sentido de ' latrina', e se pergunta se esse vocábulo não se origina de cafimdó (cf. acima). MUQU IRANA: os dois aurorcs dão os mesmos sentidos ao vocábulo, 'piolho que se agarra ao corpo', que não é reconhecido no uso atual, e 'pessoa avarenta, pão-duro'. Eles supóem rambém uma origem indígena.
dengo, fubá, macumba, matimbondo, miçanga, molambo, moleque, moringa, quilombo, quitanda, quitute, senzala, tanga e xingar. Estão registrados apenas em Mendonça os seguin tes termos: BANZO: para o autor, o termo quimbundo mbanza 'aldeia' explicaria o sentido de 'saudade da aldeia, da terra natal'. CACHAÇA: tem o sentido ÚJ1ico de 'aguardente', diferenremenre da atestação do século XIX. Como etimologia, o aucor informa apenas que se trata de "termo africano". CANGA: no sentido de 'trave de madeira adaptada ao pescoço dos an imais'. Seu étimo é do quimbundo kanga, que significa 'prender, ligar' . Para Mendonça, essa palavra "influi em cogote, originando cangote, 'pescoço'; termo muito usado em Pernambuco e Alagoas".
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MACUMBA: significa 'feitiçaria, candomblé'. O autor não indica o étimo, mas afi rma ser termo africano. Diz que é utilizado na área geográfica do Rio de Janeiro. Arualmenre, significa 'fei tiçaria, magia, oferendas, despacho'. É conhecido em todo o país, mas continua designando um tipo de culto africano próprio do Rio de Janeiro.
Dois termos são registrados apenas por Raimundo: CAPANGA: atestado com dois sentidos: 1- 'guarda-costa, cangaceiro'; 2- 'bolsa ou saco de couro ou lona, pequeno, que os viajantes levam a tiracolo ou sob o braço, também conhecida por mocó'. Para ambos os sentidos, Raimundo apresenta o éti mo ambundo kapanga, "em razão de os guarda-cosras conduzirem os seus cacetes ou bolsas de armas sob o braço". Os dois sentidos - 'jagunço' e 'bolsa'- persistem no uso atual. MORINGA /MURINGA, MO RINGUE/ MURINGUE: atestado com o sentido de 'bi lha de barro em forma de garrafa, bojuda e de gargalo comprido'. As formas moringa/ muringa vêm do chinhungue muringa 'bilha, cangalho'; moringuelmuringuevêm do ambundo muringi, de mesmo significado. Apresenta os derivados muringada, muringueiro.
Um conjunto de vocábulos da categoria 1 é atestado pelos dois autores com sentido bastante próximo ao atual: CACHIMBO: tem o mesmo significado nos dois autores, 'aparelho para fumar'. Mendonça registra o érimo quimbundo kixima 'poço furado, coisa oca'. Raimundo atribui o termo o étimo ka + tchimbu, prefixo + nome de concha (njimbu) e afirma que o vocábulo deve ter sido formado pelo negro fora da África. Cita outras etimologias apresen tadas por outros autores e afirma que os "landinos (sic), de Moçambique, chamam ao chocalho, feito do quengo de um coco chi-imbo, cujo diminutivo é ka-chi-imbo, que bem pode ser o verdadeiro étimo de cachimbo (caximbo)". CAÇULA: os dois autores registram dois verbetes com os seguintes sentidos: 1- 'filho mais moço'; 2- 'ato de socar milho no pilão'. Para a primeira en u ada, Mendonça apresenta o étimo quimbundo kazuli 'o último da família' e Raimundo, kasule, do ambundo. Quamo à segunda entrada, os autores apresentam étimos semeU1antes: Mendonça indica o uimbundo kuçula 'pilar, socar' e Raimundo,* kukasula, sem precisar a língua. CAXUMBA: Mendonça e Raimundo atestan1 o termo com o significado de inflamação das paróridas'. Mendonça informa que o termo seja "talvez do quimbundo", Raimundo afirma ser de érimo obscuro. COCHILAR: ambos registram o vocáb ulo com o sentido de 'cabecear com sono'. Para Mendonça o termo vem do quimbundo koxila 'dormitar'. Raimundo informa sobre étimo: "de (o)kutchila 'dançar', do dialecro dos benguelenses; naturalmente, aplicou-se o verbo em alusão ao bambear da cabeçá'. CORCUNDA: ambos registram o termo sob a forma CARCUNDA, com o mesmo sentido, 'jiba, corcova; indivíduo giboso'. Os dois autores reconhecem corcunda como a forma culta. Mendonça aponta a "forma popular" cacunda, próxima do étimo quimbundo, ka + ricunda 'costas'. Para Raimundo o étimo é o mesmo, identificado como am bundo, karicunda 'o giboso', "di minutivo de rikunda, 'costas"'. D ENGO/DENGUE: as duas fo rmas estão registradas pelos dois autores, com os seguin tes sentidos: 1- 'termo carinhoso para se dirigir à criança', 2- 'comportamento feminino, manha, birra, afetação'. Sobre a eti mologia, Mendonça comenta: "do quimbundo ndengue,
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'menino', que perdeu a nasal in icial. Há também as variantes dongo. ndengue e ndongo. Hoje é vocábulo morro" . Para Raimundo, dengue vem do ambundo ndengue, 'pequeno, criança'. Como derivados são indicados: dengueiro 'o que tem dengues'; clenguice, dengoso. FUBÁ: Mendonça e Raimundo registram com o sentido de 'farinha de milho, mandioca ou arroz'. Para Mendonça, o étimo é o quimbundo Juba 'farinha', "com acutização" [deslocamento do acento para a sílaba final]; para Raimundo é o ambundo fitba. MARIMBONDO: os aurores atestam o significado de 'inseto, vespa'. Ambos reconhecem a forma como sendo o plural de rimbondo, ma (prefixo de plural da 4 3 classe) + rimbonclo, do quimbundo para Mendonça e do ambundo para Raimundo. MIÇANGA: Mendonça e Raimundo registram o sentido de 'contas de vidro, joias de pouco valor'. Ambos afirmam ser palavra do cafre. Para Mendonça o étimo é mi (prefixo de classe)+ sanga, 'continhas de vidro'. Raimundo especi fica ser palavra da Contracosta, do chinl1Lmgue misanga, plural de usanga 'conrinha de vidro'. Indica os derivados missangada, missangaria, emmissangar (sic). MOLAMBO: os dois autores registram o mesmo significado corrente na atualidade, 'trapo, pedaço de pano velho'. Para Mendonça, o term o é quimbundo, sem indicação do étimo. Raimundo informa ser termo do "amb. mulambu, pano que os negros punham entre as pernas". Hoje também é usado no sentido figurado, para referir-se a 'pessoa sem firmeza de caráter, sem força moral'. MOLEQUE: os dois autores apontam o sentido de 'preto jovem'. Eles oferecem o mesmo étimo muleque, 'menino'; para Mendonça, do "abundo" (talvez ambundo), para Raimundo, do angolense. Como derivados atestam: molecada, molecagem, molecão,
molecar; molequem; molequeira, molequice, molequinho, molecório, molecote, emmolecar (-se) (sic); como compostos: moleque de assentar 'pa u grosso que serve de rasoura para igualar o açúcar dentro das caixas, nos respectivos engenhos'; moleque de mel 'conteúdo dos fa vos de uma colmeia'; moleque de cheiro (sem indicação de significado) e pé de moleque ' bolo comprido e achatado'. Raimundo atesta ainda a acepção de 'indivíduo de sentimenros inferiores, de procedi mentos indignos; canalha'. Os sentidos atuais remetem aos apresentados pelos dois autores, sintetizados nas duas acepções principais, 'menino de pouca idade' e 'patife, velhaco'. QUILOMBO: o termo é atestado com o mesmo significado, 'povoação forti ficadados negros fugidos do cativeiro'. RaimLmdo indica o sinônimo mocambo. Quanto à etimologia, os autores indicam o termo kilombo 'povoação', sendo do quimbundo para Mendonça e do ambundo para Raimundo. Ambos indicam o derivado quilombo/a 'escravo fugido do quilombo' . QUITANDA: o termo ap resenta o mesmo sentido geral para os dois autores: 'venda de verduras, frutas e outros vegetais'. Como etimologia, indicam kitanda 'feira' , do quimbundo para Mendonça e do ambundo para Raimundo. Este último anota, ainda, sentidos espedficos do termo, 'lojinha ambulante' e 'biscoitos e bolos', que não são de conhecimento geral hoje. QUITUTE: os autores apresentam a mesma acepção, 'iguaria fina, delicada ou saborosa'. Mendonça dá o étimo quimbundo kittÍtu 'indigestão'. Explica que é natural que um bom prato seja repetido imprudentemente, podendo produzir indigestão. Raimundo não rem certeza quanw à origem, pois, "como é termo de culinária, pode ser do iorubá ou qualquer outra língua da Guiné", mas, devido ao sentido, crê que pode ser do ambundo kututu 'superior, excelente'. SENZALA /SANZALA: Mendo nça e Raimundo indicam o mes mo significado, 'alojamento ou conjunto de alojamento dos escravos nas fazendas' . Ambos indicam o étimo (quimbundo, para Mendonça; ambundo, para Raimundo) sanzala 'habitação'. Raimundo acrescenta o sentido de 'prost!bulo', na gíria do Rio de Janeiro.
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TANGA: os amores apresentam o mesmo sentido básico. Em Mendonça, 'pano que encobre as partes genitais'. Provém do q uimbundo ntanga 'pano, capa'. Para Raimundo, 'peça de pano que se põe na cintura'. Vem do ambundo tanga 'pano, capa' . Ambos registram a expressão estar de tanga, significando 'estar na penúria'. XlNGAR: Mendonça e Raimundo concordam em que o termo significa ' insultar com palavras, ofender'. Recon hecem a origem no termo quimbundo (ambundo, para Raimundo) ku-xinga 'injuriar' (xinga, para Mendonça).
b) Houve deslocamento de sentido, em relação ao uso atual dos seguintes termos da categoria 1: caçamba, candango e carimbo. CAÇAMBA: somente R.1.imundo registra o vocábulo, com o sentido de 'balde preso a uma corda para apanhar água no poço' . Tem o sentido figurado de 'companheiro, companheira'. O autor informa que o érimo "ao que parece" é kisambu 'cesto grande', sem explicitar a língua de origem. Menciona as expressões (de) corda e caçamba; onde vai a caçamba, vai a c01da. Anota os derivados caçarnbada, caçambeiro, acaçamba1:
Permanece, atualmente, o sentido de 'recipiente', como foi observado no comentário feito sobre os auto res do século XIX. CANDANGO: apenas Mendonça consigna o termo, na acepção de 'nome com que os negros designavam o português'. Ele indica o q uimbu ndo como língua de origem e comenta que "no rei no da Jinga, os portugueses chamam-se kangundu': Atualmente, o vocábulo é reconhecido no uso, como a designação do trabalhador comum que colaborou na construção de Brasília. CARIMBO: os dois autores registram o vocábulo com o sentido de 'marca usada nas repartições e casas de negócio'. Mendonça indica o étimo quimbundo ka prefixo diminutivo + rimbu 'marca'. Raimundo reconhece dois senti dos: 1- 'selo, sinete'; 2- 'nome de tambor fei to de um tronco de árvore, oco, com uma pele de carneiro ou outro animal', esre último hoje desconhecido. O étimo é o termo ambundo lúrimbu 'sinal, marca, selo' . Atualmente, carimbo designa tanto 'o instrumento' quanro 'a marca deixada pelo instrumenro' .
Na categoria 1, os termos da lista que não foram registrados por Mendonça e Raimundo são abadá, gibi, macaco e maconha. A maior parte dos vocábulos registrados por Mendonça e Raimundo, incluídos na categoria 2, mantiveram o sentido: bamba, bambambá, banguela, cafuné, catinga, mandinga, muamba e muxoxo. A lguns deles foram anotados por só um a utor. Assi m , encontra m os documentados apenas em Mendonça os termos: CATINGA: o autor aponra o senrido de 'mau cheiro'. Mendonça comenra que, embora Pacheco J únior o considere africano, acredita que o termo se prende à raiz tupi "cati, olor pesado", de acordo com Montoya. MUAMBA: o termo só é registrado com o sentido de 'negócio ilícito, vel hacaria'. O étimo ap resentado é a forma do quimbundo muhamba 'cesto em que os carregadores trazem a carga' (... ), que "depois passou a significar carga contrabandeada". O termo é de uso geral, atualmente, mas Mendonça situa seu emprego no Estado da Guanabara, Ceará e outros Estados do Norte.
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Estão registrados somente em Raimundo: BAMBA: anotado com o senrido de 'forre, remível, valente'; do ambun do mbamba mestre, exímio, excelente' . Apresenta os derivados bambão, bamba/hão, bambarrrão. BAMBAMBÃ: atestado com o sentido de 'o mais forte, temível, respeitado ou valente; excelente, exímio'. O étimo é mbamba-mbamba 'muito exímio' .
Tanto Mendonça quanto Raimundo atestam os vocábulos, com significado aproximado: BANGUELA: ambos registram os sentidos de 'nome de um povo da região de Benguela' e de 'pessoa desdentada' . Raimundo indica, também , o sentido de pessoa que "fala com incorrecção ou pronuncia mal as palavras, como se lhe faltassem denres". Apenas Raimundo indica o érimo benguela ou banguela 'nome do habitante de Benguela, que tin ha o hábito de limar exageradamente os de ntes', daí o sentido de 'pessoa sem dentes' . CAFUNÉ: os do is autores apontam o mesmo significado, 'estalidos com o polegar no alto da cabeça', que remete ao sentido atual de 'coçada leve na cabeça de alguém; carícia leve' . Mendonça apresenta o étimo quimbundo kufimdu 'cavar, enterrar'. Raimundo sugere duas etimologias: do conguês (língua geral do Congo, segundo o autor, quicongo) nkafima 'golpe, pancada' ou do chinhungue ku-fima 'querer, amar'. MANDINGA: Mendonça e Raimundo ind icam o mesmo sentido, 'feitiço, sortilégio' e observam que o termo provém da região Mandinga, da Guiné, onde havia "insignes feiticeiros". Mendonça acrescenta a acepção 'talismã para fechar o corpo', hoje um ripa de mandinga. MUXOXO: Mendonça e Raimundo indicam a mesma significação de hoje, 'som produzido com a üngua aderida aos dentes ou estalo que se dá com os lábios, como um beijo, em sinal de enfado ou desdém'. Para os dois autores o termo vem do quim bundo (ambundo, para Raim undo) muxoxu, com o mesmo significado.
O único termo da categoria 2 que não consta de nenhum dos registros de Mendonça e Raim undo é catimbalcatimbeiro. Os seis vocábulos da categoria 3 registrados pelos autores considerados nao apresentam d iferença na significaçao em relaçao ao uso atual: angu, bunda, cafimdó, cambada, muxiba e zumbi. Um vocábulo é registrado apenas por Raimundo: CAFUNDO: o autor atesta o mesmo sentido de hoje, 'lugar ermo e distante'. O étimo apresen tado é do am bundo ka-nfundo. O termo hoje também é um topônimo, que designa um bairro rural on de vive uma comunidade de negros, na região de Sorocaba, em São Paulo.
Os demais termos estão documentados nos trabalhos dos dois autores: ANGU: os autores apontam o sentido de 'comida'. Apenas Raimundo indica o sentido figurado de 'mistura confusa, uapalhada, intriga'. BUNDA: Mendonça e Raimundo concordam com o significado de 'nádegas, assento'. Apresentam a mesma etimologia, mbunda 'nádegas', do quimbundo para Mendo nça e do ambundo, para Raimu ndo. O termo mantém-se com o mesmo significado, tendo produzido uma série de derivados e com postos. CAMBADA: os autores apontam o sentido geral de 'agrupamento de pessoas'. Mendonça restringe o sentido a 'agrupamento de vagabu ndos', 'corja, súcia', enquanto
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Raimundo estende o sentido a 'qualquer conjunto de coisas'. QuanLO à etimologia, os aurores indicam kamba, (do quimbundo para Mendonça c do ambundo para Raimundo) + sufixo -ada, sendo que apenas Mendonça atribui o significado de 'parceiro' a kamba. MUXJBA: tanto Mendonça como Raimundo apresentam a mesma acepção, que se mamém no uso de hoje, 'carne magra e calda, pelanca', indicando a etimologia: do quimbundo (arnbundo, para Raimundo) muxiba 'artéria, veia'. Z UMBI: Raimundo registra o termo com os sentidos de 'ente fantástico que, segundo a crença popular, vagueia dentro das casas a horas mortas da noite; pessoa que tem o hábito de sair à noite'; c também a acepção 'lugar ermo, tristonho'. Como éti mo apresenta o ambundo nzumbi 'espectro, fantasma, alma do outro mundo'. Quanto a Mendonça vale observar que ele registra a forma zambi 'chefe de quilombo', com étimo quimbundo nzambi 'deus'. Atesta ser mais comum a forma zumbi que, sem nenhuma explicação, deriva de nzumbi.
Os termos selecionados em nossa pesquisa na categoria 3 que não constam do registro de Raimundo e Mendonça são: babaca, babau, biboca, cafofo, cucuia, muquifo, muquirana, muvuca, quizumba, sacana e ziquizira.
As três categorias do léxico de origem africana: integração e vitalidade Vocábulos da categoria 1 A maioria dos termos da categoria 1 está registrada no Brasil desde os primeiros trabalhos do século XlX, ainda que sob a identificação de brasileirismos. Alguns deles são mencionados desde Pedra Branca (1824-1825): caçula, cochilar, mandinga, molambo, muxiba, muxoxo, quitanda, quitute, senzala, xingar. A forma e a interpretação semântica desses vocábulos, conservadas ou construídas no Brasil, vêm-se mantendo estáveis, apesar da antiguidade de seu uso, como comprovou a documentação localizada no Brasil: estão presentes, com significado equivalente, na maior parte dos materiais consultados, tanto trabalhos de cunho geral como léxicos regionais. São termos perfeitamente integrados ao léxico brasileiro, o que se pode constatar pela capacidade de criação leJcical que manifestam ao produzir compostos e derivados, como, por exemplo, xingar, de que se formaram xingamento, xingação, xingo, xingador, xingatório, xingado (cf. Borba, 2002). Constituem o núcleo de resistência dos termos de origem africana no português brasileiro, embora pouca memória dessa origem tenha permanecido em mu itos itens (carimbo, cochilar, entre outros) 12 • A categoria 1 contém os itens menos coloqtúais e de uso mais extenso, pelo fato de serem os primeiros ou únicos vocábulos disponíveis para designar seus referentes, como: caçamba, caçula, carimbo, caxumba, cochila1; corcunda, fubá, marimbondo, macaco, moleque, quilombo, quitanda, senzala, tanga e xingar. O vocábulo quilombo que, no sentido de refúgio de negros fugitivos, foi sinônimo de 'mocambo''\ teve seu primeiro significado estendido, sem perdê-lo,
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contudo, para designar as comunidades constituídas principalmente de negros, instaladas no meio rural ou urbano. Os únicos termos não citados por nenhum dos trabalhos sobre línguas africanas no Brasil, tomados como referência nos séculos XlX e XX, são abadá e gibi. Este último termo teve seu primeiro registro em Castro (200 1), sob a forma JIBI, de éti mo fon (wf)wlví'negrinho'. Gibi foi o nome de urna revista semanal em quadrinhos, publicada pela primeira vez em 1939, que trazia na capa o desenho de um garoto negro. Na época, o termo significava 'moleque, negrin ho'; com o tempo, a palavra passou a ser associada a revistas em quadrinhos e tornou-se sinônimo desse tipo de publicação 14. Os dicionários Aurélio e Houaiss registram os dois sentidos do termo: 'moleque, negrinho' e 'revista em quadrinhos', assinalando que o primeiro sign ificado é uma gíria brasileira. Nenhum autor oferece a data do primeiro registro desse vocábulo, o que permite afirmar que seu primeiro uso em porruguês ocorreu no Brasil. Do primeiro sentido, 'moleque', formou-se o derivado gibizada 'molecada', registrado pelos dois dicionaristas. O dicionário de usos de Borba apresenta corno primeira acepção 'criança', apoiado em abonação literária de 1954; a segunda acepção, 'revista em quadrinhos', é atestada por textos da década de 70. Corno derivado só está consignado o termo gibiteca ' local onde se guardam gi bis', o que vem confirmar o desuso do vocábulo na acepção de 'moleque, criança', verificado também na língua falada. Há um único termo que, curiosamente, apesar de ptesente nos dicionaristas do século XlX, não consta nos registros de Mendonça e Raimundo, macaco. Não dispomos de informações sobre as razões desse "abandono", mas é fato que apenas Macedo indica a origem africana do termo, macactt, da língua bunda. Castro (200 1) aponta o étimo makaaku 'símio', do quicongo. Quanto a abadá, os primeiros registros em trabalhos especializados estão em Angenot (1974) e Castro (1976). Angenot (1974), sem indicação de étirno, apresenta, com base em Luis da Câmara Cascudo (CA), o significado de "túnica branca que os negros malês (muçulmanos de origem africana) vestem para as preces noturnas". Castro (200 1) acrescenta outros significados, 'veste masculina de origem árabe', 'parte do traje nacional, junto com oxocotô; para o povo de santo, pode significar 'panela de barro, alguidar'. Na Bahia, equivale ao "conjunto de camisa ou blusa curras e 'short' de estamparia colorida, vestidura de blocos carnavalescos, que substituiu a tradicional 'mortalha'- vestimenta comprida, larga e sem mangas". A autora indica os étirnos fon agbárá; iorubá agbádá, que teriam sua origem no hauçá albada. Tanto Aurélio co mo Houaiss atestam dois sentidos básicos: o sentido histórico de 'vestimenta de negros muçulmanos, ou rnalês no Brasil' e o bem atual de 'traje informal usado por blocos ca rnavalescos, grupos, etc.' Esse último também é registrado por Borba (2002). Candango, no primeiro registro, feito por Macedo Soares (1954 [1875-1880]) significa 'nome com que os africanos designavan1 o português'. Segundo Machado Filbo, era em pregado na África para condenados ou europeus de baixa condição, vi ndo a "tornar-se
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[no Brasil] o pejorativo de português, na boca de toda gente" (1965: 18). Para esse autor, o termo teve emprego atestado no Rio de Janeiro, "para referências depreciativas a copeiros e serventes lusitanos, por volta de 1922" (1965: 18). Machado Filho situa a "notabilização" do termo, no dia 4 de janeiro de 1960, quando, no discmso em saudação a Israel Pinheiro, Juscelino Kubitschek faz "comovente apologia do candango [forasteiro que construiu Brasília]. Novamente o exaltou no histórico discurso de 20 de abril. Estava lançada a palavra, com o novo sentido que as circunstâncias lhe deram, como é normal" ( 1965: 19). O uso mais geral do termo fez com que seu sentido se estendesse para 'trabalhador braçal vindo de fora da região', 'trabalhador que colaborou na construção de Brasília' e 'qualquer dos primeiros habitantes de Brasília'. Hoje, está se tornando obsoleto o termo, tanto no sentido de 'trabalhador forasteiro' quanto no de 'trabalhador que colaborou para construir Brasília', descumprindo-se assim a previsão de que viesse a designar efetivamente o 'natural ou habitante da capital federal', feita por Machado Filho (1965: 20).
Vocábulos da categoria 2 Estão nessa catego ria itens lexicais que manifestam um uso mais coloquial e que concorrem com sinônimos de valor próximo, mas menos marcados pela informalidade. Assim, bamba, bambambá têm seu equivalente, respectivamente, em 'especialista, conhecedor e o maior especialista, o grande conhecedor' e 'o melhor de todos'; banguela, 'desdentado, sem dentes'; cafuné, 'carinho na cabeça'; catimba (catimbeiro) , 'manha, astúcia, malícia'; catinga, 'mau cheiro'; mandinga, 'feitiço'; muamba, 'contrabando'; muxoxo, 'bico'. Alguns deles são atestados desde o século XIX, em Pedra Branca ( 182425), Pacheco Silva (1887-1894), Sílvio Romero (1888) e João Ribeiro (1889): cafoné, catinga, mandinga e muxoxo; bamba e banguela têm seu primeiro registro nos trabalhos de Mendonça (1933) e Raimundo ( 1933) .Já catimba e seus derivados (catimbar, catimbeiro, catimbento) são de uso mais recente; não constam de nenhum trabalho do século XX nem mesmo dos léxicos regionais. Não foi localizada a datação de seu uso, mas parece recente, de emprego quase exclusivo no domínio do futebol. Esses vocábulos, apesar de bem integrados ao léxico geral da língua, onde produziram derivados (catimbeiro, catinguento, mandingueiro, muambeiro), estão mais sujeitos à substituição por termos de significado menos marcado pela informalidade. Ocupam uma zo na intermediária do léxico, mais suscetível a adaptações e mudanças, por referirem-se a qualidades, atividades, atitudes, cuja designação pode modificar-se mais rapidamente para atender a necessidades expressivas particulares. )
Vocábulos da categoria 3 Com relação a essa categoria, há um fato que merece reflexão. Encontramos onze termos que não foram documentados no século XX por Raimundo e Mendonça: babaca,
babau, biboca, cafofo, cucuia, muquifo, muquirana, muvuca, quizumba, sacana e ziquizira, embora alguns desses vocábulos tenham sido registrados no século XIX, biboca, cafofo,
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muquirana, quizumba e sacana, por Macedo Soares e Beaurepaire-Rohan. O fato de tais termos não terem sido documentados no século XX pode ter várias explicações. Uma justificativa plausível seria o não reconhecimento de sua origem africana por Mendonça e Raimundo. Com efeito, biboca e muquirana, por exemplo, foram considerados de origem indígena no século XIX, mas o que dizer de quizumba ' rapaziada' e Sttcana 'fornicação', que, apesar de terem sofrido modificação de sentido, têm seus étimos africanos atestados por Macedo Soares? Teriam desaparecido, momentaneamente, do uso ou os estudiosos não os teriam anotado, simplesmente? Teriam tido seus usos restritos a camadas sociais ou a regiões específicas? Os sentidos atuais desses vocábulos seriam de integração recente ao léxico do PB ou teriam escapado à documen tação dos estudiosos 15? O termo babaca merece um comentário particular. Castro (2001) aponta apenas o sentido de 'vulva', do quicongo mubaki e do quimbundo mabaka, na Bal1ia. N o uso atual, atestamos o sentido geral de 'bobo' . Resta saber se esse último sentido deriva do termo africano. Da categoria 3, seis vocábulos não foram objeto de registro nas fontes consideradas nessa pesquisa para os séculos XIX e XX: babaca, babau, cucuia, muquifo, muvuca e ziguizira. Castro (200 1) atesta o termo cucuia na expressão irpra cucuia ou ir pras cucuia, cujo sentido é 'desaparecer, morrer' e assinala a existência de um cemitério no Rio de Janeiro, chamado C ucuia. Borba (2002) não registra o termo, no entanto a expressão 'ir pra(s) cucuia'pertence à linguagem coloquial e é encontrada na língua escrita, nos jornais, principalmente: ''A ética foi ou não foi pra cucuia?" (Globo Online, Correio da Parafba, de 30/04/2004); "Se quebrar, para começar o resto da América Latina vai para a cucuia em coisa de dezaquinzeminutos" Qoão Ubaldo Ribeiro. O complexo. O Globo, 26/03/2000) . Há um dinamismo vigoroso nessa categoria: novos termos nela entram e dela saem constantemente; alguns permanecem por um período em uso intenso, depois parecem desaparecer. Esse é o caso do termo desbundar, que não consta de nossa lista por não ser de uso geral, mas que foi registrado por Mendonça, apoiado em abonação de um texto de 1934, apresentando sentido equivalente ao que circulou no final da década de 70 do século passado, 'cair na farra'. Dos vocábulos da nossa lista observamos o retorno inesperado ao uso de alguns termos, em contextos imprevisíveis, como no jornalismo político escrito. Z iquizira (ziguizira): datado por Houaiss de 1950, sem abonação, não registrado no Dicionário de Usos de Borba, aparece na letra da música Upa Neguinho (1965), com o significado apontado em Aurélio e Houaiss, 'azar': Capoei ra posso ensiná Z iquizira posso rirá, Mas liberdade só posso esperá. (Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, Album "Arena conta Zumbi", 1965).
Em 2004, ocorre num texto de Janio de Freitas, intitulado "A ziquizira": "A ziquizira nacional não estava entre as promessas de campanha de Lula, mas é sua maior (ou ún ica) obra de âmbito nacional" (Folha de S.Paulo, 02/ 11/04).
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no Brasil
A situação é semelhante com a palavra quizumba. Datada do século XX, significando 'confusão', talvez uma transformação de quizomba 'dança de negros angolanos' (cf. Houaiss), ocorre em letras de músicas- por exemplo, Quizumba no samba, de Moraes Moreira, Guilherme Mata e Toni Costa (1983) - e aparece num texto jornalístico "A viagem de Fernando Henrique ao Japão, na estratégia de colocar o Brasil no conselho de segurança": (... ) QUIZVMBAINTERNACIONAL- (... )o presidente Artur Bernardes enfiou na cabeça que queria colocar o pais na condição de membro permanente do Conselho da Liga das Nações, a ONU da época. ArmoLt LLma quizumba internacional, defendeu a candidatura brasi lei ra com argumentos delirantes e chegou a vetar o ingresso da Alemanha na entidade. (...) (Veja, 13/03/1996).
Outros vocábulos, como é o caso de muvuca, parecem ter sido introduzidos pela mídia, a televisão, no caso. Em 1997, era o nome de um programa de entrevistas, na rede Globo, apresentado por Regina Casé, que pretendia ser um lugar onde cul turas, personalidades e gos tos diversos se misturassem, para justificar a explicação dada pelos p rodutores para o nome do programa, 'reunião entre amigos'. Nas obras de referência, aparece identificado como gíria, significando 'grande aglomeração de pessoas, confusão' e esse é o sentido reconhecido pela nossa pesquisa. Entretanto, o dicionário virtual Dicionário de folclore para estudante16 menciona outros sen tidos: 'lugar pequeno, esconderijo, enfusca, maloca, moquifo', acepção confi rmada pela pesquisa na internet onde o termo é no me de blogs (muvuca de ... ). Nas letras de música em que aparece, muvuca significa 'confusão'. É de notar o uso extenso do termo como nome próprio de revista, bar, clube de fu tebol e com unidades virtuais. Como são expressões da linguagem de jovens, de gíria, aparecem, na pesquisa da internet, dando nome a muitos blogs, os termos cafofo, muquifo, muxiba e cambada, cujos significados confi rmam o que está consignado no dicionário de usos de Borba (2002) . Um fato interessante observado na internet é a existência de dicionários virtuais especializados, com objetivos diversos. Assim, o Dicionário de folclore para estudante aten ta para o caráter popular, tradicional dos termos elencados. Por outro lado, o si te , que é alimentado por moradores de Capão Redondo (bairro periférico de São Paulo) e internautas, apresenta o significado de termos considerados como pertencentes ao vocabulário local, à gíria do bairro, mas que, no caso dos term os que consideram os da categoria 3, são de uso geral no Bras il, na atualidade.
Conclusão Com relação à presença de vocábulos de origem africana no PB, cabe uma observação final. Muitos desses vocábulos desapareceram da linguagem falada e outros tantos são em geral desconhecidos ou de uso restrito. V árias deles são termos relacionados
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à escravidão 17, que nomeiam realidades específicas ao sistema escravista brasileiro e à
vida dos negros e escravos, tendo permanecido na escrita, como marcos da história. Temos, assim , por exemplo: li bambo 'corrente usada para prender escravos e prisioneiros', malungo 'negro que veio da África na mesma em barcação', mazombo 'filho de estrangeiros que nasce no Brasil, principalmente, portugueses', muxinga 'açoite para fustigar escravos' , soba 'rei, chefe'. À guisa de il ustração, vale mencionar o termo macota 'os mais velhos, mais importantes, conselheiros', q ue representa tratamento respeitoso na linguagem religiosa de hoje para designar iniciados h á mais de sete anos. Pereira da C osta (1937) registra macota como 'indivíduo importante, poderoso, com prestígio' e oferece exemplos de uso em jornais: "O commandante do presídio de Fernando de Noronha, o Macota daquellailh a dedegredo ... " (O VapordoRioForrnoso, n° 4, 1857); "Esteclub carnavalesco é mais do que pezado, é mais do que gogno; é macota, é bichão, é turuna" (Jornal do Recife, n° 51, 19 14) . O citado autor informa também que "os jagunços de Canudos ch amavam Maco ta ao seu chefe, Anto nio Conselheiro. C a usa grande, magnífica, explendida, sumptuosa". É fato que a palavra está fora do uso comum, mas permanece ao menos no registro do regionalismo gaúcho de Bossle, com o mesmo significado 'grande, enorme, superior em qualquer sentido', na letra da música "Toada de ronda": "Ah! Uma quadrilha macota é o ga lardão do tropeiro" (2003: 312). Outros vocábulos simplesmente caíram em desuso, como caxirenguengue 'faca velh a, sem cabo' e munganga 'careta, trejeito', alguns talvez pela alternância com termos equivalentes- em certos casos, termos africanos mesmo, como quigombô - quiabo, liamba!diambalriamba - maconha. A q ues tão da etimologia de termos de origem africana representa ainda hoje um desafi o e uma tarefa a cum prir. De qualquer modo, avanços têm sido feitos no sentido de procurar destacar a d iversidade do acervo de línguas das duas principais áreas linguísticas aqui representadas: a região banta e a oeste-africana, indo além daquelas línguas trad icionalmente citadas: quim bundo e io rubá. Os vocábulos que compuseram o corpus da nossa pesquisa são na quase totalidade de origem banta, exceto abada e gibi, que estão na categoria 1. A predominância banta observada confirma a an tiguidade do contato do português com as línguas do grupo banto, o que não exclui a reconhecida presença de termos de línguas oeste-africanas (fon, iorubá, eve, gun , maí, hauçá). 18 A propósito, ao analisar o conjunto de termos registrados por Mendonça e Raimundo, observamos o significativo contingente de vocábulos de línguas da África Ocidental, o que não se nota nos trabalhos do século XIX, onde há raras anotações de línguas do oeste africano.
Notas 1
Tratou-se também da pronúnciae dasin taxe. Ver, por exemplo, Varnhagem, Alencar e ParanhosdaSilvaem Pi nto(l978).
2
Cabe referir também dois vocabulários regionais: A. I~ Coruja (1852), Coleçiío de vocnbulos efimes wados na Provlncia do Rio Cmnde do Sul, e Romangueras Correa (1898), Voarbuldrio sul rio-gmndense.
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J
Ver Rtuistn BmsiiLim, torno Jll, p. 35, apud Macedo Soares, 1880.
4
Posteriormente, no Dicionário ( 1954 [ 1875- 1880]), Macedo Soares, mudando de posição, a1 ribui origem indígena ao vodbulo catinga.
j
Por exemplo, Manuel Pacheco J r. é citado por A. ]. Macedo Soares no texto de 1880.
6
Castro (2001: 57) menciona o vocabulário de Óscar de Carvalho, a que não tivemos acesso, colerado na cidade de Salvador, em 1900, que coincidiria "em conteúdo e época" com o trabalho de Rodolfo Garcia.
7
A obra de Vogt e Fry apresenta um glossário com lermos coletados em outras comunidades de Minas Gerais, como Patrocínio e Milho Verde.
' O ito informantes (2 naturais de cada cidade), com escolaridade superior c média (I de cada nfvel de escolarização), com idade entre 40 c 55 anos. ?
Os informantes selecionados se distribuem, de maneira equilibrada, nas categorias de sexo, idade (20 a 65 anos) e escolaridade {ensino li.mdamcntal, médio c superior). A exceção é Virória da C onquista em que rodos os informantes têm curso superior.
10
' Jarnbém fo i levantado na pesquisa o sentido de 'comida', que não consideran1os no presente trabalho.
11
Macedo Soares registra o vocábulo bamba com o significado de 'no jogo de bilhar, barnbutro, acaso feliz, fortuna de fazer uma bola sem esperar, sem cálculo', originado da lfngua bunda mbamba 'jogo'. Consideramos que se trata de um vocábulo d ist in to, sem relação com o que estudan1os aqui.
" Dois vodbulos, cachaça c canga, têm sua ascendência africana contestada por alguns autores (cf. Houaiss c Aurélio). 13
Em 1740,umaordemdoreidePorrugal passouadcsignarcsscs refUgias, mocambos,de'quilombos'. Cf. Moura,2004: 337.
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'5
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''' . 17
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Estratégias de impessoalização no português brasileiro Esmeralda Vailati Negráo e Evani Viotti
Este capítulo propõe uma olhar diferente para o estudo da formação do português brasileiro: enquanto a maioria dos trabalhos sobre o assunto se concentra em questões léxico-morfológicas, nós trazemos para a discussão alguns dados de natureza sintático-semântica. Esses dados mostram certas estratégias de impessoalização e de reorganização dos argu mentos nas sentenças, o q ue constitui uma grande diferença entre o português brasileiro e o português europeu. Inicialmente, fazemos uma breve descrição das estratégias de impessoalização do português brasileiro, sugerindo que elas sejam entendidas com o um contín uo, que vai de sentenças transitivo-ativas, com agente-controlador (portanto não impessoais), até sen tenças impessoais, sem sujeito. De particular interesse para este trabalho, são as sentenças tradicionalmente conhecidas como passivas sintéticas e sentenças impessoais construídas com verbos de alternância causativa, muitas vezes chamadas de sentenças inacusativas, incoativas, ou ergativas 1• Essas sentenças estariam em uma posição intermediária no contínuo da im pessoalização. A seguir, investigamos as peculiaridades da alternância causativa e mostramos que o português brasileiro está expandindo a classe de verbos que aceitam essa alternância. Mostramos, ainda, que sentenças impessoais construídas com verbos q ue não eram membros da classe de verbos de alternância causativa e que passaram a aceitar a alternância de sua d iátese rejeitam a presença do clítico se. Esse fato é bastante curioso. A literatura, de maneira geral, diz que o clítico se é um marcador da alteração da diátese verbal e que o fato de não se registrar sua presença em sentenças impessoais construídas com verbos de alternância se deve à tendência que o português brasileiro vem apresentando no sentido da perda de seus clfticos. O que constatamos é
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África no Brasil
que existe uma assimetria: verbos que tradicionalmente pertencem à classe de verbos de alternância causativa ainda aceitam o clítico; diferentemente, os novos verbos que aceitam a alteração de sua diátese não aceitam o clítico. Em seguida, exploramos as características das construções impessoais com verbos de alternância causativa, buscando pistas para esclarecer as diferenças causadas na interpretação da sentença pela presença ou ausência do clítico se. A primeira caractedstica observada é a de que, nas sentenças impessoais construídas com verbos de alternância sem o clítico se, modificadores têm escopo apenas sobre o estado resultante; diferentemente, nas sentenças construídas com o clftico se, modificadores podem ter escopo tanto sobre o evento causador, quanto sobre o estado resultante. Mostramos ainda que o padrão de modificação exibido pelas sentenças na versão impessoal da alternância causaciva é o mesmo que se observa em sentenças passivas adjetivas. Por fim, construímos uma hipótese de explicação para os fenômenos observados ao longo de nossa análise empírica, segundo a qual as propriedades da versão impessoal das alternâncias assemelham-se às propriedades de sentenças formadoras de passivas em quimbundo, língua com a qual o português teve contato.
Estratégias de impessoalização do português brasileiro Construções impessoais são, tradicionalmente, consideradas como aquelas que não têm um sujeito com conteúdo semântico 2 • Em uma língua como o português, são construções que, de maneira geral, expressam condições meteorológicas, como em (1) e (2), e sentenças existenciais, de vários tipos, como os exemplos entre (3) e (5): (1 ) (2) (3) (4) (5)
Choveu pra caramba ontem. Tá fazendo um calor que ninguém aguenta. Hoje à noite vai ter uma festa na casa da Cecília. Faz um tempão que eu não encontro o João. O Pedro e a Ana são casados há uns cinco anos.
Entretanto, há outros tipos de construções impessoais em português brasileiro, que não são mencionados com frequência na literatura. Entre eles, estão sentenças como (6), bastante produtivas em certos contextos:
Estratégias de impessoalização no p ortuguês brasileiro
De maneira geral, sentenças como (7) e (8) não são consideradas construções impessoais. Antes, são tidas como resultantes da queda do clítico se em sentenças como: (9) (10)
Tem-se que comprar um computador novo para a sala de projetos. C om a mudança no Lattes, precisa-se verificar tudo, item por item.
Nesse sentido, essas sentenças não seriam completamente impessoais, como as entre (1) e (6), na medida em que elas teriam um sujeito semântico indeterminado, não realizado foneticamente em (7) e (8), mas realizado pelo clítico se, nas versões em (9) e (9). Outros exemplos dignos de nota são sentenças construídas com verbos de alternância causativa, como as entre (11) e (13): (11) (1 2) (13)
Depois que o Ricardo abriu a janela, o ar começou a circular um pouco. Depois que a janela se abriu, o ar começou a circular um pouco. Depois que a janela abriu, o ar começou a circular um pouco.
Em (11), temos a versão transitivo-causativa (ativa) do verbo abrir. Em (12), temos a versão da mesma sentença, com o apagamento do sujeito-agente e sua substituição pelo clítico se. Em (13), temos a versão impessoal da sentença, sem o dítico se. C omo a literatura tem mostrado, o português brasileiro tem exibido uma forte tendência para a perda de seus clíticos3 • A explicação para a falta de sujeito das sentenças (7) e (8) seria, então, naturalmente associada a essa tendência do português brasileiro. O mesmo poderia ser dito para a sentença (13). Mais adiante, vamos mostrar que a explicação para certos fenômenos do português por meio de sua associação à perda dos díticos mascara certas diferenças sutis que existem entre pares de sentenças com ou sem clítico, indicando que investigações mais profundas a respeito disso são necessárias. Voltando à questão da impessoalização, gostaríamos de sugerir que ela seja tratada como um contínuo, que tem, em um de seus extremos, as sentenças transitivas ativas, com sujeito agente-controlador, e, no extremo oposto, sentenças chamadas tradicionalmente de impessoais, como aquelas entre (1) e (5) acima. Entre esses dois polos, há uma variedade de construções, que vão do nível menos impessoal (ou mais agentivo-controlador) para o mais impessoal. O contínuo teria, então, grosso modo, os seguintes níveis: • sentenças transitivas-ativas: (14)
O Pedro construiu aquelas duas casas do outro lado da rua há muito tempo.
• sentenças passivas verbais analíticas: (15)
(6)
É que o meu carro quebrou.
Aquelas duas casas do outro lado da rua foram construídas pelo Pedro há muito tempo.
Entre um tipo e outro, estão construções como as seguintes:
• sentenças passivas verbais sintéticas/sentenças de sujeito indeterminado:
(7)
(16)
(8)
Tem que comprar um computador novo pra sala de projetos. Com a mudança no Lattes, precisa verificar tudo, item por item.
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(1 7)
Construíram-se aquelas duas casas do outro lado da rua há muito tempo. Construiu-se aquelas duas casas do outro lado da rua há muito tempo.
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Á frica no Brasil
• sentenças impessoais, construídas com verbos de alternância causativa: ( 18) Todas as janelas da casa se abriram. (19) Abriram-se todas as janelas da casa. (20) Todas as janelas da casa abriram. (2 1) Abriram todas as janelas da casa. (22) Abriu-se todas as janelas da casa. (23) Abriu todas as janelas da casa. • sentenças passivas adjetivas: (24)
Todas as janelas da casa ficaram abertas.
• sentenças estativas com sujeito inanimado: (25)
Todas as janelas da casa estão abertas.
• sentenças impessoais: (26) (27)
Tem janelas abertas na casa. Tem duas casas do outro lado da rua construídas pelo Pedro.
Ngumas observações devem ser feitas. A primeira delas diz respeito aos exemplos (16) e (1 7). Não estamos mantendo a diferença, geralmente feita na tradição gramatical, entre a passiva sintética e a indeterminação do sujeito. As duas são feitas com o dítico se, e, nos termos da gramática tradicional, se diferenciariam porque as primeiras ocorreriam com verbos transitivos diretos e as segundas, com verbos intransitivos ou transitivos indiretos4 . Os exemplos clássicos dessas construções são: (28) (29) (30)
Vendem-se casas (passiva sin tética). Aqui vive-se bem (indeterminação do sujeito). Precisa-se de balconistas (indeterminação do sujeito) .
Nos casos de passiva sintética, o verbo concordaria com seu objeto direto, como na sentença (28); na indeterminação do sujeito, o verbo assumiria a m arca morfológica de 3 3 pessoa do singular, como nas sentenças (29) e (30). Na primeira dessas duas construções, assume-se que o sujeito do verbo é o complemento direto do verbo e o dítico se é chamado partícula apassivadora; na segunda, assume-se que o sujei to é substituído pelo dítico se, que é chamado índice de indeterminação do sujeito. Como, no entanto, a distinção relativa à concordância verbal que existia entre esses dois tipos de sentença já está se perdendo em português (comparem-se as sentenças (16) e (17)), optamos por não separá-los em duas classes. A segunda observação que deve ser feita é a de que existe uma grande diferença entre a passiva sintética/indeterminação do sujeito, de um lado, e a passiva verbal analítica, de outro: não se pode construir uma passiva sintética com um agente da
Estratégias de impessoalização no português brasileiro
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passiva, como em *Derrubaram-se vdrias drvores pelos lenhadores5• Curiosamente, o mesmo ocorre com as sentenças impessoais construídas com verbos de alternância causativa. Não é possível dizer-se *Todos as janelas (se) abriram pelo João. Esse fato poderia nos fazer pensar que não existem diferenças formais entre as passivas sintéticas e as sentenças impessoais de verbos de alternância causativa construídas com o clítico se. Notem a semelhança entre as sentenças (1 6) e (17), de um lado, e (19) e (22), de outro. Em princípio, isso poderia sugerir que todo verbo transitivo que aceita a passiva sintética deveria, também, aceitar a alternância causativa. Entretanto, existe uma possível diferença que talvez nos leve a manter os verbos de alternância causativa em uma classe separada: trata-se da possibilidade de realização de uma outra construção, chamada passiva adjetiva. Os verbos transitivos que tradicionalmente não são considerados da classe de verbos de alternância causativa, ao que parece, à primeira vista, não podem participar desse tipo de construção, como mostram os exemplos abaixo: (31) (32) (33)
*Aquelas du as casas do o utro lado da rua ficaram construídas há muito tempo. *Todas as frutas ficaram comidas. *Os apartamentos ficaram vendidos/comprados.
Diferentemente, verbos da classe de alternância causativa parecem poder participar desse tipo de construção, como m ostram o exemplo (24) e as sentenças a segui r: (34) (35)
Aquele clube ficou fechado um tempão. M inha televisão ficou quebrada três anos, e eu não senti falta dela.
Entretanto, essa diferença não nos parece ser muito robusta. Nguns verbos que, em princípio, não pertencem à classe de verbos de alternância causativa aceitam participar da construção passiva adjetiva, como mostram os exemplos (36) e (37): (36) (37)
Meu jardim ficou destruído com a reforma. Minha carteira ficou perdida em meio aos destroços.
Ao mesmo tempo, alguns verbos que são considerados membros da classe de ve rbos de alternância causativa não aceitam participar da construção passiva adjetiva, como mostram os exemplos (38) e (39). (38) (39)
(40)
*0 galeão espanhol ficou afundado durante séculos. *A palestra ficou começada. *A argumentação ficou concluída.
Uma outra possível diferença que poderia ser aventada para manter a diferenciação entre sentenças passivas sintéticas e sentenças impessoais de verbos de alternância causativa seria a de que, no caso das sentenças construídas a partir de verbos de alternância causativa, uma outra construção é possível: aquela em que o objeto direto do verbo aparece na
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África no Brasil
posição pré-verbal, como mostram as sentenças (18) e (20). Em um primeiro momento, poderíamos julgar estranha essa ordem de constituintes em sentenças com verbos como construir, que não são, em princípio, considerados membros da classe de verbos de alternância causativa. Dessa maneira, uma sentença como Aquelas casas do outro lado da
rua se construlram hd muito tempo não seria facilmente aceitável no português brasileiro contemporâneo. Tenderíamos a achar que, sem o clítico se (Aquelas casas do outro lado da rua construfram hd muito tempo), a sentença seria ainda menos aceitável. Entretanto,
Estratégias de impessoalização no português brasileiro
(42) (43)
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Aquela firma deu bons brindes no Natal. Minha chácara está dando estas jabuticabas deliciosas.
Vamos, primeiramente, concentrar nossa atenção nas sentenças (41) e (42). Ambas aceitam a passiva verbal analítica, como mostram as sentenças (44) e (45): (44) (45)
Este livro foi dado para a Regina pelo Pedro. Bons brindes foram dados por aquela firma no Natal.
sentenças como essas têm sido atestadas no português brasileiro contemporâneo, o
Além disso, em um registro formal, as sentenças (41) e (42) podem ter uma
que nos faz pensar que a classe de verbos de alternância causativa, nessa língua, está em expansão. Além disso, vamos mostrar mais adiante que, de fato, a construção impessoal com verbos que podem alternar deve ser separada em duas construções diferentes: uma
contraparte - a passiva sintética - em que o argumento externo do verbo é o clítico se, o que torna o agente da ação verbal indeterminado:
com o clítico se e a outra sem o clítico se. Esses dois tipos de construção se diferenciam pelo grau de impessoalização que expressam. O primeiro, que aparece com o clitico se, se assemel ha à passiva sintética, na medida em que o argumento agente-controlador ainda permanece disponível para operações semânticas; o segundo, sem o clítico, se comporta como sentenças com um alto grau de impessoalização, na medida em que o argumento agente-controlador foi totalmente suprimido da di á tese verbal. Curiosamente, os verbos do português que antes não pertenciam à classe de verbos de alternância causativa e que, atualmente, têm dado indícios de uma possibilidade de alteração em sua diátese, não aceitam a construção com se, como em uma passiva sintética, com o objeto lógico do verbo em posição pré-verbal.
(46) (47)
Deu-se este livro para a Regina. Deu-se/Deram-se bons brindes naquela firma no Natal6 .
Vamos, agora, comparar as sentenças (42) e (43). Superficialmente, elas parecem ter a mesma estrutura: o mesmo verbo dar, sujeitos [-animados], e complementos [-animados]. Entretanto, diferentemente da sentença (42), a sentença (43) não pode ser passivizada, como mostra o exemplo (48). Além disso, nem mesmo em um registro formal, ela pode ter uma contraparte em q ue o argumento externo do verbo é o clítico se, como mostra o exemplo (49): (48) (49)
*Estas jabuticabas deli ciosas estão sendo dadas na minha chácara. *Está-se/Estão-se dando estas jabuticabas deliciosas na minha chácara.
Mesmo assim, as sentenças (42) e (43) têm uma propriedade em comum: seus sujeitos podem ser apagados, como mostram as sentenças a seguir:
O aumento da classe de verbos de alternância causativa no português brasileiro Em português brasileiro, diferentes tipos de verbo sofrem mudanças em sua estrutura temática e permitem certas realizações sintáticas de sua estrutura argumental que, em português europeu, ou não são possíveis ou são restritas a uma classe específica e limitada de verbos. Tomemos um verbo como dar, por exemplo. Em português, o verbo
dar é um verbo que, em princípio, não tolera alternâncias de diátese. Prototipicamente, a sentença construída com esse verbo tem a estrutura de (41): (4 1)
O Pedro deu este livro para a Regina.
Uma primeira mudança pode acontecer na estrutura semântica do verbo, fazendo com que seu argumento externo passe de [+animado] para [-animado], como mostram os exemplos (42) e (43):
(50) (51)
0 deu bons brindes naquela firma no Natal. 0 está dando estas jabuticabas deliciosas na minha chácara.
Apesar disso, verifica-se uma outra assimetria entre as duas sentenças. Com respeito à sentença (51), uma vez que a posição de sujeito está vazia, o argumento interno do verbo pode vir a ocupá-la, como mostra o exemplo em (52). A mesma possibilidade não existe para a sentença (50), como mostra o exemplo (53): (52) (53)
Estas jabuticabas deliciosas estão dando na minha chácara. *Bons brindes deram naquela firma no Natal7 .
D entre todas as sentenças possíveis elencadas acima, algumas delas não fazem parte da gramática do português europeu. São elas as sentenças (43), (50), (51) e (52). Segundo alguns de nossos informantes portugueses, a sentença (43) pode ser aceita, com bastante reserva. No que diz respeito à sentença (50), ela poderia ser salva com a inclusão do clítico se, obtendo-se, como resultado, uma sentença como (47). Mas as sentenças (51) e (52) são totalmente inaceitáveis para os portugueses.
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África no Brasil
Uma primeira observação das sentenças (43), (5 1) e (52) sugere que o verbo dar aceita passar por um tipo de processo de impessoalização, pelo qual argumentos internos do verbo, com papéis temáticos considerados mais baixos na hierarquia temática, são realizados na posição de sujeito, quando argumentos com papéis temáticos mais altos, como o de agente, por exemplo, nao estao presentes na diátese verbal. Em (43), um argumento-fonte (minha chdcam), mais alto na hierarquia temática, ocupa a posição de sujeito, enquanto um argumento-resultativo, mais baixo na hierarquia temática, ocupa a posição de complemento do verbo. A sentença (51) mostra que é possível demover o argumento externo para uma posição periférica, deixando a posição de sujeito desocupada. Com isso, o argumento interno pode passar a ocupar a posiçao de sujeito. É isso o que mostra a sen tença (52). Esse processo é o que tipicamente acontece com verbos da classe de alternância causativa. O que chama a atenção é que nem o verbo dar, nem seus equivalentes em várias línguas europeias, fazem parte dessa classe de verbos. Como já foi dito, verbos de alternância causativa são verbos como fichar, abrir, quebrar, afundare muitos outros, que podem ser usados tanto como verbos transitivos, quanto como verbos intransitivos:
(54) (55)
O Ricardo fechou a porta. 0 fechou a porta.
A construção transitiva em (54) tem como contraparte a construção impessoal em (55), em que o argumento-agente do verbo não foi realizado. Do momento em que esse argumento-agente é apagado, o argumento interno do verbo pode aparecer na posição de sujeito, como mostra a sentença (56): (56)
A porta fechou.
Em várias línguas, verbos que permitem essa alternância constituem uma classe bastante fechada. O que parece que está acontecendo no português do Brasil é que essa classe está se alargando8 . Em um primeiro momento, poderíamos pensar que essa propriedade de participar da alternância causativa talvez fosse uma idiossincrasia do verbo dar. Mas, ao levar em consideraçao outras possibilidades, vemos que essa capacidade caracteriza muitos outros verbos do português brasileiro. Tomemos, como wna outra fonte de exemplo, certos verbos do português brasileiro que podem ser considerados membros da classe de verbos spraylload. De acordo com Levin ( 1993: 50-51), no inglês, essa classe de verbos é definida pela sua propriedade de participar do seguinte tipo de alternância: (57) (58) (59) (60)
Joh n sprayed paint on the wall. John sprayed the wall with paint. John loaded hay on the wagon. Johnloaded the wagon with hay.
Estratégias de impessoalização no português brasileiro
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Em português brasileiro, os verbos acertar (em contextos particulares), borrifar e impregnar comportam-se como os verbos spray e load do inglês: (61) (62)
O Rogério acertou a bola na trave. O Rogério acertou a trave com a bola.
(63) (64)
A Joana borrifou tinta no muro. A Joana borrifou o muro com/de tinta.
(65) (66)
A Cecília impregnou perfume na blusa. A Cecília impregnou a blusa com/de perfume.
Mas o que é interessante é que, além dessas alternâncias típicas da classe sprayl load, esses verbos podem participar de duas outras construções: uma em que os argumentos-agente dos verbos são apagados, como mostram as sentenças (67) a (69); e outra em que o argumento interno do verbo é realizado na posição de sujeito, como mostram as sentenças (70) a (72): (67) (68) (69)
0 Acertou a bola na trave. 0 Borrifou o muro (todo) de tinta. 0 Impregnou a blusa (toda) de perfume.
(70) (71) (72)
A bola acertou na trave. O muro borrifou (todo) de tinta. A blusa impregnou (roda) de perfume.
Seria possível pensar-se que esse tipo de alternância é, de alguma maneira, um processo semelhante à passivização, sem as alterações morfológicas sofridas pelo verbo: o sujeito da sentença transitiva não é realizado e o objeto direto é promovido a uma posiçao sintática mais proeminente. Uma outra possibilidade, também, seria considerar essas construções semelhantes às chamadas sentenças passivas sintéticas ou de sujeito indeterminado, em que o clítico se não aparece na superfície da sentença: (73)
No litoral norte, alugou(-se) muita casa no verão passado.
Entretanto, existe uma diferença fundamental en tre construções passivas (analíticas ou sintéticas) e de indeterminação do sujeito, de um lado, e construções impessoais com verbos de alternância causativa, de outro. Nas primeiras, o sujeito pode não aparecer na superfície da sentença, mas, de alguma forma, continua disponível para operações semânticas. Ele pode, por exemplo, servir como antecedente para um sujeito nulo de uma sentença encaixada. D esse modo, em (74) e (75), o referente do sujeito da expressao verbal fozer passar é a pessoa que abriu a porta: (74) (75)
A janela foi quebrada para0 fazer passar o piano. ?A janela se quebrou para0 fazer passar o piano.
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As construções passivas e de indeterminação do sujeito também aceitam a presença dos chamados advérbios orientados para o sujeito, tais como de propósito, deliberadamente, etc., indicando que o argumento que tem o controle do processo ainda está disponível: (76) (77)
A janela foi aberta de propósito/deliberadamente. ?A janela se quebrou de propósito/deliberadamente.
D iferentemente, para a construção impessoal dos verbos de alternância causativa, nenhuma dessas possibilidades está aberta: (78) (79)
*A janela quebrou para0 fazer passar o piano. *A janela abriu de propósito/deliberadamente.
O que parece que acontece, então, é que, nos casos de alternância causativa, ocorre uma verdadeira alteração na diátese verbal: o número de argumentos do verbo e, consequentemente, de papéis temáticos atribuídos por ele é reduzido. O argumento agentivo (ou controlador) é totalmente apagado da estrutura argumentai e temática do verbo. Essa diferença entre, de um lado, construções passivas e de indeterminação do sujeito, e, de outro, construções de alternância causativa parece explicar, parcialmente, os dados apresentados acima. Vamos retomar as sentenças com o verbo dar, mais especificamen te as de número (42) e (43), repetidas aqui para maior conveniência: (80) (81)
Aquela firma deu bons brindes no Natal. Minha chácara está dando estas jabuticabas deliciosas.
Resumindo o que os dados mostraram até o momento, temos o seguinte: 1. Vimos que (80), mas não (81), aceita a construção passiva e a construção de indeterminação do sujeito: (82) (83) (84) (85)
Bons brindes foram dados por aquela firma no Natal. Deu-se/deram-se bons brindes naquela firma no Natal. *Estas jabuticabas deliciosas foram dadas pela minha chácara. *Deu-se/deram-se estas jabuticabas deliciosas na minha chácara.
2. Vimos, ainda, que tanto (8 0) quanto (8 1) aceitam o apagamento do clítico sujeito: (86) (87)
Deu bons brindes naquela firma no Natal. Está dando estas jabuticabas deliciosas na minha chácara.
3. Finalmente, vimos que, uma vez que a posição de sujeito esteja liberada, (8 1), mas não (80), aceita que o complemento do verbo seja promovido à posição de sujeito:
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Estas jabuticabas deliciosas estão dando na minha chácara. *Bons brindes deram naquela firma no Natal.
Nossa explicação para esses fatos, até este ponto, é a seguinte. Em (80), o verbo darpreservousuaestruturaconceitual: não houve qualquer alteração dediátese. A única diferença que existe entre (80) e a construção prototípica com o verbo dar em (41) é a de que o sujeito da sentença é, agora, inanimado. Entretanto, como seu referente é uma instituição, é possível preservar pelo menos algumas de suas características de agentividade e controle. Desse modo, a passivização é possível, como foi visto em (82). Do mesmo modo, a sentença também pode ser construída com o clítico se, como em (83). Ainda, na medida em que, em construções passivas, o argumento agente/controle permanece disponível para operações semânticas, é possível que o sujeito nulo de um verbo em oração encaixada sejacorreferente com o argumento agente/ controle do verbo da oração principal, como em (90) e (91). Da mesma forma, é possível acrescentar à sentença um advérbio orientado para o sujeito, como em (92) e (93): (90) (91) (92) (93)
Bons brindes foram dados para 0 satisfazer os clientes. Deu-se/deram-se bons brindes para0 satisfazer os clientes. Bons brindes foram dados deliberadamente/de propósito. Deu-se/deram-se bons brindes deliberadamente/de propósito.
O argumento agente/controle também está disponível em uma sentença como (86), que é uma versão da sentença (83) sem o clftico. A aceitabilidade das sentenças (94) e (95) confirmam esse fato: (94) (95)
Naquela firma, deu/deram bons brindes para 0 satisfazer os clientes. Naquela firma, deu/deram bons brindes deliberadamente/de propósito.
No caso da sentença (80) e de todas as outras construções que a tomam como base, a estrutura lexical conceitual (ELC) do verbo dar deve ser a seguinte, nos termos do modelo de Jackendoff 1983, 1990: ELC 19 : CS ([aquela firma], [GO ([brindes], [FROM [aquela firma] {TO [clientes])}]] [ AFF ([aquela firma], {[clientes]}) Essa estrutura contém duas camadas (tiers) : a primeira, correspondente à primeira linha da estrutura, é a camada temática; a segunda, correspondente à segunda linha da estrutura, é a camada da ação. Para Jackendoff, para que um argumento tenha o papel de agente/controle (que Jackendoff chamaActor), é necessário que, na estrutura conceitual, ele seja argumento tanto de um funtor CAUSE (CS), na camada temática, quanto de um funtor AFFECT (AFF), na camada da ação. Diferentemente, na sentença (81), o verbo dar parece ter passado por uma alteração de diátese. A estrutura lexical conceitual do verbo, agora, é a seguinte:
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ECL 2 10: [CS ([minha chácara], [INCH [BE ([jabuticabas deliciosas], [AVAILABLE)]]
Nesse caso, a estrutura de dar apresenta apenas a camada temática. O sujeito do verbo é argumento de um funtor CAUSE (CS), mas não é argumento de um funtor AFFECT. Nos termos de Jackendoff, esse argumento não tem um papel temático de Ator, na medida em que não tem as características de agentividade e controle. Houve, então, uma mudança na qualidade dos papéis temáticos dos argumentos do verbo. G ostaríamos de sugerir que é a falta da camada da ação na estrutura conceitual da sentença (81) que impede sua passivização e a indeterminação de seu sujeito, como mostram (84) e (85) . Mas, o que dizer das sentenças (87) e (88)? A sentença (87) não pode ser considerada um exemplo de queda de clítico, como a sentença (86). Na realidade, como mostramos em (85), a versão com o clítico nem é mesmo possível nesse caso. É importante observar, também, que, no caso de (87), não é possível acrescentar uma oração encaixada com sujeito nulo, nem é possível usar um advérbio orientado para o sujeito : (96) (97)
*Está dando estas jabuticabas na minha chácara para0 matar o desejo das crianças. *Está dando estas jabuticabas na minha chácara deliberadamente/ de prop6sito.
Ainda, notem que, no caso de (87) , uma vez que a posição de sujeito é liberada, o objeto direto pode se mover para a posição pré-verbal, como mostra o exemplo (88). Lembrem-se de que o mesmo não é possível para a sentença (86), como mostra (89). Esses faros sugerem que o verbo dar pode sofrer ainda uma outra alteração de diátese, quando ele tem uma estrutura lexical conceitual como a em ELC 2: a alternância cansativa. O fumo r CAUSE pode ser completamente eliminado e seu argumento pode ser real izado na periferia da sentença como um locativo. Isso permite a promoção do objeto direto do verbo à posição de sujeito. A supressão completa do argumento de CAUSE tam bém é uma das causas para o impedimento de uma oração encaixada com verbo n o infinitivo e sujeito nulo e para o uso de advérbios orientados para o sujeito. O que torna esses fatos ainda mais interessantes é que as mesmas possibilidades têm sido atestadas para outros verbos transitivos ativos, como fozer (98), destruir (99), construir (100) , copiar (101), entre outros, sugerindo que a classe dos verbos de alternância causativa, do português brasileiro, está em expansão: (98) O xerox fica fazendo enquanto a gente vai almoçar. (99) Com a reforma, meu jardim destruiu inteirinho. (100) Esse prédio tá construindo desde que vendeu o terreno onde era a casa do vovô. (1 O1) Esse tipo de material vai copiar bem rápido.
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Algumas peculiaridades da versão impessoal das sentenças construídas com verbos de alternância causativa em português brasileiro Vamos voltar às sentenças (54) , (55) e (56) , que são os prot6tipos d a exemplificação da alternância cansativa. Retomamos as sentenças com nova numeração para facilitar a leitura: (1 0 2) O Ricardo fechou a porta. (103) 0 Fechou a porta. (104) A porta fechou.
De maneira geral, o entendimento que se tem dessa alternância do português do Brasil é a de que ela segue o padrão de outras línguas românicas, em que o apagamento do argumento agente é marcado pela presença do clítico se. Como o português brasileiro tem perdido seus clíticos, a explicação natural é a de que sentenças como (1 03) e ( 1 04) resultam das formas Fechou-se a porta, ou A porta se fechou, ap6s a queda do dítico se. Entretanto, essa não podeserahist6ria inteira. Primeiro, porque, como mostramos acima, quando um verbo como dar sofre a alternância causativa, não é possível marcar essa alternância com o clítico se. É isso o que mostra o exemplo (85), aqui retomado: (105) *Deu/Deram-se estas jabuticabas deliciosas na minha chácara. (106) *Estas jabuticabas deliciosas se deram na minha chácara
O mesmo parece ser verdade para verbos que n ão são membros típicos da classe de verbos de alternância cansativa 11 : (107) *0 xerox fica se fazendo enquanto a gente vai almoçar. (1 08) *Com a reforma, meu jardim se destruiu inteirinho. (1 09) *Esse prédio tá se construindo desde que vendeu o terreno onde era a casa do vovô. (11 O) *Esse tipo de material vai se copiar bem rápido.
Segundo, vejam o que acontece quando acrescentamos às sentenças com o verbo fechar um modificador que pode ter tanto a forma de um adjetivo invariável, quanto de um advérbio terminado em -mente: (111) A porta fechou rápido/rapidamente. (11 2) A porta se fechou *rápido/rapidamente.
Quando a versão impessoal do verbo fichar aparece sem o clítico se, podemos ter a modificação feita tanto pelo adjetivo invariável, quanto pelo advérbio em
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-mente; entretanto, quando o verbo é acompanhado do clítico se, apenas a presença do advérbio em -mente é aceitável. Temos, então, o seguinte: (i) em alguns casos de alternância causativa, o cl.ftico se é totalmente inaceitável; e (ii) existe uma diferença de comportamento de sentenças impessoais construídas com verbos de alternância causativa, no que concerne ao uso de modificadores. Esses fatos levantam dúvidas a respeito da ideia de que sentenças como (1 03) e (104) são apenas decorrências do fato de que o português brasileiro está perdendo seu sistema de clíticos. Mais ainda, esses fatos sugerem que é necessário investigar a versão impessoal das sentenças de alternância causativa em mais detalhes, para ver como elas se comportam diante de diferentes fatores. A seguir, vamos explorar um pouco mais o comportamento dessas sentenças em relação à modificação.
A modificação nas sentenças impessoais resu ltantes da alternância ca usativa Hoje em dia, é indiscutível o papel do evento nos estudos de semântica verbal. Desde Davidson (1967), o evento tem sido representado como uma variável-argumento entre os argumentos de um predicado. Essa visão, no entanto, não permite acessar a estrutura interna desse evento. Vários autores têm apontado a necessidade de estabelecer uma distinção mais refinada da estrutura do evento para que se possa dar conta de vários fenômenos linguísticos, entre eles o escopo da modificação. No caso das sentenças envolvidas na alternância causativa, Parsons propõe que a versão transitiva da alternância envolve três eventualidades. Ele justifica sua análise, em primeiro lugar, com a observação de que há uma ambiguidade com o modi6.cador behind the museum na sentença do inglês: (113) Mary flew her kite behind the museum. Essa sentença pode ter duas interpretações: uma, a de que Mary está empinando pipa atrás do museu; outra, a de que a pipa acabou indo voar atrás do museu, independentemente de Mary estar lá. Para dar conta dessa dupla possibilidade de interpretação, ele propõe que a eventualidade de Mary fazer algo e a eventualidade de a pipa voar devem corresponder, na forma lógica da sentença (1 13), a dois eventos diferentes relacionados pelo operador CAUSE. Neste capítulo, chamamos evento causador a eventualidade de o agente fazer algo, e evento causado a eventualidade da qual participa o argumento tema. Para sustentar suas análises, Parsons se vale das diferenças de escopo dos modificadores. O autor aponta que, nas alternâncias, de maneira geral, instrumentos parecem incluir, sob seu escopo, o evento causador, enquanto advérbios de direção e movimento modificam o evento causado. Tomemos, como exemplo, a seguinte sentença causativa:
Estratégias de impessoalização no português b rasileiro
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(114) Mary fel led the tree imo the pond with a chainsaw. Nela, o modificador into the pond se aplica à queda da árvore (evento causado) e o modificador with a chainsaw se aplica ao que Maq fez (evento causador). É por isso que, na versão intransitiva da sentença, não é possível usar o modificador with a chainsaw sem causar estranheza: (115) *The tree fell with a chainsaw. A terceira eventualidade contida na forma lógica das sentenças que participam da alternância causativa é um estado que se relaciona ao evento causado pelo operador BECO ME. C hamaremos essa terceira eventualidade de estado resultante. Essa análise tem como consequência o fato de que modificadores podem tomar sob seu escopo qualquer uma das eventualidades contidas na forma lógica dessas sentenças. Tomemos, por exemplo, uma sentença como (116), também discutida em Parsons (1994): (116) We loaded the wagon with hay with pitchforks. Parsons analisa a diferença que existe entre a modificação feita pelo constituinte
with hay, e pelo constituinte with pitchforks. Para o autor, o constituinte with pitchforks modifica o evento causador, enquanto o constituinte with hay modifica o estado resultante. Em outras palavras, with pitchforks é o instrumento com o qual causamos o carregamento da carroça, e with hay expressa o material com o qual a carroça ficou/ está carregada. Uma distinção ainda mais fina precisa ser feita, quando se consideram sentenças do inglês como as seguintes: (1 17) Agatha closed the door tight. (1 18) Agatha hammered the metal flat. Aparentemente, essas duas sentenças do inglês são semelhantes e poderiam, ambas, ser consideradas sentenças " resultativas". Entretanto, do ponto de vista semântico, existem diferenças importantes entre elas. Em (117), o adjetivo tight modifica o estado resultante, enquanto que, em (118), o adjetivo jlat é uma etiqueta resultativa (resultative tag), que expressa o próprio estado resultante de estar plano. Parsons representa a forma lógica dessas duas sentenças, respectivamente, da seguinte maneira 12 : FL 1: representação semântica da sentença (1 17): (3e) [Cul(e) & Agent (e, Agatha) & (3e') [Cu! (e') & Theme (e', doar) & CAUSE (e, e') & (3s) [Being-closed (s) & T heme (s, door) & Hold(s) & BECOME (e's) & Being-tight (s)] ]]
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África no Brasil
FL 2: representação semântica da sentença (118): (::Je) [Cul(e) & Agent (e, Agacha) & Hammering(e) & Them e (e, metal) & (::Je') [Cu! (e') &Theme (e', metal) & CAUSE (e, e') & (::ls) [Being-A.at(s) & Theme(s, m etal) & Hold(s) & BECOME (e', s)]]] Em termos intuitivos, a diferença é a seguinte: em (117), o estado resultante do evento de fechar, ou seja, o estado de estar fechado, já está embutido no significado do verbo dose. O estado de estar apertado, being tight, modifica esse estado resultante do evento causador; diferentemente, em (118) , o verbo hammering traz incorporado o modo como o evento causador afeta o metal. O estado resultante de estar chato, beingjlat, não é parte da denotação do verbo, mas é construído pela contribuição feita pela presença da etiqueta resultativa, ou seja, do adjetivo flat. Isso posto, vamos nos concen trar inicialmente na análise da sentença (117). O verbo da sentença (117) é um verbo de alternância causativa. Sendo assim, ele pode construir uma sentença impessoal, como a seguinte: (119) The door closed. Para Parsons, a forma lógica dessa sentença é a seguinte:
Estratégias de impessoalização no português brasileiro
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(122) Meu cachorro destruiu o jardim todo/completamente. (123) A reforma destruiu o jardim todo/completamente. (124) Com a reforma, meu jardim destruiu todo/completamente. Em ( 122), temos uma sentença transitivo-ativa construída com o verbo destruir. Em (123), o verbo destruir· continua em sua versão ativa, mas a sentença já retrata uma modificação semântica, que está no fato de o sujeito do verbo ser inanimado, não podendo, portanto, ter um papel de agente controlador. Em (124), temos a versão impessoal da sentença (123). Todas as sentenças, desde a transitiva-ativa até a impessoal, podem ser modificadas pelo quantificador todo o u pelo advérb io completamente. Novamente, essa possibilidade comprova que a m odificação está operando sobre o estado resultan te e não sobre a agentividade ou evento causador. Do contrário, a sentença impessoal não aceitaria a presença de modificadores como todo o u completamente. Uma evidência mais robusta de que, na versão impessoal das sentenças de alternância, só são possíveis modificadores que operam sobre o estado resultante vem das seguintes sentenças: (1 25) Eu enchi minha estante com/de livros. (I 26) Minha estante encheu *com/de livros.
FL 3: representação semântica da sentença (119): (::Je) [Cul(e) & Theme (e, doar) & (::Js) [Being-closed(s) & Them e (s, door) & Hold(s) & BECOME (e,s)]] Em termos intuitivos, essa forma lógica diz que, na versão impessoal, o evento causador é eliminado. O q ue há é um evento que resulta num estado em que a porta está fechada. Já em (11 5), embora a análise proposta seja semelhante à proposta para (114), não há um verbo causativo. Daí a diferença na contribuição do adj etivo modificador e, também, a impossibilidade de construção de uma versão intransitiva para (1 15). Voitemos para os dados do português brasileiro. Considerem-se as sentenças abaixo:
(I 20) Agacha fechou a porta d ireito. (12 1) A porra fechou direito. C omo vimos anteriormente, a alternância causativa, em português brasileiro, elimina completamente a camada da ação da estrutura conceitual do verbo. Sendo assim, e levando em consideração as sentenças (I 20) e ( 12 1), devemos entender que o adjetivo direito está modificando o estado resultante, tanto na versão trans itiva, q uanto na versão impessoal da sentença. Se assim não fosse, a modificação não seria aceitável na versão impessoal. Vamos exami nar o comportamento do modificador mais de perto. Observemos as segutntes sentenças:
A versão transitiva, em (125), mostra que o evento de encher a estante pode ser modificado tanto por um sintagma preposicio nal encabeçado por com, quanto por um sin tagma preposicional encabeçado por de. Diferentemente, a versão impessoal, em (126), só aceita a modificação com de. Essa ass imetria se mantém com todos os verbos da classe spraylload vistos a nteriormente'\ agui retomados. (127) Eu borrifei a parede com/de tinta. (128) A parede borrifou toda *com/de tinta. (129) A Maria impregnou a blusa com/de perfume. (130) A blusa impregnou toda *com/de perfume. Essa assimetria confirma que, na versão impessoal das sentenças de alternância causativa, o agente causador do estado não está disponível para operações semânticas. Afinal, com é uma preposição que introduz o instrumento usado pelo agente da ação, portanto opera sobre o evento causado r. Como o agente não está disponível, não é possível o uso dessa preposição. Mais uma vez, podemos comprovar a diferença que existe entre as sentenças impessoais resul tantes da alternância causativa e construções passivas verbais analíticas. Nas últimas, é possível o uso do modificador introduzido por com, na medida em que o agente da ação continua disponível para operações sem ânticas. É isso o que mostram os exemplos a seguir:
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( 131) A parede foi borrifada com/ de tinta. (132) A blusa foi impregnada com/de perfume. Vamos voltar, agora, à questão da presença ou ausência do clítico se na versão impessoal das sentenças de alternância causativa. Vejam o que acontece com sentenças construídas com verbos da classe spray!load, quando usamos o clítico se: (133) A blusa se impregnou com/de perfume.
Diferentemente do que acontece na sentença impessoal sem o clítico, a sentença construída com o clítico se aceita a modificação tanto de um sintagma preposicional encabeçado por com, quanto por de. Isso sugere que, na versão com o clítico, o argumento agente/causa ainda está disponível para operações semânticas, como ocorre na passiva. Se essa ideia estiver correta, o clftico se que aparece nessas sentenças é uma marca de passiva sintética ou indeterminação do sujeito, e não de alternância causativa, na medida em que sentenças como (133) se comportam como construções passivas, e não como construções impessoais. Isso corrobora a assimetria que apresentamos anteriormente, com as sentenças (111) e (112), aqui retomadas: (134) A porta fechou rápido/rapidamente. (135) A porta se fechou *rápido/rapidamente.
Se nossa análise, até o momento, estiver no caminho certo, o que essas sentenças estão nos dizendo é que rapidamente é um modificador que pode ter escopo tanto sobre a parte da causado evento, quanto sobre o estado resultante. Diferentemente, o adjetivo rdpido só pode ter escopo sobre o evento causado. É preciso entender por que isso é assim.
Estratégias d e impessoalizaç ão no português bra sileiro
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No que tange aos adjetivos, a autora di z que eles devem expressar uma propriedade relaciona! ou uma propriedade física. No caso de eles expressarem uma propriedade física, o adjetivo deve estar na forma superlativa 14. Tomemos alguns dos exemplos de Lobato, como os seguintes: (136) O engenheiro construiu a ponte sólida. (137) O João pintou a casa bem amarelinha.
(I 38) Ela costurou a saia justa/justíssima. (139) Ela poliu o carro bem polidinho.
A primeira observação que podemos fazer é a de que os verbos que constroem essas sentenças são verbos de alternância causativa, na medida em que aceitam uma versão impessoal: (140) Esta ponte só construiu depois de uma árdua negociação entre o governo
e os ambientalistas. (141) Eu não vou trocar o carpete enquanto a casa não pintar. (142) Eu vou ter que esperar minha saia costurar pra poder sair daqui. (143) Meu carro tá bonito porque poliu ontem.
Mas, notem que, nesses casos, não podemos usar o clítico se: (144) * Esta ponte só se construiu depois de uma árdua negociação entre o
governo e os ambientalistas. (145) *Eu não vou trocar o carpete enquanto a casa não se pintar. (146) *Eu vou ter que esperar minha saia se costurar pra poder sair daqui. (147) *Meu carro tá bonito porque se poliu ontem.
A modificação do resultado do evento Vamos avançar um pouco mais em nossa descrição e incorporar a ela certas construções do português brasileiro, que Lobato (2004) considera serem exemplos de sentenças resultativas. Para Lobato, em português brasileiro, construções resultativas só são licenciadas por certos tipos de verbos e por certos tipos de adjetivos. Dentre os verbos transitivos, podem participar de construções resultativas os verbos dos seguintes tipos semânticos: 1. 11.
111.
verbos de criação, como criar, construir; verbos de criação com o modo de criação incorporado, como escreve1; desenhar, pintar (no sentido de criar uma imagem), retratar; verbos de ação sobre um objeto preexistente, com um estado causado pela ação do verbo, como cortar, costurar, pintar (no sentido de cobrir de tinta), colocar, arrumar.
Vejam, também, que, quando incluímos o modificador do estado resultanre na versão impessoal das sentenças, acarretamos estranheza: (148) ?*A ponte construiu sólida. (149) ?*A casa pintou bem amarelinha. ( 150) ?*A saia costurou justa/justíssima. (15 1) ?*O carro poliu bem polidinho.
O interessante, porém, é que a mesma estran heza se verifica, quando construímos paráfrases para essas sentenças, usando a passiva adjetiva! do português brasileiro, construída com o auxiliar ficar. (152) ?*A ponte ficou construída sólida. (153) ?*A casa ficou pintada bem amarelinha. (154) ?*A saia ficou costurada justa/justíssima. (155) ?*0 carro ficou polido bem polidinho.
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Por outro lado, se trocarmos os modificadores, acrescentando às sentenças modificadores que denotam completude ou incompletude do estado atingido pela ação do verbo ou que denotam a velocidade da chegada ao resultado, a estranheza desaparece, tanto nas sentenças impessoais, quanto nas sentenças com a passiva adjetiva: (156) (157) (158) (159)
A ponte construiu rápido./A ponte ficou construída rápido. A casa pintou toda./A casa ficou toda pintada. A saia costurou direito./A saia ficou costurada direito. O carro poliu inteiro./0 carro ficou inteiro polido.
Portanto, em relação às possibilidades de modificação, a forma impessoal da alternância parece apresentar as mesmas restrições observadas em passivas adjetivas construídas com o verbo ficar.
Estratégias de impessoalizaç ão no português brasileiro
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o pronome sujeito indeterminado eles. Assim, a hipótese é a de que, em quimbundo, de uma sentença com deslocamento à esquerda, como a em (160), passa-se a uma sentença como a em (161), em que, além do deslocamento à esquerda, aparece um pronome indeterminado, e chega-se à passiva em (162): (160) Deslocamento à esquerda Nzua João
Aana cnanças
a-mu-mono elas-ele-viram
João, as crianças o viram. (161) Deslocamento à esquerda com pronome indeterminado Nzua a-muJoão eles (impessoal) ele João, elas o viram (anafórico/ativo)
-mono viram
João, ele foi visto (passiva impessoaOJ
Em busca de uma explicação
(162) Passiva
A seguir, apresentamos as linhas gerais do que nos parece ser o caminho para o avanço das investigações dos dados levantados na seção anterior. Não se trata de
Nzua João
wna explicação para os fatos apontados, mas sim das hipóteses iniciais que temos a
João foi visto por mim (lit. João, eles o viram por mim)
intenção de explorar para con tinuar a pesquisa. Essas hipóteses incluem a investigação da ripologia das construções passivas e dos chamados "verbos de qualidade" na gramática das línguas africanas. Givón (2002: 208-209) apresenta um levantamento tipológico das construções passivas e mostra que existem cinco tipos de passivas estruturais: 1.
11.
111 .
IV.
v.
passivas estativas adjetivas, que ocorrem em llnguas como o inglês, e que podem ser consideradas as passivas "oficiais" do português brasileiro; passivas reflexivas, que ocorrem em línguas como o espanhol e o italiano; passivas adversivas de verbos seriais, que ocorrem em línguas do sudeste asiático, como o chinês mandarim, o japonês, o tailandês e o vietnamita; passivas de nominalização do sintagma verbal, que ocorrem em ilnguas como o ute; passivas com sujeito indeterminado e deslocamento à esquerda, que ocorrem nas línguas bantas, como o quimbundo.
De particular interesse para este trabalho é o quinto tipo, que se verifica no quimbundo, uma língua falada em Angola, cuja participação no léxico do português brasileiro tem sido atestada em vários artigos. Segundo Givón, esse quinto tipo de passiva surgiu diacronicamente de (e ainda se parece estruturalmente com) uma construção de deslocamento à esquerda do argumento interno do verbo, formada com
a-mu-mono elas-ele-viram
kwa por
Meme mim
As construções (161) e (162) do quimbundo têm vários aspectos semelhantes às construções do português brasileiro que estamos estudando. Do ponto de vista formal, primeiramente, o verbo se mantém na forma ativa. Em outras palavras, essa construção não é do tipo de uma passiva adjetivai, construída com o particípio passado dos verbos. Segundo, o argumento interno do verbo, Nzua, não aparece em sua posição canônica, tendo sido deslocado para o início da sentença. Terceiro, trata-se de uma construção impessoal: o argumento-agente não é relevante. Do ponto de vista informacional, essa construção é semelhante às construções do português brasileiro que nos interessam, na medida em que existe uma promoção de um argumento não agentivo para uma posição de maior proeminência discursiva da sentença. E m uma perspectiva semelhante à nossa, Galves entende que uma das propriedades mais marcantes da sintaxe do português brasileiro é a ocorrência de construções nas quais "um verbo transitivo vem acompanh ado somente do seu argumento interno, em posição pré-verbal, sem que nenhuma marca flexionai indique modificação na projeção da estrutura argumentai do verbo" (1998: 19). A esse respeito, a autora discute sentenças como a seguinte: (163) A cueca de dinossauros do Calvin está lavando. Para ela, a essa sentença podem ser atribuídas duas estruturas: em uma, o constituinte a cueca de dinossauros do Calvin é sujeito e uma marca plural de co ncordância no verbo indicaria essa relação; em outra, esse constituinte é deslocado
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à esquerda e o sujeito é um pronome nulo com interpretação indeterminada. Uma estrutura como a segunda sugerida por Galves é semelhante à estr utura de uma sentença como (161), do quimbundo. É possível, então, que os dados do português, discutidos na seção anterior como exemplificação de diferentes possibilidades de alternâncias de diátese, estejam revelando um tipo de construção da língua, bastante semelhante à passiva do quimbundo, mas muito diferente das passivas estativas adjetivas. Essa hipótese nos posiciona contrariamente à hipótese que vem sendo defendida por um conjunto de trabalhos de pesquisadores da sintaxe do português brasileiro 15• Para esses pesquisadores, a sentença intransitiva da alternância causativa resulta de um processo geral de mudança em curso no português brasileiro, que tem como consequência a perda dos díticos. No caso específico de nosso interesse, a sentença intransitiva da alternância causativa seria um caso de perda do clítico se. Lembramos que, nos termos da tipologia do Givón, sentenças como as que estamos analisando, acompanhadas do dítico se são justamente o protótipo das passivas românicas. Sentenças como Estas jabuticabas deliciosas estão dando na m i nha chácara são a forma que o português brasileiro encontrou para realizar uma espécie de impessoalização, a partir de sentenças em que nao há argumento agente-controle. Essa possibilidade explicaria uma sentença, como a que foi notada por nós, em uma estação de metrô, quando, ao ver que o trem que estava parado na estação já estava fechando as portas, enquanto ela ainda estava descendo a escada, uma moça disse para a outra:
Estra tégias de impessoalização no português brasileiro
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Um outro ponto que merece ser levado em consideração é o segu inte: nas línguas african as, parecem ser raras (ou talvez inexistentes) sentenças adjetivas predicativas em que uma qualidade ou um estado (denotados por um adjetivo) são atribuídos ao sujeito por meio de verbos como ser, estar, fica r (que carregam as marcas de concordância, tempo, aspecto e modo). lnteressantemente, segundo Givón, foi precisamente desse tipo de construção que as passivas adjetivas de línguas como o inglês derivaram diacronicamente. Primeiramente, se essa correlação estiver no caminho certo, pode-se ter uma pista sobre as razões pelas quais línguas africanas como o quimbundo não têm passivas estativas adjetivas, como as do inglês. Em segundo lugar, nas línguas africanas, o tipo de predicação que fazemos por meio de verbos como ser, estar, ficar+ adjetivo é realizado pelo que é conhecido na literatura como verbos de q ualidade ou estado. Trata-se de itens lexicais designadores de qualidade ou estado, que atribuem essas propriedades ao sujeito por predicação e que, ao mesmo tempo, carregam as marcas da flexão verbal . Como vimos, em português brasileiro, no caso da alternância causativa, existe uma assimetria nas possibilidades de modificação apresentada pelas sentenças transitivas, de um lado, e pelas sentenças impessoais, de outro: as sentenças impessoais apresentam as mesmas possibilidades de modificação que as sentenças passivas adjetivas. É possível que esse comportamento possa ser explicado pelo fato de que, na versão impessoal, os verbos sejam mais denotadores de qualidade do que designadores de uma ação ou processo. Novamente, estamos deparando com a possibilidade de associar um comportamento peculiar da variante brasileira do português a características presentes em línguas africanas, não atestadas em línguas indo-eUl·opeias.
(164) Desencana, não adianta correr. Esse trem já perdeu! Agora tem que esperar dez m inutos até o próximo. Ora, perder o trem é um predicado não ativo, no sentido de que seu sujeito não é um agente controlador. Portanto, ele não pode ser passivizado por meio de uma passiva estativa adjetivai, como mostra o par de exemplos a seguir: (165) A moça perdeu o trem. (I 66) *0 trem foi perdido pela moça. Sendo assim, pensamos que vale a pena explorar as possibilidades de ampliação de construções impessoais no português brasileiro, que estão distanciando essa língua das demais línguas românicas, e aproximando-a de línguas não indo-europeias, como o quimbundo, por exemplo. Na medida em que o quimbundo foi uma das línguas com as quais o português teve um grande contato durante o período de colonização, não podemos deixar de considerar a hipótese de que o contato com povos e línguas africanas tenha tido alguma função nesse processo de distanciamento entre o português brasileiro e as demais línguas românicas, em especial o português europeu.
Conc lusão Atestar a participação das línguas africanas na formação do português brasileiro tem se mostrado tarefa muito difícil, tanto pela falta de dados linguísticos que lhe possam dar sustentação, como pela carência de documentos históricos. Este artigo, ao constatar que a busca de fatos linguísticos em níveis da gramática da língua como léxico e morfologia mostrou-se pouco frutífera, volta-se para o nível da sintaxe. Partindo do estudo das estratégias de impessoalização que emergiram em português brasileiro, distiguindo-o do português europeu, este trabalho levanta a hipótese de que a versão impessoal das construções de alternância causativa seja um dos fatos que possa indicar a participação africana, uma vez que essa é a estratégia utilizada para a formação de passivas no quimbundo, uma língua africana com a qual o português teve contato atestado. Ao assumir essa hipótese, este trabalho se opõe a um conjunto de trabalhos sobre a sintaxe do português brasileiro que imputam a origem da versão impessoal das al ternâncias à queda do clítico se das sentenças passivas sintéticas/indeterminação do sujeito.
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Notas 1
Verbos da alternância causativa são aqueles que aceitam tanto a forma rransitivo-causariva quamo a forma impessoal. Enrre eles, estão verbos como abril; Jechm; quebrm; afimdm: Verbos equivalentes a esses, em o utras lfnguas ind o-europeias têm um comporramemo semelhante ao atestado no português. f: comum, na literatura de teoria gramatical, fazer-se referência a esses verbos corno "verbos da classe de altemincia causativa", ou "verbos da classe de alternância ergariva", ou "verbos da classe de altemincia causariva-ergativa". Ver Chagas ( 1999) a respeito d a impropriedade da terminologia usada para a designação desses verbos. l Em algumas lfnguas, como o inglês, o fran cês, entre outras, sentenças impessoais têm um sujeira g ramatical, exigido po r caracterfsticas da rnorfossinraxe dessas lfnguas. Exemplos são: Ir is raining; ll pleur; Thtr~ is a man in rhe room; Jl y a un homme dans la salle. De maneira geral, assume-se que esses sujeiras são expletivos, rendo apenas uma fo rma fonológica não associada a um conrcúdo semântico. 3 Ver, em especial, os trabalhos em Roberts & Kato (1993) e em Galves (2001). ~ Para uma explicação para essa diferença, feita no âmbito da Gramática Gerariva, ver Nunes (1990). 5 Naro ( 1976) observa que, até o século XVI, atesta-se a ocorrência de sentenças passivas sintéticas com a expressão do agenre da passiva. Com efeiro, como observa José Luiz Fiorin (c. p.), Os Lusíadas, de Camões, traz uma grande quantidade de exemplos de passivas sintéticas com agenre da passiva introduzido pela preposição dt (I, 52, 3 e 4; X, 92, 7 c 8; V, 7, 7 e 8), ou pela preposição por (V, 77,3 e 4; VII, 55, 5 e 6; VIII 48, I e 2):
Por tlt o mar rtmoto 11avtgamos Q11t JÓ dos feios focm u ltavtga (I. 52, 3-4) Olha ma gmu roda, qut u habita Dma gellte sem Lti, quau i11jinira (X 92, 7-8) Onde o Cabo Aninário o 110111e pudt Chamando-u doJ IIOJJOS Cabo W!tde (Y, 7, 7-8) Diztm qu~ por 11avu qut tm gmndeZII igualam À; noJJIIJ, o uu mar u corta t findt (Y, 71. 3-4) Aqui u tscrevtrão novaJ hisrórim Por gmtts tstrangtiras qut virão {VII, 55, 5-6)
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Guarda-vos, gmte minha, do mal qut u apm'tlha ptlo imigo (VIJJ, 48, 1-2}. Existe uma diferença entre os pares de sentença (4 1) e (46), de um lado, e (42) e (47), de outro. Como mostra o exemplo (47), aquilo que era o am igo argumento externo do verbo em (42) pode ser realizado como uma expressão locativa, em uma posição sintática periférica. Uma possibilidade semclhanre não cxisre para um a construção co mo (46): *Deu-st esu livro pam a Rtgina pelo Pedro/no Pedro. Cabe notar que a sentença é aceitável se a inrerpreração fo r a de que há um agente indeterminado não expresso. É importante mencionar que essa observação já foi feira por Carlos Franchi, em meados dos anos 80, e vem explicitamente mencionada na dissertação de Whiraker-Franchi, de 1989. Essa esrrurura conceitual deve ser lida da seguinte maneira: aquela firma fez com que prêmios fossem daquela firma para os clienres. Dessa maneira, aquela firma afetou os clientes. Essaesrrururaconceirualdeveserlidadaseguintemaneira: minhadlácaracausaadisponibilidadedejabmicabasdeliciosas. As versões com o clfrico usão possfveis em uma leirura reflexiva, ou seja, em que o xerox se faz a si mesmo, o jard im se dest rói a si mesmo, a casa se constrói a si mesma, e assim por diante. Evidentemente, não é essa a interpretação (que só seria possfvcl em ficção cien tffica) que nos interessa. O leitor que não está acostumado a esse tipo de formalização pode dispensar a leitura das formas lógicas apresentadas a seguir. Elas não são necessárias para a interpretação do texto. Lembramos que, d iferentemente do que acontece em inglês, os verbos da classe sprayl/oad do porruguês aceiram a alternância.
~ Barbosa (2005), utilizando-se da distinção feira por Parsons (2004) entre adjetivos modificadores do estado resulranre
de sentenças contendo verbos de a.lternância causariva e adjetivos fu ncionando como remltntivt tags em sentenças resultativas construídas com verbos uansirivos não alrernanrcs, argumentaconrrariamcnte à proposta de Lo bato de que haja em português brasileiro sentenças resulrarivas constr ufdas a partir de adjetivos. Para explicar essa lacuna apoia-se e m Talmy (1 985) e propõe que a diferença entre o português brasileiro e o inglês está no fato de q ue, na primeira lfngua, o resultado já está incorporado no verbo. O autor sugere q ue a necessidade da forma superlativa q ue Lobaro afirma que existe para adjetivos que expressam uma propriedade frsica é evidência de que essas construções não são propriamente resulrarivas, na medida em que esses adjetivos estão modificando o esrado resultante. 1 ~ Ver Cyrino (2007), entre outros.
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