Direito Civil: Direito Reais
 854423321X, 9788544233214

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

LUCIANO L FIGUEIREDO ROBERTO L FIGUEIREDO

DIRE TO CIVIL DIREITOS REAIS

62 Edição

2020

E D IT O R A m p o d iv m www.editorajuspodivm.com.br

revista atualizada ampliada

EDITORA

mpodivm www.editorajuspodivm.com.br Rua Território Rio Branco, 87 - Pituba - CEP: 41830-530 - Salvador - Bahia Tel: (71)3045.9051 • Contato: https://www.editorajuspodivm.com.br/sac

Copyright: Edições JusPODIVM C onselho Editorial: Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robério Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha.

Diagramação: Lupe Comunicação e Design ([email protected]) Capa: Ana Caquetti ISBN: 978-85-442-3321-4 Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização d o autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

Agradecimentos Direitos Reais foi uma das minhas prim eiras paixões. Foi versando sobre direi­ tos reais que escrevi meu primeiro artigo científico, minha monografia de gradua­ ção, meu primeiro livro... Curioso, porém, que como uma paixão súbita, também houve uma fase de afastamento. Foi a cadeira que por último tive a oportunidade de lecionar no Direito Civil. Mas, apesar do afastamento, a paixão permanecia. A função social, a posse, as propriedades... Leituras pelas quais sempre me apaixonei, sempre as busquei... Ter a oportunidade de maturar uma obra de Direitos Reais ao lado de Roberto, retomando minhas paixões da graduação e redescobrindo suas novas conforma­ ções é, para mim, motivo de grande alegria. Agradeço a Deus por me conceder saúde, aos meus amigos e fam iliares por me concederem força e a vocês por me concederem incentivo. É isso! Já é hora de vocês conhecerem mais um filho! Mãos à obra e vamos juntos! Salvador, 20 de junho de 2015. Luciano L. Figueiredo

Curiosamente, Direitos Reais foi a minha última descoberta no Direito Civil. Apesar disso, a cada dia percebo a relevância social desta área do conhecimento e quanto todos nós ainda precisamos evoluir na busca de um Direito das Coisas mais fraterno, justo e solidário. A bem da verdade, a missão de aprim orar e funcionalizar os institutos ju ríd i­ cos dos Diretos Reais no Brasil exige uma atuação ainda mais arro jad a de todos nós. Quem sabe este livro auxilie de alguma forma, em certa m edida. Este é 0 nosso desejo. Dessa feita, gostaria de agradecer a Luciano, com quem tanto tenho aprendido e em nome de quem saúdo todos aqueles que passarão os olhos por sobre esta obra, bem como aos que, a seu modo, contribuíram para este resultado. Agora partiremos para concluir a coleção com a Teoria Geral dos Contratos e os Contratos em Espécie. Mas esta será uma outra conversa em um outro encontro com você, estimado leitor. Boa Leitura! Salvador, 20 de junho de 2015. Roberto L. Figueiredo

ar n /1$i- oi

:?*

r

Coleção Sinopses para Concursos A Coleção Sinopses para Concursos tem por finalidade a preparação para concur­ sos públicos de modo prático, sistematizado e objetivo. Foram separadas as principais matérias constantes nos editais e chamados pro­ fessores especializados em preparação de concursos a fim de elaborarem, de forma didática, o material necessário para a aprovação em concursos. Diferentemente de outras sinopses/resumos, preocupamo-nos em apresentar ao leitor o entendimento do STF e do STJ sobre os principais pontos, além de abor­ dar temas tratados em manuais e livros mais densos. Assim, ao mesmo tempo que o leitor encontrará um livro sistematizado e objetivo, também terá acesso a temas atuais e entendimentos jurisprudenciais. Dentro da metodologia que entendemos ser a mais apropriada para a prepa­ ração nas provas, demos destaques (em outra cor) às palavras-chaves, de modo a facilitar não somente a visualização, mas, sobretudo, a compreensão do que é mais importante dentro de cada matéria. Quadros sinóticos, tabelas comparativas, esquemas e gráficos são uma constan­ te da coleção, aumentando a compreensão e a memorização do leitor. Contemplamos também questões das principais organizadoras de concursos do país, como forma de mostrar ao leitor como o assunto foi cobrado em provas. Atual­ mente, essa "casadinha" é fundamental: conhecimento sistematizado da matéria e como foi a sua abordagem nos concursos. Esperamos que goste de mais esta inovação que a Editora juspodivm apresenta. Nosso objetivo é sempre o mesmo: otimizar o estudo para que você consiga a aprovação desejada. Bons estudos! Leonardo de M edeiros Garcia leonardo@ leonardogarcia.com.br www.leonardogarcia.com.br Instagram: @leomgarcia

cr» Ov,ítíd- •"*

-■ í.

- . :)*. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Sobre as expressões grifadas anteriormente, na prova para 0 cargo de juiz Federal, TRF 4a Região, ano de 2012, foi tida como verdadeira a assertiva: "Ius possession's é 0 direito fundado no fato da posse; ius possidendi é 0 direito fundado na propriedade".

Mas qual seria o objetivo de proteção da posse? 0 escopo protetivo do fenômeno possessório é a paz social, pois, sem dúvida, a posse é objeto de grandes lutas, citando, por exemplo, o MST (Movimento dos Sem Terra). As demandas possessórias no Brasil, não só em áreas rurais, mas também nas urbanas, já ocasionaram inúmeros embates, tanto patrimoniais, como pessoais. 0 ranço latifundiário, decorrente das capitanias hereditárias, somado a um pro­ cesso histórico concentrador da terra, o qual impediu o acesso de muitos, leva à posse uma tensão desmedida. Esta tensão merece diferenciado cuidado do ordena­ mento jurídico nacional, justo por isso, que merece a posse toda a atenção e tutela. 2.

TEORIAS EXPLICATIVAS

0 ser humano, há muito, analisa a posse e tenta entendê-la. Assim, lembra a doutrina a existência de duas teorias amplamente difundidas e "originadas do esforço de seus autores para uma interpretação exata dos textos romanos". Tais teorias são fundadas no desejo de identificar, a partir dos elementos da posse, o seu conceito4 5. Estamos nos referindo à Teoria Subjetiva da Posse, de Savigny, e a Teoria Objetiva da Posse, de lhering.

São três os principais pontos distintivos das teorias: (i) a determinação dos elementos constitutivos da posse; (ii) a explicação da natureza da posse; e (iii) a fundamentação da proteção possessória. ►Atenção!

Há, historicamente, notícias sobre outras teorias intermediárias na doutrina, como a de Ferrine, Riccobono, Barassi, mas que não gozaram de ampla repercussão. Assim, tais teorias não costumam ser questio­ nadas em provas nem são objeto de grandes estudos doutrinários.

4. 5.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de janeiro: Forense. 2008, p. 45 Op. cit., p. 94/ 95 -

Cap. II • Posse

39

a) Teoria Subjetiva (Friedrich Carl Von Savigny)6 Friedrich Carl Von Savigny, no seu festejado "Tratado da Posse" (historicamente surgido em 1893), aos 24 (vinte e quatro) anos de idade, buscou teorizar a posse, no direito alemão, com base em ensinamentos provenientes do Direito Romano. Para tanto, sustentava Savigny que a posse traduziría um poder material sobre a coisa - domínio físico (corpus) - com a intenção de tê-la para si (animus). Em Síntese, para a Teoria Subjetiva: Corpus (Elemento Objetivo, Domínio Físico) +

Animus Rem Sibi Habendi (Elemento Subjetivo ou Espiritual, a intensão) Posse

Justo por conta da exigência da intenção - 0 aspecto subjetivo, 0 animus - que a teoria em comento foi batizada como subjetiva. 0 corpus seria 0 elemento material, identificado no poder físico sobre a coisa, na apreensão física do bem, no poder de fato, segundo uma relação externa e visível. Já 0 animus traduz 0 desejo, a vontade de ter a coisa como própria, a re­ lação interna, invisível. Caso não houvesse 0 aludido animus, para Savigny, posse não existiría; mas, sim, mera detenção7. Por conta do animus os detentores não possuem a posse, não sendo merece­ dores de tutela possessória, porquanto titularizam apenas 0 domínio físico da coi­ sa (corpus). Sob 0 ponto de vista prático, esse entendimento seria gravíssimo para os locatários, comodatários, usufrutuários e depositários, pois, como meros de­ tentores (para a teoria subjetiva), não gozam dos efeitos da proteção possessória. ►Atenção! 0 Código Civil atual, como será adiante estudado, adota uma classifi­

cação distintiva entre posse direta x indireta (CC, art. 1.197). Assim, "A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamen­ te, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo 0 possuidor direto defender a sua pos­ se contra 0 indireto". Este dispositivo comprova que estas pessoas (locatários, comodatários, usufrutuários, depositários etc.) não são apenas detentores para a legislação pátria; mas, sim, possuidores. Do dito, é possível notar que o direito brasileiro, p re p o n d e ra n te m e n ­

te, abraçou a teoria objetiva da posse, a qual será aprofundada no decorrer desta obra.

6.

Malgrado a maioria dos manuais e das provas informarem ser 0 genitor da teoria subjetiva Sa­ vigny; há quem discorde. Para alguns, como Carlos Roberto Gonçalves (op. cit., p. 48), a referida teoria teve como pioneiro Niebuhr.

7.

Op. Cit., p. 32.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

40

Curioso perceber que, diante do problema dos comodatários, locatários, arren­ datários, dentre outros, Savigny tentou uma solução tangencial, criando uma figura interm ediária entre o detentor e o possuidor, chamado de possuidor derivado. Acabou, neste momento, contrariando a própria tese e defendendo existir possui­ dores sem intenção, o que enfraqueceu, ainda mais, a sua matriz teórica. A teoria subjetiva representou, à época, um enorme avanço, pois ao estudar a posse na Alemanha, com fundamento em Roma, conferiu autonomia ao instituto. A posse deixará de ser uma mera decorrência proprietária. Apesar disso, a referida teoria não foi isenta de críticas, sendo a principal a percepção de que a verificação do elemento subjetivo (animus) era demasiadamente dificultosa. Pautada nessa crítica que adveio a teoria objetiva da posse, sobre a qual pas­ samos a falar. b) Teoria Objetiva (Rudolf Von lhering) A teoria objetiva da posse teve como seu genitor Rudolf Von lhering, que foi aluno de Savigny, em Berlim, na Faculdade de Direito, lhering se dedicou a tentar melhorar e ap arar as arestas da teoria de seu professor, Savigny. Para esta construção teórica, possuidor é a pessoa que se comporta como se fosse proprietária da coisa, imprimindo destinação econômica a ela, indepen­ dentemente da demonstração do animus. Objetivando um contraponto à teoria subjetiva, ressalta a teoria em comento o comportamento objetivo, enxergando a posse, em regra, como a exteriorização da propriedade ou o exercício de um dos seus poderes. É possuidor aquele que tem a conduta de dono. Dessa maneira, segundo a matriz em estudo, apenas o aspecto objetivo im­ porta à configuração da posse, sendo esta igual ao corpus. Interessante, porém, que 0 corpus ganhou uma conotação diversa da de Savigny, pois não consistia em um mero contato físico, mas sim em uma função econômica, na forma que age o proprietário diante daquele bem, na conduta de dono. Em síntese: Teoria Objetiva: Posse = Corpus (conduta de dono).

A posse é considerada, pela teoria objetiva, como um direito a ser protegido para a preservação, consequencial, da própria propriedade. Trata-se de posicio­ namento diverso da teoria subjetiva, na qual a posse é protegida pelo fundamento de que todo e qualquer ato de violência merece resposta Estatal, independente­ mente da tutela proprietária. Anota Orlando Gomes, ao comentar a teoria objetiva da posse, que "a quali­ dade de possuidor é atribuída a muitas pessoas que, na concepção clássica, são consideradas meras detentoras". Isto porque, todo aquele que utilizar coisas alheias, em decorrência de uma relação jurídica real ou obrigacional, será, ne­ cessariam ente, possuidor8.

8.

0 p.

Cit., p.

37-

Cap. II . Posse

41

0 detentor, neste cenário e na lembrança de Carlos Roberto Gonçalves, configu­ ra-se com a mera incidência de obstáculo legal à aquisição da posse, verificando-se uma posse degradada9. Aqui, arremata o doutrinador, reside uma das mais importantes diferenças entre as duas teorias:

a)

Enquanto Savigny enxerga a detenção como um corpus - entendido como poder físico - sem o animus - desprovido de intenção.

b)

lhering enxerga a detenção como o corpus - conduta de dono - com um obstáculo legal que impeça a posse.

A crítica feita à teoria objetiva, como posto por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.10, reside no fato de esta retirar a autonomia plena da posse, e analisando conjuntamente à propriedade, remetendo à exteriorização da pro­ priedade e conduta de dono. Malgrado as críticas, porém, foi a teoria objetiva a tese abraçada pelo vigente Código Civil. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

(FUNRIO - INSS - Analista - Direito - 2014) A teoria da posse, adotada pelo Código Civil brasileiro, denomina-se: a) teoria subjetiva de Savigny. b) teoria fazendária de Caio Mário da Silva Pereira. c) teoria privatista. d) teoria objetiva de lhering. e) teoria patrimonialista. Gabarito: letra d.

3.

MAS AFINAL, 0 QUE É A POSSE?

Diante de toda a raiz histórica trabalhada, bem como das matrizes teóricas so­ bre 0 instituto, a esta altura, seguramente, você, futuro aprovado, já está ansioso em busca do que vem a ser a posse. A primeira dúvida conceituai que se colocar, ao ser enfrentada a definição da posse, é se esta seria um fato ou um direito? Tal dúvida persiste na doutrina desde 0 direito romano. S o b re esta p ro b le m á tic a , ex istem duas importantes correntes11. A prim eira sustentando ser a posse, pura e simplesmente, um fato, como defendido por

9.

Op. Cit., p. 59-

10. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. v. 5: Reais. 10* ed. p. 57. Salvador: JusPodivm, 2014. 11. MOREIRA ALVES, José Carlos. Posse. Estudo dogmático. V. II. 1 . 1, 2* ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 69.

42

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Windscheid, Pacifici-Mazzoni, Bonfante, Dernburg, Trabucchi, Cujacius e outros12. A segunda afirmando ser a posse um direito, como aduzem lhering, Teixeira de Frei­ tas, Orlando Gomes, Maria Helena Diniz, Caio Mário, Demolombe, Sintenis, Molitor, Pescatore e outros13. ►Atenção!

Percebe-se, a partir do supracitado, que para a teoria subjetiva da posse, esta é, a um só tempo: a) fato, quando analisada em si mesma; b) direito, quando observada em relação aos efeitos dela decorrentes. Todavia, para a teoria objetiva da posse, esta é apenas um direito.

A posse é um direito, "levando-se em conta a teoria tridimensional de Miguel Reale"14, segundo a qual o direito nada mais é, senão fato, valor e norma. Comungando, porém, com a doutrina de Carlos Roberto Gonçalves15, há uma

terceira via possível de ser enxergada, defendida por Barassi, Savigny, Pothier, Brinz, Domat, Ribas, Laurent, Wodon e outros. É a teoria mista ou eclética, a qual enxerga a posse como um fato e um direito. Nessa linha de intelecção, nos parece que ser direito não retira da posse a natureza de fato, podendo ser esta traduzida como um fato tutelado pelo pró­ prio direito. Com efeito, segundo a lei, possuidor é aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade (arts. 1.196 e 1.204, ambos do CC). Logo, ao ter de fato tal exercício, terá um direito à posse. Tanto isto é verdade que, de acordo com a legislação, a posse se adquire desde 0 momento em que se torna possível 0 exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.204, CC). 0 possuidor será, desde então, protegido, seja pela inafastabilidade da jurisdição (art. 5°, XXXV, CF), seja pelo direito constitucional à moradia (art. 6°, caput, CF), ou, finalmente, diante da função social desta posse. ►Como este assunto foi cobrado em concurso? No ano de 2017, Banca FUNDEP (Gestão de Concursos), na prova para

0 MPE-MG, foi considerada incorreta a seguinte assertiva: a posse é 0 exercício pleno dos poderes inerentes à propriedade. Vê-se, então, que 0 Direito tutela este fato.

12. Apud Carlos Roberto Gonçalves. Op. Cit., 73. 13. No mesmo sentido, de que a posse é um direito e a doutrina de Maria Helena Diniz e Carlos Roberto Gonçalves, ambas utilizadas no curso deste capítulo. 14. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 28. 15. Op. Cit., p. 73.

Cap. II • Posse

43

Mas em sendo um direito, a posse seria um d ireito real ou obrigacional (pessoal)? Trata-se de mais uma importante polêmica. Para lhering, em sendo a posse um direito, seria, seguramente, real, pois diz respeito a uma relação entre um sujeito e uma coisa, e não entre pessoas. Ade­ mais, não tem por objeto uma prestação. Ocorre que, como visto no capítulo introdutório a esta obra, o Código Civil bra­ sileiro trabalha com um rol taxativo de direitos reais (art. 1.225 do CC), 0 qual não incluiu a posse. Nesta ótica, seria a posse um direito pessoal. De outro modo, como visto no mesmo capítulo introdutório, há outros direitos reais, previstos no Código Civil, e não elencados no seu art. 1.225, a exemplo do direito de retenção. Voltaria, então, a possibilidade de ser enxergada a posse como um direito real. 0 dilema só aumenta. Parece-nos que a razão, aqui, assiste a Clóvis Beviláqua, Joel Dias Figueira, José Carlos Barbosa Moreira Alves e aqueles que defendem a tese de ser a posse um direito pessoal especial, típico e autônomo16. Decerto, não estando no rol do art. 1.225 do CC, sustentar a tese de que a posse seria um direito real, para provas concursais, encontra grandes obstáculos. Toda­ via, pensá-la como uma mera obrigação, é igualmente difícil, porquanto ser uma relação que envolve uma coisa, com certa oponibilidade. Encaixando 0 fenômeno em uma situação diferenciada, como 0 fazem os supra­ citados autores, resta possível compreendê-lo como um direito pessoal com ampla oponibilidade e, até mesmo, alguma sequela. Sob 0 ponto de vista legislativo, porém, é darividente que a posse resta tra­ tada no livro dos direitos das coisas. Como já visto, não é um direito real por não estar inserido no art. 1.225 do Código Civil. ►Como este assunto foi cobrado em concurso público?

(FUNRI0 - INSS - Analista - Direito - 2014) Com relação à posse, é correto afirmar que: a) é um Direito Real. b) é um Direito Obrigacional. c) está inserida no livro de Direito das Coisas. d) está inserida no livro de Direito da Família. e) 0 Código Civil não regula a matéria. Gabarito: letra c.

16. Apud Carlos Roberto Gonçalves, p. 76 e 77.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

44

E, então, qual seria o conceito de posse? A posse é um poder de fato; a propriedade, o poder de direito sobre a coisa, configurando como elemento indispensável ao proprietário para a utilização eco­ nômica da coisa. Prossegue o saudoso doutrinador baiano recordando que esta utilização econô­ mica da propriedade se verifica ou pela utilização da posse pelo próprio proprietá­ rio, ou, ainda, pela cessão do poder de fato que este tem para outra pessoa. Assim, deve a posse ser encarada como uma "condição ao nascimento de um direito", ou "como fundamento de um direito", a depender da situação jurídica concreta17. ►Atenção!

A posse não se confunde com a propriedade, nem é desta um apên­ dice. Posse e propriedade são institutos distintos. Evidentemente que, em muitas ocasiões, constata-se a presença da posse e da proprieda­ de reunidas em uma mesma pessoa, a exemplo do proprietário de um imóvel que, ao mesmo tempo, reside no aludido bem. Mas é possível que haja posse direta sem propriedade, como no caso do inquilino. Igualmente é possível que haja propriedade sem posse direta, a exemplo do proprietário que aluga 0 imóvel. Assim, afirma-se que hoje a posse tem autonomia no direito brasileiro, sendo um instituto juridicamente independente e com proteção espe­ cífica, independentemente da propriedade.

0 Código Civil vigente, de forma próxima ao anterior, se ocupou de conceituar a posse, especificamente no seu art. 1.196, afirm ando ser 0 possuidor 0 sujeito de direito que tem de fato 0 exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade. Assim, para ser possuidor não é necessário conservar 0 exercício pleno de todas as faculdades proprietárias - uso, gozo ou fruição, disposição e sequela - , bastando conservar 0 exercício, ainda que parcial, de um desses poderes.

►Como esse assunto foi cobrado em concurso? Ano: 2016 - Banca: FAURGS - Órgão: TJ/RS - Prova: juiz de Direito Subs­ tituto

A banca entendeu como incorreta a assertiva: "Considera-se possuidor todo aquele que tem de direito 0 exercício, pleno ou não, de algum dos direitos inerentes à propriedade." A falsidade da assertiva está na ex­ pressão de direito. Com efeito, com base no art. 1.196 do CC, possuidor é todo aquele que tem 0 exercício de fato, de forma plena ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade.

17. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P-

34/ 35.

Cap. II • Posse

45

Mas o Código Civil adota a teoria objetiva ou subjetiva da posse? Voltando-se os olhos ao Código Civil, segundo a doutrina majoritária, este ado­ ta, preponderantemente, a teoria objetiva da posse (art. 1.196)18. A própria possi­ bilidade, prevista no Código Civil, de desdobramentos da posse em direta e indi­ reta (art. 1.197), ilustra a adoção da teoria objetiva, na medida em que reconhece ser factível a outra pessoa, não proprietária do bem, possuí-lo, ante 0 critério da destinação econômica. Porém, em algumas situações codificadas, há indícios excepcionais da teoria subjetiva, a exemplo da usucapião - em que se exige a posse com animus do m inisna posse de boa-fé - sendo aquela em que 0 possuído desconhece obstáculo ou vício que impeça a sua aquisição proprietária - e na detenção - quando 0 cidadão tem contato direito com a coisa (corpus), mas não é considerado possuidor. De mais a mais, em uma leitura atual do conceito de posse, esta deve ser significada com base no texto constitucional, à luz dos seus valores e princípios, consoante a constitucionalização do direito civil. 0 diuturno conceito de posse há de ser influenciado por valores repersonificadores, como a dignidade da pes­ soa humana, a so lidariedade social, a função social, 0 direito social à m oradia, entre outros. Por tudo isso, a posse há de ser verificada, atualmente, consoante a sua função social, como bem posto pela Teoria Sociológica da Posse, a qual fora desenvolvi­ da no século XX, na Europa, em especial na Itália, pelas mãos de Silvio Perozzi, na França, pelos cuidados de Raymond Saleilles e, finalmente, na Espanha, por Antônio Hernandez Gil. Todos, em coro, e em especial 0 último, proclamando a necessidade de uma função social da posse. Cediço, porém, que 0 reconhecimento da função social da posse exige flexão hermenêutica do art. 5°, XXIII, da Constituição Federal; sendo um consectário da função social da propriedade. De fato, não há nenhum artigo expresso - nem na Constituição Federal nem no Código Civil - afirmando a função social da posse. Mas 0 que seria afirm ar que um instituto privado possui função social? Stefano Rodotà19 foi um dos primeiros juristas que, efetivamente, realizou um estudo mais aprofundado sobre 0 real significado das expressões "função" e "so­ cial". Segundo ele, 0 termo função opõe-se ao de estrutura, sendo 0 norte para a averiguação da forma pela qual 0 direito é operacionalizado. Dessa forma, no instante em que 0 ordenamento reconhece que 0 direito de propriedade e de posse não deve ser exercido de forma a satisfazer unicamente ao interesse do seu titular, devendo também se dirigir aos não proprietários/possuidores, consigna uma função social ao direito de propriedade.

18. Vários doutrinadores afirmam 0 dito, citando por todos Carlos Roberto Gonçalves (op. cit., p. 55). 19. BULOS, Uadi Lammêgo. "Função Social da Propriedade (Perspectiva Constitucional)". In CARRION, Valentin (diretor). Trabalho ft Processo. Revista Jurídica Trimestral. São Paulo: Saraiva, Setembro 1995- P- 143/ 145-

46

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Por social deve-se enxergar um padrão elástico por meio do qual se transfere para a órbita legislativa, e do judiciário, certas exigências do momento histórico. Logo, social seria um conceito histórico-determinado, vago, elástico, por meio do qual se encaixariam os valores relevantes, moral e eticamente, à época analisada. A expressão função traz consigo uma ideia de dever ao proprietário, consistin­ do em uma finalidade a ser dada à propriedade em prol do interesse de outrem. Já do termo social se infere "conveniente à sociedade", que "interessa para a so­ ciedade". Tais valores sociais seriam os elegidos em lei e na Constituição Federal. Nessa esteira, por função social depreende-se o dever do possuidor em atender as finalidades sociais relacionadas aos interesses protegidos em lei. Esta posse-social é admitida, doutrinariamente, por muitos, entre os quais se coloca Flávio Tartuce20. Como bem afirmado por este doutrinador, com o qual concordamos, o Código Civil, em muitas passagens e de forma oblíqua, abraça a função social da posse. Exemplifica-se ao abordar a diminuição de prazos na usucapião extraordinária e ordinária, em função da posse-trabalho (arts. 1.238 e 1.242 do CC), bem como ao permitir a desapropriação judicial, nas pegadas do art. 1.228, §§ 4o e 50. 0 possuidor há de ter a conduta de um bom proprietário, tendo comporta­ mento ético e social no exercício do seu direito21. Atenção! 0 Enunciado 492, da V Jornada em Direito Civil, afirma que a posse

constitui direito autônomo em relação à propriedade, e deve expres­ sar 0 aproveitamento dos bens para 0 alcance de interesses existen­ ciais, econômicos e sociais merecedores de tutela, evidenciando que, sob 0 ponto de vista doutrinário, é assente 0 entendimento acerca da função social da posse.

Mas esta posse se dirige, apenas, sobre bens corpóreos, ou também diria res­ peito a bens incorpóreos ou, até mesmo, direitos? A questão é das mais imbrincadas. Em uma análise histórica, vê-se que, na origem do Direito Romano, se en­ tendia que a posse se configurava apenas sobre bens físicos. Coube ao Direito Canônico, posteriorm ente, adm itir a possibilidade jurídica da posse para todo e qualquer direito. Verificando 0 direito comparado, percebe-se que as legislações oscilam, ora para aceitar a posse pura e simplesmente para bens corpóreos, ora para estender a incidência desta, também, aos bens incorpóreos.

20. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 30. 21. SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. Vol. IV, p. 14.

Cap. II • Posse

47

Evidente mente que "problema não admite solução simplista"22, concluindo-se que a correta interpretação da doutrina objetiva de lhering não levaria à vedação da posse de bens incorpóreos23. Fato é que, no Brasil, por força da tese levantada por Ruy Barbosa, durante determinado lapso de tempo, houve a posse de direitos, por utilizar o referido advogado dos interditos para a defesa de direitos pessoais, a exemplo de reinte­ gração no emprego. 0 aludido Professor publicou, até mesmo, um livro retratando a tese, cujo batismo é a Posse dos Direitos Pessoais. Entrementes, com a posterior criação do remédio heroico (mandado de segu­ rança), em 1934, a tese do bom baiano perdeu força. Fazendo uma análise do direito legislado, Clóvis Beviláqua afirma que 0 Código Civil de 1916 não previu a posse de direitos pessoais24. 0 mesmo aconteceu no vi­ gente Código Civil, ainda de maneira mais clara, quando suprimiu dúbias redações da legislação pretérita. 0 fato é que, hoje, consoante a doutrina m ajoritária, 0 Código Civil brasileiro influenciado, no particular, pela legislação cível da Alemanha e da Grécia - aduz que apenas coisas (corpóreas), em regra, são objetos de posse. Isto, porque, para que haja 0 corpus, é necessário 0 poder físico sobre a coisa e a conduta de dono. Assim, para tanto, 0 objeto há de ser material25.

►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Todavia, registra-se, na jurisprudência sumulada, 0 tema é vacilante. 0 Superior Tribunal de Justiça afirma ser "inadmissível 0 interdito proibitório para a proteção de direito autoral" (Súmula 228, STJ), fazendo crer que não há proteção possessória de idéias, por ser um bem imaterial. Porém, a própria jurisprudência do Superior Tribunal de justiça, em outra oportunidade, admitiu a posse com fins de usucapião de linha telefônica, como se infere da redação da Súmula 193.

Diante de todo este cenário, alguns direitos obrigacionais (pessoais) e extrapatrimoniais podem ser objeto de posse, sendo defendidos pela tutela dos inter­ ditos26, de modo que seriam objeto de posse: a) 0 domínio; b) os direitos reais que dele se desmembram e subsistem como entidades distintas e independentes; e c) os demais direitos que, fazendo parte do patrimônio da pessoa, podem ser reduzidos a valor pecuniário, o que concordamos.

22. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 46. 23. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P- 45 24. Apud Carlos Roberto Gonçalves. Código Civil dos Estados Unidos, v. 3, p. 9-10. 25. Este é o pensamento de Carlos Roberto Gonçalves. Op. cit., p. 68. 26. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 45-

48

4.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

POSSE VERSUS DETENÇÃO

Uma vez consignado que o Código Civil adota a teoria objetiva da posse, de lhering, segundo a qual a posse ocorre a partir do domínio físico da coisa, uma importante questão surge: como, então, diferenciar o possuidor do detentor? 0 questionamento, efetivamente, levanta polêmica, pois tanto o possuidor como 0 detentor possuem apreensão física da coisa, aparentando ser o dono. No que tange à detenção, 0 legislador civilista, por opção legislativa e minoritariamente, abraçou a teoria subjetiva, informando que não haveria posse, porquan­ to a ausência de animus. Em não havendo posse, o detentor: a)

Não poderá usucapir 0 bem, pois inexiste posse com animus domini;

b)

Não poderá se valer de tutelas possessórias (ações possessórias), sendo a hipótese de ilegitimidade ativa ad causam (CPC, arts. 17 e 18).

c)

Não deverá 0 detentor ser demandado em ações possessórias. Aliás, 0 CPC/15

extinguiu 0 instituto da nomeação à autoria e optou por simplificar a situação processual, de modo a autorizar ao réu suscitar como um dos temas de con­ testação a sua ilegitimidade passiva ad causam, nos termos do art. 339 do CPC: "Alegando 0 réu, na contestação, ser parte ilegítima ou não ser 0 responsável pelo prejuízo invocado, 0 juiz facultará ao autor, em quinze dias, a alteração da petição inicial para substituição do réu." Não há mais, pois, a nomeação à autoria, apenas a possibilidade de correção do polo passivo da relação processual pela parte autora. A propósito, reza 0 art. 339 do CPC: "Quando alegar sua ilegitimidade, incumbe ao réu indicar 0 sujeito passivo da relação jurídica discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de arcar com as despesas processuais e de indenizar 0 autor pelos prejuízos decor­ rentes da falta da indicação." d)

Malgrado a im possibilidade do uso de possessórias, é possível que 0 detentor lance mão do desforço incontinente, também chamado de legítima defesa da posse ou autotutela da posse, desde que de maneira imediata, proporcional e razoável, como posto no art. 1.210, § 1°, do Código Civil. Nesta linha se coloca 0 Enunciado 493 da V Jornada em Direito Civil, ao sustentar que " 0 detentor pode, no interesse do possuidor, exercer a autodefesa do bem sob seu poder". ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Ano: 2018 Banca: CESPE Órgão: PGM - João Pessoa - PB Prova: CESPE 2018 - PGM - João Pessoa - PB - Procurador do Município Leonardo, proprietário de uma chácara, contratou Tadeu para traba­ lhar como caseiro, oferecendo-lhe moradia na propriedade onde 0 serviço deverá ser prestado. Nessa situação hipotética, caso ocorra 0 esbulho da posse da chácara durante uma viagem de férias de Leonardo, Tadeu Gabarito: não terá legitimidade para ingressar com ação possessória, uma vez que a sua posse é mera detenção.

Cap. II • Posse

49

Mas quais seriam as hipóteses de detenção? Conforme registrado, são hipóteses legais nas quais o cidadão que tem o cor­ pus não terá tutela possessória. A primeira delas é denominada fâmulo, gestor ou servidor da posse. Nas pe­ gadas do art. 1.198 do Código Civil, gestor da posse é aquele que, se achando em relação de dependência para com outrem, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens e instruções suas27.

Sobre 0 tema, ilustrativo exemplo é a Súmula 619 do Superior Tribunal de Jus­ tiça segundo a qual "A ocupação indevida de bem público configura mera deten­ ção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias". É 0 caso, por exemplo, de um motorista, de uma empregada doméstica, de um caseiro que, de rigor, não são titulares de posse alguma: atuam apenas como longa manus, prepostos, do verdadeiro possuidor (empregador). Estar-se-á diante de uma detenção dependente - ou, no alemão, Besitzdiener - pois decorrente de uma relação de subordinação. Ainda nos exemplos de detenção, coloca-se a oficina, que detêm 0 veículo do consumidor para reparo. Perceba que a oficina não terá a posse do bem, ao passo que está com 0 veículo com 0 único intuito de repará-lo. Há, portanto, clara rela­ ção de subordinação da oficina com 0 proprietário do automóvel. Logo, em não tendo a posse, não poderá a oficina exercitar eventual direito de retenção com base na posse de boa-fé do veículo, na casuística de ausência de pagamento por parte do proprietário do carro. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Sufragando 0 posicionamento de não ser viável a alegação de reten­ ção, pautada em posse de boa-fé, pela oficina em relação ao consumi­ dor, é que vem se posicionando 0 Superior Tribunal de Justiça. Cita-se: Para 0 adequado deslinde da questão posta no recurso especial é neces­ sário verificar se a retenção do veículo por parte da oficina mecânica, sob a justificativa da realização de benfeitorias no bem, é conduta legítima ou caracteriza esbulho, ensejador da propositura da demanda possessória. Inicialmente, cumpre salientar que 0 direito de retenção decorre, por expressa disposição do art. 1.219 do CC/2002, da realização de benfei­ toria por parte do possuidor de boa-fé, motivo por que é fundamental verificar se a oficina era, de fato, possuidora do veículo e, dessa forma, e sta ria a lb e rg a d a p e la hip ó te se legal e excepcio nal de re te n ção do bem ,

como forma de autotutela ou, de forma diversa, se a situação em análise seria de mera detenção do automóvel, circunstância que transbordaria a

27. Para a teoria objetiva da posse há equívoco ao se imaginar que a vontade do possuidor seria elemento relevante à configuração dela no exemplo da detenção, isso porque 0 grande e verda­ deiro diferencial seria outro, qual seja a causa da aquisição, sendo a posse a exteriorização da propriedade.

50

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

previsão legal de sua retenção, sob a justificativa da realização de ben­ feitorias. De acordo com a doutrina "(...) nem todo 0 estado de fato que se exerce sobre uma coisa, ou que revela exercício de poderes sobres as coisas, pode ser considerado como relação possessória plena. Muitas si­ tuações ocorrem, nas relações materiais com as coisas, que não refletem realmente uma forma de uso ou fruição do bem com poder pleno, ou a intenção de exercer um determinado direito real. Existe um certo poder sobre a coisa. Há uma relação de disponibilidade, mas em nome alheio, ou sob outra razão. Tal relação denomina-se detenção. (...) A distinção entre posse e detenção reside num aspecto básico: na primeira, os atos possessórios são exercidos em nome próprio, ou em proveito próprio; na segunda, em nome ou proveito alheio. Nesta situação, há uma relação de dependência ou subordinação para com outrem." Tem-se, portanto, que a oficina em nenhum momento exerce a posse do bem. É incontroverso que 0 veículo é deixado pelo proprietário somente para a realização de reparos, sem que isso caracterize posse, pois jamais a empresa poderia exercer poderes inerentes à propriedade do bem, relativos à sua fruição ou mesmo inerentes ao referido direito real (propriedade), nos termos do art. 1.196 do CC/2002. Assim, não há 0 direito de retenção, sob a alegação da realização de benfeitoria no veículo, pois, nos termos do art. 1.219 do CC/2002, tal providência é permitida ao possuidor de boa-fé, mas não ao mero detentor do bem. (REsp 1.628.385-ES, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por unanimidade, julgado em 22/8/2017, DJe 29/8/2017).

Os servidores da posse, assim denominados no direito alemão, são aquelas pessoas vinculadas por um elo de subordinação - seja de direito privado, seja de direito público - oneroso, ou gratuito, ao verdadeiro possuidor28. Esta qualidade de detentor pode ser alterada no plano dos fatos jurídicos. Aliás, esta é a orien­ tação do Enunciado 301 da III Jornada de Direito Civil: "É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios". Aqui, 0 antigo detentor se torna agora possuidor e, com isso, titular da tutela possessória, a depender do caso concreto, inclusive para efeitos da usucapião. Exemplifica-se com 0 caseiro que, depois de despedido, continua residindo na casa de veraneio, a contraordem e com conhecimento do proprietário, sendo, nesse contexto, possuidor injusto e contando-se 0 lapso temporal para usucapião. ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Partindo da nossa jurisprudência, apenas para ilustrar, vejamos uma parte do julgado do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a transmudação da detenção em posse, no caso do pastor que se des­ vinculou dos quadros de obreiros da religião, permanecendo, contudo, nas dependências do templo religioso.

28. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de janeiro: Forense, 2008. p. 48.

Cap. II • Posse

51

"Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de de­ pendência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas". (Código Civil, art. 1.198) 2. Na hipótese, 0 réu foi ordenado e designado para atuar na Comunidade Evangélica de Cachoerinha, na condição de pastor da IECLB, e justamente nessa qualidade é que se vinculava ao patri­ mônio da Igreja; isto é, exercia 0 controle sobre 0 imóvel em nome de outrem a quem estava subordinado, caracterizando-se como fâmulo da posse. 3. A partir do momento em que pleiteou 0 seu desligamento do quadro de pastores, continuando nas dependências do templo, dei­ xando de seguir as ordens do legítimo possuidor, houve a transmudação de sua detenção em posse, justamente em razão da mo­ dificação nas circunstâncias de fato que vinculavam a sua pessoa à coisa. [...] 4. Desde quando se desligou da instituição recorrida, rompendo sua subordinação e convertendo a sua detenção em pos­ se, fez-se possível, em tese, a contagem do prazo para fins da usu­ capião - diante da mudança da natureza jurídica de sua apreensão [...]. (STJ - REsp: 1188937 RS, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 11/03/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/04/2014). (Crifos nossos).

A partir do momento em que houver a transmutação, 0 detentor passará a ser possuidor, titularizando proteção possessória. Neste instante iniciará a contagem do prazo para fins de usucapião. A segunda hipótese são os atos de perm issão - autorização prévia, induvidosa e expressa - e tolerância - autorização posterior e tácita -, consoante a redação do art. 1.208 do Código Civil. Tais atos não retiram daquele que autoriza, ou permite, 0 estado de poder socioeconômico sobre 0 bem, razão pela qual não induzem a posse. Nessa esteira, quando alguém previamente autoriza a outrem utilizar determ i­ nado bem, sem, contudo, abrir mão da própria posse, a isto se denomina perm is­ são. Por outro lado, quando a pessoa tacitamente autoriza que outrem utilize 0 bem, sem renunciar a posse, a isto se chama tolerância. Tais atos de permissão ou tolerância simbolizam mera indulgência, mas não cedem direito algum, "apenas retirando a ilicitude do ato de terceiro"29. Exemplifica-se com um grande amigo seu que, vindo do interior para a sua capital, em busca de emprego, pede para passar um período em sua casa, 0 que você autoriza. Neste lapso temporal, em que seu amigo está em sua casa, não há posse, mas mera detenção, haja vista a sua autorização.

29. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 33.

52

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A terceira casuística diz respeito aos atos de violência ou clandestinidade. Enquanto não cessada a violência ou clandestinidade não há posse, mas mera detenção, nas pegadas do mesmo art. 1.208 do Código Civil. Violenta é aquela posse adquirida por meio de violência ou grave ameaça à pessoa, aqui é possível ser realizada uma analogia ao roubo, já clandestina é aquela posse adquirida por destreza, sendo viável a analogia ao furto. Exemplifica-se. Caso invadam a posse de João, mediante violência ou grave ameaça, durante a referida invasão (na luta pela terra), não há posse ao invasor, mas mera detenção, pois a violência, ainda, não cessou. Quando cessada a referida violência, 0 invasor passará a ter posse, injusta. Já na clandestinidade não há violência, mas, sim, destreza. Imaginem que 0 seu vizinho de fazenda adentra com a cerca dele, em sua propriedade, por cinquenta metros, na calada da noite. Enquanto você, invadido, não tiver ciência deste fato, há mera detenção da área por seu vizinho, porquanto à clandestini­ dade. Quando, porém, 0 invadido tiver ciência do ato, passarem os a observar posse, ainda que injusta. Outrossim, como bem posto pelo art. 1.224 do Código Civil, a perda da posse por esbulho exige que 0 lesionado tenha tido ciência daquele. Para a doutrina de Carlos Roberto Gonçalves, tanto a hipótese dois, como a três, am bas elencadas no art. 1.208 do Código Civil, traduzem uma detenção inde­ pendente, pois independe do possuidor originário30. A quarta hipótese diz respeito aos bens públicos. Haja vista serem im prescrití­ veis, ao passo que não podem ser usucapidos (arts. 183 e 191 da Constituição Fe­ deral de 1988; e art. 102 do Código Civil), não admitem posse, mas mera detenção, mediante tolerância. 0 raciocínio aqui é darividente à luz solan se a área pública não pode ser usucapida é porque sobre ela não há posse, apenas detenção. ►Como o Superior Tribunal de Justiça está compreendendo a matéria? O Superior Tribunal de Justiça, no REsp 55671/DF, entendeu que a ocupa­ ção irregular de área pública não induz posse, mas m era detenção e, portanto, afasta 0 direito de retenção.

No que tange ao raciocínio explicitado - segundo 0 qual 0 bem público não ad ­ mite posse, mas mera detenção -, há um importante parênteses a ser realizado. Com efeito, 0 entendimento que vem se consolidando na jurisprudência do Su­ perior Tribunal de Justiça é no sentido de que 0 particular, em face do ente estatal.

30. Op. cit., p. 65.

Cap. II • Posse

53

não poderá alegar a posse do bem público; mas sim a sua mera detenção. Por conseguinte, tem-se, por razões lógicas, como inviável a usucapião de bem público. Entretanto, se dois ou mais particulares ocupam um bem público dominical, nada impede que haja a utilização de ações possessórias entre eles, sendo reco­ nhecida - de forma excepcional e sem oponibilidade ao ente estatal - a posse do bem público. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Seguindo o raciocínio doutrinário construído acima é que vem se posi­ cionando o Superior Tribunal de Justiça: Ambas as Turmas da Seção de Direito Privado vinham privilegiando o entendimento de que, quando se estivesse diante de área pública, por se tratar de mera detenção, não seria possível a arguição de proteção possessória, ainda que entre particulares. No entanto, recentemente, a Terceira Turma, revendo seu posicionamento, reconheceu a possibilidade da tutela da posse de litigantes situada em bem público. Com efeito, duas são as situações que devem ter tratamentos bem distintos: i) aquela em que o particular invade imóvel público e almeja proteção possessória ou indenização/retenção em face do ente estatal e ii) as contendas posses­ sórias entre particulares no tocante a imóvel situado em terras públicas. 0 particular, perante o Poder Público, exerce mera detenção e, por consectário lógico, não haveria falar em proteção possessória. Já no que toca às contendas entre particulares, a depender do caso concreto, é possível o manejo de interditos possessórios. De fato, o Código Civil tratou no Capítulo III, do Livro II, dos bens públicos, sendo aqueles "bens do domí­ nio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno" (art. 98), classificando-os quanto à destinação ou finalidade em: bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens dominicais. Estes últi­ mos pertencem ao acervo estatal, mas se encontram desafetados, sem destinação especial e sem finalidade pública, ou pertencem às pessoas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado (art. 98, parágrafo único do CC). São disponíveis e podem sem alienados (art. 101). Nessa ordem de idéias, tendo sempre em mente que a posse deve ser protegida como um fim em si mesma, exercendo 0 particular 0 poder fático sobre a res e garantindo sua função social, é que se reconhece, de forma excepcional, a posse pelo particular sobre bem público dominical. 0 critério para aferir se há posse ou detenção não é 0 estrutural e sim 0 funcional. É a afetação do bem a uma finalidade pública que dirá se pode ou não ser objeto de atos possessórios por um particular. Dessarte, com relação aos bens públicos dominicais, justamente por possuírem estatu­ to semelhante ao dos bens privados, não sendo considerados res extra commercium, tem-se que 0 particular poderá manejar interditos posses­ sórios contra terceiros que venham a ameaçar ou violar a sua posse. A exegese que reconhece a posse nos bens dominicais deve ser conciliada com a regra que veda 0 reconhecimento da usucapião nos bens públicos (STF, Súm 340, CF, arts. 183, § 30; e 192; CC, art. 102), permitindo-se concluir que, apenas um dos efeitos jurídicos da posse - a usucapião - é que será limitado, devendo ser mantido, no entanto, a possibilidade de invocação dos interditos possessórios pelo particular. (REsp 1.296.964-DF, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 18/10/2016, DJe 7/12/2016).

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

54

►Atenção!

0 rol de detentores aqui enunciados não se submete a uma enumera­ ção taxativa. Ao revés, é exemplificativa. 0 baluarte Pontes de Miranda veicula outros exemplos: 0 soldado em

relação às armas e à cama do quartel, funcionários públicos no que tange aos móveis da repartição, preso em relação aos instrumentos de trabalho da prisão (Apud Carlos Roberto Gonçalves. In. Tratado de Direito Privado. T. X, p. 87).

5.

A AQUISIÇÃO DA POSSE

É importante ao operador do direito saber em qual momento a posse é adqui­ rida, ante as inúmeras consequências jurídicas advindas, a exemplo da usucapião ou da distinção entre a posse nova e a posse velha. 0 Código Civil em vigor, a um só tempo, identifica quando a posse é adquirida e quem, em tese, poderia adquiri-la. Dessa forma, coloca-se a primeira questão: quando a posse será adquirida?

Nas pegadas do art. 1.204 do CC/02, "adquire-se a posse desde 0 momento em que se torna possível 0 exercício, em nome próprio, de qualquer dos pode­ res inerentes à propriedade". No particular, percebe-se que 0 vigente Código melhor se am olda à teoria objetiva de lhering, pois é justamente no momento em que há 0 exercício, pleno ou não, de algumas das faculdades inerentes à propriedade que se adquire esta posse, como bem posto pelo art. 1.196 do Código Civil. Esta posse adquirida faz presumir a dos bens móveis, os quais acompanham 0 principal (art. 1.209, CC), consoante à regra de que 0 acessório segue ao bem principal (princípio da gravitação jurídica ou universal - art. 92 do Código Civil). E quem poderá adquirir a posse? A aquisição da posse pode se d ar pela própria pessoa, por seu representan­ te (legal ou convencional) ou por terceiro, sem procuração ou mandato, desde que haja ratificação posterior (CC, art. 1.205). Tal aquisição poderá ser originária ou derivada:

a)

Aquisição originária dar-se-á independentemente de translatividade ou vontade do possuidor originário. Decorrerá, em regra, de ato unilateral, a exemplo da apropriação (apreensão) de coisas abandonadas, pela usucapião.

b)

Aquisição derivada demanda a existência de posse anterior, transmitida com a anuência do possuidor primitivo, sendo, em regra, bilateral. Exemplifica-se com a tradição da posse.

Cap. II • Posse

55

►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 - Banca: CESPE - Órgão: Tj/DFT - Prova: Juiz de Direito Subs­ tituto) Verificou-se como correta a alternativa: "A posse pode ser adquirida por terceiro, sem mandato do pretendente, caso em que a aquisição depende de ratificação". ►E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TJ-SC Prova: Juiz Substituto A posse de um imóvel foi considerada incorreta a seguinte assertiva: só pode ser adquirida pela própria pessoa que a pretende, mas não por representante ou terceiro sem mandato, sendo vedada a ratifica­ ção posterior. Nessa toada, "os modos de aquisição da posse podem ser classificados em or­ dinários e derivados". A apreensão (de objetos corpóreos) e 0 exercício do direito (para bens incorpóreos) seriam modos de aquisição originária. Já a tradição seria uma forma derivada, quando, necessariamente, dem anda-se 0 "consentimento de precedente possuidor"31. A tradição pode ser classificada em efetiva ou real, simbólica e consensual ou ficta: a)

Na tradição efetiva ou real, como se nota pelo termo, existe a verdadeira entrega do bem físico. Exemplifica-se com a entrega de uma caneta;

b)

Na tradição simbólica não haverá esta entrega real, mas apenas uma atitude a evidenciar a transferência possessória. Exemplifica-se com a entrega das chaves na locação, bem como com a venda sob documentos (arts. 529 a 532 do CC/02).

c)

A tradição consensual ou ficta é a realizada mediante contrato, tendo como exemplos a traditio brevi manu, traditio longa manu e 0 constitutum possessorium.

A traditio brevi manu ocorrerá quando alguém, que originariamente é possuidor da coisa em nome alheio, "passa a possuí-la como própria"32. Na posse anterior não havia animus domini, enquanto na posse nova 0 há, ilustrando com 0 exemplo de um comodatário que se torna proprietário do bem, objeto do comodato. ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

Ano: 2018 Banca: IBFC Órgão: TRF - 2a REGIÃO Prova: IBFC - 2018 - TRF - 2a REGIÃO - Juiz Federal Substituto No que se refere ao instituto da posse no Direito Civil brasileiro, ocorre

a tradição brevi manu no caso em que: Gabarito: "0 possuidor de coisa em nome alheio passa a possuí-la em nome próprio".

31. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 66/67.

32. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 68.

56

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Ano: 2018 Banca: CONSULPLAN Órgão: Tj-MG Prova: CONSULPLAN - 2018 TJ-MG - Titular de Serviços de Notas e de Registros - Provimento Assinale a alternativa INCORRETA. Gabarito: "Os direitos reais sobre coisas imóveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição". Agora vamos imaginar uma situação inversa! Imagine a hipótese na qual alguém vende um imóvel a outrem, mas continua a habitar naquele bem, que antes lhe pertencia, agora mediante o pagamento de aluguel, como locatário. Nessa situação, este alienante possuía a coisa, originariamente, em nome próprio. Contudo, agora, passa a possuir em nome alheio. A isto se denomina constituto possessório ou cláusula constituti. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

No concurso público realizado pelo CESPE, em 2008, para provimento de cargo de Analista do INSS, foi julgada correta a seguinte assertiva: "0 constituto possessório é modo de aquisição e perda da posse, pois 0 pos­ suidor, em razão da cláusula constituti, altera a relação possessória, pas­ sando a possuir em nome alheio aquilo que possuía em nome próprio." ►Atenção! 0 Enunciado 77 da I Jornada de Direito Civil (CJF/STJ) esclareceu, me­

diante doutrina firme e consolidada, que "a posse das coisas móveis e imóveis pode ser transmitida pelo constituto possessório", tratando-se de importante questão em concursos públicos. Ademais, em ambos os modos derivados de aquisição da posse (traditio e constituto), "não é preciso renovara entrega da coisa", havendo transmissão da posse pela mera tradição ficta, contratual.

E 0 que seria a traditio longa manu? Verifica-se, na doutrina de Maria Helena Diniz33, quando se adquire a posse sem 0 contato físico, haja vista o bem se encontrar à disposição do proprietário, a e x e m p lo d e um a g ra n d e fa z e n d a .

►Como este assunto foi cobrado em concurso público?

Prova: VUNESP - 2012 - Tj-SP - Titular de Serviços de Notas e de Regis­ tros - Remoção. Disciplina: Direito Civil I Assuntos: Direito das Coisas/ Direitos Reais; Posse - Teoria, Classificação e Aquisição; 0 constituto possessório e a traditio longa manu referem-se à Gabarito: “tradição ficta".

33. Op. cit., p. 68.

Cap. II . Posse

57

►Atenção!

Há divergência doutrinária a respeito da subdivisão das formas de aquisição derivada da posse. Para Orlando Gomes, por exemplo, as tradições simbólica ou ficta seriam expressões sinônimas, constituin­ do uma forma espiritualizada de tradição por meio de gestos. Dessa maneira, a traditio brevi manu e o constitute) possessório estariam nela contidos. Ao lado da tradição simbólica haveria, ainda, para este doutrinador, tradição consensual. Não é o que pensa, entretanto, outra parte da doutrina, a exemplo de Flávio Tartuce, para quem a tradição simbólica não se confundiría com a tradição ficta.

A posse, uma vez adquirida, pode ser transmitida com os mesmos caracteres da sua aquisição (CC, arts. 1.203 e 1.206). A isto se denomina de princípio da con­ tinuidade da posse, a qual se consubstancia na chamada acessão da posse ou acessio poessessionis.3435 ►Atenção!

Para Maria Helena Diniz36, tecnicamente, deve-se utilizar a palavra su­ cessão para a acessão da posse causa mortis e união para a acessão inter vivos. A doutrina majoritária, porém, vem tratando as expressões como sinônimas, usando tanto para a continuidade mortis causa, como inter vivos, 0 termo acessão da posse.

Maria Helena Diniz36 lembra que é muito importante saber se a aquisição da posse foi originária ou derivada, para então analisarm os a sua transmissão. Sen­ do originária, a posse virá sem nenhum vício; já a derivada trará consigo os seus próprios vícios originais. Uma vez transmitida a posse, 0 sucessor universal continuará, de pleno direito, a posse do seu antecessor; enquanto ao sucessor singular é facultado unir a sua posse à do antecessor, para efeitos legais (art. 1.207, CC). Infere-se que a acessão de posse poderá ocorrer causa mortis; vale dizer, em hipóteses envolvendo direito hereditário. Além de a posse ser passível de trans­ ferência por força do óbito de seu titular, será possível, portanto, a este herdeiro, somar ao seu tempo de posse 0 lapso anterior dessa (CC, art. 1.206), configurando-se uma sucessão universal (direito sucessório, CC art. 1.847). M a s ta m b é m

s e rá p o s s ív e l esta a c e s s ã o s in g u la r p a ra

h ip ó te s e in t e r vivos,

como ocorre na transferência, por doação ou venda, de um imóvel a outra pessoa. Nesse caso, também será possível ao adquirente unir os dois períodos de posses (CC, art. 1.207).

34. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 28. 35. DINIZ, Maria Helena. Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 67. 36. DINIZ, Maria Helena. Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 67.

58

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Esta soma das posses - acessio p o ssessio n s - a que alude o art. 1.207 do CC, se aplica para casos de usucapião ord inária (CC, arts. 1.242 e 1243), sendo possí­ vel 0 computo dos lapsos tem porais "entre os sucessores, sejam eles sucessores inter vivos ou mortis causa"37. Arrem ate-se com 0 belo exemplo da sucessão de em presas, quando a em presa sucessora poderá acrescer 0 tempo de posse da sucedida para fins de usucapião. Outro exemplo dado pelo doutrinador diz respeito a um herdeiro que poderá continuar na posse do seu finado pai para a mesma finalidade da usucapião; exem plifica-se: João tem a posse do imóvel há 13 (treze) anos e veio a óbito. Seu filho. Caio, herdou essa posse e permaneceu no bem por 4 (quatro) anos. Assim, Caio poderá som ar os seus quatro anos aos treze de João para fins de usucapião. ►Atenção!

A soma das posses (CC, art. 1.207), segundo a doutrina, não se aplica para casos de usucapião especial urbana, bem como rural, por conta do fato de tais institutos se encontrarem contidos diretamente no texto constitucional (arts. 183 e 191, CF). Nesse sentido coloca-se 0 Enunciado 317 da V jornada em Direito Civil: "A acessio possessionis, de que trata 0 art. 1.243, primeira parte, do Código Civil, não encontra aplicabilida­ de relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade da usucapião constitucional urbana e rural, arts. 183 e 191, respectivamente". Outrossim, da interpretação conjunta dos arts. 1.203, i-2o6, 1.207 e 1.243, percebe-se que a posse se transmite e pode, sim, ser somada. Todavia, ao ser transmitida, ela não conva­ lesce, permanecendo os eventuais vícios. Nessa linha caminha 0 Enun­ ciado 494 da V Jornada em Direito Civil ao afirmar que "A faculdade conferida ao sucessor singular de somar ou não 0 tempo da posse de seu antecessor não significa que, ao optar por nova contagem, estará livre do vício objetivo que maculava a posse anterior". Como se vê, forte no princípio da eticidade, a doutrina reconhece a possibilidade de transmissão do vício possessório: princípio da continuidade do ca­ ráter da posse.

► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: VUNESP Órgão: MPE-SP Prova: VUNESP - 2018 - MPE-SP Analista Jurídico do M inistério Público

Pedro cedeu a posse de um terreno de 250 m2 a Joaquim. Aquele, contudo, adquiriu a posse mediante ameaças e agressões físicas con­ tra 0 antigo possuidor do terreno. Joaquim pretende erigir no terreno adquirido uma casa para morar com sua família e desconhece a forma pela qual Pedro adquiriu a posse que lhe transmitiu. Gabarito: boa-fé e injusta.

37. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 162.

Cap. II • Posse

59

Ano: 2018 Banca: CONSULPLAN Órgão: TJ-MG Prova: CONSULPLAN - 2018 TJ-MG - Titular de Serviços de Notas e de Registros - Provimento Assinale a afirmativa INCORRETA. Gabarito: Ao sucessor singular não é facultado unir sua posse à do antecessor para os efeitos legais.

6.

A PERDA DA POSSE

Nas pegadas do art. 1.223 do CC, perde-se a posse quando cessa, embora con­ tra a vontade do possuidor, 0 poder sobre 0 bem, ao qual se refere 0 art. 1.196 do CC. Logo, quando 0 possuidor não mais puder exercê-la. Cessando os atributos relativos à propriedade "cessa a posse, que é per­ dida, extinta"38. Sendo a posse a exteriorização da propriedade, é justamente quando há perda desta conduta proprietária que a posse é extinta39. Em síntese: não conservando a posse, não havendo continuidade no exercício da mesma, a posse será perdida. É possível afirm ar que a posse poderá ser perdida pela vontade, ou contra a vontade, do seu titular. Desta m aneira, poderiam os ilustrar a perda da posse com a hipótese de abandono, tradição, ou, ainda, por força do perecimento bem. No abandono, vaticina Maria Helena Diniz40, 0 possuidor, intencionalmente, se afasta do bem, visando não mais ter a sua disponibilidade física ou exercer qual­ quer ato possessório. 0 abandono da posse nem sempre ocasionará, ato contínuo, 0 da propriedade, a exemplo do cidadão que atira objetos do seu navio ao mar, quando em naufrágio, com 0 escopo de recuperá-los posteriormente. Abandona-se a posse, mas não a propriedade. Outrossim, inutilizações tem porárias não geram abandono, a exemplo do cida­ dão que possui uma casa de praia e apenas a utiliza no verão. No inverno não há, tecnicamente, abandono, mas mera inutilização. Já na tradição há a transferência do bem, com a intenção de não mais con­ servá-lo em sua posse, em virtude de uma doação, por exemplo. No que tange à perda da coisa, esta se configura quando não mais for possível encontrá-la, com uma joia que se perdeu no fundo do mar, ou um cão de estimação que fugiu e nunca mais foi achado. Ressalta-se que além das hipóteses aqui mencionadas, há outras de perda da posse, como a destituição do bem, pelo desuso, pela posse de outrem. Enfim, sempre por casuísticas nas quais 0 possuidor não tem condições de exercitar, como outrora, a sua conduta de proprietário.

38. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 83. 39. Op. Cit., p. 76. 40. Op. Cit., p. 76.

60

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Atenção!

Nos termos do art. 1.224 do Código Civil, para quem não esteve presen­ te no ato do esbulho, a posse somente será tida como perdida quando 0 ato de perda chegar ao conhecimento da vítima; ou quando este, ao tentar recuperar 0 bem, venha a ser repelido por ato de violência do agente agressor da posse. Vencida a aquisição, transmissão e perda da posse, é momento, de avançar e analisar a sua classificação.

7.

CLASSIFICAÇÃO DA POSSE

0 ato de classificar é doutrinário. 0 operador do direito, com base nas nor­ mas positivadas, dedica-se a construir um sistema dassificatório do instituto em estudo. Tal fato não é diferente na análise da classificação da posse. Dessa m aneira, ao estudar a classificação de um assunto, é plenamente possível que sejam encontradas algumas diferenças, a d epender da obra consultada. Diferen­ ças, repisa-se, doutrinárias. Com o escopo de conferir o mais amplo conhecimento derredor do tema, a classificação que a seguir se descortinará é objeto de estudo das mais diversas obras doutrinárias e certames concursais, conferindo ao futuro leitor aprovado, todos os instrumentos necessários ao seu sucesso.

7.1. Posse Direta versus Posse Indireta. Os Desdobramentos da Posse Ao se levar em conta a classificação da posse em relação à "pessoa-coisa ou quanto ao desdobramento"41, é possível identificar, de um lado, uma posse direta ou imediata e, de outro, uma posse indireta ou mediata.

Posse direta ou imediata é aquela em que 0 possuidor tem 0 contato material e imediato com a coisa. 0 titular da posse direta é 0 não proprietário, a exemplo do usufrutuário, comodatário e do locatário. Trata-se de uma posse subordinada e derivada ao dono do bem. Já a posse indireta ou mediata é aquela na qual 0 possuidor está afastado da coisa, mas aufere vantagens desta, e/ou ainda tem poderes sobre a coisa. Exemplifica-se com 0 proprietário no contrato de locação e comodato, ou 0 nu-proprietário no usufruto. ► E na hora da prova? Ano: 2017 Banca: CESPE Órgão: TJ-PR Prova: Juiz Substituto

Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: Ao efetuar 0 desdobra­ mento da posse, 0 proprietário perde a condição de possuidor.

41. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 36.

Cap. II • Posse

61

Nesse cenário, a posse direta é a da pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal ou real. Já a indireta é a posse de quem aquela coisa foi havida. A percepção desses desdobramentos possessórios configura o que chama a doutrina de posses paralelas. A bipartição e o desdobramento da posse em graus "é construção doutrinária de Ihering"42, simbolizando uma espiritualização da posse. Com essa ficção jurídica, o possuidor indireto é impossibilitado de utilizar o bem, por força de relação obrigacional ou real, gratuita ou onerosa. Decerto seria inviável defender as aludidas posses paralelas sob o enfoque de Savigny. Isso porque o possuidor direto não é dotado de animus. Logo, para Savigny, sequer possuidor seria, sendo um mero detentor. De mais a mais, ter-se-ia um proprietário sem o corpus (apreensão física da coisa), o que também seria impossível em uma leitura sob a lente da teoria subjetiva. Já para Ihering, a aludida bipartição é plenamente viável. Ao entender a posse como a conduta de dono, o possuidor direto enquadra-se, como uma luva, nas lições de Ihering. Aduzem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.43 que o d esd o b ra­ mento da posse se refere a uma relação negociai com um terceiro, quando há transferência do poder de fato sobre a coisa. É um desdobramento transitório, em função da transferência de poderes dom iniais. Findo o fato gerado r de diferenciação, a posse é novamente reunificada. Assim, finda a locação, posse direta e indireta serão reunidas na titularidade do proprietário ; ao final do comodato, idem ; usufruto, idem ; penhor, idem . Em sendo um fenômeno tra n si­ tório, apenas é possível falar-se na posse direta enquanto houver a indireta, e vice -versa. ►Como este assunto foi cobrado em concurso público?

(Ano: 2016 - Banca: FAURGS - Órgão: TJ/RS - Prova: Juiz de Direito Substituto) A banca verificou como incorreta a proposição: "Considera-se possui­ dor indireto aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas." Gabarito: Foi considerada incorreta a assertiva: "A posse direta anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo 0 possuidor direto d efen d er a sua posse contra o indireto."

Mas qual 0 objetivo desta divisão?

42. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de janeiro: Forense, 2008. p. 58. 43. Op. Cit., p. 41.

62

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Divide-se para facilitar a proteção. Isso porque se um terceiro atentar contra a posse, tanto o possuidor direto como o indireto poderão sair em sua defesa, de forma isolada ou conjunta. ►Atenção!

Não será necessário formar um litisconsórcio, entre possuidor direto e indireto, para a defesa do bem. Não há de se falar em litisconsórcio ativo necessário. A ação conjunta é facultativa, sendo plenamente pos­ sível a ação isolada na defesa da posse. Logo, caso optem pela ação conjunta, 0 litisconsórcio ativo será facultativo.

Exemplifica-se com a seguinte casuística. Imaginem que Caio (locador) alugou um imóvel de sua propriedade a Matheus (locatário). Se João (terceiro) tentar vio­ lar a posse deste bem, tanto Caio, como Matheus, de forma isolada ou conjunta, poderão sair na defesa da coisa, utilizando-se de tutelas possessórias. ►Como este assunto foi cobrado em Concurso?

A banca examinadora IBFC, no concurso do Tj/PR, ano de 2014, julgou falso 0 seguinte item: "0 usufrutuário tem a posse indireta da coisa, enquanto 0 nu-proprietário tem a posse direta."

Outrossim, ambos os possuidores (direto e indireto) poderão sair na autode­ fesa do bem, segundo o desforço incontinenti, de maneira proporcional e razoável (art. 1.210, § i° , do Código Civil). ►E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: DPE-PR Prova: Defensor Público Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: 0 locatário, em que pese possuidor direto, não pode invocar proteção possessória contra terceiro esbulhador do imóvel por ele locado, pois lhe falta 0 animus domini.

Mas teria o possuidor direto direito de ajuizar ação possessória contra o indi­ reto, e vice-versa? A resposta é positiva. Aliás, o próprio art. 1.197 do Código Civil, aduz, ao final da sua redação, que pode 0 possuidor direto defender a sua posse contra 0 indireto. No particular, a doutrina vai além, informando a possibilidade, até mesmo, do inverso; ou seja: do possuidor indireto também defender a sua posse do direto. Nessa toada caminha 0 Enunciado 76 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: " 0 possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra 0 indireto, e este, contra aquele". Exemplifica-se com a seguinte casuística. Caio (locador e possuidor indireto) alugou 0 seu imóvel para João (locatário e possuidor direto). É consabido que

Cap. ll • Posse

63

Caio, por ser proprietário do bem, tem o direito de vistoriá-lo, desde que de for­ ma proporcional. Nesse cenário, se Caio começar a querer realizar vistorias d iaria­ mente, em claro abuso de direito e atos que turbem a posse de João, este poderá se valer da tutela possessória, ajuizando uma ação de manutenção da posse. ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Apesar de a herança ser transmitida ao tempo da morte do "de cujus" (princípio saisine), os herdeiros ficarão apenas com a posse indireta dos bens, pois a administração da massa hereditária será, inicialmente, do administrador provisório, que representará o espó­ lio judicial e extrajudicialmente, até ser aberto o inventário com a nomeação do inventariante, a quem incumbirá representar definiti­ vamente o espólio. REsp 777.566, rei. Min. VASCO D. GIUSTINA, 27.4.2010 3a T. (Info 432)

7.2. Composse ou compossessão Composse ou a compossessão "é a situação pela qual duas ou mais pessoas exercem, simultaneamente, poderes possessórios sobre a mesma coisa. Há, por­ tanto, um condomínio de posses"44. Neste cenário, Maria Helena Diniz45 vaticina que dois são os requisitos neces­ sários para a configuração da composse: a) Pluralidade de Sujeitos; e b) Coisa Indivisa ou em estado de indivisão. É isso 0 que diz a lei, pois, na dicção do art. 1.199 do CC, configura-se a "com­ posse quando duas ou mais pessoas exercem a posse de maneira simultânea,

sobre coisa indivisível". Com efeito, "se 0 domínio pode ser comum, também a posse pode ser pro-diviso"46, pois diversas pessoas podem, a um só tempo, possuírem 0 mesmo bem jurídico. ►Atenção!

A circunstância da composse nem de longe haveria de ser confundida com a posse direta e indireta. Isto porque na posse direta e indireta há um desdobramento da própria relação jurídica possessória, sendo que "um dos possuidores - 0 indireto - fica privado da utilização da coisa". Já na composse, todos os compossuidores poderão utilizar 0 mesmo bem, sem esta privação absoluta, concomitantemente. (GOMES, Orlando.

Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 49)-

44. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 84. 45. DINIZ, Maria Helena. Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 1154. 46. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 49.

64

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Em sendo a coisa indivisa, cada um dos compossuidores poderá exercer atos de defesa da posse do bem, desde que não excluam o exercício dos demais. As­ sim, ainda que o percentual do compossuidor, na composse, seja de 1 % (um por cento), ele poderá sair na defesa do todo perante terceiros, como se fosse pos­ suidor de toda a área. Igualmente poderá o aludido compossuidor sair na defesa do bem em face dos dem ais compossuidores. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: - FAURGS - Órgão: TJ/RS - Prova: Juiz de Direito Substituto). A questão trouxe como seu gabarito, considerando como correta, a alternativa: "Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, pode cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não ex­ cluam os dos outros compossuidores."

De outro lado, um compossuidor poderá dem andar em face do outro, se este estiver auferindo indevidas vantagens da coisa. Imagine um do compossuidores que aluga o bem em sua integralidade, recebendo todo o aluguel, em desrespeito ao direito dos dem ais compossuidores. A composse permite classificação47, a saber: a)

Composse pro indiviso ou indivisível - quando não é possível aferir, na prá­ tica, a parte de cada um. Assim, os com possuidores serão titulares de uma fração ideal.

b)

Composse pro diviso ou divisível - quando é possível atribuir, na prática, a cada um dos compossuidores, a respectiva parte. Aqui há como se verificar a fração real da posse de cada um.

Malgrado a classificação supram encionada, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.48 afirmam que a composse apenas se configuraria na comunhão pro indiviso, pois é nesta que várias pessoas exercem, simultaneamente, a posse indis­ tinta. Exemplifica-se com um rol de pessoas que titularizam a posse de um imóvel abandonado, sem a identificação de áreas específicas. Arrematam os civilistas que caso as pessoas situadas no aludido prédio aban­ donado passem a restringir as suas áreas específicas, havendo um estado de divi­ são (posse pro diviso), passaremos a verificar várias posses simultâneas, restando finda a composse. Outro exemplo interessante de composse, muito lembrado nas provas, se re­ fere aos herdeiros, compossuidores do bem até o momento da partilha. Nesse período, mesmo o sucessor titular de apenas 1 % (um por cento) do bem poderá sair na defesa do todo.

47. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 86. 48. Op. Cit., p. 107.

Cap. II • Posse

65

►Atenção!

Lembre-se de que, em regra, nas ações possessórias não se faz neces­ sária a participação do cônjuge. Tal participação é inerente às ações imobiliárias (art. 73 do CPC). Todavia, há duas hipóteses, nas quais, em uma demanda possessória será necessária a aludida participação: caso haja composse e se 0 ato possessório for por ambos praticado.

►Como o CPC dedica-se ao tema?

Eis 0 art. 73 do CPC/15: "Art. 73. 0 cônjuge necessitará do consentimento do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, sal­ vo quando casados sob 0 regime de separação absoluta de bens. § 1° Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para a ação: I - que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob 0 regime de separação absoluta de bens; II - resultante de fato que diga respei­ to a ambos os cônjuges ou de ato praticado por eles; III - fundada em dívida contraída por um dos cônjuges a bem da família; IV - que tenha por objeto 0 reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóvel de um ou de ambos os cônjuges. § 2° Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nas hipóteses de composse ou de ato por ambos praticado".

►Atenção!

Alienação, sem consentimento do companheiro, de bem imóvel ad­ quirido na constância da união estável. A invalidação da alienação de imóvel comum, fundada na falta de consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida à união estável, mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão dedaratória da exis­ tência de união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadas­ trados os bens comuns, ou da demonstração de má-fé do adquirente. REsp 1.424.275-MT, Rei. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 16.12.14. 3a T. (Info STj 554).

Voltando os olhos ao Ordenamento posto, na composse infere-se uma raríssima hipótese de litisconsórcio ativo necessário. ►Como o Superior Tribunal de Justiça analisa o tema? 0 Superior Tribunal de Justiça já afirmou que enquanto não for desfei­

ta a sociedade conjugal, a comunhão dos bens acarreta a composse, impondo-se a incidência do art. 10, § 2°, do CPC para 0 ajuizamento da ação de reintegração de posse (REsp 222.568/BA). No mesmo sentido, 0 REsp 10.521/PR. No Resp 136.922/TO, 0 mesmo Superior Tribunal de Justiça firmou ser ju­ ridicamente possível 0 ajuizamento da ação de reintegração de posse de um herdeiro em face do outro, hipótese na qual existiría, justamen­ te, a figura da compossessão.

66

7.3.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Posse Justa versus Posse Injusta. Vícios Objetivos da Posse

Ao se levar em consideração a presença de vícios exteriores, utilizando-se de critérios objetivos, seria possível a divisão da posse em justa e injusta49. Tal dependerá, afirmam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.50, da forma de aquisição da posse. 0 fundamento da distinção, portanto, é fático; não sendo relacionado ao título (causa) aquisitivo da posse; mas sim à sua forma. Sendo assim, a posse justa é aquela destituída de violência, clandestinidade ou precariedade, sendo uma "posse limpa", sem nenhuma repugna do direito. Ao contrário disso, acaso apenas um destes elementos existam - violência, clandesti­ nidade ou precariedade -, a posse será injusta. A forma de aquisição que importará para o fim de identificar se a posse é justa ou injusta. Vaticina a doutrina: "Se foi adquirida por um dos modos admitidos na lei, a posse terá esse predicado. Justa é, por conseguinte, toda posse cuja aquisi­ ção for conforme o direito"51. Fato que a justiça da posse é relativa. Assim, caso João tenha adquirido a posse de Fábio com violência, clandestinidade ou precariedade, a posse de João será injusta em relação a Fábio. Todavia, em face de outros terceiros, como Hugo, João terá posse justa. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 - Banca: FAURGS - Órgão: TJ/RS - Prova: Juiz de Direito) Foi considerada incorreta a assertiva: "É justa a posse, se 0 possuidor ignora 0 vício ou 0 obstáculo que impede a aquisição da coisa."

Mas 0 que seria uma posse violenta, clandestina ou precária? Violenta é a posse objeto de esbulho. Ocorre quando a força é empregada, havendo violência (vis absoluta) ou grave ameaça (vis compulsiva). Costuma-se fazer a analogia da violência com 0 roubo, quando há violência ou grave ameaça à pessoa. Há força bruta ou intimidação. Exemplifica-se com uma invasão violenta de uma propriedade particular, com luta, tiros. Clandestina será aquela posse obtida às escondidas, de forma oculta, sem pu­ blicidade ou ostensividade, camuflando, sorrateiramente, a aquisição. A analogia aqui é com 0 furto. Não basta a ignorância do possuidor da violação de sua posse, mas também a aquisição sorrateira de outrem. É 0 caso do cidadão que tem uma fazenda ao lado da sua e, então, desloca a cerca alguns metros para dentro da sua posse, sem 0 seu conhecimento. Ou, ainda, a invasão de uma casa de praia no período de inverno.

49. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 25. 50. Op. Cit., p. 122. 51. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 52.

Cap. II • Posse

67

►Como este assunto foi cobrado em concurso?

A banca examinadora CESPE, no concurso para Promotor de Justiça MPE-AC, de 2014, julgou verdadeira a seguinte assertiva: "Caracteriza-se como clandestina a posse adquirida via processo de ocultamento em relação àquele contra quem é praticado 0 apossamento, embora possa ser ele público para os demais. Por tal razão, a clandestinidade da posse é considerada defeito relativo."

Tanto a posse violenta, como a clandestina se caracterizam pelo fato de cons­ tituírem vícios originários de aquisição. ►Atenção!

É interessante compreender este dispositivo por meio de uma interpre­ tação sistêmica com 0 art. 1.208 do CC, segundo 0 qual os atos violentos e clandestinos não autorizam a aquisição da posse, "senão depois de cessar a violência ou clandestinidade". Frisa-se, como já estudado, que antes de cessada tal violência ou clandestinidade, não haveria posse, mas mera detenção. Sobre este assunto, existem dois posicionamentos: Posicionamento 1) Após um ano e um dia, por força da interpretação sistêmica dos arts. 1.208 do CC e 924 do CPC, a posse deixaria de ser injusta e passaria a ser justa (Maria Helena Diniz e Flávio Tartuce). Posicionamento 2) A cessação da injustiça, precariedade ou clandesti­ nidade deve ser analisada individualmente, ou seja, em cada situação concreta, à luz do princípio da função social da posse (Silvio de Salvo Venosa). Assim, cessada a clandestinidade ou violência, no caso con­ creto, restaria inaugurada a posse e deixar-se-ia para trás a detenção.

►Como este assunto foi cobrado em concurso público?

No concurso para Defensor Público do Estado do Paraná, prova de 2014 realizada pela UFPR, foi considerada incorreta a seguinte assertiva: "Os atos violentos ou clandestinos não autorizam a aquisição da posse, jus­ ta ou injusta, mesmo depois de cessada a prática de tais atos ilícitos".

A posse precária, por sua vez, é uma posse derivada, consequente do abuso de confiança do infrator, quem retém a coisa além do período combinado, após 0 término da relação obrigacional ou real responsável por o rig in ara posse. A analo­ gia, aqui, é com a apropriação indébita. Na origem, alguém se encontrava corretamente na posse do bem. Contudo, por abuso de confiança, não 0 restituiu quando deveria e, por derivação, trans­ formou a sua posse em injusta. Exemplifica-se: João emprestou um livro a Pedro. Restou acertado que Pedro devolvería 0 livro no dia 10. A partir do dia 11, Pedro passar a ter uma posse injusta. Outro exemplo é 0 caseiro, até então detentor do seu quarto, que se nega a sair da casa após 0 seu desligamento, passando a ser possuidor injusto.

68

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como este assunto foi cobrado em concursos públicos?

(FCC - Defensor Público - DPE - MA/2018) Fernando recebeu por como­ dato a posse de uma casa. Entretanto, Flávio, proprietário do imóvel, após alguns meses, notificou extrajudicialmente Fernando para que lhe devolvesse 0 bem. Caso Fernando recuse a restituição, em afron­ ta à boa-fé objetiva e à proteção da confiança legítima, estar-se-á diante da: a) legítima defesa da posse, tornando-a em posse de má-fé. b) interversão da posse, tornando-a em posse injusta em razão da violência. c) interversão da posse, tornando-a em posse injusta em razão da clandestinidade. d) interversão da posse, tornando-a em posse injusta em razão da precariedade. e) legítima defesa da posse, por ser a posse de boa-fé Gabarito: Letra D.

►Atenção!

Se a posse é injusta, não há, em regra, proteção jurídica àquele que se encontra nesta qualidade. Este é 0 melhor entendimento, pois se harmoniza com os princípios da eticidade e boa-fé. Contudo, há de se recordar que 0 aludido vício é inter partes, relativo, e, por isto, haveria proteção possessória do possuidor injusto, contra terceiros. Assim, se João tomou a posse, injustamente, de Maria, a posse de João, em face de Maria, é injusta, não sendo digna de tutela possessória. Caso, porém. Caio tente tomar a posse de joão, a posse deste (João), em relação a Caio, é justa, podendo João lançar mão dos institutos de proteção possessória. ►Atenção!

0 que seria a interversão, inversão ou convalidação da posse? A priori, como bem posto pelo art. 1.203 do Código Civil, a posse mante­ rá o s m e s m o s c a r a c t e r e s d a s u a a q u is iç ã o . L o go , s e n d o ju s t a o u in ju s t a ,

de boa ou má-fé, assim persistirá. Não é possível, a princípio, que 0 titular da posse, arbitrariamente, modifique a sua natureza, mediante uma simples mudança de comportamento. Malgrado a supramencionada regra, excepcionalmente será possível a convalidação da posse. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald jr. exemplificam com 0 cidadão que adquiriu a posse de forma violen­ ta e, posteriormente, compra a propriedade do bem, convalidando aquela posse. Ou, ainda, com aquele que está com a posse do bem de forma precária e, após este abuso de confiança, renova 0 contrato de comodato da coisa. Nesse sentido é possível a mudança do animus possessório, sendo alterada a causa possessionis. Ainda nos exemplos,

Cap. II • Posse

69

lembra-se do locatário, possuidor direto, que passa a não mais obe­ decer aos limites subordinados de sua posse em relação ao locador (possuidor indireto). Assim, deixa de pagar aluguel e muda a sua intenção de possuidor direto, para possuidor com animus domini. Nessa toada, afirma o Enunciado 237 do Conselho da Justiça Federal que é cabível a modificação do título da posse - interversio possessio­ n s - na hipótese em que 0 até então possuidor direto demonstra ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini.

►E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: DPE-SC Prova: Defensor Público Substituto A modificação da posse, pela denominada "interversio possessions", ocorre: Gabarito: quando uma posse exercida licitamente de forma inicial, vem a ter modificada a sua natureza, se 0 possuidor direto ma­ nifestar oposição inequívoca ao possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus dominum. Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: DPE-PR Prova: Defensor Público Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: 0 fato de 0 esbulhador ter adquirido sua posse mediante violência física inquina vício em sua posse mesmo que, posteriormente, compre 0 bem do esbulhado.

0 Código Civil apresenta importantes mecanismos de defesa àqueles que es­ tariam na posse justa, diante de situações ilícitas. Nessa toada, 0 possuidor tem 0 direito de ser mantido na sua posse, em caso de turbação, restituído na posse, no de esbulho, e ser segurado no caso de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado (art. 1.210, CC). Tais mecanismos serão adiante estudados, quando da análise das ações possessórias.

►Atenção!

Importante lembrar que posse injusta poderá ocasionar usucapião ex­ traordinária, afinal esta não exige nem 0 justo título nem a boa-fé, nas pegadas do art. 1.238 do CC.

7.4. Posse de Boa-fé versus Posse de Má-fé. Vícios Subjetivos da Posse Reza 0 Código Civil, em seu art. 1.201, que "É de boa-fé a posse, se 0 possuidor ignora 0 vício ou 0 obstáculo que im pede a aquisição da coisa". Trata-se, como se vê, de uma boa-fé subjetiva, a qual "só perde este caráter no caso e desde 0 momento em que as circunstâncias façam presumir que o pos­ suidor não ignora que possui indevidamente", a teor do art. 1.202 do Código Civil.

70

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como este assunto foi cobrado em concurso?

No tocante à posse de boa-fé, a prova para Procurador Legislativo da Câmara Municipal de São Paulo, banca FCC, ano de 2014, considerou verdadeira a assertiva a seguir: "É de boa-fé a posse, se 0 possuidor ignora 0 vício, ou 0 obstáculo que impede a aquisição da coisa". Ainda sobre esse ponto, a seleção para Técnico Judiciário, TRF y Re­ gião, banca FCC, ano de 2014, trouxe como opção correta a proposição: "a posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde 0 momento em que as circunstâncias façam presumir que 0 possuidor não ignora que possui indevidamente". Remete o tema, então, à bona fides romana, sendo interna, ligada à psique do indivíduo. Leia-se: a boa-fé em comento é subjetiva. Como lembram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.52, adota o legislador civilista, no particular, um conceito negativo de boa-fé, ao afirm ar que esta haverá pelo desconhecimento de vícios que inquinem a posse. A dúvida, por conseguinte, prem iaria a posse de boa-fé; pois na dúvida não se conhece o vício. Nesse cenário, a partir do momento em que o possuidor tem o conhecimento do vício ou obstáculo atingindo a sua posse, há transmudação desta, a qual deixa de ser de boa-fé e passa a ser de má-fé.

Em síntese: é possível notar que o Direito Civil brasileiro abraça a ideia da posse subjetivamente viciada, ao exigir uma análise do estado de consciência (elemento anímico, subjetivo), para aferir se há ou não posse de boa-fé. A conclu­ são a que se poderá chegar é a de que estamos a tratar de uma boa-fé subjetiva (estado de consciência), cujo oposto seria a má-fé. Infere-se, por conseguinte, que para a posse sair da esfera da boa-fé, e adentrar a da má-fé, não se exige notificação formal do possuidor, ou citação judicial. Objeti­ vamente que ambas - tanto a notificação como a citação - ocasionariam este cenário de má-fé. Todavia, não são requisitos necessários, bastando, aqui, o conhecimento. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Ainda sobre esse ponto, a seleção para Técnico judiciário, TRF y Re­ gião, banca FCC, ano de 2014, trouxe como opção correta a proposição: "a posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde 0 momento em que as circunstâncias façam presumir que 0 possuidor não ignora que possui indevidamente". ►Atenção!

É possível que a posse, originariamente de boa-fé, se converta, por um fato jurídico específico, em uma posse de má-fé. Um belo exemplo disto ocorre nos casos em que 0 cidadão ignorava 0 vício a impedir

52. Op. cit., p. 129.

Cap. II • Posse

71

a aquisição da coisa - configurando-se a posse de boa-fé - mas, logo após, é intimado, citado ou cientificado de que se encontra em situa­ ção irregular para com o direito. A partir de então, em permanecendo na posse, esta será de má-fé. Ademais, o Código Civil veicula uma presunção de boa-fé, ao advertir, no pará­ grafo único do art. 1.201, que "0 possuidor com justo título tem por si a presunção de boa fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção". Aqui há uma inversão de ônus probante, sendo que após a apresentação do justo título, caberá à outra parte fazer a prova da suposta má-fé. ►Atenção!

Não confunda justo título com título legítimo. Explica-se: justo título é a justa causa, 0 justo motivo, independentemente de documento especí­ fico comprobatório da posse; enquanto título legítimo é 0 documento hábil a demonstrar, por escrito, a posse. Veja-se que para a presunção relativa de boa-fé se exige 0 justo título. A este respeito existem dois importantes Enunciados em Jornadas de Direito Civil. 0 Enunciado 302: "Pode ser considerado justo título para a posse de boa-fé 0 ato jurídico capaz de transmitir a posse ad usucapionem, observado 0 disposto no art. 113 do Código Civil". E 0 Enunciado 303, assim redigido: "Considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do pos­ suidor 0 justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da pos­ se, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse". Insere-se neste cenário de justo título 0 contrato de locação, comoda­ to, cessão de direitos possessórios. É um rol bem mais amplo do que 0 justo título de propriedade para fins de usucapião ordinária, 0 qual exige, em tese, um título apto à transferência proprietária. Obviamente que a presunção legislativa da boa-fé da posse, neste contexto, é relativa; ju ris tantum. Logo, admite prova em contrário. Assim sendo, se 0 referido título for judicialmente invalidado, por exemplo, por algum vício de forma, a pre­ sunção de boa-fé em comento será afastada. A posse de boa-fé poderá ser divida em53: a)

Posse de boa-fé real: ocorrida no caso em que 0 possuidor constrói a sua convicção em dados objetivos e evidentes, de maneira que "nenhuma dúvida pode ser suscitada quanto à legitimidade de sua aquisição".

b)

Posse de boa-fé presumida: decorre do fato de 0 possuidor ter justo título, daí por que esta presunção será relativa (juris tantum), admitindo, pois, prova em sentido contrário.

53. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 54.

72

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Mas por que é tão importante esta classificação? É importante ser conhecedor de estar, ou não, o possuidor de boa-fé para o estudo de suas consequências. Estar, ou não, de boa-fé ocasiona importantes efei­ tos práticos, os quais passam a ser estudados.

7.4.1. Consequências da Boa-Fé e da Má-Fé da Posse (Efeitos da Posse) Toda a doutrina admite efeitos à posse54. Os tratadistas dividem -se, basicamen­ te, em duas correntes: a)

Os pluralistas, os quais admitem vários efeitos à posse;

b)

Os partidários da unicidade, que admite apenas 0 efeito da presunção da propriedade. Hoje, sem dúvidas, os pluralistas imperam como maioria na doutrina.

0 principal efeito da posse seria a presunção da propriedade, havendo uma sé­ rie de outros relevantes efeitos, a saber: direito aos interditos, direito à percepção dos frutos, direito à indenização das benfeitorias úteis e necessárias, direito de re­ tenção pelo valor das benfeitorias voluptuárias, direito a usucapir a coisa possuída, direito à indenização dos prejuízos sofridos com a turbação ou o esbulho. Todavia, no que tange à produção de boa parte destes efeitos, 0 fiel da balança seria a boa-fé. Isso, porque, se o possuidor estiver de má-fé, não obterá do direito alguns dos importantes efeitos da relação possessória. Para ilustrar o dito, observe que o possuidor de boa-fé terá direito subjetivo à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, e o levantamento das ben­ feitorias voluptuárias. Por estar de boa-fé, este possuidor terá uma prerrogativa especial; qual seja: o direito de retenção do bem principal pelo valo r das ben­ feitorias necessárias ou úteis, enquanto o devedor não lhe quitar 0 devido. Por outro lado, 0 possuidor de má-fé terá apenas a indenização das benfeitorias necessárias, sem retenção. Sendo assim, passa-se ao estudo das consequências da boa-fé e da má-fé nos efeitos da posse, analisando quanto à percepção dos frutos, deterioração e indenização das benfeitorias. Registra-se que os dem ais efeitos da posse serão es­ tudados em tópicos apartados, a exemplo do direcionado às ações possessórias.

a) Quanto à Percepção dos Frutos Frutos são bens acessórios, sendo utilidades renováveis que a coisa produz periodicamente. Como tal, se classificam:

I)

Quanto à sua natureza:



Naturais - Gerados pelo bem principal sem a necessidade da direta in­ tervenção humana. São gerados sem 0 esforço humano. São os frutos de uma plantação, a exemplo de laranjas, tomates, cacau etc.

54. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 77.

Cap. II . Posse



73

Industriais - Decorrentes da atividade industrial humana. São aqueles que resultam de linhas de produção, como eletrodomésticos, bens ma­ nufaturados etc.



Civis ou Rendimentos - Utilidades que a coisa periodicamente produz, mas não resultam da natureza, como aluguéis, rendimentos de aplicações etc.

II)

Quanto à ligação com a coisa principal:



Colhidos ou Percebidos - Frutos já destacados da coisa principal, mas ainda existentes;



Pendentes - São aqueles que ainda se encontram ligados à coisa princi­ pal, não tendo sido, portanto, destacados;



Percipiendos - Aqueles que deveríam ter sido colhidos, mas não o foram;



Estantes - Frutos já destacados que se encontram estocados e arm aze­ nados para a venda;



Consumidos - Que não mais existem.

Os frutos pertencem ao proprietário do bem ou "a quem ele transferiu o direito de fruí-la", haja vista que o acessório há de seguir a sorte do bem principal (Prin­ cípio da Gravitação Jurídica ou Universal, art. 92 do CC)55. A percepção dos frutos, em sede possessória, estará diretamente relacionada à boa ou à má-fé do possuidor. Nesta senda, privilegia-se 0 possuidor de boa-fé, por razões intuitivas. Os frutos percebidos pelo possuidor de boa-fé a este pertencerão (art. 1.214, CC). Os pendentes e antecipadamente colhidos, ao tempo em que cessar a boa-fé, serão devolvidos, após 0 abatimento das despesas eventualmente ocorridas para 0 seu custeio (parágrafo único, art. 1.214, CC). ► E na hora da prova?

(Cespe - Juiz de Direito - TJ - SC/2019) Para que seja caracterizada a posse de boa-fé, 0 Código Civil determina que 0 possuidor a) apresente documento escrito de compra e venda. b) tenha a posse por mais de um ano e um dia sem conhecimento de vício. c) aja com ânimo de dono e sem oposição. d) tenha adquirido a posse de quem se encontrava na posse de fato. e) ignore o vício impedidor da aquisição do bem. Gabarito: Letra E. Detalhe importante a este respeito é que os frutos naturais e industriais se reputam colhidos e percebidos, logo que são separados. Já os civis, reputam-se percebidos dia por dia (art. 1.215, CC).

55. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 79.

74

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Nada disso ocorrerá na hipótese de má-fé. Este possuidor malicioso responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber (percipiendos), desde o momento em que se constituiu de má-fé. Destarte, por equidade, terá tal possuidor o direito às despesas da produção e custeio (art. 1.216, CC), para que não haja locupletamento ilícito daquele que percebeu os frutos sem nada custear.

b) Quanto à Perda ou Deterioração da Coisa 0 possuidor de boa-fé apenas responderá pela perda ou deterioração que tiver dado causa. Assim, responderá, para maioria da doutrina, de m aneira sub­ jetiva (dolo ou culpa). ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FMP Concursos Órgão: MPE-RO Prova: Promotor de Justiça Substituto Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: 0 possuidor de boa-fé responde pela perda ou deterioração da coisa a que não der causa.

Já 0 possuidor de má-fé responderá pela perda ou deterioração, ainda que acidentais, falando-se em uma responsabilidade civil objetiva. Há, apenas, uma hipótese na qual 0 possuidor de má-fé não responderá, sendo a sua única excludente: se vier a provar que a perda de igual modo se teria dado, ainda que 0 bem estivesse na posse do reivindicante. ►Atenção!

Curioso perceber que tal exdudente é muito próxima daquela aplicada ao devedor em mora, no direito obrigacional, 0 qual tem responsabilidade, igualmente objetiva, pela perda da coisa. Aqui apenas terá como exdu­ dente a isenção de culpa, ou provar que 0 evento aconteceria ainda que 0 bem estivesse na posse do reivindicante (art. 399 do CC). A razão do para­ lelo é dara: aquele que está em mora, decerto, é um possuidor de má-fé. ► E na hora da prova?

(Cespe - Juiz de Direito - TJ - PR/2019) Com relação aos efeitos da posse, a) o possuidor de boa-fé responde, em regra, pela perda ou deterio­ ração da coisa, independentemente de lhe ter ou não dado causa. b) 0 possuidor de má-fé responde pela perda e deterioração da coi­ sa, ainda que acidentais, salvo se comprovar que elas ocorreríam mesmo que ele não estivesse no exercício da posse. c) 0 possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração da coisa somente se comprovar que elas ocorreríam mesmo que ele não estivesse no exercício da posse. d) 0 possuidor de má-fé responde pela perda ou deterioração da coisa, salvo se acidentais. Gabarito: Letra B.

Cap. II • Posse

c)

75

Quanto às Benfeitorias Realizadas na Coisa

Benfeitorias são bens acessórios, consistindo, nas palavras de San Tiago Dan­ tas56, em tudo aquilo que acrescentamos a um bem móvel ou imóvel para melhorá-lo, para lhe dar nova utilidade ou aprazimento. Nas pegadas do art. 1.273 do Código Civil português, afirma a legislação na­ cional que são benfeitorias os acréscimos (e não as despesas) feitos em um bem objetivando conservá-lo, melhorá-lo ou embelezá-lo. Nessa ótica, as benfeitorias possuem, quanto à coisa, 0 propósito de:



Conservá-la: são as benfeitorias necessárias, como a reforma de uma viga, tubulação etc.



Melhorá-la: são as benfeitorias úteis, que aumentam e facilitam 0 uso do bem, como a abertura do vão de entrada da casa ou a construção de uma piscina em uma academia para que, além da ginástica, haja aulas de natação.



Embelezá-la: são as benfeitorias voluptuárias, visando 0 mero deleite ou recreio, como uma escultura talhada na parede de pedra do imóvel, um chafariz, um painel de granito em uma casa, uma piscina em uma área de lazer etc. ►Atenção!

Reza 0 art. 97 do Código Civil que não são benfeitorias os melhora­ mentos ou acréscimos ocorridos sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor, de modo que não se indenizará melhoramen­ tos senão os oriundos do trabalho humano, artificiais. Destarte, não é possível falar-se em benfeitorias decorrentes da natureza.

Se a lei protege 0 possuidor de boa-fé, este terá direito à indenização e retenção das benfeitorias necessárias e úteis. Quanto às vo luptuárias, apenas poderá levantá-las quando possível (sem prejuízo da coisa). Já 0 possuidor de má-fé somente será ressarcido nas benfeitorias necessárias, sem direito à retenção. Estar de boa ou má-fé será importante, até mesmo no que diz respeito ao va­ lor da indenização. 0 possuidor de boa-fé sempre será indenizado pelo valor atual da benfeitoria. Já no que tange ao possuidor de má-fé, 0 reivindicante poderá escolher entre 0 seu valor atual ou 0 de custo (CC, art. 1.222)

56. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil, p. 198.

76

Direito Civil • Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Ano: 2018 Banca: FUMARC Órgão: PC-MG Prova: FUMARC - 2018 - PC-MG Delegado de Polícia Substituto A respeito da posse, é CORRETO afirmar: Gabarito: É assegurado ao possuidor de boa-fé 0 direito à indenização pe­ las benfeitorias necessárias e úteis. Quanto às voluptuárias, estas, se não forem pagas, poderão ser levantadas, desde que não prejudiquem a coisa.

►Atenção!

A regra, no particular, sofre variação no específico caso de locações de imóveis urbanos. 0 art. 35 da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91), 0 qual tem mera incidência

supletiva ou dispositiva (no silêncio das partes), afirma que 0 locatário terá direito à indenização e retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis autorizadas. Já em relação às voluptuárias, 0 locatário poderá levantá-las, desde que conservada a estrutura da coisa principal. Fazendo um paralelo com 0 possuidor de boa-fé, infere-se que, na locação, as benfeitorias úteis haverão de ser autorizadas. Repisa-se, porém, que a norma relativa ao inquilinato é supletiva, devendo ser aplicado 0 regramento do contrato de locação, acaso existente. Nesta linha, em sendo 0 contrato de locação paritário, é ple­ namente possível, até mesmo, a completa renúncia à indenização por qualquer modalidade de benfeitoria, na forma da Súmula 335 do STJ. Tal não se dará, porém, no contrato por adesão, haja vista a nulidade de renúncia antecipada a direito neste tipo de avença (art. 424 do CC). Nessa senda, vaticina 0 Enunciado 433 da V Jornada em Direito Civil do Conselho da Justiça Federal que a cláusula de renúncia antecipada ao direito de indenização e retenção por benfeitorias necessárias é nula em contrato de locação de imóvel urbano feito nos moldes do contrato de adesão. Este é 0 mesmo raciocínio aplicado à nulidade da renúncia ao beneficio de ordem, por parte do fiador, na locação por adesão, a qual é nula. Afirma 0 Enunciado 364 da IV Jornada de Direito Civil que no contrato de fiança é nula a cláusula de renúncia antecipada ao benefício de or­ d e m q u a n d o in s e r id a e m c o n t r a t o d e a d e s ã o . A b a s e le g a l é o m e s m o

art. 424 do Código Civil. Nesta mesma linha de pensamento caminha a doutrina de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald Jr, ao afirmar que: será inválida cláusula inserida em contrato de adesão pela qual 0 aderente renuncia à proteção do artigo 424 do Código Civil (DE FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Contra­ tos. 3a ed. Salvador: JusPodivm. p. 306). Conforme parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil, cuida-se de preceito de ordem pública. Uma cláusula que implica renúncia antecipada do aderente a um direito subjetivo será certamente lesiva a função social interna do contrato (art. 421, CC) e ao dever anexo de proteção (art. 422, CC), ínsitos a qualquer relação contratual.

Cap. II . Posse

77

►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto?

Analisando o tema indenização e retenção de benfeitorias em bens públicos irregularmente ocupados, firmou o Superior Tribunal de justiça que: Inexistência de direito a indenização pelas acessões e de reten­ ção pelas benfeitorias em bem público irregularmente ocupado. Quando irregularmente ocupado o bem público, não há que se falar em direito de retenção pelas benfeitorias realizadas, tampouco em direito a indenização pelas acessões, ainda que as benfeitorias tenham sido realizadas de boa-fé. AgRgno REsp 1.470.182-RN, Rei. Min. Mauro Campbell Marques, 4.11.14. 2° T. (Info 551) (Ano: 2016 - Banca: CESPE - Órgão: TJ/DFT - Prova: Juiz de Direito Substi­ tuto). Foi considerada incorreta a alternativa: "0 ocupante irregular de bem público tem direito de retenção pelas benfeitorias realizadas se provar que foram feitas de boa-fé."

7.5.

Posse Nova e Posse Velha

A posse nova, recorda Carlos Roberto Gonçalves57, é aquela que data de me­ nos de um ano e um dia; enquanto a posse velha é aquela sup erio r a um ano e um dia. A importância desta distinção remete à possibilidade de consolidação de uma situação de fato, com 0 passar 0 tempo, consoante a teoria do fato consumado. Nesta senda, após um ano e um dia, mesmo que a posse tenha sido adquirida de forma violenta, clandestina ou precária, é possível falar-se em sua convalidação.

7.6. Posse Natural e Posse Civil ou jurídica A posse natural é aquela que se constitui pelo exercício de poderes de fato so­ bre a coisa, havendo efetiva apreensão material. Já a civil ou jurídica é a adquirida por força da lei, sem, necessariamente, haver uma apreensão material da coisa, a exemplo do constituto possessório, já estudado. Nessa senda, a transmissão da posse civil dar-se-á pela mera transmissão do título, por meio de uma tradição.

7.7.

Posse ad interdicta e Posse ad usucapionem

Posse ad interdicta é aquela apta a ser defendida pelos interditos possessórios (ações possessórias), mas que não leva à usucapião. Exemplifica-se com a posse do locatário. Este, em sendo possuidor direto, poderá lançar mão dos interditos; porém não poderá usucapir a coisa. Já a posse ad usucapionem remete à posse passível de ocasionar a aquisição proprietária, mediante a usucapião. Como se verá em capítulo específico sobre

57. 0p. Cit., p. 101.

78

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

o tema, esta posse, para fins de usucapião, haverá de ser mansa, pacífica e por um dado lapso temporal. Sobre 0 tema, ilustre-se, entendeu 0 STJ que a posse decorrente do contrato de promessa de compra e venda de imóvel não induz usucapião, exceto se verificada a conversão da posse não própria em própria, momento a partir do qual o possuidor passa a se comportar como se dono fosse58. ►C om o e s te a s s u n to foi c o b ra d o em concurso?

(Ano: 2016 - Banca: CESPE - Órgão: TJ/DFT - Prova: Juiz de Direito Subs­ tituto). Foi considerada incorreta a proposição: "A posse ad interdicta dá en­ sejo à prescrição aquisitiva originária pela usucapião." Ano: 2018 Banca: CESPE Órgão: PGM - Manaus - AM Prova: CESPE - 2018 PGM - Manaus - AM - Procurador do Município A respeito da propriedade, da posse e das preferências e privilégios creditórios, julgue 0 item subsequente. 0 ordenamento jurídico ora vigente admite a possibilidade de conversão da detenção em posse, a depender da modificação nas circunstâncias de fato que vinculem determinada pessoa à coisa. Gabarito: Certo.

8.

A TUTELA DINÂMICA OU JURISDICIONAL DA POSSE. AÇÕES POSSESSÓRIAS

A tutela dinâm ica ou jurisdicional da posse é percebida, no ordenamento jurídico nacional, segundo um sistema híbrido, tanto processual, como material, garantindo ao titular pretensões e ações; estas últimas denom inadas de inter­ ditos. Trata-se de um dos importantes efeitos da posse, como recorda Maria Helena Diniz59. Tão relevante é esta proteção que o sistema jurídico também disciplina a extra­ ordinária autodefesa da posse, ou seja, o desforço incontinenti. Por tudo isso, 0 tema tutela da posse pode ser visitado tanto de maneira am­ pla, como estrita. Ao falarmos da proteção strirto sensu da posse, estamos a mencionar o des­ forço incontinenti e as ações ou interditos possessórios striao sensu (reintegração, manutenção e interdito proibitório - arts. 1.210 do CC e 560 do CPC). Caso, porém, esteja-se a se referir a uma tutela ampla da posse (lato sensu), além dos remédios

58. Aglnt no REsp i23282i/RS,Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, Julgado em 2i/o9/20i7,DJE 20/10/2017. Aglnt no AREsp 987i67/SP,Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, Julgado em i 6/os/ 2017,DJE 22/05/2017. Aglnt no REsp i520297/RS,Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TER­ CEIRA TURMAjulgado em 23/o8/20i6,DJE 01/09/2016. AgRg no AREsp o67499/RS,Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, Julgado em 12/ o6/2012,DJE 21/06/2012. REsp i43976/GO,Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, Julgado em o6/o4/2004,DJ 14/06/2004. REsp 22020o/SP,Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, Julgado em i6/09/2003,DJ 20/10/2003. 59. Op. Cit., p. 82.

Cap. II . Posse

79

supram encionados, a proteção da posse alcançará a imissão de posse, a ação de dano infecto e os embargos de terceiro. ►Como o Novo Código de Processo Civil (CPC/15) regula o tema? 0 art. 560 do CPC/15 tem a seguinte redação: "0 possuidor tem direito

a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado em caso de esbulho". Nesse sentido, a legislação processual se harmoniza com 0 Código Civil, que em seu art. 1.210 também assegura os direitos de ma­ nutenção e de reintegração da posse. Ouanto ao esbulho, recorde-se que 0 mesmo se enquadra também como tipo penal. De mais a mais, recorda-se que para fins de proteção da posse não se demanda a demonstração de nenhum vício objetivo da posse; muito menos a má-fé do esbulhador. ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCV Órgão: MPE-AL Prova: FCV - 2018 - MPE-AL - Analista do Ministério Público - Área Jurídica Luís e Alexandre são proprietários de terrenos vizinhos. Aproveitando-se da ausência de Alexandre, que foi residir no exterior, Luís, um dia após a partida de Alexandre, invade parte do imóvel vizinho e lá passa a cultivar verduras. Após nove meses, Alexandre retorna de férias ao Brasil e encontra 0 terreno invadido. Ouanto à retomada do imóvel, Alexandre Gabarito: deverá ajuizar ação possessória própria e ressarcir as des­ pesas do cultivo. Ano: 2017 Banca: CESPE Órgão: TJ-PR Prova: Juiz Substituto Foi considerada correta a seguinte assertiva: Para fins de proteção possessória, deve ser demonstrado algum vício objetivo da posse, não sendo imprescindível a constatação de má-fé do esbulhador.

Com efeito, pode-se sustentar que os embargos de terceiro, a imissão de posse e a ação de dano infecto são, de rigor, ações petitórias: demandas cuja finalidade seria mesmo a defesa da propriedade. Mas, tais ações, acabam, em última análi­ se, tutelando a posse do proprietário, posto ser aquela (posse) 0 retrato externo desta (propriedade). Nessa senda, se dedicará este capítulo a estudar tanto a autotutela da pos­ se, como as ações possessórias em sentido estrito e as ações possessórias em sentido amplo.

8.1.

Uma Medida Prévia: A Legítima Defesa da Posse e o Desforço incontinenti

0 Direito Civil permite àquele que sofreu lesão à posse que, "por sua própria força", pratique atos em legítima defesa, "contanto que 0 faça logo" e não indo "além do indispensável à manutenção ou restituição da posse" (art. 1.210, § i°, do CC).

80

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Deste preceito normativo se extrai a noção do destorço incontinenti. É a prer­ rogativa do possuidor manso e pacífico, que está a sofrer dano possessório, de agir imediatamente, desde que de forma proporcional, sem necessitar da atuação judicial, para repelir a lesão. A legítima defesa da posse e o desforço in continente são "formas de autotutela, autodefesa ou de defesa direta, independentemente de ação judicial, cabíveis ao possuidor direto ou indireto contra as agressões de terceiro"60. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Ano: 2018 Banca: FCV Órgão: TJ-SC Prova: FGV - 2018 - TJ-SC - Analista Jurídico Gabriel era empregado caseiro do imóvel de praia de José Luiz, locali­ zado no Balneário Camboriú. Após 0 falecimento de José Luiz, nenhum familiar se apresenta a Gabriel, que, embora demitido pelo inventariante do espólio de José Luiz, mantém-se no imóvel, cuidando dele como se seu fosse. Após dois anos do falecimento do ex-empregador e a realização de diversas benfeitorias para a manutenção do imóvel às suas expensas, Gabriel é surpreendido, ao retornar de um rápido pas­ seio, com a ocupação do imóvel por sobrinhos de José Luiz, dizendo-se proprietários do bem. Diante dessa situação, Gabriel: Gabarito: "pode se valer do imediato desforço possessório moderado para reaver, por autotutela, a posse"..

Infere-se que assim como a legítima defesa penal, a possessória há de ser

imediata. Mas o que seria este imediatismo? 0 Enunciado 495 / da V Jornada em Direito Civil, nos informa que "a expressão contanto que o faça logo deve ser entendida restritivamente, apenas como a rea­ ção imediata ao fato do esbulho ou da turbação, cabendo ao possuidor recorrer à via jurisdicional nas dem ais hipóteses".

Logo, aduz Maria Helena Diniz61, imediato quer significar logo após o conheci­ mento do fato, e não da ocorrência deste. Isso, porque, quando da ocorrência da lesão, desconhecida do possuidor, sequer houve aquisição da posse por outrem, mas mera detenção. A posse, efetivamente, apenas restará configurada quando cessada a violência ou clandestinidade; até lá haverá mera detenção - inteligência dos arts. 1.208 e 1.200 do Código Civil. D'outra banda, a defesa da posse há de ser proporcional, razoável, sendo vedado 0 excesso, 0 qual será combatido pelo abuso de direito. Por conseguinte, se 0 possuidor for além do razoável na defesa da sua posse, responderá objeti­ vamente (independentemente de culpa) pelos danos ocasionados, na ótica do art. 187 do Código Civil.

60. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 76. 61. Op. Cit., p. 91.

Cap. II • Posse

81

►Atenção!

A doutrina admite interpretação extensiva à expressão "por sua própria força", para permitir que o possuidor se utilize de empregados, ou prepostos, na sua autodefesa, de modo que terceiros também poderão lhe auxiliar. Obviamente, em relação a estes terceiros, o possuidor respon­ derá, objetivamente, pelos seus atos (CC, arts. 932 e 933). Justo por isso que 0 caseiro (detentor) poderá sair na defesa da posse, no interesse do possuidor. Tal já fora afirmado, neste capítulo, quando do estudo da detenção, tendo importante notícia doutrinária no Enunciado 493, da V Jornada em Direito Civil, 0 qual informa que "0 detentor pode, no interesse do possuidor, exercer a autodefesa do bem sob seu poder". ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Sobre 0 tema, a prova para seleção de Delegado de Polícia/SP, banca examinadora VUNESP, ano de 2014, trouxe a seguinte afirmativa com 0 gabarito da questão: "Admite-se que 0 possuidor turbado ou esbu­ lhado proteja sua posse por força própria, desde que a reação seja imediata e não exceda 0 indispensável".

8.2. As Possessórias em Sentido Estrito: Reintegração da Posse, Manutenção da Posse e Interdito Proibitório As ações possessórias, em sentido estrito, englobam três medidas, quais sejam: a)

Reintegração da Posse (Ação Espoliativa), na hipótese de esbulho possessório (perda da posse). 0 escopo aqui, afirma Maria Helena Diniz62, é recuperar a posse perdida por violência, clandestinidade ou precariedade, bem como buscar tutela indenizatória por perdas e danos;

b)

Manutenção da Posse, na casuística de turbação possessória. Turbação, na doutrina de Orlando Gomes63, consiste em todo ato que embaraça 0 livre exer­ cício da posse; haja, ou não, dano; tenha, ou não, 0 turbador, melhor direito sobre a coisa. Nesse cenário, 0 possuidor se valerá da ação de manutenção, com 0 escopo de manter a sua posse, receber a indenização pelos danos sofri­ dos e fixar penalização para a reincidência, como recorda Maria Helena Diniz64.

c)

Interdito Proibitório, na hipótese de ameaça à posse, por fundado receio, de esbulho ou turbação. 0 objetivo é obter um mandado judicial para se asse­ gurar da violência iminente, proibindo o réu de praticar o ato, sob pena do pagamento de multa pecuniária, inclusive perdas e danos, em face do lesado, ou, até mesmo, de um terceiro, a exemplo de uma instituição filantrópica.

62. Op. Cit., p. 87. 63. Op. Cit., p. 91. 64. Op. Cit., p. 84.

82

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como este assunto foi cobrado em concurso?

Ano: 2017 Banca: MPE-RS Órgão: MPE-RS Prova: Promotor de Justiça Reaplicação Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: Luís tem a posse de um terreno de 830 m2 (oitocentos e trinta metros quadrados). Certo dia, a área de 310 m2 (trezentos e dez metros quadrados) desse terreno foi invadida. A ação cabível no caso é a de manutenção de posse.

Das mencionadas tutelas possessórias em sentido estrito, vê-se que há duas hipóteses de tutelas repressivas (reintegração e manutenção) e uma hipótese de natureza preventiva (interdito). Vamos iniciar abordando a ação de reintegração da posse, cabível na casu­ ística de perda possessória (esbulho). Nesta terá o autor da demanda o ônus de provar a sua posse, o esbulho praticado pelo réu; a data do esbulho e a sua permanência (CPC, art. 561). Esta ação, também denominada de Espoliativa, objetiva a recuperação da coi­ sa, ante a sua privação, decorrente de ato violento, clandestino ou precário. A pretensão poderá ser manejada tanto contra 0 autor do esbulho, como em face de um terceiro "que recebeu a coisa sabendo que era esbulhada"65. ►Atenção!

0 ordenamento jurídico apresenta uma excepcional hipótese de cabi­ mento de ação reintegratória na qual 0 autor da demanda não tenha posse prévia. Trata-se da ação reintegratória contra 0 arrendatário ina­ dimplente, na forma do art. 90 da Lei 10.188/01. Sobre essa exceção, em 29 de abril de 2014, a 3a Turma do Superior Tribunal de Justiça afirmou que 0 não cumprimento dos termos contratuais, configuraria 0 esbulho possessório, por parte do arrendatário. No caso dos autos, admitiu-se a ação de reintegração de posse, mesmo reconhecendo 0 fato de a parte autora da medida judicial jamais ter sido possuidora do imóvel, ante a excepcional previsão normativa. Arrematou 0 Tribunal da Cidadania que "A reintegração de posse, se­ gundo a tradição jurídica e doutrinária, pressupõe a posse anterior com o requisito para deferim ento do p ed id o. Contudo, o artigo 9° da Lei

10.188 é uma exceção ao quadro geral das ações possessórias, criado pelos Códigos Civil e de Processo Civil" (Recurso Especial n° 1333892). Vista a ação de reintegração, passa a ser enfrentada a ação de manutenção

da posse.

65. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 101.

Cap. II • Posse

83

Na forma do art. 555 do CPC, a ação de manutenção de posse autoriza ao autor 0 combate da turbação contra si e, simultaneamente, postular perdas e danos decorrentes disso, bem como as astreintes, na hipótese de reincidência. ►Como o CPC se dedica ao tema? 0 art. 555 do CPC permite 0 autor do pedido possessório requerer

perdas e danos, inclusive indenização dos frutos em decorrência da ilegalidade da posse do réu. Acresceu a novel legislação processual um parágrafo único composto por dois incisos autorizando ao autor da ação possessória a também requerer "medida necessária e adequada para evitar nova turbação ou esbulho", ou ainda para "cumprir-se a tutela provisória ou final". Sem dúvida alguma a norma processual foi aperfeiçoada a fim de prestigiar 0 resultado útil e prático do processo, fortalecendo as técnicas das tutelas jurisdicionais específicas.

É a turbação "todo ato que embaraça 0 livre exercício da posse"66, de forma real, concreta e efetiva. 0 ilustre civilista traz hipóteses de turbação, tais como corte de árvores, ou a implantação de marcos desautorizados. Havendo turbação da pos­ se, a ação cabível é de manutenção. Nela terá 0 autor da demanda 0 ônus de provar a sua posse, a turbação praticada pelo réu, a data da turbação e sua permanência. ►Atenção!

A Lei 9.099/95 autoriza, em seu art. 3°, que ações possessórias envol­ vendo bens não excedentes a quarenta salários mínimos sejam ajui­ zadas perante os juizados Especiais Cíveis, importando em relevante notícia de facilitação de acesso à Justiça mediante procedimento sim­ plificado, oral e célere.

Estudadas a reintegração e a manutenção da posse, é hora de enfrentarmos 0

interdito proibitório. 0 possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na sua posse, poderá requer ao juiz que, mediante mandado proibitório, comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida 0 preceito. É 0 que disciplina 0 art. 567 do CPC. ►Como CPC/15 se dedica ao tema? 0 art. 567 do CPC tem a seguinte redação: "0 possuidor direto ou indi­ reto que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá reque­ rer ao juiz que 0 segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório em que se comine ao réu determinada pena pe­ cuniária caso transgrida 0 preceito".

66. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 100.

84

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Verifica-se, portanto, que o interdito é uma medida preventiva, cujo escopo é evitar uma possível turbação ou esbulho. No mais, aplica-se ao interdito proibitório 0 disposto para a reintegração e a manutenção de posse. ►Atenção!

Nos termos da Súmula 228 do Superior Tribunal de justiça "É inadmissí­ vel 0 interdito proibitório para a proteção do direito autoral".

8.3. Notícias Processuais sobre as Possessórias em Sentido Estrito Verificadas as ações possessórias em sentido estrito, é hora de conferir algu­ mas importantes notícias processuais sobre elas.

a)

Princípio da Fungibilidade das Tutelas Possessórias

Os interditos possessórios são tão relevantes para 0 direito processual civil que a propositura de uma ação possessória, ao revés de outra, não obstará ao juiz que conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela, cujos requisitos estejam provados, na forma do art. 554 do CPC. É 0 princípio da

fungibilidade das possessórias. ►Como o CPC se dedica ao tema? 0 art. 554 do CPC tratou do tema e contemplou grandes inovações.

0 caput é basicamente 0 mesmo com apenas uma alteração: a mu­ dança da palavra "requisitos" por "pressupostos". Portanto, 0 novo texto assim ficou redigido: "A propositura de uma ação possessória em vez da outra não obstará a que 0 juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados". Mas, sem dúvidas, a grande inovação está por conta das ações possessórias "em que figura no polo passivo grande número de pessoas", até então não disciplinadas na legislação processual e que surgem no § 1° novel art. 554, hipótese na qual "serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econô­ mica, da Defensoria Pública". Afirma 0 CPC que, neste caso, 0 oficial de Justiça procurará os ocupan­ tes no local "por uma vez, citando-se por edital os que não forem encon­ trados", na forma do § 2°. Ao final, a norma afirma que 0 magistrado deverá determinar que se dê ampla publicidade da existência da ação e dos prazos de defesa podendo, para tanto, "valer-se de anúncios em jornal ou rádio locais, da publicação de cartazes na região do conflito e de outros meios", conforme § 3°. Trata-se do que a doutrina vem chamando de ação possessória multitudinária.

0 princípio da inércia da jurisdição é relativizado para os casos das ações possessórias.

Cap. II • Posse

85

Tal noção de fungibilidade pauta-se na premissa de que a situação fática, nas questões possessórias, é muito dinâmica, merecendo do Poder Judiciário uma res­ posta igualmente dinâmica e fungível. Para clarificar o dito, exemplifica-se. Imagine que um grupo de pessoas marcha em direção a uma cidade do inte­ rior e, com gritos de ordem, afirma que irá invadir a fazenda de Pablo. Ora, neste momento, há uma ameaça, sendo possível a Pablo o uso da tutela preventiva da posse (interdito proibitório), visando a cominação de multa (mandato proibitório) para a hipótese de invasão. Todavia, antes da decisão judicial, ou até mesmo com a sua prolação, o aludido grupo monta acampamento à frente da fazenda e passa a im pedir o ingresso e a saída de pessoas da propriedade, atrapalhando o desenvolvimento de atividades pecuárias. Neste momento infere-se que a ameaça evoluiu para uma turbação. Aqui não será necessário a Pablo ajuizar uma nova ação, bastando que, mediante simples petição nos autos do interdito e com base na fungibilidade, requeira a manutenção da posse. 0 mesmo aconteceria se houvesse um esbulho. Mais uma vez, mediante sim­ ples petição, Pablo poderia, com fulcro na fungibilidade, requisitar a tutela da reintegração, nos mesmos autos.

0 mesmo raciocínio seria aplicado às situações inversas, como um esbulho que se torne uma turbação.

b) Ação de Força Nova versus Ação de Força Velha Outra relevante informação diz respeito ao procedimento dos interditos possessórios. Isso porque, a depender do caso concreto, a hipótese poderá ser de rito comum ordinário ou rito especial. Explica-se. Na forma do art. 558 do CPC "Regem 0 procedimento de manutenção e de reintegração de posse as normas da Seção II deste Capítulo quando a ação for pro­ posta dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho afirmado na petição inicial". Na prática, a situação é sim ples. Basta verificar se entre a data da lesão possessória e 0 dia do ajuizam ento da dem anda há mais, ou menos, de um ano e um dia. Se a resposta for menos de um ano e um dia, o procedimento será especial (força nova). Contudo, se houver mais de um ano e um dia entre a data da lesão possessória e 0 ajuizam ento da ação, 0 procedimento será comum ordinário (força velha). Nessas condições, algumas consequências procedimentais ocorrerão. Se 0 pro­ cedimento for comum ordinário teremos, em tese, a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, reconvenção, audiência de conciliação, instrução e julgamento.

86

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 Enunciado 238 da III Jornada em Direito Civil é neste sentido: "Ainda que a ação possessória seja intentada além de ano e dia da turbação ou esbulho, e, em razão disso, tenha seu trâmite regido pelo procedimento ordinário (CPC, art. 924), nada impede que 0 juiz conceda a tutela possessória liminarmente, mediante an­ tecipação de tutela, desde que presentes os requisitos autorizadores do art. 273, I ou II, bem como aqueles previstos no art. 461-A e §§, todos do CPC". A observa­ ção crítica que tecemos sobre 0 enunciado ora comentado é a de que 0 texto foi redigido sob a égide do antigo CPC, de modo que os artigos ali referidos são do CPC de 1973.

►Como o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo a questão?

É pacífico 0 entendimento no Superior Tribunal de Justiça do cabimento da antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional para 0 caso de ação possessória por força velha, submetida ao procedimento comum ordi­ nário. Neste sentido 0 REsp 555.027. ►Como o CPC/15 se dedica ao tema?

A tutela provisória é tratada no CPC nos arts. 294 e seguintes. Sobre 0 tema, houve grandes modificações. Agora, nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo. Nesse caso, concedida a tutela antecipada 0 autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, a junta­ da de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em 15 (quinze) dias ou em outro prazo maior que 0 juiz fixar. Depois, 0 réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação. Não havendo autocomposição, 0 prazo para contestação será iniciado, de quinze dias úteis. Não realizado 0 aditamento, 0 processo será extinto sem resolução do mérito. Caso entenda que não há elementos para a concessão de tutela antecipada, 0 órgão jurisdicional determinará a emenda da petição inicial em até 5 (cin­ co) dias, sob pena de ser indeferida e de 0 processo ser extinto sem resolução de mérito. Outra importantíssima novidade é que a tutela antecipada torna-se es­ tável se da decisão que a conceder não for interposto 0 respectivo re­ curso, caso em que 0 processo será extinto. E aqui há uma outra curio­ sa novidade. Qualquer das partes poderá demandar a outra com 0 intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada, que conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invali­ dada por decisão de mérito proferida nesta nova ação. Este direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada, previsto no § 2° deste artigo, extingue-se após 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu 0 processo, nos termos do § 1°. A decisão que concede

Cap. II • Posse

87

a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2° deste artigo. Seguindo nas inovações, infere-se o art. 311, 0 qual inaugura 0 insti­ tuto da tutela da evidência a ser concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do pro­ cesso, quando ficar caracterizado 0 abuso do direito de defesa ou 0 manifesto propósito protelatório da parte; as alegações de fato pude­ rem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de en­ trega do objeto custodiado, sob cominação de multa ou, finalmente, a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que 0 réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. Voltando-se os olhos ao Código de Processo Civil vigente, se 0 procedimento for especial (força nova), teremos liminar, pedido contraposto (descabendo reconvenção) e possibilidade de audiência de justificação prévia, situações típicas. Para 0 deferimento da liminar de força nova, terá 0 autor da demanda 0 ônus de provar a sua posse, 0 esbulho ou turbação praticado pelo réu; a data do esbu­ lho ou turbação e a sua permanência (art. 561 do CPC). Estando a petição inicial devidamente instruída, 0 juiz deferirá, sem ouvir 0 réu, a expedição do mandado liminar de reintegração ou manutenção. É a famosa liminar inaudita altera pars. Caso inexista esta prova pré-constituída, determinará 0 juiz que 0 autor justifique previamente 0 alegado, citando-se 0 réu para comparecer à audi­ ência que for designada, denominada audiência de justificação prévia (CPC, art. 562). ►E no CPC/15?

Estando a petição inicial devidamente instruída, 0 juiz deferirá, sem ouvir 0 réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegra­ ção, caso contrário, determinará que 0 autor justifique previamente 0 alegado, citando-se 0 réu para comparecer à audiência que for designada. Importante advertência normativa se manteve no art. 562 do CPC/15 em relação ao Poder Público: contra as pessoas jurídicas de direito público n ã o s e r á d e f e r id a a m a n u t e n ç ã o o u a r e in t e g r a ç ã o lim in a r s e m p r é v ia

audiência dos respectivos representantes judiciais.

Julgada procedente a justificação, 0 juiz fará, logo, expedir 0 mandado de manu­ tenção ou de reintegração. Concedido, ou não, 0 mandado lim inar de manutenção ou de reintegração, 0 autor promoverá a citação do réu para responder a ação. Quando for ordenada a justificação prévia, 0 prazo para contestar contar-se-á da intimação do despacho que deferir, ou não, a medida liminar.

88

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Robert0 Figueiredo

Eis 0 conteúdo do art. 563 do CPC/15: "Considerada suficiente a justificação, 0 juiz fará logo expedir mandado de manutenção ou de reintegração". A mudança é de pouca significação prática. 0 art. 930 do CPC/73 corresponde ao atual art. 564 do CPC/15. A alteração aqui é impactante. 0 CPC/15 afirma que "Concedido ou não 0 mandado liminar de manutenção ou de reintegração, 0 autor promoverá, nos 5 (cinco) dias subsequentes, a citação do réu para, querendo, contestar a ação no prazo de 15 (quinze) dias". Além de inserir 0 prazo de contes­ tação, advirta-se que a contagem no CPC é apenas sobre os dias úteis.

A partir de então, o procedimento comum ordinário se aplicará, subsidiariamente. É o que determina o art. 566 do CPC/15. c)

Cumulação de Pedidos. Ação de Força Nova

De acordo com 0 art. 555 do CPC, é lícito ao autor cumular, ao pedido posses­ s o r s , 0 de condenação em perdas e danos, de cominação de pena para caso de nova turbação ou esbulho e, finalmente, de desfazimento de construção ou plan­ tação feita em detrimento de sua posse. De igual sorte será lícito ao réu, na contestação da ação de força nova, ale­ gando que foi 0 ofendido em sua posse, dem andar a proteção possessória e a indenização pelos prejuízos resultantes da turbação ou do esbulho, cometidos pelo autor (CPC, art. 556). Curioso perceber que, porquanto a natureza processual dúplice das possessórias - afinal, ou deferirá 0 direito à posse ao autor, ou ao réu - , é possível ao réu fazer pedido na sua própria contestação, mediante pedido contraposto. Sendo assim, não há de ser falar em reconvenção. d)

0 Descabimento da Exceptio Domini

A teor do § 2° do art. 1.210 do CC, não obsta a manutenção ou a reintegração de posse a alegação da propriedade, ou de outro direito sobre a coisa. A regra se alinha à ideia prevista também no art. 557 do CPC, segundo a qual, na pen­ dência da ação possessória, é vedada a discussão, pelas partes e nos mesmos autos, do domínio. A le g is la ç ã o c ív e l a tu a l c o n s o lid a a " in v ia b ilid a d e d a a le g a ç ã o d o d o m ín io , ou

de propriedade, em sede de ação possessória, ou seja, trouxe uma divisão entre juízos possessório (em que se discute a posse) e petitório (em que se discute a propriedade)"67. Exatamente por isso a doutrina consolidou, na I Jornada de Direito Civil, 0 Enunciado 78, segundo 0 qual "Tendo em vista a não recepção pelo novo Código Civil da exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2°), em caso de ausência de prova su­ ficiente para em basar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente

67. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 63.

Cap. II . Posse

89

no ius possessions, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso". Ainda na I Jornada de Direito Civil, foi elaborado o Enunciado 79, no mesmo sentido de inadmitir a exceção de domínio em sede de ações possessórias. Citase: "A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório". Diuturnamente a única hipótese na qual se defere a posse àquele que com­ provar 0 domínio ocorre se a aludida posse estiver sendo disputada com base no domínio, como já esclareceu a Súmula 487 do Supremo Tribunal Federal: "Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver 0 domínio se com base neste for ela disputada". Destarte, recentemente 0 Superior Tribunal de Justiça sumulou 0 entendim en­ to de que "0 ente público detém legitimidade e interesse para intervir, incidentalmente, na ação possessória entre particulares, podendo deduzir qualquer matéria defensiva, inclusive, se for 0 caso, 0 domínio" (Súmula 637, STJ). Nessa linha, em demanda possessória entre particulares é viável a intervenção do ente público, até mesmo com base na tese de domínio. e)

Outras Notícias sobre a Tutela Dinâmica da Posse 0 que fazer quando mais de uma pessoa se disser possuidora?

Nas pegadas do art. 1.2 11 do CC, "Quando mais de uma pessoa se disser pos­ suidora, m anter-se-á provisoriamente na posse a que tiver a coisa, se não estiver manifesto que a obteve de alguma das outras por modo vicioso". Percebe-se a tutela daquilo que a doutrina denomina como posse aparente. Sobre 0 tema, a prim eira parte do Enunciado 239, da III jornada em Direito Civil, auxilia na solução do problema da posse, informando que: "Na falta de de­ monstração inequívoca de posse que atenda a função social, deve-se utilizar a no­ ção de melhor posse", coadunando-se com 0 princípio da socialidade e as teorias sociológicas da posse. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FMP Concursos Órgão: MPE-RO Prova: Promotor de Justiça Substituto Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: quando mais de uma pessoa se disser possuidora, manter-se-á provisoriamente na posse a que tiver a coisa, mesmo que manifesta a obtenção por modo vicioso.

0 terceiro que recebeu coisa esbulhada pode ser réu em possessória? 0 art. 1.212 do CC autoriza ao possuidor ajuizar ação possessória contra tercei­ ro que recebeu a coisa esbulhada, sabendo que 0 era. Trata-se de um combate à má-fé. Na mesma linha, 0 art. 952 do CC, segundo 0 qual em havendo usurpação.

90

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

ou esbulho alheio, além da restituição da coisa, a indenização consistirá em pagar 0 valor das suas deteriorações e o devido a título de lucros cessantes; faltando a coisa, dever-se-á reem bolsar o seu equivalente ao prejudicado. São normas que caminham com a noção do eticidade (boa-fé) privada. Por conseguinte, em face do terceiro de boa-fé a demanda não poderá ser ma­ nejada. Assim, sobre o assunto, a doutrina elaborou o Enunciado 8o, na I Jornada em Direito Civil, com o seguinte conteúdo: "É inadmissível o direcionamento de deman­ da possessória ou ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte passiva ilegítima, diante do disposto no art. 1.212 do novo Código Civil. Contra 0 terceiro de boa-fé cabe tão somente a propositura de demanda de natureza real". 8.4. Ações Possessórias em Sentido Amplo Visto a autodefesa da posse e as ações possessórias em sentido estrito, é hora de adentrar as possessórias em sentido amplo. Leia-se: ações cujo fundamento ou cuja tutela última é a posse. Nessa ótica, serão visitadas as ações de imissão de posse, nunciação de obra nova, dano infecto e embargos de terceiro. a)

Ação de Imissão de Posse

A atual ação de imissão de posse - a qual tem como origem histórica 0 Direito Romano (missio in possessionem) -, se mantém, até os dias de hoje, com 0 seu mesmo mister, assegurar ao titular do direito de propriedade, ou de um direito obrigacional, 0 seu exercício pleno e efetivo68. Segundo Carlos Roberto Gonçalves69, a pretensão de imissão de posse se tra­ duz em uma ação possessória afim, ao passo que 0 seu objeto não se reveste de natureza eminentemente possessória, vez que 0 seu pedido se funda ou no direito de propriedade, ou no direito obrigacional. É, em verdade, uma ação petitória. A imissão de posse era devidamente regulada pelo Código de Processo Civil de 1939, 0 qual se dedicava ao tema em seu art. 381, especificamente na seara dos procedimentos especiais. Assim, informava que competia tal demanda: a) aos adquirentes de bens, para haverem a respectiva posse, contra os alienantes ou terceiros que os detivessem; b) aos adm inistradores e dem ais representantes de pessoas jurídicas, para haverem de seus antecessores a entrega dos bens pertencentes à pessoa representada; e c) aos mandatários, para receberem dos antecessores a posse dos bens do mandante. Tanto 0 CPC/73 quanto 0 CPC/15 foram omissos sobre 0 assunto; fato que, po­ rém, não vem impedindo 0 uso da medida. Não estando na parte especial do Direito Processual Civil, hodiernamente a pretensão vem travestida em procedi­

68. DE BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil. V. 3, p. 49. 69. Op. Cit., p. 175.

Cap. II • Posse

91

mento ordinário ou sumário, a depender do valor da causa, como obtempera Sílvio de Salvo Venosa70. Concordando com o dito anteriormente, ensina Carlos Roberto Gonçalves71 que o atual Código de Processo Civil não tratou da ação de imissão de posse. Nem por isso ela deixou de existir, pois poderá ser ajuizada sempre que houver uma pre­ tensão à imissão na posse de algum bem. Destarte, a permanência da ação de imissão de posse no sistema jurídico nacional tem embasamento, até mesmo constitucional, ao passo que não poderá o Estado deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5°, XXXV, da CF/88). Logo, com fulcro no princípio da inafastabilidade ou ubiquidade, há de persistir tal remédio judicial. Tal casuística persiste até os dias de hoje, como bem vaticina Sílvio de Salvo Venosa72 ao informar que no estatuto processual vigente não foi incluída a ação como procedimento especial. Não se nega que 0 processo comum sirva para suas finalidades, mormente 0 caso mais significativo, qual seja, ação do comprador para receber a coisa adquirida73. Flávio Tartuce74 adverte que 0 intérprete "Não se pode deixar enganar pelo seu nome", pois se trata de verdadeira ação petitória. Arremata 0 autor que " 0 seu fundamento principal é 0 art. 1.228 e não 0 1.196 do CC, seguindo a ação de imissão de posse 0 rito ordinário". Para a doutrina, portanto, a legitimação ativa será daquele que busca a posse pela prim eira vez, enquanto a passiva é tanto do alienante, como de eventual terceiro, que esteja impedindo a posse plena do atual proprietário. ►Como se manifesta o Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto?

PROCESSO CIVIL. IMISSÃO DE POSSE. TERCEIRO POSSUIDOR. LEGITIMIDADE PAS­ SIVA. APLICABILIDADE DO DL 70/66. 0 terceiro possuidor ocupante do imóvel é legítimo para figurar no polo passivo de ação de imissão de posse originada em execução extrajudicial regulada pelo DL 70/66. A inexistência de relação jurídica entre 0 3° possuidor do imóvel e 0 agente financeiro, não é óbice à aplicabilidade do rito previsto no re­ ferido decreto lei. (Resp 790.640/PE, Rei. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/11/2009, DJe 20/11/2009). (Grifo nosso).

70. 71. 72. 73.

Op. Cit., p. 148. Op. cit., p. 177. Op. Cit., p. 148. No mesmo sentido afirma Carlos Roberto Gonçalves: Nas aquisições de bens ocorrem, com fre­ quência, situações que ensejam a imissão: 0 vendedor simplesmente se recusa a entregar 0 imóvel, ou nele reside um terceiro, que não aceita a ocupação (Op. Cit. p. 177). 74. NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 3» ed. São Paulo: RT, 2006. p. 919-

92

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano

Figueiredo e Roberto Figueiredo

Assim, tendo o lesado recebido apenas o jus possidendi (domínio), carecendo da posse, o caminho judicial para tanto é, justamente, a ação em comento, como escopo de imitir-se na sua legítima posse. Em decorrendo da propriedade, informam Cristiano Chaves de Farias e Nel­ son Rosenvald Jr.75 que a ação de imissão de posse consiste em uma ação petitória. Assim, afirmam os aludidos autores que à prim eira vista, podería o nome im issão de posse indicar uma espécie de ação possessória. Contudo, é tipica­ mente uma ação petitória que, na maior parte das situações, deverá ser ado­ tada por quem adquire a propriedade por meio de título registrado, mas não pode investir-se na posse pela prim eira vez. Para o processualista Gildo dos Santos76, em artigo científico específico sobre 0 tema, na ação de im issão de posse o Autor tem o domínio, mas quer a posse, na qual nunca adentrou. 0 desejo é a consolidação am pla do direito de proprie­ dade. Pede-se a posse com fundamento na propriedade, outrora transmitida (jus possidendi). 0 escopo, portanto, na imissão de posse, não é o de reaver a coisa, mas sim de vê-la pela primeira vez, buscando-se a posse com fundamento na propriedade.

b) Ação de Dano Infecto Aquele que correr risco sério e iminente de dano proveniente de ruína de casa vizinha "ou do vício de obras, pode pedir que o proprietário dê caução para garantia de indenização, da realização do reparo necessário ou da de­ molição". Desse modo, o possuidor "previne-se, exigindo a caução"77, em uma verd ad eira tutela preventiva. Igualmente é possível lançar mão desta pretensão quando houver atentado à saúde, segurança, e sossego, em função do mau uso da propriedade vizinha. É o exemplo do cidadão que faz da sua residência, sem as devidas autorizações, um criatório de cobras, colocando os vizinhos em risco. Estes são os cabimentos da ação de dano infecto, na forma dos arts. 1.277 a 1.280 do CC. É cada vez mais raro 0 ajuizamento da ação de dano infecto, por não se apre­ sentar como "a melhor tática processual"78 e, além disso, se tratar de uma medida preventiva. As tutelas de fundo repressivo vêm sendo bem mais manejadas. Inexistindo disciplina especial no CPC a respeito da ação de dano infeto, 0

procedimento será comum, sendo possível a cumulação de pedidos, inclusive 0 de reparação civil. Caso 0 valor da causa, porém, não ultrapasse a 60 (sessenta)

75. Op. Cit., p. 181. 76. SANTOS, Gildo dos. Ação de Imissão de Posse. In Posse e Propriedade: doutrina e jurisprudência. Coord. Yussef Cahali. p. 447. 77. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 105. 78. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 72.

Cap. II • Posse

93

vezes o montante do salário mínio, é possível o uso do rito sumário, como bem pontua Maria Helena Diniz79. Para a maioria da doutrina, de rigor não estamos a falar de uma verdadeira ação possessória, mas sim de procedimento cominatório, de finalidade preventiva.

c)

Embargos de Terceiro

Na forma do art. 674 do CPC, aquele que, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens, por ato de apreensão judicial, em casos como 0 de penhora, depósito, arresto, sequestro, alienação judicial, arreca­ dação, arrolamento, inventário ou partilha, poderá requerer ao juiz da causa que sejam mantidos ou restituídos tais bens, por meio de embargos. Os embargos de terceiro também serão cabíveis para a defesa da posse, quan­ do, nas ações de divisão ou de demarcação, for 0 imóvel sujeito a atos materiais, preparatórios ou definitivos, da partilha ou da fixação de rumos e, finalmente, para 0 credor com garantia real, para obstar a alienação judicial do objeto da hipoteca, penhora ou anticrese. Consistem estes Embargos em ação autônoma, submetida a procedimento es­ pecial e distribuída por dependência, apensada aos autos principais (CPC, art. 676). A legitimidade ativa será daquele que sofreu a indevida constrição judicial, e 0 legitimado passivo as partes da relação processual originária. Quanto à legitimidade ativa ad causam é possível reconhecê-la tanto ao pro­ prietário do bem, como ao possuidor. ►Atenção!

Para efeito de legitimidade ativa, equipara-se a terceiro a parte que, posto figure no processo, defende bens que, pelo título de sua aqui­ sição ou pela qualidade em que os possui, não podem ser atingidos pela apreensão judicial. Considera-se também terceiro 0 cônjuge quando defende a posse de bens dotais próprios, reservados ou de sua meação. Exemplifica-se. João é casado com Maria em comunhão parcial. Um dos bens que in­ tegra 0 patrimônio comum do casal é penhorado, por dívida de João. Nesse cenário, Maria poderá se valer dos embargos de terceiro, com 0 escopo de preservar a sua cota parte de meação do bem (50% - cin­ quenta por cento), 0 qual não poderá ser atingido por dívida de João. De mais a mais, é possível a utilização de embargos de terceiro fundados em promessa de compra e venda de imóvel, ainda que não registrada, a teor da Súmula 84 do STJ. Exemplifica-se. Imaginem que Julieta realizou promessa de compra e venda de um imóvel com a Vendo Bem Ltda. Todavia, antes do imóvel ser registrado e incorporado ao patrimôniode Julieta, foi penhorado, por dívida da Vendo Bem Ltda. Nesse cenário.

79. op. cit., p. 93-

94

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Julieta poderá se valer dos Embargos de Terceiro, fundados na sua pro­ messa de compra e venda, ainda que esteja desprovida de registro. No particular, lembra-se de que a Súmula 621 do STF caducou (perdeu os seus efeitos), ante a Súmula 84 do STJ, sendo este 0 entendimento predominante na doutrina e jurisprudência.

Quanto ao momento de ajuizamento dos embargos de terceiros, reza o art. 675 do CPC que estes podem ser opostos a qualquer tempo, no processo de conhe­ cimento, enquanto não transitada em julgado a sentença, e, no cumprimento de sentença ou no processo de execução, até 5 (cinco) dias depois da adjudicação, da alienação por iniciativa particular ou da arrematação, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta. A norma processual exige que 0 embargante faça a prova sumária de sua posse ou de seu domínio e da qualidade de terceiro, oferecendo documentos e rol de testemunhas (CPC, art. 677). Caso a prova seja dificultosa, é facultada a parte provar a sua posse em audiência preliminar, designada pelo juiz para tanto (audiência de justificação prévia). A citação do réu há de ser pessoal, se 0 embar­ gado não tiver procurador constituído nos autos da ação principal, sendo 0 prazo de resposta de 15 (quinze) dias (CPC, art. 679), findo 0 qual 0 processo seguirá 0 procedimento comum. A decisão que reconhecer suficientemente provado 0 domínio ou a posse de­ terminará a suspensão das m edidas constritivas sobre os bens litigiosos objeto dos embargos, bem como a manutenção ou a reintegração provisória da posse, se 0 embargante a houver requerido. É 0 que afirma 0 art. 678 do CPC. De igual sorte, 0 juiz poderá condicionar a ordem de manutenção ou de reintegração provisória de posse à prestação de caução pelo requerente, ressalvada a im possibilidade da parte economicamente hipossuficiente. Acolhido 0 pedido inicial, 0 ato de constrição judicial indevida será cancelado, com 0 reconhecimento do domínio, da manutenção da posse ou da reintegração definitiva do bem ou do direito ao embargante, nos termos do art. 681 do CPC.

Propriedade l.

BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A propriedade é um instituto que extrapola ao próprio direito, sendo inerente ao ser humano. Trata-se de fenômeno que antecedeu ao próprio direito, sendo fático e histórico, como bem nos recorda Arnaldo Rizzardo1. Nesse sentido, a propriedade tem compreensão e extensão própria em cada

período histórico, sendo o seu conceito mais amplo ou restrito nas diversas fases da humanidade. A conceituação proprietária sofre influência direta das mais varia­ das organizações políticas e religiosas. Trata-se, pois, na correta lição de Sílvio de Salvo Venosa, de um conceito histórico-determinado2. A

Fazendo uma breve incursão histórica, percebe-se que nos tempos primevos, antes da era romana, o objeto da propriedade privada somente abrangia as coi­ sas móveis de exclusivo uso pessoal, a exemplo dos utensílios de caça, pesca e vestuário. A propriedade do solo, nesse contexto, era coletiva e transitória. A população era dividida em tribos, isoladas e nômades, vivendo os homens, exclusivamente, da caça, da pesca e da colheita, não sendo um objetivo, pois, a apropriação do solo. Assim, nesse período o homem ainda não estava "preso" ao solo e a propriedade não tinha caráter perpétuo. Seguindo o curso da história, passou o homem a ligar-se ao solo e as tribos, definitivamente, a fincar a sua moradia em um lugar específico. Surge, inicialmente, a propriedade coletiva do solo para, em um segundo momento, advir a noção de propriedade privada deste. Assim, nesse momento histórico é alargado o conte­ údo da propriedade privada, o qual, em vez de apenas abranger os utensílios de uso pessoal, se estende ao solo. Esta propriedade, porém, geneticamente plural, encontra na Lei das XII Tábuas em Roma a sua unificação. Nasce uma propriedade individual e perpétua, passan­ do a ser considerado o domínio da terra como absoluto. Essa noção romana de absolutismo e individualismo da propriedade, em verdade, veio contrastar com o

1.

2.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 171. Lembra Darcy Bessone: "0 homem se tornou possuidor e proprietário antes que se elaborassem normas coativas e se estruturasse a ordem pública" (RIZZARDO, 2004, p. 179X VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito Reais. 3» ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 151.

96

Direito Civil • Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano

Fig ue ired o e Roberto Figueiredo

caráter plural do instituto, o qual o acompanhava desde o seu nascimento até a sociedade romana. Logo, 0 período pré-codificação (antes do Código de Napoleão), a exceção da ideia romana, assistiu ao surgimento e à evolução de uma propriedade de conteúdo multifacetário, abrangendo coisas móveis, imóveis, e várias formas de apropriação, como bem enfatiza Laura Beck Varela3. 0 fato, porém, é que foi a construção romana difundida pelo mundo, começando este percurso pela Europa continental por meio dos glosadores. Recorda Orlando Gomes que a conceituação da propriedade no Direito Romano influenciou, de sobrem aneira, o regime feudal e, posteriormente, o regime capitalista. Nessa toada, a noção proprietária individualista e egoística, segundo a qual "cada coisa tem apenas um dono" e "os poderes do proprietário são mais amplos"4 advém, historicamente, de uma construção romana. No período das trevas (Idade Média) a propriedade perde o seu caráter unitá­ rio e exclusivo. As diferentes culturas bárbaras modificam os conceitos jurídicos, o que não foi feito completamente para o melhor. Os conceitos de território e poder cada vez mais se misturam, ligando-se a ideia de propriedade à de soberania. É a época do feudalismo, com os vassalos (servidores do senhor e não proprie­ tários); e os senhores (os seus suseranos e poderosos proprietários). Aqui é que surgem os conceitos de domínio direto e domínio útil, passando a propriedade a ser co n sid e ra ía de forma desm em brada, como ensinam Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny Abreu Chinelatto5. Lembra Orlando Gomes que "o titular do primeiro (domínio útil) concede o direito de utilização econômica do bem e recebe, em troca, serviços ou rendas"6. Outra importante influência ao direito de propriedade foi dada pelo Direito Canônico, por meio da sua ideologia segundo a qual "[...] o homem está legitimado a adquirir bens, pois a propriedade privada é garantia de liberdade individual", como bem recorda Sílvio de Salvo Venosa7. Santo Agostino e São Tomás de Aquino foram fervorosos defensores do ideal de ser a propriedade privada decorrente da natureza humana, devendo o homem fazer seu justo uso. Importantes encíclicas papais derivaram desta concepção filo­

3.

LUDWIG, Marcos de Campos; VARELA, Laura Beck. In: Martins-Costa, Judith (org.). Da Propriedade Às Propriedades: Função Social e reconstrução de um Direito. A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais do direito privado.

4. 5.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 732-733. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 115. CHINELATTO, Silmara Juny de Abreu; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Propriedade e Posse: Uma Releitura dos Ancestrais Institutos. Em Homenagem ao Prof. José Carlos Moreira Alves in Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC. São Paulo: Padma. Ano 4, Vol. 14, Abril - Junho

6.

de 2003. p. 84. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 115.

7-

Op. Cit., p. 153-

Cap. Ill • Propriedade

97

sófica, sendo tal visão da igreja católica um importante embrião para o advento da função social da propriedade, como se demonstrará adiante, em tópico específico. Com a Revolução Francesa e o consequente Código de Napoleão, fora recep­ cionada a noção romana, excepcional, sobre a propriedade, sendo firm ada uma concepção extremamente individualista e unitária do instituto (absoluta), como comprova a redação do art. 544 do mencionado Código, para a qual a propriedade é 0 direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos. É aqui, nesse período, que se firma 0 famoso modelo antropológico napoleônico-pandectista de propriedade, cujo centro eram dois conceitos: unidade e individualismo proprietários. A propriedade, que por sua natureza é plural desde 0 seu surgimento, se torna única e absoluta, por força da codificação, sendo 0 seu conteúdo restrito às coisas corpóreas e imóveis. 0 Código de Napoleão, em que pese não ter sido eterno como pretendia 0 seu obstinado inventor, influenciou sobrem aneira 0 movimento codificatório oitocentista, sendo que grande parte do mundo ocidental passou a ter, como opção legislativa, um conceito individualista e unitário de propriedade. Não foi diferente com 0 revogado Código Civil nacional de 1916, 0 qual traduzia no seu art. 524 a direta influência napoleônica, afirmando que a lei assegura ao proprietário 0 direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.

0 direito nacional atual, seguramente, se deixou influenciar por este paradig­ ma histórico. Assim, 0 caput do art. 1.228 do CC/02 bem ilustra tal perspectiva, de modo a reconhecer ao titular do direito de propriedade uma série de atributos, tais como usar, gozar, fruir, alienar e reivindicar a coisa em face de quem injusta­ mente a detenha. Fato é que mesmo com esta influência feudal coproprietária, 0 regime capi­ talista tende a caminhar com uma ideia unitária de propriedade, exacerbando 0 ideário material e individualista, com a máxima de que "0 direito do proprietário é elevado à condição de direito natural em pé de igualdade com as liberdades fundamentais"8. Um belo exemplo disso é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa - 1789), cujo art. 17 afirmava ser a propriedade um direito sagrado e inviolável. Entrementes, durante a vigência do antigo Código Civil brasileiro de 1916, as re­ lações sociais passaram a ser inovadas, tanto no Brasil como no mundo. Expandiu-se 0 conceito de propriedade, 0 qual passou a abranger novos objetos, indo além das coisas corpóreas e imóveis. No mesmo passo da história cresceu 0 solidarismo social, em detrimento do individualismo de outrora, sendo correntes idéias como a diminuição das desigualdades sociais e a dignidade da pessoa humana (Consti­ tuição Federal de 1988).

8.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 115.

98

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A propriedade passa a ser enxergada de forma plural, sendo o "começo do fim" de um modelo romano-francês absoluto. Frisa Eduardo Takemi Kataoka9 que os vários tipos de propriedade que foram surgindo ficaram submetidos a diversas Leis esparsas, cada uma regulando um tipo proprietário, em uma clara descodificação mediante o surgimento de microssistemas. Nesse cenário de transformações sociais e leis esparsas posteriores para re­ gularem as mudanças é que nasce a fragmentação do direito proprietário, o qual passa a ter, novamente, um caráter plural e social, em detrimento do unitário e absoluto anterior. Tal fato aconteceu no Brasil e no direito comparado, a exemplo da Itália, como ensina Pietro Perlingieri10. Destarte, a pluralidade proprietária foi além daquela que historicamente já existiu no globo terrestre. A evolução social e tecnológica vivida pela humanidade levou a apropriação e determinação de valores econômicos a novos bens, não mais se restringindo como objeto proprietário a terra e outros bens corpóreos. Passou a propriedade, nesse novo cenário, a abranger também as coisas incorpóreas, sendo incluído no conceito de apropriação tudo aquilo que possuía um valor econômico, ou ainda que pudesse ser aferido economicamente. Infere-se a importância da ideologia capitalista na am pliação do conteúdo da propriedade, ao passo que, com o escopo de aumentar o lucro e a produção, pas­ sou a valorar aquilo que tivesse, ao menos, estimação econômica, incluindo tais coisas dentre os objetos proprietários. Dessa maneira, na atualidade, a propriedade não mais tem o caráter uno de outrora, sendo multifacetária, plural. A sua caracterização irá depender do bem que esteja sob a sua égide e o sujeito que a possua. Esse fenômeno é explicitado pela própria Constituição Nacional, lembra Paulo Lobo11, no momento em que se fala em propriedade rural, propriedade urbana, direito autoral, direito industrial, e, generi­ camente, propriedade, contemplando, pois, a diversidade inerente ao instituto e à queda do conceito restritivo, oitocentista, de influência romana napoleônica. ►Como este assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 - Banca: CESPE - Órgão: TJ/DFT - Prova: Juiz de Direito Subs­ tituto). Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: "A propriedade, con­ forme disposição legal, incide exclusivamente sobre bens corpóreos."

9.

KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do Individualismo e Propriedade. In TEPEDINO, Gustavo. Pro­ blemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 463. 10. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Constitucional. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2a ed. São Paulo: Renovar, 2002. p. 218-219. 11. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 33, jul. 1999. Disponível em: . Acesso em: 03 maio 2004. p. 1.

Cap. Ill • Propriedade

99

Fato é que mesmo após a ampliação do objeto da propriedade, bem como a maior percepção do seu caráter individual, o curso da história percebeu o que chama a doutrina de uma funcionalização proprietária. A propriedade, portanto, passou a ser significada sob a ótica de valo­ res sociais, advindo a chamada função social da propriedade.

2.

TEORIAS EXPLICATIVAS DO SURGIMENTO DA PROPRIEDADE

Aqui cabe ser feita uma quebra na abordagem da evolução histórica para en­ fatizar a questão das teorias que tentam explicar o surgimento da propriedade, tendo em vista a relação do aparecimento destas teorias e a evolução do instituto. Há várias teorias que tentam explicar a origem da propriedade. Dentre as mais importantes citam-se: a teoria da ocupação; a teoria da lei; a teoria do trabalho e a teoria da natureza humana. Segundo a teoria da ocupação, a propriedade surgiría mediante a ocupação pelo ser humano da coisa sem dono (res nullius). Sendo assim, inexistindo sobre a coisa o domínio de outrem, tornou-se proprietário aquele que se apossou, ocupou a coisa, pela primeira vez. Continuando o curso da história e devido ao caráter perpétuo da propriedade, a apropriação foi se mantendo até a atualidade, por meio de sucessivas transmissões. A grande crítica à teoria da ocupação reside no fato de o direito de proprie­ dade não se restringir, tão somente, à vontade unilateral do ocupante, sendo que terceiros têm de respeitar o direito de proprietário (caráter erga omnes). Além disso, perde força a teoria acaso leve-se em conta a grande possibilidade de sua utilização afrontar a boa-fé. Consoante a teoria da lei - também chamada de positivista e defendida por Hobbes, Bossuet, Montesquieu, Mirabeau e Bethan12 - a propriedade consiste em uma concessão do direito. Existe pelo simples fato da lei tê-la criado e garantir o seu exercício. Essa teoria cai por terra com a constatação de que a propriedade antecede ao direito, sendo que já existia até mesmo antes da tutela jurídica, con­ forme visto no tópico anterior. Outra importante teoria para justificar o surgimento da propriedade individual é a de John Locke, denominada teoria da especificação ou do trabalho. Segundo ele, partindo de uma visão impregnada pelo catolicismo, a propriedade individual, cuja origem remonta ao tempo de Adão, é de todos. Entrementes, é por meio do trabalho humano, o qual é de exclusividade de seu titular, que poderá surgir a apropriação. Assim é que, por meio da colheita, surgiría a propriedade dos frutos e por meio do cultivo da terra que surgiría a propriedade im obiliária. É essa a lição transmitida por Izabel Vaz13:

12. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de janeiro: Forense, 2004. p. 180. 13. VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 26 e 27.

TOO

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A teoria de John Locke para justificar a propriedade individual baseia-se na origem divina do legado concedido a Adão e sua prosperidade. Como se entende ser aquela propriedade comum aos homens, procura explicar as causas da apropriação privada dos bens (fruto, caça) e da terra pela utilização da razão, também dada por Deus. A terra e todas as criaturas inferiores são comuns a todos, diz Locke; mas cada homem tem uma pro­ priedade em sua própria pessoa, à qual ninguém, senão ele, tem direito. "0 trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele". Tudo que 0 homem, por meio do seu trabalho, retira do estado em que a natureza 0 deixou, torna-se sua propriedade, pelo acréscimo de algo que lhe pertence. Ao aplicar 0 homem 0 trabalho, que é a sua propriedade exclusiva, em colher um fruto, abater uma caça ou cul­ tivar um pedaço de terra, adquire sobre estas coisas um direito privado, exdudente de qualquer outro, ao menos enquanto houver bens em comum e suficientes para terceiros. Urge enfatizar que, segundo Locke, é quando o homem, por meio de seu tra­ balho, passa a produzir mais do que poderia consumir, que nascem as diversas valorizações das propriedades e a noção de novos direitos sobre elas, rompendo-se 0 equilíbrio e surgindo as desigualdades na distribuição dos bens. Devido a esta ideia de Locke, sua teoria foi utilizada como fonte de inspiração do regime comunista, pois, segundo os comunistas, a produção vem da força do trabalho. Logo, 0 operariado teria direito à exploração econômica do produto final do seu labor14. A teoria da natureza humana aduz ser o fundamento da propriedade, des­ culpem pela tautologia, a própria natureza humana15, ou seja: a propriedade é inerente ao ser humano, sendo pressuposto de existência e liberdade deste. Jus­ tamente por isso é que a propriedade antecede, até mesmo, o direito positivo e 0 Estado, figurando como verdadeiro direito natural, inato. Segundo Arnaldo Rizzardo16: "É, seguramente, uma forma coerente de encontrar o fundamento da propriedade", fato com que o autor deste trabalho concorda plenamente. 3.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A Constituição Federal da Alemanha de 1949, em seu art. 14, alínea 2, afirma que "A propriedade obriga. 0 uso da propriedade deve concorrer também para o bem da coletividade". Sem dúvida esta perspectiva demonstra um absoluto abandono à concepção romanista da propriedade, bem como um freio à visão individualista dela. Tal concepção chegou ao Brasil e hoje encontra assentamento nos incisos XXII e XXIII do art. 5° da CF/88, seguida pela disciplina do § 1° do art. 1.228 do CC/02. Logo, hodiernam ente, não há mais a menor dúvida: a propriedade não é mais produto absoluto de um individualism o egoístico. Ao contrário disso, deve

14. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 181. 15. Utilizou-se 0 autor neste trecho de pleonasmo enfático. 16. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 182.

Cap. Ill • Propriedade

101

se harm onizar com as exigências socioam bientais. Em síntese: tendo em vista as exigências atuais do bem comum e os interesses extraproprietários, há uma função social a ser respeitada17. Nesse sentido vem caminhando a doutrina, como posto pelo Enunciado 507 da V Jornada em Direito Civil, segundo 0 qual "Na aplicação do princípio da função social da propriedade im obiliária rural, deve ser observada a cláusula aberta do § i ° do art. 1.228 do Código Civil, que, em consonância com 0 disposto no art. 5°, inciso XXIII, da Constituição de 1988, permite melhor objetivar a funcionalização mediante critérios de valoração centrados na primazia do trabalho". De fato, é garantido 0 direito de propriedade. Significa isso dizer que a pro­ priedade tem natureza de garantia, traduzindo um direito, fundamental. Ademais disso, esta propriedade atenderá a sua função social, sendo nítida a possibilidade de intervenção estatal para restringir a autonomia privada em situações nas quais 0 proprietário não a respeite. Tal se dá, por exemplo, por meio de normatizações de planos diretores, em grandes centros urbanos, os quais traduzem normas re­ cheadas de regras que visam potencializar a função social dos imóveis e evitar 0 intuito meramente especulativo. ►Como este tema foi cobrado em concurso público?

Ano: 2018 Banca: VUNESP Órgão: TJ-MT Prova: VUNESP - 2018 - TJ-MT - Juiz Substituto Foi ajuizada uma ação reivindicatória de uma extensa área urbana, de 20000 m2, ocupada há 6 (seis) anos, de boa-fé, por 50 (cinquenta) famílias, que a usam para moradia. Deverá a ação

Gabarito: ser improcedente, tendo em vista que 0 juiz deverá decla­ rar que 0 proprietário perdeu 0 imóvel, em razão da desapropriação judicial por interesse social, fixando a indenização devida, valendo a sentença como título para 0 registro no cartório de registro de imóveis.

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: PGE-AP Prova: FCC - 2018 - PGE-AP - Procu­ rador do Estado Pode ser identificada como reivindicatória a ação do

Gabarito: "proprietário não possuidor contra 0 possuidor não proprie­ tário que injustamente possua ou detenha a coisa".

A propriedade está funcionalizada em um interesse metaindividual, exógeno e social. 0 direito de propriedade não se justifica apenas para proteger, exclusi­ vamente, 0 seu titular, mas também para realizar interesses de toda a sociedade. Em decorrência disso, o proprietário hoje sofrerá limitação jurídica de faculdades proprietárias, dantes absolutas.

17.

art. 147 da CF/46 já previa que 0 uso da propriedade haveria de se condicionar ao bem-estar social.

0

102

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Discute-se, porém, se esta propriedade tem a função social como seu conteúdo

(teoria interna) ou como um mero limite proprietário (teoria externa)18. A teoria interna teve como um dos seus grande baluartes Léon Duguit, para quem a função social estaria inserida no próprio direito de propriedade, inte­ grando 0 seu conteúdo. Desta maneira, enxergava Duguit a propriedade como um direito-função, suprimindo a noção de direito subjetivo e enxergando a ausência de direito acaso não houvesse função social. Trata-se de teoria com grande pres­ tígio no Brasil e na Espanha. Já a tese externa, a qual teve como importante referencial Josserand, aduz ser a função social um dos limites ao exercício do direito de propriedade, não a enxer­ gando como seu conteúdo. Dessa maneira, para os defensores da teoria externa, há propriedade ainda que não haja função social, sendo esta apenas um limite no exercício daquela. Defende esta ideia Jorge Miranda e Virgílio Afonso da Silva. Assim, não mais deve ser vista a propriedade como um objeto de um mero direito subjetivo, devendo ser significada como um verdadeiro instituto jurídico. A função social passa a integrar o conteúdo da propriedade, afinal de contas "Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade, orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interes­ ses e às necessidades comuns". É a lição de Carlos Alberto Dabus Maluf19. Na mesma esteira, o § 2° do art. 1.228 do CC proíbe 0 proprietário de praticar atos que não lhe tragam utilidade ou comodidade, bem como 0 ato emulativo, de forma que 0 abuso do direito é expressamente objeto de vedação normativa também nos direitos reais. Nesse sentido, 0 Enunciado 49, da I Jornada em Direito Civil, ao sugerir que 0 preceito normativo em destaque seja interpretado em har­ monia com a função social e com 0 disposto no art. 187 do Código Civil; leia-se: à luz da boa-fé objetiva. De forma ousada e inusitada, 0 CC prevê a desapropriação judicial por neces­ sidade ou utilidade pública, bem como a desapropriação por interesse social e 0 ato de requisição em situações de perigo público iminente (§ 3° do art. 1.228). Trata-se de aspecto intrigante, pois 0 tema é visivelmente de direito público, pre­ visto no art. 50, incisos XXIV e XXV, da CF. Talvez a grande ilustração hoje desta função social da propriedade esteja na denominada desapropriação judicial privada, decorrente da posse-trabalho, pre­ vista nos §§ 4° e 50 do art. 1.228 do CC, fruto da notável inteligência do jurista Miguel Reale e sem precedentes no direito comparado.

18. No particular valeu-se 0 este capítulo dos ensinamentos de Otávio Luiz Rodrigues Júnior em seu texto Propriedade e Constitucionalização do Direito Civil, veiculado na Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v. 849, p. 435-444, 2006. 19. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade. 3» Edição. São Paulo: RT, 2011, P- 73-

Cap. Ill • Propriedade

103

►Como o STF já decidiu a matéria? 0 Plenário do STF entendeu que as exigências contidas nos arts. 124,

VIII, 128, e 131, § 20, não limitam 0 direito de propriedade, tampouco constituem-se coação política para arrecadar 0 que é devido, mas de dados inerentes às sucessivas renovações dos certificados de registro do automóvel junto ao órgão competente, para a liberação do trânsito de veículos, de modo que a Administração Pública está autorizada a exigir 0 comprovante da quitação de tributos, encargos e multas para, somente assim, expedir certificado de registro de veículo e autorizar 0 licenciamento do automóvel (ADI 2998/DF, rei. Min. Marco Aurélio, red. p/ 0 ac. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 10.04.2019). A teor do § 40 do art. 1.228 do CC, "0 proprietário também pode ser privado da coisa se 0 imóvel reivindicado consistir em extensa área na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse relevante". Para tanto, 0 juiz fixará "justa indenização devida ao proprietário" (§ 50 do mesmo diploma). Pago 0 preço da justa indenização, valerá a sentença como título para 0 registro de imóvel em benefício dos possuidores. 0 Enunciado 496, da V jornada em Direito Civil, reconhece a possibilidade de ajuizamento de petição inicial visando à desapropriação privada fundada na posse-trabalho, mediante, pois, ação autônoma, retirando a dúvida eventualmente havida na doutrina sobre 0 cabimento da medida apenas como matéria de defesa.

É dizer: a desapropriação judicial privada pode ocorrer tanto como matéria vestibular, como matéria defensiva. Outrossim, a doutrina reconhece a nítida constitucionalidade da desapropriação judicial privada (Enunciado 82 da I Jornada do CJF), por concretizar relevantes valores da República. ►Atenção!

Há uma importante discussão sobre a aplicação do instituto da desa­ propriação judicial privada aos bens públicos. Inicialmente a doutrina advertiu que 0 ajuizamento desta medida não se destina aos bens pú­ blicos, pois eles jamais poderíam ser objeto de uma expropriação por interesse particular. Foi 0 entendimento adotado no Enunciado 83 da I Jornada do CJF. Entretanto, na IV Jornada em Direito Civil foi elaborado 0 Enunciado 304, 0 qual, em síntese, admite a desapropriação judicial privada para os bens públicos dominicais, limitando a incidência do descabim ento aos bens públicos de uso comum do povo e aos de uso

especial, de modo a manter parcialmente 0 Enunciado 83. Flávio Tartuce conclui que terrenos de marinha, terras devolutas, estra­ das de ferro, ilhas formadas em rios navegáveis, sítios arqueológicos, jazidas de minerais e 0 mar territorial poderíam, à luz dos enunciados referidos, sofrer debate acerca da desapropriação judicial privada. Contudo, lembra 0 ilustre doutrinador que a tese da usucapião dos bens dominicais é minoritária e, portanto, não deveria ser acolhida. (TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 127).

104

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A justa indenização referida no § 50 do art. 1.228 do CC, fixada pelo Juiz da Cau­ sa, deverá ser paga pelos possuidores ocupantes da área. Este posicionamento está no Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil. Mas como os ocupantes de tais áreas costumam ser pessoas de parcos recursos, foi lavrado 0 Enunciado 308, da IV Jornada em Direito Civil, sustentando que esta justa indenização deverá ser "su­ portada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual". A doutrina entende ainda que os juros compensatórios previstos no Decreto-lei n° 3.365/41 não se aplicam à desapropriação judicial privada, pois esta não se confunde com as desapropriações regidas pelo direito público e submetidas à disciplina própria (Enunciado 240 da III Jornada em Direito Civil). Lembra-se de que enquanto não se pagar 0 valor da justa indenização, a sen­ tença em ação reivindicatória não terá eficácia jurídica e, portanto, a transferência do imóvel não ocorrerá (Enunciado 241 da III Jornada em Direito Civil). Em conformidade com 0 art. 127 da CF, devem os recordar se r atribuição do Ministério Público a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais, competin­ do-lhe intervir, na forma do art. 178 do CPC/15, nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas dem ais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte. Nessa toada, 0 Enunciado 309, da IV Jornada em Direito Civil, reconhece doutrinariam ente 0 dever-pod er do Ministério Público em atuar nas hipóteses de desapropriação que envolvam relevante interesse público, determ inado pela natureza dos bens jurídicos envolvidos. Aliás, "na desapropriação judicial (art. 1.228, § 40) poderá 0 juiz determ inar a intervenção dos órgãos públicos competentes para 0 licencia­ mento am biental e urbanístico" (Enunciado 307 da IV Jornada em Direito Civil). Particularmente concordamos com a linha enunciada, afinal de contas a própria ideia da função social autoriza a participação no processo de órgãos públicos competentes à solução do conflito jurídico.

► Novo Código de Processo Civil (CPC/15) 0 art. 178 do CPC/15 tem a seguinte redação: "0 Ministério Público será

intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da or­ dem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: interesse público ou social; interesse de incapaz; litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Pa­ rágrafo único. Advirta-se que interesse público justificador da atuação ministerial é apenas 0 primário. Nessa senda, não compete ao Parquet substituir a advocacia pública (CF/88 arts. 127 e 132), muito menos rea­ lizar representação ou consultoria a entidades públicas (inciso IX, art. 129 da CF/88).

Cap. Ill . Propriedade

105

►Atenção!

A doutrina admite a utilização do § 40 do art. 1.228 do CC tanto para as ações reivindicatórias, quanto para as ações possessórias, interpretando extensivamente 0 significado da expressão "imóvel reivindicado" contido na norma. Trata-se de importante raciocínio, apto a demonstrar a auto­ nomia da tutela da posse (Enunciado 320 da IV Jornada em Direito Civil).

Uma questão interessante se apresenta: imagine que 0 Juiz da Causa deter­ mine 0 pagamento da justa indenização a que se refere 0 § 5° do art. 1.228 do CC e, a partir deste instante, a parte credora se mantenha inerte, de modo que passe a fluir 0 prazo legal sem a necessária cobrança. A hipótese é de prescrição a autorizar, uma vez consumada, a ordem judicial de registro da propriedade em benefício dos possuidores. Nessa linha que caminha 0 Enunciado 311, da IV Jornada em Direito Civil, ao verberar que "caso não seja pago 0 preço fixado para a desapropriação judicial, e ultrapassado 0 prazo prescricional para se exigir 0 crédito correspondente, estará autorizada a expedição de mandado para registro da propriedade em favor dos possuidores". ►Como este tema foi cobrado em concursos públicos?

(FCC - Defensor Público - BA/2016) A posse-trabalho Gabarito: "pode gerar ao proprietário a privação da coisa reivindicada, se for exercida em extensa área por prazo ininterrupto de cinco anos, mas 0 proprietário tem direito à fixação de justa indenização".

0 STJ proferiu interessante julgado em se de reintegração de posse ao deter­ minar a conversão da mesma em ação indenizatória, de ofício, tendo em vista a ocorrência de desapropriação indireta20. Entendeu 0 STJ que a ação possessória pode ser convertida em indenizatória (desapropriação indireta) - ainda que ausente pedido explícito nesse sentido - a fim de assegurar tutela alternativa equivalente ao particular, quando a invasão coletiva consolidada inviabilizar 0 cumprimento do mandado reintegratório pelo município21.

20. REsp 1.442.440-AC, Rei. Min. Curgel de Faria, por unanimidade, julgado em 07/12/2017, DJe 15/02/2018. 21. Na origem, trata-se de ação de reintegração de posse em que a parte autora, a despeito de ter conseguido ordem judicial, encontra-se privada de suas terras há mais de 2 (duas) décadas, sem que tenha sido adotada qualquer medida concreta para obstar a constante invasão do seu imóvel, seja por ausência de força policial para 0 cumprimento do mandado reintegrató­ rio, seja em decorrência dos inúmeros incidentes processuais ocorridos nos autos ou em face da constante ocupação coletiva ocorrida na área, por milhares de famílias de baixa renda. Nesse contexto, discute-se, entre outros temas, a possibilidade de conversão da ação reivindicatória em indenizatória (por desapropriação indireta), de ofício pelo Juiz. Sobre a temática, vale ressaltar que as obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa certa fundadas em título judicial ensejam a aplicação de tutela específica, na forma do art. 461, § i°, do CPC/1973, sen­ do totalmente cabível a conversão em perdas e danos para a obtenção de resultado prático

106

4.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

CONCEITO. AFINAL, 0 QUE É A PROPRIEDADE?

É 0 "direito de propriedade o mais importante e mais sólido de todos os direito subjetivos, sendo o direito real por excelência, ao redor do qual gravita o direito das coisas"22. 0 direito real de propriedade é o mais amplo dos direitos reais - plena in re potesta. Justo por isto que muitos autores o denominam Direito Real na Coisa Própria. 0 direito de propriedade pode ser conceituado como um direito comple­ xo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto. 0 conceito de propriedade pode ser construído por meio de três modelos, a saber23: a)

conceito sintético - é a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa.

b)

conceito analítico - é o direito de usar, fruir, dispor de um bem e reavê-lo em face de quem injustamente o possua.

c)

conceito descritivo - é um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa.

Como o titular do direito de propriedade pode usar, gozar, abandonar, alie­ nar ou destruir a coisa, é possível reconhecer a presença de um direito absoluto oponível erga omnes, de caráter real. Que fique claro: não é absoluto no sentido de que não é passível de mitigações; mas sim absoluto no que tange à sua oponibilidade. Seguindo com os conceitos legais, Clóvis Beviláqua enxerga a propriedade como o poder reconhecido pelo ordenamento jurídico à utilização de bens da vida, físicos ou im ateriais24. Caio Mário da Silva Pereira diz que a propriedade "é o direito de usar, gozar e dispor da coisa e reivindicá-la de quem injustamente a

correspondente, quando situação fática consolidada no curso da ação exigir a devida proteção jurisdicional. Nesse passo, a conversão operada na espécie não configura julgamento ultra petita ou extra petita, ainda que não tenha havido pedido explícito nesse sentido, diante da impossibilidade prática de devolução da posse à autora, sendo descabido o ajuizamento de outra ação quando uma parte do imóvel já foi afetada ao domínio público, mediante apossamento administrativo e a outra restante foi ocupada de forma precária por inúmeras famílias com a intervenção do Município e do Estado, que implementaram toda a infraestrutura básica na área sub judice. Outrossim, também não há falar em violação ao princípio da congruência, devendo ser aplicada, no caso, a teoria da substanciação, segundo a qual apenas os fatos vin­ culam o julgador, que poderá atribuir-lhes a qualificação jurídica que entender adequada ao acolhimento ou à rejeição do pedido, como fruto dos brocardos iura novit curia e mihi factum dabo tibi ius. Conclui-se, portanto, que a conversão em comento é consequência lógica da im­ possibilidade de devolução do imóvel à autora, sendo desimportante o fato de não ter havido pedido sucessivo/cumulado na exordial ou arguição pelos possuidores (réus na ação reivindicatória), em sede de contestação, quanto à possibilidade de indenização pela perda da posse. 22. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol. 3. p. 83. 23. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 109. 24. BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos das Coisas. Brasília: Senado. 2003. Coleção História do Direito Brasilei­ ro. V. 1.

Cap. ill • Propriedade

107

detenha"25. Decerto é o domínio que instrumentaliza a propriedade, a qual, por sua vez, se forma pelo conjunto de faculdades ou poderes juridicamente reconhe­ cidos ao senhorio. Fato é que, passeando pelo ordenamento jurídico nacional, infere-se ser a pro­ priedade direito fundamental. Está garantida no art. 5°, inciso XXII, da CF/88. Seu exercício é otimizado e limitado pela sua função social, na forma do mesmo no art. 5°, agora no seu inciso XXIII. 0 CC/02 reconhece a existência de faculdades jurídicas ao titular da proprie­ dade. É 0 que reza 0 art. 1.228. Observe-se que a legislação cível opta muito mais por apresentar atributos jurídico à propriedade - de uso, gozo, fruição, sequela e disposição - do que analisá-la à luz de uma relação jurídica que, inevitavelmente é.

A doutrina, porém, controverte-se sobre ser a relação jurídica proprietária es­ tabelecida entre 0 homem e uma coisa (teoria realista) ou entre pessoas (teoria

personalista). A tese realista enxerga a existência de relação jurídica entre 0 homem e 0 obje­ to proprietário. Acaba por confundir 0 domínio com a propriedade. Justo por isto, hoje, para a maioria da doutrina, a tese realista é uma ideia ultrapassa. já a teoria personalista afirma que a relação proprietária é estabelecida entre 0 proprietário e 0 sujeito passivo universal, entendido este como todos os tercei­ ros que haverão de respeitar a propriedade. A premissa é simples: para que haja relação jurídica há de existir relação entre pessoas - conduta humana intersubjetiva. Logo, não é possível falar-se em direito quando há em um dos polos uma pessoa e no outro uma coisa. Seguindo os ditames da teoria personalista, 0 proprietário tem relação do do­ mínio sobre a coisa (objeto da propriedade), podendo usar, gozar, fruir e dispor do bem. 0 direito de propriedade, porém, é justamente a necessidade de respeito dos terceiros (outro sujeito) ao aludido domínio. Tal propriedade poderá ser de uma pessoa física ou jurídica e, ainda, de um bem público ou privado. Para Orlando Gomes 0 "objeto do direito de proprie­ dade há de ser coisa especificadamente determ inada" subordinando-se a três importantes princípios: a) materialização ou corporeidade; b) individualização e, finalmente; c) acessoriedade26. Voltando-se novamente os olhos para 0 direito legislado, percebe-se que 0 art. 1.228 do Código Civil firma que 0 proprietário tem as faculdades de usar, gozar, dispor, fruir e reivindicar a coisa. Nessa esteira, o proprietário tem o ius fruendi, ou seja, 0 direito subjetivo de fruir, gozar da coisa extraindo desta todos os frutos. Ademais disso, terá também 0 ius utendi, vale dizer, 0 direito de usar a coisa den­ tro dos padrões, evidentemente, da função social. 0 ius disponendi é 0 direito que

25. BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos das Coisas. Brasília: Senado. 2003. Coleção História do Direito Brasilei­ ro. V. 1, p. 127. 26. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 18» ed. Atualizador Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 1981. V. IV, p. 90. No mesmo sentido Maria Helena Diniz.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

108

o proprietário terá de dispor de sua propriedade, seja ainda em vida, mediante alienação (doação, compra e venda), seja para depois da sua morte, mediante disposição de última vontade (testamento). 0 ius vindicandi é nada mais nada me­ nos do que o chamado direito de sequela, que autoriza ao proprietário reivindicar da coisa em face de quem a detenha indevidamente. Sobre a possibilidade de o proprietário ajuizar as ações reivindicatórias como um dos direitos previstos no art. 1.228 do CC, advertindo que sobre 0 prazo exis­ tem, basicamente, dois grandes posicionamentos27:

Posicionamento 1) Minoritário. A ação reivindicatória está sujeita a um prazo prescricional, pois teria natureza patrimonial. Desse modo, seria 0 caso de se aplicar 0 art. 205 do CC e fixar em dez anos 0 prazo prescricional para a preten­ são reivindicatória, contados da violação do direito subjetivo (Enunciado 14 da I jornada em Direito Civil). Posicionamento 2) Majoritário. A ação reivindicatória é imprescritível porque preponderantemente declaratória, conforme entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça (STJ - AgRg no Ag 569.220/RJ, REsp. 216.117/RN e REsp. 49.203/SP). Como se sabe, uma das características do direito real é a perpetuidade. 0 domínio é perpétuo. Dessa m aneira, será importante reconhecer que as ações rei­ vindicatórias são imprescritíveis e não se submetem à decadência, de modo que 0 caráter da perpetuidade autoriza este entendimento consagrado na doutrina.

A propriedade será plena ou alodial quando 0 titular deste direito estiver com todas as faculdades ou poderes dentro da sua esfera jurídica; leia-se: quando preencher todo 0 art. 1.228 do CC, podendo gozar, reivindicar, usar ou dispor da coisa, sem que terceiro tenha qualquer direito sobre esta propriedade. ►Atenção!

Na hora da prova, visando recordar as faculdades proprietárias, lem­ bre-se do: GRUD Gozar Reivindicar Usar Dispor

D'outra banda, a propriedade será limitada ou restrita quando terceiro não proprietário titularize alguns dos poderes inerentes à ela, a exemplo da exis­ tência de direitos reais na coisa alheia (usufruto, penhora, hipoteca etc.). A pro­ priedade restrita acarreta uma consequência jurídica importante: a divisão dos seus atributos, de modo que a mesma passará a ser composta "de duas partes d estacáveis"28, a saber:

27. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 105. 28. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 109.

Cap. Ill • Propriedade

109

a)

Nua-propriedade (senhorio direto ou proprietário direto e possuidor indireto) - que é igual à titularidade do domínio; ou seja, decorre do fato de ser o pro­ prietário o dono da coisa, apesar de não ter o direito de usar e fruir do bem.

b)

Domínio útil (possuidor direto) - corresponde ao atributo daquele que tem a posse direta do bem. Leia-se: a possibilidade de usar, gozar e dispor do pró­ prio domínio útil, tal como ocorre com o enfiteuta ou usufrutuário. ►Atenção!

A depender da doutrina estudada, se encontrará quem defenda ser a expressão "domínio" sinônima de "propriedade", a exemplo de Maria Helena Diniz e Flávio Tartuce. Contudo, existem doutrinadores que di­ ferenciam o domínio da propriedade, como Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald Jr., para quem o domínio é instrumentalizado pelo direito de propriedade, sendo o conteúdo interno da propriedade e consistindo na titularidade do bem. Seria o vínculo entre o titular e a coisa. Cami­ nhamos com este segundo posicionamento.

5.

EXTENSÃO E CARACTERES

De acordo com o art. 1.228 do CC, 0 proprietário tem 0 direito de gozar, reivin­ dicar, usar e dispor da coisa, daí por que se está diante do maior conteúdo de um direito real existente no ordenamento jurídico. É 0 direito real por excelência. Mas, afinal, qual seria a extensão deste direito? Seria crível afirm ar que a propriedade vai do "céu ao inferno"? A resposta é negativa. Com efeito, 0 critério estabelecido no Código Civil relaciona-se à utilidade, sendo que a propriedade do solo compreenderá 0 espaço aéreo e 0 subsolo correspondentes em altura e profundidade úteis ao seu exercí­ cio, nas pegadas do art. 1.229 do Código Civil. Logo, não é crível que 0 proprietário impeça 0 uso em espaço aéreo ou profundidade que não lhe tenha utilidade, por completa ausência de interesse. ►Com se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

No ano de 2015, pautado no critério da utilidade, firmou 0 Tribunal da Cidadania (Informativo 557) que a invasão de subsolo apenas acarre­ tará danos ao proprietário acaso estes sejam devidamente comprova­ dos. In verbis: •

D ireito d e p ro p rie d a d e d e sub solo.

No caso em que 0 subsolo de imóvel tenha sido invadido por tirantes (pinos de concreto) provenientes de obra de sustentação do imóvel vizinho, 0 prop rietário do im óvel invadido não terá legítimo interesse para requerer, com base no art. 1.229 do CC, a rem oção dos tirantes nem indenização po r perdas e danos, desde que fique constatado que a invasão não acarretou prejuízos com provados a ele, tam pouco im ­ possibilitou 0 perfeito uso, gozo e fruição do seu im óvel. (REsp 1.256.825SP, Rei. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Dje 16.3.15. 3a T. (Info STJ 557)

110

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Destarte, imperioso recordar que a propriedade do solo não abrangerá ja ­ zidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais, na forma do art. 1.230 codificado. A propriedade tem caracteres muito semelhantes aos direitos reais29, a saber: a)

É um direito complexo à vista do grande número de atributos que possui, à luz do art. 1.228 do CC (uso, gozo, fruição, disposição e sequela);

b)

É um direito absoluto (em regra) pois oponível erga omnes (contra todos), es­ tando 0 proprietário autorizado a utilizar o bem da forma que bem entender, desde que respeitada a função socioambiental deste;

c)

É um direito perpétuo, ao passo que se mantém mesmo que não haja 0 exer­ cício efetivo deste, não se findando por não uso, ressalvadas as situações excepcionais, a exemplo da usucapião.

d)

É um direito exclusivo, em regra. Isso porque não costuma pertencer a mais de uma pessoa, salvo em casos de copropriedade, presumindo-se plena e exclusiva, na forma do art. 1.231 do CC.

e)

É um direito elástico, pois poderá ser distendida ou contraída em suas facul­ dades de acordo com a vontade do seu dono. ►Atenção!

Dessa maneira, pode-se dizer que as características da propriedade envolvem a CAPEELA: Complexo Absoluto Perpétuo Exclusivo Elástico De mais a mais, em uma análise civil-constitucional recorda-se ser o direito de propriedade fundamental, integrando o rol de cláusulas pétreas (art. 5°, incisos XXII e XXIII, da CF). 6.

DESCOBERTA

Modificando a legislação pretérita, 0 Código Civil atual não mais regula sobre a invenção, tratando, porém, de maneira inédita, da descoberta, dentro da Seção II do capítulo que trata da propriedade em geral. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves30, a inserção na teoria geral foi acer­ tada, porquanto não ser a descoberta, propriamente, modo de aquisição de pro-

29. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 120-121. 30. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 250.

Cap. Ill . Propriedade

111

priedade. Com efeito, o descobridor não há de conservar a propriedade consigo, atraindo para si a obrigação de restituição do objeto extraviado. Entende-se por descoberta o achado de coisa extraviada, perdida. 0 desco­ bridor - pessoa que encontra a aludida coisa - tem de restituí-la ao seu dono ou quem legitimamente a possua (art. 1.233 do Código Civil). Infere-se, portanto, que diferentemente da usucapião, da especificação e da tradição, as quais são formas de aquisição da propriedade móvel adiante aborda­ das, a descoberta não traduz uma forma de aquisição da propriedade. Infere-se, claramente, que 0 legislador civilista se ocupa aqui de diferenciar coisa abandonada - e, por conseguinte, sem dono - de coisa perdida - a qual não fora abandonada e ainda possui um dono. Decerto, sobre coisas sem dono é possí­ vel a aquisição da propriedade, como se verá adiante no fenômeno da ocupação. Entrementes, sobre coisas perdidas im põe-se 0 dever de restituição, sob pena de ilícito civil e penal, com a configuração de apropriação de coisa achada (art. 169, II, do Código Penal). 0 legislador civilista, visando premiar a boa-fé e os atos do descobridor, confere a este uma recompensa pela devolução do bem, doutrinariamente denominada achádego. 0 achádego não será inferior a 5 % (cinco por cento) do valor da coisa, somada à indenização pelas despesas que 0 descobridor houver feito para conservação e transporte da coisa, salvo se 0 dono preferiu abandoná-la (art. 1.234 do Código Civil). ►E na hora da prova?

Prova: VUNESP - 2012 - TJ-SP - Titular de Serviços de Notas e de Regis­ tros - Remoção No regime da descoberta, uma vez encontrado 0 bem, é correto afir­ mar que Gabarito: "cumpre ao descobridor devolvê-lo ao seu verdadeiro pro­ prietário ou possuidor, por determinação legal. Se não 0 encontrar, deverá entregá-lo à autoridade competente, fazendo jus à recompensa no valor mínimo de cinco por cento do bem".

Caso 0 dono ou legítimo detentor decida por abandonar a coisa, torna-se sem dono, sendo plenamente possível, neste momento, que 0 descobridor adquira a sua propriedade, por meio do fenômeno da ocupação, adiante estudado (art. 1.263 do Código Civil). Curiosa discussão é entabulada a respeito do perecimento ou da deterioração da coisa nas mãos do descobridor. Teria ele responsabilidade civil perante 0 pro­ prietário ou legítimo possuidor? Nas pegadas do art. 1.235, do Código Civil, apenas haveria a referida respon­ sabilidade na hipótese de dolo. Sendo assim, a simples culpa não seria apta a ge­ rar responsabilização, pois compreendería 0 legislador que 0 descobridor estaria agindo em prol de um terceiro (dono ou legítimo possuidor), não sendo crível a sua responsabilização por mera imprudência, negligência ou imperícia.

112

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Atenção!

Mas como deve proceder 0 possuidor acaso não conheça 0 proprietá­ rio ou legítimo possuidor da coisa? 0 CPC ocupa-se do tema no art. 746. Assim, 0 juiz, ao receber a coisa

alheia do descobridor, mandará lavrar 0 respectivo auto com a descri­ ção do bem e declarações do descobridor. Caso a coisa seja recebida por autoridade policial, esta haverá de remetê-la ao Juízo competente. Após depositada a coisa, 0 juiz ordenará a publicação de edital na rede mundial de computadores (Internet), no site (sítio) do tribunal a que estiver vinculado e na plataforma de editais do Conselho Nacional de justiça. Caso não exista 0 dito site, deverá 0 edital ser publicado no órgão oficial da imprensa da comarca. Entrementes, se 0 bem for de pequeno valor, 0 que inviabiliza os custos supracitados, 0 edital tão somente será publicado no átrio do edifício do Fórum. No mais, remete 0 CPC ao procedimento já detalhado do Código Civil. Infere-se, por conseguinte, que 0 novel procedimento coaduna-se de forma mais sintética com a legislação material, deixando de lado a buro­ cracia dos prazos para os editais e de um procedimento mais detalhista.

7.

MODALIDADES

É possível classificar a propriedade de acordo com a legislação, doutrina e jurisprudência. Assim fala-se sobre propriedade resolúvel, fiduciária e aparente. Sendo assim, interessa aqui apresentarmos breves notas sobre a propriedade resolúvel, distinguindo-a da propriedade fiduciária para, finalmente, abordar a propriedade aparente, de modo a avançar no estudo e na compreensão deste importantíssimo instituto dos direitos reais.

7.1.

Propriedade Resolúvel

0 direito de propriedade fora concebido, inicialmente, para ser perpétuo. Esta é uma premissa de todo o direito de propriedade, o qual pertencerá ao proprie­ tário enquanto vivo este for. Contudo, excepcionalmente, a legislação cível conta com a possibilidade de resolubilidade, a qual permite retirar a perpetuidade do sujeito proprietário.

Coadunando-se com o dito, recorda Maria Helena Diniz31 que "em regra, 0 do­ mínio tem duração ilimitada. Porém, a própria norma jurídica, excepcionalmente, admite certas situações em que a propriedade da coisa móvel ou imóvel se torna temporária, subordinando-se a uma condição resolutiva ou termo final contido no título constitutivo do direito ou originário de causa a este superveniente".

31. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 24a ed. São Paulo: Sa­ raiva, 2009. p. 337.

Cap. II! • Propriedade

113

Neste cenário que se coloca a propriedade resolúvel ou revogável, a qual tem duração no tempo (ad tempos), duas são as suas hipóteses gerais: a)

Propriedade resolúvel de forma Originária (CC, art. 1.359);

b)

Propriedade resolúvel de forma Superveniente (CC, art. 1.360).

Como bem posto por Clóvis Beviláqua32, "propriedade resolúvel ou revogável é aquele que no próprio título de sua constituição encerra 0 princípio que a tem de extinguir, realizada a condição resolutória, ou vindo 0 termo extintivo, seja por força da declaração de vontade, seja por determinação da lei". É resolúvel a propriedade passível de ser extinta ou por força de uma condição (evento acidental, futuro e incerto) ou pelo termo (evento acidental do negócio ju ­ rídico futuro e certo) ou, finalmente, pelo surgimento de uma causa superveniente juridicamente apta a por fim ao direito de propriedade. Será resolúvel a propriedade com causa originária quando a sua causa extintiva constar do próprio título aquisitivo. Nesse caso, 0 titular já a adquire sabendo que ela irá se extinguir, pois sua causa extintiva consta do título. Assim, não há terceiro de boa-fé. 0 art. 1.359 do CC é esclarecedor a este respeito: "Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entende-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e 0 proprie­ tário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha". ►Atenção!

A retrovenda (CC, art. 505) é um belo exemplo de propriedade resolú­ vel originária. Ali se tem uma expressa cláusula no contrato de compra e venda prevendo 0 direito do vendedor de recobrar a coisa no prazo máximo de três anos. Outro bom exemplo é a alienação fiduciária. Os efeitos desta resolução, haja vista ser uma cláusula originária, serão ex tunc.

Mas 0 Código Civil avança para também adm itir a propriedade resolúvel por causa superveniente. A matéria está no art. 1.360 do CC, assim redigido "Se a pro­ priedade se resolver por outra causa superveniente, 0 possuidor, que a tiver ad ­ quirido por título anterior à sua resolução, será considerado proprietário perfeito, restando à pessoa, em cujo benefício houve a resolução, ação contra aquele cuja p r o p rie d a d e s e re s o lv e u p a ra h a v e r a p ró p ria c o is a ou o seu v a lo r" .

Na casuística de propriedade resolúvel com causa derivada, não constará no título a sua causa extintiva. Nesse caso, a propriedade é adquirida para ser per­ pétua, como em sua regra geral, já que não se tem notícia de nenhuma restrição. Porém, surge uma situação superveniente de resolubilidade, posteriormente à

32. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil. V. 3. p. 177.

114

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

aquisição. 0 proprietário adquiriu propriedade perpétua, mas esta se transfor­ mou, supervenientemente, em resolúvel. ►Atenção!

Um ilustrativo exemplo de propriedade resolúvel com causa superve­ niente é a revogação da doação. 0 efeito jurídico para esta hipótese é ex nunc, pois não poderá afetar os direitos constituídos durante a sua vigência, em fiel proteção ao terceiro de boa-fé.

Na V jornada em Direito Civil, o Conselho da Justiça Federal elaborou o Enuncia­ do 509, esclarecendo que "a resolução da propriedade, quando determ inada por causa originária, prevista no título, opera ex tunc e erga omnes; se decorrente de causa superveniente, atua ex nunc e inter partes". ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: CESPE Órgão: TJ/DFT Prova: Juiz de Direito Substituto). Foi considerada incorreta a proposição: "A resolução da propriedade determinada por causa originária, prevista no título, produzirá efeitos ex nunc e inter partes."

►Atenção!

A quem entenda na doutrina, minoritariamente, que a hipótese previs­ ta no art. 1.360 do CC não seria de propriedade resolúvel, mas apenas de propriedade ad tempos, como recordam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.. 0 entendimento majoritário, entretanto, é que 0 artigo veicula, sim, hipótese de propriedade resolúvel, como bem expresso no próprio Código Civil.

São comumente exemplos de propriedade resolúvel a retrovenda (arts. 505 a 508), a cláusula especial de venda com reserva de domínio (arts. 521 a 527), a doação com reversão (art. 547) e a ingratidão do donatário (arts. 555 e 557)33. 7.1.1.

Prop ried ad e Resolúvel Fiduciária

Conforme 0 art. 1.361 do CC, considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que 0 devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. Portanto, a propriedade fiduciária seria uma modalidade de propriedade resolúvel, envolvendo coisa móvel, infungível, dada em garantia, com transferên­ cia da posse. Tal propriedade resolúvel é transferida pelo Fiduciante (instituição financeira) ao Fiduciário (comprador).

33. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 140-141.

Cap. Ill • Propriedade

115

►Como este assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 - Banca: FAURGS - Órgão: TJ/RS - Prova: Juiz de Direito Subs­ tituto) A questão trouxe como incorreta a assertiva: "Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel fungível que 0 devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor." Percebe-se a falsidade da assertiva pela necessidade de 0 objeto ser infungível. Esta propriedade fiduciária será constituída com 0 registro do contrato cele­ brado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para 0 licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. Constituída a propriedade fiduciária, dar-se-á 0 desdobramento da posse, tornando-se 0 devedor possuidor direto da coisa e 0 proprietário 0 indireto. A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde 0 arqui­ vamento, a transferência da propriedade fiduciária. ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

A alienação fiduciária de coisa imóvel veio definida pelo art. 22 da norma de regência, sendo "0 negócio jurídico pelo qual 0 devedor, ou fiduciante, com 0 escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel". Há, assim, a transmissão da propriedade do devedor fiduciante ao credor fiduciário, como direito real de garantia de caráter resolúvel, mediante 0 registro, ocorrendo 0 desdobramento da posse, tornando-se 0 fiduciante pos­ suidor direto e 0 fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel (art. 23). De forma extrajudicial - em procedimento corrente apenas no cartório imobiliário -, 0 agente notarial notifica 0 devedor fiduciante, constituin­ do-o em mora e, em persistindo a inadimplência (período de 15 dias), consolida-se a propriedade do imóvel em nome do fiduciante, com a consequente e posterior venda do bem em leilão (Lei n. 9.514/1997) (STJ -

REsp: 1172025 PR 2009/0242044-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO). A doutrina, no Enunciado 591 do Conselho da Justiça Federal, afirm a que "a ação de reintegração de posse nos contratos de alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel pode ser proposta a partir da consolidação da propriedade do imóvel em poder do credor fiduciário e não a p e ­ nas após os leilões extrajudiciais previstos no art. 27 da Lei 9.514/1997".

►Atenção!

0 contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá: I - 0 total da dívida, ou sua estimativa; II - 0 prazo, ou a época do paga­ mento; III - a taxa de juros, se houver; IV - a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação.

116

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Antes de vencida a dívida, o devedor, às suas expensas e risco, poderá usar a coisa segundo sua destinação, sendo obrigado, como depositário, a empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza, bem como a entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento.

Vencida a dívida e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extra­ judicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, entregando o saldo, se houver, ao devedor. Assim, é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Nada impede, porém, que 0 devedor, com a anuência do credor, dê o seu direito eventual à coisa em paga­ mento da dívida, após o vencimento desta, a título de dação em pagamento, tema estudado no volume de obrigações. Ressalta-se que se quando vendida a coisa, o produto não bastar para o paga­ mento da dívida e das despesas de cobrança, continuará o devedor obrigado pelo restante, seguindo o processo. De mais a mais, o terceiro que eventualmente pagar a dívida se sub-rogará (substituirá) no lugar do credor originário, tendo todas as prerrogativas deste em face do devedor. ►E na hora da prova?

(Ano: 2016 - Banca: FAURCS - Órgão: Tj/RS - Prova: Juiz de Direito Subs­ tituto) A questão trouxe como correta a assertiva: "É nula a cláusula que autoriza 0 proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento." Prova: FCC - 2014 - Prefeitura de Cuiabá - MT - Procurador Municipal Analise as proposições abaixo, acerca da propriedade fiduciária: I. Constituída a propriedade fiduciária, 0 devedor não pode usar a coisa, que permanece em sua posse a título de depósito, até 0 venci­ mento da dívida. II. Desde que haja previsão expressa, 0 proprietário fiduciário pode ficar com a coisa alienada em garantia se a dívida não for paga no vencim ento.

III. 0 terceiro que pagar a dívida, mesmo que não interessado, se sub-rogará no crédito e na propriedade fiduciária. Está correto 0 que se afirma em a) I, II e III. b) II e III, apenas. c) II, apenas. d) I, apenas. e) III, apenas. Ca ba rito: letra e.

Cap. Ill • Propriedade

117

►Atenção!

As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis espe­ ciais, somente se aplicando as disposições do Código Civil naquilo que não for incompatível com a legislação especial. É o caso do Decreto-Lei 911/69 e da Lei Federal n° 9.514/97, cujo art. i ° regula a alienação fidu­ ciária: "A alienação fiduciária regulada por esta Lei é 0 negócio jurídico pelo qual 0 devedor, ou fiduciante, com 0 escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel". Um belo exemplo diz respeito à alienação fiduciária de veículos. Nesta 0 comprador (devedor-fiduciário) fica com a posse di­ reta do bem enquanto realiza os pagamentos junto à instituição finan­ ceira (credor fiduciário/possuidor indireto). Neste período 0 veículo ficará alienado ao banco. Pois bem. Quando da quitação do preço, a propriedade resolve-se, sendo transferida da instituição financeira para 0 comprador, que se torna proprietário do bem.

Dúvida interessante diz respeito à possibilidade de usucapião do bem dado em alienação fiduciária. Seria possível? 0 entendimento prevalente caminha no sentido negativo, posto que, a priori, na alienação fiduciária não há posse com animus domini. Ademais, se houver a transferência ilícita do bem a um terceiro haverá ato de clandestinidade, inca­ paz de ocasionar posse, pois gera mera detenção, nas pegadas do art. 1.208 do Código Civil. Como já se pronunciou 0 Superior Tribunal de Justiça sobre 0 tema?



Usucapião. Veículo. Alienação fiduciária

A transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de in­ duzir posse (art. 1.208 do CC/02), sendo por isso mesmo impossível a aquisição do bem por usucapião. De fato, em contratos com alienação fiduciária em garantia, sendo 0 desdobramento da posse e a possibilidade de busca e apreensão do bem inerentes ao próprio contrato, conclui-se que a transferência da posse direta a terceiros - porque modifica a essência do contrato, bem como a garantia do credor fiduciário - deve ser precedida de autorização34. Outra questão interessante perpassa sobre a responsabilidade pelas despesas de pagamento da guarda e conservação do veículo em pátio de propriedade pri­ vada, quando da retomada da propriedade do bem.

34. REsp 881.270, rei. Min. LUIS F. SALOMÃO, 02.03.2010. 4a T. (Info 425X

118

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Robert0 Figueiredo

►Como já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

CREDOR FIDUCIÁRIO. RESPONSABILIDADE. Trata-se, no caso, de saber se 0 credor flduciário pode ser responsa­ bilizado pelo pagamento das despesas decorrentes da guarda e con­ servação de veículo em pátio de propriedade privada, tendo em vista a retomada da posse direta do bem em decorrência da efetivação de liminar deferida em ação de busca e apreensão do automóvel. A Turma negou provimento ao recurso sob 0 entendimento de que 0 credor flduciário é 0 responsável final pelo pagamento das despesas com a estadia do automóvel junto ao pátio privado. Observou-se que as despesas com a remoção e a guarda do veículo alienado estão vincula­ das ao bem e a seu proprietário, 0 recorrente/titular da propriedade fiduciária resolúvel (obrigação propter rem), enquanto 0 devedor fiduciante detém apenas a posse indireta do bem. Contudo, nada impede que 0 recorrente possa reaver esses valores por meio de ação regres­ siva a ser ajuizada contra a recorrida, que supostamente deu causa à retenção do bem. Consignou-se, todavia, que dispensar 0 recorrente do pagamento de tais despesas implica amparar judicialmente 0 locupletamento indevido do credor flduciário, legítimo proprietário do bem depositado. Precedente citado: REsp 881.270-RS, Dje 19/3/2010. (REsp 1.045.857-SP, Rei. Min. NANCY ANDRIGHI, julgado em 12/4/2011.

Ainda nas dúvidas interessantes, pergunta-se: até quando podería o devedor, em sede de procedimento extrajudicial, purgar a mora na alienação fiduciária em garantia, resguardando o imóvel para si? ►O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema:

Mesmo que já consolidada a propriedade do imóvel dado em garantia em nome do credor flduciário, é possível, até a assinatura do auto de arrematação, a purgação da mora em contrato de alienação fiduciária de bem imóvel (Lei 9.514/1997). À luz da dinâmica estabelecida pela Lei 9.514/1997/ 0 devedor fiduciante transfere a propriedade do imó­ vel ao credor flduciário até 0 pagamento da dívida. Essa transferên­ cia caracteriza-se pela temporariedade e pela transitoriedade, pois 0 credor flduciário adquire 0 imóvel não com 0 propósito de mantê-lo como de sua propriedade, em definitivo, mas sim com a finalidade de garantia da obrigação principal, mantendo-o sob seu domínio até que 0 devedor fiduciante pague a dívida. No caso de inadimplemento da obrigação, 0 devedor terá quinze dias para purgar a mora. Caso não 0 faça, a propriedade do bem se consolida em nome do credor fldu­ ciário, que pode, a partir daí, buscar a posse direta do bem e deve, em prazo determinado, aliená-lo nos termos dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997. No entanto, apesar de consolidada a propriedade, não se extingue de pleno direito 0 contrato de mútuo, uma vez que 0 credor flduciário deve providenciar a venda do bem, mediante leilão, ou seja, a partir da consolidação da propriedade do bem em favor do agente

Cap. Ill • Propriedade

119

fiduciário, inaugura-se uma nova fase do procedimento de execução contratual. Portanto, no âmbito da alienação fiduciária de imóveis em garantia, o contrato, que serve de base para a existência da garantia, não se extingue por força da consolidação da propriedade, mas, sim, pela alienação em leilão público do bem objeto da alienação fiduciária, a partir da lavratura do auto de arrematação. Feitas essas considera­ ções, constata-se, ainda, que a Lei 9.514/1997, em seu art. 39, II, per­ mite expressamente a aplicação subsidiária das disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei 70/1966 aos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel. Nesse ponto, cumpre destacar que 0 art. 34 do Decreto-Lei 70/1966 diz que "É lícito ao devedor, a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar 0 débito". Desse modo, a purgação da mora até a arrematação não encontra nenhum entrave procedimental, tendo em vista que 0 credor fiduciário - nos termos do art. 27 da Lei 9.514/1997 - não incorpora 0 bem alienado em seu patri­ mônio, que 0 contrato de mútuo não se extingue com a consolidação da propriedade em nome do fiduciário e, por fim, que a principal fina­ lidade da alienação fiduciária é 0 adimplemento da dívida e a ausência de prejuízo para 0 credor. Além disso, a purgação da mora até a data da arrematação atende a todas as expectativas do credor quanto ao contrato firmado, visto que 0 crédito é adimplido. Precedente citado: REsp 1.433.031-DF, Terceira Turma, Dje 18/6/2014. REsp 1.462.210-RS, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 18/11/2014. ►E na hora da prova?

(FCC - Defensor Público - DPE - SP/2019) Nos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel, a) a taxa de ocupação será devida a partir da arrematação. b) não sendo a dívida quitada na data convencionada, a consolidação da propriedade para 0 credor fiduciário se dará independente­ mente de intimação do devedor. c) 0 prazo contratual inferior ao prazo de durabilidade do bem des­ caracteriza a alienação. d) 0 devedor fiduciário tem preferência em arrematar 0 imóvel pelo valor mínimo de avaliação. e) a responsabilidade do credor fiduciário sobre despesas condominiais do imóvel se dá com a consolidação da sua propriedade. Cabarito: Letra E.

7.2.

Propriedade Aparente

É de Vitor Frederico Kümpel35 a ideia de aplicação da teoria da aparência e da boa-fé subjetiva para afirm ar possível a existência de uma propriedade aparente.

35. KÜMPEL, Vitor Frederico. A Teoria da Aparência no Código Civil de 2002. Coleção Professor Arruda Alvim. São Paulo: Método, 2007. p. 301.

120

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

a merecer proteção jurídica em prol do terceiro adquirente. Se a ordem jurídica reconhece até mesmo a eficácia do casamento aparente (CC, art. 1.562) com igual razão seria possível aceitar a propriedade aparente. Portanto, se um terceiro de boa-fé imagina estar regularmente adquirindo uma propriedade, celebrando com 0 suposto alienante negócio jurídico, aparentemen­ te válido, de transmissão da propriedade, será preciso reconhecer a tutela jurídica a esta situação. Ilustra-se como hipótese de propriedade aparente sobre bem móvel a venda a non domino, prevista no art. 1.268 do CC, segundo a qual feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa ofe­ recida ao público for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, 0 alienante se afigurar como dono. Outrossim, igualmente será convalidada a venda caso aquele que vendeu coisa que não é sua - realizou uma alienação a non domino - após a venda venha a ad q uirir a coisa para si36. ► E na hora da prova?

A banca examinadora VUNESP, em prova de concurso para 0 cargo de Juiz de Direito Substituto, ano de 2014, julgou correta a seguinte assertiva: Na venda a non domino, estando 0 adquirente de boa-fé e 0 alienante adquirindo depois a propriedade, convalida-se 0 ato, considerando-se realizada a transferência desde 0 momento em que ocorreu a tradição.

Recorda, ainda, 0 ilustre doutrinador, a regra do art. 167, § 2°, do CC, para qual 0 ato simulado ensejador de nulidade absoluta não pode prevalecer sobre direi­ tos de terceiros adquirentes de boa-fé. ►Como o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou sobre este tema?

Em julgado anterior à vigência do atual CC/02, no REsp 122.853/SP, 0 Supe­ rior Tribunal de Justiça entendeu que a venda a non domino realizada em detrimento dos proprietários do imóvel é negócio jurídico ineficaz, sen­ do irrelevante a presença da boa-fé dos adquirentes. Portanto, aguarda­ mos novos enfrentamentos da matéria pela jurisprudência, à luz deste novo Direito Civil, constitucionalizado, e irradiado de eticidade.

Em síntese: a doutrina e a jurisprudência projetam a teoria da aparência sobre 0 direito da propriedade para 0 fim de proteger terceiro de boa-fé que celebra negócio jurídico com aquele que, aparentemente, é 0 proprietário, conferindo validade a este negócio.

36. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 144.

Cap. Ill . Propriedade

8.

121

FORMAS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL

A aquisição da propriedade imóvel se apresenta em formas originárias (sem atuação interm ediária de ninguém) e formas derivadas (com atuação interm ediá­ ria). Nessa toada, na forma originária não existe translatividade, sendo a proprie­ dade recebida de maneira livre e desembaraçada. Já na forma derivada há trans­ latividade, de modo que a propriedade será recebida com todas as características e os gravames que tinha preteritamente. As formas originárias de aquisição da propriedade são duas: acessão e usuca­ pião. São originárias porque prescindem de proprietário anterior. "Didaticamente, pode-se afirm ar que a propriedade começa do zero".37 As formas derivadas de aquisição da propriedade são, também, duas: registro do título e a sucessão hereditária. Há uma transferência, nestas situações, do pro­ prietário anterior para o novo proprietário. ►Atenção!

As aquisições originárias de propriedade "apagam" todas as relações jurídicas anteriores, tais como os tributos e direitos reais de garantia (STF, RE 94.586/RS). Nas causas derivadas, teremos à transferência dos tributos e dos direitos reais de garantia ao novo adquirente.

8.1. AcessÕes Naturais e Artificiais A acessão é a união física de uma coisa acessória a uma coisa principal, au­ mentando 0 volume desta última em favor do proprietário que, dono da coisa principal, passa também a ser titular da coisa acessória. Poderá a acessão decorrer da ação humana (acessão artificial), ou ainda de evento que independa da intervenção humana (acessão natural). Assim, a acessão pode ocorrer em seis hipóteses: por formação de ilhas, por aluvião, por avulsão, por abandono de álveo, por plantação e, finalmente, por construções. Nessa senda, 0 art. 1.248 do CC apresenta as formas naturais de acessão (incisos I a IV), bem como as formas artificiais (inciso V). Trata-se de forma originária de aquisição limpa da propriedade. ►Atenção!

Não se confunde a acessão (modo de aquisição de propriedade imó­ vel) com a benfeitoria (bem acessório). As benfeitorias são sempre artificiais, decorrendo da mão do homem, constituindo obra feita na estrutura da própria coisa, sem implicar aumento de volume significa­ tivo desta.

37. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 146.

122

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Já a acessão poderá ser artificial ou natural, resultando em aumento do volume da coisa principal e sendo considerada modo de aquisição da propriedade. Ademais, as benfeitorias possuem finalidades específicas (necessária, útil ou voluptuária), enquanto a acessão não possui finalidade específica. 0 tema benfeitorias é devidamente enfrentado no volume da parte geral. As acessões físicas serão divididas em cinco grandes grupos, a seguir identifi­ cadas: acessão por formação de ilhas; acessão por aluvião; acessão por acessão; acessão por álveo abandonado e acessão por plantações e construções.

a) Acessão por formação de ilhas A formação de ilhas, como forma de aquisição natural da propriedade imóvel, é tratada no art. 1.249 do Código Civil. As ilhas que se formarem em correntes comuns ou particulares pertencem aos proprietários ribeirinhos fronteiros, observadas certas regras. Assim, há três situa­ ções que podem ocorrer de acordo com o local onde se formarem as aludidas ilhas: I)

as que se formarem no meio do rio consideram -se acréscimos sobrevindos aos terrenos ribeirinhos fronteiros de ambas as margens, na proporção de suas testadas, até a linha que dividir o álveo em duas partes iguais;

II)

as que se formarem entre a referida linha e uma das margens consideram-se acréscimos aos terrenos ribeirinhos fronteiros desse mesmo lado;

III) as que se formarem pelo desdobramento de um novo braço do rio continuam a pertencer aos proprietários dos terrenos à custa dos quais se constituíram. ►Atenção!

A teor do Código das Águas (Decreto-Lei 24.643/34), bem como à luz da Constituição Federal de 1988 (arts. 20, IV, e 26, II e III), pertencem à União, ou aos Estados, as ilhas fluviais e lacustres de zonas de fron­ teira, assim como as ilhas oceânicas ou costeiras. Portanto, quando 0 Direito Civil trata das ilhas, somente estará regulamentando aquelas constituídas em rios não navegáveis ou particulares; leia-se: àquelas que necessariamente são passíveis da propriedade particular.

b) Acessão por aluvião Instituto regulado no art. 1.250 do Código Civil, bem como arts. 17 e 18 do Có­ digo de Águas (Decreto-Lei 24.643/34), a aluvião consiste em uma forma originária de aquisição da propriedade imóvel. Segundo a doutrina38, a aludida aluvião pode ser própria ou im própria. Entende-se por aluvião própria 0 acréscimo lento de resíduos que vão se acumulando

38. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 149 e 150.

Cap. Hi • Propriedade

123

à beira do rio. Aqui a terra vem pelo movimento das águas (CC, art. 1.250, e art. 17 do Código das Águas). Já na aluvião imprópria há uma retração do leito do rio, sendo que "a água vai" do rio (art. 18 do Código das Águas). Assim, os acréscim os formados, sucessiva e imperceptivelm ente, por depósi­ tos e aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem indenização. Outrossim, 0 terreno aluvial, que se form ar em frente de prédios de proprie­ tários diferentes, d ivid ir-se-á entre eles, na proporção da testada de cada um sobre a antiga margem.

c)

Acessão por avulsão

Ocorre quando, por força natural violenta, uma porção de terra se destaca de um prédio e se junta a outro. Nessa hipótese, 0 dono do prédio que teve acrésci­ mo deve indenizar 0 proprietário daquele que sofreu decréscimo, dentro de um prazo decadencial de um ano. Caso não exista indenização, poderá 0 proprietário exigir a terra de volta (CC, art. 1.251, e art. 19 do Código das Águas).

d) Acessão por álveo abandonado Entende-se por álveo a linha que divide 0 meio do rio. 0 álveo abandonado se concretizará quando 0 rio secar. Interessante notar que 0 Código das Águas, em seu art. 9°, conceitua 0 álveo como sendo a superfície que as águas cobrem sem transbordar para 0 solo natural e ordinariamente enxuto, ou, "Em outras palavras, 0 álveo abandonado vem a ser 0 rio ou a corrente de água que seca; 0 rio que desaparece"39. Segundo 0 art. 1.252 do Código Civil, 0 álveo abandonado de corrente pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens, sem que tenham indenização os donos dos terrenos por onde as águas abrirem novo curso.

e) Acessão por plantações e construções (acessões industriais) São hipóteses de acessões artificiais, pois decorrentes da mão humana. Como afirmado por Maria Helena Diniz40 "exigem um comportamento ativo do homem, incluindo as sem eaduras, plantações e construções de obras". Trata-se, como já visto, de uma forma original de aquisição da propriedade. Acabam por integrar 0 conceito de bem naturalmente imóvel, nas pegadas do art. 79 do CC, ao entender como tal "o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente". Logo, a regra geral é que tais plantações e construções pertencem ao proprie­ tário do imóvel, sendo presumidamente feitas por este, até que se prove 0 con­

39. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 152. 40. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 24a ed. São Paulo: Sa­ raiva, 2009. p. 337.

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

124

trário (art. 1.253 do CC). Essa presunção, todavia, não é absoluta (jure et de jure), mas, sim, relativa (juris tantum), admitindo prova em contrário. 0 afastamento das presunções ocorre na forma do art. 1.254 e seguinte do Có­ digo Civil, sendo, nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves41, as seguintes:

a)

Dono do solo que edifica ou planta em terreno próprio com sementes ou materiais alheios;

b)

Dono das sementes ou materiais que planta ou edifica em terreno alheio;

c)

Terceiro que planta ou sementes e materiais alheios em terreno alheio.

A solução a estas questões está intimamente ligada à eticidade possessória; leia-se: boa-fé ou má-fé. 0 proprietário que venha a semear, plantar ou edificar com sementes, plantas ou materiais alheios, adquirirá a propriedade destes, ficando obrigado a pagar-Ihes 0 valor, além de responder por perdas e danos se agiu de má-fé. Isso por­ que, em sendo dono do principal (terreno) 0 será dos acessórios (plantações e construções). Com efeito, solução diversa seria antieconômica e sem respaldo social. Esta é a inteligência do art. 1.254 do Código Civil. Ademais, 0 terceiro que plantou ou edificou em terreno alheio, igualmente, perderá as sementes e edificações, sendo que, se procedeu de boa-fé, terá direito à indenização. Caso, porém, tenha procedido de má-fé, 0 proprietário terá a op­ ção de obrigá-lo a repor a coisa ao seu estado anterior, ou deixar que permaneça em seu benefício, sem indenização (art. 1.255 do Código Civil). ►E na hora da prova?

A banca examinadora FMP, no concurso Cartório TJ-MT, ano de 2014, considerou incorreta a seguinte assertiva: "Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções, mas será, necessária e invariavel­ mente, indenizado pelo preço de custo das acessões."

Tal regra, porém, sofre uma importante exceção, intitulada de acessão inver­ tida ou inversa, prevista no parágrafo único do art. 1.255 do CC. Trata-se de uma inovação do atual Código Civil. Nessa senda, quando a construção ou plantação exceder, consideravelmente, 0 valor do terreno, e em estando 0 autor da planta­ ção ou construção de boa-fé, este irá adquirir a propriedade do solo, mediante 0 pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo, a ser paga ao proprietário do terreno. Aqui 0 bem acessório (plantação ou construção), por ter um valor monetário maior, passará a ser considerado principal, havendo inversão da regra.

41. Op. cit., p. 318.

Cap. Ill . Propriedade

125

Registra-se que se tanto o proprietário como o dono das sementes e materiais houverem agido de má-fé, aquele (proprietário) adquirirá as sementes, plantas e construções, sendo obrigado a ressarcir o valor das acessões (art. 1.256 do Código Civil). Outrossim, presume-se a má-fé caso 0 proprietário tenha presenciado a sem eadura e edificação e nada tenha dito. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Acerca do tema acessão, quando há má-fé bilateral, determinou 0 Superior Tribunal de Justiça a obrigação do proprietário indenizar as acessões. Veja-se: Cuidou-se, na Corte de origem, entre outras questões, de debate sobre a possibilidade de proprietário de terreno, não contratante da edificação erguida em seu imóvel, e sem qualquer vínculo obrigacional com 0 respon­ sável pela obra construída, arcar com pagamento do débito originado da mencionada edificação, de acordo com 0 parágrafo único do art. 1.257 do CC/2002. Conforme doutrina, "0 art. 1.256 do Código Civil refere-se a certas situações em que é 0 proprietário, e não apenas 0 possuidor, que age de má-fé. Seria uma espécie de má-fé bilateral. Nada obstante, manterá 0 proprietário a titularidade do imóvel. Presume-se tal estado quando as construções e plantações perfazem-se na presença do proprietário, sem que a este fato venha ele se opor. Todavia, como consequência de sua desídia e omissão em relação à vigilância do que lhe pertencer, deverá ser condenado a indenizar 0 possuidor de má-fé pelas acessões, consoante ex­ posto no parágrafo único do próprio dispositivo". Por outro lado, 0 Código Civil, no parágrafo único do art. 1.257, estabeleceu que 0 direito de pedir a devida indenização ao proprietário do solo igualmente se estende ao proprietário dos materiais empregados na construção, quando não puder havê-la do terceiro que construiu a acessão. Com efeito, é possível extrair das normas em destaque, especialmente do parágrafo único do art. 1.257 do CC/2002, a conclusão no sentido de que 0 proprietário dos materiais utilizados, poderá cobrar do proprietário do solo, a indenização devida pela construção, quando não puder recebê-la do construtor da obra. (REsp 963.199-DF, Rei. Min. Raul Araújo, por unanimidade, julgado em 11/10/2016, DJe 7/11/2016. Informativo 593).

Os mesmos critérios aqui lançados serão aplicados quando terceiro utilizar-se de sementes ou materiais alheios para sem ear ou edificar em terreno alheio. 0 proprietário dos solos as adquirirá e 0 terceiro será reembolsado ou pelos donos das sementes ou materiais e, em sendo impossível por este, pelo proprietário. Com 0 escopo de aliar os interesses privados aos sociais, inova a legislação atual regulando, em dois artigos (1.258 e 1.259) conflitos de vizinhança por invasão de propriedade. Seguindo nas inovações da legislação pretérita, infere-se a novel redação do art. 1.258 do Código Civil, segundo a qual se a construção feita de boa-fé, em solo próprio, invadir solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, caso 0 valor da construção exceda ao da parte invadida. Para tanto, porém, haverá de indenizar 0 proprietário do imóvel sobre 0 valor da terra perdida aliado a desvalorização da área remanescente. Destarte, caso a aludida construção tenha

126

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

sido feita de má-fé, o construtor haverá de pagar o décuplo do valor das perdas e danos anunciados. Outrossim, em sendo a dita invasão superior à vigésima parte do terreno e em estando o construtor de boa-fé, adquirirá a propriedade do terreno invadido des­ de que indenize o valor do terreno perdido pelo proprietário, as perdas e danos que a invasão acrescer à construção, mais a área perdida e a desvalorização da remanescente. Caso haja má-fé, será obrigado a dem olir a construção, pagando as perdas e danos apurados em dobro (art. 1.259 do Código Civil). ►Atenção!

Uma importante questão social a respeito deste instituto é 0 direito sobre a laje, objeto de Enunciado sugerido pelo brilhante doutrinador Pablo Stolze Gagliano e aprovado pelos magistrados de Família e Suces­ sões de Salvador: "Nos termos do regime de bens aplicável, admite-se, em nível obrigacional, a comunicabilidade do direito sobre a construção realizada no curso do casamento ou da união estável - acessão artificial socialmente conhecida como direito sobre laje, subordinando-se, toda­ via, a eficácia real da partilha ao regular registro no Cartório de Imóveis, a cargo das próprias partes, mediante recolhimento dos emolumentos e tributos devidos." Com efeito, é muito usual em famílias de baixa renda que 0 novo núcleo familiar formado passe a residir no mesmo local que a família originária de um dos cônjuges, sendo feito um andar no imóvel, através da laje. No momento do divórcio, muitas vezes, tudo que aquele casal tem a dividir diz respeito, justamente, àquela aludida laje. Assim, sensível ao ser, deve 0 direito regulamentar esta importante questão social, por meio da doutrina e ante a omissão legislativa. Justo por isto que ganha muito espaço 0 enunciado supramencionado.

8.2. Aquisição pela Usucapião de Bem Imóvel É curioso que a primeira dúvida que surge na cabeça do operador do direito é se 0 correto seria falar na usucapião ou no usucapião. Afinal é a usucapião ou é 0 usucapião?

Usucapião constitui instituto sedimentado pelo Corpus luris Civilis de Justiniano. Etimologicamente significa a capio ou capionis (tomada, aquisição, ocupação), por meio do usu (uso). Trata-se de expressão no feminino a significar a ocupação da coisa através do seu uso. Exatamente por isso é que a expressão é consagrada no gênero feminino, como consta na Lei 6.969/81, no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001), no Código Civil de 200242, no Direito Francês, Espanhol, Italiano e Inglês43. Malgrado, po­ rém, sua consagração feminina, 0 uso no masculino também é deveras corriqueiro.

42. Nesse sentido, lhering, Lafayette, Carvalho de Mendonça, Orlando Comes, Pontes de Miranda e Adroaldo Furtado Fabrício. Pensam de maneira contrária (no masculino) Ruy Barbosa, responsá­ vel pela alteração para este gênero do art. 550 do Código de 1916, Limongi França, Serpa Lopes, Washington de Barros Monteiro e Caio Mário da Silva Pereira. 43. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Direito das Coisas, V. 5, 5» ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 259.

Cap. Ill . Propriedade

127

Tecnicamente, trata-se de uma forma originária de aquisição da propriedade, a qual poderá dizer respeito aos bens imóveis e móveis, bem como aos Direitos Reais sobre Coisa Alheia, como o usufruto, a servidão, a enfiteuse e a superfície... Registra-se que como forma originária de aquisição proprietária a decisão será declaratória, pois apenas declarará a aquisição proprietária pelo passar do tem­ po, e derrubará tal decisão quaisquer eventuais ônus preteritamente constituídos sobre o bem. ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

USUCAPIÃO. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. A questão posta no REsp consiste em definir se a prescrição aquisitiva (usucapião) está sujeita a eventuais limitações relacionadas com a an­ terior constituição de ônus real sobre o bem usucapido. A Turma enten­ deu que, consumada a prescrição aquisitiva, a titularidade do imóvel é concedida ao possuidor desde o início de sua posse, presentes os efeitos ex tunc da sentença declaratória, não havendo de prevalecer contra ele eventuais ônus constituídos, a partir de então, pelo anterior proprietário. (REsp. 716.753-RS, Rei. Min. jOÃO OTÁVIO DE NORONHA, julgado em 15/12/2009.) ►Atenção!

Não apenas a propriedade, mas também outros direitos reais pode­ rão ser objeto da usucapião, a exemplo da enfiteuse, da servidão de passagem, da superfície e, até mesmo, do uso de linha telefônica, na forma da Súmula 193 do Superior Tribunal de Justiça. Obviamente que nos dias atuais 0 uso da linha telefônica não mais possui 0 valor econômico de outrora, tendo perdido, em muito, a im­ portância prática da Súmula 193 do STJ. ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(UFPR - Procurador - Pref. de Curitiba - PR/2019) Marco pediu ao seu primo Joaquim que cuidasse de Lauro e Tereza - pais de Marco e tios de Joaquim - na velhice, enquanto este residia no imóvel do primeiro. Em troca, prometeu-lhe que 0 imóvel lhe seria doado. Ocorre, porém, que Marco veio a falecer inesperadamente, sem completar a doação. Joa­ quim cuidou dos tios até que eles falecessem e seguiu residindo no local sem qualquer contestação, inclusive pagando o IPTU do referido imóvel, por mais de 20 anos ininterruptos. Ocorre, porém, que Rafael - filho úni­ co de Marco, que tinha 24 anos de idade quando 0 pai morreu - deu 0 imóvel em garantia hipotecária para Rogério, com quem tinha negócios. Joaquim, desconhecendo essa situação, ingressa com ação de usucapião. Assinale a alternativa correta com base na situação narrada. Gabarito: " 0 fato de Rafael ter hipotecado 0 imóvel em questão não constitui óbice ao pleito da usucapião formulado por Joaquim - que poderá adquirir a propriedade do imóvel livre de qualquer ônus ou encargo".

128

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Neste momento, haja vista o recorte didático realizado, será tratada da usuca­ pião de bens imóveis, sendo, posteriormente, estudada a usucapião dos móveis. No que tange a usucapião sobre direitos reais sobre coisa alheia, essa será visita­ da no específico capítulo desta obra dedicado a este tema. Pois bem. Tecnicamente a usucapião consiste em um modo originário de aqui­ sição da propriedade. Dar-se-á pelo passar do tempo, por meio da posse mansa e pacífica de um determinado bem, com animus domini e desde que seja quitado 0 tributo de transmissão. Ocorre mediante o ajuizamento de ação, cujo pedido é basicamente dedaratório da propriedade. ►Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o tema?



Prevalência da usucapião sobre a hipoteca judicial de imóvel.

A decisão que reconhece a aquisição da propriedade de bem imóvel por usucapião prevalece sobre a hipoteca judicial que anteriormente tenha gravado 0 bem. Com a declaração de aquisição de domínio por usucapião deve desaparecer 0 gravame constituído antes ou depois do início da posse "ad usucapionem", seja porque a sentença apenas declara a usucapião com efeitos "ex tunc", seja porque a usucapião é forma originária de aquisição de propriedade. REsp 620.610-DF, Rei. Min. Raul Araújo, 3.9.13. 4a T. (Info 527). • Usucapião. Promitente comprador. Imóvel hipotecado. Não há óbice ao conhecimento do recurso especial quando 0 artigo in­ dicado como violado é do CC/02, mas a controvérsia se restringe a art. do CC/1916, desde que aquele reproduza, em essência, a antiga legisla­ ção. No mérito, julgou-se procedente 0 REsp para declarar a prescrição aquisitiva - usucapião - de imóvel em favor do promitente comprador, mesmo havendo penhora e hipoteca constituída sobre 0 empreendi­ mento em benefício do agente financeiro, por empréstimo contraído pelo promitente vendedor. 0 ajuizamento de execução hipotecária pelo recorrido contra 0 recorrente, por não interromper 0 prazo prescricional da usucapião, não constitui resistência à posse "ad usucapionem" de quem pleiteia a prescrição aquisitiva, não se podendo falar em falta de justo título e boa-fé do usucapiente. Este terá a propriedade originária do imóvel de forma livre e desembaraçada de quaisquer gravames. REsp 941.464, Rei. Min. Luis F. Salomão, 24.4.12. 4a T. (Info 496). ► E na hora da prova?

Em prova discursiva para 0 cargo de Defensor Público - PE/2015, a ban­ ca CESPE trouxe a seguinte questão: Um cidadão hipossuficiente procurou a defensoria pública para pos­ tular em juízo 0 seu direito de usucapião de determinado imóvel que ocupa há quinze anos, sem interrupção, nem oposição, independen­ temente de título e boa-fé. 0 defensor requisitou informações sobre 0 imóvel ao cartório de registro de imóveis, a partir das quais cons­ tatou a existência de uma hipoteca judicial, que foi gravada sobre esse bem muito antes do início da posse ad usucapionem. Na ocasião.

Cap. Ill • Propriedade

129

o defensor decidiu ingressar em juízo para postular a usucapião em prol do assistido. Com relação a essa situação hipotética, com base em aspectos legais e jurisprudenciais a ela relacionados, responda, de forma justificada, aos questionamentos seguintes. A usucapião configura forma de aquisição da propriedade? Qual a natureza da sentença que reconhece a usucapião e quais seus efeitos? Na situação considerada, a usucapião prevalece sobre a hipoteca ju­ dicial que gravou o referido imóvel muito antes da posse ad usucapionem? Pode-se observar que todas as respostas são encontradas acima.

Estudando a usucapião pela ótica do diálogo das fontes, percebe-se ser um instituto que dialoga com a teoria do fato consumado, enxergando o passar do tempo como um fato jurídico natural ordinário, capaz de ocasionar aquisições jurídicas proprietárias (prescrição aquisitiva). Mas a usucapião é sinônimo de prescrição aquisitiva? Para o doutrinador Adroaldo Furtado Fabrício, a usucapião e a prescrição con­ sistem em institutos que merecem um tratamento unitário, porquanto sua origem histórica. Explica o referido Professor: A aproximação que se costuma fazer entre esses dois institutos, a ponto de se considerar aquela como espécie desta, tem uma justificação histórica bem conhecida: Justiniano, em sua codificação, reuniu-os sob um só título, embora o direito romano anterior os tratasse separada e diversamente. Contudo, essa aproximação não foi causai nem arbitrária, pois em verda­ de as duas instituições possuem extensas e evidentes áreas de contato, a justificar o tratamento unitário que também lhes deram amplos setores da doutrina e algumas legislações mais recentes44. Interessante pontuar que, originariamente (Roma Antiga), o termo prescrição fora usado especificamente para a extinção das ações reivindicatórias pela dura­ ção da posse: praescriptio longissimi temporis. Era utilizada para o fim da extinção da propriedade diante do tempo, já a praescriptio longi temporis era utilizada para significar a aquisição da propriedade pelo decurso do tempo. Como visto, em Roma já se utilizavam dois institutos que possuíam em comum a noção da relevância do tempo para o direito diante da inércia contínua do seu titular. A prescrição extintiva possuía caráter geral. A aquisitiva de domínio, espe­ cífica, denominava-se usucapião.

44. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil, VIII volume, 2» ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 502.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

130

Essa ideia se manteve na Idade Média e refletiu na elaboração do Código Civil francês. Usucapião e prescrição eram disciplinadas de maneira unitária. A distin­ ção residia apenas no fato daquela (usucapião) se referir à pretensão aquisitiva da propriedade, enquanto que esta (prescrição genérica), na via extintiva ou liberatória da pretensão. Registra-se que a linha de pensamento em questão serve de guia para vários ordenamentos jurídicos, a exemplo do Francês (arts. 2.219 a 2.281) e do Espanhol (arts. 1.930 a 1.975). No Brasil, porém, não foi essa a opção legislativa. Assim, compulsando 0 Có­ digo Civil nacional, infere-se que esse trata da prescrição extintiva - denominada, simplesmente, de prescrição - na sua Parte Geral. Já a usucapião é regulada no capítulo dedicado aos Direitos Reais, momento em que 0 legislador sequer faz menção à expressão prescrição aquisitiva. Voltando os olhos à usucapião, infere-se que genericamente são três os seus requisitos gerais e cumulativos: a)

Bem passível de ser usucapido (Idoneidade da Coisa);

b)

Posse mansa e pacífica com animus domini (Posse Qualificada);

c)

0 passar do tempo (Lapso Temporal).

► E na hora da prova?

A prova para 0 Concurso do Ministério Público do Acre, no ano de 2014, realizado pelo CESPE, considerou verdadeira a seguinte assertiva: "Dois elementos estão normalmente presentes nas modalidades de usuca­ pião: 0 tempo e a posse, exigindo-se desta a característica ad usucapionem, referente à visibilidade do domínio e a requisitos especiais, como a continuidade e a pacificidade". Sendo assim, a primeira premissa para a usucapião é a percepção se 0 bem é passível de ser usucapido. Assim, surge a seguinte dúvida: será que todo bem é passível de usucapião? Seguramente a resposta é negativa. inicialmente recorda-se que as terras públicas, em tese, não poderão ser usucapidas, como bem pontuam 0 art. 102 do Código Civil e a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal. ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça?

Malgrado esta premissa, 0 Superior Tribunal de Justiça (RESp 154.123/ PE e 575.572/RS) vem entendendo pelo cabimento da usucapião de enfiteuse sobre terras públicas. Que fique daro: a usucapião não será so­ bre a propriedade, mas sobre a enfiteuse (direito real na coisa alheia). Outrossim, 0 mesmo STJ afirma que à prévia demarcação de faixa de marinha não obstará 0 reconhecimento da usucapião:

Cap. Ill • Propriedade



131

Usucapião de terreno que a União alega ser integrante de faixa de marinha.

A alegação da União de que determinada área constitui terreno de marinha, sem que tenha sido realizado processo demarcatório espe­ cífico e conclusivo pela Delegacia de Patrimônio da União, não obsta o reconhecimento de usucapião. Não é razoável que o jurisdicionado tenha sua preten­ são de reconhecimento da usucapião de terreno que já ocupa com ânimo de dono condicionada à prévia demarcação da faixa de mari­ nha, fato futuro e sem qualquer previsibilidade de materialização. REsp 1.090.847-SP, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, 23.4.13. 4a T. (Info 524). Outrossim, afirma 0 Superior Tribunal de Justiça que a inexistência de registro imobiliário não gerará presunção de que 0 imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado, para afastar a usucapião, com­ provar a titularidade do terreno. Cita-se: •

Usucapião. Imóvel urbano. Registro. Ausência.

A inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usuca­ pião não induz presunção de que 0 imóvel seja público (terras devo­ lutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva. REsp 964.223, Rei. Min. Luis Salomão, 18.10.11. 4a T. (Info 485)

►E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCV Órgão: TJ-AL Prova: FGV - 2018 - TJ-AL - Analista Judiciário - Oficial de Justiça Avaliador Em 2003, Marcelo construiu pequena edificação em uma praça e, desde então, explora comercialmente 0 imóvel com atividade de alimentação e bebidas. Após quinze anos de uso ininterrupto do bem, Marcelo re­ cebe notificação do Município, requerendo que fosse demolida a edifi­ cação e devolvido 0 terreno. Acerca da pretensão do Município, é correto afirmar que: Gabarito: "procede, uma vez que Marcelo jamais exerceu a posse so­ bre 0 bem"..

E um bem condominial? E um bem integrante de um espólio? Poderíam ser usucapidos?

É forte 0 entendimento no sentido de que bens em condomínio indivisível, assim como bens de um espólio, não podem ser objeto da usucapião enquanto se encontrarem nesta situação jurídica. Isso porque, 0 estado de indivisão afasta a posse exclusiva sobre todo 0 bem, sendo juridicam ente im possível a usuca­ pião em face de área incerta. Assim, somente se um condômino ou herdeiro se tornasse possuidor, com exclusividade, de toda a área, afastando os dem ais e preenchendo os requisitos necessários, é que se estaria diante de uma usuca­ pião nestes casos.

132

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Excepcionalmente, porém, será possível usucapir bem condominial em situações de copropriedade. A princípio a copropriedade não admite a usucapião por conta do caráter pro indiviso de quem possui fração ideal. Contudo, acaso se estabeleça posse com exclusividade, alijando os demais, será possível (STJ, REsp 10.978/RJ). ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMÓVEL EM CONDO­ MÍNIO. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA. 1. 0 condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse exclusiva com animus domini e se­ jam atendidos os requisitos legais do usucapião. 2. Agravo regimental provido. (STj, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julga­ mento: 05/11/2013, T3 - TERCEIRA TURMA)

E 0 bem de família, poderá ser usucapido? Quanto ao bem de fam ília, a jurisprudência admite a usucapião (STJ, REsp 174.108/SP). A jurisprudência também já admitiu a supressio em situações nas quais a usucapião é incabível, havendo a supressão do direito daquele que não está a exercitar a posse do bem (supressio) e 0 surgimento do direito do outro que está a utilizar-se da área (surrectio) (STJ, REsp 214.680/SP). E um bem vinculado a um financiamento junto ao Sistema Financeiro de Habita­ ção (SFH), poderá ser usucapido? A resposta é negativa. Se tal bem está sob a titularidade da Caixa Econômica Federal e é afetado a uma finalidade pública, resta inviável ser objeto de usucapião, pois segue 0 regime de bem público. Explica-se. 0 bem apenas está sob a titularidade da Caixa Econô­ mica Federal para fins de financiamento e promoção de acesso à casa própria, de acordo com um programa estatal. Logo, mesmo sendo consabido que a Caixa Econômica Federal é uma empresa pública, com natureza de direito privado, ela atua com finalidade pública e, por conseguinte, os bens afetos a tal atividade se­ rão assim considerados: públicos. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o a s s u n to ?

Seguindo a linha do dito, cita-se interessante julgado do Superior Tri­ bunal de Justiça: Cingiu-se a discussão a decidir sobre a possibilidade de aquisição por usuca­ pião de imóvel vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação e de titularida­ de da Caixa Econômica Federal. Segundo 0 art. 98 do CC/02, são bens públicos aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, e par­ ticulares, por exclusão, todos os demais. A despeito da literalidade do dis­ positivo legal, a doutrina especializada, atenta à destinação dada aos bens, considera também bem público aquele cujo titular é pessoa jurídica de direi­ to privado prestadora de serviço público, quando o bem estiver vinculado à prestação desse serviço público. Especificamente quanto à Caixa Econômica Federal, 0 Decreto-Lei 759/69, que autorizou sua instituição, estabelece como

Cap. ill • Propriedade

133

uma de suas finalidades a de "operar no setor habitacional, como sociedade de crédito imobiliário e principal agente do Banco Nacional de Habitação, com o objetivo de facilitar e promover a aquisição de casa própria, especialmente pelas classes de menor renda da população". Sob essa ótica, não obstante se trate de empresa pública, com personalidade jurídica de direito privado, ao atuar como agente financeiro dos programas oficiais de habitação e órgão de execução da política habitacional, explora serviço público, de relevante função social, regulamentado por normas especiais previstas na Lei 4.380/64. Logo, 0 imóvel vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação, porque afetado à prestação de serviço público, deve ser tratado como bem público, sendo, pois, imprescritível. (REsp 1.448.026-PE, Rei. Min. Nancy Andrighi, por unanimi­ dade, julgado em 17/11/2016, DJe 21/11/2016).

É possível a usucapião de objeto proveniente de crime? A resposta é afirmativa. 0 exercício ostensivo do bem faz cessar clandestinidade ou a violência de modo a caracterizar início de posse. De acordo com 0 STJ "É possível a usucapião de bem móvel proveniente de crime após cessada a clandestinidade ou a violência"45. Estatui 0 art 1.208 do Código Civil que não induzem posse os atos de mera per­ missão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. Para 0 STJ, 0 furto se equipara ao vício da clandestinidade, enquanto que 0 roubo se contamina pelo vício da violência. Assim, a princípio, a obtenção da coisa por meio de violência, clandestinidade ou precariedade caracteriza mera apreensão física do bem furtado, não induzindo a posse. Nesse sentido, é indiscutível que 0 agente do furto, enquanto não cessada a clandestinidade ou escondido 0 bem subtraído, não estará no exercício da posse, caracterizando-se assim a mera apreensão física do objeto furtado. Daí por que, inexistindo a posse, também não se dará início ao transcurso do prazo de usucapião. É essa ratio que sustenta a conclusão de que a res furtiva não é bem hábil à usucapião. Porém, a contrario sensu do dispositivo transcrito, uma vez cessada a violência ou a clandestinidade, a apreensão física da coisa induzirá à posse. Por­ tanto, não é suficiente que 0 bem seja objeto de crime contra 0 patrimônio para se generalizar 0 afastamento da usucapião. É imprescindível que se verifique, nos casos concretos, se houve a cessação da clandestinidade, especialmente quando 0 bem furtado é transferido a terceiros de boa-fé. 0 exercício ostensivo da posse perante a comunidade, ou seja, a aparência

de dono é fato, por si só, apto a provocar 0 início da contagem do prazo de prescrição, ainda que se possa discutir a im possibilidade de transmudação da posse viciada na sua origem em posse de boa-fé. Frisa-se novamente que apenas a usucapião ordinária depende da boa-fé do possuidor, de forma que ainda que

45 STJ. Informativo 656, publicado em 11 de outubro de 2019. REsp 1.637.370-RJ, Rei. Min. Marco Au­ rélio Bellizze, Terceira Turma, por maioria, julgado em 10/09/2019, DJe 13/09/2019.

134

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

a má-fé decorra da origem viciada da posse e se transmita aos terceiros subse­ quentes na cadeia possessória, não há como se afastar a caracterização da posse manifestada pela cessação da clandestinidade da apreensão física da coisa móvel. E, uma vez configurada a posse, independentemente da boa-fé estará em curso o prazo da prescrição aquisitiva. Em síntese, a boa-fé será relevante apenas para a determinação do prazo menor ou maior a ser computado46. Apesar deste entendimento, o mesmo ST] também já decidiu que haverá perda de objeto da ação de usucapião proposta em juízo cível, quando o juízo criminal decretar a expropriação do imóvel usucapiendo, em razão de ter sido adquirido com proventos de crime. Com efeito, in casu, haverá interesse público no aludido confisco. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Seguindo a linha do dito, cita-se interessante julgado do Superior Tri­ bunal de Justiça: Discute-se acerca da possibilidade de 0 juízo cível julgar ação de usucapião sobre bem sequestrado e, posteriormente, confiscado pelo juízo criminal, em razão de 0 imóvel ter sido adquirido com proventos de crime. No direito pátrio, a coordenação entre 0 juízo cível e criminal se dá pelo sistema da separação relativa, em que se admite, embora sem caráter absoluto, proces­ sos paralelos, com a possibilidade de julgamentos discrepantes. Apesar de a independência das instâncias ser regra, os sistemas processuais civil e penal admitem exceções, em que se adota 0 sistema da adesão, por meio do qual uma instância simplesmente adere ao julgamento da outra. É 0 caso do dis­ posto no art. 935, in fine, do Código Civil, que exclui da cognição do juízo cível a controvérsia acerca da materialidade e da autoria do ato ilícito, "quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal". Exemplo da hipótese inversa é a regra que exclui da cognição do juízo criminal a controvérsia acerca do estado civil de pessoa, conforme previsto no art. 92 do Código de Processo Penal. Nessa linha de entendimento, 0 discrímen que permite excepcionar a regra da independência das instâncias, na hipótese analisada, é 0 interesse público de que se reveste 0 confisco. Efetivamente, a par do

interesse do lesado em obter reparação civil, existe 0 interesse público de subtrair do autor do ilícito penal 0 produto do crime ou os bens adquiridos com os proventos da infração. Deveras, observa-se que 0 confisco foi previs­ to como efeito automático da condenação criminal (art. 91, inciso II, do CP), não dependendo de requerimento do lesado, podendo ser decretado de ofício ou a requerimento do Ministério Público (art. 127 do CPP). Observa-se também, sob outro ângulo, que o CPP previu os em bargos de terceiro como

instrumento de defesa do acusado e de terceiros contra essa medida constritiva real (art. 130). Essas previsões normativas evidenciam que a finalidade da norma foi excluir da competência do juízo cível qualquer decisão sobre 0 destino do bem constrito. Nessa ordem de idéias, pode-se concluir que, após decretado 0 confisco do bem por meio de sentença penal condenatória tran­ sitada em julgado, nada resta ao juízo cível senão curvar-se ao provimento exarado pelo juízo criminal, cabendo à parte interessada insurgir-se perante aquele juízo, por meio dos referidos embargos. Assim, considerando-se que.

46 STJ. Informativo 656, publicado em 11 de outubro de 2019. REsp 1.637.370-Rj, Rei. Min. Marco Au­ rélio Bellizze, Terceira Turma, por maioria, julgado em 10/09/2019, DJe 13/09/2019.

Cap. Ill • Propriedade

135

no caso analisado, o juízo cível está subordinado aos comandos da sentença proferida pelo juízo criminal, impõe-se reconhecer que a ação de usucapião deve ser julgada extinta, sem resolução do mérito, por perda do objeto. (REsp 1.471.563-AL, Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por unanimidade, julgado em 26/09/2017, DJe 10/10/2017).

Uma vez verificado que 0 bem é passível de usucapião, há de ser perquirido 0 segundo requisito: posse mansa e pacífica com animus domini. Trata-se da cha­ mada posse qualificada. A posse ad usucapionem ou usucapível tem qualidades jurídicas distintas das de­ mais. Isso porque, traduz uma posse especial, a qual exige a intenção de ser dono animus domini. Ademais, necessita ser mansa, pacífica, contínua e duradoura47. Registra-se que não se demanda que essa posse ad usucapionem seja de boa-fé. Igualmente não se demanda justo título. Isto, porque, na usucapião extraordi­ nária não se exige nem justo título e nem boa-fé. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: DPE-PR Prova: Defensor Público Foi considerada falsa a seguinte assertiva: a posse ad usucapionem é aquela que, além dos elementos essenciais à posse, deve sempre se revestir de boa-fé, decurso de tempo suficiente, ser mansa e pacífica, fundar-se em justo título e ter 0 possuidor a coisa como sua.

Sendo a usucapião uma m odalidade de prescrição aquisitiva da proprieda­ de, pode-se afirm ar que "0 usucapiente não adquire a alguém; simplesmente adquire"48. Nessa senda, a usucapião costuma ser também denominada de prescrição aquisitiva. São tantas as semelhanças com 0 instituto da prescrição extintiva que 0 art. 1.244 do CC estende ao possuidor as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição "as quais também se aplicam à usucapião". Excepciona-se aqui a possibilidade de usucapião entre cônjuges (art. 1.240-A do CC), ante a im possibilidade do curso da prescrição (art. 197, I, do CC), tema que será visto adiante, ao tratarmos da usucapião por abandono de lar. Perceba que nas causas impeditivas 0 prazo sequer começa a fluir para 0 fim da usucapião. Já as causas suspensivas são responsáveis por paralisar 0 prazo já em curso. Cessada a causa suspensiva, este prazo, antes paralisado e sobrestado, volta a ser contado, justamente de onde parou. Já as causas interruptivas são aquelas que destroem a contagem inicialmente realizada, recomeçando-se "do

47. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 152. 48. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, 2® ed. Rio de Janei­ ro: Forense, 1984. p. 503-

136

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

zero" um novo computo. Todas são hipóteses taxativas previstas em lei. Esta disci­ plina se aplicará à usucapião também49. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: VUNESP Órgão: TJ-SP Prova: Juiz Substituto Não sendo proprietário de imóvel, Nelson passa a ocupar como seu, no ano de 2005, imóvel localizado em área urbana de Brasília, com 450 me­ tros quadrados. Ali estabelece sua moradia habitual, tornando pública a posse. 0 imóvel é de propriedade de Fábio, embaixador brasileiro em atividade na Bélgica desde 0 ano 2000. Quando retorna ao Brasil no ano de 2008, Fábio se aposenta e fixa residência em Santa Catarina. No ano de 2016, Nelson propõe ação de usucapião contra Fábio. Considerando ser incontroverso que Nelson exerce a posse, sem quais­ quer vícios, assinale a alternativa correta. Gabarito: "A ação é improcedente, pois, embora a posse tenha sido exer­ cida com animus domini, de forma contínua e pacífica, faltou 0 preenchi­ mento do requisito temporal de 10 (dez) anos, em razão da existência de causa impeditiva atinente à ausência de Fábio do país, 0 que impediu a contagem do prazo da prescrição aquisitiva entre 2005 e 2008".

E seria possível a soma das posses na usucapião? A resposta é positiva. A soma das posses para fins de usucapião, seja inter vivos (compra da posse, acessio possessionis), seja causa mortis (herança, sucessio possessions), é plenamente aceita e possível no ordenamento jurídico nacional (art. 1.243 do CC). ► E na hora da prova?

(FCC - Procurador do Estado - MT/2016) José, embora sem justo título nem boa-fé, exerceu, por dez anos, sem interrupção, nem oposição, a posse de imóvel registrado em nome de Caio, menor impúbere, nele estabelecendo sua moradia habitual. De acordo com 0 Código Civil, Gabarito: "não ocorreu usucapião, porque se aplicam à usucapião as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição". Ano: 2018 Banca: FEPESE Órgão: PGE-SC Prova: PGE-SC - 2018 - Procurador do Estado 0 Código Civil estabelece a usucapião como uma forma de aquisição da propriedade imóvel. 0 Sr. Valdomiro, sem interrupção e continuamen­

te, sem oposição e pacificamente, possui ha 6 anos, como seu, imóvel na praia para passar alguns feriados, tendo adquirido por doação de seu tio-avô, que 0 possuía, quando da doação, há 10 anos, de igual modo sem interrupção e continuamente, sem oposição e pacificamente.

49. Para aprofundamento do tema causas impeditivas, suspensivas e interruptivas da prescrição, sugere-se a consulta do Capítulo intitulado de Prescrição e Decadência na Parte Geral (Vol. X).

Cap. Ill • Propriedade

137

Inexistem documentos das aquisições, sendo as posses adquiridas por contrato verbal. Considerando as disposições do Código Civil sobre usucapião, assinale a alternativa correta. Gabarito: "0 Sr. Valdomiro poderá requerer a aquisição da proprieda­ de do imóvel por usucapião, por ter preenchido os requisitos legais". ►Atenção!

A doutrina vem sustentando a tese de que a soma de posses apenas seria possível na usucapião extraordinária e ordinária, não sendo apli­ cada às modalidades especiais de usucapião. Nesse sentido caminha o Enunciado 317 da III Jornada em Direito Civil "A accessio possessionis, de que trata 0 art. 1.243, primeira parte, do Código Civil, não encontra aplicabilidade relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade da usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente". Outrossim, sobre 0 tema é interessante 0 Enunciado 497 da V Jornada em Direito Civil, ao admitir que "0 prazo, na ação de usucapião, pode ser completado no curso do processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor".

0 último requisito genérico para a aquisição proprietária pela usucapião é 0

passar do tempo. Este, segundo parâmetros legislativos, irá variar de modalidade para modalidade, sendo possível, até mesmo, sua eventual redução em virtude de justo título, boa-fé e função social. ►Atenção!

Recorda-se, ainda, que "A usucapião pode ser arguida em defesa" (Sú­ mula 237, STF), sendo certo que "0 possuidor deve ser citado, pessoal­ mente, para a ação de usucapião" (Súmula 263, STF), como também que "0 confinante certo deve ser citado, pessoalmente, para a ação de usucapião". (Súmula 391, STF). ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Em interessante julgado, 0 Superior Tribunal de Justiça ponderou a usu­ capião com 0 registro pretérito de propriedade. Cita-se: Usucapião. Imóvel urbano. A usucapião, forma de aquisição originária da propriedade, caracteriza­ da, entre outros requisitos, pelo exercício inconteste e ininterrupto da posse, prevalece sobre 0 registro imobiliário, não obstante os atributos de obrigatoriedade e perpetuidade deste, em razão da inércia prolon­ gada do proprietário em exercer os poderes decorrentes do domínio. 2. A determinação do art. 942 do CPC, diz respeito à citação daquele em cujo nome estiver registrado 0 imóvel usucapiendo, bem como dos confinantes, não se exigindo a juntada de certidão do Cartório de Registros

138

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

de Imóveis relativamente a cada um dos confrontantes, até porque as confrontações, como parte da descrição do bem, incluem-se no registro do imóvel usucapiendo. 3. Provido 0 recurso especial, com 0 afasta­ mento do requisito da juntada de certidões imobiliárias atinentes aos confrontantes, não há como passar ao julgamento do mérito, pois a ape­ lação devolveu ao conhecimento do Tribunal de origem matéria fática, envolvendo, inclusive, ação reinvidicatória conexa e apensada, relativa à origem e qualidade da posse alegada pela prescribente, matéria essa que não foi apreciada pelo Acórdão recorrido, de modo que não pode, agora, ser enfrentada neste julgamento, visto que isso somente seria possível em se tratando de matéria exclusivamente de direito (CPC, art. 515» § 3°)- (REsp 952.125, rei. Min. SIDNEI BENETI, 7.6.11). 3a T. (Info 476)

É justamente por conta desta variação do tempo que surgem as m odalidades de usucapião, as quais passam a ser enfrentadas. Sobre o tema, entende o Supe­ rior Tribunal de Justiça ser possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel com a implementação do requisito temporal no curso da dem anda50. Portanto, cabe ao magistrado examinar 0 requisito temporal da usucapião ao proferir a sentença, permitindo que o prazo seja completado no curso do processo judicial. Essa linha de raciocínio também é confirmada pelo Enunciado no 497 da V Jornada de Direito Civil (STJ/CJF), segundo 0 qual "0 prazo, na ação de usucapião pode ser completado no curso do processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor". Evita-se, com isso, que o autor proponha nova ação para obter o direito que já podería ter sido reconhecido se o Poder Judiciário apreciasse eventual fato constitutivo superveniente, cuja medida se encontra em harmonia com os princí­ pios da economia processual e da razoável duração do processo.

a) Usucapião extraordinária (art. 1.238, CC) Trata-se de espécie de usucapião que independe de título ou de boa-fé, con­ tentando-se com 0 mero decurso do prazo, em regra, de 15 (quinze) anos, na forma do caput do art. 1.238 do Código Civil. ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

RECONHECIMENTO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. REQUISITOS. ART. 1.238 DO CCB. REFORMA. REEXAME DE PROVAS. ANÁLISE OBSTADA PELA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Em se tratando de aquisição originária por usu­ capião extraordinária, que, para sua configuração, exige um tempo mais prolongado da posse (no CC, de 16, 20 anos; no CC, de 2002,15 anos), em comparação com as demais modalidades de usucapião, a ela dispensam-se as exigências de justo título e de posse de boa-fé. 2. A reforma do aresto quanto à comprovação dos requisitos para 0 reconhecimento da usucapião extraordinária, demandaria, necessariamente, 0 revolvimento

50. REsp 1.361.226-MG, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por unanimidade, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018.

Cap. Ill • Propriedade

139

do complexo fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súmula 7/STj. 3. Agravo regimental não provido. (STj - AgRg no AREsp: 499882 RS 2014/0080746-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 24/06/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2014). Contudo, este prazo de 15 (quinze) anos poderá ser reduzido para 10 (dez), acaso seja constada a posse trabalho, a qual consiste na moradia habitual ou obras ou serviços de caráter produtivo realizadas no bem. Verifica-se, por conse­ guinte, a função social como notícia apta à redução do prazo de usucapião, conso­ ante a redação do parágrafo único do art. 1.238 do Código Civil. Nesta ótica, sustenta Flávio Tartuce51 que 0 preceito em destaque apresenta duas m odalidades de usucapião extraordinária: (i) a regular ou comum, prevista na cabeça do dispositivo; e (ii) a decorrente da posse-trabalho, prevista no pa­ rágrafo único. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: CESPE Órgão: MPE-RR Prova: Promotor de Justiça Subs­ tituto Pedro reside com a sua família, por mais de quinze anos, sem interrup­ ção nem oposição, em um imóvel, de trezentos metros quadrados, de propriedade de João. Mesmo sem comprovar boa-fé quanto à posse, Pedro ajuizou ação por meio da qual pleiteia que seja julgado proce­ dente seu pedido de propriedade do imóvel. Nessa situação hipotética, observa-se um caso de usucapião: Resposta: extraordinária. Ano: 2018 Banca: CESPE Órgão: TJ-CE Prova: CESPE - 2018 - TJ-CE - Juiz Substituto João propôs ação de usucapião extraordinária em uma das varas cíveis da comarca de Fortaleza - CE. Nessa situação hipotética, Gabarito: "a sentença servirá de título para registro no cartório de imó­ veis, em caso de procedência da ação".

Ocorrendo a usucapião extraordinária, a anterior matrícula do imóvel é arqui­ vada, sem qualquer tipo de sucessão da titularidade. Isso porque, a usucapião é causa originária de aquisição livre e desembaraçada da propriedade, de modo que há uma quebra na cadeia sucessória da matrícula. Destarte, é plenamente possível que uma pessoa adquira a propriedade pela

usucapião extraordinária de mais de um bem, independentemente da área, desde que preencha os requisitos identificados anteriormente. Pergunta interessante diz respeito à contagem de prazos da usucapião ex­ traordinária caso 0 computo tenha começado à época do Código Civil anterior e adentre 0 vigente. Como proceder? 51. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 166.

140

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Pois bem. Inicialmente deve-se observar a regra geral de transição do art. 2.028 do CC, aplicável às hipóteses em que 0 Código Vigente acabou reduziu 0 prazo da lei pretérita. Nessa toada, firma 0 art. 2.028 que "serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada". Assim, se já houver transcorrido mais da metade do prazo da lei pretérita quando da entrada em vigor do CC/02, 0 prazo seguirá a contagem na forma da norma anterior (CC/16). Entrementes, não tendo decorrido mais da metade do prazo da lei anterior, 0 prazo será 0 da lei nova, tendo como termo inicial a data de vigência do CC/02 - dia 11.01.2003. Nesse sentido coloca-se 0 Enunciado 299 do

Conselho da justiça Federal. Outrossim, deve-se estar atento à regra de transição prevista no art. 2.029 do Código Civil: "até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos esta­ belecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja 0 tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916". Diga-se que esta regra aplicar-se-á, inclusive, na desapropriação judicial indireta (art. 1.228, §§ 4° e 5°), como posto no art. 2.030 do Código Civil. ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Usucapião. Prescrição. 1. Ao usucapião extraordinário qualificado pela "posse-trabalho", pre­ visto no art. 1.238, parágrafo único, do CC/2002, a regra de transição aplicável não é a insculpida no art. 2.028 (regra geral), mas sim a do art. 2.029, que prevê forma específica de transição dos prazos do usu­ capião dessa natureza. 2. 0 art. 1.238, parágrafo único, do CC/2002, tem aplicação imediata às posses ad usucapionem já iniciadas, "qualquer que seja 0 tempo transcorrido" na vigência do Código anterior, deven­ do apenas ser respeitada a fórmula de transição, segundo a qual serão acrescidos dois anos ao novo prazo, nos dois anos após a entrada em vigor do Código de 2002. 3. A citação realizada em ação possessória, extinta sem resolução de mérito, não tem 0 condão de interromper 0 prazo da prescrição aquisitiva 4. É plenamente possível 0 reconhe­ cimento do usucapião quando 0 prazo exigido por lei se exauriu no curso do processo, por força do art. 462 do CPC, que privilegia 0 estado atual em que se encontram as coisas, evitando-se provimento judicial de procedência quando já pereceu 0 direito do autor ou de improcedência quando 0 direito pleiteado na inicial, delineado pela causa petendi narrada, é reforçado por fatos supervenientes. (REsp 1.088.082, rei. Min. LUIS F. SALOMÃO, 2.2.10. 4a T. (Info 421).

b) Usucapião ordinária, regular ou comum (art. 1.242, CC) Nesta modalidade de usucapião exige-se tanto 0 justo título, como a boa-fé, sendo ambos requisitos específicos. Exatamente por isso que 0 lapso temporal é

menor, variando entre 10 (dez) ou 5 (cinco) anos.

Cap. Ill • Propriedade

141

Nessa senda, na usucapião ordinária, acaso haja apenas o justo título e a boa-fé, o prazo será de 10 (dez) anos. Todavia, o prazo será de 5 (cinco) anos se 0 imóvel houver sido adquirido onerosamente, com base em registro posteriormen­ te cancelado, e os possuidores tiverem estabelecido moradia ou realizado investi­ mentos sociais e econômicos. Mais uma vez infere-se a posse-trabalho, decorrente da função social, como fator redutor do prazo52. Mas 0 que seria 0 justo título? Segundo a doutrina m ajoritária, na forma do Enunciado 86 do Conselho da Jus­ tiça Federal, "A expressão justo título contida nos arts. 1.242 e 1.260 do CC abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, indepen­ dentemente de registro". ►Como o Superior Tribunal de Justiça já decidiu a questão?

No REsp 171.204/GO a 4a Turma afirmou que "a jurisprudência do STJ reconhece como justo título hábil a demonstrar a posse 0 instrumento particular de compromisso de compra e venda", aplicando a própria Súmula 84 para reconhecer a usucapião no caso concreto ali debatido. Portanto, 0 instrumento particular de compra e venda é justo título para 0 Superior Tribunal de Justiça. Na mesma linha caminha 0 Enuncia­ do 86 do Conselho da Justiça Federal.

Da mesma forma ocorrida com a usucapião extraordinária, é possível que uma pessoa adquira a propriedade pela usucapião ordinária de mais de um bem, independentemente da área, desde que preencha os requisitos identificados an­ teriormente. ►Atenção!

0 que é a usucapião tabular (convalesça registrai)? Constitui uma variável da usucapião ordinária e está prevista no art. 214, § 5°, da Lei n° 6.015/73 - Lei de Registros Públicos, acrescido pela Lei Fede­ ral 10.931/04. É a possibilidade de um réu, em uma ação de invalidade de registro público, alegar a usucapião em seu favor para, assim, adquirir a propriedade. Nesse caso 0 juiz, na mesma sentença que declara a inva­ lidade do registro, reconhecerá a usucapião e manterá 0 réu na posse, seguindo requisitos próximos aos da usucapião ordinária.

► E n a h o ra d a p ro v a ?

(TRF 4 - Juiz Federal Substituto - 4a região/2016) Foi considerada correta a assertiva: "0 prazo da usucapião documen­ tal, também conhecida como tabular, é de 5 anos."

52. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 165.

142

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Pois bem. Vencidas as modalidades regulares de usucapião, passaremos a en­ frentar as especiais. Estas se dão em favor de pessoas que não são proprietárias de nenhum outro imóvel, sendo dotadas de ampla função social e buscando sua pri­ meira moradia. Serão estudados dois tipos de usucapião especial (rural e urbano).

c)

Usucapião especial rural, agrária, pro-labore ou rústica (art. 1.239, CC; art. 191, CF/88 e Lei 6.969/8153)

Historicamente foi a Constituição Federal de 1934 0 diploma que, de forma inédita, tocou no tema usucapião rural. A partir de então 0 instituto sem pre foi recordado pelos textos constitucionais, à exceção da Constituição Federal de 1967 e da Emenda Constitucional n° 1 de 1969, que foram omissas sobre 0 assunto54. Conquanto, mesmo no citado período de omissão constitucional, 0 instituto da usucapião rural manteve-se vivo através dos diplomas legislativos infraconstitucionais - remete-se, em especial, à Lei 4*504/64 (Estatuto da Terra - art. 98) e à Lei 6.969/81, a qual regula a modalidade prescritiva, por inteiro, até os dias atuais55. Atualmente, além da Lei 6.969/81, 0 instituto é previsto pelo art. 1.239 do Código Civil e pelo art. 191 da Constituição Federal de 1988, com enunciados normativos similares. Logo, a significação do assunto depende de uma análise normatiza siste­ matizada, com vistas à legalidade constitucional56. Pois bem. A fim de assegurar 0 direito constitucional à moradia, a Constituição regulou sobre a usucapião rural em seu art. 191, verberando que "aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquen­ ta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade".

53. Equivocadamente, 0 art. 2° da Lei 6.969/81 admitiu a usucapião sobre terras devolutas (espécies de propriedade pública). Contudo, a jurisprudência e a doutrina majoritárias e pacíficas jamais admitiram esta prática. 54. FARIAS, Cristiano Chaves e; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Reais. 11a Edição. Salvador: Editora Atlas, 2015, p.386. 55. Como bem obtempera Maria Helena Diniz - sem seu Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 24a Edição. São Paulo, Saraiva, 2009, p.173 - a Emenda Constitucional n° 1/69, apesar de ser omissa sobre o assunto, não suprimiu o instituto da usucapião rural, tendo, tão somente, remetido o tema à Lei Federal do Estatuto da Terra. Arremata a autora que não houve na ocasião, na verdade, uma extinção da usucapião pro labo­ re, mas sim uma reformulação nas condições pelas quais se pode adquirir a propriedade por meio dessa usucapião. 56. Por legalidade constitucional entende-se a necessidade de significação das normas infraconstitucionais mediante controle formal e material da Constituição Federal. Impõe-se a necessi­ dade de uma verdadeira filtragem constitucional - nas palavras de Paulo Ricardo Scheir, em sua obra Filtragem Constitucional. Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999 - sendo revisitados e ressignificados os institutos civis, à luz do Texto Maior. Para aprofundamento do assunto, indica-se consulta ao Vol. X - Parte Geral - da Coleção Sinop­ ses para Concursos Públicos, da Editora Juspodivm, em especial 0 capítulo que versa sobre a Constitucionalização do Direito Civil, de autoria dos Professores Luciano L. Figueiredo e Roberto L. Figueiredo.

Cap. Ill • Propriedade

143

► E na hora da prova?

(MPE - SP - Promotor de Justiça - MPE - SP/2019) Em relação à aquisição da propriedade imóvel, assinale a alternativa correta. Gabarito: b) Adquire a propriedade de área de terra em zona rural não superior a 50 hectares aquele que a possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, desde que não seja proprietário de imóvel rural ou urbano. Seguindo os passos da Constituição Federal, 0 Código Civil regulou a matéria no seu art. 1.239, ao afirm ar que há incidência da usucapião agrícola desde que 0 pleiteante "não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia". Da leitura dos dispositivos legais, infere-se que esta m odalidade especial de usucapião traz requisitos específicos. Assim, além do ineditismo da propriedade é imprescindível que 0 postulante não seja dono de imóvel algum - também é necessário 0 decurso de cinco anos, de maneira ininterrupta e sem oposição, - ou seja, mansa e pacificamente - com animus domini. Ademais, é igualmente funda­ mental que a área não seja superior a cinquenta hectares e que a propriedade se torne produtiva ou, não sendo assim, que seja utilizada como moradia. Mas 0 que vem a ser imóvel rural? A Constituição Federal de 1988 definiu que para a conceituação do imóvel rural deve-se observar a sua localização e não a sua destinação. Dessa forma, convém investigar 0 plano diretor do município ou outra lei local que delimite a zona urba­ na, tendo-se como horizonte os critérios do art. 32 do Código Tributário Nacional. Assim, tudo aquilo que estiver fora da zona urbana ou urbanizável será conside­ rado perímetro rural para fins de usucapião constitucional rural. Trata-se, aqui, da aplicação do mesmo critério para determ inar incidência do Imposto Territorial Rural (ITR) ou Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) - Lei 9.393/96, art. 1°. ►Atenção!

Frisa-se que, na forma do art. 3° da Lei Federal n° 6.969/81, não é possível a usucapião agrária para áreas indispensáveis à segurança nacional, assim como para terras habitadas por silvícolas e, finalmente, áreas de interesses ecológicos, tais como as reservas florestais, bioló­ g ic a s , o s p a r q u e s n a c io n a is , e s t a d u a is o u m u n ic ip a is , a s s im d e c la r a d o s

pelo Poder Executivo, assegurada aos atuais ocupantes a preferência para assentamento em outras regiões, pelo órgão competente. E na usucapião rural é preciso respeitar 0 limite máximo de 50 (cin­ quenta) hectares? Sim. Sedimenta a doutrina que "quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usu­ capião especial, ainda que 0 pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir" (Enunciado 313, CJF/STJ).

144

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

E além de limite máximo, a usucapião especial rural havería de obedecer a um limite mínimo? 0 debate é intrigante. Ao mesmo tempo em que se pode pensar no sentido da im possibilidade de fixar limite mínimo - a uma, por não ter a norma estabelecido limite mínimo, e a duas, por objetivar a norma acesso pro­ prietário - , há um claro receio derredor da formação de minifúndios im produti­ vos, compostos por áreas tão pequenas que im passíveis de destinação produ­ tiva. Diga-se que a formação de minifúndios improdutivos é, até mesmo, objeto de vedação do Estatuto da Terra, havendo proibição nas aquisições derivadas. Dentre teses tão instigantes, posiciona-se pela possibilidade da usucapião rural sem limite mínimo. Primus pelo acesso ao mínimo existencial. Secundus, pelo fato de outros institutos da usucapião possibilitarem aquisições em áreas ínfimas - a exemplo da usucapião do Estatuto da Cidade. Tertius, por ser a usucapião uma forma originária de aquisição da propriedade. Alinha-se o posicionamento em questão com o Enunciado 312 do Conselho da Justiça Federal, 0 qual informa que "observado 0 teto constitucional, a fixação de área máxima para fins de usucapião especial rural levará em consideração 0 módulo rural e a atividade agrária regionalizada". Conclui-se, então, que é possível debate sobre a área máxima, mas não sobre a mínima. Destarte, arrematando de uma vez por todas, coloca-se 0 Enunciado 594 do Conselho da Justiça Federal, segundo 0 qual "é possível adquirir a propriedade de área menor do que 0 módulo rural estabelecido para a região, por meio da usucapião especial urbana". ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

• Usucapião especial urbana e área de imóvel inferior ao "módulo urbano". Não obsta 0 pedido dedaratório de usucapião especial urbana 0 fato de a área do imóvel ser inferior à correspondente ao "módulo urbano" (a área mínima a ser observada no parcelamento de solo urbano por determinação infraconstitucional). REsp 1.360.017-RJ, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 27.5.2016. 3a T. (Info 584)

Seguindo a análise do tema, percebe-se que na m odalidade prescricional aquisitiva em estudo, a função social da posse merece privilegiada atenção. Não

basta a sim ples pessoalidade da posse pela m oradia. É necessário 0 exercício de atividade econômica, mesmo que de mera subsistência familiar, na proprie­ dade. Ressalta-se que a atividade não tem que ter cunho rural, podendo ser, inclusive, industrial. Justamente por isso a usucapião rural é conhecida como prescrição pro labore, tendo por objetivo a fixação do homem no campo57. Inviável, logo, a utilização da

57. Na mesma linha coloca-se Carlos Roberto Gonçalves, em seu Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 5a Edição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 262.

Cap. Ill • Propriedade

145

presente modalidade de usucapião por pessoas jurídicas, pelo simples fato de não terem família nem morada. Ainda com os olhos voltados à função social, aquele que irá usucapir a dita área não poderá ser proprietário de outro imóvel, seja rural ou urbano. Cresce, ainda mais, às luzes da socialidade e promoção de acesso ao mínimo existencial. Percebe-se, ainda, que nessa modalidade de usucapião, tanto o Texto Constitu­ cional como o Código Civil não exigem a presença do justo título, muito menos da boa-fé. D'outra banda, recorda-se a impossibilidade de acessio p o ssessio n s (soma de posses) na m odalidade de usucapião em tela. A proibição deve-se ao fato de buscar a presente prescrição aquisitiva características específicas do sujeito que irá usucapir a área, não sendo tais caracteres transm issíveis58. De todo o dito, verifica-se que o escopo da usucapião especial rural é a ocupa­ ção de áreas rurais subaproveitadas, com vistas à promoção da socialidade, tornan­ do-se as terras úteis e produtivas. Aperfeiçoa-se, para os dias atuais, a chamada posse-trabalho romana, com base no histórico instituto da ocupação pro deserto59. 0 STJ entendeu ser juridicamente possível a usucapião de imóveis rurais por pessoa jurídica brasileira com capital majoritariamente controlado por estrangei­ ros, desde que observadas as mesmas condicionantes para a aquisição originária de terras rurais por pessoas estrangeiras - sejam naturais, jurídicas ou equipara­ das60. Com efeito, por força do art. i° , § i° , c/c art. 8° da Lei n. 5.709/1971, a pessoa jurídica brasileira também incidirá nas mesmas restrições impostas à estrangeira, caso participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior. As mesmas condicionantes devem ser observadas tanto na aquisição derivada quan­ to na originária61.

58. No mesmo sentido coloca-se Marco Aurélio S. Viana. Comentários ao Novo Código Civil. V. XVI, P- 4 59. BARRUFINI, José Carlos. Usucapião Constitucional Urbano e Rural. p. 158. 60. REsp 1.641.038-CE, Rei. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 06/11/2018, DJe 12/11/2018. 61. As mesmas limitações existentes na aquisição de terras rurais para as pessoas estrangeiras - se­ jam naturais, jurídicas ou equiparadas - devem ser observadas na usucapião desses imóveis. Da mesma forma, é possível que a pessoa jurídica estrangeira ou equiparada utilize a via prescricional comum para a aquisição de imóvel rural, desde que preencha todos os requisitos previstos na legislação. Com efeito, não poderá se socorrer da usucapião especial de imóvel rural, previs­ ta no art. 191 da CF/88, mas a usucapião comum ainda lhe está ao alcance. Entre os requisitos que deverão ser demonstrados, conforme doutrina, encontram-se: (i) a demonstração de que o imóvel rural se destine à implantação de projetos agrícolas, pecuários ou industriais, vinculados aos objetivos estatutários da pessoa jurídica usucapiente (art. 5° da Lei n. 5.709/1971); (ii) com­ provação de que "a soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras, físicas ou jurí­ dicas, não ultrapassa 1/4 da superfície dos Municípios onde se situem, comprovada por certidão do Registro de Imóveis" (art. 5° do Decreto n. 74.965/1974, que regulamenta a Lei n. 5709/1971); (iii) comprovação de que as pessoas de mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias, em cada Município, de mais de 40% (quarenta por cento) do limite fixado no item anterior (art. 5°, § io, do Decreto n. 74.965/1974); e (iv) a dimensão de totalidade dos imóveis rurais da pessoa jurídica usucapiente não poderá exceder 100 (cem) módulos de exploração - MEIs, nos termos do art. 23 da Lei n. 8.629/1993.

146

Direito Civil • Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Atenção!

Recorde-se que "A presença da União ou de qualquer de seus entes, na ação de usucapião especial, não afasta a competência do foro da situação do imóvel" (STJ, Súmula 11).

d) Usucapião urbana ou pro-misero (art. 1.240, CC; art. 183, CF/88 e art. 9° do Estatuto das Cidades - Lei Federal n. 10.257/01, ou seja: individual ou coletiva): A usucapião urbana nada mais é do que a aplicação da modalidade rural, com suas respetivas adaptações, às áreas urbanas, à luz da função social da proprieda­ de. 0 escopo, em última análise, é a conferência de primeira moradia àquele que não é proprietário de nenhum outro imóvel. Eis 0 conteúdo do art. 183 da CF: "Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á 0 domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". ► E na hora da prova?

(MPE - SP - Promotor de Justiça - MPE - SP/2019) Considere as situações a seguir. I.

Joana Dantas é possuidora de um terreno na cidade de Nova Horizontina por quinze anos, sem interrupção nem oposição, não pos­ suindo título nem boa-fé.

II. Jaciara Ferreira exerce, por três anos ininterruptamente e sem opo­ sição, posse direta, com exclusividade, sobre um apartamento de cento e cinquenta metros quadrados na cidade de Porto Feliz, 0 qual utiliza como sua moradia e cuja propriedade dividia com seu ex-cônjuge, Lindomar Silva, que abandonou 0 lar, não sendo ela proprietária de outro imóvel urbano ou rural. III. Jandira é possuidora de área de terra em zona rural com cem hectares, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, tornando-a produtiva pelo seu trabalho e tendo nela sua moradia, não sendo proprietária de imóvel rural ou urbano. De acordo com 0 Código Civil brasileiro, em regra, 0 domínio integral do respectivo imóvel será adquirido apenas a) nas situações II e III. b) c) d) e)

nas situações I e II. nas situações I e III. na situação I. na situação III. Gabarito: Letra b.

Caminhando na toada do Texto Maior, outros dois dispositivos infraconstitucionais repetem 0 preceito constitucional, 0 qual está presente tanto no Código Civil (art. 1.240), como no Estatuto das Cidades (Lei Federal n° 10.257/01, art. 9°).

Cap. Ill • Propriedade

147

Infere-se pelos comandos legislativos que ante ao escopo de conferência da pri­ meira moradia, a área urbana do imóvel é reduzida, sendo de até duzentos e cin­ quenta metros quadrados, os quais haverão de ser destinados à moradia própria ou de sua família, por aquele que não é proprietário de nenhum outro bem. Outrossim, atento à função social, o prazo é, igualmente, reduzido, sendo exigida posse mansa e pacífica pelo lapso de cinco anos, de forma ininterrupta e sem oposição. Mas o que seria a dita área urbana? Segundo o Enunciado 85 da I Jornada em Direito Civil, "para efeitos do art. 1.240, caput, do novo Código Civil, entende-se por área urbana 0 imóvel edificado ou não, inclusive unidades autônomas vinculadas a condomínios edilícios". Observe-se, de igual sorte, nos termos do Enunciado 314 do CjF/STJ, que "para os efeitos do art. 1.240, não se deve computar, para fins de limite de metragem máxima, a extensão com preendida pela fração ideal correspondente à área comum". ►Atenção!

Convém lembrar não ser possível, para efeito desta modalidade de usucapião, a soma do tempo exigido mediante 0 acréscimo à atual posse da posse dos antecessores, desde que contínuas, pacíficas, com justo título e de boa-fé, como adverte 0 art. 1.243 do Código Civil. Segundo 0 Enunciado 317 da III Jornada em Direito Civil, ao se debruçar sobre 0 art. 1.243, "A accessio possessionis, de que trata 0 art. 1.243, primeira parte, do Código Civil, não encontra aplicabilidade relativa­ mente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade da usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente". ► E na hora da prova?

(Vunesp - Juiz de Direito Substituto - RJ/2016) Rony, há 6 (seis) anos ininterruptos e sem oposição, possui como sua uma pequena casa de 90 m2, em área urbana, onde reside com sua famí­ lia. Não é proprietário de outro imóvel, urbano ou rural. Anteriormente à sua posse, a casa era ocupada por um amigo seu que se mudou para outro Estado, mas Rony não sabe a que título seu amigo ocupava 0 imó­ vel. Dois anos após a ocupação por Rony, foi averbada na matrícula do imóvel uma certidão de distribuição de uma ação de execução em face do formal proprietário do bem. Rony não recebeu notícia da averbação realizada. Diante dessas circunstâncias, é correto afirmar que Gabarito: se operou a prescrição aquisitiva em favor de Rony, pela de­ nominada usucapião especial urbana residencial individual.

e)

Usucapião de meação ou por abandono do lar

Com 0 advento da Lei Federal n° 12.424/11, foi acrescido 0 art. 1.240-A ao Código Civil, com a seguinte redação: "Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterrup­

148

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

tamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou 0 lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á 0 domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". Interessante notar que 0 direito à aquisição da meação não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez (§ 1° do art. 1.240-A, CC). Entre as várias reflexões que se poderia fazer derredor do instituto, tais como a redução significativa do prazo de usucapião para apenas dois anos, a legitimidade processual restrita apenas aos casais do matrimônio, da união estável ou da união homoafetiva (por analogia), ou mesmo a semelhança com a usucapião constitucional urbana, decerto que a mais polêmica está no que concerne ao abandono do lar. Sobre 0 abandono do lar, a doutrina cível elaborou 0 Enunciado 595 na VI Jor­ nada em Direito Civil, com 0 seguinte teor " 0 requisito abandono de lar deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião fam iliar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou da união estável". Em suma-síntese: pela letra fria do instituto, 0 abandono do lar é requisito sem 0 qual não se poderá adm itir a usucapião de meação. Tal abandono é fático, não demandando análise da culpa. Avança esta mesma doutrina, agora já cristalizada no Enunciado 500, da V Jornada em Direito Civil, para afirm ar expressamente a possibilidade de incidên­ cia da usucapião de meação para casais homoafetivos; veja: "A m odalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade co­ mum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades fam iliares, inclusive as homoafetivas". 0 raciocínio, aqui, é clarividente à luz solar, posto que em sendo 0 instituto aplicável à união estável (art. 1.240-A do CC), somado ao fato de que às uniões homoafetivas são aplicadas, por analogia, às regras da união estável (ADPF132-RJ), é cristalina à aplicação da normativa aos casais homoafetivos. Curioso ainda perceber que a novel redação do art. 1.240-A do Código Civil afas­ tou 0 impedimento e a suspensão do curso de prescrição aquisitiva entre cônjuges e companheiros. Dessa forma, não mais incide 0 art. 197, I do Código Civil para a usucapião, inferindo-se importante exceção ao art. 1.244 do vigente diploma cível. ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

Ano: 2018 Banca: CESPE Órgão: DPE-PE Prova: CESPE - 2018 - DPE-PE Defensor Público Roberto abandonou 0 lar e sua companheira, Francisca, no Recife - PE e foi para São Paulo - SP, deixando um imóvel urbano de 120 m2, adquirido one­ rosamente na constância da união estável, mas registrado no cartório de imóveis apenas no nome de Roberto. Francisca não tinha outra propriedade

Cap. Ill • Propriedade

149

imóvel e residiu no local ininterruptamente e sem oposição. Após três anos, Roberto voltou ao Recife - PE com o propósito de retirar Francisca do imóvel. Considerando essa situação hipotética, assinale a opção correta. Gabarito: "Roberto, por ter abandonado o lar, não terá direito ao imó­ vel, porque Francisca usucapiu o bem".

f)

Usucapião indígena

0 Código Civil, desde a parte geral, destaca expressamente que a disciplina jurídica envolvendo os índios há de ser regulada por leis especiais. É assim, por exemplo, no parágrafo único do art. 40 do CC, quando à capacidade de fato ou de exercício dos índios.

Nessa esteira, a Lei Federal n° 6.001/73 - Estatuto do índio - admite, em seu art. 33, a usucapião tanto para 0 índio, quanto para 0 silvícola (índio sem hábito urbano). Eis 0 conteúdo normativo: " 0 índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena". Apesar de 0 art. 40, da Lei Federal n° 6.001/73, distinguir os índios isolados dos integrados e, finalmente, dos índios em via de integração, todos estes podem, em tese, lançar mão da usucapião indígena, a qual tem vistas à função social e manu­ tenção da vida humana digna. Observe que, pela lei específica, silvícolas são os índios sem hábitos urbanos, que vivem nas florestas - absolutamente incapazes, sendo os seus atos, sem assis­ tência do órgão tutelar (FUNAI), nulos. Já os índios integrados são capazes. Interessante observar que a legislação extravagante admite ao índio proce­ dimento específico para pleitear sua capacidade plena, desde que 0 requerente cumpra os seguintes requisitos: a)

idade mínima: 21 (vinte e um) anos;

b)

conhecer a língua portuguesa;

c)

habilitação para 0 exercício de atividade útil;

d)

razoável compreensão dos usos e costumes. ►Atenção! 0 Supremo Tribunal Federal já decidiu no Informativo 509, datado de

setembro de 2008, que os crimes comuns praticados por índios entre si, que não se relacionem à divisão de terras ou elementos da cultura indígena, bem como os crimes entre índio e civil, são de competência da justiça Comum Estadual. A competência da Justiça Federal, insculpida no art. 109, XI, da CF, será delimitada a questões relacionadas à divisão de terras ou aos elemen­ tos da cultura indígena, na forma da Súmula 140 do Superior Tribunal de Justiça.

150

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 fato é que, sendo ou não silvícola, o índio terá a possibilidade de m anejar uma específica ação de usucapião. Tal forma aquisitiva proprietária, todavia, não poderá ter como objeto as terras do domínio da União ocupadas por tribos, bem como as já reservadas pelo Estatuto do índio, na forma do parágrafo único do art. 33 da Lei Federal n° 6.001/73. ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: PCE-AP Prova: FCC - 2018 - PCE-AP - Procu­ rador do Estado. Adquire a propriedade pela usucapião Gabarito: "0 índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares".

g)

Usucapião administrativa

0 art. 1.071 do CPC/15 acresceu ao Capítulo III, do Título V, da Lei n° 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), 0 art. 216-A, para admitir, sem prejuízo da via jurisdicional, 0 pedido de reconhecimento extrajudicial de usuca­ pião, processado diretamente perante 0 cartório do registro de imóveis da comar­ ca em que estiver situado 0 imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, devidamente representado por advogado.

Desde então, não há mais dúvida alguma: é possível, no Brasil, 0 reconheci­ mento da usucapião extrajudicial ou administrativo, a ser processado perante 0 cartório de registro de imóveis. Para tanto, 0 requerente deverá apresentar ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando 0 tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme 0 caso e suas circunstâncias. Além disso, a norma exige a apresentação de planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profis­ sional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou aver­ bados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes. Evidentemente que 0 aludido requerimento pressupõe a inexistência de pro­ cesso judicial. Logo, será imprescindível demonstrar isso mediante a juntada de certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente. Acaso necessária, a prova do justo título deverá ser feita, como também deve­ rá 0 autor do pedido carrear documentos que demonstrem a origem, a continui­ dade, a natureza e 0 tempo da posse, tais como 0 pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre 0 imóvel. De posse de tais documentos, 0 pedido será autuado pelo registrador, prorro­ gando-se 0 prazo da prenotação até 0 acolhimento ou a rejeição do pleito. Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direi­ tos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel

Cap. Ill • Propriedade

151

usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretando-se silêncio como discordância. 0 oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Fe­ deral e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem em 15 (quinze) dias sobre 0 pedido. Essa providência é essencial, afinal de contas, 0 bem objeto do pedido pode ser público e, como sabemos, bem público não pode ser usucapido (CC, art. 102).

0 oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interes­ sados, que poderão se manifestar, igualmente, em 15 (quinze) dias. Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis. Transcorrido 0 prazo das notificações e acaso não haja nenhuma outra pendên­ cia de diligências, achando-se em ordem a documentação, com inclusão da con­ cordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis con­ finantes, 0 oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for 0 caso. Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar 0 procedimento de dúvida, nos termos desta Lei. De igual sorte, é certo que se ao final das diligências a documentação não es­ tiver em ordem, 0 oficial de registro de imóveis rejeitará 0 pedido de usucapião administrativa. A rejeição do pedido extrajudicial não im pede 0 ajuizamento de ação de usucapião. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usuca­ pião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direi­ tos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro inte­ ressado, 0 oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente em endar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. Em arremate, é importante recordar que a usucapião judicial passou a se sub­ meter ao procedimento comum ordinário no CPC/15. Vale dizer, não mais existe 0 procedimento especial de usucapião.

h) Regularização Urbana Fundiária (Reurb) A Lei 13.465/2017 trouxe várias novidades acerca do tema regularização fundiá­ ria. Dentre elas, 0 instituto da Regularização Fundiária Urbana (REURB) e a questão da Legitimação Possessória e Fundiária.

152

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Objetiva a aludida norma m edidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento ter­ ritorial urbano, com a consequente titulação possessória e proprietária de seus ocupantes (art. 9°). Mas 0 que seria um núcleo urbano informal? Entende-se por núcleo urbano informal aquele clandestino, irregular, ou no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua implantação ou regulari­ zação (art. 11). E como se dará a regularização deste núcleo urbano informal? Para implementação do Reurb, a normatização trouxe dois importantes meca­ nismos jurídicos: Legitimação da Posse e Legitimação Fundiária. Vamos iniciar com o estudo da Legitimação da Posse. A legitimação possessória d ar-se-á através de ato do Poder Público, destinado a conferir título ao beneficiário ocupante de imóvel privado, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel privado, objeto da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse. Tal título é conversível em direito real de propriedade (art. 25). A legitimação da posse não se aplica a imóveis urbanos situados em área de titularidade do Poder Público. Assim como a posse, a legitimação da posse poderá ser transferida, seja por ato causa mortis ou inter vivos. 0 título de legitimação de posse poderá ser

cancelado pelo Poder Público emi­

tente, quando constatado que as condições estipuladas na norma deixaram de ser satisfeitas, sem que seja devida qualquer indenização àquele que irregularmente se beneficiou do instrumento. Pois bem. Realizada a legitimação da posse, mediante título devidamente expedido, após o prazo de 5 (cinco) anos terá o beneficiário automática conversão em título de propriedade, através da modalidade de usucapião especial urbana, independente­ mente de prévia provocação ou ato registrai. Assim, bastará, além do título devida­ mente expedido e do prazo de 5 (cinco) anos, que 0 beneficiário não seja proprie­ tário de outro imóvel urbano ou rural, utilize do bem para sua moradia ou de sua família e a área não seja superior a 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados. Mas 0 que fazer se 0 beneficiário não se am oldar aos requisitos da usucapião especial urbana? Com efeito, é possível que a área seja superior a 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados. Ou, ainda, que 0 beneficiário tenha outros bens; não utilize 0 imóvel para moradia própria ou da família...

Cap. Ill . Propriedade

153

Nestes casos, para a conversão do título de legitimação da posse em proprie­ dade será necessária a comprovação dos requisitos legais estabelecidos para a respectiva modalidade de usucapião aplicável, bem como requerimento do inte­ ressado junto ao registro de imóveis competente. Veja-se que, a priori, ainda que nesta situação, manter-se-á uma usucapião administrativa. A legitimação de posse, após convertida em propriedade, constitui forma ori­ ginária de aquisição de direito real, de modo que a unidade im obiliária com destinação urbana regularizada restará livre e desem baraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio beneficiário. E o que seria a Legitimação Fundiária? Traduz um modo originário de aquisição da propriedade, conferido por ato do Poder Público e exclusivamente no âmbito da Reurb. Aplica-se àquele que detiver área im obiliária pública ou possuir área im obiliária privada como sua, com destinação urbana e integrante de núcleo urbano informal, consolidado e existente em 22 de dezembro de 2016.

Veja-se, aqui, interessante diferença entre a legitimação possessória e a fun­ diária. Enquanto aquela (possessória) não se aplica aos imóveis públicos; a fundi­ ária tem, sim, tal âmbito de incidência. Para que tal legitimação fundiária seja concedida ao beneficiário, dem anda-se a presença de alguns requisites. São eles: I - que 0 beneficiário não seja concessio­ nário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; II - que 0 beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto e III - que em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido pelo Poder Público 0 interesse público de sua ocupação (art. 23). A legitimação fundiária importará em modo originário de aquisição proprie­ tária, recebendo 0 beneficiário a unidade imobiliária livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitima­ do. Deverão, entretanto, ser transportadas as inscrições, as indisponibilidades ou os gravames existentes no registro da área maior originária para as matrículas das unidades imobiliárias que não houverem sido adquiridas por legitimação fundiária. Na Reurb de imóveis públicos, a União, os Estados, 0 Distrito Federal e os Mu­ nicípios, bem como as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer 0 direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária. Dentro deste cenário, conclui-se 0 grande olhar social presente na Lei 13.465/17, visionando acesso possessório e proprietário. Justo por isso, são os objetivos do Reurb: "I - identificar os núcleos urbanos informais que devam ser regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a m elhorar as condições urbanísticas e am bientais em

154

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

relação à situação de ocupação informal anterior; II - criar unidades im obiliá­ rias compatíveis com o ordenam ento territorial urbano e constituir sobre elas direitos reais em favor dos seus ocupantes; III - am pliar o acesso à terra urba­ nizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a perm anência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados; IV - promover a integração social e a geração de emprego e renda; V - estim ular a resolução extrajudicial de conflitos, em reforço à consensualidade e à cooperação entre Estado e sociedade; VI - garantir o direito social à m oradia digna e às condições de vida adequadas; VII - garantir a efetivação da função social da propriedade; VIII - ordenar o pleno desenvolvim ento das funções sociais da cidade e garantir 0 bem -estar de seus habitantes; IX - concretizar o princípio constitucional da efi­ ciência na ocupação e no uso do solo; X - prevenir e desestim ular a formação de novos núcleos urbanos informais; XI - conceder direitos reais, preferencialmente em nome da mulher e XII - franquear participação dos interessados nas etapas do processo de regularização fundiária" (art. 10). ►E na hora da prova?

(FCC - Defensor Público - DPE - SP/2019) A regularização fundiária repre­ senta importante instituto de política urbana, já que permite ou a ade­ quação de espaços irregulares ou então 0 reconhecimento de direitos, 0 que garante aos interessados maior segurança jurídica e melhores condições de moradia. Sobre a regularização fundiária urbana e a sua nova normativa legal, é correto afirmar: a) 0 instituto jurídico da usucapião é autônomo e não poderá ser empregado no âmbito da regularização fundiária urbana. b) A legitimação de posse também se aplica aos imóveis urbanos si­ tuados em área de titularidade do poder público, desde que haja autorização legal específica. c) Na regularização fundiária urbana de interesse social de imóveis públicos, 0 ente público titular do domínio fica autorizado a reco­ nhecer 0 direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado. d) A demarcação urbanística é condição essencial para 0 processa­ mento e a efetivação da legitimação da posse. e) A legitim ação de posse som ente poderá se r transferida por ato

inter vivos. Gabarito: letra c.

i)

Usucapião Coletiva

0 fenômeno social das comunidades carentes (também denominadas favelas) dá ensejo a situações nas quais a população de baixa renda ocupa terrenos de modo desordenado (coletiva), mas de maneira mansa e pacífica. Sendo assim, em atenção ao direito de moradia (art. 6° da CF), bem como da função social da propriedade (art. 5°, inciso XXIII, da CF), necessitou o ordenamento jurídico fazer uma leitura da questão fincada na usucapião.

Cap. Ill • Propriedade

155

Por conta disso, a Lei Federal n° 10.257/01, denominada Estatuto das Cidades, alterado pela Lei 13.465/2017, disciplina que os núcleos urbanos informais existen­ tes, sem oposição há mais de cinco anos, e cuja área total, dividida pelo número de possuidores, seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por pos­ suidor são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possui­ dores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural (art. 10). Nesse caso, 0 possuidor poderá, para 0 fim de contar 0 prazo exigido por este preceito normativo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que am­ bas sejam contínuas (§ 1°, art. 10). Trata-se da aplicação da acessio possessions e sucessio possessions. Nessa toada, mediante processo com prolação de sentença (§ 2®, art. 10), 0 Juiz da causa atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo acordo escrito entre estes coproprietários estabelecendo frações ideais diversas (§ 3°, art. 10). Nessa senda, para a verificação da usucapião coletiva mister que estejam pre­ sentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: a)

Imóvel localizado em área urbana, com posse contínua, mansa e pacífica (sem oposição), com 0 animus domini, pelo prazo de, ao menos, cinco anos;

b)

Não seja possível averiguar, efetivam ente, a específica área de cada pos­ suidor;

c)

Que a posse seja exercitada por famílias carentes, as quais não são proprietá­ rias de nenhum outro imóvel e com 0 fim exclusivo de moradia;

d)

Que cada família tenha sua fração do terreno limitada à 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados).

Assim, será 0 juiz Cível 0 competente para, na forma do § 2° do art. 10 do Es­ tatuto das Cidades, fixar a fração ideal de cada um dos imóveis, acaso não exista, entre estes, ajuste escrito em sentido diverso. A sentença, portanto, reconhecerá um condomínio especial, constituído e indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação adotada por no mínimo dois terços dos condôminos, no caso de urbanização posterior à sua constituição (§ 3°, art. 10). De resto, as deliberações sobre a administração deste condomínio serão por maioria absoluta de votos dos condôminos presentes, obrigando aos dem ais con­ dôminos, sejam discordantes, sejam ausentes (§ 40, art. 10). O caráter coletivo desta ação acarreta um efeito processual importante: o sobrestamento de qualquer outra ação, petitória ou possessória, que venha a ser pro­ posta relativamente ao imóvel objeto da usucapião (art. 11, Estatuto das Cidades). ► E na hora da prova?

Ano: 2012 Banca: FCC Órgão: DPE-SP Prova: Defensor Público Em tema de Usucapião Coletiva Urbana, é correto afirmar que Gabarito: admite acessio possessions e sucessio possessionis.

156

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A teor do art. 12, do Estatuto das Cidades, 0 legitimado ativo ad causam na usucapião coletiva será: a)

0 possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;

b)

os possuidores em situação jurídica de composse;

c)

a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, na qua­ lidade de substituto processual, com personalidade jurídica própria, desde que expressamente autorizada pelos associados.

E se alguns dos moradores se recusarem a litigar no polo ativo como litisconsortes necessários? A resposta está no art. 9° do Estatuto: devem ser citados para integrar a lide. Após a resposta destes à citação, 0 Juiz apreciará a manutenção, ou não, do pro­ cesso, suprindo, ou não, a inércia destes. Registra-se que 0 Ministério Público Estadual deverá, obrigatoriamente, intervir no processo (§ 1° do art. 12 do Estatuto da Cidade). Atuando como fiscal da lei, 0 Ministério Público terá a prerrogativa de pronunciar-se nos autos depois das partes, devendo ser intimado de todos os atos do processo. Igualmente poderá juntar documentos, produzir prova em audiência, requerer m edidas ou diligências necessárias ao descobrimento da verdade, além de recorrer de forma indepen­ dente, ainda que as partes não recorram (STJ, Súmula 99). ►Atenção! 0 art. 178 do CPC tem a seguinte redação: "0 Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da or­ dem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: interesse público ou social; interesse de incapaz; litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Pa­ rágrafo único. Advirta-se que interesse público justificador da atuação ministerial é apenas 0 primário". 0 art. 179 do CPC autoriza 0 Ministério Público requerer diligências e produzir prova. Sustentam Maurício Cunha, Roberto Figueiredo e Sabrina Dourado1 que "0 dispositivo, sem grandes inovações, elencou os poderes processuais do MP quando intervém na qualidade de fiscal da ordem jurídica. 0 inciso I reproduziu a mesma regra do CPC vigente, prescrevendo que 0 representante do MP terá vista dos autos depois das partes, sendo intimado de todos os atos do processo; 0 inciso II, por sua vez, promoveu pequenas alterações redacionais, dispondo que 0 MP/fiscal da ordem jurídica poderá pro­ duzir provas, requerer as medidas processuais pertinentes e recorrer. As modificações, de fato, eram necessárias, pois a faculdade de juntar documentos e certidões já é abrangida pela expressão "produção de provas" utilizada pelo novo comando legal. Vale destacar, ainda, que a parte final do inciso II, que assegura legitimidade recursal ao MP, está em consonância com 0 novel art. 996 do novo texto, segundo 0 qual "0 re­ curso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, seja como parte ou fiscal da ordem jurídica". (CUNHA, Maurício; FIGUEIREDO, Roberto e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo CPC. i a ed. Recife: Armador, 2015. p. 203).

Cap. Ill • Propriedade

157

A ausência de intervenção do Ministério Público, quando obrigatória, acarreta­ rá a nulidade do processo, a teor do art. 279 do CPC. ►Como a doutrina se manifesta sobre o art. 279 do CPC/15?

De acordo com a doutrina de Maurício Cunha, Roberto Figueiredo e Sabrina Douradoi, "Com exceção do § 2°, 0 dispositivo legal repete 0 mesmo tratamento atribuído pelo atual diploma processual à nulidade decorrente da ausência de intimação do membro do Ministério Público. Aliás, vale lembrar que a nulidade cominada decorre da ausência de intimação do órgão do MP e não da falta de manifestação ministerial. Outrossim, a nulidade abrange os atos praticados a partir do momento em que 0 Parquet deveria ter sido intimado. Sob a égide da atual le­ gislação, a jurisprudência orientava-se no sentido de que, embora se trate de nulidade absoluta, era aplicável 0 princípio da instrumentalidade das formas, de modo que 'a ausência de intimação do Parquet, por si só, não enseja a decretação de nulidade, sendo necessária a efetiva demonstração de prejuízo para as partes ou para a apuração da verdade substancial da controvérsia jurídica [.-]' (STJ, REsp 818.978, 2a T., rei. Min. Mauro Campbell Marques, j. 9.8.2011). 0 entendimento permanece aplicável, no entanto, caberá a existência ou inexistência de prejuízo, só podendo 0 magistrado decretar a nulidade com a superveniência de manifestação ministerial. Aliás, a novidade introduzida foi baseada no entendimento jurisprudencial segundo 0 qual a intervenção do MP em segunda instância sem apontar 0 prejuízo da ausência de intimação do órgão ministerial na instância precedente convalida a nu­ lidade." (STJ, REsp 1.010.521/PE, 3a T., rei. Min. SIDNEI BENETI, j. 26.10.2010, DJe 9.11.2010). CUNHA, Maurício; FIGUEIREDO, Roberto e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo CPC. i a ed. Recife: Armador, 2015. p. 203.

Consoante 0 art. 14 do Estatuto das Cidades, 0 rito para a usucapião urbana é sumário, também sendo possível alegá-la como matéria de defesa (art. 13 da mesma Lei Extravagante e Súmula 237 do STF). Ademais, enquanto a ação judicial de usucapião não for dirim ida, nenhuma outra poderá tramitar, seja possessória, seja reivindicatória. ►Cuidado!

Não devemos confundir a usucapião com a desapropriação judicial, já tratada neste capítulo e regulada pelo art. 1.228, §§ 40 e 5°. Isso porque há uma diferença basilar: na aludida desapropriação há pagamento de valores, 0 que não ocorre na usucapião. Outrossim, usucapião é a for­ ma originária de aquisição de propriedade, fato que não diz respeito à desapropriação.

8.3. Aquisição do Bem Imóvel pelo Registro do Título 0 registro do título aquisitivo traduz uma forma derivada de aquisição da pro­ priedade imóvel. Tal registro, em tese, pode decorrer de ato entre vivos (doação, compra e venda) ou causa mortis (testamento).

158

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 registro público é de suma importância para o sistema im obiliário nacional, 0 qual é híbrido, mas de maior influência romana. Isso porque o Brasil abraça a noção segundo a qual o simples negócio jurídico, por si só, não é capaz de ocasionar a transferência proprietária. 0 negócio é apenas o título proprietário. Para que haja a efetiva transferência, mister será a implementação de um modo (solenidade na transferência), o qual, no caso de imóveis, será o registro do título. Curioso perceber que nos afastamos do sistema francês, em que o título já é capaz de transferir a propriedade, sendo o registro um mero ato de publicização; e do alem ão, que demanda além do contrato como título um novo negócio, bati­ zando de convenção jurídica real para a transferência do título. Justo por isso, enquanto não se registrar o título translativo, o alienante conti­ nua a ser havido como dono do imóvel (§ 1°, art. 1.245). 0 mesmo ocorre enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do re­ gistro e 0 respectivo cancelamento, hipótese na qual 0 adquirente continua a ser havido como dono do imóvel (§ 2°, art. 1.245). Para lei civil, 0 registro é eficaz desde 0 momento em que se apresentar 0 título ao oficial de registro e este 0 prenotar no protocolo (art. 1.246, CC e art. 186 da Lei de Registros Públicos). Trata-se do princípio da p riorid ade da prenotação a gerar uma presunção de verdade relativa, juris tantum, a ser ilidida mediante 0 cancelamento do próprio registro. Nessa toada, 0 registro público enseja a constituição da propriedade, sua individualização (Princípio da Unidade ou Especialidade, art. 1.245 do CC). 0 registro enseja, adem ais disso, a publicidade proprietária. Constitutividade, publicidade da titularidade e especialidade são os atributos do registro, dentro de uma prio­

ridade de titularidades. A presunção relativa (juris tantum) da propriedade é 0 mais relevante atributo do registro público. Em sendo relativa é plenamente possível a prova em sentido contrário, haja vista a possibilidade de falsidade ou invalidação do registro. ►E na hora da prova?

(Vunesp - Advogado - Câmara de Piracicaba - SP/2019) Quanto à aqui­ sição e perda da propriedade, é correto afirmar: Gabarito: "enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e 0 respectivo cancelamento, 0 adquirente continua a ser havido como dono do imóvel".

Neste sentido, de acordo com 0 Enunciado 503, da V jornada em Direito Civil, 0 registro do título aquisitivo enseja a presunção relativa da propriedade. Desse modo, será possível ao interessado desconstituir esta presunção, não absoluta, com­ provando que efetivamente a propriedade não é daquele que figura no registro civil. Entrementes, há uma m odalidade registrai dita infalível, capaz de gerar uma

presunção absoluta de propriedade, batizada como Registro Torrens. Este se rea-

Cap. Ill • Propriedade

159

liza, exclusivamente, sobre bens imóveis rurais e pressupõe decisão judicial com audiência do Ministério Público e publicação de editais, tudo na forma do art. 227 da Lei 6.015/73. ►Atenção!

Não confundam matrícula, registro e averbação. Matrícula é 0 nome que se dá ao primeiro registro do imóvel, sendo um número único que acompanhará 0 bem por toda a sua trajetória. 0 registro, anteriormente denominado de transcrição, refere-se ao ato que consubstancia a transferência da propriedade. A cada transferên­ cia proprietária há um novo registro, com um novo número, em virtude da alienação (gratuita ou onerosa). Já a averbação constitui qualquer alteração feita à margem do re­ gistro sofrida pelo imóvel, como, por exemplo, a averbação de uma construção. ►Como se pronunciou o Supremo Tribunal Federal sobre o tema? 0 Supremo Tribunal Federal, no RE 175.379/SP, reconheceu a responsabi­

lidade civil do Estado pela evicção ocorrida por força do registro públi­ co. Nesse caso, entendeu 0 julgado que quando a evicção decorre de ato do tabelião, 0 Poder Público responderá objetivamente, ressalvado 0 direito de regresso contra 0 notário (causador do dano). Outrossim, a doutrina, no Enunciado 593 do Conselho da Justiça Fede­ ral firma ser indispensável 0 procedimento de demarcação urbanística para regularização fundiária social de áreas ainda não matriculadas no Cartório de Registro de Imóveis, como requisito para emissão de títulos de legitimação da posse e de domínio. Com efeito, em sendo a matrícula a primeira notícia imobiliária, tem-se como indispensável. Voltando os olhos para 0 direito legislado, percebe-se que a matéria registro, como forma de aquisição proprietária, se encontra disciplinada nos arts. 1.245 a 1.247 do CC. Em "sendo forma derivada, 0 novo proprietário do bem é responsá­ vel pelas dívidas que recaem sobre a coisa, caso dos tributos"62, afinal de contas, estas são obrigações próprias da coisa, ou como já se denominou: propter rem, as acompanhando e sendo imputadas ao novo proprietário. A doutrina cristalizou 0 entendimento, por meio do Enunciado 624 da VIII Jor­ nada em Direito Civil, ocorrida em 2018, segundo 0 qual a anulação do registro, prevista no art. 1.247 do CC, não autoriza a exclusão dos dados invalidados do teor da matrícula". 0 registro público enseja a oponibilidade erga omnes e a legalidade do Direito Real, que se submete ao princípio da registrabilidade. Portanto, quem não registra não é dono (art. 1.245, Código Civil). Ademais disso, perceba que este registro, ne­ cessariamente, deverá ser feito no local da situação do imóvel, pois assim impõem

62. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 186.

160

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

os arts. i Ena hora da prova?

Ano: 2017 Banca: CESPE Órgão: DPU Prova: Defensor Público Federal Foi considerada correta a seguinte assertiva: 0 condômino B deve taxas condominiais extraordinárias, estabelecidas em instrumento particular, ao condomínio edilício A. Assertiva: Nessa situação, 0 condomínio A goza do prazo de cinco anos, a contar do dia seguinte ao do vencimento da prestação, para exercer 0 direito de cobrança das referidas taxas.

d)

Responsabilidade civil pelos frutos recebidos isoladamente, na forma do art. 1.319 do CC.

Portanto, se cada condômino exerce 0 uso e 0 gozo sobre 0 todo, estará este autorizado a colher sozinho os frutos. Se isto ocorrer, este condômino terá respon­ sabilidade civil e terá que d ividir os frutos isoladamente recebidos. Os frutos, em regra, serão divididos na proporção dos quinhões, salvo estipulação em sentido contrário na própria convenção (CC, art. 1.326). A quem incumbirá a administração do condomínio? A administração do condomínio será feita por uma pessoa física eleita pela maioria das frações ideais. Esta pessoa será chamada de administrador ou sín­ dico. Este adm inistrador poderá ser um dos coproprietários, ou mesmo alguém estranho ao condomínio (CC, art. 1.323). Não havendo adm inistrador eleito, considerar-se-á como tal 0 condômino que seja 0 representante comum, caso administre sem oposição dos dem ais (CC, art. 1.324). Tem-se, aqui, interessante aplicação da teoria da aparência, segundo um comportamento concludente, havendo uma espécie de mandato tácito. Confere-se a este síndico, não eleito e que presenta 0 condomínio nas relações com ter­ ceiros, a representação condominial em proteção aos contratantes de boa-fé. 0 síndico aparente, porém, igualmente terá suas atribuições inerentes à função. As­ sim, deverá prestar contas e terá direito ao reembolso dos seus eventuais gastos na gestão e atuação pela coisa comum, como bem obtempera Maria Helena Diniz23. No que diz respeito ao regime de administração, a remuneração do adm inis­ trador e a prestação de contas, os temas serão deliberados pelos condôminos. Mas quais seriam os poderes do administrador? Os poderes conferidos ao administrador são os usuais (gerais), não sendo possível alienar a coisa, receber citações nem praticar atos específicos sem a ex­ pressa conferência de poderes especiais. Excetua-se a possibilidade de alienação de bens que ordinariamente digam respeito a venda, como frutos ou produtos de propriedade rural.

23. 0p. Cit., p. 220.

202

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

As deliberações serão tomadas por maioria absoluta (CC, art. 1.325, § 1°), en­ tendendo-se esta m aioria pelos quinhões; leia-se: votos que representem mais da maioria dos quinhões. 0 critério é econômico desprezando 0 número de in­ teressados. Caso uma única pessoa tenha 30% (trinta por cento) das cotas, terá 30% (trinta por cento) dos votos. Tal situação poderá gerar, em casos extremos, a chamada ditadura do condomínio, quando um único condômino tenha mais de 50% (cinquenta por cento) dos quinhões e, simplesmente, delibere sozinho; 0 que é reprovável para a doutrina. E se houver dúvida sobre os quinhões? Como fazer a matemática dos votos? Havendo dúvida sobre quinhões, será realizada uma avaliação judicial. Caso não seja possível alcançar a m aioria nas deliberações, a decisão caberá ao juiz (CC, art. 1.325, §§ 2° e 30). 0 condomínio comum admite classificação. São

espécies de condomínio comum:

(i) condomínio legal (ex lege), necessário ou forçado. Advém da imposição da norma - como nos casos de parede, muro, vala, pasto, achado de tesouro, formação de ilhas, comistão, confusão, adjunção - ou fortuito pela natureza da coisa (herança). A matéria está disciplinada entre os arts. 1.327/1.330 do CC. A teor do art. 1.327, do CC, 0 condomínio necessário é 0 "por meação de pare­ des, cercas, muros e valas" regulando-se pelos arts. 1.297/1.298 do CC, bem como pelos arts. 1.304 a 1.307 do CC. Infere-se que 0 condomínio necessário não se origina de ato volitivo ou suces­ sório, mas sim de imposição da ordem jurídica, em peculiares situações correla­ cionadas ao direito de vizinhança. Como a indivisibilidade decorre da natureza da coisa, trata-se de um condomínio, a priori, permanente, que apenas poderá ser extinto pelo perecimento ou pela confusão entre os proprietários. ►E na hora da prova?

No concurso para Titular de Serviços de Notas e Registros do Tribunal e Justiça de São Paulo, no ano de 2012, organizado pela VUNESP, foi afir­ mado que: "Condomínio que existe em virtude da propriedade comum de lindeiros quanto à meação de paredes, cercas, muros e valas entre casas denomina-se: Condomínio necessário".

Disciplina a legislação cível que diante de eventual impasse entre estes condô­ minos forçados para 0 estabelecimento do preço da cerca, parede, muro ou pasto, qualquer um deles poderá propor ação de fixação de preço de obra divisória, com 0 fito de que 0 valor seja fixado por peritos, as expensas de ambos os confinantes (CC, art. 1.329). Qualquer que seja 0 valor da meação, enquanto aquele que pretender a divi­ são não 0 pagar ou depositar, nenhum uso poderá fazer na parede, muro, vala, cerca ou qualquer outra ora divisória (CC, art. 1.330). Trata-se, no sentir de Flávio

Cap. IV • Condomínio

203

Tartuce24, de norma de ordem ética, a qual dialoga com a vedação do enriqueci­ mento sem causa. ►Atenção!

0 condomínio forçado é cogente? Como posto por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.1 o condomínio em apreço, malgrado forçado, não é cogente. Isso por­ que, nada impede que qualquer dos consortes necessite suportá-lo perpetuamente, podendo, a qualquer tempo, dispor da sua titulari­ dade e, até mesmo, propor a supracitada ação de fixação de preço de obra divisória. Assim, o batismo de forçado decorre da impossibilidade do bem ser partilhado. Entrementes, não se relaciona a necessária submissão por parte do condômino, quem poderá, a qualquer tempo, dispor do bem (REsp 708.143/MA). 1.

Op. cit., p. 616.

(ii) condomínio voluntário, comum ou tradicional. Este será espontâneo, decorrendo da autonomia privada dos interessados (arts. 1.316/1.326, CC), conforme já visto alhures. A extinção do condomínio comum ou tradicional decorre da regra da temporariedade para os voluntários. Isso porque 0 desenvolvimento da história do homem demonstra que a propriedade compartilhada é fruto de conflitos e discórdia. Por isso, tratando-se de coisa divisível, cada condômino poderá, a qualquer tempo, requerer a divisão da coisa, ainda que imotivadamente (CC, art. 1.320). Registra-se que a norma autoriza 0 estabelecimento de um prazo de indivisão entre os condôminos, 0 qual será no máximo de cinco anos, renovável por uma oportunidade. Neste prazo, os condôminos ficarão proibidos de realizar a divisão imotivada. Mas, se houver motivo, os condôminos poderão ajuizar ação de divi­ são, cabendo ao magistrado averiguar se as graves razões arguidas autorizam a dita extinção prematura. ►Atenção!

0 que acontece se for fixado um prazo maior do que os cinco anos? No p a r t ic u la r , s e n d o o d ito p r a z o v á lid o p o r c in c o a n o s e in e f ic a z no

que sobejar. Outrossim, se não houve prazo fixado no negócio jurídico condominial, esse será de cinco anos. Recordamos que os negócios jurídicos devem ser interpretados segundo a boa-fé e os costumes do lugar, a teor do art. 113 do CC.

24. Op. cit., p. 998.

204

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A divisão será disciplinada consoante as regras de partilha sucessória, na forma do direito hereditário (art. 1.321 do CC). Nessa linha, em apertada síntese e esforço didático, infere-se que a divisão do condomínio - obviamente aplicada a bens divisí­ veis - dar-se-á, fundamentalmente, de duas maneiras (CC, arts. 2.013 a 2.016): a)

Consensual ou Amigável - envolvendo condôminos maiores e capazes, median­ te escritura pública e amigavelmente;

b) Judicial ou Forçada - diante da menoridade ou incapacidade de um dos con­ dôminos ou, ainda, haja vista a ausência de acordo. Trata-se de procedimento especial de jurisdição contenciosa (arts. 588-598 do CPC/15). A pretensão veiculada na ação de divisão é imprescritível, podendo ser mane­ jada a qualquer tempo e por quaisquer dos condôminos, inclusive aqueles que te­ nham fração mínima. Contra ela, porém, militará a prescrição aquisitiva (usucapião) de eventual sujeito que esteja no uso da coisa, sendo possível, até mesmo, 0 tema ser veiculado em sede de contestação da ação de divisão, nos moldes da Súmula 237 do Supremo Tribunal Federal e do AgRg 731971/MS. De mais a mais, igualmente possível a eventual arguição de supressio e surrectio, inclusive em sede de resposta. ►Atenção!

De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em re­ gra, não é possível a usucapião entre os condôminos, ao passo que cada um desses poderá utilizar-se da coisa como um todo (fração ideal). A exceção a admitir a usucapião de frações ideais dentro de um condomí­ nio somente ocorrería se um dos condôminos estabelecesse posse com exclusividade, alijando todos os demais, 0 que configuraria fato raro. Malgrado a impossibilidade da usucapião das aludidas áreas comuns por parte dos condôminos (elevador, piscina, salão de festas), interes­ sante notar que 0 Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a supres­ sio - REsp 356.821/RJ e REsp 214.680/SP. Não é diverso 0 posicionamento da doutrina, a qual informa no Enunciado 247 do Conselho da Justiça Federal que "no condomínio edilício é possível a utilização exclusiva de 'área comum' que, pelas próprias características da edificação, não se preste ao 'uso comum' dos demais condôminos". Assim, caso um condômino utilize-se de forma reiterada desta área c o m u m , c o m a u t o r iz a ç ã o d o c o n d o m ín io , h a v e r á s u p r e s s ã o ( s u p r e s s i o )

da prerrogativa do condomínio exigir a sua devolução e surgimento (surrectio) da prerrogativa de uso do condômino. Veja também que 0 terraço e a cobertura são partes comuns, salvo disposição contrária na escritura pública de constituição do condomí­ nio. Cada unidade autônoma terá uma parte inseparável, denominada fração ideal, no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condo­ mínio. Logo, para terraço e cobertura 0 aqui afirmado sobre supressio e surrectio tem corrente aplicação. Outrossim, segundo a doutrina, a vedação diz respeito à usucapião por parte dos condôminos. Destarte, nada impede que 0 próprio

Cap. IV • Condomínio

205

condomínio venha a adquirir o bem em usucapião, como bem posto pelo Enunciado 596 do Conselho da Justiça Federal. Ainda sobre a aplicação da supressio e surrectio em condomínios, afir­ ma 0 Superior Tribunal de Justiça (REsp 10.978/RJ) que caso 0 condô­ mino não exija uma determinada convenção por reiteradas oportuni­ dades (supressio), nascerá ao condômino 0 direito de não mais seguir aquela regra (surrectio), a exemplo de sucessivas liberações para uso da quadra com número maior de convidados do que 0 previsto na convenção. Na mesma linha caminha 0 REsp 356.821/RJ. Por fim, a usucapião de área condominial por terceiro não condômino é completamente viável. Em sendo imprescritível, recorda Carlos Roberto Gonçalves25 que a ação de divisão é declaratória e não atributiva de propriedade (CPC/15, art. 597). Logo, a sentença terá efeitos ex tunc e retroagirá à data do início da comunhão. Com efeito, a porção proprietária está no título, sendo a decisão uma mera certificação. A decisão haverá de ser registrada, na forma da Lei de Registros Públicos e, nas lições de Maria Helena Diniz26, apenas declarará a porção real de propriedade pertencente a cada proprietário (art. 1 6 7 , 1, da Lei 6.015/73). ►Atenção!

Afirmam Maurício Cunha, Roberto Figueiredo e Sabrina Dourado: "No caput a única mudança é a figura do perito no lugar do agrimensor, mantendo-se a lavratura do auto de divisão, seguido de uma folha de pagamento para cada condômino. Assinado 0 auto pelo juiz e pelo perito (e não mais pelo agrimensor e arbitradores), será proferida sentença homologatória da divisão. Na sequência, 0 preceito informa os elementos constitutivos do auto a ser assinado, entre os quais a confinação e a extensão superficial do imóvel; a classificação das terras com 0 cálculo das áreas de cada consorte e a respectiva avaliação ou a avaliação do imóvel na sua integridade, quando a homogeneidade das terras não determinar diversidade de valores e, finalmente, 0 valor e a quantidade geométrica que couber a cada condômino, declarando-se as reduções e as compensações resultantes da diversidade de valores das glebas componentes de cada quinhão. Neste particular, os três incisos do § i° também se encontram idênticos, assim como 0 § 2° e seus três incisos se mantiveram idênticos. Os requisitos que cada folha de pagamento deverá conter são: a descrição das linhas divisórias do quinhão, mencionadas as confinantes; a relação das benfeitorias e das culturas do próprio quinhoeiro e das que lhe foram a d jud icad as por

serem comuns ou mediante compensação; a declaração das servidões instituídas, especificados os lugares, a extensão e 0 modo de exercício" (CUNHA, Maurício; FIGUEIREDO, Roberto e DOURADO, Sabrina. Comentá­ rios ao Novo CPC. i a ed. Recife: Armador, 2015. p. 711).

25. 0p. cit., p. 391. 26. 0 p. Cit., p. 222.

206

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Se 0 bem for indivisível, a hipótese será de ação de alienação judicial, pois 0 condomínio apenas poderá ser extinto pela venda judicial de bem comum. Já entendeu 0 Superior Tribunal de Justiça (REsp 791.147/SP) que esta medida judicial somente será possível de ser ajuizada quando não couber a ação de divisão. Infere-se, por conseguinte, ser uma medida subsidiária. Em sendo 0 caminho a venda, fala-se novamente, no direito de preferência. Assim, caso um dos consortes queira adjudicar o bem, haverá de indenizar os de­ mais. Caso 0 interesse seja da venda do bem a um terceiro, os demais condôminos terão a preferência tanto por tanto. Se mais de um condômino desejar a preferên­ cia, preferirá, sucessivamente, aquele que possuir 0 maior volume de benfeitorias ou de quinhão. Se os parâmetros forem iguais, será feita uma oferta ao mercado (licitação especial) e verificada a melhor proposta do terceiro, sendo oferecido aos condôminos para compra neste montante ou pelo melhor valor superior (lici­ tação interna - CC, art. 1.322). Caso todos os condôminos desejem vender, a alienação será feita consensual­ mente. Havendo divergência, buscar-se-á avaliação e alienação em hasta pública, assegurando 0 direito de preferência supramencionado.

1.1.2. Condomínio Edilício ou Por Unidades Autônomas Uma das felizes inovações do Código Civil foi a introdução da temática relacio­ nada ao condomínio edilício, tema de alta incidência prática. 0 termo condomínio edilício, como bem recordam Jones Alves Figueirêdo e Mário Luiz Delgado27, fora introduzido no Código Civil pelas mãos de Miguel Reale, por força da influência italiana. Ao lado da expressão "edilício" é usual a utilização de "condomínio hori­ zontal" e "condomínio em edificações". Recorda Carlos Roberto Gonçalves28 que a noção embrionária de divisão ju ríd i­ ca do solo entre diferentes proprietários, para sua melhor utilização, remonta o Direito romano. Com a evolução do tempo, na altura da Idade Média, conhecemos uma propriedade próxima ao modelo hoje vigente. Todavia, é no século XVIII que surge efetivamente o advento da propriedade horizontal. Maria Helena Diniz29 afirma que o condomínio edilício, em moldes parecidos aos que hoje conhecemos, surgiu após a Primeira Grande Guerra Mundial, tendo íntima relação com a crise habitacional. Naquele contexto, o desenvolvimento dos centros urbanos e a consequente maior valorização dos terrenos demandou um melhor aproveitamento do solo. A regulamentação do instituto da propriedade horizontal remonta o Direito Francês, em Auxerre, nos idos de 1561. 0 regramento pioneiro fora reproduzido

27. ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mario Luiz. Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005. p. 660. 28. Op. Cit., p. 396. 29. Op. Cit., p. 225.

Cap. IV . Condomínio

207

em Nantes, Saint Malo, Caen, Roeun, Rennes e, em especial, em Grénoble. Pos­ teriormente o tema fora veiculado no Código de Napoleão, especificamente no parágrafo único do art. 664. Voltando-se os olhos para 0 direito nacional, 0 Código Civil de 1916 fora silente sobre 0 tema. A codificação de Beviláqua apenas regulava a propriedade vertical casa de parede-m eia - por meio de normas atinentes ao direito de vizinhança. Com 0 passar do tempo, diante da necessidade social, 0 Decreto-Lei 5.481/28 regulamentou a matéria, ainda que de m aneira tím ida, com normas sobre ed i­ fícios de apartam entos - com unidades autônomas com destinação residencial, profissional ou com ercial. Tal Decreto sofreu sucessivas modificações (Decreto-Lei 5-234/43; Lei 285/48; Lei 4.591/64 e Lei 4.864/65), sendo a Lei 4.591/64, fruto das mãos do projeto de Caio Mário da Silva Pereira, 0 grande diplom a regulador do assunto. 0 Código Civil de 2002, atento à necessidade social de tratamento do tema, faz menção ao assunto (arts. 1.331 a 1.358) fazendo remissão ainda a Lei Especial 4.591/64, com aplicação subsidiária. Para Flávio Tartuce30, 0 vigente Código Civil consolidou a primeira parte da Lei 4.591/64 (arts. i ° a 27), havendo derrogação tácita da norma especial, a qual apenas perdura no que tange ao tratamento re­ lacionado às incorporações imobiliárias.

Nessa toada, reza 0 art. 1.331 do CC ser possível haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condô­ minos. Este é 0 condomínio edilício ou por unidades autônomas. Trata-se da mais famosa das casuísticas de condomínio forçado, como anotam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.31. Justo por isto, como bem obtempera Luis Edson Fachin32, 0 condomínio edilício não é passível de partilha, posto ser inviável a divisão das partes comuns, as quais são representadas por frações ideais. Infere-se tratar de um regime jurídico muito interessante, porque envolve pro­ priedade comum (áreas comuns) e propriedade individual (unidades autônomas), ao mesmo tempo, a exemplo dos prédios de apartamentos, lojas, salas e vilas de casas (STJ, REsp 1902/RJ). Nas palavras de José de Oliveira Ascenção33, é "0 novo direito real caracterizado por resultar de um complexo incindível de propriedade do andar e com propriedade das partes comuns". As partes suscetíveis de utilização independente (apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas etc.) sujeitam-se à propriedade exclusiva, razão pela qual podem ser alienadas e gravadas livremente pelos proprietários (art. 4° da Lei 4.591/64). Cada uma destas unidades autônomas será tratada isoladamente para fins tributários, na forma do art. 11 da Lei 4.591/64- São frações reais.

30. 0 p. Cit., p. 99931. Op. cit., p. 616. 32. FACHIN, Luis Edson. Comentários ao Código Civil. V. 15. p. 230. 33. Apud Marco Aurélio Viana. Comentários ao Novo Código Civil. V, XVI, p. 372.

208

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: MPE-PR Órgão: MPE-PR Prova: Promotor Substituto Foi considerada correta a seguinte assertiva: As partes suscetíveis de utilização independente podem ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários.

Excetua-se desta regra das frações reais "o abrigo para veículos, que não po­ derão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo auto­ rização expressa na convenção de condomínio", como dispõe o § 1° do art. 1.331 do CC, como redação dada pela Lei Federal n° 12.607/12. Ademais, ainda que haja permissivo na convenção para venda ou aluguel dos abrigos de veículos (parte acessória) a terceiros, haverá de ser conferida preferência aos demais condômi­ nos (CC, arts. 1.338 e 1.339, § 2°), em nítida busca da função social. A supracitada alteração de 2012 justifica-se na segurança do condomínio e sua funcionalidade, afinal 0 ingresso, uso e trânsito de terceiros são capazes de colo­ car estes itens em risco. ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: DPE-AM Prova: FCC - 2018 - DPE-AM - De­ fensor Público. Em relação ao condomínio edilício. Gabarito: as partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a pro­ priedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio.

►Atenção!

As unidades exclusivas serão comercializadas independentemente de direito de preferência, pois não são coisa comum, não incidindo a r e g r a d o a rt. 504 d o C ó d ig o C iv il. C a s o , p o r é m , u m a ú n ic a u n id a d e p e r ­

tença a mais de um proprietário, eles a terão em condomínio voluntá­ rio. Nesse cenário, caso um deles deseje aliená-la, haverá de conferir ao outro direito de preferência, nos moldes do mencionado art. 504 do Código Civil, sob pena do preterido, no prazo decadencial de 180 (cento e oitenta dias), depositar 0 preço e adjudicar a coisa para si. 0 solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e a refrigeração centrais (e as dem ais par­ tes comuns), inclusive o acesso ao logradouro público serão utilizados em comum por todos os condôminos e, por isso, não poderão ser alienados, ou divididos separadam ente (§ 2°, art. 1.331, CC).

Cap. IV • Condomínio

209

Mas como diferenciar o condomínio comum do edilício? No condomínio tradicional há, tão somente, o regime de propriedade comum, inexistindo qualquer propriedade individualizada. Já no edilício há frações comuns e individuais. ►Atenção!

Tendo em vista a propriedade conjunta e a relação entre coisas e pes­ soas, é esmagadora a tese da impossibilidade de existência de relação de consumo entre condôminos. 0 que há é uma mera repartição dos serviços contratados pelos condôminos. Nessa linha, exemplificativamente, cita-se o REsp 239.578/SP.

Qual é a natureza jurídica do condomínio edilício? Diversas teorias versam sobre 0 tema da natureza jurídica do condomínio edi­ lício. A controvérsia funda-se diante do fato de nem ser apenas propriedade ex­ clusiva nem ser apenas propriedade comum. 0 condômino é, ao mesmo tempo, proprietário singular e coproprietário. Em um esforço doutrinário, cita-se as principais teorias derredor da natureza jurídica do condomínio edilício: a)

Comunhão de bens - defende a ideia de que a propriedade horizontal seria uma comunhão de bens. A tese, porém, não ganhou eco, pois cada condômino é titular de uma unidade autônoma, além das comuns;

b) Sociedade imobiliária - advoga a noção de ser 0 condomínio uma sociedade im obiliária. Igualmente não teve sucesso, pois não há no condomínio a presen­ ça do affectio societatis; c)

Enfiteuse, superfície e servidões - alguns autores tentaram subsumir 0 condo­ mínio edilício a tais institutos clássicos do Direito Civil, 0 que também não vin­ gou, ante a im possibilidade de adequação do instituto condominial às regras de tais temas tradicionais;

d)

Personalização do patrimônio comum - pretendia a personalização do con­ domínio, 0 que resta impossível, ao passo que não há uma pessoa jurídica titularizando as unidades autônomas e as partes comuns. Além disso, 0 art. 44 do Código Civil não insere 0 condomínio entre as pessoas jurídicas de direito privado, 0 que, para muitos, seria um obstáculo;

e)

Ente despersonalizado - tese, hoje, prevalente. Prevalente, porém, com abrandamentos.

Explica-se. Malgrado despersonalizado, 0 condomínio tem legitimidade pro­ cessual ativa e passiva, representado pelo síndico (CPC, art. 75, XI). Trata-se de situação sim ilar ao espólio e a massa falida. Ademais, curioso notar que apesar de despersonalizado, 0 condomínio edilício tem CNPJ, conta bancária, sendo ainda contribuinte. Poderá, até mesmo, ser empregador.

210

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Atenção! 0 Superior Tribunal de Justiça já entendeu que 0 condomínio é pessoa jurídica para fins de contribuição previdenciária (MC 15.422/SC).

0 condomínio pode adquirir unidades autônomas, celebrando contra­ tos (art. 63, § 3°, da Lei Federal n° 4591/64). Por conta desse caráter híbrido, para os Enunciados 90 e 246 do Conselho da Justiça Federal, deve ser reconhecida ao condomínio personalidade jurídica. Os defen­ sores da personalidade jurídica do condomínio, consideram existir um rol exemplificativo das pessoas jurídicas de direito privado, previsto no art. 44 do Código Civil, fato já consignado pela doutrina (Enunciado 144 do CJF). 0 tema persiste dúbio.

Para Caio Mário da Silva Pereira34, o grande problema é que a doutrina persiste na busca de encaixes retrógados para um instituto moderno. Não há como, segun­ do 0 autor, reduzir todos os condôminos em uma única pessoa jurídica, nem privar dos co prop ri etários agirem conjuntamente. 0 que há no condomínio edilício, arre­ mata o autor, é uma "m odalidade nova de condomínio, resultante da conjugação orgânica e indissolúvel da propriedade exclusiva e da copropriedade". Poderíam os condôminos lançar mão de interditos possessórios isoladamente? Há uma interessante discussão processual acerca do condomínio edilício e da

legitimidade ativa ad causam dos condôminos (CPC, arts. 17 e 18) para 0 ajuizamento dos interditos possessórios. Vem sendo sufragado na doutrina e jurispru­ dência que cada condômino terá legitimidade para, individualm ente, defender tanto a posse da própria unidade, como das áreas comuns, afinal de contas todos são possuidores do todo. ►Atenção!

Na lição de Maurício Cunha, Roberto Figueiredo e Sabrina Dourado: "0 novo texto elenca como condições da ação 0 interesse de agir e a legitimidade ad causam, omitindo a possibilidade jurídica do pedido, que, segundo moderna doutrina, não é uma condição da ação pro­ priamente dita. Aliás, Enrico Tullio Liebman, idealizador das condições da ação, modificou 0 seu pensamento e reformulou sua teoria em razão de mudanças na legislação italiana (que a partir de 1970 passou a permitir 0 divórcio, principal exemplo de impossibilidade jurídica do pedido citado pelo autor), considerando, desde então, somente a legitimidade das partes e 0 interesse de agir como condições da ação.

Alinhado a esta nova sistemática, 0 novo ordenamento processual civil dispôs que 0 processo será extinto sem resolução de mérito quando 0 juiz verificar a ausência de legitimidade ou de interesse processual (art. 485, inciso VI). 0 interesse de agir consubstancia a necessidade e a utilidade da tutela jurisdicional, isto é, a parte deve demonstrar que

34. PEREIRA, Caio Mário. Instituições do Direito Civil. Vol. IV. p. 187.

Cap. IV • Condomínio

211

o provimento jurisdicional pleiteado lhe será útil, bem como que o seu objeto somente será alcançado com a propositura da ação; a legitimi­ dade de parte traduz-se na pertinência temática, é dizer, deve haver um vínculo entre o sujeito da relação processual e o objeto litigioso" (CUNHA, Maurício; FIGUEIREDO, Roberto e DOURADO, Sabrina. Comentá­ rios ao Novo CPC. i a ed. Recife: Armador, 2015. p. 711).

Outro tema relevante, agora previsto no art. 1.331, § 40, elo CC, gira em torno da im possibilidade de encravamento proprietário. Nenhuma unidade autônoma po­ derá ficar sem acesso à via pública, sob pena do condomínio se obrigar a garantir 0 acesso desta, por meio da passagem forçada (CC, art. 1.285) e à luz da função social da propriedade.

E como será feita a instituição e constituição do condomínio edilício? Todo condomínio edilício deve ter um Ato de Instituição, a Convenção de Con­ domínio e 0 Regulamento (Regimento Interno). Com eçarem os pelo ato de instituição. 0 condom ínio edilício é instituído ou por ato entre vivos ou por testamento, sem pre m ediante registro em cartório de imóveis, na forma do art. 1.332 do CC. Tal instituição deverá conter, além do disposto na lei especial, a individualização de cada unidade, a determ inação da fração ideal atribuída a cada unidade, a determ inação da fração ideal atri­ buída a cada uma relativam ente ao terreno e partes comuns e 0 fim a que se destina. É muito usual referir 0 ato de instituição ao negócio jurídico de incor­ poração im obiliária. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: MPE-PR Órgão: MPE-PR Prova: Promotor Substituto Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: 0 condomínio edilício pode ser instituído por ato inter vivos, sendo vedada sua instituição por testamento.

0 ato de instituição do condomínio é sempre volitivo, seja por: a) destinação do proprietário do edifício; b) por incorporação; ou c) por testamento35. Maria Helena Diniz36 aumenta 0 rol de possibilidades de instituições, lembrando, ainda, como possibilidades: d) constituição do regime por vários herdeiros; e) arrem atação em hasta pública, doação ou compra de frações do edifício; e f) sentença judicial em ação de divisão. Percebe-se, portanto, que diversam ente do condomínio geral - que poderá decorrer da lei ou da vontade - 0 edilício sem pre decorrerá da vontade.

35. COMES, Orlando. Direitos Reais. p. 256. 36. Op. Cit., p. 230-231.

212

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Atenção!

Na hipótese de incorporação, os adquirentes do imóvel junto à incorporadora serão considerados consumidores. Nesse sentido, respon­ derá a incorporadora segundo o regramento do Código de Defesa do Consumidor por eventuais danos ocasionados. A convenção de condomínio traduz o ato de constituição - e não de instituição do condomínio edilício. Consiste em um documento escrito cujo escopo é estipular os direitos e deveres de cada condômino, sendo uma espécie de ato-regra gera­ dor. Tem nítido perfil normativo, possuindo um caráter estatutário ou institucional. Pode ser elaborada por instrumento particular ou escritura pública e enquadra-se na figura de um negócio jurídico plurilateral que visa normatizar a convivência. ► E na hora da prova?

Ano: 2012 Banca: VUNESP Órgão: TJ-SP Prova: Titular de Serviços de No­ tas e de Registros - Provimento A Convenção Condominial tem natureza jurídica de Gabarito: "negócio jurídico plurilateral".. A elaboração da convenção é uma tarefa árdua, mormente em condomínios com muitos moradores, cada um com suas convicções pessoais e morais. A con­ venção deverá ser subscrita por no mínimo dois terços das frações ideais, obri­ gando imediatamente os seus subscritores, com força no pacta sunt servanda - o contrato faz lei entre as partes (art. 1.333 do CC). Contudo, para que haja eficácia absoluta - erga omnes (contra todos) - a convenção deverá ser registrada no res­ pectivo Cartório de Registro de Imóveis. ► E na hora da prova?

No concurso para Titular de Serviços de Notas e de Registros do Tribu­ nal de justiça do Rio Grande do Norte, cuja banca foi a IESES, no ano de 2012, foi considerada correta a seguinte assertiva: "a convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos". No mesmo concurso fora considerada incorreta a seguinte assertiva: "Para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio não ne­ cessita ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis, necessitando apenas estar disponível aos proprietários de suas unidades imobiliárias". ►Como o Superior Tribunal de Justiça entende este assunto?

A Súmula 260 do Superior Tribunal de Justiça é firme ao ratificar a disci­ plina do art. 1.333 do CC, sendo pacífico 0 entendimento naquela Corte de que "A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é eficaz para regular as relações entre os condôminos". Concordamos com esse entendimento que, aliás, é 0 da lei. Decerto, 0 registro con­ siste mero fator de eficácia erga omnes.

Cap. IV • Condomínio

213

Segundo a doutrina, nas pegadas do Enunciado 504 do Conselho da Justiça Federal, a "escritura dedaratória de instituição e convenção firmada pelo titular único da edificação composta por unidades autô­ nomas é título hábil para registro da propriedade horizontal no compe­ tente Registro de Imóveis, nos termos dos arts. 1.332 a 1.334 do Código Civil". Nessa esteira, não há necessidade da presença de mais de um proprietário do imóvel para instituição e convenção, fato que costuma ocorrer nas incorporações imobiliárias. A convenção, uma vez aprovada, obrigará não apenas os proprietários dos imóveis, mas também os locatários e comodatários, mesmo que estes não tenham legitimidade para alterá-la. Obriga, até mesmo, os visitantes que ao adentrar no espaço condominial haverão de se submeter as suas respectivas regras. Crível informar que atingirá a convenção todos aqueles que adentrarem na esfera de direitos irradiados por ela (proprietários, ocupantes e usuários), consistindo em uma verdadeira norma autêntica e interna daquela determinada comunidade. Os compradores e os cessionários dos direitos relativos a unidades autônomas são, por expressa disposição legal, equiparados aos proprietários, curvando-se à convenção. Assim também entendeu 0 Superior Tribunal de Justiça (REsp 657.506/ SP) ao afirm ar a legitimidade processual do promitente com prador do imóvel para uma disputa com 0 condomínio acerca do dever de se retirar ou não um toldo de determinada unidade imobiliária. Em outra oportunidade, agora no ano de 2015 (Informativo 567), entendeu 0 mesmo Tribunal da Cidadania a legitimidade passiva concorrente do promitente comprador e do promitente vendedor, em ação de cobrança de débitos condominiais, quando já houve imissão na posse do promitente comprador, admitindo, inclusive, a penhora do imóvel visando garantia da dívida (REsp. 1.442.840-PR. Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino). Ainda no ano de 2015,0 mesmo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.345.331-RS, Inf. 560, Rei. Min. Luis Felipe Salomão) entendeu que a imissão na posse pelo promissário comprador e a ciência inequívoca do condomínio acerca da transação são os fa­ tos geradores para responsabilidade do promissário comprador pelo adimplemento das taxas condominiais. Tal responsabilidade persistirá ainda que inexista registro do compromisso da promessa de compra e venda. Aprofundou 0 julgado entenden­ do que imissão na posse, somada com ciência do condomínio acerca da transação, são fatores aptos a afastar, inclusive, a responsabilidade do promitente vendedor. Consagram os julgados, pois, a equiparação do promissário comprador à figura

do proprietário. Sobre a exclusão de responsabilidade do promitente vendedor, esta ainda não está completamente cristalizada, tendendo a jurisprudência à isenção de responsabilidade do promitente vendedor quando 0 promissário comprador já haja se imitido na posse e não tenha 0 condomínio ciência inequívoca sobre a transação. Contraditoriamente, porém, disciplina 0 Código Civil que os promissários com­ pradores e cessionários de direitos poderão ser excluídos da elaboração da con­ venção (CC, art. 1.350, § 2°). Trata-se de regra, nas palavras de Cristiano Chaves de

214

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Farias e Nelson Rosenvald Jr.37, infeliz, pois ao mesmo tempo em que são obrigados a se curvarem à convenção, poderão ser excluídos de sua elaboração. ►Atenção!

E 0 adjudicante do imóvel em hasta pública? Responderá por dívidas condominiais pretéritas? 0 Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2015 (Informativo 559), mani­ festou-se sobre 0 tema. Cita-se: "Responsabilidade do adjudicante por dívidas condominiais pretéritas. 0 exequente que adjudicou 0 imóvel penhorado após finda praça sem lançador deve arcar com as despesas condominiais anteriores à praça, ainda que omitidas no edital da hasta pública". (REsp 1.186.373-MS, Rei. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 14.4.15. 4a T) (Info STJ, 559)

Ocupa a convenção o papel de lei maior do condomínio, sendo que os demais atos, a exemplo do regimento interno, nela ganham validade. Por razões de or­ dem lógica, a convenção terá a sua validade na lei, sendo nulas suas eventuais cláusulas que desrespeitem as normas do ordenamento jurídico. Assim, não é possível a aceitação de normas que proíbam o ingresso de determ inadas pessoas ao condomínio por conta do seu credo ou orientação sexual, em claro atentado às liberdades individuais. A convenção poderá ser feita tanto por escrito público como por instrumen­ to particular, havendo um conteúdo mínimo de cláusulas a serem inseridas, por expressa imposição normativa. Trata-se de uma espécie de núcleo duro, o qual, obviamente, poderá ser am pliado pela autonomia privada; mas não reduzido. Os temas mínimos, na forma do art. 1.334 do CC, são: a estipulação da quota propor­ cional e do modo de pagamento das contribuições condominiais para atendimento das despesas; a forma de administração; a competência das assembléias; sua forma de convocação e quórum para deliberações; as sanções a que se sujeitarão os condôminos; e, finalmente, 0 regimento interno. Nada impede, porém, que a convenção veicule outras situações, como dito, a exemplo da cláusula de não in­ denizar por danos ocorridos no condômino (REsp 1036917/RJ). ►E na hora da prova?

No ano de 2012, no concurso para Conciliador Cível do Tribunal de Jus­ tiça do Rio Grande do Sul, Banca FAURGS, restou como falsa a seguinte Gabarito: "0 condomínio responde por danos derivados de furto ou roubo nas suas dependências, independentemente de previsão na Convenção ou no Regimento".

A alteração da convenção dependerá da aprovação de 2/3 dos votos dos con­ dôminos. Já a mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária, bem

37. Op. cit., p. 633.

Cap. IV • Condomínio

215

como alterações na fachada e esquadrias do prédio, frações ideais e nas áreas comuns, exigem aprovação unânime, na forma do art. 1.351 do CC. A fachada e es­ quadrias são propriedades comuns, exigindo-se aprovação de todos para alteração. ►Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Alteração de fachada sem autorização da totalidade dos condôminos. 0 condômino não pode, sem a anuência de todos os condôminos, al­ terar a cor das esquadrias externas de seu apartamento para padrão distinto do empregado no restante da fachada do edifício, ainda que a modificação esteja posicionada em recuo, não acarrete prejuízo direto ao valor dos demais imóveis e não possa ser vista do térreo, mas ape­ nas de andares correspondentes de prédios vizinhos. (REsp 1.483.733Rj, Rei. Min. RICARDO VILLAS BOAS CUEVA, Dje 10.9.15). 3* T. (Info STJ, 568) Concordamos com Flávio Tartuce38 no sentido de que não há mudança de destinação em imóvel residencial no qual há exercício de atividade profissional mo­ derada, como 0 fato de um advogado redigir prazos processuais em sua casa ou um jornalista confeccionar suas matérias. Por razões lógicas, 0 fiel da balança será a razoabilidade e a proporcionalidade, sendo que 0 uso não pode se contrapor à moral e nem ser nocivo à segurança, saúde e sossego dos vizinhos. Tema polêmico diz respeito ao quórum para fechamento de varanda e escolha de tipo de vidro (opaco, translúcido...). Parece-nos ser a questão em comento es­ tética e não, propriamente, de alteração de fachada. Nesta senda não enxergamos a necessidade de aprovação unânime, bastando 0 quórum geral de dois terços para alteração da convenção no particular. ►Atenção!

Diante do caráter estatutário da convenção, não é possível arguir a tese negociai da exceção do contrato não cumprido como apta a legiti­ mar a ausência de pagamento do condomínio.

► E na hora da prova?

Ano: 2012 Banca: CESPE Órgão: AGU Prova: Advogado da União Com base nas regras relativas à extinção e à resolução dos contratos, julgue os itens subsequentes. Se determinado empregado de um condomínio de edifícios causar dano a uma unidade habitacional, será lícito ao condômino proprie­ tário da unidade danificada, conforme entendimento do STJ, deixar de pagar cotas condominiais na hipótese de 0 condomínio não cumprir a obrigação de reparar os danos, visto que, nesse caso, terá ocorrido exceção de contrato não cumprido. Gabarito: Errado.

38. Op. cit., p. 1.012.

216

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como vem se pronunciando o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

AGRAVO DE INSTRUMENTO N° 1.299.928 - SP (2010/0068674-4) RELATOR: MI­ NISTRO MASSAMI UYEDA AGRAVANTE: MÁRIO WALTER RIATTO E OUTRO ADVO­ GADO: EDUARDO MACARU AKIMURA E OUTRO (S) AGRAVADO: CONDOMÍNIO EDIFÍCIO BARÃO DE MAMBUCABA ADVOGADO: OSWALDO AMIN NACLE E OUTRO (S) AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - NÃO OCORRÊNCIA - DESPESAS CONDOMINIAIS- EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO - INAPLICABILIDADE, NA ESPÉCIE - PRECEDENTES - AGRAVO IMPROVIDO. DECISÃO Cuida-se de agravo de instrumento interposto por MÁRIO WALTER RIATTO E OUTRO contra de­ cisão que negou seguimento a recurso especial em que se alega viola­ ção dos artigos 58, II, do CPC e 476 do CC. Busca 0 recorrente a reforma da r. decisão, argumentando, em síntese, que houve negativa de pres­ tação jurisdicional. Aduz, ainda, que não pode ser compelido ao pa­ gamento das despesas condominiais sem que 0 condomínio apresente as respectivas atas assembleares. É 0 relatório. A irresignação não merece prosperar. Com efeito. Inicialmente, quanto à negativa de pres­ tação jurisdicional, observa-se que todas as questões necessárias ao deslinde da questão foram devidamente decididas e fundamentadas. Na realidade, 0 Órgão julgador não é obrigado a se manifestar sobre todos os pontos alegados pelas partes, mas somente sobre aqueles que entender necessários para 0 julgamento do feito, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência e da legislação que entender aplicável ao caso. Na realidade, os recorrentes (STj, AgRg no Ag n° 638.361/PB) adu­ zem que 0 Tribunal local, instado a se manifestar, quedou-se inerte com relação à teoria da exceção do contrato não cumprido. Sucede que, ao contrário do que afirmam os agravantes, 0 Tribunal de origem, ao julgar os embargos de declaração, assim se manifestou: 'Inaplicável a regra prevista no artigo 1092 do Código Civil de 1916, com correspondência legislativa no artigo 476, atual do Código Civil. Não obstante a Conven­ ção de Condomínio ter natureza contratual, inadmissível que 0 condô­ mino invoque a exceção de contrato não cumprido para escusar-se ao pagamento das cotas condominiais'. Inexiste, assim, 0 alegado vício no seio do v. acórdão recorrido. No mais, é dizer, com relação à exceção do contrato não cumprido, que tal teoria não tem aplicação nas rela­ ções havidas entre os condôminos e 0 condomínio, especialmente em razão de que a convenção condom inial não se reveste da natureza

puramente contratual. A propósito da questão, confira-se 0 seguinte precedente: "CONDOMÍNIO. DESPESAS CONDOMINIAIS. RECUSA DO CONDÔMI­ NO DE PAGÁ-LAS, SOB A ALEGAÇÃO DE QUE 0 CONDOMÍNIO NÃO CUMPRIU A OBRIGAÇÃO DE REPARAR OS DANOS HAVIDOS EM SUA UNIDADE HABITACIONAL. EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS. INADMISSIBILIDADE DA ARGÜIÇÃO. ART. 1.092 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. - Não ostentando a Convenção de Condomínio natureza puramente contratual, inadmissível é ao condô­ mino invocar a exceção de contrato não cumprido para escusar-se ao pagamento das cotas condominiais. Recurso especial não conhecido". (REsp 195450/SP, Rei. Min. Barros Monteiro, Dj 04/10/2004). E ainda: REsp 450449/GO, Rei. Min. Hélio Quaglia Barbosa, publicado em 07/03/2006.

Cap. IV . Condomínio

Da fundamentação do voto do sobredito julgado, colhe-se o seguinte (REsp 195450/SP) e excerto: "Não se aplica realmente a regra do art. 1.092 do Código Civil/1916 na ação de cobrança das despesas condominiais. Conforme estabelece 0 referido preceito legal, a exceptio non adimpleti contractus somente encontra pertinência nos contratos bila­ terais. Eis 0 que reza a norma em foco: 'Nos contratos bilaterais ne­ nhum dos contraentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir 0 implemento da do outro.' Aduzem os recorrentes, em suas razões de apelo especial, que a Convenção de Condomínio possui natureza con­ tratual, daí decorrendo conforme sustentam a incidência do aludido cânone legal. Entretanto, não é bem assim. joão Batista Lopes, em sua obra 'Condomínio', observa que: 'Em ver­ dade, porém, a convenção de condomínio tem caráter predominan­ temente estatutário ou institucional, por isso que alcança não só os signatários, mas todos os que ingressarem no universo do condomí­ nio.' Mais adiante, assinala: 'A convenção de condomínio, por seu caráter normativo e institucional, distingue-se dos contratos em geral e não se confunde com 0 contrato de sociedade em particular. Caio Mário da Silva Pereira ressalta que 0 fundamento contratualista da convenção, 'outrora admitido, hoje perdeu terreno, porque sua for­ ça coercitiva ultrapassa as pessoas que assinaram 0 instrumento de sua constituição, para abraçar qualquer indivíduo que, por ingressar no agrupamento ou penetrar na esfera jurídica de irradiação das normas particulares, recebe os seus efeitos em caráter permanente ou temporário.'. 0 citado mestre Caio Mário da Silva Pereira (pág. 76, 7a ed.) também destaca 0 caráter normativo da convenção de condomínio. 'Sua força cogente aos condôminos, seus sucessores e sub-rogados, e eventualmente às pessoas que penetram aquele cír­ culo fechado, representado pelo edifício, é aceita sem relutâncias.'. Descaracteriza-se, pois, a alegada natureza contratual da Convenção Condominial (Condomínio e Incorporações, pág. 129, 10a ed.), com 0 que resulta evidente 0 dever do condômino de arcar com a sua cota nos gastos havidos no condomínio, sem que possa arguir a preten­ dida exceção de contrato não cumprido'. Descaracteriza-se, pois, a alegada natureza contratual da Convenção Condominial, com 0 que resulta evidente 0 dever do condômino de arcar com a sua cota nos gastos havidos no condomínio, sem que possa arguir a pretendida exceção de contrato não cumprido". In casu, 0 entendimento adotado pelo Tribunal estadual, não destoa daquele firmado por esta Corte Superior e, portanto, não merece ser reformado. Nega-se, portanto, provimento ao recurso. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 13 de maio de 2010. MINISTRO MASSAMI UYEDA Relator (DF)

(STJ, - Ag: 1299928, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Publicação: DJe 19/05/2010) Ainda que 0 condomínio não tenha implementado obras de sua res­ ponsabilidade, 0 condômino há de realizar 0 pagamento determinado em assembléia. Para os descontentes com a atual gestão, 0 remédio é a modificação dos ocupantes dos cargos de síndico, subsíndico e conselho fiscal.

217

218

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 regulamento ou regimento interno complementa a convenção. Destina-se a regrar, de maneira detalhada, a utilização das coisas comuns, o dia a dia do con­ domínio. Costuma ser, inclusive, fixada em áreas comuns, nas respectivas partes: regimento da academ ia, na parede da academ ia; regimento da quadra, na entra­ da da quadra. É uma espécie de manual da boa convivência.

Segundo a doutrina, posta no Enunciado 248 do Conselho da Justiça Federal, "0 quórum para alteração do regimento interno do condomínio edilício pode ser li­ vremente fixado na convenção". A linha de pensamento é d ara: tanto 0 regimento como a convenção possuem natureza normativa. ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

DIREITO CIVIL. QUÓRUM PARA A MODIFICAÇÃO DE REGIMENTO INTERNO DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO. A alteração de regimento interno de condomínio edilício depende de votação com observância do quórum estipulado na convenção condominial. É certo que 0 art. 1.351 do CC, em sua reda­ ção original, previa quórum qualificado de dois terços dos condôminos para a modificação do regimento interno do condomínio. Ocorre que 0 mencionado dispositivo teve sua redação alterada pela Lei 10.931/2004, a qual deixou de exigir para tanto a observância de quórum quali­ ficado. Assim, conclui-se que, com a Lei 10.931/2004, foi ampliada a autonomia privada dos condôminos, os quais passaram a ter maior liberdade para definir 0 número mínimo de votos necessários para a alteração do regimento interno. Nesse sentido é, inclusive, 0 entendi­ mento consagrado no Enunciado 248 da III Jornada de Direito Civil do CJF, que dispõe que 0 quórum para alteração do regimento interno do condomínio edilício pode ser livremente fixado em convenção. Toda­ via, deve-se ressaltar que, apesar da nova redação do art. 1.351 do CC, não configura ilegalidade a exigência de quórum qualificado para votação na hipótese em que este tenha sido estipulado em convenção condominial aprovada ainda na vigência da redação original do art. 1.351 do CC. (REsp 1.169.865-DF, Rei. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, julgado em 13/8/2013).

Instituído e convencionado 0 condomínio, quais seriam os direitos dos con­ dôminos? A teor do art. 1.335 do CC poderá 0 condômino: usar, fruir e livremente dispor das suas unidades, assim como utilizar das partes comuns, conforme a sua destinação, contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores. Final­ mente, 0 condômino terá direito de votar nas deliberações da assem bléia e delas participar "estando quite", verificando-se uma medida preventiva na tentativa de pontualidade nos pagamentos mensais. Entretanto, ao ap reciar tema envolvendo condomínio horizontal (Shopping center) onde específica cláusula de convenção de condomínio regulamentava 0 uso exclusivo de partes de área comum, entendeu 0 Superior Tribunal de Justiça que "A cláusula prevista em convenção de condomínio de shopping center, per-

Cap. IV • Condomínio

219

mitindo a alguns condôminos - lojistas - o uso, gozo e fruição de áreas comuns, não é, em regra, nula"39. Portanto, a convenção de condomínio pode atribuir direito de uso exclusivo de áreas comuns a um ou mais condôminos isto porque as circunstâncias peculiares e a natureza jurídica dos shopping centers, tanto com relação à forma de constituição, quanto aos objetivos econômicos traçados pelos em preendedores, os distinguem do condomínio edilício comum. Nada im­ pede que, quando da constituição do empreendimento, em decisão assem blear ou por meio de cláusulas de convenção de condomínio e dem ais normais gerais com plem entares, seja lim itada à propriedade adquirida pelos lojistas ao espaço interno, ou parte da edificação, sem contribuição ou participação nas coisas de uso comum, desde que respeitado o respectivo quorum de votação, em razão do princípio da autonomia da vontade. Assim, a cláusula prevista em convenção de condom ínio de shopping center, que permite a alguns condôminos (lojistas) o uso, gozo e fruição de áreas comuns, não é, em regra, absolutamente nula, pois aqueles exercem, apenas relativam ente, os direitos assegurados em geral pelo art. 1.335 do Código Civil. No dia 07 de junho de 2019 foram aprovados importantes Enunciados na III Jornada de Direito Comercial, entre os quais 0 Enunciado 83 segundo 0 qual " 0 complexo edilício constituído por unidades condominiais comerciais autônomas, sem exploração econômica coordenada de forma unitária, ainda que chamado shopping do tipo vendido, não caracteriza contrato de shopping center". ►Atenção!

Em havendo invasão de área comum do condomínio edilício por tercei­ ro, será este (0 condomínio) 0 legítimo a ajuizar a contenda. 0 condô­ mino apenas terá legitimidade caso 0 uso do espaço em questão lhe compita exclusivamente, ou seja, indispensável ao uso de sua proprie­ dade exclusiva (STJ, Inf. 397, REsp. 1.015.652-RS).

Acerca da participação nas assem bléias, é possível, até mesmo, que 0 condô­ mino se faça representar por procuração com poderes específicos para participa­ ção e voto, desde que esteja quite com sua contribuição mensal. Hodiernamente não há limites de representações, sendo possível, até mesmo, que 0 síndico ou um único condômino reúna várias procurações em suas mãos. Mesmo que 0 condômino esteja inadimplente haverá de ser convocado para assem bléia, seja para quitar e participar com direito ao voto, seja para não quitar e participar, com direito de voz, mas sem voto. Caso participe como inadim plen­ te, concordamos com a doutrina de Francisco Eduardo Loureiro40 não devendo o inadimplente ser computado para fins de fixação do quórum, para que não invia­ bilize as deliberações.

39. REsp 1.677.737-RJ, Rei. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por unanimidade, julgado em 19/06/2018, DJe 29/06/2018. 40. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado, p. 1374.

220

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

De mais a mais, caso o condômino tenha duas ou mais unidades, umas quites e outras com débitos, terá o seu direito de voto assegurado no que diz respeito à unidade quite. ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

DIREITO CIVIL. DIREITO DE VOTO EM ASSEMBLÉIA DE CONDOMÍNIO. Em assembléia condominial, 0 condômino proprietário de diver­ sas unidades autônomas, ainda que inadimplente em relação a uma ou algumas destas, terá direito de participação e de voto relativamente às suas unidades que estejam em dia com as taxas do condomínio. É certo que 0 CC submete 0 exercício do direito de participar e votar em assembléia geral à quitação das dívidas que 0 condômino tiver com 0 condomínio. Todavia, deve-se con­ siderar que a quitação exigida pelo art. 1.335, III, do CC para que 0 condômino tenha 0 direito de participar das deliberações das assembléias com direito a voto refere-se a cada unidade. Assim, considerando que as taxas condominiais são devidas em relação a cada unidade, autonomamente considerada, a penalidade ad­ vinda de seu não pagamento, consequentemente, também deve ser atrelada a cada unidade. Ressalte-se que, a partir de uma interpretação sistemática e teleológica dos dispositivos que tra­ tam do condomínio edilício, é possível depreender que a figura da "unidade isolada" constitui elemento primário da formação do condomínio, estando relacionada a direitos e deveres, que devem ser entendidos como inerentes a cada unidade. De fato, em razão da natureza propter rem das cotas condominiais, a dívida delas decorrente estará atrelada a cada unidade, por se tratar de despesa assumida em função da própria coisa. Destaque-se que 0 CC trouxe como objeto central do condomínio edilício a "unidade autônoma" - e não a figura do condômino -, em virtude da qual 0 con­ domínio se instaura, numa relação de meio a fim, apontando assim para a adoção da concepção objetiva de condomínio. Ademais, as dí­ vidas relativas ao imóvel são por ele garantidas, 0 que indica a estrita vinculação entre 0 dever de seu pagamento e a propriedade do bem. (REsp 1.375.160-SC, Rei. Min. NANCY ANDRIGHI, julgado em W10/2013). ► A te n ç ã o !

A doutrina nacional, com base na prática condominial e no direito com­ parado, preocupa-se com a chamada ditadura condominial. Essa costu­ ma ser estabelecida quando 0 síndico possui uma série de procurações de proprietários que estão com os imóveis fechados, reunindo nas mãos de uma única pessoa (síndico), inúmeros votos. Assim, 0 aludido síndico acaba por aprovar, ou reprovar, quase que unilateralmente, as questões. Atento a situações como esta 0 ordenamento jurídico francês apenas permite que cada condômino tenha, no máximo, 0 seu voto e mais três procurações. Evita-se uma deserção da assembléia e a indevida concentração de poderes. No Brasil há projeto de lei de alteração do Código Civil neste sentido, pendente de análise.

Cap. IV • Condomínio

221

Uma questão muito interessante relaciona-se ao problema da permanência de

animais nas unidades autônomas residenciais e se a convenção do condomínio poderia restringir essa conduta. Com bem obtempera Flávio Tartuce41, há três situações possíveis: a) a conven­ ção do condomínio proíbe a estada de animais; b) a convenção do condomínio é omissa sobre o tema; e c) a convenção do condomínio permite os animais. Nos dois últimos casos (omissão e permissão), entende-se pela possibilidade, já na primeira hipótese (negativa), vem posicionando-se a doutrina e a jurisprudência de maneira a permitir a estada do animal, desde que não haja qualquer risco ao sossego, saúde ou segurança dos demais condôminos. Sobre o assunto, a doutrina elaborou o Enunciado 566 do Conselho da Justiça Federal nos seguintes termos "A cláusula convencional que restringe a permanên­ cia de anim ais em unidades autônomas residenciais deve ser valorada à luz dos parâmetros legais de sossego, insalubridade e periculosidade". A cláusula de negativa é passível de questionamento diante da razoabilidade e proporcionalidade, de acordo com as diretrizes sugeridas pelo Enunciado. Destarte, há de se permitir, mesmo diante da vedação da convenção, animais de pequeno porte, desde que não atrapalhe a vizinhança, não sendo, por exemplo, um uivador da madrugada. Outrossim, anim ais de grande porte, utilizados, até mesmo, terapeuticamente, dóceis e adestrados, na ponderação de interesses e desde que não gerem riscos aos sossego, saúde e segurança dos demais, pode­ rão, eventualmente, ter a sua estada assegurada. Entrementes, vem se entendendo como lícita a cláusula limitadora do número de cães, pois não é proporcional que haja uma espécie de canil em uma unidade residencial. ►Como o STJ já decidiu a matéria?

É ilegítima a restrição genérica contida em convenção condominial que proíbe a criação e guarda de animais de quaisquer espécies em unida­ des autônomas. (REsp 1.783.076-DF, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 24/05/2019).

E quais seriam os deveres dos condôminos? 0 art. 1.336 do CC discorre sobre os deveres do condômino, são eles: 0 de contribuir para as despesas na proporção de suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção; não realizar obras que comprometam a segurança da edificação; não alterar a forma, a cor da fachada, das partes e esquadrias exter­ nas; dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação e não utilizar a unidade de maneira prejudicial ao sossego.

41. Op. Cit., p. 1.002.

222

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

No que tange ao primeiro dever - contribuição para as despesas na proporção de suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção - consiste em uma obrigação propter rem e, como tal, deve ser suportada por aquele que tiver a coisa em seu domínio. Em tendo natureza real, o novo adquirente passará a responder pelas dívidas anteriores, pois aderentes ao imóvel, na forma do art. 1.345 do Código Civil. ►E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: DPE-RS Prova: FCC - 2018 - DPE-RS - Defensor Público 0 Condomínio Edilício, cuja característica é a existência, em edificações,

de partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos, devido às suas peculiaridades, está disciplinado em Capítulo próprio do Código Civil, distinto daquele destinado ao regramento do Condomínio Geral. No que diz respeito ao Condomínio Edilício, Gabarito: "0 adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios". ►Atenção! 0 art. 12 da Lei 4.591/64, atento ao fato de que 0 direito do promitente

comprador fora elevado à categoria de direito real (CC, arts. 1.225,1417 e 1.418), firma que 0 compromissário comprador possui a mesma con­ dição de proprietário, sendo que a partir do momento em que possuir diretamente 0 imóvel responderá pelas despesas condominiais. Não é diverso 0 posicionamento estampado no Código Civil, 0 qual equipara ao proprietário tanto os promitentes compradores como os cessionários de direitos relativos a unidades autônomas (CC, art. 1.334). ► E na hora da prova?

No ano de 2012, a banca FAURGS na prova para Conciliador do TJ-RS considerou verdadeiro que: "a responsabilidade pelas despesas con­ dominiais pode recair tanto sobre 0 promitente vendedor quanto so­ bre 0 promitente comprador, dependendo das circunstâncias do caso".

Atento ao exercício da autonomia privada, possibilita o Código Civil fixação de va­ lor do condomínio segundo critério diverso da proporcionalidade das frações idéias. Nada impede, por exemplo, que a convenção firme contribuição igualitária, indepen­ dentemente do tamanho da fração ideal, ou, ainda, desigual por critério de andar... A autonomia privada, atenta as normas jurídicas (heteronomia) será o grande norte. ►Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

A forma do rateio será determinada na Convenção de Condomínio, a qual poderá ser alterada por aprovação de 2/3 dos votos dos condôminos. Nas pegadas do entendimento ventilado no Informativo 554 do Supe­ rior Tribunal de Justiça, no ano de 2015, tal alteração da convenção

Cap. IV . Condomínio

223

poderá ser realizada, inclusive, se a redação originária da dita conven­ ção prever ser o instrumento irretratável e irrevogável. Isso porque o mesmo quórum de 2/3 poderá reformar a cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade. Cita-se: • Insubsistência de cláusula de irrevogabilidade e de irretratabilidade em convenção de condomínio. Ainda que, na vigência do CC/1916, tenha sido estipulado, na conven­ ção original de condomínio, ser irrevogável e irretratável cláusula que prevê a divisão das despesas do condomínio em partes iguais, admite-se ulterior alteração da forma de rateio, mediante aprova­ ção de 2/3 dos votos dos condôminos, para que as expensas sejam suportadas na proporção das frações ideais. REsp 1.447.223-RS, Rei. p/ac. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 5.2.15. 3a T. (Info STJ 554).

Quais as penas pelo não pagamento pontual das taxas condominiais? 0 § i ° do art. 1.336 autoriza a aplicação de cláusula penal moratória de até 2 % (dois por cento) sobre 0 débito ao condômino que não pagar a contribuição na data aprazada, bem como juros moratórios convencionados ou, no silêncio da con­ venção, de 1 % (um por cento) ao mês. No particular, houve importante diminuição, pois na Lei 4.591/64 previa multa de 20% (vinte por cento) por impontualidade. 0 Enunciado 505, do Conselho da Justiça Federal, reconheceu nula a estipulação condominial que dissimule ou embuta multa acima de 2 % (dois por cento) a título de suposto desconto de pontualidade no pagamento da taxa condominial. A conduta revela clara fraude à lei. Exemplifica-se com aqueles condomínios que conferem sanção premial, conferindo desconto de 20% (vinte por cento) para os pagadores pontuais. Para a doutrina, trata-se, aqui, de multa às avessas e tentati­ va de burlar 0 teto de 2 % (dois por cento)

►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

No que tange aos juros moratórios de 1% ao mês no silêncio da con­ venção, sufraga 0 Superior Tribunal de Justiça ser lícita a cláusula de quantum distinto, inclusive maior (REsp 1002525/DF). Não concordamos com 0 entendimento do STJ, assim como 0 fazem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr., por violar 0 limite da taxa SELIC do art. 406 codificado, resultando em verdadeiro abuso de direito. Outrossim, em relação ao desconto de pontualidade, 0 Superior Tribu­ nal de Justiça entendeu pela sua licitude em relação às mensalidades escolares. Logo, devemos redobrar a atenção aos precedentes vin­ douros acerca do tema e em relação às taxas condominiais. Cita-se 0 precedente sobre mensalidades escolares: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DESTINADA AO RECONHECIMENTO DE ABUSIVIDADE DE PRÁTICA COMERCIAL CONHECIDA COMO "DESCONTO DE PON­ TUALIDADE" INSERIDA EM CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS. IMPROCEDÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE MULTA CAMUFLADA. LEGITIMIDADE DA CON­ TRATAÇÃO. RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

224

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

1. A par das medidas diretas que atuam imediatamente no compor­ tamento do indivíduo (proibindo este, materialmente, de violar a norma ou compelindo-o a agir segundo a norma), ganha relevância as medidas indiretas que influenciam psicologicamente 0 indivíduo a atuar segundo a norma. Assim, 0 sistema jurídico promocional, para 0 propósito de impedir um comportamento social indesejado, não se limita a tornar essa conduta mais difícil ou desvantajosa, impondo obstáculos e punições para 0 descumprimento da norma (técnica do desencorajamento, por meio de sanções negativas). 0 ordenamento jurídico promocional vai além, vai ao encontro do comportamento social desejado, estimulando a observância da norma, seja por meio da facilitação de seu cumprimento, seja por meio da concessão de benefícios, vantagens e prêmios decorrentes da efetivação da conduta socialmente adequada prevista na norma (técnica do encorajamento, por meio de sanções positivas). 1.1 As normas que disciplinam 0 contrato (seja 0 Código Civil, seja 0 Código de Defesa do Consumidor) comportam, além das sanções legais decorrentes do descumprimento das obrigações ajustadas contratualmente (de caráter coercitivo e punitivo), as denominadas sanções positivas, que, ao contrário, tem por propósito definir con­ sequências vantajosas em decorrência do correto cumprimento das obrigações contratuais. 2. Os serviços educacionais são contratados mediante 0 pagamento de um preço de anualidade certo, definido e aceito pelas partes (diluí­ do nos valores nominais constantes das mensalidades e matrícula). Inexiste, no bojo da presente ação civil pública, qualquer discus­ são quanto à existência de defeito de informação ou de vício de consentimento, especificamente em relação ao preço estipulado da anuidade escolar à época da celebração dos contratos de prestação de serviços educacionais. Em momento algum se cogita que 0 aluno/ consumidor teria sido levado, erroneamente, a supor que 0 preço de sua mensalidade seria aquele já deduzido do valor do desconto. Aliás, insinuações nesse sentido cederíam à realidade dos termos contratados, em especial, repisa-se, no tocante ao preço da anuida­ de efetivamente ajustado. 2.1 Se 0 somatório dos valores nominais constantes das mensa­ lidades (incluídas, aí, os valores de matrícula) equivale ao preço da anuidade contratada, ressai inquestionável que a concessão do

denominado "desconto por pontualidade" consubstancia idônea medida de estímulo à consecução do cumprimento do contrato, a premiar, legitimamente, 0 consumidor que efetuar 0 pagamento de sua mensalidade na data avençada. 2.2 A disposição contratual sob comento estimula 0 cumprimen­ to da obrigação avençada, 0 que converge com os interesses de ambas as partes contratantes. De um lado, representa uma vanta­ gem econômica ao consumidor que efetiva 0 pagamento tempes­ tivamente (colocando-o em situação de destaque em relação ao consumidor que, ao contrario, procede ao pagamento com atraso, promovendo, entre eles, isonomia material, e não apenas formal).

Cap. IV • Condomínio

e, em relação à instituição de ensino, não raras vezes, propicia até um adiantamento do valor a ser pago. 2.3 A proibição da estipulação de sanções premiais, como a trata­ da nos presentes autos, faria com que 0 redimensionamento dos custos do serviço pelo fornecedor (a quem cabe, exclusivamente, definir 0 valor de seus serviços) fossem repassados ao consumidor, indistintamente, tenha ele 0 mérito de ser adimplente ou não. Além de 0 desconto de pontualidade significar indiscutível benefício ao consumidor adimplente - que pagará por um valor efetivamente menor do preço da anualidade ajustado - , conferindo-lhe isonomia material, tal estipulação corrobora com a transparência sobre a que título os valores contratados são pagos, indiscutivelmente. 3. 0 desconto de pontualidade é caracterizado justamente pela co­ brança de um valor inferior ao efetivamente contratado (que é 0 preço da anuidade diluído nos valores das mensalidades e matrí­ cula). Não se pode confundir 0 preço efetivamente ajustado pelas partes com aquele a que se chega pelo abatimento proporcionado pelo desconto. 0 consumidor que não efetiva a sua obrigação, no caso, até a data do vencimento, não faz jus ao desconto. Não há qualquer incidência de dupla penalização ao consumidor no fato de a multa moratória incidir sobre 0 valor efetivamente contrata­ do. Entendimento contrário, sim, ensejaria duplo benefício ao con­ sumidor, que, além de obter 0 desconto para efetivar a sua obriga­ ção nos exatos termos contratados, em caso de descumprimento, teria, ainda a seu favor, a incidência da multa moratória sobre valor inferior ao que efetivamente contratou. Sob esse prisma, 0 desconto não pode servir para punir aquele que 0 concede. 3.1 São distintas as hipóteses de incidência da multa, que tem por propósito punir 0 inadimplemento, e a do desconto de pontualida­ de, que, ao contrário, tem por finalidade premiar 0 adimplemento, 0 que, por si só, afasta qualquer possibilidade de bis in idem, seja em relação à vantagem, seja em relação à punição daí advinda. 3.2 Entendimento que se aplica ainda que 0 desconto seja dado até a data do vencimento. Primeiro, não se pode olvidar que a estipulação contratual que concede 0 desconto por pontualidade até a data de vencimento é indiscutivelmente mais favorável ao consumidor do que aquela que estipula a concessão do desconto até a data imedia­ tamente anterior ao vencimento. No tocante à materialização do pre­ ço ajustado, tem-se inexistir qualquer óbice ao seu reconhecimento, pois 0 pagamento efetuado até a data do vencimento toma por base justamente o valor contratado, sobre o qual incidirá o desconto; já 0 pagamento feito após 0 vencimento, de igual modo, toma também por base 0 valor contratado, sobre 0 qual incidirá a multa contratual. Tem-se, nesse contexto, não ser possível maior materialização do preço ajustado do que se dá em tal hipótese. 4. Recurso especial provido. RECURSO ESPECIAL n° 1.424.814 - SP (2013/0405555-9). 3a Turma. Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze.

225

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

226

►Atenção!

Lembra-se, como já afirmado neste capítulo, de que pelo inadimplemento da taxa condominial poderá ser atingido, até mesmo, 0 bem de moradia, por haver expressa exceção na Lei de Bem de Família Legal (art. 30 da Lei 8.009/90). Assim, a impenhorabilidade do bem de família não tem oponibilidade por dívidas decorrentes de taxas condominiais. Medida coercitiva interessante de combate ao não pagamento e já legis­ lada em alguns estados da federação é a possibilidade de inclusão do condômino inadimplente nos órgãos de restrição ao crédito, a exemplo do SPC e SERASA, como método de coerção para 0 adimplemento. Ainda nos meios de cobrança, recorda-se que 0 Novo Código de Pro­ cesso Civil elevou a dívida condominial a título executivo extrajudicial, possibilitando uma via bem mais célere de expropriação (CPC/15, art. 784, VIII).

Quanto ao descumprimento das demais obrigações, o § 2° do mesmo art. 1.336 autoriza a aplicação de multa (pena civil) prevista no ato constitutivo ou na con­ venção. Trata-se de penalização do condômino antissocial ou nocivo por um anti-

jurídico civil. Por antissocial entende-se aquele condômino que por seu comportamento te­ nha incompatibilidade de convivência com os demais condôminos e moradores. Verifica-se, então, um comportamento nocivo, prejudicial e capaz de gerar inse­ gurança, atritos e desconfortos aos demais. É um contumaz descum pridor das normas e deveres condominiais. Nas pegadas do artigo aplica-se a multa nos se­ guintes casos: a) condômino que realizar obras que comprometam a segurança de edificação; b) alterar a forma e a cor das fachadas, das partes e esquadrias exter­ nas; c) der destinação diferente à sua parte àquela prevista para a edificação; e d) utilizar a sua parte de forma a prejudicar 0 sossego, a salubridade e a segurança dos demais possuidores e em contrariedade aos bons costumes. A aludida multa não pode "ser superior a cinco vezes 0 valor de suas contri­ buições mensais, independentemente das perdas e danos que se apurarem". Ade­ mais, "caso não haja disposição expressa na convenção acerca da multa, caberá à assem bléia deliberar por dois terços, no mínimo, dos condôminos restantes". A dita multa não retira a possibilidade de o condomínio cobrar do condômino infra­ tor indenização pelas perdas e danos que causar. 0 fato concreto é que 0 condômino poderá incorrer em ilegalidade decor­ rente do não pagamento, ou ainda decorrente de regras de convívio, caso em que a multa poderá até mesmo ser m ajorada por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, excluído 0 infrator, para até dez vezes 0 montante da cota condominial, tudo na melhor forma do art. 1.337 do CC. Tal multa poderá ser imposta de imediato pelo síndico ou corpo diretivo do condomínio, consoante 0 regramento da convenção, pendente de posterior ratificação pela assem bléia. Em não havendo a aludida ratificação, 0 condômino deverá ter restituído 0 montante outrora desembolsado.

Cap. IV • Condomínio

227

►Com se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Ressalta-se, todavia, que atento à aplicação do Direito e Garantia Fun­ damental do Devido Processo Legal às Relações Privadas, o Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento de necessidade de con­ ferência prévia do direito de defesa ao condômino antissocial, para posterior aplicação da multa. Cita-se decisão de 2015, ventilada no Informativo 570: Aplicação de multa a condômino antissocial. A sanção prevista para 0 comportamento antissocial reiterado de condômino (art. 1.337, parágrafo único, do CC) não pode ser aplicada sem que antes lhe seja conferido 0 direito de defesa. REsp 1.365.279-SP, Rei. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 29.9.15. 4a T. (Info STj 570).

Para Maria Helena Diniz42, a imposição de multa ao infrator pelo síndico não 0 exime da prévia comunicação ao condômino antissocial, quem terá, na forma da convenção, prazo para justificar 0 seu comportamento. Trata-se de uma homena­ gem ao devido processo legal e sua aplicação às relações privadas ou horizontais, consoante a eficácia irradiante dos direitos e garantias fundamentais. Na esteira do aqui afirmado caminha 0 Enunciado 92 do Conselho da Justiça Federal, 0 qual afirma a necessidade de garantia de defesa e recurso ao condômino antissocial. Logo, eventual cláusula na convenção que impossibilite 0 direito de defesa e recur­ so há de ser tida como nula, por contrariar direito e garantia fundamental. Fato é que diante dos quóruns qualificados de 2/3 e 3/4, na prática, as multas possuem incidências raras. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

• Aplicação de multas sancionatória e moratória por inadimplência condominial contumaz. No caso de descumprimento reiterado do dever de contribuir para as despesas do condomínio (inciso I do art. 1.336 do CC), pode ser aplicada a multa sancionatória em ra­ zão de comportamento "antissocial" ou "nocivo" (art. 1.337 do CC), além da aplicação da multa moratória (§ 1° do art. 1.336 do CC). REsp 1.247.020-DF, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 11.11.2015. 4a T. (Info 573)-

E 0 condômino antissocial poderia ter como penalidade a exclusão do con­ domínio? A lei nacional é omissa quanto à possibilidade de exclusão do condômino an­ tissocial contumaz, que mesmo já penalizado financeiramente, continua a reincidir em condutas ilegais. Sobre 0 tema, pronunciou-se 0 Enunciado 508 do Conselho da Justiça Federal pela possibilidade: "Verificando-se que a sanção pecuniária mostrou-se ineficaz, a

42. Op. Cit., p. 228.

228

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

garantia fundamental da função social da propriedade (arts. 5°, XXIII, da CRFB e 1.228, § i ° do CC) e a vedação ao abuso do direito (arts. 187 e 1.228, § 2° do CC) justificam a exclusão do condômino antissocial, desde que a ulterior assembléia prevista na parte final do parágrafo único do art. 1.337 delibere a propositura de ação judicial com esse fim, asseguradas todas as garantias inerentes ao devido processo legal". 0 pensamento explicitado no enunciado é defendido na doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.43. Além do supracitado enunciado, os au­ tores embasam suas idéias em uma importante analogia com 0 direito comparado e 0 permissivo do art. 18 da Lei Alemã, a qual obriga a venda da unidade. Isso porque 0 condômino nocivo quebrou a função social da propriedade e perdeu a legitimação do exercício de seu direito.

Entrementes, ap esar do enunciado e da boa doutrina, a tese não é pacífica, havendo vozes dissonantes. Flávio Tartuce44 advoga a im possibilidade da exclusão do condômino antissocial, por clara violação à moradia, dignidade da pessoa hu­ mana e solidarismo social. E podería 0 condômino inadimplente ou antissocial ser restringido no uso das áreas comuns? Outro tema polêmico. Flávio Tartuce45, pela mesma fundamentação supra, entende inviável a restrição do uso de áreas comuns (academ ia, sauna, quadra esportiva...). D'outra banda, Carlos Roberto Gonçalves46 entende como possível a aplicação de penas restritivas de direito, aos condôminos infratores, tais como limitações de direito de uso dos bens comuns. Particularmente entendemos que a restrição do uso de áreas comuns ao con­ dômino inadimplente é ilegal, ainda que haja permissivo em convenção e/ou regi­ mento interno. Funda-se 0 posicionamento em questão, primeiro, no fato da área comum ser fração proprietária do condômino. Outrossim, há meios legais de co­ brança dos valores em aberto, com sanções legisladas para 0 descum pridor contu­ maz e possibilidade, até mesmo, de atingimento do bem de família (Lei 8.009/90). 0 próprio Código de Processo Civil facilitou a cobrança das taxas condominiais em aberto ao elevá-la a título de crédito extrajudicial (CPC, art. 784, VIII). ► C o m o o S u p e rio r T r ib u n a l d e Ju s tiç a se p o s ic io n o u a c e rc a d o te m a ?

É ilícita a disposição condominial que proíbe a utilização de áreas co­ muns do edifício por condômino inadimplente e seus familiares como medida coercitiva para obrigar 0 adimplemento das taxas condomi­ niais. (REsp 1.699.022-SP, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, DJe 01/07/2019).

4344 -

Op. Cit., p. 532.

Op. Cit., p. 1.016. Op. Cit., p. 1.018. 46. Op.Cit., p. 416-417. 45 -

Cap. IV • Condomínio

229

No que tange as obras realizadas por condôminos, essas não poderão compro­ meter a segurança da edificação, exigindo-se, atualmente, parecer de arquiteto e/ ou engenheiro informando que as eventuais modificações estruturais não gerarão nenhum risco à segurança coletiva. No que tange às áreas comuns, em não sendo o condômino proprietário destas áreas, não poderá realizar obras. Obras em áreas comuns são feitas pelo próprio condomínio. Obviamente que caso um dos condôminos esteja a construir desrespeitando as regras pertinentes ao tema, o condomínio terá legitimidade ativa para propor ação de nunciação de obra nova, com o fito de embargar a obra. ►Como o Superior Tribunal de Justiça se posicionou acerca do tema?

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CABIMENTO DE AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA MOVIDA POR CONDOMÍNIO CONTRA CONDÔMINO. 0 condomínio tem legitimidade ativa para ajuizar contra o condômino ação de nunciação de obra nova com pedidos de paralisação e de de­ molição de construção irregular erguida pelo condômino em área comum para transformar seu apartamento, localizado no último andar do edifí­ cio, em um apartamento com cobertura, sem o consentimento expresso e formal de todos os proprietários do condomínio, nem licença da Pre­ feitura Municipal, causando danos à estética do prédio e colocando em perigo as suas fundações. Inicialmente, embora o art. 934 do CPC não inclua 0 condomínio entre os legitimados para ajuizar ações de nuncia­ ção de obra nova contra condôminos, deve-se interpretá-lo de forma teleológica, considerando 0 evidente interesse do condomínio de buscar as medidas possíveis em defesa dos interesses da coletividade que re­ presenta, de modo que 0 condomínio é parte legítima para figurar no polo ativo da demanda. Deve-se ressaltar, ademais, que não é adequado defender 0 descabimento da ação de nunciação de obra nova na hipóte­ se sob 0 argumento de que a demanda teria caráter possessório - diante da invasão pelo condômino construtor de área comum do condomínio -, e não de direito de vizinhança, tendo em vista a existência, nesse tipo de demanda, de fundamentos estritamente ligados a direito de vizinhança, já que se trata de caso em que os pedidos também se fundamentam no fato de a obra colocar em perigo a estrutura do prédio como um todo. REsp 1.374.456-MG, Rei. Min. SIDNEI BENETI, julgado em 10/9/2013. Cuidado. Infelizmente a ação de nunciação de obra nova não fora tra­ tada pelo Novo Código de Processo Civil, caminhando, hoje, para sua saída do ordenamento jurídico nacional. Tal fato é muito sentido, mor­ mente pela utilidade da demanda em situações de vizinhança.

Quanto à realização de obras no condomínio pelo próprio condomínio, es­ sas dependerão do voto de dois terços dos condôminos, quando voluptuárias, a exemplo de jardins e fontes de água, e da maioria dos condôminos quando úteis, a exemplo da instalação de câmeras de segurança. Evidentemente que as obras de natureza necessária, a exemplo de reparos no telhado, podem ser realizadas pelo síndico independentemente de autorização, ou, em caso de omissão deste, por qualquer condômino (CC, art. 1.341). Caso as obras necessárias exijam quantias

230

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

vultosas ou tenham sido realizadas pelo não síndico, im põe-se a notificação para convocação da assem bléia, com o intuito de busca do reembolso. Aqui é possível que seja determinado saque do fundo de reserva ou, até mesmo, taxa extra. ► E na hora da prova?

Aplicada em: 2014 Banca: VUNESP Órgão: EMPLASA Prova: Analista jurídico A realização de obras no condomínio em edificações; Gabarito: "se necessárias, na omissão do síndico, pode ser efetuada, independentemente de autorização, por qualquer condômino".

Aplicada em: 2012 Banca: FCC Órgão: PCM-João Pessoa-PB Prova: Pro­ curador Municipal Os moradores do Condomínio de apartamentos "Pássaros Raros" lo­ calizado no Município de João Pessoa, pretendem construir no interior do Condomínio uma fonte de água, de grande porte e adequada ilumi­ nação visando 0 embelezamento do hall social. Segundo 0 Código Civil brasileiro, a realização desta obra Gabarito: "depende de voto de dois terços dos condôminos". Já a construção de outro pavimento, ou de outro edifício destinado a conter novas unidades im obiliárias dependerá da aprovação unânime dos condôminos, como exige o art. 1.343 do CC. Interessante preceito protege 0 direito das minorias e está previsto no art. 1.344 do CC: ao proprietário do terraço de cobertura incum­ birá as despesas de sua conservação, de modo que não haja danos às unidades im obiliárias inferiores. Seguindo com os deveres dos condôminos, estes não poderão modificar a for­ ma nem a cor da fachada e esquadrias externas. Para tanto, se faz necessária a aprovação por unanimidade (Lei 4.591/64, art. 10, § 2°). Como regra geral de conduta, ainda nos deveres dos condôminos, impõe-se a im possibilidade de uso do bem de forma diversa do convencional ou, ainda, causando prejuízo ao sossego, salubridade e segurança dos demais condôminos ou abalo aos bons costumes. Logo, condomínio residencial não deve ser utilizado para fins comerciais, e vice-versa (arts. 1.277,1.336 do CC e 10, III, da Lei 4.591/64). Na mesma linha os condôminos deverão preservar os bons costumes, estabelecen­ do a boa convivência social. Finalmente, recorde-se que os direitos de cada um dos condôminos às partes comuns são inseparáveis da respectiva propriedade exclusiva e também insepa­ ráveis das frações ideais correspondentes as unidades imobiliárias com as suas partes acessórias. Por conta disso é vedada a alienação destes bens em separado, assim como também será proibido gravar tais bens separadamente. Apenas se esta possibilidade constar no ato constitutivo do condomínio e se a ela não se opuser a assembléia geral é que poderá 0 condômino alienar parte acessória de sua unidade imobiliária, sendo conferida preferência aos demais condôminos (CC, art. 1.339). Veja, adem ais disso, que 0 Código Civil torna obrigatório 0 seguro de toda a edificação contra risco de incêndio ou destruição, total ou parcial. É 0 que precei-

Cap. IV . Condomínio

231

tua o art. 1.346 do CC. A seguradora é de livre escolha do síndico, podendo cada um dos condôminos contratar seguros individuais para suas unidades. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: MPE-PR Órgão: MPE-PR Prova: Promotor Substituto Foi considerada correta a seguinte assertiva: É sempre obrigatório 0 seguro de toda a edificação contra 0 risco de incêndio ou destruição, total ou parcial. Quanto às garagens, deve-se observar que há possíveis regimes jurídicos d i­ versos, sendo a assem bléia soberana para determ inar 0 regime vigente. São as hipóteses correntes: i)

garagem como bem acessório: ocorre quando a unidade autônoma abrange a garagem;

ii)

garagem como área comum: neste caso, de rigor, 0 que existe é um es­ tacionamento. Tratar-se-ia de um uso comum cujo uso será determinado pela convenção (sistema de rodízio, sorteio etc.).

iii)

garagem como unidade autônoma: aqui a garagem é um bem em si mes­ mo, a exemplo daquelas adquiridas autonomamente (com escritura pró­ pria, somente para a garagem). Tem como casuística clássica os edifícios garagem.

Como já visto, 0 aluguel ou a alienação de garagem a terceiros estranhos ao condomínio apenas será possível caso haja permissivo expresso na convenção, em virtude da função social (CC, art. 1331, § i°) . Trata-se de incorporação legislativa de raciocínio há muito já defendido na doutrina, como se infere do Enunciado 91 do Conselho da justiça Federal. De mais a mais, caso haja 0 autorizativo expresso, reza 0 art. 1.338 do CC que "resolvendo 0 condômino alugar área no abrigo para veículos, preferir-se-á, em condições iguais, qualquer condômino a estranhos e, entre todos, os possuidores". Portanto, existe um direito de preferência, prelação ou preempção também para a hipótese de locação de garagens, assim como há na venda. Exatamente por isso 0 Enunciado 320 do CJF adverte: " 0 direito de preferência de que trata 0 art. 1338 do CC deve ser assegurado não apenas nos casos de locação, mas também na hipótese de venda de garagem". ►Atenção!

Dúvida interessante gravita sobre a possibilidade de penhora da ga­ ragem. E então? A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já se posicionou sobre 0 tema, afirmando que dependerá da verificação de ter, ou não, a aludida garagem registro imobiliário próprio. Caso 0 te­ nha, será vista como um bem principal, sendo passível de penhora por qualquer dívida e não integrando bem de família. Caso não 0 tenha, e em sendo 0 imóvel de família, integrará este, seguindo as regras atinentes à impenhorabilidade do bem de moradia (Súmula 449 do STJ).

232

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

No que diz respeito à área comum, em muitos casos ela é utilizada apenas por um dos condôminos. Nesse caso, os condôminos devem autorizar expressamente, mediante assem bléia, de preferência, a utilização deste uso. Quando isso ocorrer, na forma do art. 1.340 do CC, incumbirá ao condômino que utilizar, com exclusivida­ de, desta área, 0 pagamento também exclusivo das despesas relativas a este uso. Exemplifica com um espaço em área comum utilizado por um único condômino com uma loja, devidamente autorizado pela assem bléia. Aqui haverá pagamento específico de contraprestação, apenas pelo beneficiado, pelo dito uso. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: MPE-PR Órgão: MPE-PR Prova: Promotor Substituto Foi considerada correta a seguinte assertiva: As despesas relativas a partes comuns de uso exclusivo de um condômino, ou de alguns deles, incumbem a quem delas se serve.

Aliás, isso está assente no Enunciado 247 do CJF, segundo 0 qual "No condomínio edilício é possível a utilização exclusiva da área comum que, pelas próprias carac­ terísticas da edificação, não se preste ao uso comum dos dem ais condôminos". Exemplifica Maria Helena Diniz47 com 0 pilar que compõe cada unidade utilizado para colocação de objetos de decoração. ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

Na prova discursiva para 0 cargo de Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, 2014, foi trazida a seguinte questão. Discorra sobre as semelhanças e as diferenças entre loteamentos fe­ chados e condomínios horizontais ou fechados, notadamente quanto (I) à regulamentação da via interna; (II) ao objeto; (III) ao registro; (IV) à titularidade e utilização dos espaços livres internos e vias de circu­ lação e (V) à cobrança de despesas dos moradores, em especial pela contratação de serviços como os de limpeza, segurança e manutenção de equipamentos. Fundamente sua resposta à luz das disposições le­ gais pertinentes, da Doutrina Especializada e da Jurisprudência domi­ nante do Superior Tribunal de Justiça. Como será desenvolvida a administração do condomínio edilício? A administração do condomínio será regulada pela própria convenção. Será feita na pessoa do síndico, que poderá ser, ou não, condômino, e exercerá esta tarefa por prazo máximo de dois anos, renovável, sucessivamente, sem pre por eleição, salvo determinação em sentido contrário na convenção. Dessa maneira, além de condôminos, podem ser síndicos terceiros, havendo empresas no merca­ do de gestão de condomínios que fornecem este serviço, coloquialmente denomi­ nado de síndico profissional.

47- Op. Cit., p. 228.

233

Cap. IV • Condomínio

A legislação não aponta o quórum necessário à eleição do síndico. Omissa a con­ venção, seguirá a regra geral da maioria dos votos. 0 síndico é o administrador-geral do condomínio. Uma espécie de presidente ou gerente. Ao síndico competirá convo­ car a assembléia dos condôminos, representar ativa e passivamente o condomínio (independentemente de procuração, pois já nomeado em assembléia), dar imediato conhecimento à assembléia da existência de procedimento judicial ou administrati­ vo de interesse do condomínio, cumprir e fazer cumprir a convenção, o regimento interno e as determinações da assembléia, diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possui­ dores, elaborar orçamento de receita e despesa relativa a cada ano, cobrar dos condôminos as respectivas contribuições, prestar contas à assembléia anualmente e quando exigidas, bem como realizar o seguro da edificação (CC, art. 1.348). Trata-se de rol exemplificativo. Estão, ainda, no plexo de atribuições do síndico, admitir e desligar empregados, impor as multas estabelecidas na convenção, arrecadar e cobrar multas devidas e contribuições deliberadas pela assembléia (CC, art. 1.346). ►E na horada prova?

(IESES - Cartório - TJ - PB/2014) No caso dos condomínios, compete ao síndico: I. Convocar a assembléia dos condôminos. II. Realizar 0 seguro da edificação. III. Elaborar 0 orçamento da receita e da despesa relativa a cada biê­ nio, dando parecer sobre as suas contas. IV. Dar imediato conhecimento à assembléia da existência de procedi­ mento judicial ou administrativo, de interesse do condomínio. a) Apenas a assertiva III está correta. b) As assertivas I e III estão corretas. c) Apenas as assertivas I, II e IV estão corretas. d) Apenas a assertivas I está correta.

Cabarito: letra c. ►Atenção!

Sobre 0 seguro contra incêndio e destruição total ou parcial, na hipó­ tese de ocorrência do sinistro, a indenização será dividida entre os condôminos na proporção de seus quinhões. Ademais, caso 0 síndico não contrate a aludida seguradora estar-se-á diante de uma hipótese de destituição do síndico por irresponsabilidade. Outrossim, se 0 síndico não convocar a assembléia anual ordinária, ou até mesmo uma extraordinária, é possível que um quarto dos condô­ minos 0 faça (CC, art. 1.330, § i° e art. 1.355). 0 escopo é assegurar 0 direito de as minorias levarem os temas à assembléia.

0 encargo de síndico, a priori, é gratuito. Apenas haverá remuneração acaso prevista na convenção. Nada impede que a convenção coloque uma espécie de re­

234

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

muneração indireta, como isenção ou abatimento da taxa condominial. 0 exercício de sua função é fiscalizado pela assem bléia. Em sendo um gestor de patrimônio alheio, o síndico haverá de prestar contas, especialmente em assem bléia anual, ao término do seu mandato, e em outras assem bléias, quando requisitado pelos condôminos (CC, art. 1.348, VIII). Mas poderia um único condômino exigir a prestação de contas? ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ILEGITIMIDADE DO CONDÔMINO PARA PROPOR AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. 0 condômino, isoladamente, não possui legitimidade para ajuizar ação de prestação de contas contra 0 condo­ mínio. Isso porque, nos termos do art. 22, § 1°, f, da Lei 4.591/1964, 0 condomínio, representado pelo síndico, não tem obrigação de prestar contas a cada um dos condôminos, mas sim a todos, perante a assem­ bléia dos condôminos. No mesmo sentido, 0 art. 1.348, VIII, do CC dis­ põe que compete ao síndico, dentre outras atribuições, prestar contas à assembléia, anualmente e quando exigidas. (REsp 1.046.652-RJ, Rei. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, julgado em 16/9/2014).

É possível a destituição do síndico, pela m aioria absoluta (metade mais um) dos membros da assem bléia, de forma motivada e quando: a) da prática de ir­ regularidades; b) recusa à prestação de contas; e c) administração inconveniente para 0 condomínio. Para que ocorra há de haver uma assem bléia especialmente convocada para tanto. Pois bem. A prática de irregularidades e a administração inconveniente acabam por ser conceitos com grande abertura semântica, demandando a análise do caso concreto para sua significação. Com efeito, nos parece que não se subsumem às hipóteses pequenos deslizes sem comprovada má-fé e sem ocasionar danos ao condomínio. No que tange a ausência de prestação de contas, a análise é obje­ tiva, configurando-se independentemente de má-fé ou de danos ocasionados ao condomínio. Nessa última hipótese, a simples omissão já gera a falta grave e 0 fundamento para a destituição. Imperioso ressaltar que além da destituição, nada im pede que 0 síndico res­ ponda civil e penalmente por suas condutas, por meio de ação própria e perante 0 Poder Judiciário. A assem bléia poderá investir outrem no lugar do síndico, com poderes de re­ presentação. Veja-se que aqui persiste 0 síndico, deferindo-se poderes específicos a outrem em virtude de determinada circunstância, atento ao fato de que 0 síndico não é onipresente e, por vezes, não consegue dar vazão a todos os temas. Exem­ plifica com poderes conferidos a um morador, não síndico e engenheiro, para que acompanhe a escolha da empresa que será responsável pela reforma aprovada do condomínio. A lei civil autoriza ao síndico transferir a outrem, total ou parcialmente, os poderes de representação ou as funções administrativas, mediante aprovação da

Cap. IV • Condomínio

235

assem bléia, salvo disposição em contrário na convenção. Curioso perceber que a norma não impõe quórum mínimo para tanto, o que permiti concluir, segundo Car­ los Roberto Gonçalves48, a incidência do quórum de m aioria simples. 0 delegado aqui costuma ser chamado de administrador. Além do síndico é possível que a convenção preveja a figura do subsíndico, exercendo esse uma função auxiliar e sendo o substituto do síndico em sua ausên­ cia. É uma espécie de vice-presidente. Ao lado do síndico, são órgãos que compõem a direção do condomínio a as­ sem bléia geral e o conselho fiscal. A assembléia geral é o órgão soberano do condomínio, composta por todos os condôminos. É soberana a ponto, até mesmo, de ter poderes para destituir o síndico (CC, art. 1.349). Sujeita-se apenas a lei, podendo ter seus atos fiscalizados pelo Judiciário. As decisões da assem bléia, respeitados os respectivos quóruns, obrigam a todos, inclusive os vencidos na votação, os não comparecentes e aque­ les que não tiveram direito de voto por não estarem quites com 0 condomínio. Funciona a assem bléia como legislativo, ao confeccionar as normas da convi­ vência condominial, e executivo, ao decidir como assuntos administrativos. Anualmente 0 síndico deve fazer uma assembléia geral ordinária, com 0 fito de prestar contas, verificar 0 orçamento das despesas, a contribuição dos condô­ minos, eventualmente eleger substituto e alterar 0 regime interno (CC, art. 1.350). A convenção do condomínio e 0 regimento interno apenas podem ser modifica­ dos em assembléia geral extraordinária, pela aprovação de dois terços dos votos dos condôminos. No que tange à mudança da destinação do edifício ou da unidade im obiliária, demandará aprovação unânime. Se a assem bléia fora regularmente convocada e não se reunir, qualquer con­ dômino poderá promover procedimento judicial visando 0 suprimento da vontade da assem bléia por parte do juiz, quem decidirá os temas da pauta de convocação (CC, art. 1.350, § 20). Para que se instale a assem bléia, todos os condôminos haverão de ter sido convocados (CC, art. 1.354). A regra geral é que os temas na assembléia tenham como quórum de decisão a maioria simples aos condôminos votantes e presentes, entendendo-se como m aioria simples a metade mais uma das frações ideais (CC, art. 1.352). Ressalva-se aqui, logicameníe, as siíuações em que se exige quórum especial. Com isso evita-se a procrastinação iridevida de decisões. Nas deliberações da assem bléia em que se exija quórum especial, as decisões serão tomadas, em primeira convocação, pela m aioria dos votos dos condôminos presentes, havendo de se verificar se os condôminos presentes e aptos a votar, na abertura da assem bléia, envolvem, ao menos, metade das frações ideais.

48. Op. Cit., p. 422.

236

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Além da assem bléia ordinária e a extraordinária, recordam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.49 haver a chamada assembléia especial, cujo escopo é discutir temas de interesse de apenas alguns dos condôminos. Trata-se de me­ dida muito usual em condomínios em presariais, quando há assuntos relacionados apenas a um grupo de condôminos, a exemplo médicos e a questão da destinação dos resíduos biológicos.

0 conselho fiscal é composto por três membros, eleitos pela assem bléia, por prazo não superior a dois anos, tendo a competência de dar pareceres sobre as contas do síndico. 0 conselho é um órgão de assessoramento e fiscalização, fazen­ do uma espécie de controle financeiro (CC, art. 1.356). Em regra, os conselheiros não serão remunerados, salvo disciplina em contrário na convenção. E como é verificada a extinção do condomínio edilício? Diversamente do condomínio comum ou tradicional, 0 qual poderá ser extinto a qualquer tempo, 0 condomínio edilício fora concebido para durar no tempo. Assim, não poderá ser extinto pelos condôminos - seja por convenção ou via judicial - , sendo a indivisibilidade um importante traço característico do instituto. Entrementes, mesmo diante da premissa ora enunciada, fato é que 0 art. 1.357 do Código Civil veicula hipótese de extinção do condomínio, quais sejam: a)

Perecimento do imóvel, em razão de sua destruição por diversos moti­ vos: incêndio, terremoto, inundação...

b)

Em função da demolição voluntária ou ordenada do prédio;

c)

Desapropriação, sendo a indenização repartida segundo as respectivas cotas partes (CC, art. 1.358). Obviamente que se a desapropriação for apenas de uma ou algumas unidades individuais, tão somente os respec­ tivos proprietários terão direito de recebimento dos respectivos valores, consoante as respectivas avaliações. Ademais, se a desapropriação for de todo condomínio, além do síndico todos os condôminos haverão de ser citados, posto que as áreas comuns interessam a todos;

d)

Confusão, se todas as unidades autônomas forem adquiridas por uma única pessoa;

e)

Alienação a uma só pessoa natural ou jurídica, bem como reconstrução de todo 0 prédio, desde que aprovada por condôminos que represen­ tem a metade mais uma das frações ideais.

1.1.3. Condomínio de Lotes Historicamente via-se nos centros urbanos os chamados condomínios de lotes, fechados ou de fato. Traduziam, até os idos de 2017, figura completamente atípica, consistente em loteamentos fechados e realizados em função de preocupações

49- Op. Cit., p. 663.

Cap. IV • Condomínio

237

com a segurança. Na prática, são fortalezas cercadas buscando segurança em cida­ des cada vez mais inseguras. Por cercarem espaços públicos sem nenhuma regu­ lação prévia, eram verdadeiros antijurídicos, privatizando ruas, acessos e criando cidades dentro de outras cidades. Ainda até 2017, a figura do condomínio fechado não guardava nenhum vínculo com os condomínios edilícios ou tradicionais. Quando registrados, 0 eram na mo­ dalidade de parcelamento do solo urbano. Foi então que em 2017, inovando a ordem jurídica, a Lei 13.465/2017 institui 0 chamado Condomínio de Lotes, agregando 0 art. 1.358-A ao Código Civil. Trata-se de uma nova modalidade condominial, através da qual há, em terrenos, partes designadas de lotes, como propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condomínios. Sobre 0 tema, 0 Enunciado 625 da VIII Jornada em Direito Civil, ocorrida em 2018, cristalizou 0 entendimento no sentido de que a incorpora­ ção im obiliária que tenha por objeto 0 condomínio de lotes poderá ser submetida ao regime do patrimônio de afetação, na forma da lei especial. Infere-se, portanto, a manutenção do já tratado regime condominial, 0 qual une propriedade exclusiva e comum, mas agora atinente aos lotes. Tendo em vista a manutenção deste DNA, aplicar-se-á ao condomínio de lotes, de forma subsidiária, a legislação atinente ao condomínio edilício, já estudada, respeitada a legislação urbanística. Veja-se que, no particular, adotou a Lei 13.465/2017 0 posicionamento já con­ solidado na doutrina sobre 0 tema, que, há muito, sufragava a aplicação da normatização da disciplina legislativa do condomínio edilício, "no que couber", aos condomínios assemelhados, tais como aqueles decorrentes de loteamentos fecha­ dos, m ultipropriedade im obiliária e clubes de campo (Enunciado 89 do Conselho da Justiça Federal). Nessa linha, na forma da Lei 6.766/99, igualmente alterada pela Lei 13.465/2017, passa a ser viável a constituição de lote sob forma de imóvel autônomo ou inte­ grante de condomínio de lotes. Na casuística do condomínio de lotes, podem ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia, em bene­ fício do Poder Público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufruto e restrições à construção de muros (Lei 6.766/99, art. 20). No que tange à fração ideal de cada condômino, ela poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou outros critérios indicados no ato de instituição. Em relação à incorporação im obiliária, bem como implantação de toda a infraestrutura, ficará a cargo do empreendedor. A mudança legislativa, registra-se, é salutar. Isto, porque, a muito há necessi­ dade de tratamento de tema tão caro dentro do Código Civil. Afinal, trata-se de prática extremamente recorrente, principalmente em áreas rurais, nas quais há desmembramentos de fazendas para a instituição do condomínio de lotes.

238

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Com a alteração legislativa, porém, uma grande dúvida passou a habitar a cabeça dos operadores do direito. Na hipótese de constituição de associações de proprietários (m oradores) para eventual administração de condomínio fechado, tem-se como viável a cobrança obrigatória de valores dos associados? 0 tem em questão, há muito, é debatido nos Pretórios Nacionais.

Sintetizando uma breve evolução histórica sobre 0 assunto, em um primeiro momento, atento à vedação do enriquecimento sem causa, as Casas Judiciais Na­ cionais, a exemplo do Superior Tribunal de Justiça (REsp 139.952-RJ), vinham reco­ nhecendo às associações que administram tais loteamentos 0 direito de cobrança das despesas de manutenção daqueles que se beneficiam dos serviços e das ben­ feitorias. A matéria, entrementes, não era pacífica, havendo julgados em sentido oposto, com base na liberdade de associação e im possibilidade de cobrança de valores daquele que optou por não se associar (REsp 444.931-SP). Avançando no pensamento sobre 0 tema, em um segundo momento chegou-se, até mesmo, a construção de um posicionamento intermediário sobre 0 assunto, no sentido da proibição da cobrança quando 0 loteamento não é, em sua gêne­ se, fechado (REsp 623.274-RJ). Isso, porque, se uma associação foi posteriormente formada e um determinado proprietário anterior optou por nela não ingressar, há exercício regular de direito, não sendo possível obrigá-lo ao ingresso. Todavia, 0 posicionamento que se consolidou no Supremo Tribunal Federal, em um terceiro momento - 0 qual vivenciávamos até a edição da Lei 13.465/2017 -, reconheceu 0 direito de um morador destes loteamentos fechados de não pagar a contribuição (RE 432.106-RJ). 0 Supremo, registra-se, reconheceu repercussão geral ao tema, e há outros julgamentos do Superior Tribunal de Justiça na mesma linha50.

50. DIREITO CIVIL. COBRANÇA DE TAXA DE MANUTENÇÃO EM CONDOMÍNIO DE FATO. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ). TEMA 882. As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou os que a elas não anuíram. As obrigações de ordem civil, sejam de natureza real sejam de natureza contratual, pressupõem, como fato gerador ou pressuposto, a existência de uma lei que as exija ou de um acordo firmado com a manifestação expressa de vontade das partes pactuantes, pois, em nosso ordenamento jurídico positivado, há somente duas fontes de obrigações: a lei ou 0 contrato. Nesse contexto, não há espaço para enten­ der que 0 morador, ao gozar dos serviços organizados em condomínio de fato por associação de moradores, aceitou tacitamente participar de sua estrutura orgânica. Com efeito, na ausência de uma legislação que regule especificamente a matéria em análise, deve preponderar 0 exercício da autonomia da vontade - a ser manifestado pelo proprietário ou, inclusive, pelo comprador de boa-fé -, emanada da própria garantia constitucional da liberdade de associação e da legalidade, uma vez que ninguém pode ser compelido a fazer algo senão em virtude de lei. De igual modo, incabível 0 entendimento de que a vedação ao enriquecimento ilícito autorizaria a cobrança pelos serviços usufruídos ou postos à disposição do dono do imóvel inserto em loteamento, independentemente de ser ou não associado. Isso porque adotar esse posicionamento significaria esvaziar 0 sentido e a finalidade da garantia fundamental e constitucional da liberdade de associação, como bem deli­ mitou 0 STF no julgamento do RE 432.106-RJ (DJe 4/11/2011), encontrando a matéria, inclusive, afeta­ da ao rito da repercussão geral (RC no Al 745.831-SP, DJe 29/11/2011). De fato, a jurisprudência não pode esvaziar 0 comando normativo de um preceito fundamental e constitucional em detrimento de um corolário de ordem hierárquica inferior, pois, ainda que se aceite a ideia de colisão ou choque de princípios - liberdade associativa (art. 5°, XX, da CF) versus vedação ao enriquecimento

Cap. IV • Condomínio

239

Entrementes, com a vigência da Lei 13.465/2017, restou alterada a Lei 6.766/1979, passando a firmar 0 art. 36-A que as atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com 0 objetivo de administração, conservação, manuten­ ção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem 0 empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis. Assim, arremata 0 parágrafo único do aludido art. 36-A, a administração

de imóveis sujeita seus titulares à normatização e a disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos. Infere-se, por conseguinte, que 0 tema ganha uma nova roupagem de debate, percebendo-se a dita associação de moradores como administradora de imóveis e com força de vinculação obrigatória na cobrança das taxas, em busca de atingir seus objetivos, como melhoria de segurança, espaços esportivos, lazer... A doutrina já começa a se posicionar neste sentido. 0 enunciado 100 da I Jorna­ da de Direito Processual Civil, do Conselho da justiça Federal, firmou que se inter­ preta a expressão condomínio edilício, constante do art. 784, X do CPC, de forma a com preender tanto os condomínios verticais, quanto os horizontais de lotes, nos termos do art. 1.358-A do Código Civil. 0 art. 784, X do Código de Processo Civil afirma que consiste em título executivo extrajudicial 0 crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias do condomínio edilício, previstas na respectiva convenção ou aprovadas em assem ­ bléia geral, desde que documentalmente comprovadas.

Ora, se a regra em comento, segundo 0 enunciado doutrinário, também será considerada para 0 condomínio de lotes, conclui-se que há não só obrigatoriedade

sem causa (art. 884 do CC) 0 relacionamento vertical entre as normas - normas constitucionais e normas infraconstitucionais, por exemplo - deve ser apresentado, conforme a doutrina, de tal forma que 0 conteúdo de sentido da norma inferior deve ser aquele que mais intensamente cor­ responder ao conteúdo de sentido da norma superior. Ademais, cabe ressaltar que a associação de moradores é mera associação civil e, consequentemente, deve respeitar os direitos e garantias individuais, aplicando-se, na espécie, a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Concluindo, a aquisição de imóvel situado em loteamento fechado em data anterior à constituição da associação não pode impor a cobrança de encargos ao adquirente que não se associou nem a ela aderiu. Igualmente, se a compra se opera em data posterior à constituição da associação, na ausência de fonte criadora da obrigação - lei ou contrato -, é defeso ao poder jurisdicional, apenas calcado no princípio do enriquecimento sem causa, em detrimento dos princípios constitucionais da legalidade e da liberdade associativa, instituir um dever tácito a terceiros, pois, ainda que se admita a colisão de princípios norteadores, prevalece, dentre eles, dada a verticalidade de pre­ ponderância, os preceitos constitucionais, cabendo tão somente ao STF, no âmbito da repercussão geral, afastá-los se assim 0 desejar ou entender. Precedentes citados: EREsp 444.931-SP, Segunda Seção, DJ 10/2/2006; AgRg nos EDcl no Ag 715.800-RJ, Terceira Turma, Dje 12/12/2014; e EDcl no REsp 1.322.723-SP, Quarta Turma, Dje 29/8/2013.

240

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

no pagamento da contribuição, como coerção em alto nível, já se permitindo direta execução como título executivo extrajudicial. Por tudo isto, deve o Colega ficar bem atento aos futuros posicionamentos jurisprudenciais em relação ao tema.

1.1.4. 0 Time-Sharing ou a Multipropriedade Imobiliária 0 condomínio tradicionalmente é visto como o regime de compartilhamento da propriedade no espaço. 0 timesharing, inovando a ordem jurídica anterior, diz respeito ao regime de compartilhamento da propriedade no tempo. Decorre da faculdade de d ividir o bem. Com pra-se em grupo e cada proprietá­ rio tem uma escritura pública com sua fração ideal, a qual lhe confere determina­ do tempo de utilização. Temporiza-se o acesso e vende-se tal acesso proprietário por determinado período. Sua criação não viola a tipicidade proprietária, relacionando-se ao seu caráter elástico, o qual aduz que toda propriedade poderá ter um caráter máximo ou mínimo, moldurado segundo a autonomia. Traduz uma forma sofisticada de con­ domínio com registro plural e unidade autônoma. Como direito real que o é, tal propriedade admite transferência (inter vivos ou causa mortis), bem como hipoteca e penhora. A teor da Lei Federal n° 13.777 de 20 de dezembro de 2018, que alterou 0 CC e a Lei de Registros Públicos para dispor sobre 0 regime jurídico do timesharing, a "Multipropriedade é 0 regime de condomínio em que cada um dos proprietá­ rios de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde

a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada" (art. 1.358-C, do CC) e não se extinguirá automaticamente ainda se todas as frações de tempo forem do mesmo multiproprietário. Surgida na França em i960 e difundida na Europa e nos Estados Unidos da América na mesma década, a m ultipropriedade somente foi objeto de tratamento expresso no Código Civil brasileiro em 2018, consquistando relevante espaço no mercado im obiliário, notadamente quando da utilização de imóveis em tempo­ radas, mormente em zonas de veraneio e apart-hotéis. Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.51, 0 tipo m ultipropriedade vem ganhando espaço no Brasil em virtude da segurança proporcionada pelo Registro Geral de Imóveis. Outrossim, acaso pactuada na m odalidade societária, aduz os referidos autores, igualmente será imposto 0 registro, como forma de publicizar esta situação. Sob 0 prisma social, a m ultipropriedade representa acesso de novas camadas ao segun­ do imóvel, incrementando a economia turístico-hoteleira e de serviços.

51. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 7* ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 209.

Cap. IV . Condomínio

241

É bem verdade que nem tudo são flores. Na Itália, por exemplo, o instituto não foi bem aceito. Na França, entretanto, notadamente após a Lei n° 86-18 de 6 de janeiro de 1986, verificou-se uma importante aceitação social. Sem dúvida, a multipropriedade simboliza mais que a simples criatividade jurídica. Trata-se de instituto extremamente relevante para a economia e para 0 mercado. Constitui for­ ma inédita de aproveitamento do imóvel como expressão da autonomia privada e da função social da propriedade. A instituição da multipropriedade se dá por ato entre vivos ou testamento, re­ gistrado no competente cartório de registro de imóveis, devendo constar daquele ato a duração dos períodos correspondentes a cada fração de tempo, na forma do art. 1.358-F do Código Civil. Conceitualmente, portanto, nas palavras de Dário da Silva Oliveira júnior e Victor Emanuel Christofari52, "a m ultipropriedade designa uma relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, coisa esta repartida em unidades de tempo, de modo a permitir que diversos titulares possam utilizar-se daquela com exclusividade, cada um a seu turno, de maneira perpétua ou não". Recorda Gustavo Tepedino53 que "neste sistema todos os multiproprietários são condôminos, mas este condomínio somente será exclusivo na unidade autônoma no tempo fixado no pacto". 0 imóvel objeto da m ultipropriedade é indivisível, não se sujeitando a ação de divisão ou de extinção de condomínio, nele incluído as instalações, os equipa­ mentos e 0 mobiliário destinados a seu uso e gozo, na forma do art. 1.358-D do Código Civil. Cada fração de tempo é indivisível. 0 período correspondente a cada fração de tempo será de, no mínimo, 7 (sete) dias, seguidos ou intercalados. Este período poderá ser fixo e determinado, no mesmo período de cada ano, flutuante, caso em que a determinação do período será realizada de forma periódica, mediante procedimento objetivo que respeite, em relação a todos os multiproprietários, 0 princípio da isonomia, devendo ser previamente divulgado; ou até mesmo misto, combinando os sistemas fixo e flutuante. Todos os multiproprietários terão direito a uma quantidade mínima de dias seguidos durante 0 ano, podendo haver a aquisição de frações maiores que a mínima, com 0 correspondente direito ao uso por períodos também maiores. É 0 que prescreve 0 art. 1.358-E do Código Civil. Dessa forma, assegura a m ultipropriedade 0 compartilhamento proprietário em unidades fixas de tempo, sendo assegurado a cada titular 0 uso exclusivo em um certo período e durante certa temporada. Nessa toada, 0 seu preço é fixado consoante 0 espaço de tempo e a temporada de uso. Vê-se, portanto, que multi­ propriedade não traduz violação ao caráter exclusivo da propriedade.

52. OLIVEIRA JÚNIOR, Dário da Silva; CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Multipropriedade - Time Sharing, p. 1. 53. TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade Imobiliária, p. 45 -

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

242

► E na hora da prova?

(Cespe - Defensor Público - DPE - DF/2019) A respeito de condomínio em multipropriedade, julgue o item subsequente. A multipropriedade somente poderá ser instituída por ato entre vivos registrado em cartório de registro de imóveis, com a necessária indica­ ção da duração dos períodos de cada fração de tempo. Gabarito: Errado. (Cespe - Defensor Público - DPE - DF/2019) A respeito de condomínio em multipropriedade, julgue o item subsequente. 0 regime da multipropriedade poderá ser adotado por condomínio edilício na totalidade de suas unidades autônomas, por meio da deli­ beração da maioria absoluta dos condôminos. Gabarito: Certo.

Lembra Maria Helena Diniz54 que há uma espécie de direito real de habitação periódico, como bem chamam os portugueses, democratizando o imóvel segundo usos de sucessivos titulares. Assim, todos os adquirentes são comproprietários de fração ideal, sofrendo limitações temporais e condominiais, sendo que a relação de divisão de tempo resta estabelecida em um regulamento. Arremata a Profes­ sora paulista informando que este regime proprietário é conhecido na Argentina e Venezuela, sob o batismo de propriedade de tempo compartilhado, e na Itália como proprietà spazio temporale. A aplicação prática do instituto costuma dizer respeito a im óveis de férias, como casas, chalés e apartam entos cujos proprietários desejam utilizar-se por apenas uma determ inada fração de tempo. Outrossim, o sistema também cos­ tuma se r utilizado em hotelaria e programas de navios, com um viés um pouco mais em presarial. São quatro as modalidades de m ultipropriedade55: a)

acionária ou societária: aqui uma sociedade, proprietária do imóvel de lazer, emite ações ordinárias representativas da propriedade daquele imóvel, as quais ficam em poder dos efetivos proprietários. Tais ações garantem a gestão social do imóvel e conferem ao acionista direito de uso daquele bem por um dado período no tempo;

b)

direito real de habitação periódica: muito usual em Portugal, com ca­ racterísticas de direito real de fruição sobre coisa alheia, pelo qual o proprietário pode usar um imóvel em zona turística por prazo certo e proporcional à natureza de seu investimento. Há, inclusive, uma espécie

54. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 24* ed. São Paulo: Sa­ raiva, 2009. p. 253. 55- Op. cit., p. 253-254.

Cap. IV • Condomínio

243

de certificado de predial o qual possibilita a transferência proprietária, desde que assente no registro público; c) .

im obiliária ou de complexo de lazer: cada multiproprietário obtém uma cota ideal alusiva ao solo, edificação, centro de lazer e apoio, sendo pos­ sível o uso por determinado período de tempo e em atenção às normas condominiais;

d)

hoteleira: tem por escopo expandir zonas hoteleiras e centros turísti­ cos, existindo o direito de uso habitacional e temporário de unidade ou apartamento de hotel da malha societária ou conveniado. 0 direito do aludido uso exige comunicação prévia, com agendamento de período. A disponibilidade será diretamente proporcional ao investimento realiza­ do. De mais a mais, este crédito-hoteleiro do comproprietário poderá, por ato de vontade, ser cedido a terceiro, até mesmo de forma onerosa.

A multipropriedade vai, ainda, travestindo negócios que envolvam apart-hotéis, nas quais os proprietários se tornam titulares de uma fração ideal do em preendi­ mento com o respectivo uso por determinado período. Tendo em vista o advento da Lei Federal n° 13.777 de 20 de dezembro de 2018, 0 Enunciado 89 do Conselho da Justiça Federal merece releitura, afinal de contas ao afirm ar que "0 disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil aplica-se, no que couber, aos condomí­ nios assemelhados, tais como loteamentos fechados, multipropriedade im obiliária e clubes de campo" 0 conteúdo do enunciado se apresenta como ideia ainda mais supletiva e remota, diante da lei nova56. Além das cláusulas que os multiproprietários decidirem estipular, a convenção de condomínio em m ultipropriedade determ inará os poderes e deveres dos mul­ tiproprietários, especialmente em matéria de instalações, equipamentos e mobili­ ário do imóvel, de manutenção ordinária e extraordinária, de conservação e lim­ peza e de pagamento da contribuição condominial, 0 número máximo de pessoas que podem ocupar simultaneamente 0 imóvel no período correspondente a cada fração de tempo, as regras de acesso do adm inistrador condominial ao imóvel para cumprimento do dever de manutenção, conservação e limpeza, a criação de fundo de reserva para reposição e manutenção dos equipamentos, instalações e mobiliário, 0 regime aplicável em caso de perda ou destruição parcial ou total do imóvel, inclusive para efeitos de participação no risco ou no valor do seguro, da indenização ou da parte restante e, finalmente, as multas aplicáveis ao multipro­ prietário nas hipóteses de descumprimento de deveres. Isto é 0 que se encontra expressamente disciplinado no art. 1.358-G do Código Civil. 0 instrumento de instituição da multipropriedade ou a convenção de condo­ mínio em m ultipropriedade poderá estabelecer 0 limite máximo de frações de tempo no mesmo imóvel que poderão ser detidas pela mesma pessoa natural ou

56. Art. 1.358-B. A multipropriedade reger-se-á pelo disposto neste Capítulo e, de forma supletiva e subsidiária, pelas demais disposições deste Código e pelas disposições das Leis n°s 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).

244

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

jurídica. Em caso de instituição da m ultipropriedade para posterior venda das fra­ ções de tempo a terceiros, o atendimento a eventual limite de frações de tempo por titular estabelecido no instrumento de instituição será obrigatório somente após a venda das frações, a teor do art. 1.358-H do Código Civil. São direitos do m ultiproprietário, além daqueles previstos no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em m ultipropriedade, conforme art. 1.358-I do Código Civil: a)

usar e gozar, durante 0 período correspondente à sua fração de tempo, do imóvel e de suas instalações, equipamentos e mobiliário;

b)

ceder a fração de tempo em locação ou comodato;

c)

alienar a fração de tempo, por ato entre vivos ou por causa de morte, a título oneroso ou gratuito, ou onerá-la, devendo a alienação e a qualifi­ cação do sucessor, ou a oneração, ser informadas ao administrador;

d)

participar e votar, pessoalm ente ou por interm édio de representante ou procurador, desde que esteja quite com as obrigações condom iniais, em assem bléia geral do condomínio em m ultipropriedade, e 0 voto do m ultiproprietário corresponderá à quota de sua fração de tempo no imóvel; bem como em assem bléia geral do condomínio edilício, quando for 0 caso57.

Por outro lado, são obrigações do m ultiproprietário, além daquelas previstas no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em multiproprieda­ de, de acordo com 0 art. 1.358-J do Código Civil: a)

pagar a contribuição condominial do condomínio em multipropriedade e, quando for 0 caso, do condomínio edilício, ainda que renuncie ao uso e gozo, total ou parcial, do imóvel, das áreas comuns ou das respectivas instalações, equipamentos e mobiliário;

b)

responder por danos causados ao imóvel, às instalações, aos equipa­ mentos e ao mobiliário por si, por qualquer de seus acompanhantes, convidados ou prepostos ou por pessoas por ele autorizadas;

c)

comunicar imediatamente ao adm inistrador os defeitos, avarias e vícios no imóvel dos quais tiver ciência durante a utilização;

d)

não modificar, alterar ou substituir 0 mobiliário, os equipamentos e as instalações do imóvel;

e)

manter 0 imóvel em estado de conservação e limpeza condizente com os fins a que se destina e com a natureza da respectiva construção;

57. Importante advertir que 0 voto do multiproprietário corresponderá à quota de sua fração de tempo em relação à quota de poder político atribuído à unidade autônoma na respectiva con­ venção de condomínio edilício.

Cap. IV • Condomínio

245

f)

usar o imóvel, bem como suas instalações, equipamentos e mobiliário, conforme seu destino e natureza;

g)

usar o imóvel exclusivamente durante o período correspondente à sua fração de tempo;

h)

desocupar o imóvel, impreterivelmente, até o dia e hora fixados no ins­ trumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, sob pena de multa diária, conforme convencionado no instru­ mento pertinente;

i)

permitir a realização de obras ou reparos urgente.

Na hipótese de inadimplemento, por parte do multiproprietário, da obrigação de custeio das despesas ordinárias ou extraordinárias, é cabível, na forma da lei processual civil, a adjudicação ao condomínio edilício da fração de tempo corres­ pondente (CC, art. 1.358-S). Conforme previsão que deverá constar da respectiva convenção de condomí­ nio em m ultipropriedade, 0 multiproprietário estará sujeito a multa, no caso de descumprimento de qualquer de seus deveres ou ainda a multa progressiva e perda temporária do direito de utilização do imóvel no período correspondente à sua fração de tempo, no caso de descumprimento reiterado de deveres. A res­ ponsabilidade pelas despesas referentes a reparos no imóvel, bem como suas ins­ talações, equipamentos e mobiliário, será de todos os multiproprietários, quando decorrentes do uso normal e do desgaste natural do imóvel; ou exclusivamente do multiproprietário responsável pelo uso anormal, sem prejuízo de multa, quando decorrentes de uso anormal do imóvel. ►Atenção!

Para os efeitos do disposto nesta Seção, são equiparados aos multipro­ prietários os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos a cada fração de tempo (art. 1.358-K, do CC). A transferência do direito de m ultipropriedade e a sua produção de efeitos perante terceiros dar-se-ão na forma da lei civil e não dependerão da anuência ou cientificação dos demais multiproprietários.Advirta-se, de igual sorte, que não haverá direito de preferência na alienação de fração de tempo, salvo se estabe­ lecido no instrumento de instituição ou na convenção do condomínio em multipro­ priedade em favor dos demais multiproprietários ou do instituidor do condomínio em m ultipropriedade. A administração do imóvel e de suas instalações, equipamentos e mobiliário será de responsabilidade da pessoa indicada no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, ou, na falta de indicação, de pessoa escolhida em assem bléia geral dos condôminos58.

58. 0 administrador exercerá, além daquelas previstas no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em multipropriedade, as seguintes atribuições: coordenação da utilização do

246

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

► Atenção! 0 instrumento de instituição poderá prever fração de tempo desti­ nada à realização, no imóvel e em suas instalações, em seus equipa­ mentos e em seu mobiliário, de reparos indispensáveis ao exercício normal do direito de multipropriedade. A fração de tempo de que trata 0 caput deste artigo poderá ser atribuída: I - ao instituidor da multipropriedade; ou II - aos multiproprietários, proporcionalmente às respectivas frações. § 2° Em caso de emergência, os reparos de que trata 0 caput deste artigo poderão ser feitos durante 0 período correspondente à fração de tempo de um dos multiproprietários (art. 1.358-N). Além disto, 0 adquirente será solidariamente responsável com 0 alienante pelas obrigações de que trata 0 § 5° do art. 1.358-J deste Código caso não obtenha a declaração de inexistência de débitos referente à fração de tempo no momento de sua aquisição (CC, art. 1.358-L).

0 condomínio edilício poderá adotar o regime de m ultipropriedade em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas. Para tanto será mister previsão no instrumento de instituição, ou deliberação da m aioria absoluta dos condôminos. É 0 que afirma 0 art. 1.358-O do CC59.

imóvel pelos multiproprietários durante 0 período correspondente a suas respectivas frações de tempo; determinação, no caso dos sistemas flutuante ou misto, dos períodos concretos de uso e gozo exclusivos de cada multiproprietário em cada ano; manutenção, conservação e lim­ peza do imóvel, troca ou substituição de instalações, equipamentos ou mobiliário, inclusive: a) determinar a necessidade da troca ou substituição; b) providenciar os orçamentos necessários para a troca ou substituição; c) submeter os orçamentos à aprovação pela maioria simples dos condôminos em assembléia; V - elaboração do orçamento anual, com previsão das receitas e despesas; VI - cobrança das quotas de custeio de responsabilidade dos multiproprietários; VII pagamento, por conta do condomínio edilício ou voluntário, com os fundos comuns arrecadados, de todas as despesas comuns (CC, art. 1.358-M). 59. Neste caso, a convenção de condomínio edilício deve prever a identificação das unidades sujeitas ao regime da multipropriedade, no caso de empreendimentos mistos, a indicação da duração das frações de tempo de cada unidade autônoma sujeita ao regime da multiproprie­ dade, a forma de rateio, entre os multiproprietários de uma mesma unidade autônoma, das contribuições condominiais relativas à unidade, q ue , salvo se disciplinada de forma diversa no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, será proporcional à fração de tempo de cada multiproprietário; a especificação das despesas or­ dinárias, cujo custeio será obrigatório, independentemente do uso e gozo do imóvel e das áreas comuns; os órgãos de administração da multipropriedade; a indicação, se for 0 caso, de que 0 empreendimento conta com sistema de administração de intercâmbio, seja do período de fruição da fração de tempo, seja do local de fruição, caso em que a responsabilidade e as obrigações da companhia de intercâmbio limitam-se ao contido na documentação de sua contratação, a competência para a imposição de sanções e o respectivo procedimento, es­ pecialmente nos casos de mora no cumprimento das obrigações de custeio e nos casos de descumprimento da obrigação de desocupar 0 imóvel até 0 dia e hora previstos, 0 quórum exigido para a deliberação de adjudicação da fração de tempo na hipótese de inadimplemento do respectivo multiproprietário; 0 quórum exigido para a deliberação de alienação, pelo con­ domínio edilício, da fração de tempo adjudicada em virtude do inadimplemento do respectivo multiproprietário. Neste sentido, 0 Art. 1.358-P do CC.

Cap. IV • Condomínio

247

► Atenção! Na hipótese do art. 1.358-O deste Código, 0 regimento interno do condo­ mínio edilício deve prever: I - os direitos dos multiproprietários sobre as partes comuns do condomínio edilício; II - os direitos e obrigações do ad­ ministrador, inclusive quanto ao acesso ao imóvel para cumprimento do dever de manutenção, conservação e limpeza; III - as condições e regras para uso das áreas comuns; IV - os procedimentos a serem observados para uso e gozo dos imóveis e das instalações, equipamentos e mobi­ liário destinados ao regime da multipropriedade; V - 0 número máximo de pessoas que podem ocupar simultaneamente 0 imóvel no período correspondente a cada fração de tempo; VI - as regras de convivência entre os multiproprietários e os ocupantes de unidades autônomas não sujeitas ao regime da multipropriedade, quando se tratar de empreendi­ mentos mistos; VII - a forma de contribuição, destinação e gestão do fun­ do de reserva específico para cada imóvel, para reposição e manutenção dos equipamentos, instalações e mobiliário, sem prejuízo do fundo de reserva do condomínio edilício; VIII - a possibilidade de realização de as­ sembléias não presenciais, inclusive por meio eletrônico; IX - os mecanis­ mos de participação e representação dos titulares; X - 0 funcionamento do sistema de reserva, os meios de confirmação e os requisitos a serem cumpridos pelo multiproprietário quando não exercer diretamente sua faculdade de uso; XI - a descrição dos serviços adicionais, se existentes, e as regras para seu uso e custeio. 0 regimento interno poderá ser insti­ tuído por escritura pública ou por instrumento particular. 0 condomínio edilício em que tenha sido instituído 0 regime de m ultiproprieda­ de em parte ou na totalidade de suas unidades autônomas terá necessariamente um adm inistrador profissional. 0 prazo de duração do contrato de administração será livremente convencionado. 0 adm inistrador do condomínio será também 0 adm inistrador de todos os condomínios em m ultipropriedade de suas unidades autônomas. Será mandatário legal de todos os multiproprietários, exclusivamente para a realização dos atos de gestão ordinária da m ultipropriedade, incluindo ma­ nutenção, conservação e limpeza do imóvel e de suas instalações, equipamentos e mobiliário. 0 adm inistrador poderá modificar 0 regimento interno quanto aos aspectos estritamente operacionais da gestão da m ultipropriedade no condomínio edilício e poderá ser ou não um prestador de serviços de hospedagem. É isto o que afirma 0 art. 1.358-R do Código Civil.

► Atenção! Na h ip ó t e s e d e o im ó v e l o b je t o d a m u lt ip r o p r ie d a d e s e r p a r t e in t e ­

grante de empreendimento em que haja sistema de locação das fra­ ções de tempo no qual os titulares possam ou sejam obrigados a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, repartindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade autônoma, poderá a convenção do condomínio edilício regrar que em caso de inadimplência: I - 0 ina­ dimplente fique proibido de utilizar 0 imóvel até a integral quitação da dívida; II - a fração de tempo do inadimplente passe a integrar

248

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 pool da administradora; III - a administradora do sistema de locação fique automaticamente munida de poderes e obrigada a, por conta e ordem do inadimplente, utilizar a integralidade dos valores líquidos a que 0 inadimplente tiver direito para amortizar suas dívidas condominiais, seja do condomínio edilício, seja do condomínio em multipropriedade, até sua integral quitação, devendo eventual saldo ser imediatamente repassado ao multiproprietário.

0 multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a seu d i­ reito de m ultipropriedade em favor do condomínio edilício. Tal renúncia só é ad­ mitida se 0 multiproprietário estiver em dia com as contribuições condominiais, com os tributos im obiliários e, se houver, com o foro ou a taxa de ocupação CC, art. 1.358-T)60.

1.1.5. 0 Fundo de Investimento Em 20 de setembro de 2010 foi publicada a Lei Federal n° 13.874/19, popular­ mente conhecida como Lei da Liberdade Econômica e que, entre as muitas inova­ ções, acresceu ao vigente Código Civil os arts. 1.368-C a 1.368-F, introduzindo na legislação brasileira 0 Fundo de Investimento como m odalidade de condomínio. 0 fundo de investimento é uma comunhão de recursos constituído sob forma de condomínio de natureza especial destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza, competindo à Comissão de Valores Mobiliários dis­ ciplinar 0 novel instituto, de modo que as regras gerais do condomínio voluntário, por exemplo, não se aplicarão a esta especial modalidade de condomínio61. Para a doutrina, 0 objetivo normativo é incrementar esta operação econômi­ ca possibilitando 0 surgimento de investidores e delimitando a responsabilidade limitadas dos mesmos ao quinhão no referido condomínio, desde que exista, pre­ viamente, validação a este respeito pela Comissão de Valores Mobiliários, que regulamentará 0 fundo de investimento na linha da política econômica encampada pelo Conselho Monetário Nacional (Lei 6.38s/76)62. Será possível, então, que um grupo de pessoas com comunhão de interesses se reúna e formem 0 aludido fundo de investimento, daí a noção do condomínio

60. As convenções dos condomínios edilícios, os memoriais de loteamentos e os instrumentos de venda dos lotes em loteamentos urbanos poderão limitar ou impedir a instituição da multiproprie­ dade nos respectivos imóveis, vedação que somente poderá ser alterada no mínimo pela maioria absoluta dos condôminos. Tratando-se de imóvel em regime de multipropriedade, a indicação da existência de matrículas, quando 0 imóvel se destinar ao regime da multipropriedade, além da matrícula do imóvel, haverá uma matrícula para cada fração de tempo, na qual se registrarão e averbarão os atos referentes à respectiva fração de tempo. Cada fração de tempo poderá, em função de legislação tributária municipal, ser objeto de inscrição imobiliária individualizada. 61 Expressamente a Lei da Liberdade Econômica afastou a incidência dos arts. 1.314 à 1.358-A do CC para 0 fundo de investimento. 62 SCHREIBER, Anderson, TARTUCE, Flávio, SIMÃO, ]osé Fernando, BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio e DELGADO, Mario in Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Editora Forense. São Paulo. 2019. Página 1.008.

Cap. IV . Condomínio

249

especial63. 0 registro dos regulamentos dos fundos de investimentos na Comissão de Valores Mobiliários é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros. Será possível ainda estabelecer a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas, bem como os parâmetros de sua aferição, dos prestadores de serviços do fundo de in­ vestimento, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particu­ lares de cada um, sem solidariedade, entre outras questões. Também será viável que as classes de cotas possuam direitos e obrigações distintas, com possibilidade de constituir patrimônio segregado para cada classe. Prescreve o CC que a responsabilidade limitada por fundo de investimento constituído sem a limitação da responsabilidade somente abrangerá fatos ocor­ ridos após a respectiva mudança em seu regulamento, sendo que a avaliação de responsabilidade dos prestadores de serviços deverá levar sempre em con­ sideração os discos inerentes às aplicações nos mercados de atuação do fundo de investimento e a natureza de obrigação de meio de seus serviços. De fato, o princípio da irretroatividade da norma, especialmente para preservar o ato jurí­ dico perfeito e acabado, o direito adquirido ou mesmo a coisa julgada, justificam a prescrição normativa segundo a qual fatos ocorridos anteriores a vigência desta lei não sofreriam o impacto da mesma. 0 preceito se harmoniza, portanto, com o art. 6° da LINDB. Sobre o tema, o STJ possui jurisprudência anterior ao advento da norma em comento no qual discutiu a responsabilidade da adm inistradora de fundos de um determinado banco em decorrência da perda sofrida por força da desvalorização da moeda (o real) em 1999. Naquele julgado, 0 STJ decidiu pela inexistência da responsabilidade civil do banco, negando direito subjetivo ao investidor por en­ tender que 0 risco do negócio atraia experientes investidores, de perfil agressivo, inexistindo defeito no serviço prestado. Além disto, 0 caso envolvería obrigação de meio quanto a esperada lucratividade do investidor64. 0 patrimônio segregado só responderá por obrigações vinculadas à classe res­ pectivas, nos termos do regulamento, sendo que os fundos de investimento res­ pondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, en­ quanto que os prestadores de serviço não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má-fé. Se 0 fundo de investimento com limitação de responsabilidade não possuir patrimônio suficiente para responder por suas dívidas, aplicam-se as regras de insolvência previstas nos arts. 955 a 965 do Código Civil. A insolvência pode ser re­ querida judicialmente por credores, por deliberação própria dos cotistas do fundo de investimento, nos termos de seu regulamento, ou pela Comissão de Valores Mobiliários. 0 fundo de investimento constituído por lei específica e regulamentado pela Comissão de Valores Mobiliários deverá, no que couber, seguir do Código Civil.

63 Vide art. 3» da Instrução Normativa 555/2014 da Comissão de Valores Mobiliários. 64 STFJ, REsp. 799.241/RJ. 4a Turma. Dje. 14.08.12.

I

Direito de vizinhança l.

VISÃO GERAL DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL

O Código Civil Brasileiro disciplina os direitos de vizinhança logo após tratar da propriedade, nos arts. 1.277 a 1.3131. O objetivo central do tratamento é impedir, ou ao menos minimizar, eventuais conflitos de interesses entre proprietários de prédios vizinhos. Constituem os direitos de vizinhança belíssimos exemplos de obrigações ambulatoriais, também chamadas de propter rem (próprias da coisa), pois seguem a coisa e se transmitem aos seus adquirentes. Obriga-se por ser proprietário. A restrição acompanha a propriedade "ainda que haja mutação na titularidade"2, justo por ser uma obrigação propter rem. 0 tema da vizinhança está nitidamente atrelado à função social da propriedade (CF, art. 5°, XXIII, e CC, art. 1.228, § 1°), assim como a própria ideia de boa-fé obje­ tiva (CC, arts. 113 e 187), impondo aos vizinhos que se comportem de maneira a não ensejar insegurança, desassossego, ou risco à saúde daqueles que habitam a propriedade vizinha. Com efeito, "nos direitos de vizinhança a norma jurídica limita a extensão das faculdades de usar e gozar por parte de proprietários e possuidores de prédios vizinhos, impondo-lhes um sacrifício que precisa ser suportado para que a convi­ vência social seja possível e para que a propriedade de cada um seja respeitada"3. Os sacrifícios recíprocos dos respectivos vizinhos, traduzidos na limitação dos po­ deres da propriedade, acarretam, de igual sorte, vantagens que também poderão ser recíprocas. De fato, "Há restrições à propriedade que surgem ante a necessidade de conciliar o seu exercício por parte de proprietários confinantes, pois a vizinhan­ 1.

2. 3.

Código Civil de 1916 também disciplinava 0 direito de vizinhança entre os arts. 554 a 587. No atual Código Civil, 0 direito de vizinhança é dividido em sete seções: 0 uso anormal da proprie­ dade, as árvores limítrofes, a passagem forçada, a passagem de cabos e tubulações, as águas, os limites entre prédios e 0 direito de tapagem e, finalmente, 0 direito de construir. CHAVES, Cristiano e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5. 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. P- 557. CHAVES, Cristiano e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 555. 0

252

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

ça, por si só, pode dar origem a conflitos, e nela deve im perar não só a soli­ daried ad e e a boa-fé entre vizinhos, mas também o exercício da propriedade, atendendo à sua função social"4. Voltando-se os olhos para direito posto, infere-se que a primeira seção aborda

0 tema alusivo ao uso anormal da propriedade, conferindo ao proprietário ou ao possuidor de um prédio o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização indevida da propriedade vizinha. Trata-se daquilo que o Código Civil anterior de­ nominava como mau uso da propriedade. ►E na hora da prova?

A banca examinadora FAURGS, em prova de concurso público realizado para 0 provimento do cargo de Conciliador Civil do TJ-RS, ano 2014, considerou correta a seguinte alternativa: "0 proprietário ou possuidor tem direito de fazer cessar as interferências prejudiciais ao sossego provocadas pela utilização da propriedade vizinha". De acordo com a norma referida e considerando a natureza da utilização, a lo­ calização do prédio, as regras que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança, serão proibidas todas as condutas que desrespeitarem as diretrizes de sossego, segurança e saúde, salvo se forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o pos­ suidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização. Carlos Roberto Gonçalves5 afirma que a expressão "interferências prejudiciais" diz justamente respeito aos atos prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde, sendo possível sua classificação em espécies, a saber:



Ilegais: são os atos ilícitos previstos no art. 186 do Código Civil, resultantes de conduta culposa (dolo ou culpa em sentido estrito) ensejadora de dano injusto (CC, art. 927). São ilícitos que subsistiríam ainda que não houvesse a redação do art. 1.277 do CC, a exemplo do vizinho que "danifica as plantações de seu confinante". Ato ilegal, portanto, que gera dever de reparar civilmente.



Abusivas: causam incômodo, mas se estão mantidos nos limites da proprieda­ de, não ocasionam dever de indenizar. Exemplifica-se com 0 barulho excessi­ vo. Tem íntima relação com 0 exercício irregular do direito de propriedade e configuração de abusos de direito (CC, arts. 1.228, § 2°, e 187 do CC).



Lesivas: efetivamente causam dano ao vizinho, ainda que 0 agente agressor não esteja fazendo uso anormal da propriedade ou, até mesmo, obtenha au­ torização do Poder Público. Exemplifica-se com uma linha de metrô que passa bem próximo à moradia.

4. 5.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26» ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 289. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7* ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 351/352.

Cap. V • Direito de vizinhança

253

Portanto, a propriedade e a posse devem ser utilizadas de acordo com a normalidade e a natureza destas, tolerando-se interferências anormais apenas em casos de exceção, como decorrentes de decisão judicial ou interesse público. Ainda nestas situações excepcionais, quando for possível a redução ou eliminação dos danos, surgirá interesse jurídico de exigi-las. ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: FCC Órgão: MPE-PE Prova: Promotor de Justiça 0 proprietário ou 0 possuidor de um prédio tem 0 direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que 0 habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. Gabarito: "entretanto esse direito não prevalece quando as interferên­ cias forem justificadas por interesse público, caso em que 0 proprietário ou 0 possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal".

0 regramento do direito de vizinhança chega a autorizar que 0 proprietário ou possuidor exija a demolição do prédio vizinho, ou a reparação deste prédio, quando am eace ruína. Mas não é só isso. 0 direito civil de vizinhança permite até mesmo ao titular deste direito subjetivo a possibilidade de exigir do vizinho autor da ilicitude caução pelo dano iminente. Portanto, sob 0 prisma do Direito Processual Civil será juridicam ente possível 0 ajuizam ento de ação visando tu­ tela jurisdicional preventiva consistente na fixação de obrigações de não fazer (deveres de abstenção), como também a fixação de caução prévia, de forma a se postular ao juiz da causa tutela jurisdicional específica que assegure utilidade prática e resultado útil. ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: VUNESP Órgão: UNICAMP Prova: Procurador Determina 0 Código Civil que 0 proprietário ou 0 possuidor de um prédio tem 0 direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que 0 habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. No tocante ao uso anormal da pro­ priedade, é correto afirmar que: Gabarito: "0 proprietário ou 0 possuidor de um prédio, em que alguém tenha direito de fazer obras, pode, no caso de dano iminente, exigir do autor delas as necessárias garantias contra 0 prejuízo eventual".

Com vistas à proteção integral, a doutrina vem alargando o conceito de prédio vizinho. A expressão propriedade vizinha "não se aplica restritamente aos prédios confinantes, mas engloba todos os prédios que puderem sofrer repercussão de atos propagados de prédios próximos"6.

6.

CHAVES, Cristiano e ROSENVALD jR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10* ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 556.

254

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Ainda em linhas gerais de consideração, o Código Civil, após disciplinar o uso anormal da propriedade, aborda o tema das árvores limítrofes, prescrevendo, em primeiro lugar, que a árvore cujo tronco estiver na linha divisória presume-se per­ tencer em comum aos donos dos prédios confinantes. Aqui surge uma presunção de copropriedade das árvores limítrofes. Ainda acerca das árvores limítrofes, autoriza o Código Civil o corte e a poda das raízes e dos ramos, que ultrapassarem a estrema do prédio até o plano ver­ tical divisório, pelo proprietário do terreno invadido. Quanto aos frutos caídos de árvore do terreno vizinho, esclarece que estes pertencerão ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular. Na sequência, o Código Civil prevê a passagem forçada em favor do dono do prédio encravado - por não ter acesso à via pública, nascente ou porto - autori­ zando este, mediante pagamento de indenização cabal, a constranger o vizinho a lhe d ar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, caso necessário. A isso chamaremos direito de passagem. Já no que diz respeito à passagem de cabos e tubulações (e não mais de pessoas), também é tema tratado no direito de vizinhança. Aqui o proprietário será obrigado a tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa, evidentemente de maneira menos gravosa ao prédio onerado. Para tan­ to, terá 0 proprietário direito de indenização que atenda não apenas a passagem, mas também à desvalorização da área remanescente. Em seguida, o direito de vizinhança regula a passagem das águas. De acordo com a legislação, o dono ou o possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem o seu fluxo. Dentro da ideia de função social, adverte a legislação cível que o proprietário de nascente, ou do solo onde caem águas pluviais, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode im pedir ou desviar o curso natural das águas rema­ nescentes pelos prédios inferiores. Igualmente o possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas indispensáveis às prim eiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores; as demais, que poluir, deverá recuperar, ressarcindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas. 0 direito de construir barragens, açudes ou outras obras para represamento de água em seu prédio também é assegurado pelo Código Civil. Contudo, as águas represadas não poderão invadir prédio alheio, sob pena de indenização pelo dano sofrido, deduzido o valor do benefício obtido. Como já é possível observar, o Código Civil brasileiro aborta importantes temas concernentes ao direito de vizinhança, nos mais amplos aspectos e de grande relevância prática e social.

Cap. V . Direito de vizinhança

255

Também autoriza, mediante prévia indenização aos proprietários prejudica­ dos, a construção de canais através de prédios alheios, para receber as águas a que tenha direito, indispensáveis às prim eiras necessidades da vida e desde que não cause prejuízo considerável à agricultura e à indústria, bem como para o escoamento de águas supérfluas ou acumuladas, ou a drenagem de terrenos. 0 aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos proprietá­ rios dos imóveis vizinhos e a expensas de seu dono, a quem incumbem também as despesas de conservação. Ainda sobre o direito de vizinhança, o Código Civil disciplina o tema dos limites entre prédios e o direito de tapagem. Assim, o proprietário tem direito a cercar, murar, vaia r ou tapar o seu prédio e pode constranger o seu confinante a proce­ der com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se, proporcionalmente entre os interessados, as respectivas despesas. Finalmente o Código Civil disciplinará o direito de construir, agora já no art. 1.299, nestes termos: "0 proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo 0 direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos". É evidente que 0 proprietário construirá de m aneira que 0 seu prédio não despe­ je águas, diretamente, sobre 0 prédio vizinho, sendo-lhe vedado ab rir janelas ou fazer eirado, terraço ou varanda, em zona urbana, a menos de metro e meio do terreno vizinho. Para toda e qualquer irregularidade que represente abuso desse direito de construir, a legislação brasileira contará com a chamada ação demolitória, que no direito material civil estará prevista no art. 1.312 do CC ao assim prescrever: "Todo aquele que violar as proibições estabelecidas nesta Seção é obrigado a dem olir as construções feitas, respondendo por perdas e danos". Sobre este profícuo conjunto de normas e princípios, reguladores de um fato social de suma importância: a relação de moradia entre as pessoas é que se passa a tratar de forma mais verticalizada. 2.

CONCEITO DO DIREITO DE VIZINHANÇA

0 direito de vizinhança constitui uma limitação à propriedade individual, cujo objetivo será conciliar os interesses dos vizinhos7: "As regras que constituem 0 d i­ reito de vizinhança destinam-se a evitar conflitos de interesses entre proprietários de prédios contíguos. Têm sempre em mira a necessidade de conciliar 0 exercício do direito de propriedade com as relações de vizinhança, uma vez que sempre é possível 0 advento de conflito entre confinantes"8.

7. 8.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 290. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 349-

256

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Os direitos de vizinhança "são sempre recíprocos, afetando igualmente todos os vizinhos"9. À luz da doutrina clássica e contemporânea, "as normas relativas aos direitos da vizinhança constituem claras limitações ao direito de propriedade, em prol do bem comum, da paz social"10. Dizem respeito a obrigações propter rem, pois acom­ panham a coisa onde quer que esteja11. Os direitos de vizinhança são obrigações propter rem na m edida em que ad e­ rem, vinculam -se ao prédio, e não à pessoa. Por isso obrigam o proprietário do prédio: "A principal característica de tais obrigações é o fato da determ inação indireta dos sujeitos, pois o dever não incide im ediatam ente sobre A ou B, mas a qualquer um que se vincule a uma situação jurídica de titularidade de direito real ou parcelas dom iniais (v.g. usufrutuário), ou mesmo a quem exerce um po­ der fático sobre a coisa (possuidor)"12. Sem 0 menor laivo de dúvid as o direito de vizinhança envolverá o com­ plexo de relações ju ríd icas recíprocas independentem ente da q ualid ad e dos vizinhos, sejam eles pessoas físicas ou ju ríd icas, desenvolvendo ativid ad es em­ p resa riais ou residenciais. Pouco im porta: o direito de vizinhança será aplicado e considerado.

2.1. A Vedação ao Uso Anormal da Propriedade 0 Código Civil proíbe no direito de vizinhança o uso anormal da propriedade. Em outras palavras, significa afirm ar que confere ao proprietário ou ao possuidor de um prédio o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização anormal da propriedade vizinha.

Sob a perspectiva obrigacional, pode-se perceber que existem obrigações ne­ gativas entre os vizinhos, as quais encerram abstenções (prestações de não fazer). A inobservância destas abstenções caracteriza ato ilícito ao permitir ao proprietá­ rio ou possuidor lesados obter do Aparato Judiciário tutela jurisdicional específica, que lhe assegure o resultado prático da defesa de sua propriedade e de seus direitos de vizinhança. Observa-se sob o ângulo do processo civil que terão legitim idade ativa ad causam para postular a tutela jurisdicional tanto o proprietário, quanto o pos­ suidor. De acordo com o art. 17 do CPC, para propor ou contestar uma ação será preciso que a parte demonstre ter interesse e legitim idade, caso em que

9.

CHAVES, Cristiano e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 559. 10. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 228/229. 11. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, V. 1, parte geral, 39a ed. São Paulo: Sarai­ va, 2003. p. 135. 12. CHAVES, Cristiano e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 557.

Cap. V • Direito de vizinhança

257

o mérito da dem anda poderá ser apreciado. Não possuindo a parte interesse jurídico ou legitim idade, será tida como carecedora do direito de ação, por falta de uma das condições da ação, aspecto que enseja a extinção do pedido sem resolução de mérito. ►Atenção! 0 CPC/15 dispõe sobre 0 tema no art. 17, afirmando que "Para postular

em juízo é necessário ter interesse e legitimidade". A inovação aperfeiçoa a técnica processual e veio em boa hora, afi­ nal de contas, os temas da legitimidade e do interesse não giram em torno apenas do autor ou do réu de uma demanda; daí por que não se restringem ao ajuizamento ou à contestação de pedidos. As­ sim, toda e qualquer pessoa ou ente que se dirigir ao Judiciário por meio de postulações - seja como autor, réu, terceiro etc... - terá que demonstrar legitimidade e interesse de agir, no binômio necessidade-utilidade.

Imagine, por exemplo, que um vizinho possua, em um apartamento residencial de 100 m2, doze gatos. E que isso acarrete não apenas odores extremamente ina­ dequados àquela m oradia, ou mesmo que outro vizinho costumeiramente realize ensaios musicais em níveis de ruídos muito acima dos habitualmente toleráveis. Imagine agora, finalmente, que um vizinho realize em seu ambiente doméstico empréstimos de dinheiro, utilizando aquela moradia de maneira incomum, rece­ bendo diariamente inúmeras pessoas que precisam tomar dinheiro emprestado. Nestes três exemplos - seja por força do risco à saúde pública, exemplo um; seja em decorrência do desassossego, exemplo dois ou, finalmente, à vista do risco à segurança doméstica, exemplo três - 0 fato é que 0 uso anormal da propriedade estará identificado. 0 grau de tolerabilidade ao incômodo, a localização do prédio e a natureza da utilização ou do incômodo verificado constituem alguns dos fatores que devem ser levados em consideração para verificar se 0 exercício da propriedade está, ou não, dentro do nível de normalidade. A ponderação é necessária13. 0 Código Civil impõe que se considere para fins de uso anormal da pro­ priedade a natureza e a localização do prédio: "se uma área em uma localida­ de praiana é destinada a bares noturnos (conforme normas regulamentares do próprio Município) deve existir uma tolerância maior ao barulho. 0 raciocínio não é 0 mesmo se a casa noturna se localizar em uma região essencialm ente residencial"14.

13. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 295. 14. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 233.

258

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: FGV Órgão: Prefeitura de Recife - PE Prova: Auditor do Tesouro Municipal Rita comprou um apartamento em um bairro tranquilo. Alguns meses depois de se instalar, Rita foi surpreendida com a inauguração de uma casa noturna no imóvel em frente ao seu. Não bastasse, 0 pri­ meiro andar do estabelecimento foi transformado em bar que, por conta do movimento, passou a utilizar a calçada para colocar suas mesas. Com 0 sucesso do empreendimento, os burburinhos na ma­ drugada começaram e, com 0 passar do tempo, Rita já não conseguia dormir em virtude do barulho. Inconformada, ajuiza uma ação em face do estabelecimento para que sejam tomadas as providências necessárias. Sobre a hipótese sugerida, assinale a opção correta. Gabarito: "Se for comprovado que 0 barulho excede os limites impos­ tos pela legislação, 0 juiz imporá multa ao estabelecimento com 0 fim de evitar reincidência".

Daí a importância do plano diretor aprovado por lei do município, conforme arts. 39 e seguintes do Estatuto das Cidades, a fim de constatar se no caso em destaque a propriedade está sendo utilizada nos exatos limites não apenas da sua função social em abstrato, mas se acarreta algum impacto de vizinhança. Com efeito, 0 estudo de impacto de vizinhança é imposto pelo Estatuto das Cidades e poderá ser utilizado como elemento decisório no caso concreto. Entrementes, a falta do estudo do impacto de vizinhança, ou mesmo de um plano diretor aprovado por legislação municipal, jam ais poderá ser utilizada como argumento justificador do desrespeito ao direito de vizinhança. Isso porque sem embargos de dúvidas os conflitos envolvendo o direito de vizinhança nem sempre serão fáceis de solucionar à primeira vista, notadamente quando aparentemente se apresentarem em rota de colisão com outros direitos consagrados, tais como a intimidade e a inviolabilidade da vida privada, assegurados no art. 5°, inciso X, da Constituição Federal e no art. 21 do Código Civil15. ►Atenção!

No Enunciado 319 do Conselho da Justiça Federal se entendeu que "A Condução e a solução das causas envolvendo conflitos de vizinhan­ ça devem guardar estreita sintonia com os princípios constitucionais da intimidade, da inviolabilidade da vida privada e da proteção do meio ambiente". Recorde-se que 0 art. 225 da Constituição Federal assegura a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, 0 que há de se observar no contexto do direito de vizinhança também.

15. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7» ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 231.

Cap. V • Direito de vizinhança

259

Uma interessante maneira de solucionar as questões envolvendo tais conflitos será utilizando os critérios dos arts. 113 e 187 do Código Civil, vale dizer, levando em consideração os costumes e a boa-fé objetiva no caso concreto. ►Como o Superior Tribunal de Justiça já entendeu a matéria?

No Recurso Especial 935.474/RJ, 0 Superior Tribunal de justiça entendeu que 0 exercício de forma abusiva do direito de plantio de árvores esta­ belecido em servidão convencional importa abuso do direito a ensejar ato ilícito por desvio no exercício de um direito, nos termos do art. 187 do CC. Também entendeu 0 Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.313.641/RJ que a demora do vizinho em reparar infiltração e - com isso - gerar desassossego a outra parte transborda a mera situação de dissabor e configura abuso do direito a autorizar não ape­ nas a imposição jurídica da reparação, como também 0 pagamento de danos morais.

Como é possível observar, 0 art. 1.277 do CC prescreve verdadeira cláusula geral de proteção ao direito de vizinhança em face de toda e qualquer agressão externa mediante a utilização de conceitos jurídicos abertos: saúde, sossego e segurança. Muitos dos conflitos de vizinhança podem e devem ser solucionados nos Jui­ zados Especiais Cíveis, que possuem competência para tanto, na forma do art. 3°, incisos I e II da Lei Federal n° 9.099/9516. Os atos ilegais e abusivos decorrentes do uso anormal da propriedade confe­ rem "não só ao proprietário como também ao possuidor 0 direito de fazer cessar as interferências ilegais ou abusivas provocadas pela utilização da propriedade vizinha, em detrimento de sua segurança, de seu sossego e de sua saúde. 0 uso anormal é tanto 0 ilícito como 0 abusivo, em desacordo com sua finalidade eco­ nômica, social, a boa-fé ou os bons costumes"17. Deve-se verifique sem pre em situações como estas três diretrizes básicas: • A extensão do dano ou do incômodo causado para constatar se este se encontra no limite do tolerável; •

Examinar a zona onde ocorre 0 conflito, bem como os usos e costumes locais;



Considerar a anterioridade da posse.

Eis os critérios para composição de tais conflitos18: (i) se 0 incômodo é normal, tolerável, não deve ser reprimido; (ii) se o dano for intolerável, deve o juiz pri­

16. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 296. 17. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 352/353. 18. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 355/ 356.

260

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

meiramente determ inar a redução desse às proporções normais; (iii) se não for possível reduzir 0 incômodo a níveis suportáveis, deverá o magistrado fazer ces­ sar a atividade, salvo se o interesse social justificar a manutenção do dano, caso em que 0 juiz de direito não deverá m andar cessar a atividade. Portanto, os direitos de vizinhança podem ser gratuitos ou onerosos, quando acarretem ou não indenização19. A municipalidade também deverá atuar na defesa do uso normal da proprieda­ de e nos limites do Poder de Polícia que lhe é conferido enquanto Administração Pública20.

2.2. Árvores Limítrofes Adverte a doutrina que "a existência de arvores limítrofes suscita relações de vizinhança"21 quando a árvore tiver 0 seu tronco em linha divisória, quando os fru­ tos naturalmente caírem em prédio vizinho e, finalmente, quando ramos e raízes ultrapassarem a divisão dos prédios. A teor do art. 1.282 do CC "A árvore, cujo tronco estiver na linha divisória, presu­ me-se pertencer em comum aos donos dos prédios confinantes". As árvores limítro­ fes são aquelas "cujo tronco está na linha divisória de dois prédios, presumindo-se pertencer em comum aos donos dos prédios confinantes"22. 0 tema merece análise diante da proteção do Bem Ambiental, nos termos do art. 225 da CF/88. Fato, que, a presunção de copropriedade da árvore limítrofe é relativa (juris tantum), podendo ser ilidida por prova em sentido contrário no caso concreto: "Instituiu-se, assim, a presunção de condomínio, que admite, no entanto, prova em contrário. A árvore que não tem seu tronco na linha divisória pertence ao dono do prédio em que ele estiver"23. A utilização de árvore nociva à saúde pública - como psicotrópica, por exem­ plo - , autorizará a adoção das m edidas processuais adequadas, notadamente as inibitórias e que assegurem 0 resultado prático e útil da decisão judicial. Eis um interessante conflito jurídico posto sob a apreciação do Judiciário. De um lado 0 interesse jurídico de corte de uma determ inada árvore; de outro um caso concreto no qual se revele tratar a hipótese de árvore am eaçada de extinção.

19. CHAVES DE FARIAS, Cristiano; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 559. 20. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 297. 21. CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 571. 22. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 237. 23. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 358.

Cap. V • Direito de vizinhança

261

►Atenção!

A árvore que não se encontra na situação normativa, ou seja, que não possui limítrofe, mas, ao contrário disso, é localizada inteiramente em um único terreno, pertencerá ao proprietário deste imóvel, na forma dos arts. 79 e 92 do CC e, por consequência, não será objeto da disci­ plina jurídica do direito de vizinhança.

De acordo com 0 art. 1.283 do CC "As raízes e os ramos de árvore, que ultrapas­ sarem a estrema do prédio, poderão ser cortados, até 0 plano vertical divisório, pelo proprietário do terreno invadido". Destarte, afora excepcionais situações, normalmente é correto afirm ar que 0 art. 1.283 do CC permite a poda de raízes e ramos das árvores limítrofes quando estes atingirem a estrema do prédio prejudi­ cado. Este direito deverá ser exercido com regularidade, jam ais de forma abusiva ante a vedação do art. 187 do CC. 0 exercício deste direito "assegurado no disposi­ tivo em apreço não se subordina a qualquer form alidade, como prévia reclamação ou aviso ao dono da árvore"24. 0 art. 1.284 do CC disciplina 0 tema dos frutos caídos de árvore do terreno vizinho. Eis 0 conteúdo normativo: "Os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular". A regra é sim ples. Tais frutos caídos pertencerão ao dono do solo onde caírem se esta propriedade for particular. Trata-se de uma exceção ao art. 92 do CC, vale dizer: uma exceção à regra de que 0 acessório segue a sorte do principal.

A disciplina das árvores limítrofes envolve três problemas básicos. 0 primeiro, quando a árvore possui seu tronco em linha divisória, hipótese em que presume pertencer em comum aos donos dos prédios confinantes. 0 segundo, os frutos que caem no terreno vizinho e que serão adquiridos pelo dono do solo onde caírem se este for propriedade particular. 0 terceiro e último problema envolve as raízes e ramos que ultrapassarem a estrema do prédio causando prejuízo real e que poderão ser cortados até 0 plano vertical divisório25.

2.3.

Passagem Forçada e Passagem de Cabos e Tubulações

Iniciaremos com a passagem forçada. 0 tema é abordado no direito de vizi­ nhança em um único artigo de lei. Reza 0 art. 1.285 do CC que " 0 dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger 0 vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário".

24. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 359. 25. DINIZ, Maria Helena. Cu rso de D ireito Civil B ra s ile iro , V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 299.

262

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Com efeito, "Trata-se de uma das mais rigorosas restrições de direito de vizinhança"26. Desta forma, " 0 imóvel encravado não pode ser explorado econo­ micamente e deixado de ser aproveitado, por falta de comunicação com a via pública. 0 instituto da passagem forçada atende, pois, ao interesse social. 0 direito é exercitável contra o proprietário contíguo e, se necessário, contra o vizinho não imediato"27. Fato, por conseguinte, a íntima relação entre a passagem forçada e a conferência de função social a um bem (art. 5°, XXIII, da CF/88). A passagem forçada é o "direito do proprietário de prédio (rústico ou urbano), que não tem acesso a via pública, nascente ou porto, de, mediante pagamento cabal de indenização, reclam ar do vizinho que lhe deixe passagem, fixando-se esta judicialmente o rumo, quando necessário por não haver acordo"28. ►Atenção!

No Enunciado 88, o Conselho da Justiça Federal entendeu que "0 direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que 0 acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas inclusive as necessidades de exploração econômica". Percebe-se, aqui, um alargamento doutrinário sobre 0 assunto, pois 0 objetivo não seria apenas garantir acesso; mas sim assegurar um mínimo acesso adequado, em vistas da função social da propriedade. Afinal, do que adiantaria uma propriedade sem acesso algum à via pública? Ou, ainda, com uma cesso claramente insuficiente? Não se olvida, portanto, que 0 instituto do direito de vizinhança, denominado passagem forçada, pressupõe para sua incidência a situação jurídica do imóvel encravado; leia-se: sem saída externa para a via pública. Como a propriedade deverá atender a função social (arts. 5°, XXIII, da CF/88 e 1.228, § 1°, do CC), surgirá 0 direito de se exigir do vizinho a passagem forçada. Portanto, "Pressupõe que um imóvel esteja em situação de absoluto encravamento em outro, decorrente da ausência de qualquer saída para a via pública"29. ►Como o Superior Tribunal de Justiça já entendeu o assunto?

No Recurso Especial 316.336/MS, 0 Superior Tribunal de Justiça entendeu que "Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encra­ vado é 0 imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem

26. CHAVES DE FARIAS, Cristiano; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 571. 27. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5 ,7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 360. 28. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 299/300. 29. CHAVES DE FARIAS, Cristiano; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 572.

Cap. V • Direito de vizinhança

263

inutilizar o terreno do vizinho, em que qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio". Mas quem deverá conceder a passagem forçada? Este dever jurídico será do vizinho "cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem"30. A solução legal harm oniza-se com a ideia de restrição me­ nos gravosa ou onerosa. 0 § i ° do art. 1.285 assim disciplina 0 assunto: "Sofrerá 0 constrangimento 0 vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem". ►E na hora da prova?

Ano: 2008 Banca: EJEF Órgão: TJ-MC Prova: Juiz A passagem forçada assegura ao proprietário do imóvel encravado 0 acesso à via pública, pela utilização dos imóveis contíguos. Considerando essa afirmativa, marque a opção CORRETA. Gabarito: "Sofrerá 0 constrangimento 0 vizinho cujo imóvel mais natu­ ral e facilmente se prestar à passagem". Ano: 2015 Banca: PGR Órgão: PGR Prova: Procurador da República Assinale a alternativa correta: Gabarito: "0 direito de passagem forçada não comporta oposição do vizinho, cabendo ao juiz fixar 0 rumo da passagem de forma mais cô­ moda e menos onerosa para as partes". Já 0 § 2° do art. 1.285 do CC prescreve a solução jurídica a ser dada para 0 caso de ocorrer a alienação (venda ou doação) do prédio serviente. Eis 0 texto: "Se ocorrer alienação parcial do prédio, de modo que uma das partes perca 0 acesso a via pública, nascente ou porto, 0 proprietário da outra deve tolerar a passa­ gem". Nesse caso, 0 dever jurídico da passagem forçada será imposto ao outro vizinho, dono da outra propriedade. Entendemos, apesar disso, que 0 adquirente do aludido imóvel serviente deverá respeitar 0 dever jurídico da passagem for­ çada, afinal de contas, essa obrigação acompanhará 0 adquirente, isso porque 0 instituto envolve obrigação propter rem (am bulatorial, própria da coisa). 0 § 3° do art. 1.285 cio CC determina que se aplica 0 disposto no parágrafo an­ tecedente ainda quando, antes da alienação, existia passagem através de imóvel vizinho, não estando 0 proprietário deste constrangido, depois, a dar uma outra. "A ra z ã o é q u e s e ria injusto d e ix a r a o a lv e d r io d o v e n d e d o r to r n a r e n c ra v a d o o

seu prédio e ao mesmo tempo lhe conceder a faculdade de exigir passagem de qualquer vizinho, impondo, assim, ao arbítrio do malicioso ou do negligente, uma restrição à propriedade alheia"31.

30. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 240. 31. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 360.

264

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Mas a passagem forçada é conferida gratuitamente? Diria respeito esta passa­ gem apenas a pessoas? A resposta é negativa. Prossegue 0 Código Civil, agora em seu art. 1.286, afirmando que "Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvalorização da área rema­ nescente, 0 proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pú­ blica, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa". ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: FCC Órgão: Prefeitura de Recife - PE Prova: Procurador Para levar água potável a seu imóvel, Silvio necessariamente tem que passar tubulação subterrânea pelo imóvel de seu vizinho, Mateus, 0 qual Gabarito: "é obrigado a permitir a passagem da tubulação, mediante recebimento de indenização que abranja os danos diretos ao imóvel e a desvalorização da área remanescente". É dizer: além da passagem forçada de pessoas, também será devida a passa­ gem forçada de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, desde que impossível ou excessivamente onerosa a passagem de outra maneira. Surge no direito de vizinhança a obrigação de não fazer (tolerar a passagem) e 0 direito de receber indenização. Como se vê, "0 proprietário não perderá 0 poder sobre a coisa, apenas terá que suportar certos atos"32. 0 parágrafo único do art. 1.286 assegura ao proprietário prejudicado 0 direito de exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso ao prédio onerado, bem como 0 direito de remover a passagem para outro local do imóvel, à custa deste. Em arremate, para caso de as instalações ensejarem risco grave, surgirá ao proprietário do prédio onerado 0 direito de exigir a realização de obras de segu­ rança, na forma do art. 1.287 do CC. Por fim, registra-se que andou bem 0 CC/02 que evoluiu no instituto antes tratado (no cc/16 ) como servidão e agora no âmbito do direito de vizinhança, aperfeiçoando-se 0 sistema e a técnica jurídica. ►Atenção!

Servidão e passagem forçada se confundem? A resposta é negativa.

32. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 303.

Cap. V . Direito de vizinhança

265

A passagem forçada é um instituto de direito de vizinhança, enquanto a servidão diz respeito a um direito de gozo e fruição. Aqui já se percebe a primeira importante diferença, segundo a doutrina de Maria Helena Diniz. Afinal, "o direito de vizinhança é criado por lei, para dirimir conflitos en­ tre vizinhos"; enquanto as servidões prediais "decorrem de lei ou de con­ venção, constituindo em encargos que um prédio sofre em favor de ou­ tro, para o melhor aproveitamento ou utilização do prédio beneficiado". Seguindo nas diferenciações, a passagem forçada aplica-se na hipótese em que houver um imóvel encravado, entendido como tal aquele que não possuir acesso à rua, nascente ou porto (CC, art. 1.285). Não há aqui uma faculdade, mas sim uma imposição, ao passo que 0 imóvel encrava­ do deverá ter garantido pelo outro 0 seu direito de acesso à via pública. A passagem será concedida de forma menos gravosa ao onerado e este receberá, por conta da concessão, contraprestação pecuniária. Infere-se na servidão instituto de ratio completamente diversa. Aqui não há encravamento. Há, sim, desejo de aumento da utilidade do prédio dominante mediante uso da área serviente. Poderá ser onerosa ou gratuita e não é imposta, mas sim fruto de um acordo entre prédios de diversos proprietários. Sintetizando 0 posto, adverte Flávio Tartuce que a servidão não se confundirá com a passagem forçada, pois é facultativa de modo a não obrigar 0 pagamento de indenização, já "a passagem forçada é compulsória, assim como 0 é 0 pagamento da indenização. A servidão é um direito real de gozo ou fruição. A passagem forçada é instituto de direito de vizinhança, presente somente na situação em que 0 imóvel encravado não tem saída para a via pública (art. 1285 do CC/2002). A servidão envolve os imóveis dominante e serviente; na passagem for­ çada estão presentes 0 imóvel encravado e 0 serviente. Na servidão cabe a citada ação confessória; na passagem forçada, para a defesa do direito, a ação cabível é denominada ação de passagem forçada".

►E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: MPE-SC Órgão: MPE-SC Prova: Promotor de Justiça Matutina Analise os enunciados das questões abaixo e assinale se ele é Certo ou Errado. A passagem forçada é direito de vizinhança que não exige registro, enquanto que a servidão é um direito real sobre coisa alheia e tem sua constituição com 0 registro no Cartório de Registro de Imóveis. Enquanto a passagem forçada decorre da lei e é uma limitação ao direito de propriedade, a servidão limita 0 domínio e constitui-se me­ diante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subsequente registro no Cartório de Registro de Imóveis. Gabarito: Certo.

266

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

2.4. Das Águas A água é um dos bens cada vez mais preciosos da humanidade e deverá ser entendida sempre como um bem ambiental, na forma do art. 225 da CF/88:33 "a importância das águas, não só no cotidiano das cidades, como especialmente na zona rural", assim como 0 "papel de relevo que a água desempenha na economia e na vida das pessoas fez com que, desde os tempos mais antigos, as grandes cidades se desenvolvessem às margens de algum rio". Também é 0 que pensa Maria Helena Diniz34, ao informar que "Ante 0 grande valor das águas pelo papel que têm na satisfação das necessidades humanas e no progresso de uma nação, im põe-se a existência de normas idôneas para atender a esses reclamos e solucionar os conflitos que, porventura, surgirem". Na era pretérita ao Código Civil vigente, " 0 tópico relativo às águas era, então, tratado basicamente pelos arts. 69, 70 ,9 0 ,9 2,10 3 ,10 5 e 117 do Decreto n° 24.643/34 (Código das Águas)"35. 0 CC/02 passou a tratar da matéria também. 0 art. 1.228 do CC prescreve que " 0 dono ou 0 possuidor do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior, não podendo realizar obras que embaracem 0 seu fluxo; porém a condição natural e anterior do prédio inferior não pode ser agravada por obras feitas pelo dono ou possuidor do prédio superior".

Trata-se de norma inicialmente dirigida ao dono ou possuidor. Claro, como direito de vizinhança que 0 é, veicula obrigação propter rem. 0 dono ou possuidor do prédio inferior é aquele que recebe por fluxo natural águas do prédio superior, sendo "obrigado" a receber tais águas e não podendo negar 0 curso natural ou mesmo obstruir este regular fluxo. Justamente por isso é que surge um dever de abstenção para este proprietário ou possuidor: não realizar qualquer obra que obstrua 0 fluxo das águas. Em um segundo momento, 0 preceito normativo se dirigirá ao dono ou possui­ dor do prédio superior, agora lhe proibindo de agravar, mediante a realização de obras, a condição natural e anterior do prédio inferior. Não é possível, então, que 0 dono ou possuidor do prédio superior, por obras, derram e ainda mais água no prédio inferior. Ilustre-se com a s im p le s id e ia d e q u e " c o n s tru ç ã o d a s tu b u la ç õ e s n ã o p o d e

simplesmente aniquilar a funcionalidade do prédio inferior, uma vez que a passa­ gem deve ser da m aneira menos gravosa, conforme se expôs (princípio da menor onerosidade)"36. Arremata o autor que "Sob outro prisma, se, eventualmente, o

33. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2012. Volume 5, p. 363. 34. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2011. Volume 4. P- 304. 35. CHAVES DE FARIAS, Cristiano; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 576. 36. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 243.

Cap. V . Direito de vizinhança

267

proprietário do prédio inferior realizar obras que impeçam o escoamento das águas, caberá ação visando a afastar tal obstrução, sem prejuízo de eventuais perdas e danos, pelo ato ilícito praticado". 0 art. 1.289 do CC disciplina a situação jurídica do escoamento artificial das águas. Assim, quando as águas, artificialmente levadas ao prédio superior, ou aí colhidas, correrem dele para 0 inferior, poderá 0 dono desse reclam ar que se desviem, ou se lhe indenize 0 prejuízo que sofrer. Da indenização será deduzido 0 valor do benefício obtido.

Em seguida, prescreve 0 art. 1.290 do CC que 0 proprietário de nascente ou do solo onde caem águas pluviais, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode im pedir ou desviar 0 curso natural das águas remanescentes pelos prédios inferiores. A norma envolve as fontes ou nascentes não captadas, daí por que se estas forem decorrentes de captação "0 proprietário do prédio inferior não lhe tem direito algum"37. De acordo com 0 art. 89 do Código das Águas nascentes são as águas que surgem naturalmente ou por indústria humana.

► Atenção! 0 art. 90 do Código das Águas prescreve que 0 dono do prédio onde

houver alguma nascente, satisfeitas as necessidades de seu consumo, não pode impedir 0 curso natural das águas pelos prédios inferiores. Entendemos que 0 art. 1.290 do CC deve ser interpretado em conformi­ dade com 0 Código das Águas, notadamente com 0 preceito normativo em destaque.

Interessante notar que 0 atual Código Civil não tratou expressamente das águas pluviais previstas no art. 102 do Código das Águas como as que decorrem da chuva e que serão de titularidade do proprietário do prédio em que caírem diretamente, que delas poderá dispor livremente, via de regra. 0 art. 1.291 do CC diz 0 óbvio e proíbe a poluição das águas. Convenhamos que a esta altura não seria necessário um artigo de lei vedando a poluição das águas à vista de todos os valores socioambientais conhecidos, a par da eticidade e da boa-fé objetiva, nos limites dos costumes locais (CC, arts. 113 e 187), além da função social (art. 5, XXIII, da CF/88).

Fazendo o contraponto, veja-se que a referida regra "representa importante inovação, pois proíbe a poluição, e, se esta ocorrer, obriga 0 poluidor a recuperar as águas poluídas, sob pena de pagamento de indenização"38.

37. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 306. 38. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 367.

268

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

De qualquer m aneira, segundo a norma: " 0 possuidor do imóvel superior não poderá poluir as águas indispensáveis às prim eiras necessidades da vida dos pos­ suidores dos imóveis inferiores; as demais, que poluir, deverá recuperar, ressar­ cindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas". Mais uma vez, concordamos com a crítica da doutrina: "A parte final do último dispositivo é altamente criticável, pois expressa que as demais, que poluir, deverá recuperar, ressarcindo os danos que estes sofrerem, se não for possível a recu­ peração ou o desvio do curso artificial das águas. Ora, a lei está admitindo, em sua literalidade, a possibilidade de poluição de águas, tidas como não essenciais, algo inadmissível em tempos atuais, diante da constante preocupação com o Bem Ambiental, o que culmina na adoção dos princípios da precaução e da prevenção. Nesse contexto, o dispositivo acaba por ferir a ampla proteção legislativa do meio ambiente, sobretudo a que consta do art. 225 da Constituição e da Lei 6.938/1981. Por isso, na opinião deste autor, 0 comando legal deveria ser imediatamente re­ vogado, em razão de sua inconstitucionalidade"39. ►Atenção!

Consolidando 0 dito verifica-se que 0 Enunciado 244 do Conselho da justiça Federal entendeu que "0 art. 1.291 deve ser interpretado con­ forme a Constituição, não sendo facultada a poluição das águas, que sejam essenciais ou não às primeiras necessidades da vida".

0 art. 1.292 assegura ao proprietário 0 direito de construir barragens, açudes ou outras obras para represamento de água em seu prédio, prescrevendo que se as águas represadas invadirem prédio alheio, será 0 seu proprietário indenizado pelo dano sofrido, deduzido 0 valor do benefício obtido. 0 proprietário poderá represar águas, desde que atendam apenas as suas necessidades40. Aborda 0 dispositivo legal 0 direito de construção ou de represamento das águas que "não pode gerar danos ao meio ambiente, havendo necessidade de fiscalização das atividades pelas autoridades administrativas, com 0 Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e 0 Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA)".41 A regra em comento disciplina o "direito de represamento de água mediante a construção de barragens de todas as formas, inclusive para a construção de hidrelétricas"42, desde que vizinhos não sejam prejudicados. 0 direito de construção do aqueduto é disciplinado no art. 1.293 cio CC, que assim prescreve: "É permitido a quem quer que seja, m ediante prévia indeniza­

39. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7* ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 245. 40. CHAVES DE FARIAS, Cristiano; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, 10a ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 579. 41. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 247. 42. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 367.

Cap. V • Direito de vizinhança

269

ção aos proprietários prejudicados, construir canais, através de prédios alheios, para receber as águas a que tenha direito, indispensáveis às prim eiras necessi­ dades da vida, e, desde que não cause prejuízo considerável à agricultura e à indústria, bem como para o escoamento de águas supérfluas ou acum uladas, ou a drenagem de terrenos". "Os arts. 1.293 a 1.296 do Código Civil disciplinam a chamada servidão de aqueduto"43. Para a doutrina estampada na redação do Enunciado 598 do Conselho da Justiça Federal, na redação do art. 1.293, "agricultura e indústria" não são ape­ nas qualificadores do prejuízo que pode ser causado pelo aqueduto, mas também finalidades que podem justificar sua construção. Maria Helena Diniz44 lembra que se as águas pluviais caírem em área pública pertencerão ao domínio da coletividade e, desta maneira, serão de uso comum, podendo ser usadas pelo proprietário ou possuidor de todo e qualquer terreno por onde passarem, nos limites do art. 107 do Código das Águas, vedado 0 represamento destas, salvo pela Administração Pública. ►Atenção!

No Enunciado 245 0 Conselho da Justiça Federal entendeu que "Mui­ to embora omisso acerca da possibilidade de canalização forçada de águas por prédios alheios, para fins de agricultura ou indústria, 0 art. 1.293 não exclui a possibilidade da canalização forçada pelo vizinho, com prévia indenização dos proprietários prejudicados". Desta forma, 0 aqueduto deixa de ser mera servidão e passa a constituir verdadeiro direito de vizinhança.

Mais uma vez a legislação cível é construída à luz da menor onerosidade e da função social da propriedade, assegurando 0 direito de construção do aquedu­ to mediante indenização prévia aos proprietários prejudicados. Assegura-se, com isso, expressamente, a construção de canais nos prédios alheios aptos ao recebi­ mento das águas a que se tenha direito. ►Atenção!

A disciplina jurídica do aqueduto submete-se à mesma regra relativa à passagem de cabos e tubulações. É 0 que afirma 0 art. 1.294 do Código Civil que assim dispõe: "Aplica-se ao direito de aqueduto 0 disposto nos arts. 1.286 e 1.287 do CC". 0 aqueduto não é mais servidão como antes prescreviam os arts. 117 e ss. do Código das Águas.

43. CHAVES DE FARIAS, Cristiano; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil, V. 5, io* ed. Reais. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 57944. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26» ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 307.

270

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Ao proprietário prejudicado também assiste direito a ressarcimento pelos da­ nos que de futuro lhe advenham da infiltração ou irrupção das águas, bem como da deterioração das obras destinadas a canalizá-las. Em decorrência do princípio da menor onerosidade, o proprietário prejudicado poderá exigir que seja sub­ terrânea a canalização que atravessa áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou quintais, razão pela qual o aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos proprietários dos imóveis vizinhos, e a expensas do seu dono, a quem incumbem também as despesas de conservação. Por óbvio que 0 aqueduto (ou a canalização da água) não im pedirá que os proprietários cerquem os imóveis e construam sobre ele, sem prejuízo para a sua segurança e conservação. Outrossim, os proprietários dos imóveis poderão usar das águas do aqueduto para as prim eiras necessidades da vida. É o que prescreve 0 art. 1.295 do CC. 0 art. 1.296 do CC trata das águas supérfluas e merece todas as críticas feitas anteriormente em relação à (in)disponibilidade das águas na atual ordem consti­ tucional ambiental. De qualquer forma, autoriza o Código Civil a possibilidade de canalizar tais águas mediante pagamento de indenização aos proprietários preju­ dicados e ao dono do aqueduto.

2.5.

Dos Limites entre os Prédios: Direito de Tapagem

Se é certo afirm ar que a propriedade é uma garantia constitucional pétrea (art. 5°, XXII, da CF/88), mais certo ainda será reconhecer ao proprietário o direito a cercar, murar, vaiar ou tapar de qualquer modo o seu prédio, urbano ou rural, e poder constranger o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas. Esse direito é denominado direito de tapagem. Atento a esse fato, existem normas estabelecendo a forma por meio da qual se dá a demarcação entre prédios vizinhos e o direito disto decorrente. A dem ar­ cação é a um só tempo um direito subjetivo e um dever típico de vizinhança: "A demarcação surgiu com a propriedade, pois os marcos ou cercas, além de estimu­ larem os interesses privados, garantem a paz"45. Ao fazer referência à possibilida­ de de proceder à "demarcação", a legislação cível dá margem ao ajuizamento da ação demarcatória, prevista nos arts. 569 e seguintes do CPC. ►Atenção! 0 CPC manteve a ação demarcatória de terras particulares, como tam­

bém a ação de divisão de terras. Agora, 0 artigo do CPC é 0 569. Interes­ sante notar, ademais disso, que no IV Encontro do Fórum Permanente

45 -

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26* ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 311.

Cap. V • Direito de vizinhança

271

de Processualistas Civis foi ratificado o Enunciado de n° 68, segundo o qual "Também possuem legitimidade para a ação demarcatória os titu­ lares de direito real de gozo e fruição, nos limites dos seus respectivos direitos e títulos constitutivos de direito real. Assim, além da proprie­ dade, aplicam-se os dispositivos do Capítulo sobre ação demarcatória, no que for cabível, em relação aos direitos reais de gozo e fruição". Já o Enuncia do 69 adverte: "Cabe ao proprietário ação demarcatória para extremar a demarcação entre 0 seu prédio e do confinante, bem como fixar novos limites, aviventar rumos apagados e a renovar mar­ cos destruídos (art. 1.297 do Código Civil)" (FIGUEIREDO, Roberto; CUNHA, Maurício e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. i a ed. São Paulo: Armador).

De acordo com 0 § 1° do referido art. 1.297, os intervalos, os muros, as cercas e os tapumes divisórios - tais como sebes vivas, cercas de arame ou de m adeira, valas ou banquetas - presumem-se, até prova em contrário, pertencer a ambos os proprietários confinantes, sendo estes obrigados, de conformidade com os costu­ mes da localidade, a concorrer, em partes iguais, para as despesas de sua cons­ trução e conservação. Há, portanto, um condomínio legal presumido "até prova em contrário". Esta presunção é relativa, iuris tantum, de modo que admitirá prova em sentido contrário. ►Como o Superior Tribunal de Justiça já entendeu a matéria?

No AgRg no AREsp 399.367/ES, 0 Superior Tribunal de Justiça reconheceu a propriedade de um muro divisório de imóveis em benefício da parte recorrente, afirmando que a presunção legal de condomínio é relativa e passível de ser ilidida por prova robusta e convincente realizada em sentido contrário.

Se 0 proprietário eventualmente já houver "fechado 0 seu terreno por outra forma", não estará obrigado a "levantar tapume especial, a não ser que exijam as posturas municipais"46. Fora dessa situação, as despesas deverão ser rateadas. 0 proprietário poderá fazer uso das ofendículas (lanças ou cacos de vidro por sobre 0 muro para lesar aquele que tente entrar sem autorização na proprieda­ de), esclarecendo: "Para a m aioria da doutrina do Direito Penal, tais instrumentos são considerados como hipóteses de legítima defesa preordenada. Na visão civil, em regra, esses instrumentos representam 0 exercício regular de um direito, no caso do direito de propriedade (art. 18 8 , 1, do CC). Todavia, 0 art. 187 serve como parâmetro, para que as ofendículas não constituam abuso de direito, gerando 0 dever de indenizar.47"

46. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 370. 47. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 250.

272

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Logo, ofendículas acima da média, mais lesivas do que o normal, no nosso entender, podem v ir a caracterizar conduta abusiva, apta a ocasionar indenização por abuso de direito, segundo responsabilidade civil objetiva, caso haja dano a um terceiro. As sebes vivas, as árvores ou plantas quaisquer, que servem de marco divisó­ rio, só podem ser cortadas ou arrancadas de comum acordo entre proprietários. É 0 que afirma 0 § 2° do art. 1.297 do CC. Avançamos na análise deste dispositivo para sustentar que tal solução haverá de ser dada no caso concreto, considerando a regra de ouro na interpretação dos negócios jurídicos, qual seja: a boa-fé e os costumes do lugar, a teor dos arts. 113 e 187 do CC. 0 § 3° do art. 1.297 trata de uma situação especial concernente à aquisição por um dos vizinhos de animal de pequeno porte a exigir tapume também especial. Diz a regra que a construção de tapumes especiais para im pedir a passagem de animais de pequeno porte, ou para outro fim, pode ser exigida de quem provocou a necessidade deles, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer para as despesas. A análise desse dispositivo deixa claro que 0 legislador disciplinou em primeiro lugar os tapumes comuns por sobre os quais estabeleceu a presunção relativa de condomínio e divisão de custos. Somente depois impôs 0 legislador àquele que elevou a situação de risco ou desassossego na vizinhança 0 ônus exclusivo de suportar as despesas decorrentes da construção de tapume especial. Afinal, ao proprietário do animal é dado arcar com as despesas dos tapumes postos, justa­ mente, por conta do seu animal. Em arremate, 0 art. 1.298 assim prescreve: "Sendo confusos, os limites, em falta de outro meio, se determinarão de conformidade com a posse justa; e, não se achando ela provada, 0 terreno contestado se dividirá por partes iguais entre os prédios, ou, não sendo possível a divisão cômoda, se adjudicará a um deles, mediante indenização ao outro". Opta 0 Código Civil, em primeiro lugar, por identificar a divisão com substrato jurídico no instituto da posse justa - aquela que não é nem violenta, nem clandes­ tina, nem precária (CC, art. 1.200). Na im possibilidade de utilização deste critério da posse justa, a legislação avança para solucionar a questão por meio da ação demarcatória da linha divisória, com 0 fito de estabelecer os reais limites destes imóveis com divisões confusas. Como funciona a ação demarcatória? A ação demarcatória compete ao proprietário obrigar 0 seu confinante a estre­ m ar os respectivos prédios, fixando-se novos limites entre eles ou aviventando-se os já apagados, conforme art. 569 do CPC. Será lícita, inclusive, a cumulação da ação demarcatória com a de divisão. Nesse caso, deverá processar-se primeiramente a demarcação total ou parcial da coisa comum, citando-se os confinantes e os condôminos. Assim, apenas posterior­ mente haverá a divisão.

Cap. V • Direito de vizinhança

273

►Atenção! 0 CPC apresentará uma grande novidade com a inclusão do art. 571,

0 qual não possui correspondência na atual legislação. A novidade le­ gislativa tem 0 seguinte conteúdo: "A demarcação e a divisão poderão ser realizadas por escritura pública, desde que maiores, capazes e concordes todos os interessados, observando-se, no que couber, os dispositivos deste Capítulo". A novidade será - portanto - a possibilida­ de jurídica expressa de demarcação consensual mediante lavratura de escritura pública a este respeito em fiel prestígio à autonomia privada e à intervenção mínima do Estado nas relações particulares. Aliás, se é possível casar-se, divorciar-se ou lavrar inventário administra­ tivo, com maior razão ainda será correto aceitar-se a demarcação extra­ judicial. (FIGUEIREDO, Roberto; CUNHA, Maurício e DOURADO, Sabrina. Co­ mentários ao Novo Código de Processo Civil. i a ed. São Paulo: Armador).

Na ação demarcatória, fixados os marcos da linha de demarcação, os confinantes considerar-se-ão terceiros quanto ao processo divisório, ficando-lhe ressalva­ dos os direitos de vindicar os terrenos de que se julguem despojados por invasão das linhas limítrofes constitutivas do perímetro, ou ainda reclamar indenização correspondente ao seu valor. ►Atenção!

Outro importante avanço do CPC está no art. 573, segundo 0 qual em se tratando de imóvel georreferenciado, com averbação no Registro de Imóveis, pode 0 juiz dispensar a realização de prova pericial. Trata-se de preceito sem correspondência no CPC vigente e extremamente sin­ tonizado com 0 uso da tecnologia e 0 prestígio à economia, celerida­ de e efetividade do processo. Com efeito, a georreferência já servirá como perícia, sendo apta a fundamentar a decisão do magistrado. Obviamente, caso a georreferência seja imprecisa ou duvidosa, nada obstará 0 pleito de perícia complementar; afinal, a norma faculta ao magistrado dispensar a perícia, não 0 vincula (FIGUEIREDO, Roberto; CUNHA, Maurício e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. i a ed. São Paulo: Armador). Na petição inicial da ação de demarcação deverá 0 autor apresentar 0 título da propriedade, designar 0 imóvel pela situação e pela denominação, descrever os limites por constituir, aviventar ou renovar e nomear todos os confinantes da linha demarcanda. É 0 que impõe 0 art. 575 do CPC vigente. ►E no Código de Processo Civil? 0 CPC regula esta matéria no art. 575 e mantém a exigência da prova

documental concernente ao título de propriedade, impondo, de forma inédita, que 0 réu designe 0 imóvel "pela situação e pela denominação" (FIGUEIREDO, Roberto; CUNHA, Maurício e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. i a ed. São Paulo: Armador).

274

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 art. 576 do CPC disciplina a citação que, como sabemos, objetiva dar conhe­ cimento ao réu acerca da demanda.

►Como o Superior Tribunal de Justiça entende a matéria?

De acordo com a Súmula 429 do Superior Tribunal de Justiça a citação postal, quando autorizada por lei, "exige aviso de recebimento".

►Atenção!

No CPC/15, 0 art. 576 tem a seguinte redação: "A citação dos réus será feita por correio, observado 0 disposto no art. 247. Parágrafo único. Será publicado edital, nos termos do inciso III do art. 259" (FIGUEIREDO, Roberto; CUNHA, Maurício e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 1* ed. São Paulo: Armador). 0 art. 577 do CPC vigente prevê o prazo de 15 (quinze) dias úteis para os réus contestarem a ação demarcatória. Outra novidade é que 0 prazo doravante será comum, e não mais sucessivo.

Após oferecida a contestação, 0 procedimento será 0 comum ordinário e 0 ma­ gistrado, antes de sentenciar, nomeará um ou mais peritos para levantar 0 traçado da linha demarcanda. Interessante notar que 0 CPC/15 contenta-se com peritos, sejam ou não agrimensores (CPC, art. 579). ►Atenção!

No IV Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis foi ratifica­ do 0 Enunciado n° 70, segundo 0 qual "Do laudo pericial que traçar a linha demarcanda, deverá ser oportunizada a manifestação das partes inte­ ressadas, em prestígio ao princípio do contraditório e da ampla defesa".

A sentença que julgar procedente 0 pedido determ inará 0 traçado da linha demarcanda e, se for 0 caso, a restituição da área invadida, se houver, declarando 0 domínio ou a posse do prejudicado, ou ambos. Esta é a inteligência do art. 581 do CPC/15.

2.6. Direito de Construir 0 direito de construir constitui "emanação do direito de propriedade. Assegura ao proprietário a faculdade de usar e dispor do que lhe pertence, como lhe aprouver (CC, art. 1.228), nele incluído a de edificar as construções que quiser. Todavia, 0 exercício do direito de propriedade não é absoluto, condicionando-se a outros valores, que merecem igual tutela da lei, seja no interesse dos vizinhos, seja na­ quele do bem-estar da coletividade"48.

48. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 371.

Cap. V . Direito de vizinhança

275

Em igual sentido caminha Maria Helena Diniz49, para quem o direito de construir constitui "prerrogativa inerente da propriedade", limitada ao direito dos vizinhos e aos regulamentos administrativos. 0 art. 1.299 do CC assegura ao proprietário 0 direito de construir afirmando que ele poderá levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo 0 direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos e desde que 0 seu prédio não despeje águas, diretamente, sobre 0 prédio vizinho (CC, art. 1.300).

Um dos objetivos da norma é proteger 0 proprietário contra 0 estilicídio, 0 qual consiste no "despejo da água, principalmente de chuva, em outra proprie­ dade", trazendo como ilustração interessante julgado do Tribunal de Relação de Coimbra, Portugal (Processo 3905/2005, Tribunal Judicial de São Pedro do Sul)50. Ao fazer referência 0 Código Civil ao tema dos regulamentos administrativos, a ressalva a que se deverá fazer em alusão a isso reside no Estatuto das Cidades e, particularmente, ao plano diretor que pode existir por força de legislação municipal. Ao prever 0 art. 1.301 do CC ser proibido, em zona urbana, abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda a menos de metro e meio do terreno vizinho, demonstra a legislação ordinária cível sua nítida harmonia com as garantias fun­ damentais da vida privada, referidas no art. 5°, inciso X, da CF/88, assim como no art. 21 do CC. Já na zona rural, 0 Código Civil proíbe edificações a menos de três metros do terreno vizinho. A regra está no art. 1.303. 0 instituto de devassamento da propriedade vizinha e defende a previsão normativa como forma de proibir que se construa de maneira a "perturbar 0 re­ cato e a privacidade fam iliar do confrontante"51. Já 0 § i ° do art. 1.301 do CC afirma que as janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros. ►Atenção!

Entendemos que a Súmula 414 do Supremo Tribunal Federal foi cance­ lada pelo § i° do art. 1.301 do CC. De acordo com 0 verbete sumulado não se distingue a visão direta da oblíqua na proibição de abrir janela, ou fazer terraço, eirado, ou varando, a menos de metro e meio do prédio de outrem. Contudo, a legislação cível que sucedeu à súmula é clara a disciplinar a visão oblíqua de maneira diferente da visão direta.

A única ressalva estabelecida pelo Código Civil está no § 2° do art. 1.301: "As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz ou ventilação, não

49. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 4, 26» ed. Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 317. 50. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 4, 7a ed. Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2015. p. 252. 51. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 5, 7» ed. Direito das Coisas. São Paulo: Sarai­ va, 2012. p. 373.

276

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso". ►Como este assunto foi decidido no Supremo Tribunal Federal? 0 Enunciado da Súmula n° 120 do Supremo Tribunal Federal assim res­ tou elaborado: "Parede de tijolos de vidro translúcido pode ser levan­ tada a menos de metro e meio de prédio vizinho, não importando a servidão sobre ele".

Na sequência, o Código Civil prevê 0 prazo decadencial da ação demolitória de­ pois de ano e dia da conclusão da obra. É o que afirma o art. 1.302: "0 proprietário pode, no lapso de ano e dia após a conclusão da obra, exigir que se desfaça janela, sacada, terraço ou goteira sobre 0 seu prédio; escoado 0 prazo, não poderá, por sua vez, edificar sem atender ao disposto no artigo antecedente, nem impedir, ou dificultar, 0 escoamento das águas da goteira, com prejuízo para 0 prédio vizinho". Esse prazo decadencial não se aplicará para os casos do parágrafo único do art. 1.302. Vale dizer que em se tratando de vãos, ou aberturas para luz, seja qual for a quantidade, altura e disposição, 0 vizinho poderá, a todo tempo, levantar a sua edificação, ou contramuro, ainda que lhes vede a claridade. Em outras pa­ lavras, a legislação expressamente afasta a aplicação da decadência para vãos e aberturas para luz. Caso a obra esteja em curso, ao revés da ação demolitória deverá 0 prejudica­ do lançar mão da ação de nunciação de obra nova, com 0 escopo de embargar a obra por desrespeito às normas de construção. 0 direito de travejamento, também denominado de direito de madeiramento, aparecerá no art. 1.304 do CC: "Nas cidades, vilas e povoados cuja edificação esti­ ver adstrita a alinhamento, 0 dono de um terreno pode nele edificar, madeirando na parede divisória do prédio contíguo, se ela suportar a nova construção; mas terá de em bolsar ao vizinho metade do valo r da parede e do chão correspon­ dentes". Este direito também estará previsto no art. 1.305, segundo 0 qual " 0 confinante, que prim eiro construir, pode assentar a parede divisória até meia espessura no terreno contíguo, sem perder por isso 0 direito a haver meio valor dela se 0 vizinho a travejar, caso em que 0 prim eiro fixará a largura e a profun­ didade do alicerce". É a chamada parede-meia (construir a linha divisória até meia espessura no terreno contíguo). Aliás, se a parede divisória pertencer a um dos vizinhos, e não tiver capacidade para ser travejada pelo outro, não poderá este fazer-lhe alicerce ao pé sem prestar caução àquele, pelo risco a que expõe a construção anterior. A parede-m eia gera um condomínio legal entre os confinantes. 0 condômino da parede-meia pode utilizá-la até ao meio da espessura, não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois prédios e avisando previamente ao outro con­ dômino das obras que ali tenciona fazer. Ademais não pode, sem consentimento do outro, fazer na parede-m eia armários ou obras semelhantes, correspondendo a ou­ tras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto. É 0 que dispõe 0 art. 1.306 do CC.

Cap. V • Direito de vizinhança

277

Já o art. 1.307 do CC disciplina 0 direito de alteamento: "Qualquer dos confinantes pode altear a parede divisória, se necessário reconstruindo-a, para suportar 0 alteamento; arcará com todas as despesas, inclusive de conservação, ou com metade, se 0 vizinho adquirir meação também na parte aumentada". ►Atenção!

Não é lícito encostar à parede divisória chaminés, fogões, fornos ou quaisquer aparelhos ou depósitos suscetíveis de produzir infiltrações ou interferências prejudiciais ao vizinho, salvo nos casos de chaminés ordinárias e os fogões de cozinha. Neste sentido 0 art. 1.308 do CC. Os arts. 1.309 e 1.3 11 apresentam uma série de proibições normativas. Inicia-se com a vedação de construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água do poço, ou nascente alheia a elas preexistentes, assim como a proibição de escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais. Ao final, adverte 0 Código Civil não ser permitida a execução de qualquer obra ou serviço suscetível de provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho, senão após haverem sido feitas as obras acautelatórias. Todo aquele que violar as proibições estabelecidas "é obrigado a demolir as construções feitas, respondendo por perdas e danos", conforme 0 art. 1.312 do CC, daí surgindo a denominada ação demolitória pelo procedimento comum ordinário. Curiosa disciplina está no art. 1.313 do CC segundo 0 qual 0 proprietário ou ocu­ pante do imóvel é obrigado a tolerar que 0 vizinho entre no prédio, mediante pré­ vio aviso, para: dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório, ou ainda apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente. Casos típicos, indicados na própria norma, para aplicação deste preceito ocor­ rem para situações de limpeza ou reparação de esgotos, goteiras, aparelhos higi­ ênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva, assegurando-se indenização acaso exista dano ao vizinho na realização destas atividades. ► E na hora da prova?

Ano: 2015 Banca: FCV Órgão: DPE-MT Prova: Advogado Em relação ao direito de vizinhança, assinale a afirmativa correta. Gabarito: "O proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono

do prédio vizinho a demolição ou a reparação deste, quando ameace ruína, bem como que lhe preste caução pelo dano iminente".

_____

Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia 1.

NOTA INTRODUTÓRIA

Conforme visto em capítulo específico dedicado ao tema, o direito da proprie­ dade - direito real na coisa própria - concede ao seu titular uma série de poderes sobre a coisa (CC, art. 1.228), inclusive 0 de limitar 0 próprio uso, gozo e fruição do bem mediante a transferência desses atributos da propriedade a terceiros. Se é certo afirm ar que a propriedade se presume plena, até prova em sentido con­ trário, à guisa do princípio da exclusividade, mais certo ainda é afirm ar existirem hipóteses nas quais esta presunção (relativa) deixa de existir. Justamente quando se verifica, no caso concreto, tais limitações ao uso, gozo e fruição da coisa, é que se estará diante dos direitos reais de gozo e fruição na coi­ sa alheia. Em síntese: sendo possível ao proprietário desm em brar os poderes da propriedade previstos no art. 1228 do CC, abre-se a possibilidade do surgimento de direitos reais na coisa alheia, inclusive para fins de gozo e fruição1. Estes direitos reais na coisa alheia (jus in re aliena) estarão "limitados por lei e só podem existir em função de norma jurídica em razão do numerus clausus"2. Não há, pois, possibilidade jurídica de um novo direito real surgir por força da autonomia privada. Sete são estes direitos reais na coisa alheia: superfície, servidão, usufruto, uso, habitação, concessão de uso especial para fins de moradia e concessão de direito real de uso; todos tipificados no art. 1.225 do CC. De acordo com a doutrina3, " 0 Código Civil de 2002 propõe a constituição de três grupos de direitos reais em coisa alheia: os direitos de fruição (servidão, usufruto, uso e habitação); os direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) e 0 direito real à aquisição, que se trata da promessa de compra e venda

1. 2. 3.

0 princípio da elasticidade dos direitos das coisas permite, justamente, este desdobramento dos poderes da propriedade em face de terceiros. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 385. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm. 2014 p. 674.

280

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

registrada. Em cada um dos três grupos há o destaque de determinados poderes dominiais com maior ou menor intensidade, formando-se novas titularidades". É chegada a hora de estudar os direitos reais de fruição, à luz do garantismo constitucional, sob o foco da propriedade funcionalizada, construída no âmbito da eticidade e da dignidade humana. Recorde-se que o direito civil de hoje merece leitura despatrim onializada e repersonalizada. Registramos que o instituto da enfiteuse se encontra vedado desde o advento do Código Civil de 2002, conforme 0 art. 2.028. Assim, apenas são conservadas as enfiteuses já constituídas sob 0 regime do CC/16, cada vez mais diminutas. Diante do desuso do instituto e sua ausência de permanência no Código Civil de 2002, não nos dedicaremos à sua análise. Tal posicionamento fora adotado, ainda, ante a percepção de que 0 CC/02 optou por substituir 0 instituto da enfiteuse pelo direito de superfície, este sim devidamente verticalizado no presente capítulo. Assim, começaremos a abordar os direitos reais de gozo e fruição justamente a partir desta novidade: 0 direito de superfície. 2.

DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

Curioso perceber que 0 direito de superfície já obteve regramento no Brasil, à época anterior ao Código Civil de 1916. Quando vigia no Brasil a legislação do Reino de Portugal, havia disciplina sobre 0 instituto. Com 0 Código Civil de 1916, porém, 0 direito de superfície deixou de ser contemplado legalmente em terras tupiniquins, retomando 0 Código Civil de 2002 0 prestígio do tema4. 0 direito de superfície é regulado na Itália (CC, arts. 952/956), na Alemanha (arts. 1.012 a 1.017), na Suíça (CC, arts. 675 e 779), na Holanda (CC, 758 e 766), entre outros importantes países, sem­ pre com a finalidade de permitir a construção ou plantação em terreno alheio5. Trata-se de um direito real na coisa alheia de uso e fruição, que está dis­ ciplinado em dois diplom as jurídicos: (a) no Estatuto da Cidade, Lei Federal n° 10.257/2001, arts. 21 a 24; e (b) No Código Civil, arts. 1.269/1.377. ►Atenção!

Teria 0 Código Civil revogado 0 Estatuto da Cidade na parte em que este disciplina 0 direito de superfície? Sobre 0 tema, afirma Flávio Tartuce a existência de dois posiciona­ mentos doutrinários, ambos fincados na redação do art. 2° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): Posicionamento 1. 0 novo Código Civil revogou tacitamente as regras do Estatuto da Cidade concernentes ao direito de superfície, por se tratar de lei nova sobre 0 mesmo tema (LINDB, art. 2°, § 1°). Nessa es­ teira repousa 0 posicionamento de Carlos Roberto Gonçalves.

4. 5.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 443. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 443.

Cap. VI . Direitos Reais de Cozo e Fruição na Coisa Alheia

281

Posicionamento 2. Não há revogação alguma porque 0 Código Civil é norma geral que não podería revogar norma especial, de modo que devemos harmonizar ambos os institutos (LINDB, art. 2°, § 2°). Recor­ da-se que 0 Estatuto da Cidade é um instrumento de regramento da política de desenvolvimento urbano. Nessa linha de pensamento cami­ nham Sílvio de Salvo Venosa e Flávio Tartuce, bem como 0 Enunciado 93 do Conselho da Justiça Federal. Esta segunda tese é a que ganhou maior espaço na atualidade. A esta nos filiamos de forma que iremos trabalhar tanto na perspectiva do Código Civil, quanto na perspectiva do Estatuto das Cidades.

Na forma do art. 1.369 do CC 0 proprietário está autorizado a conceder a outrem 0 direito de construir ou plantar em seu terreno, por determinado tem­ po, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. A hipótese é típica de uma propriedade resolúvel (CC, art. 1.359)- Torna-se possível com este direito real de uso e fruição na coisa alheia a construção ou plantação mediante concessão realizada em benefício do superficiário. ► E na hora da prova?

(Cespe - Juiz de Direito - TJ - SC/2019) Se, mediante escritura pública, 0 proprietário de um terreno conceder a terceiro, por tempo determi­ nado, 0 direito de plantar em seu terreno, então, nesse caso, estará configurado 0 a) direito de superfície. b) direito de uso. c) usufruto resolutivo. d) usufruto impróprio. e) comodato impróprio. Gabarito. Letra A

0 Estatuto das Cidades (Lei Federal n° 10.257/01) em seu art. 21 também discipli­ na 0 direito de superfície, com uma importante diferenciação para 0 Código Civil, qual seja: a possibilidade de constituição da superfície por tempo indeterminado. "É a superfície, portanto, 0 direito real pela qual 0 proprietário concede, por tem­ po determinado ou indeterminado, gratuita ou onerosamente, a outrem 0 direito de construir, ou plantar em seu terreno urbano ou rural, mediante escritura públi­ ca, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis"6. Há exploração da terra por sujeito de direito que não é proprietário da mesma.

Prossegue da doutrina conceituando 0 instituto nos seguintes term os: "A superfície é 0 instituto real pelo qual 0 proprietário concede a outrem, por tempo determ inado ou indeterm inado, gratuita ou onerosam ente, 0 direito de

6.

DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 390.

282

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

construir ou plantar em seu terreno. Tal direito real de gozo ou fruição recai sem pre sobre bens im óveis, m ediante escritura pública, devidam ente regis­ trada no Cartório de Registro de Im óveis"7. Recorda 0 ilustre civilista se r este 0 mais abrangente direito real de gozo e fruição, envolvendo o proprietário (fundieiro) e o superficiário8. Questão interessante é saber se o direito de superfície compreendería o espa­ ço aéreo e 0 subsolo. Em que pese a omissão normativa do Código Civil a este respeito9, 0 superfici­ ário poderá utilizar do espaço aéreo, "uma vez que constitui ele parte integrante do solo, como expressamente enunciava o art. 43, I, do Código Civil de 1916"10 (correspondente ao art. 1.229 do Código Civil vigente). 0 mesmo raciocínio, por consequência, aplicar-se-á ao subsolo; recordando-se que apenas é possível 0 uso do espaço aéreo e subsolo úteis ao exercício da propriedade. No mesmo sentido caminha 0 Enunciado 568 do Conselho da Justiça Federal ao firmar que 0 direito de superfície abrange a utilização não apenas do solo, mas do subsolo ou do espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no con­ trato, admitindo-se 0 direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística. Esse entendimento coaduna-se com a previsão específica do direito de super­ fície no Estatuto das Cidades, diploma que afirma em seu art. 21 que "0 direito de superfície abrange 0 direito de utilizar 0 solo, 0 subsolo ou 0 espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.". Voltando os olhos ao Código Civil, porém, infere-se que 0 parágrafo único do art. 1.369 afirma que 0 direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão. Percebe-se, portanto, certa polêmica sobre 0 assunto. A premissa para as provas, como sem pre, há de ser 0 texto normativo. Logo, 0 direito de superfície não autorizará obras no subsolo, salvo se inerente à con­ cessão. Ouanto ao uso do subsolo e espaço aéreo correspondente, tem-se como factível, segundo 0 critério da utilidade, na forma estabelecida em contrato e con­ soante a legislação urbanística. Diante do dito, seria viável ao Poder Público cobrar contraprestação pelo uso de seu espaço aéreo ou subsolo pelas empresas concessionárias de serviço públi­ co, no que concerne à passagem de redes de eletricidade, telefonia, TV a cabo...

7. 8.

TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 333. Observe que 0 conceito ministrado pelo ilustre professor Flávio Tartuce envolve a superfície por tempo indeterminado, 0 que evidencia a posição doutrinária deste pela permanência no orde­ namento jurídico da disciplina prevista no Estatuto das Cidades. 9. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 443. 10. Eis 0 conteúdo do art. 43» L do CC/16: "São bens imóveis 0 solo com a sua superfície, os seus aces­ sórios e adjacências naturais, compreendendo as arvores, os frutos pendentes, 0 espaço aéreo e 0 subsolo".

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

283

Outrossim, factível a aquisição da propriedade superficiária por condôminos, a partir de determ inada altura, do terreno vizinho, com o escopo de im pedir qual­ quer edificação no imóvel contíguo que ultrapasse determinada altura e lhe retire a vista, o sossego e a privacidade. ►Atenção!

No que concerne ao uso do subsolo, ressalte-se que o próprio art. 20, IX da Carta Magna, aliado ao art. 1.230 do Código Civil, impedirá a uti­ lização dos recursos minerais, que a rigor pertencem à União. Logo, a propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, muito menos os potenciais de energia hidráulica, os monu­ mentos arqueológicos e outros bens referidos em lei especial; razão pela qual jamais será possível admitir esta prerrogativa de fruição ao direito de superfície.

► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: PGE-TO Prova: FCC - 2018 - PGE-TO - Procu­ rador do Estado 0 proprietário de um imóvel onde foi edificado um galpão comercial de grandes dimensões precisa otimizar as receitas decorrentes da ex­ ploração desse bem. Uma das alternativas que lhe foram apresenta­ das foi a construção de um espaço para a realização de feiras e even­ tos, atraindo, assim, mais interessados em utilizar também 0 galpão comercial. Considerando que não há área livre de terreno suficiente para a edificação do espaço pretendido, 0 proprietário Gabarito: "poderá conceder onerosamente 0 direito de superfície de seu imóvel, sendo permitido ao superficiário construir e explorar 0 espaço de eventos no espaço aéreo do galpão, revertendo ao dono do terreno as acessões e benfeitorias ao fim do contrato".

Na forma do art. 1.473 do CC e do Enunciado 249 do Conselho da Justiça Fede­ ral, a mesma propriedade superficiária poderá ser simultaneamente objeto de outro direito real na coisa alheia, a exemplo de uma hipoteca do próprio direito superficiário. Concordamos com isso, até porque não se trata de relação jurídica intuito personae e inalienável, razão pela qual será viável a transmissão do direito de superfície a terceiros (CC, art. 1.372). Interessante reflexão se faz ao advertir que 0 direito de superfície efetivamen­ te constitui "exceção ao princípio de que 0 acessório acompanha 0 principal, pois a lei concede ao superficiário um direito real sobre construção ou plantação feita em terreno alheio, utilizando sua superfície", aspecto que afasta a acessão, ou melhor, a ideia segundo a qual "tudo que se acrescenta ao solo deverá pertencer ao seu proprietário (superfícies solo cedit)"11.

11. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26» ed. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 493-

284

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 direito de superfície poderá ser constituído por escritura pública12, por carta de sentença ou por testamento; havendo ainda quem sustente a possibilidade de aquisição pela via da usucapião13. Em todos estes casos, este título deverá ser registrado no cartório de imóveis, a teor do art. 1.277 do CC "Os direitos reais sobre imóveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com 0 registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos em lei". Constituído 0 direito de superfície, surgirá no caso concreto um conjunto de obrigações e direitos próprios da construção ou da plantação, autônomos e dis­ tintos do terreno em si, de modo que responderão cada um dos seus titulares ex­ clusivamente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as de natureza tributária, na melhor forma do Enunciado 321 do Conselho da Justiça Federal. Esta divisão entre dois blocos de patrimônios jurídicos decorrente da consti­ tuição do direito de superfície enseja uma série de efeitos interessantes, como 0 direito do superficiário e do proprietário à indenização oriunda de eventual desa­ propriação, bem como 0 supletivo dever de pagamento dos respectivos tributos sobre a propriedade superficiária na proporção da parte do imóvel objeto do gozo e fruição (§ 30, do art. 21, do Estatuto da Cidade), havendo nítida indepen­ dência da superfície. ►Atenção!

A doutrina sustenta que as partes terão liberdade plena para delibe­ rar no contrato respectivo sobre 0 eventual rateio destes encargos e tributos, conforme Enunciado 94 do Conselho da Justiça Federal. Assim, nada impede que haja ajuste de rateio igualitário, desigual, propor­ cional etc. Na hipótese, porém, de silêncio do ajuste sobre a questão do rateio, incidirá a supletiva e supracitada norma do Estatuto das Cidades, a qual prevê 0 pagamento proporcional de tais despesas quando a con­ cessão envolver apenas parte do terreno (§ 3° do art. 21). Chama-se esta norma de supletiva diante da percepção de que poderá ser afas­ tada pelo regramento das partes, sobrepondo-se a autonomia à lei.

Este direito de superfície poderá ser concedido onerosamente, ou mesmo de forma gratuita, de acordo com a autonomia privada do proprietário. De fato, 0 pro­ prietário poderá usar e dispor da coisa como lhe aprouver (CC, arts. 1.228 e 1.370). Nota-se que existirá necessariamente um contrato disciplinando as partes e 0 objeto desta concessão da superfície. 0 pagamento de eventual contraprestação

12. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 448. 13. Curiosamente, 0 Código Civil português admite de modo expresso a aquisição do direito de superfície pela usucapião, conforme art. 1.528: "0 direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião, e pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo".

Cap. VI . Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

285

é doutrinariamente chamado de cânon ou solarium, podendo se realizar de uma só vez ou parceladamente. ► E na hora da prova?

(MPE - SC - Promotor de Justiça - MPE - SC/2019) Segundo posiciona­ mento do Superior Tribunal de Justiça, é possível reconhecer a usu­ capião do domínio útil de bem público sobre 0 qual tinha sido, ante­ riormente, instituída enfiteuse, pois, nessa circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não havendo qualquer prejuízo ao Estado. Gabarito: Certo.

Mas e se 0 contrato for silente sobre a questão da onerosidade ou gratuidade? Acaso neste pacto as partes sejam silentes sobre a onerosidade, na forma dos arts. 112 e 114 do CC, deve-se adm itir a modalidade gratuita para 0 uso da superfí­ cie. De qualquer modo, " 0 superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidem sobre 0 imóvel" (CC, art. 1.371). ►Atenção!

0 direito de superfície é transmissível, seja por ato inter vivos ou mortis causa. Questão polêmica diz respeito à (im)possibilidade de cobrança de valores para tal transferência. Seria possível? Segundo 0 Código Civil (CC, art. 1.372), não. Nas pegadas do texto codi­ ficado, seja a transferência em vida ou após a morte, restará inviável a cobrança de qualquer valor (CC, art. 1.372). Ocorre, porém, que a dita restrição ao pagamento pela transferência não é vista no Estatuto das Cidades. Por essa razão, entendemos ser 0 caso de se aplicar a Lex Especialis (LINDB, art. 2°) e admitir 0 caráter especulativo desta transferência para situações de superfície em áreas urbanas. Que fique claro: em áreas urbanas, ante 0 objeto de incidên­ cia do Estatuto.

►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 - Banca: FAURGS - Órgão: TJ/RS - Prova: Juiz de Direito Subs­ tituto). A banca trouxe como incorreta as assertivas: "0 superficiário não responde pelos encargos e tributos que incidirem sobre 0 imóvel." "0 direito de superfície não pode ser transferido a terceiros, exceto, por morte do superficiário, aos seus herdeiros."

Seguindo no regramento do tema, 0 legislador civilista trabalha com 0 direito de preferência, também denominado preempção ou mesmo prelação legal (CC,

286

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

art. 1.373)- Trata-se de um regramento recíproco, pois aplicável tanto ao proprie­ tário como ao superficiário. Ambos, portanto, na hipótese de alienação, terão o direito de exercitar sua preferência tanto por tanto - nas mesmas condições de pagamento de preço - consolidando a propriedade de forma plena (solo, constru­ ção e/ou plantação). Assim, desejando o proprietário alienar o bem, preferirá o superficiário; e se este intentar alienar a superfície, preferirá o proprietário. Nessa toada, no momento da alienação o alienante haverá de notificar ao ou­ tro para que este, então, tenha a prerrogativa de exercitar, ou não, o seu direito de preferência, tanto por tanto. Curioso perceber que a norma é omissa quanto ao prazo, ou mesmo a forma de se implementar este direito de preferência. Recorda Flávio Tartuce14 da existência de três correntes doutrinárias:



Corrente 1 - a inobservância do direito de preferência ensejaria apenas direi­ to à reparação civil, aplicando-se por analogia o art. 518 do CC. Ante a omissão normativa, seria utilizado 0 recurso da analogia (LINDB, art. 40) e aplicado os arts. 513 a 520 do CC. Nesse sentido Sílvio de Salvo Venosa, Mário Luiz Delgado, Pablo Stolze e Jones Figueiredo.



Corrente 2 - A analogia deveria ser com 0 art. 33 da Lei do Inquilinato (Lei Fe­ deral n° 8.245/91). Logo, quando do desrespeito à preferência surgiría ao inte­ ressado a alternativa de reaver 0 bem para si, depositando 0 preço e demais despesas do ato de transferência, desde que 0 direito de superfície estivesse registrado há pelo menos trinta dias e 0 exercício do direito pelo prejudicado se desse em até seis meses. Caso não mais houvesse interesse ao preterido de reaver 0 bem para si, 0 mesmo art. 33 da Lei do Inquilinato lhe autorizaria 0 pedido de perdas e danos. Este é 0 entendimento de Maria Helena Diniz e Marco Aurélio Bezerra de Melo.



Corrente 3 - Seria 0 caso de se aplicar 0 art. 504 do CC: utilizar 0 direito de preferência disciplinado no condomínio para, com isso, permitir no prazo decadencial de 180 (cento e oitenta dias) para 0 ajuizamento de ação de adju­ dicação. Defendem esta ideia Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald Jr., Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes.

A segunda tese vem ganhando ares de m ajoritária, como posto no Enunciado 510 do Conselho da Justiça Federal: "Ao superficiário que não foi previamente notificado pelo proprietário para exercer o direito de preferência previsto no art. 1.373 do CC é assegurado 0 direito de, no prazo de seis meses, contado do registro da alienação, adjudicar para si 0 bem mediante depósito do preço". 0 que acontece caso o superficiário confira destinação diversa da entabulada no direito de superfície? Configurará um ato ilícito apto a possibilitar a antecipada resolução do direito de superfície (CC, art. 1.374). Extinta a concessão - por este ou qualquer outro motivo - 0 proprietário passará a ter a propriedade plena sobre 0 terreno, cons­

14. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 341.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

287

trução ou mesmo plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado coisa distinta no contrato (CC, art. 1.375). Lembre-se de que a Lei de Registros Públicos, em seu art. 167, II, 20 exige a averbação do término deste direito real de superfície no cartório de registro imobiliário. ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: FAURGS Órgão: TJ/RS Prova: Juiz de Direito Substituto). 0 gabarito da questão, que pedia a alternativa correta, era: "0 proprie­ tário, extinta a concessão, passará a ter a propriedade plena sobre 0 terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado 0 contrário."

E se houver desapropriação? Em havendo uma desapropriação, 0 direito de superfície, por via de conse­ quência, será extinto. Nesse caso, 0 art. 1.376 do CC prevê cabível indenização tanto ao proprietário do terreno, quanto ao superficiário "no valor corresponden­ te ao direito real de cada um". Sobre este assunto foi elaborado 0 Enunciado 322 do Conselho da Justiça Federal, segundo 0 qual " 0 momento da desapropriação e as condições da concessão superficiária serão considerados para fins da divisão do montante indenizatório (art. 1.376, CC), constituindo-se litisconsórcio passivo necessário simples entre proprietário e superficiário". ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: FGV Órgão: Prefeitura de Recife - PE Prova: Auditor do Tesouro Municipal 0 Município do Recife resolve desapropriar imóvel de propriedade de João, que tinha como superficiário Joaquim, seguindo os trâmites le­ gais do processo de desapropriação, considerando as normas relativas ao(s) direito(s) real(is) envolvido(s).

A esse respeito, assinale a afirmativa correta. a) Somente João receberá a justa indenização, já que somente 0 di­ reito de propriedade será indenizável, por se tratar de direito real pleno. b) 0 direito de superfície será extinto e, por isso, somente joaquim receberá a indenização, já que é 0 único que possui a posse direta do bem. c) A d esapro p riação dissolve tanto a pro p ried ad e quanto o direito de

superfície, mas somente 0 proprietário receberá indenização por possuir a posse indireta. d) Tanto João quanto Joaquim receberão indenização no valor corres­ pondente ao direito real de cada um. e) 0 Município não poderá desapropriar 0 imóvel na pendência de direito de superfície, sendo a propriedade resolúvel. Gabarito: letra d.

288

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Já que adentramos na seara do direito administrativo, urge aclarar que " 0 direi­ to de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado por lei especial", na melhor forma do art. 1.377 do CC. E caberá usucapião entre superficiário e proprietário? Evidentemente que não, na medida em que 0 uso e a fruição do terreno se dará sem animus domini, requisito essencial à prescrição aquisitiva. Por fim, recorda-se que 0 direito de superfície será extinto: com 0 vencimento de seu termo, para 0 caso de se ter um ajuste por tempo determinado; por descumprimento das obrigações assumidas (hipótese de resolução pela prática de ato ilícito); resilição unilateral (denúncia vazia) ou bilateral (distrato); causas gerais de extinção dos negócios jurídicos, tais quais a consolidação, 0 perecimento, a desapropriação etc. 3.

DO DIREITO REAL DE LAJE

Há muito percebe-se, na realidade social brasileira, uma situação fática rein­ cidente, principalmente em famílias de baixa renda: quando um dos filhos forma um novo núcleo fam iliar e não tem condições financeiras para adquirir a sonhada casa própria, um dos genitores oferece um pedaço de seu imóvel (laje), para que 0 aludido filho construa a sua residência - popularmente chamada de puxadinho e passe a ali residir. Malgrado a grande verificação prática do instituto, 0 direito positivo brasileiro passava ao largo, não tocando no tema. Tal conduta legislativa criava abissais em­ baraços práticos, como problemas acerca da titularidade proprietária, direito de venda, responsabilidade tributária, etc. A postura do legislador nacional era ofen­ siva ao próprio direito constitucional à moradia, assegurado no art. 6° da CF/88. Por conta disto, a doutrina reivindicava 0 reconhecimento do direito de laje, até mesmo como desdobramento do direito de superfície. Os apelos doutriná­ rios ganhavam ainda mais fôlego diante da percepção de tratamento do assunto no direito com parado, sob 0 batismo de direito de sobrelevação ou direito de superfície de segundo grau. 0 assunto já merecia tratamento no direito francês sob o nome de surélévation no suíço - sob o batismo de deuxième degré - e no direito português15. Dentre os clamores doutrinários sobre 0 tema, a Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, no ano de 2011, na sua I Jornada de Direito de Família, reconheceu 0 direito de laje, ao firm ar em seu Enunciado de n° 18 que "nos termos do regime de bens aplicável, adm ite-se, em nível obrigacional, a comunicabilidade do direito sobre a construção realizada no curso do casamento ou da união estável - acessão artificial socialmente conhecida como 'direito sobre a laje' - , subordinando-se, todavia, a eficácia real da partilha ao regular registro

15. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 447.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

289

no Cartório de Imóveis, a cargo das próprias partes, mediante recolhimento das taxas ou emolumentos e tributos devidos.". Ainda nas manifestações doutrinárias derredo r do assunto, o próprio Con­ selho da Justiça Federal, através do Enunciado n° 568, reconhecia 0 aludido direito de sobrelevação, aduzindo que "0 direito de superfície abrange 0 direito de utilizar 0 solo, 0 subsolo ou 0 espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, adm itindo-se 0 direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística.". Tudo isto, porém, ainda era pouco diante da ausência de normatividade sobre a questão. Foi, então, no bro, por meio da como Direito Real bem como criado

apagar das luzes de 2016, especificamente no dia 22 de dezem­ Medida Provisória n° 759, que 0 Direito de Laje restou legislado autônomo, tendo sido inserido 0 inciso XIII no art. 1.225 do CC/02, 0 art. 1.510-A, no mesmo diploma civilista nacional.

Tal modificação legislativa, em 11 de julho de 2017 (Lei 13.465/17), ganhou corpo de lei, com regras am pliadas em comparação à Medida Provisória n° 759 de 2016. Ao art. 1.510-A som aram -se 0 1.510-B, C, D e E. Sobre este direito de laje, já sob os influxos da Lei 13.465/17, que se passará a tratar. Respeitando-se 0 caráter taxativo dos direitos reais, passamos a ter, no Brasil, expressamente, mais uma figura de direito real (CC, art. 1.225, XIII). Verifica-se, portanto, regramento nacional sobre 0 direito de laje, 0 qual, hoje, é direito real autônomo e registrável. Convenceu-se 0 legislador nacional da grande máxima segundo a qual quando 0 direito dó as costas para a realidade, a realidade dá as costas para 0 direito. De nada adiantava a omissão legislativa, pois os puxadinhos persistiam e os conflitos multiplicavam-se. Nas pegadas do novel art. 1.510-A do Código Civil, "0 proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção, a fim de que 0 titular da laje mantenha unidade distinta daquela originariamente construída sobre 0 solo". A legislação prevê a constituição do direito real de laje por meio do instrumen­ to de cessão. É desta m aneira, de acordo com a norma, que 0 proprietário cederá a terceiro 0 direito de construir na superfície da denominada construção-base. Este instrumento de cessão será levado ao registro público. Abrir-se-á matrícula própria e, com isto, 0 direito real de laje será constituído. A p a r d a p re v is ã o n o rm a tiv a , a d o u trin a a v a n ç o u em u m a leitu ra s istê m ic a d o

ordenamento jurídico para também adm itir a aquisição do direito real de laje pela via da usucapião. 0 tema foi objeto de cristalização doutrinária por meio do Enun­ ciado 627 da VIII Jornada em Direito Civil, ocorrida em 2018. Sem dúvida, é possível reconhecer com tranquilidade a usucapião do direito real de laje. Assim, haverá a coexistência de unidades im obiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que 0 proprie­ tário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade

290

Direito Civil • Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

distinta daquela originalmente construída sobre o solo. Tal situação, como direito real autônomo, apenas se configurará quando for impossível a individualização das unidades (lotes, sobreposição ou solidariedade de edificações ou terrenos). Fincado nos id eais de função social e acesso proprietário, o direito real de laje contempla espaço aéreo ou subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical como unidade im obiliária autônoma, não con­ templando as dem ais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base. Percebe-se a laje como uma unidade imobiliária autônoma. Não há vinculação da laje à construção-base, podendo a laje ter finalidade diversa da construção-fundação originária - uma comercial e a outra residencial, em vice-versa, por exemplo. Uma vez configurado o direito real de laje, a referida unidade autônoma de­ verá possuir matrícula própria. Nessa esteira, o direito real de laje ocorrerá por meio de abertura de matrícula própria no registro de imóveis e por meio da averbação desse fato na matrícula da construção-base e nas matrículas de lajes ante­ riores, com remissão recíproca - art. 176, parágrafo nono, da Lei 6.015/73, alterado pela Lei 13.475/2017. Para 0 caso de aquisição da laje pela usucapião, a sentença que a reconhecer deverá ser encaminhada ao registro im obiliário para 0 fim de abertura da matrícula própria. Em tendo matrícula própria, 0 titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos incidentes na unidade, resolvendo a normatização um proble­ ma secular. Outrossim, igualmente possível será ao titular da laje dela usar, gozar e dispor. Assim, as unidades em questão poderão ser alienadas e gravadas livre­ mente; afinal, são detentoras de matrícula própria. No que diz respeito ao direito de disposição da laje, constatamos melhora legislativa no atual tratamento do tema (Lei 13.465/17), em comparação com 0 regramento anterior da Medida Provisória (MP n° 759/ 2016). A Medida Provisória não regulava 0 recíproco direito de preferência entre 0 ti­ tular do direito da construção-base e da laje, na hipótese de alienação. Tal condu­ ta, como apontado na edição anterior desta obra, feria, em certa medida, 0 ideal de unidade proprietária. Agora 0 direito de preferência está expressamente disci­ plinado, nada obstante 0 "cochilo legislativo" ao prevê-lo para 0 caso de "aliena­ ção", ou seja, tanto para a compra e venda, quanto para a doação. Entendemos que melhor seria se 0 direito de preferência fosse restrito à alienação onerosa. Entretanto, 0 fato é que 0 sistema pretérito da medida provisória foi efe­ tivamente aperfeiçoado pela Lei 13.465/17, notadamente quanto ao direito de preferência, visionando evitar 0 ingresso de um terceiro indesejado em unidade im obiliária tão próxima, bem como conferindo ao titular da unidade contígua prer­ rogativa de consolidação proprietária. Nessa esteira, aduz 0 art. 1.510-D que "em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da laje, nessa ordem, que serão

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

291

cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso". Acaso surja desrespeito à aludida preferência, o prejudicado - seja o titular da construção-base seja o da laje - poderá exercitar a prerrogativa da adjudicação compulsória, depositando previamente o preço e havendo a coisa para si. Tal di­ reito, porém, de cunho potestativo, se submeterá a um prazo decadencial de 180 (cento e oitenta) dias, contados da alienação. Mutatis mutandis, tem-se regramento da preferência no direito real de laje muito próximo ao do condômino, quando na venda de coisa indivisível (CC, art. 504). Ainda nas novidades inseridas pela Lei 13.465/17, em modificações à Medida Provisória n° 759/2016, tem-se a expressa possibilidade de instituição de lajes su­

cessivas. De fato, quando da Medida Provisória n° 759/2016 havia, expressamente, no art. 1.510-A, a impossibilidade de sobrelevações sucessivas, não sendo possível direito de laje sobre a laje. A vedação, à época, fundava-se no desejo de redução de riscos de conflitos ainda maiores, com vários envolvidos e núcleos familiares diversos. Todavia, com 0 advento da Lei 13.465/17 houve a inserção do parágrafo sexto no art. 1.510-A, existindo permissivo expresso para que 0 titular da laje ceda a superfície de sua construção para a instituição de um sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da construção-base e das demais lajes, bem como respeito às posturas edilícias e urbanísticas vigentes. A inserção justificou-se pela percepção de um fato social: na prática, mormente nas ocupações de comunidades em bolsões aos grandes centros urbanos, há cristalina percepção da existência de lajes sucessivas. Assim, com 0 advento da Lei 13.465/17 tornou-se plenamente possível as lajes sucessivas. Chama-se a atenção, ainda, que tendo em vista 0 conjunto formado pela construção-base e pela laje: i.

Há vedação ao titular da laje gerar prejuízo, com obras novas ou com falta de reparação a segurança, a linha arquitetônica ou 0 arranjo estético do edifício, sempre observando a normatização local (CC, art. 1.510-B).

ii.

Sem prejuízo do regramento condominial edilício, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes que sirvam todo 0 edifício, bem como ao pagamento de serviços de interesses comuns, serão partilhadas entre 0 proprietário da construção-base e 0 titular da laje, na proporção indicada em contrato. São partes que servem a todo 0 edifício a.

os alicerces, colunas, pilares, paredes-m estras e todas as partes restan­ tes que constituam a estrutura do prédio

b.

0 telhado ou terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclu­ sivo do titular da laje;

c.

as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar con­ dicionado, gás, comunicações e semelhantes que sirvam a todo 0 edifício

d.

em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo 0 edifício.

292

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 . Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

De mais a mais, visando evitar conflitos e com 0 escopo de diferenciar 0 direito real de laje dos dem ais institutos, aduz o novel art. 1.510-A que: i.

A verificação do direito real de laje não ocasionará nenhum tipo de fração ideal do terreno ou participação proporcional em áreas já edificadas. Direito real de

laje não se confunde com regime condominial, 0 qual tem fração exclusiva e ideal, além de contar com instituição, convenção e regimento interno; ii.

É possível aos Municípios e ao Distrito Federal que regulem as questões urba­ nísticas relativas ao assunto. Afinal, a normatização derredor da ocupação do solo urbano a eles compete. ►Atenção!

Na hipótese de reparos urgentes, de questões estruturais, é possível que qualquer interessado 0 faça, inclusive de próprio punho e inde­ pendentemente de autorização judicial, buscando posterior reparação dos responsáveis (CC, art. 1.510-C e CC, art. 249).

A legislação também passou a prever a extinção do direito real de laje para a hipótese de ruína da construção-base. Neste caso, haverá extinção do direito real de laje, salvo se 0 direito real de laje tiver sido instituído sobre 0 subsolo, ou se a construção-base não for reconstruída no prazo de cinco anos. Nas duas exceções supracitadas, conserva-se 0 direito real de laje (CC, art. 1.510-E). Acaso, porém, não se conserve 0 direito real de laje em virtude da ruína, 0 culpado poderá ser devidamente responsabilidade por perdas e danos. ► E na hora da prova?

(Fundep - Advogado - CAU - MG/2019) De acordo com a doutrina civilista e as disposições próprias do Código Civil quanto ao direito de laje, assinale a alternativa incorreta. a) Lajeário é aquele que titulariza 0 direito de laje, seja da laje em sobrelevação ou da laje em infrapartição, derivado tal direito de uma propriedade ou de uma laje. b) A laje pode ser constituída tanto de forma ascendente quanto des­ cendente em relação à construção original, não importando se trata-se de construção sobre 0 solo ou construção que já se fez em laje. c) A laje deve ser objeto de valoração própria, dada sua extensão, qualidade, localização etc., e não há previsão legal acerca de qual­ quer percentual fixo derivado do imóvel original. d) A lei civil veda que um terreno que contenha apenas uma estrutura de laje superior, não envelopada ou sem qualquer outra forma de acabamento, tenha constituído no espaço que lhe seja subjacente, um direito de laje. Gabarito: letra d. De acordo com 0 Enunciado 150 da II jornada de Direito Processual Civil, ocorrida em 2018, aplicam -se ao direito de laje os arts. 791, 804 e 889, III do CPC.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

293

Desta m aneira, se a execução judicial envolver ou apenas o proprietário (dono da construção-base) ou o titular do direito de laje, responderá pela dívida exclusiva­ mente o direito real do qual é titular o executado, recaindo a penhora ou outros atos de constrição apenas sobre o terreno, no primeiro caso, ou sobre a laje, no segundo, de tudo sendo cientificado da alienação, com pelo menos 5 dias de an­ tecedência, 0 titular do direito real. 4.

DAS SERVIDÕES

A servidão constitui "relação jurídica real por meio da qual 0 proprietário vincula 0 seu imóvel, dito serviente, a prestar certa utilidade a outro prédio, dito dominante, pertencente a dono distinto, obrigando-se, em consequência, a não praticar determinados atos dominais no prédio serviente ou a não im pedir que neste 0 proprietário do imóvel dominante pratique atos de extração da utilização que lhe foi concedida"16. A "Servidão predial é 0 desmembramento da propriedade imposto a certo imó­ vel (prédio serviente) em benefício de outro (prédio dominante), de tal forma que 0 titular do primeiro perde, em favor do titular do segundo, 0 uso, 0 gozo e a dis­ ponibilidade de uma parte dos seus direitos, 0 que pode consistir em ficar obrigado aquele a tolerar que este se utilize do imóvel serviente para determinado fim"17. As servidões prediais também podem ser definidas "como sendo os direitos reais de gozo sobre imóveis que, em virtude de lei ou vontade das partes, se impõem sobre 0 prédio serviente em benefício do dominante"18 ou ainda, como afirma a doutrina, "direito real sobre coisa imóvel, que impõe restrições em um prédio em proveito do outro, pertencentes a diferentes proprietários. 0 prédio que suporta a servidão, é 0 serviente. 0 outro, em favor do qual se proporciona utilidade e funcionalização da propriedade, é 0 dominante. 0 proprietário do pré­ dio serviente desdobrará parcela dos seus poderes dominiais em favor do prédio dominante. Assim, este terá 0 seu domínio acrescido, para beneficiar 0 proprietá­ rio atual ou os seus sucessores"19. Para que haja a servidão, mister haver um gravame a incidir de um prédio para 0 outro, pertencentes a distintos proprietários, evidentemente. ►Atenção!

Quando a norma se refere a prédios, isso não quer significar terrenos necessariamente edificados ou construídos. A servidão está intimamente relacionada à função social da propriedade, na medida em que objetiva, a o fin a l, t o r n a r u m p r é d io ú til p o r m e io d a c o n d u ta s o lid á r ia d o p r o p r ie ­

tário de um outro prédio. Logo, 0 terreno poderá ser, ou não, edificado.

16. 17. 18. 19.

TEIXEIRA, josé Guilherme Braga. Das Servidões. São Paulo: Lejus. 1997- P- 3iFRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 1999- P- 484DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26* ed. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 418. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. io=> ed. Salvador: JusPodivm. 2014. p. 687.

294

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Compreendemos que a "Servidão, assim, é ônus real, voluntariamente impos­ to a um prédio (o serviente) em favor de outro (o dominante), em virtude do qual 0 proprietário do primeiro perde o exercício de algum de seus direitos dominicais sobre o seu prédio, ou tolera que dele se utilize o proprietário do segundo, tor­ nando este mais útil, ou pelo menos mais agradável"20. ►Atenção!

Servidão e passagem forçada se confundem? A resposta é negativa. A passagem forçada é um instituto de direito de vizinhança, enquanto a servidão diz respeito a um direito de gozo e fruição. Aqui já se per­ cebe a primeira importante diferença; enquanto as servidões prediais decorrem de lei ou de convenção, constituindo em encargos que um prédio sofre em favor de outro, para 0 melhor aproveitamento ou utilização do prédio beneficiado. Seguindo nas diferenciações, a passagem forçada aplica-se na hipótese em que houver um imóvel encravado, entendido como tal aquele que não possuir acesso à rua, nascente ou porto (CC, art. 1.285). Não há aqui uma faculdade, mas sim uma imposição, ao passo que 0 imóvel encravado deverá ter garantido pelo outro 0 seu direito de acesso à via pública. A passagem será concedida de forma menos gravosa ao onerado e este receberá, por conta da concessão, contraprestação pecuniária. Infere-se na servidão instituto de ratio completamente di­ versa. Aqui não há encravamento. Há, sim, desejo de aumento da uti­ lidade do prédio dominante mediante uso da área serviente. Poderá ser onerosa ou gratuita e não imposta, mas sim fruto de um acordo entre prédios de diversos proprietários. A servidão não se confundirá com a passagem forçada, pois é fa­ cultativa de modo a não obrigar 0 pagamento de indenização. Já a passagem forçada é compulsória, assim como 0 é 0 pagamento da in­ denização. A servidão é um direito real de gozo ou fruição. A passagem forçada é instituto de direito de vizinhança.

► E na hora da prova? (M P E - SC - P r o m o t o r d e J u s tiç a - M PE - S C /2 0 19 ) D is p õ e o C ó d ig o C iv il

que a servidão proporciona utilidade para 0 prédio dominante, grava 0 prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se me­ diante declaração expressa dos proprietários, registrada no cartório de registro de imóveis, não podendo ser removida de um local para outro sem a anuência do proprietário do prédio dominante. Gabarito: Errado.

20. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 454.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

295

Nessa esteira de pensamento, percebe-se a servidão, modalidade específica de direito real na coisa alheia, quando um prédio serviente, que pertence a dono diverso, proporciona a um prédio dominante uma "utilidade", mediante declara­ ção expressa dos respectivos proprietários, usucapião, ou mesmo por meio de testamento (CC, art. 1.378). Em todos os casos, será imprescindível e necessário 0 registro no Cartório de Registro de Imóveis, sendo este ato 0 constitutivo do direito real e 0 capaz de ocasionar eficácia erga omnes. 0 prédio dominante será 0 beneficiário da servidão. 0 prédio serviente 0 que concederá a servidão. A servidão somente acontecerá, portanto, entre prédios e na quantidade mínima de dois (0 dominante e 0 serviente).

4.1. Classificação das Servidões Consoante 0 entendimento da doutrina majoritária - conforme lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.21, Flávio Tartuce22, Carlos Roberto Gonçalves23, dentre outros - a classificação das servidões se dará pelos seguintes critérios: natureza dos prédios envolvidos, condutas das partes, modo de exercí­

cio e forma de exteriorização. Pois bem. São os meandros destas classificações que se passará a enfrentar.

a) Quanto à natureza dos prédios Servidão rústica - é modalidade de direito real de gozo e fruição envol­ vendo edifícios localizados no campo, a exemplo de "servidão para tirar água, para condução de gado, de pastagem, para tirar areia ou pedras"24.

Servidão urbana - é modalidade de direito real de gozo e fruição envol­ vendo prédios situados nas cidades, a exemplo da "servidão para es­ coar água da chuva, para não im pedir a entrada de luz, para passagem de som, para usufruir de vista ou de janela"25.

b) Quanto ao comportamento das partes Servidões positivas - permitem a realização pelo prédio dominante de ações comissivas (concretas, efetivas), como se vê nos casos das servi­ dões de aqueduto e de passagem.

Servidões negativas - caracterizadas pela presença de uma obrigação de não fazer do prédio serviente em relação ao dominante. Hipóteses como 0 dever de não construir ou não abrir janelas; de não levantar obra a partir de determinado andar etc. Há, pois, restrição aos poderes de propriedade no que concerne ao uso e à fruição do bem.

21. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10» ed. Salvador: JusPodivm. 2014. p. 692 e seguintes. 22. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6» ed. São Paulo: Método, 2014. p. 35323. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5» ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 45724. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 35325. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 353-

296

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 . Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

► E na hora da prova?

(Vunesp - Procurador - Pref. de Valinhos - SP/2019) Sobre 0 exercício da servidão, assinale a alternativa correta. Gabarito: "Constituída para certo fim, a servidão não se pode ampliar a outro".

c)

Quanto à continuidade Servidões contínuas - existem sem a necessidade de ação humana. Acon­ tecem "e, em geral, ininterruptamente"26, de forma que mesmo em não havendo ato humano concreto, haverá a servidão. Um belo exemplo é a "servidão de passagem de som, de imagem, de energia, de luz"27.

Servidões descontínuas - exigem a conduta humana para, somente as­ sim, existirem. "Em suma, apartam -se pelo critério da intervenção repe­ tida e a intervalos (descontínuas) ou não intervenção do homem para continuação do exercício (contínuas)"; é o que afirmam a doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald jr.28. Carlos Roberto Gon­ çalves29 arremata: "Todas as servidões que dependem do fato do homem são, necessariamente, descontínuas". Podem ser ilustradas pela "servi­ dão de passagem ou trânsito de pessoas, servidão para tirar água de terreno alheio, servidão de pastagem"30.

d) Quanto à aparência Servidão aparente - são as ostensivas, visíveis. "Se revelam por obras ou sinais exteriores inequívocos e duradouros"31, identificados por qualquer pes­ soa. Exemplifica-se com o caso de uma servidão de passagem e de uma servi­ dão de aqueduto.

Servidão não aparente - em sentido contrário são as não ostensivas, invisí­ veis, que não se revelam por tais obras, por tais sinais exteriores, de forma que não se percebe a servidão a prima face. Exemplifica-se com as servidões que veiculam obrigações negativas de não construir. ►Atenção! Seria possível a constituição de uma servidão com um único prédio serviente e dois ou mais dominantes?

26. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 458. 27. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 354. 28. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: jusPodivm. 2014. p. 694. 29. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 460. 30. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 353. 31. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 674.

Cap. VI . Direitos Reais de Cozo e Fruição na Coisa Alheia

297

A resposta é positiva. A isso a doutrina denomina servidão conjunta. Tal poderá se dar de forma originária - desde o momento da confecção da servidão - ou de forma sucessiva, com uma espécie de servidão de segundo grau.

4.2. Forma de Constituição das Servidões As "servidões podem ser constituídas de diversos modos", sendo alguns des­ tes "previstos na lei (CC, arts. 1.378 e 1.379), enquanto outros resultaram da dou­ trina e da jurisprudência"32. É sabido que 0 atual Código Civil elegeu os negócios jurídicos como forma de realização da maior parte das relações privadas patrimoniais. Não seria diferente com a servidão, a qual poderá ser instituída por este instrumento. Além disso, a legislação cível permite a constituição das servidões pela usucapião, forma ori­ ginária de aquisição da propriedade. Nada obstante, como direito real que 0 é, a servidão exigirá inexoravelmente 0 registro de seu título, para constituir-se na melhor forma do art. 1.378 do CC. Quanto aos negócios jurídicos unilaterais, a servidão poderá ser constituída pela via do testamento (CC, art. 1.378), a ser levada a registro quando da expedi­ ção do formal de partilha33. ► E na hora da prova?

A banca VUNESP, em prova de concurso público realizado para 0 pro­ vimento do cargo de procurador do munícipio de São Paulo, ano 2014, considerou INCORRETA a seguinte alternativa: "Não se admite a consti­ tuição de servidão por testamento".

Também poderá ser feita por meio de contrato, elaborado por escritura públi­ ca para os casos do art. 108 do CC, devidamente registrado (CC, art. 1.378). Surgiría assim de um negócio jurídico bilateral: "esse ato jurídico inter vivos deve ser one­ roso porque 0 proprietário do prédio serviente é indenizado pela restrição que é imposta ao seu domínio"34. A sentença também é forma de instituição deste direito real (CPC, art. 596, II). Exemplifica-se com a ação de divisão (actio communi dividundo): "lnstituir-se-ão as servidões, que forem indispensáveis, em favor de uns quinhões sobre os outros, incluindo o respectivo valor no orçamento para que, não se tratando de

servidões naturais, seja compensado 0 condômino aquinhoado com 0 prédio serviente".

32. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 460. 33. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR.( Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm. 2014. p. 694. 34. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 431-

298

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

► Atenção! Houve importante mudança no caput do referido artigo, haja vista que 0 prazo para oitiva das partes passará a ser de 15 (quinze) dias (CPC/15).

E seria possível a usucapião de uma servidão? A resposta é positiva para servidões aparentes e contínuas; pois apenas estas serão capazes de ocasionarem posse e, consequentemente, usucapião. 0 art. 1.379 do CC permite a usucapião de servidões, seja na modalidade ordi­ nária ou extraordinária. Será ordinária se houver justo título e boa-fé e o exercício

incontestado e contínuo de uma servidão aparente se dê por ao menos dez anos. Ademais disto, se o possuidor não tiver nem o justo título e nem a boa-fé, o prazo da usucapião será de vinte anos, incidente aqui a m odalidade extraordinária. Percebe-se aqui regra assistemática com o tratamento geral da usucapião no Có­ digo Civil, 0 qual exige o prazo de quinze anos para a modalidade extraordinária (CC, art. 1.238). Tal fato gera desconforto doutrinário. A doutrina cristalizada no Enunciado 251 do Conselho da Justiça Federal sustenta que 0 prazo máximo para a usucapião extraordinária de servidões deve ser de 15 anos, pois assim se estaria conformando os prazos em face do sistema geral de usucapião previsto no Código Civil. Não con­ cordamos, haja vista que a letra da lei é induvidosa ao fixar 0 prazo em vinte anos e a doutrina não pode, a par das críticas formuladas, alterar a coercibilidade de uma norma, fonte primária do direito brasileiro. Não concordamos ainda por ser plena­ mente possível que uma norma especial (usucapião de servidões) traga um prazo diferenciado em relação a uma norma geral (usucapião extraordinária). Ora, em sendo passível de usucapião, esta servidão admite posse; afinal, para que haja usucapião é necessária posse mansa e pacífica com animus domini. Em admitindo posse, crava 0 Supremo Tribunal Federal, na Súmula 415, que a "Servi­ dão de trânsito não titulada, mas tomada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito a proteção possessória". No mesmo sentido 0 atual art. 1.213 do CC. Concordamos com a orientação sumular consagrada na Suprema Corte, afinal de contas, somente as servidões aparentes poderão ser identificadas, vistas, per­ cebidas, de modo a viabilizar posse e consequente usucapião.

4.3* Do Exercício das Servidões 0 tema do exercício das servidões está disciplinado entre os arts. 1.380 a 1.386 do CC. Com efeito, "0 exercício da servidão acarreta aos proprietários dos prédios dominante e serviente uma série de direitos e obrigações que, concomitantemente, limitam a utilização do direito de propriedade do dono do serviente e ampliam 0 uso e gozo do titular do domínio do prédio dominante"35.

35. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 435.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

299

0 dono de uma servidão poderá fazer todas as obras necessárias à conserva­ ção e uso dela. Se esta servidão pertencer a mais de um prédio (servidão conjun­ ta) serão tais despesas rateadas entre os respectivos donos (CC, art. 1.380). ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: TJ-RS Órgão: TJ-RS Prova: Oficial de Justiça PJ-H. Assinale a alternativa que apresenta a afirmação correta a respeito da discipli­ na da servidão no Código Civil. Resposta certa: 0 dono de uma servidão pode fazer todas as obras ne­ cessárias à sua conservação e uso, e, se a servidão pertencer a mais de um prédio, serão as despesas rateadas entre os respectivos donos.

Evidentemente que a autonomia privada admite que os interessados discipli­ nem a vedação a tais obras, ou mesmo imponha 0 dever de realizá-las a terceiros, afinal de contas, no direito privado 0 que não está proibido será permitido (CF, art. 5°, inciso II). Em síntese. 0 proprietário do imóvel dominante está autorizado a se imitir no prédio serviente quando houver necessidade de realização de obras. Na forma do art. 1.381 do CC, tais obras deverão ser realizadas pelo proprietário do prédio dominante, se 0 contrário não dispuser 0 título. Acaso a obrigação das obras seja imposta ao proprietário do prédio serviente, "este poderá exonerar-se, abandonando total ou parcialmente a propriedade do dono do dominante". A isto se denomina abandono liberatório. É 0 que prescreve 0 art. 1.382 do CC, cujo parágrafo único arremata: "Se 0 proprietário do prédio dominante se recusar a receber a propriedade do serviente, ou parte dela, caber-Ihe-á custear as obras". 0 art. 1.383 do CC diz 0 óbvio: 0 dono do prédio serviente não poderá em bara­ çar de modo algum 0 exercício legítimo da servidão. 0 desrespeito a este direito acarreta responsabilidade civil, seja no âmbito de obrigações de fazer, seja mesmo no tocante a indenizações pelo embaraço.

Seria possível a remoção da servidão (locomoção da servidão ) de um local a outro? Sim (CC, art. 1.384). Tal, todavia, haverá de ocorrer nos limites da função social e à custa do prédio serviente, sem dim inuir as vantagens do prédio dominante. Caso, porém, a remoção desemboque em incremento da utilidade do prédio do­

minante, este deverá arcar com os seus custos, sendo possível tal remoção desde que não gere prejuízos ao prédio serviente. Na linha da boa-fé objetiva, evitando-se o abuso do direito, haverá restrições ao exercício da servidão. De acordo com a norma, não será possível ao proprietário do prédio dominante agravar a situação do prédio serviente, isso porque a servidão deve ocorrer nos limites das suas necessidades (CC, art. 1.383). Justamente por isto não será possível alterar 0 destino da servidão, a não ser que as partes anuam a

300

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

este respeito. De fato, a autonomia privada e a intervenção mínima do Estado nas relações particulares evidenciam a possibilidade de os interessados disciplinarem o destino patrimonial de seus bens da forma que melhor os aprouver. No que tange às servidões de trânsito, a de maior ônus inclui a de menor e esta exclui a mais onerosa. Importa recordar que as servidões prediais são indivisíveis de forma que sub­ sistem na íntegra, mesmo para o caso de divisão dos imóveis, sendo multiplicadas sobre cada parte oriunda da divisão (CC, art. 1.386). Se 0 prédio serviente, portan­ to, houver sido fracionado em dois, sobre estes dois haverá servidões, salvo se a servidão disser respeito apenas a uma das frações de um dos prédios, quando só sobre este persistirá 0 gravame.

4.4. Da Extinção das Servidões "Sem embargo da perpetuidade, a servidão tem seus modos de extinção, que só produzirão efeitos, valendo contra terceiros, com 0 cancelamento do registro de seu título constitutivo, exceto se houver desapropriação, porque neste caso a extinção se dá pleno iure, mediante 0 próprio ato expropriatório (CC, art. 1.387)"36. As servidões, assim como a propriedade, são perpétuas "no sentido de que não fenecem pelo mero decurso do tempo, pois acompanham a sorte da propriedade"37. A par disso, os arts. 1.387 a 1.389 do CC disciplinam causas extintivas da servidão. A servidão pode ser extinta pela renúncia do proprietário do imóvel dominan­ te, a ser exercida por escrito (CC, art. 114) e em regra por escritura pública (CC, art. 108), quando esse exerce 0 direito potestativo de cancelamento desta38. A frustra­ ção do objeto, decorrente da extinção da utilidade, também justifica 0 término da servidão. Igualmente 0 resgate (distrato mediante pagamento de preço) é causa liberatória da servidão; assim como a reunião dos dois prédios sob a propriedade de uma só pessoa; ou ainda 0 desuso por mais de dez anos contínuos. 0 art. 1.387 do CC reza que salvo nos casos de desapropriação, as servidões, uma vez registradas, apenas poderão ser extintas por meio do cancelamento pe­ rante 0 registro público, com respeito a terceiros. Este dispositivo "encontra-se em sintonia com 0 sistema de constituição das servidões, que só podem ser estabe­ lecidas por meio de registro (CC, art. 1.378)"39. Conclui o insigne doutrinador que com 0 cancelamento do registro "deixa tal direito de ser oponível a terceiros"40. Exceção a isso ocorre na desapropriação, quando a servidão será extinta em face de terceiros independente do respectivo cancelamento do registro público.

36. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 438. 37. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador.- JusPodivm. 2014. p. 702. 38. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 364/365. 39. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 474. 40. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 474.

Cap. VI . Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

301

Ante a inafastabilidade da jurisdição é correto afirm ar que o dono do prédio serviente terá direito, pelos meios judiciais, de obter o cancelamento do registro da servidão, caso comprove: i. a renúncia de seu titular; ii. a cessão, para o prédio dominante, da utilidade ou da comodidade que determinou a constituição da ser­ vidão ou, finalmente, iii. quando o dono do prédio serviente resgatar (indenizar) a servidão. É o que afirma o art. 1.388 do CC. Quanto à renúncia, digno de nota que 0 proprietário do prédio dominante de­ verá manifestar este ato de forma expressa (CC, art. 114) e realizar 0 registro da abdicação no cartório de imóveis respectivo. Evidentemente que se a propriedade for em condomínio, a renúncia deverá ser feita por todos, ante a qualidade indi­ visível da servidão. Admite-se, contudo, a renúncia tácita condicionada ao ajuizamento de medida judicial para seu reconhecimento. A reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa, a supressão das respectivas obras por efeito de contrato ou de outro título expresso e 0 desuso, durante dez anos contínuos também são causas legais de término da servidão. ►Atenção!

Se 0 prédio dominante estiver hipotecado e a servidão se mencionar no título hipotecário, será também preciso obter 0 consentimento do credor para, somente assim, cancelar a servidão. Outrossim, segundo 0 Enunciado 252, do Conselho da Justiça Federal, a extinção do usufruto pelo não uso, prevista no art. 1.410, VIII, do CC não se sujeita ao prazo de dez anos previsto no art. 1.389, III, do CC, aplicável aos casos de servidão, operando-se imediatamente. ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: TRF - 2a Região Órgão: TRF - 2a REGIÃO Prova: Juiz Federal Sobre as servidões prediais, assinale a assertiva correta: Cabarito: "É inviável usucapir, na forma extraordinária, servidão não aparente e descontínua".

5.

DO USUFRUTO

Para a doutrina, "usufruto é 0 desmembramento da propriedade, de caráter temporário, em que 0 titular tem 0 direito de usar e perceber os frutos da coisa, sem afetar-lhe a substância"41. Constitui 0 usufruto "0 direito de usar uma coisa pertencente a outrem e de perceber-lhes os frutos, ressalvada sua substância (usus fructus est ius alienis rebus utendi fruendi, salva rerum substantia)"42. 0 usufruto pode ser conceituado "como direito real temporário concedido a uma pessoa para desfrutar um objeto alheio como se fosse próprio, retirando

41. FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. 5* ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 490. 42. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5* ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 478.

302

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

suas utilidades e frutos, contudo sem alterar-lhe a substância"43. 0 usufrutuário receberá diante disto os atributos de usar (utilizar) ou fruir (gozar) da coisa sendo esses "atributos diretos, que formam o domínio útil"44. Pois bem. 0 usufruto - cujo objeto pode ser tanto bens móveis como imóveis constitui direito real na coisa alheia a permitir ao usufrutuário (beneficiário do usufruto) a posse, o uso, a administração e a percepção dos frutos do respectivo bem (CC, arts. 1.390 e 1.394). ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: DPE-AP Prova: FCC - 2018 - DPE-AP - Defen­ sor Público Paulo doou 0 imóvel em que reside a Fábio, seu filho mais novo, reservando para si 0 direito de usufruto. No ato de doação, não foi colhido consentimen­ to de Rafael, 0 filho mais velho. Posteriormente, Fábio veio a se desenten­ der com a nova companheira de seu pai, Valquíria, ocasião em que a ofen­ deu. Todos os envolvidos são maiores e capazes. Diante desta situação. Gabarito: "embora Fábio seja 0 proprietário do imóvel, é Paulo quem pode alugar a casa e, caso 0 faça, não precisará repassar os valores ou prestar contas a Fábio". ►Atenção!

Em sendo um bem móvel, 0 usufruto poderá recair sobre títulos de crédito (CC, art. 1.395). Aqui 0 usufrutuário terá direito a perceber os frutos e a cobrar as respectivas dívidas, aplicando de imediato a im­ portância auferida em títulos de igual natureza, ou em títulos da dívida pública federal, com cláusula de atualização monetária segundo índi­ ces oficiais regularmente estabelecidos.

Atenta à fungibilidade do objeto, a doutrina45 subdivide 0 usufruto em próprio ou im próprio (quase usufruto), a saber:

Usufruto próprio: é aquele que recai sobre bem insubstituível (infungível e inconsumível). Logo, nesse caso haverá sem pre a obrigação do usufrutuário em restituir 0 mesmo bem, o que impõe, por consequência lógica, o dever ju­ rídico de conservar a coisa. 0 usufruto próprio "é 0 que tem por objeto coisas inconsumíveis e infungíveis, cujas substâncias são conservadas e restituídas ao nu-proprietário"46.

43. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 709. 44- TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 364/365. 45. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24a ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 438. No mesmo sentido Cristiano Chaves de Farias, Luciano Figueiredo, Marcos Ehrhardt Júnior e Wagner Inácio Freitas Dias, in Código Civil para Concursos. 2a ed. Salvador. JusPodivm, 2014. p. 893. 46. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 486.

Cap. VI • Direitos Reais de Cozo e Fruição na Coisa Alheia

303

Usufruto impróprio ou quase usufruto: é aquele que recai sobre um bem substituível (fungível, consumível). Por essa razão, o usufrutuário poderá con­ sum ir a coisa, obrigando-se apenas a restituir outra da mesma quantidade, espécie e qualidade. 0 quase usufruto, a bem da verdade, possui natureza de empréstimo, contrato de mútuo.

5.1.

Formas de Constituição

"0 usufruto pode constituir-se por determinação legal, ato de vontade e usucapião"47. Assim também entendemos. Nessa ótica, possível falar em três for­ mas de constituição do usufruto: a) Convencional ou Voluntário (liga-se à autono­ mia privada); b) Legal ou Cogente (ex.: CF, art. 231, § 2°); e c) Judicial (CPC, arts. 867 e seguintes). Em todas as m odalidades a Lei de Registros Públicos (art. 167, l) e 0 CC/02 (art. 1.391) exige 0 registro público caso seja usufruto sobre imóveis que não re­ sulte de usucapião nem de título legal. Tal registro tem natureza constitutiva do direito. Quanto aos bens móveis, a mera tradição já é bastante para constituição do usufruto. Outrossim, ainda em todas as m odalidades, incidirá a teoria da gravitação jurídica - segundo a qual 0 acessório seguirá a sorte do principal. Logo, é natural reconhecer que 0 usufruto se estenderá aos acessórios da coisa e seus acrescidos. Dito isto, avança nas modalidades de constituição. 0 usufruto poderá ser constituído por meio convencional ou voluntário; vale dizer, em decorrência da autonomia privada. Exemplifica-se com 0 testamento ou um contrato devidamente registrado. Infere-se modalidade de usufruto que efeti­ vamente surge de um negócio jurídico, demandando 0 registro público na hipótese de imóveis48. No mesmo sentido, 0 art. 1.391 do CC, segundo 0 qual 0 usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis. 0

usufruto legal, de seu turno, é 0 cogente, imposto pela lei. Aqui não há ma­

nifestação de vontade constitutiva, mas sim norma impositiva. Um belo exemplo do usufruto constituído por determinação legal é o dos geni­ tores sobre 0 patrimônio de seus filhos menores (CC, art. 1.689, 0 - Esta modalidade de usufruto não teria natureza propriamente de direito real, mas constituiría tão somente uma hipótese de compensação normativa em benefício dos genitores, em função dos "encargos de administração do patrimônio de prole"49. Esta parece ser a opinião m ajoritária da doutrina: "este usufruto é, apenas, uma compensação dos encargos e trabalho que os pais têm com 0 sustento e educação dos filhos.

47. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5* ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 482. 48. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5* ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 484. 49. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10* ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 717-

304

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

bem como na administração dos respectivos bens"50. 0 usufruto legal decorrente da autoridade parental não exige registro público para se constituir, muito menos a prestação de contas. Existem outras hipóteses de usufruto legal, a saber: "do cônjuge sobre os bens do outro, quando lhe competir tal direito (CC, art. 1.652, I)" e 0 usufruto dos silvícolas, "conforme estatui a Constituição de 1988, no art. 231, § 2°, e no art. 67 das Disposições Transitórias"51. Com efeito, na forma do art. 20, XI, da Constituição Federal, 0 usufruto indígena existirá sobre 0 patrimônio da União nos quais índios estejam a viver. Também haverá usufruto em benefícios dos silvícolas sobre as riquezas do solo, rios e lagos (CF, art. 231, § 2°). Trata-se de uma interessante hipótese de direito real de gozo e fruição sobre bem público federal. Trata-se de um "heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil", no entendimento do Supremo Tribunal Federal, no caso Raposa do Sol52. 0 usufruto judicial (CPC, arts. 867/869) surge para a situação jurídica na qual 0 credor realiza 0 pagamento de um débito decorrente de condenação processual por meio do usufruto de seu imóvel ou de sua empresa. Nesse caso, 0 usufruto surge no contexto de uma fase de execução quando 0 Juiz da Causa impõe 0 usufruto durante um específico interregno visando dar efetividade ao comando decisório e realizar a quitação do devido, por força do título judicial condenatório. Na prática processual chama-se isso de penhora sobre a renda ou penhora sobre

o faturamento de uma empresa. Outra situação semelhante a esta é prevista na Lei Federal n° 11.110/0 5 (Lei de Recuperação Judicial), quando 0 usufruto serve para realizar 0 crédito e, ao mes­ mo tempo, manter viva a pessoa jurídica (art. 50, XIII). Uma interessante modalidade de usufruto judicial é 0 usufruto de alimentos (art. 21 da Lei do Divórcio), 0 qual "constitui modo alternativo de pagamento do débito alimentar, quando as fontes normais de recursos do alimentante não forem de fácil comprovação, fato corriqueiro entre em presários e profissionais liberais"53. Na oportunidade, recorde-se que 0 art. 825, IV, do CPC admite 0 usufruto como hipótese de expropriação judicial, notadamente na "apropriação de frutos e ren­ dimentos de empresa ou de estabelecimentos e de outros bens". Este usufruto poderá ser54: a)

50. 51. 52. 53.

particular, para 0 caso de envolver apenas um bem específico;

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 482. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 451. Supremo Tribunal Federal. Petição 3388/RR. Caso Raposa do Sol. Ministro Relator Carlos Britto. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm. 2014. p. 694. 54. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm. 2014. p. 721.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

305

b)

universal, em sendo seu objeto um quinhão, uma universalidade indivisível;

c)

pleno, quando envolver absolutamente todos os frutos e utilidades e

d)

restrito, quando a fruição for restrita. ►Como se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

No REsp 444.928/DF 0 Superior Tribunal de Justiça assim decidiu: "A pes­ soa que alega ter direito a usufruto que não consta do Registro Imobiliário não tem legitimidade para promover a anulação dos atos, atingindo ter­ ceiros adquirentes". Já em outro aresto, apontou 0 Tribunal da Cidadania que: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE E INTERESSE PROCESSUAL DO USUFRUTUÁRIO PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO DE CARÁTER PETITÓRIO. 0 usufrutuário possui legitimidade e interesse para propor ação

reivindicatória - de caráter petitório - com 0 objetivo de fazer prevalecer 0 seu direito de usufruto sobre 0 bem, seja contra 0 nu-proprietário, seja contra terceiros. REsp 1.202.843-PR, Rei. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, julgado em 21/10/2014.

►Atenção!

0 usufrutuário terá 0 domínio útil (poderes de usar e gozar) e 0 pro­ prietário, por conta do surgimento do usufruto, passará a ser denomi­ nado de nu-proprietário, pois terá este apenas os poderes de reivin­ dicar e dispor da coisa. Remetendo-se à ideia de desdobramento da posse (CC, art. 1.197), estu­ dada no capítulo específico sobre 0 tema, 0 usufrutuário passará a ter a posse direta do bem, pois estará em contato com a coisa; enquanto que 0 nu-proprietário deterá a posse indireta, ao passo que mesmo não estando em contato, terá poder de supervisão e reivindicação.

Este usufruto legal, convencional, ou judicial, como visto anteriormente, pode se dar sobre 0 bem principal e seus acessórios (usufruto pleno ou total), mas também poderá ocorrer apenas sobre 0 objeto principal, sem os acessórios e acrescidos (usufruto parcial ou restrito). De acordo com a legislação em vigor, 0 usufruto pode ser por tempo deter­ minado (usufruto temporário ou a termo), ou ainda por toda a vida (usufruto

vitalício). 5.2. Características do Usufruto 0 usufruto possui importantes características55:

55. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 480.

306

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

a)

Constitui Direito Real na Coisa Alheia - o usufruto não é servidão pessoal. Seu objeto é bem móvel ou imóvel. Seu conteúdo é o gozo e a fruição do bem. Por ser direito real, será constituído a partir do registro público (em regra) e, assim, tornar-se-á direito absoluto (oponível erga omnes).

b) Vigora por tempo determinado - o usufruto não é perpétuo. Extingue-se com o óbito do usufrutuário. Para as pessoas jurídicas há prazo máximo obrigatório de 30 (trinta) anos, após o qual o usufruto também se extinguirá. c)

É insuscetível de alienação e impenhorável - A teor do art. 1.383 do CC, 0 usu­ fruto não pode ser vendido ou doado a terceiros, ante 0 seu caráter perso­ nalíssimo no tocante ao usufrutuário. Esta inalienabilidade faz concluir que 0 legislador não desejou que 0 usufruto se transmitisse, seja por ato inter vivos, seja por ato causa mortis. A lei civil autoriza apenas a cessão do exercício deste usufruto, ou de arrendamento (CC, art. 1.399). ►Atenção!

Malgrado a impossibilidade de alienação e penhora do usufruto, de­ fende-se a possibilidade de constranger 0 seu exercício (CPC, art. 868): "Observa-se que 0 usufrutuário não perde 0 direito de usufruto, 0 que ocorrería se este pudesse ser penhorado e arrematado por terceiro. Perde apenas, temporariamente, 0 exercício desse direito, em razão da penhora"(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 482). 0 art. 868 do CPC tem a seguinte redação: "Ordenada a penhora de fru­ tos e rendimentos, 0 juiz nomeará administrador-depositário, que será investido de todos os poderes que concernem à administração do bem e à fruição de seus frutos e utilidades, perdendo 0 executado 0 direito de gozo do bem, até que 0 exequente seja pago do principal, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios".

5.3. Direitos e Deveres do Usufrutuário 0 art. 1.394 do CC reconhece importantes direitos ao usufrutuário.

0 usufrutuário terá direito à posse da coisa pois, sem esta, não há possibilida­ de efetiva de uso, gozo e fruição do bem objeto do usufruto. Terá ainda direito de

fruir as utilidades da coisa; leia-se: perceber os frutos desde que isso não acarre­ te a alteração objetiva do bem principal. ►Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Verificando os direitos do usufrutuário, entende 0 Superior Tribunal de Justiça que ele possui a prerrogativa de ajuizar ação de caráter petitório com 0 objetivo de fazer prevalecer 0 seu direito de usufruto sobre 0 bem. Cita-se: •

Legitimidade e interesse processual do usufrutuário para a propositura de ação de caráter petitório.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

307

0 usufrutuário possui legitimidade e interesse para propor ação reivindicatória - de caráter petitório - com o objetivo de fazer prevalecer o seu direito de usufruto sobre o bem, seja contra o nu-proprietário, seja contra terceiros. REsp 1.202.843-PR, Rei. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 21.10.14. 3a T. (Info 550).

Outro direito típico do usufruto é 0 de administração do bem, nos limites da função social e da boa-fé objetiva e desde que não altere a substância da coisa, nem desvirtue a sua finalidade. Poderá ainda 0 usufrutuário ceder 0 exercício do usufruto. A legislação vigente proíbe que 0 usufruto seja objeto de alienação (doação ou compra e venda), razão pela qual é possível sustentar que 0 usufruto é incomuni­ cável, seja por ato inter vivos, seja por ato causa mortis. 0 art. 1.393 do CC permite, contudo, a cessão do exercício deste usufruto, de forma gratuita ou onerosa, como visto anteriormente. ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FGV Órgão: TJ-AL Prova: FGV - 2018 - TJ-AL - Analista Judiciário - Área Judiciária A Associação dos Amantes do Turismo (AAT) recebeu, a título de usufruto instituído pelo associado Jorge, um imóvel de sua propriedade. As par­ tes convencionaram, no título de instituição, que 0 usufruto seria pelo prazo de vinte anos. Decorridos dez anos da instituição, os associados, sem a participação de Jorge, que morrera há dois anos, deliberaram, em assembléia, ceder gratuitamente 0 usufruto do imóvel à Associação de Agentes de Viagem (AAV), em reconhecimento a serviços recebidos pela AAT. Gabarito: "válida e vigerá até 0 término do prazo previsto no ato de instituição do usufruto por Jorge".

Adverte a doutrina56, com amparo no Superior Tribunal de Justiça57, que a inalienabilidade do usufruto leva a sua impenhorabilidade. Apesar disso, esta mesma jurisprudência admite a penhora dos frutos decorrentes do usufruto STJ58. ►Como o Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado acerca do tema? O tribunal a q u o reconheceu a possibilidade da penhora do direito ao

exercício de usufruto vitalício da ora recorrente. Porém, 0 usufruto é um direito real transitório que concede a seu titular 0 gozo de bem

56. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6* ed. São Paulo: Método, 2014. p. 376. 57. AgRg no Ag 851.994/PR.

58. REsp 925.687/DF, REsp 242.031/SP e REsp 883.085/SP.

308

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

pertencente a terceiro durante certo tempo, sob certa condição ou vitaliciamente. 0 nu-proprietário do imóvel, por sua vez, exerce 0 domínio limitado à substância da coisa. Na redação do art. 717 do CC/1916, vigente à época dos fatos, deduz-se que 0 direito de usufru­ to é inalienável, salvo quanto ao proprietário da coisa. Seu exercício, contudo, pode ser cedido a título oneroso ou gratuito. Resulta daí a jurisprudência admitir que os frutos decorrentes dessa cessão po­ dem ser penhorados, desde que tenham expressão econômica ime­ diata. No caso, 0 imóvel é ocupado pela própria devedora, que nele reside, não produzindo qualquer fruto que possa ser penhorado. Assim, não é cabível a penhora do exercício do direito ao usufruto do imóvel ocupado pelo recorrente, por ausência de amparo legal. Logo, a Turma deu provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 925.687-DF, DJ 17/9/2007; REsp 242.031-SP, Dj 29/3/2004, e AgRg no Ag 851.994-PR, DJ W10/2007. REsp 883.085-SP, Rei. Min. SIDNEI BENETI, jul­ gado em 19/8/2010.

►Atenção!

A jurisprudência dos tribunais superiores admite a penhora da nua-propriedade, que não atingirá, entretanto, 0 usufruto (STj, REsp 925.687/DF). Mas, se esse único imóvel dado em usufruto for bem de família, obvia­ mente que não será possível sequer e penhora da nua-propriedade (STJ, REsp 950.663/SC).

0 usufrutuário está autorizado a usufruir, pessoalmente, ou mesmo por meio de arrendamento do prédio. Contudo, é vedado ao usufrutuário ou arrendatário deste a mudança da destinação econômica da coisa, salvo autorização expressa do proprietário (CC, art. 1.399), nos exatos limites da eticidade, boa-fé objetiva, confiança e função social. Os deveres jurídicos do usufrutuário estão expressamente previstos no Código Civil. Intuitivamente, à luz da eticidade e da boa-fé objetiva, pode-se afirm ar que 0 usufrutuário deve conservar a coisa como se sua fosse, segundo um padrão médio de cuidado e conduta. Recorde-se do dever jurídico deste usufrutuário em inventariar os bens rece­ bidos antes de se im itir na posse direta da coisa, se assim exigir 0 proprietário.59 Se é certo afirm ar que o usufrutuário terá direito "a posse direta e justa da coisa frugífera, cabendo ao nu-proprietário a posse indireta (CC, art. 1.947)"60, é razoá­ vel adm itir a inventariança de tais bens antes da transmissão desta posse, acaso assim deseje o proprietário.

59. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 730. 60. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 490.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

309

Deve o usufrutuário inventariar às próprias custas os bens que irá receber, de­ terminando o estado em que se acham. De igual sorte, o usufrutuário é obrigado a dar caução se o proprietário exigir. A falta da inventariança gera a presunção relativa - por força do art. 113 do CC, segundo 0 qual os negócios jurídicos se in­ terpretam de acordo com a boa-fé e os costumes do lugar - de que 0 usufrutuário receberá os bens em bom estado de conservação. Em síntese: no caso de não inventariar 0 aludido bem, surgirá uma presunção jurídica "relativa que 0 usufru­ tuário recebeu os bens em bom estado de conservação"61. E mais: 0 usufrutuário também terá 0 dever jurídico de restituir, ao término do exercício deste direito real de gozo e fruição, 0 bem ao nu-proprietário. Du­ rante 0 usufruto terá 0 usufrutuário 0 dever jurídico de conservar a coisa como se sua fosse. Excepciona-se aqui a figura do quase-usufruto, já estudada, quando 0 usufrutuário irá consumir 0 bem fungível e devolver outro do mesmo gênero, quantidade e qualidade. 0 d ever de d ar caução real ou fidejussória somente existirá se 0 p ro p rie ­ tário assim exigir e a finalid ad e re sid ir na garantia acessória em benefício do nu-proprietário para 0 caso de prejuízos que advenham do exercício deste usufruto. ►Atenção!

0 usufrutuário não é obrigado a prestar caução real ou fidejussória quando a hipótese for de doação na qual 0 doador se reserve ao usu­ fruto da coisa doada. Afinal de contas, seria nítida a incoerência de se exigir uma garantia em face do donatário, quem recebe 0 bem em fruto de conduta benéfica do doador.

Existe consequência jurídica contra 0 donatário que não quiser, ou não puder dar a caução suficientemente: qual seja, a perda do direito de adm inistrar 0 usu­ fruto. Aqui permanecerá 0 bem com 0 proprietário, quem terá, agora, 0 dever jurídico apenas de entregar ao usufrutuário 0 rendimento obtido, "deduzidas as despesas de administração, entre as quais se incluirá a quantia fixada pelo juiz como remuneração do administrador" (CC, art. 1.401). Ao usufrutuário competirá ainda pagar as despesas ordinárias de conservação dos bens no estado em que recebeu, as prestações e os tributos (CTN, art. 29) devidos pela posse ou rendimentos da coisa usufruída. A norma é coerente, pois a posse direta do bem impõe a quem disso se beneficiar 0 dever ético de não apenas ficar com este bônus, mas também arcar com 0 ônus da conservação. Eis a lógica do sistema, como entendeu 0 Superior Tribunal de Justiça62.

61. Neste sentido Cristiano Chaves de Farias, Luciano Figueiredo, Marcos Ehrhardt Júnior e Wagner Inácio Freitas Dias, in Código Civil para Concursos. 2a ed. Salvador. JusPodivm, 2014. p. 894.

62. .REsp 203.098/SP.

310

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

► Atenção! Quem usa gasta. Em razão disto, 0 usufrutuário jamais poderia ser obrigado a pagar as deteriorações resultantes do exercício regular do usufruto. Seria incorreto impor a alguém 0 dever de indenizar pelo exercício regular de um direito. Também é importante lembrar que as despesas extraordinárias e as que não forem de custo módico devem ser arcadas pelo proprietário. Consideram-se extraordinárias as despesas superiores a dois terços do líquido rendimento obtido com a coisa em um ano. Nesse caso, se 0 proprietário não arcar com tais despesas, poderá 0 usufrutuário realizá-las, cobrando daquele a importância despendida. Será dever do usufrutuário, adem ais disto, cientificar o proprietário de qual­ quer lesão eventualmente produzida contra a posse da coisa ou os direitos deste. Aliás, não seria necessário o art. 1.406 do CC prever esta obrigação, pois a própria ideia de boa-fé objetiva impõe, como regra de conduta, 0 dever jurídico de infor­ mação, sob pena de ilicitude (CC, art. 187). Eis uma bela hipótese de aplicação da teoria dos deveres anexos da boa-fé objetiva ao usufruto. 0 bem da vida objeto do usufruto poderá estar segurado. Se estiver, incumbirá ao usufrutuário pagar - durante 0 usufruto - as contribuições concernentes ao se­ guro. Outra situação possível de ocorrer é a do próprio usufrutuário firm ar inédito contrato de seguro. Nesse caso, 0 CC reconhece ao proprietário 0 direito subjetivo resultante deste contrato em face da seguradora.

A destruição do prédio sujeito ao usufruto, sem culpa do proprietário, acarreta a extinção imediata do usufruto. Assim, 0 proprietário não é obrigado a reconstruir 0 prédio, muito menos a restabelecer 0 usufruto. 0 art. 1.408 do CC estabelece que se 0 proprietário optar por reconstruir 0 imóvel às próprias custas, ainda assim não estará obrigado a restabelecer 0 usufruto. Porém, havendo seguro e sendo utilizado 0 próprio dinheiro decorrente da indenização deste seguro na reconstru­ ção, será restabelecido 0 usufruto. 5.4.

Usufruto de Título de Crédito

Nota-se que 0 Código Civil disciplina hipótese ím par de usufruto, qual seja aquele sobre títulos de crédito. Nesse caso, " 0 usufruto recai sobre 0 objeto da prestação devida pelo devedor ao credor, somente se concretizando depois de realizado 0 respectivo pagamento"63. Reza 0 art. 1.395 do CC que quando 0 usufruto recai sobre títulos de crédito, 0 usufrutuário tem direito a perceber os frutos e a cobrar as respectivas dívidas. Cobradas as dívidas, 0 usufrutuário aplicará, de imediato, a importância em títulos da mesma natureza, ou em títulos da dívida pública federal, com cláusula de atua­ lização monetária, segundo índices oficiais regularmente estabelecidos.

63. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 493.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

5.5.

311

Usufruto sobre Rebanho

Outra peculiar hipótese de usufruto é a referida pelo art. 1.397 do CC: as crias de anim ais pertencem ao usufrutuário, deduzidas quantas bastem para inteirar as cabeças de gado existentes ao começar 0 usufruto. De fato, estas crias destes anim ais possuem natureza jurídica de frutos do bem semovente. Por óbvio, os frutos naturalmente colhidos são do usufrutuário. A lógica jurídica impõe apenas que 0 usufrutuário restitua, quando do término do usufruto, 0 correto número de anim ais semoventes; leia-se: os bens principais. Infere-se, por conseguinte, que se foram dadas em usufruto quinze cabeças de gado, a devolução será de quinze cabeças de gado, pouco importando se durante 0 usufruto tais cabeças de gado geraram vinte crias. As crias do período, como fruto que são, serão exclusivamente do usufrutuário. 0 usufruto de rebanho permitirá também a utilização pelo usufrutuário de tais semoventes para "valer-se do trabalho dos animais e de desfrutar de tudo por eles produzido, como 0 leite e a lã"64. Afinal, são acessórios e frutos que seguem a sorte do principal, dado em usufruto. ►Atenção! 0 art. 1.397 do CC também deverá ser aplicado, por meio de técnica de

interpretação extensiva, aos casos envolvendo as chamadas árvores frutíferas. Não se ignora 0 § 2° do art. 1.392 do CC, segundo 0 qual se 0 usufruto recair sobre florestas ou recursos minerais a que se refere 0 art. 1.230 do mesmo CC, deverão tanto 0 dono, quanto 0 usufrutuário, prefixar a extensão do gozo e a maneira de exploração.

3.6. A Extinção do Usufruto As hipóteses de extinção do usufruto se encontram, ilustrativamente, previstas no art. 1.410 do CC. Importa notar, inicialmente, que existem usufrutos constituídos via registro público e outros que, como já se viu, decorrem diretamente de um fenômeno fático previsto normativamente, a exemplo do usufruto hereditário (CC, art. 1.831). Para os casos em que 0 usufruto está registrado, deve-se promover 0 conse­ quente cancelamento perante 0 cartório de registro de imóveis. Esse procedimen­ to pode acontecer de forma administrativa, com 0 comparecimento do interessa­ do perante 0 cartório, ou mesmo de modo judicial. Dito isso, passa-se a análise do rol ilustrativo das hipóteses extintivas do usufruto,

a)

A renúncia e a morte

A primeira causa extintiva do usufruto legalmente prevista envolve a situação jurídica da renúncia. No mesmo inciso, 0 legislador também prevê a morte do usu­ frutuário como segunda hipótese.

64. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 494-

312

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Sobre a renúncia, deve ser interpretada restritivamente (CC, art. 114). Ade­ mais, 0 cancelamento do usufruto, no caso de bens imóveis, exigirá procedimento cartorário de abdicação formal. Esta renúncia, na verdade, tem natureza jurídica de resilição unilateral ou de­ núncia vazia (CC, art. 473). Outrossim, jam ais poderá ocorrer in favorem de outrem. A explicação é simples: em sendo 0 usufruto personalíssimo, porquanto inalie­ nável, não é possível a sua transferência. Se 0 bem objeto de usufruto for um imóvel com valor superior a trinta vezes 0 maior salário mínimo vigente no país, a renúncia necessariamente deverá ser por escritura pública, sob pena de nulidade absoluta (CC, arts. 108 e 166)65. Um belo exemplo de renúncia no usufruto é 0 do pai que doa um bem imóvel ao filho, com reserva de usufruto, e, posteriormente, à vista de sérios problemas econômicos, necessita vender 0 imóvel, de forma que a alienação é feita com a renúncia ao usufruto66. Assim, a morte do usufrutuário extingue a personalidade (CC, art. 6o) e os di­ reitos personalíssimos, como 0 usufruto, 0 qual é intransmissível. Eis 0 alcance do inciso I do art. 1.410 e 0 art. 1.4 11 do CC. E se 0 usufruto tiver sido constituído em favor de duas ou mais pessoas? Constituído 0 usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, 0 quinhão desses couber ao sobrevivente. ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: VUNESP Órgão: TJ-SP Prova: VUNESP - 2018 - TJ-SP - Titu­ lar de Serviços de Notas e de Registros - Provimento Com relação ao usufruto, é correto afirmar: Gabarito: "no usufruto simultâneo ou conjuntivo, 0 direito de acrescer entre os usufrutuários, ocorrendo 0 falecimento de um deles, depende de estipulação expressa". Entretanto, a morte do nu-proprietário não extinguirá 0 usufruto, pois seu caráter personalíssimo não é dirigido ao dono do bem. Em outras palavras: à luz da saisine (CC, art. 1.784), a morte do proprietário gera a transmissão desta propriedade aos herdeiros, que a receberão com as limitações decorrentes deste usufruto. ►E na hora da prova?

Ano: 2015 Banca: CESPE Órgão: DPE-PE Prova: Defensor Público A respeito da responsabilidade civil, da posse, do usufruto, do con­ trato de locação e das práticas comerciais no âmbito do direito do consumidor, julgue 0 item que se segue.

65. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 386. 66. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 503.

Cap. VI . Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

313

Ainda que o usufruto tenha sido estabelecido com prazo determinado, o falecimento do usufrutuário não gera direito à sucessão hereditária legítima desse usufruto. Gabarito: Correto

b) Advento do termo final 0 termo final também impõe o término do usufruto que, como se sabe, pode se dar por tempo determinado (usufruto temporário). Justamente por isto, se o usu­ frutuário for uma pessoa jurídica, o prazo máximo do usufruto será de trinta anos. Em resumo: será possível o usufruto com dies ad quem, vale dizer, com fixação do termo final. De igual sorte, as pessoas jurídicas podem se beneficiar do usufru­ to pelo período máximo de trinta anos, sendo este o termo final inevitável a elas.

c)

Cessação da causa que o originou

Desaparecendo a causa determinante que justificou a existência do usufruto, deverá ser extinto o próprio usufruto, sob pena de ensejar uma desnecessária restrição ao direito de propriedade e à sua própria função social. Trata-se de típica hipótese de demanda judicial na qual o nu-proprietário, au­ tor da medida, buscará sentença reconhecendo a situação fática. Mas é evidente que não serão todos os casos em que a medida judicial haverá de ser adotada. No caso do usufruto decorrente da autoridade parental, por exemplo, quando os genitores se tornam usufrutuários de seus filhos menores não emancipados, o advento da m aioridade é bastante para a cessação do instituto, independente de medida processual.

d) Culpa do usufrutuário Na forma do inciso VII do art. 1.410 do CC se 0 usufrutuário depreciar, ou mesmo destruir 0 objeto do usufruto, incorrendo em conduta culposa - seja comissiva ou omissiva - sofrerá ação judicial por meio da qual uma sentença condenatória have­ rá de reconhecer 0 cancelamento do usufruto, sem embargos do nu-proprietário requerer reparação civil, comprovando os efetivos prejuízos experimentados. ►Atenção!

É possível que 0 perecimento do objeto ocorra sem culpa das partes. Ainda assim será o caso de extinção do usufruto, pois nada mais have­ rá para usar, fruir ou gozar. A desapropriação pelo Poder Público de um bem submetido ao usu­ fruto deve ensejar tratamento semelhante, com 0 acréscimo de que 0 usufrutuário neste caso também deverá auferir a justa indenização, proporcional aos poderes que possui e período do usufruto, sob pena de ferir os princípios da legalidade, proporcionalidade, moralidade, do enriquecimento sem causa e da isonomia.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

314

e)

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Consolidação

Se a qualidade de usufrutuário e nu-proprietário foram consolidadas em uma mesma pessoa - 0 que em direito obrigacional seria denominado confusão - ha­ verá extinção do direito real de gozo e fruição, em função da consolidação (CC, art. 1.410, VI). f)

Não uso

A teor do Enunciado 252 do Conselho da Justiça Federal "A extinção do usufruto pelo não uso, de que trata 0 art. 1410, VIII, independe do prazo previsto no art. 1389, inciso III, operando-se imediatamente. Tem-se por desatendida, nesse caso, a função social do instituto". Sem dúvida, 0 desuso simboliza nítida agressão ao instituto da função social da propriedade, previstos na CF, art. 5°, XXIII, e no § 1° do art. 1.228 do CC. Há quem sustente, inclusive, ser fenômeno idêntico à renúncia tácita67. A reflexão é interessante, principalmente porque em regra a renúncia não se deve presum ir (CC, art. 114), nada obstante a legislação cível apresentar situações jurídicas de exceção nas quais a renúncia tácita aparece (CC, arts. 191 e 330). A grande questão é saber quando haverá a dita renúncia tácita. Qual 0 período necessário para tanto? Diante da omissão legislativa de prazo exato, há de se analisar 0 caso concreto, com razoabilidade e proporcionalidade. ►E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: MPE-RS Órgão: MPE-RS Prova: Assessor - Área de Direito Assinale a alternativa que apresenta uma afirmação INCORRETA sobre 0 usufruto. a) 0 usufruto pode recair em um patrimônio inteiro ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e as utilidades. b) É possível a transferência do usufruto por alienação e 0 seu exercí­ cio poderá ser objeto de cessão gratuita ou onerosa. c) Os frutos civis vencidos na data em que cessa 0 usufruto pertencem ao usufrutuário. d) 0 usufruto extingue-se, dentre outras hipóteses, pelo não uso, ou não fruição da coisa em que 0 usufruto recai. e) Incumbem ao usufrutuário as despesas ordinárias de conservação do bem no estado em que 0 recebeu além das prestações e os tributos devidos pela posse ou rendimento da coisa usufruída, e, ao dono, as reparações extraordinárias e as que não forem de custo módico. Gabarito: letra b.

67. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 741.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

6.

315

DO USO

Outro importante direito real na coisa alheia é o uso, o qual autoriza ao titular deste, denominado usuário, a perceber os frutos da coisa "quanto o exigirem as necessidades suas e de sua fam ília" (CC, art. 1.412). Tal recebimento d ar-se-á nos limites das necessidades pessoais destes e de acordo com a condição social e 0 lugar onde viverem tais pessoas, atento à função social. Esclarece a doutrina que " 0 uso é considerado um usufruto restrito, porque ostenta as mesmas características de direito real, temporário e resultante do des­ membramento da propriedade, distinguindo-se, entretanto, pelo fato de 0 usufrutuário auferir 0 uso e a fruição da coisa, enquanto ao usuário não é concedida senão a utilização restrita aos limites das necessidades suas e de sua família"68. Este direito real poderá ser constituído a título oneroso ou gratuito, e recair tanto sobre bem móvel, quanto sobre bem imóvel. Com efeito, "A distinção entre usufruto e direito real de uso repousa na im­ possibilidade de 0 titular deste gozar do objeto de seu direito. 0 usuário pode usar 0 bem móvel ou imóvel (desde que não consumíveis ou fungíveis), sendo-lhe, todavia, interditada a sua fruição"69. 0 direito real de uso será instituído por meio da autonomia privada: seja me­ diante negócios jurídicos inter vivos, ou mesmo pela via do testamento (causa mortis). 0 uso também se difere do usufruto por ser indivisível e incessível: "Ao con­ trário do usufruto, é indivisível, não podendo ser constituído por partes em uma mesma coisa, bem como incessível. Nem seu exercício pode ceder-se"70.

Ilustra a doutrina uma hipótese bem comum do instituto que se dá no "uso de jazigos em cemitérios"71, trazendo a lembrança do REsp 1.090.044/SP, no qual 0 Superior Tribunal de Justiça entendeu pela aplicação do Código de Defesa do Con­ sumidor aos contratos de "cessão de uso de jazigo". Segundo 0 art. 1.412 do CC, 0 usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto exigirem as necessidades suas e de sua família. Portanto, trata-se de direi­ to real que se restringe ao uso da coisa; e não ao uso e fruição. A doutrina destaca que "0 vocábulo família é empregado em acepção mais ampla do que a adotada no direito de família, pois abrange até domésticos a seu serviço"72. Malgrado as distinções, fato que 0 usufruto e 0 uso se aproximam. Assim, as normas sobre 0 usufruto devem ser aplicadas supletivamente ao uso, naquilo que não for incompatível com o instituto. Nesse diapasão, não se aplicam ao uso as

figuras do usufruto legal, muito menos do usufruto judicial, ante a incom patibilida­

68. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 506. 69. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. P- 742. 70. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 507. 71. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 392. 72. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 509.

316

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

de existente. Não há, pois, uso legal ou judicial, assim como não existirá uso para pessoas jurídicas. A advertência é feita pela doutrina73, com a ressalva feita no sen­ tido de que Pontes de Miranda admitia o instituto em favor das pessoas jurídicas74. ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema? 0 Superior Tribunal de Justiça possui súmula reconhecendo expressa­

mente a possibilidade de aquisição do direito real de uso pelo instituto jurídico da usucapião. Trata-se da Súmula 193, a qual se refere à usu­ capião de direito de uso de linha telefônica.

É possível a hipoteca sobre o direito real de uso? A resposta é positiva. 0 art. 1.473 do CC sofreu mudança normativa relativamen­ te nova em decorrência da Lei Federal n° 11.481/07, de forma a autorizar hipoteca sobre 0 direito real de uso. A alteração legal causa estranheza na medida em que 0 direito de uso é personalíssimo e intransmissível. Apesar da crítica, este é 0 texto de lei. 7.

DA HABITAÇÃO

Quando 0 uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, 0 titular deste direito não poderá alugar ou emprestar 0 aludido bem, mas apenas ocupá-lo com a sua família (CC, art. 1.414)- Neste caso, ter-se-á nitidamente configurado 0 direito de habitação, 0 qual está intimamente ligado à moradia e envolve, ne­ cessariamente, um objeto imóvel. " 0 instituto em apreço assegura ao seu titular 0 direito de morar e residir na casa alheia. Tem, portanto, destinação específica: servir de moradia ao beneficiário e sua família. Não podem alugá-la ou emprestá-la. Acentua-se, destarte, a inacessibilidade assim do direito quando do seu exercício"75. Com efeito, " 0 direito real de habitação constitui 0 mais restrito dos direitos reais de fruição, eis que apenas é cedida uma parte do atributo de usar, qual seja, 0 direito de habitar 0 imóvel"76. Tal direito real de habitação poderá ser constituído em função da vontade (au­ tonomia privada), ou da lei. Daí as respectivas expressões: direito de habitação convencional ou voluntário e direito de habitação legal ou cogente. Assim, há duas espécies de direito real de habitação: (i) 0 voluntário, que exige escritura pública registrada em cartório (Lei de Registros Públicos, art. 167, inciso I); e (ii) 0 legal, que brota do fato jurídico por imposição normativa antes mesmo de qualquer registro, como no exemplo do art. 1.831 do CC.

73. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 74374. Tratado de Direito Privado, volume XIX, p. 324. 75. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 510. 76. TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 386.

Cap. VI . Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

317

Trata-se de um direito real no qual o seu titular poderá residir "gratuita e tem­ porariamente em um prédio, com sua família", de forma que o imóvel terá esta finalidade específica. "Vale dizer, o proprietário reserva consigo todos os poderes dominiais, exceto a possibilidade do exercício de moradia, pois a habitação foi destacada em favor do beneficiário"77. Um belo exemplo do direito real de habitação legal está no estudo das suces­ sões, particularmente no art. 1.831 do CC. Ali se reconhece em favor do cônjuge sobrevivente (viúvo), independente do regime de bens, 0 direito sucessório de habitar 0 imóvel residencial, se este for 0 único daquela natureza a inventariar, pouco importando se 0 aludido bem é, ou não, exclusivo do de cujus78. Trata-se de um direito real vitalício e incondicionado, permanecendo no imóvel 0 cônjuge enquanto viver, mesmo que não possua a propriedade do mesmo, e independen­ temente de contrair novo casamento ou união estável. No particular, é im prescindível a transcrição do art. 1.831 do CC: "Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja 0 regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, 0 direito real de habitação relativamen­ te ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja 0 único daquela natureza a inventariar". 0 atual CC ampliou 0 direito real de habitação para todos os regimes de bens, pois no CC/16 só se aplicava na comunhão universal. Ademais, ampliou 0 limite temporal deste direito de gozo ou de fruição sobre coisa alheia a permitir que 0 seu titular habite gratuitamente imóvel que não lhe pertence de modo vitalício79.

Trata-se de um direito personalíssimo e intransferível. Portanto, não existirá em segundo grau, ou seja, para 0 caso de seu titular contrair matrimônio e, pos­ teriormente, falecer, de modo que este cônjuge sobrevivente não poderá alegá-lo. Ante a existência de dois ou mais imóveis residenciais não será possível admitir 0 direito real de habitação, sustentando 0 entendimento de que 0 art. 1.831 do CC não se aplicaria neste caso ante a interpretação teleológica do instituto80. Apesar disso, diverge a doutrina. Sobre 0 assunto, dois posicionamentos existem:

Posicionamento 1) se outros imóveis existirem também aptos a serem utiliza­ dos como residência da família, não será possível aplicar 0 art. 1.831 do CC, de modo que não haverá direito real de habitação. Nessa linha caminha Francisco José Cahali. Posicionamento 2) mesmo que haja outros bens imóveis residenciais isto não basta para afastar 0 direito real de habitação em face da residência que efeti­ vamente servia à moradia do cônjuge sobrevivente, que deverá ter garantida a mesma situação jurídica anterior. Tal linha é seguida por Zeno Veloso.

77. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Direitos Reais. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p-

749-

78. STJ, REsp 826.838/RJ. 79. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 6, 6a ed, São Paulo: Método, 2013. p. 199/200. 80. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, V. 7, 6a ed, 2012, p. 185.

318

Direito Civil •Direitos Reais - Vol.

12

• Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Entendemos que o fato de o autor da herança deixar mais de um imóvel não obsta a existência do direito real de habitação que, mesmo assim, prevalecerá, sempre que possível, sobre o bem já utilizado como moradia. Malgrado pensar­ mos dessa maneira, seguindo o posicionamento dois, o primeiro posicionamento ganha ares majoritários e vem sendo seguido nas provas, principalmente em aten­ ção à literalidade do art. 1.831. E este direito real de habitação seria passível de renúncia? Sobre 0 tema, dois entendimentos existem e devem ser consignados: Entendimento 1 (m ajoritário) - É possível a renúncia ao direito real de habi­ tação ante 0 princípio da intervenção mínima do Estado nas relações de família, também denominado direito mínimo de família. A este respeito, 0 Conselho Nacio­ nal de Justiça lavrou 0 Enunciado 271 " 0 cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança". Entendimento 2 (m inoritário) - Não é possível a renúncia tendo em vista que 0 acesso à moradia é direito social de segunda dimensão e, ante sua fundamentalidade, presta-se a assegurar 0 mínimo existencial (Teoria do Patrimônio Mínimo), de modo que não se poderia renunciar àquilo que é irrenunciável. A este respeito, Flávio Tartuce para quem a eficácia horizontal dos direitos fundamentais im pede a renúncia, na forma dos arts. 11 e 166, II, do CC81.

► Atenção! 0 Fim do Usufruto Vidual.

No CC/16 existia um instituto específico e distinto, denominado de usu­ fruto vidual. No CC/02 0 usufruto vidual foi abolido, ante as críticas doutrinárias que recebeu, a exemplo de Álvaro Villaça, Silvio Rodrigues e Rolf Madaleno.

E este direito real de habitação aplica-se à união estável? 0 tema é interessante. Explica-se: malgrado 0 Código Civil ser omisso no que tange ao direito real de habitação na união estável, posto apenas tratar na hipó­ tese de casamento (CC, art. 1.831), a Lei Federal n° 9.278/96 regula 0 assunto no seu art. 7°, parágrafo único. O faz de forma diversa em relação ao Código Civil, pois trabalha com um direito real de habitação vitalício, porém condicionado, ao passo que se 0 companheiro sobrevivente tiver nova união estável ou casamento 0 aludido direito findará.

Então, questiona-se: 0 Código Civil teria derrogado a Lei n° 9.278/96 no particu­ lar ao não regular 0 tema direito real de habitação do companheiro? E caso haja derrogado, seria aplicável ao companheiro, por analogia, o art. 1.831 do CC ou 0 companheiro não teria 0 direito real de habitação?

81. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V. 6, 6a ed, São Paulo: Método, 2013. p. 202.

Cap. VI • Direitos Reais de Gozo e Fruição na Coisa Alheia

319

Há duas correntes sobre o tema: i a Corrente (m ajoritária): Entende subsistir o direito real de habilitação para a união estável porque o art. 7° da Lei Federal n® 9.278/1996 não foi revogado, a par do princípio da isonomia, como afirmou 0 Enunciado 117 do Conselho da Justiça Federal. A hipótese é de antinomia jurídica aparente de segundo grau envolvendo conflito normativo intertemporal entre uma lei especial e uma lei geral (Lex poste­ rior generalis non derrogat priori epeciali), na forma dos arts. 2°, 40 e 5®, da LINDB. Neste sentido Maria Helena Diniz, Maria Berenice, Ciselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Francisco José Cahali, Sebas­ tião Amorim e Euclides de Oliveira. Sobre 0 tema, 0 Conselho Nacional de Justiça possui 0 Enunciado n® 117 com 0 seguinte conteúdo: "0 direito real de habitação deve ser estendido ao companhei­ ro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n° 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6°, caput, da CF/88". 2a Corrente (m inoritária): Entende que 0 art. 70, da Lei 9.278/1996, teria sido revogado pelo art. 1.790 do CC/02, 0 qual teria regulado inteiramente 0 assunto, sem referir-se ao direito real de habitação. Para os adeptos deste entendimento, 0 atual Código Civil ab-rogou (revogou totalmente) todas as legislações anteriores sobre direito sucessório na união estável, sendo 0 caso de silêncio eloquente beredis schweigen, intencional, proposital - da atual codificação que, portanto, não quis prever 0 aludido direito. Neste sentido, Silvio Rodrigues atualizado por Zeno Veloso e Francisco Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Mario Luis Delgado, Flávio Au­ gusto Monteiro de Barros e Zeno Veloso. Permanecemos com a tese majoritária. De fato, 0 art. 70, parágrafo único, da Lei Federal n° 9.278/96 é claro ao dispor: "Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, 0 sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família". Pelo critério da Lex Especialis (LINDB, art. 2®, § 2®) é possível afirm ar que esta norma especial não foi tacitamente revogada por nenhuma outra. ►Como o Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado acerca do tema?

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECONHECIMENTO DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO DO COMPANHEIRO SOBREVIVENTE EM AÇÃO POSSESSÓRIA. Ainda que 0 companheiro supérstite não tenha buscado em ação pró­ pria o reconhecimento da união estável antes do falecimento, é admis­ sível que invoque 0 direito real de habitação em ação possessória, a fim de ser mantido na posse do imóvel em que residia com 0 falecido. (REsp 1.203.144-RS, Rei. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, julgado em 27/5/2014.)

Nisso concordamos com a doutrina m ajoritária. Com efeito, não existiría qual­ quer justificativa para discrim inar um companheiro retirando deste 0 direito real de habitação, ou seja, a moradia e a dignidade.

320

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como os tribunais estão decidindo esta questão? 0 Superior Tribunal de justiça no REsp 821.660/DF admitiu aplicar a si­

tuação relativa ao direito real de habitação para situações jurídicas de união estável, sob 0 fundamento jurídico da equiparação e da isonomia, atendo ao direito social de moradia. Há, ainda, posicionamentos dos Tribunais Estaduais: Família. União estável. Demanda movida pela companheira supérstite contra 0 espólio. Existência de união estável e de coabitação dos conviventes reconhecidas pelos sucessores. Direito real de habitação provisoriamente assegurado. Art. 70, § único, da lei n°. 9.278/96. Divisão de objetos que guarnecem a casa diferida para 0 inventário. Realização de benfeitorias obstada pela sentença. Ape­ lação desprovida. (TJRS, Apelação Cível n° 70.019.828.201, Relator Desembargador LUIZ ARI AZAMBUJA RAMOS, julgado em 02/08/2007).

Ante 0 princípio da registrabilidade inerente aos direitos reais, é mister pro­ ceder perante 0 cartório de imóveis 0 registro do direito real de habitação, na forma do art. 167, n° 7, da Lei de Registros Públicos, quando a hipótese envolver a concessão deste direito por ato entre vivos. Logo, não há necessidade do aludido registro para os casos do art. 1.831 do CC e art. 7° da Lei 9.278/96. Em arremate, 0 direito real de habitação poderá ser convencional para os ca­ sos em que decorrer da autonomia privada, em favor de uma só pessoa (habitan­ te) ou em benefício de várias pessoas. Este último caso será denominado direito real de habitação simultâneo.

Capítulo

Direitos Reais de Garantia 1.

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS. TEORIA GERAL

Verificando o direito, percebe-se que vínculos obrigacionais podem ser garanti­ dos, em busca de um mecanismo de reforço para o caso de inadimplemento. Tais garantias, falando-se de forma genérica, se dividem em duas m odalidades: a)

Pessoais ou Fidejussórias: quando prestadas por pessoas, a exemplo da fian­ ça e do aval, tema da seara contratual e empresarial;

b) Reais: quando materializadas em patrimônio, a exemplo do penhor, da hipote­ ca e da anticrese, tema atinente aos direitos reais, batizados de direitos reais de garantia. De fato, é possível afirm ar que os direitos reais de garantia possuem conteúdo, alcance e caracteres próprios. Não se nega que, como garantias, seguem a sorte de uma dívida principal. Nesse aspecto há um ponto de interseção entre as ga­ rantias pessoas e reais. Tais garantias, aliás, possuirão feição unilateral, pois não haverá sinalágma, contraprestação em benefício do garantidor. Os direitos reais de garantia "não se confundem com as garantias pessoais ou fidejussórias, eis que no primeiro caso um bem garante a dívida por vínculo real e efeitos erga omnes (art. 1.419 do CC/02); enquanto que no último a dívida é garantida por uma pessoa, presentes efeitos inter partes (exemplo: fiança)"1. Os direitos reais de garantia são aqueles que facultam ao credor a pretensão de obter 0 pagamento da dívida mediante 0 valor da coisa destacada especificamente para sua satisfação e garantia, na falta do adimplemento da obrigação principal. Jus­ tamente acerca destes direitos reais de garantia que se dedica 0 presente capítulo2. Com efeito, se "uma dívida for assegurada por uma garantia real, 0 credor terá preferência sobre 0 preço que se apurar na venda judicial da coisa gravada, de­ vendo ser pago prioritariamente"3, sendo este esclarecimento um importante pas­ so na compreensão doutrinária dos direitos reais de garantia sobre a coisa alheia.

444-

1.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p.

2.

GOMES, Orlando. Atualizado por Luiz Edson Fachin. Direitos Reais. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 378. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Sarai­ va, 2011. p. 502.

3.

322

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Existem quatro direitos reais de garantia: penhor, hipoteca, anticrese e pro­ priedade fiduciária. Seguindo a lógica do Código Civil, fora realizado o estudo da propriedade fiduciária quando da análise do direito de propriedade. Neste mo­ mento, portanto, far-se-á a análise do penhor, da hipoteca e da anticrese, atento ao fato de que o próprio Código Civil os reúne, abordando tanto sua disciplina geral, como especial (arts. 1.419 a 1.510). ►E na horada prova?

Ano: 2014 Banca: FMP-RS Órgão: PGE-AC Prova: Procurador do Estado Não é direito real de garantia: a) 0 penhor. b) a anticrese. c) 0 usufruto. d) a hipoteca. Gabarito: letra c. Obviamente que como direitos reais de garantia que 0 são, tem natureza aces­ sória, garantindo uma obrigação principal. Nessa toada, uma vez extinta a obriga­ ção principal, igualmente extinta estará a garantia, pois 0 acessório seguirá a sorte do principal (Princípio da Cravitação jurídica ou Universal). D'outra banda, sendo reestabelecida a obrigação principal dantes extinta, igualmente restará reestabelecido 0 direito real de garantia. ►Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Extinção da garantia hipotecária e prescrição da obrigação principal. A prescrição da pretensão de cobrança da dívida extingue 0 direito real de hipoteca estipulado para garanti-la. REsp 1.408.861-R], Rei. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 6.11.15. 3a T. (Info STJ 572) Restabelecimento de hipoteca em razão de decisão judicial que declare a ineficácia de negócio jurídico que motivara seu anterior cancelamen­ to. Restabelece-se a hipoteca, anteriormente cancelada em razão da aquisição do imóvel pela própria credora hipotecária, no caso em que sobrevenha decisão judicial que, constatando a ocorrência de fraude à execução, reconheça a ineficácia da referida alienação em relação ao exequente. Declarada a ineficácia do negócio jurídico, retornam os envolvidos ao estado anterior. Nesse contexto, volta o bem a integrar 0 patrimônio do executado, restando ineficaz também a baixa da ga­ rantia hipotecária, que poderá ser oposta em face de outros credores. REsp 1.253.638-SP, Rei. Min. Sidnei Beneti, 26.2.13. y T. (Info 517). Existem características próprias nestes direitos reais de garantia que "devem ser examinados antes da análise das regras particulares de cada figura, inclusive porque facilitam a compreensão das particularidades"4.

4.

GOMES, Orlando. Atualizado por Luiz Edson Fachin. Direitos Reais. 19» ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 377-

323

Cap. Vil . Direitos Reais de Garantia

2.

CARACTERES DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA

Os direitos reais de garantia identificados como penhor, hipoteca e anticrese se submetem a características próprias que lhes darão a um só tempo regime jurídico único, a título de disposições gerais, e distinção das dem ais garantias. As características fundam entais dos direitos reais de garantias são a preferência, a indivisibilidade, a sequela e a excussão5. Sobre tais garantias que se passará a tratar. Dessa forma, é possível dar um determinado bem em garantia por vínculo real, oponível erga omnes, com preferência sobre os créditos comuns, denominados quirografários. Esta prelação, aliás, é prevista no art. 1.422 do CC. 0 art. 1.422 do CC disciplina a característica da preferência do crédito tanto na hipoteca, quanto no penhor sobre os denominados créditos ordinários ou quiro­ grafários. De acordo com 0 Código Civil, deve-se liquidar inicialmente os créditos assegurados por garantias reais para, posteriormente, quitar-se os créditos ordi­ nários. Nessa linha, "0 credor hipotecário e 0 pignoratício têm 0 direito de excutir a coisa hipotecada, e, preferir no pagamento, a outros credores, observada, quan­ to à hipoteca, a prioridade do registro".

► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: CONSULPLAN Órgão: TJ-MG Prova: CONSULPLAN - 2018 TJ-MG - Titular de Serviços de Notas e de Registros - Provimento. Assi­ nale a afirmativa correta. Gabarito: Na hipoteca, garante a obrigação principal tudo que possa ser extraível da coisa hipotecada, como valor econômico.

►Atenção!

A característica da preferência não é absoluta. Existem exceções ao direito de preferência previsto no Código Civil para as garantias reais. Ilustra-se com 0 art. 83 da Lei n» 11.101/05, segundo 0 qual nas falências os créditos trabalhistas não superio­ res a cento e cinquenta salários mínimos devem ser quitados prefe­ rencialmente para, em seguida, liquidar-se os créditos decorrentes de acidentes de trabalho e, apenas depois disto, as garantias reais. Outro belo exemplo de exceção está na Súmula 478 do Superior Tri­ bunal de Justiça a preferir as cotas condominiais em detrimento das garan tias reais.

Recorde-se, porém, que é possível falar-se que "0 crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; 0 crédito pessoal privilegiado, ao simples; e 0 privilégio especial, ao geral".

5.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6» ed. São Paulo: Método, 2014. p.

444 -

324

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

A segunda característica é a indivisibilidade da garantia real, a qual impede que 0 pagamento parcial da dívida reduza o valor integral da garantia (CC, art. 1.421 e STJ, REsp 282.478/SP). Assim, 0 pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta com­ preenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou quitação. A indivisibilidade se mantém até mesmo post mortem, na melhor forma do art. 1.429 do CC. Logo, os sucessores do devedor não podem remir parcialmente o pe­ nhor ou a hipoteca na proporção dos seus quinhões, mas apenas no todo. ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: FCC Órgão: TRT/20 (Sergipe) Prova: Analista Judiciário área judiciária) Foi considerada incorreta a assertiva: "Em regra, 0 pagamento de uma ou mais prestações da dívida importa exoneração correspondente da garantia." Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TRT - 24a REGIÃO (MS) Prova: Analista Judi­ ciário - Área Judiciária Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: Os sucessores do de­ vedor podem remir parcialmente a hipoteca na proporção dos seus quinhões.

E se a hipótese for de imóvel hipotecado? Evidentemente que a própria legislação flexibiliza a indivisibilidade, como acontece nos casos de loteamento do imóvel hipotecado. Com efeito, "Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomí­ nio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se 0 requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito". É o que prevê o art. 1.488 do CC. A sequela é a terceira característica a ser enfrentada. Como consequência do direito real, importa na aderência da garantia ao próprio bem, seguindo-lhe aonde quer que este vá, conforme adverte também 0 Superior Tribunal de Justiça6. Finalmente a excussão se apresenta como última característica do direito real de garantia. Reza 0 art. 1.419 do CC que nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, 0 bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumpri­ mento da obrigação. Dessa m aneira, 0 credor poderá excutir a coisa hipotecada, ou empenhada, vale dizer, executar judicialmente 0 referido débito garantido por estes direitos reais (CC, art. 1.4 2 2 , 1). Logo, diante do inadimplemento poderá 0 credor buscar a excussão judicial e venda do bem para, com 0 crédito advindo da venda, ressarcir seu débito. Ob­

6.

REsp 651.323/SP.

325

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

viamente que se o crédito for inferior ao débito, persistirá o credor em face do devedor, agora com um crédito quirografário. Caso, porém, o valor advindo da venda seja superior ao débito, o saldo haverá de ser conferido ao proprietário do bem excutido. ►Atenção!

A Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça anuncia que "A hipoteca firmada entre a construtora e 0 agente financeiro, anterior ou poste­ rior à celebração de promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel*. Entretanto, importante observar que a aludida súmula não é aplicável nos casos envolvendo contratos de aquisição de imóveis não subme­ tidos ao Sistema Financeiro de Habitação - SFH (Aglnt no Aglnt no REsp 1682434/PR; Aglnt no REsp 1613516/GO; REsp 427410/RS. ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: FCC Órgão: DPE-CE Prova: Defensor Público de Entrância Inicial Ana Paula celebrou promessa de compra e venda de imóvel com "Construtora Agia Certo Ltda.". Esta, por sua vez, ofereceu 0 bem em hipoteca a "Banco da Construção S.A.", agente financiador do empreen­ dimento. De acordo com Súmula do Superior Tribunal de Justiça, não pago 0 débito contraído pela construtora perante 0 agente financiador, a) a hipoteca não terá eficácia perante Ana Paula, desde que seja posterior à celebração da promessa de compra e venda. b) deverá ser dada oportunidade para que Ana Paula pague a res­ pectiva cota-parte da dívida ao agente financiador, mesmo que já tenha sido ajuizada ação para excussão do bem. c) antes da excussão do bem, deverá ser dada oportunidade para que Ana Paula pague a respectiva cota-parte da dívida ao agente financiador. d) 0 bem oferecido em hipoteca poderá ser excutido pelo agente fi­ nanciador, pois os direitos reais produzem efeitos erga omnes. e) a hipoteca não terá eficácia perante Ana Paula, mesmo que seja anterior à celebração da promessa de compra e venda. Gabarito: letra e. De mais a mais, na forma do Decreto-Lei n° 70/66 é possível a execução extraju­

dicial de imóveis para hipotecas do Sistema Financeiro de Habitação. Nesse senti­ do, 0 Supremo Tribunal Federal entende há décadas. Ilustre-se com 0 RE 223075/DF, assim ementado: "Execução Extrajudicial. Decreto-Lei n° 70/66. Constitucionalidade. Compatibilidade do aludido diploma legal com a Carta da República, posto que, além de prever uma fase de controle judicial, conquanto a posteriori, da venda do imóvel objeto da garantia pelo agente fiduciário, não im pede que eventual ilegali­ dade perpetrada no curso do procedimento seja reprim ida, de logo, pelos meios processuais adequados".

326

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano

Figueiredo e

Roberto Figueiredo

Mas podería o credor adjudicar o bem para si, ao revés de excuti-lo para ven­ da e buscar o ressarcimento no crédito? Há no ordenamento jurídico nacional a vedação da cláusula com issória, proi­ bindo-se a retenção imediata do bem para casos de descumprimento da obriga­ ção principal. Trata-se do art. 1.428 do CC: "é nula a cláusula que autoriza 0 credor pignoratício a ficar com 0 objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento". Evita-se, com isso, 0 abuso do direito e do poder econômico, protegendo-se a dignidade e 0 patrimônio do devedor. Neste sentido caminha a jurisprudência de forma pacífica, a exemplo do REsp 21.681/SP. Nada obstante, 0 Enunciado 626 da VIII Jornada em Direito Civil cristalizou 0 entendimento segundo 0 qual não afronta 0 art. 1.428 do Código Civil, em relações paritárias, 0 pacto marciano, cláusula con­ tratual que autoriza que 0 credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia que excede 0 da dívida). ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TRT - 24a REGIÃO (MS) Prova: Analista Judi­ ciário - Área Judiciária Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: Não é nula a cláusula que autoriza 0 credor hipotecário a ficar com 0 objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Ano: 2017 Banca: CESPE Órgão: DPE-AC Prova: Defensor Público A garantia por hipoteca Foi considerada falsa a seguinte assertiva: faz que 0 credor assuma a propriedade da coisa hipotecada se a dívida não for paga no vencimento. A cláusula comissória é aquela que permite ao credor ficar com a coisa dada em garantia para a hipótese de a dívida não ser quitada: "É, muitas vezes, cha­ mada de pacto comissório, mas não se confunde com 0 pacto comissório inserido nos contratos de compra e venda e que era disciplinado no art. 1.163 do Código de 1916 como cláusula resolutiva expressa"7. Com efeito, a ratio do direito real de garantia é que 0 bem gravado seja utiliza­ do para alienação e com o seu crédito haja o adimplemento obrigacional. A ideia, ao menos inicial, não é que 0 credor fique com 0 bem para si. ►Atenção!

A vedação da cláusula comissória impediría a dação em pagamento? A resposta é negativa. A dação em pagamento traduz forma indireta ou especial de pagamento por meio da qual 0 credor aceita receber prestação diversa da pactuada, oferecida pelo devedor (CC, art. 356).

7.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 547.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

327

Recorda-se, como visto no verticalizado estudo do tema no volume de obrigações, que o credor não é obrigado a receber prestação diversa da pactuada, ainda que mais valiosa, haja vista o princípio da identi­ dade (CC, art. 313). Nessa senda, em importante inovação à legislação pretérita, 0 art. 1.428, parágrafo único, permite a dação em pagamento, sendo possível ao cre­ dor aceitar receber do devedor, em pagamento da obrigação inadimplida, justo 0 objeto dado em garantia. Na mesma linha do aqui defendido caminham a doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald jr., afirmando que "em saudável inovação legislativa, permite-se agora que, ao tempo do inadimplemento, credor e devedor transacionem de forma a substituir 0 pagamento pela entrega do próprio bem garantido, em verdadeira operação de negócio jurídico de dação em pagamento (art. 356, do CC). Nesse instante, já não se poderia obstar tal acordo, em princípio, por suposta fraude ou lesão, prevalecendo 0 princípio da autonomia contratual, ao propiciar a extinção da obrigação pelo paga­ mento (art. 1.428, parágrafo único, do CC)"(Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 760).

3.

REQUISITOS DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA

Segundo a doutrina, os direitos reais de garantia apresentam requisitos subjeti­ vos, objetivos e formais. Na esteira da doutrina8 os requisitos assim se encontram explicitados: a)

subjetivos ou pessoais envolvem os sujeitos que se legitimam à realização do negócio jurídico;

b)

objetivos dizem respeito à coisa, objeto da garantia; e

c)

formal refere-se aos elementos jurídicos de solenidade para a constituição das garantias. Vamos estudar cada um destes temas agora. Iniciando com 0 requisito subjetivo.

De acordo com a legislação brasileira, somente os autorizados por lei a alienar 0 bem que poderão firmar anticrese, penhor ou hipoteca. Por óbvio, interpretan­ do-se às avessas 0 art. 1.420 do CC, conclui-se que as pessoas proibidas de alienar (doar ou vender), também estarão vedadas em prestar garantias reais. No caso concreto será im prescindível averiguar a causa da vedação para, com isto, concluir se a hipótese envolve nulidade ou ineficácia do negócio jurídico. Imagine o exemplo de uma garantia real celebrada por incapaz, ou ainda de­ corrente de defeito do negócio jurídico, a exemplo de erro ou ignorância. Estas duas situações acarretaram a invalidade do negócio: no primeiro caso, a nulidade

8.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Sarai­ va, 2011. p. 503-508.

328

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

absoluta (CC, art. 16 6 , 1); no segundo exemplo, a nulidade relativa (CC, arts. 138 e 1 7 1 , 1). Portanto, é possível que a questão seja solucionada no plano da validade. Não se pode negar, contudo, que 0 Superior Tribunal de Justiça apresenta de­ cisões pelo plano da ineficácia do negócio jurídico9. As situações de fato serão as mais variadas, tais como vedação ante a Lei das Falências, situação de condomínio, vedação por ausência de poderes específicos no contrato de mandado, outorga conjugal para fiança (Súmula 332 do STJ), entre outras. Caso a caso deverá se analisar a solução, seja por via do plano da validade, seja pela perspectiva da ineficácia do ato. E se 0 direito real em garantia for estabelecido por aquele que não era pro­ prietário e, posteriormente, torna-se proprietário do bem? Imagine que João deu um imóvel, que não era seu, em hipoteca. Obviamente, nas pegadas do art. 1.420 do CC, a hipoteca em questão não se sustentará. Entretanto, acaso João, posteriormente, venha a se tornar proprietário do bem, a hipoteca em comento tornar-se-á eficaz, desde a data do seu registro (CC, art. 1.420, p/ § i°). ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: FCC Órgão: TRT/20 (Sergipe) Prova: Analista Judiciário - área judiciária) Foi considerada correta a assertiva: "As garantias reais estabelecidas por quem não é dono tornam-se eficazes, desde 0 registro, com a propriedade superveniente."

Ainda na análise do requisito subjetivo, pergunta-se: 0 bem em condomínio poderá ser dado em direito real de garantia? Na forma do § 2° do art. 1.420 do CC, 0 condômino poderá dar em garantia real, individualm ente, a parte que tiver. 0 Código Civil, portanto, admite constituição de direito real de garantia sobre unidade autônoma em condomínio edilício. Nessa situação surge uma intrigante dúvida: a preferência estabelecida no art. 504 do CC é direito privilegiado em relação à preferência do credor da garantia real, a exemplo do hipotecário? Entendemos que sim, prestigiando a ideia de unidade do condomínio. Logo, na venda do bem condominial comum preferirá os dem ais condomínios, mesmo que hipotecado 0 bem a ser alienado. E seria possível a hipoteca sobre a totalidade do im óvel comum (em con­ dom ínio)? Acaso 0 desejo seja de dar em garantia toda a coisa comum, será necessário 0 consentimento de todos os co prop ri etários (CC, art. 1420, § 2°). Obviamente, os proprietários haverão de consentir na oferta desse bem em garantia.

9.

REsp 94.270/SC e 39.110/MG.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

329

►E na hora da prova?

(Ano: 2016 Banca: FCC Órgão: TRT/20 (Sergipe) Prova: Analista judiciário área judiciária). Foi considerada incorreta a assertiva: "A coisa comum a dois ou mais proprietários pode ser dada em garantia real, na sua totalidade, sem 0 consentimento de todos."

Passando ao requisito objetivo, percebe-se que apenas os bens passíveis de alienação poderão ser empenhados, bem como dados em hipoteca ou anticrese. Em suma: bem inalienável não pode ser hipotecado. Eis a regra, em termos gerais. Um exemplo comum é 0 bem que está fora do comércio, impenhorável ou incomu­ nicável, 0 qual não poderá ser dado em penhor, hipoteca ou anticrese. ►Atenção!

Bem de família pode ser dado em garantia real? Como 0 assunto tem sido decidido nos tribunais? 0 Superior Tribunal de Justiça tem decidido a questão à luz da boa-fé

objetiva e da confiança. No AgRg no Ag 597.243/CO, por exemplo, repeliu 0 Tribunal da Cidadania penhora do bem de família nos casos de hipoteca que um dos membros de determinada família ofereceu para garantir interesse próprio, no caso empresa individual. Em sentido contrário, seria possível afirmar que se a garantia beneficiasse toda a entidade familiar, provavelmente a Corte não adotaria 0 mesmo entendimento. De mais a mais, recorda-se que 0 bem de família poderá ser dado em garantia do próprio empréstimo (contrato de mútuo) celebrado para sua aquisição e/ou construção. Trata-se, inclusive, de exceção à impenhorabilidade do bem de família (Lei 8.009/90, art. 3°, II) e prática ban­ cária extremamente usual, na qual a garantia ao mútuo para aquisição do imóvel próprio é 0 imóvel em aquisição.

Quanto à forma, a garantia há de ser especializada, sob pena de ineficácia (CC, art. 1.424). Assim os contratos de penhor, hipoteca ou anticrese, sob pena de ine­ ficácia, haverão de conter 0 quantum do crédito, sua estimação ou valor máximo; 0 prazo fixado para pagamento; a taxa dos juros, se houver e 0 bem dado em garantia com suas especificações. Uma vez estudados os requisitos subjetivos, objetivos e formais dos direitos de garantia é chegada a hora de avançar sobre a análise dos princípios específicos que norteiam 0 instituto. Também faremos uma breve análise do art. 1.425 do CC que disciplina o instituto do vencimento antecipado da dívida em sede de direitos reais.4 4.

PRINCÍPIOS ESPECÍFICOS DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA

Existem dois importantes princípios básicos dos direitos de garantia, quais sejam:

330

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

a)

especialização, o qual "consiste na vinculação de bens determinados do deve­ dor ou de terceiro, para garantia da obrigação principal"10;

b)

registro, isto porque "o ônus real apenas é oponível em caráter geral, quando aperfeiçoado pelo registro, servindo igualmente para conceder publicidade e sequela"11. Sobre estes dois importantes temas é que trataremos agora.

0 princípio da especialização se revela no art. 1424 do CC, caracterizando-se pela individualização detalhada da coisa dada em garantia. Significa dizer que as garantias reais são individuais, ao contrário das garantias abstratas da teoria obrigacional do inadim plem ento (CC, art. 391). Ressalta-se: pelo inadim plemento respondem os bens do devedor. Contudo, pelo inadim plem ento de uma obrigação principal com garantia real, responderá, de modo específico, um determ inado bem.

Tal especialização, inclusive, caso não atendida, ocasionará na ineficácia da garantia, como visto em linhas pretéritas. Assim, os contratos de penhor, hipoteca ou anticrese, sob pena de ineficácia, haverão de conter 0 quantum do crédito, sua estimação ou valor máximo; 0 prazo fixado para pagamento; a taxa dos juros, se houver e 0 bem dado em garantia com suas especificações. 0 registro, por sua vez, é previsto no art. 1.227 do CC, 0 qual informa que "Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com 0 registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1247X salvo os casos expressos neste Código". Quanto ao penhor, 0 art. 1.432 do CC também impõe seu registro público no cartório de títulos e documentos.

►Atenção!

Os arts. 1.438 e 1.448 do CC estabelecem que tanto no penhor rural, quanto no industrial e mercantil, 0 aludido registro público há de se realizar no Cartório de Registro de Imóveis.

Recorde-se a importância do registro nos direitos reais de garantia, dentre outras coisas, pela prioridade na cobrança da obrigação principal (CC, art. 1.493), a par da eficácia erga omnes, pois com 0 vencimento da dívida terá prioridade na excussão dos bens as garantias pretéritas. Conforme estudado no volume dedicado às obrigações, há hipóteses no orde­ namento jurídico nacional nas quais a dívida vence antecipadamente (CC, art. 333). Segundo 0 direito posto, isto acontecerá nos casos de falência do devedor, ou de concurso de credores; se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados

10. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD jR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 764. 11. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: /usPodivm, 2014. p. 764.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

331

em execução por outro credor e se cessarem, ou se tornarem insuficientes, as ga­ rantias do débito fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las. Tal antecipação de vencimento, registra-se, é subjetiva, de modo que nos dé­ bitos solidários apenas será aplicada ao devedor que incorrer em um dos incisos. Aqui na seara dos direitos reais de garantia o tema se repete, com o específico tratamento do art. 1.425 do CC, agora se falando em vencimento antecipado da dívida e do direito real de garantia. Nessa esteira, 0 art. 1.425 veicula hipóteses nas quais será possível a imediata execução do direito real de garantia. São elas: se se deteriorando ou se depreciando 0 bem dado em segurança, desfalcar a ga­ rantia, e 0 devedor, intimado, não a reforçar ou substituir; se 0 devedor cair em insolvência ou falir; se as prestações não forem pontualmente pagas, toda vez que deste modo de achar estipulado 0 pagamento - sendo que aqui 0 recebimento impontual do pagamento importará renúncia do credor ao seu direito de execu­ ção imediata; se perecer 0 bem dado em garantia, e não for substituído e se se desapropriar 0 bem dado em garantia, hipótese na qual se depositará a parte do preço que for necessário para 0 pagamento integral do credor. ►E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TRT - 24a REGIÃO (MS) Prova: Analista Judi­ ciário - Área Judiciária Foi considerada correta a seguinte assertiva: Desapropriado 0 bem dado em garantia hipotecária pelo devedor, a dívida estará, em regra, vencida.

De mais a mais, na hipótese de perecimento da coisa dada em garantia, 0 cre­ dor se sub-rogará na indenização do seguro ou no ressarcimento do dano, tendo preferência sobre tais verbas. Já na hipótese de perecimento e desapropriação do bem hipotecado, apenas se vencerá a hipoteca antes do prazo caso 0 perecimento ou desapropriação venha a recair sobre a garantia e esta não abranger outros bens. Pois bem. A ideia é simples: existem fatos jurídicos que, quando ocorridos, jus­ tificam a antecipação do vencimento, de modo a proteger 0 credor e a segurança jurídica das relações negociais. Recorda Maria Helena Diniz12 a existência de casos nos quais surgirá 0 vencimento antecipado da dívida "assegurada por garantia real". ►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: FCC Órgão: TRT/20 (Sergipe) Prova: Analista Judiciá­ rio - área judiciária).

Foi considerado correto 0 item: "A dívida garantida por penhor, hipote­ ca ou anticrese considera-se vencida se 0 devedor cair em insolvência ou falir."

12. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 26* ed. São Paulo: Sarai­ va, 2011. p. 514.

332

5.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

DO PENHOR

É tormentosa a conceituação do penhor tendo em vista as variedades por meio das quais este se revela na legislação, de modo que lhe faltaria "um traço característico, comum a todas as m odalidades, que o distinga, invariavelmente, dos outros direitos reais de garantia"13. 0 penhor é um direito real de garantia na coisa alheia consistente "na transfe­ rência efetiva de uma coisa móvel ou mobilizável, suscetível de alienação, realizada pelo devedor ou por terceiro ao credor, a fim de garantir o pagamento do débito"14. A palavra penhor é originária de pignus (derivada de pugnus, indicando que os bens do devedor permaneciam sob a mão do credor), qualificando o instituto como 0 "direito real que consiste na tradição de uma coisa móvel, suscetível de aliena­ ção, realizada pelo devedor ou por terceiro ao credor, em garantia do débito"15. 0 penhor é direito real de garantia em coisa alheia, por meio do qual a pessoa entrega o bem móvel, transferindo-lhe a posse direta, para o fim de garantia de obrigação principal, na forma do art. 1431 do CC. Ressalte-se que a propriedade não será transferida; transfere-se apenas a posse direta. Curioso também que 0 credor pignoratício não usará a coisa, devendo fazer a sua guarda, para posterior devolução quando do pagamento. Eis um contrato real, aperfeiçoado pela entrega do bem e convertendo-se com 0 registro público em direito real de garantia sobre coisa móvel. Originária do latim pignus ou pignoris, 0 penhor é plurissignificativo, isto porque transmite a um só tempo a ideia do direito real de garantia em sim, a ideia da coisa objeto da garantia ou, finalmente, a ideia do negócio jurídico a que se refere. A relação jurídica é formada entre 0 credor pignoratício (titular da obrigação principal e quem receberá a posse direta do bem móvel) e 0 devedor pignoratício (0 garantidor e, em regra, devedor principal também). ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: INSTITUTO AOCP Órgão: TRT - I a REGIÃO (RJ) Prova: INS­ TITUTO AOCP - 2018 - TRT - i a REGIÃO (RJ) - Analista Judiciário - Oficial de Justiça Avaliador Federal Assinale a alternativa correta envolvendo os temas Penhor, Anticrese e Hipoteca.

Gabarito:

De acordo com 0 Código Civil de 2002, 0 penho r p od e recair

apenas sobre bens móveis.

13. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 391. 14. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Sarai­ va, 2011. p. 520. 15. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 552.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

333

►Atenção!

No penhor sobre máquinas e no penhor agrícola, vale dizer, nas hipó­ teses de penhor industrial, de veículos, mercantil e rural, na melhor forma do parágrafo único do art. 1.431 do CC, não haverá a transferên­ cia da posse. Trata-se de exceção que se relaciona à função social, ao passo que 0 maquinário da indústria, os veículos, a safra, as cabeças de gado haverão de persistir com 0 devedor que, com os rendimentos advindos de tais bens, quitarão suas dívidas. Nos demais casos de penhor, a posse será transferida, traduzindo tal transferência condição sine qua non do contrato. Registra-se que esta transferência ocorrida em regra geral no penhor é uma de suas distin­ ções basilares para hipoteca, pois nesta não há transferência do bem, 0 qual persistirá com 0 devedor. Outrossim, 0 penhor envolve bem móvel e a posse é transferida. A hipoteca, em regra, versa sobre imóveis e a posse não é transferida. 0 penhor possui importantes características. É direito real a partir do momento do registro no cartório de títulos e documentos, na forma do art. 1.432 do CC, dotando 0 credor pignoratício de preferência, sequela e ação real erga om nes16. Como posto por Orlando Gomes17 e Maria Helena Diniz18 há duas formas de constituição do penhor, a saber: a)

Contratual, também chamada de voluntária ou convencional;

b)

Legal, igualmente denominada necessária ou cogente.

Carlos Roberto Gonçalves19, objetivando uma classificação mais cuidadosa, in­ forma que penhor poderá ser classificado sob duas óticas: a)

Quanto à fonte, poderá ser convencional ou legal;

b) Quanto à origem, poderá ser comum, ordinário ou tradicional (que se desta­ cam pela efetiva transferência da posse ao credor) e especial (que se assem e­ lham ao penhor mas possuem características próprias). Flávio Tartuce20 sustenta a existência de dois "grandes grupos de penhor quan­ to à origem", quais sejam: 0 penhor legal e 0 convencional. Prossegue 0 doutrinador recordando que "0 penhor convencional pode ser comum ou ordinário e especial, 0 que leva em conta, nessa classificação, os seus efeitos".

16. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 772. 17. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 39518. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Sarai­ va, 2011. p. 528 e seguintes. 19. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 562. 20. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 473-

334

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 Código Civil apresenta a disciplina do penhor contratual comum, por meio das disposições gerais. Depois disso, avança a legislação para prescrever espécies destacadas do penhor para além da disciplina geral, veiculando o penhor especial.

Pois bem. Diante da conceituação e enunciação de suas espécies, passa-se ao estudo do penhor comum, recordando-se o rol exemplificativo dos direitos e obrigações do credor pignoratício (CC, arts. 1.433 a 1.435)- Posteriormente avança a obra ao estudo dos penhores especiais, m odalidade a modalidade.

5.1.

Direitos do Credor Pignoratício

Orlando Comes21, referindo-se ao penhor comum, ensina que 0 credor pigno­ ratício, ao receber a coisa, "passa a ser seu depositário", tendo a posse direta e limitada do bem (CC, arts. 1.187 e 1.433, 0 - Assim, terá 0 credor tutela processual possessória (CC, art. 1.210, e CPC, art. 554), de forma que poderá ajuizar as ações possessórias, além de se encontrar beneficiado com 0 direito de retenção (CC, art. 1.433, II)- Além disso, beneficia-se da garantia legal do vício redibitório (CC, arts. 441 e 1.433, III). ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: IESES Órgão: TJ-AM Prova: IESES - 2018 - TJ-AM - Titular de Serviços de Notas e de Registros - Provimento Em Relação ao penhor, assinale a correta: Gabarito: " 0 credor pignoratício tem direito a apropriar-se dos frutos da coisa empenhada que se encontra em seu poder".

Quanto ao direito de retenção evidentemente que este apenas existirá se 0 credor não se encontrar em situação jurídica de dolo ou de culpa, vale dizer, para 0 caso de a posse efetivamente estar de boa-fé, nas pegadas do art. 1.219 do CC. A transferência da posse "se dá no penhor convencional comum, sendo certo que nas modalidades especiais de penhor convencional, a posse da coisa é man­ tida com 0 devedor, como se estudará pontualmente"22. Logo, 0 dito acima não se aplica ao penhor de veículos, industrial, mercantil e rural. Ademais disto, como o contrato de penhor é título executivo judicial, na melhor forma do inciso III, do art. 784 do CPC, será juridicamente possível ao credor pig­ noratício executar a coisa empenhada para 0 caso de 0 devedor pignoratício não pagar a tempo e modo. Por se tratar de direito privado, a autonomia e a liberda­ de das partes permite a pactuação da venda extrajudicial e consensual, afinal de contas 0 que não é proibido é permitido (CF, art. 5°, inciso II).

21. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19* ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 391. 22. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6* ed. São Paulo: Método, 2014. p. 465.

Cap. VII . Direitos Reais de Garantia

335

Finalmente, o inciso V do art. 1.433 do CC confere ao credor pignoratício 0 direito de aquisição dos frutos do bem móvel empenhado. Isto somente será possível se os frutos forem abatidos do crédito, à semelhança da anticrese (CC, art. 1.423), sob pena de desvirtuar a própria característica da posse direta no penhor, que funciona à moda do contrato de depósito e veda a fruição do bem. Acaso a apropriação dos frutos não venha seguida do necessário desconto sobre 0 montante da dívida, surgirá paradoxal re­ gra de enriquecimento sem causa referendado pelo ordenamento jurídico.

► E na hora da prova?

(IESES - Advogado - SCGás/2019) Sobre direitos reais de garantia, res­ ponda as questões: I.

0 credor pignoratício tem direito a apropriar-se dos frutos da coisa empenhada que se encontra em seu poder.

II. 0 penhor se extingue com 0 perecimento da coisa. III. Pode ser objeto de hipoteca 0 direito real de uso. Gabarito: Todas as assertivas sôo verdadeiras. 0 credor pignoratício também terá direito à venda antecipada do bem, desde que mediante autorização judicial, à vista do surgimento de uma situação de pe­ recimento total, ou parcial do objeto deste penhor (CC, art. 1.425). A noção aqui é simples: tentativa de obtenção dos valores possíveis antes do perecimento total do bem. Em arremate, de ver-se que 0 STJ entendeu ter 0 credor hipotecário interesse de agir para propor ação em face do mutuário visando ao cumprimento de cláusula contratual que determina a observância dos padrões construtivos do loteamento23.

5.2.

Deveres do Credor Pignoratício

Atuando como depositário do bem empenhado, deve 0 credor pignoratício conservar a coisa e protegê-la, conforme reza 0 inciso I do art. 1.435 do CC. Sendo depositário, 0 credor pignoratício é proibido de usar e fruir da coisa, mesmo es­ tando com a posse direta do bem. Mesmo tendo 0 credor a posse direta da coisa, "esta não anula a indireta do proprietário"24, que estará autorizado, inclusive, à utilização dos interditos possessórios, na melhor forma da teoria geral da posse, tema estudado em capítulo específico desta obra (CC, art. 1.197). ►Como o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre o tema? 0 Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1133111/PR já afirmou que "0 contrato d e p e n h o r traz em b utido o d e d e p ó sito do bem e, p o r co n se g u in ­

te, a obrigação acessória do credor pignoratício de devolver esse bem após 0 pagamento do mútuo".

23. REsp 1.400.607-RS, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 17/05/2018, DJe 26/06/2018. 24. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7=» ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 560.

336

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Também entendeu 0 STJ no REsp 1.369.579-PR, DJe 23/11/2017, que no Contrato de mútuo garantido por penhor de joias subtraídas na cons­ tância do contrato configuram falha no serviço a admitir 0 ajuizamento de ação indenizatória cujo prazo de prescrição é de 5 (cinco) anos, de acordo com 0 disposto no art. 27 do CDC. Acaso 0 credor pignoratício utilize o bem objeto do empenho, a hipótese será de compensação, assim como também será possível a compensação do crédito para hipótese de deterioração ou perda culposa da coisa, por falta da custódia adequada, aplicando-se o art. 369 do CC35. ►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Interessante notar que a jurisprudência do Superior Tribunal de justiça tem admitido para os casos de perda da coisa decorrente de ato ilícito do credor a aplicação prática do instituto da compensação, como se viu no REsp 730.925/RJ segundo 0 qual "Na hipótese de roubo ou furto de joias que se encontravam depositadas em agência bancária, por força de contrato de penhor, 0 credor pignoratício, vale dizer, 0 banco, deve pagar ao proprietário das joias subtraídas a quantia equivalente ao valor de mercado das mesmas, descontando-se os valores dos mútuos referentes ao contrato de penhor". Em outra oportunidade, também ali se decidiu que "Havendo culpa do exequente no desaparecimento da garantia pignoratícia, admite-se compensação entre 0 crédito exequendo e 0 valor monetário da mercadoria apenhada" (REsp 8.453/SP). Nessa toada, considera-se nula a cláusula que limite 0 valor da indeni­ zação em caso de roubo, furto ou extravio do bem empenhado, por se tratar de cláusula abusiva, à inteligência do art. 51, I, do CDC. Veja-se mais um julgado do Superior Tribunal de Justiça sobre 0 tema: DIREITO DO CONSUMIDOR. LIMITAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO EM CONTRATO DE PENHOR. Em contrato de penhor firmado por consumidor com instituição financeira, é nula a cláusula que limite 0 valor da indenização na hipótese de eventual furto, roubo ou extravio do bem empenhado. (REsp 1.155.395/PR) A hipótese envolve depósito legal necessário, invocando a incidência do art. 647, inciso I, do CC "eis que a imposição do depósito decorre da lei"2 26. Recorde-se 5

não ser mais possível a prisão civil do depositário infiel, nos termos do quanto as­ sentado no Supremo Tribunal Federal por meio da Súmula Vinculante n° 25 - "É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito". Como já tivemos a oportunidade de advertir em outra oportunidade, "há um mínimo existencial a proibir que 0 inadimplente seja ferido em sua dignidade. A este respeito, 0 art. 833 do CPC ao tratar da im penhorabilidade de certos bens

25. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR.( Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 774. 26. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 469.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

337

jurídicos, a Lei 8.009/90, que dispõe sobre a im penhorabilidade do bem de família e, ainda, as Súmulas 25 do Supremo Tribunal Federal e 419 do Superior Tribunal de Justiça, ambas no sentido de não tolerar a prisão civil do depositário infiel"27. Tais edições de verbetes foram impulsionadas pela conferência de eficácia supralegal ao Pacto de San José da Costa Rica. 0 tema fora explorado com mais vagar no capítulo dedicado ao contrato de depósito, no volume de contratos, bem como no volume de obrigação, ao tratarmos da prisão civil. ►Atenção!

Recorde-se que a Súmula 619 do Supremo Tribunal Federal foi cancela­ da pelo atual entendimento segundo 0 qual não é possível mais a pri­ são civil do depositário infiel, seja por se aplicar 0 art. 7° da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Esta constatação - a im possibilidade da prisão civil do depositário - decorre da mais importante expressão do papel que a Constituição da República Federa­ tiva do Brasil representa enquanto elemento unificador, integrador e orientador de todo 0 sistema civil. Passa 0 Texto Maior há ocupar 0 seu genético papel de vértice axiológico necessário para a integração do ordenam ento jurídico. "Abrese 0 caminho da despatrimonialização do direito civil, sendo retirados do seu centro im ediato institutos como a propriedade e 0 contrato, os quais cedem seus lugares ao homem, sua dignidade, bem -estar e procura da justiça social. Ao lado dessa repersonalização, infere-se 0 rompimento do individual, 0 qual cede espaço para 0 difuso e socialm ente relevante"28. E a proibição da prisão civil também para 0 caso de penhor se justifica por uma razão extremamente simples. A liberdade humana é bem jurídico indisponí­ vel, irrenunciável, incessível, incompensável, impenhorável, intransacionável... Em uma leitura civil constitucional percebe-se que "A teoria irradiante, ou da eficácia horizontal, apregoa a direta aplicação dos direitos fundamentais às relações do direito civil, visando dar máximo efeito dos valores constitucionais a toda legisla­ ção brasileira, em prol da dignidade da pessoa humana"29. ►Como o Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado acerca do tema?

PRISÃO CIVIL. DEPÓSITO JUDICIAL. SAFRA FUTURA. 0 paciente, quando da assinatura de transação homologada em juízo, nomeou à penhora sua safra agrícola futura, assumindo 0 encargo de fiel depositário. Diante disso, a Turma, prosseguindo 0 julgamento, en­ tendeu, por maioria, que a infidelidade do depósito de safra futura.

27. FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil. Obrigações e Responsabilidade Civil. Coleção Sinopses para Concursos. V. 11. 5* ed. Salvador: JusPodivm, 2016. 28. FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil. Parte Geral. Coleção Sinopses para Con­ cursos. V. 10. 4a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. 29. FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil. Parte Geral. Coleção Sinopses para Con­ cursos. V. 10. 4a ed. Salvador: JusPodivm, 2014.

338

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

mesmo que judicial, não autoriza a prisão civil. 0 voto vencido condi­ cionava essa assertiva à hipótese de a safra ter sido dada em penhor cedular a título de garantia de contrato de mútuo, 0 que não é 0 caso. Precedentes citados: RHC 11.283-SP, DJ 27/8/2001, AgRg no Ag 130.599RS, DJ 20/10/1997; REsp 222.711-SP, Dj 25/10/1999, e REsp 47.027-RS, DJ 6/2/1995. HC 26.639-SP, Rei. Min. ARI PARCENDLER, julgado em 2/9/2003. Se tratar de um direito público subjetivo, e se ninguém pode ser excluído do dever de não im pedir o gozo desse direito, justamente daí é que decorre a eficácia horizontal desta mais alta e indelével garantia humana fundamental, passível de ser exigida não apenas do Poder Público, que a implementa, mas também daque­ les que impeçam esta implementação. A lição é de Ingo Wolfgang Sarlet30: A doutrina tende a reconduzir o desenvolvimento da noção de uma vinculação também dos particulares aos direitos fundamentais ao reconhecimento da sua di­ mensão objetiva, deixando de considerá-los meros direitos subjetivos do indivíduo perante o Estado. Há que acolher, portanto, a lição de Vieira de Andrade, quando destaca os dois aspectos principais e concorrentes da problemática, quais sejam: a constatação de que os direitos fundamentais, na qualidade de princípios consti­ tucionais e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, se aplicam relativamente a toda a ordem jurídica, inclusive privada; bem como a necessidade de se protegerem os particulares também contra atos atentatórios aos direitos fundamentais provindos de outros indivíduos ou entidades particulares. Tem ainda o credor pignoratício, em decorrência deste dever jurídico de cuidar da coisa, a obrigação de ajuizar as ações possessórias necessárias à defesa da coisa contra terceiros, noticiando ao possuidor indireto (dono do bem), o evento (art. 1.435 / H, cio CC). 0 mesmo credor pignoratício terá, até mesmo, a prerrogativa do desforço incontinente (CC, § 1°, do art. 1.210), pois é possuidor direto do bem. Outro dever jurídico do credor pignoratício será 0 de restituir a coisa a tempo e modo, após 0 adimplemento da obrigação principal, sob pena de aquela posse, até então justa, tornar-se injusta, na m odalidade precária (CC, art. 1.200). 0 inciso IV do art. 1.435 do CC será 0 diploma jurídico a determ inar a obrigação de restituir. 5.3.

M odalidades de Penhor Especiais

Vencido o penhor comum e a sua teoria geral, passa-se ao estudo das figuras

especiais. Assim dedica-se à análise do penhor rural, industrial ou mercantil, de direitos e títulos de crédito, de veículos e legal. ►Atenção!

Em 02 de dezembro de 2019 0 Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 638, cujo teor é 0 seguinte: É abusiva a cláusula contratual que restringe a responsabilidade de instituição financeira pelos danos decorrentes de

30. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado, 2003, p. 356.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

339

roubo, furto ou extravio de bem entregue em garantia no âmbito de contrato de penhor civil".

5.3.1. Penhor Rural Na forma do art. 1.438 do CC 0 penhor rural se constitui mediante instrumento público ou particular devidamente registrado no cartório de imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empenhadas. Interessante histórico é percebido diante do anterior CC/16 que disciplinava 0 penhor rural, tanto na modalidade agrícola, quanto na pecuária. Posteriormente, este tema foi "reformulado pela Lei n. 492, de 30 de agosto de 1937 e, mais tarde, complemen­ tado pela Lei n. 3.253, de 28 de julho de 1957, que inclusive criou as cédulas de crédito rural. Esta última foi modificada pelo Decreto-Lei n. 167, de 14 de fevereiro de 1967"31. No penhor rural 0 bem não é entregue ao credor, de modo que esta é uma importante característica distintiva para a modalidade comum do penhor, justo por isto, a maior distinção desta m odalidade está no fato dos bens empenhados permanecerem sob 0 poder dos devedores, na qualidade jurídica de depositário das culturas ou dos semoventes, conforme escólio de Orlando Comes32. Interessante notar que 0 penhor rural é conceituado no art. i ° da Lei Federal n° 492/37 como 0 "vínculo real, resultante do registro, por via do qual agricultores ou criadores sujeitam suas culturas ou animais ao cumprimento de obrigações, ficando como depositários daqueles ou destes". Estas culturas de plantações terão natureza jurídica de bens imóveis decorren­ tes de acessão, "havendo incorporação ao solo por atividade humana concreta e efetiva". Já os anim ais seriam "bens imóveis por acessão intelectual", vale dizer "móveis incorporados ao imóvel rural pela vontade do proprietário"33. 0 penhor rural, portanto, é um grande gênero a abraçar tanto 0 penhor agrí­ cola como 0 rural. Com efeito, "0 penhor agrícola e 0 pecuário são m odalidades abrangidas pelo penhor rural, variando cada qual de acordo com 0 bem sobre 0 qual incida a garantia"34, a exemplo de sementes, anim ais, equipamentos etc., que podem ser objeto desta m odalidade de penhor. ►Atenção!

A norma autoriza 0 devedor a constituir nova garantia na modalidade de penhor. Para tanto, exige que 0 valor desta referida garantia exceda 0 valor do originário débito. Ademais disso, a legislação também permite ao devedor pignoratício vender ou doar 0 bem objeto da garantia.

31. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7» ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 563. 32. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19* ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 398. 33. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4- 6» ed. São Paulo: Método, 2014. p. 47934. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5.10* ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 779.

340

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Para tanto, será necessário ao devedor receber do credor pignoratício expressa permissão. Nesse sentido, 0 Decreto-Lei 167/67, em seu art. 59. Registra-se que 0 penhor "não recai apenas em coisas, mas, também, em direi­ tos. Ao lado dos bens móveis corpóreos, podem ser gravados com o ônus pignora­ tício os bens incorpóreos, a se aceitar esta classificação dos bens"35. A cédula rural pignoratícia é 0 instrumento que se presta à comprovação docu­ mental da existência desta garantia. Está prevista no art. 1.438 do CC e no Decreto-Lei 167/67, cujo art. 14 a prevê e 0 art. 30 condiciona sua eficácia erga omnes ao registro no cartório de imóveis. Interessante notar que este documento pode ser objeto de negócios jurídicos, transmitindo-se a outras pessoas pela técnica do endosso, 0 que importa em notável forma de incremento da economia e circulação da riqueza. Esta cédula pignoratícia é "título formal, líquido, certo e exigível pela importân­ cia nela indicada. É oponível a terceiros e dispensa outorga conjugal"36. Com efeito, "a grande inovação dessa m odalidade de título de crédito é a inserção em um só documento de um financiamento e do próprio direito real que garanta a operação, com a especificação dos objetos em penhados"3738 . Surge, nesse 9 momento, um título de crédito cujo bem ofertado em garantia é impenhorável até 0 vencimento da dívida, na forma do art. 69 do referido Decreto-Lei 167/67. A importância do registro público do penhor reside, entre outras coisas, em viabilizar a emissão da cédula rural "tornando mais ágil a operação de crédito nela expressa". 0 fato é que "0 emitente ou terceiro que dá a garantia responde por sua guarda e conservação como fiel depositário, seja pessoa física ou jurídica. Cuidando-se de penhor constituído por terceiro, 0 emitente da cédula responderá solidariamente como 0 em penhador - aquele que dá a garantia - pela guarda e conservação dos bens apenhados"3839. 0 penhor agrícola, que também é direito real de garantia que "grava bens afetados à atividade de cultivo, facultando ao produtor rural a obtenção de financiamento"40. Tal penhor abrange as máquinas e os instrumentos de agricultu­ ra; colheitas pendentes ou em via de formação; frutos acondicionados ou arm aze­ nados; lenha cortada e carvão vegetal; anim ais do serviço ordinário de estabele­

35. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19» Edição. Rio de Janeiro: Fo­ rense, 2008, p. 399. 36. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7* ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 565. 37. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 .10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 781.

38. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 564. 39. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 480. 40. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 782.

341

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

cimento agrícola; pertenças; tratores; enxadas e animais entre os dem ais objetos referidos cinco incisos. ► E na hora da prova?

Ano: 2015 Banca: FCC Órgão: MANAUSPREV Prova: Procurador Autárquico Sobre os direitos reais de garantia, é correto afirmar que "não se ad­ mite 0 penhor de colheita em vias de formação". Ca ba rito: Falsa. Interessante a disciplina do art. 1.433 do CC que autoriza a transferência da ga­ rantia para a safra seguinte nos casos em que a primeira safra objeto da garantia seja insuficiente ou inexista. Trata-se, nitidamente, de negócio jurídico aleatório, admitido pela legislação cível (CC, art. 459). Também será possível 0 penhor sobre anim ais da atividade pastoril, ou mesmo da indústria dos laticínios e agrícolas, adquiridos mediante financiamento (CC, art. 1.444), pelo prazo de cinco anos, renovável por outros três, na forma da Lei n° 492/37. ►Atenção!

0 subpenhor rural ocorre quando 0 devedor constitui novo penhor ru­ ral ressalvando a prioridade do pagamento. A prática está autorizada pelo art. 40, § i°, da Lei Federal n° 492/37. Também se deve advertir ser possível empenhar bem hipotecado, ou seja, admite-se a cumulação de garantias. Na sequência da análise, anote-se que 0 penhor agrícola envolverá as máqui­ nas e os instrumentos de agricultura, as colheitas pendentes e futuras, os frutos acondicionados ou armazenados, lenhas cortadas e carvão vegetal, bem como os anim ais do serviço ordinário do estabelecimento agrícola, na forma do art. 1.442 do CC. À luz da operabilidade do direito, da autonomia privada e da noção prevista no art. 5°, inciso II, da Constituição Federal, é possível afirm ar que 0 rol do preceito normativo em análise é meramente ilustrativo, numerus apertus; afinal de contas no direito privado 0 que não é proibido será permitido, de modo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer, senão em virtude de lei. Já 0 penhor pecuário envolverá os animais da atividade de lacticínios ou pas­ toril, conforme art. 1.444 do CC: "os anim ais poderão ser bois, porcos, cavalos, mulas, jumentos, ovelhas, carneiros, cabras, entre outros, desde que preenchidas as finalidades previstas em lei"41. Nesta situação 0 devedor pignoratício ficará proi­ bido de vender tais animais sem a autorização do credor (CC, art. 1.445)-

5.3.2. Penhor Industrial e M ercantil As máquinas, os aparelhos, materiais, instrumentos instalados e em funcio­ namento, com ou sem os respectivos acessórios, assim como os anim ais utiliza­

41. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 490.

342

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

dos na indústria, sal e bens destinados à exploração das salinas, os produtos da suinocultura, os anim ais destinados à industrialização de carnes e derivados, as matérias primas e os produtos industrializados, tudo isto poderá ser objeto de penhor industrial e mercantil. A previsão é do art. 1.447 do CC que, de forma exemplificativa, elenca algumas destas possibilidades de direito real de garantia sobre coisa móvel. Interessante notar que 0 Decreto 1.103/1903 e 0 Decreto-Lei n° 413/69 também disciplinam a matéria e continuam em vigor. 0 atual Código Civil unifica as figuras do penhor industrial e mercantil discipli­ nando 0 tema em uma só seção, servindo 0 instituto como modalidade de garantia de negócios jurídicos em presariais42.

Discussão interessante é se os penhores industrial e mercantil se confundiríam com 0 penhor cedular industrial. No particular, a doutrina é divergente. Estas modalidades de penhor - industrial e mercantil - não se confundem com 0 penhor cedular industrial, "cédula pignoratícia - criado pelo Decreto-Lei n° 413/69, para atender a operações de financiamento industrial, constituída com base em empréstimos concedidos por instituições financeiras"43, já Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Morais e Heloísa Helena Barbosa não vislumbram distinções entre as duas m odalidades44. Interessante a reflexão de Flávio Tartuce no sentido de que, ao final das contas, as regras dos dois institutos são as mesmas, razão pela qual "a utilização de um ou outro nome por engano não tem 0 condão de tornar a garantia inválida ou ineficaz". Sustenta 0 autor que 0 penhor será industrial se a atividade for industrial e mer­ cantil se a atividade for em presarial, comercial45. Na forma do art. 1.448 do CC 0 registro do instrumento há de ser feito no car­ tório de imóveis de onde se encontrar 0 bem objeto do empenho. Tal registro é fator constitutivo do penhor. Evidentemente que 0 devedor está proibido de desvirtuar a destinação dos bens adquiridos e dados em garantia pelo penhor industrial ou mercantil no exer­ cício da posse direta (CC, art. 1.449)- Ademais, há imposição de inalienabilidade do bem, salvo autorize 0 credor. ►Como o Superior Tribunal de Justiça já entendeu a matéria?

No REsp 230.997/SP, 0 Superior Tribunal de Justiça admitiu a possibilida­ de de penhor sobre bem consumível e destinado à venda, entendendo

42. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 571. 43. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 784. 44 - TEPEDINO, Gustavo; MORAES, Maria Celina de; BARBOZA, Heloísa Helena. Código Civil interpretado. V. Ill, Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 891. 45 - TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 479.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

343

que neste caso o devedor poderia realizar a alienação sem que isto importe extinção do penhor. Haverá, aqui, o que se denomina de sub-rogação real legal. Explica-se: uma vez vendido o bem dado em ga­ rantia, o penhor passará a incidir, automaticamente, sob novos bens, da mesma natureza e qualidade, substituindo-se a garantia e prosse­ guindo a execução. Nessa senda não há de falar-se em transmutação do crédito real para quirografário. Ao revés, o crédito continuará real modificando-se ape­ nas o objeto da garantia, o qual, por ter sido consumido, será substi­ tuído em outro da mesma natureza e qualidade.

►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: CESPE Órgão: TJ/DFT Prova: Juiz de Direito Substituto). Foi considerada incorreta a assertiva: "0 penhor industrial deve ser constituído mediante a lavratura de instrumento público ou particular e levado a registro no cartório de títulos e documentos".

5.3.3. Penhor de Direitos e Títulos de Créditos No escólio da doutrina46 0 "objeto do penhor de título de crédito é 0 próprio título em que se documenta 0 direito", pois é "documento representativo do cré­ dito (coisa corpórea) e não os respectivos direitos (coisas incorpóreas), caso em que se teria, como vimos, 0 penhor de direitos". De acordo com 0 Código Civil, em seu art. 1.451 "Podem ser objeto de penhor direitos, suscetíveis de cessão, sobre coisas móveis". Este penhor de direito se constituirá mediante instrumento público ou particular devidamente registrado no cartório de títulos e documentos. Esta modalidade de penhor, via de regra, "abrange ações negociadas em bolsa de valores ou no mercado futuro, títulos nominativos da dívida pública, títulos de crédito em geral, créditos garantidos por outro penhor, patentes de invenções, 0 warrant emitido por companhia de armazéns-gerais, os conhecimentos de embar­ que de m ercadorias transportadas por terra, m ar ou a r e quaisquer documentos representativos de um direito de crédito, desde que passíveis de cessão"47.

A categoria jurídica do penhor sobre direitos está disciplinada entre os arts. 1.451 e 1.457 do CC. Segundo a legislação, 0 titular do direito empenhado de­ verá entregar ao credor pignoratício documentos comprobatórios desse direito, transferindo-lhe, pois, a posse direta do bem, salvo se tiver interesse legítimo em conservá-los.

46. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 26a ed. São Paulo: Sarai­ va, 2011. p. 544. 47. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 573.

344

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

0 instrumento deste negócio jurídico deverá ser registrado no Registro Civil de Títulos e Documentos, na forma do art. 1.452 do CC.

Na posse direta do bem móvel objeto da garantia, 0 credor pignoratício deverá praticar os atos necessários à conservação e defesa do direito empenhado, estan­ do autorizado a cobrar juros e prestações acessórias compreendidas na garantia (CC, art. 1.454). Tornando-se exigível 0 crédito empenhado, deverá 0 credor pignoratício cobrá-lo. "Se este consistir numa prestação pecuniária, depositará a importância recebi­ da, de acordo com 0 devedor pignoratício ou onde 0 juiz determinar; se consistir na entrega da coisa, nesta se sub-rogará 0 penhor". É 0 que afirma 0 art. 1.455 do CC, cujo parágrafo único arremata: "Estando vencido 0 crédito pignoratício, tem 0 credor direito a reter, da quantia recebida, 0 que lhe é devido, restituindo 0 res­ tando ao devedor; ou a excutir a coisa a ele entregue". Com efeito, "0 penhor de direitos é direito real, capaz de incidir sobre a pro­ priedade imaterial (direitos autorais, patentes, software). Aliás, 0 próprio art. 30 da Lei n° 9.610/98 enfatiza que os direitos autorais, reputam-se, para os efeitos legais, bem móveis"48. Entendemos ser possível também a utilização deste penhor sobre direitos relativos a "vendas realizadas com cartões de crédito"49. Evidentemente que a possibilidade de penhor destes bens incorpóreos parte de um importante pressuposto: devem ser estes transmissíveis, impessoais. De fato, direitos personalíssimos são insuscetíveis de comunicação e, desta maneira, não poderíam ser objeto de garantia, a exemplo dos alimentos, créditos trabalhis­ tas ou usufruto sobre móveis. Sob 0 ponto de vista da eficácia jurídica do penhor de crédito no que concerne à figura do devedor, este deverá ser notificado, ou mesmo declarar ciência acerca da existência do penhor. Sem isto, não será possível opor contra 0 devedor a ga­ rantia real (CC, art. 1.453). ►Atenção!

Se 0 mesmo crédito for objeto de vários penhores, só ao credor pigno­ ratício, cujo direito prefira os demais, 0 devedor deve pagar. Destarte, responde por perdas e danos aos demais credores 0 credor preferente que, notificado por qualquer um deles, não promover oportunamen­ te a cobrança, na forma do art. 1.456 do CC. 0 titular do crédito empenhado só poderá receber 0 pagamento com

a anuência, por escrito, do credor pignoratício, caso em que 0 penhor se extinguirá (CC, art. 1.457).

48. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 786. 49. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 479.

Cap. VII . Direitos Reais de Garantia

345

Quanto ao penhor sobre títulos de crédito, trata-se de assunto disciplinado entre os arts. 1.458/1.460 do CC. É possível que 0 penhor recaia sobre título de cré­ dito que, de igual sorte, constituir-se-á por instrumento público, particular, ou até mesmo mediante endosso pignoratício, também denominado de endosso caução, "com a tradição do título ao credor" (CC, art. 1.458). A hipótese é interessantíssima, pois envolve penhor recaindo sobre bens imateriais comerciáveis. A posse do título de crédito é transferida ao credor. 0 deve­ dor permanece, pois, com a propriedade. 0 registro há de ser feito no Cartório de Títulos e Documentos (CC, art. 1.452). Constituído 0 penhor de título de crédito, ao credor surgirão os direitos de conservar a posse do referido título e até mesmo recuperar esta posse contra quem injustamente a detenha, assegurando-lhe a utilização dos meios judiciais convenientes à tutela jurídica de seus direitos, inclusive 0 de intimar 0 devedor do título para que não pague ao seu credor enquanto perdurar 0 penhor e, finalmen­ te, receber a importância consubstanciada no título, acrescidas dos juros exigíveis (CC, art. 1.459). Na vigência do penhor de título de crédito 0 devedor do título empenhado que receber a intimação para não pagar ao seu credor - ou seja: que estiver ciente de algum modo da existência desta garantia real - não poderá realizar pagamento, sob pena de responder solidariamente por perdas e danos perante 0 credor pig­ noratício (CC, art. 1.456). Se 0 credor der quitação do devedor do título empenha­ do, deverá saldar imediatamente a dívida, em cuja garantia se constituiu. Evidentemente que se 0 devedor não for intimado e - por conta disto - pagar ao credor originário, este pagamento será válido e eficaz à luz da confiança, da boa-fé objetiva e da teoria da aparência (CC, art. 309). ► E na hora da prova?

(Ano: 2016 Banca: FAURCS Órgão: TJ/RS Prova: Juiz de Direito). Foi considerada incorreta a assertiva: "Constitui-se 0 penhor de direito mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis." A banca examinadora CETRO, em concurso público realizado para a pre­ feitura de São Paulo, ano de 2014, considerou incorreta a seguinte as­ sertiva: "0 penhor de um título de crédito pode ser efetuado mediante instrumento público ou privado, sendo que 0 registro no Registro de Tí­ tulos e Documentos já basta para fazê-lo sabido pelo devedor do título".

5.3.4. Penhor de Veículos 0 Código Civil de 2002 inova a ordem pretérita ao disciplinar 0 penhor de veí­ culos. Seu objeto será toda e qualquer hipótese de transporte ou condução. For­ malmente, 0 aludido penhor haverá de ser levado ao registro público no Cartório de Títulos e Documentos e anotação perante 0 DETRAN, autoridade pública a que se deve dar conhecimento da restrição (CC, art. 1.462).

346

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

Interessante 0 julgado do Superior Tribunal de Justiça que abordou a hipótese do veículo automotor dado em penhor cedular afirmando que "para a eficácia da garantia em relação de terceiros, é necessário 0 seu registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos ou na reparti­ ção competente para expedir licença ou registrá-los" (REsp 200.663/SP). 0 atual Codificador inova ao tratar em seção autônoma do penhor de veículos automotores e que "pode ter por objeto veículo individualizado ou de frota"50, à exceção dos navios e aeronaves que são objeto de hipoteca. Com efeito, é impor­ tante lem brar que 0 penhor de veículos não se aplica ao caso das aeronaves e navios, pois há regra específica informando que para tais transportes a garantia será a hipoteca, conforme os incisos VI e VII do art. 1.473 do CC.

►Atenção!

Entendemos possível não apenas 0 penhor sobre veículos como auto­ móveis, ou ônibus, como também sobre embarcações não sujeitas à hipoteca, tais como barcos, lanchas e Jet-ski. Recorde-se que: "Essa inovadora m odalidade de garantia não é a única que pode recair sobre veículos. Propriedade fiduciária, arrendamento mercantil e com­ pra e venda com reserva de domínio são formas tradicionais de obtenção de fi­ nanciamento para aquisição desses bens móveis, cada qual dos modelos jurídicos com as suas peculiaridades. Ao contrário dos três contratos ora mencionados, o penhor de veículos dispensa a transmissão de propriedade"51. A constituição do penhor de veículos se dá pelo registro no cartório de títulos e documentos, bem como pela anotação no certificado de propriedade, do seu instrumento público ou particular (CC, art. 1.462). Apesar disso, a posse direta do veículo continuará com 0 devedor (CC, art. 1.431) que atua como depositário da ga­ rantia, devendo-se comunicar 0 credor pignoratício de qualquer ato de alienação do aludido veículo de transporte. A alienação ou a mudança do veículo empenhado, sem prévia comunicação ao credor, importará no vencimento antecipado do crédito pignoratício, a teor do art. 1.465 do CC, autorizando ao credor adotar as m edidas judiciais na defesa de seus direitos e interesses. Atento ao fato de 0 veículo ser um bem altamente perecível, 0 legislador afirma a necessidade do seguro, de maneira que "Não se fará 0 penhor de veículos sem que estejam previamente segurados contra furto, avaria, perecimento e danos causados a terceiros" (CC, art. 1.463). De igual sorte, a legislação autoriza 0 credor

50. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7» ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 581. 51. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 789.

Cap. VII . Direitos Reais de Garantia

347

a verificar o estado do veículo empenhado, podendo realizar inspeção no mesmo por si ou por pessoa que credenciar para esta atividade. Mas o que ocorre se o seguro não for realizado? Sobre o tema, dois posicionamentos doutrinários se apresentam: Posicionamento 1 - a hipótese seria de nulidade absoluta do penhor por au­ sência de um dos pressupostos de validade do negócio jurídico. Nesta linha ca­ minham Maria Helena Diniz52, Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloísa Helena Barboza53. Posicionamento 2 - 0 negócio jurídico será válido, porém ineficaz, isso porque 0 Cartório de Registro de Títulos e Documentos não aceitará registrar 0 instrumento. Neste sentido caminham Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald54. Ficamos com 0 posicionamento de número um, ante ao fato do artigo afirmar que "não se fará 0 negócio". Parece-nos, por conseguinte, hipótese de nulidade absolu­ ta virtual, por desrespeito a preceito legal sem sanção culminada (CC, art. 166, VII) ►Atenção!

0 penhor de veículos só se pode convencionar pelo prazo máximo de dois anos, prorrogável até 0 limite de igual tempo, averbada a pror­ rogação à margem do registro respectivo. É 0 que dispõe 0 art. 1.466 do CC. Mais uma vez restou atento 0 legislador ao fato de automóveis serem bens com deterioração facilitada.

Por fim, 0 art. 1.462 do CC autoriza a cédula pignoratícia veicular quando 0 deve­ dor emite esta cártula (título de crédito) assumindo quitar a obrigação pecuniária. 5.3.5. Penhor Legal 0 penhor legal é aquele que surge independente do encontro de vontades, ou seja, da autonomia privada. Trata-se de hipótese impositiva, cogente. A legislação brasileira disciplina duas situações jurídicas nas quais haverá penhor (legal) inde­ pendentemente de instrumento constituindo-o. A primeira das situações é 0 penhor legal hospedeiro ou de restauração, 0 último indicado aos que trabalharem com alimentos. Assim, são credores pignoratícios, independente de convenção, os hospedeiros, ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre as bagagens, móveis, joias ou dinheiro que os seus consumido­ res ou fregueses tiverem consigo nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas ou consumo que aí tiverem realizado.

52. DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15* ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1.016. 53. TEPEDINO, Gustavo; MORAES, Maria Celina de; BARBOZA, Heloísa Helena. Código Civil interpretado. V. Ill, Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 907. 54. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 8* ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 902.

348

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

No penhor legal do hospedeiro ou no de restauração "a conta da dívida é ex­ traída conforme a tabela im pressa, prévia e ostensivamente exposta no hotel ou afim, dos preços de hospedagem, da pensão ou dos gêneros fornecidos. Isso, sob pena de nulidade absoluta do penhor (art. 1.468 do Código Civil)"55. A segunda modalidade de penhor legal é 0 do locador ou arrendador. "Melhor explicando, em havendo inadimplência por parte do locatário, 0 locador poderá re­ ter os seus bens para garantir 0 pagamento da dívida locatícia"56. Portanto, também serão credores pignoratícios legais 0 dono do prédio rústico ou urbano sobre os bens móveis que 0 rendeiro ou inquilino tiver guarnecendo, pelos aluguéis ou rendas. A lei conferirá "aos donos de hotéis, pensões e pousadas, ou de imóveis ar­ rendados ou locados, 0 direito de constituir penhor sobre as bagagens, móveis, joias ou dinheiro que os hóspedes ou locatários tenham consigo no estabeleci­ mento onde façam despesas ou ocupem, para garantia do pagamento destas"57. 0 penhor legal, em síntese, é a "forma anômala de criação de direito real de garantia, pois como sugere a própria nomenclatura, constitui-se por determinação da lei - não pela autonomia privada -, em benefício de categorias especiais de credores".58 Nessas condições, 0 credor pignoratício está autorizado a tomar em garantia um ou mais objetos do devedor até 0 valor total da dívida (CC, art. 1.469), podendo realizar 0 efetivo penhor antes mesmo de recorrerem à autoridade judiciária e sempre que houver perigo de demora. Nessa linha, 0 credor deverá conferir aos devedores comprovante dos bens que se apossarem (CC, art. 1.470), requerendo ao juiz de Direito, ato contínuo, a homologação judicial desta garantia (CC, art. 1.471). Vale a pena lem brar que os bens passíveis de penhor serão apenas aqueles que podem ser alienados. Portanto, bens de família (Lei 8.009/90) e os bens impenhoráveis referidos no art. 833 do CPC/15 não podem ser objeto de penhor. ►Atenção!

Pode 0 locatário impedir a constituição do penhor legal mediante a apresentação de caução idônea. É 0 que afirma 0 art. 1.472 do CC.

"0 penhor legal é uma legítima forma de autotutela - admitida em casos excep­ cionais concretizada por direito de retenção em prol do credor, em virtude do iminente risco de prejuízo"5^60.

55. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 789. 56. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 474. 57. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 582. 58. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 790/791. 59. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5 . 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 791. 60. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 477.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

349

0 pedido judicial de homologação do penhor legal é previsto no art. 703 do CPC, segundo 0 qual "Tomado 0 penhor legal nos casos previstos em lei, requererá 0 credor, ato contínuo, a homologação". Na petição inicial, instruída com 0 contra­ to de locação ou a conta pormenorizada das despesas, a tabela dos preços e a relação dos objetos retidos, 0 credor pedirá a citação do devedor para pagar ou contestar na audiência prelim inar que for designada. A homologação do penhor legal poderá ser promovida pela via extrajudicial mediante requerimento do credor a notário de sua livre escolha. Recebido 0 re­ querimento, 0 notário promoverá a notificação extrajudicial do devedor para, no prazo de 5 (cinco) dias, pagar 0 débito ou impugnar sua cobrança, hipótese em que 0 procedimento será encaminhado ao juízo competente para decisão. Portanto, há procedimento no Código de Processo Civil para judicializar a ho­ mologação do penhor legal, autorizando 0 Juiz de Direito, inclusive, a homologar de plano 0 penhor legal caso esse esteja suficientemente comprovado. A m atéria defensiva no bojo deste procedimento é significativamente restrita. A defesa poderá consistir na nulidade do processo, na extinção da obrigação ou, finalmente, no fato de não estar a dívida com preendida entre as previstas em lei, ou não estarem os bens sujeitos ao penhor legal (CPC, art. 704). Em síntese: os donos de restaurantes e os hospedeiros têm, sobre os bens mó­ veis e passíveis de penhora, 0 direito real de garantia denominado penhor legal sobre bagagens e outros patrimônios de seus devedores, apreendendo-os, em um primeiro momento e, logo em seguida, deflagrando ação judicial homologatória. Contra a decisão provisória que concede 0 penhor legal caberá agravo de ins­ trumento, na forma do art. 1.015 do CPC. Após contestado, instruído e sentenciado, será possível àquele que sucumbir interpor, atacando a decisão terminativa de primeiro grau, apelação cível, conforme art. 1.009 do CPC. ►Atenção!

Há quem defenda que 0 penhor legal contraria 0 art. 42 do CDC, segun­ do 0 qual "na cobrança de débitos, 0 consumidor não será exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça". Neste sentido Marco Aurélio Bezerra de Melo (Novo Código Civil Anotado. Volume V. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 370). Interessante reflexão à luz do conflito das leis no tempo (antinomias jurídicas), afinal de contas 0 Código Civil é lei nova, pos­ terior ao Código de Defesa do Consumidor. Ademais disso, trata-se de legislação especial, contrária à regra geral consumerista. F lávio T artuce defende a ideia segundo a qual "melhor seria e a nor­ ma fosse revogada, por incompatibilidade com 0 sistema protetivo consagrado pelo Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e interesse social que não pode ser afastada por preceito do Código Civil, inclusive diante do reconhecimento de proteção do consumidor como direito fundamental (art. 5°, inc. XXXII, da CF/88)" (Direito Civil. Direitos das Coisas. Volume 4 - 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 474).

350

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo

e

Roberto Figueiredo

Defendemos a inconstitucionalidade do art. 1.467, II, do Código Civil por ofensa aos direitos fundamentais de consumidores, na forma do art. 50, XXXII, da Constituição Federal.

5.4. Da Extinção do Penhor Os casos de término do penhor estão previstos no Código Civil exemplificativamente (CC, art. 1.436). Além disso, os efeitos da extinção do penhor apenas acontecerão depois do cancelamento do mesmo do respectivo registro público (CC, art. 1.437)- Nesse sentido, Maria Helena Diniz para quem "Enquanto não for cancelado 0 registro do penhor, ele terá eficácia erga omnes"61, no que também concorda Flávio Tartuce62. ►Atenção!

A extinção do penhor não se confunde com 0 vencimento antecipado da dívida. Há casos em que a extinção do penhor de fato acarreta 0 aludido vencimento (CC, art. 1.425) e casos em que esta extinção não acarretará 0 vencimento. 0 tema vencimento antecipado fora estudado em linhas atrás neste mesmo capítulo.

A primeira causa de extinção do penhor é a extinção da obrigação principal, afinal de contas 0 acessório (penhor) segue a sorte do principal (obrigação primi­ tiva), consoante a regra geral do princípio da gravitação universal (CC, art. 92). 0 inciso I do art. 1.436 assim determina: 0 adimplemento direto ou indireto que ve­ nha a pôr fim à obrigação principal acarretará, por via de consequência, a extinção da garantia. De fato, seria incomum a hipótese de garantia abstrata, destituída de uma relação causal com dívida originária. Um belo exemplo disso é a nulidade ou prescrição da obrigação principal. Carlos Roberto Gonçalves63 lembra que a extinção do penhor nessa hipótese exigirá 0 adimplemento integral da obrigação, haja vista 0 já estudado princípio da indivisibilidade da garantia (CC, art. 1.421), 0 qual impede a queda do acessório nas situações de quitação parcial. A segunda situação está no inciso II do art. 1.436 do CC: 0 perecimento da coisa. Dois ilustrativos exemplos são apresentados pela doutrina: joias apenhadas objeto de roubo em agência bancária e a morte de anim ais apenhados64. A renúncia, expressa ou tácita, constitui a terceira causa expressa de extin­ ção do penhor (inciso III do art. 1.436) e deve se r interpretada restritivam ente

61. DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15a ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1.002. 62. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 503. 63. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 589. 64. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. V. II. 5a ed. Atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, p. 114.

351

Cap. VII . Direitos Reais de Garantia

(CC, art. 114), sendo posteriorm ente levada ao Registro de Títulos, Notas e Documentos. Tal renúncia poderá ser feita de modo expresso ou tácito. 0 próprio § i ° do art. 1.436 do CC disciplina as hipóteses de renúncia, tais como a autorização do credor na alienação da coisa apenhada sem reserva de preço, a restituição do credor ao devedor do bem empenhado e, finalmente, a anuência do credor com a substituição da garantia. A quarta hipótese de extinção do penhor está prevista no inciso IV do art. 1.436 do CC e contempla 0 instituto da confusão. 0 término do penhor acontecerá quando 0 credor pignoratício se tornar proprietário da coisa empenhada. Nessa hipótese, uma só pessoa reunirá os atributos de credor e devedor, sendo visível 0 esvaziamento do instituto pela extinção. A identificação deste problema perpassa pela releitura do art. 381 do CC que disciplina 0 instituto da confusão como uma das causas da extinção das obriga­ ções. Recorde-se que a extinção neste caso poderá ser total (confusão própria) ou parcial (confusão imprópria), a depender da sua abrangência. Recorde-se que 0 instituto da confusão constitui forma especial ou indireta da extinção da obrigação, tema já enfrentado no volume dedicado ao direito obrigacional. A quinta causa de extinção do penhor está prevista no inciso V do art. 1.436 do CC e diz respeito às hipóteses de adjudicação judicial (CPC, art. 876), remição (res­ gate do bem dado em garantia, CPC, art. 826) ou finalmente pela venda da coisa empenhada por parte do credor. ► E na hora da prova?

Ano: 2014 Banca: FCC Órgão: TJ-AP Prova: Analista Judiciário - Área Judi­ ciária - Execução de Mandados A respeito do penhor, considere: I.

não se extingue 0 penhor com 0 perecimento da coisa.

II. em regra, 0 credor pignoratício tem direito a ficar na posse da coisa empenhada. III. os frutos da coisa empenhada devem ser restituídos ao devedor depois de paga a dívida. IV. 0 instrumento do penhor deve ser levado ao Registro de Imóveis exclusivamente pelo credor a quem aproveita. De acordo com 0 Código Civil, está correto 0 que se afirma em a) l, II, ill e IV. b) II e III, apenas. c) III e IV, apenas. d) I, III e IV, apenas. e) l e II, apenas. Gabarito: letra b.

352

6.

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

HIPOTECA

Clóvis Beviláqua65 conceituava a hipoteca como sendo um "direito real, que recai sobre imóvel, navio ou aeronave, para garantia de qualquer obrigação de ordem econômica, sem transferência da posse do bem gravado para o credor". Disto não destoa o conceito de Maria helena Diniz66, para quem "A hipoteca é um direito real de garantia que grava coisa imóvel ou bem que a lei entende por hipotecável, pertencente ao devedor ou a terceiro, sem a transmissão de posse ao credor, conferindo a este o direito de promover a sua venda judicial, pagando-se preferentemente, se inadimplente o devedor". Na doutrina de Rubens Limongi França67, a hipoteca é nome originário da Grécia antiga, ou melhor, do signo hypotheke, vale dizer: de hypo (por baixo) e titheni (eu ponho). Constitui, segundo o autor, limitação ao direito de propriedade decorrente da vinculação de um bem imóvel, em regra, para o fim de garantia ao pagamento de determinada obrigação, sem que haja, entretanto, a perda da posse. A hipoteca é um direito real de garantia sobre a coisa alheia, oponível erga omnes, cujo objeto serão imóveis, navios e aeronaves, disciplinada entre os arts. 1.473/1.505 do CC. Sua constituição demanda registro, na forma da Lei dos Regis­ tros Públicos, ocasionando oponibilidade erga omnes. A hipoteca se sujeita a dois grandes princípios, quais sejam: o da especialização e o da publicidade, como esclarece Orlando Gomes68. ► E na hora da prova? (MPE - PR - Promotor de Justiça - MPE - PR/2019) Podem ser objeto de hipoteca: a) Veículos empregados em qualquer espécie de transporte ou con­ dução. b) Aeronaves. c) Colheitas pendentes, ou em via de formação. d) Animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola. e) Animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios. Ca ba rito: Letra B Na hipoteca a posse do bem continuará com o seu proprietário. Desse modo, 0 devedor poderá alienar, usufruir ou reivindicar da coisa em face de quem injustamente a detenha até o vencimento da obrigação principal. 0 pagamento parcial da dívida não autoriza abatimento desta garantia (princípio da indivisi­ bilidade da hipoteca).

65. 66. 67. 68.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método,"2014. p. 503. DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15a ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1.022. FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições do Direito Civil. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 522. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 412.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

353

Os sujeitos da hipoteca são o devedor hipotecante - vale dizer, a pessoa que oferta o bem hipotecável em garantia e que poderá ser terceiro ou mesmo o devedor - e, finalmente, o credor hipotecante - aquele que irá se beneficiar da preferência sobre este bem69. Entre as principais características da hipoteca a natureza civil real encontram-se o fato de o bem hipotecado ser necessariamente de propriedade do devedor ou de terceiro, a manutenção da posse com o devedor hipotecante, a indivisibili­ dade da garantia, o caráter acessório, a solenidade do instrumento, a especializa­ ção, a publicidade, a preferência e a sequela70. 0 art. 1.473 do CC prevê quais os bens que podem ser objeto de hipoteca. 0 primeiro deles é o bem imóvel, assim como os acessórios do imóvel conjuntamen­ te com este.

Prossegue o dispositivo admitindo a hipoteca sobre o domínio direto. Ilustrese com "o antigo direito do senhorio na enfiteuse, instituto que foi parcialmente banido pelo art. 2.038 do Código Civil de 2002"71. Prossegue a doutrina admitindo a hipoteca da nua-propriedade. 0 domínio útil também poderá ser objeto de hipo­ teca, de modo que 0 usufrutuário poderá hipotecar 0 usufruto. 0 art. 1.473 do CC avança para prever a hipoteca das estradas de ferro, tam­ bém disciplinadas nos arts. 1.502 a 1.505, registradas no município da estação onde a linha férrea se inicia.

As jazidas, minas, recursos minerais e os potenciais de energia elétrica pode­ rão ser hipotecados desde que exista a concessão da lavra, na forma dos arts. 176 da CF, 1.230, 1.473, V do CC e, finalmente, do art. 55 do Decreto-Lei n° 227/67. Interessante hipótese é a hipoteca de navios e aeronaves, disciplinada em legislação própria, para além do Código Civil. Diz-se interessante porque neste momento a legislação cível passa a permitir a hipoteca de bens móveis, 0 que é situação excepcional. Aliás, "A aeronave é bem móvel registrável para 0 efeito de nacionalidade, matrícula, aeronavegabilidade, constituição de hipoteca, publicida­ de e cadastro geral", na forma do art. 106, parágrafo único, do Código Brasileiro de Aeronáutica, previsto na Lei Federal n° 7.565/86. Quanto aos navios, a Lei Federal n 7.652/88 disciplina a hipótese. 0 STJ entende que a hipoteca de navio registrada no país de nacionalidade da embarcação tem eficácia extraterritorial, alcançando 0 âmbito interno nacional72. Tratou-se de um interessante julgado envolvendo execução ajuizada por instituição financeira com penhora de embarcação do devedor visando garantir 0 adimplemento da dívida, ao tempo em que terceiro peticionou nos autos alegando gozar de preferência sobre 0 produto da arrematação do bem penhorado em razão de

69. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6» ed. São Paulo: Método, 2014. p. 507. 70. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7® ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 594- 59571. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6» ed. São Paulo: Método, 2014. p. 512. 72. REsp 1.705.222-SP, Rei. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 16/11/2017, DJe 01/02/2018.

354

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

hipoteca outorgada pela executada em seu favor, registrada no país de nacionali­ dade da embarcação. A questão controvertida consistiu em saber se é possível ser reconhecida a eficácia, no Brasil, de hipoteca de navio registrada apenas em país de nacionalidade da embarcação que não consta como signatário das Convenções Internacionais sobre a matéria. 0 STJ entendeu que sim7374 . 0 direito de uso especial para fins de moradia também é passível de hipoteca, pois assim admite o Código Civil no mesmo art. 1.473, inciso VIII, modificado pela Lei Federal n° 11.481/07. "Admite-se, portanto, que aquele que recebeu a conces­ são do referido direito real institua sobre ele uma hipoteca. Fica em dúvida a necessidade dessa inclusão, eis que 0 que se está hipotecando é 0 domínio útil do bem, conforme 0 inciso III do art. 1.473"™. 0 direito real de uso também poderá ser objeto de hipoteca, isto porque de­ correu da mesma alteração normativa promovida pela Lei Federal n° 11.481/07, de utilidade questionável ante a crítica já posta. A propriedade fiduciária é de igual sorte hipotecável, conforme admite 0 inciso X do art. 1.473 do CC; aspecto relevante a pôr fim em debate doutrinário a este respeito. ► E na hora da prova? Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TRT - 24a REGIÃO (MS) Prova: Analista Judi­ ciário - Área Judiciária Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: A propriedade superfíciária não pode ser objeto de hipoteca.

73. De início, saliente-se que a doutrina especializada defende ser da tradição do direito brasileiro e de legislações estrangeiras a admissão da hipoteca a envolver embarcação de grande porte, em razão do vulto dos financiamentos a sua construção e manutenção. A instabilidade e 0 risco maríti­ mo oriundos do constante deslocamento se compensa com a estabilidade dos registros em portos de origem. No tocante a navio de nacionalidade estrangeira, não bastasse a clareza do art. 278 do Código Bustamante ao estabelecer que a hipoteca marítima e os privilégios e garantias de caráter real, constituídos de acordo com a lei do pavilhão, têm efeitos extraterritoriais, até nos países cuja legislação não conheça ou não regule essa hipoteca ou esses privilégios, 0 art. i ° da Convenção de Bruxelas para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Princípios e Hipotecas Marítimas, na mes­ ma linha, também estabelece que as hipotecas sobre navios regularmente estabelecidas segundo as leis do Estado contratante a cuja jurisdição 0 navio pertencer, e inscritas em um registro público, tanto pertencente à jurisdição do porto de registro, como de um ofício central, serão consideradas válidas e acatadas em todos os outros países contratantes. Por seu turno, consigna-se que não cabe 0 registro, no Brasil, da hipoteca da embarcação de bandeira de outro país, pertencente à sociedade empresária estrangeira. Com efeito, na leitura da Lei n. 7.652/1988 e dos demais diplo­ mas internos, nota-se um claro cuidado do legislador em não estabelecer disposição que testilhe com as convenções internacionais a que 0 Estado aderiu, respeitando-se a soberania dos países em que estão registrados os navios e respectivas hipotecas, de modo a fornecer segurança jurídi­ ca aos proprietários e detentores de direitos sobre embarcações. 0 registro hipotecário é ato de soberania do Estado da nacionalidade da embarcação, estando sob sua jurisdição as respectivas questões administrativas. Com essas considerações, a negativa de eficácia à hipoteca inobserva diversas convenções internacionais e causa insegurança jurídica, com possíveis restrições e au­ mento de custo para 0 afretamento de embarcações utilizadas no Brasil - razões pelas quais 0 ato analisado tem eficácia extraterritorial, alcançando 0 âmbito interno nacional. 74. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 517.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

355

É nula a cláusula que proíbe a venda do bem dado em hipoteca, na melhor forma do art. 1.475 do CC. Portanto, enquanto não houver 0 vencimento da dívida, 0 proprietário do bem hipotecado continuará com todos os poderes e atributos da propriedade, previstos no art. 1.228 do CC. ►Atenção!

As exceções a isso estão no Decreto-Lei n° 70/66. São as chamadas hipotecas cedulares e os casos em que a referida garantia for disci­ plinada pelo sistema financeiro nacional. Fora dessas situações, será nula a cláusula no contrato de hipoteca que vede a alienação do bem hipotecado. Obviamente que como direito real que 0 é, devidamente registrado, 0 bem alienado 0 é com a hipoteca, a qual adere a coisa. Assim, persistirá 0 direito real de garantia. Ceralmente 0 comprador do aludido bem hipotecado adquire-o pagando preço menor do que 0 usual no mercado e, ato contínuo, procura 0 credor hipotecário com vistas à quitação da obrigação e consequente baixa no gravame. ► E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: TRF - 3a REGIÃO Órgão: TRF - 3a REGIÃO Prova: TRF - 3a REGIÃO - 2018 - TRF - 3a REGIÃO - Juiz Federal Substituto É direito do credor hipotecário:

Gabarito: Celebrar hipoteca para garantia de dívida futura ou condi­ cionada, ainda que não seja indicado 0 valor máximo do crédito a ser garantido.

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TRT - 24a REGIÃO (MS) Prova: Analista Judi­ ciário - Área Judiciária Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: As partes poderão con­ vencionar em contrato cláusula proibindo 0 proprietário de alienar 0 imóvel hipotecado. Assim como 0 credor terá direito à prática dos atos de conservação da sua garantia (CC, art. 130), 0 devedor é obrigado a evitar a deterioração do bem hipo­ tecado, sob pena de antecipação do vencimento da dívida (CC, art. 1.425). Sobre 0 assunto, importa advertir 0 tipo penal do art. 346, alusivo à destruição ou perecimento parcial de bem penhorado.

6.1. Modalidades de Hipoteca De acordo com a legislação vigente, a hipoteca poderá ser convencional, legal, judiciária, especial e cedular. Portanto, existem modalidades de hipoteca a merecer estudo cuidadoso. A doutrina assim também entende75. A hipoteca será identificada de acordo com a sua origem ou causa determinante, daí poder ser convencional, legal ou judicial.

75. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 611.

356

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

6 .1.1. Hipoteca Convencional A hipoteca convencional está intimamente relacionada com a ideia do contrato. Decorre da autonomia privada e do encontro de, no mínimo, duas vontades. 0 objetivo é dar em garantia real determinado bem, relacionando-o a uma obriga­ ção principal. Deverá ser constituída por meio da escritura pública, por envolver também direito im obiliário, como adverte Orlando Comes76. "É contrato unilateral, consensual e solene, eis que só gera obrigações para uma das partes; dispensa a tradição para sua efetivação e requer escritura pública para a sua validade".77 Os bens sujeitos à hipoteca convencional são aqueles referidos no art. 1.473 do CC, vale dizer os im óveis e seus acessórios, 0 domínio útil e direto, as estra­ das de ferro, os recursos naturais, os navios (Lei Federal n° 2.180/54), as aero ­ naves (Lei Federal n° 7.565/86), 0 direito de uso especial para fins de m oradia, 0 direito real de uso e a propriedade superficiária. Sobre a propriedade superficiária, vale a pena conferir 0 Enunciado 249 do CJF: "A propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e de garantia, cujo prazo não exceda a duração da concessão da superfície, não se lhe aplicando 0 art. 1.474". Outrossim, a hipoteca abrangerá todas as acessões, melhoramentos ou cons­ truções do imóvel, subsistindo os ônus reais anteriormente constituídos e registra­ dos sobre 0 mesmo imóvel (CC, art. 1.474). ► E na hora da prova?

(Vunesp - Advogado - Câmara de Piracicaba - SP/2019) Em relação à hipoteca como direito real de garantia, no Direito Civil brasileiro, é correto afirmar: Gabarito: " 0 adquirente do imóvel hipotecado, desde que não se tenha obrigado pessoalmente a pagar as dívidas aos credores hipotecários, poderá exonerar-se da hipoteca, abandonando 0 imóvel".

Como 0 Superior Tribunal de Justiça tem entendido 0 tema? No REsp 1.141.732/SP 0 Superior Tribunal de Justiça entendeu que 0 oferecimento voluntário de imóvel como garantia hipotecária impede a alegação posterior, por aquele que o ofereceu, da im penhorabilidade por conta de ser bem de família. Torna-se, então, possível a penhora do referido imóvel, notadamente quando a dívida é contraída em benefício da entidade familiar de maneira voluntária, sob pena de quebra da boa-fé objetiva, inexistindo ofensa ao inciso V, do art. 3°, da Lei Federal n° 8.009/90.

76. COMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 416. 77. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10a ed. Salvador: jusPodivm, 2014. p. 800.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

357

Em sentido oposto, se a garantia é dada em face de terceiros - ou seja: quando não o é em proveito da própria entidade familiar, deve-se reconhecer a impenhorabilidade do bem de família, pois não prestada em proveito da própria família. Neste sentido, o AgRg no AgRg no Ag 1.094.203/SP do Superior Tribunal de Justiça.

Sem dúvida que 0 contrato de hipoteca há de observar os pressupostos de validade do negócio jurídico em geral, previstos a partir do art. 104 do CC. De igual sorte, os bens hipotecáveis são aqueles passíveis de alienação e penhora: comerciáveis. Ademais, não seria imaginável que alguém sem poderes para alie­ nar pudesse hipotecar: faltar-lhe-ia legitimação (autorização) para a prática deste negócio jurídico. No que diz respeito à hipoteca convencional, ela será constituída após 0 re­ gistro no Cartório de Registro de Imóveis, na forma do art. 167, I, n° 2, da Lei de Registros Públicos e do art. 1.492 do CC. Há de ser observada a ordem cronológica de tais registros, ou seja, 0 princípio da anterioridade ou da prioridade registrai a que se reporta 0 art. 1.493 do CC. Tal ordem é importante por revelar a ordem de preferências sobre 0 aludido bem.

Logo, seja por força da autonomia privada, seja porque a legislação autoriza, 0 fato é que 0 mesmo imóvel poderá ser hipotecado mais de uma vez. A isto se denomina sub-hipoteca, ou hipoteca de segundo grau e está prevista no art. 1.476 do CC. 0 único cuidado jurídico a se considerar é que as várias hipotecas sejam limitadas ao valor total do imóvel, por razões intuitivas. ► E na hora da prova?

Ano: 2017 Banca: FCC Órgão: TRT - 11a Região (AM e RR) Prova: Analista Judiciário - Área Judiciária Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: 0 dono do imóvel hipo­ tecado não pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor de outro credor.

A Lei de Registros Públicos disciplina 0 procedimento de registro da hipoteca a partir do seu art. 182, prevendo a figura do protocolo com número de ordem sequenciado e que a cada dia será finalizado para que se elimine qualquer dúvi­ da quanto à ordem preferencial dos credores hipotecários. Justamente por conta disto o Código Civil veda 0 registro no mesmo dia de duas hipotecas ou de uma hipoteca e de outro direito real de garantia (art. 1.494). No mesmo sentido 0 art. 190 da Lei Federal n° 6.015/73. De acordo com 0 art. 189 da Lei de Registros Públicos "Apresentado 0 título de segunda hipoteca, com referência expressa à existência de outra anterior, 0 ofi­ cial, depois de prenotá-lo, aguardará durante 30 (trinta) dias que os interessados na prim eira promovam a inscrição. Esgotado esse prazo, que correrá da data da

358

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

prenotação, sem que seja apresentado o título anterior, o segundo será inscrito e obterá preferência sobre aquele". A isso a doutrina denomina prazo de aguardo. ► E na hora da prova?

A banca examinadora IESES, na prova de concurso público do TJ-RO, para 0 provimento do cargo de titular de serviços de notas e de regis­ tro, ano de 2014, considerou correta a seguinte alternativa: "Quando se apresentar ao oficial do registro título de hipoteca que mencione a constituição de anterior, não registrada, deverá este sobrestar por até trinta dias, a inscrição da nova, aguardando assim que 0 interessado inscreva a precedente. Esgotado 0 prazo sem que se requeira a inscri­ ção desta, a hipoteca ulterior será registrada e obterá preferência". 0 art. 1.485 do CC limita a duração da hipoteca a trinta anos.

6.1.2. Hipoteca Legal A hipoteca legal é "um favor concedido pela lei a certas pessoas. Não deriva, portanto, do contrato, mas é imposta por lei, visando proteger algumas pessoas que se encontram em determ inadas situações ou que, por sua condição, merecem ser protegidas. É, destarte, a qualidade do credor, e não do crédito, que justifica a sua constituição"78. Os princípios da especialidade e da registrabilidade também se aplicaram à hipoteca legal79. ► E na hora da prova?

Ano: 2015 Banca: CESPE Órgão: TRE-GO Prova: Analista Judiciário - Área Judiciária A respeito da posse, da propriedade, da hipoteca e da responsabilida­ de civil, julgue 0 item seguinte. A hipoteca legal, que consiste em um favor concedido pela lei a certas pessoas, difere da hipoteca convencional por não depender de regis­ tro para ter eficácia erga omnes. Gabarito: Errado. A hipoteca legal, que consiste em um favor concedido pela lei a certas pessoas, difere da hipoteca convencional, pois não depende de registro para ter eficácia erga omnes. Assim, bastará para a hipoteca legal a sua especialização, a qual há de ser feita por pessoa obrigada a prestar a garantia. Na sua inércia, os interessados poderão fazê-lo ou solicitar ao Ministério Público que 0 faça (art. 1.497, § i° , do CC). 78. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 612. 79. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 418.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

359

Na forma do art. 1.489 do CC a lei confere hipoteca às pessoas de direito públi­ co interno sobre os imóveis pertencentes aos encarregados da cobrança, guarda ou administração dos respectivos fundos ou rendas; aos filhos sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias, antes de fazer 0 inventário do casal anterior; ao ofendido, ou aos seus herdeiros sobre os imóveis do delinquente, para satisfação do dano causado pelo delito e pagamento das despesas judiciais; ao coerdeiro, para garantia do seu quinhão ou torna da partilha, sobre 0 imóvel adjudicado ao herdeiro reponente e, finalmente, ao credor sobre 0 imóvel arre­ matado para a garantia do pagamento do restante do preço da arrematação. Trata-se de um rol taxativo de hipoteca que decorre ex vi legis, ou seja, por expressa força de lei, independente da vontade das partes. 6.1.3. Hipoteca Judiciária

Expressa, na concepção de Orlando Comes80, um direito de sequela e está prevista atualmente no art. 495 do CPC para a sentença que condenar 0 réu no pagamento de uma prestação consistente em dinheiro ou coisa diversa. Trata-se de hipótese em que 0 título judicial valerá como instrumento constitutivo de hipo­ teca judiciária, cuja inscrição será ordenada pelo juiz na forma prescrita na Lei de Registros Públicos. Interessante notar que a hipoteca judiciária será formada, ainda que a con­ denação seja genérica, mesmo pendente de arresto de bens do devedor e, final­ mente, ainda quando 0 credor possa promover a execução provisória daquele comando decisório. A hipoteca judiciária é, sem dúvida, um efeito processual da sentença condenatória nas hipóteses a que se refere 0 art. 495 do CPC/15 e serve ao registro, por mandado judicial, no ofício im obiliário respectivo, na forma do art. 1 6 7 ,1, n° 2, da Lei de Registros Públicos. Trata-se de tema afeto ao processo civil. ►Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o tema?

• Prevalência da usucapião sobre a hipoteca judicial de imóvel. A decisão que reconhece a aquisição da propriedade de bem imóvel por usucapião prevalece sobre a hipoteca judicial que anteriormente tenha gravado 0 bem. Com a declaração de aquisição de domínio por usucapião deve desaparecer 0 gravame constituído antes ou depois do início da posse "ad usucapionem ", seja porque a sentença apenas

declara a usucapião com efeitos "ex tunc", seja porque a usucapião é forma originária de aquisição de propriedade. REsp 620.610-DF, Rei. Min. Raul Araújo, 3.9-13- 4a T. (Info 527)

80. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de janeiro: Forense, 2008. p. 406.

360

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

►Como esse assunto foi cobrado em concurso?

(Ano: 2016 Banca: CESPE Órgão: TJ/DFT Prova: Juiz de Direito Substituto). Foi considerada incorreta a seguinte proposição: "A decisão judicial que reconhece a aquisição da propriedade de bem imóvel por usuca­ pião, a despeito dos efeitos ex tunc, não prevalece sobre a hipoteca judicial que tenha anteriormente gravado 0 bem."

6.1.4. Hipotecas Especiais de Navios e Aeronaves Sobre os navios e aeronaves é possível afirm ar existirem m odalidades espe­ ciais de hipoteca para além do Código Civil. De fato, tratam-se de bens móveis que não se submeterão à garantia do penhor, justamente para que não haja a perda da posse dos referidos bens. A legislação opta por inserir a situação jurídica dos navios e das aeronaves, diante desta peculiaridade, na disciplina jurídica da hipo­ teca (CC, art. 1.473, incisos VI e VII). ► E na hora da prova?

Ano: 2015 Banca: IF-RS Órgão: IF-RS Prova: Professor - Direito Para os efeitos legais, podem ser objeto de hipoteca: a) os direitos reais sobre objetos móveis. b) os direitos pessoais de caráter patrimonial. c) as energias que tenham valor econômico. d) as aeronaves. e) os automóveis. Gabarito: letra d.

Digno de nota é a Lei Federal n° 7.632/88 a d iscip lin ar 0 registro da hipote­ ca no Tribunal Marítimo, a fim de se d ar oponib ilidade erga omnes à referida garantia. Também há de se re ferir à Lei Federal n° 7.565/86 - Código Brasileiro de Aeronáutica - a p rever registro perante o Registro Aeronáutico Brasileiro de tal contrato. 6.1.5. Hipoteca Ced u lar 0 instituto da hipoteca cedular surge a partir do Decreto-Lei n° 70/66 e ganha novos desenhos com o surgimento de novos preceitos norm ativos, tais como 0 Decreto-Lei n° 167/67 que d isciplina a cédula rural hipotecária, o Decreto-Lei n° 413/67 a tratar da cédula industrial hipotecária, a Lei Federal n° 8.929/69 que d isciplina a cédula do produto rural e, finalm ente. Lei 10.931/2004 - sucessora da Medida Provisória n° 2.160-25/2001 - versando sobre a cédula de crédito bancário. Com efeito, "são form as sim plificadas de hipoteca convencional, pos­ suindo natureza de títulos de crédito que im prim em m obilidade ao crédito", porquanto "são títulos representativos de operações de financiam entos, con­ cedidos por instituições financeiras a pessoas que exercitem ativid ad e rural.

Cap. VII . Direitos Reais de Garantia

361

industrial, com ercial e de exportação"81, sendo m ister a referência à Lei Federal

n° 6.313/75. De acordo com 0 art. 1.486 do CC podem 0 credor e 0 devedor, no ato consti­ tutivo da hipoteca, autorizar a emissão da correspondente cédula hipotecária na forma e para os fins previstos em lei especial. Esta cédula, vale dizer cártula, substitui 0 contrato tradicional e pode ser ob­ jeto de registro público para 0 fim de se tornar - a um só tempo - garantia real com qualidade cam biária, incrementando sobrem aneira 0 comércio jurídico e a economia.

6.2. Remição da Hipoteca São três as situações especiais nas quais será possível a remição (resgate) da hipoteca. Em primeiro lugar, 0 resgate realizado pelo próprio adquirente do imóvel. Em segundo lugar, a remição, ou seja, 0 ato de afastar a hipoteca pelo pagamento, pelo próprio devedor ou seus familiares. E, finalmente, a remissão da hipoteca por falência ou insolvência do devedor hipotecário82. Eis as hipóteses legais nas quais poderá haver remição hipotecária: (a) na re­ mição da execução, a qual decorre do direito processual do devedor de pagar inte­ gralmente 0 quantum debeatur, autorizado pelo art. 826 do CPC/15; (b) a remição de bens prevista no art. 1.482 do CC, a permitir que 0 executado, seu cônjuge, descen­ dente ou ascendente ofereçam preço igual ao da avaliação, após realizada a praça e "até a assinatura do auto de arrematação ou até que seja publicada a sentença de adjudicação"83; (c) a remissão do adquirente do bem hipotecado, conforme arts. 303 e 1.481 do CC, no prazo decadencial de trinta dias contados do registro do título aquisitivo, citando os credores hipotecários e propondo a importância não inferior ao preço por que 0 adquiriu, sub-rogando-se na qualidade de credor originário (CC, art. 346, II) e (d) a remição pelo credor sub-hipotecário que registrou a hipoteca em momento posterior sobre a primeira hipoteca, conforme art. 1.478. Como se pode perceber, a remição nada mais é do que 0 direito potestativo conferido a alguém de afastar a hipoteca mediante a quitação do débito, subme­ tendo-se a um rol exemplificativo.

6.3. Extinção da Hipoteca Conforme art. 1.499 do CC, a hipoteca se extingue pela extinção da própria obrigação principal, assim como em decorrência do perecimento da coisa, da resolução da propriedade, pela renúncia do credor, pela remição e, finalmente,

81. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10® ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 815. 82. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 527. 83. FARIAS, Cristiano Chaves de; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 800.

362

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

pela arrem atação ou adjudicação. A averbação no registro de im óveis do can­ celamento do registro à vista da respectiva prova também é causa de extinção da hipoteca. ►E na hora da prova?

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: TRT - 2a REGIÃO (SP) Prova: FCC - 2018 - TRT 2a REGIÃO (SP) - Analista Judiciário - Área Judiciária. Sobre 0 penhor, a anticrese e a hipoteca, nos termos preconizados pelo Código Civil, é INCORRETO afirmar:

Gabarito: 0 dono do imóvel hipotecado não pode constituir outra hi­ poteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo credor.

Ano: 2017 Banca: CESPE Órgão: DPE-AC Prova: Defensor Público A garantia por hipoteca Foram consideradas incorretas as duas assertivas abaixo: i. será extinta caso morra 0 garantidor. ii. extingue-se pela alienação da coisa hipotecada.

0 rol previsto no dispositivo da lei é meramente ilustrativo, sendo juridica­ mente possível identificar outras hipóteses para além da relação normativa, tais como a invalidade do negócio jurídico ou mesmo a consolidação da propriedade, a perempção legal entre outras84. 7.

ANTICRESE

A anticrese é "direito real sobre coisa alheia, em que o credor recebe a posse de coisa frugífera, ficando autorizado a perceber-lhes os frutos e imputá-los no pagamento da dívida"85. A anticrese se constitui no país como direito real de garantia autônoma e de pouca aceitação social, porquanto ser sua eficácia jurídica e prática inferior às garantias do penhor e da hipoteca. Assim, raramente é vista na prática86. Trata-se de instituto de origem grega constituída pelos signos anti (em lugar de) + chresís (uso), podendo ser considerada ora como contrato, ora como limita­ ção de garantia à propriedade. No Direito brasileiro a anticrese é instituída como direito real de garantia na coisa alheia. "A anticrese está no meio do caminho entre o penhor e a hipoteca, tendo características de ambos. Com a hipoteca tem em comum 0 fato de recair sobre imóveis, como é corriqueiro. Do penhor, há a si­

84. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 637. 85. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. V. 5. 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 641. 86. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 405.

Cap. VII • Direitos Reais de Garantia

363

m ilaridade em relação à transmissão da posse. De diferente, a retirada dos frutos do bem. Assim pode ser explicada, em poucas palavras, a sua estrutura interna"87. A doutrina88 conceitua a anticrese como um direito real sobre imóvel alheio, "em virtude do qual o credor obtém a posse da coisa a fim de perceber-lhe os frutos e imputá-los no pagamento da dívida, juros e capital". Voltando-se os olhos para o direito posto, percebe-se que a anticrese está prevista a partir do art. 1.506 do CC, segundo 0 qual "Pode 0 devedor ou outrem por ele, com a entrega do imóvel ao credor, ceder-lhe 0 direito de perceber, em compensação da dívida, os frutos e rendimentos". Vê-se, pois, que a relação jurídica em estudo é composta de um devedor anticrético - que será a pessoa física ou jurídica a ofertar bem imóvel em garantia, de um lado, mediante a transferência da posse - e 0 cred o r anticrético - ou seja, aquele a receber 0 bem imóvel e a posse direta para 0 fim de extrair os frutos e rendimentos. Portanto, a anticrese é direito real de garantia que promove a transmissão da posse direta ao credor de determinado imóvel do devedor, de forma que com os frutos decorrentes da utilização deste bem de raiz será possível quitar a dívida. Sendo direito real pressupõe 0 registro público. ►Como o Superior Tribunal de Justiça decidiu sobre o tema?

No AgRg no Ag 1.185.129/SP entendeu 0 Superior Tribunal de justiça que a anticrese é direito real sobre imóvel que “só se adquire com 0 registro no Cartório de Registro de Imóveis".

A anticrese brota de um contrato devidamente registrado no cartório de re­ gistro de imóveis. 0 credor anticrético está autorizado a adm inistrar 0 bem dado em garantia e extrair seus frutos e utilidades, apresentando, anualmente, balanço desta administração (CC, art. 1.507), constituindo título executivo extrajudicial (CPC, art. 764). Exemplifica-se com um imóvel locado dado pelo devedor em garantia do pa­ gamento de seu débito perante 0 credor. Este, portanto, passará a gerir 0 imóvel, apresentando anualmente balanço de sua administração, e com 0 lucro líquido a quitar a respectiva dívida. Segundo 0 Código Civil, é possível até mesmo 0 credor anticrético arrendar os bens dados em anticrese, salvo pacto em sentido contrário, visando à quitação da dívida (CC, art. 1.507, § 20). Em estando sob a administração do credor anticrético, este responderá pelas deteriorações que, por culpa sua, 0 imóvel venha a sofrer, bem como pelos frutos e rendimentos que por sua negligência deixou de perceber (CC, art. 1.508).

87. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direitos das Coisas. V. 4. 6a ed. São Paulo: Método, 2014. p. 541. 88. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizado por Luiz Edson Fachin. 19a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 406.

364

Direito Civil • Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

Nos termos do art. 1.423, I, do Código Civil, "0 credor anticrético tem direito a reter em seu poder 0 bem, enquanto a dívida não for paga; extingue-se esse direito decorridos quinze anos da data de sua constituição." ►E na hora da prova?

Ano: 2015 Banca: CONSULPLAN Órgão: TJ-MG Prova: Titular de Serviços de Notas e de Registro Sobre penhor, anticrese e hipoteca, nos termos do Código Civil brasilei­ ro, considere as seguintes afirmações: I.

0 credor anticrético tem direito a reter em seu poder 0 bem, en­ quanto a dívida não for paga; extingue-se esse direito decorridos quinze anos da data de sua constituição.

II. É anulável a cláusula que autoriza 0 credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com 0 objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. III. Os sucessores do devedor podem remir parcialmente 0 penhor ou a hipoteca na proporção dos seus quinhões. Está correto apenas 0 que se afirma em: a) l b) II c) I e II d) I e III Cabarito: letra a.

0 adquirente do bem dado em anticrese poderá rem i-los antes do vencim en­ to da dívida, pagando a sua totalidade e im itindo-se, de pronto, na posse (CC, art. 1.510). Ademais, 0 imóvel ofertado em anticrese poderá ser, ainda assim, hipotecado. Isso se conclui pela leitura do § 2° do art. 1.506 do CC. Há quem defenda, por conta disso, a denominada anticrese atípica, vale dizer, sobre bens móveis tais como navios e aeronaves.

Referências Bibliográficas ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mario Luiz. Código Civil Anotado. São Paulo: Méto­ do, 2005. BARBOSA MOREIRA, José. Posse. Vol. I, p. 1. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. T. 2, Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BARRUFINI, José Carlos. Usucapião Constitucional Urbano e Rural. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil. V. 3.

_____ . Direitos das Coisas. Brasília: Senado. 2003. Coleção História do Direito Brasileiro. V.

1.

BULOS, Uadi Lammêgo. "Função Social da Propriedade (Perspectiva Constitucional)". In CARRION, Valentin (diretor). Trabalho ft Processo. Revista Jurídica Trimestral. São Paulo: Saraiva, Setembro 1995. CHINELATTO, Silmara Juny de Abreu; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pro­ priedade e Posse: Uma Releitura dos Ancestrais Institutos. Em Homenagem ao Prof. José Carlos Moreira Alves in Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC. São Paulo: Padma. Ano 4, Vol. 14, Abril - Junho de 2003. CUNHA, Maurício; FIGUEIREDO, Roberto e DOURADO, Sabrina. Comentários ao Novo CPC. i a ed. Recife: Armador, 2015. DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. DE BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de Direito Civil. V. 3 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15a ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ______. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direitos das Coisas. 29a ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

_____ . Direitos das Coisas. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24a ed., São Paulo: S a ra iv a , 2009.

______. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 26a ed., São Paulo: Saraiva, 2011 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. FACHIN, Luís Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

_____ . Comentários ao Código Civil. V. 15.

366

Direito Civil •Direitos Reais - Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD JR, Nelson. Direitos Reais. 7a ed. Rio de Janei­ ro: Lumen Juris.

_____ . Curso de Direito Civil. v. 5: Reais. 10a ed. p. 57. Salvador: JusPodivm, 2014. ______; e ROSENVALD JR., Nelson. Curso de Direito Civil. Direitos Reais. V. 5. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2014. ______; FIGUEIREDO, Luciano; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; DIAS, Wagner Inácio Freitas. In Código Civil para Concursos. 2a ed. Salvador. JusPodivm, 2014. FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil. Obrigações e Responsabilida­ de Civil. Coleção Sinopses para Concursos. V. 11. 5a ed. Salvador: JusPodivm, 2016. FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil. Parte Geral. Coleção Sinopses para Concursos. V. 10. 4a ed. Salvador. FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

_____ . Instituições de Direito Civil. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1996. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. 5a ed. São Pau­ lo: Saraiva, 2010. _____ . Direitos das Coisas. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2012. HAENDCHEN, Paulo Tadeu; e LETTERIELLO, Rêmolo. Ação Reivindicatória. São Paulo: Sa­ raiva. KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do Individualismo e Propriedade. In TEPEDINO, Gustavo. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. KÜMPEL, Vitor Frederico. A Teoria da Aparência no Código Civil de 2002. Coleção Pro­ fessor Arruda Alvim. São Paulo: Método, 2007. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil, jus Navigandi, Teresina, a. 3/ n. 33, jul. 1999. Disponível em: . Acesso em: 03 maio 2004. LUDWIG, Marcos de Campos; VARELA, Laura Beck. In: Martins-Costa, Judith (org.). Da Propriedade às Propriedades: Função Social e reconstrução de um Direito. A Re­ construção do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos funda­ mentais constitucionais do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade. 3a Edição. São Paulo: RT, 2011. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, volume XIX. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol. 3, contratos, 39a ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

_____ . Curso de Direito Civil, V. 1, parte geral, 39a ed. São Paulo: Saraiva, 2003.