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Portuguese Pages 540 [542] Year 1989
Teologia sistemática
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
R128c
Rahner, Karl, 1904Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo / Karl Rahner: (tradução Alberto Costa; revisão Edson Gracindo). - São Paulo: Paulinas, 1989 (Coleção teologia sistemática) ISBN 85-05-00841-3 1. Teologia dogmática 1. Título. II. Título: Introdução ao conceito de cristianismo. III. Série: Teologia sistemática.
87-1948
CDD-230
lndices para catálogo sistemático: 1. Doutrina cristã: Religião 230
2. Teologia dogmática cristã 230
Coleção TEOLOGIA SISTEMÁTICA A Trindade como história, Bruno Forte Teologia do Batismo, Valter Maurício Goedert Curso f uandamental da fé, Karl Rahner Teologia do sacramento da penit~ncia, José Ramos-Regidor*
* No prelo
KARL RAHNER
CURSO FUNDAMENTAL DAFE Introdução ao conceito de cristianismo
EDIÇÕES PAULINAS
Titulo original Grundkurs des Glaubens © Herder, Freiburg im Breisgau, 1984 Tradução Alberto Costa Revisão Edson Gracindo
U> EDIÇÕES PAULINAS TELEX (11) 39464 (PSSP BRI Rua Dr. Pinto Ferraz, 183 04117 SÃO PAULO - SP END. TELEGR.: PAULINOS
Com aprovação eclesiástica
© EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1989 ISBN 85-05-00841-3· ISBN 3-451-20297-2 (Alemanha)
PRÓWGO
Para quem escrevemos este livro? Não é pergunta fácil de responder nem sequer pelo autor. Considerando a profundidade e a incompreensibilidade do mistério a que o cristianismo se refere, bem como a variedade imensa de pessoas a que ele dirige seu apelo, é claro que não podemos dizer algo sobre o conceito de cristianismo a todos ao mesmo tempo. Para algumas pessoas uma "introdução ao conceito de cristianismo" há de parecer muito "elevada", muito complicada e muito abstrata, ao passo que para outras poderá parecer ainda muito primitiva. O autor gostaria de se dirigir a leitores com certa cultura e que não têm medo de debater com os conceitos, e espera poder contar com pessoas para as quais o livro não seja nem muito avançado nem muito primitivo. Por isso as reflexões que faremos pretendem situar-se a um "primeiro nível de reflexão". Neste prólogo ainda não cabem sutis explicações e reflexões epistemológicas sobre o que vem a ser isso. O pressuposto para este empreendimento é simplesmente o seguinte: não pretendo, por um lado, repetir simplesmente o que o cristianismo prega nos catecismos e formulações tradicionais, antes quero tentar entender de maneira nova, tanto quanto possível em breve ensaio como o presente, esta mensagem, chegando a um "conceito" de cristianismo. Pretendo achegar da melhor maneira possível dos horizontes de compreensão dos homens de hoje este cristianismo, sem prejuízo do seu caráter singular e incomparável. Ao fazê-lo, não devemos proceder como se o cristão já não soubesse previamente a estas reflexões o que seja cristianismo. Mas também não é preciso informar simplesmente sobre o que se pode achar em qualquer catecismo cristão de tipo tradicional sobre a fé já de posse tranqüila de si. No intuito de realizar o que pretendemos, não podemos dispensar as fadigas da reflexão e do trabalho intelectual. Por outro lado, uma primeira introdução dessa natureza não pode afrontar todas as reflexões, problemas e aporias, que em 5
si ficam reservados para as respectivas especializações, tais como a teoria das ciências, a filosofia da linguagem, a sociologia da religião, a história das religiões, a fenomenologia da religião, a filosofia da religião, a teologia fundamental, a exegese e a teologia bíblicas, e, por fim, a teologia dogmática. Tratar de todos os pontos de vista neste vasto leque de referência é impossível para um livro do tipo que temos em mente e, hoje em dia, não é sequer tarefa para um só teólogo, e também seria inviável para o leitor que pode buscar este livro. Exigir isso seria impossibilitar dar "razão de nossa esperança" e tornar inacessível uma justificação intelectualmente honesta da fé cristã para o cristão que queremos ter como leitor. Tal leitor só poderia neste caso ser remetido ao catecismo da Igreja com o convite a que creia o que aí se ensina e assim salve sua alma. Este livro parte, portanto, da convicção - que busca confirmar por ela mesma - de que entre simples fé de catecismo, por um lado, e, por outro, a passagem por todas as ciências mencionadas - e várias outras mais - existe uma forma de justificar com honradez intelectual a fé cristã, a saber, a um nível que chamamos de "primeiro nível de reflexão". Tal possibilidade deve existir porque mesmo o teólogo de profissão pode ser competente em uma ou outra disciplina na melhor das hipóteses, não podendo absolutamente dominar todas. E essas em si só seriam necessárias se o teólogo se visse na necessidade de confrontar, de maneira explícita e cientificamente adequada, a sua teologia com todas as questões e tarefas destas disciplinas. Também em outras áreas de sua vida o homem não vive a totalidade da sua existência e suas dimensões particulares muito amplas a partir de estudo reflexo de todas as ciências modernas, e contudo pode e deve ser responsável diante de sua consciência intelectual de forma indireta e sumária por essa totalidade de sua existência. A partir dessas observações, este livro pretençle expressar a totalidade do cristianismo e dar-lhe honesta justificação racional a um "primeiro nível de reflexão". O próprio leitor é quem deverá decidir se essa meta será alcançada. Mas ele também deve ser crítico para consigo mesmo, perguntando-se se acaso a falha em conseguir a meta não procede dele mesmo. E isso com certeza não se descarta de antemão. Essa tentativa de se mover a um primeiro nível de reflexão para tematizar e legitimar o todo do cristianismo em seus traços fundamentais pode, com certeza, designar-se como "pré6
científico". Mas quem faz isso deve perguntar-se se hoje em dia alguém está em condições de refletir sobre o todo de sua existência de outra maneira que não seja essa forma "pré-científica". Deve perguntar-se se teria muito sentido em um empreendimento dessa natureza assumir atitude "científica" segundo os moldes das ciências atuais que nenhum indivíduo pode mais dominar. Que também se interrogue se tal reflexão "pré-científica,, não exige tanta precisão e tanto esforço de pensamento, que se possa colocar confiadamente lado a lado da cientificidade das muitas disciplinas particulares científicas. Estas também seriam "em si" importantes para uma reflexão da natureza a que nos propomos. Mas elas não podem mais ser usadas diretamente pelo teólogo ou cristão individual, quando este tenta colocar..;se perante a totalidade una do cristianismo em época em que todas essas ciências particulares devem evidentemente continuar a ser intensamente cultivadas, mas que, em virtude de sµa complexidade e do pluralismo de seus métodos, se subtraem corno tais do âmbito em que um só indivíduo cristão - inclusive teólog9 - deve responder de imediato por seu cristianismo. Existe requintada especialização - que em si se justifica inteiramente - nas disciplinas teológicas particulares. Mas essa deveria ser evitada aqui. O tema "Curso Fundamental da Fé" vem ocupando o Autor desde vários anos. Quando professor em Munique e Münster tratei desta matéria duas vezes sob o título de "introdução ao conceito de cristianismo". Em virtude dessa sua procedência, o livro apresenta várias características que, ao reelaborá-lo para publicação, não queríamos eliminar. Por exemplo, as divisões particulares, considerando a maior ou menor importância eventual de seus temas e comparando-as entre si, podem não apresentar a extensão que merecem, pois este "ideal" é difícil de alcançar nas aulas. Ademais, se começarmos com a questão geral e abstrata referente ao que se poderia ou deveria tratar em semelhante "introdução ao conceito de cristianismo", a seleção que fizemos pode parecer um tanto arbitrária. Mas tal é inevitável. A este respeito, alguns poderão de início sentir a falta de tratamento mais avantajado da possibilidade de afirmações religiosas e teológicas em geral sob o prisma da teoria do conhecimento e da teoria da ciência. Alguns poderão ter a impressão de que importantes temas dogmáticos foram tratados com excessiva brevidade, como, por exemplo, a teologia trinitária, a teo7
logia da cruz, a doutrina sobre a vida cristã e sobre a escatologia, bem como outros tópicos. Outros descobrirão que os aspectos sociopolítico e sociocrítico do cristianismo não foram desenvolvidos. E para outros, ainda, as seções 8 e 9, na melhor das hipóteses, mal esboçam a temática de que tratam. Em referência a essas e semelhantes constatações dos limites deste livro, o Autor só pode dizer para se justificar o seguinte: todo autor tem o direito de fazer seleção. Mas ele pode também perguntar por sua vez: como se poderia evitar essa ou semelhante seleção em livro tão breve, de apenas 500 páginas aproximadamente, o que não é tão extenso em vista do tema tratado? E que, de mais a mais, constitui tentativa de apresentar uma primeira introdução a tema tão vasto como a totalidade do conceito de cristianismo? Deveríamos declarar inicialmente que uma tentativa dessa seria impossível e inexeqüível, se não pudéssemos nos permitir limitações inevitáveis. Sem dúvida alguma, o tema pode ser mais bem tratado do que acontece neste livro. Porém mesmo uma execução mais adequada dessa tarefa não deixaria de topar com limites, os quai~ certamente não deixariam de ser percebidos tanto pelo leitor como pelo Autor deste livro. Tendo em vista a origem deste livro e seu caráter introdutório, o Autor considerou supérfluo acrescentar notas explicativas de rodapé e referências bibliográficas. No quadro deste livro, isto poderia parecer desnecessária ostentação erudita, algo que o Autor não pretende. Ele também decidiu não citar trabalhos próprios com temática correspondente, ainda que não poucas vezes tivesse a impressão de ter escrito com precisão e amplidão maiores em outros lugares sobre determinados tópicos. Assim, foram retomados neste livro textos já publicados em outras obras, em uma reelaboração bem diferenciada e em nova organização de conjunto. Isso inclui o primeiro capítulo da seção segunda (cf. Karl Rahner, Gnade ais Freiheit, Friburgo de Brisgóvia, 1968, Herderbücherei 322, pp. 11-8) e sobretudo textos mais extensos da seção sexta sobre a cristologia que em parte foram retomados de "Schriften zur Theologie" (cf. sobre os capítulos 1.4 e 10: Karl Rahner, Schriften zur Theologie, vol. 5, Einsiedeln, 1962, pp. 183-221; vol. 4, Einsiedeln, 1962, pp. 137-55; e vol. 12, Zurique, 1975, pp. 370-83) e em parte da Cristologia," que publiquei juntamente com Wilhelm Thüsing, Christologie-·systematisch und exegetisch, Friburgo de Br., 1972, Quaestiones Disputatae 55, esp. pp. 18-71. No capítulo de conclusão também reelaborei 8
um artigo já antes publicado (cf. Karl Rahner, Schriften zur Theologie, vol. 9, Einsiedeln, 1970, pp. 242-56). Talvez uma coisa que poderá surpreender à primeira vista o leitor seja a ausência quase total de citações bíblicas como provas do que se afirma. Esse fato explica-se por várias razões, que devem ser vistas conjuntamente. Em primeiro lugar, o Autor não quer dar a mínima impressão de ser exegeta que trabalha como cientista especializado neste campo específico. Mas ele espera que no conjunto tenha se informado suficientemente sobre os problemas e resultados da exegese e teologia bíblica atuais, que aqui se devem pressupor, em vista da natureza e propósito deste livro. Além disso, o leitor pode ter acesso ao material exegético especializado ou de divulgação. Aqui podemos e devemos pressupor este material, se é que este livro não deve ultrapassar seus limites ou perder seu caráter introdutório ao conceito de cristianismo. O cristianismo é, com certeza, religião que repousa sobre acontecimentos históricos bem determinados. A extensão da seção sexta, que constitui quase um terço de toda a matéria, dá testemunho à sua maneira do fato de que o Autor está consciente da natureza histórica do cristianismo. E, de mais a mais, esses acontecimentos históricos devem ser levantados das "fontes". Mas essa investigação básica e crítica das fontes pode e deve-se pressupor em uma primeira introdução ao conceito de cristianismo. Podemos e devemos nos limitar a informar brevemente e da maneira mais conscienciosa que nos seja possível o que este trabalho básico sobre as fontes produziu de material para reflexão sistemática. Se tentássemos mais do que isto aqui, o resultado não seria nenhum trabalho exegético sério, não passando de espalhafato pseudocientífico sem proveito para nada. Finalmente, a teologia que trabalha sistemática e conceitualmente não constitui mero apêndice das questões problemáticas no campo da exegese e teologia bíblica. Se em um só livro é impossível executar as duas tarefas, então é melhor e mais honesto evitar também a impressão de que se pretendem ambas as coisas de uma só vez. Se o que aqui se oferece é uma introdução, o leitor não poderá esperar que este livro seja como que a síntese final do trabalho prévio do Autor no campo da teologia. Não o é nem quer sê-lo. Se bem este curso fundamental, em virtude mesma de seu 9
tema, tenha caráter mais amplo e sistemático do que as outras publicações teológicas do Autor. No começo da obra apresentamos breve visão geral dos temas e no fim acrescentamos um índice mais compreensivo do conteúdo. A breve visão geral permite ao leitor rápida visão de conjunto do livro, e o índice mais amplo detalha o curso das reflexões, constituindo-se, assim, também como que índice analítico. Na longa história deste livro desde 1964 o Autor recebeu muita ajuda. Ele não pode mencionar nominalmente a todos os que durante todos estes anos lhe prestaram auxílio em Munique e Münster. Mas, além de meus dois confrades da Companhia de Jesus, Karl H. Neufeld e Harold Schõndorf, devo mencionar ainda duas outras pessoas: Elisabeth von der Lieth, em Hamburgo, e Albert Raffelt, em Friburgo de Brisgóvia, cuidaram de grande parte da redação definitiva do texto, ordenando e abreviando o texto original das aulas. A eles agradeço com sinceridade e de coração. Munique, julho de 1976 Karl Rahner, sj
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INTRODUÇÃO
1. REFLEXÕES PRÉVIAS DE CARÁTER GERAL
Este livro tenta apresentar uma "introdução ao conceito de cristianismo". Trata-se, pois, em primeiro lugar, apenas de introdução e nada mais. É claro que um empreendimento desta natureza aproxima-se mais de decisão pessoal pela fé do que outras publicações científicas ou teológicas e do que os cursos acadêmicos. Não obstante, o que se visa aqui é uma introdução no quadro da reflexão intelectual e não direta e imediatamente uma explanação com propósitos de edificação religiosa, embora seja claro que a relação entre uma teologia do espírito e da inteligência e uma teologia do coração, da decisão e da vida religiosa coloca problema muito difícil. Em segundo lugar, o que se pretende é uma introdução ao conceito de cristianismo. Pressupomos de início a existência de nossa própria fé pessoal cristã em sua configuração normal eclesial, e, em terceiro lugar, tentamos obter o conceito dele. Esta palavra "conceito" acrescenta-se para que fique claro que aqui se trata, para falar como Hegel, de "Anstrengung des Begriffs" ("esforço conceituai"). Quem busca apenas inspiração religiosa e quer poupar-se este esforço de reflexão paciente, trabalhosa e monótona, não deveria aventurarse a acompanhar essa investigação. Pela própria natureza da coisa, essa introdução é um experimento. Não se sabe de antemão do êxito final, mal ou bem logrado, do experimento. Pois este depende também do leitor destas páginas. Neste livro trataremos não deste ou daquele tema particular da teologia, mas, para alguém que é cristão ou quer sê-lo, abordaremos o todo de sua própria existência. É claro que haveremos de mostrar, e esta será dimensão que vai estar presente por toda parte, que uma pessoa pode ser cristã sem ter examinado a totalidade de sua existência cristã de maneira cientificamente adequada, sem que por isso se possa questionar sua honestidade intelectual, porque ela é incapaz de fazê-lo e, em conseqüência, também disso não precisa. 11
Para o cristão, a existência cristã é em última análise a totalidade de sua existência. E essa totalidade abre-se para os obscuros abismos do deserto daquele que chamamos Deus. A pessoa, quando empreende algo dessa natureza, coloca-se perante os grandes pensadores, os santos, e finalmente Jesus Cristo. Os abismos da existência se abrem à sua frente. E vem a saber que não pensou o bastante, que não amou o bastante, que não sofreu o bastante. Sempre houve tentativas como essa de se colocar perante os próprios olhares como uma totalidade única a estrutura do cristianismo, da fé e vida cristã, ainda que apenas em reflexão teórica. Toda profissão de fé, a começar pelo "símbolo dos apóstolos" até o "credo do povo de Deus" do papa Paulo VI, constitui tentativa semelhante de formular a fé cristã e a compreensão cristã da vida de forma breve e condensada, ou seja, constitui introdução ao cristianismo ou ao conceito de cristianismo, ainda que bastante breve. O Enchiridion de jide, spe· et caritate de santo Agostinho, o Breviloquium de são Boaventura, ou o Compendium theologiae ad fratrem Regina/dum de santo Tomás de Aquino, no fundo, são também tentativas deste tipo que buscam obter visão global relativamente breve do todo e do essencial do cristianismo. Mas é preciso que sempre se tente de novo fazer tais reflexões sobre a totalidade una do cristianismo. Elas sempre são condicionadas, pois é evidente que a reflexão em geral, e particularmente a teológico-científica, jamais abarca nem pode abarcar a totalidade implicada na vivência da fé, esperança e caridade, e na oração. É precisamente esta constante e inabarcável diferença entre a realização original da existência e a reflexão sobre ela que ocupará sem cessar nossa atenção. Intuir esta diferença constitui percepção essencial que é necessário pressuposto para introdução ao conceito de cristianismo. O que em última análise queremos é apenas refletir sobre a simples questão: "Que é um cristão, e como se pode viver essa existência cristã hoje em dia com honestidade intelectual?" A questão parte do fato do cristianismo, embora este apareça de forma bastante diferente em cada indivíduo cristão hoje. Essa diferença está determinada por graus diversos de maturidade em cada pessoa, pelas situações sociais muito diferentes e, em conseqüência, também pelas situações religiosas diferentes, bem como pelas características peculiares· psicológicas de cada pessoa 12
etc. Mas queremos também refletir sobre este fato de nosso cristianismo, buscando justificá-lo perante as exigências da nossa consciência de verdade e assim dando "razão de nossa esperança" (lPd 3,15). . 2. OBSERVAÇÕES PRÉVIAS DE CARÁTER TEÓRICO-CIENTÍFICO
A exigência de um curso de introdução segundo o .Concílio Vaticano II O estímulo para perguntarmos pela natureza e pelo sentido de uma "introdução ao conceito de cristianismo", como curso fundamental na teologia, veio-nos do decreto do Concílio Vaticano II sobre a formação dos presbíteros, onde se diz: Na reestruturação dos estudos eclesiásticos, atenda-se principalmente a que as disciplinas filosóficas e teológicas sejam mais bem articuladas entre si. Concorram harmoniosamente para abrir, sempre mais, às mentes dos alunos o mistério de Cristo, que atinge toda a história do gênero humano, influi continuamente na Igreja e opera sobretudo através do ministério sacerdotal. Para comunicar esta visão aos educandos desde o limiar da formação, os estudos eclesiásticos comecem com um curso introdutório a prolongar-se por tempo suficiente. Nesta iniciação dos estudos, apresente-se de tal modo o mistério da salvação, que os alunos apreendam o sentido, a ordem e o fim pastoral dos estudos eclesiásticos e simultaneamente se sintam ajudados em consolidar e impregnar toda a sua vida pela fé e confirmados na vocação mediante entrega pessoal e espírito alegre (Optatam totius, 14).
O decreto está a pedir unidade interna entre filosofia e teologia. A teologia assim entendida deve propor-se como tema geral a concentração de toda a teologia em torno do mistério de Cristo. Este todo da teologia deve ser apresentado ao jovem teólogo em um curso de introdução suficientemente longo, um curso em que o mistério de Cristo seja apresentado de forma tal que o sentido, a estrutura e a finalidade pastoral dos estudos teológicos se tornem claros para os estudantes já desde o início de seus estudos de teologia. O curso deverá ajudá-lo a melhor fundamentar sua vida pessoal e presbiteral como vida de fé e fazer com que esta fé impregne toda sua vida. E assim fica dada a 13
importância desta introdução para sua existência cristã, teológica e presbiteral. Surge então a pergunta se existe fundamentação teóricocientífica para semelhante curso de introdução como disciplina especial, autônoma e responsável, e que não seja apenas piedosa introdução à teologia em geral. Se existe algo assim e se falam razões em seu favor, então daí deveriam derivar-se o método específico e a forma concreta deste curso fundamental, cuja importância não se restringiria à tarefa da formação de presbíteros.
A "enciclopédia teológica" no século XIX A enciclopédia, tal como foi concebida originalmente no século XIX, conserva ainda interesse para este contexto. Ela não visava apenas coligir os conteúdos de todo o saber teológico então conhecido, mas se propunha reconstruir este saber a partir de sua origem e em sua unidade. Podemos recordar aqui o teólogo de Tubinga, Franz Anton Staudenmaier. De acordo com sua Enciclopédia de 1834, essa disciplina apresentaria a "visão sistemática de toda a teologia", o "esboço condensado de sua idéia concreta em todas as suas determinações essenciais". Ele escreve o seguinte: "Pois, assim como o espírito humano é or"gânico e sistema de forças vivas, assim também ele quer ver no conhecimento científico um organismo, um sistema, e não repousa enquanto não produziu, mediante sua atividade organizadora, um nexo sistemático entre as partes essenciais que constituem o conteúdo. Este nexo sistemático entre as diversas partes de uma ciência segundo seus conceitos básicos essenciais é exposto na enciclopédia". A enciclopédia, segundo ele, desenvolve o nexo necessário e orgânico de todas as partes da teologia, e assim apresenta as partes como verdadeira ciência à medida que as compreende na unidade e totalidade de suas ramificações. Ela é verdadeiro organismo e porta em si seu princípio de vida. Buscava-se, portanto, entender, a partir da unidade da teo'." logia, suas diferentes disciplinas. E, ademais, o enciclopedista queria entender a diferença entre teologia e filosofia, entre revelação e razão à luz de seu inter-relacionamento mútuo também pensado em sua origem. Procedendo dessa forma, ele visava al14
cançar o conteúdo propriamente dito da própria teologia e assim oferecer adequada introdução. Coisa semelhante podemos encontrar em Johann Sebastian Drey, por exemplo, ou nas preleções de Schelling de 1802, "sobre o método do estudo acadêmico". A prática dessa introdução enciclopédica à teologia certamente traiu essa grandiosa concepção de base. Pois o assunto de que tratava a teologia era exposto objetivamente e o conteúdo da revelação era assim assacado a cada uma das disciplinas materiais da teologia. E, assim sendo, sobrava para tratar na fundamentação formal da teologia apenas a maneira como se adquire o material, como ele se estrutura em ciência e é interpretado subjetivamente. À medida que a enciclopédia fez isso, conduziu-se ao absurdo, pois então perdeu todo contato real com o seu conteúdo. Basicamente era ela apresentada apenas como espécie de introdução a tudo o que se passava na t~ologia, como visão global e introdução para principiantes. Mas no fundo uma enciclopédia deste tipo é supérflua, pois ela fala, por um lado, de maneira demasiadamente geral e não vinculante, e, por outro lado, não oferece nada que não se deva dizer de novo a título de introdução no início de cada uma das disciplinas. Em conseqüência, para fundamentar um curso de introdução podemos apelar legitimamente à intenção original da enciclopédia teológica do século XIX. Mas não podemos nos apoiar em sua execução de fato. E, de mais a mais, a questão de sua fundamentação teórica deverá ser retomada de maneira nova em vista da situação hodierna da teologia e do seu destinatário.
O destinatário da teologia, hoje Em média as pessoas que buscam o estudo da teologia hoje, e não se trata só dos que se preparam para o presbiterado, não se sentem seguras em uma fé que seja tida como coisa óbvia e seja apoiada por meio ambiente religioso homogêneo e comum a todos. Também o jovem teólogo está de posse de uma fé sob desafio e que não se pode tomar de maneira nenhuma como algo de óbvio sem mais, uma fé que hoje deve ser sempre conquistada de novo, sempre no processo de se constituir. E ele não precisa envergonhar-se disso. Pode reconhecer tranqüilamente essa situação que lhe é anterior, pois que ele hoje vive em situação espiritual, e até mesmo procede de tal situação, em que o cristianismo não aparece como algo de óbvio e indiscutível. 15
Há trinta ou quarenta anos atrás, quando eu mesmo estudava teologia, o estudante de teologia era uma pessoa para quem o cristianismo, a fé, sua vida religiosa, a oração, e a firme intenção de servir em uma atitude totalmente presbiteral bem normal eram coisas óbvias. Podia ter, durante os anos de estudo, certos problemas teológicos. Na teologia ele refletia talvez de modo bem profundo, buscando exatidão e penetração em cada questão teológica. Mas tudo isso acontecia com base na aceitação do cristianismo como óbvio, e que existia por meio de educação religiosa também tida como óbvia e em meio ambiente cristão que também se tinha como óbvio. Nossa fé estava essencialmente condicionada em parte por situação sociológica bem determinada que naquele tempo como que nos carregava, e que hoje não mais existe. · Ora, isso significa que o estudo da teologia deve levar em conta esta situação. Que seria um disparate tivessem os professores de teologia como ideal supremo demonstrar logo de início aos jovens teólogos o seu gabarito científico e a problemática imediata de suas disciplinas especializadas. Se os estudantes de teologia vivem hoje em situação de crise para sua fé, então o início dos estudos teológicos deve vir-lhes em auxílio, tanto quanto possível, no sentido de que eles possam superar e dominar com honestidade intelectual essa situação crítica de sua fé. Se considerarmos os dois aspectos mencionados da situação pessoal dos jovens teólogos de hoje, se estivermos convencidos de que a própria teologia deve responder a essa situação logo de início, então deveremos dizer que as disciplinas teológicas concretas, como são apresentadas hoje, não conseguem exercer sozinhas esta tarefa. Elas são em demasia ciências por causa de si mesmas, elas estão muito dispersas e fragmentadas para poderem responder suficientemente à situação dos estudantes de teologia hoje. A essa razão para "curso fundamental" devida a estímulo externo, ou seja, devida a apelo do Concílio Vaticano II, acresce razão ainda mais básica para levar a cabo a um primeiro nível de reflexão o que um "curso fundamental" deve realizar. Tal primeiro nível de reflexão, cuja natureza ainda haveremos de esclarecer, é necessário por causa do pluralismo das ciências teológicas, que não mais podem reduzir-se adequadamente a uma unidade integrada. Mas aí topamos com um dilema. Este primeiro nível de reflexão tem a tarefa, em uma espécie de mano16
bra legítima de evasão, de evitar investigação cientificamente exata e completa de todas as disciplinas teológicas - empreendimento que é praticamente irrealizável-, e todavia chegar a uma afirmação intelectualmente honesta da fé cristã. Mas o rigor intelectual e científico que tal primeiro nível de reflexão exige não é menor do que cada disciplina teológica em particular exige de seus estudantes. As exigências teórico-científicas de um curso fundamental não se podem reconciliar facilmente com o fato de que no nível de sua execução prática ele deve ser estruturado tendo em vista a situação atual do principiante em teologia. O título "curso fundamental" pode facilmente dar a falsa impressão de que nos havemos com uma introdução que baratamente liberte o teólogo iniciante da busca do rigor de pensamento. Por outro lado, porém, o curso deve reconhecer que ele está tentando ajudar a um principiante a iniciar seus passos na teologia como um todo. E evidentemente é muito difícil realizar ao mesmo tempo essas duas exigências. Em todo caso, porém, é a fundamentação teórico-científica para o curso fundamental e não a pedagógica e didática que é decisiva.
O pluralismo na teologia e filosofia de hoje A teologia de fato se fragmentou em uma multiplicidade de disciplinas setoriais. Cada uma delas oferece enorme soma de material obtido mediante sua metodologia própria muito matizada e difícil e tendo pouco contato com as outras disciplinas teológicas vizinhas e afins. Precisamos reconhecer sobriamente esta situação da teologia contemporânea, não nutrindo esperanças de que este estado de coisas possa vir a ser mudado pelo trabalho das próprias disciplinas teológicas. Existe na verdade um esforço que se faz na teologia no sentido de obter relacionamento mais estreito entre dogmática e exegese, por exemplo, ou no sentido de fazer mais teologia no Direito Canônico do que se fazia uns vinte anos atrás. É claro que esforços dessa natureza para estabelecer contatos são de grande utilidade. Mas eles não estão mais em condições de superar o pluralismo vigente na teologia hoje. E este pluralismo também não se pode superar mediante a prática do trabalho em equipe, método tão aplaudido hoje. É claro que ainda é pouco o trabalho feito em grupo, trabalho sempre necessário e importante. Mas nas ciências humanas to17
do trabalho de grupo encontra limite niuito claro. Nas ciências naturais, resultados comprovados exatamente podem se intercambiar entre uma especialização e outra, entre um pesquisador e outro. Eles podem ser entendidos até certo ponto, e em todo caso podem ser utilizados sem que se tenha de avaliar o método, a maneira como foram obtidos os resultados e a certeza destes. Mas nas ciências humanas a real compreensão de uma afirmação e avaliação de sua validade dependem da participação pessoal de cada um na descoberta do que se afirma. E é precisamente isto que não mais é possível na teologia para o representante de outra disciplina. . Um segundo aspecto em toda essa situação resulta de pluralismo semelhante também na filosofia hoje. A filosofia neoescolástica, tal como nós os teólogos de mais idade bem ou mal aprendemos um dia, já não mais existe. A filosofia se espatifou hoje em um pluralismo de filosofias. E este pluralismo irrecuperável e invencível da filosofia é fato hoje de que não podemos fugir. Toda teologia é certamente e sempre teologia que nasce das antropologias e auto-interpretações seculares do homem, que como tais nunca entram por completo, mas apenas em parte, nestas filosofias explícitas. E, em conseqüência, essa situação uma vez mais produz necessariamente enorme pluralismo de teologias. Além disso, precisamos ter clareza sobre o fato de a filosofia ou as filosofias hoje não mais representarem sozinhas o único, óbvio e suficiente ponto de contato em que a teologia entra em relação com o conhecimento e a autocompreensão do homem secular. A teologia só é teologia que possa ser genuína pregação somente à medida que logra estabelecer contato com o todo da autocompreensão secular do homem em determinada época, que logra entrar em diálogo com ela, logra apreendê-la e deixar-se enriquecer por ela em sua linguagem e mais ainda na própria temática da teologia mesma. Temos, pois, hoje em dia, não só fragmentação interdisciplinar da teologia, temos não só pluralismo de filosofias que não mais pode ser dominado e elaborado por um indivíduo somente, mas além disso estamos perante o fato de as filosofias não mais fornecerem as únicas auto-interpretações do homem que sejam importantes para ateologia. Pelo contrário, como teólogos hoje devemos necessariamente entrar em diálogo com um pluralismo de ciências históricas, sociológicas e naturais, diálogo não mais mediado pela fi18
losofia. Estas ciências não mais se dobram à pretensão da filosofia de que devam ser filosoficamente mediadas ou explicadas pela filosofia, e até mesmo que elas possam ser esclarecidas pela filosofia. Desde aí se explica a dificuldade de teologia científica. A própria teologia se tornou multidão de ciências particulares, de que não se pode mais obter visão geral. Ela precisa estar em contato com um sem-número de filosofias para que possa ser científica neste sentido imediato. Mas também deve manter contato com as ciências que não mais admitem interpretação filosófica. Finalmente, acresce a variada manifestação não-científica da vida do espírito na arte, na poesia e na sociedade, multiplicidade tão vasta que nem tudo que aí aparece é mediado quer pelas filosofias quer pelas próprias ciências pluralistas, e contudo representa uma forma do espírito e da autocompreensão humana com que a teologia tem que ver de alguma forma. A justificação da fé a um primeiro nível de reflexão Na teologia dogmática, no tratado dogmático De Jide (sobre a fé corno tal), existe urna parte chamada analysis Jidei. Esta análise da fé considera a estrutura interna dos argumentos da teologia fundamental em favor da credibilidade da fé, assim como também a importância que estes têm para a fé e o ato de fé. Diz que estas provas ou argumentos de credibilidade, corno os entende a concepção católica, não estabelecem intrinsecamente a fé em seu caráter propriamente teológico corno assensus super omniafirmus propter auctoritatem ipsius Dei revelantis (como assentimento mais firme do que tudo à autoridade do próprio Deus que revela). Mas diz também que, não obstante, eles fazem parte da fé e que estes argumentos de credibilidade exercem urna função na fé corno um todo. Mas neste contexto se admite que, em certas circunstâncias e para as pessoas que carecem de cultura teológica erudita ou para os rudes, urna teologia fundamental inteira de nível reflexivo-temático, e mesmo urna forma abreviada dela, não é necessária corno pressuposto da fé. E por aquela razão a fé não se lhes torna, portanto, impossível, porque ela é possível de outras maneiras. A antiga teologia da fé sempre teve a convicção de que, para os rudes ou pessoas sem educação erudita, chegar à fé através de reflexão sobre todos os motivos intelectuais de credibilidade não é possível nem necessária. 19
Assim sendo, gostaria de formular a tese de que na situação de hoje todos nós com todo o nosso estudo de teologia somos e permanecemos rudes em certo sentido, e devemos admiti-lo franca e corajosamente perante nós mesmos e perante o mundo. Ao afirmar isso não estou a oferecer salvo-conduto para a preguiça, a inércia e a indiferença intelectual com referência a afirmações da fé ou sua fundamentação na teologia fundamental. Nenhum salvo-conduto para a preguiça e indiferença diante da responsabilidade por nossa esperança e nossa fé que, concretamente, é necessária para todo indivíduo em sua situação particular e que também, em conseqüência, se lhe impõe. Mas com respeito a muitas reflexões teológicas posso muito bem dizer: "Não consigo levá-las a termo e conseqüentemente também não preciso consegui-lo". Obviamente posso, sem embargo, ser um cristão que vive sua fé com a honradez intelectual que se exige de toda pessoa. Segue dessa constatação a possibilidade teóricocientífica de dar fundamentação da fé e que seja anterior ao desempenho e método da hodierna pesquisa científica tanto teológica como secular. Assim, essa justificação da fé implica ateologia fundamental e a dogmática vistas em unidade. Exerce-se a um primeiro nível de reflexão na fé que dá razão de si mesma. Este nível deve distinguir-se de um segundo nível de reflexão, onde as ciências teológicas em seu pluralismo, cada uma em sua área e cada uma com o seu próprio método específico, dão razão de si mesmas de uma maneira que, no que se refere ao todo da fé, não é acessível para todos hoje e com maior razão para os que se iniciam na teologia. Este cientificamente primeiro nível de reflexão sobre a fé e sobre a possibilidade de ela se responsabilizar de maneira intelectualmente honrada por si, constitui uma primeira ciência de direito próprio. Da forma como as disciplinas teológicas particulares são entendidas hoje em dia, elas estão de tal sorte constituídas em seu conteúdo, na amplitude de sua problemática e na diferenciação de seus métodos, bem como na dificuldade de seu aprendizado, que não mais podem oferecer a uma pessoa concreta aquela compreensão básica da fé e o seu fundamento que, por um lado, ela necessita e como ser inteligente exige, mas que, por outro lado, não pode receber através destas ciências como tais. Deve haver possibilidade teórico-científica de fundar a fé que seja anterior a essa legítima tarefa e metodologia das hodiernas disciplinas. 20
Essa outra maneira de fundar a fé, que não retoma toda a tarefa das disciplinas teológicas, nem examina todos os pressupostos metafísicos sobre que se baseia a fé, nem passa pelas ciências de introdução, pela exegese, pela teologia do Novo Testamento etc., não precisa por essa razão deixar de ser científica. O caráter não-científico dessa espécie diferente de disciplina por nós buscada está no objeto, e não no sujeito e no seu método. Reconheço que hoje em dia já não mais posso percorrer a totalidade da teologia que hoje se radica em pluralismo de filosofias e outras ciências e que, em conseqüência, se acha como que dispersa de muitas formas. Mas também sei como cristão que não preciso percorrer este caminho para refletir intelectualmente sobre a justificação de minha existência cristã. E, assim, reflito agora com toda a exatidão e rigor, ou seja, de maneira científica, sobre aquela maneira de justificar a fé e, com certeza, também sobre o conteúdo da fé, que me poupa de ter de entrar por aquele outro caminho que percorre todas as ciências teológicas e seculares na busca da primeira justificação intelectual de minha fé. Poupa-me disso pelo menos provisoriamente no começo dos estudos e de maneira permanente quanto à maioria dos problemas teológicos. Existe um "sentido ilativo", para falar com o cardeal Newman, precisamente naquelas áreas que implicam decisão que atinge toda a pessoa. Existe uma convergência de probabilidades, uma certeza, uma decisão honesta e responsável que é conjuntamente conhecimento e ato livre. Ela possibilita, para falar em paradoxo, caráter científico para a não-cientificidade em questões vitais desta natureza. Existe um primeiro nível de reflexão que deve ser distinguido do nível de reflexão da ciência no sentido atual, porque a vida e a existência o exigem. É este primeiro nível de reflexão que se visa em um curso fundamental, o primeiro passo nos estudos teológicos.
Sobre o conteúdo da introdução Em uma primeira reflexão sobre a existência pessoal cristã e sua justificação, como· o curso de introdução tem o propósito de oferecer, situamo-nos sem dúvida a um nível em que há unidade de filosofia e teologia, porque estamos a refletir sobre o todo concreto da auto-realização humana de um cristão. E isso já é propriamente "filosofia". Pensamos sobre uma existência 21
cristã e sobre a justificação intelectual de uma auto-realização cristã, e isto já é basicamente "teologia". Justifica-se teórica, prática e didaticamente que façamos filosofia aqui no seio da própria teologia. E essa "filosofia" não precisa ter nenhum escrúpulo por estar continuamente penetrando nos domínios próprios da teologia. Essa unidade originária já está dada na vida concreta do cristão. Ele é um cristão que crê e é ao mesmo tempo, e na verdade como exigência de sua própria fé, uma pessoa que reflete sobre o todo de sua existência. Aí encontramos os dois momentos, a objetividade teológica e a filosófica, e na sua vida pessoal ambas as realidades entram desde o início em unidade pelo menos de princípio. Caracteriza essa unidade o fato de que em seu devido lugar se faça referência explícita a dados teológicos que eventualmente não possam ser alcançados por filosofia secular como tal. Se quiséssemos formular a unidade entre filosofia e teologia nesse curso fundamental de forma um tanto diferente, poderíamos dizer que no curso fundamental devemos refletir primeiramente sobre o homem como a questão universal que ele é para si mesmo, e, em conseqüência, fazermos filosofia no sentido mais próprio do termo. Essa questão, que o homem é e não só faz, deve-se considerar como a condição da possibilidade de a resposta cristã vir a ser escutada. Em segundo lugar, sobre as condições transcendentais e históricas que tornam possível arevelação deve-se refletir da maneira e nos limites que são possíveis no primeiro nível de reflexão, de tal sorte que se veja o ponto de mediação entre pergunta e resposta, entre filosofia e teologia. Por fim, em terceiro lugar devemos pensar a afirmação fundamental do cristianismo como resposta à questão que o homem é, e, em conseqüência, deveremos fazer teologia. Estes três momentos condicionam-se mutuamente e, conseqüentemente, constituem unidade, unidade sem dúvida diferenciada. A questão cria a condição de ouvir realmente, e somente a resposta leva a pergunta à sua existência reflexa. Este círculo é essencial e no curso fundamental não se deve buscar dissolvê-lo, mas se deve refletir sobre ele como tal. Por força de sua própria natureza, o curso fundamental deve caracterizar-se necessariamente por peculiar unidade de teologia fundamental e teologia dogmática. A teologia fundamental corrente, que realmente se entende mal a si mesma em sua auto-
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compreensão, apresenta característica que neste curso fundamental enquanto curso fundamental não pode ser praticada. Essa característica da teologia fundamental tradicional desde o século XIX até os nossos dias consiste em refletir a faticidade da revelação divina como que de maneira meramente formal, e que, pelo menos em certo sentido, deve ser demonstrada. Assim como a teologia fundamental é comumente entendida, ela não considera nenhum conteúdo teológico particular nem qualquer dogma concretamente, a não ser quando ela já se torna de imediato eclesiologia dogmática. Com isso, porém, ela incide em estranha dificuldade, pelo menos desde o ponto de vista do que se visa com este curso fundamental. Em nosso curso fundamental trata-se precisamente de criar condições para que as pessoas, a partir dos próprios conteúdos do dogma, tenham confiança de que podem crer com honestidade intelectual. Mas de fato a verdade é que uma teologia fundamental do tipo tradicional, não obstante sua clareza, precisão e rigor formais, com muita freqüência permanece estéril para a vida de fé porque a pessoa concreta, e sem dúvida com certa razão de natureza teórico-cognitiva, tem a impressão de o fato formal da revelação não ser assim pura e simplesmente tão claro e certo. Em outros termos, se este curso fundamental faz o que deve fazer, é preciso buscar unidade entre teologia fundamental e teologia dogmática, entre fundamentação da fé e reflexão sobre o conteúdo da fé que seja maior da que se obtinha até o momento nas disciplinas teológicas e em suas divisões. E não vale objetar contra isso afirmando-se que as verdades centrais da fé são mistérios em sentido estrito. Com certeza o são. Mas não se deve identificar o mistério com afirmação que não tenha sentido para nós, sendo-nos assim inatingível. Se, porém, o horizonte da existência humana que funda e abarca todo o conhecer humano é de início um mistério, e na verdade o é, neste caso o homem possui afinidade positiva, pelo menos dada pela graça, com aqueles mistérios cristãos que constituem o conteúdo básico da fé. Por outro lado, estes mistérios não consistem em número maior ou menor de proposições particulares que infelizmente sejam ininteligíveis. Os únicos mistérios realmente absolutos são a autocomunicação de Deus na profundidade da existência, que se chama graça, e na história, que se chama Jesus Cristo, realidades com as quais já está dado também o mistério da Trindade histórico-salvífica e imanente. E este mis23
tério único pode plenamente fazer-se entender pelo homem, caso este se entenda a si mesmo como alguém que está orientado e remetido ao mistério a que chamamos Deus. Assim sendo, propriamente só resta a pergunta se este Deus quis ser apenas o eternamente distante, ou se, além disso, ele quis vir a ser o centro mais íntimo de nossa existência na livre graça da autocomunicação de. si. Mas toda a nossa existência; portada por essa pergunta, clama pela afirmação dessa segunda possibilidade como a realizada de fato. Clama pelo mistério que permanece mistério. Mas ela não está tão distante deste mistério para que este não passe de sacrificium intelectus (sacrifício da inteligência). Em vista da realidade mesma, portanto, é bem possível unidade intrínseca entre teologia fundamental e teologia dogmática. E isso é verdade de modo especial também quando partimos do correto pressuposto tomista de que a teologia fundamental é feita sob a "luz da fé" e constitui justificação da fé pela fé. É em favor da fé e na presença da fé. Mas como poderia ocorrer isso sem que a pessoa reflita sobre a própria realidade que se crê e não só sobre o fato formal da revelação como tal? Outro ponto que parece importante do ponto de vista do conteúdo do curso fundamental consiste em mencionar algumas advertências e requisitos sobre o que não deve fazer parte de tal curso fundamental. Em primeiro lugar requer-se o maior cuidado para não cair em uma redução cristológica. O decreto do Concílio Vaticano II já mencionado sem dúvida diz que o estudante de teologia deve desde o início ser introduzido no mistério de Cristo. Mas, se ele diz ao mesmo tempo que este mistério de Cristo afeta toda a história do gênero humano, em todo tempo e lugar, uma concentração demasiado estreita do curso fundamental em tomo de Jesus Cristo como chave e solução de todos os problemas existenciais e como o fundamento total da fé, seria idéia muito simplista. Não é certo que se deva pregar somente Jesus Cristo e assim se resolveriam todos os problemas. Hoje em dia Jesus Cristo é ele próprio um problema. Para constatá-lo basta olhar para a teologia demitologizante da era pós-bultmanniana. Este problema consiste em perguntar: por que e em que sentido uma pessoa pode arriscar sua vida na fé neste Jesus de Nazaré concreto c;rido como o Deus-homem crucificado e ressuscitado? Também isso deve receber justificação. Não se pode, pois, começar com Jesus Cristo como o dado absolu-
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tamente último, mas é preciso começar bem antes para chegar a ele. É preciso conduzir a ele. Temos várias fontes de experiência e conhecimento, cuja pluralidade temos de desdobrar e transmitir. Existe um conhecimento de Deus que não se comunica adequadamente através do encontro com Jesus Cristo. Não é necessário nem objetivamente adequado começar neste curso fundamental simplesmente pela doutrina sobre Jesus Cristo, ainda que este curso fundamental seja designado no decreto conciliar Optatam totius como introdução ao mistério de Cristo. A mesma coisa vale da redução a uma hermenêutica exclusivamente formal. Existe certamente algo assim como uma teologia formal e fundamental, distinta da teologia fundamental clássica, que entra a fazer parte deste curso fundamental, usada de maneira correta e sob ponto de vista correto. Mas seria certamente falso pensar que estamos tratando aqui somente de hermenêutica formal da linguagem teológica à maneira da teologia pós-bultmanniana, ou somente de provar a legitimidade da teologia em geral do ponto de vista da reflexão teórico-científica ou da filosofia da linguagem etc. A razão pela qual não pode ser assim é que, dada a estrutura do homem de acordo com a revelação divina, a experiência concreta e a posteriori da salvação e dos fatos históricos da salvação não podem ser transformados em estrutura meramente formal e transcendental, sem que o cristianismo deixe de ser cristianismo. Em conexão com o que se disse, fazemos advertência contra mero biblicismo. A teologia protestante, por causa do modo corno nela são conduzidos os estudos, estruturou em larga escala o todo da teologia a partir da exegese, acompanhada das ciências introdutórias, e da teologia bíblica. A filosofia e a teologia sistemática têm sido, com freqüência, interesse muito secundário, superestrutura acessória, sumário da teologia bíblica. Se fôssemos seguir essa orientação, que é basicamente obsoleta, o curso fundamental viria a ser privado de sua autêntica natureza. O curso fundamental não é urna introdução à Sagrada Escritura. É claro que, nas passagens correspondentes e à sua maneira adequada, teremos de dar atenção neste curso fundamental a algo da exegese e da teologia bíblica. Mas ao refletir, por exemplo, sobre a credibilidade histórica da ressurreição de Jesus e sobre a autocornpreensão que a teologia dogmática lhe atribui, só poderemos fazer uso dos dados da Sagrada Escritura que, mediante exegese responsável levada a termo nos moldes 25
da exegese de hoje, se apresentam como suficientemente seguros. Mas, pela natureza mesma do curso fundamental, enquanto se distingue do trabalho posterior e necessário da teologia bíblica, da teologia fundamental, da eclesiologia e da teologia dogmática, só poderemos acolher no curso fundamental o que seja absolutamente necessário da exegese e da teologia bíblica. E posteriormente a exegese e a teologia bíblica especializadas poderão coligir, elaborar e transmitir o resto do material positivo bíblico, a que uma teologia na Igreja também não pode renunciar. 3. SOBRE ALGUNS PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS FUNDAMENTAIS
Sobre a relação entre realidade e conceito, entre autopossessão originária e reflexão
Denominamos este ensaio de introdução ao conceito de cristianismo a fim de indicar que o nosso interesse nesta obra não é fazer uma iniciação mistagógica ao cristianismo. Trata-se, antes, de investigação que se caracteriza pelo esforço intelectual no campo da teologia e da filosofia da religião levado a cabo a um primeiro nível de reflexão. Buscamos o conceito e não de imediato a coisa mesma, porque e ainda que aqui como em nenhuma outra parte o conceito e a realidade estejam distantes entre si, e, por outro lado, o conceito, para ser entendido, em nenhuma outra parte como aqui exige tanto que se volte para a realidade mesma. Mesmo que este nosso ensaio viesse a falhar, ele deve ser em princípio possível, de acordo com o que pretende o cristianismo. Pois, por um lado, o cristianismo existe em um indivíduo em sua finitude concreta e historicamente condicionada, somente se este indivíduo o acolhe com pelo menos um mínimo de conhecimento que ele adquiriu pessoalmente e que está envolvido pela fé, e, por outro lado, este conhecimento é que o cristianismo entende como conhecimento que em princípio se pode exigir e se pode apreender por qualquer pessoa. Nem todos podem ser teólogos especializados stricto sensu. E se, não obstante, o cristianismo deve ser algo que possa ser apreendido pessoalmente por todos, em princípio deve haver uma introdução ao cristianismo a um primeiro nível de reflexão. Em outras ciências pode ocorrer que, quanto mais especializado algo se torna, tanto mais inacessível venha a ser para
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o não-especializado e se torne tanto mais importante e precisamente a verdade mais autêntica daquela ciência. Na teologia não pode ser assim, pois no seu caso não é que ela reflita só acessoriamente a um nível de especialização sobre um saber salvífico para todos. Pelo contrário, ela própria quer continuar sendo este saber salvífico que diz respeito a todos. Pois a reflexão sobre a compreensão anterior da existência de uma pessoa faz parte de certa forma e em certa medida dessa mesma compreensão da existência e não é mero luxo suplementar para o trato de especialistas. Existe no homem inevitável unidade na diferença entre autopossessão originária e reflexão. Nega-se isto de diversas formas, por um lado pelo racionalismo teológico, e por outro lado pela filosofia da religião do assim chamado "modernismo" clássico. Pois no fundo todo racionalismo repousa sobre a convicção de que uma realidade está presente ao 'homem, em autopossessão espiritual e livre, somente mediante o conceito objetivante, que ganha sua realidade genuína e plena na ciência. E, em sentido contrário, o que se chama "modernismo'' na acepção clássica vive da convicção que o conceito ou a reflexão é algo absolutamente secundário e posterior com referência à autopossessão original da existência na autoconsciência e liberdade, de tal sorte que a reflexão poderia muito bem ser dispensada. Mas não existe isoladamente o "em si" puramente objetivo de uma realidade, por um lado, e o conceito claro e "distinto" dessa realidade, por outro. Existe também unidade originária, sem dúvida não para tudo e qualquer coisa, mas para a atuação humana da existência, entre a realidade e o seu "ser-em-simesma", que é maior e é mais originária do que a unidade desta realidade e do conceito que a objetiviza. Quando amo, quando me vejo atormentado por perguntas, quando estou triste, quando sou fiel, quando tenho saudades, essa realidade humanoexistencial é uma unidade, unidade originária da realidade e seu próprio estar-em-si que não é mediada adequadamente através do conceito cientificamente objetivante que se faz sobre ela. Essa unidade de realidade e originário estar-em-si-mesma dessa realidade na pessoa já está dada na livre auto-realização do homem. Este é um dos lados da questão. Todavia devemos acrescentar que neste saber originário mesmo entra um momento de reflexão e, em sendo assim, de generalidade e de comunicabilidade espiritual, ainda que este mo27
mento de reflexão não abarque essa unidade e não a traduza adequadamente em conceitos objetivantes. Essa unidade original que estamos traçando entre realidade e seu conhecimento de si sempre existe no homem somente com, em e através do que chamamos linguagem, e com isso também reflexão e comunicabilidade. No momento em que este elemento de reflexão não estivesse mais presente de maneira pura e simples, essa originária autopossessão cessaria também de existir. A tensão entre saber originário e seu conceito, momentos que se inter-relacionam sem contudo ser a mesma coisa, não é algo de estático. Tem história em duas direções. A original autopresença a si do sujeito na realização em ato de sua existência busca sempre mais traduzir-se no conceito, no objetivado, na linguagem, na comunicação com outrem. Toda pessoa busca dizer a outrem, sobretudo à pessoa amada, o que ela está sofrendo. E assim nessa' relação tensa entre saber originário e seu conceito, que sempre o acompanha, existe a tendência para a maior conceitualização, para a linguagem, para a comunicação e, portanto, também para o saber teórico sobre si mesmo. Mas existe também movimento em direção oposta no seio dessa relação tensa. Uma pessoa que foi formada por língua comum, foi instruída e doutrinada desde fora, talvez faça somente pouco a pouco a experiência clara do que está falando há bastante tempo. Somos precisamente nós, os teólogos, que sempre estamos expostos ao perigo de falar sobre céu e terra, sobre Deus e o homem mediante arsenal quase ilimitado de conceitos religiosos e teológicos. Podemos adquirir na teologia extrema habilidade neste tipo de fala e talvez não ter realmente entendido desde a profundidade de nossa existência aquilo de que realmente estamos falando. Neste caso a reflexão, o conceito e a linguagem retêm essencial orientação para aquele saber original, para aquela experiência originária em que o que é significado e a experiência do significado são ainda uma unidade. À medida que o conhecimento religioso também manifesta essa tensão entre o autoconhecimento originário, adquirido pelo que fazemos e sofremos, e sua conceitualização, existe também no seio da teologia, em unidade e diferença indissolúveis, este duplo movimento. Essa relação tensa é relação fluida e não dimensão estática. Embora este movimento atinja sua meta apenas assintoticamente, deveríamos adquirir um saber conceituai cada vez melhor sobre o que se experimenta e vive antes de tal 28
conce1tualização, ainda que não inteiramente sem ela. E, em direção contrária, deveríamos sempre de novo mostrar que todos esses conceitos teológicos não tornam a realidade presente ao homem desde fora, mas antes são a expressão daquilo de que já se fez experiência e por que a pessoa já passou nas profundezas de sua existência. Até certo ponto podemos chegar conceitualmente a nós mesmos, ficando presentes a nós mesmos ao nível do conceito, e sempre podemos voltar a tentar remeter nossos conceitos teológicos à experiência que lhes deu origem. Assim sendo, o ensaio que temos o propósito de fazer neste livro não deixa de ser legítimo e necessário. Se vier a falhar, só se poderia entender da parte do cristão essa falha como mandato e ordem para que o tente uma vez mais e com mais empenho em busca de êxito. O sujeito como dado implicado no conhecimento
Freqüentemente imaginamos a natureza do conhecimento segundo o modelo de quadro-negro, sobre o qual se inscreve um objeto, surgindo este como que vindo de fora e aparecendo sobre o quadro. Imaginamos o conhecimento à semelhança de um espelho onde se reflete um objeto qualquer. Somente tais modelos imaginativos é que permitem entender o famoso problema referente ao modo como o "em-si" de alguma coisa pode entrar no conhecimento, como um objeto pode como que imigrar para o conhecimento. Estes modelos estão sempre presentes na epistemologia como um a priori, sobretudo quando se defende o assim chamado realismo, ou seja, a teoria que entende o conhecimento como se fosse a "imagem" ou a "cópia" da realidade, ou, vale dizer, entende a verdade como a correspondência de uma proposição com o objeto. Estes modelos se pressupõem então como evidentes por si mesmos. Em todos estes modelos imaginativos, o conhecido é algo que vem de fora, é o diverso que se apresenta desde fora segundo sua própria lei e se imprime na capacidade receptiva de conhecimento. Mas na realidade o conhecimento tem estrutura muito mais complexa. Pelo menos o conhecimento espiritual de um sujeito pessoal não é de tal sorte que o objeto se apresenta vindo de fora e é assim "possuído" como conhecido. Trata-se, antes, de conhecimento em que o sujeito que conhece possui no conhecimento tanto a si mesmo como seu conhecimento. Isso não ocorre somente quando o sujeito em um ato segundo posterior reflete
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sobre este estar presente a si mesmo do sujeito no seu conheci~ mento, ou seja, quando ele reflete sobre o fato de que ele conheceu algo em um primeiro ato e depois faz deste primeiro ato de conhecimento o objeto de seu conhecimento. Ter o conhecimento como tal, enquanto distinto de seu objeto objetivado, e a autoposse no conhecimento de si mesmo constituem características de todo conhecimento. No conhecimento não somente se sabe algo, mas também é sabido conjuntamente o próprio saber do sujeito que conhece. No ato simples e originário do conhecer, que se ocupa com qualquer objeto que se lhe proponha, o saber que é conjuntamente sabido com o objeto e o sujeito que sabe, que também é conjuntamente sabido, não são os objetos do conhecimento. Pelo contrário, este ser-sabido do saber sobre algo e o ser-sabido do sujeito para si mesmo, o estar presente a si mesmo do sujeito, estão radicados como que no outro pólo da relação una do sujeito que sabe e do objeto sabido. A reflexividade do sujeito representa como que o espaço iluminado dentro do qual pode se anunciar o objeto particular com o qual a pessoa se ocupa em determinado ato primário de conhecimento. Esta condição sabedora do sujeito que conhece permanece sempre atemática no processo do conhecimento primário de um objeto que se anuncia desde fora. É algo que, por assim dizer, se passa por detrás do sujeito que conhece, o qual olha desde si para fora, para o seu objeto. E mesmo quando este sujeito que conhece, em um ato de reflexão, converte este estar-presente-a-si-mesmo do sujeito, que é concomitantemente sabido, e o seu saber em objetos de um novo conhecimento, as coisas não deixam de ocorrer da mesma forma. Também este novo ato, que, de maneira conceitua! e posterior, toma a consciência do sujeito como objeto do ato, volta a ter uma vez mais este original estar-presente-a-simesmo do sujeito e do saber acerca deste segundo ato reflexo como a condição de sua possibilidade, como seu pólo subjetivo. Este ato reflexivo não torna supérfluo o originário estarpresente-a-si-mesmo do sujeito que sabe de si e do seu saber. O seu objeto no fundo significa apenas este originário e iluminado estar-presente-a-si-mesmo do sujeito. Mas este conceitualizado e tematizado estar-presente-a-si-mesmo do sujeito e de seu saber por si nunca é idêntico com este originário estar-presentea-si-mesmo e também jamais alcança adequadamente o seu conteúdo. A mesma relação que se dá entre a alegria, o medo, o 30
amor, a dor, ou outros sentimentos imediatamente vividos, e o conteúdo de idéia reflexa de alegria, medo, amor, dor etc., dá-se também, e de forma bem mais originária, entre o necessário estarpresente-a-si-mesmo do sujeito e de seu saber sobre o que objetivamente sabe, situado no pólo subjetivo do arco do conhecimento e a objetivação precisamente deste estar-presente-a-simesmo. O estar-presente-a-si-mesmo refletido sempre remete de volta para o originário estar-presente-a-si-mesmo do sujeito, mesmo em um ato que se ocupa com algo bem diverso, e jamais alcança adequadamente este originário estar-presente-a-si-mesmo do sujeito. O arco de tensão entre os dois pólos, "sujeito" e "ob. jeto", não se pode superar nem sequer quando o sujeito toma a si mesmo como seu próprio objeto. Pois neste caso o objeto é o sujeito conceitualmente objetivado, e o conhecimento deste conceito volta a ter no pólo subjetivo deste arco de tensão o originário saber atemático do sujeito sobre si mesmo como a condição de sua origem.
Aprioridade e abertura essencial Mas a coisa não se passa como se este estar-presente-a-simesmc, - sabido conjuntamente e atemático - do sujeito e do seu saber fosse mero fenômeno acessório naquele ato de conhecer que apreende um objeto qualquer, a tal ponto que o seu conhecimento fosse, em sua estrutura e seu conteúdo, totalmente independente da estrutura do estar-presente-a-si-mesmo do sujeito. A estrutura do sujeito é antes ela mesma estrutura apriorística, ou seja, ela constitui lei prévia que regula o que e a maneira como algo pode anunciar-se ao sujeito que conhece. Os ouvidos, por exemplo, representam lei apriorística, uma como que retícula que determina que aos ouvidos só se podem anunciar sons. Assim ocorre também com os olhos e todos os outros órgãos do conhecimento sensível. Eles selecionam, de acordo com sua própria lei interna, dentre a multidão de possibilidades do mundo que se impõem e oferecem, segundo sua própria lei, a essas realidades a possibilidade de se achegar e apresentarem, ou então as desligam. Mas isso não implica absolutamente que as realidades que se anunciam não possam mostrar-se tais como são em si. Também um buraco de fechadura constitui lei que determina qual chave lhe serve, mas precisamente por isso revela também algo da própria chave. A estrutura apriorística de uma 31
faculdade de conhecimento manifesta-se da maneira mais simples pelo fato de se manter em todo ato singular de conhecimento de um objeto que se lhe apresente, mantendo-se inclusive quando este ato é, ou antes quer ser, em seu objeto como tal, a supressão ou a impugnação dessas estruturas apriorísticàs. Para sermos breves, não podemos ilustrar esta reflexão com exemplos buscados no campo de nosso conhecimento sensitivo referentes à multiplicidade de fatos que ocorrem imediatamente no espaço e tempo. Em vez disso, queremos nos voltar logo para a totalidade do conhecimento espiritual do homem, no qual ocorre a autopossessão do sujeito que sabe, a reditio completa, o total retorno do sujeito a si mesmo, como o diz Tomás de Aquino. Se nos perguntarmos quais as estruturas apriorísticas dessa autopossessão, devemos dizer que, sem prejuízo de toda mediação dessa autopossessão pela experiência espácio-temporal de objetos dados sensivelmente, este sujeito é basicamente e por sua própria natureza pura abertura para o todo simplesmente, para o ser como tal. Isso se evidencia pelo fato de a negação de tal abertura ilimitada do espírito para o todo colocar e afirmar, implicitamente tal abertura. Pois um sujeito que se reconhece como finito, e não só se acha em seu conhecimento ignorando a limitação da possibilidade de seus objetos, já ultrapassou sua finitude, já se desqualificou como meramente finito, diferenciando-se de horizonte subjetiva e atematicamente dado de possíveis objetos que é de infinita amplidão. O que diz objetiva e tematicamente que não existe nenhuma verdade, afirma essa proposição como verdadeira, pois do contrário a afirmação não teria absolutamente nenhum sentido. Pelo fato de que em tal ato e em seu pólo subjetivo o sujeito necessariamente afirma a existência da verdade, embora o faça em um conhecimento atemático, ele já se percebeu como estando de posse de tal conhecimento. Assim ocorre também com a experiência da abertura subjetiva e ilimitada do sujeito. À medida que se percebe condicionado e limitado pela experência sensível, limitação que aliás o afeta em demasia, ele já transcendeu essa experiência sensível e assim se colocou como sujeito de uma pré-apreensão (Vorgriff) que não tem nenhum limite interno, pois até mesmo a suspeita de tal limite interno do sujeito situa essa pré-apreensão mesma acima da suspeita.
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A experiência transcendental
Chamamos de experiência transcendental a consciência subjetiva, atemática, necessária e insuprimível do sujeito que conhece, que se faz presente conjuntamente a todo ato de conhecimento, e o seu caráter ilimitado de abertura para a amplidão sem fim de toda realidade possível. Ela é uma experiência, porque este saber de cunho atemático, mas inevitável é momento e condição da possibilidade de toda e qualquer experiência concreta de qualquer objeto seja. Essa experiência é chamada transcendental porque faz parte das estruturas necessárias e insuprimíveis do próprio sujeito que conhece, e porque consiste precisamente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis objetos ou de categorias. A experiência transcendental é a experiência da transcendência, experiência na qual a estrutura do sujeito e, conseqüentemente, também a estrutura última de todo objeto concebível de conhecimento está presente conjuntamente e na identidade. Evidentemente essa experiência transcendental não é somente experiência de puro conhecimento, mas também da vontade e liberdade. Compete-lhes o mesmo caráter de transcendentalidade, de tal sorte que basicamente se pode perguntar pela origem e pelo destino do sujeito enquanto sujeito que conhece e enquanto ser livre a um só tempo. Se nos damos conta claramente da natureza específica dessa experiência transcendental, experiência que nunca pode representar-se como tal no que possui de genuinamente próprio, mas que só se pode representar objetivamente em um conceito abstrato acerca dela; se virmos claro que essa experiência transcendental não é constituída pelo fato de falar dela; se nos advertirmos que devemos falar dela, pois que está sempre presente, e ademais também pode duradouramente passar despercebida; se de mais a mais compreendermos que essa experiência por si nunca pode apresentar o atrativo da novidade de um objeto que nos vem ao encontro de maneira inesperada, se tudo isso ficar claro então se compreenderá a dificuldade do que vamos empreender: uma vez mais· só poderemos falar de maneira indireta do termo para o qual aponta essa experiência transcendental. Saber atemático de Deus Mais tarde haveremos de mostrar que está presente nessa experiência transcendental como que um saber anônimo e ate-
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Curso Fundamental da Fé
mático sobre Deus. Portanto o conhecimento originário de Deus não é do tipo de conhecimento em que a pessoa capta um objeto que se anuncia direta ou indiretamente desde fora, mas antes apresenta o caráter de experiência transcendental. Enquanto essa luminosidade subjetiva, não objetiva, do sujeito está sempre orientada na sua transcendência para o mistério santo, está sempre presente o conhecimento atemático. e anônimo de Deus, e não somente quando começamos a falar dele. Todo falar sobre ele, que necessariamente ocorre, sempre remete para essa experiência transcendental como tal, experiência em cujo seio aquele que chamamos de Deus sempre se dirige silenciosamente ao homem, dirige-se a ele como o ser absoluto e incompreensível, como o Aonde de sua transcendência que não pode propriamente vir a integrar-se num sistema de coordenadas, transcendência que, como transcendência de amor, percebe esse Aonde precisamente também como o mistério santo. Voltaremos a falar com mais detalhe sobre isso, mas uma coisa que devemos mencionar aqui no sentido de esclarecer o que significa transcendência é que se o homem é ser de transcendência remetido e orientado ao mistério santo e absolutamente real, e se o Aonde e o Donde da transcendência, na qual e através da qual o homem como tal existe e que constitui sua essência originária enquanto sujeito e pessoa, é este mistério absoluto e santo, então surpreendentemente podemos e devemos acrescentar: o mistério com sua incompreensibilidade é o que existe de mais evidente. Se transcendência não é coisa qualquer que, como que de passagem, praticamos, por assim dizer, como luxo metafísico de nossa existência intelectual, mas se essa transcendência é a condição mais simples, mais óbvia e mais necessária da possibilidade de todo entender e compreender espiritual, então o mistério santo é propriamente a única realidade evidente por si mesma, a única realidade que está fundada em si própria, mesmo do nosso ponto de vista. Pois todo outro compreender, por mais claro possa parecer à primeira vista, funda-se nessa transcendência. Toda compreensão clara funda-se na obscuridade de Deus. Portanto este Aonde da transcendência, a um exame mais preciso, não é em seu caráter misterioso conceito simplesmente contrário a evidente. Em nosso conhecimento só é evidente para nós o que em si se entende por si mesmo. Tudo o que entendemos torna-se inteligível, mas não propriamente evidente, pelo 34
fato de se derivar de algo diferente ou de reduzir-se a algo: num caso, pelo fato de se derivar de axiomas, e, noutro, pelo fato de se reduzir a dados elementares da experiência sensível. Assim, a realidade entendida vem a ser explicada e feita inteligível pela recondução ou ao mudo embotamento do meramente sensível ou ao claro-escuro da ontologia, ou seja, ao mistério santo e absoluto. O que se torna inteligível funda-se em última instância na única coisa que é evidente por si, no mistério. Mistério é, pois, algo que nos é sempre familiar. Nós sempre o amamos, mesmo quando, assustados com ele e eventualmente até mesmo irritados com ele, não quiséssemos dar-lhe atenção. Para a pessoa que tomou consciência de suas profundidades, o que temática ou atematicamente pode ser mais familiar e evidente do que o perguntar silencioso pelo mais além do já conquistado e dominado, do que a sobrecarga de perguntas a que não foram dadas respostas, aceitas com humildade e amor, que aliás é a única coisa que torna sábio? Nas profundidades últimas do seu ser de nada sabe, o homem com mais exatidão do que o seu saber, ou o que no dia-a-dia assim se chama, não passa de pequenina ilha no vasto mar ainda não percorrido, ilha flutuante, que pode ser para nós mais familiar do que o oceano, mas que em último termo é carregada e somente assim nos carrega por sua vez. E, em conseqüência, a pergunta existencial àquele que conhece é se ele ama mais a pequena ilha do seu assim chamado saber ou o mar do mistério infinito; se a pequenina luz, chamada ciência, com que ele ilumina essa ilha, há de ser para ele uma luz eterna, que para ele brilhe eternamente (o que seria o inferno). É claro que a pessoa, em sua decisão concreta de vida, pode querer e acolher a questão da infinitude apenas como aguilhão para sua ciência em sua tarefa do conhecer objetivamente e dominar, negando-se a ter que haver o mínimo com a pergunta absoluta como tal, a não ser enquanto essa pergunta estimula sem cessar a perguntas e respostas setoriais. No entanto somente quando a pessoa começa a se perguntar pelo perguntar mesmo e a pensar sobre o pensar mesmo, somente quando volta sua atenção para o espaço do conhecer e não só para os objetos do conhecimento, para a transcendência e não só para o que é entendido categorialmente no espaço e tempo no interior dessa transcendência, somente então é que essa pessoa pisa no li-
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miar do homo religiosus. A partir dessas observações, pode-se entender com mais facilidade que muitos rião sejam este homo religiosus, que talvez não sejam mesmo capazes de sê-lo, que 3intam que está sendo exigido demasiado deles. Mas toda pessoa que se colocou uma vez a pergunta acerca de sua transcendência e do Aonde a que ela remete, não mais a poderá deixar estar à deriva sem resposta. Pois, mesmo que dissesse que se trata de pergunta que não possa ter resposta, de pergunta a que não se deva responder, de pergunta que, por exigir demais, deva ser descartada, já se teria dado resposta a essa pergunta (se certa ou errada, no momento ainda não vem ao caso).
PRIMEIRA SEÇÃO
O OUVINTE DA PALAVRA
1. RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E TEOLOGIA
A que ouvinte se dirige o cristianismo? Em princípio, que ouvinte poderá ouvir sua mensagem última e mais autêntica? Eis a primeira pergunta a fazer. Pretendemos entendê-la não np sentido moral, mas no sentido ontológico-existencial. Se antes de tudo devemos falar do homem que deve ser o ouvinte da mensagem do cristianismo, se, neste sentido, falamos de pressupostos, o que queremos frisar é a maneira como se entrelaçam tais pressupostos e a mensagem do cristianismo. Dizer isso não significa, porém, que o cristianismo considere esses pressupostos como simplesmente dados e prontos e como se tivessem sido já realizados e exercidos por todos os indivíduos de forma reflexa e sobretudo livre, de tal sorte que onde esses pressupostos não estivessem presentes não houvesse nenhum ouvinte potencial da mensagem cristã. Se entendermos corretamente a realidade do homem, haveremos de constatar qu~ existe circulação inevitável entre os seus horizontes de compreensão e o que se diz, se ouve e se entende. Em últimos termos, as duas realidades pressupõem-se reciprocamente. E, sendo assim, o cristianismo julga que esses pressupostos, sempre em seu peculiar entrelaçamento, existem inevitável e necessariamente no fundamento último da existência do homem, mesmo quando esta existência vem a ser explicada de maneira diferente ao nível de sua interpretação reflexa, e mesmo que também a própria mensagem cristã crie, mediante seu apelo, tais pressupostos. Essa mensagem age no sentido de situar o homem perante a verdade real e profunda do seu ser, verdade a que permanece inevitavelmente preso, ainda que tal prisão seja, em última análise, a infinita amplidão do incompreensível mistério de Deus. O que acabamos de dizer implica, já a essa altura de nossa reflexão, peculiar entrelaçamento entre filosofia e teologia. Os
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pressupostos, que aqui vêm ao caso, referem-se à essência do homem. Referem-se à sua essência, realidade que se apresenta sempre historicamente e que, em conseqüência, se vê confrontada com o cristianismo enquanto graça e mensagem histórica. Referem-se, pois, a uma realidade a que pode ter acesso qualquer reflexão teórica e qualquer auto-interpretação da existência humana, o que chamamos de filosofia. E esses mesmos pressupostos integram, por outro lado, os conteúdos da teologia revelada que o cristianismo anuncia ao homem a fim de que essa autêntica essência do homem, que de forma inevitável está sempre referida à história, não permaneça escondida ao homem. Falando, pois, dessa antropologia como pressuposto da possibilidade de ouvir e entender a autêntica mensagem do cristianismo, não precisamos nos preocupar com separar filosofia e teologia metodicamente da maneira mais precisa possível. Inclusive a filosofia da existência humana que se caracterize por ser a mais originária, fundada em si e a mais transcendental, vem a ocorrer somente no seio de experiência histórica. E até mesmo constitui momento que integra a história do homem. Em conseqüência, jamais podemos filosofar pressupondo que o homem não tenha feito aquela experiência que é própria do cristianismo (o que é verdade pelo menos com referência ao que chamamos de graça, embora essa não precise ainda ser refletida, entendida e objetivada como experiência da graça). Em nossa situação histórica, de forma alguma é possível filosofia absolutamente livre de teologia. A autonomia que em princípio cabe a essa filosofia só pode consistir em refletir sobre suas origens históricas e em se perguntar se ainda se reconhece obrigada a essas origens na história e na graça como algo de válido, e se essa experiência do homem consigo mesmo ainda hoje pode vir a se realizar, impondo-se como válida e obrigatória. E, em sentido contrário, a teologia dogmática pretende dizer ao homem o que ele é e permanece sendo, mesmo quando, na incredulidade, rejeita essa mensagem do cristianismo. A teologia implica, pois, uma antropologia filosófica que possibilita essa mensagem de graça vir a ser aceita e acolhida de maneira genuinamente filosófica e racional, e que dela dá razão de forma humanamente responsável. Avançamos afirmações sobre o homem e sobre o que em todo caso é agora sua situação ineludível, afirmações sobre o que a mensagem cristã encontra 38
no homem ou que ela própria cria no homem corno pressuposto e genuíno lugar de sua sintonia com o homem. E a cada qual se lhe pergunta então se é capaz de se reconhecer corno a pessoa que aí tenta expressar sua autocornpreensão, ou se, em responsabilidade para consigo mesmo e por sua existência, pode vir a afirmar corno verdade sua a persuasão de que não é o homem tal qual o cristianismo lhe afirma ser. 2. O HOMEM COMO PESSOA E COMO SUJEITO
A personalidade como pressuposto da mensagem cristã Com referência aos pressupostos requeridos para a mensagem revelada do cristianismo, a primeira coisa que se deve dizer acerca do homem é que o homem é pessoa e sujeito. Não precisamos explicar com muito detalhe que um conceito de pessoa e sujeito vem a ser de capital importância para a possibilidade da revelação cristã e a autocompreensão do cristianismo. Uma relação pessoal do homem para com Deus, urna história da salvação genuinamente dialógica entre Deus e o homem, o acolhimento de sua salvação única e eterna, o conceito de responsabilidade do homem perante Deus e seu julgamento, todas essas afirmações do cristianismo, ainda que devam ser interpretadas com maior precisão, implicam que o homem é o que aqui queremos dizer: ele é pessoa e sujeito. A mesma coisa vale quando falamos de revelação ocorrida mediante a palavra no cristianismo, quando dizemos que Deus falou ao homem, que o chamou à sua presença, que na oração o homem pode e deve falar com Deus. Todas essas afirmações são terrivelmente obscuras e difíceis, mas, não obstante, constituem a realidade concreta do cristianismo. E nenhuma delas seria inteligível, a não ser que incluamos em nosso conceito de cristianismo, explícita ou implicitamente, o que aqui estamos entendendo por "pessoa" e "sujeito". O que exatamente significam esses termos só se pode concluir do todo de nossa antropologia. Portanto somente quando tivermos tratado da transcendência do homem, da sua responsabilidade e liberdade, de sua referência ao mistério incompreensível, de sua historicidade e necessária inserção no mundo, de sua sociabilidade, é que poderemos entender melhor o que seja "pessoa" e "sujeito". Todas essas determinações integram a cons-
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tituição da verdadeira personalidade do homem. Nosso interesse imediato a essa altura, antes de tratarmos particularizadamente de cada uma dessas determinações, consiste em dizer, pelo menos de forma preliminar, o que entendemos ao designar o homem como pessoa e sujeito. O caráter misterioso e arriscado da experiência pessoal É claro que este tema há de sempre contar com a "boa vontade" do ouvinte. Pois o que ele deve ouvir não é o que reside imediatamente no conceito como tal. Pela própria natureza da coisa, os conceitos aludem à experiência mais originária e básica da sua subjetividade e personalidade. Aludem a uma experiência básica que certamente não ocorre desacompanhada totalmente de palavras e de forma irrefletida, mas que também não é algo que simplesmente se possa dizer com palavras ou que se possa captar por mero ensino vindo de fora. Quer como indivíduo quer como inserido na humanidade como um todo, com certeza o homem se percebe como sendo, de múltiplas maneiras, produto do que ele próprio não é. Até mesmo poderíamos dizer que em princípio todas as ciências empíricas, que estudam o homem, visam metodologicamente, explicar e deduzir o homem desde outras realidades. Visam considerá-lo como o resultado e o ponto de interseção entre realidades que, por um lado, ocorrem no seio da experiência empírica, mas que, por outro lado, não são o homem mesmo, mas que, sem embargo, o estabelecem e determinam em sua realidade e, sendo assim, também o explicam. É claro que todas as ciências antropológicas empíricas têm o direito de como que dissolver o homem, analisá-lo· e deduzi-lo, de tal forma que o que observam e estabelecem no homem venha a se explicar como produto e resultado de dados ou realidades que não são este homem concreto. Que se chamem essas ciências de física, química, bioquímica, genética, p1;1leontologia, sociologia ou como quer seja, todas elas tentam, de maneira plenamente legítima, como que deduzir o homem, explicá-lo dissolvê-lo em certo sentido em suas causas experimentais, que se podem analisar e isolar. Em princípio, essas ciências são em larga escala plenamente legítimas em seus métodos e resultados. E a dura experiência de cada indivíduo em sua própria existência está sempre a demonstrar o quanto elas têm razão.
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O homem olha para o seu interior, para o seu passado e para o mundo que o rodeia, e constata, com horror ou com alívio, que pode alienar-se de si mesmo com referência a todos os dados concretos que constituem a sua realidade, atribuindo de certa forma o que ele é ao que ele não é. Constata que veio a existir mediante outra realidade que ele próprio não é. E a outra realidade, de que proveio, é a natureza implacável e impessoal, que abarca também a "história" que, sob este prisma, também se pode interpretar como "natureza". Do ponto de vista cristão, não existe nenhum motivo para restringir as pretensões de antropologia empírica ao interior de certas áreas, material e regionalmente definidas, da vida humana, passando-se a chamar o que se encontra dentro do campo dessas antropologias empíricas de "matéria" ou "corpo" ou algo semelhante, em contrapo~ sição a uma dimensão, empírica e claramente separável, que chamaríamos de "alma" ou "espírito". É claro que uma separação material desse tipo tem certa razão de ser na apologética cristã e na antropologia teológica corrente que visa buscar compreensão nos moldes de pensamento não erudito e popular. Mas basicamente toda antropologia setorial~ que se poderia também chamar de "regional", contanto não se entenda a palavra em sentido geográfico -, como, por exemplo, a bioquímica, a biologia, a genética, a sociologia, e outras áreas, aproxima-se do homem sob determinado ponto de vista e não pretende ser sozinha a única e total antropologia. O sociólogo desenvolverá sua própria antropologia em correspondência aos seus métodos. Mas, se for racional, não dirá que uma antropologia biológica ou uma antropologia do comportamento ou outra qualquer careça de sentido: E eventualmente poderá até mesmo usar dos resultados dessas antropologias. E, fazendo-o, estará reconhecendo efetivamente que existem outras antropologias além da sua. E cada uma dessas antropologias possuem os seus métodos específicos, pelo menos provisórios e sob reserva última. Cada uma delas, porém, pretende dizer algo sobre o homem como todo. E, uma vez que o toma como todo, não pode querer perder qualquer afirmação que se possa fazer sobre esse todo uno. Cada uma dessas antropologias busca explicar o homem a partir de dados particulares, mediante decompô-lo em seus elementos e em seguida reconstruí-lo novamente desde esses dados particulares. Agir assim é direito de toda antropologia regional. 41
Quase sempre essas antropologias inspiram-se pelo desejo não declarado de não somente entender o homem, corno também, usando desse conhecimento, vir a dominá-lo realmente. A intenção de toda antropologia, ainda que regional, de explicar o homem corno todo é legítima. Pois que o homem é um ser cujas origens se inscrevem no interior do mundo, ou seja, lança suas raízes em realidades empíricas. O seu ser é de tal índole que essas suas origens no seio do mundo sempre o afetam em sua unidade e totalidade. Em razão disso, as antropologias regionais, ainda que particulares, continuam sempre sendo antropologias. A peculiaridade da experiência da pessoa A filosofia e a teologia não possuem nenhuma área do homem exclusivamente reservada a elas, corno se zona proibida às outras antropologias. Mas, no meio dessas procedências em que o homem parece dissolver-se, que parecem converter tudo nele em produto do mundo, e das quais nada nele se deve nem pode excluir, no meio de todos os condicionamentos o homem percebese corno pessoa e sujeito. Ao dizer que o homem é sujeito e pessoa, não estamos fazendo afirmação sobre determinada parte dele que pudesse vir a ser isolada, de tal forma que se pudessem excluir dela todas as outras antropologias regionais e ela própria viesse a se converter em antropologia regional. Que sempre se tenha em mente o caráter específico dessa experiência e, com isso, também o caráter específico da maneira concreta em que ela é exercida. O homem pode passar por alto do que ele mesmo é, ou melhor, pode passar por alto do todo corno tal que ele também e sobretudo é, ou seja, o que ele experimenta verdadeiramente pode também vir a ser reprimido. Não estamos entendendo, aqui, repressão no sentido da psicologia profunda, mas no sentido muito mais geral e corrente do dia-a-dia. Urna pessoa pode não perceber e deixar de ver algo, mostrando-se desinteressada e deixando-o de lado, embora faça parte dela mesma. Pode não deixar que a experiência originária aflore. Por um lado, dela só podemos falar mediante palavras e conceitos, mas o que se diz não é bem o que está contido na linguagem corno tal. E também pode ocorrer que a pessoa não queira ou não possa traduzir em palavras e levar ao nível de sua objetivação conceitual essas experiências secretas e globais, que se mantêm como que caladas sem se anunciar em voz alta. 42
A essa altura de nossas reflexões ainda não podemos tratar dessa peculiaridade da autocompreensão do homem, a saber, do aspecto que lhe é próprio e pelo qual o que lhe é mais fundamental e originário e mais evidente pode também passar despercebido e pode ser reprimido. Basta aqui chamarmos a atenção para a possibilidade de um não-querer-ter-por-verdadeiro existencial, para que o que diremos sobre a personalidade e subjetividade do homem não venha a se deparar de início com atitude de não querer ver. O homem experimenta-se, pois, como sujeito e pessoa precisamente à medida que se torna consciente de si como o produto do que lhe é radicalmente estranho. Essa dimensão, pela qual o homem também sabe acerca de sua procedência, não se pode explicar por essa procedência. Ao se analisar e reconstruir, ainda não se explica por esse processo que é ele mesmo quem faz essa análise e reconstrução e sabe disso. Precisamente por o homem perceber-se como realidade estranha, produzida e imposta a si; precisamente enquanto de antemão abre espaço livre a todas as possibilidades pensáveis de análise por parte das antropologias empíricas, análise que reduz e dissolve o homem no que ele não é, o que ele faz mesmo quando essa análise ainda não se concluiu; precisamente enquanto o homem permite às suas antropologias empíricas setoriais que continuem explicando-o, reduzindo-o e desmantelando-o e como que o reconstruindo na retorta do espírito, e no futuro talvez na realidade, precisamente em tudo isso o homem está fazendo a experiência que é sujeito e pessoa. Mas pode passar por alto e deixar de ver esse fato, pois que este lhe vem ao encontro aparentemente no seu contrário. Ao se colocar analiticamente em questão e abrir-se para o horizonte ilimitado de semelhante questionamento, o homem já transcendeu a si mesmo, bem como todas as dimensões pensáveis dessa análise ou de auto-reconstrução empírica de si. Ao fazê-lo, afirma-se como quem é mais do que a soma desses componentes analisáveis de sua realidade. Precisamente essa consciência de si, esse confronto com a totalidade de todos os seus condicionamentos, o fato mesmo de estar condicionado evidenciam que ele é mais do que a soma dos seus fatores. Pois um sistema finito de elementos singulares e distinguíveis entre si não pode ter a relação para consigo mesmo tal qual o homem possui para consigo mesmo na experiência de seu condicionamento múltiplo e de sua redutibilidade. Um sistema finito não pode 43
situar-se perante si mesmo como um todo. Desde seu ponto de partida, que em última análise lhe é imposto, o sistema finito adquire relação para com determinada operação (ainda que essa possa consistir em apenas conservar o próprio sistema), mas não possui relação com o seu próprio ponto de partida. Não se interroga sobre si mesmo. Não é sujeito. A experiência de radical problematicidade e a possibilidade de colocar-se em questão da parte do homem são coisas que um sistema meramente finito não pode levar a cabo. De nosso pressuposto segue evidentemente que este ponto de vista acima e fora do sistema dos dados empiricamente determináveis em particular não se pode entender como elemento singular que se possa separar da realidade empírica do homem, da forma como a teologia escolástica gosta de fazê-lo - de maneira pedagogicamente compreensível, mas em última análise primitiva -, ao falar do espírito ou da alma imortal do homem como se o que se significa com isso fosse um dos elementos dentro da totalidade do homem que se pudesse achar imediatamente e pudesse ser isolado em si, empiricamente distinto em sua pureza do resto do homem. Se não compartilhamos dessa visão dualista ingênua, procedente da filosofia grega, que em última análise não é cristã, mas, pelo contrário, percebemos que o homem uno, como uno, já se confrontou com uma pergunta que já ultrapassou todas as possíveis respostas empíricas setoriais..__ não no conteúdo positivo, mas na radicalidade da questão -, então estamos fazendo a experiência de que o homem é sujeito e subjetividade, que é suporte precisamente dessas objetividades plurais com que tem que se haver as ciências empíricas humanas. A capacidade do homem de se relacionar consigo mesmo, o fato de ter-se a haver consigo mesmo, não constitui nenhum elemento nele lado a lado de outros elementos nem pode constituir, antes é a realidade que constitui o homem em seu caráter de sujeito enquanto distinto de coisas, que, sem dúvida, também existem nele. Ser pessoa significa, então, a autoposse de um sujeito como tal em relação consciente e livre para com o todo. Essa relação é a condição de possibilidade e o horizonte prévio para que o homem, em sua experiência particular e suas ciências empíricas, possa haver-se consigo mesmo em sua unidade e totalidade. Pois o fato de o homem ser responsável pelo todo de si mesmo é a condição de sua auto-experiência empírica, fato que não
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pode derivar-se inteiramente dessa experiência e de suas objetividades. Inclusive quando o homem pretendesse desresponsabilizar-se de si, afirmando que seria um ser totalmente condicionado e determinado por fatores externos, ele seria o sujeito que o estaria fazendo, sabendo e querendo fazê-lo. Ele seria o sujeito que abarcaria a soma de possíveis elementos de semelhante declaração, e, assim, se evidenciaria como quem é distinto do produto posterior de tais elementos singulares. Na verdade, podemos falar de sistemas finitos que se autodirigem e assim mantêm, em certo sentido, relação para consigo mesmos. Mas um sistema que se autodirige assim tem apenas possibilidade finita de auto-regular-se. Esse auto-regular-se é um dos momentos do próprio sistema e não pode, portanto, explicar o fato de o homem situar-se perante si como todo, questionar-se e depois voltar a questionar o próprio questionar. A consciência que o homem possui de si, consciência na qual ele se coloca perante o seu próprio sistema com todas as suas possibilidades particulares presentes e futuras, e, sendo assim, coloca-se perante si mesmo em sua totalidade, questionase e dessa maneira se ultrapassa e transcende, essa consciência e presença a si mesmo do homem não se pode explicar com a ajuda do modelo de representação de um sistema múltiplo autoregulado, como no fundo devem fazer por sua própria natureza todas as antropologias setoriais. Essa subjetividade mesma é dado existencial irredutível que acompanha toda experiência particular como sua condição apriorística. Sua experiência é, em sentido ainda inteiramente não-filosófico, experiência transcendental. Precisamente em virtude da transcendentalidade dessa experiência, o que entendemos por personalidade e subjetividade sempre se subtrai a um acesso imediato, iso!ado e setorialmente delimitado. Pois o objeto dessa experiência transcendental não surge em seu ser próprio lá onde o homem trata objetivamente com algo de particular e delimitável, mas lá onde ele neste trato é precisamente sujeito e não está tratando de um "sujeito" objetivado diante de si. Afirmar, pois, que o homem é sujeito e pessoa significa primeiramente que o homem é algo de irredutível, que não se pode produzir completamente a partir de outros elementos a nós disponíveis. Ele é o ser que está sempre entregue à responsabilidade por si mesmo. Ao se explicar, analisar e reduzir à pluralidade de suas origens, ele está a se afirmar como o sujeito que está fazendo tudo isso, e aí ele 45
se percebe como realidade anterior e mais originária do que essa pluralidade mesma. 3. O HOMEM COMO SER DE TRANSCENDÊNCIA
O que vem a ser com mais exatidão a subjetividade, de que o homem faz experiência, torna-se mais claro pela afirmação de que o homem é ser de transcendência.
A estrutura antecipativa do conhecimento Apesar da finitude do seu sistema, o homem está sempre situado perante si mesmo como um todo. Ele pode questionar tudo. Em sua abertura a tudo, tudo o que se pode expressar pode transformar-se pelo menos em pergunta para ele. Ao afirmar a possibilidade de horizonte meramente finito de questionamento, essa possibilidade já se vê ultrapassada e o homem se manifesta como ser de horizonte infinito. Ao experimentar essa finitude radicalmente, ele está atingindo para além dessa finitude e percebe-se como ser transcendente, como espírito. O horizonte infinito do questionar humano é experimentado como horizonte que sempre se retira para mais longe quanto mais respostas o homem é capaz de dar-se. O homem pode tentar fugir da terrível infinitude, em que como interrogante se vê metido. Pode, por medo e inquietude, evadir-se e refugiar-se no que lhe é familiar e cotidiano. Mas a infinitude a que se sente exposto perpassará também por seu agir do dia-a-dia. Ele permanece basicamente sempre a caminho. Toda meta que ele possa prefixar-se no pensar e no agir vem a ser sempre de novo relativi:2;ada, será sempre provisoriedade e etapa. Toda resposta sempre volta a ser o começo de nova pergunta. O homem percebe-se como a possibilidade infinita porque, na prática. e teoria, necessariamente coloca em questão todo resultado obtido, sempre volta a colocar esse resultado contra o horizonte mais amplo que ímprevisivelmente se abre à sua frente. O homem é o espírito que se percebe como tal à medida que não se experimenta como espírito puro. O homem não é a infinitude não-questionada, dada sem problematizações, da realidade. Ele é a pergunta que se levanta perante ele, vazia, mas de forma real e inevitável, e que ele nunca pode superar nem dar resposta adequadamente. 46
A possibilidade de fugir à experiência de transcendência É claro que o homem pode muito bem sacudir os ombros e ignorar essa experiência de transcendência. Pode passar a se dedicar por inteiro ao seu mundo concreto, ao seu trabalho, à sua ocupação categorial no espaço e no tempo, ao serviço de seu sistema, acionando comandos e interruptores de sua realidade. Essa possibilidade pode vir a ocorrer de três maneiras:
1. A maioria o fará de maneira ingênua. As pessoas viverão como que à distância de si mesmas, naquela parte concreta de suas vidas e do mundo que as cerca e pode ser controlado e manipulado. Terão muito a fazer aí e, por certo, muita coisa interessante e importante. E, ao lhes ocorrer a idéia de algo que possa ultrapassar os limites deste mundo, sempre haverão de dizer que não vale a pena esquentar a cabeça com esse tipo de coisas. 2. Fuga semelhante a essa questão e resistência ao caráter de transcendência do homem pode vir a ocorrer também na decisão de assumir sobre si a existência categorial e suas tarefas, reconhecendo-se o fato de que tudo está envolto por questão de ultimidade. É possível que a pessoa deixe essa questão ficar na fase de questão. Crê poder suportá-la, silenciosamente, com ceticismo eventualmente razoável. Mas, ao declarar que não se pode responder a essa questão, a pessoa está a admitir que em última análise essa questão não pode ser descartada. 3. Há, talvez, uma categorialidade desesperada na existência humana. A pessoa faz negócios, lê, irrita-se, trabalha, pesquisa, consegue algo, ganha dinheiro. E, em desespero último, talvez não admitido, diz-se a si mesma que o todo como todo carece de qualquer sentido e que se faria bem em abafar a pergunta pelo sentido do todo, rechaçando-a como pergunta que não pode vir a responder e,. em razão disso, sem sentido. Jamais se pode saber claramente qual dessas três possibilidades ocorre eventualmente no caso de cada pessoa em concreto.
A pré-apreensão do ser O homem é o ser de transcendência à medida que todo o seu conhecimento e ato de conhecer se fundam na pré-apreensão do "ser" em geral, em um saber atemático mas sempre presente acerca da infinitude da realidade (assim podemos dizer, já ago-
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ra com certa ousadia). Pressupõe-se que essa pré-apreensão infinita não se funda no fato de o homem poder pré-apreender o nada como tal. Devemos pressupor isso, pois que o nada não funda nada. O nada não pode ser a meta dessa pré-apreensão, não pode ser que atrai, arrasta e movimenta a realidade que o homem percebe como sua vida real e não como um nada. É também certo que o homem experimenta o vazio, a fragilidade interna e - se assim o quisermos chamar para não bagatelizálo - a absurdidade do que se lhe antolha. Mas experimenta também a esperança, o movimento para a liberdade que liberta, a responsabilidade que impõe cargas reais, mas também as abençoa. Se o homem, porém, faz a experiência de ambas as coisas e, no entanto, sua experiência é una, experiência em que todos os movimentos e experiências singulares são sustentados por movimento último e primordial, se ele não pode ser um gnóstico que reconhece duas realidades primordiais últimas ou admite um dualismo no próprio fundamento último e primordial do ser, se ele não pode admitir esse gnosticismo porque contradiz à unidade de sua experiência, então resta apenas uma possibilidade: o homem pode entender que o ser absoluto estabelece limites e fronteiras fora de si, e que ele pode querer algo que seja limitado. Mas lógica e existencialmente não pode pensar que o movimento de esperança e o desejo em aberto, que sente realmente, não passam de louco engano aliciador. Não pode pensar que o todo funda-se ultimamente em um nada vazio, se é que não atribui de fato nenhum sentido absolutamente a essa palavra "nada" e não a emprega como mera cifra da ansiedade realmente existencial que na verdade sente. Portanto o que move a pré-apreensão do homem em sua absoluta amplidão de transcendência não pode ser o nada, o vazio puro e simples. Pois careceria absolutamente de sentido afirmar isso do nada. Mas uma vez que, por outro lado, essa préapreensão como mera pergunta não se explica a si mesma, precisa ser entendida como ação daquilo para que o homem está aberto, a saber, do ser puro e simples. Mas o movimento da transcendência não é o sujeito a criar e constituir o seu próprio espaço ilimitado, como se tivesse poder absoluto sobre o ser, antes consiste no surgir espontâneo do horizonte infinito do ser. Onde quer o homem se experimenta em sua transcendência como interrogante, como inquietado por esse surgir do ser, como ex48
posto ao inefável, não pode conceber-se como sujeito no sentido de sujeito absoluto, mas somente no sentido de alguém que recebe o ser e, em última instância, graça. "Graça", na presente referência, significa a liberdade do fundamento do ser que dá o ser ao homem, liberdade de que o homem faz experiência em sua finitude e contingência, e significa também o que denominamos "graça" em sentido teológico mais estrito.
A pré-apreensão do ser constitui a pessoa À medida que o homem se caracteriza por essa transcen-
dência, confronta-se consigo mesmo, é responsável por si, e assim é pessoa e sujeito. Pois unicamente no face-a-face com a infinitude do ser, que se desvela e se esquiva, é que um ente se situa em uma posição e sobre um ponto de apoio desde onde pode assumir-se e responsabilizar-se por si. Um sistema finito como tal só pode perceber-se como finito se em razão de sua origem existe como ele mesmo pelo fato de, enquanto tal sujeito consciente, proceder de algo diverso dele que não é ele próprio e que por sua vez não é apenas sistema particular, antes a unidade e plenitude originária, que tudo antecipa em si, de todos os sistemas pensáveis e de todos os sujeitos singulares em sua multiplicidade. Mais tarde pretendemos demonstrar que é a partir disso que podemos obter intuição originária e transcendental do que chamamos de condição de criatura. Evidente que essa experiência transcendental da transcendência humana não é a experiência de determinado objeto singular que se experimenta ao lado de outras coisas, mas é disposição fundamental que precede e compenetra toda experiência objetiva. É preciso que sempre se volte a frisar que a transcendência, como a entendemos aqui, não é o "conceito" tematizado da transcendência, conceito em que se reflete objetivamente sobre ela, mas é aquela abertura apriorística do sujeito para o ser em geral, que se dá precisamente quando a pessoa se percebe envolvida na multiplicidade das preocupações, ocupações, temores e esperanças no mundo do seu dia-a-dia. A transcendência propriamente dita está de certa forma como que no fundo do quadro em que o homem vive, na origem indispensável do seu viver e conhecer. E essa transcendência propriamente dita nunca é captada pela reflexão metafísica totalmente e em sua pureza, ou se49
ja, de maneira não objetivada. Quando muito dela se pode aproximar, se é que se pode, de maneira assintótica na experiência mística e talvez na experiência da solidão final e na disponibilidade para a morte. Essa experiência original da transcendência, que se distingue do discurso filosófico sobre ela, normalmente só pode dar-se na mediação da objetividade categorial do homem ou do mundo que o cerca, razão pela qual essa experiência transcendental pode passar despercebida. Ela se faz presente de certa forma apenas como ingrediente, por assim dizer, oculto. Mas o homem é e continua sendo ser de transcendência, ou seja, aquele ente ao qual a infinitude indisponível e silenciosa da realidade se apresenta continuamente como mistério. Assim o homem torna-se pura abertura para este mistério e precisamente assim põese como pessoa e sujeito perante si mesmo. 4. O HOMEM COMO SER DE RESPONSABILIDADE E LIBERDADE
A liberdade não é dado particular Enquanto o homem por sua transcendência se encontra em abertura total, é também responsável por si. Está entregue a si não só quando conhece, mas também quando age. E neste estar entregue a si mesmo percebe-se como responsável e livre. O que dissemos antes acerca da relação entre o ser pessoa do homem e sua origem e determinações intramundanas vale aqui de maneira especial. Em enfoque originário, a responsabilidade e a liberdade do homem não constituem dado particular empírico na realidade do homem que se possam justapor a outros. Se uma psicologia empírica, quanto mais radical, tanto menos liberdade é capaz de descobrir, no fundo se trata de algo conseqüente. A psicologia escolástica tradicional, ao querer descobrir a liberdade imediatamente como dado concreto particular no seio da transcendentalidade e personalidade humana, mostra boas intenções, mas está a fazer algo que no fundo contradiz à própria natureza da liberdade. E não é de admirar que encontre oposição da parte da psicologia empírica. Uma psicologia empírica deve sempre reconduzir um fenômeno a outro e, sendo assim, é claro que não pode descobrir liberdade alguma. Inclusive quando dizemos em nossa vida cotidiana que em tal ou qual ocasião fomos livres e em outra possivelmente não o fomos, não se trata de fenômeno setorial que se possa encontrar claramente no 50
espaço e tempo lado a lado com outros fenômenos, mas se trata na melhor das hipóteses da aplicação e concretização de experiência transcendental de liberdade, algo bem diverso da experiência com que se ocupam as ciências particulares e setoriais. Em seu princípio e origem, a responsabilidade e a liberdade do homem não constituem dado empírico particular ao lado de outros na realidade do homem. Razão pela qual as ciências empíricas antropológicas, entre as quais se situa a psicologia, podem dispensar-se de tratar do problema da liberdade. A questão da liberdade e responsabilidade com certeza é tema do Direito e da filosofia do Direito. E também não se pode contestar que as noções de liberdade, responsabilidade, imputabilidade ou não-imputabilidade, quer na vida cotidiana normal do homem, quer nos negócios da vida civil jurídica, tenham algo a ver com o que queremos aqui dizer. Mas, por outro lado, também é certo que, caso não ocorresse essa experiência transcendental da subjetividade e liberdade do homem, também não poderia haver essa liberdade no âmbito da experiência categorial humana, quer na vida civil quer na vida pessoal. Mas a experiência propriamente transcendental da liberdade não precisa ser explicada dessa forma primitiva como a experiência de dado que se possa descobrir diretamente dentro da consciência humana, porque em todas essas questões "eu" já sempre me percebo como o sujeito que sempre está entregue a si mesmo. É nessa experiência que algo como a real subjetividade e a responsabilidade por si mesmo, não só no conhecer, mas também no agir, está dado como experiência transcendental apriorística de minha liberdade. É somente dessa maneira que sei que sou livre e responsável por mim mesmo, mesmo quando ponho isso em dúvida, quando o questiono e não posso descobri-lo como dado particular de minha experiência categorial no espaço e tempo.
A mediação concreta da liberdade O que estamos a chamar de liberdade transcendental, ou seja, essa responsabilidade última da pessoa por si mesma, não só no conhecer e, portanto, não só na sua autoconsciência, mas também na auto-realização de si, em última análise, não pode permanecer oculta em disposição interior, pelo menos não para genuína antropologia que considera o homem concretamente e em sua unidade real. A liberdade é sempre mediada pela reali51
dade concreta do espaço e tempo, pela corporalidade e pela história do homem. Uma liberdade que não pudesse surgir no mundo certamente não seria liberdade que nos fosse de algum interesse. Nem seria liberdade como o cristianismo a entende. Mas sempre deveremos distinguir entre a liberdade em suas origens e a liberdade enquanto se insere no mundo e na história concreta e, assim, fica mediada para si mesma. Por essa polaridade entre a liberdade em suas origens e a liberdade em sua objetivação categorial, a liberdade que reflete sobre si está sempre e necessariamente oculta a si mesma, porque ela só pode refletir diretamente sobre sua objetivação. E essa objetivação sempre permanece ambivalente. Neste sentido, podemos distinguir entre liberdade originante e liberdade originada, entre liberdade em sua fonte e liberdade em sua encarnação concreta no mundo. É claro que essas dimensões não constituem duas coisas que se possam separar, antes dois momentos que integram a realidade única da liberdade. Se as antropologias empíricas constatam elementos particulares de diversa natureza no homem, reconhecem e estabelecem nexos causais ou funcionais entre esses elementos particulares, não podendo então constatar nenhuma liberdade como dado particular dentro da realidade que estão a estudar, nada disso justifica que a liberdade e a responsabilidade propriamente ditas do homem se sintam ameaçadas. A questão se um dado empírico concreto e singular na história de uma pessoa ou da humanidade possa interpretar-se como produto e encarnação dessa liberdade originária, ou se eventualmente em determinado caso particular ocorra o contrário, é questão que ainda não ficou decidida por nossas considerações e, com base em dados teológicos, não se pode decidir de forma definitiva por urna pessoa que ainda se encontra no curso de sua própria história. Pois essa liberdade última transcendental, enquanto liberdade concretamente posta e em suas origens, por sua própria natureza se subtrai a urna reflexão inequívoca, sobretudo no que se refere à presença ou ausência dessa liberdade na história de outras pessoas.
Responsabilidade e liberdade como realidades da experiência transcendental Da mesma forma que a subjetividade e a personalidade, também a responsabilidade e a liberdade são realidades da experiência 52
transcendental, ou seja, são experiências em que um sujeito se percebe como tal, e, portanto, não lá onde ele vem a ser objetivado em ulterior reflexão científica. Quando o sujeito se percebe como sujeito, a saber, como o ente que, por sua transcendência, possui originária e indissolúvel unidade e presença a si mesmo perante o ser, quando este sujeito experimenta sua ação como ação subjetiva (embora não a possa submeter à reflexão na mesma maneira), ele está fazendo a experiência da responsabilidade e liberdade no fundo de sua existência. Correspondendo à natureza do homem enquanto natureza corpórea inserida no mundo, essa liberdade sempre se exerce no meio de multiplicidade de atos concretos realizados na diversidade de espaço e tempo, no seio de multiplicidade de envolvimentos na história e na sociedade. Tudo isso é evidente. Essa ação livre não ocorre somente nas profundezas ocultas da pessoa, fora do mundo e da história. Não obstante, a liberdade propriamente dita do homem continua sendo una, pois constitui peculiaridade transcendental do sujeito uno como tal. Podemos, pois, dizer sempre em certo sentido: porque e à medida que me percebo como sujeito e pessoa, percebo-me como ser livre, dotado de uma liberdade que não se refere primariamente a uma ocorrência psíquica isolada, mas de uma liberdade que se refere a um sujeito inteiro e uno na unidade de sua realização em toda a sua existência. A maneira como isso se realiza no espaço e tempo de toda uma existência histórica e na variada concretude da vida humana, é questão que não podemos decidir exatamente. Essa liberdade não é, pois, faculdade neutra que a pessoa possa ter e carregar consigo como algo de distinto de si, mas é propriamente básica do existente pessoal, que na ação temporal, já acontecida ou por acontecer, experimenta-se como autopossessão, como realidade porque é responsável e deve ser responsabilizado, até que a resposta pessoal do sujeito àquela infinita incompreensibilidade seja dada por este ser em sua transcendência e como tal seja ela acolhida ou rejeitada. Assim como o homem pode evadir-se de sua subjetividade, assim também pode evadir-se de sua responsabilidade e liberdade, passando, assim, a se interpretar como produto do que lhe é estranho. Mas mesmo essa auto-interpretação que fazemos, e que não devemos confundir com o seu conteúdo, é ato do sujeito como tal que se nega a si mesmo ou interpreta sua liberdade como condenação à arbitrariedade vazia do que lhe é estranho.
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Agindo assim, uma vez mais está a se comportar como sujeito livre e se afirma uma vez mais no "não" a si mesmo. Em outros termos: na liberdade está sempre em jogo o homem como tal e como todo. O objeto da liberdade em seu sentido originário é o próprio sujeito, e todos os objetos com que ele trata na experiência do mundo que o cerca não passam de objetos da liberdade, à medida que medeiam este sujeito finito situado no espaço e tempo a si próprio. Quando se entende realmente a liberdade, compreende-se que ela não é a faculdade de fazer isto ou aquilo, mas a faculdade de decidir sobre si mesmo e construirse a si mesmo. É claro que não se deve entender isso, é preciso que insistamos, como se o sujeito estivesse situado fora da história, da sociedade e do mundo, mas se trata da formalidade sob a qual se deve pensar e expressar a essência da liberdade. A interpretação do conteúdo do que assim dizemos formalmente é, uma vez mais, coisa diversa. Se alguém disser que o homem sempre se experimenta como determinado e controlado pelo que lhe é estranho, como funcional e dependente, como analisável e descomponível em antecedentes e conseqüentes, dever-se-á então dizer: este sujeito, que sabe disso, é ao mesmo tempo e sempre o sujeito responsável, que é desafiado a dizer e fazer o que deve fazer com essa dependência absoluta, com essa estranheza e com essa possibilidade de ser decomposto - é desafiado a tomar posição perante este fato, quer amaldiçoando-o quer aceitando-o, quer permanecendo cético quer entregando-se ao desespero, ou de qualquer forma que seja. Mas inclusive quando a pessoa renunciasse a si mesma, abandonando-se ao que a seu respeito dizem as antropologias empíricas, não deixaria de estar entregue a si mesma. Ela não escapa à sua liberdade, e neste caso a única pergunta a fazer seria acerca da maneira como se interpreta a si mesma (o que, se note, uma vez mais ocorre livremente). 5. A QUESTÃO EXISTENCIAL PESSOAL COMO QUESTÃO DA SALVAÇÃO
O enfoque teológico e antropológico para compreender a "salvação" À medida que o homem como sujeito livre responde por si mesmo, à medida que está entregue a si mesmo o objeto do
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ato de sua liberdade propriamente dita, ato que é uno em suas origens e afeta o todo de sua existência humana, podemos dizer que o homem tem uma salvação e que o problema propriamente dito da existência pessoal é um problema de salvação. Quando não se vê o ponto de partida para compreender a salvação originariamente no sujeito e na própria natureza da liberdade, a salvação só pode parecer algo estranho e cheirar mitologia. Mas no fundo as coisas não são assim, pois o genuíno conceito teológico de salvação não se refere a uma salvação futura que se precipita como que inesperadamente sobre a pessoa como se coisa vinda de fora, felicitando-a ou, no caso de perdição, infelicitando-a. Também não significa algo que se atribua à pessoa somente com base em juízo moral. Pelo contrário, refere-se à definitividade da verdadeira autocompreensão e da verdadeira auto-realização da pessoa em liberdade diante de Deus, mediante o seu próprio ser autêntico, tal como se lhe manifesta e se lhe oferece na escolha da transcendência interpretada livremente. A eternidade da pessoa humana somente se pode entender como a liberdade autêntica e definitiva que maturou para além do tempo. Toda outra coisa só pode ser seguida de mais tempo e não eternidade, que não representa o contrário do tempo, mas antes a consumação do tempo da liberdade. Evidentemente, tendo-se isso em vista, uma de nossas tarefas mais importantes e difíceis consiste no renovado esforço no sentido de esclarecer que o que o cristianismo diz sobre o homem, apesar de suas afirmações sobre a história da salvação, refere-se ao homem sempre na originariedade primeira do seu ser, em sua natureza transcendental. Conseqüentemente, em última instância só se pode falar acerca disso de uma maneira em que essa transcendentalidade da questão, que é o homem em seu transcender para o mistério incompreensível, não se entenda erroneamente de maneira categorial. Salvação na história
O homem, porém, enquanto ser pessoal que goza de transcendência e liberdade, é ao mesmo tempo um ser inserido no mundo, no tempo e na história. Essa afirmação é fundamental para descrever os pressupostos que a mensagem cristã faz acerca do homem. Pois, se o âmbito da transcendência e da salvação não se inserisse de início na própria história do homem e 55
no seu existir no mundo e no tempo, a questão da salvação e a mensagem da salvação não poderiam acontecer historicamente nem se referir a uma realidade histórica. Por outro lado não precisamos distinguir aqui com exatidão conceitua! os termos mundanidade, temporalidade e historicidade, sobretudo porque o conceito de historicidade implica os outros dois como momentos em si. Mas o que se significa com esses conceitos e é decisivo para interpretar corretamente o cristianismo é o seguinte: essa mundanidade, temporalidade e historicidade são dimensões presentes no homem, dimensões que ele não só também tenha - justapostas e acrescentadas à sua personalidade livre -, mas, pelo contrário, são dimensões inerentes à própria subjetividade livre da pessoa como tal. O homem não é só também ser vivo biológico e social, que exerce essas suas propriedades no tempo, mas sua subjetividade e sua livre auto-interpretação pessoal acontece precisamente na e mediante a sua mundanidade, temporalidade e historicidade, ou melhor: no e mediante o mundo, o tempo e a história. Não se pode responder à questão da salvação prescindindo-se da historicidade e da natureza social do homem. A transcendentalidade e a liberdade exercem-se no interior da história. Inclusive a Historie (relato de fatos) não deixa de ser Geschichte (história interpretada), e, sendo assim, é também já auto-compreensão do homem a se realizar reflexamente. O homem possui sua essência eterna como antecipada e entregue a ele em sua liberdade e reflexão, à medida que experimenta, sofre e atua sua história. A historicidade designa aquela constituição básica e própria do homem pela qual está situado no tempo precisamente como sujeito livre, e pela qual um mundo lhe está à disposição, mundo que ele deve criar e sofrer na liberdade, assumindo-o em ambas as alternativas. A mundanidade do homem, seu permanente estar entregue à alteridade de um mundo a ele pré-existente e imposto como mundo que o abarca e onde convive com outros, constitui momentos internos deste sujeito mesmo, que deve entender e realizar-se na liberdade, mas que precisamente assim se torna algo de eternamente válido para este sujeito. O homem como sujeito não veio parar casualmente neste mundo material e temporal como mundo que lhe fosse estranho e contraditório a ele como espírito, mas, antes, a própria auto-alienação do sujeito no mundo constitui precisamente a maneira pela qual o sujeito se acha a si mesmo e se afirma de forma definitiva. 56
O tempo, o mundo e a história medeiam o sujeito para si próprio e para aquela autopossessão imediata e livre, em vista da qual está constituído o sujeito pessoal e para a qual está já sempre antecipativamente orientado. Se a historicidade do homem - e, em conseqüência, também sua história concreta - é dimensão intrínseca e constitutiva do sujeito espiritual e livre, o problema da salvação, enquanto problema que se refere ao sujeito uno e inteiro em sua liberdade, não pode deixar de lado a história. É na história que ele deve realizar sua salvação, à medida que a encontra ofertada na história e nela a acolhe. Se a historicidade é um existencial do próprio sujeito, deve haver história da salvação e da não-salvação, pois o problema da salvação é uma proposta à liberdade, ou viceversa: o que vem a significar o problema da salvação só se pode entender a partir dessa natureza da liberdade. Por isso a história da salvação e a história em geral devem em última instância ser coexistentes, mas, afirmando isso, não queremos excluir genuína diferença entre as duas. Se o sujeito da salvação é histórico, a própria história é a história dessa salvação - ainda que ocultamente e sempre a caminho de sua última e definitiva interpretação. Se a intercomunicação entre os sujeitos espirituais na verdade, no amor e na sociedade faz parte da realização da própria existência, porque se trata de existência histórica, integrando-a como constitutivo interno e não só como material externo, então a unidade da história de todos os homens e a unidade de uma história da salvação é, de partida, propriedade transcendental presente na história pessoal de todo indivíduo, e viceversa, precisamente porque se trata da história de muitos sujeitos. 6. O HOMEM COMO SUJEIID SOB DISPOSIÇÃO ALHEIA
Carregado pelo mistério Não obstante sua livre subjetividade, o homem experimentase como ser dependente, disponível da parte de outros e do diverso dele, sob disposição sobre a qual não mais detém controle. Primeiramente, já a sua constituição como sujeito transcendental é movida e imantada pela referência ao ser como mistério, referência que se desvela e se vela ao mesmo tempo. Já dissemos que sua transcendentalidade não se pode pensar como se fora transcendentalidade de um sujeito absoluto, o qual de cer57
ta forma experimenta e possui a realidade desvelada corno submetida ao seu próprio poder. Trata-se, antes, de referência que não se impõe por própria força, mas que se experimenta como posta e disposta por outrem, como fundada no abismo do mistério inefável.
O homem condicionado pelo mundo e pela história Além disso, o homem se experimenta, quer em sua atividade exercida sobre o mundo quer em sua reflexão teórica objetivante, como alguém a quem está de antemão designado um lugar na história do mundo que o cerca e do mundo das relações humanas. Este lugar lhe vem designado anteriormente a qualquer opção de sua parte, embora apreenda e tenha consciência da transcendência mediante sua inserção neste mundo indisponível. O homem sempre tem consciência de sµa finitude histórica, de sua procedência histórica, da contingência de sua posição de partida. Com isso, porém, ele chega à situação muito peculiar que precisamente caracteriza a essência do homem: ao fazer a experiência do seu condicionamento histórico corno tal, ele se situa em certo sentido para além deste condicionamento, mas, apesar disso, não pode deixá-lo atrás. Situar-se dessa forma entre a finitude e a infinitude é o que constitui o homem e se manifesta uma vez mais no fato de que precisamente em sua transcendência infinita e em sua liberdade o homem se experimenta como imposto a si e historicamente condicionado. O homem jamais é pura posição de sua própria liberdade, de uma liberdade que pudesse fazer pleno uso ou repelir tranqüilamente de si, em absoluta auto-suficiência, o material que em todo o caso está dado previamente nesta liberdade. Jamais esgota suas possibilidades no mundo e na história. Também não pode distanciar-se delas, refugiando-se na pura essencialidade de pretensa subjetividade ou interioridade, de sorte que pudesse dizer seriamente que se tornou independente da realidade prédada do seu mundo e da sua história. O homem é, em sentido último e ineludível, paciente mesmo quando agente, e sua autoexperiência apresenta-lhe sempre, em unidade não mais analisável adequadamente de maneira objetiva, a síntese entre a possibilidade dada previamente à sua liberdade e a livre autodisposição, entre o que. lhe é próprio e o que lhe é estranho, entre agir e sofrer, entre saber e fazer. À medida, pois, que a reflexão ja58
mais pode controlar, dominar ou alcançar adequadamente o todo do fundamento, a partir do qual e em referência ao qual o sujeito se realiza, o homem é o ainda desconhecido para si, não só neste ou naquele campo de sua realidade conçr.::ta, mas é também o sujeito que como tal está subtraídc· a si próprio no que se refere à sua origem e ao seu fim. Ele chega à sua verdade autêntica precisamente enquanto com serenidade suporta e aceita esse caráter de indisponibilidade de sua própria realidade. Todos os conceitos que temos usado hão de se considerar aqui, ao nível de reflexão em que conscientemente nos situamos, apenas como evocações de uma compreensão da existência, a cuja luz o indivíduo, na tentativa concreta de realizar sua própria existência, deve experimentar ele próprio que no fundo é inevitável essa autocompreensão, quer opte por aceitá-la quer por protestar contra ela, por mais que os conceitos, as palavras e as sentenças não possam ou não pretendam alcançar de forma realmente adequada o dado originário e autêntico da perso.: nalidade e liberdade, da subjetividade, da história e historicidade, do fato de o homem existir por disposição alheia. etc.
SEGUNDA SEÇÃO
O HOMEM PERANTE o· i\1ISTÉRIO ABSOLUTO
Esta segunda seção apresenta uma reflexão conceitual sobre aquela experiência transcendental originária, que jamais se pode captar adequadamente por essa reflexão, experiência em que o homem se confronta com o mistério absoluto que chamamos "Deus". O que temos a dizer aqui já foi dito de maneira menos explícita na primeira seção. Se o homem é realmente sujeito, ou seja, um ser de transcendência, responsabilidade e liberdade, que como sujeito está entregue a si mesmo e em suas mãos e nas mãos do que lhe foge ao controle, então no fundo já dissemos, com isso, que o homem é o ser referido a Deus. E essa referência ao mistério absoluto está sem cessar sendo-lhe outorgada por este mistério como o fundamento e o conteúdo de sua essência. Ao entender o homem nessa chave de compreensão, é claro que não queremos dizer que ao usar o termo "Deus" nesta proposição saibamos o que o termo significa por outra fonte que não seja essa referência mesma ao mistério. A essa altura, teologia e antropologia necessariamente se encontram, tornandose uma só coisa. O homem só sabe explicitamente o que significa "Deus" à medida que permite à sua transcendentalidade, situada além de tudo o que se possa identificar objetivamente, entrar no campo de sua consciência, acolhendo-a e refletindo objetivamente sobre o que já está dado com essa transcendentalidade. 1. MEDITAÇÃO SOBRE A PALAVRA "DEUS"
Esta palavra existe Convém começar com breve reflexão sobre a palavra "Deus". Não só porque, à diferença de mil outras experiências que po-
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dem obter audiência mesmo sem palavras, poderia ser que em nosso caso a palavra por si só seja capaz de nos dar acesso ao que ela significa, mas também por uma razão bem mais simples podemos e talvez devamos começar a reflexão sobre Deus com a própria palavra "Deus". Pois não temos nenhuma experiência de Deus do tipo da que temos de uma árvore, de outra pessoa humana ou de outras realidades externas que, embora talvez nunca existam para nós simplesmente sem palavras, contudo por si mesmas forçam o nascimento de uma palavra sobre elas porque simplesmente surgem no âmbito de nossa experiência em determinado ponto do espaço e tempo e, assim, por si mesmas, elas impulsionam imediatamente a que se lhes dê um nome. Podemos, portanto, dizer que o que existe de mais simples e ineludível para o homem com respeito à questão de Deus é que a palavra "Deus" existe em sua vida espiritual e intelectual. Não podemos fugir a este fato simples, ainda que ambíguo, perguntando-nos pela possibilidade de um mundo no futuro em que na humanidade não mais ocorresse o uso da palavra "Deus", em que não mais se levantasse a questão se essa palavra teria sentido e se se referiria a uma realidade fora dela mesma, ou se então ela não iria surgir uma vez mais como que em lugar totalmente novo, onde antes fora a origem dessa palavra voltaria a se fazer atual com o uso de um termo novo. Em nosso caso, a palavra existe para nós em nosso meio cultural. E sua existência é prolongada até mesmo pelo ateu quando ele diz que não existe Deus e que algo assim como Deus carece absolutamente de sentido; quando ele funda um museu dos sem-Deus, erige o ateísmo como dogma de sua militância partidária ou concebe outras coisas do mesmo tipo. Também o ateu ajuda a palavra "Deus" a continuar a existir. Se quisesse evitá-lo, não só teria de esperar que na existência do homem e na linguagem da sociedade essa palavra desaparecesse por completo, mas também deveria contribuir para este desaparecimento guardando completo silêncio, abstendo-se de se declarar ateu. Mas como poderia fazê-lo se outros, com os quais deve falar, de cujo campo lingüístico não pode definitivamente emigrar, continuam a falar de Deus e se preocupam com essa palavra? O mero fato de existir essa palavra já merece reflexão. Quando falamos dessa maneira de Deus, é claro que não nos referimos somente à palavra "Gott", na língua alemã. Quer se diga "Gott", em alemão, ou "Deus", em latim e línguas neolatinas, 61
ou "El", nas línguas semitas, ou "Teotl", no mexicano antigo, aqui pouco importa. Seria, porém, um problema sumamente obscuro e difícil se com essas palavras tão diferentes se significa a mesma coisa ou a mesma pessoa, porque em cada um desses casos não se pode apontar simplesmente uma experiência comum da coisa significada independentemente da palavra mesma. Mas deixemos estar por ora este problema referente à sinonímia das muitas palavras para designar "Deus". Existem evidentemente também nomes de Deus ou de deuses lá onde em culto politeísta se venera um panteão de divindades, ou lá onde, como no Israel antigo, o Deus único e onipotente recebe um nome próprio, o nome de Iahweh, porque se tem a persuasão de se ter feito experiências bem determinadas com ele na própria história, experiências que, sem prejuízo de sua incompreensibilidade e da impossibilidade de lhe dar nome adequado, contudo o caracterizam e assim permitem atribuir-lhe um nome próprio. Mas aqui não falamos desses nomes de Deus no plural. Que significa a palavra "Deus" A palavra "Deus" existe. E este fato por si só merece reflexão. Todavia pelo menos a palavra não fala mais nada ou absolutamente nada sobre Deus. Se assim foi sempre na história mais antiga da palavra, é outra questão. Em todo caso, a palavra "Deus" soa hoje em dia como nome próprio. É preciso buscar saber por outros meios o que ou quem ela significa. Na maioria das vezes não nos damos conta disso, mas assim é. Se chamássemos a Deus, por exemplo, de "Pai", ou "Senhor", ou "Celestial", ou expressões semelhantes, como ocorre freqüentemente na história das religiões, a palavra estaria expressando por si mesma algo da realidade significada em virtude das origens da palavra em outras experiências que já teríamos feito e em virtude do seu uso secular. Mas no caso da palavra "Deus", a coisa se nos apresenta de imediato como se a palavra nos mirasse como um rosto cego. Ela não fala nada sobre o que significa ou sobre a realidade significada, nem pode exercer sequer a função de aceno de mão que apontasse para algo que se encontrasse imediatamente fora da palavra e, por isso, não precisa dizer nada sobre este algo, como quando dizemos "árvore", "mesa" ou "sol".
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Contudo, a terrível falta de contornos desta palavra - perante a qual a primeira pergunta seria: que afinal quer dizer esta palavra? - sem dúvida é bastante adequada para aquilo a que se refere, independentemente de já em sua origem a palavra ter ou não sido assim "sem rosto". Podemos também prescindir da questão se a história da palavra terá começado com outra forma da palavra. Em todo caso, a forma atual da palavra reflete aquilo a que a palavra se refere: o "Inefável", o "Sem-nome'', o que não aparece no mundo designado corno um componente dele; o "Silencioso" que está sempre aí e sempre pode passar despercebido e não ser ouvido, e, porque significa o todo em unidade e totalidade, pode ser descurado como absurdo; aquele que propriamente não pode designar-se por nenhuma palavra mais, pois toda palavra adquire seus limites, sua ressonância e, em conseqüência, só é inteligível dentro de um campo de palavras ou jogo de linguagem. Assim o que se tomou sem rosto, a saber, a palavra "Deus", que não mais se refere por si mesma a urna experiência singular definida, está em condições de nos falar corretamente de Deus, porquanto é a última palavra antes do calar em que, pelo desaparecimento de todo particular denominável, temos de haver-nos com o todo fundante como tal. Terá futuro essa palavra?
A palavra "Deus" existe. Voltamos ao ponto de partida de nossa reflexão, ou seja, ao simples fato de no mundo das palavras, pelas quais construímos nosso mundo e sem as quais mesmo os assim chamados fatos não existem para nós, ocorre também a palavra "Deus". Mesmo para o ateu, mesmo para o que declara que Deus está morto, mesmo para eles, como vimos, Deus existe pelo menos corno o que eles julgam dever declarar morto e cujo espantalho precisam exorcizar, como aquele cujo retomo temem. Somente quando já não existisse a palavra mesma, ou seja, quando nem sequer se houvesse de colocar a questão acerca dela, somente então é que poderíamos ter sossego quanto a ela. Mas essa palavra continua a existir, tem presente. Terá também futuro? Já Marx pensou que inclusive o ateísmo viria a desaparecer, ou seja, que a própria palavra "Deus" - em chave afirmativa ou negativa - deixaria de existir. É pensável este futuro da palavra "Deus"? Tulvez essa pergunta careça de senti63
do, posto que futuro genuíno é o que é radicalmente novo, que não pode ser objeto de cálculos antecipatórios. Ou essa pergunta é meramente teórica e na realidade se transforma de imediato em interpelação à nossa liberdade no sentido de se amanhã continuaremos dizendo "Deus", como crentes ou como incrédulos, afirmando, negando ou duvidando, em mútuo desafio entre nós. O que quer possa ocorrer com a pergunta pelo futuro da palavra "Deus", o crente só pode ver duas possibilidades e nenhuma outra mais: ou a palavra desaparecerá sem deixar traços e sem retorno, ou ela permanecerá como pergunta de uma ou outra maneira dirigida a todos.
A realidade sem essa palavra Consideremos agora essas duas possibilidades. A palavra "Deus" terá desaparecido sem deixar pegadas e vestígios, sem deixar nenhuma brecha visível atrás de si, sem ser substituída por outra palavra que nos interpele da mesma forma. Doravante a palavra "Deus" já não colocará sequer uma pergunta, ou melhor, a pergunta por excelência, porque as pessoas não querem dizer ou ouvir essa palavra· como pergunta. Que ocorrerá então se levarmos a sério essa hipótese sobre o futuro? Nesse caso o homem não mais seria colocado diante do todo uno da realidade como tal nem diante do todo uno de sua existência como tal. Pois é exatamente isso que faz a palavra "Deus" e somente ela, como quer que soe foneticamente ou como quer que esteja determinada em sua origem. Se realmente não existisse a palavra "Deus", também essas duas coisas não mais existiriam para o homem: o todo uno da realidade como tal e o todo uno da existência humana como tal na mútua compenetração dos dois aspectos. O homem se olvidaria de si mesmo simplesmente no meio da preocupação por tudo o que é parcial no seu mundo e na sua existência. Nesta suposição ele nunca se confrontaria com a totalidade do mundo e de si mesmo nem sequer na forma do desconcerto, do silêncio e da preocupação e ansiedade. Não mais notaria que não passa de um ente particular e não é o ser como tal. Não mais notaria que estaria pensando apenas perguntas setoriais e não a pergunta pelo próprio perguntar. Não mais notaria que estaria apenas manipulando sem cessar, de diferentes maneiras, aspectos diferentes de sua existência e nunca se confron64
taria com sua existência em sua unidde e totalidade. O homem ficaria metido no mundo e em si e não mais realizaria aquele misterioso processo que ele mesmo é e no qual, por assim dizer, o todo do "sistema" que ele é juntamente com o seu mundo, e no qual reflete profundamente sobre si mesmo em sua unidade e totalidade, assume livremente responsabilidade por si e, assim, transcende e alcança para além de si mesmo aquele mistério silencioso que se parece com o nada, mas a partir do qual retorna a si e ao seu mundo, destacando-se de ambos e assumindo ambos. O homem teria esquecido o todo e o seu fundamento, e ao mesmo tempo teria esquecido, se é que ainda se poderia falar assim, que se esqueceu. Que seria então? Só poderíamos dizer: ele deixaria de ser homem. Ter-se-ia reduzido a um animal engenhoso. Não podemos mais dizer tão facilmente hoje que já existe homem quando um vivente terrestre anda em posição ereta, acende fogo e transforma urna pedra em picareta. Só podemos dizer que existe homem quando um ser vivo, pensando, usando da palavra e agindo livremente, confronta-se com a totalidade do mundo e da existência como pergunta e problema, mesmo que, ao fazê-lo possa vir a se manter mudo e desconcertado perante esta pergunta sobre a unidade e a totalidade. Talvez seria até mesmo pensável - e quem pode saber disso com certeza? - a possibilidade de o gênero humano, mesmo mantendo urna sobrevivência biológica e técnico-racional, vir a morrer de morte coletiva e voltar ao estado de térmitas ou a uma colônia de animais incrivelmente engenhosos. Seja ou não isso urna possibilidade real, essa utopia não deveria espantar o crente que usa a palavra "Deus" corno se fosse desautorização de sua fé. Pois ele conhece urna consciência meramente biológica e, se assim a quisermos chamar, urna inteligência animal em que a pergunta pelo todo como tal não surgiu e para a qual a palavra "Deus" não se tornou parte do seu destino, e não lhe é fácil dizer de que seja capaz essa inteligência biológica, sem entrar no destino que se caracteriza pela palavra "Deus". Mas o homem existe propriamente como homem somente quando diz "Deus" pelo menos corno pergunta, pelo menos na forma de pergunta a que se responde negativamente. A morte absoluta da palavra "Deus", morte que apagasse até mesmo o seu passado, seria o sinal não mais ouvido por ninguém de que o homem mesmo morreu. Conforme já dissemos, talvez seja possível pensar essa morte coleti65 3 - Curso Fundamental da Fé
va. Isso não teria de ser mais extraordinário do que a morte individual do homem e do pecador. Onde não houvesse mais nenhuma pergunta, onde a pergunta por excelência tivesse morrido e desaparecido, é claro que não se deveria dar mais nenhuma resposta e tampouco poderia haver resposta negativa. E este lugar vazio, se o pensarmos como possibilidade, também não poderia tornar-se argumento de que o que se significa com a palavra "Deus" não existe, pois então já se teria dado de novo uma resposta a essa pergunta, ainda que de forma negativa. Portanto o fato de que a pergunta pela morte da palavra "Deus" se possa levantar mostra uma vez mais que a palavra "Deus" continua sendo afirmada - mesmo quando se protesta contra ela.
A palavra "Deus" permanece A segunda possibilidade a considerar é que a palavra "Deus" permanece. Cada indivíduo em sua existência intelectual e espiritual vive da linguagem de todos. Faz suas experiências existenciais, por mais individuais e singulares sejam, somente na língua e com a ajuda da língua do meio em que vive, da qual não escapa, assumindo suas associações de palavras, suas perspectivas e seus a prioris seletivos, inclusive quando protesta contra eles e quando ele próprio coopera na história sempre em aberto da língua. A pessoa necessariamente se deixará dizer algo pela língua, pois continua a falar com ela e somente com ela pode protestar contra ela. Não lhe podemos, portanto, negar razoavelmente uma confiança básica e última, a não ser que queiramos permanecer sempre calados ou nos contradizer a nós mesmos. Ora, a palavra "Deus" existe na língua em que e de que vivemos e assumimos responsavelmente nossa existência. Mas essa palavra não é palavra qualquer, meramente casual, que surge em determinado momento da língua e depois volta a desaparecer sem pegadas, como "flogístico" e outras palavras. Pois a palavra "Deus" coloca em questão o todo do mundo da língua em que a realidade fica presente para nós. Porque ela põe de imediato a pergunta acerca do todo da realidade em seu fundamento originário, e a pergunta pelo todo do mundo da linguagem existe naquele singular paradoxo que é próprio precisamente da língua porque a própria língua é parte do mundo, e ao mesmo tempo é o todo dele como conhecido. Falando de algo, a língua se expressa a si mesma como um todo e em relação
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com seu fundamento, que lhe está distante, mas presente em sua distância. E para isso exatamente é que se aponta quando dizemos a palavra "Deus", ainda que com ela não signifiquemos simplesmente o mesmo que com a língua como um todo, mas antes o fundamento que a possibilita. Mas precisamente por essa razão a palavra "Deus" não é palavra qualquer, mas é a palavra na qual a língua - ou seja, a consciência de si do mundo e da existência conjuntamente, que se expressa - apreende-se a si em seu fundamento. Esta palavra existe, faz parte de maneira especial e única de nosso mundo lingüítico e, assim sendo, do nosso mundo em geral. Ela mesma é uma realidade, e uma realidade inevitável para nós. Essa realidade pode estar presente clara ou obscuramente, falando em voz baixa ou alta, mas ela está aí. Pelo menos como pergunta.
A palavra original que nos é imposta Neste momento e neste contexto não se trata ainda como reagimos a este evento da palavra, se na aceitação dela como indicando a Deus mesmo, ou na recusa dela no meio do desespero e da raiva por nos extenuar até os limites das forças, porque, como parte do mundo lingüístico, ela nos forçaria a nós, que somos parte do mundo, a nos confrontar com o todo do mundo e conosco mesmos, sem que possamos ser e dominar o todo. E também para o momento deixamos inteiramente em aberto a questão como essa totalidade original se define e se relaciona com o mundo múltiplo e com a multiplicidade das palavras do mundo lingüístico. A essa altura só podemos chamar a atenção para uma coisa um pouco mais claramente do que o fizemos até o momento, porque diz respeito de imediato ao tema da palavra "Deus": se entendermos corretamente o que até agora se disse sobre a palavra "Deus", veremos que as coisas não se passam como se fôssemos antes de tudo nós, agindo ativamente como indivíduos, a pensar "Deus", e que dessa maneira se introduz pela primeira vez a palavra "Deus" no espaço de nossa existência. Pelo contrário, ouvimos e recebemos a palavra "Deus'! Ela chega até nós na história da língua, na qual, queiramos ou não, estamos encarcerados, a qual nos situa e nos questiona como indivíduos sem que ela própria esteja sujeita à nossa disposição. Essa história da língua que se nos impõe a nós e na qual ocorre a palavra "Deus" que nos lança interrogações, é assim uma vez mais 67
imagem e semelhança do que ela anuncia. Não devemos pensar que, pelo fato de o som fonético da palavra "Deus" depender de nós, também a palavra "Deus" seja criação nossa. Pelo contrário, é ela que nos cria a nós, porque faz de nós homens. A palavra "Deus", em sentido estrito, não se identifica simplesmente com o vocábulo "Deus", que ocorre como que perdido em um dicionário da mesma maneira que milhares de outras palavras. Pois a palavra "Deus" do dicionário apenas representa para nós a palavra genuína que se nos faz presente desde o arcabouço sem palavras de todas as palavras, através de seu nexo, sua unidade e sua totalidade, totalidade que está dada, fazse presente a nós e nos confronta com a realidade como um todo, pelo menos na forma da pergunta. Esta palavra existe. Está em nossa história e faz nossa história. É uma palavra. Ela pode passar despercebida a ouvidos que ouvem mas não entendem, como diz a Escritura. Mas nem por isso ela deixa de existir. Já a velha intuição de Tertuliano relativamente à anima naturaliter christiana, ou seja, sobre a alma que é cristã por sua origem, procede dessa inevitabilidade da palavra "Deus". Ela está aí. Procede das origens de que o próprio homem procede. Só se pode pensar em seu fim com a morte do homem enquanto homem. Ela pode ainda ter história, cujas vicissitudes e configuração final não podemos imaginar com antecedência, precisamente porque é ela que mantém em aberto o futuro não planejado e indisponível. Ela é a abertura para o mistério incompreensível. Ela exige de nós além de nossas forças, quiçá nos irrite por nos perturbar a tranqüilidade em uma existência que almeja ter a paz que provém do que é controlável, claro e planejado. Ela está sempre exposta ao protesto de Wittgenstein, que manda guardar silêncio sobre o que não se pode falar com clareza, mas que infringe essa máxima pelo próprio fato de a expressar. A palavra mesma, se bem entendida, concorda com essa máxima. Pois ela é a última palavra antes do silêncio que se emudece sem palavras em adoração perante o mistério inefável. É a palavra que se deve pronunciar no fim de todo falar se, em lugar do silêncio na adoração, não deva seguir a morte em que o homem se torna animal engenhoso ou pecador eternamente perdido. É palavra de sentido sobrecarregado e que exige de nós mais do que suportam nossas forças, quase até os limites do irrisório. Se nós não a ouvimos dessa forma, estaremos a ouvi-la 68
como palavra que diz as coisas óbvias e controláveis do dia-adia, como palavra ao lado de outras palavras. E, neste caso, teremos ouvido algo que nada tem a ver com a verdadeira palavra "Deus", a não ser quanto ao som fonético. Conhecemos a expressão latina amor f ati, o amor ao destino. Essa decisão -em face do- destino significa propriamente "amor à palavra a nós dirigida", ou seja, àquele /atum que é nosso destino. Somente este amor ao que 'é necessário liberta nossa liberdade. Este f atum, em última análise, é a palavra "Deus". 2. O CONHECIMENTO DE DEUS
Conhecimento transcendental e a posteriori de Deus O que estamos denominando conhecimento ou experíência transcendental de Deus é um conhecimento a posteriori à medida que a experiência transcendental que o homem faz de sua livre subjetividade ocorre somente em seu encontro com o mundo e sobretudo com outras pessoas. A tradição escolásí:ica enfatiza, contra o ontologismo, que o único conhecimento que o homem obtém de Deus é um conhecimento a posteriori a partir do mundo. Isso é verdade mesmo havendo a revelação da palavra, porque também essa deve trabalhar com conceitos humanos. Nosso conhecimento ou experiência transcendental tem de ser chamado a posteriori à medida que toda experiência. transcendental é mediada por encontro categorial com realidades concretas no âmbito do nosso mundo, o mundo das coisas e o mundo das pessoas. Essa afirmação vale também do conhecimento de Deus. E neste sentido podemos e devemos dizer que só existe conhecimento a posteriori de Deus que se origina do e mediante o encontro com o mundo, do qual, é claro, também somos parte. O conhecimento de Deus é, contudo, um conhecimento transcendental, porque a referência originária do homem para com o mistério absoluto, que constitui a experiência fundamental de Deus, é um existencial permanente do homem enquanto sujeito espiritual. Isso implica que o conhecimento explícito, conceitua! e tematizado, em que comumente pensamos ao falar de conhecimento de Deus ou de provas da existência de Deus, é reflexão até certo ponto necessária sobre esta referência transcendental do homem ao mistério, mas não é a modalidade originária e fundante da própria experiência transcendental do misté-
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rio. Faz parte da natureza mesma do conhecimento humano que o pensamento seja reflexivo, seja pensamento do pensamento, que pensemos um objeto concreto no interior de espaço infinito e aparentemente vazio do pensamento mesmo, que seja saber do pensamento sobre si mesmo. Devemos nos acostumar a notar que, quando pensamos ou exercemos a liberdade, estamos tratando com mais e sempre temos a ver com mais do que com aquilo sobre que estamos falando com nossas palavras e nossos conceitos e aquilo com que estamos eventualmente ocupados como objeto concreto de nossa atividade. Se uma pessoa não consegue perceber a distinção e a unidade nesta bipolaridade do conhecimento e da liberdade - a consciência objetiva e a consciência subjetiva, ou, para dizer com Blondel, a vontade querida e a vontade que quer -, essa pessoa no fundo nã.o pode então saber do que falamos: que o falar de Deus é a reflexão que remete a um saber de Deus mais originário, atemático e não:... reflexo. Tornamo-nos conscientes de nós mesmos e das estruturas transcendentais que estão dadas com nossa subjetividade somente enquanto o mundo se apresenta para nós concretamente e de formas bem determinadas, ou seja, enquanto sofremos influência do mundo e agimos sobre ele. Isso vale também do conhecimento de Deus. Neste sentido não é conhecimento que esteja fundado inteiramente em si mesmo. Mas também não é mero processo místico que ocorra em nossa interioridade pessoal e, em conseqüência, não tem também o caráter de auto-revelação pessoal de Deus. Mas o caráter a posteriori do conhecimento de Deus não seria bem entendido se descurássemos o elemento transcendental presente nele e concebêssemos o conhecimento de Deus segundo o modelo de conhecimento a posteriori qualquer, cujo objeto procede inteiramente de fora e aparece em uma faculdade neutra de conhecer. O caráter. a posteriori do conhecimento de Deus não significa que olhamos para o mundo exterior com urna faculdade neutra de conhecer e, em seguida, pensamos que podemos descobrir Deus aí no mundo direta ou indiretamente entre as realidades que se nos apresentam objetivamente, ou que podemos provar indiretamente sua existência. Somos seres referidos a Deus. Essa experiência originária está sempre presente e não se deve confundir com a reflexão objetivante, ainda que necessária, sobre a referência transcendental do homem ao mistério. Essa não suprime o caráter de apos70
terioridade do conhecimento de Deus, mas também não se deve entender de maneira errônea essa aposterioridade no sentido de que se possa ensinar Deus como que desde fora e como objeto de nosso conhecimento. Essa experiência atemática e sempre presente - o conhecimento de Deus que sempre temos inclusive quando pensamos e lidamos com outras coisas que não Deus - é o fundamento permanente do qual emerge o conhecimento temático de Deus que exercemos na atividade explicitamente religiosa e na reflexão filosófica. Não é nesta última que descobrimos Deus da maneira como descobrimos determinado objeto de nossa experiência no mundo, mas naquela atividade religiosa explícita dirigida a Deus na oração e na reflexão metafísica estamos apenas tornando explícito para nós o que já sabemos implicitamente sobre nós nas profundezas de nossa auto-realização pessoal. Assim sendo, sabemos de nossa liberdade subjetiva, de nossa transcendência e da abertura ilimitada de nosso espírito mesmo quando não as tornamos temáticas, mesmo quando não logramos absolutamente fazer tematização - em chave conceitua! e objetivante, em proposições - deste saber originário, ou quando nossa tematização ocorre ser muito imperfeita e distorcida, e até mesmo quando nos recusamos inteiramente a nos deixar levar por tematização desta natureza. Por esta razão o significado de todo conhecimento explícito de Deus na religião e na metafísica só é inteligível e realizável quando todas as palavras que nele usamos apontam para aquela experiência atemática de nossa referência ao mistério inefável. E, assim, como é da essência do espírito que transcende, porque constituído no mundo objetivo, sempre apresentar, por causa dessa objetividade mesma, a possibilidade tanto teórica como prática de evadir-se dessa sua subjetividade, que lhe está entregue a si mesma na liberdade, assim também a pessoa pode ocultar-se para si mesma sua referência transcendental ao mistério absoluto, que chamamos "Deus", abafando assim a verdade mais autêntica de si mesma, como diz a Escritura (Rm 1,18). As realidades particulares com que lidamos normalmente em nossa vida tornam-se claramente inteligíveis, compreensíveis e manipuláveis porque podemos distingui-las das outras coisas. Essa maneira de conhecer a Deus não existe. Porque Deus é realidade totalmente diversa de qualquer uma das realidades que ocorrem no campo normal de nossa experiência ou que se po71
dem deduzir dele, e porque o conhecimento de Deus tem caráter peculiar bem determinado e não representa apenas um caso do conhecer em geral, por essas razões é muito fácil deixar de perceber Deus. O conceito "Deus" não é apreensão de Deus pela qual a pessoa domina o mistério, mas um deixar-se apreender por mistério que sempre está presente e sempre se subtrai. Este mistério permanece mistério, mesmo quando se manifesta ao homem, e precisamente assim fundamenta sem cessar a possibilidade de o homem ser sujeito. Pode então originar-se deste fundamento, é claro, o chamado "conceito de Deus", o falar explícito sobre ele, as palavras e o que significamos por meio delas tentando dizer reflexamente a nós mesmos, e certamente a pessoa não deve fugir ao esforço implicado nessa busca do conceito reflexo. Mas, para permanecer verdadeira, toda ontologia metafísica sobre Deus deve sempre retornar à sua fonte, deve retornar à experiência transcendental de sua referência ao mistério absoluto, deve retornar à prática existencial do livre acolhimento dessa referência. Esse acolhimento ocorre na obediência incondicional à consciência e na franca e confiante aceitação do caráter incontrolável da própria existência na oração e no silêncio. Uma vez que a experiência originária de Deus não é encontro com objeto particular qualquer ao lado de outros objetos, e uma vez que, na experiência transcendental que o sujeito humano faz de Deus, este está absolutamente alérh de nós em sua transcendência, podemos falar de Deus e da experiência de Deus, sobre a criaturidade e a experiência da criaturidade somente em conjunto, apesar do matiz diverso que se significa em cada uma dessas instâncias. Poder-se-ia perguntar a esta altura: mas, se essas duas realidades são assim entrelaçadas, então só poderíamos dizer algo sobre o que Deus é para nós e não poderíamos absolutamente dizer algo sobre o que Deus é em si mesmo? Mas se tivermos entendido o que significa a transcendentalidade absolutamente ilimitada do espírito humano, poderemos dizer que a alternativa de distinção tão radical entre uma afirmação sobre Deus "em si mesmo" e "Deus para nós" não é legítima. O que significa a característica mais prÓfunda do sujeito humano em sua liberdade e autonomia, e, conseqüentemente em sua criaturidade, e o que significa Deus mesmo só se podem entender levando-se em conta aquela situação básica em que se acha a existência humana, situação em que o homem está de posse de si e está radi72
calmente alienado de si pelo fato de o mistério se voltar a ele como absoluto e permanecer a distância, distinguindo o homem de si. Por essa razão também não podemos formar um conceito de Deus em sentido próprio e em seguida perguntar se tal coisa está dada também na realidade. O conceito em seu fundamento originário e a realidade mesma a que o conceito se refere conjuntamente emergem para nós ou conjuntamente se nos ocultam.
As diferentes maneiras de conhecer a Deus e sua unidade interna Antes de começar a falar do conhecimento de Deus, temos de refletir brevemente sobre outras distinções referentes ao conhecimento de Deus que se mencionam na teologia tradicional. Em primeiro lugar, na teologia católica se fala do assim chamado conhecimento natural de Deus, doutrina segundo a qual, como diz o Concílio Vaticano I (cf. DENZ 3004), pelo menos em princípio se pode conhecer a Deus pela luz da razão natural sem revelação em sentido estrito. Trata-se de conhecimento a posteriori, que de mais a mais deve ser bem entendido. Em segundo lugar, além do assim chamado conhecimento natural de Deus, a teologia escolástica fala de um conhecimento de Deus mediante o que chamamos propriamente de revelação cristã pela palavra: um conhecimento de Deus que provém da própria revelação de Deus. Este conhecimento pressupõe que já se conhece que tal revelação divina ocorreu de fato e a seguir se pergunta sobre o que Deus terá comunicado por meio dessa revelação sobre si mesmo, como, por exemplo, que ele perdoa a culpa humana, que tem vontade de salvação universal e sobrenatural para todos os homens, que ele criou-se a si mesmo, em favor do homem, uma existência historicamente concreta que viemos a chamar de encarnação etc. Em terceiro lugar, talvez devêssemos falar ainda de um conhecimento de Deus que ocorre mediante seu agir salvífico que se revela na história da humanidade e na história de cada indivíduo. Neste conhecimento, o agir e a existência de Deus se conhecem conjuntamente, mediante o testemunho efetivo que ele dá de si mesmo. Mesmo que a pessoa não tenha nenhum interesse especial por mística e "visões", não pode negar a priori que possa haver um conhecimento de Deus que provenha e ocorra na experiência coletiva e pessoal do homem, que não se precisa 73
identificar nem com o conhecimento natural de Deus nem com a auto-revelação universal de Deus mediante a palavra e na história da revelação entendida como tendo ocorrido somente através da palavra em sentido estrito. Em sua constituição sobre a revelação divina (Dei Verbum, cap. 1), o Concílio Vaticano II tentou associar e vincular entre si, da maneira mais estreita possível, a ação histórica na qual e pela qual Deus se revela, e a revelação como autocomunicação de Deus na palavra humana. À luz dessa consideração, podemos reunir em nossa consideração a terceira maneira de conhecer a Deus há pouco mencionada e a segunda, a que se refere ao conhecimento de Deus mediante sua própria revelação pela palavra na graça. Porém mais tarde deveremos voltar a considerar este aspecto com maior precisão. Ao discutir em seguida o conhecimento de Deus, não estaremos interessados por enquanto pelas distinções da teologia escolástica. Temos em mira antes ver a unidade originária destas três formas de conhecer no concreto da existência humana. Justifica-se isso também desde um ponto de partida filosófico. Se refletirmos sobre o nosso conhecimento de Deus enquanto experiência transcendental historicamente constituída, que, pela própria natureza da situação em que o homem conhece, sempre implica um conhecimento filosófico em sentido propriamente dito, mas que também não pode em princípio ser apreendido totalmente por tal conhecimento, precisaremos então contar tranqüilamente com o fato de que ele envolve elementos que uma reflexão teológica posterior dirá que são elementos de graça e revelação. Tudo o que dizemos aqui do conhecimento de Deus diz-se na verdade em palavras, mas se refere a uma experiência mais originária. Isso é filosoficamente possível e legítimo. Também o filósofo pode reconhecer que sua reflexão filosófica não pode captar adequadamente aquele conhecimento originário. Aquilo a que nos referimos aqui não é um conhecimento filosófico natural de .Deus, ainda que inclua tal elemento. Mas pelo menos em princípio o ultrapassa. O que queremos dizer refere-se à experiência transcendental de Deus constituída historicamente e que não se pode pensar transpor mediante o nosso dizer, em chave metafísica, em sentido estritamente filosófico. Pelo contrário, o nosso dizer somente evocará essa experiência de Deus. O nosso falar do conhecimento de Deus não só não pode substituir a experiência transcendental originária de Deus,
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que contudo está constituída historicamente, como também não pretende sequer representá-la de maneira filosoficamente adequada. A mencionada unidade das três maneiras de conhecer a Deus· em seu fundamento originário é legítima também por razão teológica. Não existe na ordem vigente da salvação, segundo entende a visão cristã católica, nenhuma realização essencial do homem que não ocorra no seio da finalização da existência humana para a imediatez para com Deus, que chamamos de graça. E nessa por sua vez está implicada uma dimensão de revelação propriamente dita, ainda que de cunho transcendental. Na vivência concreta existencial não existe, portanto, nenhum conhecimento de Deus que seja meramente natural, uma vez que também o conhecimento teológico é atividade humana exercida na liberdade. Em reflexão teológica posterior posso certamente especificar elementos que atribuo ou posso atribuir seja à natureza, seja à vivência do homem como tal. Mas o conhecimento concreto de Deus situa-se já sempre como questão que é afirmada ou negada no interior da dimensão do destino sobrenatural do homem. Mesmo a recusa de um conhecimento natural de. Deus, um ateísmo tematizado ou não tematizado, sempre constitui, sob o prisma teológico, ao mesmo tempo e inevitavelmente um não, pelo menos não tematizado, de autofechamento do homem para aquele referir-se da existência humana à imediatez para com Deus. A esse referir-se à imediatez para com Deus damos o nome de graça, que constitui inevitável existencial do ser inteiro do homem mesmo quando se fecha a ele, rejeitando-o livremente. Em outros termos, a realização concreta do chamado conhecimento de Deus na forma do sim ou do não sempre constitui, sob o ponto de vista teológico, mais do que conhecimento meramente natural de Deus, quer em sua forma não tematizada na auto-interpretação realizada na experiência originária da existência humana, quer em sua forma reflexamtnte tematizada. O conhecimento de Deus que visamos aqui é, portanto, aquele conhecimento de Deus concreto, originário, historicamente determinado e transcendental, que, quer na modalidade da aceitação, quer na da rejeição, inevitavelmente ocorre na profundidade da existência até da mais ordinária vida humana. Simultaneamente conhecimento tanto natural como sobrenatural de Deus, simultaneamente conhecimento pela razão e conhecimento 75
pela fé na revelação. E de tal forma que distinguir seus elemen-. tos vem a ser tarefa subseqüente d'a filosofia e da teologia. E este conhecimento de natureza reflexa da filosofia e da teologia não substitui absolutamente o próprio evento do acontecimento originário deste conhecer.
O conhecimento transcendental de Deus como experiência do mistério O conhecimento de Deus, a que nos referimos aqui, repousa sobre aquela subjetividade e livre transcendência e aquela peculiaridade de não estar à disposição de si mesmo, a que tentamos pelo menos aludir. Essa experiência transcendental, sempre mediada pela experiência categorial dos dados singulares e concretos de nossa experiência no mundo e no tempo e espaço (falamos do todo de nossa experiência, também da assim chamada experiência "profana"), não se deve conceber como faculd.ade neutra pela qual, entre os outros objetos, também Deus possa vir a ser conhecido. Ela constitui antes a maneira originária e fundamental de conhecer a Deus, tanto que o conhecimento de Deus a que nOs referimos aqui simplesmente constitui a própria essência dessa transcendência. A transcendência, na qual Deus já é conhecido ainda que atemática e sem conceitos, não se deve conceber como conquista, efetuada por próprias forças do homem, do conhecimento de Deus e, em conseqüência, de Deus mesmo. Pois essa transcendência aparece no que é somente através do autodesvelar-se daquele termo para o qual marcha o movimento da transcendência. Ela existe mediante o que se dá nessa transcendência como o outro, o outro que distingue essa transcendência de si mesmo e se faz perceber ao sujeito constituído por ela como mistério. A subjetividade já é sempre desde seu ponto de partida a transcendência que escuta, que não controla, que é conquistada pelo mistério, que é aberta pelo mistério. No meio de sua absoluta ilimitação, a transcendência se percebe como infinitude vazia, como meramente formal, como necessariamente mediada para si mesma pela finitude, e, portanto, infinitude finita. Se não quiser enganar-se a si mesma, fazendo-se passar por sujeito absoluto e assim se transformando em ídolo, ela se reconhece como transcendência que lhe foi ofertada, transcendência que se funda no mistério, que é dependente. Em toda sua infinitude 76
percebe-se como radicalmente finita. É precisamente em e mediante o caráter ilimitado da transcendência que ela é transcendência que pode e deve captar sua própria finitude. A transcendência estritamente como tal conhece somente Deus e nada mais, embora o conheça como condição que possibilita o conhecimento categorial, a história e a liberdade concreta. Ela só se dá no abrir-se de si mesma para além de si e é, para usar linguagem bíblica, originariamente e desde seu primeiro início a experiência de ser conhecido por Deus. A palavra que tudo fala ao dizer "Deus" é sempre experimentada em sua essência originária como a resposta, na qual o mistério, sem deixar de sê-lo, diz-se a si mesmo ao homem. A unidade entre transcendência e o Aonde ela remete não se pode conceber como unidade entre dois elementos que se relacionam igualmente um ao outro, mas somente como unidade entre o que funda e dispõe livremente e o que é fundado, é a unidade enquanto unidade entre a palavra original e a resposta, que se torna possível pela palavra. Essa unidade pode ser descrita de várias maneiras porque ela - tanto o primeiro como o último elemento nela - só se pode expressar de maneira inadequada pelo segundo elemento que é condicionado e que jamais abarca realmente o primeiro elemento. Só podemos falar da transcendência falando-se do Aonde de sua referência, e só podemos fazer entender a natureza específica desse Aonde falando da natureza específica da transcendência como tal. Se quiséssemos entender este conhecimento originário de . Deus presente na transcendência somente a partir do seu pólo subjetivo, ou seja, se quiséssemos esclarecer a natureza da própria transcendência para, a partir daí, esclarecermos o que seja propriamente este Aonde para o qual essa transcendência sai em movimento, então estaríamos na dificuldade de ter de descrever a intencionalidade como tal sem falar daquilo a que ela se refere. Teríamos, além disso, o trabalho de ter de buscar uma mistagogia existencial que descrevesse e focalizasse a atenção de cada indivíduo em sua existência concreta naquelas experiências em que ele, precisamente como este indivíduo, fez a experiência da transcendência e de ter sido arrancado de si para o interior do mistério inefável. Visto que a claridade e a força de persuasão das múltiplas experiências singulares desta natureza - por exemplo, na angústia, na preocupação que o sujeito possa ter com o absoluto, na aceitação livre da responsabilidade no amor, na 77
alegria etc. - variam muito de indivíduo para indivíduo em correspondência à diversidade de suas existências históricas, tal mistagogia de iniciação nessa experiência de transcendência vivida por cada indivíduo haveria de ser muito diversificada, conforme cada pessoa. Tal mistagogia que ajudasse a pessoa a se tornar consciente do fato de que essa experiência de transcendência ocorre, repetidamente e sem ser denominada, em seu trato imediato com o mundo concreto, poderia ser possível para cada pessoa em particular somente numa conversa individual, numa logoterapia individual. Por isso queremos tentar descrever o conhecimento originário de Deus aqui apontando para onde essa transcendência se volta, o que ela ericontra, ou melhor, a partir de que ela se abre. Mas a situação é tal que também a denominação deste Aonde e Donde da transcendência só se pode entender se ela evocar constantemente a experiência transcendental como tal, que de tão óbvia pode facilmente passar despercebida. Mesmo olhando para o Aonde e o Donde da transcendência com o intuito de chamar a atenção para o conhecimento originário e atemático de Deus, não cessa a dificuldade de trazer este conhecimento à nossa consciência. Pois os nomes que foram dados para o Aonde e o Donde da transcendência na história da auto-interpretação reflexa do homem, como espírito que transcende, são muitíssimos. E nem todos servem de mediação para cada indivíduo em sua experiência concreta de vida, da mesma forma e com igual acessibilidade, para que ele se aproxime reflexivamente dessa experiência originária de Deus. Para início de conversa, este Aonde e Donde que porta a transcendência pode-se chamar de "Deus". Podemos também falar do Ser, do Fundamento, da Causa última, do Logos iluminador e revelador, e ainda podemos lançar mão de milhares de nomes para aludir ao que queremos dizer. Quando usamos a palavra "Deus" ou a expressão "fundamento original" ou o termo "abismo", certamente tais vocábulos sempre estão envolvidos e carregados de imaginações que vão para bem mais além do que as palavras propriamente significam e que nada têm a ver com o que propriamente se quer dizer. Cada um desses conceitos carrega a marca da história, também da história individual, e a tal medida que dificilmente se pode entender já o que propriamente se significa com tais vocábulos. Quando chamamos Deus de "pai" com a Bíblia e com Jesus e nos damos conta
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da crítica que este nome provoca hoje em dia, podemos entender como uma palavra como essa, palavra com que Jesus ousou expressar sua compreensão última de Deus e sua singular relação para com Deus, pode ser mal-entendida e não mais se entender absolutamente. O filósofo pode levar avante a reflexão específica sobre a maneira como a referência transcendental ao que ele denomina Ser e a referência transcendental a Deus se correlacionam ou devam se distinguir entre si. Uma vez que queremos considerar diretamente apenas o conhecimento transcendental de Deus, que antecede à ontologia reflexa e não pode ser adequadamente captado por ela, podemos tomar aqui via mais breve, ainda que menos precavida, porque a contida precaução da filosofia não pode dispensar da ousadia da compreensão da existência que é sempre anterior à filosofia. · Mas isso ainda não resolve a dificuldade de que nome dar a esse Aonde e Donde de nossa experiência originária de transcendência. Seguindo a venerável tradição da filosofia ocidental, que certamente também se nos impõe a nós, poderíamos designálo simplesmente de "o ser simplesmente", "o ser absoluto" ou "o fundamento do ser" que tudo funda em sua origem. Mas, ao falarmos dessa forma de "ser" e "fundamento do ser", nos expomos ao risco mortal de que muitos de nossos contemporâneos venham a entender a palavra "ser" como mera abstração vazia, posterior e adventícia da experiência da multiplicidade de coisas singulares com que diretamente nos encontramos. Por isso queremos tentar chamar este Aonde e Donde de nossa transcendência com outro nome, um nome que certamente não pretende ser vara de condão para abrir todas as portas, mas que talvez explique o que queremos dizer passando ao lado da problemática do "ser", a que acabamos de nos referir. Queremos chamar o Aonde e o Donde de nossa transcendência de "mistério santo", ainda que este termo deva ser entendido, aprofundado e assim se demonstre gradativamente ser idêntico com a palavra "Deus", e ainda que tenhamos de nos voltar freqüentemente a outros termos que se encontram alhures na tradição humana e filosófica. Deveremos considerar posteriormente, em reflexão específica, porque denominamos este mistério de "santo". Estamos a falar de um Aonde da experiência de transcendência e o definimos como mistério santo não com o fito de 79
expressá-lo de forma mais ininteligível e complicada, mas por outra razão: se falássemos simplesmente que o Aonde de nossa transcendência é "Deus'-', deveríamos continuar temendo que ocorra o mal-entendido de que estaríamos falando de Deus de maneira que ele já fosse explicado, conhecido e entendido de antemão no interior de um complexo objetivante de conceitos. Se usamos de início a palavra "mistério santo", que é menos corrente e menos definida no intuito de expressar o termo a que se volta a transcendência e a origem donde ela procede, torna-se menor o perigo de mal-entendido do que quando dizemos, por exemplo: "o termo dessa transcendência é Deus". É preciso descrever conjuntamente a experiência e o que nela é experienciado, antes que se possa chamar de "Deus" o que é experienciado.
O Aonde da transcendência como o infinito, o indefinível e o inefável O Aonde de nossa experiência de transcendência, para o qual antes de tudo buscamos um nome, já está sempre presente como o inominado, o indefinível, o indispensável. Pois todo nome define, ou,seja, marca limites e fronteiras. Todo nome distingue e caracteriza algo dando ao que ele significa um nome, escolhido entre muitos nomes. O horizonte infinito (o Aonde da transcendência), que nos abre a ilimitadas possibilidades de nos encontrar com essa ou aquela coisa singular, não se permite atribuir um nome. Pois este o situaria na seqüência das realidades que são entendidas em sua referência a este Aonde e a partir deste Donde. Na verdade podemos e devemos refletir sobre o misterioso e incompreensível, que jamais pode entrar em nosso sistema de coordenadas, que jamais pode ser definido mediante distingui-lo de qualquer outra coisa. Se o fizéssemos, nós o estaríamos objetivizando, nós o estaríamos entendendo como objeto entre outros, nós o limitaríamos ao defini-lo. Na verdade devemos dizer que ele é algo distinto de tudo mais, porque, enquanto fundamento absoluto de todos os entes singulares, não pode ser a mera soma posterior dessa multidão de seres particulares. Mas toda tematização conceituai, que necessariamente precisamos fazer, só se mantém verdadeira à medida que, neste ato de definir e expressar objetivamente o Aonde da transcendência como condição da possibilidade deste ato, uma
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vez mais sucede um ato de transcendência ao infinito Aonde dessa transcendência. A reflexão exerce, uma vez mais, transcendência original, quando pretende apenas refletir sobre ela em si mesma e objetivá-la. A pré-apreensão da transcendência originária volta-se, pois, para o inominado, que originalmente e por sua própria natureza é o infinito. Por sua essência, a condição que torna possível denominar mediante o distinguir não pode ter nenhum nome. Podemos designar essa condição de o inominado, o que se distingue de todo finito, o "infinito", mas com essas designações não atribuímos propriamente nenhum nome a este ·~onde", mas apenas o apontamos como o inominado. Teremos entendido es.: sa designação somente se a entendemos como mero apontar para aquele silêncio da experiência transcendental mesma. A transcendência se volta, assim, também para o ilimitável. O horizonte da transcendência, o seu Aonde - pelo fato de se expandir para além do nosso alcance e, assim, oferecer espaço aos -objetos singulares de conhecimento e amor -, sempre e essencialmente é distinto de tudo o que aparece dentro dele como objeto do conhecer. Nesta medida a diferenciação entre este Aonde inexprimível e o finito não é apenas distinção que obviamente há de fazer, mas essa diferenciação é a distinção originária em sua unidade, que é percebida, porque é condição da possibilidade de qualquer distinção de objetos quer a partir do horizonte da transcendência mesma, quer entre os próprios objetos. Mas isso significa que este inexprimível Aonde é ele mesmo indelimitável, pois, como condição da possibilidade de todo distinguir e diferenciar categorias, ele próprio não pode ser diferenciado com os mesmos meios de distinguir. É à luz da distinção entre o Aonde transcendental e os objetos categoriais singulares, por um lado, e da distinção dos objetos categoriais entre si, por outro lado, que se pode entender a falsidade tanto de um panteísmo real como também de um dualismo vulgar - que ocorre também no campo da religião -, dualismo que situa Deus e o não-divino simplesmente como duas coisas lado a lado. Ao dizer contra o panteísmo que Deus e mundo são diversos, essa afirmação receberia interpretação equivocada, se entendida nessa chave dualista. A distinção entre Deus e mundo é de tal natureza que Deus estabelece e é a diferença do mundo para consigo mesmo, e por essa razão ele estabelece a unidade 81
mais estreita na diferenciação. Pois se a diferença mesma provém de Deus, e, se assim podemos falar, ela própria é idêntica com Deus, então a distinção entre Deus e mundo deve-se conceber de forma totalmente diversa do que a distinção entre realidades categoriais, às quais antecede uma distinção porque, de certa forma, já pressupõem um espaço que as contém e as diferencia, e nenhuma dessas realidades categorialmente distintas entre si estabelece ela própria a distinção com referência às outras realidades nem essa distinção. Por isso se poderia chamar o panteísmo de sensitividade para (ou melhor, a experiência transcendental de) o fato de que Deus é a realidade absoluta, o fundamento original, o Aonde último a que se volta a transcendência. Essa é a dimensão de verdade no panteísmo. Em sentido contrário, um dualismo religioso que de maneira primitiva e ingênua concebe a distinção entre Deus e a realidade criada por ele como distinção meramente categorial, no fundo é muito a-religioso porque não percebe o que Deus realmente é, porque entende Deus como mero momento no interior de totalidade maior, como parte da realidade global. Deus é o totalmente outro com relação ao mundo. Mas é diverso à maneira como essa distinção é percebida em nossa experiência originária transcendental. Nesta experiência, essa distinção peculiar e única é percebida de tal sorte que se percebe a realidade inteira como portada por este Aonde e este Donde e somente aí é inteligível, de tal sorte que precisamente a distinção afirma ao mesmo tempo a unidade última de Deus e mundo e a distinção toma-se inteligível somente nessa unidade. Essas coisas que soam tão abstratas são de fundamental importância para uma compreensão de Deus que seja relevante para a vida religiosa hoje em dia. Pois aquele Deus, que opera e funciona como existente individual ao lado de outros e que, assim, de certa forma, esteja presente como parte no interior da casa maior da totalidade do real, de fato não existe realmente. A pessoa que procurar um Deus deste tipo, estará procurando um Deus falso. O ateísmo e também uma forma mais vulgar de teísmo padecem sob a mesma falsa noção de Deus. Só que o primeiro nega simplesmente essa noção falsa, ao passo que o segundo está persuadido de que ainda pode pensá-la logicamente. No fundo ambos se equivocam. O teísmo vulgar, porque o Deus que se imagina não existe; e o ateísmo, porque Deus é a realidade 82
.mais radical, mais original e em certo sentido a mais evidente por si mesma. O Aonde da transcendência é indelimitável porque o horizonte mesmo não pode estar presente dentro do horizonte, porque o Aonde da transcendência não pode enquanto tal ser realmente trazido para o campo de alcànce da transcendência mesma e, assim, ser distinguido de outras coisas. A medida última escapa ela própria a toda medida. O limite, que a tudo dá sua "definição", não pode ele mesmo ser definido por limite que esteja ainda mais afastado. A amplidão infinita, que tudo abarca e pode abarcar, não pode ela mesma ser abarcada. Mas então esse inominável e indelimitável Aonde da transcendência, que só por si'mesmo se delimita, distinguindo-se de toda outra realidade e diferenciando de si todo o resto, e que constitui a norma para tudo e que se situa para além de todas as normas distintas dele, esse Aonde, dizemos, torna-se o que se situa absolutamente fora de nosso alcance e disposição. Ele está sempre presente com aquele que dispõe. Este Aonde foge não só física como também logicamente a toda manipulação da parte do sujeito finito. No momento em que o sujeito, valendo-se de sua lógica e ontologia formais determinasse esse inominável, o próprio definir ocorreria mediante a pré-apreensão do que se pretende definir. A ontologia é o misterioso processo em que os critérios primeiros se evidenciam como escapando a toda medida, e o homem reconhece aí que é ele quem é medido. O Aonde da transcendência não se permite manipular nem que dele se disponha, porque neste caso estaríamos alcançando para além dele e o estaríamos inserindo no interior de horizonte mais vasto e mais elevado, o que precisamente contradiz à natureza dessa transcendência e à natureza do genuíno Aonde da mesma. É este Aonde infinito e silencioso que dispõe de nós. Ele se nos apresenta na forma do auto-subtrair-se, do silêncio, da distância, do manter-se permanente em sua inexpressividade, de tal sorte que todo falar sobre ele - para que possa ser escutado com sentido - requer se ouça o seu silêncio. Porque fazemos a experiência do Aonde da transcendência somente no seio da experiência dessa transcendência, que se apresenta como que sem fundo e sem chão e jamais chega a um termo, estamos evitando toda sorte de ontologismo no sentido vul83
gar. Pois este Aonde não é percebido em si mesmo, mas apenas conhecido de maneira não objetivamente na. experiência dessa transcendência subjetiva. A presença do Aonde da transcendência é a presença de tal transcendência que somente se dá como condição da possibilidade para o conhecimento categorial e não por si mesma. Vemos naturalmente por tal afirmação (que faz parte das afirmações mais fundamentais de real compreensão de Deus e é aproximação genuinamente correta do conhecimento de Deus) que a tendência hodierna de não falar de Deus, mas do próximo, de não pregar o amor a Deus, mas o amor ao próximo, de não dizer "Deus", mas "mundo" e "responsabilidade pelo mundo", essa tendência aí encontra fundamento absolutamente legítimo, contanto que não se leve ao extremo essas teses, a ponto de banir Deus e manter silêncio radical sobre ele, o que é e continua sendo falso, e atenta contra a genuína essência do cristianismo. Mas o correto em todas essas afirmações é o simples fato de que não possuímos Deus em si mesmo como objeto entre outros, mas sempre ~ somente enquanto o Aonde da transcendência que se vem a conscientizar no encontro categorial (no ato de liberdade e de conhecer) com a realidade concreta (que surge precis'.lmente como mundo somente contradistinguindo-se deste Deus enquanto totalmente outro). Por isso esse Aonde da transcendência füz-se presente somente na forma da distância e da reserva. Dele nunca se pode aproximar diretamente. Nunca se pode apanhá-io imediatamente. Ele se dá somente à medida que, sem palavras e na mudez, aponta para outra realidade, a realidade finita concreta como objeto direto do olhar e da ação imediata. E por isso o Aonde dessa transcendência é mistério.
O Aonde da transcendência como o "mistério santo" Já tivemos a oportunidade de aludir de passagem ao Aonde da transcendência chamando-o de mistério santo. A razão pela qual devemos chamá-lo de "mistério", como vimos, era o fato de que não o podemos absolutamente abarcar e, assim, determiná-lo através de pré-apreensão que alcance para além dele. Mas a nossa pergunta agora é: porque o chamamos de mistério precisamente santo? Já frisamos na seção primeira que ao falarmos da transcendência não aludimos só e exclusivamente à transcendência 84
enquanto condição da possibilidade do conhecimento categorial, mas também à transcendência da liberdade, da vontade e do amor. Essa transcendência, que é constitutiva do sujeito como sujeito livre e pessoal do agir dentro de espaço ilimitado de ação, é igualmente importante e no fundo não passa do outro lado da transcendência de sujeito espiritual, que, sendo espiritual, está dotado da faculdade de conhecer e por isso é livre. A liberdade é sempre liberdade de sujeito que entra em comunicação interpessoal com outros sujeitos. Por isso ela é necessariamente liberdade perante outro sujeito de transcendência, transcendência que não é primariamente condição da possibilidade de conhecer coisas, mas a condição da possibilidade de um sujeito estar presente a si mesmo e também estar originariamente presente a outro sujeito. Mas para um sujeito que está presente a si mesmo e tem consciência de si, a liberdade que afirma outro sujeito significa amá-lo. Quando, pois, refletimos aqui sobre a transcendência como vontade e liberdade, precisamos considerar também que o Aonde e Donde dessa transcendência se caracteriza pelo amor. É o Aonde que possui liberdade absoluta, um Aonde que está em ação como o indisponível e livre, como o inominado, como o que dispõe absolutamente de tudo em liberdade e amor. Mas o Aonde da transcendência é sempre e originalmente um Donde do mistério que se põe à disposição. Este Aonde abre ele mesmo a nossa transcendência, transcendência que não é colocada por nós e por nossas forças como se fôssemos sujeitos absolutos. Se, pois, a transcendência move-se em liberdade e amor para um Aonde que abre ele mesmo essa transcendência, podemos dizer que o próprio indisponível, o próprio inominado que de tudo dispõe de modo absoluto, podemos dizer que ele próprio age em liberdade e amor, e precisamente a isso é que aludimos ao dizer "mistério santo". Pois de que outra maneira haveríamos de chamar o inominado, o que dispõe de tudo, que nos lança em nossa finitude e que apesar disso afirmamos em nossa transcendência na liberdade e amor, de que outra maneira o haveríamos de chamar se não de "santo"? E o. que se poderia chamar de "santo" se não a este Aonde, ou a quem conviria mais originalmente o nome de "santo" se não a este infinito Aonde de amor, amor que na presença do inabarcável e indizível necessariamente se transforma em adoração? 85
Na transcendência habita, pois, o inominado e o infinitamente santo, mas à maneira da distância de que não se pode dispor e que por sua vez dispõe. E a isso denominamos de mistério ou, um pouco mais explicitamente, de mistério santo (para que, focalizando o elemento de conhecimento com mais insistência, não venhamos a descurar a transcendentalidade da liberdade e do amor, mas que os dois elementos fiquem presentes em sua unidade originária e pessoal). As duas palavras "mistério santo", que se devem entender como unidade, mas que sem embargo albergam diferença intrínseca entre si, expressam igualmente quer a transcendentalidade do conhecimento, quer a transcendentalidade da liberdade e do amor. Toda experiência de transcendência é experiência originária e não derivada. E este seu caráter de não ser nem poder ser derivada provém-lhe precisamente do que se encontra e se manifesta nela. A designação deste Aonde como "mistério santo", portanto, não usa conceitos tomados de outras fontes a serem aplicados extrínsecamente para qualificar a este Aonde, mas os toma deste "objeto" original mesmo, que é seu próprio fundamento e o fundamento e horizonte do seu conhecimento e que se dá a conhecer na própria experiência transcendental em si mesma. Se assim obtivemos o conceito original de mistério e de santidade, e se é correto designar o Aonde da transcendência com esta palavra, é claro que não se trata de definição da essência mesma do mistério santo. O mistério é tão indefinível como todos os "conceitos" transcendentais. Estes não são passíveis de definição, porque o que neles se expressa só se conhece na experiência transcendental e essa, como já sempre e em toda parte pré-dada, não tem nada fora dela por que ela e seu Aonde possam ser determinados. Experiência transcendental e realidade
Falamos muitas vezes do conceito de Deus. Expressamos, portanto, ainda que em segundo tempo, o Aonde original de nossa transcendentalidade atemática em um conceito, em um nome. Este fato suscita a pergunta se o que assim se expressa em um conceito de essência é algo que existe apenas na mente, apenas pensado, ou também é algo de realidade existente. Com respeito a isso digamos de imediato que seria o maior equívoco,
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equívoco que perderia toda conexão com a experiência originária, se este Aonde viesse a ser interpretado como algo existente só na mente, como idéia que o pensamento humano produzisse como criação própria. Este Aonde é o que abre e possibilita o processo da transcendência. É ele que deslancha esse processo e não é criação deste processo. O conhecimento originário do que seja ''ser" está dado neste envento da transcendência e não se deriva de qualquer ente particular que nos venha ao encontro. Uma coisa real só pode ter acesso a nós pelo pensamento e conhecimento, e afirmar que existe uma coisa real que a priori e em princípio seja inacessível ao conhecimento é pensamento contraditório em si mesmo. A própria afirmação ou enunciado de que uma coisa não possa em princípio ser objeto de experiência já insere no campo do conhecimento inclusive o que se afirma ser inviável à experiência (pois que neste caso a pessoa já estaria pensando sobre essa coisa), e, em conseqüência, é afirmação contraditória em si mesma. Daí resulta que o ainda não conhecido e o meramente pensado constituem formas deficientes e secundárias de ser objeto de conhecimento, formas que por princípio e de antemão se ordenam ao real como tal, porque sem este pressuposto nem sequer se poderia dizer o que significa o real simplesmente. Portanto o Aonde da experiência e do conhecimento transcendentais, que, por serem transcendentes, são também originários e abrangentes, dá-se de antemão nessa experiência como o que é verdadeiramente real, como unidade originária de essência e existência. É claro que se pode e se deve dizer que a realidade do mistério absoluto não se manifesta simplesmente ao espírito finito transcendental à maneira do encontro que temos na experiência sensível de um ente material singular. Se opinássemos que Deus possa vir a ser experimentado dessa maneira, é claro que cairíamos no ontologismo, que já tivemos a oportunidade de excluir, ou teríamos. afirmado algo que de fato não é verdade. A afirmação da realidade do mistério absoluto fundase para nós, que somos espíritos finitos, na necessidade com que a atualização da transcendência como ato nosso está dada para nós. Com isso voltamos a afirmar sob outro ponto de vista o que dissemos sobre o caráter a posteriori do conhecimento de Deus, apesar e sem prejuízo da transcendentalidade da experiência de Deus. Se não nos encontrássemos inevitavelmente presentes a nós mesmos, se pudéssemos abstrair do ato da transcendên87
eia, cairia para nós também a necessidade de afirmar a realidade absoluta do Aonde da transcendência, mas cairia simultaneamente a possibilidade de um ato em que se pudesse negar ou duvidar da realidade dessa transcendência. No ato da transcendência afirma-se necessariamente a realidade do seu Aonde, porque precisamente neste ato e somente nele é que afinal se faz a experiência do que seja realidade. O Aonde da transcendência é, portanto, o mistério santo enquanto ser absoluto ou enquanto ente que existe em absoluta plenitude e posse do ser. Algumas observações sobre as provas da existência de Deus Falamos conjuntamente do mistério, que é ser absoluto e santo, que podemos chamar com o nome de "Deus", que nos é familiar, e da transcendência para este mistério santo. Ambos os aspectos se iluminam mutuamente na unidade originária dessa experiência transcendental. Em conseqüência, não sentimos a necessidade de tratar mais expressamente das afirmações que constituem elaboração de conhecimento mais originário de Deus e que se costuma chamar de "provas da existência de Deus". Assim como a ontologia ao nível da original autopossessão de uma existência humana que se conhece e livremente dispõe de si se relaciona com a ontologia científica e reflexa, assim também a nossa experiência originária, que não realizamos com conceitos e palavras e à qual apenas podemos apontar por meio da linguagem, relaciona-se com o conhecimento que ocorre numa prova reflexa da existência de Deus. A pergunta se devemos chamar o que aí ocorre de "prova" da existência de Deus é questão secundária. A ciência reflexa, ainda que se apresente com o caráter de algo derivado e secundário que jamais chega a captar sua origem, se justifica e exige plenamente. Mas este conhecimento de Deus de nível reflexo, tematizado, representado objetivamente e que procede com o auxílio de conceitos não constitui o elemento primeiro e originário e nem pode substituir a este. Como dissemos, uma prova reflexa da existência de Deus não busca transmitir um conhecimento, em que um objeto até o momento simplesmente não conhecido e portanto indiferente às pessoas em causa, venha a ser-lhes apresentado exteriormente e a partir de fora, adquirindo importância e peso para elas
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somente secundariamente, mediante ulteriores determinações que venham a ser dadas a este objeto. Se entendêssemos assim a prova da existência de Deus, poder-se-ia objetar de início que de Deus não se sabe nada. E como se poderia explicar para uma pessoa que o homem deve ocupar-se com questão dessa natureza? Teologia, ontologia, conhecimento natural de Deus etc., só podem surgir com a pretensão de serem levados a sério por todos se e à medida que se possa demonstrar ao destinatário que ele já tem algo a ver com essa questão. Uma prova teórica da existência de Deus somente visa, portanto, transmitir consciência reflexa sobre o fato de que o homem em sua existência espiritual inevitavelmente tem que haver-se com Deus, quer reflita ou não sobre isso, quer aceite livremente ou não este fato. A situação peculiar de ter que apresentar os fundamentos posteriormente para algo que na verdade constitui o fundamento e já está presente, ou seja, o mistério santo, é o que constitui o caráter específico e evidente por si mesmo bem como a dificuldade de dar prova reflexa da existência de Deus. O que constitui a fundamentação vem a ser de certa forma fundamento, o que está presente no silêncio e sem nome passa a ser por sua vez denominado. As provas reflexas da existência de Deus visam indicar que todo conhecimento - mesmo na forma da dúvida ou do questionamento ou até da recusa a entrar em questões metafísicas - ocorrem contra o pano de fundo da afirmação do mistério santo ou do Ser simplesmente como horizonte do Aonde assintótico e do fundamento questionante do ato e seu "objeto". É questão relativamente secundária como venha a ser designado este Presente inominadamente ausente: "mistério santo" ou "ser absoluto" ou - salientando o aspecto de liberdade dessa transcendência e da estrutura pessoal deste ato - "bem absoluto", o "tu pessoal absoluto", o "fundamento da absoluta responsabilidade", o "horizonte último da esperança" etc. Em todas as assim chamadas provas da existência de Deus a única,coisa que representamos e elaboramos em conceitos reflexos e sistemáticos é algo que já ocorreu: no fato de o l:lomem chegar à realidade objetiva de sua vida do dia-a-dia no envolvimento na ação e na atividade intelectual da compreensão, ele realiza, como condição da possibilidade dessa compreensão conceitua!, uma précompreensão não-temática e não-objetivada da plenitude inconcebível e inabarcável da realidade, que na sua unidade originá-
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ria é ao mesmo tempo condição do conhecimento e da coisa singular objetivamente conhecida e, como tal, sempre é afirmada atematicamente, mesmo no ato em que o venha a negar tematicamente. É claro que a pessoa singular experimenta essa estrutura básca e ineludível da melhor maneira nas situações singulares especialmente carregadas e intensas de sua existência. Se, pois, quiser realmente entender essa reflexão sobre as "provas" da existência de Deus, o indivíduo haverá de refletir precisamente sobre o que constitui a experiência mais clara para ele: haverá de refletir sobre a claridade incompreensivelmente iluminada do seu espírito; sobre a possibilidade de tudo questionar de maneira absoluta, que o homem realiza com referência a si mesmo, chegando ao ponto de como que aniquilar-se, e, ao fazê-lo, lançarse para além de si mesmo; sobre a angústia aniquilante, que é algo todo diverso de medo perante objeto qualquer e que precede a este como condição de sua possibilidade; sobre a alegria, que já não tem nenhum nome; sobre a obrigação moral de natureza absoluta, na qual o homem realmente se ultrapassa a si mesmo; sobre a experiência da morte, na qual ele percebe sua impotência absoluta. O homem reflete sobre estas e muitas outras formas da experiência fundamental transcendental da existência sem que - uma vez que se experimenta como problemático e finito - possa identificar-se com o fundamento que se dá a perceber nessa experiência como o que existe de mais íntimo e ao mesmo tempo de absolutamente diverso. As provas explícitas da existência de Deus nada mais fazem do que tematizar essa estrutura fundamental e o Aonde para que ela aponta. A experiência de que todo ato de julgamento ocorre como ato que é portado e deslanchado pelo Ser absoluto, que não vive graças a este nosso pensamento, mas está presente como algo pelo qual o nosso pensamento é portado e não como algo produzido pelo pensamento, é uma experiência que vem a ser tematizada mediante o princípio metafísico da causalidade, que não deve ser confundido com a lei funcional da causalidade nas ciências naturais. Segundo esta última, todo fenômeno como "efeito" existe em correspondência a outro fenômeno de igualdade quantitativa como "causa". O princípio metafísico da causalidade, corretamente entendido, não é extrapolação da lei da natureza entendida pelas ciências naturais, nem é extrapolação do pensamento causal de nosso uso cotidiano, mas funda-se na 90
experiência transcendental da relação entre a transcendência e seu Aonde. O princípio metafísico da causalidade que se emprega tradicionalmente nas provas da existência de Deus não constitui - ainda que muitos escolásticos assim o entendam princípio geral que então se aplica neste caso particular ao lado de outros, mas antes apenas aponta para a experiência transcendental onde a relação entre algo de condicionado e finito e seu incompreensível Donde está imediatamente presente e por sua presença é experimentada. Não é o caso de aqui detalhar as provas da existência de Deus usuais na teologia e filosofia escolásticas. Não precisamos, portanto, falar de prova cosmológica, ou teleológica, ou cinesiológica, ou axiológica, ou deontológica, ou noética ou moral da existência de Deus. Pois todas estas provas nada mais fazem que designar certas realidades categoriais da experiência humana e situá-las explicitamente no espaço da transcendência humana, em cujo interior somente podem ser entendidas como tais, visto que em certo sentido todas essas realidades de natureza categorial e os atos de seu conhecimento levam a remontar à comum condição de possibilidade de tal conhecimento e de tal realidade. E, neste sentido, as diversas provas da existência de Deus só podem propriamente esclarecer a única prova da existência de Deus a partir de diferentes aspectos da mesma experiência transcendental.
3. DEUS COMO PESSOA
A linguagem sobre Deus é análoga Podemos falar acerca da experiência da transcendência somente nos apoiando no que lhe é secundário e subseqüente. Por isso sempre deveremos falar dela em linguagem matizada e diferenciada: nos termos "por um lado - por outro lado", bem como "não só - mas também". Essa maneira de falar de Deus resulta do fato de que, sempre que explicitamos e tematizamos a referência originária e transcendental para com Deus, temos de falar sobre Deus mediante conceitos secundários e categoriais contrários no campo da categorialidade. Quando dizemos que Deus é a realidade mais íntima do sujeito infinito e da realidade que lhe antolha, sendo o motor que os porta desde dentro, 91
e dizemos ao mesmo tempo que ele existe em absoluta e intocável autoposse de si e que sua realidade não se restringe a ser função e horizonte de nossa existência, este "por um lado - por outro lado", essa afirmação dialética e bipolar, que jamais poderá vir a ser condensada em síntese superior, não é o elemento original, mas provém do fato de a experiência transcendental originária haver de ser tematizada, traduzida e como que inserida no âmbito próprio do categorial como se fora objeto singular. Todas as afirmações que fazemos sobre Deus se entendem no sentido de que o que, por um lado, é a realidade que porta e funda desde o mais íntimo de toda realidade só se anuncia e só se pode expressar, por um lado, a partir da realidade que é portada e fundada. Do contrário não se poderia absolutamente pensar uma relação entre o fundamento e a realidade fundada. Este fundamento, porém, só se dá como fundamento e, em conseqüência, não se insere em sistema genérico e anterior lado a lado com o que é fundado. Uma relação com este fundamento é real e cognitivamente sempre a transcendência para e a procedência deste mistério absoluto. Assim, uma afirmação sobre este mistério é sempre afirmação habitada por tensão original, por nós não mais administrável, entre a origem mundana de nossa afirmação reflexa e a chegada lá onde essa afirmação propriamente visa a chegar, a saber, ao Aonde da transcendência. Trata-se de tensão que não é produzida por nós numa posição média, logicamente subseqüente entre um "sim" unívoco e um "não" equívoco, mas de tensão que originariamente somos como sujeitos espirituais em nossa própria auto-realização e que podemos designar com o termo "analogia", com a condição de que entendamos o que este termo significa no seu sentido original. Não devemos, pois, entender o termo "analogia" como se fosse realidade híbrida entre univocação e equivocação. Ao chamar a escrivaninha de "escrivaninha", uso de conceito unívoco, ou seja, eu o refiro ao móvel significado por esta palavra sempre no mesmo sentido, porque de antemão deixei de lado ou fiz abstração de todas as diferenças individuais. Operei então uma predicação unívoca com o mesmo significado exato. Quando, porém, chamo de "manga" o fruto da mangueira e com a mesma palavra designo a parte da roupa que veste o braço, a palavra adquire sentido totalmente diverso em ambos os casos, ou seja, tem sentido equívoco. Temos aí dois conceitos, que, para nossa compreensão, nada têm a ver um com o outro. 92
Na filosofia escolástica, a assim chamada "analogia do ser" (analogia entis) freqüentemente se apresenta como se constituísse
algo de intermédio e subseqüente entre univocidade e equivocidade. Como se alguém tivesse de falar algo sobre Deus, mas a seguir percebesse que realmente não o pode dizer porque o conteúdo da afirmação procede de outra fonte, de algo que nada tenha muito que ver com Deus. E, em conseqüência, deveríamos formar conceitos análogos, que constituiriam uma coisa intermédia entre o unívoco e o equívoco. Mas a coisa não se passa assim. A transcendência é algo de mais originário do que os conceitos singulares, que são categoriais e unívocos. Pois a transcendência - essa ultrapassagem do horizonte ilimitado de todo o movimento de nosso espírito - é precisamente a condição, o horizonte, a base e fundamento que nos possibilitam comparar e classificar entre si os objetos singulares da experiência. Esse movimento transcendental do espírito é o elemento originário, e é precisamente isso que designamos de outra maneira com o termo "analogia". Por isso a analogia nada tem a ver com a idéia de posição intermédia posterior e inexata entre conceitos claros e conceitos que indicam duas coisas totalmente diversas mediante o mesmo som fonético. Pelo contrário, porque a experiência transcendental é a condição que possibilita todo conhecimento categorial de objetos singulares, segue-se de sua natureza que a afirmação analógica significa o que há de mais básico e originário em nosso conhecimento, de tal sorte que, por familiares nos sejam as afirmações equívocas e unívocas provenientes de nosso conhecimento científico e de nosso trato diário com as realidades de nossa experiência, elas constituem modos deficientes daquela relação original pela qual nos relacionamos com o Aonde de nossa transcendência. E essa relação original é precisamente o que chamamos de analogia, oscilando entre um ponto de partida categorial e a incompreensibilidade do mistério santo, Deus. Nós próprios, assim poderíamos dizer, existimos analogamente por estarmos fundados no mistério santo, que sempre se nos ~scapa ao mesmo tempo que sempre nos constitui por seu apresentarse a nós e seu reenviar-nos às realidades concretas, singulares e categoriais do âmbito de nossa experiência, que, por sua vez, em sentido contrário, constituem a mediação e o ponto de partida para o nosso conhecimento de Deus. 93
Sobre o ser pessoal de Deus Afirmar que Deus é pessoa, que-é um Deus pessoal, é parte dos dados fundamentais da convicção cristã sobre Deus. Mas é enunciado que acarreta especiais dificuldades para o homem de hoje e não sem razão. Ao dizermos que Deus é pessoa (em sentido que ainda nada tem a ver com a tripersonalidade de Deus), a questão do ser pessoal de Deus se nos apresenta sob duplo aspecto: podemos nos perguntar se Deus deve ser chamado de pessoa em si mesmo, como também podemos nos perguntar se ele é pessoa somente com referência a nós, e se no seu próprio ser ele fica oculto para nós em sua distância absoluta e transcendental. Neste caso deveríamos dizer que ele é pessoa, mas que por isso não entraria absolutamente na relação conosco que pressupomos em nossos atos religiosos, na oração e em nossa referência a Deus pela fé, esperança e caridade. Só trataremos das reais dificuldades que a afirmação de Deus como pessoa causa para os homens de hoje ao discutirmos explicitamente a relação entre Deus e o homem, a autocomunicação de Deus pela graça como constituição transcendental do homem. Se prescindirmos dessas dificuldades por ora, podemos dizer que a afirmação de que Deus é pessoa, que ele é pessoa absoluta que se situa em absoluta liberdade perante tudo o que ele estabelece como diferente de si mesmo, esta afirmação, dizemos, na verdade é afirmação evidente por si mesma, exatamente como quando dizemos que Deus é o ser absoluto, o fundamento absoluto, o mistério absoluto, o bem absoluto, o horizonte definitivo e absoluto em cujo interior se realiza a existência humana na liberdade, no conhecimento e no agir. É evidente por si mesmo antes de tudo que o fundamento da realidade existente deva possuir nele mesmo de antemão e em absoluta plenitude e pureza essa realidade que por ele é fundada, porque de outra forma este fundamento não poderia ser fundamento da realidade que é fundada, e porque de outra forma o fundamento seria em última análise o nada vazio que, se o termo for levado verdadeiramente a sério, não diria nada nem poderia nada fundar. É claro que a subjetividade e personalidade que experimentamos como nossa, a unicidade individual e limitada pela qual nos distinguimos dos demais, a liberdade que se deve exercer sob milhares de condicionamentos e necessidades, tudo isto implica uma subjetividade finita marcada por limitações que, com tais 94
limitações, não podemos afirmar do seu fundamento, ou seja, de Deus. E é evidente que semelhante personalidade individual não pode convir a Deus, que é o fundamento absoluto de tudo em sua radical originalidade. Se disséssemos, portanto, que neste sentido Deus não é pessoa individual, porque não pode na verdade experimentar-se como delimitado com referência a outra realidade nem limitado por outra realidade, porque ele não experimenta nenhuma diferença de si mesmo, mas antes ele próprio é quem estabelece a diferença de si mesmo e, em conseqüência, ele próprio é em última instância a diferença com respeito ao outro, então temos razão em dizer que Deus não pode ser chamado de pessoa neste sentido. Mas, procedendo assim, poderíamos fazer o mesmo com referência a todo conceito transcendental que se aplica a Deus. Quando digo que Deus é o sentido originário, o fundamento que tudo possibilita, a claridade absoluta, o ser absoluto etc., tenho que saber já o que quer dizer fundamento, sentido etc. e só posso fazer todas essas afirmações em sentido análogo, ou seja, naquele movimento em que o sujeito que compreende deixa sua compreensão como que desaguar no mistério santo, inefável e incompreensível. Se é que algo se pode predicar de Deus, devemos atribuir-lhe o conceito de "personalidade". É claro que o enunciado "Deus é pessoa" só se pode afirmar e é verdadeiro a respeito de Deus quando, ao fazer e compreender esse enunciado, nós o abrimos para a inefável obscuridade do mistério santo. É claro que, como filósofos, sabemos o que significa este enunciado mais concreta e exatamente somente quando, segundo uma máxima fundamental do genuíno filosofar, não preenchemos arbitrariamente o a priori filosófo em sua formalidade vazia e em seu vazio formal nem o deixamos arbitrariamente vazio, mas antes permitimos que esse enunciado formal receba seu conteúdo de nossa experiência histórica, permitindo que seja pessoa precisamente da forma em que de fato quer encontrar-se conossas histórias indivinosco e se tem encontrado conosco duais, na profundeza de nossas consciências, e na totalidade da história humana. Não devemos, pois, transformar esse vazio formal e essa formalidade vazia do conceito transcendental de pessoa afirmado de Deus um falso deus ou ídolo, recusando de início a permitir que o próprio Deus o preencha de sentido mediante a experiência pessoal de oração, mediante a história pessoal individual na
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qual Deus se aproxima de nós, e mediante a história da revelação cristã. Em vista disso, até certo ponto se justifica certa ingenuidade religiosa, que -entende a personalidade de Deus em sentido quase categorial. O fundamento de nossa personalidade espiritual, qae precisamente na constituição transcendental dessa nossa pessoa espiritual anuncia-se sempre, ao mesmo tempo que se esquiva, precisamente como fundamento de nossa pessoa, com isso exatamente já se revelou como pessoa. A idéia de que o fundamento absoluto de todas as coisas seja como que uma lei cósmica inconsciente e impessoal, uma estrutura inconsciente e impessoal das coisas, uma fonte que a si mesma se esvazia sem possuir-se, fonte que dá origem ao espírito e à liberdade sem que seja ela mesma espírito e liberdade, a idéia de um fundamento originário cego do mundo que não possa nos mirar ainda que o quisesse, tudo isto não passa de representação cujo modelo se toma do contexto do mundo impessoal das coisas, e não provém da verdadeira fonte em que se enraíza a experiência originária transcendental, ou seja, não provém da experiência livre e subjetiva que um espírito faz de si mesmo. Em sua própria constituição um espírito finito sempre se percebe como tendo origem em outro e como sendo dado a si mesmo por outro - por outro, portanto, que ele não pode falsamente interpretar como se fora um princípio impessoal e como se fora uma coisa. 4. A RELAÇÃO DO HOMEM PARA COM O SEU FUNDAMENTO TRANSCENDENTE: A CONDIÇÃO DE CRIATURA
Relativamente ao tema da condição de criatura que caracteriza nossa relação para com Deus, haveremos de considerá-lo aqui apenas em seus traços fundamentais últimos e muito formalizados. Porque esta relação para com Deus vem a ser expressa cabalmente apenas pelo conjunto de toda a mensagem cristã. E, no que diz respeito a essas características e traços fundamentais e muito formais, discutiremos antes de tudo a própria relação enquanto se pode caracterizar em sua essência última como relação de criatura para com o Criador. A essa altura, temos, sem dúvida, o direito de prescindir da questão se este é enunciado meramente filosófico, em que a asserção e o objeto são puramente naturais, ou se estaríamos 96
tratando de afirmação filosófica de sujeito filosófico, mas tal que o objeto da afirmação seria uma realidade de que a ação de Deus na graça seja co-constitutiva, ainda que assim possa vir a ser interpretada apenas subseqüente e teologicamente, ou se esta afirmação de nossa condição de criatura faz parte inteiramente do campo da teologia revelada até no que se refere ao objeto afirmado e ao sujeito que afirma. Com freqüência surge na teologia escolástica a questão se a doutrina do Concílio Vaticano I, segundo a qual se pode conhecer a Deus pela chamada luz da razão natural, também se refere a Deus enquanto é não só fundamento originário do mundo, mas também o criador do mundo em sentido estrito, ou seja, se nossa condição de criatura também é parte dos dados que, segundo o Vaticano 1 (DENZ 3004), se podem conhecer pela luz da razão natural. O Vaticano I não responde a essa questão. Na verdade ensina que Deus é criador de todas as coisas, que ele as criou e continua criando do nada. Mas nada diz sobre se essa afirmação possa ser afirmação meramente filosófica ou possa ser feita somente no interior da revelação e, portanto, da autocomunicação pessoal de Deus. A condição de criatura não é caso particular de relação causal Em todo caso, em nossa experiência transcendental, que ine1udível e necessariamente nos remete ao inefável mistério santo, está dado o que venha a ser condição de criatura e na verdade como algo que é experimentado imediatamente nessa experiência. O termo "condição de criatura" interpreta correntemente essa experiência original da relação entre nós e Deus. Em analogia e continuando a desenvolver uma afirmação, que já tivemos oportunidade de fazer, dizemos que a condição de criatura não significa caso particular de relação causal geral entre duas realidades, nenhuma relação que se encontre, ainda que de maneira um pouco diferente, também alhures. Em primeira instância e originariamente, a condição de criatura refere-se a uma relação cuja natureza só podemos descobrir no seio da experiência transcendental como tal e não no fato de uma coisa fundarse em outra do mesmo gênero dela, não no fenômeno empírico, que consiste em que um fenômeno no interior de nossa experiência categorial possui conexão funcional com outro fenômeno. Se viéssemos a pensar que a condição de criatura não pas97 4-
Curso Fundamental da Fé
saria da extrapolação dessa relação funcional de duas realidades categoriais, que se nos oferecem dentro do campo de nossa experiência, de início já teríamos deixado de perceber o que significa a condição de criatura. A condição de criatura não constitui um dentre os muitos casos de nexo causal ou funcional entre duas coisas que se apresentem organizadas sob uma unidade superior. A condição de criatura é relação absolutamente única que só ocorre uma vez e, portanto, tem lugar único, é relação que se nos comunica somente no seio da experiência transcendental como tal. Assim como o princípio metafísico da causalidade não se pode considerar extrapolação da lei funcional de causalidade das ciências naturais, assim também a condição de criatura não se pode entender como caso ou extrapolação ou mesmo intensificação deste nexo categorial, causal ou funcional no interior do mundo. Portanto, o que propriamente significa procedência de criatura experimenta-se originariamente no proc~so da transcendência. Isso vem a significar também que os termos "relação de criatura", "ser criado", "criação" não apontam em primeira instância a um primeiro momento do tempo em que ocorreu a criação da realidade de que se trata, mas significam um processo que se acha em andamento e é atual, que para todo ser existente está ocorrendo agora da mesma forma como ocorreu em um momento anterior do tempo de sua existência, ainda que essa criação continuada seja a de um existente que se estende no tempo. Criação e condição de criatura em sua primeira intenção de dizer não indicam, portanto, evento dado em um momento (o primeiro momento de um existente temporal), mas antes a constituição desse existente e de seu tempo mesmo, constituição que precisamente não entra no tempo, mas que é o fundamento do tempo.
A condição de criatura como radical diferença e radical dependência de Deus Para vir a compreender o que significa a condição de criatura como a relação básica do homem para com Deus, iniciemos uma vez mais pela experiência transcendental. O homem como pessoa espiritual implicitamente afirma, em todo o seu conhecer e agir, como fundamento real o ser absoluto, e o afirma como mistério. Essa realidade absoluta e inabarcável, que
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é sempre um horizonte, ontologicamente se ocultando, de toc;los os encontros espirituais com realidades, sempre é, em conseqüência, infinitamente diversa do sujeito que compreende. É também diversa de toda realidade finita compreendida. Como tal, ela está dada em toda afirmação, em todo conhecer e agir. Em correspondência a isso, podemos - a partir dessa afirmação fundamental - determinar sob suas duas facetas a relação entre o homem que pensa e a coisa pensada como seres finitos, e o absolutamente infinito: como o ser simplesmente absoluto e infinito, Deus deve ser absolutamente diverso. Do contrário ele seria objeto de conhecer conceitua!, e não o fundamento deste conhecer. Ele é e continua sendo este fundamento até quando vem a ser denominado e objetivado na reflexão metafísica e conceitua!. E, portanto, não pode precisar da realidade finita chamada "mundo", porque de outra forma não seria real e radicalmente distinto dela, mas sim peça de um todo mais elevado, tal como se pensa no panteísmo. E, por sua parte, o mundo deve depender radicalmente de Deus, sem tornar Deus dependente do mundo da forma como o senhor é dependente do servo. O mundo não pode pura e simplesmente trazer em si nada do que seja independente de Deus, tampouco como a totalidade das coisas do mundo em sua multiplicidade e unidade pode-se conhecer sem a pré-apreensão da transcendência do espírito para Deus. Essa dependência deve ser livremente estabelecida por Deus, porque, como finita e em processo de devir, não pode existir necessariamente e a necessidade do que foi estabelecido, se acaso houvesse esta necessidade, só poderia proceder de necessidade situada em Deus mesmo e em seu próprio ato de estabelecer o mundo, necessidade que faria do mundo uma necessidade de Deus e que, portanto, não permitiria a Deus ser independente do mundo. Essa radical dependência deve ser permanente, não se referindo, portanto, apenas a um momento no início, pois o que é finito está sempre referido, no presente e no passado, ao absoluto como seu fundamento. A doutrina cristã chama esta singular relação entre Deus e o mundo de condição criada do mundo, sua criaturidade, o permanente estar-dado-a-si-mesmo do mundo mediante o livre estabelecimento da parte do Deus pessoal. Este estabelecer da parte de Deus não pressupõe, pois, um material pré-dado e, neste sentido, é "do nada". Criação "do nada" no fundo quer dizer: criação totalmente a partir de Deus, mas de tal sorte que nessa
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criação o mundo seja radicalmente dependente de Deus, e Deus não se torne dependente do mundo, mas pelo contrário, permaneça livre com referência ao mundo e fundado em si mesmo. Onde quer venhamos a encontrar relação causal de natureza categorial e intramundana, o efeito é por definição dependente de sua causa, mas esta causa é por sua vez de maneira singular dependente do seu efeito, pois não pode ser tal causa sem causar tal efeito. Ora, isso não ocorre no caso da relação entre Deus e a criatura, pois de outra forma Deus seria um elemento no âmbito de nossa experiência categorial e não o Aonde infinitamente distante da transcendência, em cujo interior compreendemos a realidade finita singular.
Radical dependência de Deus e genuína autonomia O próprio Deus é quem estabelece a criatura e a distinção dela com referência a si. Mas, pelo fato mesmo de Deus estabelecer a criatura e sua distinção com referência a si, a criatura é realidade genuína e distinta de Deus e não mera aparência por detrás da qual se esconde Deus e sua realidade. Dependência radical e genuína realidade do existente que procede de Deus crescem na mesma proporção e não em proporção inversa. Em nos. sa experiência humana ocorre que, quanto mais algo é dependente de nós, tanto menos é diferente de nós e tanto menos possui sua própria realidade e autonomia. No âmbito da realidade categorial, a radical dependência do efeito para com a causa e a independência e autonomia do efeito crescem em proporção inversa. Mas quando refletimos sobre a peculiar relação transcendental entre Deus e a criatura, fica claro para nós que aí genuína realidade e radical dependência constituem simplesmente aspectos de uma só e mesma realidade e, em decorrência, crescem na mesma proporção e não em proporção inversa. Nós e as realidades existentes do nosso mundo existimos real e verdadeiramente e somos distintos de Deus não apesar, mas por causa de sermos estabelecidos no ser por Deus e não por outra realidade qualquer. A criação é a forma única, irrepetível e incomparável que não pressupõe o outro como possibilidade de ativo sair-desi-mesmo, mas que precisamente cria o outro como outro enquanto o mantém perto de si como fundado e em igual medida o entrega à sua autonomia. 100
É claro que, em última análise, o conceito de criação só poderá vir a ser entendido e assimilado pela pessoa que não só faz a experiência de sua própria liberdade e responsabilidade, válida também perante Deus e em relação a ele, na profundeza de sua existência, mas que também o acolheu livremente no ato de sua liberdade e na reflexão. O que propriamente significa o que seja algo de diverso de Deus e, contudo, dele proceder radicalmente e no mais profundo de si mesmo, o que significa dizer que essa procedência radical precisamente funda a autonomia, de tudo isso só se pode fazer experiência quando uma pessoa espiritual criada faz a experiência de sua própria liberdade como realidade proveniente de Deus e referida a Deus. Somente quando a pessoa se percebe como sujeito livre e responsável perante Deus e assume essa responsabilidade é que ela entende o que seja autonomia e que essa não decresce, mas aumenta na mesma proporção que a dependência com referência a Deus. Somente então- é que se nos toma claro que o homem é ao mesmo tempo autônomo e dependente do seu fundamento.
A experiência transcendental como lugar originário da experiência da condição de criatura O lugar originário onde fazemos a experiência da condição de criatura não é a cadeia dos fenômenos ocorrendo em temporalidade vazia, mas a experiência transcendental onde o sujeito experimenta a si e seu próprio tempo como sendo portados pelo fundamento incompreensível. Por isso a doutrina cristã sempre expressa esta condição de criatura à luz da experiência - que é adoração de Deus - da própria realidade autônoma e responsável, entregue à disposição indisponível do mistério por excelência e que dessa forma precisamente se toma nossa própria responsabilidade. A condição de criatura comporta, pois, tanto a graça como o mandato de preservar e assumir aquela tensão da analogia que é o sujeito finito, de pensar-se, entender-se e assumir-se como algo verdadeiramente real e entregue a si mesmo e precisamente assim como o que é simplesmente procedente e dependente e referido ao mistério absoluto como a seu futuro. Por isso este sujeito marcado pela tensão e pela analogia estará sempre correndo o risco e a tentação de perder de vista um dos dois momentos dessa unidade indisponível. Ou a pessoa se entende como mera aparência vazia mediante a qual a 101
divindade leva avante o seu jogo eterno, esquivando-se à sua liberdade e responsabilidade, pelo menos no que diz respeito a Deus, e jogando a responsabilidade por si e sua existência nas costas de Deus de tal sorte que sua carga não permaneça na verdade carga realmente sua, ou - esta é a outra possibilidade deste equívoco - a pessoa passa a entender a verdade e a realidade verdadeira que somos nós como se ela na verdade não proviesse de Deus, mas tivesse peso e significado independentemente dele, de tal sorte que Deus viesse a ser considerado parceiro do homem em falso sentido, que consistiria em pensar que a distinção entre ele e nós e, em conseqüência, a possibilidade de real comunhão com ele não seriam estabelecidas por ele mesmo, mas lhe seriam anterior a ele e à nossa relação para com ele.
A experiência da condição de criatura como denuminização do mundo A doutrina cristã que afirma a condição criada do mundo, que primária e originariamente se estabelece pela posição da livre subjetividade de pessoas finitas, não vê aí um caso singular estranho e quase não mais explicável. Pelo contrário, essa doutrina implica a demitização e denuminização do mundo, ponto que é de suma importância para a concepção cristã da existência e do mundo - e não somente para o moderno sentir acerca da existência. À medida que o mundo, livremente estabelecido por Deus, dele verdadeiramente se origina mas não da forma como Deus se possui a si mesmo, na realidade ele não é Deus. Por isso é justo considerar o mundo não como "natureza sagrada", mas como o material disponível para a atividade criadora do homem. Não é na natureza - em sua finitude surda e não experimentada por ela - mas é em si próprio, e no mundo apenas enquanto conhecido e administrado por ele na ilimitada abertura de seu próprio espírito, que o homem faz a experiência de sua condição criada e aí se encontra com Deus. Esta observação, é claro, não basta para descrever de forma adequada a correta relação do homem para com a "natureza" enquanto seu meio ambiente. Essa relação apresenta ademais muitas outras características que não vêm à tona com apenas falar da denuminização do mundo, e tem ela própria sua história, cujas possibilidades hoje experimentamos e não só sob 102
aspectos positivos. Mas, apesar de sua importância, aqui não nos podemos ocupar mais detidamente com esta questão. 5. A POSSIBILIDADE DE ENCONTRAR DEUS NO MUNDO
Tensão entre a perspectiva transcendental e a religião histórica A questão da possibilidade de encontrar Deus e sua ação para conosco em nossa concreta experiência histórica no mundo apresenta hoje especiais dificuldades. Deus surgiu-nos até o momento como o fundamento portador de tudo, que conosco pode se encontrar no horizonte último, que ele próprio é e constitui. Como aquele que não pode ser inserido juntamente com o que por ele é fundado em um sistema que abranja a ambos, ele nos surgiu como o sempre transcendente, como pressuposto a tudo que está posto, e, em conseqüência, como alguém que não se pode pensar como algum desses existentes categoriais, ou seja, compreendido e compreensível para nós. Mas eis que precisamente deste dado parece derivar-se como conseqüência aquela dificuldade que talvez hoje seja adificuldade fundamental que os homens contemporâneos experimentam com respeito à prática concreta da religião. Enquanto pressuposto inefável e incompreensível, enquanto fundamento (Grund) e abismo (Abgrund), enquanto mistério indizível, Deus não pode ser encontrado em nosso mundo, parece não poder entrar no mundo com que nos temos de haver, pois que assim se tornaria o que não é, a saber, uma realidade singular lado a lado com outra realidade que não ele. Quisesse ele aparecer no seu mundo, parece que ele cessaria de imediato de ser ele mesmo: o fundamento de todo fenômeno, ele que não é nenhum fenômeno. Parece que Deus não pode per definitionem ser intramundano. A pessoa que disser apressadamente que afinal ele não precisa disso, pois que sempre há de ser pensado como estando para além do mundo, provavelmente ainda não terá sentido esta dificuldade realmente radical. A dificuldade consiste em que Deus per definitionem parece não poder estar onde per definitionem nós estamos. Toda objetivação de Deus parece, enquanto algo de localizável e determinável no tempo e no espaço, enquanto algo que está aqui e agora, não ser Deus essencialmente, mas algo que devemos deduzir como fenômeno de ou103
tros fenômenos que se podem apontar e se devem postular no mundo. Mas a religião - tal ·como a conhecemos - como religião de oração para obter a intervenção de Deus, como religião de milagres, como religião de uma história da salvação diferente de outra história, como religião em que parece haver certos sujeitos com a plenitude de autoridade divina como distintos de outros sujeitos, como religião de livro inspirado que procede de Deus, como religião que apresenta palavra determinada e que se supõe ser a palavra de Deus distinta de outras palavras, como religião que afirma determinados profetas e portadores da revelação como autorizados por Deus, como religião com um papa que se diz vigário de Jesus Cristo (a expressão "Jesus Cristo" aí soa mais ou menos como a palavra "Deus") - uma religião deste tipo e com estas características retém que determinados fenômenos que ocorrem no âmbito de nossa experiência são objetivações e manifestações características de Deus, e, em conseqüência, dessa forma Deus como que aparece dentro do mundo de nossa experiência categorial em pontos bem determinados enquanto distintos de outros pontos. Tal religião parece de início incompatível com a nossa perspectiva e ponto de partida transcendental que, por outro lado, não podemos absolutamente abandonar, se quisermos simplesmente falar de Deus hoje. A religião, tal como concretamente é praticada pelos homens, parece sempre e inevitavelmente dizer: "Deus está aqui e não lá", "isto está de acordo com sua vontade e .não aquilo", "ele se revelou aqui e não lá". A religião da forma como é concretamente praticada parece nem querer nem poder renunciar a uma categorialização de Deus. A religião que a isto renuncia parece diluir-se em névoa, que talvez exista, mas com ela praticamente não se pode viver religiosamente. O nosso ponto de partida e perspectiva básica parece dizer-nos o contrário: Deus está em toda parte à medida que é quem tudo fundamenta, e não está em parte nenhuma à medida que toda a realidade por ele fundamentada é criatura, e tudo o que surge assim no âmbito do mundo de nossa experiência é diverso de Deus, separado por abismo absoluto existente entre Deus e a relidade não-divina. Esta constitui - ainda que expressa em linguagem bastante formal - a dificuldade de base para todos nós hoje. Parece que todos nós (sem exceção sequer do ateu perturbado e apavo104
rado pela vacuidade dolorosa de sua existência) retemos poder ser religiosos no sentido de reverenciarmos o inefável em silêncio, sabendo que tal existe. Facilmente temos a impressão de que seja indiscrição pouco religiosa, quase de mau gosto, em referência a este piedoso e silencioso deixar que o mistério santo permaneça o que ele é, quando não só falamos do inefável, como também na piedade corrente apontamos como que com o dedo essa ou aquela coisa determinada no interior do mundo de nossa experiência e dizemos: Deus está aqui. É claro que a religião da revelação histórica que é o cristianismo encontra nesta dificuldade a ameaça mais radical e geral. Para superar devidamente esta dificuldade, deveremos proceder cuidadosamertte e passo a passo.
A proximidade imediata para com Deus como proximidade· mediada É fácil perceber que um contato imediato com Deus como tal - por mais que ainda reste explicá-lo com maior precisão - ou não pode haver de fato ou não pode ser impossível por ser em certo sentido também mediado. Se existe proximidade imediata para com Deus, ou seja, se realmente podemos nos haver com Deus como enquanto tal, essa proximidade imediata não pode depender do fato de a realidade não-divina desaparecer simplesmente. É claro que pode existir fervor religioso alimentando-se . do sentimento básico que o emergir de Deus faz com que a criatura desapareça. Esse sentir, segundo o qual a pessoa deva como que desvanecer-se quando Deus quer mostrar-se, é algo inteiramente compreensível e é idéia que se acha testemunhada inclusive no Antigo Testamento. O religioso ingênuo, que representa Deus de maneira categorial certamente não sente nenhuma dificuldade quanto a isto, como também não vê dificuldade no fato de ser criatura de Deus quanto à sua liberdade, quer como faculdade, quer como ato. Mas no momento em que percebemos nossa radical procedência de Deus, que dele dependemos até a última fibra do nosso ser, então a percepção de que gozamos de liberdade com referência a Deus é na verdade algo que não é assim tão evidente. Se a proximidade imediata para com Deus não pode de antemão ser contradição absoluta, não pode depender de que o que não é divino pura e simplesmente desapareça ao se aproxi105
mar de Deus. Como tal, Deus não necessita de encontrar um lugar que lhe seja cedido por qualquer coisa que não ele. Pois pelo menos a presença de Deus enquanto fundamento e horizonte transcendental de todo existente e cognoscente (e isto constitui também uma chegada de Deus, uma proximidade imediata para com ele) ocorre através e no dado do ente finito. Mediação e imediatez não são conceitos simplesmente contraditórios. Existe genuína.mediação à proximidade imediata para com Deus. E onde, segundo a compreensão da fé cristã, é dada a nós a autocomunicação de Deus em seu próprio ser, que é a comunicação mais radical e absolutamente imediata (a saber, na visão imediata de Deus enquanto realização consumada do espírito finito pela graça), esta imediatez radical em certo sentido é ainda mediada pelo sujeito finito que dela faz a experiência ao fazer a experiência de si mesmo. Nesse manifestar-se de Deus, que é o mais imediato que existe, o sujeito finito não vem a desvanecer-se nem a ser como que supresso. Pelo contrário, é então que ele precisamente atinge sua realização plena e consumada e, assim sendo, sua mais plena autonomia como sujeito. Essa autonomia é ao mesmo tempo pressuposto e conseqüência dessa absoluta imediatez para com Deus e a partir de Deus. Uma realidade finita como tal, à medida que aparece como essa determinada coisa singular dentro de nosso horizonte transcendental, não pode representar a Deus de tal maneira que, pelo próprio fato de ela estar dada, também Deus já estivesse presente em si mesmo de forma que ultrapassasse a possibilidade de mediação dada pela nossa experiência transcendental. Prescindindo do fato de que a experiência tanscendental e tal referência a Deus possa ser mediada por qualquer ente categorial, devemos reter que determinado ente singular posto no interior do horizonte transcendental não pode mediar a Deus de maneira tal que, pelo simples fato que ele existe, esta presença de Deus além da transcendentalidade pudesse revestir o caráter que parecemos pressupor em uma interpretação vulgar do fenômeno religioso. Isso fica simplesmente excluído pela absoluta distinção que vigora necessariamente entre, por um lado, o mistério santo como o fundamento, e, por outro, tudo o que é por ele fundamentado. O ente singular como tal pode em sua concretude e limite categoriais mediar a Deus à medida que em sua experiência ocorre a experiência transcendental de Deus. Mas é claro 106
que ainda continua obscuro para nós porque e até que ponto essa espécie de mediação deveria caber a determinado ente categorial antes que a outro. E somente quando podemos dizer isso é que pode haver algo como religião concreta e concretamente praticada com seus elementos religiosos categoriais.
A alternativa: "devoção ao mundo" ou verdadeira autocomunicação de Deus Continuamos, pois, diante de problema ainda não resolvido, o problema que nos ocupa. Pois, dadas as nossas pressuposições, parece que a religião é o respeito e reverência para com as estruturas categoriais do mundo, à medida que essas todas conjuntamente possuem referências transcendental para com o seu fundamento originário. E nesse tipo de "religião" na verdade Deus desempenha apenas papel indireto. Esta é uma das alternativas. Poderíamos chamar esta alternativa de devoção e reverência para com o mundo da parte do homem, para com o mundo em suas estruturas próprias objetivas, inclusive suas estruturas interpessoais, acompanhadas esta devoção e reverência evidentemente de certo reconhecimento de que este mundo possui referência última ao seu fundamento (Grund) e abismo (Abgrund) transcendental, que se chama "Deus". O que então restaria de religião seria propriamente certa "devoção ao mundo" envolta divinamente. Uma pessoa veneraria a natureza como divina, outra consideraria o mundo como palco e material de sua própria autolibertação e de sua própria compreensão na ação, e uma terceira poderia ser cientista que percebe a beleza da realidade vista em sua verdade. Tudo isso seria concebível no contexto de relação última ao inefável Donde e Aonde de tudo, que, com temor e tremor e num calar-se último, se poderia chamar de "Deus". Com isso teríamos descrito o que talvez se possa chamar de "religião natural". "Natural", dizemos, porque é muito difícil distinguir claramente aí a natureza e a graça sobrenatural em sua relação recíproca. Ou será que a religião não passa de "devoção ao mundo"? não será mais do que isto? existe a possibilidade de contato imediato com Deus, em que ele, sem deixar de ser realmente o que é, fazendo-se dele objeto categorial, não apareça simplesmente como a condição sempre remota e distante da possibilidade do trato do sujeito com o mundo, mas em que ele comunique a si 107
mesmo como tal e de tal forma que esta comunicação possa vir a ser recebida por nós? Veremos que esta essência "sobrenatural" da religião e a distinção primeira e essencial desta religião com relação ao que há pouco chamamos de "religião natural" não se podem subsumir em conceito unívoco de religião. Aí devemos frisar que uma "presença" de Deus como condição e objeto do que costumamos chamar de religião no sentido corrente, pelo menos no cristianismo, pode existir só à medida que a representação desta presença divina·na palavra humana, no sacramento, numa Igreja, numa revelação, numa Escritura etc. essencialmente não possa ser outra coisa que indicação categorial da presença transcendental de Deus. Se Deus deve continuar sendo ele mesmo também ao se comunicar a nós, se ele deve estar presente a nós em imediatez mediada como a única realidade infinita e como mistério inefável, e se neste sentido a religião deve ser possível, então este evento deve ocorrer com base na experiência transcendental como tal, haverá de ser uma modalidade desta relação transcendental, relação que possibilita contato imediato com Deus. E a manifestação e concretude categorial deste contato imediato não podem estar dadas em sua finitude categorial como tal, mas somente em sua característica de apontar para a modalidade desta relação transcendental que dá contato direto com Deus. Mais tarde haveremos de nos perguntar, em busca de maior precisão, pela maneira em que se dá esta modalidade de referência transcendental para com Deus. Ao responder a esta pergunta, ficará claro que a interpretação cristã da experiência transcendental de Deus consiste em que o mistério santo se faz presente não apenas como distância fria a nos lançar em nossa finitude, mas também na forma da proximidade absoluta de perdão e da absoluta oferta de si mesmo aos homens - embora tudo isto venha a ocorrer em virtude da graça e na total liberdade de Deus nessa sua autocomunicação. Quando tudo isso vier a ficar claro, teremos de nos perguntar por que essa proximidade imediata para com Deus não supera já de início toda outra presença religiosa concebível de Deus e mediada categorialmente, como se concebe, segundo parece, pela religião concreta, por religião que admite milagre, intervenções do poder de Deus no mundo, por religião que admite o atendimento de preces, por religião que reconhece uma aliança de Deus com os homens, por religião que propõe determinados sinais sacramentais etc., pe108
los quais acontece a graça. Teremos de explicar por que todas essas coisas que, segundo a autocompreensão corrente da religião, se reconhecem como presença e anúncio de Deus na história são presença real de Deus em si mesmo e, assim sendo, constituem verdadeiros fundamentos da religião, somente e à medida que todas essas manifestações de Deus em nosso espaço e em nosso tempo constituem realizações históricas e concretas da autocomunicação transcendental de Deus. De outra forma seriam meros portentos e não o milagre da revelação histórica de Deus. O agir de Deus através de causas segundas De mais a mais, que se recorde quanto a isto o que Tomás de Aquino dizia quando frisava que Deus age através de causas segundas. É claro que se deverá entender esta afirmação em sentido bastante diferenciado. A proximidade imediata para com Deus, seu ser mediado, sua presença e sua ausência são de início grandezas diferenciadas já pelo fato de o espírito enquanto transcendência não ser a característica de todo existente no mundo. Mas aí nosso primeiro interesse é a sentença de Tomás de Aquino há pouco mencionada. Ela diz, se não a bagatelizarmos, que Deus opera o mundo e não propriamente opera no mundo, que ele sustenta a cadeia das causalidades, mas não que por sua atividade se insira nessa cadeia das causas como um elo, como se fosse uma causa entre as outras. A própria cadeia como todo, ou seja, o mundo no inter-relacionamento de suas partes e não somente em sua unidade abstrata e formal, o mundo em suas diferenciações concretas e nas diversidades profundas entre os vários elementos no todo de sua realidade constitui a autorevelação do seu fundamento. E este fundamento mesmo não se pode encontrar como tal imediatamente nessa totalidade. Pois que o fundamento não aparece no seio do que é fundado, se ele é realmente o fundamento radical, e, portanto, divino e não uma função num entretecido de funções. Se todavia deve existir uma proximidade imediata de Deus para conosco, se é que devemos encontrá-lo como é em si mesmo lá onde nos situamos em nosso mundo no espaço e no tempo, então essa proximidade imediata, em si e na sua objetivação categorialmente histórica, deve estar de início inserida neste mundo, então a concreta proximidade imediata de Deus para conosco, assim como a reli109
gião concreta o pressupõe e vive, deve ser um momento e uma modalidade da proximidade imediata para com Deus, que é simultaneamente transcendental e historicamente mediada. Portanto podemos conceber uma "intervenção" especial de Deus somente como concretização histórica da autocomunicação transcendental de Deus que já seja intrínseca ao mundo concreto. Tal "intervenção" de Deus sempre acontece, antes de tudo, a partir da abertura fundamental de uma matéria finita e de um sistema biológico da direção do espírito e de sua história, e, em segundo lugar, a partir da abertura do espírito na direção da história da relação transcendental entre Deus e a pessoa criada que se caracteriza pela liberdade de ambos os lados, de tal sorte que toda intervenção real de Deus em seu mundo, embora seja livre e não possa ser deduzida, é sempre e somente o tornar-se histórico e o tornar-se concreto da "intervenção", na qual Deus, como o fundamento transcendental do mundo, desde o princípio se inseriu neste mundo como o fundamento que se comunica a si próprio. É problema fundamental para a compreensão hodierna do cristianismo que se esclareça a maneira como Deus pode realmente ser Deus e não mero elemento do mundo, e a maneira como, não obstante, em nossa relação religiosa para com o mundo devemos entendê-lo como não permanecendo fora do mundo. O dilema da "imanência" ou "transcendência" de Deus deve ser resolvido sem que se sacrifique nenhum dos dois pólos de interesse. Em nossas considerações até o momento já nos deparamos pelo menos duas vezes com a estrutura formal dessa peculiar relação entre o estar-além transcendental e a acessibilidade categorial. Tanto nossa subjetividade irredutível como nossa liberdade responsável se nos depararam como existenciais humanos fundamentais que experimentamos sem cessar e que obviamente sempre se objetivizam no concreto do tempo e doespaço; mas que, não obstante, não constituem algo de tangível que possa ser colhido e delimitado como objeto singular lado a lado com outros objetos. Análoga e formalmente, a mesma relação de tensão (e em última analise pelas mesmas rezões) vigora quando nos interrogamos se Deus_ se anuncia tangivelmente no seu mundo, se, para dar exemplos, ele escuta as orações, faz milagres, intervém poderosamente na história etc. Se, como pessoas religiosas, respondemos afirmativamente a essas questões, isto não significa 110
todavia que o que é imediatamente tangível nessa "intervenção" como tal não exista em relação funcional com o mundo ou que não se possa explicar causalmente ou que, fora de relação religiosa transcendental para com Deus, em certas circunstâncias não se possa inserir nessa conexão funcional pelo fato de que venha a ser desconsiderado como algo "ainda não explicado" ou como algo justificadamente deixado de lado, mas não excluído por princípio das relações causais que ocorrem no mundo. A presença categorial de Deus diz apenas que onde o sujeito permanece realmente sujeito como sua experiência religiosa transcendental e se realiza como tal, essas objetivações da intervenção de Deus adquirem valor no interior dessa experiência transcendental de Deus, valor que de fato convém a tais fenômenos, mas precisamente à medida que com toda verdade se situam dentro desse contexto subjetivo e que por isso também podem ser reconhecidos nesse caráter especial que lhes compete somente dentro desse contexto. Esclareçamos o que quisemos dizer por meio de exemplo que constitui uma das formas mais modestas da intervenção de Deus no seu mundo e que, portanto, nem pode nem pretende explicar plenamente o modo específico de um tipo mais elevado de "intervenção" de Deus no mundo. Sobrevém-me um "bom pensamento" que tem como conseqüência uma decisão importante, que se pode comprovar também intramundanamente e que é objetivamente correta. Passo a considerar este bom pensamento como iluminação de Deus. Será que posso fazê-lo? Posso ser levado a fazer tal juízo em virtude do caráter repentino ou da impossibilidade de encontrar explicação causal ou funcional para o surgimento deste bom pensamento; mas meu juízo no fundo não se justifica por tal impressão subjetiva. Pelo contrário, tenho o direito e até o dever de explicar o surgimento deste pensamento, buscando reconduzi-lo a associações que me sejam inconscientes, a uma estrutura fisiológica e psicológica talvez não analisável neste momento, considerá-lo como função do meu eu, de minha história, do meu meio ambiente e das relações com os outros, do mundo simplesmente. Posso portanto explicá-lo, ou seja, inseri-lo com todas as peculiaridades concretas e singulares que o caracterizam no todo do mundo que não é Deus. E, em conseqüência, neste sentido posso não captar neste "bom pensamento" nenhuma presença especial de Deus no mundo, nenhuma "intervenção" de Deus no mundo. 111
No momento porém, em que eu, por um lado, me percebo e me aceito como sujeito transcendental em minha referência a Deus, e, por outro, aceito esse mundo concreto em toda a sua concretude, e, apesar de toda interconexão funcional de todos os seus elementos, o aceito como o mundo concreto em que minha relação concreta com o fundamento absoluto de minha existência se desenvolve historicamente para mim e a realizo na liberdade, então dentro dessa relação subjetiva e transcendental para com Deus este "bom pensamento" adquire objetivamente significado bem definido e positivo, de tal sorte que posso e devo dizer: Deus o quer em seu significado positivo como momento do mundo uno estabelecido em liberdade por seu fundamento como o mundo de minha relação subjetiva para com Deus, e neste sentido constitui uma "iluminação" de Deus. É claro que, a partir disso, poder-se-ia objetar que desta forma tudo poderia vir a ser considerado como especial providência e intervenção de Deus, pressupondo-se apenas que eu aceite a constelação concreta de minha vida e do mundo de tal modo que ela se torne concretização positivamente salvífica da minha relação transcendental para com Deus na liberdade. Mas a esta objeção podemos responder simplesmente com a contrapergunta: e por que não poderia ser assim? Quando e à medida que alguma coisa, não só na teoria mas na realização concreta da liberdade, se insere positivamente na livre relação para com Deus como objetivação e mediação desta, torna-se de fato inspiração, ato, por pequeno que seja, da providência de Deus, como costumamos dizer em linguagem religiosa, trata-se de intervenção especial de Deus. Mas esta minha reação de fato subjetiva e correta na liberdade a essa ou àquela constelação, em si funcionalmente explicável, do campo de minha liberdade, que medeia concretamente minha relação para com Deus, depende, a despeito da natureza subjetiva de minha própria decisão e reação, de fatores que podem ser favoráveis ou desfavoráveis e que todavia nessa sua diversidade não estão pura e simplesmente sujeitos a meu bel-dispor. Mas, neste sentido, podemos e devemos com razão considerar determinada situação particular que coopera para o bem salvífico - enquanto distinta de outra situação, que poderia ser mas não é salvífica - como na verdade providência especial de Deus, como intervenção dele, como atendimento favorável de sua parte, como graça especial, ainda que a situação oposta, manipulada pela 112
liberdade do homem mediante resposta correta, pudesse vir a se transformar em semelhante ato especial de Deus, mas de fato não veio a sê-lo. Porque a própria reação como tal do sujeito na liberdade é por sua vez real e verdadeiramente para o sujeito mesmo algo que lhe é dado, sem que com isto perca o caráter de ação própria e responsável do sujeito, a boa decisão, com tudo o que ela pressupõe como sua mediação, reveste-se com razão do caráter de intervenção de Deus, embora isto ocorra na e através da liberdade humana, e em conseqüência, possa explicarse funcionalmente à medida que a história da liberdade o pode ser, ou seja, à medida que ela se constrói e se baseia em elementos objetivos no espaço e no tempo.
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TERCEIRA SEÇÃO
O HOMEM COMO SER RADICALMENTE AMEAÇADO PELA CULPA
1. O TEMA E SUAS DIFICULDADES
Culpa e pecado constituem, sem dúvida, tema central no cristianismo. Pois o cristianismo entende-se como religião portadora de redenção, como o evento do perdão da culpa pelo próprio beus em seu agir em nosso favor em Jesus Cristo,. em sua morte e ressurreição. O cristianismo entende que o homem é um ser cuja ação livre culposa não é "negócio privado" dele, de que o próprio homem pudesse depois de perpetrada a culpa purificarse por próprio poder e força. Pelo contrário, pecado e culp~, apesar de o homem ser responsável por seu pecado e culpa em virtude de sua livre subjetividade -, uma vez cometidos, só se podem realmente superar por açãode DetJ~. Neste sentido, seria falha qualquer introdução ao conceito de cristianismo que não tratasse da culpa e perdição do homem, da necessidade de libertação de um mal radical, da redenção e da necessidade da redenção. Ao usarmos conceitos tais como "necessidade de redenção", "redenção", "salvação", "libertação do mal" e semelhantes, convém não começar estabelecendo seqüência cronológica entre estes conceitos. Se podemos cair ou caímos no pecado, se a redenção é "dimensão existencial" em nossa vida ou processo que se possa localizar cronologicamente depois de outro processo, a saber, o do pecado, tudo isto são questões afinal secundárias. Deveremos sempre voltar a dizer que não podemos interpretar cristãmente este mundo dizendo que outrora existiu um mundo mau e onerado pela culpa e pecado, mas que se teria tornado essencialmenk diferente de forma empiricamente palpável em virtude da redenção operada por Jesus Cristo. Ao falarmos da culpa e do pecado do homem, do seu estado de perdição, da necessi114
dade de libertação do mal, da necessidade da redenção e da própria redenção, que se diga de início, pelo menos metodicamente, que não se deve vincular de antemão estes conceitos entre si em seqüência cronológica.
A obscwjeus em estãd9 -,ie-que por ~i ~t!~r11os. Não têm consciência clara de que sejam dignos de condenação, de que contudo são salvos pelo incalculável milagre do perdão de Deus, sendo aceitos por Deus somente por sua graça imerecida. Assim pensou e sentiu Lutero, assim pensou e sentiu Pascal de maneira direta e imediata. Não podemos dizer que nós ainda continuemos a sentir assim de maneira imediata. As modernas ciências do social dispõem de milhares de meios e métodos para "desmascarar" o sentimento de culpa do homem perante Deus e destruí-lo como se fosse falso tabu. Na verdade as pessoas hoje em dia não alimentam urna im~ pressão particularm,~Ilte posiüva -com respeito às suas p:róprÍas disppsições morais e à,s dos outr:Q.~. Também no campo das normas morais fazem a experiência de toda a sua finitude, fragilidade e obscuridade. Mas podem, se quiserem, considerar mui-
déculpa-epecado,
nãÕ-se-possamfü,ertar
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tíssimas normas morais como condicionadas e mediadas pela sociedade, como tabus que é mister perceber como tais e deles se libertar. Contudo não ocorre que com isto desapareça a experiência da moralidade como tal. Não se faz mister denominar o que se rejeita de moralidade, nem subsumi-lo sob o conceito de moral burguesa. Mas não se pode negar que o homem seja responsável, que esteja entregue a si mesmo, que pelo menos eni certas dimensões de sua existência ele faça a experiência de poder vir a entrar e de fato entrar em conflito consigo mesmo e com sua original autocompreensão. Até a pessoa que combatesse todas essas experiências como algo que apenas mergulha as pessoas na ansiedade neurótica, fá-lo-ia uma vez mais com ardor de algo que afinal ela acha que deve fazer. Portanto, por necessidade transcendental o homem.é ser moral. É perante esta realidade exigente, -como que "tábua de leis" de sua existência, que o homem vivencia sua finitude, fragilidade e obscuridade. Mas qual é o resultado desta diferença, continuamente experimentada, entre o que o homem deve ser e o que ele realmente é? Na verdade o homem tem experimentado o mal em dimensões apocalípticas no mundo, e, apetrechado com o olhar agudo do psicólogo, do psicoanalista e do sociólogo, não confia sequer em si mesmo. Mas precisamente por causa dessa atitude cética e sóbria ele não mais demonstra em face do bem e do mal o mesmo ardor com que se costumava pregar a mensagem do pecado e do perdão. Enxerga o que chamamos de culpa como parte das misérias e absurdos universais que envolvem a existência humana, diante dos quais o homem não é sujeito, mas objeto, e isto tanto mais quanto a biologia, a psicologia e a sociologia pesquisam as causas do assim chamado mal moral. E por essa razão o homem de hoje está marcado antes pela impressão de que Deus é quem deve justificàrse perante-o tribunal do homem por caúsa do infeliz estado-em que se encontra o mundo, que o homem é antes vítima do qiji causa da condição em que se acham o mundo e a história do gênero humano. Isto é verdade até quando o sofrimento parece ser causado de fato pelo homem enquanto sujeito livre, mas este sujeito urna vez mais é pensado corno sendo o produto de sua natureza e de sua situação social. Portanto, o homem hoje tem antes a impressão de que é Deus quem deve justificar-se, e não que o próprio homem seja injusto e tenha que ser justificado por ação de Deus e perante
essa
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Deus. Isto significa também que a morte, quando ainda se lhe reconhece sentido exi~tencial e religioso sério, dificilmente se veja, se é que se vê, como o momento em que a condição boa ou má do indivíduo, condição pela qual ele jamais pode negar ser responsável, venha inexoravelmente à luz. Não se entende l:!, !l:lqrte como julgamento, mas ou como o momento em que toda a confusão_ da vida humana venha a se resolve}'. definitivament~. ou como o ponto final e nu da manifestação do· absurdo da exis-:tência, para o qual _não existe nenhuma solução. Mas no fundo a dificuldade, que acabamos de descrever e é típica de nossa época, não pode senão ser desafio para que a pessoa desconfie seriamente de seus próprios sentimentos, de que em média participa com os outros seus coetâneos, sentimentos que por certo não são critérios por si mesmos evidentes para tudo, e para que se confronte com a mensagem do cristianismo acerca do homem como pecador e se pergunte a si própria se essa mensagem não está dizendo em última análise algo que ela, pretextando falsa inocência, não está ouvindo, ainda que devesse estar ouvindo no núcleo mais profundo de sua existência. e na sua consciência. E também não se obvia à fuga para falsa inocência com refugiar-se na idéia de que tudo na existência afinal é absurdo, ou com interpretar todas essas situações de opressão e alienação como sinais da fricção no processo de evolução que no fundo ainda se acha no movimento de marcha ascendente. Devemos pelo menos estar abertos para a possibilidade de que a mensagem do cristianismo contenha pelo menos tanta verdade acerca da compreensão humana da existência quanta se pode perceber ouvindo apenas à voz da própria consciência ou à voz de uma interpretação epocal.
O círculo entre a experiência da culpa e a experiência do perdão Mas, além desta dificuldade própria de nossa época, existe problemática mais fundamental, a saber, se o tema deve ser tra..: tado a esta altura de nossa reflexão. Poder-se-ia dizer que não é possível compreender a verdadeira natureza da culpa enquanto não se tiver tratado da absoluta e indulgente proximidade de Deus em sua autocomunicação; ou que a verdade genuína da culpa de uma pessoa só pode surgir para ela após experimentar o perdão e a libertação dessa culpa. Pois somente em radical par117
ceria com Deus em imediata proximidade para com ele - a que chamamos graça ou autocomunicação de Deus - é que a pessoa pode perceber e avaliar o que seja sua culpa: fechar-se a essa oferta da absoluta autocomunicação de Deus. Só no processar do perdão, a que a pessoa se abre e acolhe, é que ela pode entender o que seja a culpa que está sendo perdoada, já que é parte da culpa o fato de a punição, que traz consigo, consistir precisamente em cegar para seu próprio ser desnaturado. Com respeito a essa dificuldade básica, devemos dizer que persiste círculo indissolúvel entre a experiência da culpa e a exdo perdão. E 'ambas as realidades interdependem qúando se trata de chegar ao seu pleno ser e à sua plena compreensão. A culpa apresenta radicalidade última por ocorrer em face de um Deus que ama e se autocómunica, e somente qµªI)do a pessoa está informada sobre isto e assimila esta verdacl~ é que está em condições de entender os abismos em que a lança a culpa. Neste sentido, subsiste entre ambos, a culpa e o perdão, um círculo, de tal sorte que mutuamente se iluminam e se dão a entender. Mas por que temos de tratar dos momentos que mu: tuamente se condicionam neste círculo em seqüência cronológica, temos de falar deles um depois do outro, muito embora saibamos que só teremos entendido corretamente o primeiro momento após discutirmos o segundo. E uma possível seqüência é falar primeiro da culpa e depois do perdão.
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2. LIBERDADE E RESPONSABILIDADE DO HOMEM
A liberdade e a responsabilidade do homem integra os ~xis- _ tendais da vida humana. A natureza básica dessa liberdade porque-se insere no pólo subjetivo da experiência humana e não no seio dos dados categoriais - não consiste em ser faculdade particular do homem ao lado de outras, pela qual ele possa fazer ou deixar de fazer isto ou aquilo em escolha arbitrária. Pensando assim, estaríamos apenas interpretando de maneira demasiado fácil a nossa liberdade a partir de compreensão pseudoempírica dela. Mas, na realidade, a liberdade é antes de tudo o estar entregue do sujeito a si próprio, de tal sorte que a liberdade em seu ser fundamental tem que ver com o sujeito como tal e como todo. Na liberdade genuma, o sujeito sempre visa a si mesmo, compreende-se a si mesmo e posiciona-se a si mesmo. Em última análise, ele não faz algo, mas se faz a si mesmo. 118
A liberdade refere-se ao todo uno da existência humana Com isso estão dadas duas coisas. Por um lado, a liberdade refere-se ao todo uno da existência humana, ainda que este todo uno se exerça na extensão espacial e duração temporal. A liberdade, enquanto faculdade de o sujeito decidir sobre si próprio corno todo e uno, não é evidentemente faculdade que se situe por detrás da temporalidade meramente física, biológica, exterior e histórica do sujeito. Esta seria concepção gnóstica da liberdade, e existe motivo muito profundo e objetivo para este erro. Mesmo um espírito tão profundo e um cristão tão decidido do porte de Orígenes cedeu em parte a esta tentação e entendeu esta nossa vida concreta histórica como reflexo mau e secundário da liberdade que se afirmou e decidiu realmente sobre si própria pré-historicamente e em âmbito inteiramente diferente e pré-corpóreo. A_ liberdade é a capacidade de o sujeito UIJO cl_eddic~.Ql?.re stpróprio corno todo uno. Não pode simplesmente ser dividida em partes. Não é a faculdade neutra que ora faz isto e ora faz aquilo. Mas, não obstante, enquanto liberdade do sujeito com referência a si mesmo, sobre si mesmo e a partir de si mesmo corno todo uno, essa liberdade não é liberdade que se exerça por detrás da temporalidade meramente física, biológica, exterior e histórica do sujeito. Pelo contrário, ela se exerce corno tal liberdade subjetiva numa p_assagem pela temporalidade que própria liberdade estabelece para poder ser ela mesma. É claro que essa concepção da liberdade é muito mais matizada e complexa, muito menos clara do que a concepção primitiva e categorial da liberdade pensada corno a capacidade de fazer isto ou aquilo arbitrariamente. E é também mais complexa e mais difícil de entender do que a concepção gnóstica da liberdade. Mas ocorre que, numa genuína antropologia ontológica, o que é verdadeiro não é o que é menos complexo e menos difícil, o que se possa perceber como radicalmente claro em sua identidade e unidade. A liberdade é liberdade na e através da história no espaço e no tempo, e precisamente aí e desta forma é a liberdade do sujeito com relação a si mesmo. A unidade da realização una da existência na liberdade não é dado setorial de nossa experiência que se possa identificar empírica e categorialmente. Essa unidade, e, em conseqüência, a verdadeira natureza da liberdade subjetiva, precede aos atos e
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eventos singulares da vida humana como condição de sua possibilidade, da mesma forma que a subjetividade do homem não é a mera soma subseqüente das realidades singulares humanas de natureza empírica. A liberdade, portanto, não é a capacidade de fazer isto ou aquilo, permanecendo neutra a capacidade mesma, de tal sorte que os resultados desses atos individuais fossem enfeixados entre si subseqüentemente, uma vez que eles, em si passados, continuariam a existir somente na contagem de Deus e do homem e assim viriam a ser atribuídos à liberdade uma vez mais subseqüentemente. A liberdade não é como uma faca que sempre permanece a mesma em sua capacidade de cortar, e ao cortar sempre permanece a mesma faca. Muito embora exista no tempo e na história, a liberdade possui um único ato,· ou se~ ja, a auto-realização do próprio sujeito individual, auto-realiza- . ção que sempre e em toda parte deve ser mediada objetivamente por atos singulares realizados no mundo e na história, mas que no entanto visa uma só coisa e uma só coisa realiza: o sujei~-to uno na totalidade singular de sua história.
A liberdade como a f acuidade de realizar o que é definitivo Existe ainda outro equívoco que penetra no campo das idéias religiosas e acarreta falsos problemas: a liberdade não é a faculdade de fazer isto e depois fazer aquilo, de tal sorte que a segunda alternativa seja o oposto como que a desmanchar a pri:_ meira, de maneira tal que - se tal processo continuasse em tempo físico não interrompido por si mesmo - sua realização pudesse somente ser entendida como interrupção extrínseca dessa série de atos singulares, assim chamados atos livres, uma série que por si se estendesse ao infinito e apenas seria interrompida pelo fato de o campo para essa liberdade em eterno andamento e devir ser-lhe retirado extrinsecamente por Deus na morte. Mas a liberdade não é a capacidade de continuar eternamente em um processo eternamente novo de dispor e redispor. Pelo contrário, a liberdade comporta em si uma necessidade que . não se encontra no que é fisicamente necessário no sentido usual do termo, porque ela é a faculdade da subjetividade, ou seja, do sujeito que não é um ponto acidental de intersecção em uma cadeia de causas que se estenda indefinidamente para frente e para trás, mas, pelo contrário, é que não pode ser derivado. Por isso a liberdade não é a capacidade de fazer algo que sempre 120
possa ser revisado, mas. é a capacidade de fazer algo de final e definitivo. É a faculdade de um sujeito que por essa liberdade deve atingir ·-sua identidade e irrevogável_. Neste sentido e ----·-·-----.. -· .. ···--···--·.. . .... final .. a partir daí, a liberdade é a faculdade do e.terno. Se quisermos saber o que é a definitividade, deveremos fazer a experiência daquela liberdade transcendental que é realmente eterna, porque estabelece precisamente o definitivo, definitivo que por sua própria natureza não pode mais nem quer mais ser diferente. A liberdade não existe para que tudo possa continuamente . tornar-se outra coisa, mas -antes para que possa tornar-se ieai.mente válido e irradicável. A liberdade é, de certa forma, __ sempre a síntese não mais adequadamente dissolúvel reflexamente da liberdade origin!iria _e da necessidade _imposta e aceita. Em conseqüência, o sujeito, em sua experiência originária transcendental subjetiva, com certeza sabe quem ele é, mas jamais pode objetivar esse seu saber originário em saber determinado tematicamente expresso em urna afirmação, que seja absolutamente certa, para dizer-se a si mesmo e para julgar quem e o que se tornou através da mediação concreta de seus atos categoriais. 122
O sujeito livre já está sempre junto de si e presente a si mesmo na sua liberdade e, ao mesmo tempo, subtraí.do a si mesmo na sua liberdade por força dos fatores objetivos pelos quais neces~ sariamente ele precisa ser mediado para si mesmo. 3. A POSSIBILIDADE DE DECIDIR CONTRA DEUS
Em nossas reflexões acerca da natureza da liberdade subjetiva interessa-nos entender que a liberdade de dispor de si é liberdade que se refere ao sujeito como todo, liberdade para construir o definitivo, e liberdade que se exerce em livre e absoluto "sim" ou "não" ao Aonde e Donde da transcendência, que chamamos "Deus". E somente a esta altura é que nos aproximamos - à medida que afinal é possível em uma cônsfüerá.ção de cunho mais filosófico-antropológico - do que significa a culpa em sentido teológico, ·
Afirmação ou negação atemática de Deus em todo ato livre Liberdade ou subjetividade, que é o "objeto" da própria liberdade, liberdade para algo de validade definitiva e liberdade, por ou contra Deus são estreitamente conexas entre si. Pois a transcendência para a presença distante do mistério absoluto que se oferta a nós é a condição que possibilita a subjetividade e a liberdade. Porque este horizonte de absoluta transcendentalidade, que chamamos "Deus", é o Donde e o Aonde de nosso movimento espiritual, é que somos afinal sujeitos e, assim sendo, livres. Pois em toda parte onde tal horizonte infinito não existe, o ente respectivo é já por isso intrinsecamente limitado e prisioneiro de si mesmo, sem que o saiba expressamente, e, por esta razão, também não é livre. · Ora, é decisivo para nós que essa liberdade, enq11_anto "sim" ou "não", implica liberdade em confronto com seu próprio horizonte. É claro que a liberdade, que é mediada de maneira humana, histórica e objetiva e na personalidade concreta, sempre é também liberdade com referência a um obktQ c_atego_rial. À liberdade se exerce através da mediação do mundo do outro e sobretudo através da pessoa do outro, mesmo quando ela pretende ser liberdade direta e tematicamente exercida com referência a Deus. Mesmo no ato deste "sim" ou "não" temático__ ~Deus, 123
este "sim" não se refere imediatamente ao Deus da experiência originária e transcendental, mas ao Deus da reflexão temática e categorial, a um Deus em conceitos, ou até talvez somente a um Deus em falsos deuses, mas não imediata e exclusivamente ao Deus da presença transcendental. Uma vez, porém, que em todo ato da liberdade que se ocupa categorialmente com determinado objeto, com determinada pessoa, está sempre dada, como condição da possibilidade desse ato, a transcendência para o absoluto Aonde e Donde de todos os nossos atos espirituais - e, portanto, para o próprio Deus -, em todo ato deste tipo pode e deve existir um "sim" ou um _ "não" atemático dito a este Deus da experiência transcendental originária. A subjetividade e liberdade implica que tal liberdade não existe só com referência ao objeto da experiência categorial dentro do horizonte absoluto de Deus, mas que ela é também - ainda que sempre de forma mediada - liberdade que na realidade se decide perante Deus e com referência a ele. Neste sentido, encontramo-nos radicalmente em toda parte com Deus __ _ como questão dirigida à nossa liberdade, encontramo-nos com ele de maneira implícita, atemática, não-objetivada e não-expressa em todas as coisas do mundo, e, em conseqüência, sobretudo i:J.o próximo. Isto não exclui a necessidade de tematização. Mas esta não nos oferece a relação para com Deus em nossa liberdade originariamente, mas antes torna temática e objetiva a referência de nossa liberdade a Deus, que está dada conjuntamente com a essência originária do sujeito como tal.
O horizonte da liberdade como o seu "objeto" Agora, por que o horizonte transcendental de nossa liberdade não é somente a condição da possibilidade da liberdade, mas também o seu "objeto" propriamente dito? Por que na liberdade não temos que nos ver somente conosco mesmos, por que não temos que nos ver somente com o mundo de nossas relações com as coisas e com as pessoas com que convivemos, quer de forma objetivamente correta, quer de forma destrutiva da realidade, sob aquele horizonte infinitamente amplo da transcendência, a partir do qual nos confrontamos livremente conosco mesmos, com o mundo das coisas e com o mundo de nossas relações pessoais? Por que, além disso, este horizonte é também "objeto" dessa liberdade no "sim" ou "não" a ele? Neste últi124
mo caso, este horizonte é por definição uma vez mais a condição de possibilidade para o próprio "não" dito a si mesmo, podendo, em conseqüência, este horizonte ser ao mesmo tempo afirmado necessária e inevitavelmente como a condição de possibilidade para a liberdade e também negado como "objeto" atemático. Conseqüentemente, o ato em que a liberdade diz "não" é habitado por uma contradição real e absoluta pelo fato de Deus ~ir éÚ negado e afirmado ao mesmo tempo. Como é possível que esta monstruosidade extrema venha a ser subtraída a seus próprios olhos e ao mesmo tempo relativizada no tempo, enquanto tal realização da própria identidade pessoal no "sim" ou no "não" a Deus é necessariamente objetivada no material finito de nossa vida e em sua extensão temporal e objetiva e é mediada por tal material? Eis a questão.
A possibilidade da contradição absoluta Devemos afirmar a real possibilidade dessa contradição na liberdade. É claro que pode vir a ser contestada e dela se pode" duvidar. Essa contestação e dúvida ocorrem na teologia vulgar da vida cotidiana sempre que se diz que é inconcebível qualquer outra posição a não ser que o Deus infinito em sua realidade soberana só poderia avaliar o pequeno desvio de uma realidade finita ou a ofensa contra uma estrutura essencial concreta meramente finita como eles, o desvio e a ofensa simplesmente são, ou seja, como finitos. A "vontade" contra a qual tal pecado realmente seria ofensa seria apenas a realidade finita querida por Deus, e uma ofensa contra a vontade de Deus que ultrapassasse este nível transformaria de maneira errônea a vontade de Deus em realidade singular e categorial ao lado das coisas que ele quer. Vendo as coisas desde este ponto de vista, onde encontraríamos realmente aquela radical seriedade que a fé cristã reconhece pelo menos para a existência humana tomada em sua totalidade? Contudo, nessas ações livres, feitas no interior da realidade categorial de nossa experiência, que contradizem à estrutura essencial dessa realidade que existe dentro do horizonte da transcendência, há a possibilidade de ofensa contra o último Aonde dessa transcendência mesma. Se não houvesse esta possibilidade, no fundo não poderíamos sequer falar de subjetividade real da liberdade, que se caracteriza pelo fato de ela se referir ao próprio sujeito e não a esta ou àquela coisa. Se a liberdade se refere 125
ao .sujeito enquanto este é transcendentalidade, se os entes singulares, que encontramos no horizonte da transcendência, não são eventos dentro de espaço que permaneça intocado pelo que está dentro do espaço, se, pelo contrário, estas realidades concretas são a concretude histórica da transcendência pela qual nossa subjetividade é movida, então a liberdade com referência aos entes singulares que nos vêm ao encontro sempre é também liberdade com referência ao horizonte, ao fundamento e abismo que permitem que estas realidades se tornem momento intrínseco de nossa liberdade.
A liberdade de dizer "sim" ou "não" a Deus Na medida e pelo motivo pelos quais o Aonde e Donde çlé:!_ transcendência não pode ser indiferente ao sujeito enquanto co:___ nhece, na mesma medida e pelo mesmo motivo também a libe_rdade tem originária e inevitavelmente a ver com Deus. A liberdade é iiberdade do "sim" ou do "não" a Deus e aí e por aí liberdade para consigo mesma. Se o sujeito é movido e animado por sua proximidade transcendental imediata para com Deus, então liberdade realmente subjetiva que dispõe do sujeito como um todo para fazer dele algo de definitivo somente pode ocorrer no "sim" ou "não" a Deus, porque somente a partir daí é que o sujeito como todo e como tal pode afinal ser atingido. Liberdade é liberdade do sujeito com referência a si próprio para sua construção definitiva, e, assim sendo, libérdade que se fere a Deus, por pouco temático possa ser este fundamento da liberdade em um ato singular de liberdade, e por mais temática e explicitamente que este Deus, com quem tem que ver nossa liberdade, possa ser como que invocado e colimado em palavras e conceitos humanos. A isto acresce segundo aspecto que aqui só podemos indicar à maneira de antecipação: se a concretude histórica de nossa transcendência na.graça implica mais do que até o momento dissemos, se ela consiste na oferta da autocomunicação de Deus a nós e na absoluta proximidade do mistério santo enquanto comunica e não se recusa a si mesmo, então a liberdade na trãiis; -cendência e no seu "sim" ou "não" ao seu fundamento recebe proximidade direta para com l)eus, pela qual ela se torna, da forma mais radical, capacidade de dizer "sim" ou_ "não" a l;)_ç!us, de maneira que ainda não estaria dada com o conceito formal
ie;-
se
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e abstrato da transcendência para Deus como apenas o horizonte, longínquo e frio, da realização da existência, e que em conseqüência também não precisa ser deduzido somente deste horizonte como que meramente ausente de nossa transcendência. Como ser de liberdade, o homem pode, portanto, negar-se a si mesmo de tal maneira que com toda verdade diga "não" ao próprio Deus. Dizemos: ao próprio Deus, e não a uma imagem distorcida e infantil de Deus. Ao próprio Deus, e não somente a uma norma qualquer intramundana do agir que com ou sem razão consideramos ser "lei de Deus". Semelhante "não" a Deus é, de acordo com a natureza da liberdade, originária e primariamente, um "não" dito a Deus no exercício e realização unitários e totais da existência do homem na sua liberdaçle una e singular. Semelhante "não" dito a Deus não é originariamente_-ªP~mas_ a J:I1CIª§OIPª_!l1oral gue obtemos somando as ªçôes singulares boas ou más, quer tratemos todas essas ações como tendo igual valor, quer creiamos que nessa soma o que importa é o último ato cronológico de nossas vidas, como se este fosse de absoluta importância somente porque é cronologicamente o último e não porque e enquanto recapitula em si o ato de liberdade de toda uma vida em sua totalidade e unidade. O caráter oculto da decisão Uma vez que a liberdade é o conteúdo de experiência subjetiva e transcendental e I!ão dado que possa vir a ser isolado em nosso mundo objetivo eempírico, em nossa existência individual jamais podemos apontar com certeza determinado ponto de nossas vidas e dizer: aqui precisamente e não em outro . lugar ocorreu um "sim" ou um "não" realmente radical a Deus. Todavia, ainda que não possamos fazer isso, porque não estamos em condições de objetivar a liberdade originária, transcendental e subjetiva, sabemos que o todo da vida do sujeito livre é inevitavelmente resposta à questã_Qna qual Deus se nos apresenta como o Donde da transcendência. E sabemos que tal resposta pode ser também um "não" radical a este mistério santo e silencioso, presente-ausente, que se quer dar a nós em proximidade absoluta através da graça. Mas a peculiaridade dessa presença transcendental de Deus como aquilo de que se ocupa a liberdade permite compreender que este "não" pode acontecer escondido em algo de muito simples, numa situação em que al127
go de muito insignificante no mundo medeia essa relação para com Deus. Em certas circunstâncias é possível que nada esteja escondido sob aparentemente o maior dos crimes, porque ele pode não passar de fenômeno de situação pré-pessoal, enquanto por detrás da fachada de respeitabilidade burguesa pode esconder-se um "não" final, amargo e desesperado dito a Deus, um "não" realmente dito subjetivamente a Deus e não apenas sofrido passivamente.
O ''sim" e o "não" não possuem igual valor É claro que o "não" da liberdade com relação a Deus, visto ser ele animado e movido na transcendência por um sim transcendentalmente necessário a Deus e de outra forma não poderia existir - e, portanto, significa livre autodestruição do sujeito e contraditoriedade interna do seu ato -, nunca se pode entender como possibilidade da liberdade ontológico-existencial igual à do "sim" dito a Deus. O ..n&o" ê uma possibilid_~d-~__ da liberdade, mas se trata de possibilidade da liberdade que ao mes-mo tempo sempre representa algo de falho, descarrilado, malogrado, algo que, por assim dizer, é autodestrutivo e autocontraditório. Semelhante "não" pode dar a impressão de que o sujeito se afirma de maneira realmente radical somente através dele. Esta impressão pode provir do fato de o sujeito estabelecer livremente como absoluto uma finalidade categorial, e passar depois a tudo medir absolutamente segundo este critério, em vez de se entregar incondicionalmente ao mistério santo e inefável, sobre o qual nós não mais dispomos e que dispõe incondicionalmente de nós. Mas semelhante "não", por mais que possa ter a aparência de ação absoluta, por mais que, considerado categorialmente, possa representar melhor do que o "sim" a Deus essa absolutez de uma decisão, nem por isso possui o mesmo direito e o mesmo valor do sim dito a Deus, porque todo "não" sempre toma emprestada do "sim" a vida que possui, porque o "não" só se pode entender a partir do "sim" e não o contrário. Também a possibilidade transcendental do «não" d1t liberdade vive de todo ''shn" necessárjQ; todo conhecer e todo agir livre vive daquele Aonde e Donde da transcendência. Contudo devemos deixar que este "não" comporte semelhante impossibilidade e contraditoriedade real em si: que este "não", fechandose, diga realmente "não" ao horizonte transcendental da nossa liberdade e, assim fazendo, viva de um "sim" dito a este Deus. 128
Sobre a interpretação das afirmações escatológicas
Com isso é claro que não explicamos a possibilidade de um "não" subjetivo radical e definitivo contra Deus. Devemos admitir esta possibilidade como "mistério çlª iniqijjg.acle". Na singularidade mais radical e existencial, que é ele próprio, o homem tem de contar com o fato de que este mistério da iniqüidade não é somente uma possibilid_ade para ele, mas que Jé:!!!12.~1-!1 se torna uma realidaqe, e na verdade não enquanto uma potência misteriosa e impessoal irrompe em sua vida como destino deletério. Pelo contrário, essa possibilidade de um "não" ao próprio Deus pode tornar-se realidade nele no sentido de q1.1~_S!