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Portuguese Pages [626] Year 2017
CRIMINOLOGIAS ALTERNATIVAS Organizadores Pat Carlen Leandro Ayres França
Um projeto do grupo de pesquisa
CRIMINOLOGIAS ALTERNATIVAS Organizadores Pat Carlen Leandro Ayres França
Um projeto do grupo de pesquisa
© 2017 - Editora Canal Ciências Criminais Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.
Direção Editorial Bernardo de Azevedo e Souza Conselho Editorial André Peixoto de Souza Diógenes V. Hassan Ribeiro Fábio da Silva Bozza Fauzi Hassan Choukr Fernanda Ravazzano Baqueiro Maiquel A. Dezordi Wermuth Organização Pat Carlen Leandro Ayres França Capa Marcel Trindade Diagramação Caroline Joanello Impressão e acabamento Gráfica Evangraf Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C929
Criminologias alternativas / organizado por Pat Carlen e Leandro Ayres França. – Porto Alegre : Canal Ciências Criminais, 2017. 624 p. ISBN 978-85-92712-12-9 1. Direito Penal. 2. Criminologia. 3. Sociologia Criminal. 4. Política Criminal. I. Carlen, Pat. II. França, Leandro Ayres. III. Título.
CDD 341.59 Bibliotecária Responsável: Elisete Sales de Souza (CRB 10/1441)
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SUMÁRIO
Autores...........................................................................................................5 Prefácio...........................................................................................................17 Criminologias alternativas Pat Carlen.......................................................................................................19 Criminologia cultural continuada Jeff Ferrell e Keith Hayward.............................................................................35 Criminologias do mercado Elliott Currie....................................................................................................55 A economia política da pena Alessandro De Giorgi........................................................................................75 Governando através do crime Jonathan Simon e Giane Silvestre....................................................................93 Criminologia e consumo Simon Winlow e Steve Hall..............................................................................113 Criminologias feministas Kerry Carrington..............................................................................................133 Criminologias queer Clara Moura Masier.........................................................................................153 A política da sexualidade Jo Phoenix.......................................................................................................167 Criminologia da mobilidade Sharon Pickering, Mary Bosworth e Katja Franco.............................................185 Criminologias verdes Reece Walters...................................................................................................201 Cibercriminologias Leandro Ayres França......................................................................................221 Penas imaginárias Pat Carlen.......................................................................................................245
Drogas Pablo Ornelas Rosa..........................................................................................259 Criminologia e neurociências Paulo César Busato..........................................................................................271 Crime e mídia Eamonn Carabine............................................................................................285 Crime e risco Pat O’Malley....................................................................................................305 O processo criminal de graves crimes de colarinho branco Michael Levi.....................................................................................................325 Crimes de ódio Stevie-Jade Hardy e Neil Chakraborti...............................................................345 Criminologia e terrorismo Gabe Mythen...................................................................................................365 A violência contra as mulheres Nicole Westmarland.........................................................................................381 Atrocidade Susanne Karstedt.............................................................................................401 Crimes contra a humanidade e crimes de guerra José Carlos Portella Junior...............................................................................433 O desafio do crime de estado Penny Green....................................................................................................451 Polícia, política e democracia Pedro Rodolfo Bodê de Moraes e Marcelo Bordin...............................................469 Encarceramento em massa David Brown....................................................................................................495 A reinserção do prisioneiro como mito e cerimônia Loïc Wacquant.................................................................................................519 Para a erradicação global da pena de morte Roger Hood e Carolyn Hoyle.............................................................................537 Instituição peculiar: a pena de morte hoje nos Estados Unidos David Garland.................................................................................................561 Desistência Hannah Graham e Fergus McNeill....................................................................573 Criminologias alternativas, mercados acadêmicos e corporativismo nas universidades Pat Carlen e Jo Phoenix...................................................................................595
AUTORES
ALESSANDRO DE GIORGI
San José State University Capítulo neste livro: A Economia Política da Pena Outras publicações: Zero Tolleranza: Strategie e Pratiche della Società di Controllo (2000), Il Governo dell’Eccedenza: Postfordismo e Controllo della Moltitudine (2002), Tolerancia Cero: Estrategias y Pràcticas de la Sociedad de Control (2005), Traiettorie del Controllo: Note sull’Economia Politica della Pena (2005), A Miséria Governada através do Sistema Penal (2006), El Gobierno de la Excedencia: Postfordismo y Control de la Multitud (2006), Re-thinking the Political Economy of Punishment: Perspectives on post-Fordism and Penal Politics (2006), Cinco Teses sobre o Encarceramento em Massa (2016). CAROLYN HOYLE
University of Oxford Capítulo neste livro: Para a Erradicação Global da Pena de Morte: um Cruel, Desumano e Degradante Castigo Outras publicações: Negotiating Domestic Violence: Police, Criminal Justice and Victims (1998), New Visions of Crime Victims (com Richard Young, 2002), Restorative Justice (2009), Debating Restorative Justice (com Chris Cunneen 2010), What is Criminology? (com Mary Bosworth, 2011), The Death Penalty: A Worldwide Perspective - 5th Ed. (com Roger Hood, 2015), Changing Contours of Criminal Justice (com Mary Bosworth, 2016). CLARA MOURA MASIERO
Unisinos Capítulo neste livro: Criminologias Queer Outras publicações: O Movimento LGBT e a Homofobia: Novas Perspectivas de Políticas Sociais e Criminais (2014). DAVID BROWN
The University of New South Wales, Sydney Capítulo neste livro: Encarceramento em Massa Outras publicações: Prisoners as Citizens (com Meredith Wilkie, 2002), The New 5
Punitiveness: Trends, theories, perspectives (com John Pratt, Mark Brown, Simon Hallsworth e Wayne Morrison, 2005), Penal Culture and Hyperincarceration: The Revival of the Prison (com Alex Steel, Chris Cunneen, Eileen Baldry, Mark Brown e Melanie Schwartz, 2013), Criminal Laws: Materials and Commentary on Criminal Law and Process in NSW (com David Farrier, Donna Spears, Luke McNamara, Michael Grewcock e Sandra Egger, 6ª Ed. 2015), Justice Reinvestment: Winding Back Imprisonment (com Chris Cunneen e Melanie Schwartz, 2016). DAVID GARLAND
New York University Capítulo neste livro: Instituição Peculiar: A Pena de Morte Hoje nos Estados Unidos Outras publicações: The Power to Punish (1983), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies (1985), A Reader on Punishment (1994), Punishment and Modern Society: A Study in Social Theory (1999), Criminology and Social Theory (2000), Ethical and Social Perspectives on Situational Crime Prevention (2000), The Culture of Control: Crime and Social Order in Contemporary Society (2001), Mass Imprisonment: Social Causes and Consequences (2001), Peculiar Institution: America’s Death Penalty in an Age of Abolition (2010), America’s Death Penalty: Between Past and Present (2011), The Welfare State: A Very Short Introduction (2016). EAMONN CARRABINE
University of Essex Capítulo neste livro: Crime e Mídia Outras publicações: Power, Discourse and Resistance: A Genealogy of the Strangeways Prison Riot (2004), Crime, Culture and the Media (2008), Crime and Social Theory (2017). ELLIOTT CURRIE
University of California, Irvine | Queensland University of Technology Capítulo neste livro: Criminologias do Mercado Outras publicações: Crisis in American Institutions (com Jerome H. Skolnick, 1976), Confronting Crime (1985), Dope and Trouble: Portraits of Delinquent Youth (1991), Reckoning: Drugs, the Cities, and the American Future (1993), Crime and Punishment in America (1998), Whitewashing Race: the Myth of a Colorblind America (com David Oppenheimer, David Wellman, Marjorie Shultz, Martin Carnoy, Michael Brown e Troy Duster, 2003), The Road to Whatever: Middle Class Culture and the Crisis of Adolescence (2004), The Roots of Danger: Violent Crime in Global Perspective (2008).
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FERGUS MCNEILL
University of Glasgow Capítulo neste livro: Desistência - Prevendo Futuros Outras publicações: Reducing Reoffending: Social Work and Community Justice in Scotland (com Bill Whyte, 2007), Youth Offending and Youth Justice (com Monica Barry, 2009), Offender Supervision: New Directions in Theory, Research and Practice (com Chris Trotter e Peter Raynor, 2010), Community Punishment: European Perspectives (com Gwen Robinson, 2015), Probation: 12 Essential Questions (com Ioan Durnescu e René Butter, 2016). GABE MYTHEN
University of Liverpool Capítulo neste livro: Criminologia e Terrorismo: Rumo a uma Abordagem Crítica Outras publicações: Ulrich Beck: A Critical Introduction to the Risk Society (2004), Beyond the Risk Society: Critical Reflections on Risk and Human Security (com Sandra Walklate, 2006), The Risk Society: Crime, Security and Justice (2014), Contradictions of Terrorism: Security, Risk, Resilience (com Sandra Walklate, 2015). GIANE SILVESTRE
GEVAC - Universidade Federal de São Carlos Capítulo neste livro: Governando através do Crime Outras publicações: Dias de Visita: Uma Sociologia da Punição e das Prisões (2012). HANNAH GRAHAM
University of Stirling Capítulo neste livro: Desistência - Prevendo Futuros Outras publicações: Working with Offenders: A Guide to Concepts & Practices (com Rob White, 2010), Innovative Justice (com Rob White, 2015), Rehabilitation Work: Supporting Desistance and Recovery (2016). JEFF FERRELL
Texas Christian University | The University of Kent Capítulo neste livro: Criminologia Cultural Continuada Outras publicações: Crimes of Style: Urban Graffiti and the Politics of Criminality (1993), Cultural Criminology (1995), Ethnography at the Edge: Crime, Deviance, and Field Research (com Mark Hamm, 1998), Tearing Down the Streets: Adventures in Urban Anarchy (2001), Cultural Criminology Unleashed (com Keith Hayward, Mike Presdee e Wayne Morrison, 2004), Empire of Scrounge (2005), Cultural Criminology: An Invitation (com Keith Hayward e Jock Young, 2008/2015). 7
JO PHOENIX
The Open University Capítulos neste livro: A Política da Sexualidade: Compreensões Alternativas das Mudanças Sexuais e Culturais; Criminologias Alternativas, Mercados Acadêmicos e Corporativismo nas Universidades Outras publicações: Making Sense of Prostitution (2001), Illicit and Illegal: Sex, Regulation and Social Control (com Sarah Oerton, 2005), Regulating Sex for Sale: Prostitution, Policy Reform and the UK (2009), Out of Place: The Criminalisation of Sexually Exploited Girls and Young Women (2012). JONATHAN SIMON
University of California, Berkeley Capítulo neste livro: Governando através do Crime Outras publicações: Poor Discipline: Parole and the Social Control of the Underclass, 1890-1990 (1993), Embracing Risk: The Changing Culture of Insurance and Responsibility (com Tom Baker, 2002), Cultural Analysis, Cultural Studies, and the Law: Moving Beyond Legal Realism (com Austin Sarat, 2003), Governing Through Crime: How the War on Crime Transformed American Democracy and Created a Culture of Fear (2007), After the War on Crime: Race, Democracy, and a new Reconstruction (com Ian Haney Lopez e Mary Louise Frampton, 2008), Architecture and Justice: Judicial Meanings in the Public Realm (com Nicholas Temple e Renée Tobe, 2013), Sage Handbook of Punishment & Society (com Richard Sparks, 2013), Mass Incarceration on Trial: A Remarkable Case and the Future of Imprisonment (2014). JOSÉ CARLOS PORTELLA JUNIOR
Centro Universitário Curitiba Capítulo neste livro: Crimes contra a Humanidade e Crimes de Guerra KATJA FRANCO
Universitetet i Oslo Capítulo neste livro: Criminologia da Mobilidade Outras publicações: Sentencing in the Age of Information: From Faust to Macintosh (2005), Technologies of InSecurity: The Surveillance of Everyday Life (com Heidi Mork Lomell e Helene Oppen Gundhus, 2009), Cosmopolitan Justice and its Discontents (com Cecilia Bailliet, 2011), Globalization and Crime (2007/2013), Krimmigrasjon? Den nye kontrollen av de fremmede (com Nicolay Johansen e Thomas Ugelvik, 2013), The Borders of Punishment: Citizenship, Crime Control, and Social Exclusion (com Mary Bosworth, 2013).
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KEITH HAYWARD
Københavns Universitet Capítulo neste livro: Criminologia Cultural Continuada Outras publicações: City Limits: Crime, Consumer Culture and the Urban Experience (2004), Cultural Criminology Unleashed (com Jeff Ferrell, Mike Presdee e Wayne Morrison, 2004), Cultural Criminology: An Invitation (com Jeff Ferrell e Jock Young, 2008/2015), Fifty Key Thinkers in Criminology (com Jayne Mooney e Shadd Maruna, 2010), Framing Crime: Cultural Criminology and the Image (com Mike Presdee, 2010), Criminology (com Chris Hale, 2005/2013), International Boundaries in a Global Era: Cross-Border Space, Place and Society in the Twenty-First Century (com Lawrence Herzog, 2016), Cultural Criminology (2017). KERRY CARRINGTON
Queensland University of Technology Capítulo neste livro: Criminologias Feministas Outras publicações: Offending girls: Sex, Youth and Justice (1993), Who Killed Leigh Leigh? A Story of Shame and Mateship in an Australian Town (1998), Policing the Rural Crisis (com Russell Hogg, 2006), Offending Youth: Crime, Sex and Justice (com Margaret Pereira, 2009), Crime, Justice and Social Democracy: International Perspectives (com Erin O’Brien, Juan Tauri e Matthew Ball, 2012), Feminism and Global Justice (2015). LEANDRO AYRES FRANÇA
Faculdade Estácio Rio Grande do Sul Capítulo neste livro: Cibercriminologias Outras publicações: Ensaio de uma Vida Bandida (2007), Inimigo ou a Inconveniência de Existir (2012), Vestígios da Copa (com Alysson Ramos Artuso, Gisele Eberspächer, Henrique Valle, Leonardo Carbonieri Campoy, Maira da Silveira Marques e Uriel Moeller, 2014), As Marcas do Cárcere (com Alfredo Steffen Neto e Alysson Ramos Artuso, 2016). Mais informações: www.ayresfranca.com LOÏC WACQUANT
University of California, Berkeley | Centre de Sociologie Européenne, Paris Capítulo neste livro: A Reinserção do Prisioneiro como Mito e Cerimônia Outras publicações em português: Corpo e Alma: Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe (2002), O Mistério do Ministério: Pierre Bourdieu e a Política Democrática (2005), Onda Punitiva: O Novo Governo da Insegurança Social (2007), As Duas Faces do Gueto (2007), Prisões da Miséria (ed. expandida, 2011), Párias Urbanos (no prelo). Publicação mais recente: Tracking the Penal State (2017). Mais informações: loicwacquant.net 9
MARCELO BORDIN
Polícia Militar do Estado do Paraná Capítulo neste livro: Política, Polícia e Democracia MARY BOSWORTH
University of Oxford Capítulo neste livro: Criminologia da Mobilidade Outras publicações: The US Federal Prison System (2002), Encyclopedia of Prisons and Correctional Facilities (2 vol., 2005), Race, gender and punishment: From colonialism to the war on terror (com Jeanne Flavin, 2007), Explaining U.S. Imprisonment (2010), What is Criminology? (com Carolyn Hoyle, 2011), The Borders of Punishment: Citizenship, Crime Control, and Social Exclusion (com Katja Franco, 2013), Inside Immigration Detention: Foreigners in a Carceral Age (2014), The Changing Contours of Criminal Justice (com Lucia Zedner e Carolyn Hoyle, 2016), Theoretical Criminology (4 vol., 2016). MICHAEL LEVI
Cardiff University Capítulo neste livro: O Processo Criminal de Graves Crimes de Colarinho Branco Outras publicações: The Phantom Capitalists: The Organisation and Control of Long-Firm Fraud (1981/2008), Regulating Fraud: White-Collar Crime and the Criminal Process (1987/2013), Reflections on Organised Crime: Patterns and Control (1990), Customer Confidentiality, Money-Laundering, and Police-Bank Relationships (1991), The Investigation, Prosecution, and Trial of Serious Fraud (1993), Money Laundering in the UK: An Appraisal of Suspicion-Based Reporting (com Michael Gold, 1994), The Corruption of Politics and the Politics of Corruption (1996), Fraud: Organization, Motivation and Control (2 vol., 1999), Drugs and Money: Managing the Drug Trade and Crime-Money in Europe (com Petrus C. van Duyne, 2004), Drugs en Geld: Misdaadgeld-beheer en Drugsmarkten in Europa (com Petrus C. van Duyne, 2009), Understanding the U.S. Illicit Tobacco Market: Characteristics, Policy Context, and Lessons From International Experiences (2015). NEIL CHAKRABORTI
University of Leicester Capítulo neste livro: Crimes de Ódio Outras publicações: Rural Racism (com Jon Garland, 2004), Hate Crime: Impact, Causes, and Responses (2009/2015), Hate Crime: Concepts, Policy, Future Directions (2010), Islamophobia, Victimisation and the Veil (com Irene Zempi, 2014), Responding to Hate Crime: The Case for Connecting Policy and Research (com Jon Garland, 2014).
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NICOLE WESTMARLAND
Durham University Capítulo neste livro: A Violência contra as Mulheres Outras publicações: International Approaches to Prostitution: Law and Policy in Europe and Asia (com Geetanjali Gangoli, 2006), International Approaches to Rape (com Geetanjali Gangoli, 2011), Violence against Women: Criminological perspectives on men’s violences (2015). PABLO ORNELAS ROSA
Universidade Vila Velha Capítulo neste livro: Drogas Outras publicações: Rock Underground: Uma Etnografia do Rock Alternativo (2007), Juventude Criminalizada (2010), Juventude, Ativismo e Redução de Danos (com Rosangela de Sena e Silva, 2010), Sociologia Política (2013), Drogas e a Governamentalidade Neoliberal: Uma Genealogia da Redução de Danos (2014), Perspectivas em Segurança Publica (com Humberto Ribeiro Junior, Luciana Souza Borges e Pablo Silva Lira, 2016), Drogas, Políticas Públicas e Consumidores (com Beatriz Caiuby Labate, Frederico Policarpo e Sandra Lucia Goulart, 2016). PAULO CÉSAR BUSATO
Universidade Federal do Paraná Capítulo neste livro: Criminologia e Neurociências Outras publicações: Direito penal e Ação Significativa (2005), Derecho Penal y Acción Significativa (2007), Fatos e Mitos sobre a Imputação Objetiva (2007), Crítica ao Direito Penal do Inimigo (com Francisco Muñoz Conde, 2011), Reflexões sobre o Sistema Penal do Nosso Tempo (2011), Direito Penal Baseado em Casos (3 vol.: 2012, 2013, 2014), Direito Penal: Parte Geral (1ª ed. 2013, 2ª ed. 2015, 3ª ed. 2017), Direito Penal: Parte Especial - vol. 2 (2014, 2015, 2016), Direito Penal: Parte Especial - vol. 3 (2016, 2017), Neurociência e Direito Penal (2014), Fundamentos para um Sistema Penal Democrático (2015), Menoridade Penal: Crítica ao Projeto de Redução do Patamar Biológico de Imputabilidade no Sistema Penal Brasileiro (2015), Compliance e Direito Penal (com Fábio André Guaragni e Décio Franco David, 2016). PAT CARLEN
The Open University Capítulos neste livro: Criminologias Alternativas; Penas Imaginárias; Criminologias Alternativas, Mercados Acadêmicos e Corporativismo nas Universidades Outras publicações: Magistrates’ Justice (1976), Official Discourse (com Frank Burton, 1979), Radical Issues in Criminology (com Mike Collison, 1980), Women’s Imprisonment: a Study in Social Control (1983), Criminal Women (com Diana Christina, Jenny Hicks, Josie O’Dwyer e Chris Tchaikovsky,1985), Women, Crime and 11
Poverty (1988), Paying for Crime (com Dee Cook, 1989), Alternatives to Women’s Imprisonment (1990), Truancy (com Denis Gleeson e Julia Wardhaugh, 1992), Jigsaw: A Political Criminology of Youth Homelessness (1996), Sledgehammer: Women’s Imprisonment at the Millennium (1998), Analysing Women’s Imprisonment (com Anne Worrall, 2004), Imaginary Penalities (2008), A Criminological Imagination: Essays on Justice, Punishment and Discourse (2010), Women and Punishment (2011). PAT O’MALLEY
The University of Sydney Capítulo neste livro: Crime e Risco Outras publicações: Law, Capitalism and Democracy: Sociology of Australian Legal Order (1983), Crime Prevention in Australia (com Adam Sutton, 1997), Risk, Uncertainty and Government (2004), Governing Risks (2006), Gendered Risks (com Kelly Hannah-Moffat, 2009), The Currency of Justice: Fines and Damages in Consumer Societies (2009), Crime and Risk (2010). PEDRO RODOLFO BODÊ DE MORAES
Universidade Federal do Paraná Capítulo neste livro: Política, Polícia e Democracia Outras publicações: Os Jovens de Curitiba: Esperanças e Desencantos - Juventude, Violência e Cidadania (com Ana Luisa Fayet Sallas, Carla Coelho de Andrade, Celena Amaral, Júlio Lobo Waiselfisz, Maria Tarcisa Silva Bêga, Paulo Ricardo Bittencourte Guimarães, Rafael Duarte Villa e Sônia Luiza Coelho Silva, 1999), Punição, Encarceramento e Construção de Identidade Profissional entre Agentes Penitenciários (2005), As Guardas Municipais no Brasil - Diagnóstico das transformações em curso (com Joana Domingues Vargas, Michel Misse e Vanda de Aguiar Valadão, 2010). PENNY GREEN
Queen Mary University of London
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Capítulo neste livro: O Desafio do Crime de Estado Outras publicações: The Enemy Without: Policing and Class Consciousness in the 1984-85 Miners’ Strike (1990), Drug Couriers (1991), Drug Couriers: a New Perspective (1996), Drugs, Trafficking and Criminal Policy: the Scapegoat Strategy (1998), Criminal Policy in Transition (com Andrew Rutherford, 2000), State Crime: Governments, Violence and Corruption (com Tony Ward, 2004), Criminology and Archaeology: Studies in the Looting of Antiquities (com Simon MacKenzie, 2009), Law and Outsiders: Norms, Processes and ‘Othering’ in the 21st Century (com Cian C. Murphy, 2011), Countdown to Annihilation: Genocide in Myanmar (com Alicia de la Cour Venning e Thomas MacManus, 2015), Condemned to Nowhere: the genocide of Burma’s Rohingya (com Alicia de la Cour Venning e Thomas MacManus, 2017), Encounters with repression: Civil resistance in uncivil states (com Tony Ward, 2017).
REECE WALTERS
Queensland University of Technology Capítulo neste livro: Criminologias Verdes Outras publicações: Care, Cooperation and Youth at Risk (com Darren Palmer e Garry Coventry, 1993), Police and Youth Relations in Victoria: Directions for Future Programs (com Darren Palmer e Garry Coventry, 1994), The Younger Audience: Children and Broadcasting in New Zealand (com Wiebe Zwaga, 2001), Deviant Knowledge: Criminology, Politics and Policy (2003), Introduction to Criminological Thought (com Trevor Bradley, 2005), Critical Thinking about the Uses of Research (com Tim Hope, 2008), Crime: Local and Global (com Deborah Talbot e John Muncie, 2009), Eco Crime and Genetically Modified Food (2011), Emerging Issues in Green Criminology: Exploring Power, Justice and Harm (com Diane Westerhuis e Tanya Wyatt, 2013). ROGER HOOD
University of Oxford Capítulo neste livro: Para a Erradicação Global da Pena de Morte: um Cruel, Desumano e Degradante Castigo Outras publicações: Difference or Discrimination? Ethnic Minorities in the Youth Justice System (com Martina Feilzer, 2004), A Fair Hearing? Ethnic Minorities in the Criminal Courts (com Florence Seemungal e Stephen Shute, 2005), A Rare and Arbitrary Fate: Conviction for Murder, the Mandatory Death Penalty and the Reality of Homicide in Trinidad and Tobago (com Florence Seemungal, 2006), A Penalty Without Legitimacy: The Mandatory Death Penalty in Trinidad and Tobago (com Florence Seemungal, 2009), Public Opinion on the Mandatory Death Penalty in Trinidad (com Florence Seemungal, 2011), Confronting Capital Punishment in Asia: Human Rights, Politics and Public Opinion (com Surya Deva 2013), The Death Penalty in Malaysia: Public opinion on the mandatory death penalty (2013), The Death Penalty: A Worldwide Perspective (com Carolyn Hoyle, 5ª ed. 2015). SHARON PICKERING
Monash University Capítulo neste livro: Criminologia da Mobilidade Outras publicações: Women, Policing and Resistance in Northern Ireland (2002), Critical Chatter: Women and Human Rights in South East Asia (com Caroline Lambert e Christine Alder, 2003), Global Issues, Women and Justice (com Caroline Lambert, 2004), Refugees & State Crime (2005), Borders, Mobility and Technologies of Control (com Leanne Weber, 2006), Counter-Terrorism Policing: Community, Cohesion and Security (com David Wright-Neville e Jude McCulloch, 2008), Sex Trafficking: International Context and Response (com Marie Segrave e Sanja Milivojevic, 2009), Women, Borders and Violence: Current Issues in Asylum, Forced Migration, and Trafficking (2010), Globalization and Borders: Death at the Global 13
Frontier (com Leanne Weber, 2011), Borders and Crime: Pre-Crime, Mobility and Serious Harm in an Age of Globalization (com Jude McCulloch, 2012), Sex Work: Labour, Mobility and Sexual Services (com Alison Gerard e JaneMaree Maher, 2013), The Routledge Handbook on Crime and International Migration (com Julie Ham, 2015), Fluid Security in the Asia Pacific: Transnational Lives, Human Rights and State Control (com Claudia Tazreiter, Helen McKernan, Leanne Weber e Marie Segrave, 2016). SIMON WINLOW
Teesside University Capítulo neste livro: Criminologia e Consumismo Outras publicações: Bouncers: Violence and Governance in the Night-time Economy (com Dick Hobbs, Philip Hadfield e Stuart Lister, 2003), Violent Night: Urban Leisure and Contemporary Culture (com Steve Hall, 2006), Criminal Identities and Consumer Culture: Crime, Exclusion and the New Culture of Narcissism (com Craig Ancrum e Steve Hall, 2008), New Directions in Criminological Theory (com Steve Hall, 2012), Rethinking Social Exclusion: The Death of the Social? (com Steve Hall, 2013), Revitalizing Criminological Theory: Towards a New Ultra-Realism (com Steve Hall, 2015), Riots and Political Protest: Notes from the Post-Political Present (com Daniel Briggs, James Treadwell e Steve Hall, 2015), The Rise of the Right: English Nationalism and the Transformation of Working-Class Politics (com James Treadwell e Steve Hall, 2017). STEVE HALL
Teesside University Capítulo neste livro: Criminologia e Consumismo Outras publicações: Violent Night: Urban Leisure and Contemporary Culture (com Simon Winlow, 2006), Criminal Identities and Consumer Culture: Crime, Exclusion and the New Culture of Narcissism (com Craig Ancrum e Simon Winlow, 2008), New Directions in Criminological Theory (com Simon Winlow, 2012), Theorizing Crime and Deviance: A New Perspective (2012), Rethinking Social Exclusion (com Simon Winlow, 2013), Revitalizing Criminological Theory: Towards a New Ultra-Realism (com Simon Winlow, 2015), Riots and Political Protest: Notes from the Post-Political Present (com Daniel Briggs, James Treadwell e Simon Winlow, 2015), The Rise of the Right: English Nationalism and the Transformation of Working-Class Politics (com James Treadwell e Simon Winlow, 2017). STEVIE-JADE HARDY
University of Leicester Capítulo neste livro: Crimes de Ódio Outras publicações: Everyday Multiculturalism and ‘Hidden’ Hate (2017). 14
SUSANNE KARSTEDT
Griffith University Capítulo neste livro: Atrocidade: A Experiência Latino-Americana Outras publicações: Legal Institutions and Collective Memories (2009), Emotions, Crime and Justice (com Ian Loader e Heather Strang, 2011), The SAGE Handbook of Criminological Research Methods (com David Gadd e Steven Messner, 2012), Globalisation and Crime (com David Nelken, 2013).
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PREFÁCIO
Um livro é formado pelos argumentos de que é feito; são eles que importam. Por isso, ele não merece ser pautado ou reduzido num único primeiro ato. Além disso, como afirmou Foucault (História da Loucura), um prefácio corre o risco de ser uma declaração de tirania; ele arrisca estabelecer a monarquia do autor – ou dos organizadores. Mas, isto ainda é um prefácio. Ele o é, não sendo. É, porque reserva para si um espaço inicial do livro. Mas, deixa de sê-lo porque não pretende apresentar ou explicar o seu conteúdo. O meu propósito aqui é responder à recorrente questão que leitores nos apresentam – a mim e à Pat: De onde veio a ideia do livro? Seria fácil responder que dois organizadores convidaram autores para participar de uma coletânea e, boom!, eis o livro. Mas essa resposta torna este livro algo espontâneo e atemporal, um big bang literário. O livro é mais que isso: tem história, é o registro de uma época e inspira reflexões. Então, de onde ele veio? Há cerca de cinco anos, o Grupo de Pesquisa em Modernas Tendências do Sistema Criminal assumiu o compromisso de elaborar um projeto de curso de pós-graduação em ciências criminais. Quando fomos estruturar as disciplinas de criminologia, nos deparamos com um problema: a ausência de uma bi-
bliografia acessível e atual que pudesse ser referência para estudos dos participantes. Poucos livros estão disponíveis para o público acadêmico brasileiro; por mais que exista uma produção de artigos de boa qualidade, as obras fundamentais da criminologia, majoritariamente, ainda não foram traduzidas ao português. É notável o desinteresse da academia e do mercado editorial por obras criminológicas: algumas poucas obras traduzidas estão esgotadas e recentes traduções resultaram de esforços individuais de pesquisadores. O anacronismo do material também se apresentou como um problema. A academia brasileira parece ter atolado no pensamento criminológico crítico da década de 1970 (especialmente, na vertente professada por Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young de uma “nova criminologia”). Os ídolos criminológicos ainda são os mesmos. Eles são ótimos, mas já não respondem adequadamente a questões contemporâneas. No descompasso teórico e instrumental, surgem hipóteses irreais (com alta carga especulativa e déficit empírico), reducionistas (que limitam todas as causalidades a uma única razão), forçosas (que ainda veem nossas prisões atuais como instituições de domesticação ou, pior, como solução), acomodáveis (com a adequação da seletividade penal à vontade de quem escreve). 17
Para resolver os problemas de acessibilidade e atualidade, tivemos o plano inicial de compilar um material que já estivesse disponível e conseguisse abranger o máximo possível os temas de interesse. O livro seria uma referência do que de melhor se produziu contemporaneamente. Então, uma ideia surgiu (essa, sim, espontânea como um big bang): E se, ao invés de contatarmos autores pedindo autorizações para republicar seus trabalhos, os convidássemos para escreverem algo inédito sobre seus respectivos estudos, num estilo expositivo e voltado ao público de leitores brasileiros, acadêmicos e profissionais? A proposta foi ousada e aceita de imediato pelos participantes do grupo de pesquisa. Foi quando recorri à Pat Carlen. Contando com sua experiência como editora e com sua amizade, fiz-lhe o convite para coordenarmos a coletânea e a resposta veio rápida: Sim, vamos fazer o livro. Decidimos por uma metodologia que considero muito honesta: primeiro, listamos as teorias e os temas indispensáveis para um livro de criminologia próprio para o tempo presente; depois, iniciamos uma extensa busca, por todo o globo, pelos pesquisadores que melhor poderiam tratar de cada um deles. A escalação final está aqui. Basta que se espie o sumário para se confirmar que muitos autores têm permanecido atentos às transformações do mundo, desenvolvendo, redefinindo, adaptando e aprimorando conceitos, teorias e ferramentas explicativas. O livro possui uma versão em português, publicada pelo Canal Ciências Criminais, e uma versão em inglês, publicada pela Routledge. Na versão brasileira, as traduções dos artigos estrangeiros foram feitas por participantes do grupo de pesquisa e por outros pesquisadores, selecionados conforme afinidade e experiência com os respectivos temas. Após alguns anos de planejamento, 18
pesquisa, escrita, revisões e editoração, além de muitas conversas e ajustes, eis o livro. Ele não apresenta uma nova criminologia, tampouco pretende atribuir um novo rótulo aos estudos. Nestas centenas de páginas, os leitores encontrarão o peso das leituras das obras criminológicas fundamentais, das inspirações e reflexões de cada um dos autores, da urgência de cada um dos temas, em textos inéditos, instrutivos e contemporâneos. Os leitores não encontrarão aqui a causa, a solução, nem qualquer resposta absoluta para o fenômeno criminal. O livro não pretende ser uma panaceia, mas sim um recurso – naquele seu sentido original de um caminho possível por onde retornar em busca de amparo para, então, repensar a realidade. Este livro é para todos os interessados em formas alternativas de compreender a violência e o crime. O livro explana, explica, explicita essas alternativas. Leandro Ayres França Porto Alegre/Londres, 2017
CRIMINOLOGIAS ALTERNATIVAS
Pat Carlen
Tradução de Leandro Ayres França
O crime, como afirmou Durkheim, é normal (Durkheim 1955/1896). Mas, as criminologias alternativas críticas, que emprestam seu nome coletivo a este livro, estão interessadas em Outros: aqueles que fazem as regras e, porque são ricos e poderosos, têm muitas alternativas; aqueles que violam as regras e, porque são pobres e impotentes, têm poucas alternativas; e todos os observadores criminológicos cotidianos, profissionais e acadêmicos – aqueles cujas regras são tão frequentemente alternativas às regras dos outros e para quem não há verdade de fato, questões de fato e nem regras obrigatórias para o saber – apenas continuamente trocando tropos de ciência, arte, direito, moralidade e política – das respostas, sempre cambiantes, emocionais, assim como intelectuais, morais e artísticas, a todos os tipos de violações de regras e leis. Amam-no? Odeiam-no? Amam-no e o odeiam? Seja o que for e/ou do jeito que for: o crime está em todo lugar – em romances, artigos científicos, livros, letras de rap, desenhos, filmes, conferências, transações on-line, negociações financeiras, fofocas e fantasias particulares. Ele pode ser encontrado nos mais altos escalões de governos, partidos políticos, igrejas, universidades, mídias de massa, negócios, Forças Armadas, profissões, famílias – em todos os lugares. Mas, não é sua ubiquidade que torna o
crime tão importante. O crime é de tal importância crucial porque ele é também um de Outros das noções que as pessoas têm de justiça, moralidade, ordem, segurança. Ao desconstruir o crime e a justiça criminal é possível descobrir quem tem o poder de fazer, violar e aplicar tanto o primado da lei quanto as regras políticas, culturais, sociais e econômicas, papéis e relações que condicionam o Estado de Direito. Ainda, ao mesmo tempo, desconstruções analíticas do crime e da justiça sugerem que o crime é um Outro precário, se não imaginário. Pois, história, geografia, antropologia, sociologia, filosofia e jurisprudência ensinam que os significados do crime e da justiça variam em tempo, lugar, cultura e condição social (ver Runciman, 1966; Rawls, 1972). Ademais, a desconstrução do discurso político e cotidiano sugere que as pessoas podem atuar, simultaneamente, com diversos significados aparentemente opostos de crime, justiça, moralidade e ordem – e, então, depois, dar explicações totalmente diferentes, mas logicamente coerentes e/ou legalmente aceitáveis, do que aconteceu, por que aconteceu e o que significou (ver Carlen 2008, 2010: xiv, e Capítulo XX deste livro). As alternativas são infinitas; as combinações, caleidoscópicas. Criminologias Alternativas examina as dimensões simultaneamente alternativas 19
do crime e as criminologias profissionais e não profissionais, emocionais, artísticas e visuais, que alternativa, ou concomitantemente, tentam retratar, explicar, entender ou fundamentalmente mudar por que o crime e a justiça assumem tais formas. Este primeiro capítulo, porém, não pretende ser uma introdução aos outros capítulos. Cada capítulo seguinte tem seu foco e estilo específicos; cada qual é uma alternativa possível (ou não) a outras alternativas. Além disso, ao introduzir o tema epônimo do livro, este capítulo não é em si tão Outro-modo como, idealmente, deveria ser; e isso ocorre fundamentalmente porque ele foca exclusivamente na criminologia dos países anglófonos; e diz pouco sobre a criminologia de qualquer dos outros. Os leitores, portanto, estão advertidos de que as perspectivas alternativas descritas neste capítulo podem ter de ser tornadas política, cultural e/ou emocionalmente relevantes ao serem constantemente relidas e reescritas de outra maneira. De fato, ler e escrever de outra forma as criminologias alternativas críticas é uma precondição essencial para levá-las a sério, independentemente da localização geopolítica. No entanto, por mais que as criminologias alternativas sejam relidas e reescritas muitas vezes, três questões fundamentais de definição permanecem: As criminologias alternativas são alternativas a que? A própria expressão “criminologias alternativas” não envolve um excessivo relativismo, a menos que seja mais bem e mais intimamente definida? Como pode alguém decidir entre alternativas? Muitos ditadores produziram criminologias alternativas, as quais não respeitaram direitos humanos, nem reduziram opressões políticas, econômicas ou culturais. Com efeito, governos pós-revolucionários têm repetidamente produzido criminologias alternativas caracterizadas por punições selvagens e as mais grosseiras 20
violações de direitos humanos. De acordo. É por isso que este capítulo distingue entre criminologias alternativas conservadoras e criminologias alternativas críticas. Neste ensaio, as criminologias alternativas conservadoras são tipificadas tanto como aquelas que preservam o status quo, deliberadamente ou por descuido, quanto como aquelas que o transformam de tais modos que não é provável que seja diminuída, sendo mais provável que seja aumentada, a exploração dos pobres e impotentes pelos ricos e poderosos. Exemplos desse tipo de criminologia podem ser encontrados em projetos criminológicos que focam em tentar reduzir o crime e as populações prisionais sem examinar criticamente as estruturas sociais e as formas de direito que os produzem. Em contrapartida, as criminologias alternativas críticas visam a desconstruir os significados do crime e da justiça social a fim de expor as relações entre desigualdades estruturais sociais, injustiças criminais, leis e identidades humanas. Ao fazê-lo, porém, as criminologias alternativas críticas não restringem a crítica à desconstrução literária. Ao invés, no imaginar das criminologias alternativas críticas, presume-se que a desconstrução das formas atuais da justiça criminal pode ser alcançada por uma variedade de formas do saber: analiticamente, pela crítica; artisticamente, pelas artes visuais ou dramáticas e/ou formas musicais; matematicamente, pelo cálculo estatístico; historicamente, pelos registros e memórias culturais; e, empaticamente, pelas emoções. Como essas variadas formas de entendimento serão, então, utilizadas será, claro, determinado, em parte, por condições e processos culturais, políticos e econômicos locais, em andamento, em parte, por relações internacionais e, em parte, por eventos globais atualmente imprevisíveis. E, certamente, não seria necessário dizer que a expressão
“criminologias alternativas críticas”, em última análise, denomina um processo de permanente crítica, uma série de estados transicionais de novos saber e ideologia, em vez de conjuntos de teorias fechadas. Pois, no momento de reconhecimento de uma criminologia alternativa crítica, a alternativa crítica se torna sujeita à própria crítica alternativa. Nesse momento, ela pode ser analisada por outros como não sendo crítica nem alternativa! Pela mesma lógica, projetos de criminologia alternativa aparentemente conservadores podem, na mudança de condições políticas, ter efeitos socialmente progressistas. Assim, espera-se que as marcas e as pretensões de criminologias de marca (incluindo o nome “criminologias alternativas críticas”) empregadas neste capítulo tenham apenas uma saliência nominadora e discursiva; elas não são oferecidas como tendo qualquer realidade empírica essencial ou vantagem política progressista garantida. O resto do capítulo é dividido em três seções, cada uma focando em uma diferente dimensão das criminologias alternativas críticas. Primeiro, são identificadas as muitas perspectivas alternativas críticas sobre crime e justiça que têm sido desenvolvidas desde que Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (1973 e 1975) revelaram suas críticas marxistas no Reino Unido, na década de 1970. Segundo, há um enfoque em alguns dos modelos de saber alternativos críticos sobre crime – modelos críticos que se empenham em críticas desconstrutiva e reconstrutiva e, mais importante, são eles próprios abertos à contínua crítica. (Ironicamente, a crítica contínua é, teórica e supostamente, já uma característica dos sistemas legais de países democráticos. Na prática, a crítica contínua de sistemas legais democráticos está mais prontamente – e, em alguns casos, exclusivamente – disponível àqueles que podem arcar
com o pagamento de um grande número de advogados para escrutinar e “desconstruir” a causa estatal contra eles e, assim, bancar atrasos judiciais fenomenalmente caros a fim de lidar com sucessivos subterfúgios legais; para um exemplo recente e dramático, ver Davies (2014) sobre a maneira como os jornais de Rupert Murdoch, no Reino Unido, foram capazes de pagar por defesas muito caras e efetivas contra as muitas acusações criminais promovidas contra seu pessoal em 2013 e 2014.) Na terceira e conclusiva seção do capítulo, é brevemente discutida a possível significância política das criminologias alternativas críticas hoje. CRIMINOLOGIAS ALTERNATIVAS CRÍTICAS COM OU SEM MARX 1973 – 2015
As criminologias alternativas críticas de hoje têm uma história. Como, portanto, é um princípio fundamental deste capítulo que um novo saber é, em parte, reconstruído a partir de partículas desconstruídas e reteorizadas do velho, comecemos com The New Criminology, publicado por Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young, em 1973. Quando esse livro fez sua estreia em meados da década de 1970 (num momento em que a criminologia no Reino Unido era por vezes estudada sob o título mais abrangente de “sociologia do desvio”), ele causou uma impressão enorme; não porque ele foi o primeiro livro a experimentar uma análise marxista do crime e da justiça (Bonger, 1916; Chambliss, 1971; Quinney, 1970; Rusche e Kirschheimer, 1968, entre muitos outros, já tinham feito isso), mas porque ele era aspiracional em seu escopo e humano em sua visão. Quando, dois anos depois, The New Criminology foi seguido por Critical Criminology (Taylor, Walton e Young 1975), logo ficou aparente que os parâmetros da criminologia no Reino Unido (e talvez nou21
tros lugares) jamais seriam os mesmos novamente. Daí em diante, a criminologia anglófona, que tinha, com algumas exceções, se transformado em um debate “punição x welfare” sobre a melhor forma de responder à criminalidade, foi revigorada com aquela noção muito excitante de crítica que havia sido aparente no insight radical e fundador de Émile Durkheim, de que o “crime é normal” (Durkheim 1955/1896). Outros livros europeus publicados por essa época, e que ajudaram a apoiar o florescimento de diversas criminologias britânicas comprometidas com a crítica constante, incluíam: Knowledge and Human Interests (1972), de Habermas; The Policing of Families (1979), de Donzelot; Discipline and Punish (1977), de Foucault; The Politics of Abolition (1974), de Mathiesen; The Prison and The Factory (1981), de Melossi e Pavarini; e uma variedade de trabalhos não criminológicos de filósofos marxistas como Louis Althusser (1971), escritores psicanalíticos como Jacques Lacan (1975), filósofos e linguistas como Ferdinand Saussure (1974) e Jacques Derrida (1970), e escritoras feministas como Julia Kristeva (1980)1. A renovação da crítica marxista ao crime e à justiça deu novo ímpeto ao estudo dos crimes de colarinho-branco (e.g., Levi, 1983), ao passo que o constante fluxo de estudos de casos críticos e qualitativos, já chegando no Reino Unido a partir dos Estados Unidos (e.g., Becker, 1963; Skolnick, 1965; Matza, 1969) imbuiu uma nova geração de criminologistas britânicos com a coragem para se engajarem em estudos de casos qualitativos e no desenvolvimento de novas perspectivas teóricas. Os estudos qualitativos do fim da década de 1970 e da década de 1980 foram menos orientados pelos escritos criminológicos anteriores e mais teoricamente influenciados por uma variedade de perspectivas das ciências sociais, da literatura e da filosofia. Todavia, a 22
ênfase nas relações entre crime, economia e política nunca foi abandonada. Atualmente, durante as primeiras décadas do século XXI, uma contínua ênfase nas relações entre política, economia, cultura e crime tem se manifestado em trabalhos criminológicos radicais no Reino Unido, na Austrália, nos Estados Unidos e em outros lugares. Essas recentes formas alternativas críticas de escrever sobre, e desconstruir, questões do crime e da justiça têm destacado diversamente o seguinte: governança neoliberal (Simon, 2007); globalização da criminalidade (Findlay, 1999; Aas, 2012); populismo penal (Pratt, 2006; Freiberg e Gelb, 2008); risco (Hudson, 2003; O’Malley, 2010); consumismo (Hall, Winlow e Ancrum, 2008; O’Malley, 2009); crimes ecológico (Walters 2010); vigilância consentida e repressiva (Mathiesen, 2004, 2012); exclusão social (De Giorgi, 2006; Winlow e Hall, 2013); precariedade e vertigem (Young, 2007); orientalismo e ocidentalismo (Cain, 2000; Young, 2007); aquiescência em diversos tipos de opressões (Cohen, 2000; Mathiesen, 2004) e mudanças culturais (Garland, 2001; Wacquant, 2004/9; Matravers, 2005; Simon, 2007; Comfort, 2008; O’Malley, 2009; Winlow e Hall, 2013). As criminologias teóricas têm recorrido cada vez mais a trabalhos não diretamente interessados no crime, mas cujo foco seja mais sobre: economia política (Esping Andersen, 1990); filosofia (e.g., Taylor, 2004; Butler, 2004; Chomsky, 2006; Sassen, 2014); política (e.g., Fraser, 1997); história (Thompson, 1963); sociologia (e.g., Bourdieu, 1990; Sennett, 2006); feminismo (e.g., Butler, 1990; May, 2015), e até epidemiologia (ver Wilkinson e Pickett, 2009), juntamente com muito, muito mais – como será visto nos outros capítulos deste livro. As inovações nas perspectivas criminológicas desde The New Criminology têm sido geradas por questões substanciais, as-
sim como teóricas e conceituais. Uma vez que a criminologia mostrou um espelho crítico a si própria espelhada, Outros logo vieram se aglomerando para indagar por que o sujeito criminoso da criminologia sempre foi, tradicionalmente, um indivíduo transgressor masculino da classe trabalhadora e/ou negro? E quanto a: Mulheres? Crimes corporativos? Crimes da classe média? Racismo? Crimes de guerra? Crimes políticos? Crimes de Estado? Crimes Ambientais? Regulação estatal da sexualidade? Violência contra mulheres? Vítimas do crime? Crimes de ódio? Abuso infantil? Abuso de idosos? Tráfico de pessoas? Formas modernas de escravidão? Por que somente uma minoria de infratores é sempre criminalizada? Por que as mulheres cometem menos crimes que os homens? Quais os papeis da lei criminal, da polícia, dos tribunais, das prisões, das estatísticas oficiais, das crenças políticas e midiáticas e dos partidos políticos em dar forma às concepções populares e profissionais sobre o que é o crime e quem são os criminosos? Quem está incluído e quem está excluído da vida social e econômica da cidade moderna e como o zoneamento social e cultural configuram concepções populares de crime e criminosos? Como as inovações em ciência e tecnologia – tais como o motor de combustão interna, o chip de silício e a rede mundial de computadores – deram origem a novas oportunidades criminais, novos criminosos e novas questões das relações entre justiça local e global? Quais são as relações entre justiça social e justiça criminal? Por que não abolir as prisões? De que tipo de polícia precisamos? Como as concepções de certo, errado, segurança e crime são moldadas por tempo, lugar, cultura, desigualdades de poder e riqueza, gênero, etnia, idade, emoções? A maioria dos criminologistas é etnocêntrica? (Entra aqui a criminologia comparativa: e.g., Cain, 1989; Downs,
1993; Whitman, 2003; Newburn e Sparks, 2004; Carrington et al., 2013; Pratt e Erikson, 2013). Por que, e sob quais condições, as pessoas param de cometer crimes? (Entra a teoria da desistência: Maruna, 2001). E os criminologistas acadêmicos dialogam somente entre si, em vez de com o público ao qual eles deveriam servir? (Entra a criminologia pública: Loader e Sparks, 2010; British Journal of Criminology Review Symposium 2011). Todas as questões acima são alternativas. Elas são alternativas tanto entre si quanto para a amálgama de conceitos literais e naturalizados do crime, os quais sempre fundamentam estereótipos de transgressores como sendo as pessoas (principalmente as mais pobres) no sistema de justiça criminal que estão lá somente porque cometeram um crime muito grave e/ou representam uma grave ameaça à sociedade. Os teóricos alternativos críticos pós-1980 insistiam que a criminologia não deveria apenas desenvolver teorias mais críticas e mais radicais do crime e da justiça em relação aos pobres e despossuídos, mas que ela deveria também focar mais nitidamente nos outros Outros – aqueles que, por uma variedade de razões estão ausentes nos textos e projetos de pesquisa da criminologia conservadora – os infratores muito importantes e muito perigosos que representam uma ameaça global e que são raramente criminalizados e raramente pobres! (Criminosos de guerra, criminosos corporativos, criminosos políticos, por exemplo). Além disso, e mais recentemente, o foco da criminologia também tem sido estendido a pessoas excluídas dos direitos humanos e dos cidadãos como um resultado de guerras, migrações e/ou pobreza. Estes, embora geralmente não tenham cometido crimes, também estão sendo caracterizados como sendo diferente de nós: como sendo Outro – e sua existência representa (ou é repre23
sentada ou vista como representando) uma ameaça vertiginosa à segurança econômica e psicológica daqueles que ainda estão desfrutando (embora, talvez, apenas precariamente) a desigual distribuição de riquezas nas economias capitalistas tardo-modernas (Young, 2007). E, a todo momento, barreiras e fronteiras de classe, de gênero, raciais, legais e geográficas estão excluindo novas categorias de Outros de compartilharem a riqueza global das nações. Aqueles que rompem as barreiras geográficas estão, cada vez mais, sujeitos a novas penalidades e exclusões (ver Pickering, 2005; Sandberg e Pedersen, 2009). O trabalho das criminologias alternativas críticas, porém, não tem se limitado a propor novas questões substanciais. Com igual vigor, as criminologias alternativas críticas também têm procurado, e continuam a procurar, formas alternativas de saber (ver, por um exemplo antigo, Burton e Carlen, 1979; para um exemplo mais recente, ver Gilligan e Pratt, 2004). CRIMINOLOGIAS ALTERNATIVAS COMO CRÍTICA CONSTANTE E NOVAS FORMAS DE SABER
A expressão “criminologia crítica” não mais se refere somente a perspectivas marxistas sobre o crime (ver Carrington e Hogg, 2002; Anthony e Cunneen, 2008). Atualmente, ela é utilizada para denotar qualquer posição teórica que, ao dizer “Não” a antigas formas de saber e a pressupostas hierarquias do saber, também desafia os arranjos sociais e políticos naturalizados que dão origem a desigualdades de riqueza, conhecimento e poder, com seus acompanhantes sistemas de justiça criminal exploradores. (Mas, ver também Walton e Young, 2009, para uma revisão de algumas inovações teóricas na criminologia, nos 25 anos seguintes a The New 24
Criminology). Variadas como são as perspectivas criminológicas alternativas críticas, o que todas elas têm em comum é que, diferente da criminologia oficial ou do que tem sido chamado de “criminologia administrativa” (Young, 1988), elas se recusam a aceitar acriticamente as definições de crime e justiça enquanto feitas por administração oficial da justiça criminal, governos, tribunais, polícia e prisões. Neste ponto, portanto, vale discutir mais a definição e a existência contínua da expressão “criminologia administrativa” uma vez que, embora seja argumentado a seguir que nem sempre são instrutivas ou úteis as distinções puras entre criminologias administrativa e crítica, as criminologias administrativas ainda estão reconhecidamente em ascensão em muitos países, e em regimes políticos repressivos ainda funcionam encantamentos ideológicos para justificar o status quo e silenciosamente silenciar todas as formas de críticas (ver Mathiesen, 2004; Young, 2011). Jock Young cunhou a expressão criminologia administrativa nos anos 1980 (Young, 1988) para fazer referência à criminologia formuladora de políticas, que busca o conhecimento sobre transgressões legais no intuito de reduzir a criminalidade. Porque a criminologia administrativa, como originalmente definida, era vista como estando necessariamente interessada apenas em atividades que já foram definidas como criminosas pela lei e que tinham o principal objetivo de produzir políticas policiais e penais que reduzissem as violações legais via detenção, dissuasão e punição, tem havido uma tendência para os teóricos em ver a criminologia adminsitrativa sempre e necessariamente como sendo o oposto da criminologia crítica. Hoje, entretanto, na era de criminologias alternativas e multidisciplinares, essas oposições extremas são menos fáceis de serem justificadas. No Reino
Unido, por exemplo, dois conjuntos de estatítiscas oficiais são produzidos anualmente com a intenção de monitorar possíveis biases2 racistas e sexistas na administração do sistema de justiça criminal (Ministry of Justice, 2013; 2014); e tem sido empreendido muito trabalho crítico por agências de crime oficiais com relação à violência contra mulheres, ao estupro, ao policiamento, às vítimas e a outras questões criminais. E mesmo que os crimes das pessoas mais pobres e menos poderosas sejam punidos mais frequentemente do que aqueles dos ricos e poderosos, deve ser lembrado que pessoas mais pobres também sofrem mais que pessoas mais ricas, quando são vítimas de crime. Além do mais, nem é fantasioso supor que, se criminologistas alternativos críticos que trabalham em universidades laboram na esperança de que seu trabalho produzirá novas concepções do crime e da justiça, eles também poderiam expectar que este eventualmente terá alguma influência na política – e, especificamente, no desenvolvimento de medidas estruturalmente incorporadas para ajudar a proteger o fraco contra o forte, o pobre contra o rico e o menos poderoso do mais poderoso. Muitas das questões criminais oficialmente reconhecidas de hoje (por exemplo, a negligência quanto às vítimas de crimes pela polícia e pelos tribunais; e biases de classe, raça e gênero na administração da justiça criminal) foram primeiro trazidos à proeminência por acadêmicos de universidades, depois mais pesquisados por agências governamentais e, então (em alguns casos, após debates, lobismos e campanhas posteriores), aperfeiçoados (embora não, ai de mim!, resolvidos) por mudanças na lei e em práticas e procedimentos administrativos. Uma preocupação com a divisão, real e fictícia, entre pesquisa politicamente orientada, que não é necessariamente crítica, e pesquisa crítica, que tem pouca
chance de ter efeito na política, é uma das preocupações propulsoras daqueles que recentemente vêm debatendo a importância (ou não) de desenvolver uma “criminologia mais pública” (Loader e Sparks, 2010; British Journal of Criminology Review Symposium, 2011). Formalmente, a pesquisa criminológica poderia ser descrita como sendo uma alternativa mais ou menos crítica às criminologias oficiais ou adminsitrativas, de acordo com a extensão à qual ela põe em causa definições legais e concepções teóricas, do senso comum ou já naturalizadas, do crime e da justiça. Na prática, porém, quando diferentes teorias são criticamente lidas por diferentes pessoas em diferentes momentos e lugares, é provável que muitas serão vistas como tendo elementos tanto conservadores quanto radicais. Por exemplo, duas das mais populares das perspectivas criminológicas recentes – a teoria da desistência e a justiça restaurativa – me parecem ter dimensões e efeitos tanto conservadores quanto radicais. A teoria da desistência (Maruna, 2001), por exemplo, em algumas de suas manifestações, parece ser um pouco mais do que o outro lado da moeda das antigas teorias das “causas do crime”, que indagavam por que as pessoas mais pobres cometiam crimes. Todavia, em algumas de suas aplicações administrativas, a pesquisa da teoria da desistência tem sido influente no lobby por uma política melhor em termos de emprego, moradia e outras oportunidades de welfare para ex-prisioneiros (ver McNeill, no prelo). Do mesmo modo, a justiça restaurativa pode ser criticada por falhar em indagar quem restaura o que para quem? (Carlen, 2000), sendo a implicação que, de novo, se espera que os pobres façam as reparações aos ricos, em vez de ser o contrário. Contudo, em 2009, John Braithwaite, o teórico fundador das perspectivas da justiça restaurativa, ra25
dical e convincentemente argumentou que a lógica da justiça restaurativa poderia ser aplicada, muito proveitosamente, ao desenvolvimento de uma escala de efetivas punições, apropriadas aos crimes muito graves de banqueiros transgressores (Braithwaite, 2009). A questão é que, como mudam constantemente as condições para mudança, também muda a importância política de teorias que competem. Uma vez reconhecido isso (junto com o reconhecimento da natureza multidimensional das questões do crime e da justiça criminal), a utilidade da atual prática acadêmica de analisar teorias do crime em termos de seus potenciais conservadores ou radicais se torna sempre mais questionável. Certamente, uma das aplicações da crítica analítica de teorias sociais é que ela pode alertar adeptos putativos de uma perspectiva teórica específica sobre os perigos inerentes em algumas de suas premissas ideológicas conservadoras ou radicais sobre as quais a teoria é construída. Mas, é um abuso da crítica social insistir que uma teoria edificada sobre premissas sociais conservadoras deve necessariamente ter efeitos regressivos. Em circunstâncias culturais e políticas cambiantes, as perspectivas teóricas podem ser lidas e postas em prática muito diferentemente em momentos diferentes, e também podem ter os efeitos bastante opostos do que poderia ter sido previsto por uma análise literal de suas premissas fundadoras. Daí a necessidade de perspectivas contantemente cambiantes sobre, e leituras alternativas de, os significados de crime e de justiça – e sobre as teorias que tentam lê-las e as traduzir em políticas públicas. Dar marcas às perspectivas ou teorias criminológicas é uma estratégia heurística útil para distinguir as dimensões específicas do crime, objetos do conhecimento ou formas de saber com o que elas estão preocupadas, mas sua efetividade social é determinada 26
por suas condições históricas de existência em conjunção com a política penal de seu próprio tempo e daquelas de gerações seguintes. É provável que todas as teorias criminológicas (acadêmicas ou não) sejam escritas e lidas a partir de uma gama (e, amiúde, de um mix) de pontos de vista epistemológicos, anti-epistemológicos, culturais, políticos e emocionais. De fato, a “alteridade” da criminologia sempre foi tal que alguns de seus mais conhecidos praticantes argumentaram que a criminologia não existe em absoluto como uma disciplina acadêmica (ver Cohen, 1988) e é meramente um saco de retalhos de conceitos e perspectivas furtados de disciplinas mais antigas. Pois, mesmo antes de Maureen Cain (1989) defender uma “criminologia transgressiva” imbuída de conceitos e posições filosóficas que atravessam os tradicionais limites constitutivos da disciplina da criminologia – jurisprudência, direito, matemática, sociologia, antropologia e psicologia –, a criminologia havia sido regularmente enriquecida por perspectivas tomadas de escritos modernistas e pósmodernistas (Lyotard, 1979); assim como da história (Thompson, 1963; Hobsbawm, 1965, 1969); do feminismo (Kristeva, 1980); de estudos culturais e multiculturais (Hall et al., 1978); da política (Arendt, 1970); e da geografia urbana (Harvey, 1973). Nos últimos quinze anos, ainda, tem havido uma crescente ênfase nos papeis da imaginação (Young, 2011; Walklate e Jacobsen, 2016); das emoções (Karstedt, Loader e Strang, 2011; Clarke, Brousine e Watts, 2015); da estética (Carrabine, 2012 e Hviid-Jacobsen, 2014); da narrativa (Presser e Sandberg, 2015); do cinema (Rafter e Brown, 2011); do carnaval (Presdee, 2000) e da geografia (Piacentini, 2004; Pallot e Piacentini, 2012), na criação de tentadoras visões de novas formas de organização humana e
concepções da justiça. Mas, se algum único impulso pode ser destacado como dando maior ímpeto à recente diversidade de criminologias alternativas críticas, ele está, na minha opinião, na renovação da virada cultural na criminologia (Ferrell, Hayward, Morrison e Presdee, 2004; Ferrell, Hayward e Young, 2008). Esse renascimento cultural nas perspectivas criminológicas dotou as criminologias alternativas críticas de todas as vantagens cintilantes da imaginação, da criatividade e da crítica, que são tão vitais à arte científica da criminologia, fundada, como ela é, não apenas no lado mais escuro da lei e ordem, mas também no lado mais brilhante do esforço humano e das visões de justiça. Minha própria preferência alternativa crítica é por uma “criminologia imaginativa”, que também é multicultural.
de uma nova justiça criminal são sobre como poderíamos querer viver no futuro. A promessa da criminologia imaginativa, portanto, é de que, ao desconstruir as minúcias de questões já conhecidas da justiça criminal, ela pode separar os detritos de velhas formas de pensar sobre a justiça criminal e, então, a partir desses mesmos detritos, dar forma a novos desejos e situar novas possibilidades para uma justiça criminal mais justa – sujeita sempre, é claro, às condições políticas do momento. Essa... é a promessa da criminologia imaginativa. Sua promessa é multifacetada e ilimitada. Tal qual, sua prática. (Carlen, 2016, no prelo)
nativa evita a busca da criminologia administrativa por evidências do já conhecido em favor de imaginar o novo, ela é uma manifestação de uma criminologia crítica mais ampla. Diferente da criminologia administrativa, que envolve uma jornada reflexiva num passado oficial, a criminologia imaginativa embarca numa viagem não mapeada por um futuro não oficial. Porém, mais que isso, a promessa da criminologia imaginativa é que ela é bem concebida para ser uma ponte entre a criminologia crítica e uma política crítica da política da justiça criminal. Pois, a criminologia imaginativa... não pretende excluir a política da crítica (Carlen, 2012). Embora poderia ser possível utilizar uma estratégia baseada em evidências da criminologia administrativa em apoio parcial a uma política crítica de justiça criminal, uma estratégia baseada em evidências é, em si mesma, inadequada como um guia para a mudança social. Isso porque, enquanto a “evidência”... é necessariamente sobre o que foi feito no passado, os princípios imaginados
Quando uma perspectiva falha em lançar qualquer luz sobre o que está acontecendo, outras perspectivas são tentadas, e se nenhuma delas funcionar, a questão é alterada e também, talvez, a forma de saber. Pode ser que uma metáfora lance luz sobre o que anteriormente tinha estado tão confuso; quiçá haja uma repentina consciência de uma flagrante ausência no texto ou de que a lógica das explanações das pessoas seja absurda na medida em que elas são formalmente contraditórias ou substancialmente inconcebíveis; ou, por vezes, é a fala de uma peça, o tema de um romance, algum clichê popular já gasto ou a letra de uma música pop que é inspiradora. E, ocasionalmente, é um pensamento descartado por outro acadêmico ou um novo entendimento dos argumentos de alguma outra pessoa... E assim o processo de descontrução, reconstrução e desconstrução continua, conduzindo a lugares que jamais se esperou estar – e também levando o investigador imaginativo a um bom número de becos sem saída. Todavia, lembre: um
Reconhecendo que novos saberes sociais sempre surgem da desconstrução e da reconstrução criativa de modos de saber preexistentes e existentes, a criminologia imaginativa não é essencialmente excluNa medida em que a criminologia imagi- dente de qualquer forma de conhecimento.
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cul-de-sac para um investigador bem pode ser o início de algo novo para um outro subsequente e não deveria ser arrumado em prol de uma solução, uma lógica ou uma prova. Em vez de ser visto como um beco sem saída, ele deveria ser deixado como uma ponta solta. No entanto... embora uma criminologia imaginativa nunca deveria levar a um fechamento ideológico, sugerindo que tudo que há para ser conhecido sobre uma questão de crime ou justiça é, agora e para sempre, já e sempre conhecido, criminologistas imaginativos deveriam ser também capazes (se eles assim desejarem) de imaginar como os elementos do imaginário da justiça criminal atual poderiam, se diferentemente imaginados, dar origem a novas e mais democráticas concepções de justiça criminal (Carlen, 2016, no prelo).
Há sempre alternativas múltiplas, sempre coalescentes e sempre atomizadoras. Contudo, a busca por formas alternativas de teorizar as relações entre justiça social e criminal no presente, e, então, de imaginar como elas poderiam ser diferentes no futuro, reclama cada vez menos por cada vez mais novas criminologias de “marca” (Carlen, 1998) e cada vez mais urgentemente por novas formas de governança democrática comprometidas com a justiça (tanto social, quanto legal) como equidade e com a construção de formas estatais nas quais essa justiça distributiva melhoradora possa ser realizada. Que papel poderiam representar criminologistas alternativos críticos num tal empreendimento? Deveriam os acadêmicos alguma vez saltar da torre de marfim para o turbilhão da política penal e da ação política? Alguma vez estão eles justificados em não o fazer? A SIGNIFICÂNCIA DAS CRIMINOLOGIAS ALTERNATIVAS HOJE A imaginação radical espera ser desencadeada por meio de movimentos sociais nos 28
quais a injustiça é posta a correr, e a alfabetização cívica, a justiça econômica e a luta coletiva, uma vez mais, se tornam o pré-requisito para ação, esperança e a luta pela democracia. (Henry Giroux, 2013)
Durante os primeiros quinze anos do século XXI, política, economia e cultura continuaram a dominar o debate criminológico, embora isso ocorra em novas teorizações que têm produzido perspectivas concorrentes sobre as relações entre estados, política, políticas e ideologias da justiça criminal. Críticas ao policiamento, à prática da justiça criminal e ao aprisionamento tomaram novas formas. Desenvolvimentos em tecnologia e mudanças nos medos públicos, nos costumes e sensibilidades sociais produziram questões e teorizações criminológicas alternativas. Discussões apaixonadas continuam a ser travadas – e especialmente sobre a regulamentação das drogas, controles contra a mobilidade geográfica, regulações constantemente cambiantes sobre formas de sexualidade permitidas e proibidas, e o uso da pena de morte. Todas essas questões são tratadas neste livro. Outros amplos panoramas de algumas das principais questões, assim vistas por criminologistas britânicos e americanos, podem também ser encontrados em duas recentes coletâneas de artigos: What Is Criminology?, editada por Mary Bosworth e Carolyn Hoyle (2011), e New Directions in Criminological Theory, editada por Steve Hall e Simon Winlow (2012). Num dos mais originais livros britânicos de criminologia dos recentes anos, Rethinking Social Exclusion, Winlow e Hall (2013) invocam as palavras de Slavoj Žižek (2009), Gaston Bachelard (1940), Jacques Lacan (1985) e Alain Badiou (2001) para criar um argumento mordaz de que a ética de mercado do neoliberalismo destruiu o social. Interessante notar: parece que, conforme a criminologia chega à maturidade, há cada
vez menos ênfase em “marcas” diferentes de criminologias concorrentes. Ao invés, e paradoxalmente, na tolerância quanto, e na isistência sobre, formas alternativas de saber, há um crescente reconhecimento, pelas criminologias alternativas críticas, de que o objetivo unificador fundamental do trabalho criminológico não é a teorização competitiva da justiça criminal, mas a realização democrática da justiça social. Criminologistas acadêmicos, ativistas e cotidianos, no Reino Unido, nos EUA e na Austrália, persistentemente têm se envolvido em batalhas legais e/ou políticas contra a injustiça e a corrupção em relação à polícia (Carrington, 1998; Scraton, 2009 ), às prisões (Davis, 2005) e à imprensa (Davies, 2015), assim com em relação a muitas outras áreas da justiça criminal quando surgem questões locais. De fato, alguns dos livros mais incisivos e informativos sobre justiça criminal, escritos no fim do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, foram escritos por ativistas da justiça criminal ou acadêmicos ativistas (ver, por exemplos: Bianchi e Swaaningen, 1986; Campbell, 1993; Hannah Moffatt, 2000; Brown et al., 2003; Ramsbotham, 2003; Currie, 2004; Green e Ward, 2004; Becket e Sasson, 2000/2004; Phoenix e Oerton, 2005; Wilson, 2005; Stern, 2006; Sim, 2009; Sudbury, 2005; Richie, 2012; Cunneen, Baldry, Brown et al., 2013; Moore, Rolston e Tomlinson, 2014). Isso não surpreende; é na luta contínua por justiça que nascem as criminologias alternativas críticas. Pois – e voltando à questão que provocou o debate da criminologia pública –, qual é o sentido de mesmo imaginar criminologias alternativas críticas se, quando desenvolvidas, elas permanecem trancadas nas salas de leitura e conferência da academia, ou fechadas dentro das páginas de livros acadêmicos como este aqui? Se as criminologias alternativas críticas primeiro
evitassem algumas das premissas conservadoras da criminologia administrativa e, então, depois disso, somente tagarelassem entre si em periódicos acadêmicos e dentro da academia, elas também se privariam de ter entrada em quaisquer políticas sociais ou da justiça criminal, sejam quais forem. Logo, qual pode ser a relação de criminologistas alternativos críticos acadêmicos com o ativismo político e a formulação de políticas? Isso é geralmente visto como a questão central no debate sobre criminologia pública. Porém, para criminologistas acadêmicos, uma questão ainda mais crucialmente focada concerne se pesquisadores podem manter credibilidade acadêmica enquanto, ao mesmo tempo, esposam interpretações radicais de dados e redefinições de problemas – atividades que podem deixá-los abertos a acusações de bias. Quando eu levei em conta essa questão, em 2012, cheguei à conclusão de que, para manter a integridade acadêmica, os pesquisadores sempre têm que conduzir sua pesquisa de acordo com protocolos de pesquisa transparentes e profissionalmente aprovados. Mas, que, depois disso, uma vez que a pesquisa estivesse concluída, criminologistas críticos podem apenas influenciar uma política pública se eles colocarem sua pesquisa e os argumentos que eles desejariam ver nela baseados a serviço de algum grupo político ou de ação política. Argumentei como segue: A crítica acadêmica e a política penal são praticadas por pessoas que sustentam várias, e frequentemente opostas, crenças religiosas, culturais e políticas sobre as causas do crime e os objetivos da justiça criminal. Criminologistas acadêmicos são distintos de outros profissionais da justiça criminal, ao trabalhar sob uma ética profissional que demanda que eles trabalhem conforme certos padrões éticos, metodológicos e críticos, e observem certos protocolos profissionais enquanto realizam 29
pesquisa investigativa e crítica teórica. No entanto, a academia contém acadêmicos de todo o espectro político e que sustentam uma ampla gama de visões sobre o crime, a criminologia e a justiça. Consequentemente, quando criminologistas [acadêmicos altenativos críticos] trabalham na arena pública da política penal, eles não podem esperar invocar suas organizações profissionais [ou suas instituições acadêmicas] para dar apoio a suas interpretações das relações entre seus resultados de pesquisa e suas recomendações políticas. Em vez disso, eles têm que desenvolver argumentos que vão além da validade metodológica (ou não) de seus achados ou da lógica (ou não) de sua perspectiva teórica, e esses argumentos dependerão... das escolhas que eles fazem, de acordo com seus próprios valores religiosos, políticos ou éticos. Além disso, para ter qualquer sucesso com esses argumentos, eles terão que fazê-los não apenas como... criminologistas acadêmicos, mas também dentro de grupos ativistas ou partidos políticos, ou com a ajuda de autoridades solidárias, ou dentro de segmentos da profissão da criminologia comprometidos com os mesmos valores e políticas. Assim, quando criminologistas entram no reino da política penal, eles deixam em parte seu terreno profissional e entram na política penal como acadêmicos a serviço de algum grupo com um interesse político particular. Eles se valem de sua expertise profissional, mas apenas a serviço de uma política... que eles [apoiam]. Os diferentes protagonistas na política penal atuam dentro de coletivos, mas eles geralmente não estão atuando dentro de um coletivo de criminologistas acadêmicos. A força da crítica e do novo saber depende do poder tanto dos discursos quanto dos coletivos no interior dos quais eles são expressados. Portanto, embora seja importante para uma política penal que, quando criminologistas [alternativos críticos] fazem crítica, eles se tornam adeptos de [regras de pesquisa profissionalmente 30
reconhecidas], é igualmente importante que, quando eles entram na política penal, eles o façam explicitamente como adeptos de ideologias [críticas e democráticas] da justiça. (Carlen, 2012. Colchetes denotam alterações do original.)
Alternativas à injustiça não são alcançadas sem uma luta. Mas, em cada luta, há alternativas. Sempre e onde quer que as criminologias alternativas críticas sejam invocadas – e sejam suas gêneses em direito, literatura, música, drama, cultura, política, sociologia, matemática, moralidade, filosofia – ou em modos de saber sequer sonhados –, as imaginações radicais na academia e em outros lugares ainda podem se unir para combater os males da injustiça, da exploração e da desumanidade, ao prever novas formas de organização social, política e econômica. Concentrando-se nas multivalentes condições econômicas, políticas e culturais, nas quais o crime, os criminosos e os sistemas legais do estado são tanto conhecidos quanto desconhecidos, as criminologias alternativas críticas oferecem contribuições teóricas radicais a lutas sempre inacabadas por justiça global e local. NOTAS 1 Alguns dos livros citados neste parágrafo possuem edições brasileiras: Criminologia Crítica, de Taylor, Walton e Young (Graal, 1980); Conhecimento e Interesse, de Habermas (Unesp, 2014); Vigiar e Punir, de Foucault (Vozes, 2015); Cárcere e Fábrica, de Melossi e Pavarini (Revan, 2006). (N.T.) 2 De origem inglesa, o termo sociológico bias indica a distorção do julgamento de um observador por estar ele intimamente envolvido com o objeto de sua observação ou a tendência a mostrar preconceito contra um grupo e preferência em relação a outro. (N.T.)
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CRIMINOLOGIA CULTURAL CONTINUADA
Jeff Ferrell e Keith Hayward Tradução de Leandro Ayres França
A criminologia cultural está interessada na convergência de processos culturais, criminais e de controle do crime; como tal, ela situa a criminalidade e seu controle no contexto de dinâmicas culturais e da controvertida produção de significado. Dessa forma, a criminologia cultural busca entender as realidades cotidianas de um mundo profundamente desigual e injusto, e destacar as maneiras nas quais o poder é exercido e resistido entre a interação de criação de regras, violação de regras e representação. O assunto da criminologia cultural, então, atravessa uma variedade de questões contemporâneas: a construção mediada e a mercantilização do crime, da violência e da punição; as práticas simbólicas daqueles engajados em atividades subculturais ou pós-subculturais ilícitas; as ansiedades existenciais e as emoções situacionais que animam o crime, a transgressão e a vitimização; os controles sociais e os significados culturais que circulam dentro de e entre arranjos espaciais; a interação do controle estatal e da resistência cultural; as culturas criminogênicas geradas pelas economias de mercado; e uma miríade de outros casos nos quais o significado situacional e simbólico está em causa. Para realizar essa análise, a criminologia cultural adota perspectivas interdisciplinares e métodos alternativos que regularmente a deslocam para
além das fronteiras da criminologia convencional, extraindo de estudos de mídia, antropologia, estudos sobre jovens, estudos culturais, geografia cultural, sociologia, filosofia e outras disciplinas, e utilizando novas formas de etnografia, análise textual e produção visual. Em tudo isso, a criminologia cultural procura desafiar as estruturas aceitas da análise criminológica e reorientar a criminologia às condições sociais, culturais e econômicas contemporâneas. Desse modo, a criminologia cultural tem, desde o princípio, adotado uma orientação aberta, convidativa com relação à análise criminológica, e tem estado menos interessada na certeza definidora do que na crítica dinâmica, emergente. A questão, então, não é tanto o que a criminologia cultural é, quanto como a criminologia cultural continua – isto é, como a criminologia cultural tem recorrido a perspectivas existentes no interior e além da criminologia, e continuado a reinventá-las e a re-situá-las com o intuito de desenvolver uma criminologia familiarizada com o mundo contemporâneo e suas crises1. SURGIMENTO DA CRIMINOLOGIA CULTURAL
Quando a criminologia cultural apareceu, pela primeira vez, em meados da década de 1990 (Ferrell e Sanders, 1995; Ferrell, 1999), como uma perspectiva crimi35
nológica distinta, assim o fez sintetizando e revitalizando duas linhas do pensamento criminológico, uma norte-americana, e outra britânica (ver Hayward, 2016). A tradição norte americana incluía a teoria do etiquetamento, com suas compreensões de crime e desvio como construções sociais e, mais particularmente, com seus insights sobre as formas em que o poder é exercido por meio da atribuição de sentido à ação humana. Igualmente importante foi o tipo de análise subcultural desenvolvida por Albert Cohen e outros, que encontrou nas ações coletivas de grupos marginalizados não simples desobediência ou autodestruição, mas, ao invés, a criação de significados e interpretações alternativas em resposta a injustiças variadas. Nessa tradição norte-americana, também estavam os tipos de abordagens “naturalísticas” ao comportamento criminal e desviante, preconizadas por David Matza, e as vívidas etnografias empíricas que Howard Becker, Ned Polsky e outros empregaram para dar luz aos insights de abordagens interacionistas e do etiquetamento. A linha de pensamento criminológico britânico que culminou na criminologia cultural ecoava essas perspectivas norte-americanas, mas as situava em estruturas maiores de mudança social, desigualdade estrutural e representação cultural. Acadêmicos britânicos que estavam engajados com novas formas de estudos culturais e com a criminologia crítica passaram a reconceituar classe social como uma experiência vivida – como um grupo mutável de atitudes, orientações e práticas culturais – e, assim, a entender que classe social e desigualdade social eram amiúde policiadas, impostas e reforçadas por controles diferenciais em atividades de lazer e empreendimentos culturais. Eles, igualmente, começaram a analisar as formas nas quais surgiam os pânicos morais mediados em 36
resposta a, mas também como deflexões de, profundas mudanças estruturais na ordem social. Como na tradição norte-americana, práticas subculturais e estilos subculturais também estiveram em consideração, mas com uma ênfase em como tais práticas e estilos podem funcionar como formas de resistência cultural ao mesmo tempo em que também atraem escrutínio e vigilância. Essas linhas de análises criminológicas, norte-americana e britânica, já estavam entrelaçadas de alguns modos – com, por exemplo, os “novos criminologistas” britânicos das décadas de 1960 e 1970, inspirados por e comprometidos com o potencial epistêmico subversivo da teoria do etiquetamento e a profundidade cultural da etnografia naturalística –, mas a criminologia cultural agora procurava criar um tipo novo e distinto de criminologia a partir dessas duas correntes intelectuais. Conforme ela apareceu em meados da década de 1990, essa nova criminologia cultural enfatizava o aspecto decisivo do significado em questões de crime e justiça, argumentando que tanto o crime quanto seu controle tomavam forma por meio de controversos processos de interpretação e representação. Do mesmo modo, ela ressaltava as formas nas quais a política criminal e a justiça criminal operam no reino da dinâmica cultural, e as formas das quais poder e controle cada vez mais dependem na implementação de simbolismo, estigma e emoção. Em tudo isso, a criminologia cultural defendeu uma metodologia de atenção e percepção cultural – isto é, modos de explorar crime e justiça que estivessem sintonizados com as nuances da linguagem e da imagem, e com a dinâmica interacional de situações subculturais e espaciais. Esse esforço em combinar as tradições britânica e norte-americana em uma criminologia cultural distinta, na década de 1990, não foi realizado, porém, simples-
mente por uma questão de inovação intelectual. Ao invés, isso foi empreendido em dois contextos específicos e para dois específicos propósitos. O primeiro desses contextos foi a ascendência de perspectivas e metodologias positivistas na criminologia, e o desenvolvimento paralelo da pseudodisciplina de “justiça criminal”. Especialmente na América do Norte, o crescimento de, e o suporte governamental a, programas de justiça criminal haviam se desenvolvido em concerto com as espécies de métodos quantitativos e as criminologias administrativas que poderiam apoiar tais programas. Da perspectiva da criminologia cultural, essas estratégias confiscavam a distância crítica necessária para a análise criminológica viável tanto do crime quanto da justiça criminal. Igualmente, essas estratégias inter-relacionadas esvaziavam o significado da matéria da criminologia, reduzindo pessoas e situações a conjuntos de dados e resumos estatísticos, e, desse modo, apagando do discurso criminológico as próprias dimensões que os criminologistas culturais viam como essenciais para compreensão e análise. Como resultado, a criminologia cultural surgiu não somente como uma alternativa a essas estratégias, mas como uma perspectiva concebida a confrontá-las e superá-las. Revitalizar e reinventar as tradições britânica e norte-americana de análise cultural e crítica sociológica era recuperar o que a justiça criminal e suas criminologias administrativas há muito tempo tinham usurpado. De modo mais amplo, os criminologistas culturais procuravam importar essas tradições norte-americana e britânica a um novo contexto histórico. Como os criminologistas culturais cuidadosamente têm demonstrado, as perspectivas às quais eles recorrem – teoria do etiquetamento, teoria da subcultura, criminologia crítica, a “nova criminologia” britânica, estudos culturais
etc. – não apareceram num vácuo intelectual ou histórico. Ao invés, assim como Marx, Durkheim e Weber outrora se comprometeram a teorizar a emergência da modernidade, esses teóricos tentaram teorizar as profundas reviravoltas sociais que ocorreram pós Segunda Guerra Mundial na Europa, nos Estados Unidos e noutros lugares, e a ligar essas convulsões sociais a mudanças na natureza do crime e do controle social. Conflitos sobre direitos civis e inclusão social, subculturas jovens emergentes, uma cultura consumista em proliferação, novos estilos de desvio e transgressão, e com eles novas formas de controle social e legal – tudo isso constituía tanto o contexto quanto uma matéria mais ampla das perspectivas criminológicas alternativas que surgiram nas décadas de 1960 e 1970. Essas perspectivas, naturalmente, permanecem de grande valor, como o são aquelas de Weber, Marx e dos teóricos de tempos anteriores. Mas, como perceberam os criminologistas culturais, o mundo em que tais perspectivas apareceram havia mudado novamente e com essa mudança viera a necessidade de reinventar essas perspectivas, re-situá-las na distintiva dinâmica da ordem social contemporânea. Isso, então, foi o segundo contexto e propósito da criminologia cultural: fazer uma criminologia do momento presente – uma criminologia da e para a modernidade tardia. MODERNIDADE TARDIA E SEUS DESCONTENTAMENTOS
A modernidade tardia oferece um panorama global de ambiguidade e confusão, e com isso uma sensação espiralada de incerteza para muitos de seus habitantes. Para um número cada vez maior de pessoas, foram soltas as velhas âncoras de estabilidade geográfica e ocupacional, para serem substituídas apenas por multiplicadoras 37
marginalidades: contínua migração dentro e entre nações, episódios imprevisíveis de trabalho temporário e reinvenções seriais do self. A matéria-prima para essas reinvenções seriais vem de outras características da modernidade tardia: o fluxo infinito, instantâneo e globalizado de imagens, informações e identidades anunciadas via celulares e telas de computador, tudo isso proporcionando tanto uma panóplia livremente fluida de possibilidades quanto a sensação de que nenhuma escolha possível jamais é a certa. Esse hiperpluralismo de identidades e orientações culturais, por sua vez, alimenta o hiperindividualismo – a sensação de que o lugar de alguém no mundo não é definido pela associação comunitária duradoura, mas pela construção bem sucedida de si mesmo por meio do consumo apropriado e da realização mediada. O mundo fluido, globalizado da modernidade tardia, desta forma, também confunde o local e o universal, a distinção entre lugar e não-lugar, de tal modo que seus deslocamentos vêm a ser tanto geográficos como existenciais. Se a imaginação sociológica nos permite encontrar forças sociais na experiência pessoal, então esses são os resíduos pessoais da modernidade tardia: desenfreada incerteza existencial e ontológica, um senso precário da identidade pessoal e, com isso, anseios amiúde desesperados por certeza e definição. Na medida em que cada período histórico pode ser caracterizado por uma particular trajetória, então a trajetória da modernidade tardia – essas décadas desde os insights criminológicos dos anos 1960 e 1970 – não parece muito para cima ou para baixo quanto lateral e à deriva. Em meio a esse fluxo tardo-moderno, criminologistas culturais identificaram três constelações de ações, atitudes e imagens que parecem particularmente salientes para uma compreensão da criminalidade e do controle do crime contemporâneos. A pri38
meira dessas se agrupa em torno de emoção, expressividade e incerteza. Aqui, abundam tensões e contradições. Significado e autoexpressão são buscados num mundo cujos hiperpluralismo e fluidez cultural regularmente oprimem o self, e onde novas formas de vigilância e controle tornam o conceito de autonomia individual quase sem sentido. Excitação, imediatismo e consumo de experiência são vendidos como indicadores de uma vida bem vivida, mas como a maioria dos produtos de consumo, oferecem mais no pacote do que na vantagem. Para os afluentes, uma sensação de vertigem assombra suas construções de certeza e segurança garantida, e, com isso, permanece um medo de caírem de quaisquer que sejam as alturas; para aqueles nas margens, a experiência de estar à deriva – entre trabalhos, entre cidades, entre relacionamentos – cria uma vida de contínua intersticialidade (Young, 2007; Ferrell, 2012a). Como resultado, raiva, pânico e humilhação circulam por meio do sistema social; prazer e excitação permanecem geralmente apenas fora de alcance; e identidades tomam forma nas sombras, ou, por vezes, em formas sintéticas outrora imagináveis. Quanto ao crime e à transgressão, esse mix de emoção e incerteza significa que surgem novas formas de criminalidade – em verdade, são buscadas por algumas de suas promessas de validação emocional ou identidade fabricada – e que atuais modelos criminológicos de risco, motivação e causalidade não mais podem se sustentar. Uma segunda constelação de ações e atitudes é proporcionada pelos administradores da modernidade tardia, que empregam os métodos desse mundo tardo-moderno – imaginação, engano, significado manipulado – e, ao mesmo tempo, tentam colocar por cima de suas flutuações infinitas uma rede de certeza e controle. Para eles, a arriscada incerteza da modernidade
tardia é algo a ser calculado e controlado; seus emergentes crimes, um problema a ser previsto e, assim, prevenido (Hayward, 2007). Como resultado, a modernidade tardia também vem a caracterizar novas formas de exclusão social e cultural, e novos padrões de controle social e espacial, tão penetrantes quanto insidiosos. Muitas dessas novas formas são revanchistas por natureza, destinadas a recuperar aquilo que agora está perdidamente confuso; outras estão tão instituídas que podem policiar a crescente e incessante desigualdade gerada pelas economias tardo-modernas. Geralmente, esses novos controles e exclusões estão entremeados com a criação cultural do “outro” – um outsider facilmente identificável que pode se tornar o foco do escrutínio público e o bode expiatório para as vicissitudes da modernidade tardia. De interesse dos criminologistas culturais por seu escopo e alcance – que se estende da utilização local de “espetos antimorador de rua” à guerra global ao terror –, essa constelação de controles é notável também por outra razão: se não intencionalmente, ela expõe ainda mais as tensões sociais e culturais, e outras iterações da dialética entre controle social e expressiva transgressão (Presdee, 2000; Hayward, 2002). Essa tensão entre excitação e manipulação está também evidente numa terceira constelação, à qual podemos nos referir como a “mediascape2” contemporânea (Appadurai, 1996). Conforme a mídia de hoje – de movimentos rápidos, onipresente e cada vez mais interativa – dá forma a relações entre espaço, tempo e identidade, ela também “enquadra” como o crime e seu controle vêm a ser entendidos na sociedade. Para os criminologistas culturais, essa mediascape constitui uma infinita “sala de espelhos” (Ferrell, Hayward e Young, 2015), onde as realidades nuas e cruas do crime e do controle criminal, e as imagens
dessas realidades, refletem continuamente umas nas outras. Consequentemente, os criminologistas culturais entendem que não faz mais sentido estudar separadamente o crime do “mundo real” e suas representações mediadas. Ao invés, numa sociedade hiperconectada, onde proliferam imagens mediadas em massa de crime e desvio, e onde crime e controle se entrelaçam com entretenimento e cultura popular, são demandadas formas de análise criminológica que possam dar sentido à linha turva entre o real e o virtual. E, como sempre para a criminologia cultural, esse foco é político bem como teórico: na modernidade tardia, com o poder cada vez mais exercido por meio de representação mediada e produção simbólica, batalhas em torno de imagem, estilo e significado mediado se tornam essenciais na disputa por crime e controle criminal, desvio e normalidade, e a emergente forma da justiça social. UMA CRIMINOLOGIA CULTURAL DA E PARA A MODERNIDADE TARDIA
Adotando a imaginação sociológica e criminológica (Mills, 1959; Young, 2011), os criminologistas culturais entendem que ação humana e circunstância histórica inevitavelmente se entrelaçam; dentro do amplo alcance da estrutura social e da mudança social, modelos emergentes de poder e controle se infiltram na vida cotidiana, para ali serem ampliados ou resistidos na sensualidade da experiência vivida. Consequentemente, criminologistas culturais não propõe que as formas contemporâneas de crime e justiça simplesmente “refletem” tendências tardo-modernas. Em vez disso, os crimes e controles da modernidade tardia se relacionam com sua dinâmica maior, amplificando-os em certos momentos, alterando-os e minando-os em outros. Agora, daremos uma olhada mais próxima nos três 39
temas esboçados acima, a título de uma introdução geral à criminologia cultural e a algumas de suas abordagens da modernidade tardia, seus crimes e seus controles. O IMEDIATISMO DA IDENTIDADE ILÍCITA E DA TRANSGRESSÃO
O fluxo do mundo tardo-moderno sugere que os crimes dessa era precisarão ser amiúde entendidos em termos de imediatismo, efemeridade e incerteza; assim como as identidades associadas com localização ocupacional ou espacial foram desestabilizadas, assim também o foram aquelas geradas na interação de crime e transgressão. Nesse sentido, modelos mais antigos de criminalidade e de causas criminais, geralmente fundadas em hipóteses de sequenciamento linear, previsibilidade positivista e identidade criminal estável, bem podem necessitar uma reimaginação. Nessa reimaginação, o significado do crime frequentemente emerge em momentos e situações, e então se metamorfoseia no meio da reprodução infinita de sua imagem; hipóteses essencialistas sobre a natureza biológica ou a determinação social desaparecem em estados fluidos de ser e devir; e o sentido de uma subcultura criminal como uma coletividade delimitada de significado, ou de policiamento cotidiano como um manual compartilhado de práticas, abre caminho para entendimentos mais fluidos e rizomáticos do crime, seus participantes e seu controle. Uma perspectiva fundadora a esse respeito foi proposta por Jack Katz (1988), com sua compreensão do primeiro plano do crime e das seduções emocionais que ali emergem. Na visão de Katz, a criminologia há muito tem sido constituída de trás para frente – isto é, construída sobre uma hipótese subjacente de que fatores estruturais podem prever a natureza do crime e da criminalidade. Constituída dessa forma, 40
a criminologia tem investigado sobretudo fatores antecedentes que conduzem ao crime e à criminalidade – associação diferencial, tensão, controles sociais frouxos, classe e desigualdade social – ao passo que ignora amplamente as situações do crime e do controle criminal como fenômenos emergentes por direito próprio. Todavia, como argumenta Katz, quando adentramos o imediatismo do crime (Ferrell, 1997) – dentro de momentos de violência interpessoal, furto de propriedade intelectual ou policiamento de rua –, descobrimos algo que é, em muitos aspectos, imprevisível via teorias criminológicas existentes: um efêmero, instável mix de emoções que aparecem no interior da situada dinâmica social do momento. Essas emoções fugazes, lampejando entre aqueles que compartilham a situação, por sua vez, agem como seduções momentâneas que atraem participantes além do que as teorias de antecedentes podem prever ou do que os próprios participantes poderiam imaginar. Aqui, noções de causalidade linear, estrutural, são perdidas à efemeridade do momento, e a identidade criminal é vista como sendo um fenômeno mais emergente, situado (Garot, 2010), do que um estado estável de contínua autoconceitualização. Como outros criminologistas culturais já assinalaram (Ferrell, 1992; Young, 2003; Hayward, 2004), e como nos lembra a imaginação sociológica, fatores antecedentes ou estruturais por certo permanecem presentes em meio a esse primeiro plano do crime – agora, porém, entendidos em tensão dialética com seus significados e emoções emergentes, em vez de como previsores ou causas dele. E como também já notaram criminologistas culturais, esse fenômeno do crime como um momento de frágil intensidade emocional parece suscetível de proliferar num mundo tardo-moderno de afeto e identidade desestabilizados.
A identidade desestabilizada também está na base de uma segunda abordagem criminológica cultural sobre autoconcepção e transgressão. A desqualificação do trabalho – e, com ela, a dissociação do trabalhador com o processo de trabalho – é uma antiga característica de economias capitalistas (Braverman, 1974); agora, com a proliferação tardo-moderna de trabalhos temporários e economias de serviço emocionalmente gerenciadas, a alienação dos trabalhadores quanto às situações e aos processos de seu próprio labor é redobrada. Para cada vez mais pessoas, o trabalho não oferece a promessa fordista de estabilidade ocupacional, nem o potencial para desenvolver habilidade e identidade. Do mesmo modo, a constante burocratização da vida social na modernidade tardia continua a acrescentar barras à jaula de ferro que Weber (1978) primeiro identificou, e assim a reduzir a identidade humana em categorias organizacionais e constelações de megadados3. Essa mesma trajetória pode ser vista na proliferação de controles de gerenciamento de risco na vida cotidiana; por sua lógica, situações de risco ou incerteza devem ser contidas – ou, idealmente, ser expurgadas de um mundo de segurança forçada, megadados e identidades cuidadosamente gerenciadas. Tomadas como um todo, essas dimensões da vida tardo-moderna coalescem numa profunda perda de identidade pessoal, numa sensação de contenção infiltrada e, para muitos, numa “vasta coletividade de tédio” (Ferrell 2004a: 287, 2010). Nesse vácuo de significado e emoção, flui a experiência da ação-limite. Como conceituado por Stephen Lyng (1990, 2005) e outros (Ferrell et al.; 2001; Lyng e Ferrell, 2016), ação-limite, na sua forma mais simples, denota atos de voluntária e geralmente ilícita assunção de risco – atividades como corrida de rua, paraquedismo, base
jumping e grafites. Mas, além disso, a ação-limite é conceituada como uma resposta distinta às acumuladoras degradações da modernidade tardia. O engajamento voluntário em atividades de alto risco reverte a lógica do gerenciamento de riscos contemporâneo, adotando o risco por seus prazeres sensuais e possibilidades transgressivas. Por meio dos riscos da ação-limite, os participantes, por seu turno, recuperam algum senso de identidade, aquela desenvolvida a partir de vívidas emoções e autodeterminação radical; em momentos de risco extremo ao self e à sobrevivência, emoções e autopercepções escapam de sua contenção tardo-moderna dentro de economias de serviço e categorias burocráticas. De modo significativo, porém, a ação-limite não está fundamentada somente no risco; ela está o tanto quanto fundamentada na habilidade. A participação constante em risco extremo exige os tipos de habilidades especializadas, há tempos praticadas, necessárias para sobreviver a ele; tais habilidades, por sua vez, possibilitam a busca, ao longo do tempo, por atividades sempre mais arriscadas. Nesse sentido, a ação-limite não apenas espirala seus participantes para os limites externos da possibilidade humana; ela também dá forma aos próprios tipos de habilidades por esforço próprio e às identidades baseadas nas habilidades que foram apagadas das muitas ocupações dentro das economias tardo-modernas. Conforme esse modelo de ação-limite tem sido cada vez mais empregado na pesquisa criminológica cultural ao longo do último quarto de século, vieram à tona ainda outras conexões com crime, controle criminal e identidade. Grande parte da pesquisa criminológica cultural inicial sobre a ação-limite criminal foi orientada em torno de atividades de rua, fisicamente perigosas, que frequentemente incorporavam a dinâmica prototipicamente masculina 41
– roubos nas ruas (de Haan e Vos, 2003), grafites (Ferrell, 1996), provocações de incêndios (Presdee, 2005), lutas organizadas (Jackson-Jacobs, 2004) etc. Pesquisas subsequentes, entretanto, expandiram essas investigações de modo a explicar uma variedade mais ampla de dinâmica de gênero, identidades de gênero e emoções de gênero na ação-limite, e explorar formas de ações-limite distintas às mulheres e suas vidas sob a modernidade tardia. Aqui as pesquisas variam das atividades de ação-limite de prostitutas de rua (Miller, 1991) e mulheres pobres, usuárias de drogas, em relacionamentos íntimos abusivos (Rajah, 2007), às estratégias emocionais de gênero de equipes de resgate de montanhas (Lois, 2005) e à mistura de risco e habilidade que dá forma às práticas anoréxicas (Gailey, 2009) e ao fisiculturismo feminino (Worthen e Baker, 2016). Pesquisas etnográficas subsequentes também revelaram um dilema particularmente intratável para aqueles agentes de controle que confundem ação-limite com autodestruição sem sentido, ou que buscam preveni-la policiando sua constante ocorrência. Dado o papel essencial da ação-limite em preencher os vácuos de identidade e emoção criados por condições sociais tardo-modernas, seus participantes detestam abandoná-la, mesmo sob pressão policial. Talvez, mais concretamente, essa pressão crie ainda outra camada de risco e, com isso, o ímpeto pelo desenvolvimento de habilidades adicionais – e, assim, torna-se menos uma dissuasão legal que um induzimento adicional para os agentes-limites (Ferrell, 1996; Garrett, 2014)4. O foco da criminologia cultural na efemeridade situada das seduções do crime e nos imediatismos de risco e habilidade que animam a ação-limite, por seu turno, tem levado a uma reimaginação da metodologia. A criminologia cultural tem sido há muito associada com investigações et42
nográficas de longo prazo e, mais amplamente, com uma sensibilidade etnográfica sintonizada com significado, simbolismo e emoção compartilhada (Ferrell e Hamm, 1998). Mais recentemente, contudo, criminologistas culturais também têm desenvolvido a noção de “etnografia do instante” (Ferrell, Hayward, e Young, 2015) – isto é, a exploração etnográfica das imediatas, efêmeras dinâmicas sociais e culturais, que emergem em momentos de crime e controle criminal. Da mesma forma que teorias vigentes de causalidade criminal determinística devem ser recalibradas para um mundo tardo-moderno de fluxo e incerteza, seguindo a linha de raciocínio, assim o devem os modelos de pesquisa etnográfica que têm tradicionalmente dado ênfase a pesquisas prolongadas em grupos estáveis e situações estáticas. Como no reino da teoria, a intenção não é abandonar essas tradições de pesquisa, mas, ao contrário, aumentar seu valor ao realinhá-las com a incerteza das condições contemporâneas. Dessas maneiras, uma criminologia cultural da e para a modernidade tardia não só denota uma atualização da matéria de discussão da criminologia, mas uma reinvenção da criminologia como um campo de investigação e conhecimento. A PERVASIVIDADE DO PODER, DO CONTROLE E DA RESISTÊNCIA
Como uma perspectiva crítica quanto ao crime e à justiça, a criminologia cultural se preocupa não apenas com formas emergentes de crime e transgressão na modernidade tardia, mas com padrões em evolução de poderes, controles e vigilâncias tardo-modernas. Novamente invocando a dialética da imaginação sociológica e criminológica, criminologistas culturais interrogam os menores dos momentos cotidianos para os segredos do controle social que eles
abrigam, enquanto também investigam os maiores dos conflitos globais por meio das ideologias, emoções e dinâmicas socioculturais que os animam. Um grande corpo de trabalho criminológico cultural explora formas de criminalidade cotidiana, de baixa ordem, como vadiagem, execução de grafites, furtos em lojas, realização de espetáculos de rua e o vasculhamento de lixos por comida, enquanto também documenta as respostas legais e controvérsias públicas que cercam tal criminalidade (Ferrell, 1996, 2001, 2006; Presdee, 2009; Ilan, 2011). Críticos da criminologia cultural às vezes têm argumentado que esse foco ignora uma mais ampla economia política do crime e falha em não dar atenção a formas mais graves de criminalidade (ver, por exemplo, O’Brien, 2005; Tierney, 2010: 357-8). Os criminologistas culturais respondem a essas críticas, hoje um tanto clichês, de duas formas. Primeiro, desenvolvendo os insights da teoria do etiquetamento, eles argumentam que a “importância” ou a “gravidade” de qualquer forma de criminalidade é em grande parte determinada pela resposta legal a ela e pela habilidade daqueles no poder em revesti-la com significados culturais particulares e interpretações públicas. Como demonstra a pesquisa criminológica cultural, campanhas de persecução agressiva ou indignação política geralmente transformam transgressões inconsequentes em delitos de primeira ordem, tanto aos olhos da lei quanto na mente do público. Igualmente, poder e controle fluem na outra direção; atividades que, de outro modo, poderiam ser consideradas perigosamente importantes podem ser ocultadas atrás de construções ideológicas que as definem como legais, inofensivas ou necessárias (Jenkins, 1999; Ferrell, 2004b). Para os criminologistas culturais, então, a construção cultural do crime permanece sempre em questão –
e, por consequência, a criminalidade do cotidiano merece tanta atenção crítica quanto a criminalidade do excepcional (ver, por exemplo, Redmon, 2015; Ilan, 2015). Segundo, criminologistas culturais enfatizam um entendimento particular do poder tardo-moderno em suas explorações da criminalidade e do controle cotidianos. Em um mundo tardo-moderno inundado de comunicação mediada, tecnologia de vigilância e política de identidade, sugerem eles, o poder é menos propenso a operar como um instrumento contuso de violência física do que de circular insidiosamente, codificado em arranjos espaciais, ocultos atrás de ideologias de gerenciamento de risco e segurança pública, e implementados via mitologias do conforto e da conveniência diários (Raymen, 2016). Nesse sentido, o controle social é mais potente e mais perigosamente problemático precisamente na medida em que ele vem a estar escondido nos pequenos domínios da vida cotidiana – na base de dados de corporações e do cartão de crédito, na calçada e na vitrine, na câmera de CFTV5 e no orientador educacional (Ferrell, Hayward e Young, 2015: 87123). Aqui jaz o controle hegemônico, ou ao menos a tendência tardo-moderna em direção ao controle hegemônico: formas de controle social e legal, despercebidas e destinadas a serem despercebidas, que operam de formas que vêm a parecer naturais se não inevitáveis (Hayward, 2012). E, todavia, como criminologistas culturais também têm documentado, os habitantes da vida cotidiana por vezes percebem mesmo, e resistem mesmo – e quando o fazem, suas batalhas aparentemente “pequenas” sobre um muro de parque ou uma publicidade urbana, portanto, também invoca questões maiores de poder, controle e justiça social (Ferrell, 1996, 2001). Essa abordagem analítica exige atenção próxima ao microcircuito de vigilância 43
e controle; ela também necessita localizar esse microcircuito no interior de trajetórias maiores da modernidade tardia. Ao longo das últimas décadas, por exemplo, cidades globais têm desenvolvido estratégias cada vez mais agressivas ao policiamento cotidiano dos sem-tetos e de outras populações deslocadas; revestidas por ideologias de segurança pública e civilidade, e apoiadas pela pseudocriminologia conservadora do modelo broken windows6, essas estratégias variam da instalação de sistemas de sprinkler anti-morador de rua e da constante dispersão policial de reuniões públicas à privatização do espaço público e à criminalização daqueles que alimentam populações sem-teto e migrantes. Todavia, consideravelmente, essas estratégias constituem algo mais que uma simples malvadeza; elas são estratégias para policiar a crise (Hall et al., 2013) da modernidade tardia. Cidades tardo-modernas dependem do motor econômico de “desenvolvimento urbano movido pelo consumo”, onde a cidade é reconstruída como uma imagem de si mesma e vendida aos privilegiados como uma constelação de preferências de estilo de vida, propriedades de grife e experiências de varejo. Em tais ambientes, populações sem-teto e migrantes vêm a ser definidas, e policiadas, como questões de imagem, como ameaças à estética cuidadosamente trabalhada da cidade, a serem excluídas para que elas não se intrometam na economia consumista da cidade. Além disso, as vastas desigualdades econômicas da modernidade tardia, e as predações de suas indústrias de varejo e serviço, produzem profunda precariedade para mais e mais pessoas, que são deixadas à deriva entre ocupação, moradia e país. A injustiça está na ironia: A desenfreada desigualdade das economias políticas tardo-modernas engendra o mesmo tipo de deslocamento derivante no qual focam muitas legislações 44
contemporâneas e policiamentos cotidianos (Ferrell, 2012a). Nos recentes anos, criminologistas culturais também têm desenvolvido um entusiasmado interesse nos muitos danos causados pelo Estado – danos que vão além do cotidiano e para dentro do reino do conflito global – do genocídio ao terrorismo de Estado, do imperialismo ao policiamento militarizado. Dentro da criminologia cultural, há agora um corpo considerável de trabalho tanto sobre crimes de Estado (por exemplo, Morrison, 2006, 2010; Hamm 2007; Cunneen, 2010; Klein, 2011; Burrows, 2013; Linnemann et al., 2014; Wall e Linnemann, 2014a) quanto sobre vários agentes do controle estatal (por exemplo, Kraska, 1998; Morrison, 2004; Ferrell, 2004b; Wender, 2004, 2008; Root et al., 2013; Aiello, 2014; Wall e Linnemann, 2014b; Linnemann, 2016). Ao empreenderem esse trabalho, criminologistas culturais, por sua vez, têm desenvolvido uma posição teórica que difere do trabalho criminológico anterior na área de crimes de Estado e controle estatal. Em vez de limitar sua análise ao direito humanitário internacional, à perspectiva de “dano social” ou às contingências sócio-históricas que constituem o poder estatal, a criminologia cultural procura reunir a influência macro da estrutura (na forma de governança e ideologia) com teorias de nível mais intermediário da subcultura e da “transgressão aprendida” – uma combinação que também permite uma análise de como crimes de Estado e assassinatos em massa podem ser “neutralizados” tanto pelo Estado como pelas forças coletivas envolvidas em violações de direitos humanos (por exemplo, Hamm, 2007; Linnemann, Wall e Green, 2014). Como sempre, porém, nenhuma análise criminológica cultural estaria completa sem o terceiro elemento sobre o qual a criminologia cultural foi fundada: uma
compreensão de nível micro da dinâmica experencial e fenomenológica que compele um agente a se engajar em violência transgressiva e um outro, no mesmo arranjo sociocultural, a desistir. Aqui, a criminologia cultural se vale da pequena, subterrânea literatura em sociologia e história militar que ilumina intensamente as sensações e emoções associadas com guerra e combate (ver Cottee e Hayward, 2011, e Cottee, 2011, para úteis introduções criminológicas culturais). Considere, por exemplo, a seguinte citação do brilhante estudo micro-sociológico de combate, de Sebastian Junger (2010), na qual ele tenta explicar a fascinação de tiroteios para soldados de infantaria estadunidenses, servindo no Afeganistão: A guerra é um monte de coisas e é inútil fingir que a excitação não é uma delas. Ela é insanamente excitante. A maquinaria da guerra e o som que ela faz e a urgência de seu uso e as consequências de quase tudo sobre ela são as coisas mais excitantes que alguém empenhado na guerra conhecerá. Soldados discutem esse fato uns com os outros e eventualmente com seus capelães e seus psicólogos e talvez até com suas esposas, mas o público jamais ouvirá falar disso. Apenas não é algo que muita gente queira seja admitido. A guerra deveria causar um mal-estar porque, inegavelmente, coisas ruins acontecem nela, mas para um jovem de dezenove anos, atrás de uma calibre .50 durante um tiroteio do qual todos saem ok, a guerra é a vida multiplicada por algum número que ninguém nunca ouviu falar. De certa forma, vinte minutos de combate é mais vida do que você poderia amealhar numa vida inteira fazendo outra coisa. (Junger, 2010: 144-5)
Novamente aqui está o imediatismo sensual e a sedução emocional da transgressão violenta – não nas ruas da cidade ou no quarto, mas florescendo no meio dos caprichos do conflito geopolítico.
Essa abordagem multinível é igualmente útil para compreender as ações daqueles que procuram confrontar ou desestabilizar o Estado, seja via operações de contrainsurgência ou campanhas terroristas. Para criminologistas culturais, o objetivo, como notoriamente expôs a estudiosa do terrorismo Martha Crenshaw, é criar abordagens que sintetizem fatores estruturais com uma análise de dinâmica de grupo, influências ideológicas, incentivos individuais e motivações pessoais (Gunning, 2009: 166). Tais abordagens também devem ser interdisciplinares – porque essa é realmente a única maneira de garantir um entendimento compreensivo de como se entrelaçam dinâmicas macro, médias e micro. Assim, por exemplo, quando olhamos os dados econométricos sobre a pobreza estrutural que produz o apoio palestino às brigadas militares Izz ad-Din al-Qassam do Hamas, nós também devemos aplicar métodos visuais para analisar como pôsteres e outdoors de mártires nas ruas de Gaza reproduzem e cultivam uma bizarra cultura de celebridade, a nível de rua, que engrandece atentados suicidas e outras formas de istishahad [martírio]. Do mesmo modo, enquanto devemos fazer amplos questionamentos geopolíticos – tais como se o Iraque e outros países do Oriente Médio teriam sido o objeto de tantas intervenções apoiadas pelos EUA se sua exportação primária não fosse petróleo, mas abacates (Stokes, 2009) –, nós não devemos encerrar nossas análises aí. Ao invés, devemos embarcar em formas de pesquisas mais antropológicas e situacionalmente sintonizadas para dinâmicas de nível local e micro, tais como as particulares técnicas empregadas por forças ocupadoras quando patrulham vizinhanças desconhecidas e coletam inteligência, ou, aliás, os cismas religiosos/sectários preexistentes que possam constituir, em primeiro lugar, a crua realidade espacial 45
daquelas vizinhanças (Kilcullen, 2009)7. Uma tal abordagem multidimensional ao estudo do terrorismo espelha intimamente a abordagem mais ampla da criminologia cultural ao estudo da criminalidade – uma que conceitualiza certos comportamentos transgressivos como tentativas de resolver conflitos psíquicos/individuais internos gerados pelas condições ambientais ou estruturais mais amplas associadas com a modernidade tardia (Young, 2003; Hayward, 2004: capítulo 5). O mundo de conflitos internacionais atual é velozmente cambiante e complexo, assolado por problemas tais como o desenvolvimento desenfreado de poder militar privado (Balko, 2014) e o perigoso reaparecimento do interesse em doutrinas religiosas ortodoxas que vão de encontro à pluralidade de perspectivas e experiências da modernidade tardia. Como tal, torna-se ainda mais importante desenvolver uma criminologia capaz de entender a destruição social que esses desenvolvimentos causam. Assim fazendo, argumentam os criminologistas culturais, devemos sempre permanecer vigilantes ao criticar os processos pelos quais crimes de guerra são definidos e construídos, e o poder estatal é alcançado e exercido. Mas, igualmente, devemos nos resguardar contra a tendência de focar somente nas estruturas de poder existentes e nas contigências sócio-históricas que constituem o poder estatal, para que nossas análises não se tornem grosseiras ou unidimensionais. Pelo contrário, a abordagem criminológica cultural para o estudo do poder é manifestamente multidimensional: um processo contínuo de enriquecimento intelectual mútuo no qual cada dimensão incorpora alguma coisa da outra, contribui para o desenvolvimento da outra, e assim se torna mais do que qualquer uma poderia ser isoladamente. Como observou Jock Young (2007), 46
muitos dos crimes e controles sociais do mundo contemporâneo podem ser entendidos como respostas fundamentalistas ao hiperpluralismo e à incerteza ontológica da modernidade tardia. O policiamento espacial de populações sem-teto, os atentados às clínicas de aborto e o terrorismo de militantes Jihadi são decididamente fenômenos diferentes – todavia, cada qual mira um outro essencializado. Assim como o policiamento contemporâneo tenta mapear e gerenciar os inevitáveis deslocamentos e riscos da modernidade tardia, violentos fundamentalistas de todas as matizes se comprometem a colocar a explosiva pluralidade do mundo tardo-moderno de volta na caixa da certeza cultural. Das despercebidas indignidades impostas aos andarilhos sem-teto e aos migrantes em situação irregular, aos mais notórios dos ataques terroristas ou enfrentamentos militares do Oriente Médio, os contornos culturais do poder e controle contemporâneos estão sempre em jogo. E, dessa forma, a questão não é se a criminologia cultural focará nos detalhes da existência cotidiana ou, em vez disso, documentará o largo alcance do poder econômico e político; a questão é como descobrir um no outro, como encontrar e seguir as avenidas pelas quais estruturas de injustiça se infiltram na vida cotidiana, para ali serem aumentadas, mascaradas ou contestadas na sensualidade da experiência vivida (Ferrell, 2012b). A ESPIRALADA ENERGIA DA IMAGEM E DA REPRESENTAÇÃO
Uma característica ubíqua da vida tardo-moderna é a “mediascape” contemporânea, aquela constelação de mídia que fabrica informação e dissemina imagens via uma expansiva variedade de tecnologias digitais. Nessa esfera constantemente em evolução, ocorreu uma inversão extraordi-
nária. Hoje, como um resultado da pervasividade da mídia digital, imagens de crime e de seus controles estão se tornando quase tão “reais” quanto os próprios crime e justiça criminal – se por “real” nós denotarmos aquelas dimensões da vida tardo-moderna que produzem consequências; dão forma a atitudes populares e políticas públicas; fabricam os efeitos do crime e da justiça criminal; geram medo, esquiva e prazer; e afetam as vidas daqueles que estão envolvidos ou são ignorados. Esse é um mundo tardo-moderno onde, como têm comentado criminologistas culturais, “a tela roteiriza a rua e a rua roteiriza a tela “ (Hayward e Young, 2004: 259), onde a linha entre o real e o virtual (de Jong e Schuilenburg 2006), entre o factual e o ficcional, se torna cada vez mais indistinta, se não totalmente perdida. Nesse mundo, perpetradores e testemunhas postam imagens de crime e violência no YouTube e no Instagram; políticos elaboram políticas de justiça criminal para assegurar que elas “estarão na mídia”; advogados fazem aulas de teatro e promovem releitura de provas para assim influenciar jurados imersos em dramas criminais da televisão; e anunciantes e comerciantes utilizam imagens de crime e transgressão para vender tudo, de bebidas energéticas a carros de família (Muzzatti, 2010; Ferrell, Hayward e Young, 2015). Alguns argumentariam que isso não é nada novo – que, por mais de um século, a “história do crime” tem sido promulgada e interpretada por meio de diversas formas de mídia – e que o velho interesse da criminologia na relação crime-mídia produziu importantes orentações teóricas e metodológicas com relação à representação popular do crime. Para os criminologistas culturais, no entanto, o conhecimento acadêmico subsistente sobre o nexo crime-mídia, embora útil, oferece apenas uma leitura relativamente banal e antiquada da atual
relação do crime com a mídia. Claramente, abordagens consagradas, tais como “análise de conteúdo”, “pesquisa de efeitos” e “observação de produção de mídia”, têm lugar dentro da criminologia cultural, dada a preocupação da criminologia cultural em compreender representações mediadas do crime, seus efeitos entre o comportamento individual e coletivo, e suas conexões com poder, dominação e injustiça. Entretanto, nenhuma dessas abordagens é suficiente para decifrar as relações complexas, não lineares que agora existem entre crime e a mídia num mundo tardo-moderno saturado com televisão global por satélite, blogs independentes de notícias, câmeras de celulares, redes sociais e websites duelistas. O que se exige agora são novos modelos de análise que utilizem aspectos das abordagens existentes ao passo que vão além dos dualismos atualmente obsoletos: muito ou pouco conteúdo de mídia a respeito de crime, efeitos ou não efeitos de imagens violentas, cobertura midiática do crime democrática ou elitista. Por consequência, os criminologistas culturais procuram reorientar intelectualmente e repolitizar radicalmente o estudo do crime e da mídia ao explorar as fluidezas circulantes do significado por meio das quais a dinâmica crime-mídia “socializa e dirige nossos pensamentos e ações numa variedade de formas hierárquicas, complexas, matizadas, insidiosas, gratificantes, agradáveis e principalmente imperceptíveis” (Carter e Weaver, 2003: 167). Para os criminologistas culturais, então, consagradas abordagens de mídia que constituem o cânone criminológico demandam uma reinvenção radical, não uma simples regurgitação (ver Hall, 2012). Como ponto de partida, a abordagem mais holística da criminologia cultural para traçar o fluxo de significado num mundo impregnado de imagens de crime e violência 47
enfatiza, no lugar da linearidade causa-e-efeito, a dinâmica, espiralada e de loopings, do crime e da mídia – isto é, a maneira na qual diversas imagens de crime e justiça se confrontam e reproduzem umas às outras, enquanto, ao mesmo tempo, vazando para a sala de audiências e para a rua (Ferrell, Hayward e Young, 2015). Além disso, os criminologistas culturais destacam os processos afetivos da representação do crime, mostrando como imagens viscerais de crime nos afetam não somente em termos de política ou prática da justiça criminal, mas corporal e sensualmente (Young, 2004, 2010). E, no geral, criminologistas culturais vão além das antigas noções “da mídia” para examinar a multiplicidade de formas representacionais enredadas com crime e justiça, da reconstituição da realidade na música rap (de Jong e Schuilenburg, 2006) a representações de crime e poder em revistas em quadrinhos (Phillips e Strobl, 2013). Em meio a esse abrangente trabalho sobre crime, mídia e representação, criminologistas culturais, por seu turno, estão cada vez mais interessados na “vontade de representação” (Yar, 2012). Essa noção assevera que aqueles interessados em estudar a relação entre crime e a mídia agora devem ir além da ideia do público como um internalizador passivo da comunicação de massa, e, em vez disso, devem reconhecer que um grande número de “pessoas ordinárias” agora são produtoras primárias de representações mediadas autogeradas. Graças a redes sociais, câmeras portáteis, webcams, blogs, vlogs e outras novas formas de mídia, o sujeito de hoje “não mais interpreta ou assiste a representações produzidas em outros lugares, mas se torna, ela ou ele próprio, a fonte daquelas representações” (Ibid.: 248). Assim, somos confrontados com o espetáculo de indivíduos e grupos encenando, atuando, gravando, 48
compartilhando e publicando seus atos de desvio – tudo, desde bullying do pátio da escola a momentos de tumultos e até terrorismo. Em si, isso não é inteiramente novo, mas o que é interessante é a noção de que essa interseção de conteúdo gerado pelo usuário com o desejo de indivíduos de se mediarem por meio da autorepresentação poderia ela própria ser um fator motivante para o comportamento criminoso. Esse tipo de “vontade de comunicar” ou “vontade de representação” pode ser visto em si como um novo tipo de induzimento causal ao comportamento de violação de leis e regras. Pode ser que, na nova era midiática, os termos do questionamento criminológico necessitem ser por vezes revertidos: em vez de perguntar se a “mídia” instiga o crime ou o medo do crime, nós devemos indagar como a própria possibilidade de mediar-se a si mesmo a uma audiência por meio de autorepresentação poderia ser vinculada com a gênese do comportamento criminoso. (Ibid.: 246)
A vontade-de-representação, então, torna-se crucial para entender um mundo tardo-moderno onde indivíduos “desejam ser vistos, e estimados ou celebrados, por outros por suas atividades criminosas”. Consequentemente, cada vez mais agora testemunhamos o fenômeno criminogênico de atos desviantes e criminosos sendo engendrados ou instigados especificamente para serem gravados e depois compartilhados via redes sociais e outras plataformas da internet. Spree killers8 como Seung-Hui Cho (massacre da Virginia Tech, 2007) e Elliot Rodger (massacre da University of California, Santa Barbara, 2014), por exemplo, gravam confissões ex ante em vídeo ou postam longos “manifestos” on-line explicando sua motivação. Rodger, que tinha um histórico de postar vídeos on-line sobre si mesmo e era bem consciente da importância de gerenciar sua autoimagem mediada
após seu suicídio, chegou ao extremo de até mesmo criar uma série de videoblogs bizarramente convincentes nos quais ele se filmou, sentado em seu carro ou ao lado da estrada, discutindo calmamente seu ódio por minorias étnicas e casais interraciais, sua frustração por não ser capaz de achar uma namorada, e sua virgindade. Enquanto esses vídeos atestam o abjeto narcisismo de Elliot Rodger, eles também ilustram algo mais – uma astuta percepção de sua “presença” digital não degradável, seu eterno ser mediado. Em outras palavras, eles dão testemunho de sua vontade-de-representar, tanto antes quando após sua própria morte física. Atiradores em massa, de destaque e espertos em mídia, são ilustrações claras da vontade-de-representação, mas há incontáveis outros casos onde crimes violentos não estão apenas sendo cometidos mas, em vez, encenados para a câmera. No mundo das gangues de rua dos negros americanos, por exemplo, o termo “driller” – um nome dado a membros de gangue que provocam confusão no Facebook, Twitter e Instagram – é hoje mais comum do que alcunhas de gangue das antigas como “OG” (Original Gangster). O uso da internet como um meio para iniciar uma “beef” [discussão], aumentar a “rep” [reputação] e “call out” [insultar] outros grupos é agora tão comum que um vídeo de um membro de gangue “drilling” [provocando] um rival do outro lado da cidade carregado no YouTube ou Instagram na manhã pode resultar num tiroteio relacionado mais tarde naquele mesmo dia (Austen, 2013). Mas num mundo global impregnado pela tensão entre hiperpluralismo tardo-moderno e essencialismo fundamentalista, talvez a forma mais interessante da vontade-de-representação seja encontrada entre terroristas e insurgentes islâmicos de hoje. É de fato uma ironia, dados os sentimentos anti-Ocidente, an-
timodernos do Jihadi, que apoiadores do medieval Califado tenham se tornado tão adeptos do uso de novos modelos de comunicação digital para disseminar sua ruinosa mensagem. Seja o atordoante lançamento de vídeos de decaptação, bárbaros mas cuidadosamente coreografados, ou a propaganda mais sutil de posts em blogs e vlogs, carregados por mulçumanos europeus que documentam suas vidas na Síria, como uma forma de aliciar outros a se juntarem a eles, é claro que o Jihad de hoje, no Levante e em outros lugares, conta profundamente com o próprio espetáculo mediado e a vontade-de-representação que de outro modo ele condena. Pensar criticamente sobre “crime e a mídia” – deixar para trás medidas simples de conteúdo de mídia ou de efeitos de mídia, e avançar para um sentido holístico de voltas e espirais, de fluidez e saturação – não é apenas entender a dinâmica do crime e da transgressão na modernidade tardia, mas abrir novas avenidas de investigação intelectual apropriadas a essas confusas circunstâncias. Nesse contexto, a criminologia cultural se empenha em desenvolver novos modelos criminológicos e críticas criminológicas que podem convergir com a cultura tardo-moderna em geral, e isso pode explicar a complexa interação cultural de crime, controle do crime e representação. Abordagens etnográficas “do instante” e “líquidas” podem sintonizar pesquisadores à dinâmica turbilhonante, de loopings, da mediascape contemporânea, e ao imediatismo afetivo de seu impacto. Formas de etnografia visual e criminologia visual podem igualmente traçar os contornos, orientados pela imagem, do mundo contemporâneo, e podem capturar um mundo tardo-moderno onde crime e controle do crime são cada vez mais inseparáveis da política de representação (Brown e Carrabine, 2016; Ferrell, Hayward e Young, 2015; Hayward 49
e Presdee, 2010). A SER CONTINUADA...
Ao sintetizar tradições criminológicas norte-americanas e britânicas de longa data, ao integrar a essa síntese perspectivas mais novas de uma miríade de campos afiliados, a criminologia cultural tem, desde o início, tentado construir um “cânone desamarrado” (Ferrell, 2010) para a investigação crítica sobre as interseções de crime, controle do crime, representação e significado. Enquanto mantém suas raízes na análise crítica e cultural, a criminologia cultural, dessa forma, está destinada a permanecer aberta e convidativa, uma alternativa animada às ortodoxias reducionistas da criminologia positivista. Ela também está destinada a ser flexível – isto é, destinada a se mover com a emergente dinâmica do crime e do controle do crime na modernidade tardia. Até o momento, essa orientação tem produzido investigações sobre imediatismo e emoção, sobre formas contemporâneas de controle social e cultural, e sobre a espiralada dinâmica do crime e da representação. Essas investigações são hoje, elas mesmas, parte do cânone criminológico cultural, mas elas não são o encerramento dele. Ao invés, como novas interseções de crime e cultura emergem das iniquidades da modernidade tardia, a criminologia cultural permanece a ser continuada. NOTAS 1 Para outra introdução geral à criminologia cultural, em português, ver Hayward e Young (2015), e para mais sobre a política da criminologia cultural, especificamente, ver Ferrell e Hayward (2013), também em português. 2 Cunhado por Arjun Appadurai, o termo mediascape refere-se à paisagem midiática, ou seja, a distribuição das capacidades eletrônicas de produzir e disseminar informações, e também as imagens do mundo criadas por essas mídias. Numa publicação em português do texto que disseminou a expressão, a tradução optou pelo termo midiapanorama (Dis50
junção e diferença na economia cultural global, In Featherstone, Mike (org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 311-27). Porém, como a expressão inglesa já alcançou certa notoriedade, decidiu-se por mantê-la no original. (N.T.) 3 No original, big data. Na tecnologia de informação, os megadados referem-se a grandes volumes de dados armazenados, que necessitam de ferramentas especiais para que todas as informações possam ser encontradas, analisadas e também aproveitadas no tempo necessário. (N.T.) 4 Neste ponto, é importante destacar que o interesse da criminologia cultural nas emoções e subjetividades associadas ao crime e à transgressão não está limitada apenas a atividades de limite ou carregadas de risco – longe disso. Criminologistas culturais têm despendido considerável esforço esboçando uma variedade, diversa e alternativa, de emoções que são a exata antítese do risco e da excitação. Mike Presdee (2004: 45), por exemplo, pouco se importou com risco ou excitação, e, em vez, tratou amplamente de emoções tais como “perda”, “humilhação”, “ressentimento” e as preocupações associadas com “as injúrias ocultas de classe”, a “sensação pura de sobrevivência” e “as complexidades pessoais da vida cotidiana”. Numa ocasião, ele até dedicou um artigo inteiro ao tema da “solidão” (Presdee, 2006). Do mesmo modo, Jonathan Wender (2004), um antigo policial-de-rua-que-virou-criminologista-cultural, baseou-se em sua experiência de campo para documentar como a violência doméstica é tornada burocrática e emocionalmente neutra pelas limitações do procedimento policial. De fato, quer sejam os relatos de David Brotherton (Brotherton e Barrios, 2011) sobre a justiça perfunctória, sem emoção, dispensada a deportados centro-americanos pelo sistema de justiça da cidade de Nova Iorque, a pesquisa de Kevin Steinmetz (2015) sobre o tédio e a frustração experimentados por hackers, ou o exame pessoal de Carl Root (Root et al., 2013) quanto aos sentimentos de vergonha experimentados após ser uma vítima de violência policial injustificada, criminologistas culturais têm demonstrado repetidamente seu interesse analítico em uma variedade de emoções tardo-modernas. 5 Circuito fechado de televisão; no original, CCTV: closed-circuit television. (N.T.) 6 A expressão, traduzida como teoria das janelas quebradas, ganhou notoriedade com o artigo de James Q. Wilson e George L. Kelling (1982) que explicava a hipótese de que a repressão de comportamentos antissociais, contravenções ou delitos de pequena escala previne o crime de maior escala. (N.T.) 7 Ao desenvolver uma criminologia cultural da guerra ou do terrorismo, é essencial que não se colapse automaticamente religião em política. Ao invés, a religião deve ser reconhecida como uma poderosa força
modeladora em si e de si. A criminologia cultural está afinada unicamente para capturar os potentes apelo e fascinação da “violência teística” ou religiosa, e a promessa da felicidade transcendental e da validação heroica que ela oferece (ver Cottee, 2014).
Mohammad: criminology, theistic violence and the murder of Theo van Gogh’, British Journal of Criminology, 54: 6 981-1001.
dada a quem comete assassino contra múltiplas e aleatórias vítimas, em locais diferentes, com quase nenhuma pausa entre os crimes. A pluralidade de locais diferencia o spree killer do mass murderer (que comete o ataque num só local). E o curto período de tempo entre os crimes diferencia o spree killer do serial killer. (N.T.)
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CRIMINOLOGIAS DO MERCADO
Elliott Currie
Tradução de Emília Merlini Giuliani
A mensagem central das “criminologias do mercado” é que os princípios fundamentais do capitalismo de mercado contêm em si fortes pressões para o crime. Sociedades que priorizam a busca de ganho privado a ponto de eclipsar outros valores e aspirações têm mais probabilidade de serem sociedades que geram uma quantidade anormal de crimes – não apenas crimes “comuns” nas ruas e lares, mas também crimes de “colarinho branco”. O crime, então, é apenas um dentre os muitos custos da predominância dos valores e instituições do mercado – parte do “lado negro” de um sistema que é frequentemente exaltado como se fosse um benéfico e progressista motor de prosperidade. Um foco no dano profundo e generalizado que as forças absolutas de mercado impõem às comunidades, instituições e indivíduos pode ajudar a explicar a distribuição do crime entre as sociedades e dentro delas, assim como as trajetórias do crime ao longo do tempo. Trata-se de um prisma através do qual podemos compreender a persistência e, por vezes, o crescimento do crime em meio a níveis inéditos de riqueza e capacidade tecnológica, bem como pode dar sentido àquilo que já chamei de “disparidade de violência” – a distribuição radicalmente desigual do crime violento no mundo (Currie 2015). Um tal foco lança
luzes sobre a razão pela qual muitas sociedades hoje, incluindo a maioria dos países industriais mais ricos, atingiram níveis relativamente baixos de violência grave – e por que outros permanecem assolados por esse problema, não raro apesar dos enormes investimentos no controle social punitivo. O impacto do mercado não é a única explicação para essas diferenças ou para os padrões específicos do crime em determinada sociedade: mas é, sim, uma parte crucial dessa explicação. Da mesma forma, colocar o foco nos efeitos destrutivos do mercado nos dá um quadro básico para ação social e políticas sociais – um quadro que pode tanto tornar mais claros os limites das abordagens convencionais ao controle do crime quanto apontar para estratégias mais efetivas no futuro. As questões levantadas pelas criminologias do mercado são, assim, questões que carregam hoje especiais significado e urgência. Pelo mundo, uma variação particularmente extrema do capitalismo de mercado – que eu chamei, em outro local, de “capitalismo sem a tampa” (Currie 2016) – tem se tornado cada vez mais ideologicamente dominante e cada vez mais ubíqua no seu impacto. Ela tem reformulado relações sociais e econômicas e transformado instituições consolidadas tanto em sociedades avançadas como no mundo em de55
senvolvimento. Neste processo, é possível sustentar que essa variação do capitalismo está minando as condições essenciais que ajudaram algumas sociedades a alcançar níveis altos de segurança pública, ao mesmo tempo em que exacerba problemas em outras – especialmente, em partes do sul do globo (Carrington, Hogg e Sozzo, 2015) e dos Estados Unidos – onde a criminalidade violenta há muito é desenfreada. O futuro do crime ao redor do mundo – assim como boa parte das coisas – dependerá, em grande medida, da nossa habilidade de compreender e, em última análise, de desafiar o impacto adverso de uma ordem social predatória na comunidade, cultura e personalidade. ORIGENS
Não há, em realidade, uma escola formal de criminologia “de mercado”, mas mais precisamente uma história de trabalho de diversas fontes que, tomadas em conjunto, oferecem um coleção razoavelmente consistente de temas-chave lançando luzes sobre as conexões entre o crime e o que eu e outros chamamos de “sociedade de mercado” (ver Currie, 1997, Taylor, 1999). É uma tradição que remonta a muito tempo atrás. Uma aversão contra o impacto que o capitalismo nascente tem em valores comunitários tradicionais é um tema corrente na literatura e crítica social do século XVI em diante. Está eloquentemente expressada nas famosas linhas melancólicas do poema da década de 1770, A Aldeia Abandonada, do poeta irlandês Oliver Goldsmith: O mal ronda a terra, pressa de desgraças crescentes, onde a riqueza acumula e vivem homens decadentes1.
Goldsmith lamentava a destruição de valores comunitários tradicionais em face da aquisição das terras da aldeia por grandes fortunas e, de modo mais geral, o 56
impacto destrutivo daquilo que ele denominou de “fúria pelo ganho”, que havia permanentemente quebrado a ordem social da Inglaterra rural e expulsado massas populacionais dos campos, forçando-as a vidas de ócio, pobreza, prostituição e crime. Os efeitos devastadores de uma nova ordem social fundada na “fúria pelo ganho” foram descritas de maneira mais extensa nos anos de 1840 por Friedrich Engels, em sua notável A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, que serve como documento fundante na evolução das teorias do crime e sociedade de mercado. Argumenta-se por vezes que Marx e Engels não tinham muito a dizer sobre o crime, o que vem a ser desmentido por este extraordinário exemplo primitivo de convincente observação social empírica ligada a uma teoria emergente das dinâmicas da sociedade capitalista. O trabalho de Engels constituía aquilo que pode ser hoje chamado de projeto de pesquisa “multi-método”, fazendo uso de uma grande variedade de relatórios e investigações oficiais, juntamente com assídua pesquisa de campo conduzida nas favelas de Manchester, Londres e outras cidades inglesas. Seu objetivo é revelar as consequências reais do capitalismo industrial nas vidas humanas – no país onde o capitalismo estava mais adiantado e onde era mais celebrado. E, para Engels, tais consequências são ao mesmo tempo estarrecedoras e previsíveis. O quadro geral é o de uma luta prevalente pela sobrevivência naquilo que havia se tornado uma ordem social caótica e fundamentalmente indiferente: a guerra social, a guerra de todos contra todos, é aqui abertamente declarada... os homens só veem uns aos outros reciprocamente como objetos úteis: cada um explora o outro e o resultado disso é que o mais forte pisa no mais fraco, e os poucos
fortes, isto é, os capitalistas, apropriam-se nização. Sua linguagem ao descrever essa de tudo, enquanto aos muitos fracos, aos desumanização é dura, implacável e, às pobres, resta apenas a mera subsistência. vezes, um pouco chocante: “Como o mais
Através das “grandes cidades” da In- parvo dos brutos”, escreve ele, membros do novo proletariado urbano-industrial glaterra, ele vê Em todas as partes, de um lado indiferen- “recebem apenas uma forma de educação, ça bárbara e grosseiro egoísmo e, de outro, qual seja o açoite:” e “não há, pois, causa miséria inominável: em todas as partes, a para espanto se os trabalhadores, ao serem guerra social, todas as casas em estado de tratados como animais, de fato animais se sítio, em todas as partes, pilhagem recípro- tornarem”. ca sob a proteção da lei, e tudo isso tão Se as pessoas são tratadas como medespudoradamente, tão abertamente de- nos que humanas por tempo suficiente, clarado, que ficamos assombrados diante elas se tornam, em um sentido muito real, das consequências das nossas condições menos que humanas nas suas atitudes e sociais, manifestadas sem disfarces, e pocomportamento. Essa profunda crítica das demos apenas imaginar como todo este consequências morais da industrialização tecido ainda se mantém inteiro. capitalista é central para a visão marxista Para Engels, portanto, a terra fértil sobre o crime e, na compreensão de Engels, onde floresceu o capitalismo é não apeos elos que ligam esse processo mais amplo nas uma sociedade brutal, desigual e de de desumanização ao crime são complexos privações: é também uma sociedade ime se reforçam mutuamente. pregnada de cima a baixo com um “egoísNo nível mais simples, uma pobreza mo grave” no qual todos, especialmente tão extrema quanto a que ele testemunhou os poderosos, importam-se pouco ou nada nas cidades esquálidas da Inglaterra induscom essa brutalidade ou desigualdade. Ele trial pode fazer com que alguns tipos de mapeia em detalhes mínimos as terríveis crime sejam uma necessidade prática – freconsequências da privação que o capitalisquentemente, um dos únicos meios de somo inflige sobre os pobres: trata-se de uma brevivência, dada a ausência praticamente pobreza que mata. Escrevendo muito antes completa de auxílios sociais públicos ou do estabelecimento de qualquer coisa que privados que diminuam seu impacto: se pareça com uma “rede de segurança” A necessidade faz com que o trabalhador em países capitalistas industriais, Engels tenha de escolher entre morrer lentamente descreve condições em cidades como Londe fome, matar-se rapidamente ou tomar dres e Manchester que são verdadeiramenpara si aquilo de que ele precisa onde quer te horríveis. Mas as consequências para a que o encontre – em bom português, rouclasse trabalhadora vão além da degradabar. E não é de se espantar que a maior ção física e da pobreza. Igualmente signifiparte deles prefira roubar a morrer de cativo, para Engels, é a degradação moral e fome ou suicidar-se... psicológica que este sistema inflige aos poMas o impacto da “necessidade” não é bres. Eles são “excluídos e ignorados pela apenas a transformação do roubo em uma classe dominante, moralmente, assim como questão de sobrevivência, mas também o física e mentalmente.” A condição da clas- enfraquecimento ou destruição dos laços se trabalhadora sob o capitalismo não diz sociais que poderiam, de outro modo, imrespeito apenas à privação: de modo ainda pedir que pessoas pobres resolvam o promais crucial, envolve exclusão e desuma- blema da “necessidade” por meio do crime. 57
A pobreza neste nível cria uma alienação profunda da sociedade – uma alienação exacerbada pela elevação do dinheiro ao auge da importância na sociedade capitalista. “Dinheiro”, diz Engels, “é o Deus deste mundo”: não ter nenhum é fonte de desconexão e privação. Sua posição social e seu meio trazem consigo forte tentação à imoralidade. Ele é pobre, a vida não lhe oferece nenhum encanto, quase todos os prazeres lhe são negados, as penas da lei não lhe apresentam nada de mais amedrontador – por que razão deveria ele conter seus desejos, por que deixaria o rico gozar do que é dele por direito, por que não tomar para si parte disso? Que incentivos tem o proletário para não roubar?
Mas ainda pior do que os efeitos da pobreza sobre estado moral do proletariado, de acordo com Engels, é a insegurança fundamental da vida sob o capitalismo – insegurança para quase todos, mas acima de tudo para os trabalhadores. Hoje, quando valores de “livre mercado” tornaram-se muito mais profundamente arraigados pelo mundo, nós costumamos aceitar sem questionamentos a noção de que as pessoas são vulneráveis a mudanças violentas e repentinas nos seus trabalhos e situações de moradia – e, de fato, tendemos a aceitar essa insegurança como parte do preço que pagamos por uma economia “dinâmica”. Mas na época em que Engels começou a escrever, essa ideia da vida como uma espécie de constante mudança em curso, um caos sistemático, uma espécie de jogo no qual a situação das pessoas poderiam mudar radicalmente da noite para o dia, era uma ideia nova e indesejável para quase todos, exceto para as pessoas que estavam no topo e que dela se beneficiavam. A ascensão do capitalismo trouxe a destruição dos modos de vida tradicionais e principalmente agrários que, ao menos, 58
frequentemente ofereciam um grau de estabilidade ano a ano. De fato, sem destruir aquele modo de vida que ligava as pessoas à terra, o capitalismo tal como o conhecemos nunca teria decolado, porque ele depende de que trabalhadores estejam “livres” dessas vidas locais mais estáveis para que possam migrar às cidades e fábricas. Sem esse processo, não haveria proletariado e, assim, não haveria capitalismo. Mas o resultado acabou sendo a introdução de um novo nível de incerteza rotineira nas vidas dos trabalhadores. E essa incerteza, argumenta Engels, possui efeitos muito destrutivos nas suas personalidades – no seu caráter moral. “Muito mais desmoralizante do que os efeitos da pobreza nos trabalhadores ingleses”, escreve Engels, é a insegurança quanto à sua posição, a necessidade de viver de salário a salário... O proletário, que não tem nada além de suas mãos, que consome hoje o que ganhou ontem, que está sujeito ao acaso e não tem a menor garantia de que conseguirá suprir as necessidades mais básicas da vida, a quem qualquer crise, qualquer capricho do seu empregador pode lhe privar do pão, este proletário é colocado na mais revoltante, na mais desumana posição imaginável para um ser humano. O escravo tem a garantia de uma subsistência mínima em virtude do interesse próprio do mestre. O servo tem ao menos um pequeno pedaço de terra do qual pode retirar seu sustento. Cada um tem no mínimo uma garantia de sua própria vida. Mas o proletário tem de depender apenas de si mesmo, e mesmo assim é impedido de aplicar suas habilidades de forma a conseguir viver delas.
Então algo novo e muito perturbador aconteceu. O capitalismo criou uma nova classe de pessoas que não tem nada – ou, mais precisamente, que tem apenas uma coisa – sua capacidade de trabalhar, suas “próprias mãos”. Mas, ao mesmo tempo, essas pessoas não têm qualquer controle
sobre se elas realmente irão trabalhar ou não. Outra pessoa – o empregador – tem esse controle. Portanto elas não têm qualquer garantia de que sequer serão capazes de prover minimamente a si mesmos ou a suas famílias todos os dias. E, na visão de Engels, essa condição “desumana” tem efeitos humanos devastadores. Dentre outras coisas, essa condição destrói a motivação dos trabalhadores quanto ao planejamento do futuro. Eles se tornam radicalmente “orientados ao presente”, como poderia ser descrito por uma linguagem mais atual, pois não importa o quanto eles tentem planejar e perseverar na vida, ele estão constantemente nadando contra uma corrente muito mais poderosa do que eles: Tudo que o proletário pode fazer para melhorar sua posição não é mais do que uma gota no oceano se comparado com as marés variantes do acaso às quais ele é exposto, e sobre as quais ele não tem um mínimo de controle. Ele é o sujeito passivo de todas as combinações de circunstâncias e, pois, deve se considerar afortunado quando mantém sua vida a salvo ainda que por um curto período de tempo; e seu caráter e meio de vida são naturalmente moldados por essas condições.
Há uma série de respostas possíveis a essa falta de controle frente às “marés do acaso”, e o crime é apenas uma delas. Alguns enchem-se de raiva contra o sistema e contras as pessoas que lucram com o sistema: eles “sentem a desumanidade da sua posição” e “recusam-se a serem degradados até a brutalidade”. Eles reagem. Mas outros “ou se curvam humildemente perante o destino que lhes assalta”, ou “perdem o controle moral sobre si do mesmo modo como já perderam o controle econômico, vivem de um dia para o outro, bebem e caem na devassidão; em ambos os casos, eles são embrutecidos”. Engels nota sarcasticamente que a burguesia, a classe dominante,
fica previsivelmente “horrorizada” com tal comportamento – mas sua aversão é hipócrita, uma vez que foram eles mesmos que originaram “as causas que proporcionaram sua ascensão”. “É de se esperar”, diz Engels, “que eles bebam muito”, pois “acumular propriedade duradoura para si mesmos é impossível... Que coisa melhor poderiam eles fazer, então, quando recebem salários altos, do que viver bem a partir deles?” E quando eles não estão se embriagando até o estupor, os trabalhadores praticam sexo inconsequente: Além da intemperança no consumo de bebidas alcoólicas, um dos principais defeitos dos trabalhadores ingleses é a licenciosidade sexual. Mas isso também ocorre por uma lógica implacável, uma necessidade inevitável, surgida da posição de uma classe deixada à própria sorte, sem meios de gozar adequadamente sua liberdade. A burguesia deixou para a classe trabalhadora somente esses dois prazeres, ao mesmo tempo em que lhe impôs uma série de trabalhos e dificuldades e a consequência disso é que os trabalhadores concentram toda sua energia nesses dois prazeres a fim de extrair algo da vida, excedendo-se neles, entregando-se a eles da maneira mais desregrada possível. Quando as pessoas são submetidas a condições que são atraentes apenas aos brutos, o que lhes resta além de rebelar-se ou sucumbir à total brutalidade?
Nessas passagens, Engels expressa o que, na superfície, parece ser um moralismo puritano acerca do comportamento do trabalhador – uma atitude que igualmente aparece em alguns dos escritos de Marx. Eles não estão, de modo algum, romantizando a pobreza ou idealizando o proletariado tal como é: estão, isso sim, estarrecidos diante daquilo que o proletariado – ou ao menos boa parte dele – se tornou. Uma das razões de sua profunda aversão 59
contra o capitalismo está precisamente na “desmoralização” a que ele força pessoas trabalhadoras – no fato de que ele não apenas priva, mas degrada, inibindo profundamente a realização total do potencial humano. A linguagem pode parecer pitoresca hoje: mas essa insistência no caráter desmoralizante do capitalismo é uma parte essencial da denúncia que eles lhe dirigem. Engels resume essa atitude de maneira concisa na obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra: “As origens das falhas dos trabalhadores em geral podem ser localizadas na... falta de habilidade geral em sacrificar o prazer momentâneo em prol de uma vantagem mais remota”. Até este ponto, ele poderia ser um pregador de classe média esbravejando contra o declínio moral das massas trabalhadoras. Mas então ele continua e conecta esse declínio às suas previsíveis fontes estruturais: Uma classe com cuja educação ninguém se preocupa, que é um joguete para mil variantes do acaso, não conhece segurança na vida – que incentivos tem esta classe para a providência, para a “respeitabilidade”... Uma classe que suporta todas as desvantagens da ordem social sem gozar de nenhuma de suas vantagens, para a qual o sistema social manifesta-se apenas em seus aspectos puramente hostis – quem poderia exigir que essa classe respeitasse uma tal ordem social? Em verdade, é pedir demais!
Seria um exagero dizer que Engels proporcionou algo como uma teoria sistemática da relação entre capitalismo e crime. Mas o que ele ofereceu, sim, foi uma visão consistente que se destaca perante outras perspectivas daquele tempo, mesmo das críticas, e cujos temas-chave seguem sendo centrais às mais recentes “criminologias do mercado”. A visão de Engels é holística: ela aponta para a existência de múltiplos meios que se reforçam mu60
tuamente, através dos quais as condições brutais do capitalismo do século XIX criam uma “brutalidade” ou desmoralização correspondentes em muitas das pessoas a elas sujeitas. Em um nível, a sociedade capitalista fomenta condições materiais que transformam algumas formas de crime em técnicas de sobrevivência completamente previsíveis, especialmente para os mais pobres dentre os pobres. Mas, contrariamente à ideia comum de que os primeiros pensadores marxistas eram simples deterministas econômicos, Engels enfatiza simultaneamente as transformações interiores – as mudanças na consciência – produzidas por uma ordem social enraizada em um individualismo insensível, cuja própria existência depende da exploração de algumas pessoas por outras. As privações materiais que o capitalismo inevitavelmente produz na parte inferior da sociedade são compreendidas por suas vítimas, ainda que de maneira vaga, como injustamente infligidas: a sensação de estarem sendo “roubadas” em benefício dos outros enfraquece ou destrói os laços naturais de solidariedade social que de outra forma impediriam os destituídos de simplesmente tomar para si aquilo de que eles precisam. Além disso, o capitalismo também age contra a capacidade das instituições de incutir e fazer cumprir o comportamento moral. Tanto a pobreza extrema como o caráter brutal do trabalho no capitalismo industrial – a sua esmagadora monotonia e sua exploração negligente do trabalho de mulheres e crianças – enfraquecem a família enquanto agência de educação moral. Ao mesmo tempo, a insegurança fundamental do sustento, que é para Engels a marca do capitalismo industrial, solapa a ligação entre o comportamento prudente e moral no presente e a expectativa de uma boa vida no futuro – gerando uma orientação descuidada e focada preponderante-
mente no presente ao mundo em que quase tudo é possível. É fácil ver aqui elementos de diversas teorias que emergiram muito depois como componentes comuns da criminologia acadêmica – incluindo as teorias hoje chamadas de “teoria da tensão”, “teoria do controle”, “teoria da desorganização social” e “teoria da aprendizagem social”. Mas no trabalho de Engels todos esses elementos são partes de um todo. Eles não são tratados como explicações teóricas concorrentes, a serem “testadas” umas contra as outras, mas como janelas complementares para os efeitos acumulados de toda uma ordem social – que foi recém-lançada sobre aquilo que vem a ser um novo tipo de pessoa pertencente a um novo tipo de grupo social. O crime é apenas uma das muitas consequências – um dos muitos “custos”, para usar uma linguagem que o capitalismo em si inspirou – desta ordem social: mas ele não pode ser adequadamente compreendido fora dela. Um segundo tema-chave decorre deste: que o crime não é um custo acidental ou transitório do capitalismo, senão que fundamental. Isso distingue a análise de Engels de outras perspectivas críticas que ligam o crime a mazelas sociais como pobreza, desigualdade e desemprego. Na visão de Engels, esses são aspectos essenciais e duradouros do capitalismo enquanto sistema. Isto não necessariamente quer dizer que combater o crime deve significar subverter toda a ordem social, mas sugere que há fortes limites para aquilo que táticas mais fragmentadas podem realizar. Esses temas foram expandidos e elaborados pelo estudioso e ativista político holandês Willem Adrian Bonger no início do século XX, especialmente no seu gigantesco trabalho Criminality and Economic Conditions (Bonger [1916] 1967), provavelmente a primeira análise sistemática
do crime baseada em uma estrutura amplamente marxista. Como Engels, Bonger coloca a ideia de “desmoralização” no centro da sua análise e argumenta que a desmoralização apresentada pelo criminoso comum é tanto uma consequência como um espelho da desmoralização mais ampla que é a essência do capitalismo moderno. E também como Engels, a análise de Bonger é explicitamente holística. Ele critica os autores anteriores que haviam escrito sobre as ligações entre crime e condições econômicas porque eles tendiam a olhar para uma ou outra parte do problema – flutuações econômicas, por exemplo, ou pobreza – ao invés de analisar o impacto daquilo que ele chamou de “atual sistema econômico” – isto é, o capitalismo do final do século XIX e início do século XX –, como um todo, no crime. Para Bonger, o que mais distingue tal sistema como um “modo de produção” único é que a atividade econômica é devotada unicamente à busca de lucro. Sempre houve “mercados” nos quais as pessoas efetuavam trocas de bens para seu uso próprio, mas, com o advento do capitalismo moderno, algo mais acontece: pela primeira vez na história, a ordem socioeconômica inteira passa a ser orientada ao lucro pessoal, e outros fins sociais passam a segundo plano. Essa mudança crucial é intrinsecamente criminogênica, por diversas razões que estão intimamente interligadas. Mais importante, a emergência de uma sociedade na qual a troca de bens e trabalho por lucro suplantou outros fins sociais significa que relações humanas em geral tornam-se caracterizadas por um espírito daquilo que Bonger (mais uma vez, seguindo Engels) denomina “egoísmo”. O capitalismo “enfraquece os instintos sociais no homem” e encoraja os potenciais de egoísmo e individualismo presentes em todos, a um ponto em que passam a dominar a vida social. A 61
sociedade como um todo torna-se impregnada pelas orientações calculistas do mercado, e o resultado é um enfraquecimento geral dos sentimentos e laços sociais que poderiam inibir o crime; “uma sociedade baseada na troca isola os indivíduos ao enfraquecer o laço que os une” (p. 402). Mas a forma como esse egoísmo prevalente se manifesta depende muito de onde ele aparece na estrutura de classe. Porque o capitalismo não é apenas um sistema de produção por lucro impregnado por uma peculiar orientação de valores, mas também um sistema cuja essência é a divisão da sociedade em pessoas que possuem e controlam os meios de produção – e, por conseguinte, que estão em uma posição de obter lucro – e pessoas que não possuem nada além da habilidade de vender sua força de trabalho no mercado. Bonger argumenta que no topo, entre os burgueses, o egoísmo se manifesta através da disposição em tratar outros como fins a serviço do ganho pessoal e em abandonar quaisquer sentimentos de reciprocidade em relação a outras classes (entre outras coisas, isso torna os membros da burguesia particularmente propensos ao cometimento daquilo que hoje chamamos de crimes de colarinho branco). Mas as vantagens materiais da burguesia – famílias mais estáveis, acesso a melhores educação, moradia e assistência médica – significam que há uma probabilidade menor de que pessoas pertencentes a essa classe venham a cometer crimes comuns ou acabar na prisão. Para o proletariado, contudo, as coisas são muito diferentes. Assim como Engels, Bonger sugere diversos meios, relacionados entre si, através dos quais as condições essenciais da classe trabalhadora nutrem a tendência à “desmoralização” inerente ao capitalismo. A realidade fundamental de ser compelido a sobreviver vendendo aos outros sua força de trabalho em um merca62
do precário e em constante mudança cria uma insegurança econômica existencial e dominante. “Isso, então, é o que significa liberdade de trabalho”, escreveu Bonger: “uma liberdade que o escravo nunca conhece, liberdade para morrer de fome”. E também Bonger liga essa insegurança fundamental a uma tendência ao fatalismo, ao pensamento a curto prazo e a uma inabilidade de planejamento. Mas o problema é não apenas a incerteza de ter algum trabalho, mas também o caráter irracional e “entorpecente” do trabalho em si sob o capitalismo. Como Engels argumentou mais de meio século antes, o “trabalho imoderado embrutece o homem”, “embotando” as sensibilidades e tornando o abuso do álcool mais atraente. Bonger devota considerável atenção ao impacto do capitalismo nas famílias da classe trabalhadora e nota que, para além dos efeitos da insegurança econômica, pobreza e trabalho brutalizante, a organização do trabalho, no capitalismo moderno, mina a capacidade das famílias para a socialização e o afeto. O recrutamento em grande escala de mulheres para a força de trabalho industrial, associado à inexistência de outras instituições comunitárias – incluindo boas escolas que poderiam prover uma fonte alternativa de educação moral – levou a que crianças da classe trabalhadoras acabassem sendo deixadas sozinhas, se não forçadas elas mesmas ao trabalho, expostas à influência desmoralizante das ruas. Ao mesmo tempo, a aglomeração de pessoas de todas as idades e sexo em condições de moradia precárias significou a exposição de crianças à sexualidade de adultos em um nível que solapava seu senso moral: e uma mistura tóxica de pobreza, salários inadequados para mulheres e desmoralização generalizada também levou ao crescimento fértil da prostituição. Mas se o capitalismo tendia, de muitas
formas, a desmoralizar o proletariado, as coisas eram ainda piores para o que Bonger denominou “baixo” proletariado. Ali, onde o bem-estar das pessoas depende da sua habilidade de vender sua força de trabalho, aqueles que, por alguma razão, não pudessem fazê-lo, ou só o pudessem fazer de maneira intermitente, sofreriam todos os efeitos adversos da pobreza, da insegurança, das más condições de habitação e do álcool – de modo ainda mais exacerbado. O baixo proletariado também carecia da redenção do respeito próprio de que a classe trabalhadora mais estável normalmente gozava. Aqueles que trabalham podem, ao menos, ver a si mesmos como úteis para a sociedade. Aqueles que não podem trabalhar acabam por se definir – e serem definidos – como essencialmente inúteis, o que só reforça as pressões para a desmoralização e a criminalidade. Bonger enfatiza que as diferenças entre o proletariado e o “baixo” proletariado são basicamente uma questão de grau – mas esse grau é importante. O nível mais profundo de insegurança e pobreza e a ausência de respeito próprio destrói a solidariedade e, por fim, “mata os sentimentos sociais no homem” – pois “aquele que é abandonado por todos não pode mais ter qualquer sentimento por aqueles que o largaram à própria sorte” (p. 436). Assim como em Engels, a análise multifacetada de Bonger pressagia elementos de diversas perspectivas teóricas contemporâneas na criminologia que são vistas não raro como opostas – notavelmente, teorias da anomia, da desorganização social e do controle, e também teorias da reação social, da associação diferencial e do aprendizado social. Mas, para Bonger, essas não são explicações concorrentes, senão que partes integrantes de uma compreensão holística do impacto de toda uma ordem social – a “civilização” do capitalismo moderno – no crime. As linhas entre
“micro” e “macro”, “estrutura” e “cultura”, são completamente confusas. E, enquanto essa compreensão do impacto do capitalismo é em geral sombria e profundamente crítica, ela também tem um lado positivo. Como a desmoralização do proletariado não é o resultado do destino ou de diferenças inatas (a perspectiva biológica de Lombroso é criticada dura e fundamentadamente no trabalho de Bonger), mas sim uma consequência previsível do “sistema econômico atual”, ela não é inevitável e poderia mudar quando esse sistema mudasse. De fato, Bonger acreditava não apenas que a condição do proletariado poderia mudar para melhor, mas que ela já estava mudando e era muito melhor do que havia sido quando Engels escreveu. E essa melhora geral seria acompanhada do declínio da criminalidade – não em razão de qualquer qualidade progressiva intrínseca do capitalismo em si, mas porque os trabalhadores haviam começado cada vez mais a entender as fontes sistêmicas da sua condição comum e a se organizar com sucesso para melhorá-la. Quanto mais o proletariado desenvolvesse uma consciência de que eles eram todos sujeitos às mesmas forças adversas e formassem uma disposição coletiva para desafiá-las, mais as tendências egoístas induzidas pelo sistema de lucro seriam repostas por tendências solidárias. A crescente influência das ações políticas da classe trabalhadora – e de políticas socialistas em particular – não apenas forçaria uma melhora geral em condições materiais, mas também elevaria o nível de civilização entre os trabalhadores e “despertaria” um sentimento de solidariedade. Bonger sugere que sob o socialismo, uma vez que a propriedade comum dos meios de produção tivesse eliminado as causas da pobreza intelectual e material, o crime diminuiria significativamente, e poderia quase desaparecer. O socialismo “não apenas 63
irá remover as causas que hoje tornam os homens egoístas, mas vai despertar, ao contrário, um forte sentimento de altruísmo... em tal sociedade não pode haver a questão do crime propriamente dita” ([1916] 1967, p. 671). A tradição representada por Engels e Bonger, cabe dizer, possui pouca influência direta no desenvolvimento da criminologia acadêmica formal na primeira metade do século XX. É importante salientar, contudo, que alguns temas centrais vieram à tona em trabalhos mais “mainstream”, de modo especialmente notável no artigo seminal de Robert Merton sobre Social Structure and Anomie (Merton, 1957), possivelmente o trabalho mais influente do pensamento criminológico de meados do século XX. Considere-se a discussão de Bonger sobre o impacto criminogênico daquilo que ele descreveu como uma “cobiça” crescente que colocou seu “selo de absoluta supremacia na totalidade da vida”: O capital de investimento de larga escala tomou conta do comércio a varejo, empregando todos os meios possíveis (e impossíveis) para chamar a atenção do povo para sua corrente inacabável de bens. As grandes cidades agora têm uma atmosfera social de desejo cobiçoso imposto até às camadas mais superiores; Compre, compre mais! – grita-se aos ouvidos das massas – há abundância de tudo! Mas muitos não podem comprar aquilo que tanto desejam – e com isso nós chegamos ao aspecto criminológico da questão (Bonger, 1936, p. 94). DESENVOLVIMENTOS CONTEMPORÂNEOS
O pensamento criminológico focado explicitamente na crítica do capitalismo de mercado reemerge de maneira mais forte com a explosão da escola de ciências sociais da Nova Esquerda, particularmente no Reino Unido, a partir dos anos 1960 – 64
uma resposta, em parte, à teimosa persistência, e por vezes aumento, do crime em meio à prosperidade do pós-Segunda Guerra Mundial e ao crescimento do Estado de bem estar social, bem como à inabilidade de criminologias convencionais para compreender adequadamente tais desenvolvimentos. Muito da criminologia consolidada, por essa perspectiva, era “correcional”, atuando principalmente como uma serva das forças do controle social na redução das consequências de um Estado de bem estar social falho e parcial. Muito daquilo que se passava como criminologia de esquerda, por outro lado, desviou-se para uma espécie de relativismo que negava a importância do crime comum em geral e minimizava seu impacto destrutivo, especialmente em relação aos pobres e marginalizados. Indo contra essas duas tendências, alguns escritores clamaram por novas criminologias que, como bem colocaram Ian Taylor, Paulo Walton e Jock Young no início da década de 1970, tivessem como objetivo uma “economia política da ação criminal” (Taylor, Walton e Young, 1973 [2013], p. 294). Como Bonger e Engels, esses estudiosos consideravam o crime como um custo social do desenvolvimento capitalista – um custo que não havia desaparecido com o aparar das arestas mais afiadas do capitalismo no século XX. Eles procuraram revitalizar e reconectar-se com uma preocupação marxista clássica quanto ao impacto destrutivo do capitalismo de mercado na vida social e pessoal, especialmente no bem-estar, nos valores e nas tradições dos trabalhadores nas sociedades industriais pós-guerra, e buscaram desenvolver estratégias de intervenção progressivas contra esse impacto. Novamente, a compreensão de que o capitalismo contemporâneo afetou o crime de inúmeras maneiras – materiais, culturais, comuns, psicológicas – e, portanto, de que uma criminologia adequada tinha
que “lidar com a sociedade como um todo”, era central a este pensamento (Ibid.). Isso significava entender de que modo o capitalismo moderno havia mudado, assim como de que modo ele não havia mudado. O livro seminal de John Lea e Jock Young, What is to be Done About Law and Order (1993) concentrou-se no problema da “privação relativa” enquanto estrutura-chave para compreender as pressões que levam ao crime na sociedade capitalista industrial pós-guerra – na prática, modernizando a análise de Engels do século XIX. A pobreza “absoluta” já não era mais tão virulenta ou tão difundida quanto havia sido no passado do capitalismo: mas muitas pessoas ainda sofriam com a exclusão diante dos “prêmios reluzentes da sociedade capitalista – quer fossem eles riqueza material, quer fossem status individual e prestígio – e com a marginalização perante canais legítimos para restabelecer o equilíbrio” (p. ix). Junto a essa privação relativa “endêmica” havia outras consequências culturais e comuns mais sutis que poderiam ser mascaradas superficialmente pela rasa riqueza da explosão econômica do pós-guerra – notavelmente “o desenvolvimento da cultura consumista e ao mesmo tempo a implacável derrocada de valores comunitários antigos, que em certa medida protegiam comunidades da classe trabalhadora tradicionais da privação relativa” (p. ix). Assim como a privação relativa em si, esses efeitos não deveriam ser entendidos como “desvios” de uma ordem social e econômica estável e saudável em outros aspectos: eles eram reflexos da “dinâmica central do capitalismo” (Ibid.). Lea e Young sustentam, do mesmo modo que Bonger, que, apesar de estes efeitos atingirem mais fortemente os trabalhadores e marginalizados, eles “podem ser sentidos em todos os níveis da estrutura social” e são “um grande estímulo para o crime de colarinho branco”. E os efeitos são
tanto psicológicos quanto sócio-estruturais, moldando profundamente a forma como indivíduos percebem o mundo ao seu redor e se inter-relacionam. Como Engels e Bonger, Lea e Young separam o “egoísmo puro” que é engendrado em todos os níveis pela “estrutura da sociedade capitalista de mercado”, das elites dos negócios ao “jovem assaltante do centro da cidade”, e que hoje “não é mediada pelas tradições de solidariedade de classe”. A propagação tóxica de valores “egoístas” é facilitada pelos efeitos corrosivos do desenvolvimento capitalista sem limites na estrutura econômica das comunidades da classe trabalhadora: A fragmentação de comunidades através da decadência econômica e o aumento do desemprego de longa duração reduzem os níveis de controle social coletivo sobre criminosos potenciais, ao mesmo tempo em que os níveis de egoísmo e privação relativa podem aumentar.
Famílias e escolas simultaneamente se enfraquecem enquanto baluartes contra a desmoralização e a disseminação do individualismo predatório (p. xiii). Ponto relevante está em que Lea e Young argumentam que o crime não é, de modo algum, uma resposta automática a esse complexo de condições. Como Engels, e especialmente Bonger, eles veem a ação política como uma potencial alternativa ao crime. O crime torna-se a resposta padrão às condições adversas na ausência de uma alternativa política mais construtiva: “o descontentamento, onde não há solução política, leva ao crime” (p. 88). Do outro lado do Atlântico, comecei a desenvolver semelhante perspectiva mais ou menos na mesma época, incialmente como forma de lançar luzes sobre o padrão característico do crime e encarceramento nos Estados Unidos de hoje em dia – que, nos anos 1980 assim como hoje, destacavam-se nitidamente de outros países indus65
triais avançados tanto no que tange aos seus níveis de violência grave quanto em suas taxas de encarceramento (Currie, 1985). Argumentei que havia vários aspectos nos quais os Estados Unidos se diferenciavam de outras sociedades industriais e que ajudavam a explicar seu status enquanto “um ponto fora da curva”, incluindo grandes extremos de desigualdade, pobreza profunda e mais espalhada, maior erosão dos laços familiares e comunitários por meio de um desenvolvimento econômico nocivo e de um menor apoio para indivíduos e famílias em face da insegurança econômica e da privação. Outros países desenvolvidos haviam enfrentado semelhantes tensões subjacentes, mas, na maior parte deles, os efeitos foram amortecidos, em diversos graus, por “mecanismos compensatórios de obrigação social e apoio” (1985, p. 225). A versão americana do capitalismo, em contraste, havia sido “marcada pelo jogo relativamente ilimitado das forças de mercado”, e havia, consequentemente, “perturbado de maneira excepcional as instituições necessárias para o desenvolvimento sadio do caráter e da comunidade” (1985, p. 225). Em uma discussão posterior, procurei investigar mais profundamente o impacto da “sociedade de mercado” no crime e aplicar a análise em uma escala global mais ampla. Comecei distinguindo a ideia da “sociedade de mercado” do conceito mais restrito de uma “economia de mercado”. Defini sociedade de mercado como A difusão de uma civilização na qual a busca de ganhos econômicos pessoais torna-se, cada vez mais, o princípio organizacional dominante da vida social – uma formação social na qual os princípios de mercado, ao invés de confinados a algumas partes da economia e devidamente amortecidos e contidos por outras instituições e normas sociais, vêm a impregnar todo o tecido social – e a minar e sobrecar66
regar outros princípios que historicamente sustentaram indivíduos, famílias e comunidades (Currie, 1997, p. 151-152).
Praticamente todas as sociedades possuem um setor de mercado na economia, mas há grandes diferenças – mesmo em sociedades formalmente capitalistas – no grau com que o comportamento e os valores de mercado “impregnam” a sociedade como um todo em tal sentido, e sustentei que estas diferenças ajudam a explicar as variações nos níveis de crimes violentos graves no mundo contemporâneo. “Sociedade de mercado” é, obviamente, um tipo ideal: mas algumas sociedades, tanto desenvolvidas como menos desenvolvidas, encaixam-se na descrição melhor que outras. Assim como outros nesta linha de pensamento, percebi as ligações entre sociedade de mercado e crime como múltiplas conexões que se reforçam mutuamente, operando em diversos níveis de uma só vez – econômicos, comunitários, culturais e psicológicos. Eu especifiquei sete dessas conexões, que denominei de (1) progressiva destruição do sustento; (2) crescimento dos extremos da desigualdade econômica e da privação material; (3) retirada dos serviços e suportes públicos (especialmente para famílias e crianças); (4) erosão das redes informais e comunitárias de apoio mútuo, supervisão e cuidado; (5) propagação de uma cultura materialista, negligente e “dura”; (6) comercialização não regulada da tecnologia de violência; e, não menos importante, (7) enfraquecimento de alternativas sociais e políticas. Argumentei que estas conexões funcionavam juntas em diversas combinações por diferentes sociedades “pós-industriais”, levando a padrões específicos que eram frequentemente bem complexos e historicamente específicos. Por exemplo, a força relativa das instituições comunitárias informais, tais como
famílias estendidas e comunidades locais estáveis, poderia ajudar a explicar por que níveis de violência grave podem ser notavelmente baixos em alguns países relativamente pouco desenvolvidos, como a Espanha ou a Grécia. A impressionante ausência de controle no comércio de armas de fogo nos Estados Unidos ajuda a compreender por que as taxas americanas de homicídio eram não apenas previsivelmente mais altas, mas muito mais altas, do que em outras sociedades desenvolvidas onde armas eram submetidas a uma regulação mais estrita. Igualmente, a particular história de desigualdade racial nos Estados Unidos compôs os efeitos adversos da extrema versão americana de sociedade de mercado e ajudou a explicar tanto seus níveis incomumente altos de violência quanto a extraordinária concentração de violência e encarceramento entre minorias raciais. VARIEDADES DE EVIDÊNCIA
Como essa perspectiva se sustenta à luz da pesquisa e experiência histórica? Meu pressentimento é de que seu argumento central se sustenta muito bem – e de fato ainda tem de ser desafiado empiricamente de maneira exitosa. Evidências – de diversas fontes – confirmam que sociedades que tomaram mais providências no sentido de refrear os excessos do “mercado” tiveram muito mais sucesso na redução da violência do que aquelas nas quais a vida econômica e social seguem sendo dominadas por forças de mercado. E essa realidade tem importantes implicações em como nós pensamos o futuro do crime e estratégias para combatê-lo. Algumas das mais importantes evidências podem ser extraídas da análise comparativa da distribuição da criminalidade violenta em cidades com diferentes níveis de intervenção no “mercado”. Nes-
te ponto, as avaliações de violência, particularmente do homicídio, nos Estados Unidos, são especialmente significativas. As dramáticas diferenças entre os Estados Unidos e países “mais democráticos” quanto às taxas de homicídio (Currie 2015; Hall e McLean, 2009) e às taxas de homicídio praticado com arma de fogo, em particular (Richardson e Hemenway, 2011), são incontestáveis. As disparidades são ainda mais impressionantes quando os efeitos da marginalização dos jovens são associados à ausência de comércio regulamentado de armas de fogo: mortes decorrentes de violência cometida com arma de fogo entre homens jovens com idades entre 15 e 29 anos são 42 vezes maiores nos Estados Unidos do que a média em 22 outros países de alta renda (Richardson e Hemenway, 2011). Com efeito, esse nível “excepcional” de violência é ainda mais notável diante da taxa de encarceramento igualmente excepcional do país – o que sugere que a propensão americana para gerar violência é ainda mais extrema do que as já desproporcionais taxas de homicídio indicariam (para uma discussão acerca deste assunto, ver Currie, 2003). Globalmente, a estratificação brutal da violência entre os “que têm” e os “que não têm” do mundo – os “vencedores” e os “perdedores” na economia capitalista mundial – é a característica que mais nitidamente define o crime violento nos nossos tempos. Deixando de lado a gritante exceção americana, os piores níveis, por uma grande margem de diferença, estão em países de baixa e média renda que sofrem os piores impactos de um capitalismo cada vez mais “ilimitado” enquanto recebem alguns dos mais escassos e desiguais benefícios. Da perspectiva de uma “criminologia do mercado”, não é por acaso que a taxa de homicídios em Honduras seja mais de 100 vezes maior do que a taxa de homicídios na Suécia, ou que na África do Sul esta taxa 67
seja aproximadamente 90 vezes a do Japão (Currie, 2015; UNODC, 2014). Junto às fartas evidências da experiência contemporânea global, um pequeno número de estudos quantitativos fez a ligação entre os índices de criminalidade e o grau de controle que as políticas sociais exercem sobre as relações de mercado. No final dos anos 1990, por exemplo, Steven Messner e Richard Rosenfeld exploraram os efeitos daquilo que eles chamaram de “restrição política do mercado” nas taxas de homicídio. Sua análise é construída sobre o conceito de “desmercantilização”, desenvolvido pelo sociólogo sueco Gosta Esping-Anderson (1990) – e significa o desenvolvimento de políticas sociais que visam a isolar pessoas do impacto bruto das forças do mercado na economia. Messner e Rosenfeld concluíram que “quanto maior o nível de proteção política frente às vicissitudes do mercado, menor é a taxa de homicídios nacional”. O efeito benéfico da desmercantilização nas taxas de homicídio persistiu mesmo quando uma variedade de outras potencialmente relevantes variáveis foi controlada, incluindo desigualdade, desenvolvimento econômico e a proporção de homens para mulheres na sociedade. Outro estudo transnacional, feito por Jukka Savolainen, também constatou que vigorosos esforços de desmercantilização, na forma de gastos generosos com proteção social, estavam associados a taxas menores de homicídio: e uma revisão mais recente de pesquisas transnacionais acerca do homicídio desde 1970, realizada por Amy Nivette (2011), confirma a ligação entre medidas de desmercantilização e taxas menores de homicídio. Um estudo – de Olena Antonaccio e Charles Tittle – tentou testar diretamente alguns dos princípios centrais do argumento de Willem Bonger examinando como aquilo que eles chamam de “grau de capi68
talismo” em uma sociedade afeta suas taxas de criminalidade. Analisando taxas de homicídio em cem países à época da virada do século XXI, os autores criaram um índice do “grau de capitalismo” composto por quatro fatores: (1) os impostos da Previdência Social enquanto porcentagem das receitas do governo; (2) a porcentagem das despesas nacionais com assistência médica privada (presumivelmente refletindo um baixo comprometimento com o sistema público de saúde); (3) uma medida de densidade sindical, que pode refletir a capacidade dos trabalhadores em restringir os efeitos do capitalismo absoluto; e (4) o índice Gini de desigualdade, presumindo-se que economias capitalistas menos limitadas geram maior desigualdade. Antonacci e Tittle descobriram que sociedades com um maior grau de capitalismo – isto é, sistemas relativamente puros de capitalismo, um conceito fundamentalmente similar ao de “sociedade de mercado” – são associadas com taxas de homicídio mais elevadas. Por um outro ângulo, algumas pesquisas exploraram o impacto, no crime, de mudanças rápidas no sentido de uma maior desregulamentação e “mercantilização” em algumas regiões e países em particular. Novamente, o padrão é claro: particularmente nos estágios iniciais do que é muitas vezes celebrado como a liberação das forças de mercado de restrições governamentais indevidas, sociedades que se movem na direção do modelo da sociedade de mercado possuem maiores taxas de homicídio (normalmente junto com outros indicadores de adversidade social, como crescente mortalidade infantil e diminuição da expectativa de vida). Taxas de homicídio e de outros crimes violentos graves aumentaram de forma acentuada, junto a outras patologias sociais, na Rússia e em outros Estados da antiga União Soviética depois das refor-
mas econômicas orientadas pelo e para o mercado no final dos anos 1980 (Karstedt 2003; Pridemore 2005; Slade e Light, 2015; Lysova e Schchtov, 2015; Stickley, Leinsalu e Razvodovsky, 2008), que trouxeram consigo um aumento do desemprego e da pobreza e eliminaram suportes sociais já consolidados. Um padrão similar, embora menos extremo, é evidente em muitos países do centro-leste da Europa (Stamatel, 2008). Em muitos desses países (mas não em todos), as taxas de crime atingiram seu pico na metade da década de 1990 e posteriormente retrocederam, mas ainda permaneceram em geral mais altas que antes da era da “reforma” (tais efeitos, ademais, provavelmente foram mascarados em alguns países, inclusive na Rússia, por contínuas manipulações oficiais das estatísticas sobre a criminalidade violenta) (ver Lysova e Schchtov, 2015). Padrões similares parecem se sustentar também em relação à China, onde uma mudança rápida para longe de um modelo social mais coletivo em nome de reformas de mercado resultaram em mais desemprego, na destruição de comunidades rurais outrora estáveis e numa migração em massa para as cidades (Liu e Messner, 2004). Grande parte da América Latina e do Caribe foi assolada por aumentos em crimes violentos, como impacto de uma penetração cada vez maior do mercado e da adoção de políticas neoliberais de “ajuste estrutural” nos anos 1980 e 1990, que trouxeram um aumento da pobreza e do desemprego em massa, assim como reduções nos serviços públicos sociais (Ayres, 1998). Apesar de a violência ter recuado de seu auge em muitos desses países, inclusive no Brasil, ela continuou a aumentar em outros – fazendo com que países como Honduras e El Salvador alcançassem as maiores taxas de homicídio do mundo; e mesmo onde as maiores taxas dos anos 1990 diminuíram,
elas ainda se sobressaem em relação às do resto do mundo (Currie, 2015; LaFree et al., 2015; UNODC, 2014). Essas descobertas são apoiadas por aquilo que hoje compõe uma longa tradição de pesquisa que consistentemente tem confirmado as ligações entre altos níveis de crime violento e algumas das facetas essenciais da “sociedade de mercado” – mais notavelmente, profunda desigualdade econômica e poucos gastos com proteção social. A ligação entre desigualdade econômica e violência foi afirmada, tanto transacionalmente quanto dentro de países específicos, por décadas (para exame, ver Currie, 1985, 2015; Nivette, 2011; Ouimet, 2012; Pratt e Cullen, 2005; Wilkinson e Pickett, 2010). A exata natureza dessa relação é complexa, e há discussão sobre se seria a desigualdade econômica ou a pobreza quem contribui em maior grau para taxas altas de homicídio (ver Pridemore, 2008; Pridemore e Trent, 2010). Mas essa pode ser uma distinção sem diferença, já que, no mundo real, o alastramento da desigualdade econômica normalmente anda lado a lado com a pobreza extrema na parte mais inferior da escala. Os Estados Unidos, que lideram o resto do mundo industrializado desenvolvido em homicídios, também o lideram tanto nos seus extremos de desigualdade como na profundidade da sua pobreza; no mundo em desenvolvimento, os níveis mais extremos de violência são invariavelmente encontrados em países nos quais a pobreza extrema e níveis extraordinariamente altos de desigualdade econômica são endêmicos. Em um estudo sobre os correlatos do homicídio em uma amostra ampla de 165 países, Marc Ouimet (2012) constatou que tanto a desigualdade econômica em geral quanto uma medida por ele denominada de “mortalidade infantil excessiva” – um nível de mortalidade infantil superior ao que seria esperado frente ao nível de de69
senvolvimento econômico do país – foram associados com níveis extremamente altos de homicídio desde os Estados Unidos até diversos países na America Latina e no Caribe, na África e no antigo bloco soviético. Algumas das confirmações empíricas mais elucidativas acerca da força dos laços entre o capitalismo de mercado e o crime têm origem em estudos etnográficos de comunidades que foram fortemente atingidas pela influência desestabilizadora – e desmoralizante – do capitalismo de consumo global. No Reino Unido, por exemplo, Steve Hall, Simon Winlow e Craig Ancrum (2008) ofereceram um olhar profundo sobre as vidas de jovens em diversos conjuntos habitacionais no nordeste da Inglaterra, onde empregos estáveis da classe trabalhadora praticamente desapareceram e onde uma cultura de consumo estridente que equipara a identidade de sucesso com a ostentação de bens de consumo acabaram por impregnar a vida local, desalojando tradições antigas de mutualidade e solidariedade. Através de extensas entrevistas, Hall, Winlow e Ancrum revelam a emergência de uma cultura local na qual o crime rotineiro a serviço da aquisição consumista é largamente compreendido como um meio de escapar daquelas que seriam, de outro modo, vidas não apenas de privação material, mas também de identidades empobrecidas – uma maneira de evitar ser visto, e ver a si mesmo, como um “ninguém” em uma comunidade de ninguéns. “Todos os criminosos de rua com quem falamos”, escreveram os autores, Pareciam sinceramente acreditar que a boa vida deveria ser compreendida em termos de aquisição e ostentação de bens e serviços que significassem realização cultural no mais superficial dos termos. Ser rico significa ser feliz. Ser feliz é satisfazer, é comprar, é esbanjar, é ser libertado das restrições normais da vida diária em habi70
tações como essas. (2008, p. 48)
Hall, Winlow e Ancrum, conectando-se a uma tradição que remonta a Bonger, argumentam que o efeito de valores consumistas é aumentado pela erosão dos valores mais tradicionais de reciprocidade e solidariedade da classe trabalhadora. Esses valores estavam enraizados em uma forma de sustento e em expectativas razoavelmente sólidas; tendo em vista que tais valores se perderam sob o ataque da política social neoliberal, uma cultura competitiva de “ganhadores e perdedores” tomou cada vez mais seu lugar. Ao escrever no início do século XX, Bonger previu que a crescente organização da classe trabalhadora levaria a taxas menores de criminalidade: mas o eclipse de comunidades estáveis da classe trabalhadora acabou por desfazer essa previsão. OLHANDO PARA O FUTURO
Diversas evidências, então, sustentam o argumento de que “sociedades de mercado” são solo especialmente fértil para o florescimento do crime e que esforços conjuntos no intuito de reduzir o âmbito do impacto do mercado em indivíduos e comunidades podem levar a essa redução. De fato, pode-se argumentar que a diminuição da violência tem sido uma das maiores realizações daquelas sociedades que podemos chamar amplamente de “social democráticas” – juntamente com a redução da pobreza, das doenças preveníveis, da mortalidade infantil e da morte precoce. Tenham ou não essas sociedades se proposto a reduzir a violência, este é um feliz subproduto fortuito de intervenções sociais mais amplas concebidas para reduzir a desigualdade, a privação e a insegurança econômica e, não menos importante, para contestar os imperativos e distorções culturais daquilo que Willem Bonger teria chamado de uma so-
ciedade “egoísta”, ao institucionalizar valores de solidariedade e apoio social. Tais evidências também apontam para implicações na ação social e em políticas sociais. Vou sugerir algumas delas, sem tentar desenhar aqui um modelo. A primeira e mais relevante implicação é que o tipo de sociedade que construímos realmente importa. Não faltaram vozes nos dizendo que o crime tem pouco a ver com a estrutura social – com o contexto social, econômico e cultural mais amplo que de todas as outras formas molda as vidas das pessoas. Mas a enorme variação na criminalidade grave em diferentes sociedades nos mostra o contrário. E isso sugere que, apesar de difíceis, são as grandes mudanças sociais que mais importam. Ninguém sustenta com credibilidade que a razão pela qual países como Dinamarca ou Suécia têm menores taxas de violência que os Estados Unidos ou Guatemala, por exemplo, está em que eles descobriram estratégias de policiamento muito mais efetivas ou melhores modelos de intervenção terapêutica para criminosos violentos. As principais razões para essas nítidas diferenças – que se traduzem em diferenças enormes na qualidade de vida – são estruturais. De maneira consistente, as melhores e mais duradouras estratégias contra o crime continuam sendo aquelas que têm menos a ver com o crime em si e mais com garantir vidas de dignidade, segurança e propósito para todos. Estratégias voltadas a reduzir extremos de desigualdade, pobreza e insegurança econômica, em particular, são cruciais se esperamos reduzir violência em longo prazo. Neste ponto, especialmente vitais são estratégias mais eficazes que permitam alcançar de forma genuína o pleno emprego em um trabalho que proporcione sustento, estabilidade e significado – um terreno no qual nem mesmo as sociedades mais bem sucedidas triunfaram.
Isso, de modo algum, sugere que melhorias graduais em diversos níveis – desde políticas democráticas até intervenção individual com criminosos – não sejam úteis. Mas significa, isso sim, que as abordagens graduais mais úteis e efetivas serão aquelas ligadas a uma estratégia mais ampla com vistas à mudança social – um olhar mais global que inclua desafiar o caráter predatório e “egoísta” da vida social em sociedades de mercado. Teorias de mercado, por exemplo, sugeririam que esforços de “reabilitação” que simplesmente tentem ajustar criminosos a vidas restritivas e degradantes na camada mais baixa de um mercado inseguro e excludente pouco provavelmente seriam efetivos em longo prazo, mesmo em seus próprios e estreitos termos. Mas nós também podemos nos basear na compreensão das formas nas quais sociedades de mercado reproduzem um “egoísmo” criminogênico a fim de desenvolver estratégias de intervenção que sejam ao mesmo tempo promissoras e mais progressistas – intervenções “transformadoras” projetadas para ajudar pessoas envolvidas em crimes predatórios a entender as fontes de sua condição comum, a considerar outros como companheiros em potencial ao invés de alvos e a trabalhar para transformar a alienação e o descontentamento meramente viscerais em ação política coletiva (Currie, 2013). Há ainda muito trabalho a ser feito para desenvolver estas formas de intervenção estratégica, colocá-las em prática no mundo real e sujeitá-las a uma rigorosa avaliação – permanecendo, enquanto isso, comprometido com o trabalho de uma mudança social mais ampla. E é importante salientar a urgência desse trabalho. As instituições sociais que historicamente alicerçaram a redução da violência durante boa parte do século XX estão sob um ataque nunca antes visto – fustigadas por um avanço incansável da 71
própria economia de mercado global e por um ataque ideológico, político e cultural, surpreendentemente bem-sucedido, aos princípios da proteção social dos mais vulneráveis e à contenção do mercado. Não é difícil visualizar uma espiral descendente – em direção ao que podemos chamar de “americanização” do crime no mundo industrial desenvolvido, que provavelmente seria alcançada por uma expansão do aparato de repressão e controle de populações cada vez mais desmoralizadas pelas múltiplas forças adversas de uma sociedade de mercado global cada vez mais dominante e cada vez mais ilimitada. O outro lado da tendência do mercado para gerar altos níveis de crime é o crescimento “oculto” de tal aparato de repressão em massa – que é a razão pela qual a coexistência nos Estados Unidos da maior taxa de encarceramento do mundo com os maiores níveis do mundo desenvolvido de crimes violentos graves não é surpreendente e pela qual o rápido crescimento do encarceramento em massa em países como Brasil e El Salvador tampouco é surpreendente. Ao seguir insistindo que a violência é um custo previsível da propulsão em direção à “mercantilização” da sociedade global, criminologistas podem desempenhar um importante papel auxiliando a evitar esse cenário.
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