A Reprodução Da Vida Cotidiana E Outros Escritos [1 ed.]

A tarefa da ideologia capitalista é manter o véu que impede as pessoas de ver que as suas próprias atividades reproduzem

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A Reprodução Da Vida Cotidiana E Outros Escritos [1 ed.]

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A reprodução da vida quotidiana e outros escritos fredy perlman

Textos Subterrâneos [email protected] www.textosubterraneos.pt Tradução: Textos Subterrâneos Revisão: Júlio Henriques Grafismo: Textos Subterrâneos Impressão: VASP-DPS primeira edição: setembro de 2015 depósito legal: 398085/15 Textos extraídos e traduzidos da edição Anything Can Happen, Phoenix Press, Londres, 1992. Este livro está escrito em desacordo ortográfico. A sua reprodução é completamente livre e pode ser descarregado em formato digital em www.textosubterraneos.pt

Fredy Perlman, uma praxis da resistência «Os homens acorrentados às suas actividades do dia-a-dia só podem libertar-se através das suas actividades do diaa-dia. O problema é que as actividades que acorrentam os homens são historicamente determinadas e a sua reprodução requer uma mera repetição; ao passo que as actividades que os podem libertar têm de ser projectadas, a sua realização exige actos criativos.»1 O percurso intelectual de Fredy Perlman (1934-1985) exprime de forma muito eloquente a evolução do pensamento crítico (a que podemos chamar radical, que vai à raiz) decorrida entre o pós-guerra e o nosso tempo, ao longo da travessia que vai da assunção iluminista do progresso como categoria incontestável à desmontagem dos fundamentos dessa ideia de progresso. De início marxista «convencional», Fredy foi operando modificações nas suas análises e perspectivas a partir da sua própria experiência prática, designadamente como estudante e professor universitário, e dos novos conhecimentos que foi carreando nas lutas sociais e em extensas leituras e releituras da História, que o levaram a empreender uma crítica radical da industrialização e uma

1.  Fredy Perlman, «The Revolutionary Project», Black & Red n.º 6 ½, Detroit, Outono de 1969.

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importante reavaliação da história dos povos tribais ou sem Estado, em particular nos seus dois últimos livros, o influente ensaio Against His-Story, Against Leviathan (1983) e o romance The Strait (1988, edição póstuma cujo 2º vol., incompleto, nunca foi editado). Tendo em conta o modo artesanal como surge a presente colectânea em português, vem a propósito citar um passo da nota ao leitor que Perlman, em parceria com o ilustrador e seu amigo John E. Ricklefs, apôs no seu primeiro livro, editado, como os restantes, por ele próprio: «Pedimos-te […] que partilhes a nossa preocupação sobre a falta de meios de comunicação livres num país onde a imprensa é um negócio. Segundo cremos, tu e eu somos responsáveis pela concepção de formas de contornar esta carência. Desejamos que te unas a nós na busca de uma imprensa livre e de uma literatura livre cujo único objectivo seja a comunicação. Se partilhares a nossa preocupação, ou mesmo a nossa interpretação, pedimos-te também que contribuas para que este livro seja reproduzido e distribuído sem direitos, ou para que a tua própria interpretação do problema seja reproduzida e distribuída isenta de direitos. Se assim fizeres, leitor, a imprensa como um negócio terá sido contornada.2» Fredy Perlman foi desde sempre um americano atípico. Nasceu em Brno, na antiga Checoslováquia, em 1934, e em 1939 os pais, de origem judaica, donos de uma pequena fábrica de vestuário, tiveram de emigrar, com ele e com o seu irmão mais novo, perante a iminência da invasão dos Sudetas pelos exércitos nazis. Como no Panamá não conseguiram obter um visto para os Estados Unidos, foram para a Bolívia, estabelecendo-se com um pequeno comércio em Cochabamba, onde Fredy frequentou a escola primária, em língua espanhola, durante seis anos; foi essa a sua segunda língua «materna» e ocorreu ali o seu primeiro contacto com o mundo indígena americano ‒ quíchua, no caso vertente. Em 1945 a família conseguiu emigrar para os Estados Unidos, primeiro para o Alabama, depois para Nova Iorque, onde abriu um modesto quiosque de guloseimas e publicações infanto-juvenis; passando para a língua inglesa, Fredy frequentou ali a escola secundária, 2.  Nota inicial do livro “The New Freedom”: Corporate Capitalism, Nova Iorque, 1961, com um grande número de xilogravuras, a cores e a preto-e-branco, do seu amigo John E. Ricklefs.

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entre os 11 e os 15 anos. Posteriormente, em 1949, os Perlman mudaram-se para Lakeside Park, pequena cidade do Kentucky onde abriram uma loja de utilidades domésticas. Em 1951, com 17 anos, Fredy volta para Nova Iorque, para trabalhar numa fábrica de fibra de vidro, regressando no Outono ao Kentucky para prosseguir a escolaridade no ensino pré-universitário, onde teve alguns professores europeus que muito o influenciaram. A sua experiência do mundo laboral começou cedo, o que o levou a adquirir uma grande sensibilidade prática, a reconhecer os meandros existenciais do salariato e a rejeitar as proclamações meramente ideológicas, tendo a certa altura declarado, já bem adulto, que o único ismo que pessoalmente aceitava era o de violoncelista, arte musical que praticou como empenhado amador. Em 1953 foi para Los Angeles, trabalhando como jardineiro e inscrevendo-se, em estudos literários, na famosa UCLA (Universidade da Califórnia), onde rapidamente se tornou co-editor do jornal estudantil Daily Bruin (Urso Diário), que assumia posições anti-institucionais. Mas Los Angeles e a UCLA foram um dos teatros de operações da «caça às bruxas» lançada pelo senador McCarthy nos anos 50 e a repressão atingiu os círculos que Fredy frequentava, entre os quais o Daily Bruin e membros do Partido Comunista Americano, tendo então os cinco responsáveis do jornal decidido demitir-se e criar um jornal alternativo, o Observer. Nesse período, Fredy pôde apreender, a expensas suas, a dimensão do conformismo predominante também na instituição universitária e entre a massa dos estudantes, afastando-se em 1955 para a Cidade do México, onde residiu durante alguns meses, trabalhando num restaurante mexicano. No fim desse ano regressa à Universidade do Kentucky, em Lexington, onde se diploma com notas elevadas, para não perder a bolsa. Em Outubro de 1956 volta para Nova Iorque, ingressando na célebre Universidade de Colúmbia. Como os professores de literatura o decepcionam, passa a frequentar também aulas de ciências políticas e filosofia. Um dos professores que nessa altura o influenciaram foi o sociólogo C. Wright Mills, cujas aulas eram um misto de ira panfletária e análise profunda da sociedade estado-unidense, e cujo comportamento holístico contrastava com o da maioria do corpo docente; à sua obra dedicará 7

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mais tarde, em 1969, um ensaio em que revela uma ambivalente apreciação crítica. Em Janeiro de 1957 conhece nessa universidade Lorraine Nybakken, sua futura companheira, com quem a partir daí partilhará quase todas as suas actividades políticas e literárias. Aos 23 anos, Fredy já optara por um rumo decididamente inconformista. Os três anos que passa na UC, que o levam a apreender mais cabalmente os limites constitutivos da universidade, inclusive das melhores, dedica-os também ao estudo de matérias extraescolares e a acções de protesto, em particular com o Living Theatre, fomentando a desobediência civil às normas impostas pelo establishment, a oposição ao armamento nuclear e o apoio à revolução em Cuba, chegando a ser preso numa acção de rua. Durante esses três anos, Fredy viveu de trabalhos de dactilografia e mimeografia. Em Outubro de 1962, quando os mísseis soviéticos foram instalados em Cuba, o nacionalismo e a histeria bélica exacerbaram-se entre a população dos Estados Unidos e Fredy participou em diversas manifestações contra uma possível intervenção militar americana. Nessas ocasiões, a hostilidade da população domesticada mostrou-se por vezes tão violenta que Fredy se sentiu francamente mal no «seu» país, decidindo, com Lorraine e o seu amigo John Ricklefs, ir para a Europa. Depois da Dinamarca, onde ficaram três meses, Fredy tentou trabalhar na Checoslováquia, seu país natal, mas o governo checoslovaco encarou com grandes suspeitas aquele «estranho» casal de americanos de esquerda e recusou dar-lhes a necessária autorização de residência, tendo então ido ambos para Paris, onde constataram uma coisa curiosa: ao mesmo tempo que os franceses dificilmente se deslocavam ao estrangeiro, os alemães, ex-ocupantes da França, visitavam este país em grande número, parecendo a muitos parisienses ser errada a ideia de que a Alemanha tinha perdido a guerra. Como a situação económica em França tornou difícil a sua permanência ali, decidiram então ir para a Jugoslávia, gastando na viagem quase todo o dinheiro que lhes restava. E a calorosa recepção que algumas pessoas lhes manifestaram em Belgrado levou-os a mudarem-se «definitivamente» para ali. Fredy foi contratado como locutor de inglês por uma empresa jugoslava que realizava documentários turísticos e Lorraine pôde exercer a sua profissão de violinista e professora de 8

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música, tendo-se ambos inscrito num instituto de línguas para aprender servo-croata (uma outra língua em que Fredy se tornará fluente ao fim de um ano). A experiência jugoslava, que irá durar três anos, revelou-se fecunda para os Perlman; Fredy inscreveu-se na Faculdade de Economia, onde fez uma tese de mestrado intitulada As Estruturas do Subdesenvolvimento, trabalho que estava ainda longe de pressagiar a sua posterior visão crítica sobre a industrialização mas durante o qual pôde perceber que os «socialistas científicos» defendiam sem reservas os princípios americanos de gestão. Posteriormente, fez uma tese de doutoramento, na Faculdade de Direito da Universidade de Belgrado, intitulada Condições para o Desenvolvimento de uma Região Subdesenvolvida, em que já punha em causa algumas das políticas oficiais e que só pôde levar a cabo graças à protecção do seu orientador, Milos Samardžija, influente professor de economia e grande conhecedor da obra de Marx e dos teóricos marxistas. Na sequência dessa investigação, no seu último ano na Jugoslávia, Fredy trabalhou como membro da comissão de planeamento da administração regional de Kosmet, «província» que o regime tratava então de «desenvolver», podendo constatar que essa actividade de orientação tinha poucos efeitos reais. Fredy e Lorraine, ao mesmo tempo que apreciaram profundamente a vida que tiveram na Jugoslávia, graças às relações calorosas que ali estabeleceram com pessoas muito diversas, aos conhecimentos que adquiriram e até à excelente comida do dia-a-dia, verificaram também que a tão cantada autogestão operária era um artifício, travando amizade com dissidentes do regime, em particular com Velimir Moraca (que acabará por morrer na prisão, nos anos 70). No entanto, a saída dos Perlman da Jugoslávia, em 1966, não foi motivada pela repressão, mas porque Lorraine, na sequência de uma intervenção cirúrgica, fora aconselhada a regressar aos Estados Unidos; e também porque a onda de contestação e as lutas contra a guerra no Vietname tinham entretanto tornado os E.U.A. um país muito mais atractivo. Graças a uma recomendação de Milos Samardžija, que leccionara nos Estados Unidos como professor convidado, Fredy foi nomeado professor assistente de economia na Western Michigan University, em Kalamazoo. Apesar disso, o primeiro ensaio que redigiu após o regresso aos E.U.A. (Critical Education) foi uma análise demolidora do ensino 9

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das ciências sociais nas universidades estado-unidenses e da fervorosa confiança de muitos jovens na superioridade americana. Num outro ensaio, não publicado, Corporate-Military Culture and the Social Sciences, foi ainda mais longe, afirmando que as corporações empresariais e os governos contemporâneos procuram impedir as formas de pensamento crítico que acompanham o desenvolvimento da tecnologia. Em Kalamazoo, Fredy continuou ainda a ser estudante, frequentando um curso de língua russa, leu detidamente as obras de Marx e voltou a ler os economistas clássicos. Em 1967, em parceria com Samardžija, traduziu para inglês um importante livro do ensaísta russo I. I. Rubin (Essays on Marx’s Theory of Value), que prefaciou com o seu «Essay on Commodity Fetishism», texto editado depois separadamente nos E.U.A. e traduzido em espanhol e italiano. Mas na universidade de Kalamazoo, Fredy voltou a ver em acção a «caça às bruxas», desta vez na pessoa de um seu colega, Bob Rafferty, que criticava o nacionalismo e o racismo americano na guerra do Vietname e não poupava os «sensíveis» professores bajuladores do sistema imperial estado-unidense. Além de se solidarizar com o seu colega, Fredy publicou, antes de abandonar a universidade, um ensaio intitulado I Accuse this Liberal University of Terror and Violence. Nesse seu último semestre, na última aula, ofereceu publicamente um anel de ouro a um dos alunos, um jovem muito lido e empenhado nas lutas sociais, como um desafio que lhe lançava. Aquele anel, que Fredy usara durante três anos, viera-lhe de um revolucionário angolano, oferecido pelo seu anterior usuário, um dissidente jugoslavo que vivia em Paris; partilhá-lo era estimular um compromisso nas lutas fora da universidade, criando um vínculo de solidariedade entre as pessoas que o tinham usado. Aquela cerimónia foi a sua última comparência numa sala de aulas americana, selando assim a sua curta carreira académica Na sequência desse «encerramento», voltou à Europa, a Turim, para três semanas de palestras sobre economia no Instituto Universitário de Estudos Europeus, proferidas em francês. E teve a espantosa sorte de chegar a Paris no início dos tumultuosos acontecimentos de Maio de 1968, experiência em que se envolveu profundamente, chegando a intervir junto de trabalhadores estrangeiros em espanhol e em servo-croata (havia também muitos imigrantes jugoslavos em França). Nesse curto 10

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período, apesar de haver pouco tempo para leituras, conseguiu ainda familiarizar-se com os textos «heréticos» da Internacional Situacionista, do anarquismo, da Revolução Espanhola e dos comunistas de conselhos. Em Agosto, Fredy encontrou-se de novo em acções de rua, desta vez em Chicago, onde pôde conhecer dissidentes das mais diversas paragens dos E.U.A., estabelecendo contactos e amizades com anarquistas, membros dos IWW e do SDS (alguns dos quais se organizaram pouco tempo depois no movimento de guerrilha urbana Weathermen)3. De volta a Kalamazoo, onde continuavam a morar, Fredy e Lorraine passaram a acolher muitos militantes andarilhos e visitantes europeus. No final dos anos 60 a agitação centrava-se sobretudo na luta contra a guerra no Vietname e no omnipresente racismo americano, que suscitou grandes revoltas, como os motins de Los Angeles em 1965 e de Detroit em 1967, tendo o Black Action Movement começado a dispor de coerentes porta-vozes que inspiravam respeito. Foi nessa altura que Fredy, Lorraine e outros companheiros começaram a publicar a revista mensal Black & Red, cujo primeiro número, saído em Setembro de 1968, foi constituído pela análise dos acontecimentos em França, redigida por Fredy em parceria com Roger Grégoire, pró-situacionista francês que então vivia em casa dos Perlman. Nos seis números da Black & Red que saíram em Kalamazoo, os outros colaboradores eram todos estudantes da Western Michigan University cujas actividades extraescolares tinham passado a ser predominantes; o sumário da revista, além das suas criativas e contestatárias ilustrações, incluía informações sobre a resistência e as revoltas na América do Norte e na Europa, textos da Internacional Situacionista e análises da sociedade contemporânea. As tarefas práticas de produção da revista levaram-nos também a estabelecer contactos com outros colectivos, em particular com o Radical Education Project (REP) do SDS, mas sempre com uma abordagem muito crítica quando surgiam contradições

3. IWW, Industrial Workers of the World, ou Wobblies, movimento sindicalistarevolucionário criado em 1905 nos E.U.A. SDS, Students for a Democratic Society, organização criada no início dos anos 60 e que se desfez em 1969. Weathermen, nome popular atribuído à Weather Undergound Organization, facção clandestina do SDS criada em 1969 e cuja acção terminou por volta de 1977.

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entre aquilo que era proclamado (pelo SDS, por exemplo) e o que era concretamente realizado, questões que surgem no ensaio de Fredy The Reproduction of Daily Life, redigido no último Inverno que passou em Kalamazoo e que parece ter sido o mais lido de todos os que publicou, inclusive em português (foi editado em Lisboa, em 1975, pela Textos Exemplares, com o título A Reprodução da Vida Quotidiana). O ensaio já referido, «I Accuse this Liberal University of Terror and Violence», saiu no n.º 6 da B & R: «Os liberais não são “moderados”. Essa é a sua auto-imagem. São extremistas, mas, ao contrário dos reaccionários, são extremistas com boa consciência. Os seus instrumentos não são “ideias”, são terror e violência. Mas, ao contrário dos linchadores, os liberais desviam os olhos para continuarem a passar por inocentes.» Em Abril de 1969, Fredy saiu de Kalamazoo e voltou à Europa, onde ficou quatro meses, dando duas séries de palestras no Instituto Universitário de Estudos Europeus de Turim, designadamente sobre as origens sociais e económicas dos guetos nos Estados Unidos. Depois, num pequeno Fiat, viajou com Lorraine até à Jugoslávia. Em Belgrado coligiu muita informação sobre os protestos sociais e a revolta estudantil ali ocorridos em 1968, encontrando-se com dissidentes da universidade e com amigos e antigos colegas. Esse material permitiu-lhe escrever, ainda na Jugoslávia, o ensaio Revolt in Socialist Yugoslavia, editado em 1973. Os Perlman aproveitaram a possibilidade de dispor de um carro para visitar velhos amigos em Paris, Francoforte, Florença, Londres, Amesterdão, Oslo, Copenhaga. Nesse momento, eram ainda grandes as expectativas geradas pelas revoltas que haviam eclodido em vários pontos do mundo. Em Agosto de 1969, Fredy e Lorraine passaram a morar em Detroit, em parte porque nesta cidade, graças aos motins ali ocorridos, as rendas eram bastante mais acessíveis do que em Nova Iorque ou São Francisco. Fredy estabeleceu rapidamente contacto com diversos militantes ou grupos políticos que se opunham ao militarismo do governo e ao racismo da sociedade, mas o colectivo de Detroit a que ficou mais ligado foi o grupo da revista Fifth Estate (que é hoje a mais antiga publicação anarquista americana). Fundada em 1965 como publicação underground, a partir de 1969 relacionou-se com a comunidade radical de Detroit e Fredy passou a ser um seu activo colaborador, entre outras 12

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coisas com as suas competências dactilográficas, de editor e de impressor, ao mesmo tempo que continuou a publicar a Black & Red. Nos primeiros anos que viveram em Detroit, Fredy e Lorraine levaram uma vida «muito frugal». Lorraine dava aulas de matemática a tempo parcial, Fredy auferia uma pequena reforma da universidade e recorreu à previdência social, devido à sua grave doença cardíaca (contraída ainda em criança e que acabou por vitimá-lo aos 50 anos); auferiu esse abono durante dez anos (até à chegada de Reagan ao poder) sem quaisquer escrúpulos, considerando que as «regalias sociais» a que os trabalhadores tinham direito eram conquistas sociais e não «dádivas» do poder. A criação de uma cooperativa gráfica, aberta a todos os activistas, foi encarada por Fredy como um dos «actos criativos» a que apelava nos seus escritos, tendo-se dedicado com grande energia a essa iniciativa juntamente com muitos companheiros, defendendo que deveria ser uma actividade livre de pagamentos. O material que tinham podido adquirir era antigo, mas as diversas competências dos participantes faziam-no funcionar em condições. Duas das linhas de orientação diziam assim: «O equipamento da Printing Co-op é propriedade social. É e continuará a ser controlado por todas as pessoas que dele necessitem, o usem e o mantenham. […] O propósito da Printing Co-op é providenciar o acesso a equipamento de impressão a todas as pessoas da comunidade que desejem exprimir-se elas próprias (numa base não lucrativa), sendo as despesas apenas as necessárias para manter a oficina (renda, materiais, manutenção da maquinaria).» Quando o IWW ressurgiu, no início dos anos 70, Fredy e outros cooperantes tornaram-se membros deste singular sindicato, tendo ele então criado um emblema para figurar nas publicações, com os seguintes dizeres: «Pela abolição do trabalho assalariado. Pela abolição do Estado.» Em Detroit, a revista Black & Red transformou-se numa editora, decididamente artesanal. Um dos livros que saiu da gráfica com esta chancela foi uma inspirada sátira intitulada Manual for Revolutionary Leaders, redigido por Fredy em parceria com Lorraine mas publicado sob o pseudónimo de Michael Velli (1ª ed. 1972). Essa arrasadora desmontagem dos candidatos a exercer o poder de Estado foi apresentada pelos autores como «uma síntese das ideias dos maiores líderes revolu13

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cionários do nosso tempo. […] Velli extraiu estas ideias do contexto em que começaram por surgir e integrou-as no Pensamento Único de que cada uma delas é um mero fragmento.» Curiosamente, o livro, que teve muito sucesso (com uma 2ª edição dois anos depois), foi levado à letra por muitos dos seus leitores, militantes que visivelmente aspiravam mesmo a ser líderes e a tomar o poder, revelando com isso não estarem à altura da ironia. Na cooperativa gráfica, Fredy tornou-se um editor, tipógrafo e impressor cada vez mais exigente e talentoso. Editou todos os seus livros, inclusive Letters of Insurgents, de 831 páginas (romance epistolar sob os pseudónimos de Sophia Nachalo e Yarostan Vochek). O seu primeiro livro, Plunder (Saque), de 1962, uma peça de teatro, já tinha sido composto e editado por ele (a várias cores), em Nova Iorque, nas instalações do Living Theatre. Além dos títulos citados neste artigo, são de referir, na sua bibliografia, «Cold War Mythology» (The Minority of One, Julho de 1962); The Incoherence of the Intellectual: C. Wright Mill’s Struggle to Unite Knowledge and Action (Black & Red, Detroit, 1970), «The Machine Against the Garden», Fifth Estate, Detroit, 1985. Júlio Henriques Quase todos os dados referidos neste artigo foram extraídos do brilhante livro de Lorraine Perlman, Having Little, Being Much – A Chronicle of Fredy Perlman’s Fifty Years, Black & Red, Detroit, 1989, que inclui oito páginas de fotografias.

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Tudo Pode Acontecer «Sejamos realistas, exijamos o impossível!» Este slogan, criado por revolucionários no Maio de 68 em França, desafia o senso comum, especialmente o «senso comum» da propaganda corporativo-militar americana. O que se passou em Maio desafia também o «senso comum» oficial americano. Com efeito, em relação ao «senso comum» americano, muito do que acontece hoje em dia no mundo é impossível. Não pode acontecer. Se de facto acontece, então o «senso comum» oficial é absurdo: é um conjunto de mitos e fantasias. Mas como pode o senso comum ser absurdo? Isso é impossível. Para demonstrar que tudo é possível, este ensaio irá comparar alguns dos mitos com alguns dos acontecimentos. Irá depois tentar descobrir por que razão alguns mitos são possíveis, ou seja, irá explorar a «base científica» dos mitos. Se for bem sucedido, este ensaio irá depois demonstrar que tudo é possível: é mesmo possível que uma população transforme mitos em senso comum e é possível que os criadores de mitos se convençam da realidade dos seus próprios mitos face à própria realidade.

«Senso Comum» Americano − É impossível que as pessoas governem a sua própria vida; é por isso que não têm a capacidade de o fazer. As pessoas não têm poder

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porque não têm a capacidade nem o desejo de controlar as condições materiais e sociais em que vivem e decidir sobre elas. − As pessoas querem apenas ter poder e privilégios umas sobre as outras. Seria impossível, por exemplo, os estudantes universitários lutarem contra a instituição que lhes assegura uma posição privilegiada. Esses estudantes apenas estudam para ter boas notas, porque com boas notas podem obter empregos bem pagos, o que significa a capacidade de dirigirem e manipularem outras pessoas e a capacidade de consumirem mais bens do que as outras pessoas. Se a aprendizagem não fosse recompensada com boas notas, bons salários, poder sobre os outros e montes de bens de consumo, ninguém quereria aprender; não haveria motivação para aprender. − Mesmo que os estudantes, os trabalhadores e os agricultores quisessem algo diferente, a verdade é que se encontram claramente satisfeitos com aquilo que estão a fazer, de outra forma não o fariam. − Seja como for, aqueles que não se encontram satisfeitos podem expressar livremente a sua insatisfação ao comprarem e ao votarem: não têm de comprar as coisas de que não gostam e não têm de votar nos candidatos de que não gostam. Para eles é impossível mudarem a sua situação de qualquer outra forma. − Mesmo que algumas pessoas tenham tentado mudar a situação de uma outra forma, seria impossível unirem-se; iriam apenas lutar umas contra as outras, porque os trabalhadores brancos são racistas, os nacionalistas negros não gostam de brancos, as feministas são contra todos os homens e os estudantes têm os seus próprios problemas específicos. − Mesmo que se unissem, seria claramente impossível eles destruírem o Estado e a força policial e militar de uma poderosa sociedade industrial como os Estados Unidos.

Os Acontecimentos Milhões de estudantes por todo o mundo – em Tóquio, Turim, Belgrado, Berkeley, Berlim, Roma, Rio de Janeiro, Varsóvia, Nova Iorque, Paris – lutam pelo poder de controlar as condições sociais e materiais em que vivem e decidir sobre elas. Não são travados pela falta de desejo 18

tudo pode acontecer

nem pela falta de capacidade; são travados pela polícia. Talvez se inspirem noutros lutadores que se organizaram contra a polícia: os cubanos, os vietnamitas... Em Turim e Paris, por exemplo, os estudantes ocuparam as suas universidades e formaram assembleias-gerais em que todos os estudantes tomaram todas as decisões. Por outras palavras: os estudantes começaram a gerir as suas próprias universidades. Não para terem melhores notas, porque acabaram com os testes. Não para terem empregos com salários mais altos e mais privilégios, porque começaram a discutir a abolição dos privilégios e dos empregos com salários altos; começaram a discutir o fim de uma sociedade em que tinham de se alienar. E nesse ponto, por vezes pela primeira vez nas suas vidas, começaram a aprender. Em Paris, jovens trabalhadores, inspirados pelo exemplo dos estudantes, ocuparam uma fábrica de aviões e trancaram o director. Os exemplos multiplicaram-se. Outros trabalhadores começaram a ocupar as suas fábricas. Apesar do facto de durante toda a vida terem dependido de alguém que tomasse as decisões por eles, alguns trabalhadores criaram comités para discutirem a gestão da greve em conformidade com as suas próprias condições e não com as do sindicato, deixando todos os trabalhadores decidirem – e alguns trabalhadores criaram comissões para discutirem a autogestão das fábricas. Uma ideia em que normalmente não faz sentido pensar, porque é absurda e impossível, tinha-se tornado subitamente possível e passou a ser interessante, desafiante, fascinante. Os trabalhadores começaram mesmo a falar da produção de bens simplesmente devido ao facto de as pessoas necessitarem deles. Estes trabalhadores sabiam que era «falso pensar que a população é contra serviços públicos gratuitos, que os agricultores são a favor de um circuito comercial cheio de intermediários, que as pessoas mal pagas estão satisfeitas, que os “gestores” estão orgulhosos dos seus privilégios [...]»1. Alguns trabalhadores da indústria electrónica entregaram equipamento gratuitamente aos manifestantes que se protegiam da polícia; alguns agricultores entregaram comida gratuitamente aos trabalhadores em greve; e alguns trabalhadores da indústria do arma-

1.  Mouvement du 22 Mars, Ce n´est qu´un début, continuons le combat, Paris, Maspero, 1968.

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mento falaram em distribuir armas a todos os trabalhadores para que estes se pudessem proteger do exército nacional e da polícia. Apesar de toda uma vida de propaganda de mercado sobre o quão «satisfeitos» os trabalhadores estão com os carros, casas e outros objectos que recebem em troca da sua energia viva, os trabalhadores expressaram a sua «satisfação» através de uma greve geral que paralisou toda a indústria francesa durante mais de um mês. Depois de terem sido ensinados durante toda a vida a «respeitar a lei e a ordem», os trabalhadores infringiram todas as leis ocupando fábricas que não lhes «pertenciam», porque, como rapidamente ficaram a saber, os polícias existem para garantir que as fábricas continuem a «pertencer» aos proprietários capitalistas. Os trabalhadores ficaram a saber que «a lei e a ordem» é aquilo que os impede de gerir a sua própria actividade produtiva, e que a «lei e a ordem» é aquilo que têm de destruir para poderem governar a sua própria sociedade. Os polícias apareceram logo que os trabalhadores agiram sobre a sua insatisfação. Talvez os trabalhadores sempre tenham sabido que os policias se encontram no pano de fundo; talvez seja por isso que os trabalhadores pareciam tão «satisfeitos». Com uma arma apontada às costas, quase todas as pessoas inteligentes se sentiriam «satisfeitas» ficando de mãos ao ar. Em Paris e noutros lugares, os trabalhadores começaram a aceitar o convite dos estudantes para irem aos auditórios da Universidade de Paris (na Sorbonne, em Censier, na Halle-aux-vins, nas Belas-Artes, etc.) para falar sobre a abolição das relações monetárias e a transformação das fábricas em serviços sociais geridos por quem faz e por quem usa os produtos. Os trabalhadores começaram a expressar-se. Foi então que os proprietários e os seus administradores ameaçaram com a guerra civil, e que uma enorme maquinaria policial e militar foi implementada para tornar a ameaça real. Com essa flagrante exibição de «forças da lei e da ordem», o rei ficou momentaneamente nu: tornou-se visível para todos a ditadura repressiva da classe capitalista. Perderam-se assim quaisquer ilusões que as pessoas pudessem ter sobre a sua própria «soberania consumidora» ou «poder de voto», quaisquer fantasias que pudessem ter tido sobre a transformação da sociedade capitalista através da compra e do voto. Sabiam que o seu «poder de aquisição» e «poder de voto» significavam simplesmente servidão e consentimento em face de uma 20

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enorme violência. A revolta estudantil e a greve geral na França (como a revolta negra nos Estados Unidos, como a luta anti-imperialista em três continentes) tinham simplesmente forçado a violência latente a expor-se; e isso tornou possível que as pessoas avaliassem o inimigo. Perante a violência do Estado capitalista, estudantes, trabalhadores franceses, trabalhadores estrangeiros, camponeses, os bem pagos e os mal pagos, ficaram a saber que interesses serviam ao policiarem-se uns aos outros, temendo-se e odiando-se. Perante a violência crua do opressor comum, as divisões entre os oprimidos desapareceram: os estudantes deixaram de lutar por privilégios relativamente aos trabalhadores, juntando-se a estes; os trabalhadores franceses deixaram de lutar por privilégios relativamente aos trabalhadores estrangeiros, juntando-se a estes; os agricultores deixaram de lutar por uma isenção especial, juntando-se às lutas dos trabalhadores e dos estudantes. Juntos começaram a lutar contra um único sistema mundial que oprime e divide entre si os estudantes e os trabalhadores, os trabalhadores qualificados e os não qualificados, os trabalhadores franceses e os espanhóis, os trabalhadores negros e os brancos, os trabalhadores «nativos» e os trabalhadores «nacionais», os camponeses colonizados e toda a população «metropolitana». A luta em França não destruiu o poder político e militar da sociedade capitalista. Mas não demonstrou que isso seria impossível: ‒ Numa manifestação em Paris, os estudantes sabiam que não se podiam defender da carga policial, mas alguns estudantes não fugiram da polícia; começaram a construir uma barricada. Foi aquilo a que o Movimento 22 de Março chamou «acção exemplar»: um grande número de estudantes ganhou coragem, não fugiu da polícia e começou a construir barricadas. ‒ Os estudantes sabiam que não podiam, por eles próprios, destruir o Estado e o seu aparelho repressivo, mas ainda assim ocuparam e começaram a gerir as universidades e nas ruas responderam ao gás lacrimogéneo lançado pela polícia com o lançamento de pedras da calçada. Essa também foi uma acção exemplar, porque num grande número de fábricas os trabalhadores ganharam coragem, ocuparam-nas e estavam preparados para as defender dos seus «proprietários». ‒ Os primeiros trabalhadores que ocuparam as suas fábricas para 21

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se apoderarem delas e começarem a geri-las sabiam que não podiam destruir o poder da classe capitalista sem que todos os trabalhadores se apoderassem das suas fábricas e as defendessem, destruindo o Estado e o seu poder repressivo; mas ainda assim ocuparam as fábricas. Essa também foi uma acção exemplar, mas estes trabalhadores não conseguiram comunicar esse exemplo aos restantes trabalhadores: o governo, a imprensa e os sindicatos disseram ao resto da população que os trabalhadores que ocupavam as fábricas estavam simplesmente a fazer uma greve tradicional para obterem do Estado e dos proprietários das fábricas salários mais altos e melhores condições laborais. Impossível? Tudo isso aconteceu no espaço de duas semanas, no final de Maio. Os exemplos eram extremamente contagiosos. Terá alguém realmente a certeza de que os que produzem as armas, os trabalhadores, nomeadamente, ou mesmo os polícias e os soldados, que também são trabalhadores, estão imunes?

«Base Científica» do «Senso Comum» O «cientista social» é alguém que é pago para defender os mitos desta sociedade. O seu mecanismo de defesa, na sua formulação mais simples, funciona mais ou menos desta forma: começa por presumir que a sociedade do seu espaço e tempo é a única forma possível de sociedade; e, posteriormente, conclui que qualquer outra forma de sociedade é impossível. Infelizmente, o «cientista social» raramente admite as suas suposições; normalmente afirma que não faz quaisquer suposições. E não se pode dizer que esteja a mentir completamente: em geral toma de tal modo as suas suposições como certas que nem se apercebe de que as faz. O «cientista social» toma como certa a sociedade em que existe uma «divisão do trabalho» bastante desenvolvida, que inclui tanto uma separação das tarefas como uma separação («especialização») das pessoas. Nas tarefas incluem-se coisas tão úteis para a sociedade como produzir comida, roupa e habitação, e também coisas tão desnecessárias como lavar cérebros, manipular e matar pessoas. Para começar, o «cientista» define todas essas actividades como úteis, porque a sua sociedade não poderia funcionar sem elas. De seguida, presume que essas tarefas 22

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só podem ser realizadas se uma dada pessoa se encontrar presa a uma dada tarefa para toda a vida, ou seja, se as tarefas especializadas são efectuadas por pessoas especializadas. Ele não presume isso a respeito de tudo. Por exemplo, comer e dormir são actividades necessárias; a sociedade desmoronar-se-ia se elas não se efectuassem. Contudo, o próprio «cientista social» não pensa que uma mão-cheia de pessoas deva dedicar-se a comer tudo enquanto as outras nada comem, ou que uma mão-cheia de pessoas deva dedicar-se a dormir o sono todo enquanto as outras nada dormem. Ele presume a necessidade de uma especialização só nas actividades que são especializadas na sua sociedade particular. Na sociedade corporativo-militar, algumas pessoas têm todo o poder político e as outras não têm nenhum; um punhado de pessoas decide o que se produz e as outras consomem o que é produzido; um punhado de pessoas decide que tipo de habitações se devem construir e as outras vivem nelas; um punhado de pessoas decide o que deve ser ensinado nas salas de aula e as outras têm de engolir isso; um punhado de pessoas cria e as outras ficam passivas; um punhado de pessoas realiza e as outras são espectadoras. Em suma, um punhado de pessoas exerce todo o poder sobre uma determinada actividade e as restantes pessoas não têm poder sobre isso, mesmo quando essa actividade as afecta directamente. E, como é óbvio, as pessoas que não têm poder sobre uma actividade específica não sabem o que fazer com esse poder; nem sequer sabem o que fazer com ele enquanto não o detêm. Daí que o «cientista» conclua que as pessoas não têm a capacidade nem o desejo de deter esse poder, designadamente para controlar as condições sociais e materiais em que vivem e decidir sobre elas. De uma forma simples, o raciocínio é este: as pessoas não têm esse poder nesta sociedade e esta sociedade é a única forma de sociedade; daí que seja impossível as pessoas terem esse poder. E de uma forma ainda mais simples: as pessoas não podem ter esse poder porque não o têm. A lógica não é muito ensinada nas escolas americanas e este raciocínio parece impressionante quando é acompanhado por um enorme aparelho estatístico e desenhos geométricos extremamente complicados. Se alguém criticar insistindo em chamar ao raciocínio simplista e circular, vê-se «apagado» logo que o «cientista» apresenta números calculados em computadores inacessíveis ao público e é posto de parte 23

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logo que o «cientista» começa a «comunicar» numa linguagem completamente esotérica cheia de falácias lógicas apenas compreensível para os seus «colegas cientistas». Conclusões mitológicas baseadas em suposições mitológicas são «provadas» através de estatísticas e gráficos; muita da «ciência social aplicada» consiste em ensinar a pessoas jovens que tipo de «dados» se devem recolher para que obtenham as suas conclusões e muita da «teoria» consiste em ajustar esses dados às fórmulas pré-estabelecidas. Por exemplo, através de numerosas técnicas pode-se «provar» que os trabalhadores preferem trabalhos bem remunerados a trabalhos aprazíveis ou significativos, que as pessoas «gostam» do que ouvem na rádio ou vêem na televisão, que as pessoas são «membros» de um ou outro culto judaico-cristão, que quase toda a gente vota nos democratas ou nos republicanos. Os estudantes são levados a aprender um conjunto de métodos para a obtenção de dados, um segundo conjunto para os organizarem, um terceiro para os apresentarem e «teorias» para os interpretarem. O conteúdo apologético dos «dados» é encoberto pela sua sofisticação estatística. Numa sociedade em que comer depende de sermos pagos e em que fazer um «trabalho significativo» poderá significar não sermos pagos, a preferência do trabalhador por um trabalho bem remunerado em detrimento de trabalhos significativos poderá significar simplesmente que ele prefere comer a não comer. Numa sociedade onde as pessoas não criam nem controlam aquilo que ouvem na rádio ou vêem na televisão, não existe outra escolha senão «gostar» daquilo que ouvem e vêem, ou então desligar o raio do aparelho. As pessoas cientes de que os seus amigos olhariam para elas de forma estranha se fossem ateias, preferem frequentar uma ou outra Igreja, e quase toda a gente ciente de que se encontra numa sociedade onde perderia todos os seus amigos, tal como o seu trabalho, se fosse socialista ou anarquista, obviamente prefere ser democrata ou republicano. Contudo, esses «dados» servem de base para a concepção que o «cientista social» tem das possibilidades e impossibilidades das pessoas e até mesmo da sua «natureza humana». As entrevistas, inquéritos e demonstrações estatísticas sobre as filiações religiosas das pessoas, o comportamento eleitoral e as preferências de emprego, reduzem as pessoas a dados monótonos. No contexto desta «ciência», as pessoas são coisas, são objectos com inúmeras quali24

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dades – e, surpreendentemente, cada uma dessas qualidades é servida por uma ou outra instituição da sociedade corporativo-militar. Acontece que os «gostos materiais» das pessoas são «satisfeitos» por corporações, que os «anseios físicos» são «satisfeitos» pelos militares, que as suas «tendências espirituais» são «satisfeitas» por cultos e que as suas «preferências políticas» são «satisfeitas» pelo Partido Republicano ou pelo Partido Democrata. Por outras palavras, tudo aquilo que o militarismo-corporativo americano significa, serve às pessoas perfeitamente. Tudo é classificado, excepto o facto de o trabalhador ser usado como ferramenta, de vender o seu tempo de vida e a sua capacidade criativa em troca de objectos, de não decidir o que faz, nem para quem, nem porquê. O «cientista social» afirma ser empírico e objectivo; afirma não fazer juízos de valor. Mas, ao reduzir a pessoa a um conjunto de gostos, desejos e preferências a que ela se encontra restringida na sociedade capitalista, o «cientista objectivo» faz a afirmação bizarra de que esse conjunto constitui aquilo que o trabalhador é; e faz o fantástico juízo de valor de que o trabalhador não pode ser outra coisa senão aquilo que é na sociedade capitalista. Segundo as «leis do comportamento humano» desta «ciência», a solidariedade dos estudantes com os trabalhadores, a ocupação de fábricas pelos trabalhadores, o desejo dos trabalhadores de gerirem a sua própria produção, distribuição e coordenação, são tudo coisas impossíveis. Porquê? Porque essas coisas são impossíveis na sociedade capitalista e porque para esses «cientistas», que não fazem juízos de valor, as sociedades existentes são as únicas sociedades possíveis e a sociedade corporativo-militar é a melhor de todas as sociedades possíveis. Segundo os juízos de valor destes especialistas («que não fazem juízos de valor»), toda a gente na sociedade americana deve estar satisfeita. Para estes «cientistas» sem juízos de valor, a insatisfação é um «juízo de valor» importado do estrangeiro, pois como poderia alguém não estar satisfeito no melhor dos mundos possíveis? A pessoa que não reconhece este mundo como o melhor dos mundos possíveis, tem com certeza «ideias estrangeiras»; se não está satisfeita com ele, deve ser desequilibrada; se a sua insatisfação a leva a desejar agir, deve ser perigosa; e para a constante satisfação do especialista, deve ser despedida do seu trabalho, passar fome, se possível, e ser morta, se necessário. Para o cientista social americano, a «natureza humana» é aquilo que 25

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as pessoas fazem na América corporativo-militar: algumas tomam decisões e o resto cumpre ordens; algumas pensam e as outras executam; algumas compram o trabalho de outras pessoas e as outras vendem o seu próprio trabalho; algumas investem e as outras consomem; algumas são sádicas e as outras masoquistas; algumas têm o desejo de matar e outras têm o desejo de morrer. O «cientista» faz passar tudo isso como «troca», como «reciprocidade», como uma «divisão do trabalho» em que as pessoas se encontram tão divididas quanto as tarefas. Para o «cientista social» é tudo tão natural que pensa que não faz quaisquer juízos de valor ao considerar que tudo é normal. As corporações e os militares até lhe dão bolsas para ele demonstrar que tem sido sempre assim: bolsas para demonstrar que esta «natureza humana» se encontra alojada no início da História e nas profundezas do inconsciente. (Os psicólogos americanos – especialmente os «behavioristas» – dão a ambígua «contribuição» de demonstrar que os animais também têm uma «natureza humana» – os psicólogos levam os ratos à loucura em situações semelhantes à de uma guerra que os próprios psicólogos ajudam a planear, demonstrando depois que os ratos também têm desejo de matar, que têm tendências masoquistas...). Dada esta concepção da «natureza humana», a força do sistema corporativo-militar não reside na potencial violência do seu exército e polícia, mas no facto de o sistema corporativo-militar ser compatível com a natureza humana. Segundo aquilo que o «cientista social» americano considera normal, quando os estudantes e os trabalhadores começaram a lutar em França para acabar com as tais «reciprocidade», «troca» e «divisão do trabalho», não estavam a lutar contra a polícia capitalista, mas contra a «natureza humana». E uma vez que isso é obviamente impossível, os acontecimentos que tiveram lugar em Maio de 1968 não tiveram lugar.

O «Senso Comum» Explode A questão de o que é possível não pode ser respondida em termos de o que é. O facto de a «natureza humana» ser hierárquica numa sociedade hierárquica não significa que uma divisão hierárquica das pessoas 26

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entre diferentes tarefas seja necessária para a vida social. Não são as instituições capitalistas que satisfazem as necessidades humanas. São os trabalhadores da sociedade capitalista que se moldam para se ajustarem às instituições da sociedade capitalista. Quando algumas pessoas compram trabalho e outras pessoas o vendem, cada uma luta por se vender pelo preço mais alto, cada uma luta para convencer o comprador e para se convencer a si mesma de que a pessoa ao lado vale menos. Numa sociedade assim, os estudantes que se preparam para se vender como directores e manipuladores bem remunerados devem dizer aos seus compradores e a si mesmos que, como «profissionais», são superiores aos trabalhadores manuais não universitários. Numa sociedade assim, os trabalhadores WASP2 que se vendem por altos salários e por trabalhos mais fáceis dizem freneticamente a si mesmos e aos seus compradores que são melhores, trabalham mais e merecem mais do que os estrangeiros, católicos, judeus, porto-riquenhos, mexicanos e negros; os «profissionais» negros dizem a si mesmos que são melhores que os trabalhadores manuais negros; todos os brancos dizem a si mesmos que são melhores que todos os negros; e todos os americanos dizem a si mesmos que são melhores que os «indígenas» sul-americanos, asiáticos ou africanos. E como os WASP conseguem sistematicamente vender-se ao melhor preço, todos os que estão abaixo deles tentam tornar-se o mais WASP possível. (Diga-se de passagem que os WASP são tradicionalmente a classe dominante. Se os anões conseguissem sistematicamente os melhores preços, todos os que estão abaixo deles tentariam ser anões). Para manter os seus privilégios relativos, cada grupo tenta fazer com que os grupos abaixo dele não façam abalar a estrutura. Daí que, em tempos de «paz», o sistema seja amplamente auto-policiado: os colonizados reprimem os colonizados, os negros reprimem os negros, os brancos reprimem os brancos, os negros e os coloniza2.  Acrónimo, que podemos traduzir por Protestante Branco Anglo-Saxónico (White Anglo-Saxon Protestant), utilizado para definir uma determinada classe social estadounidense descendente dos colonos britânicos que detém hegemonia política, económica e social nos E.U.A. (N. do t.)

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dos. Assim, a população trabalhadora reprime-se a si mesma, a «lei e a ordem» é mantida e a classe governante livra-se de mais gastos com o aparelho repressivo. Para o «cientista social» e para o propagandista profissional, esta «divisão do trabalho» é tão natural quanto a própria «natureza humana». Para o «cientista social», a unidade entre os diferentes «interesses de grupo» é tão inconcebível como a própria revolução. Ao afirmar como «cientificamente provado» que os diferentes grupos não se podem unir numa luta anticapitalista, o especialista faz todos os possíveis para impedir essa unidade e os seus colegas concebem armas para o caso de as pessoas se unirem efectivamente contra o sistema capitalista. Porque por vezes toda a estrutura se desmorona. O mesmo especialista que define o sistema capitalista como compatível com a «natureza humana», com os gostos, vontades e desejos das pessoas, constrói o arsenal de mitos e armas com que o sistema se defende. Mas o sistema defende-se contra quê? Contra a natureza humana? Se para sobreviver tem de lutar contra a natureza humana, nesse caso, segundo a própria linguagem do especialista, o sistema é extremamente antinatural. Assim, enquanto alguns especialistas definem a revolta ocorrida em França como impossível por ser antinatural, os seus colegas especialistas concebem os gases incapacitantes com os quais os polícias podem suprimir essas revoltas impossíveis. Porque tudo é possível. [1968]

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A Reprodução da Vida Quotidiana A actividade prática quotidiana dos homens tribais reproduz, ou perpetua, uma tribo. Esta reprodução não é simplesmente física, mas também social. Através das suas actividades diárias os homens tribais não reproduzem simplesmente um grupo de seres humanos; reproduzem uma tribo, nomeadamente, uma forma social particular em que este grupo de seres humanos realiza actividades específicas de uma forma específica. As actividades específicas dos homens tribais não são o resultado de características «naturais» dos homens que as realizam, da mesma forma que a produção de mel é um resultado da «natureza» da abelha. A vida quotidiana praticada e perpetuada pelos homens tribais é uma reposta social específica a condições materiais e históricas particulares. A actividade quotidiana dos escravos reproduz a escravidão. Através das suas actividades diárias, os escravos não se limitam a reproduzir-se e a reproduzir os seus senhores fisicamente; reproduzem também os instrumentos com os quais o senhor os reprime e os seus próprios hábitos de submissão à autoridade do senhor. Para os homens que vivem numa sociedade esclavagista, a relação entre o senhor e o escravo parece ser uma relação eterna e natural. Contudo, os homens não nascem senhores ou escravos. A escravatura é uma forma social específica e os homens apenas se lhe submetem em condições materiais e históricas muito particulares. A actividade prática quotidiana dos trabalhadores assalariados reproduz o trabalho assalariado e o capital. Através das suas actividades

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diárias, os homens «modernos», assim como os homens tribais e os escravos, reproduzem os habitantes, as relações sociais e as ideias da sua sociedade; reproduzem a forma social da vida quotidiana. Tal como a tribo e o sistema esclavagista, o sistema capitalista não é a forma natural nem a forma final da sociedade humana; como as formas sociais anteriores, o capitalismo é uma resposta específica a condições materiais e históricas. Ao contrário de formas de actividade social anteriores, o quotidiano na sociedade capitalista transforma sistematicamente as condições materiais a que o capitalismo originalmente respondeu. Alguns dos limites materiais da actividade humana ficam gradualmente sob o controlo humano. A um nível elevado de industrialização, a actividade prática cria as suas próprias condições materiais assim como a sua forma social. Daí que o tema em análise não consista apenas em saber como a actividade prática na sociedade capitalista reproduz a sociedade capitalista, mas também como essa mesma actividade elimina as condições materiais para as quais o capitalismo é uma resposta.

A Vida Quotidiana na Sociedade Capitalista A forma social das actividades regulares das pessoas sob o capitalismo é uma resposta a uma certa situação material e histórica. As condições materiais e históricas explicam a origem da forma capitalista, mas não explicam por que é que essa forma continua depois de a situação inicial desaparecer. O conceito de «atraso cultural» não é uma explicação para a continuidade de uma forma social depois do desaparecimento das condições iniciais às quais respondeu. Este conceito é simplesmente um nome para a continuidade da forma social. Quando o conceito de «atraso cultural» se exibe como o nome dado a uma «força social» que determina a actividade humana, é um obscurecimento que apresenta o resultado das actividades das pessoas como uma força externa fora do seu controlo. Isto não é apenas verdade para um conceito como o de «atraso cultural». Muitos dos termos usados por Marx para descrever as actividades das pessoas foram elevados ao estatuto de forças externas e até «naturais» que determinam a actividade das pessoas; daí que conceitos como «luta de classes», «relações de produção» 30

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e particularmente «A Dialéctica», tenham o mesmo papel nas teorias de alguns «marxistas» que o «Pecado Original», a «Fé» e «A Mão do Destino» tiveram nas teorias dos místicos medievais. Na realização das suas actividades diárias, os membros da sociedade capitalista levam a cabo dois processos simultaneamente: reproduzem a forma das suas actividades e eliminam as condições materiais às quais esta forma de actividade inicialmente respondeu. Mas eles não sabem que levam a cabo esses processos; as suas próprias actividades não são para eles transparentes. Estão sob a ilusão de que as suas actividades são respostas a condições naturais fora do seu controlo e não vêem que eles próprios são autores dessas condições. A tarefa da ideologia capitalista é manter o véu que impede as pessoas de ver que as suas próprias actividades reproduzem a forma da sua vida quotidiana; a tarefa da teoria crítica é revelar as actividades da vida quotidiana, torná-las transparentes, fazer com que a reprodução da forma social da actividade capitalista seja visível nas actividades diárias das pessoas. Sob o capitalismo, a vida quotidiana consiste em actividades relacionadas que reproduzem e expandem a forma capitalista da actividade social. A venda do tempo de trabalho por um preço (um salário), a materialização do tempo de trabalho em mercadorias (bens alienáveis, tanto tangíveis como intangíveis), o consumo de mercadorias tangíveis e intangíveis (tais como bens de consumo e espectáculos) – estas actividades, que caracterizam a vida quotidiana sob o capitalismo, não são manifestações da «natureza humana», nem são impostas aos homens por forças fora do seu controlo. Se se afirma que o homem é «por natureza» um homem tribal sem criatividade e um homem de negócios criativo, um escravo submisso e um artesão orgulhoso, um caçador independente e um trabalhador assalariado dependente, então ou a «natureza» humana é um conceito vazio, ou ela depende de condições materiais e históricas e é de facto uma resposta a essas condições.

Alienação da Actividade Viva Na sociedade capitalista, a actividade criativa adquire a forma de produção de mercadorias, nomeadamente a produção de bens comer31

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cializáveis, e os resultados da actividade humana adquirem a forma de mercadorias. A mercantilização ou comercialização é a característica universal de toda a actividade prática e de todos os produtos. Os produtos da actividade humana que são necessários para a sobrevivência têm a forma de bens comercializáveis: só estão disponíveis a troco de dinheiro. E o dinheiro só está disponível a troco de mercadorias. Se um grande número de homens aceita a legitimidade destas convenções, se aceita a convenção de que as mercadorias são um pré-requisito para o dinheiro e o dinheiro um pré-requisito para a sobrevivência, estes homens encontram-se então encerrados num círculo vicioso. Uma vez que não possuem mercadorias, a sua única saída desse círculo é verem-se a si próprios, ou a partes de si próprios, como mercadorias. E esta é, de facto, a «solução» peculiar que os homens impõem a si próprios perante condições materiais e históricas específicas. Eles não trocam os seus corpos ou partes dos seus corpos por dinheiro. Trocam o conteúdo criativo das suas vidas, a sua actividade prática quotidiana, por dinheiro. A partir do momento em que os homens aceitem o dinheiro como um equivalente para a vida, a venda da actividade viva torna-se uma condição para a sua sobrevivência física e social. A vida é trocada pela sobrevivência. A criação e a produtividade passam a significar actividade vendida. A actividade de um homem é «produtiva», útil à sociedade, só quando é actividade vendida. E o próprio homem só é um membro produtivo da sociedade se as actividades da sua vida quotidiana forem actividades vendidas. A partir do momento em que as pessoas aceitem os termos desta troca, a actividade diária assume a forma de prostituição universal. A capacidade criativa vendida, ou a actividade diária vendida, adquirem a forma de trabalho. O trabalho é uma forma histórica específica de actividade humana. É uma actividade abstracta que tem somente uma propriedade: é mercantilizável; pode ser vendido por uma certa quantidade de dinheiro. O trabalho é uma actividade indiferente: indiferente à tarefa particular realizada e indiferente ao sujeito particular a quem a tarefa se destina. Escavar, imprimir e cinzelar são actividades diferentes, mas todas são trabalho na sociedade capitalista. Trabalhar é simplesmente «ganhar dinheiro». A actividade viva que toma a forma 32

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de trabalho é um meio para ganhar dinheiro. A vida torna-se um meio de sobrevivência. Esta irónica inversão não é o clímax dramático de um romance imaginário; é um facto da vida quotidiana na sociedade capitalista. A sobrevivência, nomeadamente a auto-preservação e a reprodução, não constitui o meio para a actividade prática criativa, mas precisamente o contrário. A actividade criativa na forma de trabalho, ou seja, actividade vendida, é uma dura necessidade para a sobrevivência; o trabalho é o meio para a auto-preservação e reprodução. A venda da actividade viva traz à baila outra inversão. Através da venda, o trabalho de um indivíduo torna-se «propriedade» de outro, é apropriado por outro, fica sob o controlo de outro. Por outras palavras, a actividade de uma pessoa torna-se a actividade de outra, a actividade do seu proprietário; é alienada à pessoa que a realiza. Assim, a própria vida, as realizações de um indivíduo no mundo, a diferença que a sua vida faz na vida da humanidade, não são apenas transformadas em trabalho, uma dura condição para a sobrevivência; são transformadas em actividade alienada, actividade realizada pelo comprador desse trabalho. Na sociedade capitalista, os arquitectos, os engenheiros, os trabalhadores, não são construtores; o construtor é o homem que compra o seu trabalho; os seus projectos, cálculos e movimentos são-lhes alienados; a sua actividade viva, as suas realizações, são dele. Os sociólogos académicos, que tomam a venda do trabalho como certa, compreendem esta alienação do trabalho como um sentimento: a actividade do trabalhador «parece» alienada ao trabalhador, «parece» ser controlada por outro. Contudo, qualquer trabalhador pode explicar aos sociólogos académicos que a alienação não é um sentimento nem uma ideia na cabeça do trabalhador, mas um facto real da vida quotidiana do trabalhador. A actividade vendida é de facto alienada ao trabalhador; o seu trabalho é de facto controlado pelo seu comprador. Em troca da sua actividade vendida, o trabalhador recebe dinheiro, o meio de sobrevivência convencionalmente aceite na sociedade capitalista. Com esse dinheiro ele pode comprar mercadorias, coisas, mas não pode recomprar a sua actividade. Isto revela uma «lacuna» peculiar no dinheiro enquanto «equivalente universal». Uma pessoa pode vender mercadorias por dinheiro e pode comprar as mesmas mercadorias com 33

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dinheiro. Pode vender a sua actividade viva por dinheiro, mas não pode comprar a sua actividade viva por dinheiro. As coisas que o trabalhador compra com o seu salário são, primeiro que tudo, bens de consumo que possibilitam a sua sobrevivência, a reprodução da sua força de trabalho para que possa continuar a vendêla; e essas coisas são espectáculos, objectos de admiração passiva. Ele consome e admira os produtos da actividade humana passivamente. Não existe no mundo como um agente activo que o transforma, mas como um espectador indefeso e impotente; ele pode chamar a este estado de admiração inofensiva «felicidade», e visto o trabalho ser penoso, ele poderá desejar ser «feliz», isto é, inactivo, durante toda a sua vida (condição parecida com a de ter nascido morto). As mercadorias, os espectáculos, consomem-no; ele gasta energia viva em admiração passiva; é consumido pelas coisas. Nesse sentido, quanto mais tem, menos é. (Um indivíduo pode aguentar esta morte em vida através de uma actividade criativa marginal; mas a população não pode, exceptuando se abolir a forma capitalista de actividade prática, se abolir o trabalho assalariado, desalienando assim a actividade criativa.)

O Fetichismo das Mercadorias Ao alienarem a sua actividade, materializando-a em mercadorias, em receptáculos materiais do trabalho humano, as pessoas reproduzem-se a si próprias e criam Capital. Do ponto de vista da ideologia capitalista, e particularmente da Economia académica, esta declaração é falsa: as mercadorias «não são apenas produto do trabalho»; elas são produzidas pelos «factores de produção» primordiais, Terra, Trabalho e Capital, a Sagrada Trindade capitalista, e o principal «factor» é obviamente o herói da peça, o Capital. O propósito desta Trindade superficial não é a análise, pois não é para analisar que estes Especialistas são pagos. Eles são pagos para obscurecer, para mascarar a forma social da actividade prática sob o capitalismo, para encobrir o facto de os produtores se reproduzirem a si mesmos, reproduzirem os seus exploradores e os instrumentos com os quais são explorados. A fórmula da Trindade não consegue 34

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convencer. É óbvio que a terra não é mais mercadoria produtora do que a água, o ar ou o sol. Além disso, o Capital, que é ao mesmo tempo o nome atribuído a uma relação social entre os trabalhadores e os capitalistas, aos instrumentos de produção detidos por um capitalista e ao equivalente monetário dos seus instrumentos e «intangíveis», não produz nada mais do que as ejaculações publicadas pelos Economistas académicos. Mesmo os instrumentos de produção que são o capital de um capitalista só são «factores de produção» primordiais se as palas desses economistas limitarem a sua visão a uma empresa capitalista isolada, porque a visão de toda a economia revela que o capital de um capitalista é o receptáculo material do trabalho alienado a outro capitalista. Contudo, ainda que a fórmula da Trindade não convença, ela cumpre a tarefa de obscurecer ao mudar o tema da questão: em vez de perguntar por que é que a actividade das pessoas sob o capitalismo adquire a forma de trabalho assalariado, potenciais analistas da vida quotidiana capitalista são transformados em académicos marxistas domesticados que perguntam se o trabalho é ou não o único «factor de produção». Assim, a Economia (e a ideologia capitalista em geral) tratam a terra, o dinheiro e os produtos do trabalho como coisas que têm a capacidade de produzir, de criar valor, de trabalhar pelos seus proprietários, de transformar o mundo. Foi a isto que Marx chamou o fetichismo que caracteriza as concepções quotidianas das pessoas e é elevado pela Economia ao nível de dogma. Para o economista, as pessoas vivas são coisas («factores de produção») e as coisas vivem (o dinheiro «trabalha», o Capital «produz»). O adorador do fetiche atribui o produto da sua própria actividade ao seu fetiche. E disso resulta que ele deixa de exercer o seu próprio poder (o poder de transformar a natureza, o poder de determinar a forma e o conteúdo da sua vida quotidiana); exerce apenas esses «poderes» que atribui ao seu fetiche (o «poder» de comprar mercadorias). Ou seja, o adorador do fetiche castra-se a si próprio e atribui virilidade ao seu fetiche. Mas o fetiche é uma coisa morta, não é um ser vivo; não tem virilidade. O fetiche não é mais do que uma coisa para a qual e através da qual as relações capitalistas são mantidas. O poder misterioso do Capital, o seu «poder» de produzir, a sua virilidade, não reside em si 35

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mesmo, mas no facto de as pessoas alienarem a sua actividade criativa, de venderem o seu trabalho aos capitalistas, de materializarem ou reificarem o seu trabalho alienado em mercadorias. Por outras palavras, as pessoas são compradas com os produtos das suas próprias actividades, vendo, contudo, a sua própria actividade como actividade do Capital e os seus próprios produtos como produtos do Capital. Ao atribuírem poder criativo ao Capital e não à sua própria actividade, renunciam à sua actividade viva, à sua vida quotidiana, entregando-a ao Capital, o que significa que as pessoas se entregam diariamente à personificação do Capital, o capitalista. Ao venderem o seu trabalho, ao alienarem a sua actividade, as pessoas reproduzem diariamente as personificações das formas dominantes de actividade sob o capitalismo; reproduzem o trabalhador assalariado e o capitalista. Não reproduzem simplesmente os indivíduos fisicamente, reproduzem-nos também socialmente; reproduzem indivíduos que são vendedores de força de trabalho e indivíduos que possuem meios de produção; reproduzem os indivíduos assim como as actividades específicas, tanto a venda como a posse. Sempre que as pessoas realizam uma actividade que elas próprias não definiram e não controlam, sempre que pagam por bens que produzem com dinheiro que recebem em troca da sua actividade alienada, sempre que passivamente admiram os produtos da sua própria actividade como objectos alienados obtidos pelo seu dinheiro, dão nova vida ao Capital e aniquilam as suas próprias vidas. O objectivo do processo é a reprodução da relação entre o trabalhador e o capitalista. Contudo, esse não é o objectivo dos agentes individuais nele envolvidos. As suas actividades não são para eles transparentes; os seus olhos estão fixados no fetiche que se encontra entre o acto e o seu resultado. Os agentes individuais mantêm os seus olhos fixados nas coisas, precisamente nessas coisas para as quais as relações capitalistas são estabelecidas. O trabalhador enquanto produtor procura trocar o seu trabalho diário por um salário em dinheiro, procura precisamente aquilo através do qual a sua relação com o capitalista é restabelecida, aquilo através do qual ele se reproduz a si mesmo como trabalhador assalariado e reproduz o outro como capitalista. O trabalhador como consumidor troca o seu dinheiro por produtos do 36

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trabalho, precisamente as coisas que o capitalista tem para vender de maneira a realizar o seu Capital. A transformação diária de actividade viva em Capital é mediada por coisas, não é levada a cabo pelas coisas. O adorador do fetiche não sabe disso; para ele, o trabalho e a terra, os instrumentos e o dinheiro, os empresários e os banqueiros, são todos eles «factores» e «agentes». Quando o caçador que usa um amuleto abate um veado com uma pedra, ele poderá considerar o amuleto um «factor» essencial no abate do veado e até na consideração do veado como um objecto a abater. Se ele for um adorador do fetiche responsável e bem-educado, irá dedicar a sua atenção ao seu amuleto, tratando-o com cuidado e admiração; de maneira a melhorar as condições materiais da sua vida, ele irá melhorar a forma como utiliza o seu fetiche, não a forma como atira a pedra; no limite, talvez até mande o seu amuleto «caçar» por ele. As suas próprias actividades diárias não são para ele transparentes: quando come bem, não consegue ver que foi a sua própria acção de atirar a pedra, e não a acção do amuleto, que lhe forneceu a comida; quando passa fome, não consegue ver que o que causa a sua fome é a sua própria acção de adorar o amuleto em vez de caçar, e não a ira do seu fetiche. O fetichismo das mercadorias e do dinheiro, a mistificação das próprias actividades diárias, a religião da vida quotidiana que atribui actividade viva a coisas inanimadas, não são caprichos mentais provenientes da imaginação do homem; têm a sua origem no carácter das relações sociais sob o capitalismo. Os homens relacionam-se de facto através de coisas; o fetiche é de facto a ocasião para a qual eles actuam colectivamente e através da qual reproduzem a sua actividade. Mas não é o fetiche que realiza a actividade. Não é o Capital que transforma matérias-primas, nem é o Capital que produz bens. Se a actividade viva não transformasse os materiais, estes permaneceriam intactos, inertes, matéria morta. Se os homens não estivessem dispostos a continuar a vender a sua actividade viva, a impotência do Capital seria revelada; o Capital deixaria de existir; a última coisa que teria capacidade de fazer seria fazer lembrar às pessoas uma forma ultrapassada de vida quotidiana caracterizada como prostituição diária universal. O trabalhador aliena a sua vida para preservar a sua vida. Se não vendesse a sua actividade viva não receberia um salário e poderia não 37

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sobreviver. Contudo, não é o salário que faz da alienação a condição para a sobrevivência. Se os homens não estivessem colectivamente dispostos a vender as suas vidas, se estivessem dispostos a assumir o comando das suas próprias actividades, a prostituição universal não seria uma condição para a sobrevivência. É a disposição das pessoas para continuarem a vender o seu trabalho, e não as coisas pelas quais eles o vendem, que torna a alienação da actividade viva necessária à preservação da vida. A actividade viva vendida pelo trabalhador é comprada pelo capitalista. E é só esta actividade viva que dá vida ao Capital e o torna «produtivo». O capitalista, «proprietário» de matérias-primas e instrumentos de produção, apresenta objectos naturais e produtos do trabalho de outras pessoas como sua «propriedade privada». Mas não é o misterioso poder do Capital que cria a «propriedade privada» do capitalista; o que cria a «propriedade» é a actividade viva, e a forma dessa actividade é aquilo que a mantém «privada».

A Transformação de Actividade Viva em Capital A transformação de actividade viva em Capital acontece através de coisas, diariamente, mas não é levada a cabo pelas coisas. As coisas que são produtos da actividade humana parecem ser agentes activos porque as actividades e os contactos são estabelecidos para as coisas e através delas e porque as actividades das pessoas não são para elas transparentes; confundem o objecto mediador com a causa. No processo de produção capitalista, o trabalhador encarna ou materializa a sua energia viva alienada num objecto inerte utilizando instrumentos que são materializações de actividades de outras pessoas. (Os instrumentos industriais sofisticados materializam a actividade intelectual e manual de inúmeras gerações de inventores, aperfeiçoadores e produtores de todos os cantos do globo e de várias formas de sociedade.) Os instrumentos, em si mesmos, são objectos inertes; são materializações de actividade viva, mas não estão vivos. O único agente activo no processo de produção é o trabalhador vivo. Ele utiliza os produtos do trabalho de outras pessoas e infunde-lhes vida, por assim 38

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dizer, mas a vida é a sua própria; não pode ressuscitar os indivíduos que depositaram a sua actividade viva no seu instrumento. O instrumento poderá levá-lo a fazer mais num determinado período de tempo e, nesse sentido, poderá aumentar a sua produtividade. Mas só o trabalho vivo que é capaz de produzir pode ser produtivo. Por exemplo, quando um trabalhador industrial maneja um torno mecânico, ele utiliza produtos provenientes do trabalho de gerações de físicos, inventores, engenheiros eléctricos, fabricantes de tornos. Ele é, obviamente, mais produtivo que um artesão que cinzela o mesmo objecto à mão. Mas o «Capital» à disposição do trabalhador industrial não é de nenhuma forma mais «produtivo» que o «Capital» do artesão. Se a actividade intelectual e manual de sucessivas gerações não tivesse materializado o torno mecânico, ou seja, se o trabalhador industrial tivesse que inventar o torno, a electricidade e o torno mecânico, levaria inúmeras vidas a transformar um simples objecto num torno mecânico, e nenhuma quantidade de Capital poderia aumentar a sua produtividade acima da do artesão que cinzela o objecto à mão. A noção de «produtividade do capital» e, particularmente, o cálculo detalhado dessa «produtividade», são invenções da «ciência» da Economia, dessa religião da vida quotidiana capitalista que leva a energia das pessoas a adorar, admirar e lisonjear o principal fetiche da sociedade capitalista. Os colegas medievais desses «cientistas» efectuaram cálculos detalhados da altura e largura dos anjos no Céu, sem nunca terem questionado que anjos ou Céu seriam e tomando como certa a existência de ambos. O resultado da actividade vendida do trabalhador é um produto que não lhe pertence. Esse produto é uma encarnação do seu trabalho, a materialização de uma parte da sua vida, um receptáculo que contém a sua actividade viva, mas que não é dele; é-lhe tão estranho como o seu trabalho. Não foi ele que decidiu fazê-lo, e quando fica feito, não dispõe dele. Se o quiser, tem de o comprar. Aquilo que ele fez não foi simplesmente um produto com certas propriedades úteis; para isso não precisaria de ter vendido o seu trabalho a um capitalista em troca de um salário; precisaria apenas de escolher os materiais necessários e as ferramentas disponíveis, precisaria apenas de modelar os materiais tendo em conta os seus objectivos e apenas limitado pelos seus conheci39

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mentos e capacidades. (É óbvio que individualmente só pode fazer isso de forma marginal; a apropriação e o uso pelos homens de materiais e ferramentas por eles utilizáveis só pode realizar-se depois da abolição da forma de actividade capitalista.) O que o trabalhador produz sob as condições capitalistas é um produto com um atributo muito específico, o atributo da vendibilidade. O que a sua actividade alienada produz é uma mercadoria. Pelo facto de a produção capitalista ser uma produção de mercadorias, é falsa a afirmação de que o objectivo dessa operação é a satisfação das necessidades humanas; trata-se de uma racionalização e de uma desculpa. A «satisfação das necessidades humanas» não é o objectivo do capitalista nem do trabalhador envolvido na produção, nem é o resultado dessa operação. O trabalhador vende o seu trabalho para receber um salário; o conteúdo específico do trabalho é-lhe indiferente; ele não aliena o seu trabalho a um capitalista que não lhe dê um salário em troca, independentemente da quantidade de necessidades humanas que os produtos desse capitalista possam satisfazer. O capitalista compra trabalho e emprega-o na produção para que disso resultem mercadorias que possam ser vendidas. Ele é indiferente às propriedades específicas do produto, tal como é indiferente às necessidades das pessoas; a respeito do produto, interessa-lhe apenas saber por quanto o irá vender, e sobre a necessidade das pessoas só lhe interessa o quanto elas «precisam» de comprar e como podem ser coagidas, através de propaganda e de condicionamento psicológico, a «precisarem» de mais. O objectivo do capitalista é satisfazer a sua necessidade de reproduzir e aumentar o Capital, e o resultado de toda essa operação é a reprodução expandida do trabalho assalariado e do Capital (que não são «necessidades humanas»). A mercadoria produzida pelo trabalhador é trocada pelo capitalista por uma quantidade específica de dinheiro; a mercadoria constitui um valor que é trocado por um valor equivalente. Por outras palavras, o trabalho vivo e passado materializado no produto pode existir em duas formas distintas mas equivalentes, em mercadorias e em dinheiro, ou naquilo que lhes é comum, o valor. Isto não significa que o valor seja trabalho. O valor é a forma social do trabalho reificado (materializado) na sociedade capitalista. 40

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Sob o capitalismo, as relações sociais não são estabelecidas directamente; são estabelecidas através do valor. A actividade quotidiana não passa por uma troca directa; é trocada na forma de valor. Consequentemente, o que acontece à actividade viva sob o capitalismo não pode ser identificado observando a actividade em si mesma, mas apenas seguindo as metamorfoses do valor. Quando a actividade viva das pessoas assume a forma de trabalho (actividade alienada), ela adquire o atributo da permutabilidade; adquire a forma de valor. Ou seja, o trabalho pode ser trocado por uma quantidade «equivalente» de dinheiro (salários). A deliberada alienação de actividade viva, que os membros da sociedade capitalista entendem ser necessária à sua sobrevivência, reproduz a forma capitalista na qual a alienação é necessária para a sobrevivência. Pelo facto de a actividade viva ter a forma de valor, os produtos dessa actividade devem também ter a forma de valor: devem poder ser permutáveis por dinheiro. Isso é óbvio pois, se os produtos do trabalho não assumissem a forma de valor mas, por exemplo, a forma de objectos úteis à disposição da sociedade, não sairiam da fábrica ou seriam levados livremente pelos membros da sociedade sempre que tivessem necessidade deles; em ambos os casos, os salários em dinheiro recebidos pelos trabalhadores não teriam valor e a actividade viva não poderia ser vendida por uma quantidade de dinheiro «equivalente»; a actividade viva não poderia ser alienada. Consequentemente, logo que a actividade viva adquire a forma de valor, os produtos dessa actividade adquirem igualmente a forma de valor e a reprodução da vida quotidiana ocorre através de mudanças ou metamorfoses de valor. O capitalista vende os produtos do trabalho num mercado; troca-os por uma quantia de dinheiro equivalente; realiza um determinado valor. A magnitude específica desse valor num determinado mercado é o preço das mercadorias. Para o Economista académico, o Preço é a chave de S. Pedro que abre as portas do Céu. Como o próprio Capital, o Preço movimenta-se num mundo maravilhoso composto inteiramente por objectos; os objectos têm relações humanas entre si e estão vivos; transformam-se e comunicam entre si; casam-se e têm filhos. E é claro que é só graças a objectos inteligentes, poderosos e criativos, que as pessoas podem ser tão felizes na sociedade capitalista. 41

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Nas representações pictóricas dos trabalhos celestes do Economista, os anjos fazem tudo e os homens não fazem nada; os homens simplesmente desfrutam do que esses seres superiores fazem por eles. Não é só o Capital que produz e o dinheiro que trabalha; têm semelhantes virtudes outros seres misteriosos. Assim, a Oferta, a quantidade de coisas que é vendida, e a Procura, a quantidade de coisas que é comprada, determinam em conjunto o Preço, uma certa quantidade de dinheiro; quando a Oferta e a Procura casam numa posição particular do diagrama, dão à luz o Preço Equilibrado, que corresponde a um estado universal de felicidade. As actividades da vida quotidiana são feitas pelas coisas, e as pessoas, durante as suas horas de «produção», são reduzidas a coisas («factores de produção»), e a passivos espectadores de coisas durante o seu «tempo de lazer». A virtude do Cientista Económico consiste na sua capacidade de atribuir o resultado da actividade quotidiana das pessoas às coisas e na sua incapacidade de ver a actividade viva das pessoas sob as palhaçadas das coisas. Para o Economista, as coisas através das quais a actividade das pessoas é regulada sob o capitalismo são, elas próprias, as mães e os filhos, as causas e as consequências da sua própria actividade. A magnitude do valor, isto é, o preço de uma mercadoria, a quantidade de dinheiro por que é trocada, não é determinada pelas coisas, mas pelas actividades diárias das pessoas. Oferta e procura, competição perfeita e imperfeita, não são mais do que formas sociais de produtos e actividades na sociedade capitalista; não têm vida própria. O facto de a actividade ser alienada, ou seja, de o tempo de trabalho ser vendido por uma quantidade específica de dinheiro que tem um certo valor, tem várias consequências para a magnitude do valor dos produtos desse trabalho. O valor das mercadorias vendidas deve, pelo menos, ser igual ao valor do tempo de trabalho. Isto é óbvio tanto do ponto de vista de uma empresa capitalista isolada, como do ponto de vista da sociedade como um todo. Se o valor das mercadorias vendidas pelo indivíduo capitalista fosse menor que o valor do trabalho que contratou, as suas despesas com o trabalho seriam, por si sós, maiores do que os seus lucros e ele iria rapidamente à falência. Socialmente, se o valor da produção dos trabalhadores fosse menor que o valor do seu consumo, a força de trabalho não poderia sequer reproduzir-se a si mesma, e ainda 42

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menos a classe dos capitalistas. Contudo, se o valor das mercadorias fosse simplesmente igual ao valor do tempo de trabalho nelas despendido, os produtores de mercadorias reproduzir-se-iam simplesmente a si próprios e a sua sociedade não seria uma sociedade capitalista; a sua actividade ainda poderia consistir na produção de mercadorias, mas não seria uma produção de mercadorias capitalista. Para que o trabalho crie Capital, o valor dos produtos do trabalho tem de ser maior que o valor do trabalho. Ou seja, a força de trabalho deve produzir um produto excedente, uma quantidade de bens que não consome, e este produto excedente deve ser transformado em mais-valia, uma forma de valor que não é apropriada pelos trabalhadores como salário, mas pelos capitalistas como lucro. Além disso, o valor dos produtos do trabalho deve ser ainda maior, já que o trabalho vivo não é a única forma de trabalho que neles é materializado. No processo de produção, os trabalhadores despendem a sua própria energia, mas também usam, nos instrumentos que empregam, o trabalho acumulado de outros trabalhadores, e dão forma a materiais em que já foi previamente despendido trabalho. Isto leva ao estranho resultado de o valor dos produtos do trabalhador e o valor do seu salário terem diferentes magnitudes, ou seja, de o montante de dinheiro recebido pelo capitalista quando vende as mercadorias produzidas pelos seus trabalhadores contratados ser diferente do montante que ele paga aos trabalhadores. Esta diferença não se explica pelo facto de os materiais utilizados e as ferramentas terem de ser pagos. Se o valor das mercadorias vendidas fosse igual ao valor do trabalho vivo e dos instrumentos, não haveria ainda espaço para os capitalistas. O facto é que a diferença entre as duas magnitudes tem de ser suficientemente grande para sustentar uma classe de capitalistas – não apenas os indivíduos, mas também a actividade específica a que esses indivíduos se dedicam, nomeadamente a aquisição de trabalho. A diferença entre o valor total dos produtos e o valor do trabalho despendido na sua produção é a mais-valia, a semente do Capital. Para se poder localizar a origem da mais-valia, é necessário examinar por que razão o valor do trabalho é inferior ao valor das mercadorias por ele produzidas. A actividade alienada do trabalhador transforma materiais com o recurso a instrumentos e produz uma certa quantidade 43

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de mercadorias. Contudo, depois de essas mercadorias terem sido vendidas, os materiais usados e os instrumentos pagos, os trabalhadores não recebem, na forma de salário, o valor remanescente daquilo que produziram; recebem menos. Ou seja, durante todos os dias de trabalho os trabalhadores realizam uma determinada quantidade de trabalho não pago, trabalho forçado, pelo qual não recebem qualquer equivalente. A realização deste trabalho não pago, deste trabalho forçado, é outra «condição para a sobrevivência» na sociedade capitalista. Contudo, tal como a alienação, esta condição não é imposta pela natureza, mas pela prática colectiva das pessoas, pelas suas actividades quotidianas. Antes da existência dos sindicatos, o trabalhador isolado aceitava qualquer tipo de trabalho forçado disponível, já que a rejeição do trabalho significaria que outros trabalhadores aceitariam os termos disponíveis de troca e o trabalhador isolado não receberia salário. Os trabalhadores competiam entre si pelos salários propostos pelos capitalistas; se um trabalhador se despedisse porque o salário era inaceitavelmente baixo, um trabalhador desempregado estava disposto a substitui-lo, já que para o desempregado um pequeno salário é maior do que nenhum salário. Esta competição entre os trabalhadores era chamada «trabalho livre» pelos capitalistas, que fizeram grandes sacrifícios para manter a liberdade dos trabalhadores, por ser precisamente esta liberdade que preservava a mais-valia do capitalista e lhe possibilitava a acumulação de Capital. Nenhum trabalhador tinha a intenção de produzir mais bens do que aqueles por que era pago. O seu objectivo era obter um salário tão alto quanto possível. Contudo, a existência de trabalhadores que não recebiam qualquer salário e cuja concepção de um salário alto era consequentemente mais modesta do que a do trabalhador empregado, tornou possível ao capitalista contratar trabalho por um salário mais baixo. Na verdade, a existência de trabalhadores desempregados tornou possível que o capitalista pagasse o salário mais baixo pelo qual os trabalhadores estariam dispostos a trabalhar. Deste modo, o resultado da actividade colectiva diária dos trabalhadores, lutando cada um individualmente pelo maior salário possível, consistiu em diminuir os salários de todos; o efeito da competição de um contra todos foi que todos receberam o menor salário possível e o capitalista ganhou o maior lucro possível. 44

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A prática diária de todos anula os objectivos de cada um. Mas os trabalhadores não sabiam que a sua situação era um produto do seu comportamento diário; as suas próprias actividades não eram para eles transparentes. Para os trabalhadores, parecia que os salários baixos eram simplesmente uma parte natural da vida, como a doença e a morte, e que a diminuição dos salários era uma catástrofe natural, como uma cheia ou um Inverno rigoroso. As críticas dos socialistas e as análises de Marx, assim como o incremento do desenvolvimento industrial que proporcionou mais tempo para a reflexão, arrancaram alguns dos véus e tornaram possível que os trabalhadores tivessem, até certo ponto, uma visão penetrante das suas próprias actividades. Ainda assim, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, os trabalhadores não se livraram da forma capitalista da vida quotidiana; formaram sindicatos. E na União Soviética e Europa de Leste, em condições materiais diferentes, os trabalhadores (e camponeses) substituíram a classe capitalista por uma burocracia de Estado que adquire trabalho alienado e acumula Capital em nome de Marx. Com os sindicatos, a vida quotidiana é parecida com aquilo que existia antes dos sindicatos. De facto, é quase a mesma coisa. A vida quotidiana continua a consistir em trabalho, em actividade alienada e em trabalho não pago ou forçado. O trabalhador sindicalizado já não estabelece os termos da sua alienação; os funcionários do sindicato fazem-no por ele. As condições em que a actividade dos trabalhadores é alienada já não são orientadas pela necessidade individual dos trabalhadores de aceitarem o que está disponível; passaram a ser orientadas pela necessidade dos burocratas do sindicato de manterem a sua posição de chulos entre os vendedores e os compradores de trabalho. Com ou sem sindicatos, a mais-valia não é um produto da natureza nem do Capital; é criada pelas actividades diárias das pessoas. Na realização dessas actividades, as pessoas não estão apenas dispostas a alienar essas actividades, estão também dispostas a reproduzir as condições que as forçam a alienar as suas actividades, a reproduzir o Capital e, dessa forma, a capacidade que o Capital tem de adquirir trabalho. Isto não acontece por não saberem «qual é a alternativa». A pessoa que se encontra incapacitada com uma indigestão crónica porque come demasiadas gorduras, não continua a comer gorduras por não saber qual é a alter45

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nativa. Ou prefere ficar incapacitada a desistir das gorduras, ou então não vê claramente que o causador dessa incapacidade é o seu consumo diário de gorduras. E se o seu médico, sacerdote, professor e político lhe dizem, primeiro, que a gordura é aquilo que a mantém viva e, segundo, que eles já fazem por ela tudo o que ela faria se andasse bem de saúde, então não é de admirar que a sua actividade não seja para ela transparente e que não faça grande esforço para a tornar transparente. A produção de mais-valia é uma condição de sobrevivência, não para a população, mas para o sistema capitalista. A mais-valia é a porção do valor das mercadorias produzida pelo trabalho que não é devolvida aos trabalhadores. Pode expressar-se em mercadorias ou em dinheiro (tal como o Capital pode expressar-se como uma quantidade de coisas ou de dinheiro), mas isto não altera o facto de que é uma expressão do trabalho materializado presente numa determinada quantidade de produtos. Uma vez que os produtos podem ser trocados por uma quantia «equivalente» de dinheiro, o dinheiro «está para», ou representa, o mesmo valor que os produtos. O dinheiro pode, por sua vez, ser trocado por uma outra quantidade de produtos de valor «equivalente». A junção dessas trocas, que ocorrem simultaneamente durante a efectivação da vida quotidiana capitalista, constitui o processo de circulação capitalista. É através deste processo que a metamorfose da mais-valia em Capital se realiza. A porção do valor que não é devolvida aos trabalhadores, nomeadamente, a mais-valia, permite a existência do capitalista e também permite que este faça muito mais do que simplesmente existir. O capitalista investe uma porção desta mais-valia; contrata novos trabalhadores e compra novos meios de produção; expande o seu domínio. O que isto significa é que o capitalista acumula novo trabalho, tanto na forma de trabalho vivo contratado como na de trabalho passado (pago e não pago) que se encontra conservado nos materiais e máquinas que ele compra. A classe capitalista como um todo acumula o trabalho excedente da sociedade, mas este processo ocorre numa escala social e, consequentemente, não pode ser visto observando-se apenas as actividades de um capitalista isolado. Convém lembrar que os produtos comprados por um determinado capitalista como instrumentos têm as mesmas características que os produtos que ele vende. Um primeiro capitalista vende instru46

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mentos a um segundo capitalista por um determinado valor e só uma parte deste valor é devolvido aos trabalhadores sob a forma de salário; a parte restante é mais-valia, com a qual o primeiro capitalista compra novos instrumentos e trabalho. O segundo capitalista compra os instrumentos pelo valor determinado, significando isso que ele paga, pela quantidade total de trabalho prestado ao primeiro capitalista, a quantidade de trabalho que foi remunerado assim como a quantidade de trabalho realizado livre de cobrança. E isto significa que os instrumentos acumulados pelo segundo capitalista contêm o trabalho não pago prestado ao primeiro. O segundo capitalista, por sua vez, vende os seus produtos por um determinado valor e devolve apenas uma porção desse valor aos seus trabalhadores, usando o restante para novos instrumentos e trabalho. Se todo o processo fosse comprimido num único período de tempo e se todos os capitalistas fossem agregados num só, ver-se-ia que o valor com que o capitalista adquire novos instrumentos e trabalho é igual ao valor dos produtos que não devolveu aos produtores. Este trabalho excedente acumulado é Capital. Na sociedade capitalista como um todo, o Capital total é igual à soma do trabalho não pago realizado por gerações de seres humanos cujas vidas consistiram na alienação diária da sua actividade viva. Por outras palavras, o Capital, em face do qual os homens vendem os seus dias de vida, é o produto da actividade vendida do homem e é reproduzido e expandido todos os dias em que um homem vende mais um dia de trabalho, em cada momento em que decide continuar a viver a forma capitalista da vida quotidiana.

Conservação e Acumulação de Actividade Humana A transformação de trabalho excedente em Capital é uma forma histórica específica de um processo mais geral, o processo da industrialização, a permanente transformação do ambiente material do homem. Certas características essenciais desta consequência da actividade humana sob o capitalismo podem ser compreendidas através de uma ilustração simplificada. Numa sociedade imaginária, as pessoas passam a maioria do seu tempo activo a produzir alimentos e outras necessi47

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dades; só uma parte do seu tempo é «tempo excedente», no sentido em que é isento da produção de necessidades. Esta actividade excedente pode ser dedicada à produção de alimentos para padres e guerreiros, que por si próprios não produzem; pode ser usada na produção de bens que são esbanjados em ocasiões sagradas; pode ser usada na realização de cerimónias ou exercícios ginásticos. Em qualquer desses casos, não é provável que as condições materiais dessas pessoas seja alterada, de uma geração para a outra, como resultado das suas actividades diárias. Contudo, uma geração de pessoas desta sociedade imaginária poderá pôr de reserva o seu tempo excedente em vez de o usar. Por exemplo, poderão passar este tempo excedente a comprimir molas. A geração seguinte poderá descomprimir a energia armazenada nas molas para realizar tarefas necessárias ou poderá simplesmente utilizar a energia das molas para comprimir novas molas. Em ambos os casos, o trabalho excedente conservado da geração anterior irá fornecer à nova geração uma maior quantidade de tempo de trabalho excedente. A nova geração poderá também conservar esse excedente em molas e noutros receptáculos. Num período relativamente curto, o trabalho conservado nas molas irá exceder o tempo de trabalho disponível a qualquer geração viva; com o dispêndio de relativamente pouca energia, as pessoas desta sociedade imaginária serão capazes de empregar as molas na maioria das suas tarefas necessárias e também na tarefa de comprimir novas molas para as gerações vindouras. A maioria das horas de vida que anteriormente despendiam a produzir bens, estarão agora disponíveis para actividades que não são ditadas pela necessidade mas projectadas pela imaginação. À primeira vista não parece provável que as pessoas dediquem as suas horas de vida à bizarra tarefa de comprimir molas. Também não parece provável, mesmo que comprimam as molas, que as conservem para gerações futuras, já que a descompressão das molas poderá fornecer, por exemplo, um maravilhoso espectáculo em dias festivos. Contudo, se as pessoas não dispusessem das suas próprias vidas, se a sua actividade laboral não fosse sua, se a sua actividade prática consistisse em trabalho forçado, então a actividade humana poderia ser empregada na tarefa de comprimir molas, na tarefa de conservar em receptáculos materiais tempo de trabalho excedente. O papel histórico do Capitalis48

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mo, um papel desempenhado por pessoas que aceitaram a legitimidade de outros disporem da sua vida, consistiu precisamente na conservação de actividade humana em receptáculos materiais através de trabalho forçado. A partir do momento em que as pessoas se submetem ao «poder» do dinheiro para comprar trabalho conservado assim como actividade viva, a partir do momento em que aceitam o «direito» fictício de os detentores de dinheiro controlarem e disporem da actividade conservada assim como da actividade viva da sociedade, essas pessoas transformam dinheiro em Capital e os detentores de dinheiro em Capitalistas. Esta dupla alienação, a alienação de actividade viva na forma de trabalho assalariado e a alienação da actividade de gerações passadas na forma de trabalho conservado (meios de produção), não é um acto isolado ocorrido algures na História. A relação entre trabalhadores e capitalistas não é uma coisa que se impôs a si mesma na sociedade algures no passado, de uma vez por todas. O homem nunca assinou um contrato, nem sequer fez um qualquer acordo verbal, em que abdicava do poder sobre a sua actividade viva e em que abdicava do poder sobre toda a actividade viva de todas as gerações vindouras em todas as partes do globo. O Capital usa a máscara de uma força natural; parece tão sólido como a própria terra; os seus movimentos parecem ser tão irreversíveis como as correntes; as suas crises tão inevitáveis como terramotos e cheias. Mesmo quando se admite que o poder do Capital é criado pelo homem, esta admissão poderá ser uma mera ocasião para a invenção de uma máscara ainda mais imponente, a máscara de uma força fabricada pelo homem, um monstro Frankenstein, cujo poder inspira maior temor do que qualquer força natural. Contudo, o Capital não é uma força natural nem um monstro fabricado pelo homem, criado algures no passado e que desde então passou a dominar a vida humana. O poder do Capital não reside no dinheiro, pois o dinheiro é uma convenção social que não tem mais «poder» do que aquele que os homens estejam dispostos a conceder-lhe; quando os homens recusam vender o seu trabalho, o dinheiro não pode realizar nem sequer as tarefas mais simples, porque o dinheiro não «trabalha». O poder do Capital também não reside em receptáculos materiais nos quais o trabalho de gerações passadas é conservado, porque a ener49

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gia potencialmente conservada nesses receptáculos pode ser libertada pela actividade de pessoas vivas, quer os receptáculos sejam ou não Capital, nomeadamente «propriedade» alienada. Sem a actividade viva, a acumulação de objectos que constitui o Capital da sociedade seria um mero amontoado disperso de variados artefactos sem vida própria e os «proprietários» do Capital seriam uma mera mistura dispersa de pessoas invulgarmente pouco criativas (por formação), que a si mesmas se rodeiam de pedaços de papel na vã tentativa de ressuscitarem memórias de um passado grandioso. O único «poder» do Capital reside nas actividades diárias das pessoas vivas; este «poder» consiste na disposição de as pessoas venderem as suas actividades diárias em troca de dinheiro e de abdicarem de controlar os produtos da sua própria actividade e da actividade de gerações anteriores. A partir do momento em que uma pessoa vende o seu trabalho a um capitalista e aceita apenas uma parte do seu produto como pagamento por esse trabalho, ela cria condições para a aquisição e exploração de outras pessoas. Nenhum homem daria o braço ou um filho de boa vontade em troca de dinheiro; ainda assim, quando um homem vende a sua vida de trabalho deliberadamente e conscientemente para adquirir coisas necessárias à existência, ele não reproduz apenas as condições que continuam a fazer da venda da sua vida uma necessidade para a sua preservação; cria também condições que fazem com que a venda da vida seja uma necessidade para outras pessoas. Gerações vindouras poderão claramente recusar vender as suas vidas de trabalho pela mesma razão que ele recusou vender o seu braço; contudo, cada falha na recusa do trabalho alienado e forçado aumenta a reserva de trabalho conservado com que o Capital pode comprar vidas de trabalho. Para poder transformar trabalho excedente em Capital, o capitalista tem de encontrar uma forma de o conservar em receptáculos materiais, em novos meios de produção, e tem de contratar novos trabalhadores para activarem os novos meios de produção. Ou seja, tem de alargar a sua empresa ou começar uma nova empresa num diferente ramo de produção. Isto pressupõe ou requer a existência de materiais que podem ser transformados em novas mercadorias comercializáveis, a existência de compradores desses novos produtos e a existência de pessoas suficientemente pobres para estarem dispostas a vender o seu trabalho. 50

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Estes requisitos são eles mesmos criados pela actividade capitalista e os capitalistas não reconhecem limites ou obstáculos à sua actividade; a democracia do Capital exige uma liberdade absoluta. O Imperialismo não é simplesmente a «última fase» do Capitalismo; é também a primeira. Tudo o que possa ser transformado num bem comerciável é grão para o moinho capitalista, quer esteja na propriedade do capitalista ou na do vizinho, quer se encontre à superfície da terra ou debaixo dela, quer flutue no mar ou rasteje no seu solo; quer esteja restringido a outros continentes ou a outros planetas. Todas as explorações humanas da natureza, da Alquimia à Física, são mobilizadas para a busca de novos materiais em que seja possível depositar trabalho, para encontrar novos objectos que alguém possa ser ensinado a comprar. Compradores de produtos velhos ou novos são criados por qualquer meio disponível e estão constantemente a ser descobertos novos meios. «Mercados abertos» e «portas abertas» são estabelecidos à força e através da fraude. Se as pessoas não têm meios para comprar os produtos do capitalista, são contratadas pelos capitalistas e são pagas para produzir os bens que desejam comprar; se os artesãos locais já produzem o que os capitalistas têm para vender, são arruinados ou subornados; se as leis ou tradições proíbem o uso de certos produtos, as leis e as tradições são destruídas; se às pessoas faltam os objectos em que possam usar os produtos capitalistas, são ensinadas a comprar esses objectos; se as pessoas já não tiverem necessidades físicas ou biológicas, os capitalistas «satisfazem» as suas «necessidades espirituais» e contratam psicólogos para as criarem; se as pessoas estiverem tão saciadas dos produtos capitalistas que já não conseguem usar novos objectos, são ensinadas a comprar objectos e espectáculos que não têm qualquer utilidade mas que podem ser simplesmente observados e admirados. Há pessoas pobres em sociedades pré-agrárias e agrárias em todos os continentes; se não forem suficientemente pobres para estarem dispostas a vender o seu trabalho quando os capitalistas chegarem, são empobrecidas pelas actividades dos próprios capitalistas. As terras dos caçadores tornam-se gradualmente «propriedade privada» de «proprietários» que recorrem à violência do Estado para restringirem os caçadores a «reservas» onde não há alimentos suficientes para os man51

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terem vivos. Gradualmente, as ferramentas dos camponeses vão ficando disponíveis apenas através de um mesmo comerciante que generosamente lhes empresta dinheiro para comprarem essas ferramentas, até as «dívidas» dos camponeses serem tão grandes que se vêem forçados a vender terrenos que nem eles, nem os seus antepassados, alguma vez haviam comprado. Os compradores de produtos artesanais vão-se gradualmente reduzindo aos comerciantes que revendem os produtos, até chegar o dia em que um comerciante decide acolher «os seus artesãos» debaixo do mesmo tecto e lhes fornece os instrumentos que os levam a concentrarem a sua actividade na produção dos artigos mais lucrativos. Caçadores, camponeses e artesãos independentes assim como dependentes, homens livres assim como escravos, são transformados em trabalhadores contratados. Os que anteriormente dispunham das suas próprias vidas perante difíceis condições materiais, deixam de dispor das suas próprias vidas precisamente quando assumem a tarefa de modificar as suas condições materiais; os que anteriormente eram criadores conscientes da sua própria pobre existência, tornam-se vítimas inconscientes da sua própria actividade mesmo quando terminam com a sua pobre existência. Homens que eram grandes mas tinham pouco, passam a ter muito mas são pequenos. A produção de novas mercadorias, a «abertura» de novos mercados e a criação de novos trabalhadores, não são três actividades separadas; são três aspectos da mesma actividade. Uma nova força de trabalho é criada precisamente para produzir as novas mercadorias; os salários recebidos por esses trabalhadores são eles mesmos o novo mercado; o seu trabalho não pago é fonte de nova expansão. Não há barreiras naturais nem culturais que detenham a propagação do Capital, a transformação da actividade diária das pessoas em trabalho alienado, a transformação do seu trabalho excedentário na «propriedade privada» dos capitalistas. Contudo, o Capital não é uma força natural; é uma série de actividades realizadas pelas pessoas diariamente; é uma forma de quotidiano; a sua contínua existência e expansão pressupõem apenas uma condição essencial: a disposição das pessoas para continuarem a alienar as suas vidas de trabalho e para assim reproduzirem a forma capitalista da vida quotidiana. [1969] 52

Revolta na Jugoslávia Socialista «Os hereges são sempre mais perigosos que os inimigos», concluiu um filósofo jugoslavo depois de analisar a repressão dos intelectuais marxistas pelo regime marxista da Polónia (S. Stojanović, Student, Belgrado, 9 de Abril de 1968, p. 7). Na Jugoslávia, onde a «autogestão dos trabalhadores» se tornou a ideologia oficial, uma nova luta pelo controlo popular expôs a lacuna entre a ideologia oficial e as relações sociais que afirma descrever. Os heréticos que expuseram esta lacuna foram temporariamente isolados; a sua luta foi momentaneamente suprimida. A ideologia da «autogestão» continua a servir de máscara a uma burocracia comercial tecnocrata que tem concentrado com sucesso a riqueza e o poder criados pela população trabalhadora jugoslava. Contudo, mesmo que de forma isolada e parcial alguém lhe tire a máscara, isso arruina a sua eficácia: a «elite» governante da Jugoslávia foi denunciada; as suas proclamações «marxistas» foram reveladas como mitos que, uma vez revelados, deixam de servir para justificar a sua governação. Em Junho de 1968, o fosso entre a teoria e a prática, entre as proclamações oficiais e as relações sociais, foi denunciado pela prática, pela actividade social: os estudantes começaram a organizar-se em manifestações e em assembleias-gerais, e o regime que proclama a autogestão reagiu a este exemplo raro de auto-organização popular acabando com ele através da repressão policial e da imprensa.

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A natureza do fosso que separa a ideologia jugoslava e a sociedade foi analisada antes de Junho de 1968, não pelos «inimigos de classe» dos governantes «revolucionários marxistas» jugoslavos, mas por revolucionários marxistas jugoslavos – por heréticos. Segundo declarações oficiais, numa sociedade em que a classe trabalhadora já se encontra no poder não há greves, porque é absurdo para os trabalhadores fazerem greve contra eles próprios. Contudo, greves que não foram cobertas pela imprensa porque não poderiam ter lugar na Jugoslávia, têm irrompido durante os últimos onze anos – e de forma maciça (Susret, nº. 98, 18 de Abril de 1969). Além disso, «as greves na Jugoslávia são um sintoma da tentativa de reavivar o movimento dos trabalhadores». Ou seja, numa sociedade onde se diz que quem governa são os trabalhadores, o movimento dos trabalhadores está morto. «Isto poderá parecer paradoxal a algumas pessoas. Mas não o é devido ao facto de a autogestão dos trabalhadores existir principalmente “no papel” (…).» (L. Tadić, Student, 9 de Abril de 1969, p. 7). Contra quem se manifestam os estudantes, contra quem fazem greve os trabalhadores, numa sociedade onde os estudantes e os trabalhadores já se governam a si próprios? A resposta a esta questão não pode ser encontrada nas declarações da Liga dos Comunistas da Jugoslávia, mas apenas em análises críticas das relações sociais na Jugoslávia – análises que são heréticas porque contradizem as declarações oficiais. Nas sociedades capitalistas, as actividades são justificadas em nome do progresso e do interesse nacional. Na sociedade jugoslava, os programas, políticas e reformas são justificados em nome do progresso e da classe trabalhadora. Contudo, não são os trabalhadores que dão início aos projectos dominantes, nem eles servem os interesses dos trabalhadores: «Por um lado, partes da classe trabalhadora são trabalhadores assalariados que vivem abaixo do nível necessário à existência. O fardo da reforma económica é carregado pela classe trabalhadora, facto que deve ser admitido abertamente. Por outro lado, pequenos grupos capitalizam-se da noite para o dia sem quaisquer escrúpulos, à custa de trabalho privado, serviços, comércio e como intermediários. O seu capital não se baseia no seu trabalho, mas sim na especulação, mediação, transformação de trabalho pessoal em relações de propriedade e, muitas vezes, numa corrupção sem rodeios.» (M. Pečujlić, Student, 30 de Abril de 1968, p. 2). 54

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O paradoxo pode ser afirmado em termos mais gerais: as relações sociais já conhecidas por Marx reaparecem numa sociedade que passou por uma revolução socialista liderada por um partido marxista em nome da classe trabalhadora. Os trabalhadores recebem salários em troca do seu trabalho vendido (mesmo que os salários sejam chamados «rendimentos pessoais» ou «bónus»); os salários são um equivalente dos bens materiais necessários para a sobrevivência física e social dos trabalhadores; o trabalho excedente, apropriado pelas burocracias estatais ou empresariais e transformado em capital, rende lucros como força alienada que determina as condições materiais e sociais de existência dos trabalhadores. Segundo as histórias oficiais, a Jugoslávia eliminou a exploração em 1945, quando a Liga dos Comunistas da Jugoslávia conquistou o poder de Estado. Mas os trabalhadores, cujo trabalho sustenta uma burocracia de Estado ou comercial e cujo trabalho não pago se volta contra eles como uma força que parece não resultar da sua própria actividade mas de um poder mais alto, executam trabalho forçado: são explorados. Segundo as histórias oficiais, a Jugoslávia, em 1952, eliminou a burocracia enquanto grupo social que dominava a classe trabalhadora, quando o sistema de autogestão dos trabalhadores foi introduzido. Mas os trabalhadores que alienam a sua actividade viva em troca de meios de sobrevivência não se autogovernam; são governados pelos indivíduos a quem alienaram o seu trabalho e o produto desse trabalho, mesmo que essas pessoas se apaguem em documentos legais e proclamações. Nos Estados Unidos, os trustes deixaram de existir legalmente no preciso momento histórico em que começaram a centralizar o enorme poder produtivo da classe trabalhadora estado-unidense. Na Jugoslávia, o estrato social que gere a classe trabalhadora deixou de existir em 1952. Mas, na realidade, «o desmantelamento do unificado monopólio burocrático centralizado levou à criação de uma rede de instituições autogeridas em todos os ramos da actividade social (redes de conselhos de trabalhadores, organismos autogeridos, etc.). De um ponto de vista formal-legal, normativo e institucional, a sociedade é autogerida. Mas será também essa a condição das relações reais? Por detrás da fachada da autogestão, no interior dos organismos autogeridos, decorrem das relações de produção duas tendências poderosas e opostas. Em cada 55

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centro de decisão, numa forma metamorfoseada e descentralizada, há uma burocracia. Consiste em grupos informais que mantêm um monopólio na gestão do trabalho, um monopólio na distribuição do trabalho excedente contra os trabalhadores e os seus interesses, que se apropriam disso baseados na posição que ocupam na hierarquia burocrática e não no seu trabalho, que tentam manter os representantes da “sua” organização ou da “sua” região permanentemente no poder para assim assegurarem a sua própria posição e para manterem a anterior separação, o trabalho não qualificado e a produção irracional – transferindo o fardo para os trabalhadores. Entre si, comportam-se como representantes de um monopólio de propriedade [...] Por outro lado, existe uma tendência profundamente socialista e autogestora, um movimento que já começou a agitar-se [...]» (Pečujlić, Ibidem). Esta tendência profundamente socialista representa uma luta contra a dependência e impotência que permite que os trabalhadores sejam explorados com os produtos do seu próprio trabalho; representa uma luta pelo controlo de todas as actividades sociais por quem as realiza. No entanto, que forma pode esta luta tomar numa sociedade que já proclama a auto-organização e o autogoverno como seu sistema social, económico e legal? Que formas de luta revolucionária podem ser desenvolvidas num contexto em que um partido comunista já detém o poder de Estado e onde este partido comunista já proclamou o fim da governação burocrática e elevou a autogestão ao nível de uma ideologia oficial? Manifestamente, a luta não pode consistir na expropriação da classe capitalista, porque essa expropriação já ocorreu; nem pode consistir na tomada do poder de Estado por um partido marxista revolucionário, porque esse partido já exerce o poder de Estado desde há um quarto de século. Claro que é possível fazer isso mais uma vez e convecermo-nos de que o resultado será melhor à segunda tentativa do que à primeira. Mas a imaginação política não é tão pobre que precise de limitar as suas perspectivas a fracassos passados. Compreende-se hoje em dia que na Jugoslávia e noutros lugares a expropriação da classe capitalista e a sua substituição pela «organização da classe trabalhadora» (i.e. o Partido Comunista), que a tomada do poder de Estado nacional pela «organização da classe trabalhadora» e mesmo a proclamação oficial de vários tipos de «socialismo» pelo Partido Comunista no poder, 56

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já são realidades históricas e que não significaram o fim da produção de mercadorias, do trabalho alienado, do trabalho forçado, nem o início da auto-organização e do autogoverno popular. Por conseguinte, as formas de luta organizada que já provaram ser instrumentos eficientes para a aceleração da industrialização e para a racionalização das relações sociais segundo o modelo do Admirável Mundo Novo, não podem ser as formas de organização de uma luta pela iniciativa crítica e independente e pelo controlo exercido por toda a população trabalhadora. A tomada do poder de Estado pela burocracia de um partido político não é mais do que as próprias palavras dizem, mesmo que este partido se autodenomine «a organização da classe trabalhadora» e mesmo que chame à sua própria governação «a Ditadura do Proletariado» ou «a Autogestão dos Trabalhadores». Além disso, a experiência jugoslava nem sequer demonstra que a tomada do poder de Estado pela «organização da classe trabalhadora» seja uma fase no caminho para o controlo da produção social pelos trabalhadores ou mesmo que a proclamação oficial da «autogestão dos trabalhadores» seja uma fase com vista à sua realização. A experiência jugoslava só representaria essa fase, pelo menos historicamente, se os trabalhadores jugoslavos fossem os primeiros no mundo a iniciar uma luta bem-sucedida pela desalienação do poder a todos os níveis da vida social. Mas os trabalhadores jugoslavos não iniciaram essa luta. Tal como nas sociedades capitalistas, foram os estudantes que iniciaram essa luta, e os estudantes jugoslavos não foram dos primeiros. A conquista do poder de Estado por um partido político que usa um vocabulário marxista para manipular a classe trabalhadora deve ser distinguida de outra tarefa histórica bem diferente: o derrube das relações mercantis e o estabelecimento de relações socialistas. Durante mais de meio século, a primeira tarefa tem sido apresentada sob a forma da segunda. A ascensão de uma «nova esquerda» pôs fim a esta confusão; o movimento revolucionário que está a passar por um renascimento à escala mundial caracteriza-se precisamente pela sua recusa de impulsionar uma burocracia partidária para o poder de Estado e pela sua oposição a essa burocracia onde ela já se encontra no poder. Os ideólogos do partido argumentam que a «nova esquerda» nas sociedades capitalistas nada tem em comum com as revoltas estudantis 57

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no «países socialistas». Essa visão, na melhor das hipóteses, é exagerada; no que diz respeito à Jugoslávia, o mais que se pode dizer é que o movimento estudantil jugoslavo não é tão desenvolvido como nalguns países capitalistas: até Junho de 1968, os estudantes jugoslavos eram conhecidos pela sua passividade política, pela sua simpatia pró-americana e pelos seus objectivos de vida pequeno-burgueses. Contudo, apesar dos desejos dos ideólogos, os estudantes jugoslavos não ficaram muito atrás; os estudantes jugoslavos não ficaram alheios à busca de novas formas de organização adequadas às tarefas da revolução socialista. Em Maio de 1968, quando a vasta luta pela desalienação de todas as formas de poder social separado estava a ganhar experiência histórica em França, o tópico «Estudantes e Política» foi discutido na Faculdade de Direito de Belgrado. O «tema que deu o tom à discussão» foi «[...] a possibilidade de um envolvimento humano no movimento da “nova esquerda”, que, nas palavras do Dr. S. Stojanović, se opõe à mitologia do “Estado social”, com a sua clássica democracia burguesa, e também aos partidos de esquerda clássicos – os partidos social-democratas que conseguiram, através de todos os meios possíveis, esbater os objectivos revolucionários nas sociedades ocidentais desenvolvidas, assim como os partidos comunistas que muitas vezes desacreditaram os ideais originais por que lutaram, perdendo-os frequentemente por completo em notáveis deformações burocráticas.» («O Tópico é a Acção», Student, 14 de Maio de 1968, p. 4). Em Maio de 1968, os estudantes jugoslavos tiveram muitas coisas em comum com os seus companheiros nas sociedades capitalistas. Um editorial de primeira página do jornal estudantil de Belgrado dizia, «a tensão da presente situação político-social tornou-se mais aguda devido ao facto de não existirem quaisquer soluções rápidas e fáceis para os inúmeros problemas. São visíveis na universidade várias formas de tensão, e a falta de perspectivas, a falta de soluções para os inúmeros problemas, está na base de várias formas de comportamento. Sentindo isso, muitos perguntam se a tensão se poderá transformar em conflito, numa crise política séria, e que forma poderá essa crise assumir. Alguns pensam que a crise não poderá ser evitada, podendo apenas ser atenuada, por não haver uma forma rápida e eficiente que influa nas condições que caracterizam a estrutura social como um todo e que são 58

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as causas directas de toda a situação.» («Sinais de Crise Política», Student, 21 de Maio de 1968, p. 1). A mesma primeira página do jornal estudantil trazia a seguinte citação de Marx sobre a «alienação velada no cerne do trabalho»: «[...] O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas miséria para o trabalhador. Produz palácios, mas casebres para o trabalhador. Produz beleza, mas horror para o trabalhador. Substitui o trabalho pelas máquinas, mas atira parte dos trabalhadores para um trabalho bárbaro e transforma em máquinas a outra parte. Produz consciência, mas para o trabalhador produz estupidez e cretinismo. No mesmo mês, o editorial do jornal da Federação da Juventude de Belgrado dizia: «[...] na nossa opinião, o papel revolucionário dos estudantes jugoslavos reside no seu compromisso de lidar com problemas sociais gerais e contradições (entre os quais estão incluídos os problemas e as contradições da situação social e material dos estudantes). Os problemas particulares dos estudantes, por mais drásticos que sejam, não podem ser resolvidos de forma isolada, separados dos problemas sociais gerais: a situação material dos estudantes não pode ser separada da situação económica da sociedade; o autogoverno dos estudantes não pode ser separado dos problemas sociais do autogoverno; a situação da universidade não pode ser separada da situação da sociedade [...]» (Susret, 15 de Maio de 1968). O número seguinte da mesma publicação continha uma discussão sobre «as condições e o teor do compromisso político da juventude actual» que incluía a seguinte observação: «A reforma da universidade não é pois possível sem reformar ou, por que não?, sem revolucionar toda a sociedade, porque a universidade não pode ser separada do espectro mais abrangente das instituições sociais. Disto decorre que a liberdade de pensamento e de acção, nomeadamente a autonomia para a universidade, só é possível se toda a sociedade for transformada, e, se houver uma tal transformação, torna possível um clima geral de liberdade e autonomia.» (Susret, 1 de Junho de 1968). *** Em Abril de 1968, tal como os seus companheiros nos países capitalistas, os estudantes jugoslavos demonstraram a sua solidariedade com a Frente de Libertação Nacional do Vietname e a sua oposição 59

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ao militarismo dos Estados Unidos. Quando Rudi Dutschke foi atingido a tiro em Berlim na sequência da campanha da Springer Press contra os estudantes radicais da Alemanha Ocidental, os estudantes jugoslavos demonstraram a sua solidariedade com a Federação Alemã dos Estudantes Socialistas (FAES). O jornal dos estudantes de Belgrado publicou artigos de Rudi Dutschke e do filósofo marxista alemão Ernst Bloch. A experiência do movimento estudantil mundial foi comunicada aos estudantes jugoslavos. «As revoltas estudantis que tiveram lugar em muitos países durante este ano, demonstraram que a juventude é capaz de levar a cabo projectos importantes no processo de mudança de uma sociedade. Podemos afirmar que estas revoltas influenciaram alguns círculos da nossa universidade, porque é óbvio que a coragem e a vontade de lutar aumentaram, que a consciência crítica de muitos estudantes se aguçou (a revolução é muitas vezes o tópico de discussões intelectuais)» (Student, 23 de Abril de 1968, p.1). Quanto às formas de organização através das quais esta vontade de lutar se poderia expressar, Paris forneceu um exemplo. «O que é completamente novo e extremamente importante no novo movimento revolucionário dos estudantes de Paris – mas também dos estudantes alemães, italianos e americanos –, é que ele só foi possível porque era independente de todas as organizações políticas existentes. Todas estas organizações, incluindo o Partido Comunista, se tornaram parte do sistema; foram integradas nas regras do jogo do dia-a-dia parlamentar; mal têm tido vontade de arriscar as posições que já alcançaram para se lançarem nesta operação loucamente corajosa e à primeira vista desesperada.» (M. Marković, Student, 21 de Maio de 1968). Outro elemento-chave que contribuiu para o desenvolvimento do movimento estudantil jugoslavo foi a experiência dos estudantes de Belgrado com a burocracia da associação de estudantes. Em Abril, os estudantes da Faculdade de Filosofia escreveram uma carta de protesto contra a repressão dos intelectuais marxistas na Polónia. «Hoje em dia, por todo o mundo, os estudantes encontram-se na vanguarda da luta para a criação de uma sociedade humana e, por isso mesmo, estamos profundamente surpreendidos com as reacções do regime socialista polaco. O pensamento crítico livre não pode ser suprimido por nenhum tipo de poder, nem mesmo por aquele que superficialmente se apoia em ideais 60

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socialistas. Para nós, jovens marxistas, é incompreensível que nos dias que correm seja possível, num país socialista, tolerar ataques anti-semitas e usá-los para solucionar problemas internos. Consideramos inaceitável que depois de o socialismo polaco ter passado por tantas experiências dolorosas, os conflitos internos tenham de ser resolvidos por meios tão antidemocráticos e que para solucioná-los o pensamento marxista seja perseguido. Também consideramos inescrupulosas as tentativas de separar e criar um conflito entre o movimento progressista estudantil e a classe trabalhadora, cuja completa emancipação é também o objectivo dos estudantes [...]» (Student, 23 de Abril de 1968, p. 4). Uma assembleia de estudantes da Faculdade de Filosofia enviou essa carta para a Polónia – e o Conselho Universitário da Associação de Estudantes Jugoslavos opôs-se a essa acção. Porquê? Os estudantes de filosofia analisaram a função e os interesses da sua própria burocracia: «O Conselho Universitário da Associação de Estudantes Jugoslavos encontrava-se numa situação em que tinha perdido o seu vigor político, não podia reagir, sentia-se fraco e sem qualquer obrigação de fazer alguma coisa. Contudo, se esta associação não fosse solicitada, se o seu conselho não fosse ouvido, “não deveriam ser empreendidas” acções. Isto demonstra processos nocivos e um ainda menor respeito pela democracia, que deve atingir a sua máxima expressão entre os jovens, como os estudantes. Precisamente no momento em que o Conselho Universitário deixou de compreender a essência da acção, a discussão foi canalizada para o terreno das formalidades: “Deveria ter sido inquirida a opinião de quem?” “De quem deveria ter sido recebida autorização?” Nessa atmosfera de passividade não se perguntou quem daria início a uma acção. Não é paradoxal que o Conselho Universitário se volte contra uma acção que foi iniciada precisamente pelos seus próprios membros e não por um qualquer fórum, se tivermos em conta que o princípio básico do nosso socialismo é a autogestão, o que significa tomar decisões entre as fileiras dos seus membros? Por outras palavras, o nosso pecado foi termos aplicado o nosso direito básico à autogestão. A organização nunca poderá ser um fim em si mesma, mas apenas um meio para a realização de determinados fins. O maior valor da nossa acção encontra-se precisamente no facto de ter sido iniciada pelas bases, sem directrizes ou instruções de cima, sem estúpidas formas institucionalizadas.» (Ibidem). 61

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Com estes elementos – consciência da inseparabilidade dos problemas universitários das relações sociais de uma sociedade baseada no trabalho alienado, consciência da experiência da «nova esquerda» internacional e consciência da diferença entre auto-organização das bases e organização burocrática –, os estudantes de Belgrado entraram em acção. O incidente que desencadeou as acções foi secundário. Na noite de 2 de Junho de 1968, uma actuação que deveria ter sido efectuada no exterior, perto dos dormitórios dos estudantes em Nova Belgrado, teve lugar numa pequena sala fechada e os estudantes que queriam vê-la não puderam entrar. Começou assim uma manifestação espontânea a que rapidamente se juntaram milhares de estudantes e os manifestantes começaram a dirigir-se para os edifícios governamentais. Foram impedidos de avançar, tal como nas sociedades capitalistas, pela polícia (oficialmente chamada «milícia» na linguagem da autogestão jugoslava); os estudantes foram agredidos à bastonada pela milícia e muitos foram detidos. No dia seguinte, 3 de Junho, houve assembleias-gerais contínuas na maioria das faculdades que compõem a Universidade de Belgrado (renomeada Universidade Vermelha Karl Marx) e também nas ruas de Nova Belgrado. «Nas suas discussões, os estudantes realçaram a enorme diferenciação social da sociedade jugoslava, o problema do desemprego, o aumento da propriedade privada e a imerecida riqueza de uma camada da sociedade, a insuportável condição de uma larga parte da classe trabalhadora e a necessidade de levar a cabo de forma consistente o princípio da distribuição segundo o trabalho. As discussões foram interrompidas por fortes aplausos, por palavras de ordem como “Os estudantes estão com os trabalhadores”, “Somos filhos de trabalhadores”, “Abaixo a burguesia socialista”, “Liberdade de imprensa e de manifestação!”» (Student, número especial, 4 de Junho de 1968, p.1). À repressão policial seguiu-se a repressão da imprensa. A imprensa (comunista) jugoslava não comunicou a luta dos estudantes ao resto da população. Comunicou uma luta dos estudantes por questões estudantis, a luta de um grupo à parte por maiores privilégios, uma luta que não existiu. A primeira página da edição de 4 de Junho do Student, que foi banido pelas autoridades de Belgrado, relata a tentativa da imprensa de apresentar uma luta revolucionária emergente como uma revolta estudantil por privilégios especiais: «A imprensa conseguiu novamente 62

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distorcer os acontecimentos na universidade [...] Segundo a imprensa, os estudantes estão a lutar para melhorar as suas próprias condições materiais. Mas todos quantos participaram nos encontros e manifestações sabem muito bem que os estudantes já tinham tomado outra direcção – para uma luta que englobasse os interesses gerais da nossa sociedade, uma luta, acima de tudo, pelos interesses da classe trabalhadora. É por isso que os comunicados enviados pelos manifestantes enfatizavam, acima de tudo o resto, a diminuição de diferenças sociais injustificadas. Segundo os estudantes, esta luta (contra a desigualdade social), conjuntamente com a luta por relações de autonomia e por reformas, é hoje de importância central para a classe trabalhadora e para a Jugoslávia. Os jornais não citaram um único orador que tenha falado sobre diferenças sociais injustificadas [...] Os jornais também omitiram as principais palavras de ordem gritadas durante os comícios e manifestações: Pela unidade dos trabalhadores e dos estudantes, Os estudantes estão com os trabalhadores, e palavras de ordem semelhantes que expressavam uma única ideia e um único sentimento: que os caminhos e os interesses dos estudantes são inseparáveis dos da classe trabalhadora.» (Student, 4 de Junho de 1968, p.1). A 5 de Junho, a Federação dos Estudantes Jugoslavos conseguiu conquistar a liderança do crescente movimento e tornar-se seu porta-voz. A organização estudantil proclamou um «Programa de Acção Política» que continha os objectivos revolucionários expressos pelos estudantes nas assembleias, comícios e manifestações – mas o programa também continha, como que através de um apêndice, uma «segunda parte» sobre a «reforma universitária». Este apêndice, mais tarde, teve um papel-chave ao adormecer o movimento estudantil jugoslavo recentemente despertado. A primeira parte do programa de acção política enfatizava, primeiro que tudo, a iniquidade social, o desemprego, a «democratização de todas as organizações políticas e sociais, particularmente a Liga dos Comunistas», a degeneração da propriedade social em propriedade privada, a especulação imobiliária e a comercialização da cultura. Contudo, a segunda parte, que nem deve ter sido lida pelos estudantes radicais, satisfeitos com a expressão relativamente correcta dos seus objectivos expostos na primeira parte, apresenta uma orientação bastante diferente, que na verdade se lhe opunha. A primeira «exigência» da segunda 63

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parte já pressupõe que nenhum dos objectivos expressos na primeira parte seria cumprido: é uma exigência de adaptação da universidade às correntes necessidades do sistema social jugoslavo, nomeadamente a exigência de uma reforma tecnocrática que satisfaça os requisitos do regime tecnocrático-comercial jugoslavo: «Uma reforma imediata do sistema escolar para adaptá-lo aos requisitos do desenvolvimento social e cultural da nossa economia e das nossas relações de autogestão [...]» (Student, número especial, 8 de Junho de 1968, p. 1 e 2). Esta mudança brusca, esta manipulação da revolta estudantil com a intenção de servir as necessidades das relações sociais dominantes contra as quais os estudantes se tinham revoltado, não se tornou evidente até ao ano lectivo seguinte. As reacções imediatas do regime foram bem menos subtis: consistiam em reprimir, isolar, separar. As formas de repressão policial incluíam espancamentos e prisões, a proibição do jornal estudantil que levava a cabo o único relato completo dos acontecimentos, das manifestações e das reuniões; e na noite de 6 de Junho «dois agentes da polícia secreta e um oficial da milícia atacaram brutalmente estudantes que distribuíam o jornal estudantil, agarraram em 600 exemplares do jornal, rasgaram-nos em pedaços e queimaram-nos. Tudo isto se passou diante de um grande grupo de cidadãos que se tinham ali juntado para obter exemplares do jornal.» (Student, 8 de Junho de 1968, p. 3). Para além da repressão policial, os interesses dominantes conseguiram isolar e separar os estudantes dos trabalhadores, pondo temporariamente em aplicação a sua «tentativa inescrupulosa de separar e criar um conflito entre o movimento estudantil progressista e a classe trabalhadora, cuja total emancipação é também o objectivo dos estudantes.» Isto foi feito de várias formas. A proibição da imprensa estudantil e a desinformação da imprensa oficial mantiveram os trabalhadores na ignorância dos objectivos dos estudantes; directores de empresas e os seus círculos de especialistas «explicaram» a luta estudantil aos «seus» trabalhadores, deram-lhes instruções para defenderem as «suas» fábricas dos ataques dos estudantes «violentos» e para depois enviarem cartas à imprensa, em nome do seu «colectivo de trabalhadores», felicitando a polícia por ter salvo a autogestão jugoslava dos estudantes violentos. «Segundo o que é escrito e dito, dir-se-ia que foram os estu64

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dantes que utilizaram a força contra a Milícia Nacional, que bloquearam as esquadras da milícia e as cercaram. Tudo o que tem caracterizado o movimento estudantil desde o início, na cidade e nos edifícios universitários, a ordem e o sangue-frio, é descrito com a velha palavra: violência (…) Esta burocracia, que quer criar um conflito entre os trabalhadores e os estudantes, encontra-se dentro da Liga dos Comunistas, das empresas e dos cargos de Estado, e é particularmente poderosa na imprensa (a imprensa é uma estrutura eminentemente hierárquica que se apoia na autogestão apenas para se proteger das críticas e da responsabilidade). Ao enfrentar o movimento dos trabalhadores e dos estudantes, a burocracia sente que o chão lhe foge dos pés, que está a perder os lugares obscuros por onde prefere movimentar-se – e, por medo, clama as suas pretensões sem sentido. [...] O nosso movimento precisa de se unir urgentemente à classe trabalhadora. Tem de explicar os seus princípios básicos e tem de assegurar que esses princípios são realizados, que se tornam mais ricos e complexos, que não são apenas meros lemas. Mas isso é precisamente o que a burocracia teme e é por isso que dizem aos trabalhadores para protegerem as fábricas dos estudantes, é por isso que dizem que os estudantes estão a destruir as fábricas. Que estupidez monumental!» (D. Vuković, Student, 8 de Junho de 1968, p. 1). Por isso, os autogeridos directores do socialismo jugoslavo protegiam os trabalhadores jugoslavos dos estudantes jugoslavos tal como, semanas antes, as «organizações dos trabalhadores» francesas (a Confederação Geral do Trabalho e o Partido Comunista Francês) tinham protegido os trabalhadores franceses da revolução socialista. *** A repressão e a separação não acabaram com o movimento revolucionário jugoslavo. As assembleias-gerais continuaram a realizar-se, os estudantes continuaram a procurar formas de organização que os pudessem unir aos trabalhadores e que fossem adequadas à tarefa de transformar a sociedade. O terceiro passo consistia em pacificar e, se possível, recuperar o movimento para que servisse as necessidades da própria estrutura contra a qual ele tinha lutado. Este passo ganhou forma através de um grande discurso de Tito, impresso na edição do 65

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Student de 11 de Junho. Numa sociedade em que a grande maioria das pessoas considera o «culto da personalidade» na China o maior pecado existente à face da terra, a maioria dos estudantes aplaudiu as seguintes palavras do homem cuja fotografia tem decorado todas as instituições públicas jugoslavas, muitas casas particulares e a maior parte das primeiras páginas dos jornais diários durante um quarto de século: «[...] Ao pensar nas manifestações e no que as precedeu, cheguei à conclusão de que a revolta dos jovens, dos estudantes, surgiu espontaneamente. Contudo, à medida que as manifestações se desenvolveram e quando mais tarde passaram da rua para os auditórios das universidades, deu-se uma certa infiltração gradual de elementos estrangeiros que queriam utilizar essa situação para os seus próprios fins. Estes elementos incluem várias tendências, das mais reaccionárias às mais extremas, e elementos aparentemente radicais que apoiam partes das teorias de Mao Tsé-Tung.» Depois desta tentativa de isolar e separar os estudantes revolucionários ao deslocar o problema do conteúdo para a origem das ideias (elementos estrangeiros com ideias estrangeiras), o Presidente da República tenta recuperar os bons estudantes nacionais que apenas têm ideias locais. «Contudo, cheguei à conclusão que a grande maioria dos estudantes, posso dizer 90%, são jovens honestos [...] Os mais recentes desenvolvimentos nas universidades demonstraram que 90% dos estudantes são a nossa juventude socialista, que não se deixam envenenar, que não permitem que os vários djilasitas, rankovićitas e maoístas realizem os seus próprios objectivos com o pretexto de que estão preocupados com os estudantes [...] A nossa juventude é boa, mas temos que lhe prestar mais atenção.» Depois de dizer aos estudantes como não deveriam deixar-se utilizar, o Presidente da Jugoslávia autogerida diz-lhes como se devem deixar utilizar. «Dirijo-me, camaradas e trabalhadores, aos nossos estudantes, para que nos ajudem a fazer uma abordagem construtiva de todos estes problemas e a dar-lhes solução. Possam eles prosseguir o que estamos a fazer, que é o seu direito; possam eles fazer parte do nosso dia-a-dia, e quando algo não for claro, quando algo tiver de ser esclarecido, possam eles dirigir-se a mim. Podem enviar uma delegação.» No que toca ao conteúdo da luta, aos seus objectivos, Tito fala a crianças do infantário e promete-lhes que ele próprio prestará atenção a qualquer uma das suas reclamações. «[...] A revolta é em parte resul66

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tado do facto de os estudantes terem visto que eu próprio levantei com frequência essas questões e de, apesar disso, terem ficado por resolver. Desta vez prometo aos estudantes que me irei empenhar pessoalmente em toda a parte no sentido de as resolver, devendo os estudantes ajudar-me. Para além disso, se não for capaz de resolver estes problemas, não deverei continuar a ocupar este lugar. Penso que qualquer velho comunista que tenha a consciência de um comunista não deve insistir em permanecer onde se encontra, que deve ceder o seu lugar a pessoas capazes de resolver os problemas. E, finalmente, dirijo-me de novo aos estudantes: é tempo de voltarem aos vossos estudos, é tempo de exames e desejo-vos sucesso. Seria uma pena que perdessem ainda mais tempo.» (Tito no Student, 11 de Junho de 1968, p. 1 e 2). Este discurso, que em si mesmo representa uma auto-denúncia, só deixou em aberto duas linhas de acção: ou o posterior desenvolvimento do movimento, completamente à margem das organizações políticas manifestamente vulneráveis, ou então a cooptação e um silêncio temporário. O movimento jugoslavo foi cooptado e temporariamente silenciado. Seis meses depois da explosão, em Dezembro, a Associação de Estudantes de Belgrado adoptou oficialmente o programa de acção política proclamado em Junho. Esta versão do programa incluía uma primeira parte, sobre os objectivos sociais da luta, uma segunda parte, sobre a reforma da universidade, e uma terceira parte, posteriormente adicionada, sobre os passos a dar. Na terceira parte é explicado que «ao realizar o programa, o método de trabalho deve ser tido em consideração. 1) A Associação de Estudantes não tem a capacidade de participar directamente na solução dos problemas sociais gerais (primeira parte do programa) [...] 2) A Associação de Estudantes tem a capacidade de participar directamente na luta pela reforma da universidade e do sistema de educação superior como um todo (segunda parte do programa) e de ser porta-voz das tendências progressistas na universidade.» (Student, 17 de Dezembro de 1969, p. 3). Daí que tenha havido vários acontecimentos desde Junho. A luta estudantil tem sido institucionalizada: a «organização dos estudantes» apoderou-se dela. Em segundo lugar, foram acrescentados dois novos elementos aos objectivos originais da luta de Junho: um programa de reforma universitária e um método para a realização dos objectivos. E, finalmente, os objectivos ini67

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ciais da luta são deixados nas mãos dos grupos sociais contra os quais os estudantes se tinham revoltado. Aquilo que anteriormente fora um apêndice, tornava-se agora a única parte do programa sobre a qual os estudantes devem agir: «a reforma universitária». Assim, a revolta contra a elite administrativa foi cinicamente transformada no seu oposto: a universidade deve adaptar-se a estar ao serviço das necessidades do sistema de relações sociais dominante; os estudantes devem ser formados para servir mais eficazmente a elite administrativa. Ao mesmo tempo que a «organização dos estudantes» inicia a «luta» pela reforma universitária, os estudantes, que tinham começado a organizar-se para lutarem por objectivos bastante diferentes, tornaram-se mais uma vez passivos e politicamente indiferentes. «Junho foi caracterizado pelo início de uma consciência entre os estudantes; o período depois de Junho tem, de muitas formas, as características do período de antes de Junho, o que pode explicar-se pela reacção inadequada da sociedade aos acontecimentos de Junho e com vista aos objectivos expressos durante esse mês.» (Student, 13 de Maio de 1969, p. 4). A luta pela subversão do statu quo foi desviada da sua insanidade; foi convertida em realista; foi transformada numa luta para servir o statu quo. Durante essa luta, em que os estudantes não se envolvem porque «a sua organização» assumiu a tarefa de a gerir por eles, não há reuniões, assembleias-gerais ou qualquer outra forma de auto-organização. Porque os estudantes não lutaram por uma «reforma universitária» antes de Junho ou durante este mês, nem foram recuperados para essa «luta» depois de Junho. De facto, foi sobretudo o «porta-voz dos estudantes» que foi recuperado, porque aquilo que era conhecido antes de Junho é ainda conhecido depois de Junho: «O melhoramento da universidade só faz sentido se se basear no axioma de que as transformações da universidade dependem das transformações da sociedade. A presente condição da universidade reflecte, em maior ou menor grau, a condição da sociedade. À luz deste facto, não faz sentido afirmar que discutimos sobre problemas sociais gerais durante bastante tempo e que chegou o momento de focarmos a nossa atenção na reforma da universidade.» (B. Jakšić, Susret, 9 de Fevereiro de 1969). O conteúdo da «reforma universitária» é definido pelo reitor da Universidade de Belgrado. Na sua formulação, publicada no Student 68

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meio ano depois dos acontecimentos de Junho, o reitor até inclui «objectivos» contra os quais os estudantes lutaram explicitamente, tais como a sua separação da classe trabalhadora em troca de recompensas e a sua compulsiva integração não apenas na tecnocracia, mas também nas forças armadas: «A luta para melhorar a posição material da universidade e dos estudantes é a nossa tarefa constante [...] Uma das questões-chave do actual trabalho na universidade é a luta imprescindível contra todas as formas de derrotismo e demagogia. A nossa universidade, e particularmente a nossa juventude estudantil, são e continuarão a ser a defesa entusiasta e segura da nossa pátria socialista. A organização sistemática para a construção do poder defensivo do nosso país contra qualquer agressor, seja de onde for que tente atacar-nos, deve ser a tarefa constante, rápida e eficiente de todos nós.» (D. Ivanović, Student, 15 de Outubro de 1968, p. 4). Estes comentários foram precedidos por declarações longas e bastante abstractas alardeando que «a autogestão é o conteúdo da reforma universitária.» Os comentários mais explícitos atrás citados tornam claro aquilo que o reitor entende como «conteúdo» da «autogestão». Uma vez que os estudantes não se lançam com ardor na «luta» pela reforma universitária, a tarefa é deixada aos especialistas que estão interessados nisso, os professores e os funcionários académicos. «Os principais tópicos de conversação de um grande número de professores e dos seus colegas são os automóveis, as casas de férias e a vida fácil. Esses são também os principais tópicos de conversação da elite social tão incisivamente criticada nos escritos desses académicos, que não compreendem que são parte integral e significativa dessa elite.» (B. Jakšić, Susret, 19 de Fevereiro de 1969). Sob o título de reforma universitária, um dos principais economistas (oficiais) da Jugoslávia defende uma utopia burocrática com elementos de magia. O mesmo economista que, alguns anos antes, enfatizara as «balanças de produção nacional» aritméticas desenvolvidas pelos «engenheiros sociais» soviéticos para aplicação em seres humanos por uma burocracia de Estado, defende agora «a aplicação da Teoria Geral de Sistemas para a análise de sistemas sociais concretos». Esta Teoria Geral de Sistemas é a mais recente descoberta científica de «sistemas sociais desenvolvidos e progressistas» – como os Estados Unidos. Devido a esse 69

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facto, «a Teoria Geral de Sistemas tornou-se indispensável a todos os futuros especialistas nos diferentes campos das ciências sociais e mesmo a todos os outros especialistas, seja qual for o campo de desenvolvimento social em que possam participar.» (R. Stojanović, «Sobre a necessidade do estudo da Teoria Geral de Sistemas nas Faculdades de Ciências Sociais», Student, 25 de Fevereiro de 1969). Se através da reforma universitária a Teoria Geral de Sistemas puder ser enfiada na cabeça de todos os futuros tecnocratas jugoslavos, a Jugoslávia irá presumivelmente tornar-se, por artes mágicas, um «sistema social desenvolvido e progressista» – nomeadamente, uma burocracia comercial, tecnocrática e militar, um país das maravilhas para a engenharia humana. *** Os estudantes foram separados dos trabalhadores, a sua luta foi recuperada e isso tornou-se uma ocasião para os burocratas académicos servirem mais eficazmente a elite tecnocrata-comercial. Os burocratas encorajam os estudantes a «autogerirem» esta «reforma universitária», a participarem na sua própria transformação em homens de negócios, técnicos e directores. Enquanto isso, os trabalhadores jugoslavos produzem mais do que alguma vez produziram e vêem os produtos do seu trabalho aumentarem a riqueza e o poder de outros grupos sociais, grupos que usam esse poder contra os trabalhadores. Segundo reza a Constituição, os trabalhadores governam-se a si próprios. Contudo, segundo um trabalhador entrevistado pelo Student, «Isso só existe no papel. Quando os directores escolhem os seus subordinados, os trabalhadores têm de obedecer; é assim que as coisas funcionam aqui.» (Student, 4 de Março de 1969, p. 4). Se um trabalhador decidir encetar uma luta contra o incessante aumento da desigualdade social de riqueza e poder, vê-se desde logo sustido pelo enorme desemprego que há na Jugoslávia, onde um grande exército de reserva de desempregados está à espera de o substituir, porque a única alternativa é sair do país. Os trabalhadores ainda têm um poderoso instrumento com o qual se podem «governar a si próprios»; é o mesmo que os trabalhadores têm nas sociedades capitalistas: a greve. Porém, segundo um analista, as greves de trabalhadores separados das correntes revolucionárias ad70

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mitidas nesta sociedade e separados do resto da classe trabalhadora, nomeadamente, as greves «económicas», não aumentaram o poder dos trabalhadores na sociedade jugoslava; o efeito é praticamente o oposto: «O que mudou depois de onze anos de experiência com greves? Onde quer que tenham surgido, as paralisações reproduziram exactamente as mesmas relações que levaram à greve. Por exemplo, os trabalhadores revoltam-se porque são enganados na distribuição de rendimentos; depois alguém, provavelmente quem os enganou anteriormente, aceita dar-lhes aquilo que lhes tinha tirado; a greve termina e os trabalhadores continuam a ser assalariados. E quem cedeu fê-lo apenas para manter a sua posição de poder ceder, de protector dos trabalhadores. Por outras palavras, as relações salário-trabalho, que são de facto a principal causa da greve como método de resolução de conflitos, continuam a ser reproduzidas. Isso leva-nos a outra questão: será possível que a classe trabalhadora se emancipe deveras no contexto de uma empresa, ou esse é um processo que tem de se desenvolver em toda a sociedade, um processo que não tolera nenhuma separação entre diferentes empresas, ramos, repúblicas?» (Susret, 19 de Abril de 1969). Quanto aos especialistas que defraudam a classe trabalhadora, o Student fez uma longa descrição de diversas habilidades: «1) Os funcionários da empresa (directores, empresários, agentes comerciais, etc.) são pagos pelo conselho de administração, pelo conselho dos trabalhadores ou por outros órgãos autogeridos, para infringirem os estatutos legais ou as normas morais de modo a que isso seja economicamente vantajoso para a empresa […] 2) […] 3) Para fugir aos impostos, são efectuados trabalhos fictícios ou simulados […] 4) […] 5) Fundos guardados para despesas sociais são distribuídos para a construção de apartamentos privados, casas de férias ou compra de automóveis […]» (Student, 18 de Fevereiro e 1969, p. 1). A ideologia oficial da Jugoslávia socialista não entra em conflito com os interesses da sua elite comercial-tecnocrática; na realidade, justifica esses interesses. Em Março de 1969, a Resolução do IX Congresso da Liga dos Comunistas da Jugoslávia fez referência às críticas dos revolucionários de Junho só para as rejeitar e para reafirmar a ideologia oficial. A absurda opinião de que a produção de mercadorias continua a ser a relação social central no «socialismo» é reafirmada nesse do71

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cumento. «As leis económicas de produção de mercadorias agem no socialismo como um forte apoio ao desenvolvimento das modernas forças produtivas e de gestão racional.» Esta declaração é justificada através da agora familiar demonologia, designadamente recorrendo ao argumento de que a única alternativa à produção de mercadorias no «socialismo» é o estalinismo: «A gestão administrativo-burocrática da administração e da reprodução social deforma as relações reais e forma monopólios, nomeadamente subjectivismo burocrático nas condições da gestão, e leva, inevitavelmente, à irracionalidade e ao parasitismo na distribuição do produto social [...]» Daí que a escolha seja clara: manter o statu quo ou voltar ao sistema que a própria Liga dos Comunistas impusera à sociedade jugoslava antes de 1948. É utilizado o mesmo tipo de demonologia para demolir a ideia de que o lema «a cada um segundo o seu trabalho», mote oficial da Jugoslávia, significa o que estas palavras dizem. Semelhante interpretação «ignora as diferenças nas capacidades e contribuições. Uma tal exigência leva à formação de uma força administrativa e burocrática omnipotente, que se coloca acima da produção e acima da sociedade; força essa que institui uma equidade artificial e superficial, e cujo poder cria carências, iniquidade e privilégios [...]» (Student, 18 de Março de 1969). O princípio «a cada um segundo o seu trabalho», desenvolvido historicamente pela classe capitalista na sua luta contra a aristocracia latifundiária, tem na Jugoslávia actual o mesmo significado que teve para a burguesia. Daí que os enormes rendimentos pessoais (e os prémios) de um empresário comercial de sucesso numa firma de importação-exportação jugoslava sejam justificados por este mote, visto o sucesso financeiro deste empresário provar simultaneamente as suas superiores capacidades e o valor da sua contribuição para a sociedade. Ou seja, a distribuição dos rendimentos ocorre de acordo com a avaliação social do trabalho de cada um; e numa economia de mercado o trabalho é avaliado no mercado. O resultado é um sistema de distribuição de rendimentos que pode resumir-se no mote «de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo o seu sucesso de mercado», mote que descreve um sistema de relações sociais amplamente conhecido como produção capitalista de mercadorias e não como socialismo (definido por Marx como negação da produção capitalista de mercadorias). 72

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A defesa deste documento não foi caracterizada por métodos mais subtis de argumentação, mas antes pelo tipo de complacência conservadora que se limita a considerar o statu quo como o melhor, garantidamente, de todos os mundos possíveis. «Dificilmente posso aceitar críticas que não são coerentes com o espírito desta matéria e com as ideias básicas que realmente contém [...] A insistência numa concepção que daria soluções racionais a todas as relações e problemas com que nos confrontamos, parece-me ir para além das possibilidades reais da nossa sociedade [...] Esta é a nossa realidade. As diferentes condições de trabalho nas diferentes empresas, nos diferentes ramos, nas diferentes regiões do país e noutros lugares – não as podemos eliminar [...]» (V. Rakić, Student, 11 de Março de 1969, p. 12). Noutro número do Student, esta atitude foi caracterizada nos seguintes termos: «O indíviduo que considere tudo o que é coerente e radical como um exagero, identifica-se com o que existe objectivamente; daí que tudo lhe pareça demasiado idealista, abstracto, quixotesco, irreal, demasiado rebuscado para a nossa realidade, e nunca lhe convenha. Muitas pessoas, em particular as que poderiam contribuir para a transformação da sociedade, apoiam-se constantemente na realidade, nos obstáculos que ela apresenta, não vendo que muitas vezes são precisamente elas, com o seu sentido superficial da realidade, com a sua autodenominada realpolitik, que constituem os obstáculos de que dizem ser vítimas.» (D. Grlić, Student, 28 de Abril de 1969, p. 3). «Não podemos permitir-nos esquecer que a democracia (para não falar do socialismo), assim como a autogestão, pode, de uma forma alienada e ideológica, transformar-se num instrumento perigoso para promulgar e disseminar a ilusão de que “introduzindo-a”, nomeadamente através de uma proclamação ou de um decreto de autogestão, optámos pelo direito ao controlo independente, que nega eo ipso a necessidade de qualquer tipo de luta. Contra quem e por que motivo devemos nós lutar, se já nos governamos a nós próprios? Assim sendo, somos nós próprios – e ninguém acima de nós – os culpados de todas as nossas falhas.» (Ibidem) A ideologia socialista da Jugoslávia revelou-se oca; a elite governante tem sido destituída das suas justificações. Mas por enquanto esta revelação tem tomado a forma de análise crítica, de teoria revolucio73

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nária. A prática revolucionária, a auto-organização de base, tem ainda pouca experiência. Entretanto, aqueles cuja luta pelo socialismo se tornou desde há muito numa luta para se manterem no poder, continuam a identificar a sua própria governação com a autonomia da classe trabalhadora, continuam a definir a economia de mercado, da qual se tornaram ideólogos, como a sociedade mais democrática do mundo. Em Maio de 1969, o presidente recém-eleito do parlamento croata, membro de longa data do comité central do Partido Comunista Jugoslavo, afirmou insipidamente que «os factos relativos aos índices mais básicos do nosso desenvolvimento mostram e provam que o desenvolvimento económico da República Socialista da Croácia e da Jugoslávia como um todo tem sido harmonioso e progressivo.» Este presidente está consciente do desemprego e do exílio forçado dos trabalhadores jugoslavos, mas o problema está prestes a ser resolvido, porque «Foram encetadas algumas acções para enfrentar a preocupação que temos com os nossos compatriotas que se encontram temporariamente empregados no estrangeiro; estas acções devem ser sistematizadas, melhoradas e incluídas como parte integrante do nosso sistema, da nossa economia e do nosso governo [...]». Este presidente tem também consciência das profundas críticas ao actual plano, mas para ele isso são «ilusões, confusões, desespero, impaciência, pretensões quixotescas, manifestadas – independentemente da aparente contradição – por coisas que vão de um palavreado revolucionário esquerdista a certas tendências chauvinistas com a aparência de filosofia, filologia, movimento da força de trabalho, situação económica da nação, república, etc. [...] Devemos rejeitar energicamente as tentativas de dramatizar e generalizar certos factos que, descontextualizados de todo o nosso desenvolvimento e da nossa realidade, procuram utilizá-los para acções derrotistas, desmoralizantes e, por vezes, chauvinistas. Devemos sistematicamente e factualmente informar os nossos trabalhadores dessas tentativas, devemos assinalar os seus elementos, os seus métodos, as suas verdadeiras intenções e o significado dessas acções.» (J. Blažević, Vjesnik, 9 de Maio de 1969, p. 2). As reacções oficiais ao surgimento da «nova esquerda» jugoslava, desde as do presidente da Jugoslávia às do presidente da Croácia, são humoristicamente resumidas numa sátira publicada na primeira pági74

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na do número de 13 de Maio do Student. «Muitos dos nossos opositores declaram-se em prol da democracia, mas aquilo que eles pretendem é qualquer coisa como uma democracia pura ou integral, ou um libertarianismo. Na realidade dos factos, eles lutam pelas suas próprias posições, tais como poderem falar e trabalhar de acordo com a sua própria vontade e da forma que acham justa. Rejeitamos todas as tentativas dessas forças antidemocráticas; na nossa sociedade, deve ser claro para toda a gente quem é responsável de quem [...]. Na luta contra esses opositores, não iremos empregar meios não-democráticos, a não ser que os meios democráticos não mostrem dar os resultados convenientes. Um excelente exemplo da aplicação de métodos democráticos de luta é a nossa confrontação com as forças burocráticas. Todos sabemos que no passado recente a burocracia era o nosso maior mal social. E onde está agora essa burocracia? Derreteu-se como a neve. Sob a pressão dos nossos mecanismos autogestionários e das nossas forças democráticas, derreteu-se por si mesma por completo, automaticamente, e nem sequer precisamos de fazer quaisquer mudanças nos funcionários ou nas estruturas do nosso governo nacional, o que, aliás, não teria sido coerente com a autogestão. Os opositores atacam as nossas grandes diferenças sociais e chegam até a dizer que são injustificadas [...]. Mas a classe trabalhadora, a força que lidera e governa a nossa sociedade, a portadora de tendências progressistas e sujeito histórico, não se deve tornar privilegiada à custa de outras categorias sociais; deve estar preparada para se sacrificar em nome da futura construção do nosso sistema. A classe trabalhadora está consciente disso e rejeita decididamente todas as reivindicações por uma diminuição radical nas diferenças sociais, porque estas, na sua essência, são reivindicações com vista a uma igualização; e isso, mais do que tudo o resto, levaria a uma sociedade de pessoas pobres. Mas o nosso objectivo é uma sociedade em que toda a gente seja rica e receba segundo as suas necessidades [...]. O problema do desemprego é também constantemente atacado pelas forças inimigas. Os opositores ao nosso sistema defendem que não deveríamos fazer tanto alvoroço sobre a criação de novos empregos (como se isso fosse tão fácil como abrir janelas em Junho) e que os jovens formados acelerariam a reforma económica [...] Na presente fase do nosso desenvolvimento, não fomos capazes de criar mais empregos, mas criámos 75

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uma outra solução – abrimos as nossas fronteiras e permitimos aos nossos trabalhadores livre emprego no estrangeiro. Obviamente, seria bom que todos tivéssemos trabalho aqui, no nosso país. Até a Constituição o diz. Mas isso não pode ser harmonizado com a nova fase da nossa reforma. No entanto, a luta pela reforma entrou na sua fase final e conclusiva e as coisas irão melhorar significativamente. Na verdade, mesmo agora, a nossa população não está assim tão mal. Anteriormente, podia trabalhar apenas para um Estado, agora pode trabalhar para o mundo inteiro. O que é um Estado comparado com o mundo inteiro? Isto cria compreensão mútua e amizade [...]. Não pudemos, obviamente, referir todos os inimigos do nosso sistema, tais como vários extremistas, esquerdistas, direitistas, anarco-liberais, radicais, demagogos, professores, dogmáticos, pretensos revolucionários (que vão ao ponto de afirmar que a nossa revolução entrou em crise), anti-reformistas e grupos informais […], unitários, folcloristas e muitos outros elementos. Todos eles representam potenciais viveiros de crise. Todos esses grupos informais e extremistas devem ser energicamente isolados da sociedade e, se possível, reeducados, para assim se evitar a sua actividade destrutiva.» (V. Teofilović, Student, 13 de Maio de 1969, p. 1). A experiência jugoslava acrescenta novos elementos à experiência do movimento revolucionário mundial. O aparecimento desses elementos tornou claro que na Jugoslávia a revolução socialista não é um facto histórico do passado, mas uma luta de futuro. Esta luta foi iniciada, mas não foi levada a cabo em parte nenhuma. «Pois, como escreveu Babeuf, os dirigentes organizam uma revolução para poderem dirigir, mas uma revolução autêntica só é possível a partir de baixo, como movimento de massas. A sociedade, toda a sua espontânea actividade humana, ergue-se então como sujeito histórico e cria a identidade da política e a vontade popular, que é a base para a eliminação da política como forma de alienação humana.» (M. Vojnović, Student, 22 de Abril de 1969, p. 1). Nesse sentido, a revolução não pode sequer ser concebida nos limites de uma única universidade, de uma única fábrica, de um único estado-nação. Além disso, a revolução não é a repetição de um acontecimento que já teve lugar, algures, outrora; não é a reprodução de relações passadas, é a criação de novas relações. Nas palavras de outro escritor jugoslavo, «não é apenas um conflito entre produção e criação, mas, num sentido 76

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amplo – e aqui tenho em mente tanto os países ocidentais como os do Leste –, entre a rotina e a aventura.» (M. Krleža, Politika, 29 de Dezembro de 1968, citado em Student, 7 de Janeiro de 1969). [1969]

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Dez Teses Sobre a Proliferação dos Egocratas I O Egocrata – Mao, Stáline, Hitler, Kim Il-Sung – não é um acidente, uma aberração ou uma irrupção de irracionalidade; é uma personificação das relações da ordem social existente. II O Egocrata é inicialmente um indivíduo, como toda a gente: silenciado e impotente nesta sociedade sem comunidade ou comunicação, vitimado pelo espectáculo, «o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso, o auto-retrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de existência» (Debord). Repelido pelo espectáculo, ele anseia pelo «ser humano emancipado, um ser que é ao mesmo tempo um ser social e uma Gemeinwesen» (Camatte). Se o seu desejo fosse expresso na prática ‒ no seu local de trabalho, na rua, em qualquer lugar onde o espectáculo o priva da sua humanidade ‒, ele tornar-se-ia um rebelde. III O Egocrata não expressa na prática o seu desejo pela comunidade e pela comunicação; transforma-o num Pensamento. Armado com esse 79

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Pensamento, ele continua silenciado e impotente, mas já não é como os demais: é consciente, possui a Ideia. Para confirmar a sua diferença, para assegurar que não se está a iludir, precisa de ser visto como diferente pelos outros – esses outros que confirmam que ele é verdadeiramente possuidor do Pensamento e possuidor do Verdadeiro Pensamento. IV O Egocrata encontra a «comunidade» e a «comunicação», não esmagando os elementos do espectáculo ao seu alcance, mas rodeando-se de indivíduos da mesma opinião, outros Egos, que reflectem entre si o Pensamento Dourado e confirmam a sua validade como possuidores d’Ele. Os Eleitos. Neste ponto, o Pensamento, se quiser continuar a ser dourado, deve permanecer para sempre o mesmo: imaculado e inflexível; a crítica e a revisão são sinónimos de traição. «Assim, só poderá existir enquanto polémica com a realidade. Refuta tudo. Só poderá sobreviver cristalizando-se, tornando-se cada vez mais totalitário.» (Camatte) Portanto, para continuar a reflectir e a confirmar o Pensamento, o indivíduo deve deixar de pensar. V O objectivo inicial, o «ser humano emancipado», perde-se para a prática ao ser relegado para a consciência do Egocrata, porque «a consciência torna-se ela própria o objectivo e reifica-se numa organização que deve encarnar o objectivo» (Camatte). O grupo de mútuos admiradores adopta um plano e um local de encontro; torna-se uma instituição. A organização, que adquire a forma de uma célula bolchevique ou nazi, dum clube de leitura socialista ou dum grupo de afinidade anarquista, dependendo das circunstâncias locais e das preferências individuais, «proporciona um terreno favorável à dominação informal dos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas que em geral são tanto mais medíocres quanto a sua actividade intelectual se reduz principalmente à repetição de umas quantas verdades definitivas. O respeito ideológico pela unanimidade na decisão foi de maneira geral favorável à incontrolada autoridade, na própria organização, de 80

dez teses sobre a proliferação dos egocratas

especialistas da liberdade» (escreveu Debord, descrevendo organizações anarquistas). Rejeitando o espectáculo dominante ideologicamente, a organização dos especialistas da liberdade reproduz a relação do espectáculo na sua prática interna. VI A organização que encarna o Pensamento vira-se para o mundo, porque «o projecto dessa consciência é enquadrar a realidade no seu conceito» (Camatte). O grupo torna-se militante. Propõe-se a estender a toda a sociedade as relações internas da organização, podendo uma das suas variantes resumir-se da seguinte forma: «Dentro do partido, ninguém deverá ficar para trás quando a liderança der uma ordem para avançar “ninguém deverá ir para a direita se a ordem for de ir para a esquerda”.» (um líder revolucionário citado por M. Velli.) Neste ponto, o conteúdo preciso do Pensamento é tão irrelevante para a prática como a geografia do paraíso cristão, porque o objectivo é reduzido a um bastão: serve como justificação para as práticas repressivas do grupo e como instrumento de chantagem. Exemplos: «O mínimo desvio da ideologia socialista significa o fortalecimento da ideologia burguesa.» (Lénine, citado por M. Velli). «Quando certos “libertários” caluniosamente deitam outros abaixo, questiono a sua maturidade e o seu compromisso com a mudança social revolucionária.» (Um «anarquista» numa carta à revista Fifth Estate.) VII A organização militante alarga-se através de métodos de conversão e manipulação. A conversão é a técnica favorita dos princípios do bolchevismo e do anarquismo missionário iniciais: a tarefa explícita do militante consiste em introduzir consciência na classe trabalhadora (Lénine), em «levar aos trabalhadores as nossas ideias» (um «anarquista» na revista The Red Menace, de Toronto1). Mas a tarefa implícita do

1.  Editada pelo Libertarian Socialist Collective entre 1976 e 1980. (N. do t.)

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militante, e o resultado prático da sua actividade, consistem em influir sobre a prática dos trabalhadores, não sobre o seu pensamento. A conversão é bem-sucedida se os trabalhadores, sejam quais forem as suas ideias, pagarem quotas à organização e obedecerem aos seus apelos à acção (greves, manifestações, etc.). O objectivo implícito do Egocrata é estabelecer a sua hegemonia (e a da sua organização) sobre um grande número de indivíduos, de se tornar líder de uma massa de seguidores. Este objectivo implícito torna-se cinicamente explícito quando os militantes são nazis ou estalinistas (ou uma amálgama de ambos, como o Partido Trabalhista dos Estados Unidos). A conversão dá lugar à manipulação, mentindo abertamente. Neste modelo, o recrutamento de seguidores é o objectivo explícito e a Ideia deixa de ser uma estrela fixa, perfeita e imutável; a Ideia torna-se num simples meio para o fim explícito; seja o que for que recrute mais seguidores é uma boa Ideia; a Ideia torna-se uma colagem construída cinicamente, baseada nos medos e ódios dos potenciais seguidores; a sua principal promessa é a aniquilação de bodes expiatórios: «contra-revolucionários», «anarquistas», «agentes da CIA», «judeus», etc. A diferença entre os manipuladores e os missionários é teórica; na prática, são contemporâneos que estão em concorrência no mesmo campo social e pedem de empréstimo as suas técnicas uns aos outros. VIII Para propagar a Ideia, assim como para converter ou manipular, o Egocrata necessita de instrumentos, de meios de comunicação, e são precisamente esses meios de comunicação que a sociedade do espectáculo providencia em profusão. Uma justificação para se voltarem para esses média é dada da seguinte forma: «Os meios de comunicação são actualmente um monopólio das classes dominantes que os desviam para seu próprio benefício. Mas a sua estrutura permanece “fundamentalmente igualitária”, cabendo à prática revolucionária expor essa potencialidade neles contida mas que é pervertida pela ordem capitalista: numa palavra, libertarem-nos...» (posição parafraseada por Baudrillard). A inicial rejeição do espectáculo, o anseio pela comunidade e pela comunicação, foi substituído pela ânsia de exercer poder sobre 82

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esses mesmos instrumentos que aniquilam a comunidade e a comunicação. A hesitação, ou uma súbita erupção crítica, são dominadas pela chantagem organizacional: «Os leninistas vencerão, a não ser que nós próprios aceitemos a responsabilidade de lutar para vencer [...]» (The Red Menace. Um estalinista diria: «Os trotskistas vencerão...», etc.). A partir daqui, vale tudo; todos os meios são bons se levarem ao objectivo; e como limite extremo do absurdo, até as promoções e a publicidade, a actividade e a linguagem do próprio Capital passam a ser meios revolucionários justificados: «Concentramo-nos fortemente na distribuição e promoção [...]. O nosso trabalho promocional é de grande escala e é caro. Inclui uma ampla publicidade, correio promocional, catálogos, expositores por todo o país, etc. Tudo isto custa uma enorme quantidade de dinheiro e de energia, que é coberta por dinheiro gerado pela venda de livros.» (Um «homem de negócios anarquista» numa carta à Fifth Estate.) Será este homem de negócios anarquista um exemplo grotesco, por ser tão ridiculamente exagerado, ou fará ele solidamente parte integrante da tradição ortodoxa da militância organizada? «Os grandes bancos são o “aparelho de Estado” de que necessitamos para realizar o socialismo e que tomamos já pronto do capitalismo; a nossa tarefa consiste aqui em meramente cortar aquilo que deforma do ponto de vista capitalista este magnífico aparelho, em torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais universal...» (Lénine, citado por M. Velli). IX Para o Egocrata, os meios de comunicação são um simples meio; o objectivo é a hegemonia, fortalecer o poder da polícia secreta. «Pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la, não com um poder manifesto mas com a ditadura colectiva de todos os aliados. Ditadura sem emblema, sem título, sem direito oficial, e tanto mais poderosa quanto ela não terá nenhuma das aparências do poder.» (Bakunine, citado por Debord). A ditadura colectiva de todos rapidamente se torna o domínio do próprio Egocrata, porque, «Se os burocratas, considerados no seu conjunto, decidem de tudo, a coesão da sua própria classe só pode ser assegurada pela concentração do seu poder terrorista numa única pessoa.» (Debord). Com o sucesso do em83

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preendimento do Egocrata, o estabelecimento da «ditadura sem direito oficial», a comunicação não está apenas ausente a uma escala social; qualquer tentativa local é deliberadamente liquidada pela polícia. Esta situação não é uma «deformação» dos «objectivos puros» que a organização tinha inicialmente; está já prefigurada nos meios, nos instrumentos «fundamentalmente igualitários» usados para a vitória. «O que caracteriza os meios de comunicação de massas é o facto de serem anti-mediadores, intransitivos, o facto de produzirem uma não-comunicação [...]. A televisão, só pela sua presença, é o controlo social em casa. Não é necessário imaginar este controlo como o periscópio do regime espiando a vida privada de cada um, porque a televisão já é melhor do que isso: assegura que as pessoas não conversem mais umas com as outras, que estejam definitivamente isoladas perante declarações sem resposta.» (Baudrillard). X O projecto do Egocrata é supérfluo. Os meios de produção e de comunicação capitalistas já reduzem os seres humanos a espectadores silenciados e impotentes, vítimas passivas continuamente sujeitadas ao «monólogo elogioso» da ordem existente. A revolução antitotalitária requer, não um outro médium, mas a liquidação de todos os média, «a liquidação de toda a sua estrutura actual, funcional assim como técnica, da sua forma operacional, por assim dizer, que em toda a parte reflecte a sua forma social. No limite, obviamente, é o próprio conceito de médium que desaparece e que deve desaparecer: a palavra trocada, a troca recíproca e simbólica, nega a noção e a função de médium, de intermediário [...]. A reciprocidade surge através da destruição do médium.» (Baudrillard). [1977]

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Referências bibliográficas Baudrillard, Jean, Pour une critique de l´économie politique du signe (Paris, Gallimard, 1972). Camatte, Jacques, The Wandering of Humanity (Detroit, Black & Red, 1975). [Edição original: «Errance de l’humanité, conscience répressive, communisme», revista Invariance, nº 3, II série, 1973.] Debord, Guy, Society of the Spectacle (Detroit, Black & Red, 1970, 1977). [Ed. port.: A Sociedade do Espectáculo, Lisboa, Antígona.] Lefort, Claude, Un Homme en trop: Réflexions sur «L’Archipel de Goulag» (Paris, Seuil, 1976). Velli, Michael, Manual for Revolutionary Leaders (Detroit, Black & Red, 1972).

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O Progresso e a Energia Nuclear: a Destruição do Continente Americano e dos seus Povos O envenenamento premeditado de seres humanos, de solos e de outros seres vivos só pela mais grosseira hipocrisia poderá ser considerado um «acidente». Só os intencionalmente cegos poderão afirmar que esta consequência do Progresso Técnico «não estava prevista». O envenenamento e a deslocalização dos habitantes deste continente por causa de «entidades superiores» poderá ter começado na Pensilvânia oriental, mas não durante as últimas semanas1. Há duzentos e vinte anos atrás, na região de Three Mile Island, que está a ser actualmente envenenada pela radiação, especuladores com

1.  Alusão ao acidente nuclear de Three Mile Island, perto de Harrisburg, capital da Pensilvânia, cujo início ocorreu em 28 de Março de 1979 e levou à deslocalização de um grande número de pessoas. Foi um dos mais graves dos muitos acidentes que têm ocorrido em centrais nucleares. (N. do t.)

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os nomes de Franklin, Morris, Washington e Hale ocultaram os seus nomes por detrás de fachadas como a Vandalia Company e a Ohio Company. Estas empresas tinham uma intenção: vender terra para obter lucro. Os indivíduos por detrás das companhias tinham um objectivo: remover quaisquer obstáculos que se encontrassem no caminho do livre desenvolvimento da obtenção de lucro, quer esses obstáculos fossem seres humanos, culturas milenares, florestas, animais ou até rios e montanhas. O seu objectivo era Civilizar este continente, introduzindo nele um ciclo de actividades nunca antes postas em prática aqui: Trabalho, Poupança, Investimento, Venda – o ciclo da reprodução e do alargamento do Capital. O principal obstáculo para esta actividade eram os seres humanos que viviam neste continente há milénios e que, sem Lei, Governo ou Igreja, desfrutavam do sol, dos rios, dos bosques, das diversas espécies de plantas e animais e de si mesmos. Estes povos consideravam a vida como um fim, não como um meio a ser posto ao serviço de fins «mais altos». Não correram para a Civilização como as crianças para um pote de doces, como os Franklins e os Washingtons esperavam que eles fizessem. Pelo contrário. Eles desejavam muito pouco daquilo que a Civilização tinha para oferecer. Desejavam algumas das armas, e queriam-nas só para preservar a sua liberdade contra usurpações da Civilização; preferiam a morte a uma vida reduzida a Trabalho, Poupança, Investimento e Venda. Numa última tentativa desesperada para empurrarem a Civilização e os seus Benefícios de volta para o mar de onde tinham vindo, numa revolta agora recordada como o nome de um automóvel, os seus guerreiros expulsaram os expropriadores de terras e os seus soldados do Ontário, do Michigan, do Ohio e da Pensilvânia ocidental2. Devido a essa resistência intransigente, os Civilizadores atribuíram-lhes o epíteto de Selvagens. Essa denominação deu aos Civilizadores uma permissão para exterminar sem hesitações ou escrúpu-

2.  Referência à Guerra de Pontiac (1763-1766), lançada na região dos Grandes Lagos contra a política britânica de ocupação; a sua designação deriva do nome do líder ottawa Pontiac, um dos mais destacados guerreiros índios desse período. A par de muitas outras apropriações abusivas da mesma laia, o nome de Pontiac foi adoptado em 1926 como marca de automóveis da General Motors. (N. do t.)

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los: «Enviem-lhes cobertores infestados com varíola», ordenou um dos oficiais do exército encarregados da exterminação. O Bicentenário da Independência Americana recentemente celebrado comemorou o dia em que, duzentos anos atrás, os expropriadores de terras, especuladores e seus aliados decidiram acelerar a exterminação da independência da região a oeste de Three Mile Island. O governo do rei estava bastante longe para poder proteger os investimentos de forma adequada e, de qualquer forma, era Feudal, não partilhando sempre os objectivos dos especuladores; chegou mesmo ao ponto de fazer respeitar as fronteiras estabelecidas por tratados com os Selvagens. O que se impunha, portanto, era um aparelho eficiente sob o controlo directo dos expropriadores de terras e dedicado exclusivamente à prosperidade das suas empresas. As organizações informais de polícia fronteiriça como os Paxton Boys eram eficientes para massacrar os habitantes tribais de uma aldeia isolada como Conestoga. Mas essas formações fronteiriças eram pequenas e temporárias, e estavam tão dependentes do consentimento activo de cada participante como os próprios guerreiros tribais; por isso mesmo, não eram as organizações policiais mais apropriadas. Os especuladores aliaram-se a idealistas e sonhadores, e por detrás de um estandarte onde estavam inscritas as palavras Liberdade, Independência e Felicidade, tomaram nas suas mãos o poder governamental, militar e policial. Há um século e meio atrás, o eficiente aparelho pelo progresso do Capital estava em alta rotação. As organizações militares e policiais, baseadas na obediência e na submissão, e não no acordo explícito de ninguém, estavam preparadas para a acção contra povos que tinham resistido àquele tipo de regimentação durante dois mil anos ou mais. O Congresso aprovou umas das partes mais explícitas da sua legislação: a Lei de Deslocalização dos Índios. Em poucos anos, toda a resistência, toda a actividade que não fosse a actividade do Capital, foi removida da área que se estendia a oeste de Three Mile Island até ao Mississipi, e a sul de Michigan até à Geórgia. O governo, tornando-se rapidamente um dos mais poderosos do mundo, já não estava restringido ao envenenamento com varíola ou ao massacre-surpresa de habitantes de aldeias; pôs em prática a Deslocalização com uma criteriosa combinação de Platitudes, Promessas e Polícia. Os povos das tribos livres remanescen89

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tes não podiam resistir a esta combinação sem a adoptarem, mas não a podiam adoptar sem deixarem de ser livres. Escolheram permanecer livres, e os últimos seres humanos livres entre Three Mile Island e o Mississipi foram Deslocalizados. À medida que os colonos se deslocavam para terras deliberadamente desocupadas, onde o próprio ar que respiravam lhes transmitia um travo da liberdade recentemente suprimida, transformavam grandes bosques em réplicas alargadas do inferno que tinham deixado para trás. O usufruto de trilhos e florestas cessou: as florestas foram queimadas, os trilhos tornaram-se uma corrida de obstáculos que deviam ser percorridos tão rapidamente quanto o Capital possibilitasse. A alegria deixou de ser o objectivo da vida; a própria vida tornou-se um mero meio; o seu fim era o lucro. A variedade de centenas de formas culturais foi reduzida à uniformidade de uma única rotina: trabalho, poupança, investimento, venda, todos os dias do nascer ao pôr-do-sol, e contagem do dinheiro depois de anoitecer. Todas as antigas actividades, e dezenas de outras novas, foram transformadas de fonte de prazer em fonte de lucro. Milho, feijões e abóboras, as «três irmãs» respeitadas e amadas pelos anteriores habitantes da região, tornaram-se simples mercadoria para vender em mercados; os seus semeadores e ceifeiros já não as plantavam para as desfrutarem às refeições, em banquetes e festivais, mas para as venderem para com isso obterem um lucro. O lazer da horticultura foi substituído pelo trabalho duro da agricultura, os trilhos davam lugar a ferrovias, caminhar foi suplantado pela locomoção de gigantescas fornalhas sobre rodas movidas a carvão, as canoas foram varridas por cidades flutuantes que não se detinham diante de quaisquer obstáculos enchendo o ar de cinzas e de fumo negro. As «três irmãs», conjuntamente com a sua restante família, foram reduzidas a simples mercadoria, assim como as árvores que se tornaram madeira, os animais que se tornaram carne, seguindo o mesmo caminho as viagens, as canções, os mitos e os contos dos novos habitantes do continente. E havia mesmo novos habitantes: primeiro às centenas, depois aos milhares, e por fim aos milhões. Quando a importação de escravos em sentido absoluto finalmente terminou, foram importados das decrépitas propriedades da Europa pós-feudal camponeses excedentes. Os seus antepassados não haviam conhecido a liberdade durante tantas 90

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gerações que a própria memória dela se perdera. Anteriormente criados de libré ou trabalhadores agrícolas nas propriedades de fidalgos crescentemente mercantilistas, os recém-chegados vinham já preparados para querer aquilo que o Capital tinha precisamente para oferecer, e a degradação da vida imposta pelo Capital era para eles liberdade em comparação com o seu único quadro de referência. Investidores em propriedade da terra venderam-lhes lotes, foram transportados para esses lotes por investidores nos caminhos-de-ferro, equipados por investidores em equipamento para explorações agrícolas, financiados por investidores bancários, mobilados e vestidos pelos mesmos interesses, muitas vezes pelas mesmas Casas que lhes tinham fornecido tudo o resto com uma taxa de lucro que nenhuma outra época teria considerado «justa», escreveram com jactância aos parentes do seu país de origem que se tinham transformado nos seus próprios senhores, que eram agricultores livres, mas no fundo do estômago e no bater ausente do coração sentiam a verdade: eram escravos de um senhor que era ainda mais intratável, inumano e distante do que os seus antigos amos, um senhor cujo poder letal, como o da radioactividade, podia ser sentido mas não podia ser visto. Tinham-se tornado criados de libré do Capital. (Quanto aos que acabaram como «operários» ou «trabalhadores não qualificados» nas fábricas que produziam os equipamentos e as ferrovias, esses tinham pouco de que se gabar nas suas cartas; tinham respirado um ar mais livre onde quer que tivessem começado.) Um século depois do levantamento associado ao nome de Pontiac, um século recheado da desesperada resistência dos sucessores de Pontiac contra as contínuas usurpações do Capital, alguns dos agricultores importados começaram a lutar contra a sua redução a servos do Capital financeiro, dos caminhos-de-ferro e do equipamento. Os agricultores populistas ansiavam por deter e meter na prisão os Rockefellers, Morgans e Goulds directamente responsáveis pela sua degradação, mas a sua revolta não passou de um vago eco das anteriores revoltas dos ottawas, chippewas, delawares e potawatomis. Os agricultores viraram-se contra as personalidades, mas continuaram a fazer parte da cultura responsável pela sua degradação. Consequentemente, não conseguiram unir-se, ou mesmo reconhecer como sua a resistência armada dos povos das planícies, a última tentativa de impedir que todo o continente se transformas91

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se numa ilha do Capital ‒ luta essa derrotada pelos antigos métodos dos assírios (e dos modernos socialistas soviéticos) de deportação em massa, campos de concentração, massacres de prisioneiros desarmados e constante lavagem ao cérebro por mercenários militares e missionários. Ainda que muitos deles fossem militantes e corajosos, os agricultores em luta raramente colocavam o prazer e a vida acima do trabalho, da poupança e do lucro, e o seu movimento descarrilou por completo quando foi infiltrado por políticos radicais, que equipararam a necessidade de uma nova vida ao desejo de um novo Líder. A forma de descarrilamento do movimento populista tornou-se a forma de existência do movimento trabalhista durante o século que se seguiu. Os políticos que cavaram a sepultura do populismo foram os precursores da infinita variedade de seitas monásticas, modeladas organizacionalmente de acordo com a Ordem Jesuíta, mas com doutrinas e dogmas que derivavam de um ou outro Livro comunista, socialista ou anarquista. Preparados para saltar instantaneamente para qualquer situação em que as pessoas começassem a lutar para reconquistar a sua própria humanidade, esmagaram uma após outra qualquer potencial rebelião ao despejarem a sua doutrina, a sua organização e a sua liderança sobre pessoas que lutavam pela vida. Estes palhaços, para quem o essencial eram as suas fuças e os seus discursos nas primeiras páginas dos jornais, acabaram por se tornar capitalistas que levaram para o mercado a única mercadoria que tinham encurralado: o Trabalho. Pouco depois da viragem para o presente século, com a resistência efectiva definitivamente afastada, com uma pseudo-resistência que era de facto um instrumento para a redução final da actividade humana a uma mera variante do Capital, o aparelho eficiente destinado a gerar lucros deixou de ter quaisquer obstáculos externos. Tinha ainda obstáculos internos; as diversas fracções do Capital, os Vanderbilts, os Goulds e os Morgans, viraram continuamente as suas armas uns contra os outros e ameaçaram fazer ruir por dentro toda a estrutura. Rockefeller e Morgan foram pioneiros na fusão, na combinação das várias fracções: investidores endinheirados distribuíam o seu dinheiro pelas empresas uns dos outros, os directores sentavam-se nos conselhos de administração uns dos outros e todos ganhavam interesse pela progressão ilimitada de cada unidade de todo o aparelho. À excepção de raros impé92

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rios pessoais e familiares sobreviventes, as empresas eram dirigidas por simples mercenários, que se diferenciavam da restante mão-de-obra principalmente devido ao tamanho das suas remunerações. A tarefa dos directores consistia em ultrapassar todos os obstáculos, humanos e naturais, com apenas uma limitação: o funcionamento eficiente das outras empresas que constituíam colectivamente o Capital. Há quarenta anos, as pesquisas das ciências físicas e químicas à disposição do Capital levaram à descoberta de que a maior parte das substâncias que se encontram acima e abaixo do solo não eram as únicas que podiam ser exploradas em prol do lucro, verificando-se que os núcleos «libertados» de certas substâncias eram eminentemente exploráveis pelo Capital. A destruição da matéria ao nível atómico, primeiramente utilizada como a mais medonha arma até então forjada pelos seres humanos, tornou-se a mais recente mercadoria. Por essa altura, o pagamento de juros, as taxas de transporte e a aquisição de equipamento pelos agricultores, assim como as árvores e os animais selvagens desaparecidos desde há muito, deixaram de ser interessantes como fontes significativas de lucro. Companhias energéticas interligadas com monopólios do urânio e do petróleo tornaram-se impérios mais poderosos do que qualquer dos Estados que lhes serviam de mediadores. Nos computadores desses impérios, a saúde e a vida de um número «aceitável» de habitantes dos campos e das cidades foram contrabalançadas com o ganho ou a perda «aceitáveis» de lucros. As reacções potencialmente populares a esses cálculos eram controladas por criteriosas combinações de platitudes, promessas e polícia. *** ‒ O envenenamento de pessoas na Pensilvânia oriental por radiações que induzem cancro, causado por um sistema que dedica uma parte substancial da sua actividade à «defesa» de um ataque nuclear do estrangeiro. ‒ A contaminação da comida destinada a ser consumida pelos habitantes que continuam a viver neste continente e a destruição das expectativas dos agricultores que dedicaram zelosamente as suas vidas a produzir a mercadoria que interessava ao Capital numa fase que terminou há meio século. 93

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‒ A transformação de um continente anteriormente povoado por seres humanos cujo objectivo na vida era desfrutar do ar, do sol, das árvores, dos animais e dos outros, num literal campo de minas, utilizando venenos letais e explosivos inéditos. ‒ A perspectiva de um continente coberto por intensos infernos, com os seus altifalantes recitando as suas mensagens gravadas a uma terra queimada: «Não há razões para reagir de forma exagerada; a situação está estabilizada; os dirigentes têm tudo controlado». ‒ Nada disto é acidental. É o estádio presente do progresso da Tecnologia, ou seja, do Capital, que Mary Wollstonecraft Shelley designou com o nome de Frankenstein, considerado «neutro» pelos aspirantes a directores, em pulgas para pôr as suas mãos «revolucionárias» nos comandos. Ao longo de duzentos anos, o Capital desenvolveu-se destruindo a natureza, deslocalizando e destruindo seres humanos. O Capital encetou agora um ataque frontal lançado contra os seus próprios empregados; os seus computadores começaram a calcular a dispensabilidade dos que foram ensinados a pensar que são seus beneficiários. Se os espíritos dos mortos pudessem renascer entre os vivos, os guerreiros ottawa, chippewa e potawatomi poderiam retomar a luta onde a deixaram há dois séculos atrás, ampliada pela força dos sioux, dos dakota e dos nez percé, dos yana, dos medoc e das inúmeras tribos cujas línguas já não são faladas. Uma tal força poderia capturar os criminosos que de outra forma nunca compareceriam perante qualquer tribunal. Os numerosos agentes do Capital poderiam então continuar a praticar a sua rotina de trabalho-poupança-investimento-venda torturando-se uns aos outros com platitudes, promessas e polícia dentro de centrais nucleares neutralizadas e desactivadas, do lado de lá das portas de plutónio. [1979]

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O Anti-Semitismo e o Pogrom de Beirute Escapar da morte numa câmara de gás ou num Pogrom, ou à prisão num campo de concentração, poderá dar a um escritor sério e capaz, como por exemplo Soljenitsine, uma compreensão profunda de muitos dos elementos centrais da existência contemporânea, mas essa experiência, em si mesma, não faz de Soljenitsine um pensador, um escritor ou mesmo um crítico dos campos de concentração; não confere, em si mesma, quaisquer poderes especiais. Noutra pessoa, essa experiência poderá permanecer latente como uma potencialidade ou continuar a ser sempre insignificante, ou poderá contribuir para transformar essa pessoa num ogre. Resumindo, a experiência é uma parte indelével do passado do indivíduo, mas não determina o seu futuro; o indivíduo é livre de escolher o seu futuro; é livre, até, de optar por abolir a sua liberdade, em cujo caso é uma escolha feita de má fé e que faz dele um Salaud (o termo filosófico exacto de J. P. Sartre aplicado à pessoa que faz uma tal escolha)1. As minhas observações são pedidas de empréstimo a Sartre; gostaria de as aplicar, não a Soljenitsine, mas a mim mesmo, como indivíduo específico, e aos apoiantes americanos que torcem pelo Estado de Israel, como escolha específica.

1.  Termo francês que se pode traduzir por «canalha». (N. do t.)

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*** Eu fui uma das três crianças retiradas pelos nossos velhos de um país da Europa Central um mês antes de os nazis o terem invadido e começado a perseguir ali os judeus. Só partiu uma parte da minha grande família; a restante ficou e todos os seus membros foram detidos; todos os meus primos, tias e avós morreram em campos de concentração nazis ou em câmaras de gás, à excepção de dois tios, que adiante mencionarei. Mais um mês e eu também teria sido um dos que foram submetidos à exterminação científica de seres humanos racionalmente planeada, a experiência central de tantas pessoas ocorrida numa época de grande desenvolvimento da ciência e das forças produtivas, e não teria podido escrever sobre isso. Fui um dos que escapou. Passei a minha infância entre pessoas das montanhas dos Andes que falavam a língua quíchua, mas não aprendi esta língua e não perguntei a mim mesmo porquê; falava a um quíchua numa língua estrangeira para ambos, a língua dos conquistadores. Não tinha consciência de que era um refugiado nem de que os quíchuas eram refugiados na sua própria terra; sabia tão pouco dos terrores ‒ das expropriações, perseguições e pogroms, da aniquilação de uma antiga cultura ‒ sofridos pelos seus antepassados como sabia dos terrores vividos pelos meus. Para mim, os quíchuas eram generosos, hospitaleiros e sinceros, esperando eu que uma tia minha os respeitasse e gostasse deles, e não que os enganasse e desprezasse chamando-lhes sujos e primitivos2. As trapaças da minha tia foram o meu primeiro contacto com o que é ter dois pesos e duas medidas, espoliar os de fora para enriquecer os de dentro, com o adágio moral que diz: está tudo bem se formos nós que o fizermos. O desprezo demonstrado pela minha parente foi o meu primeiro contacto com o racismo, o que atribuía a esta pessoa uma afinidade com os pogromistas de que tinha escapado; ter fugido deles por um triz não 2.  O irmão e duas irmãs do pai de Fredy, por ele aconselhados, emigraram também, com os respectivos cônjuges, semanas depois para a Bolívia e juntaram-se-lhes em Cochabamba. (N. do t.)

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a levou a tornar-se crítica dos pogromistas; a experiência provavelmente não contribuiu em nada para a sua personalidade, nem sequer a sua identificação com os conquistadores, identificação essa partilhada pelos europeus que não tinham partilhado a experiência dos meus familiares de terem escapado por um triz a um campo de concentração. Já antes da experiência dos meus familiares, os oprimidos camponeses europeus emigrados para as Américas tinham-se identificado com os conquistadores que ali levaram a cabo uma opressão mais cruel dos não-europeus. A minha parente chegou a fazer uso da sua experiência anos depois, quando decidiu ser apoiante do Estado de Israel, ao mesmo tempo que não renunciava ao desprezo a que votava os quíchuas; pelo contrário, aplicou depois esse desprezo a pessoas noutras partes do mundo, a pessoas que nunca tinha conhecido e com quem nunca tinha estado. Mas nessa altura eu não estava preocupado com o carácter das suas opções; estava mais preocupado com os chocolates que ela me dava. *** Na adolescência fui levado para a América, que era sinónimo de Nova Iorque mesmo para pessoas que já se encontrassem na América entre os quíchuas; era sinónimo de muito mais, como aos poucos eu iria aprendendo. Pouco depois da minha chegada à América, no meu país de origem, na Europa Central, o poder de Estado foi tomado por uma bando de igualitaristas bem organizados que pensavam que podiam conseguir a emancipação universal ocupando cargos de Estado e tornando-se polícias, e o novo Estado de Israel bateu-se com sucesso na sua primeira guerra e transformou uma população autóctone de semitas em refugiados internos, como os quíchuas, e em refugiados exilados, como os judeus da Europa Central. Deveria ter perguntado a mim mesmo por que razão os refugiados semitas e os refugiados europeus que se diziam semitas, dois povos com tanto em comum, não se uniram contra os opressores comuns, mas estava demasiado ocupado a tentar encontrar o meu caminho na América. Através de um amigo da escola primária que os meus pais tinham na conta de arruaceiro, e através dos meus próprios pais, fui lentamente 97

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ficando a saber que a América era um lugar onde toda a gente queria estar, algo como um Paraíso, mas um Paraíso que continuava a ser inalcançável mesmo depois de termos entrado na América. A América era uma terra de empregados e operários fabris, mas nem o trabalho administrativo nem o trabalho fabril eram a América. O meu amigo arruaceiro resumiu-o de forma bastante simples: havia otários e vigaristas, e uma pessoa tinha de ser idiota para se tornar otário. Os meus pais eram menos explícitos; diziam: estuda com afinco. A motivação implícita era esta: Deus te livre de vires a ser empregado de escritório ou operário fabril! Aprende a ser outra coisa: especialista ou director. Na altura não sabia que esses outros apelos eram também os da América, e que apesar de cada degrau alcançado o Paraíso permanecia tão inalcançável como antes. Eu não sabia que a satisfação do especialista, ou mesmo do empregado ou operário, provinha, não da plenitude da sua própria vida, mas da rejeição desta, da identificação com o grande processo que estava a ter lugar fora dele, o desenfreado processo de destruição industrial. Os resultados desse processo podiam ser vistos em filmes e jornais, mas ainda não na televisão, que em breve levaria esse processo para casa de toda a gente; a satisfação era a do voyeur, do mirone. Naquela altura não sabia que esse processo era o sinónimo mais concreto de América. Uma vez na América, a minha experiência de ter escapado por um triz a um campo de concentração nazi era inútil; essa experiência não me podia ajudar a subir a escada rumo ao Paraíso, podendo até prejudicar-me; a minha subida apressada poderia ser muito abrandada ou mesmo interrompida por completo se procurasse sentir empatia pela condição de recluso de um campo de trabalho em que me poderia ter tornado, pois poderia ter compreendido o que tornava a perspectiva do trabalho fabril tão terrível; diferia da outra condição por nela não haver câmaras de gás e porque o operário passava dentro da fábrica apenas os seus dias da semana. Não era o único para quem a experiência na Europa Central de nada servia. Os meus familiares também não precisaram dela. Durante essa década conheci um dos meus dois tios que sobreviveram a um campo de concentração nazi. Uma vez na América, nem sequer esse meu tio teve necessidade de fazer uso da sua experiência; não queria senão esquecer o Pogrom e tudo o que lhe estivesse associado; que98

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ria apenas subir os degraus da América; queria parecer, soar e actuar como os outros americanos. Os meus pais tinham exactamente a mesma atitude. Disseram-me que o meu outro tio sobrevivera aos campos de concentração e fora para Israel, onde um carro o atropelara pouco depois de chegar. Não senti interesse pelo Estado de Israel ao longo dessa década, embora ouvisse falar dele. Os meus familiares falavam com um certo orgulho da existência de um Estado com polícia judaica, um exército judaico, juízes e directores de fábricas judaicos, ou seja, de um Estado totalmente diferente da Alemanha nazi e igual à América. Os meus familiares, independentemente das suas situações pessoais, identificavam-se com os polícias judeus e não com os judeus policiados, com os donos das fábricas e não com os trabalhadores judeus, com vigaristas judeus e não com os judeus vigarizados, identificação compreensível entre pessoas que desejavam esquecer a sua confrontação com os campos de trabalho. Mas nenhum deles queria ir para lá; já se encontravam na América. Os meus familiares fizeram donativos, de má vontade, para a causa sionista e ficaram perplexos ‒ todos excepto a minha parente racista ‒ com o inqualificável entusiasmo, da segunda à enésima geração de americanos, por haver um Estado distante com polícias, professores e administradores judeus, porque essas pessoas já eram policias, professores e administradores na América. A minha parente racista compreendeu em que se baseava esse entusiasmo: era na solidariedade racial. Mas na altura eu não tinha consciência disso. Não era um aluno brilhante do ensino secundário e pensava que a solidariedade racial era algo que se circunscrevia aos nazis, africâneres e sulistas americanos. Começava a familiarizar-me com os traços dos nazis que quase me tinham capturado: o racismo que reduzia os seres humanos às suas ligações genealógicas ao longo de cinco ou seis gerações, as cruzadas nacionalistas que consideravam o resto da humanidade como um obstáculo, a Gleichschaltung que acabou com a liberdade de escolha do indivíduo, a eficiência tecnológica que fazia dos pequenos humanos mera forragem para grandes máquinas, o militarismo agressor que confrontava batalhões de cavalaria com muralhas de tanques e infligia cem vezes mais perdas do que as que sofria, a paranóia oficial que retratava o inimigo, habitantes de vilas e aldeias mal armados, como uma 99

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conspiração quase omnipotente de cósmico alcance. Mas não percebi que essas características tinham algo a ver com a América e com Israel. *** Só durante a minha década seguinte, como estudante universitário americano com um ligeiro interesse por história e filosofia, comecei a adquirir um conhecimento superficial sobre Israel e o sionismo, não porque estivesse particularmente interessado nesses assuntos, mas porque se incluíam nas minhas leituras. Não me sentia hostil nem simpatizante; era indiferente; a minha experiência como refugiado continuava a ser inútil. Mas não continuei a ser indiferente a Israel ou ao sionismo. Essa foi a década da espectacular captura e julgamento israelita do bom alemão Eichmann, e da espectacular invasão israelita de vastas partes do Egipto, Síria e Jordânia numa Blitzkrieg de seis dias, uma década em que Israel era notícia para toda a gente, não apenas para refugiados. O obediente Eichmann não me inspirava quaisquer pensamentos fora do vulgar, excepto a ideia de que aquele homem não podia ser tão excepcional, visto eu já ter conhecido pessoas como ele na América. Mas algumas das minhas leituras fizeram com que começasse a pensar no racismo sionista dos meus familiares. Fiquei a saber que certos povos, como os antigos hebreus, acádios, árabes, fenícios e etíopes, provinham todos da terra de Sem (a Península Arábica) e que todos falavam a sua língua, sendo isso o que os tornava semitas. Fiquei a saber que a religião judaica teve origem entre os semitas no antigo Estado levantino da Judeia, que a religião cristã teve origem entre os semitas nas antigas cidades levantinas de Nazaré e Jerusalém, que a religião maometana teve origem entre os semitas nas antigas cidades árabes de Meca e Medina, e que nos últimos 1300 anos a região chamada Palestina tinha sido um lugar sagrado para os islamitas semitas que viviam ali e nas regiões circundantes. Fiquei também a saber que as religiões dos judeus europeus e americanos, como as religiões dos cristãos europeus e americanos, foram elaboradas durante quase dois mil anos por europeus e, mais recentemente, por americanos. Se os judeus europeus e americanos eram semitas devido à sua re100

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ligião, então os cristãos europeus e americanos também eram semitas, noção que normalmente era considerada absurda. Se os judeus eram semitas devido à linguagem do seu Livro Sagrado, então todos os cristãos europeus e americanos eram gregos ou italianos, outra noção quase tão evidentemente absurda. Comecei a suspeitar que a única ligação dos meus familiares sionistas ao Sião no Levante era uma ligação genealógica traçada, não desde há mais de seis gerações, mas desde há mais de sessenta gerações. Mas eu fora levado a considerar esse cálculo racial como uma peculiaridade dos nazis, dos africâneres e dos sulistas americanos. Fiquei apreensivo. Pensei que seguramente era mais do que isso; seguramente, os que afirmavam descender das vítimas de todo aquele racismo não eram portadores de um racismo dez vezes mais completo. Sabia pouco a respeito do movimento sionista, mas o suficiente para começar a sentir repugnância. Sabia que o movimento tivera originalmente duas alas, podendo compreender uma delas, a socialista, porque começava a identificar-me com as vítimas da opressão, não por discernimentos obtidos a partir da minha própria experiência, mas bebidos em livros acessíveis também a outras pessoas; a outra ala do sionismo era incompreensível para mim. Os sionistas igualitários ou de esquerda, tal como eu então os compreendi, não queriam ser assimilados pelos Estados europeus que os perseguiam, alguns por pensarem que nunca o poderiam ser, outros por se sentirem repelidos pela Europa e pela América industrializadas. O Messias, o seu movimento, iria livrar Israel do exílio e guiá-lo até ao Sião, para algo completamente diferente, para um Paraíso sem otários nem vigaristas. Alguns, ainda mais metaforicamente, esperavam que o Messias livrasse os oprimidos dos seus opressores, e se isso não fosse possível em todo o lado, pelo menos que fosse possível numa Utopia igualitária milenarista localizada numa região do Império Otomano, encontrando-se eles preparados para se juntarem aos habitantes islâmicos do Sião contra os opressores otomanos, levantinos e britânicos. Partilhavam esse sonho com os milenaristas cristãos que há mais de um milénio andavam a tentar encontrar o Sião numa ou noutra região da Europa; ambos tinham as mesmas raízes, mas creio que os sionistas de esquerda herdaram o seu milenarismo dos cristãos. 101

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Os sionistas igualitários eram arrogantes pensando que os islamitas habitantes do Sião acolheriam os esquerdistas europeus como libertadores, e eram tão ingénuos como os igualitários que tomaram o poder de Estado no meu país natal, pensando que o milénio começaria logo que ocupassem os cargos estatais e se tornassem polícias. Mas tanto quanto eu podia compreender, não eram racistas. Os outros sionistas, a direita, que na altura em que cheguei à universidade tinham suplantado a esquerda, pelo menos na América, eram explicitamente racistas e assimilacionistas; queriam um Estado dominado por uma Raça, sempre muito mal disfarçado de religião, um Estado que não fosse algo completamente diferente, mas exactamente igual à América e aos outros Estados com assento na Família das Nações. Não conseguia compreender tais coisas, pois parecia-me que esses sionistas, que incluíam estadistas, industrializadores e tecnocratas, não só eram racistas como também conversos. Os primeiros conversos eram judeus que na Espanha do século XV, para escaparem à perseguição, descobriram que o tão esperado Messias judeu já tinha chegado, um milénio e meio antes, na pessoa do profeta judeu Jesus, o crucificado. Alguns desses conversos juntaram-se depois à Inquisição e perseguiram judeus que ainda não tinham feito uma tal descoberta. Os conversos modernos não se tinham tornado católicos; o catolicismo não era o credo dominante no século XX; esse credo era a Ciência e a Tecnologia. Eu pensava que Jesus tinha pelo menos defendido, mesmo que se tratasse apenas de relíquias, algumas das características da antiga comunidade humana, ao passo que a Ciência e a Tecnologia não defendiam nada de humano; destruíram a cultura, a natureza e a comunidade humana. Parecia lamentável que as especificidades, desde há muito tempo preservadas e cuidadosamente guardadas, de uma minoria cultural que se recusara a ser absorvida, fossem destruídas pela descoberta de que o Estado tecnocrático era o Messias e o Processo Industrial o tão aguardado milénio. Isso tornou toda a trajectória sem sentido. O sonho destes conversos racistas era para mim repulsivo.

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*** Só na década seguinte, quando já tinha mais de trinta anos, a minha proximidade com o Pogrom nazi começou a ter significado para mim. Essa transvaloração da minha anterior experiência aconteceu de repente e foi causada, a bem dizer, por um encontro fortuito, encontro esse em que havia, também por acaso, uma estranha referência ao Estado de Israel. Foi na década em que a América travou uma guerra de extermínio contra um povo e uma cultura antiga do Extremo Oriente. Estava por acaso de visita aos meus familiares americanizados quando a minha tia andina se encontrou com eles pela primeira vez desde que se tinham separado. Era a minha tia que respeitava o povo que falava quíchua, mas não o bastante para aprender a sua língua, e que ficara entre eles quando os outros partiram. A conversa entre os meus familiares transformou-se em reflexões piedosas sobre o meu tio que fora para Israel e morrera atropelado por um carro depois de ter sobrevivido aos campos de concentração nazis. A minha tia andina, perplexa com o que estava a ouvir, perguntou-lhes se tinham todos enlouquecido. A história sobre o acidente automóvel fora contada às crianças tantas vezes que os adultos acabaram por acreditar nela. O homem não morreu num acidente! gritou ela. Suicidou-se! Sobreviveu aos campos de concentração porque o tinham empregado como técnico na aplicação da ciência química ao funcionamento das câmaras de gás. Tinha depois cometido o erro de emigrar para Israel, onde a sua colaboração com os nazis se tornou do conhecimento público. Provavelmente não pôde suportar os olhares acusatórios; e talvez temesse uma retaliação. A minha primeira reacção a essa revelação foi de repulsa por um ser humano susceptível de estar tão moralmente degradado que chegara ao ponto de gasear os seus próprios familiares e companheiros de cativeiro. Mas quanto mais pensava nele, mais admitia que havia pelo menos um pingo de integridade moral no seu último acto autodestrutivo; esse acto não o tornava um paradigma moral, mas contrastava nitidamente com as acções de pessoas que não tinham sequer um pingo de integridade moral, pessoas que regressavam do Extremo Oriente e defendiam 103

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as suas acções, gabando-se até das atrocidades anormais que tinham infligido a outros seres humanos. E perguntei a mim mesmo quem seriam realmente os outros, os puros que tinham exposto e julgado Eichmann, o alemão obediente. Não sabia nada sobre as pessoas que viviam em Israel e não conhecia nenhum israelita, mas estava cada vez mais ciente dos americanos que apoiavam ruidosamente o Estado de Israel, não dos sionistas de esquerda que se encontravam entre eles, mas dos outros, dos amigos racistas dos meus familiares. Os esquerdistas tinham desaparecido por completo num obscuro limbo sectário onde nenhum estranho podia penetrar, num limbo que tresandava quase tanto como o mantido pelos herdeiros dos Messias Lénine e Stáline, com seitas divididas pela existência do Estado israelita, variando entre as que reivindicavam que a tomada do poder em Israel era tudo quanto era necessário para transformar aquele Estado numa comunidade igualitária, e as que reivindicavam que o actual Estado de Israel já era uma comunidade igualitária. Mas os sionistas de esquerda gritavam apenas entre eles. Foram os outros que geraram todo o alarido, que gritaram a toda a gente. E estes eram explícitos sobre aquilo que admiravam no Estado de Israel: defendiam-no, gabavam-no, e nada tinha que ver com o igualitarismo da ala em dificuldades. O que eles admiravam era o seguinte: – a cruzada nacionalista que considerava os humanos que o rodeavam como meros obstáculos ao seu florescimento; – a potência industrial da Raça que conseguira desnaturar o deserto e fazê-lo florescer; – a eficiência dos seres humanos transformados em pilotos de grandes tanques e de jactos incrivelmente precisos; – a sofisticação tecnológica dos próprios instrumentos de morte, infinitamente superiores aos dos nazis; – a espectacularmente empreendedora polícia secreta, dotada de uma perícia certamente não inferior, para um Estado tão pequeno, à da CIA, do KGB ou da Gestapo; – o militarismo agressivo, que utilizava as mais recentes invenções da Ciência mortífera contra uma variegada colecção de armas, e infligia cem ou mil vezes mais perdas do que as que sofria. Esta última jactância, que expressava a moralidade de reclamar cen104

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tenas de olhos por um olho e milhares de dentes por um dente, parecia particularmente repulsiva na boca de apoiantes de um Estado teocrático onde uma elite ética afirmava dar orientação de inspiração divina em questões morais; mas isto só poderá surpreender os desinformados sobre as teocracias da História. Durante a década em questão, o racismo (o anti-semitismo, para ser mais preciso) dos admiradores do Estado de Israel tornou-se virulento. Os expropriados semitas de Sião deixaram de ser considerados seres humanos; eram árabes retrógrados; só os que se tornaram bons israelitas assimilados podiam ser considerados humanos; os outros eram primitivos imundos. E os primitivos, segundo reza a definição dada há alguns séculos pelos conquistadores, não só não tinham direito de resistir à humilhação, expropriação e miséria, como não tinham direito a existir; eles só esbanjavam recursos naturais, não sabiam o que fazer com as preciosas dádivas de Deus! Só os eleitos por Deus sabiam utilizar as dádivas do Grande Pai, só eles sabiam exactamente o que fazer com elas. Contudo, à medida que insistiam no atraso dos expropriados, os apoiantes tornaram-se paranóicos e apresentaram a patética resistência dos expropriados como uma vasta conspiração, de incalculável poder e de alcance quase cósmico. A expressão de Sartre mauvaise foi3 é demasiado fraca para caracterizar a postura adoptada por estas pessoas, mas não é minha preocupação forjar uma outra expressão. *** Sobrevivi até aos meus quarenta anos em parte devido ao facto de a América ainda não se ter exterminado a si mesma e ao resto da humanidade com os seus potentes incineradores e venenos com que minava4, ou melhor, contaminava, a sua própria terra e as terras de outros povos. Esta década conjugou o que anteriormente pensara não ser conjugável; conjugou uma enxurrada de revelações sobre o Holocausto, sob 3.  Má-fé, em português. (N. do t.) 4.  Minar, no sentido de colocar minas explosivas, tornando a terra letal.

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a forma de filmes, peças de teatro, livros e artigos, com o Pogrom perpetrado pelo Estado de Israel contra os semitas levantinos em Beirute.5 As revelações só aludiram ligeiramente ao Holocausto no Vietname; talvez tenham de passar duas gerações para que essa obscenidade seja exposta. As revelações foram quase todas sobre o Holocausto a que escapei por um triz em criança. Pessoas que não compreendem a liberdade humana poderão pensar que essas terríveis revelações poderiam ter apenas um efeito, virar as pessoas contra os perpetradores dessas atrocidades, fazer as pessoas sentir empatia pelas vítimas, contribuir para a vontade de abolir qualquer possibilidade de vir a repetir-se uma perseguição tão desumanizante e a sangue-frio. Mas, para o bem ou para o mal, tais experiências, pessoalmente vividas ou conhecidas através de revelações, não são senão o campo em que a liberdade humana plana como uma ave de rapina. As revelações sobre o Pogrom de há quarenta anos têem-se até tornado justificações para o Pogrom de agora. Pogrom é uma palavra russa que costumava aplicar-se, num passado que agora parece quase benigno, a motins de homens armados de cacetes contra aldeões parcamente armados e que tinham características culturais diferentes; quanto mais o Estado estivesse envolvido nesses motins, mais hediondo era o Pogrom. Os atacantes, esmagadoramente mais fortes, projectavam o seu agressivo carácter de arruaceiros sobre as suas vítimas mais fracas, convencendo-se de que eram ricas, poderosas, estavam bem armadas e aliadas ao Diabo. Os atacantes também projectavam a sua violência sobre as suas vítimas fabricando histórias sobre a brutalidade das vítimas a partir de detalhes retirados do seu próprio reportório de proezas. Na Rússia do século XIX, um Pogrom era considerado particularmente violento se fossem mortas cinquenta pessoas. As estatísticas passaram por uma completa metamorfose no século XX, quando o Estado se tornou o maior arruaceiro. As estatísticas dos Pogromes dos modernos Estados alemão, russo e turco são conhecidas; as do Vietname e de Beirute ainda não são públicas. 5.  Esta afirmação, escrita em meados de Agosto, referia-se à invasão do Líbano pelo Estado de Israel e não ainda ao Pogrom, no sentido estrito do século XIX, perpetrado em Setembro (16 a 18 de Setembro de 1982, para ser exacto).

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Beirute e os seus habitantes já tinham sido assolados pela presença do violento movimento de resistência dos refugiados que haviam sido expropriados e expulsos de Sião; se as baixas desses confrontos fossem também acrescentadas ao número de mortos causados pelo envolvimento directo do Estado de Israel no motim – mas fico-me por aqui; não quero entrar no jogo dos números. O truque de declarar guerra à resistência armada e atacar depois os desarmados familiares dos resistentes, assim como a população circundante, com os produtos mais macabros da Ciência da Morte, não é novo. Os pioneiros americanos foram também pioneiros nisso; tornaram-no uma prática normal para declarar guerra aos guerreiros indígenas e para matar e queimar depois aldeias onde só havia mulheres e crianças. Isto já é guerra moderna, que conhecemos como guerra contra populações civis; chamou-se-lhe também, mais francamente, homicídio em massa ou genocídio. Talvez eu não devesse ficar surpreendido que os perpetradores de um Pogrom se façam passar por vítimas, neste caso por vítimas do Holocausto. Herman Melville compreendeu há já mais de um século, na sua análise da metafísica do ódio aos índios, que aqueles que fizeram da caça e matança dos povos indígenas deste continente a sua profissão a tempo inteiro, sempre se fizeram passar, mesmo aos seus próprios olhos, por vítimas da caça ao homem. O uso que os nazis fizeram da Conspiração Judaica Internacional é mais bem conhecido: ao longo de todo o tempo em que cometeram atrocidades inacreditáveis, os nazis consideraram-se a eles próprios como os perseguidos. É como se a experiência de ser vítima isentasse da solidariedade humana, como se desse poderes especiais e licença para matar. Talvez não devesse ficar surpreendido, mas não posso deixar de ficar zangado, porque essa postura é a de um Salaud, é a postura de quem nega a liberdade humana, de quem nega que é ele que escolhe ser assassino. A experiência, quer seja vivida pessoalmente ou obtida através de revelações, não explica nem determina nada; não é mais do que um falso álibi. Melville analisou a integridade moral do odiador de índios. 107

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Estou a falar de pogromistas modernos e, mais estritamente, de apoiantes de Pogromes. Estou a falar de pessoas que pessoalmente não mataram cinquenta seres humanos, nem cinco nem sequer um só. Estou a falar da América, onde se procura uma completa imersão no Paraíso evitando ao mesmo tempo qualquer contacto com o seu trabalho sujo, onde apenas uma minoria se encontra ainda envolvida na realização desse trabalho sujo, onde a grande maioria das pessoas são − a tempo inteiro − voyeurs, mirones, adeptos ou como se lhes quiser chamar. Entre os voyeurs, concentro-me nos dos Holocaustos e dos Pogromes. Tenho de continuar a fazer referência àquilo que se encontra no ecrã porque é aquilo que está a ser visto. Mas a minha preocupação é com o observador, com aquele que faz de si um voyeur, especificamente um voyeur de Holocaustos, um adepto de esquadrões da morte. Basta dizermos a um deles as palavras Beirute e Pogrom na mesma frase que ele vomitará toda a moralidade que traz dentro: não vomitará muito. A resposta mais provável que nos dará é uma risada imbecil ou uma gargalhada cínica. Lembro-me do meu tio, daquele que não foi atropelado por um carro, que teve, pelo menos, um pingo de integridade moral para ver aquilo que outros viram e rejeitá-lo, e contraponho-o à pessoa que nada vê ou que cinicamente defende aquilo que vê, que cinicamente aceita ser o que é. Se for um intelectual, um adepto, responderá o exacto equivalente do sorriso idiota ou da gargalhada cínica, mas com palavras; irá bombardear-nos com sofismas, meias verdades e mentiras descaradas, para ele perfeitamente evidentes quando as profere. Não é um idealista aluado e ingénuo, é um materialista com os pés bem assentes na terra e completamente focalizado na propriedade, sem quaisquer ilusões sobre o que constitui a expropriação daquilo a que ele chama Bens Imobiliários. Contudo, este proprietário irá começar a dizer-nos que o Sião levantino é terra judaica e apontará para um Título com dois mil anos. Chama louco a Hitler por este ter reivindicado a região dos Sudetas como terra alemã porque rejeita inteiramente as leis que a tornariam parte da Alemanha. Os tratados de paz internacionais fazem parte das suas regras, mas não as expropriações violentas. 108

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Apesar disso, saca de repente de uma série de leis que, se realmente as aceitasse, pulverizariam por completo o edifício da Propriedade Imobiliária. Se ele realmente acatasse essas leis, estaria a vender terrenos em Gdansk a cassubianos retornados do exílio, regiões no Michigan, Wisconsin e Minnesota a ojibwas para que estes se reapropriassem da sua terra natal, propriedades no Irão, Iraque e em grande parte da Turquia aos parses indianos retornados a casa, e teria ainda de arrendar partes do próprio Sião aos chineses descendentes dos cristãos nestorianos e a muitos outros ainda. Tais argumentos têm mais afinidade com a risada imbecil do que com a gargalhada cínica. Se a gargalhada cínica fosse traduzida em palavras, diria: Nós (eles dizem sempre Nós) conquistámos os primitivos, expropriando-os e expulsando-os; os expropriados continuam a resistir, mas entretanto Nós obtivemos duas gerações que não têm outra pátria senão o Sião; sendo Realistas, sabemos que podemos acabar com a resistência de uma vez para sempre exterminando os expropriados. Um tal cinismo, sem pingo de integridade moral, poderá ser realista, mas poderá também tornar-se naquilo a que C. W. Mills chamou Realismo Chanfrado, porque a resistência poderá sobreviver e aumentar, e poderá durar tanto como a irlandesa. Há ainda outra resposta, a do arruaceiro de cacete na mão da Liga de Defesa que pensa que o facto de não envergar camisa castanha o torna irreconhecível. Este cerra os punhos ou aperta bem o cacete e grita: Traidor! Esta é a resposta mais ominosa, por declarar que Nós somos um clube a que todos são bem-vindos mas em que a filiação de alguns é obrigatória. Empregada dessa forma, a palavra Traidor não significa anti-semita, visto ser dirigida às pessoas que se identificam com o sofrimento dos actuais semitas. A palavra Traidor não significa pogromista, visto ser dirigida às pessoas que ainda empatizam com as vítimas do Pogrom. Este termo é um dos poucos componentes do vocabulário de um racista ao longo dos tempos; significa: Traidor à Raça. E chego assim ao único elemento que o novo anti-semita ainda não tinha partilhado com o antigo anti-semita: Gleichschaltung, a «sincronização» totalitária de toda a actividade e expressão política. A Raça 109

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toda tem de marchar ao mesmo ritmo, ao som do mesmo rufo de tambor: todos devem obedecer. A singularidade do condenado Eichmann reduz-se a uma diferença no ritual das férias. Parece-me que esses ineptos não preservam as tradições de uma cultura perseguida. São conversos, mas não ao catolicismo de Fernando e Isabel; são conversos à prática política do Führer. O longo exílio terminou; o refugiado perseguido retornou finalmente a Sião, mas tão dilacerado que se tornou irreconhecível, perdeu-se a si próprio por completo; regressa como anti-semita, como pogromista, como assassino de massas; as épocas de exílio e sofrimento estão ainda incluídas na sua maquilhagem, mas apenas como autojustificações e como repertório de horrores a impor aos primitivos e mesmo à própria Terra. *** Penso que acabei de mostrar que a experiência do Holocausto, em si mesma, quer tenha sido vivida ou observada, não faz de um indivíduo um crítico de Pogromes, e que também não confere poderes especiais ou dá a alguém licença para matar ou para se converter num assassino de massas. Mas nem sequer toquei na grande questão que tudo isto levanta: poderei começar a explicar por que é que alguém escolhe ser um assassino de massas? Penso que poderei começar a dar uma resposta. Correndo o risco de plagiar o retrato feito por Sartre do antigo anti-semita, posso, pelo menos, apontar um ou dois dos elementos que se encontram no campo de escolha do novo anti-semita. Poderia começar por denotar que o novo anti-semita não é assim tão diferente de qualquer outro espectador de televisão, e que ver televisão está algo próximo do cerne da escolha (incluo os jornais e os filmes na abreviação «contar-uma-visão»6).

6. No original , tell-a-vision, jogo de palavras que o autor adopta para criticar a unilateralidade dos meios de comunicação de massas. (N. do t.)

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Aquilo que o espectador vê no ecrã são alguns dos feitos «interessantes», peneirados e censurados, do conjunto monstruoso em que ele tem um papel trivial mas diário. A actividade principal mas nem sempre televisionada deste vasto conjunto é o trabalho industrial e administrativo, o trabalho forçado, ou simplesmente o trabalho, o Arbeit que macht frei7. Soljenitsine, nos vários volumes do seu Arquipélago Gulag, expôs uma profunda análise do que esse Arbeit faz à vida interior e exterior de um indivíduo humano; ainda está por fazer uma profunda análise comparativa da administração que «sincroniza» a actividade, as instituições de formação que produzem os Eichmann e os químicos que aplicam meio racionais à perpetração dos fins irracionais dos seus superiores. Não posso resumir as descobertas de Soljenitsine; os seus livros têm de ser lidos. Resumidamente, posso apenas dizer que a parte da vida dispendida no Arbeit, a trivialidade da existência num mercado de produtos enquanto vendedor ou comprador, trabalhador ou cliente, deixa um indivíduo sem laços familiares, comunidade ou sentido: desumaniza-o, esvazia-o; deposita apenas dentro dele as trivialidades que maquilham o seu exterior. E este indivíduo deixa de ter a centralidade, o significado e a autonomia que as antigas comunidades, que já não existem, davam a todos os seus membros. Já nem sequer tem a falsa centralidade dada pelas religiões que preservavam uma memória das antigas qualidades enquanto reconciliavam as pessoas com mundos onde essas qualidades estavam ausentes. Até mesmo as religiões foram esvaziadas, reduzidas a rituais vazios que já há muito tempo perderam o seu sentido. O vazio está sempre presente. É como a fome: dói. E, no entanto, nada parece preenchê-lo. Ah, mas há qualquer coisa que o preenche ou parece preencher. Poderá ser serradura e não queijo ralado, mas dá ao estômago a ilusão de que foi alimentado; poderá ser uma completa renúncia à autonomia, uma auto-aniquilação, mas cria a ilusão da auto-satisfação, da reapropriação da autonomia perdida. Esse qualquer coisa é a Visão Contada que pode ser visualizada nas horas livres, e, preferivelmente, a toda a hora.

7.  «O trabalho liberta»: mote afixado à entrada dos campos de trabalho escravo nazis.

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Escolhendo ser um voyeur, o indivíduo pode ver tudo aquilo que já não é. Todas as capacidades individuais que ele já não possui, possui-as Isso. E Isso possui ainda mais capacidades; possui capacidades que nenhum indivíduo alguma vez teve; possui a capacidade de transformar desertos em florestas e florestas em desertos; possui a capacidade de aniquilar povos e culturas que sobreviveram desde o início dos tempos e de não deixar vestígios da sua existência; possui até a capacidade de ressuscitar povos e culturas desaparecidos e dar-lhes vida eterna no ar condicionado dos museus. Caso o leitor ainda não tenha adivinhado, Isso é o conjunto tecnológico, o processo industrial, o Messias chamado Progresso. É a América. O indivíduo privado de sentido escolhe dar o último salto para a insignificância ao identificar-se com o próprio processo que o despoja. Transforma-se em Nós, os explorados que se identificam com o explorador. Daí em diante, as suas capacidades são as Nossas capacidades, as capacidades do conjunto, as capacidades da aliança dos trabalhadores com os seus próprios patrões conhecida como a Nação Desenvolvida. O indivíduo incapacitado torna-se num comutador essencial do Deus omnipotente, omnisciente, omnipresente, o computador central; unifica-se com a máquina. A sua imersão transforma-se numa orgia durante as cruzadas contra os que ainda se encontram fora da máquina: árvores intocadas, lobos, primitivos. Durante tais cruzadas, ele transforma-se num dos últimos pioneiros; atravessando os séculos, dá as mãos aos conquistadores da parte sul e aos pioneiros da parte norte deste duplo continente; dá as mãos aos odiadores de índios, descobridores e cruzados; sente, por fim, a América a correr-lhe nas veias, a América que já estava a fermentar nos caldeirões dos alquimistas europeus ainda antes de Colombo (o converso) ter tido contacto com os caribenhos, Raleigh com os algonquinos e Cartier com os iroqueses; ele dá o coupe de grace ao que restava da sua humanidade ao identificar-se com o processo exterminador da cultura, da natureza e da humanidade. Se continuasse, chegaria provavelmente a resultados já descobertos por Wilhelm Reich no seu estudo sobre a psicologia de massas do 112

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fascismo. Irrita-me que um novo fascismo opte por usar entre as suas justificações a experiência das vítimas do anterior fascismo. [1982]

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A Contínua Atracção do Nacionalismo O nacionalismo foi declarado morto por diversas vezes durante o presente século XX: – depois da Primeira Guerra Mundial, quando os últimos impérios da Europa, o austríaco e o turco, foram divididos em nações autodeterminadas e nenhum nacionalista ficou privado de nação, à excepção dos sionistas; – depois do golpe de estado bolchevique, quando se dizia que as lutas burguesas pela autodeterminação haviam sido doravante suplantadas pelas dos trabalhadores, que não tinham pátria; – depois da derrota militar da Itália fascista e da Alemanha nacional-socialista, quando o genocídio, corolário do nacionalismo, foi exibido para todos verem, quando se pensou que o nacionalismo como crença e prática tinha caído definitivamente em descrédito. Contudo, quarenta anos depois da derrota militar dos fascistas e dos nacional-socialistas, podemos ver que o nacionalismo não só sobreviveu como renasceu, passou por um revivalismo. O nacionalismo foi ressuscitado não só pela chamada direita, mas também, principalmente, pela chamada esquerda. Depois da guerra nacional-socialista, o nacionalismo deixou de ficar circunscrito aos conservadores, tornando-se crença e prática de revolucionários e comprovando-se como única crença revolucionária que realmente funcionou. Os esquerdistas ou revolucionários nacionalistas insistem em que o seu nacionalismo nada tem em comum com o nacionalismo dos fascis-

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tas e dos nacional-socialistas, que o deles é um nacionalismo dos oprimidos que proporciona uma libertação tanto pessoal como cultural. As reivindicações dos nacionalistas revolucionários têm sido difundidas pelo mundo pelas duas instituições hierárquicas mais antigas que sobreviveram até ao nosso tempo: o Estado chinês e, mais recentemente, a Igreja católica. Actualmente, o nacionalismo tem sido apontado como estratégia, ciência e teologia de libertação, como realização do ditado iluminista de que o conhecimento é poder, como resposta comprovada à pergunta «Que Fazer?». Para desafiar essas reivindicações e vê-las no seu contexto, tenho de perguntar o que é o nacionalismo – não apenas o novo nacionalismo revolucionário, mas também o antigo nacionalismo conservador. Não posso começar por definir o termo, porque nacionalismo não é uma palavra com uma definição estática: é um termo que abarca uma sequência de diferentes experiências históricas. Começo por dar um breve esboço de algumas dessas experiências. Segundo uma falácia comum (e manipulável), o imperialismo é relativamente recente, consistindo na colonização do mundo inteiro como última etapa do capitalismo. Este diagnóstico aponta para um remédio explícito: o nacionalismo é proposto como o antídoto do imperialismo; afirma-se que as guerras de libertação nacional podem acabar com o império capitalista. Este diagnóstico tem um objectivo, mas não descreve qualquer acontecimento ou situação. Aproximamo-nos da verdade quando viramos esta concepção do avesso e dizemos que o imperialismo foi a primeira etapa do capitalismo, que o mundo foi posteriormente colonizado por Estados-nação e que o nacionalismo é a etapa dominante, actual e (esperemos) final do capitalismo. Os factos sobre este caso não foram descobertos ontem; são tão familiares como a falácia que os nega. Tem sido conveniente, por várias boas razões, esquecer que até aos séculos mais recentes os poderes dominantes da Eurásia não eram Estados-nação mas impérios. Um Império Celestial governado pela dinastia Ming, um Império Islâmico governado pela dinastia otomana e um Império Católico governado pela dinastia de Habsburgo competiam entre si pela posse do mundo conhecido. Dos três, os católi116

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cos não foram os primeiros imperialistas, foram os últimos. O Império Celestial dos Ming governou a maior parte da Ásia oriental e já tinha enviado grandes frotas comerciais pelos mares um século antes de os católicos transoceânicos terem invadido o México. Os celebrantes da façanha católica esquecem-se de que entre 1420 e 1430 o burocrata da China imperial Cheng Ho comandou expedições navais de 70 000 homens e navegou não apenas até às vizinhas Malásia, Indonésia e Ceilão, mas até portos tão longínquos como o Golfo Pérsico, o Mar Vermelho e África. Os celebrantes dos conquistadores católicos também depreciam os feitos imperiais dos otomanos, que conquistaram tudo menos as regiões mais ocidentais do antigo Império Romano, dominaram o Norte de África, a Arábia, o Médio Oriente e parte da Europa, controlaram o Mediterrâneo e estiveram às portas de Viena. Os católicos imperiais estabeleceram-se no Ocidente, para além das fronteiras do mundo conhecido, para escaparem a esse cerco. Ainda assim, foram os católicos imperiais que «descobriram a América», e o seu genocídio destrutivo e a pilhagem decorrente da sua «descoberta» mudaram o equilíbrio de forças entre os impérios da Eurásia. Teriam os chineses ou turcos imperiais sido menos letais se tivessem «descoberto a América»? Todos os três impérios encaravam os estrangeiros como sub-humanos e, por isso mesmo, como presas legítimas. Os chineses consideravam os outros como bárbaros; os muçulmanos e católicos consideravam os outros como infiéis. A palavra infiel não é tão brutal como a palavra bárbaro, porque o infiel deixa de ser uma presa legítima e torna-se um verdadeiro ser humano pelo simples acto de se converter à verdadeira fé, ao passo que o bárbaro continua a ser uma presa até ser assimilado pelo civilizador. A palavra infiel, e a moralidade que está por detrás dela, entrou em conflito com a prática dos invasores católicos. A contradição entre a profissão de fé e os actos praticados foi descoberta por um crítico bastante precoce, o frade Bartolomé de Las Casas, tendo este notado que as cerimónias de conversão eram pretextos para separar e exterminar os inconversos e que os próprios conversos não eram tratados como iguais, mas como escravos. As críticas de Las Casas não fizeram mais do que embaraçar a Igreja católica e o imperador. Foram publicadas leis e enviados investigadores, 117

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mas com poucos resultados, porque os dois objectivos das expedições católicas, a conversão e a pilhagem, eram contraditórios. A maioria dos clérigos conformou-se com salvar o ouro e condenar as almas. O imperador católico dependia cada vez mais da riqueza das pilhagens para pagar os gastos da casa real, do exército e das frotas que transportavam as pilhagens. As pilhagens continuavam a ter prioridade em relação às conversões, mas os católicos continuavam a sentir-se embaraçados. A sua ideologia não se adequava em nada à sua prática. Os católicos fizeram muitas das suas conquistas à custa dos astecas e dos incas, que descreveram como impérios com instituições parecidas às do Império dos Habsburgo e com práticas religiosas tão demoníacas como as dos seus inimigos oficiais, o império infiel dos turcos otomanos. Mas os católicos não tiraram grande proveito das guerras de extermínio contra comunidades que não tinham imperadores nem exércitos regulares. Tais façanhas, ainda que perpetradas regularmente, entravam em conflito com a sua ideologia e eram tudo menos heróicas. A contradição entre a profissão de fé dos invasores e os seus actos não foi resolvida pelos católicos imperiais. Foi resolvida pelos prenúncios de uma nova forma social, o Estado-nação. Dois prenúncios surgiram no mesmo ano, 1561, quando um dos aventureiros ultramarinos do imperador proclamou a sua independência do império e vários dos banqueiros e fornecedores do imperador iniciaram uma guerra de independência. O aventureiro ultramarino, Lope de Aguirre, não conseguiu mobilizar apoios e foi executado. Os banqueiros e fornecedores do imperador mobilizaram os habitantes de várias regiões imperiais e conseguiram separar essas regiões do império (regiões que ficaram mais tarde conhecidas como Holanda). Estes dois acontecimentos não eram ainda lutas de libertação nacional. Eram prenúncios do que estava para vir. Eram também lembranças do passado. No antigo Império Romano, a guarda pretoriana tinha como missão proteger o imperador; os guardas começaram a assumir cada vez mais as funções do imperador e acabaram por exercer o poder do imperador. No Império Árabe islâmico, o califa tinha contratado guardas pessoais turcos para protegerem a sua pessoa; os guardas turcos, como os pretorianos tinham anteriormente feito, assumiram cada 118

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vez mais as funções do califa e acabaram por tomar conta do palácio e do governo imperial. Lope de Aguirre e os nobres holandeses não eram a guarda pessoal do monarca Habsburgo, mas o aventureiro colonial andino e as casas comerciais e financeiras holandesas exerciam funções imperiais importantes. Estes rebeldes, como os anteriores guardas romanos e turcos, queriam libertar-se da indignidade espiritual e do jugo material de servidão ao imperador; já detinham os poderes do imperador; para eles, o imperador não passava de um parasita. O aventureiro colonial Aguirre era manifestamente um rebelde inepto; o seu momento ainda não tinha chegado. Os nobres holandeses não eram ineptos e o seu momento já tinha chegado. Não derrubaram o império; racionalizaram-no. As casas comerciais e financeiras holandesas já detinham muita da riqueza do Novo Mundo; tinham-na recebido como pagamento por terem aprovisionado as frotas, os exércitos e a casa real do imperador. Partiam agora para pilhar colónias em seu próprio nome e para seu próprio benefício, sem estarem amarrados a um soberano parasita. E uma vez que não eram católicos, mas protestantes calvinistas, não os embaraçava uma qualquer contradição entre profissões de fé e actos. Não tinham a pretensão de salvar almas. O seu calvinismo dizia-lhes que um Deus inescrutável tinha salvo ou condenado todas as almas no início dos tempos e nenhum sacerdote holandês poderia alterar os desígnios de Deus. Os holandeses não eram cruzados; limitavam-se a pilhagens sem heroísmo, sérias e de tipo comercial, calculadas e regularizadas; as frotas saqueadoras regressavam sempre na data prevista. O facto de as vítimas do saque serem infiéis tornou-se menos importante do que o facto de não serem holandesas. Os eurasiáticos ocidentais, precursores do nacionalismo, inventaram a palavra selvagens. Esta palavra era sinónimo da palavra bárbaros do Império Celestial eurasiático. Ambas designavam seres humanos como presas legítimas. Durante os dois séculos seguintes, as invasões, subjugações e expropriações iniciadas pelos Habsburgo foram imitadas por outras casas reais europeias. 119

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Vistos através das lentes dos historiadores nacionalistas, os primeiros colonizadores, assim como os seus posteriores imitadores, pareciam nações: Espanha, Holanda, Inglaterra, França. Mas de um ponto de vista estratégico situado no passado, os poderes colonizadores são os Habsburgo, os Tudor, os Stuart, os Bourbon, os Orange – ou seja, dinastias idênticas às famílias dinásticas que tinham guerreado por riqueza e poder desde a queda do Império Romano do Ocidente. Os invasores podem ser encarados de ambos os pontos de vista, porque estava a ocorrer uma transição. Essas entidades já não eram simples Estados feudais, mas também não eram ainda verdadeiras nações; já possuíam alguns dos atributos, mas ainda não todos, de um Estado-nação. O mais notável elemento em falta era o exército nacional. Os Tudor e os Bourbon já manipulavam o anglicismo e o francesismo dos seus súbditos, especialmente durante as guerras contra os súbditos de outras monarquias. Mas nem os escoceses nem os irlandeses, nem os córsicos nem os provençais, foram recrutados para lutar e morrer por «amor ao seu país». A guerra era um fardo feudal oneroso, uma corveia; os únicos voluntários eram aventureiros que sonhavam com ouro; os únicos patriotas eram os patriotas do Eldorado. Os princípios do que viria a ser a crença nacionalista não atraíram as dinastias reinantes, que estavam apegadas aos seus próprios princípios já experimentados e testados. Os novos princípios atraíram os principais servidores das dinastias, os seus agiotas, abastecedores de especiarias, fornecedores militares e saqueadores de colónias. Essas pessoas, como Lope de Aguirre e os nobres holandeses, como os anteriores guardas romanos e turcos, exerciam funções-chave, ainda que continuassem a ser serventuários. Muitos, senão mesmo a sua maior parte, ardiam do desejo de se livrarem da indignidade e do jugo, de se livrarem do soberano parasita, para continuarem a explorar compatriotas e a pilhar as colónias em seu próprio nome e para seu benefício. Essas pessoas, mais tarde conhecidas como burguesia ou classe média, ficaram ricas e poderosas desde os tempos em que as primeiras frotas foram enviadas para oeste. Uma parcela da sua riqueza provinha das colónias pilhadas, como pagamento por serviços que vendiam ao imperador; essa soma de riqueza seria mais tarde conhecida como acumulação primitiva de capital. Outra parte da sua riqueza provinha 120

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da pilhagem dos seus próprios compatriotas e vizinhos através de um método mais tarde conhecido como capitalismo; o método não era de todo novo, mas tornou-se bastante difundido depois de as classes médias terem açambarcado a prata e o ouro do Novo Mundo. Essas classes médias exerciam funções importantes, mas ainda não tinham tido a experiência de exercer o poder político central. Em Inglaterra derrubaram um monarca e proclamaram uma república, mas, temendo que as energias populares que mobilizaram contra as classes mais altas se virassem contra elas, logo restauraram outro monarca da mesma casa dinástica. O nacionalismo só se conseguiu afirmar no final do século XVIII, quando duas explosões, com treze anos de intervalo, inverteram a posição relativa das duas classes mais altas e alteraram para sempre a geografia política do globo. Em 1776, mercadores coloniais e aventureiros reconstituíram a façanha de Aguirre proclamando a sua independência da dinastia ultramarina governante, superaram o seu antecessor mobilizando outros colonos e conseguiram separar-se do Império Britânico da dinastia de Hanôver. E em 1789, instruídos mercadores e escribas superaram os seus precursores holandeses mobilizando, não apenas umas poucas províncias isoladas, mas toda a população, derrubando e chacinando o monarca Bourbon no poder e substituindo os vínculos feudais por vínculos nacionais. Estes dois acontecimentos marcaram o fim de uma era. Daí em diante, mesmo as dinastias sobreviventes tornaram-se rápida ou gradualmente nacionalistas e os restantes Estados reais adquiriram cada vez mais atributos de Estados-nação. As duas revoluções do século XVIII foram muito diferentes e contribuíram com elementos diferentes e até conflituosos para a crença e a prática do nacionalismo. Não pretendo analisar esses acontecimentos aqui, mas apenas lembrar ao leitor alguns dos seus elementos. Ambas as rebeliões conseguiram quebrar os vínculos de vassalagem a uma casa monárquica e ambas tiveram como resultado a instituição de Estados-nação capitalistas, mas entre uma e outra havia pouco em comum. Os principais animadores de ambas as revoltas estavam familiarizados com as doutrinas racionalistas do Iluminismo, mas os auto-intitulados americanos limitaram-se aos problemas políticos, em 121

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grande parte ao problema de instituirem uma maquinaria de Estado que pudesse pegar naquilo que o rei Jorge deixara. Muitos dos franceses foram bem mais longe; levantaram o problema de reestruturarem não apenas o Estado, mas toda a sociedade; desafiaram não apenas os vínculos entre o súbdito e o monarca, mas também entre o senhor e o escravo, vínculo esse que continuou a ser sagrado para os americanos. Ambos os grupos estavam, sem sombra de dúvida, familiarizados com a observação de Jean-Jacques Rousseau de que os seres humanos nasciam livres mas estavam em toda a parte agrilhoados; os franceses, porém, compreendiam mais profundamente esses grilhões e fizeram um grande esforço para os quebrar. Tão influenciados pelas doutrinas racionalistas como o próprio Rousseau havia sido, os revolucionários franceses tentaram aplicar a razão social ao ambiente humano da mesma forma que a razão natural, ou ciência, começava a ser aplicada ao ambiente natural. Rousseau trabalhara sentado à sua secretária; tentara instituir a justiça social no papel, confiando os assuntos humanos a uma entidade que encarnasse a vontade geral. Os revolucionários agitaram-se para instituir a justiça social não apenas no papel, mas entre seres humanos mobilizados e armados, muitos deles enraivecidos e na sua maioria pobres. A entidade abstracta de Rousseau tomou a forma concreta de um Comité de Salvação Pública (ou de Saúde Pública), organização policial que se considerava a si mesma como a encarnação da vontade geral. Os virtuosos membros do comité aplicaram conscientemente as descobertas da razão aos assuntos humanos. Consideravam-se os cirurgiões da nação. Esculpiam as suas obsessões pessoais na sociedade recorrendo à lâmina do Estado. A aplicação da ciência ao ambiente adquiriu a forma do terror sistemático. O instrumento da Razão e da Justiça foi a guilhotina. O Terror decapitou os antigos governantes e depois virou-se para os revolucionários. O medo estimulou uma reacção que varreu o Terror assim como a Justiça. A mobilizada energia de patriotas sedentos de sangue foi enviada para fora, para impor pela força o Iluminismo aos estrangeiros, para expandir a nação e transformá-la num império. O abastecimento das forças armadas nacionais era bem mais lucrativo do que o abastecimen122

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to das forças armadas feudais alguma vez fora, e antigos revolucionários tornaram-se membros ricos e poderosos da classe média, que era agora a classe mais alta, a classe governante. O terror e as guerras deixaram um legado fatídico à crença e à prática dos nacionalismos posteriores. O legado da Revolução Americana foi completamente diferente. Os americanos estavam menos preocupados com a justiça e mais preocupados com a propriedade. Os colonos invasores da costa nordeste do continente precisavam tanto de Jorge de Hanôver como Lope de Aguirre precisou de Felipe de Habsburgo. Ou melhor, os ricos e poderosos entre os colonos precisavam dos dispositivos do rei Jorge para protegerem a sua riqueza, mas não para a obterem. Se conseguissem organizar um aparelho repressivo próprio, não precisariam do rei Jorge para nada. Confiantes na sua capacidade de pôr de pé um dispositivo próprio, os colonos esclavagistas, os agiotas de terras, os exportadores de produtos e os banqueiros acharam que os impostos e os decretos do rei eram intoleráveis. O decreto mais intolerável do rei foi ter proibido temporariamente incursões não autorizadas às terras dos habitantes autóctones do continente; os conselheiros do rei tinham em vista as peles de animais fornecidas por caçadores indígenas; os revolucionários agiotas tinham em vista as terras dos caçadores. Ao contrário de Aguirre, os federados colonos do Norte conseguiram estabelecer o seu próprio aparelho repressivo independente e fizeram-no instigando um mínimo de desejo de justiça; o seu objectivo era derrubar o poder do rei, não o deles. Em vez de confiarem excessivamente noutros colonos menos afortunados ou nos ocupantes de regiões remotas, para não falar dos seus escravos, estes revolucionários confiaram em mercenários e na ajuda indispensável do monarca Bourbon, que seria derrubado uns anos mais tarde por revolucionários mais virtuosos. Ao contrário dos franceses, os colonizadores norte-americanos quebraram os vínculos tradicionais de vassalagem e de obrigação feudal, mas apenas para os substituíram gradualmente por vínculos de patriotismo e nacionalidade. Não eram bem uma nação; a sua relutante mobilização das zonas rurais coloniais não os levara a fundirem-se numa nação, e aquela subjacente população, dividida em diversas línguas, culturas e camadas sociais, resistiu a essa fusão. O novo aparelho repressivo 123

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não fora experimentado nem testado e não impunha uma total lealdade à população subjacente, que ainda não era patriótica. Algo mais era necessário. Os esclavagistas que tinham derrubado o rei temiam que os seus escravos pudessem também derrubá-los a eles, seus senhores; a insurreição no Haiti tornou esse receio real. E ainda que tivessem deixado de temer serem empurrados para o mar pelos habitantes indígenas do continente, os comerciantes e especuladores preocupavam-se com a capacidade de se estenderem para o interior do continente. Os colonos invasores americanos recorreram a um instrumento que não era, como a guilhotina, uma nova invenção, mas que era igualmente letal. Este instrumento seria mais tarde chamado Racismo e seria incorporado na prática nacionalista. O racismo, como os ulteriores produtos das práticas americanas, era um princípio pragmático; o mais importante não era o seu conteúdo; o que importava era que funcionasse. Os seres humanos mobilizados em função do seu mais baixo e superficial denominador comum, reagiram. Pessoas que tinham abandonado as suas aldeias e famílias, que esqueciam as suas línguas e perdiam as suas culturas, que se encontravam completamente despojadas da sua sociabilidade, foram manipuladas para considerarem a sua cor de pele como substituto de tudo aquilo que haviam perdido. Tornaram-se orgulhosas de algo que não era uma façanha pessoal nem sequer, como a língua, uma aquisição pessoal. Foram fundidas numa nação de homens brancos. (As mulheres e as crianças brancas existiam apenas como vítimas escalpeladas, como provas da bestialidade da presa caçada.) A extensão desse despojamento é revelada pelas insignificâncias que os homens brancos partilhavam entre si: sangue branco, ideias brancas e pertença a uma raça branca. Devedores, posseiros e servos, enquanto homens brancos, tinham tudo em comum com banqueiros, especuladores e proprietários de plantações, e nada em comum com os peles-vermelhas, os peles-negras ou os peles-amarelas. Amalgamados entre si com base em semelhante princípio, podiam também ser mobilizados por ele, transformando-se numa turba branca, linchadora e «caçadora de índios». O racismo fora inicialmente um entre vários métodos de mobilização de exércitos coloniais e, embora tenha sido explorado na América mais inteiramente do que nunca, não suplantava os outros métodos, completava-os. As vítimas dos pioneiros invasores eram ainda descritas 124

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como infiéis, como pagãs. Mas os pioneiros, a exemplo dos anteriores holandeses, eram predominantemente cristãos protestantes e viam o paganismo como algo que tinha de ser punido, e não remediado. As vítimas também continuavam a ser designadas como selvagens, canibais e primitivas, mas esses termos também deixaram de ser diagnósticos de condições que poderiam ser remediadas e tenderam a tornar-se sinónimos de não-branco, condição que não poderia ser remediada. O racismo era uma ideologia que assentava perfeitamente na prática da escravatura e do extermínio. A atitude das turbas linchadoras e o conluio contra vítimas definidas como inferiores atraíam brigões cuja humanidade estava atrofiada e que não tinham qualquer noção de jogo limpo. Mas essa atitude não atraía toda a gente. Os homens de negócios americanos, meio vigaristas e burlões, tinham sempre algo a oferecer a toda a gente. Para os numerosos São Jorges com alguma noção de honra e uma grande sede de heroísmo, o inimigo era retratado de forma um pouco diferente; para esses, existiam nações tão ricas e poderosas como as suas nas florestas transmontanas e nas margens dos Grandes Lagos. Os celebrantes dos feitos heróicos dos espanhóis imperiais encontraram impérios no centro do México e no topo da cordilheira dos Andes. Os celebrantes dos heróis nacionalistas americanos encontraram nações; transformaram resistências desesperadas de aldeões anárquicos em conspirações internacionais orquestradas por arcontes militares como o general Pontiac e o general Tecumseh; povoaram as florestas com líderes nacionais terríveis, oficiais eficientes e exércitos com inúmeros militares patriotas; projectaram as suas próprias estruturas repressivas naquilo que não conheciam; viram uma cópia exacta de si mesmos com todas as cores invertidas – algo como o negativo de uma fotografia. O inimigo tornava-se, assim, igual em estrutura, poder e objectivos. A guerra contra um inimigo desse tipo não era apenas justa; era de extrema necessidade, uma questão de vida ou morte. Os outros atributos do inimigo – o paganismo, a selvajaria, o canibalismo – tornavam ainda mais urgente a missão de expropriar, escravizar e exterminar, e esses feitos ainda mais heróicos. O repertório do programa nacionalista estava agora mais ou menos completo. Esta afirmação pode confundir o leitor que não consegue 125

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ainda vislumbrar no terreno «verdadeiras nações». Os Estados Unidos eram ainda um conjunto multilingue, multi-religioso e multicultural de «etnias», e a nação francesa tinha transbordado as suas fronteiras e convertera-se num Império Napoleónico. O leitor poderá estar a tentar aplicar uma definição de nação como um território organizado composto por pessoas que partilham uma língua, religião e costumes comuns, ou, pelo menos, uma destas três coisas. Mas tal definição, clara, pronta e estática, não é uma descrição do fenómeno, é a sua apologia, uma justificação. O fenómeno não era uma definição estática, era um processo dinâmico. A língua, religião e costumes comuns, como o sangue branco dos colonizadores americanos, eram simples pretextos, instrumentos para mobilizar exércitos. A culminação do processo não foi a consagração das semelhanças, foi um despojamento, a perda total de línguas, religiões e costumes; os habitantes da nova nação falavam a língua do capital, pregavam no altar do Estado e limitavam os seus costumes aos que eram permitidos pela polícia nacional. O nacionalismo é o oposto do imperialismo somente no âmbito das definições. Na prática, o nacionalismo foi uma metodologia para dirigir o império do capital. O contínuo crescimento do capital, frequentemente referido como progresso material, desenvolvimento económico ou industrialização, era a principal actividade das classes médias, da chamada burguesia, porque o que eles detinham era capital, era a sua propriedade; as classes mais altas possuíam terras. A descoberta de novos mundos de abundância enriqueceu imensamente essas classes médias, mas também as tornou vulneráveis. Os reis e os nobres, que inicialmente acumularam a riqueza pilhada no Novo Mundo, ressentiram-se da perda de quase todos os despojos para os seus mercadores da classe média. Era inevitável. A riqueza não surgia pronta a ser utilizada; os mercadores forneciam o rei com coisas que ele podia utilizar em troca dos tesouros pilhados. Ainda assim, os monarcas que se viam mais pobres à medida que os seus mercadores se tornavam mais ricos, não hesitavam em utilizar os seus servos armados para pilharem os mercadores ricos. Consequentemente, as classes médias sofreram danos constantes sob o Antigo Regime – danos à sua 126

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propriedade. O exército do rei e a polícia não eram protectores de confiança da propriedade da classe média, e os poderosos mercadores, que já exploravam o negócio do império, tomaram medidas para acabar com essa instabilidade; e tomaram também conta da política. Poderiam ter contratado exércitos privados, e fizeram-no várias vezes. Mas logo que surgiram no horizonte instrumentos para mobilizar exércitos nacionais e forças de polícia nacional, os prejudicados homens de negócios fizeram uso deles. A principal virtude das forças armadas nacionais é garantir que o servo patriota lute ao lado do seu senhor contra o servo de um senhor inimigo. A estabilidade assegurada por um aparelho repressivo nacional deu aos proprietários algo como uma estufa onde o seu capital podia crescer, aumentar, multiplicar-se. O termo «crescimento», e os seus corolários, provêm do próprio vocabulário dos capitalistas. Estas pessoas pensam numa unidade de capital como se se tratasse de um grão ou semente que investem em solo fértil. Na Primavera vêem uma planta crescer de cada semente. No Verão colhem de cada planta tantas sementes que, depois de pagarem pelo solo, pela luz do sol e pela chuva, ficam ainda com mais sementes do que tinham anteriormente. No ano seguinte alargam o seu terreno e todo o campo é gradualmente melhorado. Na realidade, os «grãos» iniciais são dinheiro; a luz do sol e a chuva são as energias dispendidas pelos trabalhadores; as plantas são fábricas, oficinas e minas, a colheita é mercadoria, pedaços de mundo transformados; e o excedente ou grãos adicionais, os lucros, são emolumentos que o capitalista arrecada para si em vez de os dividir pelos trabalhadores. O processo como um todo consiste na transformação de substâncias naturais em artigos ou mercadorias comercializáveis e na reclusão de trabalhadores assalariados em fábricas de processamento. O casamento do Capital com a Ciência foi responsável pelo grande salto em frente para o que vivemos hoje em dia. Cientistas investigadores descobriram os componentes em que o ambiente natural podia ser decomposto; investidores apostaram nos vários métodos de decomposição; cientistas de ciência aplicada ou gestores fizeram com que os trabalhadores assalariados a seu cargo levassem o projecto avante. Cientistas sociais procuraram formas de tornar os trabalhadores menos humanos, mais eficientes, mais parecidos com máquinas. Graças 127

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à ciência, os capitalistas foram capazes de transformar grande parte do ambiente natural num mundo processado, num artifício, e de reduzir a maioria dos seres humanos a zeladores desse artifício. O processo de produção capitalista foi analisado e criticado por muitos filósofos e poetas, mais notavelmente por Karl Marx1, que, com as suas críticas, estimulou, e continua a estimular, os movimentos sociais militantes. Mas Marx tinha um ponto cego importante; foi sobre esse ponto cego que a maioria dos seus discípulos e muitos militantes que não eram seus discípulos construíram as suas plataformas. Marx era um apoiante entusiasta da luta burguesa pela libertação dos vínculos feudais – naquele tempo, quem não o era? Ele que observou que as ideias predominantes de uma época eram as ideias da classe governante, partilhava muitas das ideias da recém-fortalecida classe média. Era um entusiasta do Iluminismo, do racionalismo, do progresso material. Foi Marx que perspicazmente mostrou que o trabalhador, de cada vez que reproduzia a sua força de trabalho, em cada instante que dedicava à tarefa que lhe era atribuída, aumentava o aparelho material e social que o desumanizava. O mesmo Marx, todavia, era um entusiasta da aplicação da ciência à produção. Marx fez uma análise aprofundada do processo de produção como exploração do trabalho, mas fez apenas comentários superficiais e relutantes sobre a condição prévia para a produção capitalista, sobre o capital inicial que tornou o processo possível2. Sem o capital inicial, não poderiam ter existido investimentos, produção, nenhum grande salto em frente. Essa condição prévia foi analisada pelo antigo marxista soviético de nacionalidade russa Preobrajenski, que utilizou várias ideias da marxista polaca Rosa Luxemburg para formular a sua teoria sobre a acumulação primitiva3. Ao empregar essa expressão, acumu-

1.  O subtítulo do primeiro volume d’O Capital é A Critique of Political Economy: The Process of Capitalist Production (editado por Charles H. Kerr & Co., 1906; reeditado por Random House, Nova Iorque). Edição portuguesa: O Capital – Crítica da Economia Política, Edições Avante, Lisboa, 1991 e sqq. 2.  Ibidem, pp. 784-850, VIII capítulo, «The So-Called Primitive Accumulation». 3. I. Preobrajenski, The New Economics (Moscovo, 1926; a tradução inglesa foi

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lação primitiva, Preobrajenski referia-se à base do edifício capitalista, à sua fundação, à sua condição prévia. Essa condição prévia não pode surgir do próprio processo de produção capitalista se esse processo não estiver já em curso. É necessário, e assim acontece, que provenha de fora do processo de produção. Provém das colónias pilhadas. Provém da expropriação e do extermínio das populações das colónias. Anteriormente, quando não existiam colónias ultramarinas, o primeiro capital, a condição prévia para a produção capitalista, fora extorquido nas colónias internas, aos camponeses saqueados que viram as suas terras delimitadas e as suas colheitas requisitadas, aos judeus e muçulmanos expulsos cujos bens foram expropriados. A acumulação primitiva ou preliminar de capital não é algo que tenha acontecido uma vez, num passado distante, e nunca depois. É algo que continua a acompanhar o processo de produção capitalista e é sua parte integrante. O processo descrito por Marx é responsável pelos lucros regulares e esperados; o processo descrito por Preobrajenski é responsável pelos impulsos, pelas fortunas e pelos grandes saltos em frente. Os lucros regulares são destruídos periodicamente por crises endémicas ao sistema; e a única cura conhecida para as crises são novas injecções de capital preliminar. Sem uma contínua acumulação primitiva de capital, o processo de produção pararia; cada crise tenderia a tornar-se permanente. O genocídio, a exterminação racionalmente calculada de populações humanas designadas como presas legítimas, não foi uma aberração surgida numa pretensamente pacífica marcha do progresso. O genocídio tem sido uma condição prévia desse progresso. É por isso que as forças armadas nacionais foram indispensáveis aos detentores do capital. Essas forças não só protegeram os proprietários do capital da ira insurrecional dos seus próprios trabalhadores explorados, como também capturaram o santo graal, a lanterna mágica, o capital preliminar, ao derrubarem os portões de estrangeiros resistentes ou não resistentes, ao pilharem, deportarem e assassinarem.

publicada pela Clarendon Press, Oxford, 1965), livro que anunciou a fatídica «lei de acumulação primitiva socialista».

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As pegadas dos exércitos nacionais são os traços da marcha do progresso. Esses exércitos patrióticos foram, e ainda são, a sétima maravilha do mundo. Neles, o lobo encontra-se ao lado do cordeiro e a aranha ao lado da mosca. Neles, trabalhadores explorados foram comparsas dos exploradores, camponeses endividados foram comparsas dos seus credores, burlados foram companheiros de burlões, numa camaradagem estimulada, não pelo amor mas pelo ódio – ódio a potenciais fontes de capital preliminar designadas como infiéis, selvagens, raças inferiores. Comunidades humanas, tão variegadas nos seus modos e crenças como os pássaros na sua plumagem, foram invadidas, espoliadas e, por fim, exterminadas de formas inimagináveis. As roupas e os artefactos das comunidades desaparecidas foram reunidos como troféus e exibidos em museus como traços adicionais da marcha do progresso; as crenças e os modos extintos tornaram-se curiosidades de mais uma das muitas ciências dos invasores. Os campos, florestas e animais expropriados foram acumulados como fontes de riqueza, como capital preliminar, como condição prévia para o processo de produção que iria converter os campos em explorações agrícolas, as árvores em madeira, os animais em chapéus, os minerais em munições, os sobreviventes humanos em mão-de-obra barata. O genocídio foi, e ainda é, a condição prévia, a pedra angular e o trabalho de base dos complexos militares industriais, dos ambientes processados, do mundo dos escritórios e dos parques de estacionamento. O nacionalismo estava tão perfeitamente adaptado à sua dupla tarefa, a domesticação dos trabalhadores e a espoliação dos estrangeiros, que atraía toda a gente – toda a gente, ou seja, quem detinha ou aspirava a deter uma porção de capital. Ao longo do século XIX, especialmente durante a sua segunda metade, qualquer detentor de capital investível descobriu que tinha raízes entre os seus conterrâneos mobilizáveis que falavam a sua língua materna e adoravam os seus deuses pátrios. O fervor desse tipo de nacionalista era cinicamente transparente, visto ele ser o compatriota que já não tinha raízes entre os parentes do seu pai e da sua mãe: encontrou a salvação nas suas poupanças, rezou aos seus investimentos e falou a língua da contabilidade de custos. Mas tinha aprendido com americanos 130

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e franceses que, embora não pudesse mobilizar os seus conterrâneos como empregados, clientes e consumidores leais, podia mobilizá-los como italianos, gregos e alemães leais, como católicos, ortodoxos e protestantes leais. Línguas, religiões e costumes tornaram-se materiais de consolidação para a construção de Estados-nação. Os materiais de consolidação eram meios, não eram fins. O objectivo das entidades nacionais não consistia em desenvolver línguas, religiões ou costumes, mas sim em desenvolver economias nacionais, transformar os conterrâneos em trabalhadores e soldados, transformar o país natal em minas e fábricas, transformar as propriedades dinásticas em empresas capitalistas. Sem o capital, não podia haver munições ou suprimentos, exército nacional ou nação. Poupanças e investimentos, estudos de mercado e contabilidade de custos, as obsessões das antigas classes médias racionalistas, tornaram-se as obsessões reinantes. Estas obsessões racionalistas tornaram-se não apenas soberanas, mas também exclusivas. Indivíduos que tivessem outras obsessões, que fossem irracionais, eram postos em manicómios e asilos. As nações eram em geral monoteístas, mas já não necessitavam de o ser; os antigos deus ou deuses tinham perdido a sua importância, excepto como materiais de consolidação. Como as nações eram mono-obsessivas, se o monoteísmo servia a obsessão reinante, também era mobilizado. A Primeira Guerra Mundial marcou o fim de uma fase do processo de nacionalização, a fase que começara com as revoluções americana e francesa, a fase que fora anunciada muito antes com a declaração de Aguirre e a revolta dos nobres holandeses. Na realidade, a causa dessa guerra foram as reivindicações em conflito das antigas nações e das recém-constituídas. A Alemanha, a Itália e o Japão, assim como a Grécia, a Sérvia e a colonial América Latina, tinham-se já apropriado da maior parte dos atributos dos seus antecessores nacionalistas, tinham-se tornado impérios, monarquias e repúblicas nacionais, e os mais poderosos dos recém-chegados ambicionavam apropriar-se do principal atributo que faltava, o império colonial. Durante essa guerra, todos os componentes mobilizáveis dos dois impérios dinásticos remanescentes, o Otomano e o de Habsburgo, constituíram-se em nações. Quando burguesias com línguas e religiões diferentes, como as turcas e as arménias, 131

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reivindicaram o mesmo território, as mais fracas foram tratadas como os denominados índios americanos; foram exterminadas. A Soberania Nacional e o Genocídio eram – e ainda são – corolários. A língua e a religião comum parecem ser corolários da nacionalidade, mas apenas devido a uma ilusão de óptica. Como materiais de consolidação, as línguas e as religiões foram utilizadas quando serviam esse propósito e descartadas quando não serviam. Nem a multilingue Suíça nem a multi-religiosa Jugoslávia foram banidas da família das nações. A forma dos narizes e a cor do cabelo poderiam também ter sido utilizadas para mobilizar patriotas – e foram-no mais tarde. Os patrimónios, raízes e semelhanças partilhados tinham de satisfazer um único critério, o critério da razão pragmática de estilo americano: funcionavam? Se funcionassem, seriam utilizados. Os traços comuns eram importantes, não por causa do seu teor cultural, histórico ou filosófico, mas por serem úteis para organizar uma polícia que protegesse a propriedade nacional e para mobilizar um exército saqueador das colónias. Assim que uma nação era constituída, os seres humanos que viviam no território nacional, mas que não possuíam os traços nacionais, podiam ser transformados em colónias internas, ou seja, em fontes de capital preliminar. Sem capital preliminar, nenhuma nação se poderia transformar numa grande nação e as nações que aspirassem à grandeza, mas que carecessem de colónias ultramarinas adequadas, poderiam recorrer à pilhagem, extermínio e expropriação dos seus compatriotas que não possuíssem as características nacionais. A constituição de Estados-nação foi acolhida com eufórico entusiasmo pelos poetas assim como pelos camponeses, que pensavam que as suas musas ou os seus deuses tinham, por fim, descido à terra. Os principais desmancha-prazeres entre as bandeiras ondulantes e os confetes esvoaçantes eram os antigos governantes, os colonizados e os discípulos de Karl Marx. Os depostos e os colonizados não estavam entusiasmados por razões óbvias. Os discípulos de Marx não estavam entusiasmados porque tinham aprendido com o seu mestre que a libertação nacional significava exploração nacional, que o governo nacional era o comité executivo da classe 132

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capitalista nacional, que a nação não tinha mais a oferecer aos trabalhadores do que grilhões. Estes estrategas dos trabalhadores, que não eram eles próprios trabalhadores, mas tão burgueses como os governantes capitalistas, proclamaram que os trabalhadores não tinham pátria e organizaram-se numa Internacional. Esta Internacional dividiu-se em três e cada Internacional aproximou-se cada vez mais do ponto cego de Marx. A I Internacional foi levada a cabo por alguém que tinha sido tradutor de Marx para o russo e que era, então, seu antagonista, Bakunine, inveterado rebelde que fora um fervoroso nacionalista até conhecer, com Marx, o que era a exploração. Bakunine e os seus companheiros, rebeldes a todas as autoridades, também se rebelaram contra a autoridade de Marx; suspeitaram que Marx estava a tentar transformar a Internacional num Estado tão repressivo como os Estados feudais e nacionais em conjunto. Bakunine e os seus seguidores eram inequívocos na sua rejeição de todos os Estados, mas eram ambíguos a respeito da empresa capitalista. Ainda mais do que Marx, glorificavam a ciência, celebravam o progresso material e saudavam a industrialização. Sendo rebeldes, consideravam qualquer luta uma boa luta, mas a melhor de todas era a luta contra os antigos inimigos da burguesia, a luta contra os latifundiários feudais e a Igreja católica. Daí que a Internacional bakuninista tenha florescido em países como a Espanha, onde a burguesia não tinha completado a sua luta pela independência mas, ao invés, se aliara aos barões feudais e à Igreja para se proteger dos operários e dos camponeses insurgentes. Os bakuninistas lutaram para completar a revolução burguesa sem a burguesia e contra esta. Denominavam-se anarquistas e desdenhavam de todos os Estados, mas não se deram ao trabalho de explicar como iriam obter a indústria preliminar ou subsequente, o progresso e a ciência, ou seja, o capital, sem exército nem polícia. Nunca lhes foi dada uma verdadeira oportunidade de resolver a sua contradição na prática, e os bakuninistas de agora ainda não a resolveram, nem se deram ainda conta de que existe uma contradição entre anarquia e indústria. A II Internacional, menos rebelde do que a primeira, rapidamente chegou a um acordo com o capital e também com o Estado. Solidamente enraizados no ponto cego de Marx, os preconizadores desta organização não ficaram enredados em qualquer contradição bakuninista. 133

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Era para eles óbvio que a exploração e a pilhagem eram condições necessárias para o progresso material e reconciliaram-se realisticamente com aquilo que era inevitável. Reivindicavam apenas uma maior parte dos lucros para os trabalhadores e cargos na administração política para eles próprios, como representantes dos trabalhadores. Como os bons sindicalistas que os precederam e como os que se lhes seguiram, os adeptos socialistas sentiam-se embaraçados com «a questão colonial», mas o seu embaraço, como o de Felipe de Habsburgo, dava-lhes apenas má consciência. A seu tempo, os socialistas imperiais alemães, os socialistas monárquicos holandeses e os socialistas republicanos franceses deixaram até de ser internacionalistas. A III Internacional não só chegou a acordo com o capital e o Estado como os tornou seu objectivo. Esta Internacional não era formada por intelectuais rebeldes ou dissidentes, foi criada por um Estado, o Estado russo, depois de o Partido Bolchevique se ter instalado nas funções desse Estado. A principal actividade desta Internacional era dar a conhecer os feitos do renovado Estado russo, do seu partido governante e do seu fundador, o homem que adoptara o nome de Lénine. Os feitos desse partido e do seu fundador foram de facto grandiosos, mas quem os dava a conhecer fez o seu melhor para ocultar o que de mais grandioso havia neles. A Primeira Guerra Mundial deixou dois vastos impérios num dilema. O Império Celestial da China, o Estado mais antigo do mundo, e o Império dos Czares, uma operação muito mais recente, oscilaram tremulamente entre a perspectiva de se tornarem Estados-nação e a sua decomposição em pequenas unidades, como tinham feito os seus homólogos Otomano e de Habsburgo. Lénine resolveu esse dilema na Rússia. Mas é possível tal coisa? Marx observara que um único indivíduo não poderia mudar as circunstâncias; poderia apenas tirar proveito delas. Tinha provavelmente razão. A notável façanha de Lénine não foi ter mudado as circunstâncias, mas ter tirado proveito delas de forma extraordinária. A façanha foi monumental no seu oportunismo.

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Lénine era um burguês russo que imprecou contra a fraqueza e a incompetência da burguesia russa4. Entusiasta do desenvolvimento capitalista, fervoroso admirador do progresso de estilo americano, não fez causa comum com aqueles contra os quais imprecava mas sim com os seus inimigos, os discípulos anticapitalistas de Marx. Tirou proveito do ponto cego de Marx para transformar a crítica de Marx do processo de produção capitalista num manual para desenvolver o capital, num guia de «como fazer». Os estudos de Marx sobre a exploração e a pauperização tornaram-se alimento para os esfomeados, uma cornucópia, um virtual corno de abundância. Os homens de negócio americanos já tinham publicitado a urina como água de nascente, mas nenhum vigarista americano tinha alguma vez conseguido uma inversão de tal magnitude. As circunstâncias não foram alteradas. Cada passo da inversão foi levado a cabo com as circunstâncias disponíveis, com métodos experimentados e testados. Os compatriotas russos não podiam ser mobilizados com base na sua russianidade, ortodoxia ou cor de pele, mas podiam ser, e foram, mobilizados com base na sua exploração, opressão e séculos de sofrimento sob o despotismo dos czares. A opressão e a exploração tornaram-se materiais de consolidação. O longo sofrimento sob os czares foi utilizado da mesma forma e com o mesmo objectivo que o escalpe de mulheres e crianças brancas fora utilizado pelos americanos; foi utilizado para organizar as pessoas em unidades de combate, em embriões do exército e da polícia nacional. A apresentação do ditador e do comité central do Partido como uma ditadura do proletariado libertado parecia ser algo novo, mas mesmo isso só era novo nas palavras utilizadas. Era algo tão antigo como os Faraós e os Lugales dos antigos Egipto e Mesopotâmia, que haviam

4. Ver V. I. Lenin, The Development of Capitalism in Russia (Moscovo: Progress Publishers, 1964; 1ª ed. 1899). Cito da página 599: «Se [...] comparamos a presente rapidez do desenvolvimento com aquilo que poderia ser alcançado com o nível geral da técnica e da cultura existente hoje em dia, o presente ritmo de desenvolvimento do capitalismo na Rússia deve ser verdadeiramente considerado como lento. E não pode deixar de o ser, já que em nenhum país capitalista existiu alguma vez uma tão abundante sobrevivência de antigas instituições que são incompatíveis com o capitalismo, que atrasam o seu desenvolvimento e que pioram incomensuravelmente a condição dos produtores...»

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sido escolhidos pelo deus para dirigir o povo, que tinham encarnado o povo nos seus próprios diálogos com o deus. Era um artifício experimentado e testado pelos governantes. Mesmo que os antigos precedentes tivessem sido temporariamente esquecidos, um precedente mais recente fora fornecido pelo Comité Francês de Salvação Pública, que se apresentara como a encarnação da vontade geral da nação. O objectivo, o comunismo, o derrube e a supressão do capitalismo, também parecia ser algo novo, parecia ser uma mudança de circunstâncias. Mas só a palavra era nova. O objectivo do ditador do proletariado continuava a ser o progresso de estilo americano, o desenvolvimento capitalista, a electrificação, o transporte rápido de massas, a ciência, a transformação do ambiente natural. O objectivo era o capitalismo que a fraca e incompetente burguesia russa não tinha conseguido desenvolver. Com O Capital de Marx como sua luz e guia, o ditador e o seu Partido iriam desenvolver o capitalismo na Rússia; serviriam como substitutos da burguesia e usariam o poder do Estado não apenas para policiar o processo, mas também para o lançar e gerir. Lénine não viveu o tempo suficiente para poder demonstrar o seu virtuosismo como director-geral do capital russo, mas o seu sucessor, Stáline, demonstrou amplamente os poderes da máquina que tinha sido criada. O primeiro passo foi a acumulação primitiva de capital. Se Marx não tinha sido muito claro em relação a isso, fora-o Ievguéni Preobrajenski. Preobrajenski foi preso, mas a sua descrição dos métodos experimentados e testados para a obtenção de capital preliminar foi aplicada em toda a Rússia. O capital preliminar dos ingleses, americanos, belgas e de outros capitalistas era proveniente das pilhagens nas colónias ultramarinas. A Rússia não tinha colónias ultramarinas. Mas essa carência não era obstáculo. Toda a zona rural russa foi transformada numa colónia. As primeiras fontes de capital preliminar foram os kulaks, camponeses que tinham algo que valia a pena ser pilhado. Essa acção teve tanto sucesso que foi também aplicada aos restantes camponeses, com a expectativa racional de que pequenas quantidades pilhadas a muita gente poderiam render uma soma substancial. Os camponeses não foram os únicos colonizados. A antiga classe governante tinha já sido completamente expropriada de todas as suas 136

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riquezas e propriedades, mas ainda foram encontradas outras fontes de capital preliminar. Com a totalidade do poder de Estado concentrado nas suas mãos, os ditadores depressa descobriram que podiam fabricar fontes de acumulação primitiva. Empresários de sucesso, operários e camponeses insatisfeitos, militantes de organizações rivais e até mesmo desiludidos membros do Partido podiam ser designados como contra-revolucionários, capturados, expropriados e enviados para campos de trabalho. As deportações, execuções em massa e expropriações dos anteriores colonizadores foram revividas na Rússia. Os anteriores colonizadores, por serem pioneiros, tinham passado por experiências e erros. Os ditadores russos não tiveram que passar por isso. Nessa altura, já tinham sido experimentados e testados todos os métodos para a obtenção de capital preliminar, que podiam agora ser aplicados cientificamente. O capital russo desenvolveu-se num ambiente completamente controlado, numa estufa; cada estratégia, cada variável, era controlada pela polícia nacional. As funções que tinham sido deixadas à sorte ou a outros organismos em ambientes menos controlados acabaram por ser controladas pela polícia na estufa russa. O facto de os colonizados não se encontrarem fora mas dentro do território e de não estarem, por isso, sujeitos a conquista mas a captura, aumentou ainda mais o papel e a dimensão da polícia. A seu tempo, a omnipotente e omnipresente polícia tornou-se a emanação e encarnação visível do proletariado, e o comunismo tornou-se um sinónimo de organização policial e de controlo totalitário. As expectativas de Lénine não foram, contudo, completamente concretizadas pela estufa russa. A polícia enquanto capitalista fez maravilhas para obter capital preliminar de contra-revolucionários expropriados, mas não se saiu tão bem na gestão do processo de produção capitalista. Pode ser ainda demasiado cedo para o afirmarmos, mas até à data esta polícia burocrata tem sido neste papel tão incompetente como a burguesia contra a qual Lénine imprecou, ou ainda mais; a sua capacidade de descobrir ainda mais fontes de capital preliminar parece ser tudo o que a manteve à tona de água. A atracção por este tipo de aparelho também não esteve à altura das expectativas de Lénine. O aparelho policial leninista não atraiu homens 137

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de negócios ou políticos oficiais; não se mostrou recomendável como método superior de gestão do processo de produção. Atraiu uma classe social algo diferente, que tentarei descrever resumidamente, e mostrou-se recomendável a esta classe, em primeiro lugar como método para tomar o poder nacional e, acessoriamente, como método de acumulação primitiva de capital. Os herdeiros de Lénine e Stáline não foram propriamente guardas pretorianos, detentores de poder económico e político em nome e em proveito de um monarca supérfluo; foram pretorianos substitutos, estudantes do poder económico e político sem esperanças de nem sequer poderem alcançar níveis intermédios de poder. O modelo leninista ofereceu a essa gente a perspectiva de saltarem por cima dos níveis intermédios directamente para o palácio central. Os herdeiros de Lénine eram funcionários e pequenos oficiais, pessoas como Mussolini, Mao Tsé-Tung e Hitler, pessoas que, como o próprio Lénine, imprecaram contra as suas burguesias fracas e incompetentes por não terem sido capazes de instaurar a grandeza das suas nações. (Não incluo os sionistas entre os herdeiros de Lénine porque pertencem a uma geração anterior. Foram contemporâneos de Lénine que descobriram, talvez independentemente, o poder da perseguição e do sofrimento como materiais de consolidação para a mobilização de um exército e de uma polícia nacional. Os sionistas deram outras contribuições próprias. O seu tratamento como nação de uma população religiosa dispersa, a sua imposição de um Estado-nação capitalista como principal objectivo e a sua redução de uma herança religiosa a uma herança racial, contribuíram com elementos significativos para a metodologia nacionalista, e estes elementos viriam a ter consequências fatídicas quando foram aplicados a uma população judaica, nem toda ela sionista, por uma população consolidada como «raça alemã».) Mussolini, Mao Tsé-Tung e Hitler passaram por cima da cortina de slôganes e viram os feitos de Lénine e Stáline como eles eram de facto: métodos eficazes para obter e manter o poder de Estado. Os três reduziram a metodologia à sua essência. O primeiro passo seria reunir estudantes do poder com uma opinião idêntica e formar o núcleo da organização policial, uma vestimenta chamada, no seguimento de Lénine, o Partido. O passo seguinte seria recrutar uma base popular, tro138

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pas disponíveis e fornecedores de tropas. O terceiro passo seria tomar posse do aparelho de Estado, instalar um teórico na função de Duce, Presidente ou Führer, distribuir as funções policiais e de gestão pela elite ou pelos funcionários e pôr a base popular a trabalhar. O quarto passo seria assegurar o capital preliminar necessário para restaurar ou lançar um complexo militar-industrial capaz de sustentar o líder nacional e os seus funcionários, a polícia, o exército e os gestores industriais; sem este capital, não poderia haver armas, poder ou nação. Os herdeiros de Lénine e Stáline aprimoraram a metodologia nas suas acções de recrutamento minimizando a exploração capitalista e concentrando-se na opressão nacional. Falar de exploração já não cumpria o objectivo e na verdade tinha-se tornado constrangedor, já que era óbvio para todos, especialmente para os trabalhadores assalariados, que os triunfantes revolucionários não tinham posto fim ao trabalho assalariado mas aumentado o campo de acção. Tão pragmáticos como homens de negócios americanos, os novos revolucionários não falaram de libertação do trabalho assalariado, mas de libertação nacional5. Este tipo de libertação não era um sonho de utópicos românticos, era precisamente o que era possível no mundo existente; para isso se realizar, era apenas necessário tirar proveito das circunstâncias já existentes. A libertação nacional consistia em libertar das cadeias da impotência o presidente nacional e a polícia nacional; a tomada de posse do presidente e o estabelecimento da polícia não eram quimeras, eram componentes de uma estratégia experimentada e testada, de uma ciência. Os partidos Fascista e Nacional-Socialista foram os primeiros a provar que a estratégia funcionava, que a façanha do Partido Bolchevique podia de facto ser repetida. Os presidentes nacionais e o seu pessoal instalaram-se no poder e começaram a obter o capital preliminar ne-

5.  Ou de libertação do Estado: «O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação»; «É o Estado que cria a nação, conferindo vontade e, nesse sentido, uma verdadeira vida a um povo que toma consciência da sua unidade moral»; «A máxima liberdade coincide sempre com a força máxima do Estado»; «Tudo pelo Estado; nada contra o Estado; nada fora do Estado». De Che cosa è il fascismo e La dottrina del fascismo, citado por G. H. Sabine, A History of Political Theory (Nova Iorque, 1955), pp. 872-878.

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cessário para a grandeza nacional. Os fascistas introduziram-se numa das últimas regiões invioladas de África e usurparam-na como os primeiros industrializadores tinham usurpado os seus impérios coloniais. Os nacional-socialistas fizeram dos judeus o seu alvo, uma população interna que fazia parte de uma «Alemanha unificada» desde há tanto tempo quanto os outros alemães, transformando-os em fonte primária de acumulação primitiva, porque muitos dos judeus, como muitos dos kulaks de Stáline, tinham bens que valia a pena pilhar. Os sionistas já tinham precedido os nacional-socialistas ao reduzirem uma religião a uma raça, e os nacional-socialistas poderiam olhar para o passado dos pioneiros americanos para procurar formas de instrumentalizar o racismo. A elite de Hitler só precisava de traduzir o acervo da pesquisa racista americana para equipar os seus institutos científicos com amplas bibliotecas. Os nacional-socialistas lidaram com os judeus quase da mesma forma que os americanos tinham anteriormente lidado com a população indígena da América do Norte, salvo que os nacional-socialistas utilizaram uma tecnologia mais recente e muito mais poderosa para deportar, expropriar e exterminar seres humanos. Nisto, porém, os mais recentes exterminadores não eram inovadores: limitaram-se a aproveitar as circunstâncias ao seu alcance. Aos fascistas e nacional-socialistas juntaram-se os construtores do Império Japonês que temiam que a decomposição do Império Celestial se tornasse uma fonte de capital preliminar para a Rússia ou para os industrializadores revolucionários chineses. Formando um Eixo, os três blocos começaram a transformar os continentes em fontes de acumulação primitiva de capital. Não foram incomodados por outras nações até terem começado a invadir colónias e territórios de poderes capitalistas estabelecidos. A redução a presas colonizadas de capitalistas já estabelecidos poderia ser praticada internamente, onde era sempre legal, porque eram os governantes das nações que estabeleciam as suas leis – e já tinha sido praticada internamente por leninistas e estalinistas. Mas tal prática significaria uma mudança nas circunstâncias e não pôde ser levada a cabo no estrangeiro sem provocar uma guerra mundial. Os poderes do Eixo foram longe demais e perderam. Depois da guerra, muita gente razoável diria que os objectivos do Eixo eram irracionais e que Hitler era um lunático. Contudo, essa 140

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mesma gente razoável considerava homens como George Washington e Thomas Jefferson sensatos e racionais, apesar de esses homens terem concebido e iniciado a conquista de um vasto continente e a deportação e extermínio da sua população, numa altura em que um projecto dessa envergadura era muito menos viável do que o projecto do Eixo6. É verdade que as tecnologias, assim como as ciências física, química, biológica e sociais, utilizadas por Washington e Jefferson, eram bem diferentes das utilizadas pelos nacional-socialistas. Mas se saber é poder, se era racional para os anteriores pioneiros mutilar e matar com pólvora no tempo das carruagens de tracção a cavalo, por que seria irracional para os nacional-socialistas mutilar e matar com explosivos de alta potência, gás e agentes químicos no tempo dos mísseis, submarinos e autoestradas? Os nazis, no entanto, estavam ainda mais orientados para a ciência do que os americanos. No seu tempo, eram sinónimo de eficiência científica para grande parte do mundo. Tinham ficheiros a respeito de tudo, classificavam e reclassificavam as suas descobertas e publicavam-nas em revistas científicas. Entre eles, o próprio racismo não era propriedade de agitadores de fronteira, mas de institutos bem dotados. Muita gente razoável parece equiparar a loucura ao fracasso. Não seria a primeira vez. Muitos chamaram lunático a Napoleão quando ficou preso ou no exílio, mas quando reemergiu como imperador, essas mesmas pessoas falaram dele com respeito, e até com reverência. A prisão e o exílio não são apenas encarados como remédios para a loucura, são-no também como seus sintomas. O fracasso é insensatez.

6. «[...] a extensão gradual das nossas colónias irá de certeza levar o selvagem, tal como o lobo, a retirarem-se; são ambos animais de rapina, embora difiram na forma.» (George Washington em 1783). «[...] se alguma vez formos constrangidos a desenterrar o machado de guerra contra qualquer tribo, não o enterraremos até que essa tribo seja exterminada ou expulsa […]» (Thomas Jefferson em 1807). «[...] os massacres cruéis que cometeram sobre as mulheres e as crianças quando as nossas fronteiras foram atacadas de surpresa, obriga-nos a persegui-los até os exterminarmos, ou a expulsá-los para lugares fora do nosso alcance.» (Thomas Jefferson em 1813). Citado por Richard Drinnon em Facing West: The Metaphysics of Indian-Hating and Empire Building (Nova Iorque: New American Library, 1980), pp. 65, 96 e 98.

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Mao Tsé-Tung, o terceiro pioneiro nacional-socialista (ou nacional-comunista; a segunda palavra deixa de ter importância, por não passar de uma relíquia histórica; a expressão «fascista de esquerda» também serviria, mas tem ainda menos significado do que as expressões nacionalistas), conseguiu fazer com o Império Celestial o mesmo que Lénine tinha feito com o Império dos Czares. O aparelho burocrático mais velho do mundo não foi dividido em pequenas unidades nem em colónias de outros industrializadores; reemergiu, bastante mudado, como uma República Popular, como um farol para as «nações oprimidas». O Presidente e os seus funcionários seguiram os passos de uma longa linhagem de antecessores e transformaram o Império Celestial numa vasta fonte de capital preliminar, completada com purgas, perseguições e, consequentemente, com grandes saltos em frente. A fase seguinte, o lançamento do processo de produção capitalista, foi levada a cabo segundo o modelo russo, nomeadamente através da polícia nacional. Isso não funcionou melhor na China do que na Rússia. Manifestamente, a função empresarial deve ser confiada a vigaristas ou trapaceiros que sejam capazes de atrair outras pessoas e a polícia não costuma inspirar a confiança necessária. Mas isso foi menos importante para os maoístas do que tinha sido para os leninistas. O processo de produção capitalista continua a ser importante, pelo menos tão importante quanto as campanhas regulares pela acumulação primitiva, já que sem capital não existe poder, não existe nação. Mas os maoístas reivindicaram cada vez menos o seu modelo como método superior de industrialização e nisso foram mais modestos que os russos, tendo ficado menos decepcionados com os resultados da sua polícia industrial. O modelo maoísta apresenta-se aos agentes e estudantes de segurança por todo o mundo como uma metodologia de poder experimentada e testada, como uma estratégia científica de libertação nacional. Em geral conhecida como o Pensamento de Mao Tsé-Tung7, esta ciência propõe aos aspirantes a presidentes e aos quadros a expectativa de um poder sem precedentes sobre os seres vivos, as actividades humanas

7. Facilmente acessível como Citações do Presidente Mao (Pequim: Departamento Político do Exército de Libertação do Povo, 1966).

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e mesmo sobre as ideias. O papa e os padres da Igreja Católica, com todas as suas inquisições e confissões, nunca detiveram tanto poder, não porque o tivessem rejeitado, mas porque não tinham os instrumentos disponibilizados pela ciência e pela tecnologia modernas. A libertação da nação é a última fase da eliminação dos parasitas. O capitalismo já antes tinha livrado a natureza de parasitas e reduzido a maior parte da restante natureza a matérias-primas para as indústrias de transformação. O nacional-socialismo ou social-nacionalismo moderno mantém também a perspectiva de eliminar os parasitas da sociedade humana. Geralmente, os parasitas humanos são fontes de capital preliminar, mas o capital não é sempre «material», pode também ser cultural ou «espiritual». Os modos, os mitos, a poesia e a música dos povos são liquidados como algo inevitável; alguma da música e dos costumes da antiga «cultura popular» ressurgem subsequentemente, transformados e embalados, como elementos do espectáculo nacional, como decorações para as campanhas de acumulação nacionais; os modos e os mitos tornam-se matérias-primas para transformação por uma ou várias das «ciências humanas». É liquidado até mesmo o inútil ressentimento dos trabalhadores para com o seu trabalho assalariado alienado. Quando a nação é libertada, o trabalho assalariado deixa de ser um fardo oneroso e torna-se uma obrigação nacional que deve ser levada a cabo com alegria. Os reclusos de uma nação totalmente libertada lêem o Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de Orwell como um estudo antropológico, como descrição de uma época anterior. Já não é possível satirizar este estado de coisas. Cada sátira pode tornar-se uma bíblia para mais uma frente de libertação nacional8. Cada

8.  A Black & Red tentou satirizar esta situação há mais de dez anos com a publicação de um falso Manual para Líderes Revolucionários, um guia de «como fazer» em que o autor, Michael Velli, propôs fazer pelo príncipe revolucionário moderno o que Maquiavel tinha proposto fazer pelo príncipe feudal. Este falso «Manual» fundiu o Pensamento de Mao Tsé-Tung com o Pensamento de Lénine, Stáline, Mussolini, Hitler e dos seus seguidores modernos, propondo receitas terríveis para a preparação de organizações revolucionárias e para a obtenção do poder total. Desconcertantemente, pelo menos metade dos pedidos deste «Manual» veio de aspirantes a libertadores nacionais, sendo possível que algumas das actuais versões da metafísica nacionalista contenham fórmulas propostas por Michael Velli.

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satirista corre o risco de se tornar o fundador de uma nova religião, um Buda, um Zarathustra, um Jesus, um Maomé ou um Marx. Cada revelação das devastações do sistema dominante, cada crítica do funcionamento do sistema, torna-se forragem para os cavalos dos libertadores, materiais de consolidação para construtores de exércitos. O Pensamento de Mao Tsé-Tung, nas suas numerosas versões e revisões, é uma ciência total e uma teologia total; é física social e metafísica cósmica. O Comité de Salvação Nacional francês afirmou ter encarnado a vontade geral somente da nação francesa. As revisões do Pensamento de Mao Tsé-Tung afirmam ter encarnado a vontade geral de todos os oprimidos do mundo. As constantes revisões deste Pensamento são necessárias porque as suas formulações iniciais não eram aplicáveis a todas ou, de facto, a qualquer uma das populações colonizadas do mundo. Nenhum dos colonizados do mundo partilhava a herança chinesa de ter sustentado um aparelho de Estado durante os últimos dois mil anos. Poucos dos oprimidos do mundo tinham alguma vez possuído quaisquer dos atributos de uma nação no passado recente ou distante. O Pensamento teve de ser adaptado a povos cujos antepassados viveram sem presidente, exércitos ou polícia, sem processos de produção capitalista, e que, por isso, não tinham necessidade de capital preliminar. Essas revisões eram feitas enriquecendo o Pensamento inicial com empréstimos de Mussolini, Hitler e do Estado sionista de Israel. A teoria de Mussolini sobre a realização da nação no Estado foi um princípio fundamental. Todos os grupos de povos, fossem pequenos ou grandes, industriais ou não industriais, concentrados ou dispersos, eram vistos como nações, não devido ao seu passado, mas devido à sua aura, à sua potencialidade, uma potencialidade embutida nas suas frentes de libertação nacional. Outro princípio fundamental, formulado por Hitler (e pelos sionistas), foi o tratamento da nação como entidade racial. Os quadros eram recrutados entre pessoas despojadas dos parentescos e dos costumes dos seus antepassados, não sendo pois possível distinguir os libertadores dos opressores em termos de linguagem, crenças, costumes ou armas; o único material de consolidação que os unia entre si e à massa de que faziam parte era o material de consolidação que tinha unido os servos brancos aos patrões brancos na fronteira americana; o «vínculo racial» dava identidades a quem não tinha identidade, paren144

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tesco a quem não tinha parentes, comunidade a quem tinha perdido a sua comunidade; era o último vínculo dos culturalmente despojados. O pensamento revisto poderia agora ser aplicado aos africanos como também aos navajos, aos apaches e também aos palestinianos9. Os empréstimos obtidos junto de Mussolini, de Hitler e dos sionistas são criteriosamente encobertos, porque Mussolini e Hitler não conseguiram manter o poder que tinham conquistado e porque os sionistas vitoriosos transformaram o seu Estado no polícia mundial contra todas as outras frentes de libertação nacional. Tem de ser atribuído mais crédito a Lénine, Stáline e Mao Tsé-Tung do que estes merecem. Os modelos revistos e universalmente aplicáveis funcionam quase da mesma forma que os originais, mas mais subtilmente; a libertação nacional tornou-se uma ciência aplicada; o aparelho tem sido testado frequentemente; as numerosas falhas nos originais foram entretanto corrigidas. Tudo o que é necessário para fazer andar o aparelho é um piloto, uma correia de transmissão e combustível. O piloto é, obviamente, o próprio teórico ou o seu discípulo mais próximo. A correia de transmissão é o estado-maior, a organização, também conhecida como o Partido ou o partido comunista. Este partido comunista com c minúsculo é exactamente aquilo que popularmente se crê. É o núcleo da organização policial que purga e que será ele próprio purgado quando o líder se tornar líder nacional e precisar

9. Não estou a exagerar. Tenho à minha frente um grosso panfleto intitulado The Mythology of the White Proletariat: A Short Course for Understanding Babylon, de J. Sakai (Chicago: Morningstar Press, 1983). Como aplicação do Pensamento de Mao Tsé-Tung à história americana, é o trabalho maoísta mais sensível que já vi. O autor documenta e descreve, algumas vezes vividamente, a opressão dos escravos africanos na América, as deportações e exterminações dos indígenas do continente americano, a exploração racista dos chineses, o aprisionamento de nipo-americanos em campos de concentração. O autor mobiliza todas essas experiências de terror absoluto, não para encarar formas de suplantar o poder que as perpetrou, mas para apelar às vítimas para que reproduzam o mesmo sistema entre elas próprias. Polvilhado de fotografias e citações dos presidentes Lénine, Stáline, Mao Tsé-Tung e Ho Chi Minh, este trabalho não tenta esconder ou disfarçar os seus objectivos repressivos; apela a que os africanos, tal como os navajos, apaches e também palestinianos, organizem um partido, tomem o poder de Estado e liquidem os parasitas.

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de rever novamente o Pensamento invariável, à medida que se vai adaptando à família das nações ou, pelo menos, à família dos banqueiros, fornecedores de munições e investidores. Quanto ao combustível: a nação oprimida, as massas sofredoras, o povo libertado é e continuará a ser o combustível. O líder e os oficiais não provêm do exterior; não são agitadores estrangeiros. São produtos integrais do processo de produção capitalista. Este processo de produção tem sido acompanhado invariavelmente pelo racismo. O racismo não é uma componente necessária da produção, mas tem sido (de alguma forma) uma componente necessária do processo de acumulação primitiva de capital e tem quase sempre feito parte do processo de produção. As nações industrializadas têm adquirido o seu capital preliminar expropriando, deportando, perseguindo e segregando, se não mesmo exterminando, povos designados como presas legítimas. Foram desfeitos parentescos, foram destruídos ambientes, foram extirpados modos culturais e orientações. Os descendentes dos sobreviventes de tais massacres têm sorte se conseguirem preservar as mais simples relíquias, as mais ténues sombras das culturas dos seus antepassados. Muitos dos descendentes não conservam nem sombras; estão completamente despojados; vão trabalhar; fazem aumentar cada vez mais o aparelho que destruiu a cultura dos seus antepassados. E no mundo do trabalho são relegados para as margens, para os trabalhos mais desagradáveis e mais mal pagos. E isto leva-os à loucura. Um embalador de supermercado, por exemplo, poderá saber mais sobre estoques e requisições do que o seu gerente e saber que o racismo é a única razão que o leva a não ser gerente e o gerente a não ser embalador. Um segurança poderá saber que a única razão que o impede de ser chefe de polícia é o racismo. É entre pessoas que perderam todas as suas raízes, que ambicionam ser gerentes de supermercado e chefes de polícia, que a frente de libertação nacional se arreiga; é aí que o líder e os oficiais são formados. O nacionalismo continua a atrair os despojados porque outras perspectivas parecem ser mais sombrias. A cultura dos antepassados foi destruída; por isso, de acordo com padrões pragmáticos, falhou; os únicos antepassados que sobreviveram foram os que se acomodaram 146

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ao sistema do invasor, sobrevivendo nos arredores de lixeiras. As várias utopias de poetas e sonhadores e as numerosas «mitologias do proletariado» também falharam; não se comprovaram na prática; não foram mais do que fogo de vista, quimeras, promessas; o proletariado real tem sido tão racista como os patrões e a polícia. O embalador e o segurança perderam o contacto com a cultura ancestral; as quimeras e as utopias não lhes interessam, são de facto repudiadas com o mesmo desdém que o homem de negócios sente pelos poetas, vagabundos e sonhadores. O nacionalismo oferece-lhes algo de concreto, algo que tem sido experimentado e testado e que funciona. Não existe razão concebível para que os descendentes dos perseguidos continuem a sê-lo quando o nacionalismo lhes oferece a perspectiva de se tornarem perseguidores. Familiares próximos e distantes de vítimas podem tornar-se um Estado-nação racista; podem eles próprios arrebanhar pessoas em campos de concentração, mandar noutras pessoas à vontade, perpetrar uma guerra genocida contra elas, adquirir capital preliminar expropriando-as. E se os «familiares raciais» das vítimas de Hitler podem fazê-lo, também o poderão as vítimas directas ou indirectas de Washington, Jackson, Reagan ou Begin. Qualquer população oprimida pode tornar-se uma nação, um negativo fotográfico da nação opressora, um lugar onde o antigo embalador é o gerente de supermercado, onde o antigo segurança é chefe de polícia. Ao aplicar a estratégia rectificada, cada segurança poderá seguir o precedente dos antigos guardas pretorianos de Roma. A polícia de segurança de uma companhia mineira estrangeira pode autoproclamar-se uma república, libertar as pessoas e continuar a libertá-las até que estas não tenham mais nada a fazer senão rezar que a libertação acabe. Mesmo antes da tomada do poder, um bando pode chamar-se a si próprio uma frente e oferecer a pessoas pobres fortemente tributadas e constantemente policiadas algo de que ainda sentem falta: uma organização de recolha de contributos e um esquadrão de ataque, ou seja, colectores de impostos e uma polícia do próprio povo. Dessa forma, as pessoas podem ser libertadas dos traços dos seus antepassados vitimizados; as relíquias que ainda sobrevivem dos tempos pré-industriais e das culturas não-capitalistas podem, por fim, ser definitivamente extirpadas. A ideia de que uma compreensão do genocídio, de que uma memó147

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ria dos holocaustos só pode levar as pessoas a quererem desmantelar o sistema, é errada. A contínua atracção que o nacionalismo exerce sugere que é mais verdade o oposto, ou seja, que uma compreensão do genocídio levou as pessoas a mobilizarem exércitos genocidas, que a memória de holocaustos levou as pessoas a perpetrarem holocaustos. Os sensíveis poetas que recordaram a perda, os investigadores que a documentaram, têm sido como os puros cientistas que descobriram a estrutura do átomo. Os cientistas da ciência aplicada usaram a descoberta para dividir o núcleo do átomo, para produzir armas que podem dividir todos os núcleos do átomo; os nacionalistas usaram a poesia para dividir e fundir as populações humanas, para mobilizar exércitos genocidas, para perpetrar novos holocaustos. Os puros cientistas, os poetas e os investigadores, consideram-se inocentes no que toca aos campos devastados e aos corpos carbonizados. Serão inocentes? Parece-me que pelo menos uma das considerações de Marx é verdadeira: cada minuto dedicado ao processo de produção capitalista, cada ideia que contribua para o sistema industrial, aumenta cada vez mais um poder que é inimigo da natureza, da cultura, da vida. A ciência aplicada não é uma coisa estranha; é parte integral do processo de produção capitalista. O nacionalismo não provém do exterior. É um produto do processo de produção capitalista, como os agente químicos que envenenam os lagos, o ar, os animais e as pessoas, como as centrais nucleares que radioactivam os micro-ambientes em preparação para a radioactivação do macro-ambiente. Como post-scriptum gostaria de responder a uma pergunta antes de esta ser feita. A pergunta é: «Não achas que um descendente de pessoas oprimidas estará melhor como gerente de supermercado ou chefe de polícia?» A minha resposta é outra pergunta: Que director de um campo de concentração, carrasco ou torturador não é descendente de pessoas oprimidas? [1984]

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índice

Fredy Perlman, uma praxis da resistência Júlio Henriques

5

Tudo Pode Acontecer

17

A Reprodução da Vida Quotidiana

29

Revolta na Jugoslávia Socialista 53 Dez Teses Sobre a Proliferação dos Egocratas

79

O Progresso e a Energia Nuclear: a Destruição do Continente Americano e dos seus Povos

87

O Anti-Semitismo e o Pogrom de Beirute 95 A Contínua Atracção do Nacionalismo

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já publicados

ai ferri corti. confronto mortal com o existente, os seus defensores e os seus falsos críticos 2015 | 70 pgs | 11x18 cm A insurreição é a rápida emergência de uma banalidade: nenhum poder pode manter-se sem a servidão voluntária de quem o tolera. Nada melhor que a revolta para revelar que quem faz funcionar a máquina assassina da exploração são os próprios explorados. A interrupção alargada e selvagem da actividade social remove de uma só vez o manto da ideologia e faz aparecer as verdadeiras relações de força: o Estado mostra para que existe – a organização política da passividade.

Desesperar Pedro García Olivo 2014 | 196 pgs | 11,3x17 cm Só o desespero nos liberta da mentira interior; só ele nos devolve à realidade árida, nua, quase cadáver, de uma condição humana alheia ao menor brilho e à transcendência mais insignificante. Instrumento de liquidação sumária de todas as Quimeras, poderíamos definir o desespero como um abrir de olhos sem cobardia perante o fantasma do que acreditamos ser; um reconhecimento frio e sossegado da nossa pequenez imunda, da nossa insignificância de ruído ténue no meio de uma noite qualquer, da nossa impotência de coisa inútil embalada pelos ventos mais comuns.

Flores Silvestres. Uma Antologia de Abele Rizieri Ferrari 2013 | 320 pgs | 13x18 cm Abele Rizieri Ferrari, mais conhecido pelo pseudónimo de Renzo Novatore, foi um poeta da anarquia que viveu alguns dos anos mais turbulentos de uma Itália revolucionária e pré-fascista Esta antologia espelha o seu pensamento individualista radical nos antípodas de qualquer concepção anarquista tradicional e que o tornaram «maldito» mesmo entre os seus.