Comentários ao Código de Processo Civil [brasileiro de 1973, arts. 476 a 505] [5, 1ª ed.]

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Comentários ao Código de Processo Civil [brasileiro de 1973, arts. 476 a 505] [5, 1ª ed.]

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JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA Professor titular de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973)

Volume V (Arts. 476 a 565)

1ª edição eletrônica Revista e atualizada EDITORA FORENSE Rio de Janeiro 2002

À Turma de Bacharéis de 1972 da Faculdade de Direito da Universidade do Estado da Guanabara, que me deu a honra de adotar o meu nome - em sinal de amizade e gratidão.

OUTRAS OBRAS DO AUTOR - O problema da autodeterminação, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1962. - Questões prejudiciais e coisa julgada, tese de concurso, Rio de Janeiro, 1967. - O juízo de admissibilidade no sistema dos recursos civis, tese de concurso, Rio de Janeiro, 1968. - Direito Processual Civil (Ensaios e Pareceres), Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1971. - Litisconsórcio unitário, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1972. - Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, Editora Liber Juris, Rio de Janeiro, 1974. - O novo processo civil brasileiro, Editora Forense, Rio de Janeiro, 21ª ed., 2000. - Temas de Direito Processual (Primeira Série), Saraiva, São Paulo, 2ª ed., 1988. - A conexão de causas como pressuposto da reconvenção, Saraiva, São Paulo, 1979. - Direito aplicado I, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2ª ed., 2001. - Temas de Direito Processual (Segunda Série), Saraiva, São Paulo, 2ª ed., 1988. - Temas de Direito Processual (Terceira Série), Saraiva, São Paulo, 1984. - Temas de Direito Processual (Quarta Série), Saraiva, São Paulo, 1989. - Temas de Direito Processual (Quinta Série), Saraiva, São Paulo, 1994. - Temas de Direito Processual (Sexta Série), Saraiva, São Paulo, 1997. - Direito aplicado II, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2000. - Temas de Direito Processual (Sétima Série), Saraiva, São Paulo

AGRADECIMENTOS Agradeço cordialmente a meus filhos Luís Eduardo e Carlos Roberto e a meus amigos Alessandra Honorato Neves, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Ana Cristina Bacos Fernandes, Carlos Frederico Saturnino de Oliveira, Eduardo Teixeira e Borges, Gustavo Magno Goskes Briggs de Albuquerque, Julio Machado Teixeira Costa, Larissa de Souza Lima, Leonardo de Mello Caffaro e Márcio Monteiro Reis a valiosa colaboração prestada na atualização do presente volume e na confecção dos índices. Agradecimento especial, pela ajuda na revisão das provas, vai para uma pessoa também especial: minha mulher.

Título IX - DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS 1. Confronto com o direito anterior - O Código de Processo Civil de 1939 dedicava o Livro VI à disciplina dos processos da competência originária dos tribunais. Dividia-se ele em quatro Títulos: I - “Do processo no Supremo Tribunal Federal”; II - “Da homologação de sentença estrangeira”; III - “Da ação rescisória de sentença”; IV - “Do conflito de jurisdição”. É diversa a sistemática adotada no Código de 1973. Este Título IX insere-se, corretamente, no Livro I, consagrado ao processo de conhecimento, ao qual na verdade é pertinente a matéria aqui versada. Caberia apenas a ressalva de que os incidentes regulados nos Capítulos I e II podem ocorrer no julgamento de recursos contra decisões proferidas em processo de execução ou cautelar; mas não há dúvida de que ainda aí será cognitiva, por natureza, a atividade do tribunal. Omitiu-se a regulamentação do processo no Supremo Tribunal Federal, em consonância com o que preceituava, ao tempo da elaboração legislativa, o art. 120, parágrafo único, letra c, da Constituição da República (na redação da Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.1969), cometendo à própria Corte a edição de normas, em seu Regimento Interno, para disciplinar “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso” - disposição mais tarde inserta, com ligeira alteração redacional, no art. 119, § 3º, letra c, principio, por força da Emenda Constitucional nº 7, de 13.4.1977. É verdade que no Capítulo III tratou o Código da homologação de sentença estrangeira, causa de que então cabia sempre ao Supremo Tribunal Federal, como órgão colegiado, conhecer originariamente (Constituição da República, art. 119, nº I, letra g, fine, na redação da Emenda Constitucional nº 1; quanto às inovações que trouxeram a Emenda Constitucional nº 7, no § 3º, letra d, fine, do art. 119, refletida no art. 215 do Regimento Interno de 15.10.1980, e a Emenda Regimental nº 1, de 25.11.1981, que o modificou, vide o comentário nº 55, infra); como se verificará, porém, absteve-se o legislador de estabelecer o respectivo procedimento, remetendo, no particular, àquele Regimento Interno (art. 483, parágrafo único). Tampouco se encontram neste Título disposições relativas ao anteriormente denominado “conflito de jurisdição” - terminologia que em boa hora se abandonou. Preferiu o legislador deslocar a regulamentação da matéria para o Capítulo III do Título IV do mesmo Livro I, onde se trata da competência interna: ali, na Secção V (“Da declaração de incompetência”), é que se inserem as normas atinentes ao conflito de competência (arts. 115 a 123), bem como um dispositivo - aliás, de mera remissão aos regimentos internos dos tribunais - sobre o conflito de atribuições entre autoridade judiciária e autoridade administrativa (art.124).1 Na realidade, embora caiba sempre a um tribunal a solução do incidente, a rigor não estariam bem situadas sob a rubrica “Do processo nos tribunais”, v.g., as regras em que se definem as hipóteses de conflito, ou em que se trata da legitimação para suscitá-lo. Ademais, a íntima vinculação entre esta e a restante matéria de que cuida o Capítulo III do Título IV justifica a opção do vigente estatuto.

Do que constava, pois, da lei anterior, no Livro VI, subsistiram, no Título ora sob exame, a disciplina da ação rescisória (Capítulo IV) e poucas disposições acerca da homologação de sentença estrangeira (Capítulo III). Em compensação, trata aqui o atual Código da “uniformização da jurisprudência” (Capítulo I) e da “declaração de inconstitucionalidade” (Capítulo II). Sobre esta não havia texto no diploma de 1939; aquela tem afinidade com o instituto do prejulgado, que ele contemplava num único dispositivo, o art. 861, arbitrariamente inserto no Título consagrado ao recurso de revista (Título V do Livro VII). 2. Conteúdo do Título IX - A matéria versada no Título IX do Livro I não cobre toda a área sugerida pela rubrica. É alhures - no Capítulo VII do Título X, “Dos recursos” -, que o Código disciplina a “ordem dos processos no tribunal”. Entretanto, ali há dispositivos que se referem expressamente à ação rescisória (arts. 551, 553) e outros que, não obstante a inexistência de menção expressa, sem dúvida se lhe aplicam. Aliás, a rigor, toda a regulamentação da atividade processual em grau superior de jurisdição - quer em relação aos recursos, quer aos processos de competência originária dos tribunais - caberia sob a rubrica do Título ora comentado. Outra, porém, é a sistemática do Código. No Título IX do Livro I contêm-se: a) a disciplina de dois incidentes suscetíveis de ocorrer assim no julgamento de recursos como no de ações da competência originária dos tribunais, e ainda no das causas obrigatoriamente sujeitas ao duplo grau de jurisdição (art. 475 e disposições análogas): o da emissão de pronunciamento tendente à uniformização da jurisprudência (Capítulo I) e o da argüição de inconstitucionalidade de lei ou de outro ato normativo do poder público, como questão prejudicial (Capítulo II); b) pequeno número de regras acerca de um processo que, até a Emenda Constitucional nº 7, se incluía sempre na competência originária do Supremo Tribunal Federal, como órgão colegiado: a homologação de sentença estrangeira (Capítulo III); c) a disciplina de um processo que pode pertencer à competência originária de tribunal federal ou estadual: o da ação rescisória (Capítulo IV). O sistema de normas constantes deste Título deve ser completado com as disposições aplicáveis do Título X, Capítulo VII; com as regras pertinentes, ainda em vigor, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35, de 14.3.1979) e da Lei nº 8.038, de 28.5.1990; com as normas de organização judiciária e com as dos regimentos internos dos tribunais competentes (vide, por exemplo, as remissões expressas do art. 493, nºs I e II). Capítulo I - DA UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA 3. Generalidades - No exercício da função jurisdicional, têm os órgãos judiciais de aplicar aos casos concretos as regras de direito. Cumpre-lhes, para tanto, interpretar essas regras, isto é, determinar o seu sentido e alcance. Assim se fixam as teses jurídicas, a cuja

luz hão de apreciar-se as hipóteses variadíssimas que a vida oferece à consideração dos julgadores. A fixação de uma tese jurídica reflete entendimento necessariamente condicionado por diversas circunstâncias. Mutável que é a realidade social, compreende-se que mude também, com o correr do tempo, o entendimento das normas de direito, ainda quando permaneça invariável o respectivo teor literal. Nada mais natural, assim, que a evolução da jurisprudência através da constante revisão das teses jurídicas fixadas. Na inércia do legislador - atestam-no conhecidos e abundantes exemplos históricos -, ela funciona como respiradouro indispensável para permitir o progresso do direito e impedir a fossilização dos textos normativos. Conforme se lê em obra clássica, “seria absurdo desejar que a jurisprudência, que por sua mutabilidade no tempo é a mais sensível e mais preciosa registradora das oscilações mesmo leves da consciência jurídica nacional, fosse cristalizada e contida em sua liberdade de movimento e de expansão”.1 Outro é, pois, o fenômeno que se tem em vista quando se alude à conveniência de adotar medidas tendentes à uniformização dos pronunciamentos judiciais. Liga-se ele ao fato da existência, no aparelho estatal, de uma pluralidade de órgãos judicantes que podem ter (e com freqüência têm) de enfrentar iguais questões de direito e, portanto, de enunciar teses jurídicas em idêntica matéria. Nasce daí a possibilidade de que, num mesmo instante histórico - sem variação das condições culturais, políticas, sociais, econômicas, que possa justificar a discrepância -, a mesma regra de direito seja diferentemente entendida, e a espécies semelhantes se apliquem teses jurídicas divergentes ou até opostas. Assim se compromete a unidade do direito - que não seria posta em xeque, muito ao contrário, pela evolução homogênea da jurisprudência dos vários tribunais - e não raro se semeiam, entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da garantia jurisdicional. Nesses limites, e somente neles, é que se põe o problema da uniformização da jurisprudência. Não se trata, nem seria concebível que se tratasse, de impor aos órgãos judicantes uma camisa-de-força, que lhes tolhesse o movimento em direção a novas maneiras de entender as regras jurídicas, sempre que a anteriormente adotada já não corresponda às necessidades cambiantes do convívio social. Trata-se, pura e simplesmente, de evitar, na medida do possível, que a sorte dos litigantes e afinal a própria unidade do sistema jurídico vigente fiquem na dependência exclusiva da distribuição do feito ou do recurso a este ou àquele órgão. 4. Os problemas de técnica e de política legislativa - Dois tipos básicos de expedientes, tecnicamente bem distintos, podem e costumam usar as leis para uniformizar, no sentido exposto, a jurisprudência: um destinado a prevenir, outro a corrigir a desarmonia entre teses jurídicas. Com o primeiro tipo busca-se a fixação prévia da tese, em ordem a preexcluir o risco de que, no julgamento que se vai seguir, venha a configurar-se o dissídio jurisprudencial. Com o segundo, ante a verificação do dissídio já configurado, abre-se uma via para a revisão do julgamento, na perspectiva que interessa aqui, a saber, a da solução da quaestio iuris.

Já não será de técnica, mas de política legislativa, o problema da conveniência de adotarem-se, em determinado sistema jurídico, ambos os tipos de expedientes, ou só o primeiro, ou só o segundo. O direito brasileiro tem-se valido, simultaneamente, de um e de outro. No processo civil, ao intuito de prevenir divergências jurisprudenciais, correspondeu em parte - aliás, com resultados práticos bem pouco significativos - o instituto do prejulgado, de que trataram o Dec. nº 16.273, de 20.12.1923 (pelo qual se reorganizou a Justiça do então Distrito Federal), no art. 103; o Código de Processo Civil e Comercial do Estado de São Paulo (Lei nº 2.421, de 14.1.1930), no art. 1.126; a Lei federal nº 319, de 25.11.1936, no art. 2º; e o Código de Processo Civil de 1939, no art. 861.2 Ao intuito exclusivo de corrigir divergências já manifestadas correspondeu o recurso de revista, criado pela mesma lei de organização judiciária de 1923, no art. 108, nº III, e acolhido pelo Código de Processo Civil do antigo Distrito Federal (Dec. nº 16.752, de 31.12.1924), arts. 1.182 e 1.183, pelo Código paulista, arts. 1.119 a 1.125, pela Lei Federal nº 319, art. 1º, e pelo Código de 1939, arts. 853 a 860.3 Assim também o recurso extraordinário, numa de suas tradicionais hipóteses de cabimento (Constituição de 1891, reformada em 1926, art. 60, § 1º, letra c; de 1934, art. 76, nº 2, inciso III, letra d; de 1937 e de 1946, art. 101, nº III, letra d; de 1967, art. 114, nº III, letra d; Emenda Constitucional nº 1, de 1969, art. 119, nº III, letra d); e, atualmente, o recurso especial (Constituição de 1988, art. 105, nº III, letra C). O alcance prático de ambos os tipos de expedientes tem sofrido em nosso ordenamento limitações muito sensíveis. Repelindo a tradição do direito pátrio o sistema dos precedentes vinculativos, e não podendo os órgãos do Poder Judiciário, salvo expressa autorização constitucional, editar normas genéricas e abstratas, aplicáveis a uma série indefinida de hipóteses semelhantes, a fixação prévia da tese jurídica normalmente só predetermina a decisão que se profira in specie, mas revela-se impotente para evitar que, noutro caso, a idênticos esquemas de fato se venha a aplicar tese diversa. E, diante de divergência já ocorrida, o máximo que se pode fazer é corrigir a decisão sob exame, quando se considere verdadeira a tese jurídica diferente, adotada noutra decisão anterior; não, porém, corrigir a decisão anterior, quando se considere verdadeira a tese jurídica diferente, adotada na decisão sob exame; nesta segunda hipótese, a uniformização é impraticável.4 Oportunamente trataremos do novo expediente, introduzido pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001, e ordenado tanto à prevenção quanto à composição de dissídios jurisprudenciais no seio de um mesmo tribunal: vide, infra, o comentário nº 357 ao art. 555. 5. Rumos da reforma processual - O anteprojeto do atual Código pretendera consagrar solução inspirada no antigo direito português,5 a dos assentos vinculativos. A decisão sobre a tese jurídica tomada pela maioria absoluta dos membros efetivos do tribunal - do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal de Justiça, consoante se tratasse, respectivamente, de norma jurídica federal ou estadual -, seria obrigatória enquanto não modificada por outro acórdão proferido na mesma forma. Caberia ao presidente do tribunal, em obediência ao decidido, baixar assento, que teria força de lei 45 dias após a publicação oficial (arts. 518, 519 e 520, parágrafo único).

Tal sistemática foi criticada em sede doutrinária, antes de mais nada, por inconstitucional.6 A comissão revisora sugeriu a supressão de todo o capítulo, entendendo que, a manter-se a eficácia vinculativa dos assentos, o futuro Código se poria em contraste com a Constituição da República; e, a eliminar-se tal eficácia, quase nenhum alcance prático teriam - como de fato vem acontecendo - as disposições relativas à uniformização da jurisprudência. O projeto abandonou a solução dos assentos com força de lei; não suprimiu o capítulo, mas deu-lhe nova feição, inspirada na Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal e conservada, com alterações de pormenor, pelo Congresso Nacional. É a disciplina constante dos dispositivos que abaixo se vão examinar. (Acerca da repercussão provável, nesta matéria, da inovação trazida pela Lei nº 10.352, remetemos o leitor ao comentário nº 357 ao art. 555, infra). Art. 476. Compete a qualquer juiz, ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito quando: I - verificar que, a seu respeito, ocorre divergência; II - no julgamento recorrido a interpretação for diversa da que lhe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras, ou câmaras cíveis reunidas. Parágrafo único. A parte poderá, ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa, requerer, fundamentadamente, que o julgamento obedeça ao disposto neste artigo. Direito anterior - Dec. nº 16.273, de 20.12.1923, art. 103; Código de Processo Civil e Comercial do Estado de São Paulo (Lei nº 2.421, de 14.1.1930), art. 1.126; Lei federal nº 319, de 25.11.1936, art. 2º; Código de Processo Civil de 1939, art. 861. Direito comparado - Alemanha : Lei de Organização Judiciária (Gerichtsverfassungsgesetz), §§ 136 e 137 ; Bolívia: Ley de Organización Judicial, art. 59, nº 1; França: Code de l’organisation judiciaire, art. L. 131-2; Itália: Codice di procedura civile, art. 374, 2ª alínea; Peru: Código Procesal Civil, art. 400, 1ª al.; Suíça: Lei Federal de Organização Judiciária, art. 16. COMENTÁRIO 6. Natureza do instituto - O instituto consagrado no art. 476 não tem a natureza de recurso. Já não a tinha, aliás, o prejulgado do Código de 1939,7 embora previsto em dispositivo que se inseria no Livro VII, e no Título dedicado à revista. No sistema do

Código de 1973, recursos são apenas os de que trata o Título X do Livro I. Todos eles constituem remédios utilizáveis para a impugnação, no mesmo processo, de decisão já proferida - característica, aliás, comum a outros remédios disciplinados alhures, como os embargos infringentes contra sentenças (Lei nº 6.830, de 22.9.1980, art. 34). Aqui, ao contrário, cogita-se de “pronunciamento prévio do tribunal”, isto é, de pronunciamento que o tribunal emite antes de julgar. (Quanto ao conceito de “tribunal”, nos dispositivos deste Capítulo, vide, infra, o comentário nº 15 ao art.478.) No sistema anterior, apesar das diferenças substanciais que separavam da figura do recurso o prejulgado, ainda se poderia argumentar, para incluí-lo entre os recursos, com a colocação do art. 861. Esse argumento, de escassa força persuasiva, já não pode agora sequer ser invocado. O atual Código, em boa hora, absteve-se de reincidir no erro topológico. O que se contém nos arts. 476 e seguintes é a disciplina de incidente suscetível de ocorrer em julgamento de tribunal. Esse incidente, aliás, não tem lugar apenas quando se trate do julgamento de recurso: cabe também no de causa da competência originária do tribunal e nas hipóteses de que cogita o art. 475 (ou disposição análoga de lei extravagente). Entretanto, sem dúvida poderá acontecer que o tribunal, ao dar o “pronunciamento prévio” acerca da interpretação do direito, julgue matéria pertinente a recurso interposto contra alguma decisão. Para julgar o recurso, teria o órgão competente de resolver a quaestio iuris, escolhendo uma dentre as possíveis interpretações da regra jurídica, a fim de aplicá-la à espécie; a solução da quaestio iuris integraria, pois, o julgamento do recurso. Ante o perigo de configurar-se o dissídio, defere-se ao tribunal, previamente, a fixação da tese jurídica. É indiscutível, assim, que, por força do disposto no art.476, o tribunal pode vir a exercer atividade cognitiva que, de ordinário, seria exercida no âmbito do julgamento de um recurso pelo órgão fracionário competente para deste conhecer.8 Não o fará, contudo, em virtude da interposição de novo recurso, mas tão-só porque fica cindida a competência (funcional) para julgar o próprio recurso anteriormente interposto. A solicitação do pronunciamento prévio não pode equiparar-se à interposição, mesmo ex officio, de segundo recurso para o tribunal. 7. Pressupostos do incidente: A) Julgamento em curso - O incidente previsto no art. 476 pressupõe, em primeiro lugar, que haja julgamento em curso perante órgão de tribunal. Não, porém, qualquer órgão: somente “turma, câmara ou grupo de câmaras”; acrescentem-se as seções. Descabe, pois, o incidente, se o corpo julgador é o plenário do tribunal9 ou o “órgão especial” previsto no art. 93, nº XI, da Carta da República. O julgamento pode ser de recurso ou de causa da competência originária da turma, da câmara, do grupo de câmaras ou da seção. Pode ainda ocorrer em qualquer das hipóteses de que tratam o art. 476 e seu parágrafo único, ou disposição análoga. É verdade que o inciso II do art. 476 alude a “julgamento recorrido”, dando a entender que o órgão está a apreciar recurso. Mas a dicção do inciso I é genérica, abrangendo quaisquer casos de

divergência na interpretação do direito. Perfeitamente se concebe que o risco de configuração do dissídio jurisprudencial exsurja, por exemplo, no julgamento de ação rescisória. Negar, em tal caso, a possibilidade de utilizar o remédio seria desprezar a ratio legis, desatender à finalidade de política legislativa que inspirou o Código. O argumento vale mesmo para causas de procedimento disciplinado em lei extravagante, como o mandado de segurança.10 Não é necessário que o julgamento incida sobre matéria de mérito. A lei não faz qualquer distinção a esse respeito: contenta-se com a possível discrepância na interpretação de alguma regra jurídica. Pouco importa que esta haja de ser aplicada à solução da questão principal ou à de questão prévia. Pode tratar-se de regra de direito material ou de direito processual, indiferentemente. Se o órgão está julgando recurso, nenhuma relevância tem o fato de haver ele sido interposto contra sentença - isto é, contra decisão que em primeiro grau tenha posto termo ao processo, apreciando ou não o mérito (art. 162, § 1º) , ou contra decisão interlocutória, em que o juiz, no curso do processo, haja resolvido questão incidente (art. 162, § 2º). Tampouco se distingue entre julgamento de recurso contra decisão de primeiro grau, como a apelação,11 e julgamento de recurso contra decisão de segundo grau, como os embargos infringentes com que se ataque acórdão de apelação. Menos ainda, entre julgamento de recurso interposto contra decisão proferida nesta ou naquela espécie de processo, de conhecimento (de rito ordinário, sumário ou especial), de execução ou cautelar. De maneira alguma fica excluído a priori o cabimento do incidente no julgamento de embargos de declaração.12 Mas é óbvio que só se poderá pleitear a uniformização quanto a alguma tese jurídica relativa a esse recurso. Concebe-se, v.g., que acórdãos anteriores do tribunal hajam divergido na determinação dos limites em que é lícito ao órgão julgador modificar a decisão embargada, e que ao embargante interesse ver consagrada a orientação mais liberal - pressuposto necessário, por hipótese, do êxito de seus embargos. O que não se admite é que o interessado deixe para o julgamento dos embargos de declaração requerimento de uniformização que seria oportuno quando do julgamento embargado, por dizer respeito a quaestio iuris relevante para este.13 O julgamento pode estar por iniciar-se, ou pode ter-se iniciado, mas achar-se ainda em curso. Se já se houver encerrado, não cabe, à evidência, suscitar o incidente, que não tem - repita-se - índole recursal.14 (Sobre o instante em que se deve reputar encerrado o julgamento, vide, infra, o comentário nº 360 ao art. 556). 8. Pressupostos do incidente: B) Divergência na interpretação do direito - No inciso II, alude o dispositivo, especificamente, à diversidade de interpretações dadas à mesma regra jurídica pela decisão da qual se recorreu para o órgão julgador, e por alguma decisão, anterior ou posterior, de outra turma, de outra câmara, de outro grupo ou das câmaras cíveis reunidas (ou de seção, acrescente-se). Essa decisão, com a qual se pôs em contraste a recorrida, pode haver sido tomada no julgamento de recurso, no de matéria submetida ex vi legis ao duplo grau de jurisdição, ou no de causa da competência

originária da outra turma, da outra câmara, do outro grupo ou das câmaras cíveis reunidas, respectivamente. Mas, em qualquer caso, se a decisão da outra turma, da outra câmara, do outro grupo ou das câmaras cíveis reunidas, na qual se interpretara diversamente a regra jurídica, foi objeto de recurso, e o próprio tribunal a reformou ou anulou, é impossível invocá-la como padrão, para suscitar-se o incidente. Se o tribunal a “confirmou”, invocável como padrão será a nova decisão, “confirmatória”. O inciso I refere-se, in genere, a “divergência” (acerca da interpretação do direito), sem esclarecer de que decisões se há de cogitar para o confronto. A fórmula é tão ampla, que sob ela já caberia o próprio caso previsto no inciso II. O círculo de incidência do inciso I é maior que o do inciso II. À luz do inciso I é que se pode afirmar o cabimento do incidente por ocasião do julgamento de causa de competência originária, e não apenas por ocasião do julgamento de recurso. Esta última afirmação precisa ser mais extensamente fundamentada, pois em contrário se poderia objetar que, se o órgão está julgando causa de sua competência originária, ainda não há decisão suscetível de entrar em conflito com outra, quanto à interpretação do direito. Ao nosso ver, porém, deve entender-se que, se no próprio curso do julgamento já se chega à certeza de que a decisão adotará tese jurídica incompatível com a de outra (emanada de órgão diverso), tanto basta para que o incidente se torne suscitável.15 Assim, se pelo número de votos proferidos se verifica, em dado momento, a prevalência de interpretação diferente da fixada noutro julgamento, qualquer juiz que haja de votar pode suscitar o incidente. É certo que o art. 476. inciso I, fala na verificação de que “ocorre divergência”, enquanto o art. 861 do Código de 1939 usava as expressões “ocorre, ou poderá ocorrer, divergência”.16 Mas, mesmo no sistema do novo Código, a ratio legis, a finalidade política do instituto, autoriza o entendimento acima proposto. Se o que se quer é evitar a quebra da homogeneidade jurisprudencial, e no julgamento em curso a maioria dos julgadores já se manifestou em sentido contrário à tese jurídica fixada noutra decisão, só o pronunciamento prévio do tribunal acerca da quaestio iuris pode eventualmente afastar o risco, servindo ao fim que a lei tem em vista. Hipótese análoga pode configurar-se quando esteja a turma, câmara, grupo ou seção a julgar recurso. Suponhamos que a decisão recorrida seja conforme à interpretação alhures esposada, mas, no julgamento do recurso, se profiram noutro sentido votos em número suficiente para que se possa prever que o órgão julgador, reformando a decisão, abraçará tese jurídica contrastante com a de algum julgamento de outro órgão. Em tais circunstâncias, o incidente é cabível. Por outro lado, a divergência sem dúvida já ocorre - e aí nem mesmo interpretação puramente literal do inciso I afastaria o cabimento do incidente - quando, antes do julgamento em que este se venha a suscitar, a quaestio iuris haja sido objeto de soluções diferentes em acórdãos proferidos por órgãos distintos do tribunal (duas turmas, duas câmaras, dois grupos de câmaras etc.). É irrelevante que um ou alguns desses acórdãos tenha(m) emanado do próprio órgão em que agora se realiza o julgamento.

Ainda nessas hipóteses que, distintas da contemplada no inciso II, caem todavia no âmbito de incidência do inciso I, é inadmissível que se invoque, como padrão de confronto, decisão anulada ou reformada pelo tribunal, pois a interpretação que ela adotara não prevaleceu como manifestação definitiva deste a respeito da quaestio iuris. Só em relação a decisões em que o tribunal haja dado a sua última palavra acerca da espécie há que cogitar de dissídio jurisprudencial. O dissídio relevante, por outro lado - quase ocioso frisá-lo -, é unicamente o que oponha julgados de órgãos do mesmo tribunal. Trata-se aqui de homogeneizar a jurisprudência intra muros. O incidente da uniformização nada tem que ver com a divergência entre decisões de tribunais distintos, ainda que pertencentes à mesma unidade da Federação. A quem queira suscitar o incidente não aproveita a invocação de acórdão de outro tribunal.17 Pela mesma razão, em princípio não constitui obstáculo à uniformização da jurisprudência de qualquer tribunal o fato de haver-se cristalizado em certo sentido a do Supremo Tribunal Federal ou a do Superior Tribunal de Justiça. Nem mesmo a consagração desta ou daquela diretriz jurisprudencial na Súmula de um ou de outro vincula os tribunais restantes.18 Outra questão é a de saber se, em tais circunstâncias, convém que se dê seguimento ao incidente: no particular, usará o tribunal da discrição que se lhe reconhece na matéria (cf., infra, o comentário nº 13 ao art. 477). Indispensável é que a discrepância se configure entre teses jurídicas. Apenas a solução de quaestiones iuris é relevante neste contexto. De modo algum justifica a suscitação o fato de se decidirem diversamente espécies análogas por se considerar bastante a prova num dos casos e insuficiente no outro; mudam as coisas de figura, entretanto, se o desacordo versa sobre a admissibilidade de determinada prova, ou sobre algum critério legal de valoração. Se for parcial a divergência das teses jurídicas, o incidente previsto no art. 476 há de limitar-se à parte em que as teses divergem. Existindo dois ou mais pontos de dissídio, nada impede que se solicite o pronunciamento prévio do tribunal sobre os dois ou mais pontos. A discordância precisa referir-se a questão de direito de cuja solução dependa o julgamento da matéria submetida ao órgão. Se este pode julgar a matéria sem enfrentar a questão de direito controvertida, fazendo abstração dela, então descabe a solicitação do pronunciamento prévio do tribunal, que não exerce aqui mais do que alhures função meramente consultiva. Não se trata de dirimir controvérsias teóricas, mas de assegurar a uniformidade da aplicação do direito a casos concretos. É insuficiente a divergência entre votos. Não cabe o incidente só porque discrepem, no entendimento de regra jurídica, e por conseguinte na enunciação da tese de direito aplicável à espécie, os pronunciamentos de dois ou mais membros do corpo julgador.

Relevante é apenas o dissídio entre julgamentos. Quanto a divergências manifestadas na doutrina, seria fora de propósito cogitar delas neste contexto. 9. Suscitação do incidente por membro do órgão julgador – O caput do art. 476 atribui a “qualquer juiz” competência para, “ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito”.19 O incidente pode ser suscitado, pois, por qualquer dos juízes que hajam de votar no julgamento. Não há que distinguir entre membros efetivos e membros não efetivos do corpo julgador. Mas os juízes que não têm voto, ou que estão, in casu, impedidos de participar do julgamento, esses não podem suscitar o incidente. Solicitado por um dos juízes o pronunciamento prévio do tribunal, e rejeitada a solicitação pelo órgão julgador, pode acontecer que venha a renová-la outro juiz, ao votar posteriormente. Não nos parece haver impedimento legal a que o órgão aprecie a nova solicitação e eventualmente a acolha. É concebível, com efeito, que, ao proferir o voto o primeiro juiz, não houvesse ainda razão para prever-se a consumação da divergência jurisprudencial, e, no entanto, depois, a marcha da votação passe a indicar um resultado que configurará o dissídio.20 Tal possibilidade, contudo, obviamente só ocorrerá quando a existência deste não seja apurável a priori: em se tratando, v.g., de julgar recurso contra decisão supostamente incompatível, na tese jurídica fixada, com outra anterior, a ocorrência ou inocorrência da incompatibilidade é verificável desde logo; se o órgão julgador, entendendo inexistente a divergência, repele a solicitação, feita por um juiz, de pronunciamento prévio do tribunal, a questão fica preclusa, e já não se poderá apreciar a solicitação feita por outro juiz, com relação ao mesmo ponto. 10. Legitimação da parte para suscitar o incidente - O art. 861 do Código de 1939 não aludia à possibilidade de ser o incidente suscitado por provocação da parte. O vigente diploma, ao contrário, expressamente prevê essa possibilidade no parágrafo único do art. 476. “Parte”, no mencionado dispositivo, é, tratando-se de recurso, em primeiro lugar o recorrente, ou qualquer dos recorrentes, se houver mais de um. Por hipótese, o órgão a quo deu a certa regra jurídica interpretação conflitante com a esposada noutra decisão. O recorrente tem óbvio interesse em que, no julgamento do recurso, venha a prevalecer a tese jurídica dessa outra decisão, e em conseqüência se reforme a impugnada. Não cabe distinguir entre quem haja interposto o recurso como “parte vencida” ou como “terceiro prejudicado” (art. 499); em outras palavras, é irrelevante que o requerente já fosse parte no procedimento de grau inferior, ou se haja tornado tal precisamente ao interpor o recurso. Por essa razão, o Ministério Público não deixa de legitimar-se a requerer o pronunciamento prévio do tribunal só porque, no procedimento de grau inferior, tenha funcionado como fiscal da lei: mesmo em tais hipóteses, recorrendo conforme lhe permite o art. 499, § 2º -, torna-se ele parte no procedimento recursal, e isso basta. Tampouco se distingue, em princípio, entre quem interponha “recurso principal” e quem interponha “recurso adesivo” (art.500); todavia, o requerimento formulado pelo recorrente “adesivo” deixa de produzir qualquer efeito, naturalmente, se

do seu recurso não se vem a conhecer, por ter havido desistência em relação ao recurso principal, ou por ser este declarado “inadmissível ou deserto” (art. 500, nº III). Mas por “parte” entende-se também o recorrido,21 ou qualquer dos recorridos. É fora de dúvida que ele pode igualmente ter interesse no pronunciamento do tribunal sobre a quaestio iuris. Suponhamos, v.g., que a interpretação dada a alguma norma pela decisão recorrida discrepe da adotada noutra decisão, com cuja tese jurídica notoriamente se afine a jurisprudência do órgão ad quem (turma, câmara, grupo, seção), fazendo prever, assim, o provimento do recurso. Em tais circunstâncias, concebe-se que haja proveito para o recorrido em obter a manifestação prévia do tribunal, ante a possibilidade de que este se incline pela interpretação do órgão a quo. O interesse do recorrido converge com o interesse público a que ocorrem as normas do capítulo sob exame, não havendo por que recusar-lhe o expediente previsto no art. 476, parágrafo único. Sem embargo do teor literal do dispositivo, que parece limitar à hipótese do inciso II a possibilidade de provocação da parte, inclinamo-nos a admiti-la também no tocante às causas de competência originária do tribunal. Não é suficiente para justificar a opinião contrária a consideração de que o requerimento da parte necessariamente pressuporia divergência jurisprudencial já configurada antes do julgamento. Basta ver que, mesmo em causa de competência originária, a existência do dissídio bem pode ser apurável a priori: assim, quando se tenha de enfrentar quaestio iuris a cujo respeito haja pronunciamentos discrepantes, anteriores, de órgãos distintos do tribunal (cf., supra, o comentário nº 8). Em semelhante perspectiva, a expressão “parte”, no parágrafo único, abrangerá quem quer que ocupe tal posição no processo de competência originária: autor, réu, qualquer dos litisconsortes ativos ou passivos, se for o caso, e o próprio assistente, que no sistema do Código é sem dúvida parte, embora não parte principal, e exerce “os mesmos poderes” do assistido (art. 52, caput). 11. Suscitação do incidente pela parte - Segundo o texto legal, incumbe à parte formular o requerimento “ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa”. Admitindo-se, conforme nos parece curial, que assim o recorrente como o recorrido o formule, na expressão “ao arrazoar o recurso” entende-se haver referência quer ao oferecimento de razões para fundamentar recurso, quer à peça com que alguém responda a recurso interposto. A “petição avulsa” pode sobrevir a qualquer tempo, enquanto pendente o recurso perante a turma, a câmara, o grupo ou a seção; o dispositivo, ao permiti-la, atende a que a existência do dissídio jurisprudencial pode só vir a configurar-se, ou chegar ao conhecimento da parte, depois que ela arrazoou. Por igualdade de razão, a despeito do silêncio da lei, cabe entender que o requerimento é formulável na própria sessão de julgamento, quando tocar à parte a sustentação oral de suas razões, se for o caso (art. 554).22 O que ficou dito vale, mutatis mutandis, para as hipóteses de suscitação do incidente em causa da competência originária do tribunal. Exige a lei que o requerimento seja fundamentado. A fundamentação consistirá, é claro, na existência de julgado(s) de outro órgão fracionário, em que a interpretação dada a

alguma regra jurídica relevante para a apreciação da espécie tenha sido diversa da que lhe deu a decisão recorrida; ou, então, na existência de julgados de órgãos distintos do tribunal, discrepantes na solução da quaestio iuris a ser enfrentada no julgamento. A prova da divergência pode ser feita por certidão do(s) julgado(s) que a parte invoca, ou pela indicação do número e da página de repertório de jurisprudência que o(s) tenha publicado. Não há como acolher requerimento desacompanhado da prova da divergência.23 A apreciação do requerimento compete à turma, à câmara, ao grupo ou à seção. Se o requerimento consta dos autos, incumbe ao relator, na sessão de julgamento, ao fazer a “exposição da causa” (art. 554), dar conhecimento dele ao órgão julgador, para que o aprecie preliminarmente. O relator pode manifestar-se sobre o requerimento, mas não lhe compete deferi-lo ou indeferi-lo, nem lhe é lícito ocultar do colegiado a respectiva existência. Art. 477. Reconhecida a divergência, será lavrado o acórdão, indo os autos ao presidente do tribunal para designar a sessão de julgamento. A secretaria distribuirá a todos os juízes cópia do acórdão. COMENTÁRIO 12. Procedimento no órgão julgador - Solicitado por qualquer juiz votante, ou requerido pela parte, o pronunciamento prévio do tribunal sobre a interpretação da regra jurídica, deve a turma, a câmara, o grupo ou a seção deliberar a respeito. O dispositivo ora comentado é omisso quanto ao procedimento que se há de seguir. Cumpre ao intérprete suprir a lacuna , sem que fique excluída a possibilidade de dispor-se a respeito em normas regimentais. A suscitação do incidente acarreta, é óbvio, a suspensão do julgamento do recurso, da matéria devolvida ex vi legis, ou da causa de competência originária do órgão julgador. Não é dado a este prosseguir no julgamento sem deliberar sobre a solicitação do juiz ou o requerimento da parte. Cabe ao presidente do órgão submeter a votos a solicitação ou o requerimento. À votação podem preceder debates, que hão de cingir-se aos requisitos de sua admissibilidade, notadamente a ocorrência do alegado dissídio. Havendo ao propósito dúvida que não se possa dissipar de imediato, determinar-se-ão as diligências cabíveis, adiando-se, caso necessário, a deliberação. De modo nenhum é possível entender que, apesar de satisfeitos os pressupostos do incidente, deva (rectius: possa) o órgão perante o qual foi suscitado pronunciar-se desde logo sobre a questão a cujo respeito se verificou existir divergência, para só depois remeter os autos ao tribunal. O texto do art. 476 não abre margem à menor dúvida: o pronunciamento do tribunal tem de ser “prévio” ao julgamento; mais exatamente, à respectiva conclusão. Ao órgão julgador só é lícito prosseguir caso tenha repelido a suscitação.24

13. Deliberação do órgão julgador - A deliberação, obrigatoriamente fundamentada,25 será naturalmente num sentido ou noutro, conforme se reconheça ou não a discrepância no tocante à quaestio iuris. Se o órgão nega a divergência, retoma-se o julgamento que fora suspenso. Em edições anteriores deste livro, opinamos que, reconhecido o dissídio, não se poderia indeferir a solicitação ou o requerimento de remessa ao tribunal. Hoje nos parece que, não obstante a redação, à primeira vista imperativa, do art.477, 1ª parte, e sem prejuízo do dever de motivar a decisão, cabe reconhecer-se ao órgão julgador certa margem de discrição, no exame da conveniência e da necessidade de dar-se curso ao incidente, às vezes suscitado sem motivo sério, ou até com puro e manifesto intuito protelatório.26 O que ao órgão evidentemente não se abre é a possibilidade de deferir a solicitação ou o requerimento apesar de não reconhecer o dissídio. Este funciona, portanto, como pressuposto necessário, mas não suficiente. Determina o dispositivo sob exame que se lavre acórdão, uma vez reconhecida a divergência (rectius: uma vez acolhida a suscitação). Seria mais simples que se procedesse logo à remessa dos autos ao presidente do tribunal, independentemente de acórdão; trata-se ao nosso ver, de formalidade inútil, de lege ferenda. De lege lata, o acórdão é indispensável, mas só na hipótese de reconhecer-se o dissídio e acolher-se a solicitação ou o requerimento; no caso contrário, segue-se, sem qualquer formalidade, a retomada do julgamento suspenso. Naquela hipótese, de acordo com a parte final do art.556, que incide, o presidente do órgão designará para redigir o acórdão o relator do recurso ou da causa, ou, se tiver ele ficado vencido, o “autor do primeiro voto vencedor”. São aplicáveis os arts. 563 e 564. A deliberação do órgão julgador, quer acolha, quer rejeite a solicitação ou o requerimento, é irretratável após a proclamação do resultado pelo presidente. É também irrecorrível,27 exceto, naturalmente, por embargos de declaração. 14. Remessa dos autos ao tribunal - Acolhida pela turma, pela câmara, pelo grupo ou pela seção a solicitação ou o requerimento, e lavrado o acórdão, remetem-se os autos ao presidente do tribunal. A este compete designar a sessão de julgamento, observadas as disposições do art. 552, e seus §§ 1º e 2º, e distribuídas a todos os juízes do tribunal, pela secretaria, cópias do acórdão. Não exige a lei que se distribuam as cópias do acórdão antes da designação da sessão; mas é claro que a distribuição se há de fazer com antecedência suficiente para que todos os membros do tribunal possam tomar conhecimento preciso do acórdão e formar convicção acerca da quaestio iuris. Se algum não tiver recebido a cópia oportunamente, poderá requerer o adiamento da deliberação. Não haverá, porém, nulidade pelo simples fato de não se haverem distribuído regularmente as cópias: se nenhum juiz suscitar a questão, e vierem a pronunciar-se mesmo os que não tenham recebido cópia, entende-se que consideraram desnecessário, para a formação do seu convencimento, o prévio exame do acórdão.

Art. 478. O tribunal, reconhecendo a divergência, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir o seu voto em exposição fundamentada. Parágrafo único. Em qualquer caso, será ouvido o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal. COMENTÁRIO 15. Procedimento no tribunal - Qual o do prejulgado previsto no art. 861 do Código de 1939, também o procedimento do incidente ora comentado se desdobra em duas fases distintas: a primeira, perante o órgão julgador do recurso ou da causa (turma, câmara, grupo de câmaras, seção); a segunda, perante o tribunal - como tal entendido o órgão competente nos termos do regimento interno (Constituição da República, art. 96, nº I, letra a). Encerra-se a primeira fase com a remessa dos autos ao presidente (art. 477, 1º parte). Inicia-se então a segunda, que culmina com o pronunciamento onde se fixa “a interpretação a ser observada”, resolvendo assim o tribunal a quaestio iuris, a fim de que, à luz da solução adotada, o órgão suscitante decida a espécie. Trata-se de caso típico de distribuição funcional de competência. No Capítulo VII do Título X, ao regular a “ordem dos processos no tribunal”, prevê o Código a distribuição do feito, logo após o registro, a um relator, ao qual se segue, em determinados casos, um revisor, cabendo a este pedir dia para julgamento. Só então é que os autos vão ao presidente, para designar a data da sessão (arts. 547 e 552). Nada de semelhante se lê neste Capítulo I do Título IX, cuja sistemática é diversa, conforme ressalta do teor do art. 477, 1º parte. Não quer isso dizer que a matéria não seja relatada, na sessão de julgamento, por um dos membros do tribunal. Como a lei não exige, porém, distribuição específica, observar-se-á o disposto no regimento interno, que de preferência indicará o próprio relator do acórdão do órgão suscitante, ou o do processo em que ocorreu o incidente. A necessidade de nova distribuição será mais provável no “órgão especial” a que alude o art. 93, nº XI, da Constituição da República, e ao qual talvez nem pertença qualquer dos precedentes relatores. Ao marcar a data da sessão de julgamento, o presidente do tribunal mandará incluir o feito na pauta, que deverá ser publicada no órgão oficial e afixada à entrada da sala em que se realizar o julgamento. Entre o dia da publicação e o da sessão mediará, no mínimo, o lapso de 48 horas. Tais normas, constantes do art. 552, caput, fine, e seus 1º e 2º, perfeitamente se conciliam com o disposto no Capítulo I do Título IX, e devem ser observadas. No silêncio da lei, pode o regimento interno admitir a sustentação oral de razões, na sessão de julgamento, pelos advogados das partes: assim faz o do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, art. 199, § 3º. 16. Audiência do Ministério Público - Determina o parágrafo único que seja ouvido, em qualquer caso, “o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal”. O dispositivo não constava do projeto remetido ao Congresso; foi acrescentado em conseqüência da aprovação de emenda na Câmara dos Deputados.

Exerce aqui o Ministério Público a função de custos legis. Como se trata de fixar a correta interpretação de regra jurídica, é natural que se lhe abra ensejo para opinar. Igual oportunidade lhe dava, pela mesma razão básica, o Código de 1939, quanto à revista (art. 858, fine), embora não repetisse expressamente o preceito em relação ao prejulgado. A inserção do parágrafo suscita, no entanto, dificuldades exegéticas. Pela localização do dispositivo acrescentado, sob o artigo que trata do “julgamento”, a primeira impressão é a de que se cogita apenas de permitir ao chefe do Ministério Público a manifestação oral, na própria sessão. Esse entendimento, porém, não se afigura razoável: se se reputa conveniente ouvi-lo, então se lhe deve conceder a possibilidade de examinar detidamente a matéria e emitir sobre ela parecer escrito. Para isso, é naturalmente indispensável que ele tenha vista dos autos antes da sessão de julgamento. Ora, não é fácil harmonizar tal necessidade com o disposto no art. 477, 1º parte, em seu teor literal. Poderia conceber-se, é certo, que o presidente do tribunal, ao receber os autos encaminhados pelo órgão suscitante, designasse de imediato a data da sessão e abrisse vista ao Ministério Público; este teria de restituir os autos, com o parecer, a tempo de permitir o “julgamento” no dia marcado. Semelhante procedimento, contudo, apresenta óbvios inconvenientes, pelas dificuldades práticas que é capaz de gerar. Afigura-se preferível, ainda que se tenha de fugir à letra rigorosa do art. 477, 1º parte, admitir que o presidente do tribunal, ao receber os autos, primeiro abra vista ao Ministério Público e, depois, quando lhe voltem os autos com o parecer, designe a sessão de julgamento. Norma regimental pode cometer ao próprio relator a atribuição de abrir vista dos autos ao Ministério Público. Pode também fixar prazo para a manifestação deste (assim, o art. 119, § 2º, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro). 17. Pronunciamento do tribunal - De acordo com o caput do dispositivo, o tribunal, “reconhecendo a divergência, dará a interpretação a ser observada”. Isso significa que, preliminarmente, há de apreciar-se a questão mesma da existência do dissídio. Conclui-se que o tribunal não está adstrito ao juízo do órgão suscitante acerca de tal questão: muito embora haja aquele afirmado a discrepância de interpretação - sem o que não seriam os autos remetidos ao tribunal -, é livre a este reconhecê-la ou não, conforme o seu próprio convencimento. Se o tribunal não reconhecer a divergência, os autos serão restituídos ao órgão suscitante, onde prosseguirá normalmente o julgamento do recurso ou da causa. A turma, a câmara, o grupo ou a seção resolverá, como melhor lhe pareça, a questão de direito, aplicando à espécie a interpretação adotada pelo voto da maioria dos membros que participem do julgamento. Reconhecida que seja a divergência, passa o tribunal a decidir a quaestio iuris, para fixar a interpretação que se deverá observar. Cabe a cada juiz “emitir o seu voto em exposição fundamentada”, pronunciando-se em primeiro lugar, evidentemente, o relator. O Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (art. 119, § 3º)

concede preferência, após o voto do relator, aos desembargadores que porventura hajam lavrado quaisquer dos acórdãos indicados como divergentes, na ordem das respectivas datas; esses juízes terão, ao que tudo faz presumir, argumentos de especial relevância para o deslinde da questão. É aplicável o art. 556, segundo o qual, “proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator, ou, se este for vencido, o autor do primeiro voto vencedor”. Incidem também os arts. 563 e 564. O tribunal há de limitar-se a assentar, dentre as teses jurídicas contrastantes, a que deve prevalecer. Não conhece de outras quaestiones iuris, estranhas ao objeto do incidente, nem de quaestiones facti, sejam quais forem; nem aplica à espécie a interpretação fixada: isso competirá ao órgão suscitante. A decisão do tribunal sobre a questão de direito é irrecorrível, salvo por embargos de declaração: qualquer outro recurso unicamente poderá caber, satisfeitos os respectivos pressupostos, contra o acórdão do órgão suscitante, que decidir a espécie à luz da interpretação assentada pelo tribunal, pois só com esse acórdão se completará o julgamento do recurso anterior ou da causa, cindido em virtude da suscitação do incidente.28 18. Retomada do julgamento no órgão suscitante - Restituídos os autos, com o acórdão, à turma, à câmara, ao grupo ou à seção, retoma-se, consoante o rito próprio, o julgamento que fora suspenso. O que já ficara decidido pelo órgão suscitante, até o momento da suspensão, independentemente da questão de direito controvertida, subsiste intacto: assim, por exemplo, se havia mais de um capítulo na decisão recorrida, e sobre algum ou alguns deles se pronunciara a turma, a câmara, o grupo ou a seção, antes do capítulo a cujo respeito se manifestou a divergência jurisprudencial, origem do incidente. No que tange à matéria que constituiu objeto deste, a solução dada à quaestio iuris pelo tribunal incorpora-se no julgamento da espécie, como premissa inafastável: o órgão suscitante, fosse qual fosse a interpretação que se inclinaria a adotar por si, tem de aplicar à hipótese a interpretação fixada pelo tribunal. Perdem toda e qualquer relevância os votos porventura já emitidos no órgão suscitante acerca da questão de direito. Pode acontecer que, além da matéria a cujo respeito se suscitou o incidente, tenha ainda a turma, a câmara, o grupo ou a seção, prosseguindo no julgamento do recurso ou da causa, de enfrentar outra questão, a propósito da qual, igualmente, concorram os pressupostos enumerados no art. 476, mas que não haja sido incluída na suscitação. Nada impede que se torne a levar o feito à apreciação do tribunal, para pronunciamento sobre a quaestio iuris só agora suscitada. Teoricamente, pode o incidente reproduzir-se tantas vezes quantas forem as questões de direito que lhe dêem ensejo; em atenção à economia processual, convém que o órgão suscitante desde logo submeta ao tribunal, de uma só vez, todas as quaestiones iuris relevantes para a decisão da espécie, nos seus vários aspectos, sobre as quais exista divergência. Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula, e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.

Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante. Direito anterior - Dec. nº 16.273, de 20.12.1923, art. 103, § 1º. Direito comparado - Peru: Código Procesal Civil, art. 479. COMENTÁRIO 19. Deliberação por maioria absoluta dos membros do tribunal - No artigo anterior, relativo ao “julgamento” em si, nada diz o Código sobre a exigência de quorum para a deliberação. Neste, que já concerne a efeitos do “julgamento”, depara-se referência a ser ele “tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal”. Em matéria de controle judicial da constitucionalidade, é bem nítido o alcance da regra consoante a qual só pelo voto da maioria absoluta de seus membros - “ou dos membros do respectivo órgão especial” (Constituição da República, art. 97) - podem os tribunais declarar inconstitucional uma lei ou ato normativo do poder público: significa que, se não se pronunciar no sentido da inconstitucionalidade um número de juízes superior à metade dos que compõem o colégio, não será ela declarada, ainda que haja mais votos nesse sentido que no oposto. Prevalece a tese da constitucionalidade da lei ou do ato normativo do poder público, minoritária embora, desde que a antítese não obtenha o sufrágio da maioria absoluta. Nada de semelhante, é claro, ocorre aqui. A lei não pode ter querido dizer, por exemplo, que a interpretação dada a certa regra jurídica no julgamento recorrido (art. 476, nº II) prevalecerá se não se pronunciarem contra ela membros do tribunal em número superior à metade; nem, vice-versa, que prevalecerá a interpretação dada à mesma regra por outra turma, câmara, grupo de câmaras, ou pelas câmaras cíveis reunidas (ou por seção especializada), a menos que a maioria absoluta dos membros do tribunal confirme a interpretação do julgamento recorrido. A exigência de quorum, inserta no art. 479, caput, não é requisito para que se tenha como efetivamente fixada, pelo tribunal, a tese jurídica porventura vitoriosa. Restariam dois possíveis entendimentos: a) o art. 479, caput, contém regra de quorum exigível para a própria deliberação; em outras palavras, o tribunal só pode decidir o incidente suscitado, resolvendo a questão de direito, pelo voto de mais da metade do número total de seus membros; b) o art. 479, caput, atribui determinado efeito - o de ser “objeto de súmula” e constituir “precedente na uniformização da jurisprudência” - ao “julgamento” cujo resultado decorra do voto da maioria absoluta dos membros do tribunal. Este entendimento, por sua vez, desdobrar-se-ia em duas modalidades, conforme se considere:

b.1) que a produção do efeito indicado se condiciona apenas ao fato de haverem votado (em qualquer sentido) juízes em número superior à metade do total; b.2) que o efeito só se produz se houverem votado pela tese vitoriosa juízes em número superior à metade do total; do contrário, a fixação da tese jurídica prevalecerá para o caso concreto, mas não será “objeto de súmula” nem constituirá “precedente na uniformização da jurisprudência”. A dicção da lei não é muito clara. Ao nosso ver, porém, é preferível o entendimento exposto sob b.2.29 Nos termos do art. 102, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, “a inclusão de enunciados na Súmula, bem como a sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em Plenário, por maioria absoluta”. Para que uma tese jurídica, portanto, seja objeto de súmula, no Supremo Tribunal Federal, é necessário que a aprove mais da metade dos ministros. O mesmo princípio deve vigorar nos outros tribunais: os enunciados da Súmula hão de corresponder a teses que verdadeiramente reflitam o pensamento dominante no colegiado, não o de maiorias precárias e ocasionais. Em resumo: a norma do art. 479, caput, não impõe que participem do “julgamento” membros em número superior à metade do total, mas exclui a produção do efeito ali indicado quer na hipótese de não votarem tantos membros, quer ainda na de a tese vitoriosa não obter o sufrágio da maioria absoluta. A eficácia da deliberação, em casos tais, cingir-se-á ao processo em que o incidente houver sido suscitado: o órgão suscitante tem de julgar o recurso ou a causa à luz da solução dada pelo tribunal à quaestio iuris, mas nenhum outro efeito se produz. 20. Inclusão em "Súmula" e constituição de precedente na uniformização da jurisprudência - A tese jurídica sufragada pela maioria absoluta dos membros do tribunal “será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência”. Esse o efeito peculiar às deliberações de que trata, segundo a interpretação acima, o art. 479, caput. Cumpre esclarecer com precisão em que consiste esse efeito, obviamente um plus em relação ao efeito comum e constante do “julgamento”, que é a fixação da tese jurídica aplicável à espécie. O Supremo Tribunal Federal instituiu a Súmula da Jurisprudência Predominante por emenda de 28.8.1963 ao seu Regimento Interno, com o fim de compendiar as teses jurídicas assentes com firmeza em suas decisões. O atual Regimento Interno, em vigor desde 1º.12.1980, trata da matéria, especificamente, no art. 102 e seus parágrafos. A inclusão de enunciado na Súmula tem efeitos relevantes: assim, “a citação da Súmula, pelo número correspondente, dispensará, perante o Tribunal, a referência a outros julgados no mesmo sentido” (art. 102, § 4º); o ministro relator pode “arquivar ou negar seguimento a pedido ou recurso (...), quando contrariar a jurisprudência predominante do Tribunal”, consagrada na Súmula (art. 21, § 1º; cf., agora, o art. 38, ainda em vigor, da Lei nº 8.038, de 28.5.1990). A jurisprudência constante da Súmula não se torna, porém, imutável. Disposição expressa do Regimento Interno prevê a revisão dos seus enunciados, por iniciativa de qualquer

Ministro (art. 103). Aliás, o Supremo Tribunal Federal várias vezes tem abandonado teses jurídicas incluídas na Súmula. E seria, sem dúvida, grave erro imobilizar a natural evolução da sua jurisprudência. Por outro lado, no sistema em vigor, a despeito do que se lê no art. 557 e seu § 1º-A (acrescentado pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998), as proposições constantes da Súmula não têm obrigatoriedade assimilável à da lei, não vinculam os outros tribunais do país, nem os juízos de primeiro grau. Disso se tiram subsídios que devem guiar o intérprete na exegese do art. 479, caput, do atual Código de Processo Civil. O anteprojeto adotara o sistema dos assentos com “força de lei”, mas a crítica doutrinária, como oportunamente registrado, denunciou-lhe a inconstitucionalidade. Não se pode reintroduzir no Código, por via exegética, uma eiva de que o texto se purgou a tempo. As proposições que o tribunal assente, pelo voto da maioria de seus membros, não se convertem, com a inclusão da Súmula, em normas legais. No tocante ao prejulgado do art. 861 do Código anterior, a doutrina prevalecente limitava-lhe a eficácia vinculativa ao caso concreto.30 As razões de então subsistem hoje, a impedir que se equipare à da lei a força de qualquer enunciado jurisprudencial inserto em Súmula. Não colheria o argumento, em contrário, de que então nenhum efeito peculiar surtirá o “julgamento” do tribunal a que alude o art. 479, caput, anulando-se o plus que a lei lhe quis imprimir, em confronto com outros quaisquer julgados. O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, segundo se observou, atribui conseqüências relevantes à inserção de teses jurídicas na Súmula, sem dar “força de lei” - o que não lhe seria lícito fazer - aos respectivos enunciados. Podem os regimentos internos dos outros tribunais, no âmbito de competência de cada um, adotar regras análogas, que prestigiem, nos limites compatíveis com a feição do nosso sistema constitucional, as proposições incluídas nas Súmulas;31 por exemplo, estabelecer que, mesmo reconhecido o dissídio jurisprudencial, seja rejeitável de plano, pelo órgão fracionário, a solicitação de pronunciamento prévio do tribunal, se a respeito já houver tese constante de Súmula: assim dispõe o art. 123 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Nos termos dessas regras, constituirão tais proposições “precedentes na uniformização da jurisprudência”. A Lei nº 9.756, que modificou os arts. 544 e 557 do Código, atribuiu efeitos importantes, para fins diversos, à inclusão de teses jurisprudenciais nas Súmulas. Vejam-se os comentários a esses dispositivos. 21. Regimento Interno e Súmula - A Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, como já se assinalou, é criação do seu Regimento Interno, cujo texto em vigor contém a disciplina da matéria. O Código estendeu a prática aos outros tribunais do país, cada um dos quais poderá ter a sua própria Súmula. Cabe aos regimentos internos dispor a respeito, inclusive quanto aos efeitos que se hão de atribuir, na medida constitucionalmente viável, às proposições compendiadas, sempre com observância do requisito de quorum estabelecido, para a inclusão na Súmula, pelo art. 479, caput.

Por conseguinte, não é apenas “sobre a publicação no órgão oficial”, que, na matéria, hão de dispor os regimentos internos dos tribunais. O parágrafo naturalmente quis fazer certo que tal publicação será indispensável. Trata-se, pois, de aspecto a cujo respeito os outros tribunais - a exemplo do que fez o Supremo Tribunal Federal (art. 102, § 3º, do seu Regimento Interno) - têm de editar, obrigatoriamente, norma regimental; não, porém, do único aspecto a ser regimentalmente disciplinado. Convém recordar que, por força do disposto no art. 1.214, devem adaptar-se aos preceitos do Código “as resoluções sobre organização judiciária e os regimentos internos dos tribunais”(cf., agora, o art. 96, nº I, letra a, da Constituição de 1988, segundo o qual compete aos tribunais “elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo”). A confecção das Súmulas e, em geral, todo o funcionamento do mecanismo uniformizador da jurisprudência, construído nos arts. 476 a 479 - por sinal, para dizer a verdade, pouco eficiente na prática -, pressupõem evidentemente a harmonização entre os diversos regimentos internos e a sistemática deste capítulo. Capítulo II - DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE 22. Os sistemas de controle judicial da constitucionalidade - Variam de país para país, e por mais de um ângulo, os sistemas de controle judicial da constitucionalidade das leis.1 Aqui nos interessam, sobretudo, as classificações baseadas no critério subjetivo ou orgânico e no critério formal. Do primeiro ponto de vista, conhecem-se dois tipos fundamentais: o sistema difuso, em que o poder de controle toca indistintamente a todos os órgãos judiciais; e o sistema concentrado, em que o exerce um único órgão, ou um número limitado de órgãos, especialmente criado(s) com esse fim. O segundo critério permite distinguir: um sistema de controle por via incidental, em que a questão da constitucionalidade é apreciada no curso de processo relativo a caso concreto, como questão prejudicial, que se resolve para assentar uma das premissas lógicas da decisão da lide; e um sistema de controle por via principal, no qual essa questão vem a constituir o objeto autônomo e exclusivo da atividade cognitiva do órgão judicial, sem nexo de dependência para com outro litígio. Como é notório, oferece o ordenamento norte-americano o exemplo clássico do sistema difuso de controle, exercitável por via incidental.2 De origem austríaca é o sistema de controle concentrado e exercitável por via principal: a Constituição de 1º.10.1920 criou, com efeito, uma Corte especial (Verfassungsgerichtshof) com competência privativa para apreciar as questões de constitucionalidade, a ela submetidas por determinados órgãos, através de pedido específico, objeto único do conseqüente processo.3 Características ecléticas apresentam os sistemas atuais de controle na Itália e na República Federal da Alemanha, que reconhecem a um único órgão judicial competência para apreciar a questão da constitucionalidade, mas lhe deferem o exercício dessa competência quer por via principal (mediante provocação de algum legitimado), quer por via incidental, a propósito de caso concreto, sujeito à cognição de qualquer outro órgão judicial, que submete a questão à Corte Constitucional, a fim de que esta a resolva com força vinculativa, ficando suspenso, nesse meio-tempo, o processo em que se suscitou a

questão.4 Na mesma corrente insere-se a Constituição espanhola de 1978 (arts. 161 a 163).5 23. Sistema brasileiro - Eclético é também o sistema do nosso vigente ordenamento.6 Tivemos primeiro, na República, o controle difuso, por via incidental, importado do direito norte-americano e subsistente até hoje, em que se atribui a qualquer órgão judicial7 competência para conhecer, incidenter tantum, da questão de constitucionalidade suscitada como prejudicial em processo com outro objeto. Na Constituição de 1934, surge o controle direto, por via principal, em limites restritos: reservado à Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, no tocante à lei de intervenção federal em Estado-membro, decretada para assegurar a observância de determinados princípios constitucionais (art. 12, § 2º). Em contexto análogo, mas com fisionomia diversa, contemplou o art. 8º, parágrafo único, da Constituição de 1946 a argüição, perante o Supremo Tribunal Federal, pelo ProcuradorGeral da República, da inconstitucionalidade de ato estadual supostamente violador de algum dos princípios consagrados no art. 7º, nº VII, como pressuposto indispensável à intervenção federal, que seria decretada se o Supremo Tribunal declarasse inconstitucional o ato. O controle por via principal, destarte, permaneceu reservado, com exclusividade, à nossa mais alta Corte, e exercitável apenas sobre atos praticados por órgãos estaduais, para a respectiva censura à luz de alguns preceitos da Carta da República.8 A Emenda Constitucional nº 16, de 26.11.1965, ampliou notavelmente o âmbito do controle por via principal. Dando nova redação à alínea k do art. 101, inciso I, da Constituição de 1946, atribuiu competência ao Supremo Tribunal para processar e julgar “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. Previu, ainda, no art. 19, mediante o acréscimo de um inciso (nº XIII) ao art. 124 da referida Carta, a possibilidade de criar-se “processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a Constituição do Estado” - inovação que não se chegou, todavia, a pôr em prática. A Constituição de 1967 manteve o sistema de controle por via direta, nos mesmos termos da Emenda Constitucional nº 16, outorgando competência ao Supremo Tribunal Federal, no art. 114, inciso I, letra l, para processar e julgar “a representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual”. A regra subsistiu no art. 119, inciso I, letra l, do texto de 1969, no qual a Emenda Constitucional nº 7 se limitou a intercalar, após “inconstitucionalidade”, as palavras “ou para interpretação”. Retomou-se em 1969, por outro lado, a inovação que permanecera letra-morta no art. 19 da Emenda Constitucional nº 16 à Carta de 1946, contemplando, entre as hipóteses de intervenção estadual no Município, a de dar o Tribunal de Justiça do Estado “provimento a representação formulada pelo Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição estadual, bem como para prover à execução de lei ou de ordem ou decisão judicial” (art. 15, § 3º, letra d). Nos termos da

cláusula grifada, admitia-se pois, como pressuposto do ato interventivo, a declaração, pelo Tribunal de Justiça, da inconstitucionalidade em tese de norma jurídica editada pelo Município, que violasse qualquer dos princípios mencionados na Carta do Estadomembro. O controle, aí também, era por via principal, não incidental. No direito brasileiro vigente continuam a coexistir o controle incidental e o controle direto da constitucionalidade. O primeiro é exercitável por qualquer órgão do Poder Judiciário, independentemente da posição que ocupe na respectiva hierarquia, inclusive o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça (sistema difuso), no julgamento de causa que lhe incumba, originariamente ou em grau de recurso, desde que a decisão do litígio reclame, como premissa lógica, o exame da questão de constitucionalidade, assim configurada como prejudicial. O segundo compete exclusivamente (sistema concentrado): a) ao Supremo Tribunal Federal, mediante representação de algum legitimado (Constituição de 1988, art. 103), no concernente a qualquer lei ou ato normativo, da União ou de Estado-membro (não de Município), seja qual for o preceito da Carta da República (não de Estado) cuja violação se alegue; b) ao Tribunal do Estado-membro, também mediante representação, no que tange a norma jurídica municipal, averbada de incompatível com algum dispositivo da Constituição estadual (não com dispositivo da Constituição Federal: cf. o art. 125, § 2º, desta). A Emenda Constitucional nº 3, de 18.3.1993, criou uma ação direta de declaração da constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, da competência do Supremo Tribunal Federal e proponível pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República. É quanto resulta dos acréscimos feitos ao art. 102, nº I, letra a, e ao art. 103, § 4º, da Carta de 1988. O §2º do art. 102, também acrescentado pela Emenda, dispõe em termos expressos que “as decisões definitivas de mérito (sic) proferidas (...) nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal produzirão eficácia contra todos (sic) e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”. A inovação terá seus motivos, talvez ponderáveis, de ordem política: convenha-se, todavia, em que maior dose de apuro técnico não faria mal à redação... Modalidade especial de controle concentrado é aquele que compete ao Supremo Tribunal Federal no exame de argüição de descumprimento de preceito fundamental (Carta da República, art. 102, § 1º, regulamentado pela Lei nº 9.882, de 3.12.1999). 24. Objeto do capítulo - O presente capítulo só contém a disciplina processual do controle da constitucionalidade suscitado incidentalmente perante órgãos colegiados que constituem frações de tribunais, excetuado o “órgão especial” a que alude o art. 93, nº XI, da Constituição Federal. Com efeito:

a) o controle por via principal é exercido pelo Supremo Tribunal Federal em processo da sua competência originária, regulado, no que tange à ação direta de declaração de inconstitucionalidade e à ação declaratória de constitucionalidade, pela Lei nº 9.868, de 10.11.1999; ou então por tribunal estadual, conforme dispuser o ordenamento do próprio Estado-membro (Carta da República, art. 125, § 2º; vide, por exemplo, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, arts. 104 e segs.). b) o controle incidental por juízo singular não reclama disciplina processual específica; e, se a reclamasse, não seria num título com a rubrica “Do processo nos tribunais” que ela encontraria sede própria; c) o controle incidental por tribunal pleno - ou, se for o caso, pelo “órgão especial” a que se refere o art. 93, nº XI, da Constituição Federal - tampouco exige regulamentação particular: respeitado o preceito do art. 97 da mesma Carta, no concernente ao quorum, pode o colégio conhecer da questão, sem problema de ordem procedimental, a qualquer momento em que exerça atividade cognitiva em feito da sua competência. Já a argüição da inconstitucionalidade, como prejudicial, perante órgão fracionário diverso do “especial” previsto na Lei Maior, gera problema peculiar, do ponto de vista do procedimento. É que, justamente por força da norma inscrita no seu art. 97 - reprodução, aliás, do que já se continha em Constituições anteriores -, se ao órgão fracionário, na apreciação de recurso, ou de causa da respectiva competência originária, ou levada ex vi legis ao segundo grau de jurisdição, parecer fundada a argüição da inconstitucionalidade de lei ou de outro ato normativo do poder público, não lhe será lícito declarar por si mesmo, pura e simplesmente, sem qualquer formalidade, que a lei ou o outro ato é inconstitucional, recusando-lhe em conseqüência aplicação à espécie.9 Determinar como se há de prosseguir no julgamento, para evitar ofensa à Carta da República, eis o problema a cuja solução dedicou o legislador processual de 1973 o presente Capítulo. Há patente analogia entre a sistemática adotada aqui e a exposta no comentário ao Capítulo I deste Título IX, a propósito do incidente de uniformização da jurisprudência. Em ambos os casos, ocorre julgamento per saltum: a competência fica cindida, segundo critério funcional, entre o órgão julgador do recurso ou da causa e o órgão a que vai caber o exame da questão suscitada como premissa da decisão. Em última análise, será julgado por dois órgãos distintos o recurso ou a causa, pronunciando-se cada qual sobre um aspecto da matéria. A decisão final resultará da integração de ambos os pronunciamentos: exemplo típico de decisão subjetivamente complexa.10 25. O Código e os regimentos internos dos tribunais - O Código de 1939 não regulava o procedimento a ser observado no incidente de argüição de inconstitucionalidade. A matéria foi objeto de normas constantes dos regimentos internos dos tribunais: no antigo Estado da Guanabara, por exemplo, dela tratou o art. 1º do Ato Regimental nº 14, aprovado em 29.1.1953; mais tarde, já às vésperas da entrada em vigor do novo ordenamento processual, a cuja sistemática procurou amoldar-se, o Regimento Interno de 21.12.1973, arts. 89 e segs. (agora, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, arts. 99 e segs. do Regimento Interno de 25.11.1980).

Às disposições do vigente Código, que compõem este Capítulo II, devem adaptar-se os regimentos internos, por força do disposto no art. 1.214. Nada impede, contudo, que neles figurem regras supletivas, destinadas a disciplinar os pontos a cujo respeito é omissa a lei processual. A questão assume aspecto particular no concernente ao Supremo Tribunal Federal, cujo Regimento Interno em vigor contém, nos arts. 176 e 177, normas relativas à argüição incidental de inconstitucionalidade. Nos termos da anterior Carta da República, art 119, § 3º, letra c, incumbia à Corte, em seu Regimento Interno, regular “o processo e julgamento dos feitos de sua competência originária ou de recurso”. Inserindo-se o incidente de argüição em processo de causa ou de recurso da competência do Supremo Tribunal Federal, estava ele compreendido no âmbito de incidência da regra constitucional. Entretanto, a atual Constituição não reproduziu a norma que autorizava a Corte a legislar sobre a matéria. O art. 96, nº I, letra a, da Carta em vigor outorga, sem dúvida, competência normativa aos tribunais, em geral, no tocante ao “funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”, o qual poderá ser disciplinado nos regimentos internos, mas “com observância das normas de processo”. Segue-se que o Supremo Tribunal Federal, neste e noutros pontos, deveria adaptar - o que até agora não fez - a disciplina regimental à do Código de Processo Civil. Art. 480. Argüida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo. 26. Objeto da argüição - Trata-se da argüição da “inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público”. Por lei entende-se aqui, antes de tudo, o ato formalmente legislativo, quer corresponda, quer não, ao conceito de lei do ponto de vista material. A argüição pode visar, indiferentemente, a lei complementar ou a lei ordinária. Abrange também o art. 480 a argüição da inconstitucionalidade de emenda à Constituição, de lei delegada, de medida provisória, de decreto legislativo, de resolução, de decreto regulamentar ou de outro ato normativo emanado de qualquer órgão do poder público, inclusive normas dos próprios regimentos internos dos tribunais. Não há distinção, ao ângulo processual, entre o incidente relativo a lei ou ato emanado de órgão da União e o incidente relativo a lei ou ato emanado de órgão de Estado-membro, ou de Município. Tampouco se distingue, na mesma perspectiva, entre argüição baseada em regra da Carta da República e argüição fundada em dispositivo de Constituição Estadual.11 Igualmente irrelevante, para o procedimento, é que se trate de inconstitucionalidade formal ou substancial. Não basta, contudo, a argüição de ilegalidade para fazer incidir o art. 480 do Código, pois tampouco incide o art. 97 da Lei Maior. A argüição pode ser feita a propósito de qualquer recurso que o órgão fracionário tenha de julgar, ou de qualquer causa da sua competência originária, ou ainda de matéria

obrigatoriamente sujeita ao duplo grau de jurisdição. Pouco importa que ela se relacione, ou não, com o mérito.12 O que interessa, e basta, é que a decisão a ser tomada pelo órgão, seja qual for, dependa logicamente de considerar-se ou não constitucional a lei ou o outro ato objeto da argüição. 27. Iniciativa da argüição - Legitimada à argüição, em primeiro lugar, é qualquer das partes do processo, instaurado perante o órgão fracionário, ou a ele distribuído em grau de recurso, ou ainda para revisão obrigatória ex vi legis, cujo desfecho logicamente dependa do juízo sobre a constitucionalidade da lei ou do outro ato do poder público. Havendo litisconsórcio, legitima-se qualquer dos autores ou dos réus, dos recorrentes ou dos recorridos. Não fica excluído o assistente, simples ou litisconsorcial (art. 54). O Ministério Público, quando parte - inclusive na hipótese de haver recorrido de decisão em feito no qual anteriormente funcionava como fiscal da lei -, naturalmente se legitima à argüição. Mas também se lhe deve reconhecer qualidade para formulá-la em parecer que porventura haja de emitir, como custos legis, sobre o recurso ou a causa. A argüição pode ainda ser feita ex officio, pelo relator, pelo revisor, se houver, ou por qualquer dos juízes componentes do órgão. Aplica-se aqui o princípio segundo o qual, em questão de direito, a iniciativa oficial é sempre admissível. 28. Oportunidade da argüição - A parte pode argüir a inconstitucionalidade em petição inicial, em contestação, em razões de recorrente ou de recorrido, em petição avulsa que junte aos autos durante a tramitação da causa ou do recurso perante o órgão, ou até, se for o caso, em sustentação oral, na sessão de julgamento. Não há preclusão em se tratando de quaestio iuris. Nada importa que a questão da inconstitucionalidade só venha a ser suscitada, pela primeira vez, em grau superior de jurisdição. A argüição pelo Ministério Público, quando parte, é cabível a qualquer momento em que lhe toque falar nessa qualidade. Como fiscal da lei, pode o Ministério Público fazê-la no parecer escrito que emita, ou, sendo o caso, ao pronunciar-se oralmente, na sessão de julgamento. Quanto à argüição ex officio, cabe naturalmente ao relator, ao eventual revisor ou a qualquer outro membro do órgão formulá-la na referida sessão. A argüição será admissível desde o início do julgamento até o encerramento da votação, enquanto não anunciado pelo presidente o resultado desta (art.556). É intuitivo que a cada juiz tocará fazê-la ao proferir o seu voto; não há, entretanto, óbice legal a que o relator a faça, por amor à economia, ao fim da própria exposição da causa (art.554). A argüição, constante dos autos, feita pela parte ou pelo Ministério Público, será submetida ao órgão fracionário, pelo relator, na sessão de julgamento.13 Não se confunde esse caso com o da argüição formulada, ex officio, pelo próprio relator, embora também sobre esta, obviamente, haja de deliberar o órgão fracionário.

29. Audiência do Ministério Público - É obrigatória a audiência do Ministério Público. Excetua-se, é claro, a hipótese de ter sido formulada a argüição por ele mesmo, em parecer escrito ou oral sobre o recurso ou a causa; não, porém, aquelas em que o Ministério Público, através de outro órgão, haja argüido a inconstitucionalidade como parte, ou como recorrente contra decisão proferida em processo no qual funcionava, em grau inferior de jurisdição, na qualidade de custos legis. O pronunciamento do Ministério Público deve ser prévio à deliberação do órgão fracionário. Se a argüição já constar dos autos ao serem eles conclusos ao relator (art. 549), este abrirá vista, desde logo, ao Ministério Público, para emitir parecer. Superveniente que seja a argüição, abrir-se-á vista dos autos ao Ministério Público logo que ela seja formulada. Se a argüição só for feita na sessão de julgamento, conceder-se-á prazo ao Ministério Público para pronunciar-se, suspendendo-se o julgamento nesse ínterim. Ao contrário do que se dá quanto ao incidente de uniformização da jurisprudência (art. 478, parágrafo único), não exige aqui o Código que o Ministério Público se pronuncie através do chefe do parquet junto ao tribunal. Observar-se-ão as regras de competência porventura constantes de outros diplomas.

30. Órgão perante o qual se argúi a inconstitucionalidade - Nenhum órgão fracionário de qualquer tribunal, exceto o “órgão especial” de que cogita o art. 93. nº XI, da Carta da República, tem competência para declarar inconstitucional uma lei ou outro ato normativo do poder público. É o que resulta do preceito segundo o qual a inconstitucionalidade não pode ser declarada senão pelo voto da maioria absoluta dos membros do tribunal14 ou - onde exista - do “órgão especial” acima referido. Por conseguinte, deve observar-se o procedimento previsto neste Capítulo sempre que se formule a argüição perante qualquer outro órgão fracionário. Nada importa que o art. 480 apenas faça menção expressa à “turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo”. Se se tratar de causa ou recurso da competência de grupo de câmaras, ou das câmaras cíveis reunidas, ou de seção,15 uma vez argüida a inconstitucionalidade de lei ou de outro ato normativo do poder público, a disciplina do incidente não poderá deixar de ser a mesma. Por isso alude com acerto a “qualquer dos órgãos do Tribunal” o art. 99 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; naturalmente, há de ler-se o dispositivo com a ressalva implícita do “orgão especial”. Objetar-se-á que o número total de juízes, numa das seções, pode ser tal que permita o atingimento do quorum constitucional. Nessas circunstâncias, deveria admitir-se que ela declarasse a inconstitucionalidade, uma vez alcançada a maioria absoluta dos membros do tribunal.16 A dúvida perdeu qualquer razão de ser com referência aos tribunais que criaram o “órgão especial”. Mesmo, porém, sob o regime anterior à Emenda Constitucional nº 7, de 13.4.1977, sempre nos pareceu que a legitimidade da declaração pressupunha necessariamente a votação em sessão plenária, a fim de que se abrisse a cada

um dos membros do tribunal a possibilidade de manifestar-se, e assim de influir no resultado da votação - embora sem ser indispensável que todos efetivamente se manifestassem (cf., infra, o comentário nº 36 ao art.482). E desse modo continuamos a pensar no que concerne aos tribunais onde não haja o “órgão especial”: neles permanece competente, com exclusividade, o plenário. Tem competência para apreciar (e eventualmente acolher) por si argüições de inconstitucionalidade, nas causas de que conheça, o colegiado julgador de recursos contra sentenças do Juizado Especial Cível (Lei nº 9.099, de 26.9.1995, art. 41), o qual não é órgão fracionário de tribunal algum. Incabível, aí, a remessa a qualquer outro órgão, para exame da prejudicial.17 Art. 481. Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno. Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. (Acrescentado pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998.) 31. Deliberação do órgão fracionário - Submetida ao órgão fracionário a argüição da parte ou do Ministério Público, ou formulada a argüição, na própria sessão de julgamento, por algum dos juízes, deve naturalmente suspender-se o julgamento, para que o órgão delibere sobre a argüição. Silenciando o Código acerca da forma por que o órgão há de deliberar, cabe aos regimentos internos suprir a omissão. Se a maioria dos votantes se manifestar contra a argüição, esta se haverá como rejeitada. Em semelhante hipótese, não é necessário levar a questão ao exame do plenário ou do “órgão especial”; o art. 97 da Lei Maior só se aplica à declaração da inconstitucionalidade;18 para a da constitucionalidade, não há exigência específica de quorum, nem atribuição de competência privativa a órgão algum. O órgão fracionário pode rejeitar a argüição por entendê-la inadmissível ou por entendêla improcedente. É inadmissível, v.g., a argüição referente a ato que não seja do poder público; também é inadmissível a argüição impertinente, relativa a lei ou outro ato de que não dependa a decisão sobre o recurso ou a causa. Em casos tais, é lícito ao próprio relator deixar de observar o disposto no art.480; mas cumpre-lhe, ao fazer “a exposição da causa” na sessão de julgamento (art.554), mencionar o ponto, porque a maioria dos membros do órgão fracionário pode ter entendimento diverso - caso em que obrigatoriamente se observará o procedimento previsto no Código, inclusive com abertura de vista ao Ministério Público, para pronunciar-se antes da deliberação. Improcedente será a argüição quando o órgão fracionário, pela maioria dos seus

membros, não reconhecer a alegada incompatibilidade entre a lei ou o outro ato e a Constituição. Manifestando-se a favor da argüição a maioria dos votantes - isto é, entendendo a maioria que existe a alegada inconstitucionalidade -, ter-se-á como acolhida a argüição. Não, é óbvio, no sentido de que o órgão haja declarado inconstitucional a lei ou o outro ato, o que não lhe seria lícito fazer, mas no sentido de que, ressalvada a hipótese do parágrafo único (sobre a qual vide, infra, o comentário nº 33), a argüição será submetida ao tribunal pleno, ou ao “órgão especial”.19 À luz da Carta da República e do Código, o acolhimento da argüição pelo órgão fracionário, nos termos acima, pode ser decidido por maioria simples. Nenhuma regra constitucional ou legal impõe, para a validade da deliberação, que mais da metade do número total de juízes do órgão fracionário se manifeste favoravelmente à argüição. Não se trata, ainda, de declarar inconstitucional a lei ou o outro ato do poder público. É claro que a argüição pode ser acolhida ou rejeitada quer in totum, quer parcialmente. Nada obsta a que o órgão fracionário entenda incompatível com a Constituição apenas uma parte da lei ou do outro ato, objeto da argüição. Também pode ocorrer, se se argüiu a inconstitucionalidade de mais de uma lei ou de mais de um ato, que o órgão fracionário a acolha em relação a alguma ou algumas das leis, ou a algum ou alguns dos atos, e a rejeite quanto ao mais. Só se terá por acolhida a argüição naquilo em que a seu favor se manifeste a maioria dos votantes, e unicamente nesses limites será a argüição submetida ao tribunal pleno, ou ao “órgão especial”. 32. Efeitos da deliberação - Variam naturalmente os efeitos da deliberação, conforme o órgão fracionário rejeite ou acolha a argüição de inconstitucionalidade. Na primeira hipótese, reza o art.481, “prosseguirá o julgamento”. A decisão sobre o recurso ou a causa será toda do órgão fracionário, que aplicará à espécie, se for o caso, a lei ou o outro ato argüido de inconstitucional. Na segunda hipótese, sempre com a ressalva do parágrafo único, “será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno” ou ao “órgão especial” de que cuida o art. 93. nº XI, da Carta da República. Ocorre a cisão funcional da competência: ao plenário, ou ao “órgão especial”, caberá pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e ao órgão fracionário, depois, decidir a espécie, à luz do que se houver assentado quanto à prejudicial. Suspende-se, portanto, o julgamento do recurso ou da causa pelo órgão fracionário, sem prejuízo daquilo que já se tenha decidido independentemente da argüição. O acórdão será redigido pelo relator ou, se vencido este, pelo “autor do primeiro voto vencedor” (art. 556). Incidem, aqui também, os arts. 563 e 564. Fora das hipóteses do parágrafo único, se o órgão fracionário, acolhendo a argüição, prossegue na atividade cognitiva e julga a espécie, sem aplicar a lei (ou o outro ato) que lhe pareceu inconstitucional,20 infringe o art. 97 da Constituição da República. O acórdão é passível de anulação (v. g., mediante recurso extraordinário)21 e,

eventualmente, de rescisão. Se anulado o acórdão em grau de recurso, nada subsiste da deliberação do órgão fracionário - salvo parte acaso não invalidada porque independente , de modo que, voltando-lhe os autos, se põe ao seu exame, ex novo, a argüição de inconstitucionalidade, que ele fica livre de rejeitar, prosseguindo no julgamento, ou acolher, submetendo-a ao plenário ou ao “órgão especial”.22 Atente-se em que pode ter mudado, nesse ínterim, a composição do órgão, ou a opinião de qualquer dos votantes. Seja como for, não há vinculação ao anterior pronunciamento. Nem se pense que a anulação atinge unicamente a decisão sobre a espécie e deixa de pé a solução da prejudicial de inconstitucionalidade: esta, aí, entra a constituir fundamento do julgado, razão de decidir, e não há supor que, anulado o acórdão, só o dispositivo desapareça, permanecendo incólume a motivação. Resta ver como se procede caso o órgão fracionário tenha acolhido só em parte a argüição. Nessa parte, o julgamento tem de ser suspenso; naquilo em que se rejeitou a argüição, permanece competente o órgão fracionário, e pode decidir por si. O art. 481 determina que se prossiga no julgamento “se a argüição for rejeitada”; é razoável interpretar a norma como abrangente da rejeição parcial. Dificuldades práticas, todavia, podem aconselhar a que o órgão perante o qual se argüiu a inconstitucionalidade não retome a sua atividade cognitiva senão após o pronunciamento do outro, mesmo quanto a pontos em que a argüição não haja sido acolhida, nem por conseguinte submetida ao plenário ou ao “órgão especial”. É lícito aos regimentos internos dispor a respeito, mas convém que editem regras de flexibilidade suficiente para atender às várias características dos casos concretos. 33. Submissão (ou não) da questão ao Tribunal Pleno ou ao "Órgão Especial" - Uma vez acolhida a argüição, deve submeter-se a questão, em princípio, ao tribunal pleno ou ao “órgão especial” previsto no art. 93, nº XI, da Lei Maior. Ao contrário, porém, do que faz no art. 477 - onde, a propósito do incidente de uniformização da jurisprudência, expressamente se ordena que os autos vão ao presidente do tribunal -, aqui silencia o Código acerca da forma pela qual se há de levar a questão ao conhecimento do plenário ou do “órgão especial”. Existem outras formas possíveis, diversas da remessa dos autos: de acordo, por exemplo, com o antigo Ato Regimental nº 14 do Tribunal de Justiça do extinto Estado da Guanabara, art. 1º, §§ 2º e 3º, o presidente do órgão fracionário submetia a questão ao tribunal pleno “mediante ofício instruído com a cópia do acórdão e das demais peças elucidativas do assunto”, cabendo ao relator no plenário, ou a este, se fosse mister, “solicitar os esclarecimentos complementares ou requisitar os autos originais”. Omissa a lei, prevalecerá a disciplina estabelecida no regimento interno do tribunal. Ao regimento é livre adotar forma semelhante à prevista para o incidente de uniformização da jurisprudência, ou preferir-lhe outra. Nos termos do parágrafo único, acrescentado pela Lei nº 9.756, “os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. É intuitiva a finalidade da nova regra: evitar

a inútil multiplicação de incidentes, responsáveis, tantas vezes, por grande retardamento da marcha dos pleitos em que são suscitados. Nas hipóteses arroladas, o órgão fracionário, ainda que lhe pareça fundada a argüição, abster-se-á de levá-la à apreciação do plenário ou do órgão especial e dará normal prosseguimento à sua atividade cognitiva. Fica excluída a cisão funcional da competência. São duas as hipóteses em que se deixa de submeter a argüição ao plenário ou ao órgão especial: (a) já existe, sobre a questão, pronunciamento de um desses órgãos do tribunal em que corre o processo; (b) já existe, sobre a questão, pronunciamento do plenário do Supremo Tribunal Federal. A redação alternativa indica que é pressuposto bastante da incidência do parágrafo a ocorrência de uma delas. Nenhum problema gera o caso de haver antes emitido declaração de inconstitucionalidade o plenário ou o órgão especial do tribunal julgador: estará manifestamente respeitada a norma do art. 97 da Carta da República. Quanto à existência de pronunciamento do plenário do Supremo Tribunal Federal, cabe distinguir: se foi em ação direta que se declarou inconstitucional a lei ou o outro ato normativo, tollitur quaestio, pois semelhante decisão produz efeitos erga omnes; se, porém, o que houve foi mera declaração incidental de inconstitucionalidade, sem que o Senado Federal tenha suspendido a eficácia da norma (Constituição Federal, art. 52, nº X), fazer prosseguir pura e simplesmente o julgamento do órgão fracionário, só porque o plenário da Corte Suprema se pronunciou do modo como o fez, é procedimento que, ao nosso ver, mal se harmoniza com a Lei Maior. Realmente: o órgão fracionário estará negando aplicação, por inconstitucional, à lei ou ao outro ato normativo (o que em nada se diferencia de declarar-lhe incidentalmente a inconstitucionalidade), sem que em tal sentido haja votado o próprio tribunal julgador, pela “maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial”, conforme exige o art. 97, com a ênfase do “somente”. O plenário do Supremo Tribunal Federal e a maioria absoluta do tribunal julgador (ou de seu órgão especial) são entidades perfeitamente distintas, e o texto constitucional não atribui ao primeiro o poder de suprir a falta do pronunciamento da segunda. Inclinamonos, destarte, a fim de preservar a regra do art. 97, por uma interpretação restritiva do parágrafo, na cláusula atinente ao Supremo Tribunal Federal: aquele incidirá apenas quando a Corte Suprema houver declarado a inconstitucionalidade em ação direta. Cumpre registrar, contudo, que o Supremo Tribunal Federal - desde época anterior à Lei nº 9.756 - vem entendendo dispensável, em qualquer outro tribunal, a submissão da questão ao respectivo plenário (ou órgão especial), inclusive nos casos em que o pronunciamento da Corte Suprema haja sido emitido incidentalmente. Argumenta-se com o princípio da economia processual e afirma-se que “a decisão plenária do Supremo Tribunal Federal, declaratória de inconstitucionalidade de norma, posto que incidente, sendo pressuposto necessário e suficiente a que o Senado Federal lhe confira efeitos erga omnes, elide a presunção de sua constitucionalidade”.23 Ora, o princípio da economia processual não autoriza órgão algum a postergar formalidade exigida em termos expressos por texto legal (ou a fortiori, constitucional). Ademais, se a declaração incidental da inconstitucionalidade é “pressuposto necessário e suficiente” do ato do Senado, que elimina a norma do mundo jurídico, de modo algum se equipara a esse ato,

nem, portanto, produz só por si efeitos erga omnes. Enquanto não sobrevenha a suspensão, a norma em foco subsiste no ordenamento, e a declaração de sua inconstitucionalidade só gera efeitos no processo em que haja ocorrido. A rigor, sem a suspensão, pode o próprio Supremo Tribunal Federal, noutro feito, mudar de posição e admitir a compatibilidade entre a norma e a Lei Maior. Art. 482. Remetida a cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do tribunal designará a sessão de julgamento. § 1º O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os prazos e condições fixados no Regimento Interno do Tribunal. § 2º Os titulares do direito de propositura referidos no art. 103 da Constituição poderão manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo órgão especial ou pelo pleno do Tribunal, no prazo fixado em Regimento, sendo-lhes assegurado o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos. § 3º O relator, considerando a relevância de matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades. (Acrescentados pela Lei nº 9.868, de 10.11.1999.) 34. Procedimento no Tribunal Pleno ou no "Órgão Especial" - Submetida que seja a argüição ao tribunal pleno (ou ao “órgão especial”), compete a este apreciá-la, uma vez cumpridas as formalidades prévias necessárias. O Código é aqui bastante lacônico, limitando-se a dispor que o presidente designará a sessão de julgamento, depois de enviadas a todos os juízes cópias do acórdão do órgão fracionário. No que tange à distribuição das cópias, valem as observações feitas supra, no comentário nº 14 ao art.477. Deve entender-se, à semelhança do que ocorre no incidente de uniformização da jurisprudência, que a matéria será relatada, na sessão de julgamento, por quem o regimento interno indicar - de preferência, sempre que possível, pelo mesmo juiz a quem coube redigir o acórdão do órgão fracionário. Quanto à inclusão do feito em pauta, à respectiva publicação e afixação, e ao intervalo que há de mediar entre a publicação e a sessão, incidem o art. 552, e seus I 1º e 2º. Sobre outros aspectos procedimentais, observar-se-ão as normas do regimento interno. Nos parágrafos acrescentados pela Lei nº 9.868, prevê-se a intervenção (aqui facultativa) do Ministério Público e de várias pessoas e entidades, para opinarem sobre a matéria, nos prazos que o regimento interno fixar. Às especificamente indicadas nos §§ 1º e 2º não é

lícito negar a possibilidade de manifestação. Além delas, outras poderão manifestar-se, a critério do relator, que as admitirá (ou não) por “despacho” (rectius: decisão) irrecorrível. 35. Pronunciamento do Tribunal Pleno ou do "Órgão Especial" - Incumbe ao plenário ou ao “órgão especial” pronunciar-se acerca da prejudicial de inconstitucionalidade da lei ou ato do poder público, ou da parte de uma ou de outro, a cujo respeito lhe houver sido submetida a argüição pelo órgão fracionário. O plenário (ou o “órgão especial”) não tem competência para manifestar-se sobre o que não haja sido acolhido na argüição: naquilo em que a declarou inadmissível, ou negou a ocorrência de inconstitucionalidade, o órgão fracionário permaneceu competente para decidir a espécie, mediante a aplicação, sendo o caso, da lei ou ato impugnado - e pode até já haver decidido. Da própria redação do art. 481, caput, 2ª parte, claramente ressalta que o acolhimento da argüição pelo órgão fracionário é pressuposto inafastável do conhecimento da questão pelo tribunal. Argüição rejeitada pelo órgão fracionário não se submete ao tribunal; argüição rejeitada em parte não se lhe submete nessa parte. Dentro dos limites em que lhe caiba apreciar a prejudicial, contudo, é plena a cognição do tribunal, quer no exame da admissibilidade da argüição, que não fica precluso, quer, de meritis, no exame da constitucionalidade. Não está o plenário (ou o órgão especial) adstrito aos fundamentos indicados na argüição, isto é, a verificar a compatibilidade entre a lei ou o outro ato e a determinada regra (ou as determinadas regras) da Constituição, com que o argüente afirma existir conflito. A argüição pode ter-se fundado na alegada incompatibilidade entre a lei ou ato e a regra x, e o tribunal declarar inconstitucional uma ou outro por incompatível com a regra y. Não há que cogitar de vinculação do tribunal a uma suposta causa petendi,24 até porque a argüição não constitui “pedido” em sentido técnico, e as questões de direito são livremente suscitáveis, ex officio, pelos órgãos judiciais, na área em que lhes toque exercer atividade cognitiva. Observe-se, porém, que, se o plenário (ou o “órgão especial”) aprecia por diversos fundamentos, já constantes ou não da argüição, a constitucionalidade da mesma lei ou do mesmo ato, os votos devem ser tomados e computados separadamente, em relação a cada fundamento. Para ter-se como declarada a inconstitucionalidade, é preciso que a maioria dos votantes a pronuncie no que tange, pelo menos, a um mesmo dos vários fundamentos. Se alguns dos votantes se pronunciam no sentido da inconstitucionalidade só pelo fundamento x, e outros só pelo fundamento y, não se podem somar os votos dos dois grupos para dar como atingida a maioria necessária à declaração.25 36. Quorum para a deliberação e para a declaração da inconstitucionalidade - O preceito da Constituição Federal, art. 97, não exige, para a validade do julgamento, que deste participem todos os membros do tribunal.26 Feita abstração de alguma exigência regimental, pode o plenário (ou o “órgão especial”) deliberar com qualquer número de votantes igual ou superior à maioria absoluta. O indispensável, para que se possa deliberar, é que votem juízes em número acima da metade do total. Se o número de votantes coincide exatamente com a maioria absoluta, e todos se pronunciam pela inconstitucionalidade, declarada está ela, validamente.

Para que se declare inconstitucional a lei ou o ato, já não basta que a maioria absoluta dos membros do colégio participe da votação: é necessário que essa maioria se manifeste pela inconstitucionalidade, ao menos com referência a um mesmo dentre os fundamentos invocados, se há mais de um. Por “maioria absoluta” entende-se qualquer número de votos superior à metade do número total de juízes - não necessariamente “a metade mais um”, como às vezes se afirma: se o órgão se compõe de 15 juízes, por exemplo, haverá maioria absoluta desde que concordes 8 votantes. Caso não se atinja esse quorum, não se declarará inconstitucional a lei ou o ato, ainda que a maioria dos votantes (maioria simples) se pronuncie no sentido da inconstitucionalidade. Quer na hipótese de ser vitoriosa na votação (por maioria absoluta ou simples) a tese da constitucionalidade, quer na de ser vitoriosa, mas só por maioria simples, a tese da inconstitucionalidade, é idêntico o resultado prático. Incidem os arts. 556, 563 e 564. 37. Eficácia da decisão do Plenário ou do "Órgão Especial" - A decisão do plenário (ou do “órgão especial”), num sentido ou noutro, é naturalmente vinculativa para o órgão fracionário. Mais exatamente, a solução dada à prejudicial incorpora-se no julgamento do recurso ou da causa, como premissa inafastável. Ex vi do art. 481, parágrafo único, o pronunciamento dispensa os órgãos fracionários de novamente submeter a questão, em futuro processo, ao plenário (ou ao “órgão especial”). À semelhança da decisão que fixa a interpretação a ser observada no incidente de uniformização, também o pronunciamento do tribunal pleno (ou do “órgão especial”), declarando ou não a inconstitucionalidade, é irrecorrível, salvo por embargos de declaração.27 Qualquer outro recurso unicamente poderá caber, satisfeitos os respectivos pressupostos, contra o acórdão do órgão fracionário que decidir a espécie, pois só com esse acórdão se completará o julgamento do recurso ou da causa, cindido em virtude do acolhimento da argüição. Anote-se que, no caso de recurso extraordinário, se tem exigido a juntada de cópia do acórdão do tribunal pleno ou do “órgão especial”, sempre que este haja acolhido a argüição de inconstitucionalidade.28 38. Retomada do julgamento pelo órgão fracionário - Publicado o acórdão do tribunal pleno (ou do “órgão especial”), restituem-se os autos ao órgão fracionário, ou comunicase a este a decisão, conforme o procedimento que se tenha seguido para submeter ao plenário a questão da inconstitucionalidade. Retoma-se, então, no órgão fracionário, consoante o rito adequado, o julgamento que fora suspenso. À semelhança, ainda aqui, do que se dá no incidente de uniformização da jurisprudência, subsiste intacto o que já ficara decidido pelo órgão fracionário, até o momento da suspensão, independentemente da prejudicial de inconstitucionalidade. No que a esta concerne, como já se assinalou, o órgão fracionário tem de acatar o pronunciamento do tribunal pleno (ou do “orgão especial”); se não se declarou inconstitucional a lei ou o ato, o órgão fracionário, sem embargo do seu entendimento diverso, manifestado no acolhimento da argüição, não poderá recusar aplicação a uma ou a outro, nem julgar, seja como for, em desarmonia com a premissa da respectiva legitimidade constitucional.

Perdem toda e qualquer relevância as manifestações porventura já ocorridas no órgão fracionário sobre a questão da inconstitucionalidade da lei ou do outro ato do poder público. Capítulo III - DA HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA 39. Generalidades - Num mundo como o de hoje, em que a cada dia mais freqüentes e complexas se vão tornando as relações entre pessoas (físicas e jurídicas) de diferentes nacionalidades, ou domiciliadas em países diversos, adquire sabor de truísmo a observação de que a relevância dos atos jurídicos nem sempre se exaure nos limites territoriais do Estado onde são praticados. Na mole heterogênea desses atos naturalmente avultam as decisões com que os órgãos da função jurisdicional, aplicando o direito objetivo, resolvem conflitos de interesses. As sentenças proferidas pela Justiça de um Estado não raro precisam operar no território de outro, sob pena de revelar-se ilusória, do ponto de vista prático, a tutela jurídica dispensada.1 Isso põe cada Estado ante a necessidade de determinar se, e em que medida, reconhecerá eficácia, em seu território, à sentença estrangeira. O problema não é novo, embora modernamente lhe ressalte a importância.2 No período de formação e desenvolvimento dos Estados nacionais, a exacerbação do conceito de soberania fez surgir resistências que, em alguns casos, vêm demorando a dissipar-se. Vasto movimento doutrinário e legislativo, contudo, sob a inspiração de princípios vários que entre si disputam a primazia, vai conduzindo, na grande maioria dos sistemas jurídicos atuais, à progressiva atenuação das dificuldades que se opunham à produção extraterritorial dos efeitos das sentenças.3 Não pode ser aqui versado, sequer sumariamente, o problema, em boa parte extrajurídico, da justificação racional do reconhecimento dessa eficácia. Numerosas foram as teorias formuladas ao propósito, buscando fundamento, sucessivamente, na comitas gentium, no direito natural, na supremacia do ordenamento internacional, a exigir respeito à soberania do Estado estrangeiro e aos atos dela emanados no âmbito de suas atribuições, na idéia de “comunidade de direito”, na obsoleta concepção do contrato (ou quase-contrato) judiciário, na doutrina dos direitos adquiridos, na consideração da sentença como lex specialis, com a conseqüente assimilação do problema ao do reconhecimento da eficácia da lei estrangeira, etc.4 No presente contexto, temos de cingir-nos a registrar que, seja em atendimento a reivindicações doutrinárias, seja sob a pressão de conveniências ou mesmo de necessidades práticas, cuja força aumenta de instante a instante, é cada vez mais escasso o número de Estados que ainda se obstinam em negar valor às decisões das Justiças de outros. Até os tradicionalmente mais hostis ao reconhecimento vêem-se forçados a fazerlhe concessões. Assim, por exemplo, na Suécia - que, com os demais Estados nórdicos, vinha formando um dos redutos contemporâneos da oposição à tendência dominante -, já se têm admitido, além dos casos previstos em tratados, exceções à regra do nãoreconhecimento, notadamente quanto a sentenças de estado e a decisões proferidas pela Justiça estrangeira designada em cláusula contratual de eleição de foro, quando excluída a própria jurisdição sueca.5

A antiga União Soviética, por força do disposto no art. 63 dos Princípios do Processo Civil baixados pela Lei nº 526, de 10.4.1962, só admitia a execução de sentenças e laudos arbitrais estrangeiros nos termos previstos em tratado ou convenção internacional de que fosse signatária, e ainda assim sob a condição de que o interessado a requeresse dentro do prazo de três anos a contar do trânsito em julgado; mais flexível era o sistema, porém, quanto à possibilidade do simples reconhecimento de decisões que não comportam execução, no sentido próprio (v.g., concernentes ao estado das pessoas).6 Na Holanda, conforme resulta da conjugação do art. 431 do Código de Processo Civil (Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering), na redação dada pela Lei de 7.10.1964, com o art. 985, acrescentado pela mesma lei, e ao qual faz remissão o primeiro, a regra continuou a ser, como era antes da reforma, a de que as sentenças alienígenas não são exeqüíveis em território nacional, com ressalva apenas dos casos contemplados em tratados ou em disposições legais específicas; não é de hoje, todavia, que a jurisprudência vem temperando o rigor do princípio: se normalmente subsiste para a parte vencedora no processo estrangeiro o ônus de repropor a ação perante o juiz holandês, nesse novo feito acaba-se por atribuir à decisão proferida alhures, ao menos de facto, certo valor probatório.7 Outros exemplos poderiam dar-se dessa tendência, que dia a dia se firma, à atenuação, na prática judiciária, da rigidez literal dos ordenamentos mais fechados às sentenças estrangeiras. Na matéria, como de outras vezes tem acontecido, mostram-se os tribunais mais sensíveis do que o legislador às necessidades concretas da vida. Importante fator de evolução, aliás, é o constante avanço do direito internacional convencional (tratados). No âmbito da União Européia, por exemplo, a abertura produzida pelo advento das normas comunitárias, largamente aplicáveis, começa por subtrair importância prática à estreiteza ainda subsistente nesta ou naquela legislação nacional e dificilmente deixa, cedo ou tarde, de arejá-la. 40. Sistemas no direito comparado8- Pondo de lado os ordenamentos refratários ao reconhecimento da eficácia e fazendo abstração de aspectos secundários e acidentais, cuja variação mais ou menos intensa, de um para outro regime, dificulta o traçado rigoroso de linhas divisórias, podem classificar-se em dois tipos fundamentais os sistemas jurídicos modernos, conforme a atitude que adotam em face da sentença estrangeira: 1º) o tipo que recusa a esse ato eficácia equiparável à das decisões judiciais internas, e portanto cria, para quem queira fazer valer no território nacional o direito declarado por Justiça de outro Estado, a necessidade de instaurar novo processo, perante órgão local, mas admite, com base no pronunciamento do tribunal alienígena, uma presunção em favor do litigante vitorioso no exterior. Era, na Inglaterra, o sistema tradicional de common law, no qual se abria ao interessado a opção entre demandar de novo, “on the original ground of action”, e ajuizar uma “action of debt” com fundamento na sentença estrangeira, caso em que se invertia o ônus da prova - com tamanha vantagem prática para o autor, que acabou por tornar muito rara a escolha da outra possibilidade. O Foreign Judgments (Reciprocal Enforcement) Act de 1933 (com precedentes parciais noutras leis) viria inovar profundamente o regime, instituindo sistemática diversa, pela qual em determinados casos se faz possível, sem segundo julgamento, conseguir diretamente a produção dos efeitos da sentença alienígena, através de registro especial,

subordinado a certos requisitos.9 O sistema do common law, em suas linhas-mestras, continua entretanto a vigorar no direito norte-americano, sem embargo de diferenças observáveis entre as legislações dos vários Estados;10 2º) o tipo que reconhece eficácia propriamente sentencial ao julgamento estrangeiro, subordinando-lhe contudo a produção de efeitos a um ato praticado por órgão nacional. Este tipo comporta subdivisões, consoante vários critérios. Antes de mais nada, ora se imprime a semelhante ato, em regra, o caráter formal de uma decisão, proferida através de procedimento específico - podendo reservar-se a um único órgão ou atribuir-se a uma pluralidade deles a competência11 -, ora se permite (ao menos para certos fins) o reconhecimento da sentença alienígena mediante simples verificação incidental dos pressupostos.12 Observe-se que o ato formal de reconhecimento pode ser indispensável à produção de quaisquer efeitos, ou somente à execução do julgado estrangeiro no território nacional.13 De outro ponto de vista, segundo a extensão dos poderes que se concedem, no tratamento da matéria, ao(s) órgão(s) do Estado em cujo território se quer dar eficácia à sentença, cabe distinguir: a) os ordenamentos em que se abre ao órgão nacional a ampla revisão da causa, reconhecendo-se o julgamento estrangeiro apenas quando se chegue à conclusão de que foi justo, isto é, correto no mérito: assim, o antigo sistema francês - até o famoso Arrêt Munzer, de 1964, que assinalou um giro de 180º na jurisprudência da Cour de Cassation14 - e, ainda hoje, o belga (Code Judiciaire, art. 570), com ressalva do direito comunitário, em cujo âmbito vigora a Convenção de Bruxelas; b) os ordenamentos em que ao órgão nacional compete exclusivamente verificar, na sentença estrangeira, a concorrência de determinados requisitos, extrínsecos ou intrínsecos, tidos como suficientes para o reconhecimento de eficácia: assim, com menor ou maior pureza, o direito italiano (ao qual geralmente se atribui a criação deste sistema), o português e, conforme se verá, o brasileiro. Na linguagem jurídica peninsular, a essa restrita atividade cognitiva exercida pelo órgão nacional denomina-se, expressivamente, giudizio di delibazione.15 Entre nós, os textos costumam falar de “homologação” da sentença estrangeira. Em algumas classificações encontradiças na doutrina, aparece como tipo autônomo o chamado sistema da reciprocidade, pelo qual um Estado só reconhece eficácia às sentenças emanadas de outro que, por sua vez, adote igual atitude em relação às emanadas do primeiro. A reciprocidade diz-se legislativa quando prevista na lei;16 diplomática quando resultante de tratado; e de fato quando fundada apenas na prática constante dos tribunais. Entretanto, pondera-se com razão que a exigência de reciprocidade, em si mesma, não caracteriza um tipo de ordenamento, senão que representa “condição adaptável a sistemas diversos”: pode combinar-se, na verdade, com qualquer dos acima expostos.17 41. Evolução histórica do direito brasileiro - Até 1878, o reconhecimento de sentenças estrangeiras no Brasil subordinava-se à existência de tratado. Naquele ano, o Dec. nº 6.982, de 27 de julho, regulamentando o art. 6º, § 2º, da Lei nº 2.615, de 4.8.1875,

instituiu o sistema da execução mediante “cumpra-se” do juiz competente (art. 4º), verificada a satisfação de certos requisitos, entre os quais o da reciprocidade (art. 1º, § 1º); o “cumpra-se”, porém, só era necessário para que a sentença se tornasse exeqüível, ao passo que os “efeitos de cousa julgada” se produziriam perante os nossos tribunais independentemente daquela formalidade, desde que satisfeitos os requisitos (art. 12). A falta de reciprocidade passou depois a ser suprível mediante a concessão de exequatur pelo Governo, equivalente para todos os efeitos ao “cumpra-se” judicial (Dec. nº 7.777, de 27.7.1880). Com a República, abandonou-se a exigência da reciprocidade, primeiro para as sentenças estrangeiras declaratórias da falência de negociantes com domicílio no país em que fossem proferidas (Dec. nº 917, de 24.10.1890), depois em caráter geral, a partir da Lei nº 221, de 20.11.1894, que criou o sistema da homologação pelo Supremo Tribunal Federal, discriminando os requisitos de homologabilidade e regulando o procedimento (art. 12, § 4º). Dúvidas surgiram, de início, sobre a constitucionalidade da norma, por não ter a Carta de 1891 dispositivo que expressamente atribuísse ao Supremo Tribunal Federal competência para a homologação;18 mas não duraram muito. A Consolidação das Leis da Justiça Federal, aprovada pelo Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, recolheu a disciplina instituída pela Lei nº 221; e as nossas Constituições posteriores, sem exceção, foram expressas quanto à competência da Corte Suprema para homologar sentenças estrangeiras: de 1934, art. 76, nº 1, letra g; de 1937, art. 101, nº I, letra f; de 1946, art. 101, nº I, letra g; de 1967, art. 114, nº I, letra g; Emenda nº 1, de 1969, art. 119, nº I, letra g (quanto à inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 7, vide, infra, o comentário nº 55 ao art. 483); de 1988, art. 102, nº I, letra h. O Código de Processo Civil de 1939 tratou da matéria no Título II do Livro VI (“Dos processos da competência originária dos tribunais”), arts. 785 e seguintes, enumerando os requisitos de homologabilidade (art. 791), com a tradicional ressalva da ofensa à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes (art. 792), e regulando o procedimento (art. 793). Consagraram-se disposições especiais às sentenças de falência (arts. 786 a 788) e homologação de concordata (art. 789). Ressalvou-se, também, expressamente, a hipótese de existir “tratado ou convenção” (art. 790). Pouco se afastou da disciplina do Código a estabelecida na atual Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 4.9.1942) acerca dos pressupostos do reconhecimento (art.15). Instituiu-se regime especial para as sentenças de divórcio (art. 7º, § 6º, ao qual viria a dar nova redação o art. 49 da Lei nº 6.515, de 26.12.1977). Importante foi a inovação trazida pelo parágrafo único do art. 15, segundo o qual não dependeriam de homologação “as sentenças meramente declaratórias do estado das pessoas”; oportunamente aludiremos às controvérsias que a respeito estrondearam (vide, infra, o comentário nº 52 ao art.483). 42. Direito vigente no Brasil - O art. 115, parágrafo único, letra c, da Constituição de 1967, reproduzido no art. 120, parágrafo único, letra c, da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, deferiu ao Supremo Tribunal Federal a atribuição de estabelecer, em seu Regimento Interno, “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária

ou de recurso”. Daí até o advento da Carta de 1988, essa matéria deixou de pertencer à competência normativa do Congresso Nacional: a lei passou a ser o Regimento Interno da nossa mais alta Corte. A homologação de sentença estrangeira era, constitucionalmente, feito da competência originária do Supremo Tribunal Federal (Emenda nº 1, de 1969, art. 119, nº I, letra g). Incluíram-se, então, no Regimento Interno de 18.6.1970, vigente a partir de 15.10.1970, disposições sobre o tema (arts. 210 a 217), depois substituídas pelas constantes dos arts. 215 a 224 do Regimento Interno em vigor desde 1º.12.1980. Nelas se deparam, além de regras procedimentais, outras concernentes aos requisitos de homologabilidade (arts. 216 e 217). Ora, parece-nos haver aí excedido o Supremo Tribunal Federal os limites constitucionais da sua competência normativa. O texto da Carta da República (de início, art. 120, parágrafo único, letra c; a partir da Emenda Constitucional nº 7, art. 119, § 3º, letra c) apenas se referia ao “processo e julgamento”: cabia ao Regimento Interno da Corte disciplinar o rito da homologação; não, porém, os requisitos necessários para tornar homologável a sentença estrangeira.19 A questão assumiu escassa importância prática, porque - ressalvada a subseqüente alteração da regra de competência (vide, infra, o comentário nº 55 ao art. 483) - as normas do Regimento Interno não discreparam substancialmente das que constam da Lei de Introdução ao Código Civil. O anteprojeto BUZAID tratava dos requisitos de homologabilidade, nos arts. 526 e 527, contendo até mais de uma inovação.20 Essas disposições, todavia, foram eliminadas do projeto, que se cingiu a estatuir (art. 487, parágrafo único): “A homologação obedecerá ao que dispuser o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. Assim ficou o texto do Código vigente (art. 483, parágrafo único). Ao que tudo indica, entendeu o legislador que a intercorrente reforma constitucional havia retirado ao Congresso a competência inclusive para disciplinar os requisitos de homologabilidade. Essa não era, porém, ao nosso ver, a melhor interpretação do art. 120, parágrafo único, letra c, da Emenda nº 1, de 1969, nem do art. 119, § 3º, letra c, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 7. No que diz respeito ao procedimento, não há dúvida de que, ao entrar em vigor o Regimento Interno de 1970, a disciplina passou a ser a nele prevista, revogados os dispositivos correspondentes do estatuto processual de 1939; e , depois, a do novo texto regimental. Entende-se que ela subsiste, embora o Supremo Tribunal Federal haja perdido, sob a Carta de 1988, a competência normativa específica de que antes dispunha. Já quanto aos requisitos que deve preencher a sentença estrangeira para tornar-se homologável, pensamos que as disposições insertas no Regimento, porque exorbitantes dos lindes constitucionalmente fixados àquela competência, não revogaram as constantes da Lei de Introdução ao Código Civil. Em substância, aliás, vale repetir, são bem pequenas as diferenças entre uma e outra regulamentação, mormente após a última reforma regimental.

Cabe aqui ligeira alusão, no plano internacional, ao chamado Código Bustamante de Direito Internacional Privado (Havana, 1928), ratificado por quase todos os Estados americanos, inclusive o Brasil. Os arts. 423 e seguintes contêm várias disposições, de ordem substancial e de ordem processual, acerca da “execução de sentenças proferidas por tribunais estrangeiros”. No âmbito do Mercosul, é importante o Protocolo de Las Leñas, de 27.7.1992, promulgado em nosso país pelo Dec. nº 2.067, de 12.11.1996: vejase o Capítulo V (arts. 18 e segs.). 43. Sistema brasileiro - Desde que pela primeira vez disciplinado, entre nós, o reconhecimento da eficácia de sentença estrangeira, manteve-se o sistema brasileiro invariavelmente infenso à revisão de meritis.21 As oscilações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais têm-se referido a outros aspectos; por exemplo: a) de início, adotou-se a exigência de reciprocidade (Dec. nº 6.982, art. 1º, § 1º), depois abandonada; b) às vezes se tem excluído a necessidade de um ato formal de reconhecimento para certas classes de sentenças (assim, na Lei de Introdução ao Código Civil, art. 15, parágrafo único, quanto às “sentenças meramente declaratórias do estado das pessoas”); c) ora se tem distinguido, ora não, o efeito executório das sentenças e os outros efeitos por elas produzidos, para limitar àquele a necessidade do ato formal de reconhecimento. Às questões indicadas sob b e c dar-se-á a devida atenção no comentário ao art. 483. Aqui, deixando de lado pontos secundários, importa sublinhar a característica essencial do nosso sistema: onde quer que se haja reputado necessário o ato formal de reconhecimento (“cumpra-se”, exequatur ou homologação), sempre se absteve o direito brasileiro de subordiná-lo à verificação, pelo órgão nacional, da justiça ou da injustiça da decisão, da existência ou inexistência, nela, de error in iudicando. Restringe-se a prescrever o controle da observância de algumas formalidades, correspondentes ao mínimo de garantias que se entende compatível com a colaboração do Brasil, e a isso acrescenta um sistema de limites, destinados a impedir que surtam efeitos em nosso território sentenças estrangeiras contrárias - segundo a fórmula consagrada - “à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes”. Só na aplicação desse sistema de limites, e unicamente para negar reconhecimento à sentença que ultrapasse a linha divisória, é que se autoriza o órgão brasileiro a perscrutar o conteúdo da decisão alienígena. No mais, o controle é meramente formal. Pode-se dizer, assim, que o país, na matéria, abraça em sua pureza o princípio da simples delibação. 44. Confronto com outros ordenamentos - É ilustrativo, a respeito do assunto, o confronto do nosso com outros ordenamentos basicamente filiados ao mesmo sistema, que hoje em dia vai predominando.22 A Itália, onde ele surgiu, adotava-o sob forma atenuada, bem menos rigorosa: consoante o disposto no art. 798 do Codice di procedura civile de 1940, o tribunal procederia “ao reexame do mérito da causa”, a requerimento do réu, quando a sentença estrangeira houvesse sido proferida à revelia, ou em qualquer dos casos previstos no art. 395, nºs 1, 2, 3, 4 e 6, como possíveis fundamentos da

revocazione. Semelhante disposição não vem reproduzida na Lei nº 218, de 31.5.1995, que hoje rege a matéria, revogados os arts. 796 a 805 do código. No que tange ao direito português, o art. 1.094, 1ª alínea, do Código de Processo Civil, ressalvando o estabelecido “em tratados e leis especiais”, formula o princípio da “necessidade da revisão” para que a sentença estrangeira tenha eficácia em Portugal (cf. o art. 49, nº I). À luz, porém, do elenco de requisitos constantes do art. 1.096, vê-se que, na “revisão”, o tribunal em regra não reaprecia o mérito da causa; limita-se ao controle de algumas formalidades (letras a e e) e à verificação da compatibilidade entre a decisão e os “princípios de ordem pública internacional do Estado português” (letra f).23 É verdade que se pode impugnar o pedido com fundamento não só na falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 1.096, mas ainda em alguma das circunstâncias que, conforme o art. 771, letras a, c e g, seriam invocáveis para pedir-se a revisão de sentença nacional transitada em julgado (art. 1.100). Ademais, “se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa” (art. 1100, nº 2, na redação do Dec.-lei 329-A, de 12.12.1995). Assim, de certo ponto de vista, o sistema luso avizinha-se do italiano anterior à Lei nº 218, distanciando-se ambos do brasileiro, mais fiel que eles ao princípio da proibição do reexame de mérito. Art. 483. A sentença proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada pelo Supremo Tribunal Federal. Parágrafo único. A homologação obedecerá ao que dispuser o regimento interno do Supremo Tribunal Federal Direito anterior - Dec. nº 6.982, de 27.7.1878; Dec. nº 7.777, de 27.7.1880; Dec. nº 917, de 24.10.1890, arts. 93 e segs.; Lei nº 221, de 20.11.1894, art. 12, § 4º; Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, art. 9º, letra h, da Parte I; art. 7º da Parte V; Introdução ao Código Civil, art. 16; Código de Processo Civil de 1939, arts. 785 e segs.; Lei de Introdução ao Código Civil (Dec.-lei nº 4.657, de 4.9.1942), arts. 7º, § 6º, 15 e 17. Direito comparado - Alemanha : ZPO, §§ 328, 722 e 723; Argentina: Código Procesal Civil y Comercial de la Nación, arts. 517 e segs.; Áustria: Ordenação das Execuções (Exekutionsordnung), § § 79 e segs.; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, arts. 552 e segs., e Ley de Organización Judicial, art. 53, nº 20; Chile: Código de Procedimiento Civil, arts. 242 e segs.; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, arts. 693 e segs.; Costa Rica: Código Procesal Civil, arts. 705 e segs.; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, arts. 483 a 485; Equador: Código de Procedimiento Civil, art. 451; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, art. 523, nº 1; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, arts. 740 e segs.; Filipinas: Rules of Court, R. 39, Seção 50; França: Code de

procédure civile, art. 509; Grécia: Código de Processo Civil, arts. 323 e 905; Guatemala: Código Procesal Civil y Mercantil, arts. 344 e segs.; Holanda: Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering, arts. 985 e segs.; Israel: Lei sobre o reconhecimento de sentenças estrangeiras, de 1958; Itália: Lei nº 218, de 31.5.1995, arts. 64 e segs.; Japão: Lei da Execução Civil, art. 24; Código de Processo Civil, art. 118; México: Código Federal de Procedimientos Civiles, arts. 569 e segs.; Panamá: Código Judicial, arts. 1.409 e segs.; Paraguai: Código Procesal Civil, arts. 532 e segs.; Peru: Código Civil, arts. 2.102 e segs., e Código Procesal Civil, arts. 837 e segs.; Portugal: Código de Processo Civil, arts. 49, 1.094 e segs.; Suíça: Lei Federal de Direito Internacional Privado, arts. 25 e segs.; Uruguai: Código General del Proceso, arts. 537 e segs.; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, arts. 850 e segs. COMENTÁRIO 45. Conceito de homologação - “Homologar é tornar o ato, que se examina, semelhante, adequado, ao ato que devia ser”.24 Na homologação de sentença estrangeira, o modelo que se tem em vista - com as ressalvas que adiante se farão - é a sentença proferida pela Justiça brasileira. O “modelo”, por si só, seria apto a produzir, no território nacional, os efeitos próprios. A sentença estrangeira, não: a lei considera-a “capaz de adquirir eficácia”25 no país, mas subordina tal aquisição a um ato formal de reconhecimento praticado por órgão nacional. Esse ato, no sistema pátrio, é precisamente a homologação. Vale observar, a esta altura, que em doutrina se defrontam duas concepções diversas do reconhecimento: a primeira o vê como extensão dos efeitos da sentença ao território de outro Estado (“importação” de eficácia); a segunda, como atribuição à sentença de efeitos iguais aos que surtiria julgado nacional de conteúdo idêntico. A questão, de grande interesse teórico, reveste também importância prática, na medida em que se faça depender da opção por este ou por aquele entendimento a solução do problema relativo à determinação da lei que há de reger os efeitos da sentença reconhecida: a do Estado de origem, conforme a primeira teoria, ou a do Estado do reconhecimento, consoante a segunda. Não nos podemos deter aqui no estudo da vexata quaestio,26 da qual, a rigor, mais compete ao direito internacional privado ocupar-se que ao direito processual. Uma circunstância, porém, faz-nos propender para a primeira concepção: é possível - e acontece - que o Estado do reconhecimento admita, em seu território, a produção de efeitos, ainda que com tais ou quais restrições, de sentença alienígena para a qual inexista termo de correspondência no ordenamento nacional: assim, v.g., da de divórcio, em país que não o tenha, como era o caso do nosso, até 1977 (vide, infra, o comentário nº 51 e, aí, a nota 57). A outra teoria dificilmente se mostra capaz de explicar o fenômeno, pois falta o “modelo” interno, cuja eficácia pudesse servir de padrão, de critério para a “equiparação”. Quanto ao direito brasileiro, frise-se que, para tornar admissível o reconhecimento (sob a forma de homologação), não é necessário que no Brasil se pudesse efetivamente obter, acerca da matéria decidida no outro Estado, sentença de igual

conteúdo, ou até qualquer sentença: a espécie talvez escape, em termos absolutos, à cognição da nossa Justiça. O “modelo”, a que a homologação “assimila” o julgado alienígena - usamos as expressões commoditatis causa -, é concebido in abstracto, sendo irrelevante a indagação quer sobre a eventual coincidência entre o respectivo teor e o de alguma sentença que in concreto se houvesse de proferir no território nacional, quer sobre a possibilidade mesma de proferir-se aqui semelhante decisão. O ato formal de reconhecimento (homologação, conforme a técnica do direito brasileiro) é acontecimento futuro e incerto a que a lei subordina a eficácia, no território nacional, da sentença estrangeira. Por isso, costuma a doutrina atribuir-lhe a função de verdadeira condição legal (condicio iuris).27 46. Objeto da homologação - Nos termos do art. 483, caput, objeto da homologação é “a sentença proferida por tribunal estrangeiro”. Por “sentença” deve entender-se aí o ato que, à luz do direito brasileiro, tenha conteúdo e efeitos típicos de sentença. Pouco importa a forma de que ele se revista no ordenamento estrangeiro, bem como a denominação que ali se lhe atribua. O critério relevante é o substancial: necessário e suficiente é que, desse ponto de vista, como quer que o encare o direito do Estado de origem, apresente o ato características tais que permitam incluí-lo, segundo a concepção nacional, na categoria das sentenças.28 Por isso mesmo, têm-se equiparado às decisões judiciais estrangeiras, para fins de homologação, as proferidas por órgãos estranhos ao Poder Judiciário, mas no exercício de função judicante. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal registra mais de um caso em que se homologou decisão de órgão executivo, desde que dotada de eficácia sentencial: assim, v.g., quanto a divórcio decretado (a) pelo Rei da Dinamarca, ou por autoridades administrativas (b) norueguesa e (c) dinamarquesa, ou ainda (d) registrado perante prefeito, no Japão.29 A doutrina apóia esse entendimento, sublinhando que “o que se há de levar em conta é a decisão conforme a concepção do Estado de importação, e não conforme a do Estado de produção da decisão”.30 Não obsta à prevalência da tese exposta a dicção do art. 483, caput, do atual Código, que alude a “tribunal estrangeiro”: também no estatuto de 1939, art. 785, falava-se em “tribunais estrangeiros”, o que não impediu se firmasse a interpretação extensiva; os órgãos de outros Poderes, nas hipóteses de que se cogita, atuam como tribunais31 (cf., infra, o comentário nº 50). Entre as sentenças de que cuida o dispositivo sob exame, incluem-se as proferidas em matéria civil (lato sensu) e as decisões penais estrangeiras que hajam de surtir, no território nacional, efeitos civis. Dispõe ao propósito o art. 790 do Código de Processo Penal: “O interessado na execução de sentença penal estrangeira, para a reparação do dano, restituição e outros efeitos civis, poderá requerer ao Supremo Tribunal Federal a sua homologação, observando-se o que a respeito prescreve o Código de Processo Civil” (cf. Código Penal, art. 9º, nº I). Por outro lado, vários ordenamentos estrangeiros - v.g., o francês, o italiano, o alemão, o espanhol - facultam ao lesado pelo crime o exercício, no próprio processo penal, da pretensão à reparação (lato sensu) do dano sofrido, bastandolhe, para tanto, intervir no feito criminal como “parte civil”. Em semelhante hipótese, a sentença do juízo penal, que acolha o pedido de condenação do réu a reparar (lato sensu)

o dano resultante do fato delituoso terá, nesse capítulo, natureza e eficácia de sentença civil, e, como tal, será tratada para fins de homologação em nosso país.32 Quanto ao objeto da decisão, é irrelevante, desde que deva ela surtir efeitos no Brasil. Claro está que não se concebe a necessidade (nem, pois, a admissibilidade) de homologação de sentença cuja eficácia seja toda intraprocessual:33 assim, v.g., a que anule o processo estrangeiro por defeito insanável. Em regra, homologável será a sentença de mérito (inclusive, é claro, a de improcedência), já que essa, por sua natureza mesma, é que se destina a repercutir fora do processo, e pode ter repercussão que haja de ultrapassar os limites territoriais do Estado de origem. Não se exclui de modo absoluto, contudo, a homologabilidade de decisão estranha ao mérito,34 até porque é perfeitamente concebível que se tenha de executar no Brasil sanção pecuniária por ilícito processual, acaso imposta à parte em interlocutória, ou então algum capítulo acessório, qual a condenação em custas e/ou em honorários de advogado, que não se liga necessariamente a um pronunciamento de meritis. Nenhuma distinção faz o Código de 1973 entre sentenças meramente declaratórias, constitutivas, condenatórias e - para os que aceitam esta classe - mandamentais.35 Não é preciso tratar-se de sentença que comporte execução forçada no Brasil, ou que dê lugar à chamada execução imprópria (sobre este conceito, vide, infra, o comentário nº 263 e, aí, a nota 142). O art. 483 fala em “eficácia”, termo genérico, que não pode ser restritivamente interpretado como alusivo só ao efeito executório. Voltaremos ao ponto oportunamente (vide os comentários nºs 52 a 54 a este dispositivo). Não se exclui a necessidade da homologação quanto às sentenças proferidas em processo cautelar, concessivas de providências que tenham de ser cumpridas no território nacional (por exemplo: arresto ou seqüestro de bens aqui situados). Inadmissível seria promoverlhes o cumprimento através de simples carta rogatória.36 Nenhuma diferenciação estabelece o texto entre sentenças em processo de conhecimento e sentenças em processo de outra espécie. Tampouco se distingue entre decisões de primeiro grau e decisões de grau superior de jurisdição. Embora o art. 163 reserve a denominação de “acórdão” ao julgamento proferido por tribunal (no sentido de órgão colegiado), e no sistema brasileiro, em matéria civil, sejam em regra monocráticos os juízos inferiores, e somente eles, no art. 483 “sentença” e “tribunal” estão empregados em sentido amplo, abrangendo decisões de qualquer grau, proferidas por órgãos monocráticos ou colegiados, desde que satisfeitos, é claro, os requisitos de homologabilidade, notadamente o trânsito em julgado. 47. Homologabilidade parcial - Se a sentença estrangeira se compõe de duas ou mais partes ou capítulos distintos, deve considerar-se cada qual em separado para fins de homologação (tot capita quot sententiae). Já nos referimos ao caso da decisão proferida por órgão penal que contenha pronunciamento de natureza civil (supra, comentário nº 46). Mesmo fora dele, entretanto, nada impede que se requeira apenas a homologação de um (ou alguns) dos capítulos, até porque é perfeitamente concebível que não haja interesse do requerente quanto ao(s) outro(s); nem que, requerida a homologação de toda

a sentença alienígena, se acolha o pedido só com relação a parte dela:37 assim, se quanto ao restante falta qualquer dos requisitos de homologabilidade. O que ficou dito vale inclusive para os capítulos acessórios: não é impossível que se peça (e se conceda) a homologação exclusivamente para as condenações em custas e/ou honorários advocatícios. A jurisprudência peninsular registra hipótese interessante: decretado na Inglaterra, por adultério, o divórcio de cônjuges ingleses, condenara-se em custas o co-réu, italiano. Querendo o autor promover a respectiva execução e fazê-la recair sobre bens situados na Itália, pleiteou a delibazione da condenação acessória; a Corte d’Appello de Gênova declarou inadmissível o pedido, mas tal decisão foi justamente criticada em sede doutrinária.38 48. Providências de jurisdição voluntária - Os pronunciamentos judiciais no domínio da chamada jurisdição voluntária, segundo entendimento doutrinário muito difundido,39 não têm caráter jurisdicional, e autores há que impugnam o uso da palavra “sentença” para designá-los;40 assim lhes chama, todavia, o Código (arts.1.110, 1.111, 1.124, 1.157, 1.158, 1.165 etc.). Algumas legislações expressamente se referem aos pronunciamentos dessa natureza, submetendo-os a disciplina igual ou semelhante à prevista para as sentenças estrangeiras propriamente ditas, a fim de reconhecer-lhes eficácia no território nacional:41 era o que fazia o anteprojeto BUZAID, no art. 527, nº II, dispositivo eliminado ao redigir-se o projeto. No silêncio dos textos, aqui e alhures, têm surgido controvérsias a respeito da homologabilidade desses atos;42 e é curioso que - apesar de haver entendido com largueza até excessiva, ao nosso ver, a cláusula de competência inserta no art. 120, parágrafo único, letra c, da Constituição de 1967 (com a redação da Emenda Constitucional nº 1, de 1969; depois, art. 119, § 3º, letra c) - o Regimento Interno da Corte Suprema, de 1970, não haja traçado, nem a Emenda Regimental nº 4 acrescentado, disposição acerca desta matéria. A omissão subsiste no atual Regimento, de 1980. Vale registrar, porém, que no direito anterior, a despeito dela, prevaleceu a tese da homologabilidade, e o Supremo Tribunal Federal a aplicou a diversos atos estrangeiros de jurisdição voluntária.43 Essa, na verdade, a melhor doutrina; não foi sem razão que se tornou vitoriosa, igualmente na ausência de norma legal expressa, na Alemanha.44 49. Decisões arbitrais - Quanto às decisões proferidas em juízo arbitral, trata-se de questão expressamente regulada em vários ordenamentos,45 mas a cujo respeito o Código silenciou, apesar de versada no anteprojeto BUZAID, cujo art. 527, nº I, mandava aplicar o regime previsto para as sentenças alienígenas, “desde que a matéria do laudo possa constituir objeto de compromisso segundo o direito brasileiro”. Na antiga legislação, o Dec. nº 6.982, de 27.7.1878, dizia “exeqüíveis no Brasil”, mediante a aposição do “cumpra-se”, “as sentenças arbitrais homologadas pelos tribunais estrangeiros”. A tese subjacente à cláusula derradeira teve eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admitia a homologação de laudo arbitral estrangeiro, porém a subordinava à circunstância de ter ele sido homologado por tribunal do Estado de origem.46 Não se

levava em conta que nem todas as legislações reclamam tal homologação para assimilar a eficácia do laudo à de uma sentença;47 ora, o que interessa é saber se a decisão estrangeira preenche os requisitos necessários para produzir, no Brasil, a eficácia que lhe reconhece, lá, o ordenamento de origem.48 Sempre nos pareceu, pois, que cabia distinguir: se, no Estado estrangeiro, só mediante homologação judicial se assimila o laudo a uma sentença, esse requisito era indispensável, porque sem ele não existia ato de eficácia sentencial; se, porém, o Estado estrangeiro atribui tal eficácia ao laudo, independentemente de homologação, não havia como subordinar a esta o reconhecimento da eficácia do laudo no território nacional.49 Nos termos da Lei nº 9.307, de 23.9.1996, “para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral está sujeita, unicamente, à homologação do Supremo Tribunal Federal” (art. 35), e a essa homologação aplica-se, “no que couber, o disposto nos arts. 483 e 484 do Código de Processo Civil”. O art. 37 do novel diploma contém regras atinentes à petição inicial, e os arts. 38 e 39 enumeram os casos em que a decisão arbitral estrangeira não deve ser homologada. A despeito do “unicamente” que se lê no art. 35, permanece cabível, ao nosso ver, a distinção acima proposta entre as hipóteses em que o ordenamento do Estado de origem prevê a homologação judicial e aquelas em que não a prevê.50 Nas últimas, a decisão arbitral estrangeira é decerto, satisfeitos os requisitos, passível de homologação pelo Supremo Tribunal Federal, sem qualquer outra formalidade; nas primeiras, continua exigível a prévia homologação judicial no Estado de origem, já que sem ela nem mesmo lá produz efeitos a decisão, e não se concebe que o Brasil “importe” uma eficácia ainda inexistente: não se importa o nada. 50. Conceito de "tribunal estrangeiro" - A expressão “tribunal”, no art. 483, caput está empregada em sentido amplo. Abrange, antes de mais nada, qualquer órgão judicial, singular ou colegiado, de grau inferior ou superior de jurisdição. Compreende igualmente órgãos integrantes de outro Poder que não o Judiciário, investidos de funções judicantes segundo o ordenamento do respectivo Estado: assim, tribunais ou autoridades administrativas, cujas decisões tenham eficácia sentencial. A interpretação deve ser aqui tão extensiva quanto a que se dá - conforme exposto no comentário51 nº 46, supra - à palavra “sentença”. No já citado acórdão de 31.1.1933, em que se homologou decreto de divórcio emanado do Rei da Dinamarca, o pronunciamento do relator, acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, fixou a tese que não mais seria abandonada pela jurisprudência da Corte. Analisando os textos legais então em vigor, que também se referiam a “tribunais estrangeiros”, acentuou que, “mesmo interpretadas em seu puro sentido gramatical, técnico, tais expressões não excluem nem as decisões dos tribunais administrativos, quando resolvam sobre direitos privados (porque são, na essência, verdadeiras sentenças), nem as decisões de juízes singulares ou autoridades administrativas que singularmente deliberem e julguem (porque, em sentido genérico, todo lugar onde se julga, singular ou coletivamente, é um “tribunal”, vocábulo que, por metonímia, aplica-se também ao magistrado que aí julga)”.52

“Tribunal”, na acepção do art. 483, caput é ainda o arbitral, desde que competente, à luz do ordenamento de origem, para proferir decisão com força de sentença independentemente de homologação judicial (cf., supra, o comentário nº 49). Quanto à decisão arbitral judicialmente homologada, nenhuma dificuldade exsurge: “tribunal” será o órgão judicial que a tiver homologado. Fala o dispositivo sob exame em “sentença proferida por tribunal estrangeiro”. A dicção é mais precisa do que a do art. 15 da Lei de Introdução ao Código Civil (“sentença proferida no estrangeiro”). O dado relevante não é, pois, o lugar onde funcione o tribunal, mas o Estado a que este pertença, a cuja soberania se vincule.53 A decisão eventualmente proferida por órgão brasileiro em território de outro Estado dispensa homologação para surtir efeitos no território nacional. Se, porém, a decisão foi de órgão estrangeiro, ainda que estivesse ocupado pelo Brasil, ao tempo do julgamento, o território em que tal órgão funcionava, é indispensável a homologação para que a decisão se torne eficaz no território nacional. 51. A homologação como pressuposto da eficácia no Brasil - A sentença proferida por tribunal estrangeiro tem a eficácia que lhe atribua o ordenamento de origem. De acordo com a concepção predominante e, ao nosso ver, preferível (cf., supra, comentário nº 45), não é o reconhecimento que a torna, em si, eficaz; nem lhe acrescenta qualquer dose nova de eficácia.54 A função do reconhecimento é a de permitir que essa eficácia, determinada pelo direito do Estado em que a sentença foi proferida, se produza no território do Estado que a reconhece: com o reconhecimento, a eficácia é “importada”.55 Pode o reconhecimento, contudo, limitar, no território nacional, a eficácia originária da sentença, de modo que esta só produza, nele, uma parte dos seus efeitos.56 Servia de exemplo, antes da Lei nº 6.515, de 26.12.1977, o divórcio de brasileiros judicialmente decretado noutro país: embora insuscetível de reconhecimento como tal (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 7º, § 6º, 1ª parte, na redação primitiva), podia ser homologado para fins patrimoniais, como se se tratasse de desquite.57 Resta saber se à homologação se subordina a produção, no território nacional, de toda a eficácia sentencial da decisão estrangeira, ou se alguma parte dessa eficácia pode manifestar-se independentemente de homologação. A questão tem sido posta, quase sempre, em termos de distinção entre o efeito executivo - aliás peculiar, como é sabido, às sentenças condenatórias - e os efeitos decorrentes da autoridade de coisa julgada, de que a decisão se haja revestido no ordenamento estrangeiro, a saber: inadmissibilidade da ação em que se pleiteie de órgão nacional novo pronunciamento sobre a lide já decidida, com força de res iudicata, noutro Estado; vinculação do juiz nacional à coisa julgada da sentença alienígena sobre questão, nela resolvida, de que logicamente dependa a solução de outra lide, aqui submetida à apreciação judicial.58 Às vezes, é a própria lei que expressamente distingue, permitindo que no território nacional se produzam, sem necessidade de um ato formal de reconhecimento, os efeitos relacionados com a auctoritas rei iudicatae,59 mas por outro lado condicionando a esse ato formal a exeqüibilidade da sentença estrangeira (vide, supra, o comentário nº 40 e, aí, a nota 13). Nem todos os textos, porém, são perfeitamente claros no particular, e isso explica que,

assim no Brasil como alhures, freqüentes e acirradas controvérsias tenham agitado, e ainda agitem, em torno do assunto, doutrina e jurisprudência, conforme se passa a expor. 52. O problema no direito brasileiro anterior - O Dec. nº 6.982, de 27.7.1878, só exigia o “cumpra-se” para tornar exeqüível, no território nacional, a decisão alienígena; o art. 12 afastava expressis verbis a necessidade do ato formal para que ela produzisse “perante os tribunais do Império os efeitos de cousa julgada”, bastando, para tanto, que preenchesse os requisitos enumerados no art. 1º e não contraviesse à soberania nacional, às “leis rigorosamente obrigatórias, fundadas em motivos de ordem pública”, às que regulavam “a organização da propriedade territorial”, nem às da moral (art. 2º). Também o Dec. nº 7.777, de 27.7.1880, apenas se referiu ao exequatur do Governo como condição para fazer “exeqüível no Império”, na falta de reciprocidade, a sentença estrangeira (art. 1º). Não obstante, o art. 11 do Dec. nº 6.982 subordinava ao “cumpra-se” inclusive “as sentenças meramente declaratórias, como são as que julgam questões de estado das pessoas”. Era patente a incoerência, porque as sentenças meramente declaratórias não comportam execução (em sentido próprio).60 As leis posteriores continuaram a falar de “execução”, ou a empregar vocábulos cognatos desse, ao tratarem da homologação (Lei nº 221, de 20.11.1894, art. 12, § 4º; Código de Processo Civil de 1939, arts. 785, 790), embora a Consolidação aprovada pelo Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, houvesse recolhido, no art. 14, letra b, da Parte V, o preceito do art. 11 do Dec. nº 6.982, relativo às “sentenças meramente declaratórias”, mas com expressão equívoca no caput (“Carecem de homologação para serem executadas”). Na jurisprudência, o problema viu-se obscurecido além do limite razoável em virtude da imprecisão dos conceitos processuais: muitas vezes se discutiu a questão da necessidade ou desnecessidade de homologação para sentenças meramente declaratórias quando se queria assentar se a homologação era ou não era necessária, v.g., para sentenças de anulação de casamento, no entanto tipicamente constitutivas. Mas a melhor doutrina, mesmo à luz do Código de 1939, orientou-se no sentido de reclamar a homologação para a produção, no Brasil, de toda a eficácia sentencial, e não só do efeito propriamente executivo.61 Controvérsia semelhante, aliás, já se travara na Itália, sob o Código de 1865, cujo art. 941 falava em forza esecutiva, e o resultado a que afinal se chegou, em consenso quase unânime, foi o mesmo; não apenas a execução (em sentido próprio) da sentença estrangeira, mas a produção, no território italiano, de quaisquer efeitos sentenciais, devia subordinar-se à delibazione.62 Entre nós, porém, o advento da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec.-lei nº 4.657, de 4.9.1942) trouxe um dado perturbador: nos termos do parágrafo único do art. 15, não dependeriam de homologação “as sentenças meramente declaratórias do estado das pessoas”. Com base nesse dispositivo, e mediante raciocínio por analogia, afirmou-se que no direito brasileiro a homologação seria necessária quando o cumprimento da decisão estrangeira impusesse “a prestação de qualquer atividade às autoridades judiciárias ou administrativas brasileiras” - quer a execução em sentido técnico, quer outros atos, como os de registro; não porém, nos casos restantes, inclusive para permitir a invocação da auctoritas rei iudicatae da sentença alienígena.63 Convém assinalar que em hipótese alguma se dispensaria qualquer dos outros requisitos arrolados, a par da homologação, no

art. 15: a verificação da respectiva ocorrência, entretanto, caberia ao próprio órgão perante o qual, no curso de algum feito, se invocasse a decisão estrangeira (delibação incidental, à semelhança da prevista no art. 799 do Codice di procedura civile de 1940, com efeitos em princípio limitados ao processo pendente). Mas a verdade é que a doutrina mais autorizada recebeu muito mal o parágrafo único do art. 15.64 Lançou-se-lhe até a pecha de inconstitucionalidade, por subtrair à Corte Suprema, em parte, o exercício da competência homologatória que lhe outorgava a Lei Maior. Esse argumento ganhou nova força com o advento da Constituição de 1946, cujo art. 101, nº I, letra g, passou a referir-se à “homologação das sentenças estrangeiras”, enquanto os textos anteriores falavam da “homologação de sentenças estrangeiras”. A mudança da redação, com efeito, resultara de emenda do então Deputado ADROALDO MESQUITA DA COSTA, destinada precisamente a tornar certo que todas as sentenças estrangeiras precisavam de homologação para produzir efeitos no Brasil. Destarte, o parágrafo único do art. 15 da Lei de Introdução ao Código Civil, na melhor hipótese, terse-ia ao menos de considerar revogado por aquela Carta.65 53. A solução do atual Código de Processo Civil - No anteprojeto BUZAID, rezava o art. 525: “A sentença, proferida por tribunal estrangeiro, não terá eficácia e execução no Brasil, senão depois de homologada pelo Supremo Tribunal Federal.” A redação, por força talvez da preocupação com a clareza, era redundante: o efeito executório não é mais que um dos aspectos da eficácia da sentença. A Comissão Revisora sugeriu que se suprimissem as palavras “e execução”. Já com a supressão passou o dispositivo ao projeto, e assim foi aprovado pelo Congresso. Provavelmente se recomendará, de lege ferenda, regime menos rigoroso, que facilite, para o interessado, a invocação eficaz de sentença estrangeira: é a tendência predominante no mundo de hoje, reflexo do fenômeno da “globalização”, que não se reduz ao terreno econômico.66 Todavia, de lege lata, e sem prejuízo do que se dirá no item subseqüente (54), não pode haver dúvida sobre a necessidade da homologação para que a decisão alienígena surta, no território brasileiro, quaisquer efeitos sentenciais, sejam principais ou secundários. É toda a eficácia da sentença como ato decisório, e não apenas o efeito executivo (ao qual especificamente se refere o art. 584, nº IV, que depende da homologação. Sem esta, pois, em vão se invocará, a propósito de alguma causa ajuizada perante órgão nacional, a autoridade de coisa julgada que a sentença haja assumido no Estado de origem. Excluída fica, em qualquer caso, a admissibilidade de delibação incidental: o controle dos requisitos indispensáveis ao reconhecimento não pode ser feito senão em processo a tal fim especialmente ordenado.67 54. Efeitos independentes da homologação - A eficácia a que se refere o art. 483, e da qual se tratou no comentário anterior, é a que tem a sentença estrangeira como ato decisório. Quanto a essa, para que se manifeste no Brasil, é indispensável, sem sombra de dúvida, a homologação. Não quer isso dizer, todavia, que nenhum efeito se possa reconhecer, independente dela, ao julgado alienígena, no território nacional. Aliás, pelo menos um se tem de admitir que ele produza desde logo - se presentes, é claro, todos os requisitos -: o de gerar, para quem haja de fazê-lo valer aqui, o direito à homologação.68

Mas também como documento, utilizável para fins probatórios, a sentença estrangeira pode mostrar-se apta a surtir efeitos no território nacional, independentemente do ato formal de reconhecimento. É concebível que se torne necessário, em processo instaurado perante a Justiça brasileira, provar o próprio fato da prolação de uma sentença, pela Justiça de outro Estado, sobre determinada matéria, v.g., se esse evento foi previsto como condição suspensiva ou resolutiva em certo ato jurídico, e o juiz nacional tem de verificar se ocorreu o implemento da condição; em tal hipótese, não se há de reclamar a homologação para que seja utilmente exibido em juízo, como prova do fato, o documento em que se corporifica a sentença estrangeira. A opinião predominante limita essa eficácia probatória aos acontecimentos que tenham surgido no processo mesmo: assim, por exemplo, além da decisão em si, com as características que lhe são inerentes (data da prolação, especificação do órgão que a proferiu etc.), o comparecimento de tais ou quais pessoas à audiência, os incidentes nela porventura ocorridos e registrados, e outros desse gênero. Não a estende aos acontecimentos relevantes para o julgamento da causa pelo juiz alienígena, e a respeito dos quais tenha ele manifestado, na sentença, a convicção de estarem provados.69 São em menor número os autores que vão além,70 admitindo que a sentença estrangeira seja levada em conta inclusive como prova dos fatos apurados no processo onde se proferiu, sempre com a ressalva de que o valor probatório será aquele que, de acordo com sua livre convicção, lhe atribua o juiz nacional, de modo nenhum vinculado à valoração feita pelo órgão julgador, no Estado de origem. Há outro caso particular em que fica estreme de dúvida a aptidão do julgado alienígena para produzir efeitos no território nacional independentemente de qualquer formalidade: é o das decisões judiciais que “incidem diretamente sobre a lei (sobre o direito objetivo) do ordenamento em que são emitidas”,71 por exemplo declarando inconstitucional determinada norma, e com isso - conforme sucede em mais de um país - privando-a de todo valor jurídico, eliminando-a, a bem dizer, do ius positum. É claro que, se o juiz nacional, à luz das regras do direito internacional privado, deve aplicar, no julgamento de uma causa, o direito estrangeiro, há de aplicá-lo tal qual é, e portanto não poderá desprezar o fato de que já não existe nele a norma fulminada pela decisão. Seria absurdo imaginar aqui que a eficácia desta ficasse condicionada à homologação por órgão brasileiro. 55. Competência para a homologação - A generalidade dos ordenamentos em que as sentenças estrangeiras são reconhecidas por ato formal e específico atribui ao Poder Judiciário a competência para praticá-lo. Poucas as legislações que a têm deferido a órgãos executivos, ou integrantes da estrutura administrativa.72 Assim já foi entre nós, na vigência do Dec. nº 7.777, de 27.07.1880, quanto às decisões proferidas em Estados que não agasalhassem o princípio da reciprocidade em relação ao Brasil: tais decisões se tornavam “exeqüíveis no Império” mercê de exequatur concedido pelo Governo (art. 1º) e equivalente, para todos os efeitos, ao “cumpra-se” judicial (art. 2º). Como antes se registrou, o sistema de reconhecimento por ato do Poder Judiciário comporta duas modalidades: ou se autoriza a prática do ato formal a uma pluralidade de órgãos, ou se concentra num só, em caráter privativo, a competência. Ao primeiro tipo

filiam-se, entre outros, o ordenamento italiano e o português (cf., supra, os comentários nºs 40 e 44). O segundo é o do direito brasileiro moderno. Com a Lei nº 221, de 20.11.1894, art. 12, § 4º, fez-se competente para a homologação exclusivamente o Supremo Tribunal Federal. Já aludimos às dúvidas iniciais, logo dissipadas, sobre a constitucionalidade daquele dispositivo legal (vide, supra, o comentário nº 41). As posteriores Cartas da República expressamente contemplaram a matéria, e a competência privativa e originária do Supremo Tribunal Federal continuava prevista no art. 119, nº I, letra g, da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, cabendo ao Plenário, nos termos do Regimento Interno de 18.6.1970, art. 7º, nº I, letra g, processar e julgar, originariamente, a homologação de sentenças estrangeiras. A Emenda Constitucional nº 7, de 13.4.1977, veio modificar o sistema, para atribuir a competência homologatória ao Presidente do Supremo Tribunal Federal (art. 119, § 3º, letra d, fine, da Carta então vigente). Explicar-se-ia a alteração pelo propósito de desafogar a Corte da sobrecarga de trabalho que estava a prejudicar-lhe o rendimento; mas, de um lado, afigura-se mal escolhido o ponto de ataque, pois os processos de homologação de sentenças estrangeiras, numericamente pouco significativos, não deviam representar fator ponderável na matéria; de outro, o intuito mesmo de aliviar o Supremo Tribunal Federal parece ter acabado por desempenhar, na reforma constitucional, função bastante secundária, à vista das novas atribuições outorgadas à Corte73 - acréscimo que dificilmente encontraria compensação adequada na perda da competência para homologar decisões alienígenas. Pela Emenda nº 4, de 4.5.1977, o Supremo Tribunal Federal modificou o seu Regimento Interno, para adaptá-lo à nova sistemática constitucional. Acrescentou-se ao art. 14, nº IX, que contemplava, entre as atribuições do Presidente, a de “conceder exequatur às cartas rogatórias”, a cláusula “e homologar sentenças estrangeiras”; a par disso, eliminouse do elenco do art. 7º, que tratava da competência do Plenário, a referência à homologação, até aí contida na letra g do inciso I. O novo Regimento Interno, de 15.10.1980, nos arts. 13, nº IX, e 215, fine, reiterou a exclusiva competência do Presidente na matéria. Provavelmente porque insatisfatórios os resultados da experiência, a Emenda Regimental nº 1, de 25.11.1981, viria a dar, em parte, marcha-à-ré: instituiu-se sistema misto, em que a homologação de sentenças estrangeiras compete ao Plenário ou ao Presidente, conforme haja ou não haja impugnação ao pedido, respectivamente. É o que decorre do acréscimo de uma letra (i) ao inciso I do art. 6º e das alterações introduzidas na redação dos arts. 13, nº IX, 215, 219, parágrafo único, 222 e 223 do Regimento. Infere-se dessa mudança que o Supremo Tribunal Federal interpretou a inovação da Emenda Constitucional nº 7 no sentido de haver facultado ao Regimento Interno deslocar do Plenário para o Presidente, no todo ou em parte, a competência para homologar sentenças estrangeiras. O manifesto entendimento da Corte é o de que se lhe permitia repartir a atribuição entre um e outro órgão, segundo o critério que lhe parecesse conveniente. Semelhante posição tavez encontrasse apoio na circunstância de que a Emenda Constitucional nº 7 não cancelara o texto da Carta da República que deferia a

competência ao Tribunal, e não ao seu Presidente (art. 119, nº I, letra g, fine). Seria uma forma de conciliar as duas disposições constitucionais, de sintonia muito discutível... O problema veio a desaparecer com o advento da Constituição de 1988, cujo art. 102, nº I, letra h, inclui entre as causas da competência originária do Supremo Tribunal Federal a homologação das sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, mas acrescenta que uma e outra “podem ser conferidas pelo regimento interno a seu Presidente”. Subsiste assim - já agora com expresso amparo constitucional - a disciplina regimental vigente. 56. Natureza do processo de homologação - O processo de homologação de sentença estrangeira tem natureza tipicamente jurisdicional. Não se inclui no domínio da chamada jurisdição voluntária. Basta ver que ele tende à emissão de um pronunciamento através do qual, exatamente, se confere à decisão alienígena idoneidade para produzir, no território nacional, efeitos como sentença; ou, em outras palavras, através do qual se lhe comunica a força de um ato de jurisdição praticado no Brasil. Ora, seria ilógico “reconhecer natureza administrativa” - como a reconhecida, em geral, às providências de jurisdição voluntária - “ao ato com que o juiz atribui a outro ato eficácia jurisdicional”.74 Alegou-se, em contrário, que no processo de homologação não se cuida de compor uma lide, mas apenas de averiguar a existência de determinados pressupostos atinentes à decisão homologanda, limitada a essa matéria a possibilidade de debate, sem que haja lugar para discussão do “mérito”.75 Sem embargo da autoridade com que se formulou, porém, não convence a argumentação. Aquele que requer a homologação da sentença estrangeira pretende, sem dúvida, um bem, que consiste na atribuição de eficácia sentencial, no território brasileiro, à decisão alienígena, sem a qual não poderá o requerente fazê-la valer no Brasil. A isso se opõe o interessado em que não se faça valer a sentença estrangeira em nosso país - e aí está o conflito de interesses, a “lide”, no sentido carneluttiano. Que de fato, às vezes, deixe de haver impugnação é circunstância irrelevante: se descaracterizasse o processo como jurisdicional, ter-se-ia de relegar ao plano da jurisdição voluntária todo e qualquer feito que corresse à revelia do réu. Também nada importa que, apesar da ausência de impugnação, tenha o órgão julgador de apurar a presença dos requisitos de homologabilidade: salvo casos excepcionais, taxativamente previstos na lei, a falta de contestação não exclui só por si o dever do juiz de verificar a procedência do pedido - pois, ainda quando se hajam de reputar verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (cf. art. 319), ao menos as questões de direito precisam ser enfrentadas. Nada de estranhar, por outro lado, que o contraditório se restrinja à satisfação ou não dos requisitos de homologabilidade: se o de que se trata é saber se merece ou não atendimento o pedido de homologação, e uma coisa depende exclusivamente da outra, é natural e normal que outras questões permaneçam à margem do debate. Nisso não há singularidade alguma: em qualquer processo, a discussão versa substancialmente sobre a presença ou ausência dos pressupostos de procedência do pedido. Dizer que não se toca no “mérito” é petição de princípio: dá-se por demonstrado o que se tinha o ônus de demonstrar, isto é, que o mérito, no processo de homologação, ou coincide com o da

causa julgada pela sentença estrangeira, ou pura e simplesmente não existe. Manifesto o vício lógico do raciocínio. 57. A ação de homologação - Deve entender-se, pois, que aquele que requer a homologação de sentença alienígena propõe verdadeira ação, naturalmente distinta quer da ação exercitada no Estado de origem, quer da eventualmente exercitável, com o mesmo fundamento e objeto desta, no Brasil.76 O órgão nacional não reexamina o mérito da causa processada perante a Justiça estrangeira: mas sem dúvida lhe cabe, desde que satisfeitos os pressupostos processuais e as condições do legítimo exercício da ação de homologação, julgar o mérito desta nova causa, que com a outra não se confunde. Quando o Presidente ou o Plenário do Tribunal, ao verificar a concorrência de todos os requisitos de homologabilidade, acolhe o pedido, e bem assim quando, por faltar um ou mais de um deles, rejeita o pedido de homologação, está a pronunciar-se de meritis (cf. o art. 269, nº I, do Código). Não importa que se trate de questões a serem resolvidas à luz de regras processuais, como a de saber se a decisão homologanda transitou em julgado: embora raro, nada tem de anômalo o fato de serem regidas pelo direito processual as questões de mérito.77 Legitima-se à propositura da ação qualquer das pessoas para as quais possa surtir efeitos a sentença homologanda: as partes do processo estrangeiro (ou seus sucessores) e mesmo terceiros suscetíveis de serem atingidos em sua esfera jurídica, de acordo com as normas do ordenamento de origem sobre extensão subjetiva da eficácia da sentença e da autoridade da coisa julgada. Frise-se que por “partes” tanto se entendem a vencedora quanto a vencida no feito alienígena, nada importando quais sejam uma e outra - autor ou réu. À parte vencida seria pouco razoável negar a priori até o interesse - requisito que se não confunde com o da legitimação - em fazer homologar o julgado estrangeiro: perfeitamente se concebe que lhe seja necessário e útil assegurar o respectivo reconhecimento no território nacional. Isso é evidente em se tratando de sentenças de estado; por exemplo: se A propusera no exterior ação de investigação de paternidade contra B, e vira julgado improcedente o pedido, só mediante a homologação ficará em condições de invocar a sentença para impugnar alguma pretensão (v.g., a alimentos) que em face de A venha porventura a ser formulada, no Brasil, por B ou sucessor seu, com suposto arrimo na relação de parentesco que o órgão do outro Estado declarara inexistente. Mas o interesse do vencido é configurável mesmo quanto à sentença condenatória, cuja execução em nosso território o art. 570 do Código o autoriza a instaurar; ora, a instauração naturalmente pressupõe que se tenha homologado a condenação proferida no estrangeiro.78 Sendo dois ou mais os legitimados, podem agir em conjunto; apesar da infeliz disposição do art. 47, embora unitário, pois - a menos que a decisão seja objetivamente complexa, com capítulos distintos que digam respeito, em separado, a cada um dos litisconsortes (tot capita quot sententiae) - obrigatoriamente se concederá ou se negará a homologação para todos os co-autores, o litisconsórcio ativo não é, em absoluto, necessário. Aliás, seria manifestamente absurda a conseqüência: impedir-se o legitimado de obter a homologação, caso qualquer dos outros se recusasse a acompanhá-lo na demanda.

No que tange à legitimação passiva, em princípio caberá a todos aqueles contra quem se possa fazer valer a sentença homologanda. O litisconsórcio passivo, entretanto, nem sempre é necessário, ou unitário. Pense-se nesta hipótese, amplamente examinada na jurisprudência e na doutrina italianas:79 a decisão estrangeira condenou solidariamente vários co-devedores; quer o credor promover-lhe a execução contra o único dentre eles que tem bens no território nacional; nenhum sentido teria forçá-lo a chamar todos ao juízo da homologação. E acrescente-se: ainda fora de tal caso, nada impediria - por não ser unitário o litisconsórcio - que o órgão competente para o julgamento deferisse a homologação em face de um (ou de alguns) dos devedores solidários demandados e a indeferisse no tocante a outro(s), v.g., porque não regularmente citado(s) este(s) para o processo alienígena. Regime especial é o da sentença estrangeira concessiva de alimentos. Há sobre a matéria a convenção de Nova Iorque, assinada em 20.6.1956, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 10, de 13.11.1958, e promulgada pelo Decreto nº 56.826, de 2.9.1965.80 O art. II, nº 2, da convenção prevê a designação, pelo Estado contratante, de um “organismo público ou particular” para exercer em seu território as funções de “instituição intermediária”, à qual competirá, nos termos do artigo IV, nº 1, tomar, em nome do alimentando, e nos limites dos poderes por este conferidos, “quaisquer medidas apropriadas para assegurar a prestação dos alimentos”, inclusive “fazer executar qualquer sentença, decisão ou outro ato judiciário”. Em nosso país, atua como “instituição intermediária” a ProcuradoriaGeral da República (Lei nº 5.478, de 25.07.1968, art. 26, caput, fine), que promove, assim, a homologação, como representante do interessado. 58. Procedimento - Disciplinam o procedimento os arts. 218 a 223 do novo Regimento Interno (em vigor desde 1º.12.1980), com as alterações introduzidas pela Emenda Regimental nº 1, de 25.11.1981. A petição inicial deve conter as indicações exigidas pela lei processual e ser instruída com a certidão ou cópia autêntica do texto integral da sentença homologanda e com outros documentos indispensáveis, devidamente traduzidos e autenticados (art. 218). Ao Presidente incumbe examinar a inicial, para verificar se preenche os requisitos mencionados e se não contém “defeitos e irregularidades que dificultem o julgamento”. Sendo necessário, concederá ao requerente o prazo de dez dias para emendar ou completar a petição, sob pena de indeferimento (art. 219, caput). Deferida a inicial, cita-se o requerido para contestar em quinze dias - por oficial de justiça, mediante carta de ordem, se domiciliado no Brasil; pela forma estabelecida na lei do país, se no estrangeiro, expedindo-se carta rogatória; por edital, caso se encontre o citando “em lugar ignorado, incerto ou inacessível” (art. 220 e seus parágrafos). A contestação só poderá versar, de meritis, sobre a autenticidade dos documentos, a inteligência da sentença e a observância dos requisitos de homologabilidade (art. 221, caput).81 Quer isso dizer que ao requerido não aproveita qualquer alegação concernente à injustiça da sentença, nem a vícios do processo alienígena, ressalvados apenas os que o direito pátrio considera impeditivos do reconhecimento: v.g., incompetência do juiz estrangeiro. Mas é claro que, além de defender-se no mérito, pode o requerido argüir preliminares atinentes à própria ação de homologação (por exemplo: falta de legitimação ad causam, ativa ou passiva), ou ao processo em que se exercita essa ação (por exemplo:

incapacidade do requerente, nulidade da citação). O deferimento da inicial, convém lembrar, não é preclusivo no que tange à verificação das chamadas “condições da ação” e dos requisitos de validade do processo. Se o requerido for incapaz ou ficar revel, dar-se-lhe-á curador especial, que será pessoalmente notificado (art. 221, § 1º). Apresentada que seja a contestação, admitir-se-á réplica em cinco dias (art. 221, § 2º). Em qualquer caso, ouvir-se-á em seguida o Procurador-Geral da República, que emitirá parecer num decêndio, funcionando tipicamente como custos legis (art. 221, § 3º). Daí em diante, bifurca-se o procedimento em dois esquemas distintos, consoante haja ou não haja impugnação, por parte do requerido, do curador especial ou do Procurador-Geral da República. Se a houver, transfere-se ao Plenário a competência, distribuindo-se o processo a um relator (art. 223, caput, cf. o art. 6º, nº I, letra i), a quem caberão os demais atos relativos ao andamento e à instrução do feito, bem como o pedido de dia para julgamento (art. 223, parágrafo único). Não havendo impugnação, tocará ao próprio Presidente decidir sobre o pedido de homologação da sentença estrangeira (art. 222, caput; cf. o art. 13, nº IX, fine). O acórdão do Plenário, qualquer que seja o seu teor, é irrecorrível, salvo, naturalmente, por embargos de declaração. Para os casos de competência do Presidente, prevê o art. 222, parágrafo único, o cabimento de agravo regimental contra a decisão “que negar a homologação”. A contrario sensu, não caberia o agravo quando o Presidente homologa a sentença estrangeira, apesar dos termos amplos do art. 317, caput. O art. 39 da Lei nº 8.038, de 28.5.1990, ainda em vigor, concede agravo, em termos genéricos, contra qualquer decisão de Presidente de Tribunal “que causar gravame à parte”; mas a parte final do dispositivo (“para o órgão especial, seção ou turma, conforme o caso”), dá a entender que ele não se aplica ao Supremo Tribunal Federal, onde não há “órgão especial”, nem teria sentido que do pronunciamento do Presidente se recorresse para uma Turma. Em todo caso, é pelo menos duvidoso que a inexistência de recurso, na hipótese em tela, se compadeça com a garantia consagrada no art. 5º, nº LV, fine, da Constituição da República. O julgamento do agravo compete ao Plenário (art. 6º, nº II, letra d). Pode o processo da homologação extinguir-se sem exame do mérito, “se o requerente não promover, no prazo marcado, mediante intimação ao advogado, ato ou diligência que lhe for determinado” no respectivo curso. Assim dispõe o art. 219, parágrafo único, que todavia não exclui, à evidência, outras hipóteses de solução igual: de modo algum fica afastada, v.g., a possibilidade de o requerente desistir da ação (Código de Processo Civil, art. 267, nº VIII). 59. Requisitos de homologabilidade - O pedido de homologação será julgado procedente, se estiverem satisfeitos todos os requisitos de homologabilidade da sentença estrangeira; improcedente, no caso contrário. Pressupõe-se, é claro, que o Presidente ou o Plenário do Supremo Tribunal Federal tenha chegado a apreciar o mérito, por não haver, no processo da homologação, vício que lho impeça, nem faltar alguma condição do legítimo exercício da ação de homologação.

De acordo com a Lei de Introdução ao Código Civil, são requisitos positivos de homologabilidade os arrolados no art. 15, letras a a d; e requisito negativo o apontado no art. 17. Nesta obra de comentários ao Código de Processo Civil, descabida seria a análise dos requisitos - matéria de que, certo ou errado, o Código se absteve de tratar. Vamos apenas enumerá-los: a) haver sido a sentença estrangeira proferida por juiz competente; b) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia; c) ter a decisão passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida; d) estar traduzida por intérprete autorizado; e) não ofender a soberania nacional, a ordem pública nem os bons costumes. Como já se registrou, inseriu o Supremo Tribunal Federal disposições a esse respeito no seu Regimento Interno, levando ao nosso ver longe demais o exercício da competência normativa então prevista na Carta da República. O teor das regras insertas no Regimento Interno pouco discrepa do que consta da Lei de Introdução ao Código Civil. Enquanto aqui se reclama que a sentença venha “traduzida por intérprete autorizado” (art. 15, letra d), ali se fala em “tradução oficial” (R.I., art. 217, nº IV). No mesmo dispositivo exige o Regimento Interno a autenticação da sentença pelo cônsul brasileiro, ponto omisso na Lei de Introdução ao Código Civil. A divergência mais importante consistia em que esta se refere a “ter passado em julgado” a decisão alienígena, e o Regimento Interno de 1970 falava de ser ela “irrecorrível”: as duas expressões traduzem igual conceito no sistema jurídico pátrio, não porém noutros sistemas, em que o trânsito em julgado não pressupõe a preclusão total dos recursos.82 Cessou o descompasso com a reforma regimental de 1980: o atual art. 217, nº III, principio, reproduz a fórmula da Lei de Introdução ao Código Civil. Ainda uma observação: admitida, em tese, a homologabilidade não só de atos que se apresentem como verdadeiras sentenças no Estado de origem, mas também daqueles que apenas o sejam segundo a concepção do direito brasileiro, certa cautela é indispensável na interpretação e aplicação das normas onde se estabelecem os pressupostos da homologação, e cujo teor literal em regra espelha unicamente id quod plerumque fit. Assim, por exemplo, diante de expressões como “juiz competente”, “partes citadas”, “revelia”, “passado em julgado” e outras que tais, se se trata de decisão proferida por órgão não judicial, cumpre ao intérprete raciocinar analogicamente, mutatis mutandis. 60. Irrelevância do decurso do tempo - Põe-se a questão de saber se o decurso do tempo é capaz de tornar não homologável a sentença estrangeira, ou pelo menos de ministrar ao réu, no processo da homologação, defesa eficazmente oponível ao pedido. Em outras palavras: se há cogitar, nesta matéria, de decadência, ou de prescrição. A fixação de prazo decadencial seria, de lege ferenda, concebível, e disso há exemplos no direito comparado: consoante já se assinalou, na antiga União Soviética, a par de outros requisitos, exigia-se que o interessado requeresse o reconhecimento da decisão alienígena dentro dos três anos subseqüentes ao respectivo trânsito em julgado (art. 63 dos Princípios do Processo Civil); a lei israelense de 1958, nº 5, torna inadmissível, em regra, o pedido de reconhecimento feito mais de cinco anos após a prolação da sentença estrangeira. Entre nós, de lege lata, nada existe de semelhante. Quanto à possibilidade de prescrição, fica ao nosso ver preexcluída pela simples circunstância de ser constitutiva a

ação de homologação, na qual se exercita direito potestativo: somente as pretensões, em sentido técnico - deduzíveis sempre em ações condenatórias - é que podem prescrever.83 Surpreende que, na doutrina italiana, vozes autorizadas tenham sustentado a prescritibilidade, sujeita ao prazo ordinário, da ação de delibazione.84 Resta verificar se tem alguma relevância, em tema de homologabilidade, a eventual prescrição superveniente ao julgado estrangeiro, de acordo com o ordenamento de origem. Limita-se o problema, é claro, ao âmbito das sentenças alienígenas condenatórias - as únicas em relação às quais se poderia pensar em prescrição superveniente. Aqui também a resposta é negativa.85 Em primeiro lugar, o ius positum não inclui essa entre as defesas admissíveis na ação de homologação (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, art. 221, caput). Nem se diga que a sentença se torna inexeqüível em virtude da prescrição superveniente; ao menos em se tratando de direito patrimonial (e difícil, senão impossível, cogitar de outro), corre ao devedor o ônus de alegar tal circunstância (Código Civil, art. 166; Código de Processo Civil, art. 219, § 5º, aplicável à execução nos termos do art. 598). Ora, a oportunidade própria para tanto é a dos embargos (Código de Processo Civil, art. 741, nº VI), que pressupõe execução deferida e instaurada. Se o devedor não a embargar, ela prosseguirá normalmente, sem que ao juiz seja lícita qualquer iniciativa em contrário. Logo, não cabe sequer afirmar a priori que a homologação do julgado estrangeiro, no caso de prescrição superveniente, constitua providência inútil ao ângulo prático.86 Aliás, não é unicamente para ser executada no Brasil que a decisão alienígena precisa de homologação. Pode visar o requerente a fazê-la homologar para outro fim, v.g., para ficar em condições de invocar-lhe a autoridade de coisa julgada em processo que porventura se venha a instaurar perante a Justiça nacional (cf., supra, o comentário nº 53). Não seria razoável negar-lhe o interesse de agir. Conclui-se que o decurso do tempo, por si só, e prolongado que seja, em caso algum serve de empecilho à homologação de sentença estrangeira. É total a irrelevância. 61. Natureza e força da decisão - A decisão que acolhe o pedido de homologação de sentença estrangeira, seja qual for a natureza desta, é constitutiva:87 cria situação jurídica nova, caracterizada pelo fato de passar a sentença homologada a produzir no território brasileiro, total ou parcialmente, os efeitos que lhe atribua o ordenamento de origem. A decisão que rejeita o pedido de homologação, por falta de um ou alguns dos requisitos de homologabilidade, é naturalmente declaratória negativa. Em ambas as hipóteses, trata-se de decisão de mérito, proferida em processo autenticamente jurisdicional (vide o comentário nº 56), através do qual se exercitou verdadeira ação (vide o comentário nº 57). Por conseguinte, quer conceda, quer recuse homologação à sentença alienígena, a decisão do Presidente ou do Plenário do Supremo Tribunal Federal reveste-se da autoridade de coisa julgada no sentido material.88 O resultado do processo fica a salvo de futuras contestações ou modificações, ainda em feitos diversos (cf. art. 467), a não ser, eventualmente, por meio de ação rescisória, que pode caber (cf., infra, o comentário nº 69 ao art. 485).

No caso de improcedência do pedido, forma-se a res iudicata inclusive quando se tenha deixado de homologar o julgado estrangeiro por falta da prova de algum requisito.89 Somente expressa disposição legal - como a do art. 18 da Lei nº 4.717, de 18.6.1965, que disciplina a ação popular, ou a do art. 16 da Lei nº 7.347, de 24.7.1985, referente à ação civil pública - autoriza, no direito pátrio, nova propositura de ação, com o mesmo fundamento e igual pedido, ainda que este haja sido rejeitado unicamente por inexistência de prova bastante. Fora das hipóteses previstas, a título excepcional, não há cogitar de julgamento “allo stato degli atti”, proferido em caráter provisório, sem prejuízo da possibilidade de renovar-se o pleito quando porventura se obtenham outras provas. Seria inaceitável, ao menos para o ordenamento brasileiro, qualquer construção desse tipo com referência à ação de homologação de sentença estrangeira.90 O que não se exclui é a ação rescisória do art. 485, nº VII, desde que o documento novo conseguido pela parte preencha os requisitos ali postos. Uma vez rescindida a decisão denegatória da homologação, afastado estará o óbice da coisa julgada, e nada impedirá que, no iudicium rescissorium, se reexamine e talvez se acolha o pedido. Isso, porém, nada tem de peculiar à ação de homologação. Outro caso, diferente dos anteriores,91 é o de vir a configurar-se, depois de julgado improcedente o pedido, o requisito cuja falta obstou à homologação. Isso se concebe em mais de uma hipótese. Por exemplo: o autor pedira que se homologasse a sentença alienígena fundando-se, além do mais, no respectivo trânsito em julgado, que se afirmava já ocorrido; mas no processo apurou-se que a decisão na verdade ainda não passara em julgado, e por isso rejeitou-se o pedido. Não há impedimento a que, mais tarde, o autor volte a pleitear a homologação da mesma sentença, com fundamento no superveniente trânsito em julgado, e que o Presidente ou o Plenário do Supremo Tribunal, verificando a efetiva ocorrência deste no meio-tempo, homologue agora a decisão estrangeira. Inexistirá ofensa à res iudicata, como inexiste sempre que o fato constitutivo sobrevém ao encerramento do primeiro processo: análoga seria, v.g., a hipótese de ter-se julgado improcedente ação de divórcio, porque ainda não decorrido o prazo do art. 40 da Lei nº 6.515, e tornar depois o autor a juízo, uma vez atingido o necessário limite de tempo. Tanto nesse caso quanto no acima figurado - renovação do pedido de homologação por haver transitado em julgado a sentença alienígena, após a decisão de improcedência - a rigor ocorre diversidade na causa petendi: não é a mesma coisa ter-se completado no dia x o prazo da separação e ter-se completado tal prazo no dia y, assim como tampouco é a mesma coisa ter passado em julgado no dia x a sentença estrangeira e ter ela passado em julgado no dia y. Não se trata, pois, de uma única ação intentada duas vezes, mas de duas ações distintas (cf. art. 301, §§ 1º a 3º). Ofensa à res iudicata existiria, sim - vale repetir -, se o autor repelido viesse a insistir em que o prazo da separação se completara, ou que a decisão alienígena passara em julgado, na data mesma primitivamente afirmada, e o órgão judicial se abalançasse a reapreciar a causa, apenas porque desse fato se houvesse ministrado, no segundo processo, a prova não produzida no primeiro. Ao raciocínio acima exposto, segundo o qual a superveniência do requisito antes insatisfeito - isto é, do fato constitutivo negado no feito anterior - importa modificação da

causa petendi, não colheria a objeção de que, se o evento ocorre na pendência do processo, será tomado em consideração pelo juiz, ao sentenciar, nos termos do art. 462. Impossível discutir aqui a questão de saber se esse dispositivo abre ou não abre exceção à regra da inalterabilidade da causa de pedir (art. 264). Há, de qualquer modo, a norma expressa, a que se tem de atender. Assim, por exemplo, se no curso do processo de homologação transita em julgado a sentença estrangeira, estando satisfeitos todos os outros requisitos, deve homologá-la o Presidente ou o Plenário do Supremo Tribunal Federal. 62. Relações entre o processo de homologação e o processo instaurado no Brasil sobre a lide já decidida por Justiça estrangeira92 - São manifestamente diversas, ao menos no pedido e na causa petendi, a ação em que se pleiteie a homologação de sentença alienígena sobre determinada lide e a ação em que se pretenda ver julgada a mesma lide por órgão nacional. Daí se infere, desde logo, que a pendência do processo de homologação não obsta ao exercício, perante a Justiça brasileira, de ação em que se venha a postular o direito declarado na sentença estrangeira homologanda. (Note-se, de passagem, que menos ainda o impediria, no sistema do Código, a mera pendência da ação perante a Justiça de outro Estado - cf. o art. 90 -, nem o trânsito em julgado da sentença lá proferida.) Suponhamos agora que, ao ajuizar-se o pedido de homologação perante o Supremo Tribunal Federal, semelhante ação já esteja em curso perante outro órgão da nossa Justiça. Revela o direito comparado que, em tal hipótese, algumas legislações93 afastam a possibilidade de vir a ser homologada a decisão alienígena. Ao prisma dogmático, não se trata de impedimento relacionado propriamente com a litispendência, que não se configura: haverá causa específica de inadmissibilidade, criada por expressa regra legal. Era essa a diretriz adotada pelo anteprojeto BUZAID, que arrolava, entre os requisitos de homologabilidade, o de não “pender, perante juiz brasileiro, ação idêntica proposta antes de passar em julgado a sentença estrangeira”(art. 526, nº VI); mas o dispositivo, como os outros de natureza análoga, foi suprimido no projeto e não consta do Código. Portanto, o simples fato de estar pendente no Brasil - em qualquer grau de jurisdição - processo relativo à lide anteriormente julgada noutro Estado não constitui óbice a que se pleiteie a homologação da sentença alienígena, nem exclui que o Supremo Tribunal Federal a conceda, satisfeitos os pressupostos legais.94 Embora distintas a ação de homologação e a ação que se proponha, em nosso país, sobre a mesma lide, surge contudo a possibilidade de interferências recíprocas no plano da coisa julgada - e isso pela circunstância de que, homologada a sentença estrangeira, passaria ela a produzir no território nacional, com o trânsito em julgado da homologação, a sua própria auctoritas rei iudicatae. A primeira hipótese que merece exame é a de anteriormente haver passado em julgado a decisão brasileira. Abstraindo-se, é claro, de sua eventual rescisão, já não será possível obter-se a homologação de sentença alienígena que também haja decidido a lide.95 Com efeito, seja qual for o conteúdo dessa decisão, coincidente ou não com o da brasileira, a sua eventual homologação, tornando-a eficaz em nosso país, importaria ofensa à res iudicata da sentença nacional.

Reciprocamente, trânsita em julgado a homologação antes de decidida a lide pela Justiça brasileira, já não será lícito a esta pronunciar-se sobre a matéria - ainda aqui, com a ressalva da rescisão superveniente da decisão homologatória. No feito que acaso se instaurasse, no Brasil, sobre a mesma lide, tocaria à parte suscitar a preliminar de coisa julgada, ou ao próprio juiz reconhecê-la de ofício (arts. 267, nº V e § 3º, e 301, nº VI e § 4º), e a conseqüência seria a extinção do processo sem julgamento do mérito. Se porventura a existência da res iudicata passasse despercebida, e sobreviesse sentença definitiva, caberia contra ela ação rescisória, com fundamento no art. 485, nº IV. Já a decisão que nega homologação à sentença estrangeira não gera obstáculo algum a que a Justiça brasileira decida livremente a lide em processo que perante ela se instaure. O que passou em julgado foi apenas a declaração da inexistência do direito à homologação, e não a declaração da existência ou inexistência do direito postulado no processo alienígena, estranho ao objeto do juízo de delibação.96 Art. 484. A execução far-se-á por carta de sentença extraída dos autos da homologação e obedecerá às regras estabelecidas para a execução da sentença nacional da mesma natureza. Direito anterior - Dec. nº 6.982, de 27.7.1878, art. 6º; Dec. nº 7.777, de 27.7.1880, art. 3º; Lei nº 221, de 20.11.1894, art. 12, § 4º, letra d; Código de Processo Civil de 1939, art. 794, 1ª parte. Direito comparado - Costa Rica, Código Procesal Civil, art. 708, 2ª e 3ª alíneas; Espanha, Ley de Enjuiciamiento Civil, art. 523, nº 2; Guatemala, Código Procesal Civil y Mercantil, art. 346, 2ª alínea; Panamá, Código Judicial, art. 1.410, 5ª alínea; Portugal, Código de Processo Civil, art. 95; Uruguai, Código General del Proceso, art. 541. COMENTÁRIO 63. Execução da sentença estrangeira homologada - Homologada a sentença estrangeira, passa ela a produzir, no território nacional, os efeitos que tinha, segundo o ordenamento de origem, e não hajam sido excluídos na homologação. Figurando entre esses o efeito executório, a homologação converte a sentença em título executivo (cf. o art. 584, nº IV). A execução obedecerá às normas aplicáveis à de sentença nacional da mesma natureza. A regra é tradicional em nosso direito: vem do primeiro diploma que no Brasil disciplinou a matéria, o Dec. nº 6.982, de 27.7.1878. Hoje a repete o art. 224 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, em vigor desde 1º.12.1980, cuja redação muito se assemelha à do art. 484 do Código. A competência para o processo de execução pertence, no primeiro grau de jurisdição, aos juízes federais (Constituição da República, art. 109, nº X). Abre-se ao executado a possibilidade de opor embargos, invocando qualquer dos fundamentos que teria para embargar execução de sentença brasileira. Alguns dos incisos

do art. 741, todavia, reclamam aqui interpretação cuidadosa. A “falta ou nulidade de citação no processo de conhecimento”, no inciso I, só tem relevância quanto à citação para o processo de homologação, não para o processo realizado no outro país, onde se proferiu a decisão homologada: essa é matéria que já se terá examinado como requisito de homologabilidade, e está preclusa. Consideração análoga vale para a “revelia” a que alude o texto. No inciso VI, fine, a “sentença” de que se trata é a alienígena: basta a superveniência da “causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação” ao julgado que se homologou; não é necessária - embora seja suficiente, é claro, a fortiori - a superveniência à decisão homologatória. É que nesses casos, ao contrário do que se dá nos anteriormente referidos, a apuração do possível fato impeditivo, modificativo ou extintivo não constituiu, nem poderia ter constituído, objeto do juízo de homologação (cf., no tocante à prescrição, o que se disse no comentário nº 60). Cuida-se de matéria nova, suscitável (pela primeira vez) nos embargos. Pode suceder que a decisão homologada não comporte execução, em sentido técnico, mas deva ser cumprida através de algum ato de registro, ou qualquer outro. Observar-se-ão, aqui também, as mesmas regras que se teriam de observar se se tratasse de sentença nacional de conteúdo idêntico. 64. A carta de sentença - A carta de sentença será extraída dos autos da homologação, mediante requerimento do interessado ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, ou ao relator, com agravo para o plenário, em caso de indeferimento (Regimento Interno, arts. 224, 347, nº I, 348 e 317). Por “interessado” há de entender-se, aí, não apenas o requerente da homologação, ou qualquer dos requerentes, mas também o devedor que haja sido réu no processo de homologação, e a quem é lícito, no sistema do Código, tomar a iniciativa da execução (art. 570). De acordo com o disposto no art. 349 do Regimento Interno, “a carta de sentença conterá as peças indicadas na lei processual e outras que o requerente indicar”, devendo autenticá-la o funcionário encarregado e assiná-la o Presidente, ou o relator. As peças indicadas na lei processual são: a autuação, a petição inicial, as procurações outorgadas pelas partes, a contestação e a sentença exeqüenda, tudo conforme reza o art. 590, nºs. I a IV, do Código. Não é pertinente, à evidência, o requisito do inciso V (despacho do recebimento do recurso): a enumeração do art. 590 foi redigida tendo em vista a execução provisória (cf. o art. 589). O requisito do nº IV (“sentença exeqüenda”) tem de ser interpretado como alusivo à sentença estrangeira e à decisão de homologação, pois nem uma, nem outra, por si só, constituiria título executivo: executa-se a sentença estrangeira homologada. Se tiver havido habilitação no processo de homologação, a carta conterá ainda a sentença que a julgou (art. 590, parágrafo único). Capítulo IV - DA AÇÃO RESCISÓRIA 65. Generalidades - Chama-se rescisória à ação por meio da qual se pede a desconstituição de sentença trânsita em julgado, com eventual rejulgamento, a seguir, da matéria nela julgada. O direito brasileiro, à semelhança de outros ordenamentos, conhece dois tipos de remédios utilizáveis contra decisões judiciais: os recursos e as ações

autônomas de impugnação. Em nosso sistema, o traço distintivo consiste em que, através de recurso, se impugna a decisão no próprio processo em que foi proferida, ao passo que o exercício de ação autônoma de impugnação dá sempre lugar à instauração de outro processo.1 A ação rescisória é o exemplo clássico dessa segunda espécie. Seria hoje anacronismo injustificável prolongar a controvérsia, que em certa época lavrou na doutrina, sobre a assimilação da ação rescisória à figura do recurso.2 Os meios de ataque às decisões judiciais ora são concebidos e regulados como recursos, ora como ações. Não há princípio algum a priori que obrigue a considerá-los todos como recursos. Os dados do ius positum é que são decisivos para a caracterização.3 Pode certo remédio figurar, neste ordenamento, entre os recursos, e o remédio correspondente ser tratado, naquele outro, como ação. A opção, de política legislativa, prende-se fundamentalmente a razões de conveniência, não sendo desprezível, ademais, a influência exercida, dentro de cada sistema jurídico, pelo peso da tradição. 66. Dados históricos e de direito comparado - Sabe-se que no direito romano a inobservância das regras processuais mais importantes e, em casos excepcionais, o próprio error in iudicando (sentença contra ius constitutionis) não precisavam ser denunciados nem através de recurso, nem por ação autônoma: determinavam pura e simplesmente a inexistência jurídica da decisão (nulla sententia, expressão onde o “nulla” significa “nenhuma”), alegável a qualquer momento, inclusive como obstáculo à actio iudicati. Aliás, a appellatio veio a florescer, no período da cognitio extra ordinem, como meio de ataque contra a sentença injusta, não contra a processualmente defeituosa, embora se ensine4 que às vezes o recurso era usado para obter a declaração de uma nulidade. Foi no direito intermédio, nos estatutos italianos, por influência dos elementos germânicos misturados aos de origem romana, que se julgou necessário criar, para a denúncia dos errores in procedendo, um remédio especial, a querela nullitatis, exercitável de modo autônomo, não propriamente como ação, mas por simples imploratio officii iudicis. Esse remédio comportava duas modalidades: a querela nullitatis sanabilis e a querela nullitatis insanabilis. Na maioria dos ordenamentos europeus, a primeira foi pouco a pouco absorvida pela apelação, e a segunda acabou desaparecendo, de modo que os motivos de invalidação da sentença passaram a ter de alegar-se por meio de recurso, sob pena de ficarem preclusos com o esgotamento das vias recursais.5 Diversa foi a evolução do direito português. No Código Filipino, a Ordenação do L. III, Tít. LXXV, principio, aludia, romanisticamente, à “sentença que é per Direito nenhuma, nunca em tempo algum passa em cousa julgada”, como seria, por exemplo, a proferida sem citação da parte, ou contra outra sentença anterior, etc. Entretanto, quer na doutrina, quer na prática judiciária, foi-se firmando a tese de que, mesmo em casos tais, a sentença conservava a auctoritas rei iudicatae enquanto não anulada.6 Essa a concepção recebida pelo direito brasileiro,7 e que bem se refletia no texto do Regulamento nº 737, de 25.11.1850, onde o art. 680 enumerava as hipóteses de sentença “nula”, mas o dispositivo subseqüente apontava os remédios pelos quais podia ela “ser anulada” - mostrando, com isso, não se tratar de nulidade pleno iure, mas de verdadeira anulabilidade. Entre os

aludidos remédios, a par da apelação, da revista e dos embargos à execução, figurava a ação rescisória (art. 681, § 4º). Ao contrário, pois, do que noutros países aconteceu, no velho Portugal e no Brasil subsistiu a dicotomia recursos - ações autônomas de impugnação.8 Deu-se o mesmo no ordenamento alemão e no austríaco, que, além dos recursos (Rechtsmittel), possuem a Nichtigkeitsklage e a Restitutionsklage ou Wiederaufnahmsklage, cabíveis contra decisões em processos encerrados.9 Nota-se aí uma subdivisão da classe das ações impugnativas autônomas. Ela se explica pela circunstância de que a querela nullitatis não constitui a única fonte histórica desse tipo de remédios contra sentenças. Concorreu igualmente para formá-lo a restitutio in integrum, de origem romana, mas bastante ampliada em seu campo de atuação no direito comum. Aqui, já não se tratava de vício processual que afetasse a validade da decisão, mas de existência de motivo que, segundo a eqüidade, justificasse o reexame da matéria julgada, a fim de impedir a cristalização definitiva de um resultado visto como iníquo. Era o que acontecia, por exemplo, na hipótese de dolo da parte vencedora ou do juiz, bem como, a partir de certa época, na do descobrimento, após o término do processo, de novas provas, capazes de modificar a convicção judicial.10 Nas legislações dos países germânicos, permaneceu nítida a marca da dualidade de fontes: a ação autônoma de impugnação, que ora assume fisionomia correspondente à da querela nullitatis, ora à da restitutio in integrum, recebe, num caso e noutro, diferentes denominações e submete-se mesmo a certa diversidade de tratamento.11 No direito brasileiro, a fusão foi mais completa: ambos os filetes históricos desembocaram na corrente da ação rescisória, apagando-se toda e qualquer distinção formal. Não significa isso que não se possam discernir, no elenco do art. 485, as hipóteses filiáveis à querela nullitatis e as que remontam à restitutio in integrum. O segundo grupo, aliás, apresenta maior vulto no sistema atual do que no Código anterior: o legislador de 1973 mostrou-se mais aberto que o de 1939 ao influxo da restitutio in integrum. Voltando à contraposição básica entre recursos e ações impugnativas autônomas, convém assinalar que ela não exclui o reconhecimento do fenômeno, aliás antigo, da interferência, ou - como já se dizia na fundamental tentativa de sistematização da matéria12 - da “contaminação” recíproca entre essas duas classes de remédios. Assim é que mediante apelação, v.g., cabe alegar vícios de atividade, errores in procedendo, e pedir não a reforma, senão a anulação da sentença; e, inversamente, a ação rescisória pode servir de veículo à denúncia de vícios de juízo, errores in iudicando, como na hipótese do art. 485, nº V, do Código de 1973, correspondente à prevista no art. 798, nº I, letra c, do estatuto de 1939. Não é exata, portanto, a correlação estabelecida por certos autores13 entre os termos do binômio recurso-ação impugnativa autônoma, de um lado, e os termos do binômio injustiça-invalidade da sentença, de outro. 67. Confronto entre o sistema do Código e o direito anterior - A leitura dos diversos incisos do art. 485 revela, desde logo, a ampliação dos casos de rescindibilidade no sistema do atual Código, em confronto com o que se dispunha no art. 798 do diploma de 1939. O primeiro traço que chama a atenção, na reforma processual de 1973, consiste pois em haver ela facilitado a rescisão das sentenças. Tal orientação denotava talvez no

anteprojeto BUZAID o intuito de contrabalançar, de um lado, a forte tendência a prestigiar - ao nosso ver, com exagero - a chamada “verdade formal”, através da consagração de numerosas presunções e nomeadamente do rigoroso tratamento dispensado ao revel; de outro lado, a redução do número de recursos: com efeito, haviamse eliminado não só a revista, mas também os embargos a acórdãos. É possível que se tenha achado conveniente, por tudo isso, permitir em termos mais amplos a revisão de decisões passadas em julgado. Manteve-se no projeto a diretriz, apesar de reincluídos os embargos infringentes no elenco dos recursos. Semelhante liberalização, por sua vez, tornava aconselhável que se abreviasse o prazo de propositura da rescisória, a fim de evitar que a autoridade da coisa julgada se visse por muito tempo sujeita a agressão, cuja possibilidade crescera. O anteprojeto, art. 535, e o projeto, art. 499, reduziam-no à quinta parte do fixado no Código Civil, art. 178, § 10, nº VIII: um ano. O Congresso elevou-o para dois anos, como se lê no art. 495. A admissibilidade da ação viu-se limitada no que concerne às decisões rescindíveis, que passaram a ser unicamente as sentenças de mérito (art. 485). Em compensação, eliminaram-se as restrições constantes do Código de 1939 quanto à rescindibilidade de decisões proferidas em ação rescisória: inexiste, no diploma novo, dispositivo equivalente ao do antigo art. 799, que excluía, em casos tais, o cabimento da ação com base na contrariedade a literal disposição de lei. A supressão da regra não significa que se hajam tornado irrescindíveis, pura e simplesmente, os julgamentos (de mérito) em ações rescisórias;14 muito ao contrário, dela se infere que tais julgamentos podem agora ser rescindidos em qualquer dos casos do art. 485, inclusive no de que trata o inciso V. O que não se admite é a mera reiteração: o fundamento da segunda rescisória tem de referir-se à decisão sobre a primeira, e não à anterior, impugnada por meio desta.15 Outras inovações de relevo foram: a disciplina expressa da legitimação ativa para a rescisória (art. 487), matéria sobre a qual era omisso o Código de 1939; o condicionamento da propositura ao depósito de 5% do valor da causa, a título de multa, para a hipótese de ser unanimemente declarado improcedente o pedido ou inadmissível a ação (art. 488, nº II); a previsão, também expressis verbis, da cumulação dos dois iudicia (rescindens e rescissorium), ponto a cujo respeito, no silêncio da lei anterior, muito se discutia em sede doutrinária e jurisprudencial. Inovou ainda o Código no tocante ao procedimento, a que manda aplicar disposições relativas ao ordinário, inclusive com as possibilidades de abreviação inerentes ao chamado “julgamento conforme o estado do processo” (art. 491, fine). Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV - ofender a coisa julgada; V - violar literal disposição de lei; VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória; VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa. § 1º Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido. § 2º É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato. Direito anterior - Ordenações Filipinas, L. III, Tít. LXXV; Regulamento nº 737, de 25.11.1850, art. 680; Código de Processo Civil do Rio Grande do Sul, art. 504; da Bahia, arts. 1.361 e 1.362, 3º; de Minas Gerais, arts. 173 e 174, nº 4; de Pernambuco, art. 173; do Distrito Federal, arts. 302 e 303, nº V; de São Paulo, arts. 348 e 359; Código Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, arts. 2.276 e 2.277, letra c; Código de Processo Civil de 1939, art. 798. Direito comparado - Alemanha: ZPO, §§ 578 a 581; Áustria: ZPO, §§ 529 e 530; Bélgica: Code Judiciaire, arts. 1.133 e 1.138; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, arts. 253 a 255, 297; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, art. 380; Costa Rica: Código Procesal Civil, arts. 591 a 595 e 619; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, arts. 630 e 642; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, arts. 469, 477, 501, 510; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 414; França: Code de procédure civile, arts. 595, 604 e 605; Grécia: Código de Processo Civil, art. 544; Índia: Code of Civil Procedure, Order 47, Rule 1; Itália: Codice di procedura civile, arts. 360 e 395; Japão: Código de Processo Civil, arts. 338 e 339; Panamá: Código Judicial, arts. 1.104 a 1.155, 1.189 e 1.190; Peru: Código Procesal Civil, art. 386; Portugal:

Código de Processo Civil, art. 771; Suécia: Código processual, Cap. 58, Secção I, e Cap. 59, Secção I; Suíça: Lei Federal de Organização Judiciária, arts. 136 e 137; Uruguai: Código General del Proceso, arts. 270 e 283; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, arts. 312 e 313, 327 e 328. COMENTÁRIO 68. Conceito de rescindibilidade - Sentença rescindível não se confunde com sentença nula nem, a fortiori, com sentença inexistente. No particular, a redação do dispositivo sob exame assinala sensível progresso técnico em relação à do art. 798 do Código anterior, onde era manifestamente impróprio o uso do adjetivo “nula” aplicado a decisão já trânsita em julgado. Os vícios da sentença podem gerar conseqüências diversas, em gradação que depende da respectiva gravidade. A sentença desprovida de elemento essencial, como o dispositivo, ou proferida em “processo” a que falte pressuposto de existência, qual seria o instaurado perante órgão não investido de jurisdição, é sentença inexistente, e será declarada tal por qualquer juiz, sempre que alguém a invoque, sem necessidade (e até sem possibilidade) de providência tendente a desconstituí-la: não se desconstitui o que não existe. Mas a sentença pode existir e ser nula, v.g., se julgou extra petita. Em regra, após o trânsito em julgado (que, aqui, de modo algum se preexclui), a nulidade converte-se em simples rescindibilidade. O defeito, argüível em recurso como motivo de nulidade, caso subsista, não impede que a decisão, uma vez preclusas as vias recursais, surta efeito até que seja desconstituída, mediante rescisão. Não se deve supor que a sentença portadora de qualquer dos vícios enumerados no art. 485, porque rescindível, deixe de revestir-se da autoridade de coisa julgada. Bem ao contrário: é até pressuposto da rescisão o fato de ter-se ela revestido de tal autoridade. Enquanto não rescindida, apesar de defeituosa, a sentença tem a força que normalmente teria, e produz os efeitos que normalmente produziria, se nenhum vício contivesse.16 Decorrido in albis o prazo do art. 495, ela se torna imune a qualquer ataque e prevalece em caráter definitivo. Numa única hipótese sobrevive ao trânsito em julgado, com a mesma intensidade, a conseqüência do vício de sentença existente17 na de haver-se ela proferido em processo realizado, sem citação inicial ou com citação inicial nula, à revelia do réu. Tratando-se de condenação, ao devedor é lícito argüir o vício em embargos à execução da sentença (art. 741, nº I), impugnando, assim, a produção do efeito executivo, e fazendo cair, uma vez acolhidos os embargos, a sentença com o processo. O mesmo não acontece nos casos do art. 485: nenhum dos fatos aí arrolados é invocável como fundamento de embargos. A sentença rescindível nem por isso deixa de ser exeqüível: o efeito executório produz-se como qualquer outro, e nem sequer a propositura da ação rescisória o detém (cf. art. 489). A condição jurídica da sentença rescindível assimila-se, destarte, à do ato anulável. Os autores que têm construído a rescisória como ação tendente à declaração da nulidade da

sentença18 empregam o termo “nulidade” em sentido impróprio; uma invalidade que só opera depois de judicialmente decretada classificar-se-á, com melhor técnica, como “anulabilidade”. Rescindir, como anular, é desconstituir. 69. Objeto da rescisão - Rescindível é apenas, no sistema do atual Código, “a sentença de mérito”. No direito anterior, era possível rescindir decisões não definitivas, quer dizer, que não julgassem o meritum causae. Ao nosso ver, teria sido preferível manter o mesmo princípio; aliás, a Comissão Revisora sugeriu, sem êxito, a supressão do “definitiva” que figurava no art. 534 do anteprojeto, e foi depois substituído, no art. 489 do projeto, pela expressão “de mérito” - referente, vale frisar, à res in iudicium deducta, isto é, ao mérito da causa, não ao de algum recurso (vide, infra, sobre a distinção, o comentário nº 148). Convém assinalar que atinente ao mérito precisa ser a decisão rescindenda; não necessariamente o vício que se lhe imputa. Diz respeito a exigência ao objeto, não ao fundamento do pedido de rescisão. Uma sentença de mérito pode ser rescindível em razão de error in procedendo, de violação de norma processual; por exemplo: falta de intimação regular do advogado para a audiência19 (cf., infra, o comentário nº 78). A locução “sentença de mérito” aplica-se precipuamente ao ato pelo qual, no processo de conhecimento, se acolhe ou se rejeita o pedido, ou - o que é dizer o mesmo - se julga a lide, que justamente por meio do pedido se submeteu à cognição judicial. Em certos casos, a lide pode ser julgada paulatinamente, em mais de uma etapa: assim, por exemplo, na ação de prestação de contas ex art. 914, nº I, na qual se concebe - sem embargo da definição constante do art. 162, § 1º, de temerária ambição (cf., infra, o comentário nº 139) - que o órgão judicial profira duas sentenças, e ambas de mérito. Arrola o Código, no art. 269, cinco hipóteses de extinção do processo “com julgamento de mérito”. A rigor, porém, a do inciso IV subsume-se na do inciso I: quando o juiz pronuncia a decadência ou a prescrição, sem dúvida rejeita o pedido, declara-o improcedente.20 Quanto às três restantes (incisos II, III, V), é duplamente imprópria a dicção da lei: primeiro, porque não é o mero reconhecimento, a mera transação ou a mera renúncia que, por si só, extingue o processo, sendo imprescindível o ato judicial, a sentença;21 segundo, porque não existe aí verdadeiro julgamento, no sentido clássico do termo, que é o de aplicação, pelo órgão judicante, da norma jurídica substantiva adequada aos fatos configuradores da situação litigiosa.22 O denominador comum ao pronunciamento do juiz nesses casos e à decisão que na verdade acolhe ou rejeita o pedido é a aptidão de ambos para revestir a autoridade de coisa julgada no sentido material: essa, provavelmente, a razão de tê-las catalogado o art. 269 como espécies do mesmo gênero. Em todo caso, os dizeres do art. 269 servem de guia na interpretação do art. 485, caput, onde reaparece a expressão “de mérito”. Ao nosso ver, num e noutro texto figura ela em idêntica acepção, sempre a designar as sentenças sobre as quais se possa formar a res iudicata material. Diversamente do que ocorria sob o Código de 1939, parece-nos hoje inadmissível construir a ação rescisória como ação dirigida contra a coisa julgada no sentido puramente formal.23 Bem ao contrário: o critério decisivo para aferir-se a

rescindibilidade é, no sistema atual, o que se baseia na aptidão da sentença para adquirir a auctoritas rei iudicatae na significação antes indicada; nem é por outra razão que se tem entendido incabível ação rescisória contra decisão de jurisdição voluntária.24 Nada importa que a sentença contenha verdadeiro julgamento, isto é, aplicação do direito a fato(s) segundo a convicção do juiz, ou se restrinja a chancelar, por assim dizer, a solução dada ao litígio por ato dispositivo das partes, ou de uma delas.25 Por outro lado, às vezes a sentença de mérito não produz coisa julgada material: assim, v.g., a que julgue improcedente o pedido na ação popular ou na ação civil pública “por deficiência de prova” (Lei nº 4.717, de 29.6.1965, art. 18; Lei nº 7.347, de 24.7.1985, art. 16). Em tais casos, não há cogitar de rescisão.26 Inexistindo o óbice da res iudicata, a lide pode voltar a ser livremente deduzida em juízo, de sorte que faltaria até interesse na propositura da rescisória. O inciso VIII do dispositivo sob exame faz referência específica à sentença baseada em “confissão, desistência ou transação”. Teremos de verificar como se conjuga esse texto com o do art. 269, nos pontos em que alude às formas de autocomposição (bilateral ou unilateral) do litígio. Remetemos o leitor aos comentários nºs 83 e 84, infra. Com esse problema articula-se também o da interpretação do art. 486, no que concerne à “rescisão” dos atos judiciais cobertos por “sentença meramente homologatória” (vide, infra, o comentário nº 93 ao art. 486). Para a aferição da rescindibilidade é irrelevante o eventual erro de qualificação cometido pelo órgão que decidiu. O que se tem de levar em conta é a verdadeira natureza da decisão. Assim, v.g., embora não sejam de mérito (art. 267, nº VI), nem pois rescindíveis as sentenças de “carência de ação”, como a que indefere a inicial por ilegitimidade de parte,27 a situação muda de figura se o juiz, com impropriedade, dissera julgar o autor “carecedor de ação”, quando na realidade estava a declarar improcedente o pedido. Corretamente interpretada a sentença, evidencia-se o cabimento da ação rescisória,28 tal qual se evidenciaria, na hipótese inversa, o descabimento. No processo de execução não há, em princípio, “mérito” que deva ser julgado, embora também ele, conforme ressalta do art. 795, se extinga mediante sentença (rectius: com o trânsito desta em julgado). Só em casos muito especiais proferirá o juízo da execução alguma sentença que se possa reputar “de mérito”: assim, v.g., quando indefira a inicial por verificar, desde logo, a ocorrência de prescrição (arts. 295, nº IV, e 598) - hipótese excepcional, visto que a pronúncia ex officio, aí, fica excluída em se tratando de direitos patrimoniais (art. 219, § 5º), como são em regra os que dão azo à execução no sentido técnico.29 Sentenças “de mérito”, e portanto rescindíveis, poderão todavia surgir em processos cognitivos incidentes, ou “embutidos” na execução. Servem de exemplo a que julgue procedentes ou improcedentes os embargos do devedor, a que lhe declare a insolvência ou rejeite o pedido de tal declaração. A liquidação não é execução, e a sentença que a julga pode sem dúvida constituir objeto de ação rescisória.30 A decisão que aprecia requerimento de remição de bens não é sequer sentença (apesar da letra do art. 790), nem, pois, sentença de mérito; logo, não é rescindível.31

Quanto ao processo cautelar, não parece impróprio falar-se de “mérito”, por oposição às preliminares referentes à matéria puramente processual ou às condições do regular exercício da ação cautelar. É evidente que esse “mérito” não se confunde com o do processo principal, a que acede o cautelar; mas, guardada a distinção, pode-se dizer que o juiz profere “sentença de mérito” toda vez que defere ou indefere a providência acautelatória pleiteada, por entender satisfeitos ou não, respectivamente, os seus pressupostos.32 Apesar disso, não se nos afigura admissível ação rescisória contra semelhantes decisões, por lhes faltar o requisito, a que pouco antes se aludiu, da idoneidade para produzir coisa julgada material. No art. 162, § 1º, reserva o Código a designação de “sentença” para a decisão final em primeiro grau de jurisdição; ao julgamento proferido por tribunal chama-se “acórdão” (art. 163). Não obstante, claro está que a palavra “sentença”, no art. 485, vem usada em sentido amplo, a compreender decisões de qualquer grau de jurisdição - por conseguinte, “sentenças”, no sentido estrito do art. 162, § 1º, e (desde que extintivos do processo!) “acórdãos”, na terminologia do art. 163. Seria bem pouco razoável excluir do âmbito da ação rescisória as decisões de tribunais, que constituem a imensa maioria das que transitam em julgado. São rescindíveis os acórdãos que julgarem o mérito de causas da competência originária dos tribunais33 (inclusive, reitere-se, ações rescisórias) ou obrigatoriamente sujeitas ao duplo grau de jurisdição e os acórdãos proferidos em recursos atinentes ao mérito de outras causas, desde que, conhecendo-se do recurso, se haja reformado ou “confirmado” isto é, substituído por outra de teor diferente ou igual - a decisão de grau inferior; aliter, na hipótese de mera anulação.34 Se não se conheceu do recurso - ressalvada a possibilidade de haver o órgão ad quem dito impropriamente que dele não conhecia, quando na verdade lhe estava negando provimento -, não se apreciou o mérito (nem do recurso, nem da causa), portanto o acórdão não pode ser atacado pela rescisória.35 Tampouco é possível rescindir acórdão que julgue recurso contra decisão, interlocutória (art. 162, § 2º) ou final (art. 267), de primeiro grau ou de grau superior, sobre matéria estranha ao meritum causae: assim, por exemplo, acórdão proferido no julgamento de agravo de instrumento (art. 522),36 salvo se se tratar de causa sujeita a regra especial, acaso subsistente após a entrada do Código em vigor, que preveja tal agravo como recurso cabível contra a sentença de mérito. Fora desses casos, o acórdão em grau de agravo de instrumento, ainda que conheça do recurso (e, pois, julgue o mérito deste, com a conseqüente substituição da decisão interlocutória impugnada), não extinguindo o processo, nem se pronunciando sobre o mérito da causa - que é o de que cogita o art. 485 -, não é passível de rescisão. Exemplo análogo seria o de acórdão que conhecesse de embargos infringentes (julgando-lhes, pois, o mérito) contra decisão, tomada por maioria de votos, acerca da admissibilidade da apelação. Nas hipóteses em que a decisão recorrida, de mérito, se vê substituída pela do órgão ad quem - mediante reforma ou mediante “confirmação”, pouco importa (vide, infra, os comentários ao art. 512) -, a eventual ação rescisória há de dirigir-se contra o julgamento de grau superior, que substituiu o outro (na medida em que o haja feito: a substituição pode ter sido parcial!). Descabido seria, aí, pretender rescindir algo que já não existe

como ato decisório.37 O fundamento, naturalmente, tem de referir-se à decisão substitutiva, não à substituída. Assim também se passam as coisas quando, reformada no juízo da apelação a sentença de primeiro grau, porventura sobrevenha - por exemplo, em recurso extraordinário ou especial - terceiro julgamento de teor igual ao do primitivo, caso em que terão ocorrido duas substituições sucessivas. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça, empregando linguagem atécnica, diga “restaurar” ou “restabelecer” a sentença de primeiro grau, na verdade o seu acórdão, que reformou o recorrido, é a única decisão subsistente, e só ele se pode atacar por meio da rescisória. Cumpre todavia enfatizar que, se algo da decisão recorrida transitou em julgado - por ter ficado fora do alcance do recurso, ou por dele não haver conhecido, no particular, o órgão ad quem -, e se é esse capítulo que se quer impugnar, a ação rescisória deve ser proposta contra a decisão recorrida. Assim, v.g., quando o vício alegado, a existir, residiria na parte unânime do acórdão proferido em grau de apelação, e não naquela outra que, tomada por maioria de votos, tenha dado ensejo a embargos infringentes. Pode, naturalmente, caber nova ação rescisória contra o acórdão dos embargos; mas cada qual terá seus fundamentos próprios e inconfundíveis, e serão diferentes - ponto de enorme importância prática - os termos iniciais dos respectivos prazos de decadência. O conceito de “sentença”, no art. 485, caput, abrange ainda a decisão do Presidente da Corte Suprema, que acolha ou rejeite o pedido de homologação de julgado estrangeiro (vide, supra, o comentário nº 55 ao art. 483). Se tal decisão não for impugnada pelo agravo regimental, ou deste não conhecer o Plenário, para reformá-la ou para “confirmála”, será passível de ataque por meio de ação rescisória.38 Em conhecendo do agravo o plenário, quer reforme, quer “confirme” a decisão do Presidente, terá esta sido substituída pelo acórdão, e unicamente contra o acórdão é que poderá caber a rescisória. Tratamento análogo aplica-se à decisão do relator de recurso que o rejeite por motivo de mérito, nos termos do art. 557, caput, na redação da Lei nº 9.756, de 17.12.1998, ou, antes, da Lei nº 9.139, de 30.11.1995: cf., infra, o comentário nº 363 ao citado dispositivo).39 Exceção expressa à regra do art. 485, caput, é a prevista no art. 59 da Lei nº 9.099, de 26.9.1995, para as causas sujeitas ao procedimento próprio dos Juizados Especiais Cíveis (cf., já antes, o art. 57 da Lei nº 7.244, de 7.11.1984, relativa aos extintos Juizados Especiais de Pequenas Causas): contra sentenças nelas proferidas - quer pelo juízo monocrático, quer pela turma julgadora de recurso - não se admite ação rescisória. Assim também contra as decisões do Supremo Tribunal Federal que declaram a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou de outro ato normativo em ação direta (Lei nº 9.868, art. 26, fine) e as que julgam procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental (Lei nº 9.882, art. 12, fine). Não há cogitar de outras exceções, não contempladas em texto legal: podem ser rescindíveis, nomeadamente, as sentenças não apeláveis de que trata o art. 34, caput, da Lei nº 6.830, de 22.9.1980, como também podiam sê-lo as de que cuidava o art. 4º da Lei nº 6.825, da mesma data, revogada pela Lei nº 8.197, de 27.6.1991.40

70. Pressuposto genérico da rescisão: o trânsito em julgado - Só pode ser rescindida a sentença de mérito transitada em julgado. Diz-se tal, no direito brasileiro, a sentença contra a qual não se admite recurso algum, ordinário ou extraordinário (cf. o art. 467), nem está sujeita ex vi legis ao duplo grau de jurisdição (art. 475 ou regra análoga). Feita abstração desta última circunstância, concebem-se duas hipóteses: a) a sentença é originariamente irrecorrível; neste caso, o trânsito em julgado ocorre com a publicação; b) a sentença é recorrível; neste caso, o trânsito em julgado ocorre no momento em que ela o deixe de ser, por força de algum fato que, antes ou depois da interposição, torne inadmissível o recurso41 (a causa mais freqüente, não porém a única, é o esgotamento in albis do prazo de interposição), ou em virtude da desistência do recurso interposto. Não é, em absoluto, pressuposto da rescindibilidade que se tenham utilizado os recursos admissíveis,42 nem a preexclui a circunstância de haver-se aquiescido à decisão rescindenda, renunciado ao poder de recorrer ou desistido de recurso acaso interposto;43 tampouco a de ter este ficado deserto.44 Vale a pena frisar que, se contra a sentença se interpôs algum recurso, e este chegou ao órgão ad quem, só se pode dizer que ela transitou em julgado caso esse órgão deixe de conhecer do recurso, ou - hipótese equivalente - o relator, com fundamento em alguma norma legal (v.g., art. 557, caput), o rejeite por inadmissível: abre-se então a indagação sobre o momento - necessariamente anterior - em que se terá configurado a inadmissibilidade e, por conseguinte, terá ocorrido o trânsito em julgado. Quando o órgão ad quem conhece do recurso, a decisão impugnada jamais transita em julgado: ou é anulada, ou substituída pelo julgamento de grau superior, seja de teor igual ou diferente; e em qualquer dessas hipóteses deixa de viger como ato decisório. Daí se conclui que nunca terá cabimento ação rescisória contra sentença da qual se interpôs recurso conhecido (cf., supra, o comentário nº 69 e, aí, a nota 37). Para mais larga explanação desses temas, remetemos o leitor aos comentários números 147 e 149, bem como aos redigidos a propósito do art. 512 71. Pressupostos específicos da rescisão: A) Confronto com o direito anterior e dados comparatísticos - Já se observou que o Código de 1973 ampliou sensivelmente o elenco das hipóteses em que cabe a ação rescisória. A leitura dos incisos do art. 485 desde logo mostra que, dos nove possíveis fundamentos do pedido, quatro representam inovações: os previstos nos incisos III, VII, VIII e IX. Dos outros cinco, os dos nºs IV, V e VI correspondem, com exatidão, aos contemplados no estatuto anterior, art. 798, nº I, letras b e c, e nº II, respectivamente, ao passo que as hipóteses outrora versadas no art. 798, nº I, letra a, estão agora distribuídas pelos incisos I e II do dispositivo sob exame, com certa diversidade de redação. Importa identificar as fontes em que o legislador buscou inspiração para redigir as novas regras. De origem italiana são as dos incisos III e IX: este, com os §§ 1º e 2º (que só a ele se referem), é tradução quase literal do nº 5 do art. 395 do Codice di procedura civile;

aquele, na primeira parte (relativa ao dolo do vencedor), provém do mesmo artigo, nº 1,45 e na segunda (concernente à colusão das partes), do art. 397, nº 2, do texto peninsular. A redação do inciso VII aproxima-o da norma do art. 771, letra c, do Código português, muito embora a hipótese seja igualmente contemplada, por exemplo, no alemão (§ 580, nº 7, letra b), no francês (art. 595, nº 2) e no italiano (art. 395, nº 3) nestes dois últimos, todavia, em termos mais restritos. O inciso VIII, enfim, é oriundo também de Portugal, mas do texto de 1939, art. 771, 4º, sensivelmente modificado desde a reforma de 1961. À doutrina e à jurisprudência desses países será oportuno, assim, pedir subsídios para a interpretação dos mencionados dispositivos e para a solução dos problemas que a sua aplicação suscita. É claro que se terão de levar em conta as eventuais diferenças no tratamento dado à matéria pelo Código de 1973. 72. Pressupostos específicos da rescisão: B) Visão sistemática - A ação rescisória é meio de impugnação de sentenças. Quando se fala de impugnação, neste contexto, vem à mente, de modo intuitivo, a idéia de crítica, de censura, e em conseqüência a de algum defeito que se irrogue à decisão. Correndo os olhos pelo rol do art. 485, verifica-se que a maior parte das hipóteses previstas nos diversos incisos corresponde realmente a casos de julgamento defeituoso. O defeito configura-se, em regra, ex parte iudicis, podendo resultar de vício que se atribui à atividade da máquina judiciária, ou ao próprio juízo emitido pelo órgão julgador. É a clássica distinção entre errores in procedendo e errores in iudicando, que tem demonstrado vitalidade suficiente para resistir às objeções, às vezes enérgicas, levantadas em alguns setores doutrinários.46 São exemplos frisantes: do primeiro grupo de fundamentos, a incompetência absoluta do órgão que proferiu a sentença (inciso II, fine); do segundo, o erro de fato (inciso IX). Não faltam hipóteses, contudo, em que o defeito apontado na sentença, em vez de ser imputável ao juiz, se relaciona com o comportamento de alguma das partes, ou de mais de uma. O resultado do pleito revela-se insustentável, não porque o órgão judicial tenha funcionado irregularmente, ou resolvido mal, em virtude de inépcia ou desatenção, as questões de direito e de fato relevantes para a solução do litígio, mas sim porque houve incorreção (voluntária ou involuntária), ou desconformidade à lei, na conduta do(s) litigante(s) mesmo(s), e tal incorreção repercutiu, em relação de causa e efeito, no desfecho do processo. O vício da decisão é conseqüencial. Assim ocorre, v.g., nos casos de dolo do vencedor e de colusão entre as partes (inciso III), no da invalidade de ato de parte que haja servido de base à sentença (inciso VIII). Resta uma hipótese especialíssima: a de que nenhuma incorreção ou desvio se possa imputar, no processo em que se proferiu a sentença, quer ao órgão judicial, quer às partes, mas se venha ela a mostrar, à luz de fato superveniente, objetivamente desconforme ao direito. A situação é tal que, nas circunstâncias sob as quais se julgou, a decisão aparecia como perfeitamente regular e até “justa”; descobre-se, porém, mais tarde, que o material sujeito ao exame do juiz era incompleto em ponto de capital importância, e semelhante falha, pela qual nenhum dos participantes da atividade processual poderia ser responsabilizado, bastou para conduzir a uma solução diversa daquela que, agora, se

apresenta como a única verdadeira. É, tipicamente, o caso do descobrimento subseqüente de novo documento, decisivo para a reconstituição dos fatos (inciso VII). Ele põe de manifesto como se alargou o conceito de “impugnação”, para fazê-lo abranger o ataque a sentenças que, consideradas no contexto em que se proferiram, a rigor nenhum defeito possuem, e por isso não são propriamente passíveis de censura ou crítica.47 Ajunte-se que a Medida Provisória nº 1.577, de 11.6.1997, no art. 4º, parágrafo único, criou nova hipótese de cabimento da ação rescisória, peculiar às sentenças que julgam ações de desapropriação. Ela se configuraria “quando a indenização fixada (...) for flagrantemente superior ao preço de mercado do bem desapropriado”. Para atender à imposição constitucional de igualdade, teria a norma de abrir também ao expropriado a possibilidade de pleitear a rescisão, sempre que a sentença, ao contrário, houvesse fixado a indenização em valor flagrantemente inferior ao preço de mercado. O vício foi corrigido: passou-se a regular a matéria em novo inciso (X) acrescentado ao art. 485 e a contemplar aí ambos os casos (vide a Medida Provisória nº 1.658-12, de 5.5.1998, art. 4º). Entretanto, as mais recentes Medidas Provisórias da série (vide a de nº 2.109-47, de 27.12.2000) não vêm reproduzindo a disposição. 73. Prevaricação, concussão ou corrupção do juiz - O art. 798, nº I, letra a, do Código de 1939 dizia “nula” a sentença proferida “por juiz peitado”; parte da doutrina entendia a expressão em sentido amplo, sem vinculação a qualquer conceito específico de direito penal.48 O novo texto, porém, usa termos que designam tecnicamente infrações capituladas no vigente Código Penal. A prevaricação é o nomen iuris do delito consistente em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (art. 319). A concussão consiste em “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida” (art. 316). Quanto à corrupção, só pode tratar-se da passiva, que o estatuto penal define como “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (art. 317). Parece-nos que a interpretação do inciso ora comentado deve ater-se aos conceitos penalísticos de prevaricação, concussão e corrupção (passiva).49 É necessário, para que seja rescindível a sentença, que o comportamento do juiz corresponda a um desses tipos penais. Não se exige, contudo, a prévia condenação criminal do prolator da sentença, nem sequer a preexistência de processo penal contra ele instaurado. Caberá ao órgão julgador da rescisória, para os fins a que visa a ação, verificar a ocorrência dos extremos da figura delituosa invocada. Resta ver como se passam as coisas na hipótese de efetivamente oferecer-se denúncia ao juízo criminal contra o magistrado que proferiu a sentença rescindenda. Caso só venha isso a acontecer depois de encerrado o processo da rescisória, em princípio nenhuma repercussão terá um sobre o outro: qualquer que haja sido o resultado no pleito civil, de modo algum vinculará o juiz penal; por outro lado, a eventual absolvição do réu em sede criminal não tornará ipso facto rescindível a decisão que tiver julgado procedente o

pedido de rescisão da sentença, como a eventual condenação não tornará ipso facto rescindível a decisão que o tiver julgado improcedente. Haverá mera contradição lógica entre os dois julgamentos, o civil e o penal. Pode suceder, entretanto, que do processo criminal emerja tal ou qual elemento capaz de fazer surgir um pressuposto de rescisão do julgado na ação rescisória: por exemplo, se nele se apura a falsidade da prova em que se fundara a decisão, esta se torna impugnável através de nova rescisória, com base no art. 485, nº VI. Caso o processo penal já se haja encerrado antes de pedir-se a rescisão, a sentença no crime, trânsita em julgado, vincula em certa medida o órgão julgador da rescisória. Se se condenou o magistrado pelo delito, não pode o tribunal civil rejeitar o pedido de rescisão afirmando a inexistência da infração criminal. Se se absolveu o magistrado, variará a solução conforme se tenha ou não negado, no juízo penal, a existência material do fato: na primeira hipótese - não, porém, na segunda -, fica preexcluída a possibilidade de acolher-se o pedido da rescisória. São as conclusões a que se chega, aplicando-se por analogia, na falta de regulamentação específica, as normas referentes à influência da coisa julgada criminal sobre o julgamento da ação civil de ressarcimento do dano ex delicto (Código Civil, art. 1.525, e Código de Processo Penal, art. 66).50 Ocorrendo a pendência simultânea dos dois processos, o criminal e o da rescisória, incide o art. 110, caput: pode ser determinado (não o é obrigatoriamente!) o sobrestamento do segundo, até que se pronuncie - por decisão trânsita em julgado, entende-se - o juízo do crime. Aplicável é também o art. 110, parágrafo único, referente à hipótese de já pender o processo da rescisória antes de iniciada a ação penal. O dispositivo sob exame alude a “prevaricação, concussão ou corrupção do juiz”; mas dessa maneira de dizer não se infere que apenas sejam rescindíveis por tal fundamento sentenças de juízos monocráticos. Se a decisão rescindenda emanou de órgão colegiado, para a admissibilidade da rescisória basta que se alegue (e para a procedência que tenha havido) prevaricação, concussão ou corrupção passiva de um dos membros do colégio, cujo voto haja concorrido para a formação da maioria, ou eventualmente da unanimidade no julgamento. Não é suficiente, ao nosso ver, que o juiz infrator tenha participado do julgamento:51 se o seu voto foi vencido, não teve conseqüência alguma, devendo aplicarse aqui, a fortiori, o princípio geral de que não há nulidade sem prejuízo. Tampouco é necessário, por outro lado, que o voto do juiz infrator haja sido numericamente decisivo para a apuração do resultado: ainda que o desfecho houvesse de permanecer o mesmo, feita abstração desse voto, subsiste sempre a possibilidade de ter ele influenciado outros membros do órgão, de modo que todo o julgamento fica, por assim dizer, contaminado pelo vício. 74. Impedimento ou incompetência absoluta - O estatuto de 1939, no art. 798, nº I, letra a, falava em juiz “impedido” sem haver tido, previamente, o cuidado de fixar o conceito de impedimento, que no art. 185, nº I, ficava absorvido pelo de suspeição. Já o atual Código, com melhor técnica, distingue entre as duas figuras, arrolando no art. 134 hipóteses de impedimento, e no art. 135, de suspeição. De impedimento é, ainda, o caso

previsto no art. 136. Outros podem e costumam ser contemplados nas normas de organização judiciária e nos regimentos internos dos tribunais. No direito anterior, houve quem sustentasse o cabimento da ação rescisória em qualquer das hipóteses que, segundo o art. 185, fundamentavam a “suspeita de parcialidade do juiz”.52 Se alguma dúvida era talvez compreensível à vista da imprecisão do Código de 1939, nenhuma pode subsistir diante do texto atual. Só o impedimento, e não a suspeição, torna rescindível a sentença. Ademais, relevante aqui é apenas o impedimento existente na ocasião em que se proferiu a sentença, não importando o que haja porventura cessado antes dela ou lhe tenha sobrevindo. No que tange à incompetência, só a absoluta - isto é, a que não se supre mediante prorrogação - constitui causa de rescindibilidade. No Código antigo, o art. 798, nº I, letra a, referia-se a juiz “incompetente ratione materiae”, mas em sede doutrinária já se entendia a expressão como abrangente de todos os casos de incompetência absoluta.53 O texto em vigor, aqui também, corrigiu a impropriedade terminológica. Seja qual for o critério determinante, sendo absoluta a incompetência, a sentença é nula até o trânsito em julgado (cf. o art. 113, § 2º) e, depois deste, rescindível. É clara a razão pela qual se limita às hipóteses de incompetência absoluta o cabimento da rescisória. Se meramente relativa a incompetência, cabe à parte o ônus de argüi-la em tempo hábil por meio de exceção (art. 112), sob pena de ter o órgão prorrogada a sua competência (art. 114), desaparecendo portanto o vício. Destarte - salvo o caso, muito raro, de pronunciar-se a prescrição (sendo possível!) ou a decadência logo ao despacharse a petição inicial (art. 295, nº IV) -, nem sequer se concebe que a sentença de mérito venha a ser proferida por órgão relativamente incompetente: ou os autos já terão sido remetidos ao órgão competente, por força do acolhimento da exceção (art. 311), ou a falta de competência terá sido suprida mercê da omissão em excepcionar. À hipótese de impedimento restrito a um (ou alguns) dos membros do colegiado que haja proferido a decisão aplicam-se, mutatis mutandis, as observações feitas na parte final do comentário nº 73, supra, a propósito da causa de rescindibilidade prevista no inciso I do artigo sob exame. 75. Dolo da parte vencedora - Ocorre este motivo de rescisão quando a parte vencedora, seja qual for, faltando ao dever de lealdade e boa-fé (art. 14, nº II), haja impedido ou dificultado a atuação processual do adversário, ou influenciado o juízo do magistrado, em ordem a afastá-lo da verdade.54 Alguns exemplos: o autor obstou a que o réu tomasse conhecimento real da propositura da ação, ou de qualquer modo o levou a ficar revel, v.g. alegando falsamente ignorar o paradeiro do citando, ou indicando endereço incorreto, onde em vão seria ele procurado, a fim de provocar a expedição injustificada de edital citatório;55 o litigante vitorioso criou empecilho, de caso pensado, à produção de prova que sabia vantajosa para o adversário, subtraiu ou inutilizou documento por este junto aos autos.56 Não basta a simples afirmação de fato inverídico, sem má-fé, nem o silêncio acerca de fato desfavorável relevante,57 nem a abstenção de produzir prova capaz de beneficiar a parte contrária.58 Tampouco é suficiente que se haja tirado proveito, com

habilidade, de alguma situação de inferioridade em que se tenha visto o adversário, quanto às suas possibilidades de defesa, por motivos estranhos à vontade do litigante vitorioso.59 Não se enquadra nesta figura a produção de prova que o vencedor sabia falsa, ou o comportamento que haja determinado a falsidade de prova (v.g., o suborno de testemunha, para prestar falso depoimento). Se a falsa prova constituiu o fundamento da decisão, caberá a rescisória com apoio no inciso VI, que dispensa indagação de ordem subjetiva, e portanto prescinde do dolo. Se a decisão não se fundou na falsa prova, a máfé do litigante poderá acarretar outras sanções, mas a sentença não será rescindível. É necessário o nexo de causalidade entre o dolo e o pronunciamento do órgão judicial. O resultado do processo precisa ter sido o que foi em razão do comportamento doloso (verbis: “quando resultar de dolo”...). Em outras palavras: exige-se que, sem este, a decisão houvesse de ser diversa.60 Ao dolo pessoal da parte equipara-se o do seu representante legal, e bem assim o do advogado, através do qual o litigante atua normalmente em juízo.61 Havendo litisconsórcio, o dolo de um dos litisconsortes vitoriosos basta para tornar rescindível a sentença, salvo se esta contiver capítulos autônomos para cada qual dos co-autores ou coréus, caso em que a rescindibilidade se limitará ao(s) capítulo(s) referente(s) àquele que manifestou o comportamento doloso. 76. Colusão entre as partes em fraude à lei - Esta hipótese de rescindibilidade relaciona-se com o preceito do art. 129, segundo o qual, “convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes”. Tal dispositivo reproduz, em substância, a norma que já constava do art. 115 do Código de 1939, e que provinha do art. 665 do estatuto processual português do mesmo ano, aliás subsistente, com igual número e ligeiríssimas alterações de redação, no texto em vigor. À cláusula grifada corresponde o caso do processo fraudulento, que se distingue do processo simulado: enquanto neste as partes não têm, verdadeiramente, a intenção de aproveitar-se do resultado do pleito, nem, pois, real interesse na produção dos respectivos efeitos jurídicos, a não ser como simulacro para prejudicar terceiros, naquele, ao contrário, o resultado é verdadeiramente querido, e as partes valem-se do processo justamente porque ele se lhes apresenta como o único meio utilizável para atingir um fim vedado pela lei.62 Na lição da doutrina, a decisão que o juiz há de proferir, para obstar ao objetivo das partes, quer se trate de simulação, quer de fraude à lei, é a de anulação do processo.63 Entretanto, no sistema do antigo Código, se tal não acontecesse, passada em julgado a sentença de mérito, inexistia remédio idôneo à correção do vício: o mal tornava-se irreparável. A nova lei abriu o caminho da rescisão, em se tratando de processo fraudulento; não, porém, de processo simulado: dos dois casos contemplados no art. 129, só aparece no dispositivo ora sob exame o de “colusão entre as partes, a fim de fraudar a

lei”. A simulação poderá acarretar outras conseqüências, de que não é oportuno cogitar aqui. Exemplo clássico de processo fraudulento é o da ação de nulidade ou anulação de matrimônio, proposta por um dos cônjuges em prévio concerto com o outro, mediante a invocação de fatos inverídicos e a produção de falsas provas, sem impugnação do réu, a fim de dissolver-se o vínculo conjugal fora das hipóteses legais. A jurisprudência italiana registra caso famoso desse tipo, que repercutiu intensamente em sede doutrinária, despertando o interesse dos processualistas para o problema da fraude e provocando a elaboração de valiosos estudos sobre a matéria.64 A casuística da colusão não se exaure, todavia, em hipóteses que envolvam prova falsa, nem se deve confundir este caso de rescindibilidade com o previsto no inciso VI do artigo 485. É concebível que se identifique a colusão em se tratando, v.g., de reconhecimento do pedido, feito pelo réu com a finalidade de propiciar a rápida formação de título executivo, conquanto não baste a intenção de prejudicar terceiro(s): é necessário que se atue in fraudem legis. Com essa restrição, a própria revelia voluntária, ou a simples omissão do réu em contestar fato alegado pelo autor, sabidamente inverídico, pode talvez configurar a colusão. Cumpre, entretanto, que tenha havido ajuste, concerto, prévio entendimento entre as partes imbuídas do propósito fraudatório. A colusão é sempre bilateral, no que se distingue do dolo: são inconfundíveis as hipóteses de rescindibilidade contempladas na primeira e na segunda parte do inciso III. 77. Ofensa à coisa julgada - A autoridade da coisa julgada, de que se tenha revestido uma decisão judicial, cria para o juiz um vínculo consistente na impossibilidade de emitir novo pronunciamento sobre a matéria já decidida. Essa impossibilidade às vezes só prevalece no mesmo processo em que se proferiu a decisão (coisa julgada formal), e noutros casos em qualquer processo (coisa julgada material). Haverá ofensa à coisa julgada quer na hipótese de o novo pronunciamento ser conforme ao primeiro, quer na de ser desconforme: o vínculo não significa que o juiz esteja obrigado a rejulgar a matéria em igual sentido, mas sim que ele está impedido de rejulgála.65 Subsiste o vínculo, ademais, quando a lide submetida à apreciação judicial, não sendo idêntica à decidida em primeiro lugar, tenha solução logicamente subordinada à da outra: assim, por exemplo, declarada por sentença trânsita em julgado a existência da relação de filiação, que constituía no feito a questão principal, ofenderá a res iudicata a decisão que, em ação de alimentos, rejeite o pedido por entender inexistente a aludida relação.66 A recíproca não é verdadeira. Se a questão logicamente subordinante houver sido examinada incidenter tantum, a respectiva solução não ficará coberta pela auctoritas rei iudicatae, de sorte que a qualquer juiz será lícito, depois, apreciá-la e decidi-la livremente, em feito onde ela venha a constituir, por sua vez, a questão principal. Já era assim, ao nosso ver, no direito anterior;67 sob o atual Código, nenhuma dúvida pode

subsistir ao propósito, ante as disposições do art. 469, nº III, e do artigo 470.68 Quer isso dizer, v. g., que a coisa julgada da sentença que repeliu o pedido de alimentos, fundandose na inexistência da relação de filiação, não inibe o juiz de pronunciar-se a respeito, eventualmente para declarar existente essa relação, em qualquer outro processo, onde ela venha a ser discutida principaliter. Igual é a solução, se a questão examinada primeiro como prejudicial volta a ser apreciada, também como prejudicial, em processo de diferente objeto. Nesses casos, haverá sem dúvida contradição lógica entre os julgamentos, podendo afirmar-se que uma das sentenças terá sido forçosamente injusta. Não haverá, porém, ofensa à coisa julgada, pela simples razão de que inexistia coisa julgada suscetível de ser ofendida. A segunda sentença não é passível de rescisão com apoio no art. 485, nº IV. Convém recordar que a mera injustiça da decisão, de acordo com princípio expressamente consagrado no diploma de 1939 (art. 800) e subsistente, embora de forma implícita, no sistema do novo Código, não constitui pressuposto bastante de rescindibilidade. - Dá causa à rescisão a ofensa à auctoritas rei iudicatae de sentença estrangeira, se a decisão do órgão nacional for posterior ao trânsito em julgado da homologação, pois antes disso ainda não se estavam produzindo, no Brasil, os efeitos relacionados com a coisa julgada da sentença alienígena. Se a decisão do órgão nacional transitar em julgado primeiro, rescindível será, com fundamento no dispositivo ora sob exame, a que depois homologue sentença estrangeira sobre lide igual ou sobre lide logicamente subordinada e decidida de modo incompatível com a sentença brasileira (cf., supra, o comentário nº 62 ao art. 483). Apenas a decisão de homologação, é claro: não a sentença estrangeira homologada, que não é rescindível pela Justiça pátria.69 Análogo raciocínio cabia, antes da Lei nº 9.307, de 23.9.1996, em relação à homologação do laudo arbitral, que desta dependia para produzir efeitos sentenciais (CPC, art. 1.097). Por conseguinte, era rescindível a sentença judicial sobre a mesma lide ou (na hipótese de incompatibilidade) sobre lide subordinada, caso se proferisse após o trânsito em julgado da decisão homologatória do laudo; reciprocamente, era rescindível a decisão homologatória de laudo arbitral sobre a mesma lide ou (sempre na hipótese de incompatibilidade) sobre lide subordinada, caso sobreviesse ao trânsito em julgado da sentença judicial. A observação ainda vale para os casos de juízo arbitral anterior à vigência da Lei nº 9.307. O Código italiano, art. 395, nº 5, exige, como requisito de admissibilidade da revocazione, que a sentença impugnada não se haja pronunciado sobre a alegação de coisa julgada. No direito brasileiro, é irrelevante que a preliminar tenha sido ou não suscitada,70 ou apreciada ex officio (cf. os arts. 267, § 3º, e 301, § 4º), no processo em que se proferiu a sentença rescindenda. A circunstância de haver-se nele rejeitado a preliminar não constitui obstáculo ao exercício da rescisória, nem impede que se acolha o pedido de rescisão.

É causa de rescindibilidade a ofensa à auctoritas rei iudicatae de sentença proferida em processo não civil (penal, trabalhista etc.), a que necessariamente se houvesse de subordinar o julgamento da lide civil. 78. Violação de literal disposição de lei - O inciso V do art. 485 reproduz expressão (“literal disposição de lei”) que, no art. 798, nº I, letra c, do Código de 1939, fora objeto de severa crítica doutrinária.71 Melhor teria sido substituí-la por “direito em tese”, como sugeriu a Comissão Revisora. O ordenamento jurídico evidentemente não se exaure naquilo que a letra da lei revela à primeira vista. Nem é menos grave o erro do julgador na solução da quaestio iuris quando afronte norma que integra o ordenamento sem constar literalmente de texto algum. “Lei”, no dispositivo sob exame, há de entender-se em sentido amplo. Compreende, à evidência, a Constituição, a lei complementar, ordinária ou delegada, a medida provisória, o decreto legislativo, a resolução (Carta da República, art. 59), o decreto emanado do Executivo, o ato normativo baixado por órgão do Poder Judiciário (v.g., regimento interno: Constituição Federal, art. 96, nº I, letra a). Inexiste qualquer diferença, a este respeito, entre normas jurídicas editadas pela União, por Estado-membro ou por Município. Também a violação de norma jurídica estrangeira torna rescindível a sentença, na hipótese de ter-se de aplicar à espécie o direito do outro país.72 Não há que distinguir, por outro lado, entre normas atinentes ao direito internacional e ao direito interno, ou entre normas pertencentes a um ou a outro ramo deste. É irrelevante que se viole o direito material ou o direito processual:73 será rescindível, v. g., a sentença que, ao arrepio do preceito insculpido no art. 128, julgue ultra petita ou extra petita. Assentou a jurisprudência da Corte Suprema que fica preexcluída a rescisão quando seja “de interpretação controvertida nos tribunais” a norma supostamente violada pela decisão rescindenda,74 a menos que se trate de texto constitucional.75 Deve receber-se com ressalvas a tese. Sem dúvida, no campo interpretativo, muitas vezes há que admitir certa flexibilidade, abandonada a ilusão positivista de que para toda questão hermenêutica exista uma única solução correta. Daí a enxergar em qualquer divergência obstáculo irremovível à rescisão vai considerável distância: não parece razoável afastar a incidência do art. 485, nº V, só porque dois ou três acórdãos infelizes, ao arrepio do entendimento preponderante, hajam adotado interpretação absurda, manifestamente contrária ao sentido da norma.76 Cada suposta violação constitui uma causa petendi. O autor precisa indicar, na inicial, a norma a seu ver infringida, embora se deva prescindir, desde que claramente identificável o conteúdo, da referência a número de artigo ou de parágrafo, e a fortiori relevar o eventual equívoco na menção.77 Pode o autor, naturalmente, alegar que a decisão rescindenda infringiu mais de uma norma: haverá duas ou mais causas de pedir. Ao órgão julgador não é lícito acolher o pedido senão com base em alguma(s) das alegadas. Se nenhuma delas ocorreu, terá de julgar o pedido improcedente, ainda que verifique a existência de transgressão a norma não indicada pelo autor.78

Não é indispensável que se haja invocado em termos expressos, no feito anterior, a norma supostamente violada. O órgão que proferiu a decisão rescindenda tinha de aplicar à espécie o direito pertinente, ainda no silêncio das partes (iura novit curia).79 Decisão que se afaste da jurisprudência não terá de ser vista, só por isso, como necessariamente violadora da lei, ainda que o entendimento adotado divirja de proposição constante de Súmula:80 a mera inclusão em Súmula - mesmo na da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal - não torna vinculativa a proposição (cf., supra, o comentário nº 20 ao art. 479). Poderá o órgão julgador da ação rescisória, segundo o seu livre convencimento, declarar improcedente o pedido conquanto divergentes a interpretação dada à norma pela sentença e a consagrada em Súmula, ou dar pela procedência a despeito de coincidentes as interpretações. Não é impossível que a agressão à lei esteja na proposição da Súmula: era e é contra legem, por exemplo, o enunciado nº 512 da Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, onde se exclui o cabimento da condenação em honorários de advogado na ação de mandado de segurança. 79. Falsidade de prova: A) Generalidades - O Código de 1939, art. 798, nº II, exigia que a prova falsa houvesse constituído o “principal fundamento” da sentença rescindenda. Contenta-se o dispositivo ora analisado com o fato de a sentença fundar-se na prova falsa. O que importa é averiguar se a conclusão a que chegou o órgão judicial, ao sentenciar, se sustentaria ou não sem a base que lhe ministrara a prova falsa. A sentença não será rescindível se havia outro fundamento bastante para a conclusão.81 A prova falsa pode ser de qualquer natureza. Não distingue a lei entre falsidade material e falsidade ideológica. Tampouco exige que não se tenha suscitado, no processo em que surgiu a sentença rescindenda, a questão da falsidade, nem que ao interessado não haja sido possível suscitá-la naquele processo, v. g., porque só depois veio a ter conhecimento da falsidade.82 Todavia, em se tratando de falsidade documental, se a sentença proferida no respectivo incidente (art. 395) houver declarado autêntico o documento, fica excluída a possibilidade de rescindir-se, com base no art. 485, nº VI, a decisão sobre o mérito da causa principal, fundada no documento que se declarara autêntico, enquanto subsistir a auctoritas rei iudicatae da sentença que o declarou tal - ela própria, é claro, eventualmente rescindível. Não há cogitar, no presente contexto, da falsidade de presunção.83 As presunções não são, verdadeiramente, meios de prova,84 e bem andou o Código de 1973 em abster-se de considerá-las tais. As presunções legais (praesumptiones iuris), quando absolutas, representam apenas um expediente cômodo de que se vale o legislador para tornar certo que este ou aquele elemento não é necessário à perfeição de um ato jurídico, ou que tal ou qual requisito não é indispensável à validade do ato, ou à produção de determinado efeito jurídico (assim, por exemplo, no art. 550 do Código Civil, bastaria dizer-se que, nas circunstâncias ali previstas, a propriedade se adquire por usucapião, “independentemente de título e boa-fé”, sendo supérfluo o acréscimo “que em tal caso se presume”); quando relativas, constituem regras especiais sobre distribuição do onus probandi, acarretandolhe, no comum dos casos, a inversão. Nos termos do art. 334, nº IV, do estatuto

processual, “não dependem de prova os fatos em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”. Relativa que seja a presunção, abre-se ao interessado a oportunidade de produzir prova contrária, e só acerca desta - não da presunção - pode surgir a questão da falsidade. Quanto às presunções judiciais (praesumptiones hominis), decorrem do raciocínio feito pelo juiz a partir de elementos probatórios referentes a fato(s) diverso(s), mas relacionado(s) com aquele(s) a cujo respeito se tenha de formar convicção para julgar. Através de inferências lógicas, semelhante convicção se forma, aí, por via indireta. Se fica provada, v. g., a presença do réu noutro lugar, no momento em que se verificara o ato danoso, o órgão judicial tirará disso a conclusão de que não foi o réu quem o praticou. É concebível, sem dúvida, que se argúa depois a falsidade da prova, e eventualmente se pleiteie a rescisão da sentença; mas falsa terá sido, em todo caso, a prova do fato tomado como premissa (indício), e não a presunção, em si mesma. O simples erro lógico do juiz, no curso do raciocínio, não configura motivo de rescindibilidade. 80. Falsidade de prova: B) Apuração - A apuração da falsidade pode ter sido previamente feita em processo criminal; não necessariamente em processo instaurado contra o autor da falsidade, mas em processo de revisão, ou de habeas corpus, ou qualquer outro cuja decisão definitiva declare falsa a prova.85 É irrelevante que a sentença penal seja anterior ou posterior à rescindenda; e bem assim que, sendo anterior, a conhecesse ou não o interessado. Só, porém, decisão criminal trânsita em julgado pode fundamentar a rescisória. Por outro lado, não se precisa aguardar que seja proferida sentença penal, nem sequer que seja instaurado processo-crime, para pedir a rescisão: a prova da falsidade é possível no próprio processo da rescisória. A vantagem de basear-se em sentença penal passada em julgado, para o autor da rescisória, consiste em que, neste caso, já não se poderá discutir, no juízo civil, a existência da falsidade; a defesa do réu, de meritis, terá de cingir-se à contestação de que a sentença rescindenda se haja fundado na prova declarada falsa, ou seja, à afirmação de que houvera outro fundamento suficiente para a decisão. A circunstância de não se ter instaurado processo-crime não preexclui a rescisão, desde que se prove a falsidade no processo da rescisória. Tampouco a preexclui o fato de não se ter chegado, no processo-crime, à condenação do réu, v.g., por estar prescrita a ação penal (rectius: a pretensão punitiva), ou por ocorrer qualquer outra causa de extinção da punibilidade. Se tiver havido absolvição no processo-crime, a rescisão ficará preexcluída na hipótese de haver sido, “categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”, isto é, da falsidade (Código de Processo Penal, art. 66, a contrario sensu); não, porém, em qualquer dos outros casos previstos no art. 386 do estatuto processual penal (incisos II a VI). Não constitui fundamento bastante da rescisão a prévia declaração da falsidade do documento em sentença civil, seja proferida em processo autônomo de ação declaratória (art. 4º, nº II), seja em processo de incidente de falsidade surgido no curso de outro feito, sobre o mesmo documento em que se houver fundado a decisão rescindenda.86 A prova

da falsidade terá de ser feita no processo da rescisória; e, embora óbvio que a sentença civil representará normalmente poderosíssimo elemento de convicção, o órgão julgador da rescisória conserva integral liberdade de apreciação, e não fica excluída, em tese, a possibilidade de rejeitar ele o pedido por não se haver convencido da falsidade. Não o vincula, aí, a auctoritas rei iudicatae da sentença civil declaratória -87 o que não deixa de configurar uma singularidade na sistemática processual. 81. Obtenção de documento novo - Inovou o inciso VII autorizando a rescisão da sentença se, depois dela, “o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”. A Comissão Revisora sugerira a eliminação deste dispositivo, por temer os abusos a que ele pode dar ensejo, em detrimento da autoridade da coisa julgada. Convém lembrar que a obtenção de documento novo, mesmo decisivo, nem sempre aproveita à parte na própria pendência do processo, para conseguir a reforma da sentença; isso não é possível, v. g., em grau de recurso especial ou extraordinário, que em princípio só admite a apreciação de questões de direito. Assim, torna-se mais fácil rescindir a decisão trânsita em julgado do que evitar a formação da res iudicata - o que não deixa de ser paradoxal. “Autor”, no inciso sob exame, é à evidência o autor da ação rescisória, nada importando a posição processual, ativa ou passiva, que lhe tenha cabido no feito anterior. Pode até tratar-se de pessoa estranha ao primeiro processo, desde que legitimada à rescisória (vide, infra, os comentários ao artigo 487).88 Por “documento novo” não se deve entender aqui o constituído posteriormente. O adjetivo “novo” expressa o fato de só agora ser ele utilizado,89 não a ocasião em que veio a formar-se. Ao contrário: em princípio, para admitir-se a rescisória, é preciso que o documento já existisse ao tempo do processo em que se proferiu a sentença.90 Documento “cuja existência” a parte ignorava é, obviamente, documento que existia; documento de que ela “não pôde fazer uso” é, também, documento que, noutras circunstâncias, poderia ter sido utilizado, e portanto existia. Fosse qual fosse o motivo da impossibilidade de utilização, é necessário que haja sido estranho à vontade da parte. Esta deve ter-se visto impossibilitada, sem culpa sua, de usar o documento,91 v.g., porque lhe fora furtado, ou porque estava em lugar inacessível, ou porque não se pôde encontrar o terceiro que o guardava, e assim por diante. Não se exige, porém, que a impossibilidade se haja devido a ato do adversário - caso em que se poderá configurar o fundamento contemplado no inciso III (dolo da parte vencedora). É concebível que a responsabilidade caiba até a litisconsorte, cujo interesse talvez não coincidisse com o daquele a quem aproveitaria a produção do documento, ou a assistente, conluiado ou não com o litigante adverso. São hipóteses, todas essas, que de maneira alguma excluem a viabilidade da rescisória, mas tampouco precisam ocorrer para ensejála.92 Reza o texto que o documento deve ter sido obtido “depois da sentença”. Na interpretação dessa cláusula há de ter-se em conta, de um lado, que a decisão rescindenda nem sempre será a proferida em primeiro grau de jurisdição, já que esta pode haver sido

objeto de recurso, vindo a ser substituída pelo julgamento do tribunal (art. 512); de outro lado, que a possibilidade de juntar documento, conforme se recordou acima, não subsiste ao longo de todo o processo: de nada valeria à parte, por exemplo, obter documento novo em fase de recurso extraordinário. Por conseguinte, “depois da sentença” significará “depois do último momento em que teria sido lícito à parte utilizar o documento no feito onde se proferiu a decisão rescindenda”.93 O documento deve ser tal que a respectiva produção, por si só, fosse capaz de assegurar à parte pronunciamento favorável. Em outras palavras: há de tratar-se de prova documental suficiente, a admitir-se a hipótese de que tivesse sido produzida a tempo, para levar o órgão julgador a convicção diversa daquela a que chegou. Vale dizer que tem de existir nexo de causalidade entre o fato de não se haver produzido o documento e o de se ter julgado como se julgou.94 Por “pronunciamento favorável” entende-se decisão mais vantajosa para a parte do que a proferida: não apenas, necessariamente decisão que lhe desse vitória total. Tanto pode pedir a rescisão, com base no inciso VII, o litigante que obteve parte do que pretendia e teria obtido tudo se houvesse usado o documento, quanto o que nada obteve e teria obtido ao menos parte usando o documento. Refere-se o dispositivo ora comentado à obtenção de documento novo; não se refere à descoberta, pelo interessado, de fato cuja existência ignorasse e, por isso, não tenha alegado no processo anterior. O que se permite é que a parte produza agora a prova documental, que não pudera produzir, de fato alegado; não se lhe permite, contudo, alegar agora fato que não pudera alegar, mesmo por desconhecimento.95 Logo, se o réu, v. g., alegara compensação e só não vira acolhida a defesa por não ter conseguido provála, a obtenção posterior de documento decisivo abre-lhe a via da rescisória; se, porém, não alegara compensação, não pode rescindir a sentença, ainda que obtenha depois prova documental inquestionável do seu contracrédito. A fortiori, o autor vencido em vão pretenderá rescindir a sentença, exibindo documento, posteriormente obtido, capaz de provar fato diverso do que se invocara para fundamentar o pedido (isto é, outra causa petendi), até porque, em semelhante hipótese, a autoridade da coisa julgada não obstaria à propositura de nova ação, com o mesmo objeto da anterior (mas distinta dela!). Não pode haver ampliação da área lógica dentro da qual se exerceu, no primeiro feito, a atividade cognitiva do órgão judicial, mas unicamente ampliação dos meios de prova ao seu dispor para resolver questão de fato já antes suscitada. 82. Existência de fundamento para invalidação de confissão, desistência ou transação: A) Interpretação do dispositivo - Nos termos do inciso VIII, ocorrerá rescindibilidade “quando houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença”. A interpretação deste dispositivo suscita graves problemas, para cuja solução correta é mister que se esclareça o sentido da regra no sistema jurídico de que ela foi mutuada, a saber, o do Código português de 1939.96 O art. 771, 4º, do aludido diploma fazia cabível a revisão de sentença passada em julgado quando se tivesse revogado, ou houvesse fundamento para revogar, a confissão, desistência ou transação em que a decisão se baseara. A norma estava em correlação com a constante do art. 306, segundo o qual a confissão, a desistência e a transação eram

revogáveis “por erro de fato, por dolo, coação ou simulação, em ação para esse fim intentada”. Ao prejudicado pelo vício abriam-se dois caminhos: ou propor incontinenti a ação de revogação, para, depois, com base na sentença favorável, pedir a revisão da que houvesse buscado suporte no ato revogado, ou então, caso já transitada em julgado esta última, requerer-lhe a revisão desde logo. Daí a dupla referência, no texto do art. 771, 4º, a ter-se revogado e a haver fundamento para revogar a confissão, a desistência ou a transação.97 Consoante o art. 771, 5º, admissível era também a revisão em sendo nulo qualquer desses atos “por irregularidade de mandato ou insuficiência de poderes do mandatário”, salvo se a sentença houvesse sido notificada pessoalmente ao mandante. A primeira observação necessária é a de que, ao falar de “confissão”, não tinha em vista o Código luso, aí, o meio de prova designado, com propriedade, por esse nomen iuris, e disciplinado nos arts. 560 e seguintes. O instituto a que aludiam tanto o art. 306 quanto o art. 771, 4º, era na verdade o do reconhecimento do pedido do autor, contemplado nos arts. 292 e seguintes, sob a denominação imprópria de “confissão”, como causa de extinção da instância.98 Ora, na sistemática do Código pátrio de 1973, não há lugar para confusão sequer terminológica entre as duas figuras: a confissão, simples meio de prova, consistente na admissão, por qualquer das partes, da verdade de fato contrário ao seu interesse e favorável ao adversário (art. 348, 1ª parte), e o reconhecimento do pedido, expressamente previsto, no artigo 269, nº II, como um dos fatos suscetíveis de produzir a extinção do processo com “julgamento de mérito”, no sentido que já se explicou (vide, supra, o comentário nº 69). Não se pode, entretanto, vislumbrar no texto do dispositivo ora comentado mero lapsus calami, a ser corrigido por via interpretativa, de sorte que se devesse ler “reconhecimento” onde está escrito “confissão”. A tanto obsta o disposto no art. 352, sem sombra de dúvida relativo à confissão propriamente dita, e onde se contempla a possibilidade da respectiva invalidação, “por ação anulatória, se pendente o processo em que foi feita” (inciso I), ou “por ação rescisória, depois de transitada em julgado a sentença, da qual constituir o único fundamento” (inciso II). Posta de lado a impropriedade terminológica (“revogada” está no art. 352 por “anulada”),99 a regra conjuga-se, à evidência, com a do artigo 485, nº VIII. Quer isso dizer que ao intérprete não é dado excluir o cabimento da rescisória no caso de haver fundamento para invalidar confissão, em sentido próprio. Não há óbice, porém, a que se interprete extensivamente o termo “confissão”, no inciso VIII, para fazê-lo abranger também a figura do reconhecimento, como é da lógica do sistema.100 No que tange à desistência, cumpre notar que, no texto português, o vocábulo compreendia assim a “desistência do pedido”, extintiva do “direito que se pretendia fazer valer” (art. 300, 1ª alínea), como a “desistência da instância”, que em regra só fazia “cessar o processo” (art. 300, 2ª alínea). Ora, aqui também o Código de 1973 adota terminologia diversificada: conforme o art. 267, nº VIII, extingue-se o processo sem julgamento de mérito “quando o autor desistir da ação”, ao passo que, de acordo com o art. 269, nº V, ocorre a extinção com julgamento de mérito “quando o autor renunciar ao direito sobre que se funda a ação”. A primeira dessas figuras corresponde à “desistência da instância”, e a segunda à “desistência do pedido”, no diploma luso de 1939.101 No

dispositivo sob exame, necessariamente deve tratar-se de sentença de mérito, nos termos do caput; logo, não é possível supor que a lei se refira à hipótese do art. 267, nº VIII. Por “desistência”, aí, há de entender-se, pois, “renúncia”: o caso é unicamente o do art. 269, nº V.102 83. Existência de fundamento para invalidade de confissão, desistência ou transação: B) Pressupostos da rescindibilidade - À luz das precedentes considerações, o resultado a que até agora se chega, na exegese do inciso VIII, é o de que onde está escrito “confissão, desistência ou transação” deve ler-se “confissão, reconhecimento do pedido, renúncia ou transação”. Será rescindível a sentença, diz a lei, “quando houver fundamento para invalidar” qualquer desses atos, se num deles se tiver baseado aquela. Não é preciso que já se tenha invalidado previamente o ato, mediante outra sentença. No particular, diverge o texto sancionado do que constava quer do anteprojeto BUZAID (art. 534, nº VIII), quer do projeto enviado ao Congresso (art. 489, nº VIII): à semelhança do Código português de 1939, um e outro contemplavam ambas as hipóteses. A Câmara dos Deputados suprimiu a referência ao caso de já se haver desconstituído o ato, antes da propositura da rescisória. No tocante à confissão, tem-se de conjugar o dispositivo ora comentado com o do art. 352. Consoante já se recordou, ali se estatui que “a confissão, quando emanar de erro, dolo ou coação, pode ser revogada: I - por ação anulatória, se pendente o processo em que foi feito; II - por ação rescisória, depois de transitada em julgado a sentença, da qual constituir o único fundamento”. A redação é muito defeituosa: a ação rescisória não visa a revogar (aliás, anular) a confissão, mas a rescindir a sentença que nela se fundou coisa bem diferente. Por outro lado, nem só o erro, o dolo e a coação podem acarretar a invalidade da confissão: basta lembrar as hipóteses de falta de poderes do procurador (art. 38) e outras de que trata o Código, na própria secção consagrada a esse meio de prova (arts. 350, parágrafo único; 351). Não há como excluir, em casos tais, o cabimento da ação rescisória contra a sentença baseada na confissão, pois a fórmula do art. 485, nº VIII, é genérica: alude a qualquer fundamento para invalidar o ato.103 Se cabe ou não, porém, na pendência do processo, a ação anulatória, fora das hipóteses de erro, dolo ou coação, é outro problema, que seria inoportuno enfrentar aqui; a sede própria serão os comentários pertinentes ao art. 352. O Código silencia quanto aos eventuais motivos de invalidade do reconhecimento do pedido, da renúncia (“desistência”, segundo a letra do art. 485, nº VIII) e da transação. Podem ser os indicados no art. 352 a respeito da confissão, ou quaisquer outros previstos em normas processuais e, eventualmente, também em normas de direito substantivo. A indisponibilidade do direito sobre que incida qualquer desses atos é fundamento de invalidade, comum a todos. Nos termos do dispositivo sob exame, não basta que o ato seja suscetível de invalidação: para que a sentença se torne rescindível, é mister que se tenha baseado nele. Relativamente ao reconhecimento, à renúncia e à transação, não surge aqui problema algum: achando validamente praticado qualquer desses atos, cabe ao juiz apenas encerrar

o processo, mediante decisão que, a despeito de considerada pelo art. 269 como “julgamento de mérito”, não reflete, em seu conteúdo, a convicção do órgão judicial, mas se limita a homologar a autocomposição da lide, realizada por uma das partes ou por ambas (vide, supra, o comentário nº 69). Tal sentença necessariamente se baseia no reconhecimento, na renúncia ou na transação; não tem, mesmo, outra base. Diverso é o caso da confissão; aqui, faz-se relevante averiguar se nela, em verdade, se baseou a sentença. Cumpre atentar na fundamentação desta (art. 458, nº II), para apurar se o juiz incluiu a confissão entre as razões de decidir, ou se chegou à sua conclusão independentemente dela. Deve-se raciocinar fazendo abstração da confissão e verificando se o teor da decisão permaneceria o mesmo ainda que a parte não houvesse confessado. O art. 352, nº II, é mais rigoroso: exige que a confissão tenha constituído “o único fundamento” da sentença. Tal requisito, porém, conforme resulta do caput, limita-se às hipóteses de erro, dolo ou coação; sendo outro o motivo de invalidade, basta que a confissão seja fundamento indispensável da decisão. Semelhante distinção, ao nosso ver, é arbitrária e injustificável de lege ferenda.104 Aliás, já de lege lata, sem dúvida por sentir a incoerência, parte da doutrina tende a equiparar todos os casos, desprezando a diferença de tratamento emergente do confronto entre os textos. A tal resultado pode chegar-se por dois caminhos: ou se faz prevalecer indiscriminadamente a exigência do art. 352, nº II,105 ou então, ao contrário, admite-se que, mesmo nas hipóteses de erro, dolo ou coação, possa haver outro fundamento, além da confissão, contanto que a sentença “nela se haja baseado e, com a sua decretação de invalidade, desapareça”.106 84. Existência de fundamento para invalidação de confissão, desistência ou transação: C) Efeitos da rescisão - Como já se assinalou, o dispositivo ora sob exame autoriza a rescisão da sentença independentemente da prévia invalidação do ato defeituoso em que se tenha ela baseado. O art. 486, por seu turno, permite que se “rescindam” (rectius: que se anulem) atos homologados por sentença, sem necessidade de desconstituir-se esta, mediante ação rescisória. Teremos de verificar, oportunamente, como se articulam as duas normas (infra, comentário nº 92 ao art. 486). Neste passo, impende esclarecer um aspecto da eficácia do acórdão que porventura julgue procedente pedido de rescisão de sentença com fundamento no art. 485, nº VIII. Seria incorreto supor que, rescindida a decisão, subsistisse o ato em que ela se baseara. Consente a lei que o ataque vise diretamente a sentença, dispensando a parte de promover, antes, a invalidação do ato que lhe servira de suporte; mas deve entender-se que, vingando a rescisória, caem ambos, o ato-base (confissão, renúncia, reconhecimento do pedido, transação) junto com a decisão. Ocorre aí, substancialmente, verdadeira cumulação implícita de pedidos: o de invalidação do ato-base e o de rescisão da sentença.107 Escusado acrescentar que essa decisão não deixa de ser rescindível por algum outro dos fundamentos previstos no art. 485; assim, por exemplo, quando proferida por juiz absolutamente incompetente (inciso II, fine). Aí, todavia, sendo exclusivamente da sentença o vício, só ela cairá com o julgamento de procedência na ação rescisória; o ato,

em si, fica de pé, uma vez que nada se alegou nem se decidiu contra a sua validade. Objetar-se-á talvez que dificilmente haveria interesse em desconstituir apenas a sentença - em particular quando meramente homologatória -, deixando incólume o ato-base. Não é lícito ao intérprete, contudo, excluir a priori, por essa única razão, a admissibilidade da rescisória: a existência ou inexistência de interesse é questão que terá de ser apreciada in casu.108 85. Erro de fato: A) Generalidades - O inciso IX do art. 485 corresponde, quase literalmente, ao art. 395, nº 4, do Código italiano, onde se prevê, como fundamento da revocazione, o “errore di fatto risultante dagli atti o documenti della causa”. O legislador pátrio, no entanto, não foi feliz ao traduzir a expressão transcrita. Em primeiro lugar, é equívoco o uso de “resultante” no texto brasileiro, pois no original a palavra não tem o sentido de “decorrente, oriundo, proveniente”, que é a sua acepção vernácula. O dispositivo da lei peninsular refere-se ao erro de fato que transparece, que emerge, que ressalta dos “atti o documenti della causa”, e não ao erro de fato que fosse uma conseqüência desses “atti o documenti”. Ademais, no texto italiano, o vocábulo “atti”, que pode ter mais de um sentido, não está empregado no de atos, mas no de autos, coisa bem diferente.109 É o que se pode comprovar mediante consulta à doutrina, formada quer sob o Código em vigor, quer sob o antigo, de 1865, cujo art. 494, 4º, já contemplava a hipótese, em termos quase idênticos. Falava-se, àquela época, de ter o juiz acreditado ver o que não existe, ou fundado sua convicção no pressuposto da inexistência de algo que haveria logo visto se tivesse exercitado os olhos do corpo e da inteligência “sulle carte del processo”;110 depois se falou de uma equivocação do magistrado “nella lettura degli atti di causa”, ou ainda de “una svista del giudice nella consultazione degli atti del processo”.111 Trata-se, em suma, de erro de fato suscetível de ser verificado à vista dos autos do processo e dos documentos deles constantes. Essa a inteligência que se deve dar, também, ao texto pátrio, mediante reconstrução da mens legis, à luz do modelo inspirador, desprezada a letra enganosa do dispositivo. É imperioso, aliás, até por uma razão de ordem sistemática, pôr de lado aqui a interpretação literal: se se tratasse de erro de fato a que o órgão judicial houvesse sido induzido em conseqüência de documento ou de outra prova constante dos autos, isso significaria que tal prova era falsa, e a hipótese recairia sob a incidência do nº VI. Em regra, o erro do juiz em matéria de fato, não obstante torne injusta a decisão, nenhuma influência exerce sobre a sua validade. O Código de 1939, no art. 800, expressamente negava a rescindibilidade por mera “injustiça da sentença” e por “má apreciação da prova ou errônea interpretação do contrato”, sendo evidente que estas duas hipóteses, em última análise, se resolviam na primeira. O atual diploma absteve-se de reproduzir a norma, que todavia subsiste implícita, como princípio geral, derrogado apenas nos casos expressos, qual o do inciso IX - inovação perigosa, a cuja consagração inutilmente se opôs a Comissão Revisora do anteprojeto.112

86. Erro de fato: B) Pressupostos da rescindibilidade - Consiste o erro de fato em a sentença “admitir um fato inexistente” ou “considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido” (§ 1º). De modo nenhum o configura o engano na qualificação jurídica; por exemplo, a errônea consideração de determinado contrato como se fosse comodato, em vez de locação, não corresponde ao tipo legal:113 é preciso que o erro incida sobre o fato em si, sobre a ocorrência ou não do acontecimento. Tampouco se enquadra na moldura do art. 485, § 1º, o mero erro aritmético, suscetível de correção a qualquer tempo, sem necessidade de ação rescisória.114 Quatro pressupostos hão de concorrer para que o erro de fato dê causa à rescindibilidade: a) que a sentença nele seja fundada, isto é, que sem ele a conclusão do juiz houvesse de ser diferente; b) que o erro seja apurável mediante o simples exame dos documentos e mais peças dos autos, não se admitindo de modo algum, na rescisória, a produção de quaisquer outras provas tendentes a demonstrar que não existia o fato admitido pelo juiz, ou que ocorrera o fato por ele considerado inexistente;115 c) que “não tenha havido controvérsia” sobre o fato (§ 2º); d) que sobre ele tampouco tenha havido “pronunciamento judicial” (§ 2º). Estes dois últimos requisitos merecem exame mais demorado. 87. Erro de fato: C) Inexistência de controvérsia - Em três hipóteses concebe-se que o fato haja sido incontroverso no processo anterior: 1ª, se nenhuma das partes sequer o alegou; 2ª, se uma admitiu a alegação da outra, isto é, confessou (cf. o art. 348, 1ª parte); 3ª, se uma simplesmente se absteve de contestar a alegação da outra. À terceira é que se refere, ao nosso ver, o dispositivo do art. 334, nº III. Quanto ao réu, vale assinalar que o Código consagra o ônus da contestação especificada (art. 302, caput, 1ª parte) e, salvo raríssimas exceções, presume verdadeiros os fatos não impugnados (art. 302, caput, 2ª parte), bem como os afirmados pelo autor, no caso de revelia (artigo 319, com as ressalvas do art. 320). Na primeira hipótese (fato não alegado), o motivo de rescindibilidade só pode configurarse, é claro, se se tratava de fato que ao órgão judicial era lícito levar em conta ex officio.116 Assim, v.g., quando os autos mostravam que já ocorrera a prescrição, não sendo patrimonial o direito postulado (art. 219, § 5º), mas o réu deixou de argüi-la e o juiz de decretá-la. Sendo, ao contrário, patrimonial o direito, a consumação da prescrição, por mais nitidamente comprovada que estivesse nos autos, era fato de que apenas se podia conhecer mediante alegação do réu; logo, na omissão deste, será irrelevante qualquer tentativa de ataque à sentença com fulcro na afirmação de que a causa teria sido decidida de outro modo, caso não houvesse passado despercebida ao julgador a peça dos autos que evidenciava a ocorrência da prescrição. Com efeito: ainda que nela atentasse,

nenhuma conseqüência estaria o juiz em condições de tirar daí, inibido que se achava pelo silêncio da parte. A segunda hipótese (fato admitido) compreende duas possibilidades: pode acontecer que ambas as partes hajam sido concordes em afirmar existente o fato, ao passo que a sentença, apesar disso, o supôs inexistente; ou, vice-versa, que ambas hajam sido concordes em afirmá-lo inexistente, e a sentença o tenha suposto existente. Vejamos dois exemplos, figurados em processo de cancelamento do registro de servidão: a) ambas as partes admitiram que o prédio dominante passara a ter acesso à estrada pública recémaberta (Código Civil, art. 709, nº II), mas o órgão judicial, sem advertir-se da circunstância, provada nos autos, indeferiu o cancelamento (observe-se que não ocorreu aqui a violação de lei prevista no inciso V, o que somente se daria se a sentença rejeitasse o pedido apesar de reconhecer a acessibilidade); b) ambas as partes admitiram (e ficou provado) que a estrada não dera acesso ao prédio dominante, mas o juiz, desatento a esse aspecto, acolheu o pedido de cancelamento, fundando-se na mera consideração de ter sido aberta a estrada (incidiria o nº V, se a sentença declarasse irrelevante a inexistência de acesso). Escapa ao âmbito de incidência do inciso IX o caso de confissão falsa, que pode fundamentar a rescisão ex vi do inciso VI. Quanto à terceira hipótese (fato não contestado), a norma do inciso IX mostra que, mesmo fora das exceções contempladas nos arts. 302 e 320, não é absoluta a presunção de veracidade: se o órgão judicial ficasse vinculado a admitir o fato como verdadeiro pela só ausência de impugnação, não se explicaria que a sentença se tornasse rescindível quando o suponha existente sem que, na realidade, ele haja ocorrido. Imaginemos o caso de ação redibitória em que o autor inclua no pedido certa importância a título de perdas e danos, alegando que o réu conhecia o vício oculto da coisa alienada (Código Civil, art. 1.103, 1ª parte); na contestação, silenciando sobre este último ponto, limita-se o réu a negar que o defeito apontado torne a coisa imprópria ao uso a que se destina, ou lhe diminua o valor. Provado o vício redibitório, o juiz acolhe in totum o pedido. Entretanto, as peças dos autos permitem a verificação de que, nas circunstâncias do episódio, era inteiramente impossível que o réu conhecesse o vício. O fato do conhecimento, não contestado, e suposto existente, na verdade não o era. A sentença é rescindível na parte em que condenou o réu ao pagamento de perdas e danos. 88. Erro de fato: D) Inexistência de pronunciamento judicial - Ao exigir que não tenha havido, no processo anterior, “pronunciamento judicial sobre o fato”, preexclui o Código a possibilidade de rescindir sentença em cuja fundamentação se depare a expressa (e errônea) consideração do fato como existente ou como inexistente. Deve tratar-se, pois, de uma questão não resolvida pelo juiz -117 ou, consoante às vezes se diz com fórmula criticável, de uma questão apenas implicitamente resolvida.118 Havia nos autos elementos bastantes para convencer o juiz de que o fato ocorrera; apesar disso, revela o teor do decisum que não se levou em conta a respectiva existência, sem que na motivação tenha ela sido negada. Ou, inversamente: havia nos autos elementos bastantes para demonstrar que o fato não ocorrera; no entanto, a maneira como julgou evidencia que o magistrado não o reputou inexistente, embora silenciando, aqui também, na motivação.

Em outras palavras: a hipótese não é a de que o órgão judicial tenha chegado à conclusão a que chegou por meio de raciocínio, exposto na motivação, em cujas premissas figure expressamente a afirmação do fato não ocorrido ou a negação do fato ocorrido.119 O que precisa haver é incompatibilidade lógica entre a conclusão enunciada no dispositivo da sentença e a existência ou a inexistência do fato, uma ou outra provada nos autos mas porventura não colhida pela percepção do juiz, que, ao decidir, pura e simplesmente saltou por sobre o ponto sem feri-lo. Se, ao contrário, o órgão judicial, errando na apreciação da prova, disse que decidia como decidiu porque o fato ocorrera (apesar de provada nos autos a não ocorrência), ou porque o fato não ocorrera (apesar de provada a ocorrência), não se configura o caso do inciso IX. A sentença, conquanto injusta, não será rescindível. O pensamento da lei é o de que só se justifica a abertura de via para a rescisão quando seja razoável presumir que, se houvesse atentado na prova, o juiz não teria julgado no sentido em que julgou. Não, porém, quando haja ele julgado em tal ou qual sentido por ter apreciado mal a prova em que atentou. No exemplo da ação redibitória, acima formulado, se na sentença se afirmasse o conhecimento do vício oculto pelo réu, ainda que as peças dos autos evidenciassem de modo cabal a impossibilidade desse conhecimento, a condenação em perdas e danos ficaria imune à rescisão. Esta só pode ser decretada no caso de omissão do juiz em pronunciar-se acerca do ponto. A suposição do conhecimento do vício pelo réu apenas se inferirá logicamente da conclusão a que chegou o órgão judicial, condenando-o ao pagamento das perdas e danos; não deve ter sido registrada, todavia, na motivação da sentença.120 A semelhante luz torna-se até certo ponto compreensível a observação, feita na Itália com imensa autoridade,121 de que a discrepância não é tanto entre o pensamento do juiz e a realidade, quanto entre o pensamento e sua expressão. Não basta, com efeito, a divergência entre a convicção judicial e a realidade provada nos autos para fundamentar a rescisão: será irrescindível a sentença se o errôneo convencimento se houver traduzido nela pela expressa afirmação do fato não ocorrido ou pela expressa negação do fato ocorrido.122 O reparo cabível é o de que, na verdade, nada importa que o juiz tenha efetivamente suposto algo diverso da realidade, tal como a espelham os autos, deixando apenas de registrar a suposição na sentença, ou que essa falta de registro seja simples conseqüência de não haver o juiz pensado no ponto - isto é, de nada haver suposto ao propósito. É irrelevante que se trate de suposição errônea não expressa ou da ausência de qualquer suposição: o erro pode ter consistido quer em captar a realidade pelo avesso, quer simplesmente em não a captar de modo algum. A indagação decisiva resume-se nisto: subsistiria a conclusão da sentença se, à luz dos elementos probatórios colhidos no processo, o fato sobre o qual não se pronunciou o órgão judicial houvesse de considerarse existente, em vez de inexistente, ou inexistente, em vez de existente? Mas não se reclama a efetiva ocorrência de determinada suposição, no processo mental do juiz: basta que, pelo teor da conclusão, se verifique não ter ocorrido a suposição contrária, à qual, no entanto, inequivocamente conduziam as provas dos autos. Se, por exemplo, em ação de cobrança de dívida, provado estava o pagamento - sem que tivesse havido controvérsia entre as partes acerca do ponto - e a sentença julgou

procedente o pedido, silenciando também ela ao propósito, nada importa, para torná-la rescindível com lastro no inciso IX, que o órgão judicial haja suposto inexistente o fato do pagamento, ou não tenha feito, no particular, suposição alguma, deixando simplesmente de cogitar da questão. É suficiente a circunstância - deduzível do teor do decisum - de não haver ele suposto existente o fato, como era de esperar à vista dos autos. Se o juiz, na motivação da sentença, negou a ocorrência do pagamento, fica excluída a rescindibilidade: pode ter havido má apreciação da prova, que não basta para justificar a rescisão. 89. Autonomia e taxatividade dos pressupostos específicos - Cada um dos possíveis fundamentos da rescisória, enumerados no art. 485, é suficiente por si só. Não é necessário conjugá-los entre si, nem conjugar qualquer deles com alguma outra circunstância. Aos vários fundamentos possíveis correspondem outras tantas causae petendi, diversas e autônomas; a invocação de uma não exclui a de qualquer das restantes. Pode-se pedir a rescisão por dois ou mais fundamentos; haverá cumulação de ações rescisórias, conexas pelas partes e pelo petitum, inclusive quando os dois (ou mais) fundamentos invocados se enquadrem no mesmo inciso do art. 485, v.g. duas (ou mais) violações de lei. Para a procedência, no iudicium rescindens, basta que se prove um dos fundamentos dentre os invocados. Fundamento não invocado em caso algum autoriza a rescisão, por mais convencido que fique o órgão julgador da ocorrência do fato.123 A indicação errônea de um por outro dos incisos do art. 485, todavia (assim como o equívoco na referência à disposição legal supostamente violada, no caso do inciso V), não vincula o órgão julgador, que pode examinar o pedido, e eventualmente acolhê-lo, à luz do dispositivo adequado, desde que a narração do fato conste da inicial (iura novit curia).124 Se a ação foi proposta só por um fundamento, ou por mais de um, julgado improcedente o pedido no iudicium rescindens, a coisa julgada não obsta a que, ainda entre as mesmas partes, se volte a pedir a rescisão da sentença, por outro fundamento (cf. art. 301, §§ 1º a 3º): a causa petendi seria diversa.125 Os fundamentos discriminados no art. 485 são, por outro lado, taxativos.126 A enumeração do texto exaure as hipóteses de rescindibilidade. Não é possível cogitar-se de outras quaisquer, nem mediante recurso à analogia.127 Lícita, porém, a interpretação extensiva, que se limita a revelar o verdadeiro alcance da norma, quando a lei minus dixit quam voluit: assim, por exemplo, no comentário nº 82, ao inciso VIII, mostramos que a referência à “confissão” abrange também o reconhecimento do pedido. Merece alusão particular o caso da sentença que julga partilha. O art. 1.030, nos seus três incisos, arrola possíveis fundamentos de rescisão que lhe são peculiares. Não se deve entender que fique afastada a invocabilidade de qualquer dos motivos contemplados no art. 485. Os do art. 1.030 acrescentam-se a estes; não os excluem.128 90. Direito intertemporal e pressupostos específicos - A possibilidade de rescindir-se a sentença rege-se pela lei em vigor na data do seu trânsito em julgado: é nessa data, com efeito, que nasce o direito à rescisão, e obviamente só pode nascer se o sistema jurídico

vigente prevê, como fundamento bastante, o fato invocado. Se a sentença transita em julgado sem que certo fato esteja previsto no ordenamento como motivo de rescindibilidade, a superveniência de lei que passe a considerá-lo tal não torna rescindível, por esse fundamento, a sentença.129 E vice-versa: a lei nova que exclua determinado fato do rol dos fundamentos de rescisão não impede que se rescinda a sentença, se na data do trânsito em julgado o fato constituía motivo bastante. O Código de 1973, conforme oportunamente assinalado, ampliou o elenco dos pressupostos específicos de rescindibilidade. Os motivos acrescentados, porém, só se fizeram relevantes para a rescisão de sentença já passada em julgado sob a vigência do novo diploma. As decisões trânsitas em julgado ainda no domínio do estatuto de 1939, e que à luz dele eram irrescindíveis, permaneceram irrescindíveis. As que só eram passíveis de rescisão por fundamento então reconhecido continuaram passíveis de rescisão por esse fundamento; não, contudo, por qualquer dos novos fundamentos contemplados no art. 485.130 Art. 486. Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil. Direito anterior - Código de Processo Civil e Comercial de São Paulo, art. 539, parágrafo único; Código de Processo Civil de 1939, art. 800, parágrafo único. Direito comparado - Portugal: Código de Processo Civil, art. 301. COMENTÁRIO 91. Ação anulatória de ato "judicial" - O art. 486, que reproduz quase ipsis litteris o dispositivo do art. 800, parágrafo único, do diploma de 1939, na verdade não se refere à ação rescisória de sentença. Trata, sim, de casos em que, independentemente da rescisória, pode promover-se a desconstituição de “atos judiciais”. A palavra “rescindidos” está aí por “anulados”: a impropriedade terminológica já fora apontada pela doutrina, em relação ao Código anterior,131 e tem outros antecedentes, como o texto do art. 255 do Regulamento nº 737, que falava em “ação rescisória do contrato”. A ação a que alude o dispositivo comentado visa à anulação de atos praticados no processo, aos quais ou não precisa seguir-se decisão alguma, ou se segue decisão homologatória, que lhes imprime eficácia sentencial (cf., quanto ao conceito de homologação, o comentário nº 45 ao art. 483, supra). Não obstante lhes chame “judiciais”, porque realizados em juízo, quer a lei referir-se a atos das partes.132 Ato praticado por órgão judicial é insuscetível de ataque pela ação anulatória do art. 486. Em primeiro lugar, aponta nesse sentido a própria redação do dispositivo. De um ato do juiz pode dizer-se com propriedade que não consiste em sentença, que não constitui sentença; nunca, porém, que “não depende” de sentença. E, se interpretássemos o “não dependem de” como equivalente a “não consistem em” ou “não constituem”, chegaríamos ao

resultado, manifestamente absurdo, de que o texto autoriza a impugnação, pela via agora examinada, de todos os atos do órgão judicial não consistentes em sentenças: decisões interlocutórias, despachos e atos sem natureza de pronunciamentos (instrutórios, por exemplo). Qualquer deles seria passível de desconstituição “nos termos da lei civil” (?). O raciocínio aplica-se, mutatis mutandis, à outra classe de atos mencionada no art. 486, sendo desnecessário frisar quão pouco razoável se afigura lê-lo como se aludisse a “atos do juiz em que a sentença seja meramente homologatória”. A única maneira de entender semelhante expressão seria traduzi-la por “sentenças meramente homologatórias”; mas, de um lado, estaríamos atribuindo ao Código o uso de circunlóquio a todas as luzes injustificável; de outro, a interpretação esvaziaria quase totalmente o dispositivo, já que as mais importantes decisões meramente homologatórias ou se acham contempladas expressis verbis alhures, submetendo-se a regime diverso (rescisão segundo o art. 485, nº VIII), ou não se concebe sejam invalidadas “nos termos da lei civil”, como é o caso da homologação de sentença estrangeira. Aliás, a cláusula aspeada - sem embargo do que adiante se observará a respeito da sua insuficiência - é, por si só, índice valioso, na medida em que se tenha presente esta circunstância relevantíssima: na sistemática do Código de 1973, e em particular no Capítulo “Das nulidades”, nada rende ensejo à suposição de que se haja querido subordinar ao regime civilístico a invalidação dos atos praticados pelo órgão judicial.133 No tocante aos atos “que não dependem de sentença”, é óbvio que jamais caberia cogitar de ação rescisória, no sentido próprio do art. 485, cujo texto exige que se trate de sentença - e mais: de sentença de mérito. Poderia supor-se, entretanto, que o fato de estarem tais atos insertos no processo excluísse a possibilidade de serem anulados por ação autônoma. É essa suposição que o art. 486 vem afastar. Quanto aos atos que constituam objeto de sentença “meramente homologatória”, a importância do dispositivo consiste em deixar claro que, apesar do invólucro sentencial que os cobre, podem ser diretamente impugnados, sem necessidade de rescindir-se - usada a palavra, aqui, na acepção técnica - a decisão homologatória. A ação dirige-se ao conteúdo (ato homologado), como que atravessando, sem precisar desfazê-lo antes, o continente (sentença de homologação). Insista-se em que não é a sentença, mas o ato homologado, que constitui o objeto do pedido de anulação - o que não quer dizer que a eventual queda do segundo deixe de pé a primeira (vide, infra, o comentário nº 96). 92. Cabimento da ação anulatória: A) Atos atacáveis - Faz menção o texto legal a duas espécies de atos “judiciais”: 1ª) atos que “não dependem de sentença”; 2ª) atos a que se há de seguir sentença “meramente homologatória”. Exemplos da primeira espécie seriam, entre outros, a outorga de poderes em procuração passada nos autos, a renúncia ao direito de recorrer, a aceitação expressa de decisão, a desistência do recurso e, de modo geral, as declarações de vontade das partes, unilaterais ou bilaterais que sejam. No que concerne à segunda espécie, a maneira como se exprime o texto legal pode dar a impressão de que se teria de proceder à discriminação prévia, dentre os casos de homologação por sentença, daqueles em que esta fosse “meramente homologatória”: estaria pressuposta, em outras palavras, uma distinção entre dois tipos de sentenças homologatórias, e só em relação a

um deles - designado pelo advérbio “meramente” - caberia, contra o ato homologado, a ação do art. 486. Quer-nos parecer infrutífera, contudo, qualquer pesquisa assim orientada. Não soam convincentes as tentativas de diferenciar com nitidez, de um lado, sentenças meramente homologatórias e, de outro, sentenças homologatórias que não o sejam “meramente”. Para nós, a sentença é homologatória quando se limita a imprimir a ato não oriundo do órgão judicial força igual à que ele teria se de tal órgão emanasse - isto é, a equiparar um ao outro, sem nada acrescentar à substância do primeiro. O advérbio “meramente” não visa a caracterizar uma subespécie de sentenças homologatórias, mas apenas a enfatizar que é dessa espécie que se trata, e não de sentenças que não se restrinjam a homologar; simples realce do adjetivo, nada mais. Claro está que é preciso ter cuidado com a terminologia das leis, nem sempre tecnicamente rigorosa; pode acontecer que tal ou qual dispositivo fale de “homologação” ou de sentença “homologatória” onde na verdade exista algo de decisão própria do juiz; em semelhantes hipóteses, à evidência, não há cogitar da aplicação do art. 486. Também se concebe que a sentença seja homologatória só em parte, e não tenha essa natureza no restante: o art. 486 será eventualmente aplicável à parte que consista em simples homologação. Como exemplos de atos cobertos por sentenças homologatórias (ou “meramente homologatórias”, se se quiser) podem indicar-se a desistência da ação (art. 158, parágrafo único), a renúncia à pretensão deduzida (art. 269, nº V), o reconhecimento do pedido (art. 269, nº II), a transação (art. 269, nº III), a concordata no processo de insolvência (art. 783), a separação consensual (art. 1.122, § 1º).134 Importa verificar se todos os atos que não dependem de sentença ou que por sentença apenas se homologam podem sempre ser atacados pela ação do art. 486. No que tange aos da primeira espécie, a resposta é, desde logo, afirmativa. Com relação aos da segunda, porém, cumpre levar em conta que o Código, no inciso VIII do art. 485, tornou pressuposto bastante da própria ação rescisória a existência de fundamento para invalidar determinados atos em que se tenha baseado a sentença; e entre esses figuram, conforme se viu no comentário nº 82, supra, a renúncia à pretensão, o reconhecimento do pedido e a transação. A admitir-se que, havendo em qualquer deles vício causador de invalidade, pudesse o ato homologado, em si, constituir objeto da ação anulatória do art. 486, mesmo após o trânsito em julgado da decisão que o homologou, ter-se-ia de concluir por uma injustificável superabundância de meios de impugnação: realmente, de um lado, caberia a ação rescisória contra a sentença de homologação, com suporte no art. 485, nº VIII; de outro, a ação anulatória do próprio ato homologado, nos termos do dispositivo ora sob exame.135 Tal construção revela-se insatisfatória em mais de um aspecto. Primo, a dualidade de remédios só se explicaria se fossem diferentes os resultados atingíveis com o uso de cada qual. Na verdade, porém, as conseqüências práticas seriam as mesmas, se viesse a julgarse procedente quer o pedido de rescisão fundado no art. 485, nº VIII, quer o pedido de anulação baseado no art. 486: na primeira hipótese, desconstituir-se-iam a sentença homologatória e o ato homologado (cf., supra, o comentário nº 84 ao art. 485); na segunda, desconstituir-se-ia o ato homologado e, em virtude disso, cairia a sentença

homologatória (infra, comentário nº 96). Acresce que são diversos os prazos decadenciais num caso e noutro, o que significaria que, mesmo já precluso o prazo para o exercício da rescisória, subsistiria para o interessado a possibilidade de provocar, por via indireta, através da ação do art. 486, a queda da sentença homologatória trânsita em julgado; mas isso não se harmonizaria com a sistemática do ordenamento, preocupado em assegurar de maneira definitiva, após o biênio do art. 495, a estabilidade da res iudicata. Pensamos, destarte, que é necessário distinguir, no tocante aos atos homologáveis por sentença, entre os abrangidos pelo art. 485, nº VIII, e os restantes. Com relação àqueles (renúncia à pretensão, reconhecimento do pedido, transação), o regime será análogo ao da confissão, tal como o define o art. 352; isto é: a ação anulatória unicamente poderá ser utilizada no curso do processo, antes do trânsito em julgado da sentença homologatória; depois disso, o remédio próprio e exclusivo será a ação rescisória do art. 485, nº VIII.136 Quanto aos atos estranhos à área de incidência deste último dispositivo, como não há cogitar de rescindibilidade da sentença homologatória por vício do ato homologado, deixa de pôr-se o problema da conciliação das normas; a ação anulatória do art. 486, via única de ataque, será exercitável sem outras restrições que as porventura estabelecidas em regras específicas. Objeção que se poderia suscitar,137 a respeito dos atos compreendidos no âmbito do art. 485, nº VIII, é a que a construção acima sugerida torna diminuta a utilidade da ação anulatória, pois normalmente será pequeno o espaço de tempo entre a prática de atos como a renúncia à pretensão, ou o reconhecimento do pedido, ou a transação, e o trânsito em julgado da sentença que os homologue. Assim sucederá, sem dúvida, no comum dos casos, e o inconveniente prático é inafastável, embora o seu peso tenha acabado por nos parecer menor que o dos argumentos oponíveis a outras soluções. De qualquer sorte, sempre se concebem hipóteses em que o referido lapso de tempo não seja tão breve, como, v.g., a de reconhecer o réu apenas parcialmente, na resposta, o pedido do autor: aí, prossegue o feito em seus trâmites normais, em relação a toda a matéria não abrangida pelo reconhecimento, e na decisão final é que se tirarão, quanto à parte reconhecida, as devidas conseqüências.138 93. Cabimento da ação anulatória: B) Fundamentos invocáveis - Saber quando são anuláveis os atos independentes de sentença ou passíveis de homologação não é problema de direito processual, mas de direito material. O dado essencial é a natureza do ato impugnado: o que cumpre averiguar é se, em relação a este, há que cogitar-se de anulabilidade por alguma causa prevista em regra de direito material (v.g., vício do consentimento). Os possíveis fundamentos da ação anulatória, portanto, não devem procurar-se nos incisos do art. 485. Não é a essa luz que se há de investigar se existe motivo para pedir a anulação de ato que seja independente de sentença ou constitua objeto de decisão homologatória. O art. 485 disciplina o cabimento da ação rescisória de sentença, não o cabimento da ação anulatória de ato que, em si, não é sentencial, embora possa ser “sentencializado” pela homologação. Repita-se uma vez mais: o objeto da ação anulatória de que agora se está cuidando não é sentença alguma, e sim ato de parte, se

bem que eventualmente homologado por sentença. Cumpre que os tribunais tenham sempre em vista a distinção, para evitar confusões que se observam com freqüência na prática do foro. Diz o art. 486 que os atos sob exame “podem ser rescindidos” (rectius: anulados), “como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil”. A referência à lei “civil” é injustificavelmente restritiva: deve entender-se que os motivos de anulabilidade são os previstos em quaisquer normas de direito material.139 Seja qual for o ramo do direito material a que pertença a norma, se o ato homologado lhe estiver sujeito e nela se previr algum motivo de anulabilidade, caberá a ação do art. 486. Pode acontecer que a validade do ato seja regida por direito de outro Estado, e em conseqüência o fundamento da ação anulatória se haja de buscar em lei estrangeira.140 Por exemplo: em processo instaurado perante a Justiça nacional, mas no qual se discute relação jurídica obrigacional sujeita à disciplina prevista em ordenamento alienígena, traz-se à homologação do juiz brasileiro transação celebrada entre as partes e governada também pelo direito do Estado estrangeiro. Nada impede que se venha a pleitear eventualmente a anulação da transação, sempre no Brasil, com base em motivo contemplado na legislação do outro país. 94. Os vícios da vontade como fundamentos da ação anulatória - Sem embargo do que se expôs, não há dúvida de que, entre os possíveis defeitos capazes de invalidar os atos “judiciais” de parte, e conseqüentemente servir de fundamento à ação do art. 486, avultam por sua importância os vícios da vontade capitulados nas leis civis. Ao propósito, é oportuno sublinhar a relevância do dispositivo sob exame, do ponto de vista sistemático. Ele constitui peça digna de toda a atenção na dogmática do nosso direito processual civil, e quase se pode dizer que o singulariza no plano comparatístico. O vigente ordenamento luso tem o art. 301, que permite a declaração da nulidade ou a anulação da “confissão” (aliás, reconhecimento), da desistência e da transação, com a peculiaridade de não obstar o trânsito em julgado da sentença baseada em qualquer desses atos ao exercício da ação em que se pretenda vê-los declarados nulos ou anulados.141 A grande maioria das legislações, entretanto, é desprovida de norma que corresponda, mesmo parcialmente, à do nosso art. 486; e, no silêncio dos textos, a doutrina tende a negar a possibilidade de invalidação dos atos das partes, por vício da vontade, fora do jogo normal dos recursos, quando for o caso. Foge-se de atribuir a semelhantes defeitos as conseqüências que se lhes reconhecem quanto aos atos de direito material.142 Argumenta-se com a necessidade da certeza, da segurança, inerente ao processo, e que seria posta em xeque se se tolerasse a livre discussão da validade dos atos das partes; diz-se também que o interesse do prejudicado no desfazimento do ato, em quase todas as hipóteses em que se revela digno de proteção, pode ser satisfeito mediante a simples revogação, que se lhe faculta, do ato praticado.143 O princípio da irrelevância dos vícios da vontade nos atos processuais de parte, na verdade, não se vê sustentado com absoluta rigidez: aqui e ali, fazem-se concessões que até certo ponto o temperam. Há, porém, uma constante: mesmo nesses casos, o que se enseja é a impugnação do ato no próprio processo em que foi praticado; da possibilidade de invalidá-lo, à semelhança de

um ato jurídico extraprocessual (v.g., de um contrato), através de ação autônoma - como a do nosso art. 486 e a do art. 301 do Código luso -, nem as leis nem a prevalecente doutrina em geral cogitam. Sirva de exemplo a “revogabilidade” da confissão por “errore di fatto” ou “violenza”, contemplada no art. 2.732 do Código Civil italiano: um comentador do dispositivo, depois de assinalar a analogia entre aquela figura e a da anulabilidade do negócio jurídico, ressalta a diferença dos meios que, numa e noutra hipótese, ficam à disposição do interessado no desfazimento.144 Diversa é a orientação do direito brasileiro. De um lado, reconhece ele, com notável amplitude, a relevância dos vícios da vontade como motivos de invalidade dos atos processuais de parte (não dos atos praticados pelo órgão judicial!): aí estão, não só o art. 352, nº I - especificamente relativo à confissão -, mas também o art. 486, que, em sua largueza, não encontra réplica no direito comparado. De outro, prevê o exercício do direito (potestativo) à eliminação do ato defeituoso em processo distinto, a cuja instauração dá lugar, precisamente, o ajuizamento da ação de que cuida o dispositivo ora examinado - sem que se haja de excluir, contudo, ao menos em certos casos, a possibilidade de discutir-se no próprio feito onde se praticou o ato a questão da sua validade, com evidentíssima vantagem ao ângulo da economia processual. Resta observar que não se aplica à ação anulatória de ato processual fundada em vício da vontade (nem, in genere, a qualquer ação regida pelo art. 486) o disposto no art. 495 acerca do prazo decadencial da rescisória.145 A menos que haja regra especial (como a do art. 1.029, parágrafo único, para a anulação da partilha amigável), incide o art. 178, § 9º, nº V, do Código Civil: não obstante se refira a “contratos” a parte inicial do texto, deve entender-se que a norma é aplicável genericamente aos atos jurídicos, segundo aliás transparece da redação da letra b, verbis “o ato ou o contrato”.146 O prazo é, pois, de quatro anos. 95. Competência e procedimento - Não se confundindo com a rescisória a ação de que trata o dispositivo sob exame, não se lhe aplicam as regras de competência pertinentes àquela. A ação anulatória de ato “judicial” pode ser proponível perante órgão de primeiro grau.147 Dado o vínculo de acessoriedade entre ela e a ação em cujo curso se praticou o ato impugnado, incide a regra do art. 108: será competente para a ação anulatória o mesmo juízo que esteja processando, ou tenha processado, a outra causa. Tal solução atende à ratio legis e afigura-se vantajosa do ponto de vista prático, já pela probabilidade de que o referido juízo se encontre em melhores condições para apreciar a matéria, já em atenção às repercussões que o processo da ação anulatória pode ter sobre o outro, no caso de pendência simultânea (vide, infra, o comentário nº 96), e que decerto gerariam maiores complicações procedimentais, se cada qual corresse perante um órgão distinto. Ante a inexistência, no Código, de rito especial, o procedimento adequado à ação anulatória é o comum (art. 271), ordinário ou sumário, conforme o valor da causa (art. 275, nº I).148

96. Efeitos da ação anulatória - Bem se compreende que o julgamento e, às vezes, a propositura mesma da ação anulatória produzam efeitos sobre o processo em que se praticou o ato impugnado. Diversas hipóteses merecem consideração aqui: a) A ação anulatória é proposta no curso do feito primitivo. Neste caso, pode acontecer que tenha este de ficar suspenso, desde que nele a sentença de mérito dependa do julgamento da ação anulatória (art. 265, nº IV, letra a, 1ª parte). É o que ocorrerá, nomeadamente, quando se pleitear a invalidação da renúncia à pretensão deduzida, do reconhecimento do pedido ou da transação: o Código reputa “julgamento de mérito”, com efeito, a sentença que encerra o processo em virtude de qualquer desses atos (art. 269, nºs V, II e III, respectivamente), e é manifesta a relação de dependência, pois a homologação está condicionada à validade do ato, que se discute na ação anulatória. Trânsita em julgado a decisão que nesta se profira, uma de duas: ou se rejeitou o pedido de anulação, e já nada obsta a que o juiz do processo primitivo homologue o ato, declarado válido; ou então anulado está o ato e o processo primitivo terá de prosseguir, como se não houvera renúncia, reconhecimento ou transação.149 É claro que não fica excluída, em princípio, a possibilidade de sobrevir, sem qualquer vício, nova renúncia, novo reconhecimento ou nova transação. b) A ação anulatória é proposta (sendo possível: vide, supra, o comentário nº 92) após o trânsito em julgado da sentença proferida no processo primitivo. Procedente que seja o pedido de anulação do ato homologado, não pode subsistir a sentença homologatória, se bem que a ação não a tenha visado diretamente. A sentença, em si, não é rescindida; mas, como não passava de envoltório do ato homologado, a anulação deste, por assim dizer, a esvazia. Seria absurdo conceber que pudesse continuar a surtir algum efeito a homologação de ato que se desfez.150 O processo primitivo, normalmente, retomará sua marcha, refazendo o itinerário percorrido desde o ato invalidado, ou passando às etapas subseqüentes que o ato invalidado (pense-se na desistência da ação) porventura o haja impedido de alcançar. c) A ação anulatória visa ato praticado no processo de execução: por exemplo, a renúncia ao crédito (art. 794, nº III). Também nesta hipótese, anulado que seja o ato, retomará sua marcha a execução, a partir do último ato anterior ao que se invalidou. Cairá, naturalmente, a sentença que tenha acaso decretado a extinção do processo executivo (art. 795). Art. 487. Tem legitimidade para propor a ação: I - quem foi parte no processo ou o seu sucessor a título universal ou singular; II - o terceiro juridicamente interessado; III - o Ministério Público:

a) se não foi ouvido no processo, em que lhe era obrigatória a intervenção; b) quando a sentença é o efeito de colusão das partes, a fim de fraudar a lei. Direito comparado - Costa Rica: Código Procesal Civil, art. 598; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, art. 643; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, art. 511; França: Code de procédure civile, art. 594; Itália: Codice di procedura civile, art. 397; Panamá, Código Judicial, arts. 1.158, 2ª alínea, 1.185, 1.193; Portugal: Código de Processo Civil, art. 680. 97. Legitimação ativa - No direito anterior, era omisso o Código de 1939 acerca da legitimação ativa para a rescisória. Em sede doutrinária, já se reconhecia tal legitimação não só às partes do processo em que se proferira a sentença rescindenda, e a seus sucessores, mas também aos terceiros juridicamente interessados.151 O novo Código regula expressis verbis a matéria, começando por declarar ativamente legitimado “quem foi parte no processo ou o seu sucessor a título universal ou singular” (inciso I), estendendo em seguida a legitimação ao “terceiro juridicamente interessado” (inciso II) e, afinal, tratando de hipóteses particulares em que ela toca ao Ministério Público (inciso III). Havendo mais de um legitimado, podem dois ou vários agir em conjunto. Pressuposta a identidade do pedido e a da causa petendi, quanto ao iudicium rescindens, o litisconsórcio ativo será unitário, porque não se concebe a possibilidade de decisão heterogênea: ou se acolhe em face de todos ou em face de todos se rejeita o pedido de rescisão. Necessário, porém, não é o litisconsórcio: a cada um dos co-legitimados é lícito propor sozinho a ação - e aqui se depara mais um desmentido da equiparação que o art. 47 pretendeu estabelecer entre unitariedade e necessariedade do litisconsórcio. 98. Partes e seus sucessores - Legitima-se à ação rescisória, em primeiro lugar, quem haja sido parte no processo onde surgiu a decisão rescindenda. Não há que distinguir entre autor e réu. Se houver litisconsórcio, ativo ou passivo, qualquer dos litisconsortes é legitimado. Também o é o assistente;152 aliás, seria absurdo negar-lhe uma legitimação que a lei reconhece até ao “terceiro juridicamente interessado” (inciso II), mesmo estranho ao processo anterior. Quem pretende rescindir a sentença deve ter sido parte no momento em que ela foi proferida, não importando se figurou na relação processual anterior ab initio, ou se nela só ingressou no curso do feito. Não se legitima à rescisória, como “parte”, quem já não o era ao tempo da sentença, por haver-se desligado antes, voluntariamente ou não, da relação processual. A revelia, contudo, não exclui a condição de parte, nem portanto a legitimidade ativa para a rescisória.153

Se ocorreu sucessão no plano do direito material, após o encerramento do processo anterior, ou na pendência dele (sem que se verificasse a sucessão no plano processual), legitima-se à rescisória o sucessor. Assim, o adquirente da coisa ou do direito litigioso, que tiver permanecido alheio ao processo, ficando porém sujeito ao respectivo resultado (art. 42 e seu § 3º); se interveio, tornou-se parte, e como tal se legitimará. A sucessão pode ser inter vivos ou causa mortis, a título universal ou singular; neste último caso, é claro, desde que abranja a relação jurídica sobre que se pronunciou a sentença rescindenda.154 Se se tratar, no entanto, de ação rescisória de sentença cujo único fundamento haja sido confissão emanada de erro, dolo ou coação, a legitimidade ativa cabe apenas ao próprio confitente, embora lhe passe aos herdeiros a ação, se ele falecer após iniciá-la: é o que decorre da regra especial inscrita no art. 352, parágrafo único.155 99. Terceiros juridicamente interessados - No art. 472, 1ª parte, reza o Código que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”. Consagra-se aí princípio tradicional em matéria de limites subjetivos da res iudicata, que, porém, longe de ser absoluto, comporta mais de uma exceção. É fora de dúvida que os sucessores das partes na relação jurídica litigiosa de direito material ficam vinculados à autoridade da coisa julgada, nada importando a superveniência da sucessão ao trânsito em julgado. Vinculado fica também o titular daquela relação jurídica, nos casos em que a lei confere a outrem legitimação extraordinária para discuti-la em juízo, na posição de substituto processual (art. 6º). A fortiori, o substituído que é ao mesmo tempo sucessor, como o adquirente da coisa ou cessionário do direito litigioso, a quem se estende a auctoritas rei iudicatae (e não apenas “os efeitos”, conforme se lê no texto legal) da sentença proferida em face do alienante ou cedente, ainda que este permaneça no processo, como parte, após a alienação ou cessão (art. 42 e seus parágrafos). O ordenamento brasileiro contempla em termos expressos outras hipóteses de extensão da autoridade da coisa julgada a terceiros: vejam-se, por exemplo, o art. 18 da Lei nº 4.717, de 29.6.1965, e o art. 16 da Lei nº 7.347, de 24.7.1985. Quanto aos efeitos da sentença - que não se confundem com a referida autoridade -,156 o Código reconhece claramente, segundo revela o exame sistemático, que eles são capazes de atingir a esfera jurídica de terceiros, seja embora por via reflexa. É o que explica a existência de institutos como o da chamada “assistência litisconsorcial”, que pressupõe a idoneidade da sentença para “influir na relação jurídica” entre o “assistente litisconsorcial” e o adversário da parte assistida (art. 54), e o do recurso de terceiro prejudicado (art. 499 e § 1º). À vista do exposto, compreende-se que o art. 487, nº II, arrole o “terceiro juridicamente interessado” entre os legitimados à ação rescisória. Para aquele que haja sucedido à parte após a extinção do processo onde se proferiu a decisão rescindenda - e, portanto, em face desse processo era sem dúvida terceiro -,157 a regra é supérflua, pois o inciso I já o menciona expressis verbis. Ela se aplicará, contudo, nos demais casos em que haja, na

rescisão da sentença, interesse jurídico de pessoa que não foi parte no feito anterior -158 v.g., o substituído, se ocorreu substituição processual.159 Não basta o simples interesse de fato. O credor, por exemplo, não se legitima segundo o art. 487, nº II, à rescisória da sentença que tenha condenado o devedor em ação proposta por outro credor:160 ainda que o desfalque patrimonial resultante diminua ou até elimine a possibilidade concreta de satisfação do crédito, este, de iure, subsiste incólume. 100. Ministério Público - O inciso III do dispositivo ora comentado trata das hipóteses em que o Ministério Público tem legitimação para a rescisória, apesar de não haver sido parte no processo antecedente. Se o Ministério Público foi parte, legitima-se à rescisória, em termos genéricos, nos casos do art. 485. Assim ocorre, inclusive, quando o Ministério Público, embora a princípio tivesse no feito a posição de fiscal da lei, haja como tal recorrido (art. 499, § 2º), tornando-se parte, e a decisão rescindenda seja o acórdão proferido no julgamento do recurso. Se o Ministério Público não foi parte no feito anterior, tem legitimidade para a rescisória: a) quando não haja sido ouvido como custos legis, apesar de obrigatória a sua intervenção nessa qualidade (art. 82, nºs I a III, além dos casos previstos em leis especiais; cf. arts. 84 e 246, caput, dos quais decorre, em semelhante caso, a nulidade do processo, e por via de conseqüência a da sentença, entendendo-se, naturalmente, que, após o trânsito em julgado, ela passa a ser apenas rescindível); b) quando a sentença resultou de “colusão das partes, a fim de fraudar a lei” (sobre o conceito de colusão em fraude à lei, vide, supra, o comentário nº 76 ao art. 485). A hipótese sob a nada mais é do que um caso particular da prevista no art. 485, nº V (violação de literal disposição de lei): se era obrigatória a intervenção do Ministério Público, e não se deu, violado foi o art. 82, ou a disposição da lei especial. Assim, também a parte se legitima aí à propositura da rescisória, com fundamento na violação. A existência do art. 487, nº III, letra a, justifica-se pelo propósito de estender a legitimação, neste caso particular, ao Ministério Público (estranho embora ao feito). Situação equiparável à do Ministério Público é a de outro órgão que não haja sido intimado, apesar de obrigatória sua intimação. É o caso da Comissão de Valores Mobiliários: nos termos do art. 31 da Lei nº 6.385, de 7.12.1976, com a redação dada pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978, será ela “sempre intimada” nos processos “que tenham por objetivo matéria incluída na competência” respectiva. Se não for intimada, a Comissão de Valores Mobiliários terá, ao nosso ver, legitimidade para pleitear a rescisão da sentença, por aplicação analógica do art. 487, nº III, letra a. Outro tanto se podia dizer, na vigência da Lei nº 4.726, de 18.7.1965, das Procuradorias Regionais das Juntas Comerciais, a que o art. 32 conferia a atribuição de oficiar, “em caráter obrigatório, de forma idêntica à prescrita ao Ministério Público, em atos ou efeitos (sic) de natureza jurídica, inclusive os judiciais”, que envolvessem “matéria ou assunto incidente na órbita da competência da Junta”. Aí era explícita a assimilação ao Ministério Público, de modo que se tornava

induvidosa a legitimidade dos mencionados órgãos. A Lei nº 4.726, todavia, foi revogada pela Lei nº 8.934, de 18.11.1994, que não reproduziu a disposição. Na hipótese sob b, o Ministério Público legitima-se à rescisória, quer haja intervindo no processo anterior como fiscal da lei, quer não haja intervindo, pouco importa se apesar de necessária ou porque desnecessária a sua intervenção.161 Se o Ministério Público tinha de ser ouvido e não o foi, essa infração da lei já constitui, sem dúvida, pressuposto bastante da rescisão, nos termos do art. 487, nº III, letra a, independentemente da ocorrência de colusão ou de qualquer outro vício. Mas é claro que o Ministério Público não fica impedido de invocar, na rescisória, ambos os fundamentos: se o órgão julgador reconhecer o primeiro (letra a), tanto bastará para que rescinda a sentença; não o reconhecendo, poderá rescindi-la com base na colusão (letra b). - Sempre que o Ministério Público haja intervindo como custos legis, sem jamais assumir no feito a posição de parte, sua legitimação para a rescisória adstringe-se ao caso da letra b (colusão das partes em fraude à lei). Vale a pena sublinhar essa diferença de extensão quanto à legitimidade do Ministério Público (presente no anterior processo), entre a hipótese de ter ele sido parte e a de ter atuado apenas como fiscal da lei; na primeira, cabe-lhe invocar em geral os motivos enumerados no art. 485; na segunda, só o motivo de que cogita o art. 487, nº III, letra b.162 Se se permitisse ao Ministério Público, fora dos casos em que foi parte, basear a rescisória em qualquer dos motivos contemplados no art. 485, tornar-se-ia supérfluo o dispositivo ora sob exame, que se refere especificamente a um daqueles motivos (cf. o art. 485, nº III, fine). Não incide aqui a norma ampla do art. 499, § 2º, porque a ação rescisória não é recurso. Por outro lado, a colusão em fraude à lei tanto pode servir de fundamento à rescisória proposta pelo Ministério Público nas hipóteses em que ele não haja sido, como naquelas em que haja sido parte. Dir-se-á que, se o Ministério Público foi parte, não se concebe que se tenha conluiado com o adversário para fraudar a lei. Em primeiro lugar, porém, não é impossível que algum membro da corporação se desvie a tal ponto da observância de seus deveres funcionais - e, só por ser raro, o caso não há de ficar sem remédio. Além disso, se houve pluralidade de partes no feito anterior, pode ter-se formado o conluio entre litigantes outros que não o órgão do Ministério Público. Resta saber se a legitimação do Ministério Público segundo o art. 487, nº III, letra b, é exclusiva - ou seja, se unicamente ele se legitima à rescisória,163 ou também se legitima quem quer que no processo antecedente haja sido parte, e ainda os terceiros juridicamente interessados. A colusão em fraude à lei figura entre os pressupostos de rescindibilidade arrolados no art. 485 (nº III, fine), e não apenas entre os previstos no dispositivo específico referente à legitimidade do Ministério Público.164 Por seu turno, o art. 487, nº III, não contém qualquer indicação textual no sentido de limitar ao Ministério Público a legitimação para a rescisória, com fundamento quer na letra a (e já se mostrou, acima, que a falta de intervenção, quando obrigatória esta, é invocável em rescisória da parte), quer na letra b.

Se tiver ocorrido pluralidade de partes, aquela ou aquelas que não haja(m) participado do conluio pode(m), sem sombra de dúvida, pleitear a rescisão da sentença; assim, v.g., o denunciado, em caso de conluio entre o denunciante e a outra parte; o assistente, em se havendo conluiado as partes principais. O problema somente se põe quando a rescisória é proposta por algum dos que participaram do conluio; mesmo aí, todavia, o que se pode colocar em dúvida, ao nosso ver, é menos a legitimação para a causa do que o interesse de agir, por ter o resultado do processo anterior correspondido àquilo que a parte nele pleiteara. Quanto ao terceiro juridicamente interessado, é indiscutível a sua legitimidade. 101. Legitimação passiva - O Código não contém disposição expressa a respeito da legitimação passiva para a ação rescisória. O princípio geral, parece-nos, é o de que devem integrar o contraditório todos aqueles que eram partes no feito anterior, ao ser proferida a sentença (lato sensu) rescindenda165 (a respeito dos casos em que ela resulta da interposição de recurso por um só, ou por alguns, dos litisconsortes unitários, vide, infra, o comentário nº 214 ao art. 509). Não necessariamente, observe-se, todos aqueles para quem ela produziu efeitos no plano material: se, no outro processo, havia substituição processual, ocupando algum legitimado extraordinário a posição de autor ou de réu, e subsiste a legitimação extraordinária, é da participação desse substituto que se tem de cogitar na rescisória - sem que fique a priori excluída a possibilidade de intervir, como assistente, o titular da relação jurídica substantiva deduzida no feito procedente (isto é, a pessoa que nele fora substituída). Do princípio geral enunciado resulta que, na rescisória proposta por terceiro juridicamente interessado ou pelo Ministério Público, hão de citar-se todos os que, no momento da decisão, figuravam como partes no processo anterior. Ajuizada a rescisória por algum destes, citar-se-ão todos os restantes em igual situação; e o mesmo vale para o caso de ajuizá-la o eventual sucessor de qualquer das partes do outro feito. Pode acontecer que um (ou alguns) dos citados tenha(m) interesse coincidente com o do autor da rescisória na desconstituição da sentença. Não fica(m) impedido(s), em tal circunstância, de tornar-se litisconsorte(s) ativo(s), em vez de assumir(em) a condição de réu(s). Ressalve-se que, se se tratar de sentença objetivamente complexa, e o pedido de rescisão visar apenas um (ou alguns) dos distintos capítulos, será desnecessária a citação daquele(s) a quem, conquanto parte(s) no processo anterior, não diga(m) respeito o(s) capítulo(s) rescindendo(s). Assim, v.g., caso tenha havido denunciação da lide, e o denunciado queira rescindir a sentença na parte em que reconheceu, em face dele, o direito regressivo do denunciante, bastar-lhe-á, na rescisória, fazer citar este último. Análoga disciplina se observará se, no processo anterior, houve cumulação subjetiva de ações, com litisconcórcio sujeito ao regime comum, e só se pretende a rescisão no tocante a um (ou a alguns) dos litisconsortes. Merece consideração especial a hipótese de sucessão intercorrente, quanto a alguma pessoa que, por haver sido parte no outro feito, devesse ser citada para a rescisória. Na sucessão mortis causa e na sucessão a título universal entre pessoas jurídicas (por exemplo: fusão ou incorporação de sociedades), não há dúvida de que a legitimação

passiva para a rescisória se transfere ao(s) sucessor(es). O ponto não é pacífico no que concerne à sucessão inter vivos a título particular na relação jurídica sobre que versou a sentença rescindenda. Na Alemanha, predomina entre os autores modernos a tese de que, apesar da sucessão, permanece passivamente legitimado para a Wiederaufnahme des Verfahrens (correspondente à nossa ação rescisória) o titular anterior da relação jurídica material.166 O argumento fundamental é tirado da ratio do § 265, nº 2, da ZPO, que consagra sistemática idêntica à do art. 42 e seu § 1º do Código pátrio, para o caso de alienação da coisa (ou cessão do direito) em litígio, durante o processo. Considera-se que, se a parte contrária tem o direito de continuar a litigar com a alienante (ou cedente), tal proteção, que a lei lhe confere, deve prevalecer até mesmo para a eventualidade de vir a reabrir-se a contenda em juízo, por força da rescisão da sentença. Todavia, parece descabido atribuir extensão tão grande à proteção do adversário: conforme oportunamente se expôs (supra, comentário nº 98), ao adquirente ou cessionário, na qualidade de sucessor, não há negar a possibilidade de propor, ele mesmo, a rescisória. Legitimação ativa ele tem, sem sombra de dúvida, à vista do inciso I, fine. Ao menos nessa hipótese, por conseguinte, o outro litigante decerto se verá constrangido a aceitar a luta contra o novo titular - o que tira força persuasiva à argumentação da doutrina alemã. Concluindo: em nosso entendimento, caberá sempre ao sucessor a legitimação passiva para a rescisória, inclusive no caso de sucessão particular inter vivos.167 Art. 488. A petição inicial será elaborada com observância dos requisitos essenciais do art. 282, devendo o autor: I - cumular ao pedido de rescisão, se for o caso, o de novo julgamento da causa; II - depositar a importância de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, a título de multa, caso a ação seja, por unanimidade de votos, declarada inadmissível, ou improcedente. Parágrafo único. Não se aplica o disposto no nº II à União, ao Estado, ao Município e ao Ministério Público. Direito comparado - Alemanha: ZPO, §§ 587 e 588; Áustria: ZPO, §§ 533 e 536; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, art. 382; Costa Rica: Código Procesal Civil, art. 621; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, arts. 470, 479, 481, 513; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 418; Grécia: Código de Processo Civil, art. 547; Itália: Codice di procedura civile, art. 398; Japão: Código de Processo Civil, art. 343; Panamá: Código Judicial, arts. 1.160, 1.194 a 1.196; Portugal: Código de Processo Civil, art. 773; Suécia: Código processual, Cap. 58, Secção 5; Suíça: Lei Federal de Organização Judiciária, art. 140; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, art. 330, 1ª alínea. COMENTÁRIO

102. Petição inicial - A petição inicial da ação rescisória deve conter todas as indicações exigidas pelo art. 282 para a petição inicial de ação sujeita ao procedimento ordinário. O teor literal da norma (verbis “requisitos essenciais”) sugere limitação; mas a verdade é que, no rol do art. 282, inexiste requisito que não seja essencial: tanto assim, que a falta de qualquer deles acarreta a necessidade da complementação, segundo o art. 284, caput, e, na hipótese de descumprimento da diligência, o indeferimento da petição inicial (arts. 284, parágrafo único, e 295, nº VI, fine). Aliás, o art. 490 é categórico em determinar que seja indeferida a inicial da rescisória “nos casos previstos no art. 295”; a remissão afasta a possibilidade de dúvida.168 Aqui como alhures, não tem conseqüência grave o erro na indicação do órgão julgador: se aquele a que se dirigiu a petição inicial se tem por incompetente, toca-lhe declarar-se tal e remeter os autos ao que lhe pareça competente (art. 113 e seu § 2º). Não se confunde com esse o erro na identificação da decisão rescindenda, em virtude do qual a petição é dirigida a órgão diverso do que seria competente, caso se houvesse identificado corretamente o objeto do pedido de rescisão. Suponhamos, por exemplo, que o autor, em vez de atacar o julgamento A, proferido em recurso - o qual, segundo o art. 512, substituíra o julgamento B, recorrido -, peça a rescisão de B e, por isso, se dirija ao órgão competente para a ação rescisória contra B: aí não terá lugar declaração de incompetência, nem portanto remessa dos autos ao órgão competente para a rescisória contra A. Não foi a rescisão deste, mas a de B, que (erroneamente) se pediu; e ao órgão judicial não é lícito modificar o pedido.169 Embora o dispositivo sob exame não o diga expressamente, a petição há de ser instruída com os documentos indispensáveis à propositura: incide o art. 283. Frise-se que no processo da ação rescisória, como em qualquer outro, é com a inicial que o autor, em princípio, deve produzir a sua prova documental (art. 396); com ela virão, pois, v.g., a certidão da sentença anterior e do respectivo trânsito em julgado, na hipótese de ofensa à res iudicata (art. 485, nº IV); a da decisão proferida no processo penal em que se apurou a falsidade, caso o autor invoque tal apuração (nº VI); o “documento novo” (nº VII). É sempre indispensável a certidão da sentença rescindenda, com a prova do trânsito em julgado: se faltar, o relator a exigirá, e cumpre que o faça antes mesmo de deferir a inicial. Incide o art. 284, caput (combinado com o art. 283) e parágrafo único. Nenhum documento probatório estranho aos autos do feito onde surgiu a decisão rescindenda pode juntar-se à inicial - nem, a fortiori, ser oferecido depois -, quando o pedido de rescisão se funda em “erro de fato” (nº IX; cf., supra, o comentário nº 86 ao art. 485). 103. O pedido - Nos termos do inciso I do artigo ora comentado, deve o autor “cumular ao pedido de rescisão, se for o caso, o de novo julgamento da causa”. A rescisão que se há de pedir é a da decisão que produziu coisa julgada (material) no processo precedente: se neste houvera recurso, rescindível poderá ser o acórdão que o julgou, caso tenha substituído - reformando-a ou “confirmando-a” (vide, infra, o comentário nº 222 ao art. 512) - a decisão recorrida; será esta mesma, na hipótese de não conhecimento do recurso.

O Código de 1973 cortou aqui expressamente, de maneira louvável, a controvérsia que lavrara sob o direito anterior acerca da cumulabilidade ou incumulabilidade do iudicium rescindens e do iudicium rescissorium, as duas etapas em que se desdobra normalmente o julgamento do mérito na ação rescisória. A ressalva “se for o caso” atende a que, por exceção, em certas hipóteses: ou (a) basta o pedido de rescisão da sentença - v.g., se o fundamento é a ofensa à auctoritas rei iudicatae de sentença anterior sobre a mesma lide (art. 485, nº IV), quando nada mais se precisará fazer, no caso de procedência, que desconstituir a segunda decisão; ou (b) à rescisão não se há de seguir, incontinenti, o rejulgamento da causa pelo próprio tribunal, tornando-se necessária, em vez disso, a remessa a outro órgão - v.g., se o fundamento é a incompetência absoluta do que proferira a sentença (art. 485, nº II, fine), a menos que competente fosse o órgão mesmo que funcionou no iudicium rescindens. Voltaremos à distinção entre essas várias hipóteses nos comentários ao art. 490. Por ora, cumpre sublinhar que, em regra, os dois iudicia se sucedem no tribunal sem solução de continuidade; e, sempre que isso haja de ocorrer, deve o autor cumular os pedidos. A cumulação, aqui, não é facultativa, ao contrário do que se dá nos casos do art. 292, mas obrigatória;170 a falta do pedido de rejulgamento, quando cabível, faz incidir o art. 284 e seu parágrafo único (cf., infra, o comentário nº 108 ao art. 490). Não é lícito ao órgão judicial suprir, por si, o pedido de novo julgamento que o autor haja porventura omitido.171 Se a sentença se compõe de dois ou mais capítulos distintos, nada impede que se pleiteie a rescisão só de um ou de alguns deles. O pedido pode até limitar-se a capítulo acessório, como o da condenação em honorários de advogado.172 É óbvio que do iudicium rescissorium apenas se cogitará, sendo o caso, em relação à parte da decisão vitoriosamente atacada no iudicium rescindens. Por outro lado, é possível impugnar em conjunto, no mesmo processo, duas ou mais sentenças, desde que satisfeitos os requisitos do art. 292, § 1º. Na formulação dos pedidos, ter-se-á de observar, no tocante a cada uma das decisões rescindendas, o disposto no art. 488, nº I, conforme o que acima se expôs. 104. Valor da causa - Digno de consideração especial é o valor da causa, não somente porque a sua indicação figura entre os elementos indispensáveis na petição inicial (arts. 259, caput, e 488, caput, combinado com o art. 282, nº V), mas também porque serve de base ao cálculo da importância a ser depositada pelo autor, nos termos do inciso II do dispositivo sob exame. No art. 259 não se depara regra específica atinente à ação rescisória; a questão há de resolver-se à luz dos princípios gerais, tendo em vista: a) que o valor da causa se fixa, basicamente, em função do que o autor pretende conseguir, ou seja, do pedido; b) que a ação rescisória não é mero prosseguimento da causa em que foi proferida a sentença rescindenda, mas ação distinta e autônoma, a cujo exercício corresponde novo processo, inconfundível com o anterior; c) que, mesmo quanto ao rejulgamento da causa, nas hipóteses em que caiba, a pretensão deduzida pode não coincidir, em sua significação econômica, com a apreciada no primeiro feito.

Por todas essa razões, parece mal inspirado qualquer critério que estabeleça vinculação necessária entre o valor da causa antes julgado e o valor da rescisória. E tão impróprio se afigura dizer que o desta há de ser igual ao daquela na sua expressão nominal,173 como preconizar a atualização mediante a aplicação de índice de correção monetária.174 Ambos esses alvitres padecem de um vício fundamental: o de arvorar em fator decisivo o valor da outra causa. Ora, basta pensar que a rescisória pode cingir-se à impugnação de parte da sentença, e até de capítulo acessório, qual o dos honorários advocatícios, para compreender quão inadequada é semelhante colocação do problema. O dado essencial a que se tem de atender, repita-se, não pode ser outro senão o pedido na rescisória.175 Alguns exemplos esclarecerão melhor o ponto. O autor pedira, sem êxito, a condenação do réu ao ressarcimento de dano resultante de suposto ato ilícito. Estimara em x esse dano e indicara tal importância como valor da causa. Pleiteia agora a rescisão da sentença que lhe declarou improcedente o pedido e insiste, para o iudicium rescissorium, na condenação. Se pretende que o réu seja condenado ao pagamento da importância monetariamente corrigida, o valor da causa será y, resultado do cálculo de correção; se o pedido não a inclui, contentando-se em reproduzir o quantum anterior, o valor será mesmo x. A sentença rescindenda julgara improcedente pedido de reivindicação de imóvel; o autor quer desconstituí-la e reclamar o mesmo bem. O valor da causa será o do imóvel ao tempo da rescisória. Nada importa o que ele tinha por ocasião do outro processo, e que naturalmente haverá servido de base para determinação do valor daquela causa. O da rescisória poderá ser igual ou diferente: maior, caso o bem se tenha valorizado nesse ínterim; menor, na hipótese inversa. Na primeira ação, declarara-se existente o crédito alegado pelo autor, o qual, então, orçava a x, tendo sido esse o valor dado à causa. Vencido na declaratória, o réu pede a rescisão da sentença e, para o iudicium rescissorium, a declaração da inexistência do crédito - que, entretanto, a essa altura, se fosse real, já montaria a x + y. Abrangendo esse total o pedido de declaração negativa, o valor da causa, na rescisória, será x + y. Se se quer rescindir apenas a parte da sentença que, v.g., fixara os honorários de advogado abaixo do mínimo ou acima do máximo legal (art. 20, § 3º), o valor há de ser a diferença, para mais ou para menos, que se pleiteia na rescisória. Se a sentença rescindenda negara a verba honorária, quando deveria tê-la concedido, o valor, na rescisória, será o do quantum pretendido a esse título. Aqui ressalta com ofuscante nitidez o absurdo que constituiria atribuir-se à rescisória valor igual ao da causa anterior; este só indiretamente assumirá alguma relevância, na medida em que possa influir na fixação da verba honorária pleiteada (art. 20, § 4º). Havendo cumulação de pedidos, ainda que só quanto ao iudicium rescissorium, incide o art. 259, nº II. Se a causa não tiver “conteúdo econômico imediato” (art. 258, caput), tocará ao autor indicar um valor estimativo. Assim também quando o pedido se limitar ao de rescisão da sentença, sem rejulgamento, como na hipótese de ofensa à coisa julgada sobre a mesma lide (vide, supra, o comentário nº 103).

105. Depósito de 5% do valor da causa - O art. 488, nº II, impõe ao autor da rescisória, salvo se for a União, Estado, Município176 ou o Ministério Público (parágrafo único), depositar importância correspondente a 5% do valor da causa. Perderá o autor essa quantia, a título de multa, em favor do réu, se a ação for unanimemente declarada inadmissível ou improcedente, por acórdão trânsito em julgado (cf. o art. 494, 2ª parte). A exigência, que tem precedentes no direito comparado,177 inspira-se obviamente no propósito de desestimular a desmedida multiplicação de rescisórias, que poderia resultar da sensível ampliação do rol de fundamentos, em confronto com o sistema anterior. Ao contrário do que se dá com as condenações em custas e honorários advocatícios, a multa não tem caráter indenizatório, não visa a compensar a parte vencedora de possíveis prejuízos, mas a reprimir uma forma de abuso no exercício do direito de ação; por essa razão, de iure condendo, parece mais acertado, a exemplo de legislações estrangeiras, fazer reverter aos cofres públicos o depósito pedido. Posto que não se enquadre na enumeração do art. 3º da Lei nº 1.060, de 5.2.1950, o depósito é inexigível de quem faça jus ao benefício da justiça gratuita.178 Entender diversamente seria tolher aos necessitados o exercício da ação rescisória, com manifesta violação do art. 5º, nº XXXV, da Constituição da República. A garantia neste consagrada reduzir-se-ia a mero flatus vocis se se reputasse autorizado o legislador ordinário a estabelecer restrições que importem praticamente negá-la a uma classe de pessoas - e por motivo odioso, a carência de recursos financeiros. Urge sepultar as concepções puramente formalísticas das normas constitucionais que tutelam direitos; a única interpretação correta é a que lhes assegure, tanto quanto possível, a efetividade in concreto. Nessa perspectiva, não há modo de salvar da pecha de inconstitucionalidade o dispositivo ora sob exame, senão limitando-lhe a incidência, nos termos acima sugeridos. Nada diz o texto sobre a forma do depósito, nem cogita o Código, aliás, in genere, do depósito preparatório de ação. A Comissão Revisora do anteprojeto havia sugerido o acréscimo de parágrafo em que se dispunha fosse ele efetuado aqui “mediante guia do juízo, antes de despachada a petição inicial”. Ainda no silêncio da lei, esse é o procedimento que intuitivamente se impõe. Do disposto no artigo 490, nº II, resulta claro que o deferimento da inicial pressupõe a efetivação do depósito. É concebível: a) que a petição só vá ao relator após depositada a importância, ou esgotado o prazo para o depósito; b) que a petição vá ao relator desde logo, uma vez distribuída (art. 548), mas sem que ele possa deferi-la a não ser posteriormente ao depósito. A lacuna legal é suprível por meio de disposições que os tribunais façam inserir em seus regimentos internos; observe-se, porém, que a solução a, talvez praticamente mais vantajosa, só em casos raros permitirá que se cumpra à risca a determinação constante do art. 549, segundo o qual os autos devem subir à conclusão do relator nas 48 horas subseqüentes à distribuição. É de cinco dias (art. 185)179 o prazo para o depósito, a contar da expedição da guia, que na solução b pressupõe determinação do relator. Sobre a matéria vide também, infra, o comentário nº 107 ao art. 490.

Se, no curso do processo, vier a retificar-se o valor da causa, ex officio ou mediante impugnação do réu, terá de ser complementado o depósito. Deixando o autor de proceder à complementação, incide o art. 267, nº III.180 Art. 489. A ação rescisória não suspende a execução da sentença rescindenda. Direito anterior - Código de Processo Civil de 1939, art. 882, parágrafo único (acrescentado pelo Dec.-lei nº 1.030, de 21.10.1969). Direito comparado - Alemanha: ZPO, § 707, 1ª alínea: Áustria: ZPO, § 547, e Exekutionsordnung, § 42, 1ª alínea, nº 2; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, arts. 256, 301; Costa Rica: Código Procesal Civil, arts. 599 e 622; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, art. 647; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, arts. 504, 515; Grécia: Código de Processo Civil, art. 546; Panamá: Código Judicial, arts. 1.157, 1.205, 2ª, 3ª e 4ª alíneas, e 1.206; Portugal: Código de Processo Civil, art. 774, nº 4; Suíça: Lei Federal de Organização Judiciária, art. 142; Uruguai: Código General del Proceso, arts. 275, 286, 289; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, art. 333. 106. Ação rescisória e execução da sentença rescindenda - É tradicional em nosso direito a regra do art. 489, segundo a qual a propositura da ação rescisória não suspende a execução da sentença rescidenda. O Código de 1939, em seu texto originário, não tinha disposição expressa ao propósito, mas sempre assim se entendeu.181 O Dec.-lei nº 1.030, de 21.10.1969, acrescentou ao art. 882 um parágrafo único com a seguinte redação: “Se proposta ação rescisória, ficará sobrestada, em relação à União, Estados, Municípios e Distrito Federal, a execução da sentença rescindenda referente a domínio ou posse de imóveis, ou a reclassificação, equiparação ou promoção de servidor público civil ou de militar, desde que a parte autora for (sic) uma daquelas entidades”. Tal norma, que aliás foi incidentemente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal,182 não sobreviveu à entrada em vigor do atual Código. Tem-se decidido que a execução da sentença rescindenda não pode ser obstada sequer mediante deferimento de medida cautelar requerida pelo autor da rescisória; mas a matéria não é pacífica.183 A Medida Provisória nº 1.577, de 11.6.1997, modificando a Lei nº 8.437, de 30.6.1992, acrescentou-lhe um artigo com o seguinte teor: “Nas ações rescisórias propostas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como pelas autarquias e fundações instituídas pelo Poder Público, caracterizada a plausibilidade jurídica da pretensão, poderá o tribunal, a qualquer tempo, conceder medida cautelar para suspender os efeitos da sentença rescindenda”. Reproduziu-se a disposição na Medida Provisória nº 1.798, de 11.2.1999, e na Medida Provisória nº 1.984, ao longo de cujas reedições, porém, o dispositivo deixou de ser repetido, aparecendo, em vez dele, um art. 15 com redação inconcludente: “Aplica-se à ação rescisória o poder geral de cautela de que trata o art. 798 do Código do Processo Civil” (no momento em que se escreve, a reedição mais recente é a da Medida Provisória nº 2.102-26, de 27.12.2000).

A questão vem passando, todavia, a ser examinada por outro prisma: o da antecipação da tutela. A esse título é que caberia agora pleitear a suspensão.184 Por outro lado, se a propositura da rescisória não tem repercussão alguma na execução (que é definitiva!) da sentença rescindenda, o mesmo não se dirá do eventual julgamento de procedência do pedido de rescisão. Caso seja rescindida, por acórdão trânsito em julgado, a sentença exeqüenda, antes de iniciar-se a execução, é claro que a esta já não se poderá legitimamente proceder, pois não existirá título executivo que lhe sirva de base (cf. art. 583); se a execução for instaurada, será nula, cabendo os embargos do art. 741, nº V. Caso sobrevenha, no curso do processo executório, o trânsito em julgado do acórdão que rescindir a sentença exeqüenda, extinguir-se-á a execução, apesar da omissão do art. 794; serão desfeitos, se possível, os atos já realizados, mas não haverá, para o credor, obrigação de indenizar com fundamento no art. 588, nº I, pois não se trata de execução provisória.185 O que ficou dito quanto à ação rescisória vale, mutatis mutandis, para a revisão criminal, se se tratar de execução civil de sentença penal condenatória (art. 584, nº II). Visto que a revisão não se sujeita a prazo (Código de Processo Penal, art. 622, caput), o lesado pelo delito que pretenda valer-se da sentença penal como título executivo civil fica, desse ponto de vista, em situação de inferioridade em confronto com aquele que haja preferido propor ação civil de ressarcimento do dano resultante do crime e, por meio dela, obtido a condenação civil do agente: no segundo caso, passado o biênio após o trânsito em julgado, excluída está a possibilidade de desaparecer o título; no primeiro, não. Daí, porém, não há extrair, sem base legal, a suposição de que o efeito executivo civil subsista à eventual reforma ou anulação da sentença penal condenatória em sede de revisão.186 Art. 490. Será indeferida a petição inicial: I - nos casos previstos no art. 295; II - quando não efetuado o depósito, exigido pelo art. 488, II. Direito anterior - Código de Processo Civil e Comercial de São Paulo, art. 367. COMENTÁRIO 107. Despacho liminar na ação rescisória - O processo da ação rescisória é da competência originária de tribunal (vide, infra, o comentário nº 121 ao art. 493). A distribuição a órgão fracionário, se for o caso, e dentro deste a um relator, obedecerá ao disposto no regimento interno (art. 548). Cabe ao relator, a quem os autos serão conclusos no prazo de 48 horas (art. 549, caput), examinar a inicial e exarar o despacho liminar, deferindo ou indeferindo o requerimento de citação do réu. É de inteira conveniência que o relator não se omita no exercício rigoroso desse controle in limine litis, a fim de evitar o inútil prosseguimento de rescisória manifestamente inviável. Para o

próprio autor, é preferível o indeferimento liminar a eventual julgamento colegiado de inadmissibilidade da ação, com condenações acessórias e, se unânime a decisão, com perda do depósito. Por outro lado, não deve o relator indeferir a inicial sem conceder ao autor a oportunidade prevista no art. 284, caput, sempre que passível de correção o defeito (por exemplo: indicou-se erroneamente, como objeto do pedido de rescisão, a decisão recorrida, em vez daquela que a substituíra em grau de recurso).187 O dispositivo ora comentado trata apenas do despacho liminar de conteúdo negativo (indeferimento da inicial), fazendo remissão ao art. 295 (inciso I) e mencionando em separado a hipótese de não se haver efetuado o depósito da importância de 5% sobre o valor da causa (inciso II). Esta última norma evidencia que o relator, em regra, só proferirá o despacho liminar após a expedição de guia para o depósito, conforme exposto no comentário nº 105 ao art. 488; mais precisamente, decorridos cinco dias desde a expedição, pois tal é o prazo concedido ao autor para efetuar o depósito (art. 185). Pode acontecer, porém, que a sistemática adotada faça a inicial presente ao relator antes do depósito, ficando a própria expedição da guia condicionada a despacho daquele. Em semelhante caso, se a leitura da petição revelar desde logo a existência de outro motivo bastante para o indeferimento, tudo aconselha que o relator a indefira ato contínuo, sem sequer mandar expedir a guia. 108. Indeferimento da inicial - As hipóteses de indeferimento da inicial da ação rescisória, mencionadas em termos sintéticos nos dois incisos do art. 490, podem ser analiticamente distribuídas em três grupos: 1º, indeferimento fundado em razão de ordem formal, a saber: a) inépcia da inicial (art. 295, nº I), resultante de faltar o pedido ou a indicação da causa petendi (art. 295, parágrafo único, nº I), de a conclusão não decorrer logicamente da narração dos fatos (art. 295, parágrafo único, nº II; exemplo: o fundamento invocado pelo autor não corresponde a qualquer das hipóteses legais de rescindibilidade), ou de formularem-se pedidos entre si incompatíveis (art. 295, parágrafo único, nº IV); b) escolha, pelo autor, de rito que não corresponda à natureza da causa, em sendo impossível a adaptação ao procedimento legalmente adequado (art. 295, nº V). c) inobservância de qualquer dos requisitos da petição inicial (arts. 282, 283, 488, nº I), ou existência de defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento do mérito, desde que, num e noutro caso, o autor não emende ou complete a inicial, no prazo de 10 dias que o relator deve abrir-lhe para tal fim (art. 295, nº VI, fine, combinado com o art. 284 e seu parágrafo único); d) falta de instrumento do mandato outorgado ao advogado do autor, quando exigível (art. 254), ressalvada aqui também a possibilidade de suprir-se a omissão, como nos casos da letra c, pois a procuração se inclui entre os “documentos indispensáveis à propositura da ação” (art. 283), incidindo, portanto, a regra do art. 284, caput;

e) falta de indicação do endereço em que o advogado do autor (ou o autor mesmo, quando postular em causa própria) receberá intimação, desde que a omissão não seja suprida no prazo de 48 horas que o relator, para tal fim, deve abrir-lhe (art. 295, nº VI, 1ª parte, combinado com o art. 39, nº I, e parágrafo único, 1ª parte); 2º, indeferimento fundado na inadmissibilidade da ação, por falta de requisitos do seu regular exercício, a saber: a) porque o autor, ou aquele cuja citação como réu se requer, é manifestamente parte ilegítima para a causa (art. 295, nº II); b) porque o autor não tem interesse processual (art. 295, nº III); c) porque o pedido é juridicamente impossível (v.g., o autor pleiteia a rescisão de pronunciamento estranho ao meritum causae, ou de sentença substituída por julgado de tribunal, mediante recurso ou devolução ex vi legis), hipótese que a lei considera como de inépcia da inicial (art. 295, parágrafo único, nº III), mas que não se confunde com as de inépcia formal (art. 295, parágrafo único, nºs I, II e IV); d) porque não está satisfeita alguma outra condição específica do exercício da ação rescisória, enquadrando-se aqui, justamente, a não efetivação, no qüinqüídio posterior à expedição da guia, do depósito a que se refere o art. 488, nº II (art. 490, nº II); 3º, indeferimento fundado em motivo de mérito, excepcionalmente previsto na lei como razão bastante: é o caso da decadência (art. 269, nº IV), pronunciável ex officio, de imediato, pelo relator, nos termos do art. 220 combinado com o art. 219, § 5º (cf. art. 295, nº IV), se já houverem decorrido, antes de proposta a ação, dois anos a contar do trânsito em julgado da sentença rescindenda 109. Impugnação do indeferimento - O despacho liminar de conteúdo negativo põe fim, no nascedouro, ao processo da ação rescisória. Não há razão para considerá-lo insuscetível de impugnação. Opinião muito autorizada equipara-o, por esse prisma, à sentença que, em primeiro grau de jurisdição, indefere petição inicial: caberia, pois, apelação, incidindo o art. 296.188 O alvitre não se harmoniza, todavia, com a sistemática do Código, em que apeláveis só podem ser pronunciamentos dos juízos situados no nível inferior da hierarquia judiciária. Deveria o legislador ter criado, para o caso, recurso específico, à semelhança do que fez quanto ao indeferimento liminar dos embargos infringentes (art. 532). No silêncio da lei, o remédio será aquele que se preveja em norma de organização judiciária ou em regimento interno de tribunal: no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, vinha sendo utilizado o agravo regimental do art. 317 do Regimento Interno de 1980.189 Agora, para a Corte Suprema e para o Superior Tribunal de Justiça, há a regra expressa do art. 39 da Lei nº 8.038, de 28.5.1990, ao nosso ver suscetível de extensão, por analogia, aos outros tribunais.

Art. 491. O relator mandará citar o réu, assinando-lhe prazo nunca inferior a quinze (15) dias nem superior a trinta (30) para responder aos termos da ação. Findo o prazo com ou sem resposta, observar-se-á no que couber o disposto no Livro I, Título VIII, Capítulos IV e V. Direito anterior - Código de Processo Civil de 1939, art. 801, §§ 1º e 2º. COMENTÁRIO 110. Despacho liminar de conteúdo positivo - Para que o relator defira a inicial, ordenando a citação do réu, é necessário que não ocorra circunstância alguma dentre as mencionadas no comentário nº 108, supra. Em outras palavras: é preciso que a petição inicial esteja “em termos” (art. 285), achando-se satisfeitos os requisitos dos arts. 282 e 283 e não se verificando qualquer das hipóteses do art. 295, ou já tendo sido tempestivamente supridas as falhas ou corrigidos os defeitos e irregularidades, bem como efetuado o depósito de que trata o art. 488, nº II (com a ressalva do parágrafo único). No despacho de deferimento, além de ordenar a citação, deve o relator fixar o prazo, não inferior a 15 dias nem superior a 30 dias, dentro do qual poderá o réu responder. O prazo é o mesmo para as várias modalidades de resposta previstas no Título VIII, Capítulo II, do Livro I. Ressalvado o caso de distribuição (art. 263, 1ª alínea, fine), à data do despacho liminar de conteúdo positivo retroage (art. 219, § 1º, combinado com o art. 220) o efeito de impedir a consumação do prazo extintivo - efeito que o art. 263 literalmente atribui à propositura da ação, mas que na verdade melhor seria ter como decorrente da citação (art. 219, caput, fine, combinado com o art. 220).190 Todavia, a retroação do efeito impeditivo fica condicionada a que o autor promova a citação do réu nos 10 dias subseqüentes à prolação do despacho, admitida a prorrogação até o máximo de 90 dias (art. 219, §§ 2º e 3º, combinados com o art. 220). Caso a citação não se efetue com observância desses prazos, a consumação da decadência não se haverá por obstada na data do despacho liminar (art. 219, § 4º, combinado com o art. 220); o efeito impeditivo apenas se produzirá na data da própria citação, se até lá ainda não se tiver extinguido o direito. Essas noções são muito relevantes para a correta aplicação da norma do art. 495. 111. Deferimento da citação durante férias coletivas - Os tribunais têm períodos de férias coletivas (Lei Orgânica da Magistratura Nacional, art. 66, § 1º), durante os quais não se praticam, em seu âmbito, atos processuais, na conformidade do disposto no art. 173, caput. Destarte, se num desses períodos for ajuizada ação rescisória, normalmente não se procederá à respectiva distribuição, nem, a fortiori, à designação de relator. O próprio art. 173, contudo, abre exceções expressas à regra proibitiva da prática de atos processuais no curso das férias, e entre elas figura a da “citação, a fim de evitar o perecimento de direito”, isto é, a consumação da prescrição ou da decadência (inciso II, principio). Pode o autor da rescisória encontrar-se na iminência de decair do seu direito e necessitar, por isso, da citação, ou pelo menos de despacho que a ordene, ainda antes de

retomar a Corte o seu normal funcionamento. A questão está resolvida pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional, cujo art. 68 estabelece: “Durante as férias coletivas, nos Tribunais em que não houver Turma ou Câmara de férias, poderá o Presidente, ou seu substituto legal, decidir de pedidos de liminar em mandado de segurança, determinar liberdade provisória ou sustação de ordem de prisão, e demais medidas que reclamem urgência”. Na cláusula aqui grifada compreende-se, à evidência, o despacho liminar em hipóteses como a de que se cuida. Uma de duas, portanto: ou o tribunal tem Turma ou Câmara que funcione durante as férias, e a petição inicial será distribuída a um dos respectivos componentes, que a despachará; ou não a tem, e caberá ao Presidente, ou ao seu substituto legal, proferir o despacho. Designar-se-á regularmente o relator tão logo se reiniciem as atividades normais do tribunal. 112. Citação do réu - Nenhuma regra especial contém o dispositivo ora sob exame no tocante à citação do réu. A disciplina da matéria é, pois, a comum. A citação para a ação rescisória poderá fazer-se pelas mesmas formas utilizáveis em qualquer outro processo, sujeitar-se-á aos mesmos impedimentos, surtirá os mesmos efeitos. Incidem, genericamente, as disposições constantes do Título V, Capítulo IV, Seção III, do Livro I. Se for o caso, a citação será requisitada por meio de carta de ordem, precatória ou rogatória (arts. 200 e 201). Serão aplicáveis as regras dos arts. 202 e seguintes. 113. Resposta do réu - O prazo para a resposta, fixado pelo relator, entre 15 e 30 dias, obedece às normas comuns no que diz respeito à contagem, suspensão, prorrogação, restituição etc. Incide, quanto ao dies a quo, o art. 241, nºs I a V. Será comum o prazo aos eventuais litisconsortes passivos, mas contar-se-á em dobro se tiverem procuradores diferentes (arts. 298, caput, e 191). Entendemos inaplicável o art. 188, que somente concerne aos prazos legais, não aos judiciais.191 No tocante à resposta em qualquer de suas modalidades, observar-se-ão as disposições do Título VIII, Capítulo II, do Livro I. Cumpre ressalvar o caso das exceções (de incompetência, impedimento ou suspeição): como a ação rescisória é sempre da competência originária de tribunal, incide o art. 265, § 4º, fine, devendo processar-se a exceção, por conseguinte, de acordo com as normas do respectivo regimento interno. Quanto à admissibilidade da reconvenção, no processo da rescisória, foi discutida sob o regime anterior, e a doutrina predominante fixou-se, em princípio, ao nosso ver com acerto, na resposta afirmativa.192 À luz do Código em vigor, continua a parecer-nos admissível a reconvenção, desde que competente o mesmo órgão e satisfeitos os pressupostos do art. 315.193 Por exemplo: se houve “sucumbência recíproca”, e um dos litigantes pleiteia a rescisão da parte da sentença que lhe foi desfavorável, pode o adversário reconvir quanto à outra parte. Como rescisória que necessariamente também será,194 sujeita-se a reconvenção ao prazo decadencial do art. 495 e à exigência do depósito (art. 488, nº II).

114. Procedimento após o prazo para a resposta - Nos termos da 2ª parte do dispositivo comentado, “findo o prazo com ou sem resposta, observar-se-á no que couber o disposto no Livro I, Título VIII, Capítulos IV e V”. Optou o Código, conforme se vê, por assimilar ao ordinário, tanto quanto possível, o procedimento da ação rescisória, ao qual eventualmente se aplicarão, inclusive - com as ressalvas abaixo consignadas -, as variantes que conduzem à abreviação do curso do feito, seja pela simples extinção do processo (art. 329), seja mediante o julgamento antecipado da lide (art. 330). A remissão constante do art. 491, fine, somente alude aos Capítulos IV e V do Título VIII do Livro I: aquele trata das “providências preliminares”, este do “julgamento conforme o estado do processo”, em suas três modalidades (extinção do processo, julgamento antecipado da lide, despacho saneador). É bem de ver, contudo, que incidem também aqui as normas inscritas no Capítulo VI do referido Título VIII, desde que compatíveis com a estrutura do processo da rescisória, quando houver necessidade de instrução suplementar (cf., infra, o comentário nº 117 ao art. 492). - O art. 491, 2ª parte, manda observar as aludidas disposições “no que couber”. Importa, pois precisar o alcance da ressalva. As atribuições deferidas ao “ juiz”, naqueles Capítulos do Título VIII do Livro I, competirão naturalmente, em princípio, ao relator da rescisória. Este, porém, não pode por si só, é claro, apreciar o pedido; logo, o julgamento antecipado da lide, quando viável, caberá com exclusividade ao órgão colegiado. Quanto aos casos de extinção do processo (art. 329), cumpre distinguir: em se tratando de hipótese que poderia ter ensejado o indeferimento da inicial (v.g., falta de legitimação para a causa, decadência), subsiste a competência do relator; quando não, é necessário o pronunciamento do órgão colegiado. Por conseguinte, se o autor, v.g., desistir da ação (art. 267, nº VIII), a decisão homologatória (art. 158, parágrafo único) será proferida pelo colegiado. O mesmo se dirá da declaração incidente (art. 325), aliás de difícil ocorrência no processo da rescisória. Impende ainda assinalar que nem todas as hipóteses de extinção do feito contempladas nos art. 267 e 269 são concebíveis na ação rescisória. Assim, por exemplo, não se admite a celebração de compromisso para que se decida em juízo arbitral se a sentença deve ou não ser rescindida;195 portanto, não há que cogitar da aplicação do art. 267, nº VII. Do mesmo modo, sendo indisponível o objeto do iudicium rescindens, não pode o réu reconhecer validamente o pedido de rescisão,196 de sorte que fica preexcluída a incidência do art. 269, nº II. Por igual razão, parece-nos que a revelia não produz, na rescisória, o efeito previsto no art. 319 (cf. o art. 320, nº II).197 Daí serem inaplicáveis as disposições dos Capítulos IV e V que com tal efeito se relacionam (arts. 324 e 330, nº II). Aliás, o Código, no dispositivo ora comentado, não contém remissão ao Capítulo III, onde se localiza o art. 319; isso concorre para haver-se por afastada a incidência das regras que, nos dois outros capítulos, com aquele se articulam. Conclui-se que, na rescisória, o julgamento antecipado da lide unicamente pode ocorrer nos casos do art. 330, nº I.

115. Saneamento do processo - Se não se verificar qualquer das hipóteses possíveis de extinção do processo, nem couber o julgamento antecipado da lide, o relator proferirá despacho saneador (art. 331, a contrario sensu, dada a indisponibilidade a que acima se aludiu). Declarando saneado o feito, compete-lhe deferir ou indeferir a realização da prova requerida por qualquer das partes, ou determinar ex officio a respectiva realização, se a entender necessária (§ 2º). Pressupõe o Código, no art. 492, que a perícia, ou qualquer outra prova, haja de realizarse perante juízo de primeiro grau, e não diretamente - como bem pode acontecer (cf., infra, o comentário nº 117 ao citado dispositivo) - perante o órgão colegiado; por isso estatui que “o relator delegará a competência ao juiz de direito da comarca onde deva ser produzida”. No caso da prova pericial, surge a questão de saber se essa delegação de competência abrange a nomeação do perito, que, em tese, integraria o objeto do próprio despacho saneador. Inclinamo-nos a responder afirmativamente; com efeito, podem sobrevir incidentes de escusa, recusa e substituição do perito, os quais terão de ser resolvidos pelo juízo delegado, e não parece razoável que este pudesse pronunciar-se a respeito, em se tratando de perito nomeado pelo relator. A solução alvitrada harmoniza-se com a regra do art. 428, que permite a nomeação do perito, quando a prova for requisitada por meio de carta, no juízo a que esta se dirigir; e atende à probabilidade de que o juiz local esteja mais habilitado a escolher bem o perito, por melhor conhecer os técnicos disponíveis na comarca ou seção. No que tange ao disposto no § 2º, fine, do art. 331, é óbvio que ao relator não incumbe designar dia para o julgamento, atribuição reservada ao presidente do órgão (art. 552, caput). No entanto, é no despacho saneador que o juiz há de decidir que provas orais serão produzidas, quer em atenção ao requerimento de parte, quer por determinação tomada ex officio. Isso cabe ao relator, no processo da rescisória, ainda que a produção das provas tenha de ser feita perante o juízo delegado de primeiro grau - hipótese de que trata o art. 492. Art. 492. Se os fatos alegados pelas partes dependerem de prova, o relator delegará a competência ao juiz de direito da comarca onde deva ser produzida, fixando prazo de quarenta e cinco (45) a noventa (90) dias para a devolução dos autos. Direito anterior - Código de Processo Civil de 1939, art. 801, § 3º. COMENTÁRIO 116. Atividade de instrução no processo da rescisória - Na ação rescisória, os dois pedidos que em regra se cumulam - o de rescisão da sentença e o de novo julgamento da causa (art. 488, nº I) - destinam-se, de ordinário, a ser apreciados em conjunto pelo tribunal, um em seguida ao outro, mas na mesma sessão: o primeiro, no iudicium rescindens, e o segundo (se rescindida a sentença!) no iudicium rescissorium (vide, infra, os comentários ao art. 494). Nessas hipóteses, que são as mais freqüentes, não ocorrendo solução de continuidade, inexistirá etapa diferenciada do procedimento para a realização

de atividade instrutória relativa à matéria do iudicium rescissorium, após a eventual desconstituição da sentença. Casos há, naturalmente, em que só quanto ao iudicium rescindens - isto é, quanto à existência ou inexistência do fundamento invocado para impugnar a sentença rescindenda - se concebe atividade de instrução. É o que obviamente se passa quando impossível cogitar de novo julgamento da causa anterior, como sucede se o autor baseia o pedido de rescisão na ofensa à coisa julgada de outra sentença sobre a mesma lide (art. 485, nº IV): aí, o thema probandum fica limitado ao fato de haver-se (ou não) ofendido a res iudicata, e as provas que se queira produzir têm de referir-se unicamente a essa questão. Mesmo, contudo, em casos de possível passagem ao iudicium rescissorium, é concebível que fique preexcluída a colheita de novas provas tendentes a influir no rejulgamento da causa. Por exemplo: na hipótese do art. 485, nº IX, consoante já se explicou (supra, comentário nº 86 ao citado dispositivo), todo o trabalho cognitivo do tribunal há de ter por objeto exclusivo o material já constante dos autos do processo onde se proferiu a sentença rescindenda; quaisquer outras provas são incabíveis, e o relator não deve admiti-las. Fazendo abstração desses casos, porém, e voltando ao que ordinariamente acontece, a circunstância de não se abrir segunda etapa probatória após a desconstituição da sentença no iudicium rescindens cria a necessidade de realizar-se toda a instrução de uma vez só, em bloco, quer no tocante a fatos de relevo para o iudicium rescindens, quer, quando cabível, a fatos de relevo para o iudicium rescissorium. As provas admissíveis, com relação a uns e a outros, hão de ser colhidas paralelamente, na mesma fase do procedimento. Tal sistema implica um risco inafastável: o de ver-se afinal desperdiçada a atividade instrutória pertinente ao iudicium rescissorium, se a ele não se chegar, porque julgado improcedente o pedido no iudicium rescindens. O que ficou dito sobre a inexistência de solução de continuidade na seqüência normal dos dois iudicia não importa negar ao tribunal a possibilidade de, rescindindo a sentença, converter o julgamento em diligência antes de passar ao iudicium rescissorium, a fim de propiciar a elucidação de quaestio facti relativa a este, sobre a qual ainda não se considere suficientemente esclarecido. Semelhante possibilidade, em princípio, deve sempre reconhecer-se ao órgão julgador, em qualquer etapa do julgamento (cf., infra, o comentário nº 373 ao art. 560). Abrir-se-á, então, uma atividade instrutória complementar, com a realização das provas que ao tribunal pareçam indispensáveis. 117. Produção de prova - O dispositivo ora comentado não se refere à produção de prova documental. Esta se produz sempre perante o próprio órgão colegiado competente para o processo da rescisória (por intermédio, é claro, do relator): em regra, com a inicial ou com a resposta (art. 396). Pode haver necessidade, entretanto, de produzir-se outra prova, que justificasse, no procedimento ordinário, a realização de audiência (art. 330, nº I, parte final, a contrario sensu). Aliás, normalmente, só nessa hipótese é que o procedimento da rescisória se prolonga além da fase de saneamento; nas restantes, por força da remissão feita no art. 491 ao Capítulo V do Título VIII do Livro I, o julgamento da lide, quando viável, será

antecipado. Sem embargo do plural empregado no texto (“Se os fatos alegados pelas partes...”), deve ressalvar-se o caso da revelia: não produzindo esta, consoante se assinalou, o efeito previsto no art. 319 (nem incidindo, por conseguinte, o art. 330, nº II), nada impede que, apesar da inexistência de contestação, pareça necessária ao relator alguma diligência probatória, atinente a fato alegado pelo autor, e ele a determine ex officio. O dispositivo sob exame não deve ser entendido como excludente da possibilidade de que o próprio relator proceda pessoalmente à colheita de alguma prova; ao menos em alguns casos, isso será até preferível. É bom que o relator se disponha, sendo preciso, a tomar depoimentos de partes, a inquirir testemunhas, a proceder a inspeções - o que provavelmente lhe permitirá formar convencimento mais sólido acerca dos fatos relevantes. Se, contudo, à vista das circunstâncias, houver de realizar-se na instância inferior a atividade de instrução, o relator delegará competência ao juiz de direito da comarca onde a prova deva ser produzida, e fixará prazo máximo, entre 45 e 90 dias, para a devolução dos autos. A produção da prova reger-se-á pelas disposições constantes do Capítulo VI do mesmo Título VIII, no que couber. É claro que não se cogitará de audiência de instrução e julgamento, pois ao juiz delegado não competirá julgar a causa, mas unicamente proceder à colheita das provas; esta, porém, far-se-á pela mesma forma prevista nos dispositivos concernentes ao procedimento ordinário. 118. Devolução dos autos - Cabe ao juízo delegado devolver os autos ao órgão delegante, dentro do prazo máximo por este fixado, que não deve ser inferior a 45 dias, nem superior a 90. O dies a quo é o do recebimento dos autos pelo juízo delegado;198 irrelevante a eventual demora na remessa ou no transporte. Se não for preciso utilizar todo o prazo assinado, devolver-se-ão os autos, obviamente, logo que encerrada a atividade de instrução. O Código de 1939, art. 801, § 3º, fine, contemplava a eventualidade de não se poderem devolver os autos no prazo marcado - v.g., porque a produção da(s) prova(s) demandou tempo superior ao previsto - e fazia ressalva expressa: “salvo caso de força maior”. O vigente diploma é omisso, mas deve entender-se que a ressalva subsiste, implícita. É aconselhável que, verificando a insuficiência do prazo, o juiz solicite ao relator da rescisória a prorrogação necessária. Toca ao relator fiscalizar o ponto e, se oportuno, reclamar a devolução dos autos, ou exigir que se justifique o excesso. O fato de excederse o prazo, todavia, de modo algum torna imprestável a prova produzida, embora possa eventualmente gerar conseqüências de ordem disciplinar. Art. 493. Concluída a instrução, será aberta vista, sucessivamente, ao autor e ao réu, pelo prazo de dez (10) dias, para razões finais. Em seguida, os autos subirão ao relator, procedendo-se ao julgamento: I - No Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Federal de Recursos, na forma de seus regimentos internos; II - Nos Estados, conforme dispuser a norma de organização judiciária.

Direito anterior - Código de Processo Civil e Comercial de São Paulo, arts. 360 e 361; Código de Processo Civil de 1939, art. 801, caput e § 4º. COMENTÁRIO 119. Procedimento após a conclusão da instrução - Concluída a instrução (e, se for o caso, devolvidos os autos pelo juízo delegado), o feito retoma seu curso no órgão de origem, mediante a abertura de vista, sucessivamente, ao autor e ao réu, pelo prazo de 10 dias para cada qual, aplicando-se, em caso de litisconsórcio, o art. 191. Dentro dos respectivos prazos, poderão as partes oferecer razões finais, em que naturalmente tratarão não apenas de repetir os argumentos expostos na fase postulatória, mas sobretudo de agitar os que possam ser extraídos dos resultados da atividade instrutória. É a existência desses novos dados, aliás, que justifica a abertura de oportunidade para que as partes falem a esta altura; por isso mesmo, já no sistema do Código anterior sustentávamos que o decêndio para oferecimento de razões só tinha cabimento na hipótese de haver-se procedido à colheita suplementar de provas.199 Hoje, a fortiori: como se observou, em virtude da remissão feita no art. 491, 2ª parte, aos dispositivos que regem o procedimento ordinário, o iter processual, na rescisória, normalmente se completará logo após a fase postulatória, a não ser que se faça necessária a atividade de instrução contemplada no art. 492, do qual é mera seqüência a parte inicial do art. 493. “Concluída a instrução,...” é o que aí se lê, e vale por “Produzidas as provas e (se for o caso) devolvidos os autos,...”. Fora disso, em processo onde não haja questão de fato controvertida, ou onde baste a prova documental, abrir vista dos autos neste ponto, para razões finais, seria pura superfetação: o autor “replicaria” e o réu “treplicaria”, sem qualquer vantagem prática, já que nenhum elemento novo de convicção teria surgido. Tudo aconselha a evitar semelhante desperdício de tempo. - A segunda parte do dispositivo sob exame dá a impressão de que, logo após a apresentação de razões finais pelo réu, ou logo após o termo ad quem do respectivo prazo, o processo atinge a fase de julgamento. Assim não é, porém: a disciplina do procedimento constante do presente Capítulo tem de ser integrada com algumas regras insertas no Capítulo VII (“Da ordem dos processos no tribunal”) do Título X - por mais criticável que seja, do ponto de vista sistemático, tal inserção, uma vez que o Título X ostenta a rubrica “Dos recursos”. Conclusos, pois, os autos ao relator, este os estudará e restituirá à secretaria com o “visto” (art. 549, caput, fine), depois de fazer naqueles a exposição dos pontos controvertidos da causa (art. 549, parágrafo único; cf., infra, o comentário nº 344 a esse dispositivo). Cabe à secretaria, nessa ocasião, extrair cópias do relatório, autenticá-las e distribuí-las aos membros do órgão competente para julgar a rescisória (art. 553). Os autos serão em seguida conclusos ao revisor, que, após examiná-los, aporá também o seu “visto” e pedirá dia para julgamento (art. 551 e § 2º). Não incide o § 3º do art. 551, por não se tratar de recurso; ainda quando a rescisória tenha por objeto sentença de primeiro grau em causa

de procedimento sumário, é de rigor a revisão. Aliás, parece-nos que deve havê-la inclusive nos casos de “julgamento antecipado da lide”. 120. Audiência do Ministério Público - O art. 801, § 4º, do Código ab-rogado mandava observar o disposto no art. 783 e seus parágrafos, do que resultava ser obrigatória a audiência do chefe do Ministério Público (Procurador-Geral da República, nas rescisórias da competência do Supremo Tribunal Federal). Coerentemente, estatuiu, v. g., o Ato Regimental nº 21, de 29.1.1953, do Tribunal de Justiça do então Distrito Federal, art. 3º, § 4º, que, após as razões finais, seria ouvido o Procurador-Geral da Justiça; e a Lei nº 3.434, de 20.7.1958 (Código do Ministério Público do ex-Distrito Federal), determinou, no art. 16, nº IV, letra c, que o Procurador-Geral oficiaria obrigatoriamente nas ações rescisórias. Nada dispõe a respeito o diploma em vigor no Capítulo dedicado a esta matéria. Ao nosso ver, entretanto, há “interesse público, evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, nº III): discute-se, com efeito, a validade de decisão judicial trânsita em julgado. Portanto, continua necessária, através do órgão indicado na legislação pertinente, a audiência do Ministério Público, na qualidade de custos legis, ainda quando não fosse bastante para impô-la a matéria objeto do processo anterior (e pois, em regra, no iudicium rescissorium),200 a menos que seja ele próprio o autor da rescisória. Tal audiência deve ocorrer antes do estudo dos autos pelo relator, para que este e o revisor possam aproveitar os subsídios úteis que presumivelmente conterá o parecer. 121. Competência para o julgamento - Não traça o Código de 1973 regras específicas sobre a competência para a ação rescisória. Do texto de vários dispositivos do presente Capítulo, bem como da sua inserção no Título IX, sob a rubrica “Do processo nos tribunais”, ressalta que o legislador concebeu como competente, sempre, um tribunal, entendida aqui esta palavra no sentido de órgão colegiado, a que normalmente cabe o exercício da função jurisdicional em grau superior. Leis antigas preferiam determinar que a ação rescisória fosse processada e julgada pelo próprio juízo prolator da decisão rescindenda: assim o Código paulista, art. 360. É o sistema adotado em ordenamentos estrangeiros, como o da Alemanha (ZPO, § 584). Entre nós, hoje, à vista da disciplina constante do Código, mesmo as sentenças emanadas de órgãos de primeiro grau só por tribunais podem ser rescindidas. De acordo com o art. 93, 1ª parte, do vigente estatuto processual civil, “regem a competência dos tribunais as normas da Constituição da República e de organização judiciária”. Da Carta Federal, interessam aqui, antes de mais nada, o art. 102, nº I, letra j, que faz competente o Supremo Tribunal Federal para processar e julgar originariamente as ações rescisórias dos seus julgados, e o art. 105, nº I, letra e, que defere competência análoga ao Superior Tribunal de Justiça. Os julgados dessas Cortes, cuja rescisão lhes compete a elas próprias, podem ter sido proferidos de meritis em quaisquer causas da sua competência originária, ou em recursos atinentes ao mérito de outras causas, desde que deles se haja conhecido, para reformar ou para “confirmar” a decisão impugnada (cf., supra, o comentário nº 69 ao art. 485). Quanto ao Superior Tribunal de Justiça, cumpre acrescentar o caso dos acórdãos que se profiram no reexame obrigatório de causas

sujeitas ex vi legis ao duplo grau de jurisdição (art. 475, combinado com o art. 105, nº II, letra c, da Constituição Federal, do qual se infere que o Superior Tribunal de Justiça também é competente para aquele reexame, ainda quando o Município vencido não interponha o “recurso ordinário”). Ao Supremo Tribunal Federal competirá igualmente julgar ação rescisória que se venha a propor contra decisão sobre pedido de homologação de sentença estrangeira, quer se trate de pronunciamento do Presidente, interpretando-se com largueza a cláusula final do art. 102, nº I, letra j, quer - à evidência - de acórdão do próprio Tribunal, eventualmente no julgamento do agravo previsto no Regimento Interno (art. 222, parágrafo único) e, depois, no art. 39 da Lei nº 8.038. A cada um dos dois tribunais, respectivamente, competirá julgar rescisória de decisão de relator (sobre o mérito!) com base em disposição que o autorize a proferi-la. À luz do art. 108, nº I, letra b, da Carta da República, compete aos Tribunais Regionais Federais julgar “as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região”. Com a cláusula final, supriu-se falha da Constituição anterior, que não se referia às sentenças de juízes federais de primeira instância, nem no art. 122, atinente à competência do Tribunal Federal de Recursos, nem no art. 119, relativa à do Supremo Tribunal Federal, que entretanto podia ser competente para julgar apelações contra sentenças da Justiça Federal de primeiro grau (art. 119, nº II, letra c, combinado com o art. 125, nº II),201 e bem assim para rever tais sentenças quando obrigatório o reexame em grau superior. No que respeita aos tribunais dos Estados, onde exista um só, nenhuma dúvida surge quanto à sua competência para as ações rescisórias dos acórdãos que profira e das sentenças de juízos estaduais de primeiro grau; havendo mais de um, devem consultar-se as normas de organização judiciária, às vezes insertas na própria Constituição do Estado. Uma vez identificado o tribunal competente, restará verificar qual de seus órgãos o é. Nos termos do art. 96, nº I, letra a, da vigente Carta Federal, a sedes materiae é o regimento interno, a que cabe delimitar a competência dos diversos órgãos. Um ponto é oportuno lembrar aqui, porque relevante ao ângulo da competência. Quando o órgão ad quem não conhece de algum recurso interposto, por entendê-lo inadmissível, sendo originária a causa da inadmissibilidade, isso significa que, se nenhum outro óbice existia, a decisão recorrida transitou em julgado, a despeito da interposição: recurso inadmissível é recurso a que não estava sujeita a decisão, e portanto não tinha força para impedir o trânsito em julgado (cf. art. 467). Sendo a causa da inadmissibilidade superveniente à interposição, o recurso obstou ao trânsito em julgado, mas este veio a ocorrer no próprio momento em que aquele se tornou inadmissível. Em ambas as hipóteses, presentes os outros requisitos, rescindível será a decisão recorrida, e em relação a ela é que se terá de pôr e resolver o problema da competência para ação rescisória.202 Quanto ao recurso extraordinário, a questão via-se um tanto obscurecida pela técnica defeituosa com que o Supremo Tribunal Federal costumava julgá-lo no caso de interposição com fundamento na letra a do dispositivo constitucional (art. 119, nº III), declarando não conhecer do recurso se verificava inexistir a alegada contrariedade à Constituição ou negação de vigência a tratado ou lei federal - hipótese que, a rigor era de conhecimento e desprovimento.203 Mutatis mutandis, o problema hoje se põe,

analogamente, com referência ao Superior Tribunal de Justiça e ao recurso especial ex art. 105, nº III, letra a, da Carta de 1988.204 Ele se resolve mediante a interpretação do acórdão, pela qual se corrigem os erros de terminologia. Afere-se a competência à luz daquilo que o autor diz na inicial. Se aí se aponta como rescindenda a decisão do tribunal x, a este competirá a causa, nada importando que porventura se devesse ter pleiteado a rescisão de acórdão do tribunal y. O erro do autor não pode ser “corrigido” ex officio pelo tribunal x, com remessa dos autos ao tribunal y que seria (seria: não é) competente, caso o autor houvesse identificado de maneira correta a decisão rescindenda.205 O que cabe ao relator fazer, percebendo o equívoco, ao proceder à (indispensável...) leitura da inicial, é abrir ao demandante a oportunidade de retificar (se quiser!) a petição (art. 284, caput). Ao órgão julgador da rescisória pertence também a competência para processar, se for o caso, a execução do acórdão (art. 575, nº I). 122. Forma do julgamento - Segundo o art. 493 rredigido sob a Constituição anterior, proceder-se-ia ao julgamento, no Supremo Tribunal Federal e no extinto Tribunal Federal de Recursos, na forma dos seus regimentos internos (inciso I); nos tribunais estaduais, conforme dispusessem as normas de organização judiciária (inciso II). Com referência ao Supremo Tribunal Federal, convém notar que, à vista do disposto no art. 119, § 3º, letra c, daquela Carta, na redação dada pela Emenda nº 7, não era só a forma do julgamento que se havia de disciplinar pelo regimento interno: pertencendo a rescisória à competência originária da Corte, toda a disciplina procedimental encontraria nele a sua sede própria (vide os arts. 260 a 262 do Regimento Interno em vigor desde 1º.12.1980). Na atual Constituição inexiste cláusula equivalente à do antigo art. 119, § 3º, letra c; e, conquanto autorizados a disciplinar nos regimentos internos o funcionamento de seus órgãos jurisdicionais (art. 96, nº I, letra a), os tribunais - todos, sem exceção - têm de observar, em tais diplomas, as “normas de processo”. Impende, assim, levar em conta o disposto no art. 1.214 do Código e no art. 24 da Lei nº 8.038, verbis “será aplicada a legislação processual em vigor”. Observe-se que o Código mesmo, no Capítulo VII do Título X (“Da ordem dos processos no tribunal”), contém regras sem dúvida aplicáveis ao julgamento da rescisória; ainda quando não se refiram literalmente senão a recursos, aplicar-se-ão àquela por analogia, o que bem se justifica, além do mais, pela circunstância de que, no aludido Capítulo, os arts. 551 e 553 regulam expressis verbis aspectos do procedimento da rescisória. Assim é que incidem, aqui, os arts. 552, 554, 555, 556, 560, 561, 562, 563, 564 e 565. Supletivamente, observar-se-ão as disposições constantes dos próprios regimentos internos dos tribunais, que todavia - repita-se - não podem deixar de respeitar as “normas de processo” (Carta da República, art. 96, nº I, letra a). Art. 494. Julgando procedente a ação, o tribunal rescindirá a sentença, proferirá, se for o caso, novo julgamento e determinará a restituição do depósito; declarando inadmissível ou improcedente a ação, a importância do depósito reverterá a favor do réu, sem prejuízo do disposto no art. 20.

Direito comparado - Alemanha: ZPO, §§ 589 e 590; Áustria: ZPO, §§ 538 e segs.; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, art. 302; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, art. 384; Costa Rica: Código Procesal Civil, arts. 610 e 611, 625 a 627; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, art. 649, 1ª alínea; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, arts. 505, 516; França: Code de procédure civile, art. 601; Grécia: Código de Processo Civil, art. 549; Itália: Codice di procedura civile, art. 402; Japão: Código de Processo Civil, art. 348; Panamá: Código Judicial, arts. 1.180 a 1.183, 1.203; Peru: Código Procesal Civil, arts. 396, 398; Portugal: Código de Processo Civil, arts. 775 e 776; Suécia: Código processual, Cap. 58, Secção 7, 1ª parte; Suíça: Lei Federal de Organização Judiciária, art. 144, 1ª alínea; Uruguai: Código General del Proceso, arts. 277, 290; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, arts. 320, 336. COMENTÁRIO 123. Etapas do julgamento - O julgamento da ação rescisória comporta em princípio três etapas sucessivas: a verificação da admissibilidade da ação; o exame do pedido de rescisão no mérito, em que o tribunal decide rescindir ou não a sentença impugnada (iudicium rescindens); e, finalmente, o rejulgamento da matéria que por ela fora decidida (iudicium rescissorium). É claro que só se passa à segunda etapa caso, na primeira, a ação tenha sido considerada admissível; e só se passa à terceira caso, na segunda, o pedido haja sido julgado procedente e, pois, rescindida a sentença. Quer isso dizer que cada uma das etapas é, tecnicamente, preliminar à seguinte.206 Por outro lado, a conclusão a que se chega, na primeira etapa, de modo nenhum influi no resultado da segunda: é óbvio que pode ser admissível a ação e, no entanto, não se convencer o tribunal de que exista fundamento para a rescisão da sentença. O fato de rescindir-se a sentença tampouco predetermina de modo necessário, sempre, a maneira por que o tribunal rejulgará a matéria: é perfeitamente possível que o conteúdo na nova decisão venha a ser idêntico ao da anterior, v. g. se esta, proferida por juiz culpado de prevaricação, concussão ou corrupção, fora, apesar disso, justa. Apenas quando a rescindibilidade da sentença decorre da sua injustiça (v.g., art. 485, nº IX) é que o iudicium rescindens funciona como prejudicial do iudicium rescissorium.207 O iudicium rescindens e o iudicium rescissorium são etapas do julgamento do mérito da ação rescisória. Em cada um deles, aprecia-se um dos pedidos cumulados pelo autor (art. 488, nº I). A distinção entre o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito, na rescisória, é relevantíssimo para que se possa aferir o cabimento de nova rescisória contra a decisão do tribunal (cf. art. 485, principio: “A sentença de mérito (...) pode ser rescindida...”). 124. Juízo de admissibilidade, iudicium rescindens e iudicium rescissorium - A ação rescisória será admissível desde que a causa petendi se enquadre em qualquer das hipóteses taxativamente catalogadas no art. 485 e estejam satisfeitos todos os demais

requisitos do seu legítimo exercício. O juízo positivo de admissibilidade pode ser implícito: sempre que o tribunal passa ao exame do mérito, entende-se que considerou admissível a ação. O pedido será julgado procedente, no iudicium rescindens, se o tribunal verificar a ocorrência efetiva do fundamento invocado pelo autor para pedir a rescisão: não de outro possível fundamento (cf., supra, o comentário nº 89 ao art. 485), nem mesmo a violação de outra norma, não invocada (cf., supra, o comentário nº 78 a esse mesmo artigo), ou de outro erro de fato, e assim por diante. Não tem relevância, contudo, o erro na indicação do inciso do art. 485, nem a equivocada qualificação jurídica do fato narrado, como por exemplo se o caso era de “prevaricação”, e o autor usa a palavra “concussão”.208 Havendo mais de um fundamento - vale dizer, havendo cumulação de rescisórias, com diferentes causae petendi -, para que o pedido de rescisão seja procedente, é necessário (e basta) que ao menos um dos fundamentos seja reconhecido pela maioria dos votantes: não se podem somar, para dar como procedente o pedido, votos que só o acolhessem por um fundamento com votos que só o acolhessem por outro. A própria votação deve realizar-se em etapas distintas, cada qual referente a um dos fundamentos; ou, quando menos, o presidente do órgão há de ter o cuidado de efetuar somas separadas. Após o julgamento de procedência no iudicium rescindens, que produz a invalidação da sentença, a regra é que, reaberto o litígio por esta julgado, caiba desde logo ao próprio tribunal emitir sobre ele novo pronunciamento,209 que de ordinário poderá favorecer ou não o autor vitorioso no iudicium rescindens. Em certas hipóteses, porém, não é assim que se passam as coisas.210 Com efeito, pode acontecer: a) que a rescisão da sentença, por si só, esgote toda a atividade jurisdicional concebível por exemplo, se o pedido se fundou em ofensa à coisa julgada de decisão anterior sobre a mesma lide (art. 485, nº IV), caso em que, evidentemente, não se vai rejulgar a matéria (sob pena de perpetrar-se nova ofensa!), prevalecendo a solução dada à lide pela primeira sentença, cuja auctoritas rei iudicatae fora ofendida;211 b) que, embora insuficiente a rescisão, o remédio adequado à correção do que erradamente se fizera não consista na imediata reapreciação da causa pelo próprio tribunal que rescinde a sentença, tornando-se necessária a remessa a outro órgão - v. g., quando tiver ocorrido incompetência absoluta (art. 485, nº II, fine), hipótese em que a cognição deve ser devolvida ao juízo competente, só se justificando que o tribunal passe ao iudicium rescissorium se era a ele mesmo que pertencia a competência para a causa; ou, ainda, quando a invalidade da sentença houver sido mera conseqüência de vício que afetara o processo anterior, de tal sorte que este precisará ser refeito, na medida em que aquele o haja comprometido (exemplos: a citação fora nula, sem convalidação; deixara de intimar-se o Ministério Público, apesar de obrigatória a sua intervenção). O que não se admite, ao nosso ver, é “rescisório implícito”: ou o iudicium rescindens exaure a cognição do tribunal, ou então este - cabendo-lhe prosseguir - tem de pronunciar-se explicitamente, no iudicium rescissorium, acerca da matéria que constituía o objeto da sentença rescindida. V.g.: se no iudicium rescindens se anula a sentença

porque, violando literal disposição de lei, repelira argüição de prescrição que, na espécie, tinha de ser acolhida, é indispensável que se profira novo julgamento para substituir o anterior, declarando-se improcedente o pedido, com fundamento na prescrição.212 Cabe uma ressalva: o tribunal não julgará a matéria no iudicium rescissorium, é claro ainda que em princípio lhe incumbisse fazê-lo -, se se houver tornado inadmissível, por qualquer razão, o exame do mérito da causa. Assim, por exemplo, se nesse meio-tempo cessou, para o autor da ação antecedente, o interesse na providência jurisdicional por meio dela pleiteada; em tal hipótese, o tribunal, no iudicium rescissorium, limitar-se-á a declará-lo “carecedor de ação” (da ação anterior, é óbvio: não da rescisória, que pode até haver sido proposta pela outra parte!). Do mesmo modo que se admite pedido de rescisão parcial da sentença, também se concebe que o tribunal julgue o pedido, seja qual for a sua extensão, procedente no todo ou apenas em parte.213 É intuitivo que só poderá haver rejulgamento, no iudicium rescissorium, da matéria que fora objeto do(s) capítulo(s) invalidado(s) da decisão primitiva. 125. Natureza das decisões no iudicium rescindens e no iudicium rescissorium - No iudicium rescindens, a decisão que julga procedente o pedido, rescindindo a sentença, é constitutiva: cria situação jurídica nova, diversa da anterior. Daí dizer a melhor doutrina, tendo em vista o iudicium rescindens, que é constitutiva (negativa) a ação rescisória.214 A decisão que julga improcedente o pedido de rescisão é, naturalmente, declaratória negativa: cinge-se a declarar que inexistia o alegado direito (potestativo) à invalidação da sentença. No iudicium rescissorium, a decisão de mérito será declaratória, constitutiva ou condenatória, conforme o caso. Recorde-se que, rescindida a sentença, ressurge a lide por ela composta no feito anterior. Compete em regra ao tribunal rejulgar a causa, apreciando-a nos mesmos limites em que tivera de apreciá-la a sentença invalidada. Pode acontecer que a nova decisão coincida no teor (e, portanto, na natureza) com a rescindida;215 pode também acontecer que se revista de teor contrário: seja, v.g., condenatória, quando a outra era declaratória negativa, ou vice-versa. Não há determinação a priori da classe a que pertencerá a decisão no iudicium rescissorium.

126. Efeitos da decisão de procedência no iudicium rescindens - A decisão que, no iudicium rescindens, acolhe o pedido de rescisão da sentença é, como se disse, constitutiva. Ensinamento tradicional, muito difundido entre nós, atribui às sentenças constitutivas eficácia apenas ex nunc,216 com ressalva de expressa disposição legal em contrário. Uma vez que inexiste no Código tal disposição, ter-se-ia de concluir que a anulação da sentença, no iudicium rescindens, embora a faça desaparecer daí em diante, não a apaga no passado. Levando o raciocínio às últimas conseqüências, forçoso seria convir que sempre subsiste todo e qualquer efeito da sentença rescindida, cuja produção remonte ao lapso de tempo anterior à rescisão.

Em posição diametralmente oposta, haveria de colocar-se quem tivesse por aplicáveis aqui princípios consagrados em leis substantivas com referência à anulação de atos jurídicos. Em nosso ordenamento, v.g., conforme estatui o art. 158 do Código Civil, “anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado, em que antes dele se achavam, e não sendo possível restituí-las serão indenizadas com o equivalente”. Partindo de tal premissa, afirmou-se, na doutrina pátria, que “a sentença proferida na ação rescisória retroage os seus efeitos à época da sentença rescindida”.217 Também na Alemanha, e com imensa autoridade, invocou-se ao propósito o disposto no § 142 (1ª alínea) do BGB.218 E, ainda hoje, é forte, na literatura processual germânica, a tendência a considerar que a decisão rescindente atua com força retrooperante (“mit rückwirkender Kraft”).219 As soluções radicais (eficácia ex tunc - eficácia só ex nunc) seduzem pela simplicidade, mas nenhuma delas se mostra capaz de atender satisfatoriamente, em qualquer hipótese, ao jogo de interesse contrapostos. Daí as atenuações com que os escritores habitualmente se furtam a uma aplicação muito rígida de princípios.220 Parece impossível resolver bem todos os problemas concretos à luz de regras apriorísticas inflexíveis. Muitas vezes terse-ão de levar em conta dados do direito material, como ocorrerá em tema de propriedade imobiliária com as normas concernentes ao registro e à proteção de terceiros que porventura hajam adquirido o bem antes da rescisão. Certas proposições, contudo, podem reputar-se assentes em nossa doutrina. Assim, v.g.: subsistem os atos jurídicos praticados pelo curador, apesar de rescindida a sentença de interdição; a rescisão da sentença que decretara o desquite (hoje, separação) ou anulara o casamento não torna adulterinos os filhos havidos, no intervalo, por qualquer dos cônjuges; a da sentença de anulação do casamento invalida o segundo matrimônio porventura contraído nesse ínterim, mas, dada a boa-fé, o segundo matrimônio continuará a produzir os efeitos do casamento putativo.221 Os dois últimos exemplos, obviamente, perderam interesse prático em virtude das modificações do nosso ordenamento positivo, a partir da Lei nº 6.515, de 26.12.1977.

127. Destino do depósito - Ao julgar, deve o tribunal pronunciar-se acerca do depósito da importância de 5% sobre o valor da causa, feito pelo autor nos termos do art. 488, nº II. Ou essa importância será restituída ao autor, ou reverterá em benefício do réu (ou dos réus, se mais de um houver). O pronunciamento independe de provocação da parte; omitido, enseja embargos de declaração (art. 535, nº II). Todavia, a eventual subsistência da omissão não obstará ao levantamento da importância depositada, por aquele a quem ela caiba ex vi legis. Diz o art. 494 que a restituição ocorrerá quando se julgar “procedente a ação”, e que a importância será entregue ao réu quando a ação for declarada “inadmissível ou improcedente”. No texto comentado, as palavras “procedente” e “improcedente” referemse ao pedido de rescisão, e portanto ao resultado do iudicium rescindens, sendo irrelevante o teor do julgamento proferido, se for o caso, no iudicium rescissorium, favorável ou desfavorável - pouco importa - ao autor.222 Desde que se chegue a rescindir

a sentença, fica certo que o autor tinha razão em impugnar-lhe a validade, e tanto basta para que faça jus à restituição da quantia depositada. Por motivo diverso, a solução é a mesma na hipótese de desistência da ação,223 que não pode ser equiparada à de inadmissibilidade, e menos ainda à de improcedência. Ao contrário do que ocorre com o reembolso das custas e o pagamento dos honorários de advogado, a entrega da quantia depositada ao réu não tem caráter de ressarcimento, não visa a compensá-lo de qualquer desfalque patrimonial. Por isso, para que o autor se sujeite à perda do depósito, é irrelevante o comportamento do réu: a sanção será aplicável mesmo que este haja ficado revel. O que se sanciona é o abuso no exercício do direito de ação; de lege ferenda, perdido o depósito, a importância deveria reverter sempre aos cofres públicos. A norma do dispositivo sob exame deve ser integrada mediante conjugação com a do art. 488, nº II, onde se inseriu, por força de emenda aprovada no Congresso Nacional, a cláusula restritiva “por unanimidade de votos”. À luz do projeto (arts. 492, nº II, e 498), bastaria que se declarasse inadmissível a ação ou improcedente o pedido de rescisão para que o autor perdesse, em proveito do réu, o quantum do depósito. Em virtude do acréscimo - que, feito embora apenas no art. 488, nº II, necessariamente repercute na interpretação do art. 494 -, passou-se a exigir que seja unânime o julgamento de inadmissibilidade ou de improcedência. A contrario sensu, se o tribunal julgar inadmissível a ação ou improcedente o pedido só por maioria de votos, não aplicará ao autor a multa consistente na perda do depósito em benefício do réu. Conclui-se que também nessas hipóteses - e não unicamente na de procedência do pedido, a que alude o art. 494, principio - deve o tribunal determinar a restituição da importância ao autor. Do pressuposto da unanimidade apenas se pode cogitar, é óbvio, com relação a julgamento colegiado. Quando o relator indefere a inicial, restitui-se ao autor, sempre, o depósito porventura feito - até porque não há ainda réu em cujo favor pudesse ele reverter. Se, por força de recurso contra o acórdão proferido na rescisória, o julgamento de inadmissibilidade, de procedência ou de improcedência vier a ser substituído pelo do órgão ad quem, o destino do depósito naturalmente se resolverá à luz da decisão no recurso, que substitui a recorrida (art. 512).224 O autor reembolsará a importância depositada caso o órgão ad quem julgue procedente o pedido de rescisão ou, apenas por maioria de votos, declare inadmissível a ação ou improcedente o pedido; perdê-lo-á em favor do réu caso o órgão ad quem, unanimemente, pronuncie a inadmissibilidade ou a improcedência. É irrelevante que, ao julgar o recurso, o órgão ad quem confirme ou reforme o acórdão recorrido. Se, entretanto, não se conhecer do recurso, o acórdão recorrido, que deu pela inadmissibilidade, pela procedência ou pela improcedência, terá transitado em julgado, e de acordo com o seu teor é que se decidirá a sorte do depósito. O Código é omisso, no presente Capítulo, acerca da hipótese de sucumbência parcial recíproca. Nada se diz aqui sobre o destino da quantia depositada, se o pedido houver sido julgado procedente em parte (v.g., o autor pedira a rescisão de dois capítulos da

sentença, e só obteve a de um deles). Ao nosso ver, são aplicáveis por analogia as disposições do art. 21 e seu parágrafo único. No caso de litisconsórcio passivo, julgada inadmissível a ação ou improcedente o pedido, por unanimidade, ratear-se-á entre os réus a importância depositada, a menos que os pressupostos da perda do depósito se limitem a capítulo da decisão atinente só a um (ou a alguns) dos litisconsortes. A atribuição do quantum depositado ao réu não desobriga o autor do pagamento das despesas por aquele antecipadas, nem dos honorários advocatícios (art. 494, fine, combinado com o art. 20). O tribunal deve sempre condenar o vencido a tal pagamento, feita abstração do modo pelo qual há de pronunciar-se sobre o destino do depósito. Pode acontecer que o autor tenha direito à restituição da importância depositada, por haver sucumbido em conseqüência de votação não unânime, e apesar disso haja de pagar despesas e honorários, em razão da mera sucumbência, que para tal efeito não precisa resultar de decisão uníssona. Os dois capítulos do acórdão são autônomos entre si, conquanto acessórios ambos. O levantamento do depósito far-se-á mediante guia expedida, a requerimento do autor ou do réu, conforme o caso, contra o estabelecimento bancário onde se houver depositado a quantia. Pode a parte requerê-lo desde que transite em julgado o acórdão, ou desde que já não esteja sujeito a recurso dotado de efeito suspensivo. Na segunda hipótese, todavia, se bem que não se trate, no rigor da técnica, de “execução provisória”, deve aplicar-se por analogia, ao nosso ver, o disposto no art. 588, nº II, fine, exigindo-se do requerente que preste caução 128. Recursos - Além dos embargos de declaração, sempre cabíveis contra qualquer decisão judicial, podem caber também, contra o acórdão proferido no julgamento da rescisória, embargos infringentes, recurso especial e recurso extraordinário. São pressupostos de cabimento dos embargos infringentes que o tribunal tenha julgado procedente o pedido e que o julgamento não tenha sido unânime (art. 530, na redação da Lei nº 10.352). Se isso ocorrer, é embargável a decisão no iudicium rescindens, ou a decisão no eventual iudicium rescissorium, ou são embargáveis ambas. Como a embargabilidade depende do sentido em que se tenha julgado (verbo “procedente”), só o réu poderá dispor de embargos, que jamais serão cabíveis onde haja ficado vencido o autor (sobre esses pontos, vide também, infra, o comentário nº 284 ao art. 530). Além disso, em qualquer das referidas decisões o desacordo entre os julgadores pode ter sido parcial, caso em que os embargos se restringirão “à matéria objeto da divergência” (art. 530, 2ª parte). O recurso especial e o extraordinário caberão quando concorram os pressupostos indicados na Constituição da República, respectivamente art. 105, nº III, e art. 102, nº III. É manifesto que ainda não cabe o recurso especial, nem o extraordinário, se cabem embargos infringentes, de modo que, para tornar cabível qualquer dos dois, é preciso que a decisão haja sido unânime. Se, porém, nas três etapas do julgamento - juízo de admissibilidade, iudicium rescindens, iudicium rescissorium -, o tribunal ora tiver decidido por unanimidade, ora não, poderão caber simultaneamente (embora contra

partes distintas do acórdão) embargos e recurso especial, ou embargos e recurso extraordinário, ou ainda embargos e ambos esses recursos. Assim também quando, na mesma etapa, desdobrando-se a decisão em dois ou mais capítulos, nem todos a tiverem unânime, ou por maioria de votos. Incide, em tais hipóteses, o art. 498 (cf., infra, o comentário nº 160 a esse dispositivo). Os pressupostos do recurso especial e os do extraordinário, como os dos embargos infringentes, devem compor-se em relação ao acórdão proferido na rescisória, não em relação à sentença rescindenda, pois é aquele, e não esta, que se estará impugnando225 Suponhamos, v.g., que o pedido de rescisão se haja fundado na suposta violação de certa norma constitucional (art. 485, nº V), mas que o tribunal, no iudicium rescindens, não reconhecendo na decisão rescindenda o vício alegado, julgue improcedente o pedido. Ainda que lá, na verdade, houvesse ocorrido a ofensa à Constituição, o autor da rescisória em vão recorrerá extraordinariamente com base no art. 102, nº III, letra a, da Carta da República: o erro do tribunal na solução da questão não torna o seu acórdão ofensivo à norma constitucional. Haveria violação, não do texto da Lei Maior, mas do próprio art. 485, nº V, se o tribunal, reconhecendo embora o vício de sentença anterior, contudo rejeitasse o pedido de rescisão: aí, se satisfeitos os demais pressupostos, o acórdão seria impugnável por meio de recurso especial, com fundamento no art. 105, nº III, letra a. Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue em dois (2) anos, contados do trânsito em julgado da decisão. Direito anterior - Código Civil, art. 178, § 10, nº VIII. Direito comparado - Alemanha: ZPO, § 586; Áustria: ZPO, § 534; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, art. 298; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, art. 381; Costa Rica: Código Procesal Civil, art. 620; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, arts. 631, 644 e 645, 1ª alínea; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, arts. 471, 481, nº 1, 512; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 417; França: Code de procédure civile, art. 596; Grécia: Código de Processo Civil, art. 545; Itália: Codice di procedura civile, arts. 325 a 328; Japão: Código de Processo Civil, art. 342; Panamá: Código Judicial, arts. 1.158, 1ª alínea; 1.191 e 1.192; Portugal: Código de Processo Civil, art. 772; Suécia, Código processual, Cap. 58, Secção 4, 2ª parte, e Cap. 59, Secção 2, 2ª parte; Suíça, Lei Federal de Organização Judiciária, art. 141; Uruguai: Código General del Proceso, arts. 271 e 285; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, arts. 314, 1ª alínea, 334 e 335. COMENTÁRIO 129. Prazo extintivo - A segurança das relações sociais exige que a autoridade da coisa julgada, uma vez estabelecida, não fique demoradamente sujeita à possibilidade de remoção. Ainda quanto às sentenças eivadas de vícios muito graves, a subsistência indefinida da impugnabilidade, incompatível com a necessidade da certeza jurídica, não

constituiria solução aceitável no plano da política legislativa, por mais que em seu favor se pretendesse argumentar com o mal que decerto representa a eventualidade de um prevalecimento definitivo do erro. O legislador dos tempos modernos, aqui e alhures, tem visto nesse o mal menor. Daí a fixação de prazo para a impugnação; decorrido certo lapso de tempo, a sentença torna-se imune a qualquer ataque. É o que acontece na generalidade dos ordenamentos contemporâneos. Entre nós, tem-se adotado a técnica de fixar prazo único para todas as possíveis tentativas de rescisão. Nas leis estrangeiras, em regra, ainda quando a duração não varie, o dies a quo nem sempre é o mesmo: freqüentemente, v.g., será aquele em que a parte tiver conhecimento do fato suscetível de fundamentar o pedido de rescisão; assim, se houver dois ou mais fatos desses, cada qual conhecido numa data, haverá também prazos diversos, parcialmente superpostos ou não. Em compensação, os prazos costumam ser pequenos: um mês no direito alemão e no austríaco, dois no português e no francês, três no espanhol. Algumas legislações fixam, ademais, um prazo máximo, que não pode ser excedido em caso algum, de modo que, uma vez esgotado, a sentença já não comportará impugnação, embora ainda em curso qualquer dos prazos menores; esse prazo máximo que é de cinco anos em Portugal (Código de Processo Civil, art. 772, 2ª alínea) e na Alemanha (ZPO, § 586, 2ª alínea, fine), e de dez anos na Áustria (ZPO, § 534, 3ª alínea) é que começa a correr do trânsito em julgado da sentença. No sistema do Código, seja qual for o fundamento da rescisória, o prazo é sempre o mesmo.226 Começa a correr, de acordo com o dispositivo sob exame, no dia em que a sentença rescindenda (ou a parte rescindenda da sentença)227 transitou em julgado (não no dia em que ela foi publicada, podendo as datas coincidir ou não: vide, supra, o comentário nº 70 ao art. 485 e, infra, o comentário nº 147); se a res iudicata se formou em momentos diferentes para os vários legitimados (v.g., porque a intimação da sentença não foi simultânea para todos), tem de apurar-se para cada um deles, em separado, o dies a quo. A identificação do termo inicial na data do trânsito em julgado da sentença rescindenda já era ponto firme sob o direito anterior,228 se bem que doutrina de grande peso abrisse exceção para a rescisória com base em falsidade de prova declarada no juízo penal, caso em que o termo inicial seria o trânsito em julgado da decisão criminal, salvo se anterior ao da sentença rescindenda;229 todavia, fosse qual fosse o juízo que ao propósito se houvesse de fazer, à luz do antigo sistema, ou de lege ferenda, a opinião não parece compatível com o estatuto em vigor,230 a cuja luz o prazo começa a correr sempre do dia em que transita em julgado essa sentença (dita “decisão” no art. 495).231 O Código Civil fixara o prazo em cinco anos; o anteprojeto BUZAID (art. 535) e o projeto definitivo (art. 499) pretenderam reduzi-lo a um ano apenas. O Congresso Nacional optou pela fixação em dois anos. Não incide o art. 495 quanto à ação de anulação prevista no art. 486, que não é “ação rescisória”. Rege-se a matéria pelo Código Civil (cf., supra, os comentários nºs 91 e 94 àquele dispositivo).

A Medida Provisória nº 1.577, de 11.6.1997, no art. 4º, caput, consagrou regra especial quanto ao prazo de decadência, em benefício de pessoas jurídicas de direito público, verbis “O direito de propor ação rescisória por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, bem como das autarquias e das fundações instituídas pelo Poder Público extingue-se em quatro anos, contados do trânsito em julgado da decisão”. Era supérflua a cláusula derradeira: na ausência de disposição em contrário, incidiria de qualquer sorte o art. 495, fine, do Código. A Medida Provisória nº 1.658, de 5.5.1998, preferiu o caminho de alterar a redação do art. 188, estendendo à propositura da rescisória a duplicação, ali prevista, do prazo para recorrer. Também o Ministério Público passou a gozar do benefício. As Medidas Provisórias mais recentes da série, porém, não têm reproduzido a disposição (vide a de nº 2.109-47, de 27.12.2000). No que concerne ao problema de direito intertemporal, aplica-se aqui o princípio exposto infra, no comentário nº 131, ao qual se remete o leitor. Registre-se ainda que a Lei Complementar nº 86, de 14.5.1996, acrescentando ao art. 22 da Lei nº 4.737, de 15.7.1965 (Código Eleitoral) disposição consagradora de ação rescisória, nos casos de inelegibilidade, fixou para a respectiva propositura o prazo de 120 dias. 130. Natureza do prazo - O Código Civil, como é notório, arrolou sob o nomen iuris de prescrição, no art. 178, ao lado de casos que realmente se enquadram nessa figura, outros que na verdade são de decadência. A doutrina majoritária já assentara que o do § 10, nº VIII, concernente à ação rescisória, entrava na segunda categoria.232 Não obstante, o art. 536 do anteprojeto BUZAID rezava: “Prescreve em um ano a ação rescisória”; e a impropriedade subsistia no art. 499 do projeto remetido ao Congresso: “O direito de propor ação rescisória prescreve em um ano, contado do trânsito em julgado da sentença”. Além de ter-se dilatado o prazo, substituiu-se no Congresso o “prescreve” por “se extingue”. A rigor, o que se extingue não é, aliás, o “direito de propor ação rescisória”: esse existirá sempre, como simples manifestação particular do direito de ação. Extingue-se, sim, o direito mesmo à rescisão da sentença viciada. O fenômeno passa-se no plano material, não no plano processual, como de resto deixa entrever o próprio Código, quando estatui que a pronúncia da decadência acarreta a extinção do processo “com julgamento de mérito” (art. 269, nº IV). Escoado in albis o biênio, não é a ação rescisória que se torna inadmissível: é o direito à rescisão da sentença, o direito que se deduziria em juízo, que cessa de existir. O caso é, tecnicamente, de improcedência no iudicium rescindens, conquanto, por exceção inspirada em considerações de ordem prática, a lei autorize (ou antes, ordene) o indeferimento da inicial pelo relator, se desde logo verificada a decadência (art. 490, nº I, combinado com o art. 295, nº IV). O direito à rescisão da sentença constitui exemplo típico de direito potestativo só exercitável pela via judicial.233 Com a natureza potestativa do direito relaciona-se a natureza constitutiva da ação rescisória, no que tange ao iudicium rescindens.234 Em se tratando de direitos potestativos (e de ações constitutivas), não há que cogitar de

prescrição: esta pressupõe lesão, e um dos traços característicos daqueles reside em não poderem ser lesados.235 O direito à rescisão da sentença já nasce com termo prefixado; o titular decairá do direito, se não o exercer dentro do prazo. Sendo de decadência, o prazo do art. 495 não se suspende nem se interrompe nos casos previstos em lei para a suspensão ou a interrupção dos prazos prescricionais. A citação inicial válida, entretanto, obsta à consumação da decadência (art. 220, combinado com o art. 219, caput, fine), retroagindo o efeito obstativo à data da propositura da ação (art. 219, § 1º), desde que observados os preceitos dos §§ 2º e 3º; nessa hipótese, portanto, basta que a ação tenha sido proposta dentro do biênio, pouco importando que o réu já venha a ser citado fora dele. Se a citação não se realizar com observância dos prazos dos §§ 2º e 3º, será preciso, para impedir (sendo possível!) a consumação da decadência, que o réu seja efetivamente citado ainda no biênio (cf., supra, o comentário nº 110 ao art. 491).236 131. O problema de direito intertemporal - O Código de 1973 foi parcíssimo na disciplina dos problemas de direito intertemporal resultantes da sua entrada em vigor. Traçou somente a regra do art. 1.211, 2ª parte, que não resolve a questão relacionada com a redução do prazo decadencial da ação rescisória, de cinco para dois anos apenas. Cumpre verificar como se refletiu essa redução no tocante às decisões trânsitas em julgado ainda sob a vigência do direito anterior. Com referência aos prazos prescricionais encurtados, durante a sua fluência, por lei nova, o entendimento prevalecente em sede doutrinária e jurisprudencial237 distingue entre duas hipóteses: 1ª, ao entrar em vigor a lei nova, que abrevia o prazo, ainda está por fluir, de acordo com a lei antiga, um lapso de tempo maior que o prazo fixado na lei nova; 2ª, ao entrar esta em vigor, o lapso de tempo ainda por fluir, conforme a lei antiga, é menor que o novo prazo fixado. Na primeira hipótese, aplica-se a lei nova, a partir da data da sua entrada em vigor, de sorte que o prazo terminará antes do momento em que viria a terminar, se continuasse a reger-se pela lei antiga. Na segunda hipótese, considera-se que a aplicação da lei nova conduziria a resultado absurdo: se se computasse o prazo por ela fixado, a partir do dia de sua entrada em vigor, na realidade se estaria dilatando, no cômputo global, o prazo que a reforma legislativa quis abreviar; por essa razão, admite-se que o prazo continue a correr só até o termo final na conformidade da lei antiga. O prazo para o propositura da rescisória, entretanto, não é de prescrição, mas de decadência (vide, supra, o comentário nº 130). Doutrina muito autorizada nega aplicabilidade às regras acima expostas, em se tratando de prazo decadencial.238 O direito potestativo (à rescisão, no caso) já nascido para alguém, desde a ocorrência do fato que o gerou, fica imune (inclusive quanto ao lapso de tempo em que é exercitável, e que o integra como elemento essencial) à lei superveniente - no ordenamento pátrio, até por força de regra constitucional (art. 5º, nº XXXVI). A justificar a diferença de tratamento, está a circunstância de que, na prescrição, enquanto fluente o prazo, não existe, para quem quer que seja, direito que se pudesse dizer atingido pela redução. Nessa perspectiva, continuaram rescindíveis, até o fim do qüinqüênio, as decisões trânsitas em julgado antes da entrada em vigor do novo diploma. As que passaram em julgado a partir

de 1º de janeiro de 1974, essas só dentro do biênio poderiam ser impugnadas pela rescisória. Tal, ao nosso ver, o melhor entendimento.239 132. Controle judicial da tempestividade - Em mais de um momento pode o órgão judicial controlar a tempestividade do ajuizamento da ação rescisória - o que sempre lhe é dado fazer ex officio. Conforme resulta da conjugação do disposto no art. 490, nº I, com a norma do art. 295, nº IV, verificada primo ictu oculi a decadência, cabe ao próprio relator do feito indeferir a petição inicial (cf. o art. 219, § 5º, combinado com o art. 220, e, supra, o comentário nº 108 ao art. 490). Se a circunstância passar despercebida ao relator, nesse primeiro contacto com a postulação, nem por isso ficará preclusa a matéria. Por força da remissão constante do art. 491, 2ª parte, aplica-se à rescisória o preceito do art. 329. A conjugação deste com o art. 269, nº IV, mostra que a declaração da decadência é cabível após a fase postulatória, qual modalidade de “julgamento conforme o estado do processo”. O relator continua competente para decretá-la,240 como o fora para indeferir a inicial (cf., supra, o comentário nº 114 ao art. 491). Caso o relator não dê pela decadência e profira despacho saneador, nem assim, ao nosso ver, ocorrerá preclusão, pois ao órgão julgador da rescisória ainda não se terá aberto a oportunidade de pronunciar-se acerca da matéria, e não se lhe pode subtrair à cognição, no julgamento da causa, esse aspecto do mérito. Na sessão em que o feito lhe for submetido, tocará ao colegiado, como etapa preliminar do iudicium rescindens, examinar a questão, declarando a decadência, se for o caso - o que o dispensará de prosseguir na atividade cognitiva. A decisão declaratória da decadência é definitiva (cf. art. 269, nº IV) e, portanto, suscetível de adquirir a auctoritas rei iudicatae no sentido material. Trânsita em julgado, pode ser, por sua vez, impugnada através de outra ação rescisória, nos termos do art. 485, caput, com fundamento em algum fato constante do elenco desse dispositivo. 133. Efeito da consumação da decadência - Consumada a decadência, fica imune a posteriores ataques a autoridade da coisa julgada; em outras palavras, a sentença torna-se irrescindível, perdendo toda a relevância o vício de que se achava eivada. Esse efeito ocorre, fosse qual fosse o motivo, dentre os enumerados no art. 485, capaz de fundamentar, até a consumação da decadência, a ação rescisória. Surge daí uma questão elegante, relacionada com a hipótese do inciso IV, para a qual parece não existir solução inteiramente satisfatória de todos os pontos de vista. Tornada irrescindível a decisão violadora da res iudicata, têm-se duas sentenças talvez contraditórias, ambas passadas em julgado, e já não se pode usar qualquer remédio judicial tendente a eliminar a contradição, pela desconstituição de uma delas. Trata-se de saber se as duas sentenças se neutralizam reciprocamente, ou se alguma prevalece sobre a outra, e neste caso qual deve prevalecer.

No direito romano, prevalecia sem dúvida a primeira, já que a segunda, proferida contra a res iudicata, se considerava inexistente e não chegava, como tal, a revestir-se, ela própria, da autoridade da coisa julgada.241 A concepção moderna, todavia, é bem diversa. A decisão que ofende a res iudicata nem é inexistente, nem sequer nula de pleno direito, mas apenas suscetível de desconstituição, por meio de recurso ou de ação impugnativa autônoma, conforme a opção de cada sistema jurídico. No ordenamento pátrio, v.g., semelhante decisão transita em julgado como qualquer outra242 e, enquanto não rescindida, produz todos os efeitos que produziria se nenhum vício contivesse (cf., supra, o comentário nº 68 ao art. 485). Seria evidente contra-senso recusar-se eficácia à segunda sentença, depois de consumada a decadência, quando nem sequer antes disso era recusável a eficácia. A passagem da sentença, da condição de rescindível à de irrescindível, não pode, é claro, diminuir-lhe o valor. Aberraria dos princípios tratar como inexistente ou como nula uma decisão que nem rescindível é mais, atribuindo ao vício, agora, relevância maior do que a tinha durante o prazo decadencial. Daí se infere que não há como obstar, só com a invocação da ofensa à coisa julgada, à produção de quaisquer efeitos, inclusive executivos, da segunda sentença,243 quer antes, quer (a fortiori!) depois do termo final do prazo extintivo. O problema, entretanto, não se limita a esse aspecto. Uma coisa é a eficácia da segunda sentença - ao nosso ver, inegável -, outra é o vínculo resultante da res iudicata.244 Se, em terceiro processo que porventura venha a instaurar-se, cada uma das partes invocar a auctoritas rei iudicatae de uma das sentenças contraditórias, a qual delas há de atender o juiz? Caso a lide seja sempre a mesma, o que lhe cumpre fazer é, naturalmente, abster-se de rejulgá-la; caso, porém, se trate de lide subordinada, cuja solução deva ter como premissa necessária a da outra, que critério adotará o órgão judicial para escolher entre as duas premissas diametralmente opostas que se lhe oferecem? A doutrina européia predominante, sem deter-se em regra no exame da questão pelos ângulos específicos acima indicados, cinge-se a afirmar, em termos genéricos, e com fundamentação variável de autor para autor, a prevalência da segunda sentença (não rescindida por meio de recurso ou ação autônoma) sobre a primeira.245 Caberia objetar que também esta só seria passível de desconstituição mediante uso do remédio próprio: no direito brasileiro, após o trânsito em julgado, por meio de ação rescisória. Ora, não é razoável equiparar a segunda sentença, que pura e simplesmente ofendeu a coisa julgada da primeira, a uma decisão de procedência em iudicium rescindens - única que, no sistema do ordenamento, teria a força de desconstituí-la. Aliás, com base em tal equiparação, já se chegou a concluir que em princípio se sujeitam a desfazimento os atos praticados com fulcro na primeira sentença, inclusive a respectiva execução, acaso já promovida -246 conclusão manifestamente insatisfatória, entre outras razões pela insegurança jurídica que instauraria: atos fundados em decisão judicial ex hypothesi válida, insuscetível de desconstituição pela única via que o direito positivo reconhece como idônea, não devem ficar sujeitos a perder o valor em virtude da irregular superveniência de outra decisão, esta viciada.

Entre nós, sugestivo estudo sobre o tema247 procurou uma chave para o enigma na consideração da questão ao ângulo constitucional. A segunda sentença não poderia prevalecer sobre a primeira em obséquio à garantia da coisa julgada (Constituição da República então em vigor, art. 153, § 3º; hoje, art. 5º, nº XXXVI). Mas, ainda a admitirse que essa norma - ao nosso ver, relativa apenas a direito intertemporal - tivesse o alcance que se lhe quer dar, uma indagação inevitavelmente se poria: porque a regra constitucional só protegerá a primeira sentença, e não a segunda, igualmente passada em julgado? Porventura não se desrespeitará, também, a garantia da res iudicata, fazendo tábua rasa da segunda sentença? E se se responder que esta não merece a mesma proteção porque posterior, sem dúvida se cairá em petição de princípio: o que se precisa demonstrar é exatamente a prevalência da coisa julgada anterior, enquanto tal. Num caso parece simplificar-se a solução do tormentoso problema: naquele em que a segunda sentença, violadora da res iudicata, não rejulgou a mesma lide, mas lide subordinada à que a primeira decidira. Exemplo: declarada inexistente a dívida principal, por sentença trânsita em julgado, acolheu-se posteriormente o pedido de condenação ao pagamento de juros. A ofensa, aqui, não consiste em haver-se formulado nova regra concreta para a mesma situação jurídica, mas simplesmente em haver-se formulado a regra concreta para situação jurídica subordinada sem levar-se em conta a regra concreta anteriormente formulada para a situação jurídica subordinante (vide, supra, o comentário nº 77 ao art. 485).248 Nesta hipótese, não é impossível deixar prevalecer ambos os vínculos decorrentes da auctoritas rei iudicatae conferida às duas decisões, até porque a segunda não gerou res iudicata sobre a obrigação principal - que, no processo onde ela surgiu, era simples ponto prejudicial.249 Destarte, em quaisquer eventuais feitos posteriores, de um lado não se poderá tornar a pôr em dúvida que aqueles juros eram devidos, mas, por outro lado, tampouco será lícito questionar de novo a inexistência da obrigação principal, de modo que, se se vier a reclamar em juízo prestação diversa (v.g., novos juros), a autoridade de coisa julgada da primeira sentença obstará ao acolhimento do pedido. Título X - DOS RECURSOS 134. Os recursos no quadro geral dos remédios contra decisões judiciais - Desde tempos remotos têm-se preocupado as legislações em criar expedientes para a correção dos possíveis erros contidos nas decisões judiciais. À conveniência da rápida composição dos litígios, para o pronto restabelecimento da ordem social, contrapõe-se o anseio de garantir, na medida do possível, a conformidade da solução ao direito. Entre essas duas solicitações, até certo ponto antagônicas, procuram os ordenamentos uma via média que não sacrifique, além do limite razoável, a segurança à justiça, ou esta àquela. Fazer inimpugnáveis quaisquer decisões, desde que proferidas, atenderia ao primeiro interesse, mas com insuportável detrimento do segundo; multiplicar ad infinitum os meios de impugnação produziria efeito diametralmente oposto e igualmente danoso. Ante a inafastável possibilidade do erro judicial, adotam as leis posição intermediária: propiciam remédios, mas limitam-lhes os casos e as oportunidades de uso.

Naturalmente, conforme a diretriz de política legislativa predominante na época, tais remédios vêem-se prodigalizados ou, ao contrário, comprimidos em doses parcimoniosas. A oscilação entre uma e outra tendência marca a evolução histórica de todos os grandes sistemas jurídicos do chamado mundo ocidental. - É tradicional a distribuição dos remédios utilizáveis contra as decisões judiciais em duas classes fundamentais: a dos recursos e a das ações autônomas de impugnação.1 Como traço distintivo entre elas, costuma apontar-se a circunstância de que os remédios da segunda classe se dirigem contra decisões já transitadas em julgado, ao passo que os da primeira são exercitáveis, precisamente, antes de formada a res iudicata, com o efeito precípuo de impedi-la. As raízes históricas de semelhante esquema2 arrancam principalmente do direito medieval, embora não se devam olvidar certos antecedentes mais remotos: com efeito, na Roma antiga, ao lado da appellatio, protótipo dos recursos, floresceu a restitutio in integrum, em que se podem identificar traços assimiláveis aos das modernas ações impugnativas. A cristalização desta última categoria em figura de contornos nítidos apenas ocorreria, porém, depois de fundamente alteradas as noções correntes entre os romanos sobre a nulidade da sentença e os respectivos efeitos. Chamava-se em Roma nulla sententia ao pronunciamento judicial eivado de defeitos muito graves, notadamente de ordem processual; mas o conceito que se exprimia por tais palavras correspondia ao que hoje, apesar de reiteradas críticas doutrinárias, geralmente se designa pela locução “sentença inexistente” e implicava a desnecessidade do uso de qualquer remédio. Só muito mais tarde, por influência do direito germânico, veio a firmar-se o princípio de que mesmo os errores in procedendo precisavam ser denunciados por meios específicos, sob pena de ficar preclusa a sua argüição, prevalecendo para todos os efeitos a decisão viciada. Essa a origem da querela nullitatis, instituto que se desenvolveu no período intermédio, paralelamente à apelação, reservada em regra para a denúncia de supostos errores in iudicando. A querela nullitatis é em geral apontada como o germe das acões autônomas de impugnação, conhecidas sob várias formas no direito moderno. Não foi homogênea, entretanto, a evolução dos diversos ordenamentos europeus nessa matéria. Enquanto em alguns a querela se viu em parte abolida e em parte absorvida pela apelação - de tal sorte que os fundamentos alegáveis para pedir a desconstituição da sentença passaram a fazerse valer unicamente como razões de recurso, perdendo toda a relevância fora desse estreito âmbito -, em outros subsistiram certas possibilidades de ataque às decisões judiciais, ainda quando irrecorríveis. Seguiram aquela orientação o direito francês e o italiano; esta foi vitoriosa no direito alemão. Quanto ao luso-brasileiro, a despeito de resíduos romanísticos identificáveis nos textos das Ordenações, acabou por preponderar a tese medieval de que as próprias sentenças processualmente defeituosas precisavam ser impugnadas, e o remédio forjado para ocorrer a tal necessidade veio a constituir a ação rescisória, até hoje subsistente entre nós.3 Já se assinalou que, nas exposições clássicas da matéria, é a relação de cada uma delas com a coisa julgada que ministra o critério basilar para a diferenciação entre as duas

grandes espécies, acima indicadas, de remédios. Essa linha divisória logicamente deveria apagar-se nos ordenamentos influenciados pela tendência, que a partir de certa época se difundiu, a converter em simples razões de recorribilidade os motivos que antes levavam à invalidação da sentença: a conseqüência seria a absorção das ações impugnativas autônomas pelos recursos. Manteve-se a separação, contudo, sob forma diversa: a da distinção, que em alguns países se veio a consagrar, entre recursos ordinários e extraordinários, aqueles obstativos do trânsito em julgado, estes utilizáveis contra decisões já revestidas da auctoritas rei iudicatae. Do ponto de vista substancial, os “recursos extraordinários”, em tais sistemas, desempenham função análoga à das ações autônomas de impugnação.4 No direito brasileiro, a ação rescisória, espécime característico desta última classe, conserva a nota tradicionalmente indicada: dirige-se contra decisões passadas em julgado. Não nos parece, entretanto, que se possa, de lege lata, fazer repousar na presença ou na ausência dessa circunstância o critério essencial da diferenciação entre ações impugnativas e recursos. A construção há de fundar-se nos dados do direito positivo, com as suas peculiaridades. Ora, não pode sofrer dúvida que, entre nós, todos os recursos (admissíveis!) empecem à formação da coisa julgada: é o que já decorria, com nitidez cristalina, do disposto no art. 6º, § 3º, do Dec.-lei nº 4.657, de 4.9.1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), verbis: “Chama-se coisa julgada, ou caso julgado, a decisão judicial de que já não caiba recurso”, e agora ressalta do art. 467 do Código de Processo Civil. Mas esse traço não basta para a demarcação da divisa: tira-se da regra legal que não é recurso, para o direito brasileiro, remédio algum utilizável contra decisão passada em julgado; mas não se tira que seja necessariamente recurso qualquer remédio utilizável contra decisão ainda não passada em julgado. O núcleo irredutível do conceito há de ser, pois, buscado alhures. 135. Conceito de recurso no direito processual civil brasileiro - Não ministra o Código de Processo Civil uma definição de “recurso”; examinando-se, porém, as várias figuras ali arroladas sob esse nomen iuris, verifica-se que o denominador comum de todas elas consiste em que o seu uso não dá margem à instauração de novo processo, senão que apenas produz a extensão do mesmo processo até então fluente. Eis aí, ao nosso ver, o traço característico do instituto, tal como o disciplina o vigente direito processual civil brasileiro, e já o disciplinava o Código anterior.5 Não será recurso, pois, remédio algum cujo emprego produza a instauração de processo distinto daquele em que se proferiu a decisão impugnada: assim, obviamente, a ação rescisória, mas também o mandado de segurança contra ato judicial, a despeito de não pressupor o trânsito em julgado - o que o excluiria, segundo o outro critério, do elenco das ações autônomas de impugnação, no qual, para nós, indubitavelmente se inscreve. De ponto de vista diverso, verifica-se ainda que todo recurso nasce da iniciativa de alguém interessado em impugnar uma decisão. Observe-se: o fato de ensejar a revisão do que se haja decidido pode ser característica comum a outras figuras processuais. Nas hipóteses de que tratam o art. 475 do Código e numerosas disposições de leis extravagantes, também se chega ao reexame, mas por via que não se identifica nem se confunde com a recursal.6

À luz das considerações acima, pode-se conceituar recurso, no direito processual civil brasileiro, como o remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna. Atente-se bem: dentro do mesmo processo, não necessariamente dos mesmos autos. A interposição do agravo por instrumento dá lugar à formação de autos apartados; bifurca-se o procedimento, mas o processo permanece uno, com a peculiaridade de pender, simultaneamente, no primeiro e no segundo grau de jurisdição. O caso mais comum é aquele em que a interposição do recurso visa à reforma da decisão recorrida; isto é, visa a obter do órgão ad quem a formulação, para a hipótese, de regra jurídica concreta diferente daquela formulada pelo órgão a quo. Muitas vezes, porém, o que daquele se pretende é simplesmente que invalide, elimine, casse o pronunciamento emitido, para que, posteriormente, outro o substitua: assim na apelação fundada em suposto vício processual. Ao esclarecimento ou à integração da decisão recorrida tendem os embargos de declaração. 136. Condição jurídica da sentença sujeita a recurso - A sentença trânsita em julgado, contenha embora vício capaz de fundamentar uma ação impugnativa, é ato idôneo a produzir todos os efeitos normais, e tal eficácia subsiste enquanto não a tolha eventual decisão desconstitutiva. A ação rescisória não é ação que vise à declaração de nulidade: é ação constitutiva negativa. Por isso mesmo, nenhum dos seus possíveis fundamentos pode ser eficazmente invocado, por exemplo, em questão prejudicial, a resolver-se incidenter tantum, ou sequer como empecilho à execução da sentença rescindível. A condição jurídica da decisão só passível de ataque por via da ação autônoma, destarte, assimila-se à dos atos jurídicos meramente anuláveis (cf., supra, o comentário nº 68 ao art. 485). Diversa é a da sentença ainda sujeita a impugnação mediante recurso, e como tal desprovida da auctoritas rei iudicatae. O grau de instabilidade, aqui, é obviamente muito maior: pode ser que o pronunciamento venha a prevalecer em caráter definitivo, se decorrer in albis o prazo recursal, ou por qualquer outra razão o recurso se revelar inadmissível; mas, a priori, há pelo menos igual possibilidade de que a superveniência de outro pronunciamento, em grau superior, retire ao primeiro toda a aptidão para cristalizarse em res iudicata. Várias e interessantes teorias têm sido propostas para explicar essa figura. Vale a pena recordar, em termos sintéticos, as principais:7 a) A sentença sujeita a recurso seria ato submetido a condição resolutiva: nasceria desde logo provida dos requisitos necessários para viver de maneira estável, mas exposta a perder a eficácia originária no caso de sobrevir novo pronunciamento na instância recursal. Criticou-se esta doutrina, observando que, a ser assim, não se compreenderia por que a decisão (condenatória) recorrível não produz, como conseqüência normal, senão apenas excepcionalmente, efeito executório - argumento cujo peso depende do critério (variável) adotado pelo ius positum.

b) Utilizou-se também, para caracterizar a natureza da sentença passível de recurso, o conceito de situação jurídica, entendido como circunstância que, com o concurso de outras, pode gerar determinado efeito, mas permanece ineficaz se essas outras não se verificam. A decisão do órgão inferior seria, então, menos uma sentença propriamente dita que mera possibilidade de sentença, à espera, para aperfeiçoar-se, de que fique em definitivo excluída a hipótese de novo pronunciamento. c) De acordo com outra opinião, a sentença recorrível seria ato em si perfeito, mas sujeito a revogação, ocorrendo esta apenas quando o órgão ad quem a reformasse, não quando a confirmasse. Entretanto, a tese predominante - e entre nós, de lege lata, expressamente consagrada (Código de Processo Civil, art. 512) - é a de que, seja qual for o sentido em que se profira, a decisão da superior instância substitui sempre a recorrida, nos limites do que formou o objeto do recurso (adiante se cuidará de precisar melhor o ponto: vide os comentários ao dispositivo citado). d) Uma quarta explicação - que, ao menos para o ordenamento positivo brasileiro, nos parece a preferível,8 com ressalva dos casos em que a lei, por exceção, antecipa ao trânsito em julgado a produção de efeitos - vê também, na sentença sujeita a recurso, um ato condicionado, porém esclarece que se trata na verdade, de condição suspensiva: a decisão nasce com todos os requisitos essenciais de existência, mas, de ordinário, tolhida em sua eficácia; a não-superveniência de outro pronunciamento, na instância recursal, é a condição legal negativa cujo implemento lhe permite irradiar normalmente os efeitos próprios. Tal condição pende, enquanto subsiste a possibilidade de proferir-se decisão em grau de recurso; verifica-se, quando semelhante possibilidade fica em definitivo afastada; falta, quando o órgão ad quem emite validamente nova decisão, quer para confirmar, quer para reformar a anterior. 137. Natureza jurídica do recurso - Para certa corrente doutrinária, constitui o recurso uma ação distinta e autônoma em relação àquela que se vinha exercitando no processo.9 Chegou-se à precisão de atribuir-lhe natureza constitutiva, por tender, pelo menos no comum dos casos, à remoção de um pronunciamento. A favor dessa tese, tem-se invocado a circunstância de que a ação originária se funda em fato extraprocessual, isto é, ocorrido fora do processo, antes de sua instauração, ao passo que o recurso se origina de fato verificado dentro do processo: a decisão recorrida, justamente. Argumenta-se ainda com a circunstância de serem legitimadas à interposição de recurso, por vezes, pessoas diversas daquelas que detinham a legitimação para a causa. A maior parte da doutrina prefere conceituar o poder de recorrer como simples aspecto, elemento, modalidade ou extensão do próprio direito de ação exercido no processo.10 Não obsta a esse entendimento a interponibilidade de recurso pelo réu: tenha-se em mente o caráter bilateral da ação. Restariam os casos em que se faculta o recurso a terceiros prejudicados, ou ao Ministério Público ainda quando não seja parte (art. 499, § 2º, fine). Aí, o que se tem de entender é que o recorrente exerce por essa forma abreviada o direito de ação, que não quis, ou não pôde exercer pela forma normal.11 Quanto à diferença de fundamento, basta observar que existem ações originárias de fatos

intraprocessuais (ação rescisória fundada em error in procedendo, embargos de terceiro, mandado de segurança contra ato judicial), o que retira ao critério discretivo proposto muito de sua significação, embora nestas hipóteses, ao contrário do que sucede com os recursos, o processo em que ocorreu o fato originante não seja o mesmo em que se exerce a ação. Sob outro ponto de vista, a interposição de recurso pode caracterizar-se como ônus processual.12 Trata-se, com efeito - ressalvados os casos de sujeição obrigatória da matéria à revisão por órgão superior (art. 475) -, de ato que alguém precisa praticar para tornar possível a obtenção de uma vantagem ou para afastar a consumação de uma desvantagem. Está presente aí o traço essencial por que o ônus se estrema do dever, ordenado este à satisfação de interesse alheio, aquele à de interesse próprio. 138. Recurso e duplo grau de jurisdição - Tradicional é a correlação que se estabelece entre o instituto do recurso e o princípio do duplo grau de jurisdição, segundo o qual as lides ajuizadas devem submeter-se a exames sucessivos, como garantia de boa solução. A justificação política do princípio tem invocado a maior probabilidade de acerto decorrente da sujeição dos pronunciamentos judiciais ao crivo da revisão. É dado da experiência comum que uma segunda reflexão acerca de qualquer problema freqüentemente conduz a mais exata conclusão, já pela luz que projeta sobre ângulos até então ignorados, já pela oportunidade que abre para a reavaliação de argumentos a que no primeiro momento talvez não se tenha atribuído o justo peso. Acrescente-se a isso a circunstância de que, em regra, o julgamento do recurso compete a juízes mais experientes, em regime colegiado, diminuindo a possibilidade de passarem despercebidos aspectos relevantes para a correta apreciação da espécie. Não têm faltado, entretanto, desde tempos remotos, críticas veementes ao sistema. Costuma citar-se, ao propósito, um texto de ULPIANO, aliás ambíguo e suspeito de inautenticidade. Para os adversários do princípio do duplo grau, ou os órgãos superiores são presumivelmente mais capazes de fazer boa justiça, e neste caso mais vale confiarlhes diretamente a tarefa de julgar as causas, ou não gozam de tal presunção, e neste caso a devolução da matéria ao seu conhecimento é medida contraproducente, pelo risco que gera de substituir-se uma decisão certa por outra errônea. A verdade, porém, é que a garantia de mais provável acerto resulta, principalmente, de uma circunstância especial: o controle exercido pelo juízo ad quem beneficia-se da presença, nos autos, de material já trabalhado, já submetido ao crivo do primeiro julgamento, e ao da crítica formulada pelas próprias partes, ao arrazoarem, num sentido e noutro, o recurso. De qualquer sorte, se no plano da lógica pura talvez se tornasse difícil demonstrar more geometrico a superioridade do sistema do duplo grau, é certo que na prática, até por motivos de ordem psicológica, se têm considerado positivos os resultados de sua adoção, como revela a consagração generalizada do princípio nos ordenamentos dos povos cultos, principalmente depois que a Revolução Francesa, apesar de forte resistência, o encampou.13 Na realidade, a utilização das vias recursais pode explicar-se por uma série de razões extremamente diversificadas - desde a sincera convicção de que o órgão a quo decidiu de

maneira errônea, até o puro capricho ou espírito emulatório, passando pelo desejo de ganhar tempo, pela irritação com dizeres da decisão recorrida, pelo intuito de pressionar o adversário para induzi-lo a acordo, e assim por diante. Não fica excluída a hipótese de que a vontade de recorrer esteja menos no litigante que no advogado, receoso de ver-se atingido em seu prestígio profissional pela derrota, ou movido por animosidade contra o patrono da parte adversa. É intuitivo, por outro lado, que fatores também múltiplos e variados influem na opção final entre interpor e não interpor o recurso: a estimativa das despesas com este relacionadas, a previsão do tempo que fluirá até o julgamento, a qualidade da decisão proferida, a existência ou inexistência de orientação jurisprudencial firme sobre a questão de direito, e até a situação do mercado de trabalho na advocacia... Trata-se de problemática do maior interesse, notadamente pelo ângulo da sociologia do processo, a reclamar estudos interdisciplinares, como os que já se vão fazendo noutros países.14 - Muito se tem discutido em doutrina acerca da exata significação e alcance do princípio do duplo grau. Em termos genéricos, poder-se-ia dizer que dele decorre a necessidade de permitir-se nova apreciação da causa, por órgão situado em nível superior na hierarquia judiciária, mediante a interposição de recurso ou expediente análogo - como, no sistema do Código de 1973, o contemplado no art. 475 e seu parágrafo único -, após a primeira decisão. Surgem as dificuldades, porém, quando se quer determinar a extensão da atividade cognitiva a ser exercida pelo órgão ad quem, em confronto com a que exerceu o órgão a quo. Costuma suscitar-se o problema, especialmente, no que tange à amplitude dos poderes cognitivos exercitáveis no juízo da apelação. Indaga-se, com efeito, se ao órgão ad quem é lícito examinar todos os aspectos da causa, inclusive aqueles sobre os quais não se haja pronunciado o órgão a quo, ou se estaria vinculado, e em que medida, aos limites da cognição efetivamente exercida no primeiro grau. Indaga-se, noutras palavras, quando se deve reputar exaurido o primeiro grau, de sorte que a causa, sujeita à apreciação do órgão ad quem, não precise voltar ao órgão a quo, para eventual complementação da atividade cognitiva a este deferida.15 Um exemplo frisante: o juízo inferior acolheu a argüição de prescrição e, com isso, julgou improcedente o pedido, sem analisar a parte restante do meritum causae. Interposto recurso contra a sentença, se o tribunal entender que houve erro na solução da preliminar, e negar a ocorrência da prescrição, pode porventura ir adiante no exame da causa, ou tem de determinar a baixa dos autos, para que o órgão a quo se pronuncie sobre as questões remanescentes? Caso se adote o primeiro alvitre, estar-se-á “suprimindo” um grau de jurisdição? Posta em semelhantes termos, a questão obviamente se articula com a da delimitação do efeito devolutivo que se atribui ao recurso ou ao expediente análogo previsto na lei. Não há definição universalmente válida do princípio do duplo grau: cabe ao intérprete extrair dos textos do ius positum os dados necessários à sua caracterização, num determinado ordenamento.16 Vale observar que, embora parte considerável da doutrina, desde época anterior ao advento da atual Carta da República, tenda a considerá-lo ínsito em nosso sistema constitucional,17 nem o texto da Constituição anterior nem o da vigente ministra, no particular, conceito que se imponha ao legislador ordinário; nenhum dos dois alude

sequer, expressis verbis, ao princípio. Tem-se de verificar quais são, a respeito, as exigências inerentes à própria sistemática do Código. É o que há de resultar do estudo da problemática atinente ao efeito devolutivo, matéria de que se tratará nos lugares adequados: vide, infra, em termos genéricos, o comentário nº 143, e com referência específica à apelação os nºs 237 e seguintes, ao art. 515. 139. Atos sujeitos a recurso - Nos arts. 162 e 163, consagra o Código uma classificação dos atos praticados pelo órgão judicial em sentenças, decisões interlocutórias, despachos e acórdãos. Define sentença como “o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”, e decisão interlocutória como “o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente” (art. 162, §§ 1º e 2º); chama despachos a “todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma” (art. 162, § 3º); e reserva a denominação de acórdão ao “julgamento proferido pelos tribunais” (art. 163). A primeira observação que se impõe é a de que, ao redigir o art. 162, o legislador, aludindo a “atos do juiz”, evidentemente só quis abranger uma categoria de atos, a saber, os pronunciamentos,18 escritos ou verbais, do órgão judicial. Em verdade, dentre os atos que o juiz pratica no processo, há muitos outros - alguns de superlativa importância - que não consistem nem em sentenças, nem em decisões interlocutórias, nem em despachos:19 por exemplo, a inquirição de testemunha (art. 416) ou da parte (art. 344), a inspeção de pessoa ou coisa (art. 440), a tentativa de conciliação das partes (art. 448, principio), a audiência dos cônjuges sobre os motivos da separação consensual (art. 1.122, caput, com a redação dada pelo art. 39 da Lei nº 6.515, de 26.12.1977), a abertura de testamento cerrado (art. 1.125), a arrecadação dos bens da herança jacente (art. 1.145), o exame do interditando (art. 1.181) e assim por diante. Semelhantes atos, porém, não interessam do ponto de vista em que agora nos situamos. Em matéria de recorribilidade, relevante é mesmo a classificação feita no art. 162, notadamente no que diz respeito aos atos emanados dos órgãos de primeiro grau de jurisdição - que podem ser ou não recorríveis, e, no caso de o serem, nem sempre o serão pela mesma via. Com efeito, “dos despachos de mero expediente não cabe recurso” (art. 504), ao passo que as sentenças são passíveis de apelação (art. 513), e as decisões interlocutórias comportam agravo (art. 522). Por outro lado, no entanto, apesar do empenho com que se preocupou em definir as várias espécies de pronunciamentos, não conseguiu o legislador forjar uma nomenclatura unívoca e perfeitamente coerente. A distinção entre sentença e decisão interlocutória, tal como resulta do confronto entre os §§ 1º e 2º do art. 162, inspira-se em critério topológico: aquela “põe termo ao processo” (rectius: ao procedimento de primeiro grau), esta é proferida “no curso do processo”. Sentenças e decisões interlocutórias poderiam reunir-se, para formar em conjunto a classe mais ampla das decisões, contraposta à dos despachos, conquanto, em mais de um dispositivo, use o Código a palavra “decisão” no sentido estrito de “decisão interlocutória” (v.g., arts. 134, nº III, 164, 242 e seu § 1º, 503, 512, 733), contrapondo-a, por conseguinte, a “sentença”. Esse modo de dizer é obviamente defeituoso, pois o adjetivo “interlocutória”, aposto ao substantivo “decisão” no art. 162 e seu § 2º (cf. o art. 539, nº II da redação anterior e parágrafo único da conseqüente à reforma efetuada pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994), indica sem sombra de

dúvida, sob pena de tornar-se inteiramente supérfluo, que, no sistema da lei,“decisão” é conceito mais extenso que o de “decisão interlocutória”. As decisões interlocutórias constituem apenas um dos tipos de decisões, e claro está que o outro tipo, no procedimento de primeiro grau, só pode ser constituído pelas sentenças. Aliás, de outros dispositivos ressalta com solar clareza que o conceito de “decisão” corresponde ao gênero, do qual a “sentença” constitui uma das espécies.20 Assim é que se explica a referência do art. 165, fine, às “demais decisões”, bem como o emprego da palavra “decisão”, no art. 495, para indicar, de modo específico, a sentença de mérito (cf. o art. 485). Também corrobora a nossa afirmação o fato de usar o Código, indiferentemente, “decidir”, no sentido de “resolver questão incidente”e no de “julgar por sentença”, como por exemplo nos art. 747 (texto, aliás, modificado pela Lei nº 8.953, de 13.12.1994, que optou pelo verbo “julgar”), 803, 876. Por outro lado, na disciplina do processo de execução, emprega o vigente diploma a palavra “sentença” para designar pronunciamentos que não se enquadram na definição do art. 162, § 1º. É o que se dá, por exemplo, no art. 790, quanto ao deferimento do pedido de remição,21 que não põe necessariamente termo ao processo, até porque a remição pode ser parcial (art. 787); nem seria curial arvorar o incidente da remição em processo distinto (cf., infra, o comentário nº 231 ao art. 513). Aliás, da cláusula final do art. 162, § 1º (“decidindo ou não o mérito da causa”), colhe-se a impressão de que o legislador, ao redigi-lo, tinha os olhos fitos exclusivamente no processo de conhecimento e no cautelar, onde existe “mérito” a ser decidido - o que não ocorre na execução, a não ser com referência a matérias que, embora nela inseridas, constituem objeto de atividade tipicamente cognitiva, e às quais correspondem, aí sim, verdadeiros processos incidentes (por exemplo: embargos do devedor). Ambigüidades e imprecisões fazem-se notar igualmente no que concerne aos despachos. Já a conceituação do art. 162, § 3º, foi vazada em fórmula infeliz, pois a parte inicial do dispositivo define os despachos por exclusão, em confronto com as sentenças e as decisões interlocutórias (“São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo...”), enquanto a parte final introduz critério novo, formal (“a cujo respeito a lei não estabelece outra forma”), cujo alcance e função não ficam muito claros. Talvez se quisesse ressalvar aí - se nos é lícita uma conjectura - precisamente aqueles atos do órgão judicial não consistentes em pronunciamentos, aos quais fizemos acima referência; mas é claro que se terá usado maneira bastante inadequada de dizer, porque a diferença essencial reside no conteúdo: a diversidade de forma seria mera conseqüência. Vamos adiante. No art. 504, para indicar os atos irrecorríveis, em vez de aludir simplesmente a “despachos”, fala o Código em “despachos de mero expediente”, e no art. 189, nº I, faz menção ainda a “despachos de expediente”, dando com isso a entender que o gênero “despachos” se desdobra em mais de uma espécie: duas, quiçá três, a existir distinção entre “despachos de expediente” e “despacho de mero expediente”... Admitindo-se que as expressões se equivalham, restaria sempre ao menos uma subdivisão dos despachos, a separar os “de mero expediente” (ou “de expediente”, tout court) e os restantes, sem denominação especial. Era sugestivo o resultado a que se chegava

conjugando esses dados com a norma do art. 522, caput (na redação anterior à Lei nº 9.139, de 30.11.1995), onde se lia que, “ressalvado o disposto nos arts. 504 e 513, das decisões proferidas no processo caberá agravo de instrumento”; ou, em outras palavras, seriam agraváveis os atos do órgão de primeiro grau que, não consistindo em sentenças (art. 513), nem em “despachos de mero expediente” (art. 504), constituíssem “decisões proferidas no processo” (hoje o texto do art. 522, caput, fala, com melhor técnica, em “decisões interlocutórias”). De tudo isso se inferia - e ainda se infere - que os despachos não enquadráveis entre os “de mero expediente” são, na verdade, decisões; mais exatamente, decisões interlocutórias, de acordo com a respectiva definição legal, que se lhes aplica à perfeição: por meio deles, com efeito, o juiz, no curso do processo, resolve questões incidentes.22 Nossa conclusão pode afigurar-se, à primeira vista, paradoxal, já que importa negar a existência de despachos que não sejam “de expediente” (ou “de mero expediente”), relegando destarte à condição de expletivas essas locuções que o Código entendeu de apor ao substantivo, aqui e ali. Aceitaríamos a subdivisão dos despachos em duas espécies se se conseguisse encontrar para diferençá-las um critério que respeitasse o campo conceptual das decisões interlocutórias, abstendo-se de invadi-lo para nele situar os despachos não considerados como “de mero expediente”. Não se tendo encontrado semelhante critério - e não parecendo possível encontrá-lo -, insistir em chamar “despachos” a atos de conteúdo decisório é fazer tábua rasa do art. 162, à luz do qual são nitidamente distintas a classe das decisões interlocutórias e a dos despachos. Admitir que se superponham, ainda em parte, seria desmerecer a classificação além de todo limite razoável: o mesmo ato não pode, em absoluto, pertencer a duas classes. As mais elementares exigências da lógica impedem-nos de reconhecer uma faixa comum, onde achariam pouso “despachos”... que decidem. Qualquer esquema classificatório digno desse nome tem de respeitar o princípio fundamental de que as várias classes se excluem reciprocamente. Ao nosso ver, os supostos “despachos” não qualificáveis como “de mero expediente”, aos quais o art. 522, caput, se referia de modo implícito, englobando-os na expressão “decisões proferidas no processo”, são os atos de conteúdo decisório a que, em mais de um dispositivo, o vigente estatuto impropriamente dá aquela denominação impropriamente, porque o nomen iuris é empregado fora dos limites conceptuais que o art. 162 se preocupou em desenhar. O exemplo mais frisante é o “despacho saneador” (art. 338), que em todo caso tem por si a tradição; mas há outros, como o do art. 37, caput, fine, e o do art. 930, parágrafo único, onde o chamado “despacho” é típica decisão interlocutória. Quanto ao tradicionalmente chamado “despacho liminar” (o art. 285 emprega “despachará”), mesmo quando tenha conteúdo positivo - isto é, defira a citação do réu -, já sob o regime anterior se pusera em relevo, na doutrina, o seu teor decisório, pelo menos em certos processos.23 Em resumo: todo e qualquer “despacho” em que o órgão judicial decida questão, no curso do processo, pura e simplesmente não é despacho, ainda que assim lhe chame o texto: encaixando-se no conceito de decisão interlocutória (art. 162, § 2º), ipso facto deixa de pertencer à outra classe. Absurdo lógico seria conceder-lhe lugar em ambas. A

interpretação sistemática tem de corrigir as incoerências do Código, que não prima aqui pela exatidão. Por fim, se bem que ao julgamento proferido por tribunal se devesse reservar, de acordo com o art. 163, a denominação de “acórdão”, é fora de dúvida que, em numerosos dispositivos, a palavra “sentença” figura em sentido amplo, a abranger decisões de juízos singulares e de órgãos colegiados superiores, indiferentemente: assim, v.g., nos arts. 460, 462, 466, 467, 468, 472, 474, 483, 485, 489, 494, 505, 584, nºs. I a IV, 586, §§ 1º e 2º, 587, 588, 603, 610, 614, nº I, etc. - Feita abstração dos deslizes terminológicos, o sistema do Código, na matéria, pode ser reduzido ao seguinte quadro sinóptico:

De órgãos decisões singulares Pronunciamentos judiciais

finais: sentenças definitivas (art. 162, § 1º) mérito) terminativas

(de

Interlocutórias (art. 162, § 2º) despachos (art. 162, § 3º) De tribunais: acórdãos (art. 163)

Nesse esquema, os “despachos” serão unicamente os verdadeiros despachos, isto é, aqueles a que aludem os arts. 504, com a expressão “despachos de mero expediente”, e 189, nº II, verbis “despachos de expediente”:24 atos de puro e simples impulso processual, como os que o órgão judicial pratica quando assina prazo a qualquer das partes para falar nos autos, ordena a remessa destes ao contador, manda proceder à anotação de reconvenção ou de intervenção de terceiro pelo distribuidor (art. 253, parágrafo único), designa dia, hora e lugar para ouvir a parte ou a testemunha impossibilitada de comparecer à audiência (art. 336, parágrafo único) etc. Todos esses atos - despachos em sentido próprio - são irrecorríveis, ex vi do art. 504 (cf., infra, os comentários a esse dispositivo). A classe, aliás, sofreu sensível esvaziamento em conseqüência do acréscimo de um §4º ao art. 162 (Lei nº 8.952, de 13.12.1994), a cuja luz “os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário”. 140. Correlação entre os atos impugnáveis e os recursos - As sentenças - atos que, no primeiro grau de jurisdição, põem termo ao processo -, quer julguem o mérito da causa (sentenças definitivas), quer não o julguem (sentenças terminativas),25 são impugnáveis mediante apelação (art. 513). Contra as decisões interlocutórias, pelas quais o juiz resolve, no curso do processo, questões incidentes, cabe agravo (art. 522) - afastada

qualquer relevância da distinção, que outrora se costumava fazer, entre “interlocutórias simples” e “interlocutórias mistas”. Na classe das decisões interlocutórias devem considerar-se incluídos, ao nosso ver, os pronunciamentos do órgão judicial cujos traços característicos se afeiçoem à conceituação do art. 162, § 2º, ainda que o texto legal lhes atribua denominação inadequada: assim, v.g., os “despachos” dos arts. 37, caput, fine, e 930, parágrafo único, bem como o “despacho saneador”, são, por natureza, decisões interlocutórias, e como tais hão de ser tratados do ponto de vista que interessa aqui: todos comportam impugnação por meio de agravo. Contra os acórdãos - julgamentos proferidos por tribunais - podem caber, conforme o caso, embargos infringentes (art. 530) e, nas hipóteses contempladas na Constituição da República, recurso ordinário (arts. 102, nº II, letra a, e 105, nº II, letra b), recurso extraordinário (art. 102, nº III) e recurso especial (art. 105, nº III). O parágrafo único do primitivo art. 546, revogado pela Lei nº 8.038, de 29.5.1990, referia-se ainda à interponibilidade de embargos contra certos acórdãos de Turma do Supremo Tribunal Federal: esse recurso, que subsistiu no Regimento Interno da Corte (arts. 330 e segs.) e veio a ser reincorporado ao Código, com extensão ao Superior Tribunal de Justiça (novo art. 546, na redação dada pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994; cf. o nº VIII do art. 496, por essa lei acrescentado), nada de específico tinha nem tem em comum, salvo o nome, com os embargos infringentes do art. 530. Outros recursos podem eventualmente caber no procedimento de grau superior, mas contra decisões proferidas por um membro do colegiado: assim o agravo de instrumento contra a denegação do recurso extraordinário pelo presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido (art. 544); os agravos previstos nos arts. 532 (na redação da Lei nº 8.950) e 557, § 2º (na redação da Lei nº 9.756); e o agravo contra decisão do presidente, de seção, de turma ou de relator, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça (Lei nº 8.038, art. 39, ainda em vigor). Particular é o caso dos embargos de declaração, que o Código, antes da Lei nº 8.950, disciplinava em dois grupos separados de normas, consoante incidissem sobre sentenças (arts. 464 e 465) ou sobre acórdãos (arts. 535 e segs.), dando a impressão de que só na segunda hipótese se trataria de recurso, pois os arts. 464 e 465 se localizavam no Capítulo VIII, Secção I (“Dos requisitos e dos efeitos da sentença”) do Título VIII, Secção I (“Do procedimento ordinário”), e não no Título X (“Dos recursos”) do Livro I. Salta aos olhos, entretanto, que a natureza do remédio, aqui e ali, era e é sempre a mesma; aliás, o Código reconhecia implicitamente a índole recursal dos embargos declaratórios também no primeiro grau de jurisdição: é o que transparecia do teor do art. 465, parágrafo único, verbis “interposição de outro recurso”. Ademais, dado o fim a que visam, não é razoável entender-se que fique excluído o cabimento dos embargos de declaração contra decisões interlocutórias. Quaisquer decisões os comportam, seja qual for o grau de jurisdição, inclusive quando o texto legal as declare irrecorríveis (cf., infra, o comentário nº 298 ao art. 535). 141. Princípio da unicidade do recurso - Feita abstração das decisões irrecorríveis, concebe-se a priori, no plano da política legislativa: a) que contra determinada decisão seja interponível um único recurso; b) que sejam interponíveis dois ou mais recursos, cumulativamente; c) que sejam interponíveis dois ou mais recursos, alternativamente.

Exemplo da solução b ministra o direito francês, em que podem concorrer o recours en révision (antiga requête civile) e o pourvoi en cassation;26 exemplo da solução c deparase no italiano, onde o art. 360, última alínea, do codice di procedura civile faculta a interposição direta do ricorso per cassazione, por certos fundamentos, contra sentença ainda apelável, desde que as partes se ponham de acordo em omitir a apelação. No Brasil, sob o Código de 1939, tinha-se caso frisante de interponibilidade cumulativa: contra o mesmo acórdão podiam caber, simultaneamente, recurso de revista e recurso extraordinário, ficando livre ao interessado valer-se de um só deles, à sua escolha, ou interpor ambos, no mesmo prazo, hipótese em que se sobrestava o processamento do extraordinário, até que fosse julgada a revista (art. 808, § 2º). Também os embargos declaratórios eram interponíveis, em tese, contra quaisquer decisões, comportassem ou não outro recurso. Esta última exceção subsiste no regime atual (cf., infra, o comentário nº 298 ao art. 535), ao passo que a primeira desapareceu com a abolição da revista. A Constituição de 1988 criou uma nova, a possibilidade de interposição cumulativa do recurso extraordinário e do especial (cf. o art. 541, na redação da Lei nº 8.950). Tanto no direito anterior como no vigente, porém, a regra geral era e continua a ser a de que, para cada caso, há um recurso adequado, e somente um. É o que se denomina princípio da unicidade do recurso. Ele se manifesta, em primeiro lugar, pela impossibilidade de interpor-se mais de um recurso contra a mesma decisão (lato sensu). Na aplicação do princípio, contudo, há de ter-se em conta que, nas decisões objetivamente complexas, talvez se componham, no tocante a capítulos distintos, os requisitos de admissibilidade de recursos diferentes: assim, por exemplo, se a Câmara, no julgamento da apelação, decide por unanimidade quanto a uma parte da matéria impugnada e por simples maioria quanto a outra parte, nesta caberão embargos infringentes (art. 530), e naquela, possivelmente, recurso extraordinário e/ou especial: tal hipótese, regulada pela expressa disposição do art. 498, não constitui, no que tange aos embargos, verdadeira exceção ao princípio de que ora se trata: para fins de recorribilidade, cada capítulo é considerado como uma decisão per se.27 Ulterior manifestação do princípio consiste em tornar inadmissível o recurso porventura interposto no lugar de outro. Quem queira recorrer, há de usar a figura recursal apontada pela lei para o caso; não pode substituí-la por figura diversa. No estatuto de 1939, mercê de disposição expressa (art. 810), semelhante conseqüência via-se muito atenuada pela possibilidade de aproveitamento do recurso erroneamente escolhido, mediante conversão no adequado - possibilidade que só se excluía nas hipóteses de má-fé e de “erro grosseiro”. O atual Código não reproduziu a regra, provavelmente por ter entendido o legislador que a sistemática adotada eliminaria a priori qualquer erro não grosseiro na escolha do recurso. Segundo se mostrou, porém, no comentário nº 139, a terminologia empregada com referência aos atos recorríveis não está isenta de incoerências, que geram dúvidas bastante razoáveis. Melhor seria que se houvesse acolhido, no particular, a sugestão da Comissão Revisora, no sentido de repetir-se, com redação mais clara, a norma contida no art. 810 do antigo

diploma. Resta saber se, na falta de texto expresso, poderão aproveitar-se, ainda assim, nos casos duvidosos, recursos erroneamente interpostos. A resposta é positiva:28 a solução não repugna ao sistema do atual Código, que não leva (nem poderia levar) a preocupação do formalismo ao ponto de prejudicar irremediavelmente o interesse substancial das partes por amor ao tecnicismo, e até se harmoniza, à perfeição, com o preceito do art. 250, consoante o qual o erro de forma do processo não impede o julgamento da lide, acarretando “unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados”. Nem será descabido, aliás, considerar aplicável por analogia a regra do art. 579, caput, do Código de Processo Penal. Absurdo recusar o benefício ao recorrente em hipótese a cujo respeito divergem os doutrinadores e vacila a jurisprudência.29 Mais discutível é que a possibilidade do aproveitamento subsista, como no direito anterior,30 mesmo que o recurso impróprio seja interposto dentro do seu prazo específico, mas fora do concedido para a interposição do recurso próprio.31 142. Classificações dos recursos - Concebe-se que as decisões judiciais em geral (e não apenas as sentenças, como restritivamente diz o art. 505) sejam objeto de impugnação “no todo ou em parte”. A rigor, nem sempre é possível impugnar a decisão toda; a lei às vezes restringe o conteúdo impugnável, como faz em relação aos embargos infringentes, por exemplo: se, no julgamento da apelação ou da ação rescisória, ocorreu divergência apenas parcial entre os julgadores, só a matéria em que ela se manifestou pode constituir objeto dos embargos (art. 530, 2ª parte; cf., infra, o comentário nº 286 a esse dispositivo). A variável extensão da matéria impugnada permite distinguir entre recurso total e recurso parcial. Deve considerar-se total o recurso que abrange todo o conteúdo impugnável da decisão recorrida (não necessariamente o seu conteúdo integral). Assim, v.g., serão totais os embargos infringentes relativos a toda a matéria em que se verificou desacordo no julgamento da apelação ou da ação rescisória, ainda que a respeito de outra(s) matéria(s) a deliberação tenha sido unânime. Classificar-se-á como parcial o recurso que, em virtude de limitação voluntária, não compreenda a totalidade do conteúdo impugnável da decisão; exemplo: o autor, que cumulara vários pedidos e os vira todos julgados improcedentes no primeiro grau de jurisdição, interpõe apelação exclusivamente quanto à parte da sentença referente a um (ou a alguns) dos pedidos (vide, a respeito, infra, o comentário nº 194 ao art. 505). - Sendo a decisão favorável em parte a um dos litigantes e em parte ao outro, podem ambos recorrer, normalmente, no prazo comum, impugnando cada qual a parte cuja anulação ou reforma lhe interesse. Os recursos serão, nesse caso, independentes. Se, porém, um dos litigantes se houver abstido de recorrer no prazo comum, disporá ainda de outra oportunidade para fazê-lo, ao ser intimado do recebimento do recurso interposto pelo adversário, em se tratando de apelação, de embargos infringentes ou de recurso extraordinário ou especial (art. 500, nº II). Em tal hipótese, ao primeiro recurso (interposto no prazo comum) dá-se a denominação de principal; ao segundo, a de adesivo. Este será interponível “no prazo de que a parte dispõe para responder” (art. 500, nº I, na redação da Lei nº 8.950).

Como o recorrente só se resolveu a interpô-lo à vista de ter sido a decisão (na parte que o favorecia) impugnada pelo adversário, fica o recurso adesivo “subordinado ao recurso principal” (art. 500, caput, 3ª parte). Isso significa que, para chegar a ser apreciada pelo órgão ad quem a impugnação do recorrente adesivo, não basta que o seu próprio recurso preencha todos os respectivos requisitos de admissibilidade: é necessário, além disso, que também do recurso principal possa conhecer o órgão ad quem. Se o recorrente principal desistir do seu recurso, caducará o adesivo; se o recurso principal for julgado deserto ou, por outra razão, inadmissível, tampouco se conhecerá do adesivo (art. 500, nº III). O exame desta figura recursal será feito com maior vagar nos comentários ao art. 500, infra. - Todo recurso necessita de fundamentação, o que significa que o recorrente deve indicar os motivos pelos quais impugna a decisão, ou, em outras palavras, o(s) erro(s) que a seu ver ela contém. Fundamentar o recurso nada mais é, em regra, que criticar a decisão recorrida. Em certos casos, abstém-se a lei de fixar limites a essa crítica, permitindo ao recorrente invocar quaisquer erros; noutros, ao contrário, cuida de discriminar o tipo (ou os tipos) de erro denunciável por meio do recurso, de tal sorte que a crítica do recorrente só assumirá relevância na medida em que afirme a existência de erro suscetível de enquadramento na discriminação legal. Daí a distinção que se pode estabelecer entre recursos de fundamentação livre e recursos de fundamentação vinculada.32 No direito pátrio, a apelação constitui o exemplo por excelência da primeira classe; a segunda vê-se representada pelo recurso extraordinário do art. 102, nº III, letra a, da Constituição da República, no qual a única crítica relevante endereçável à decisão impugnada é a de contrariar dispositivo da própria Carta. Nos recursos de fundamentação vinculada, o recorrente precisa invocar o erro indicado como relevante (ou algum deles, se há mais de um), para que o recurso caiba, e precisa demonstrar-lhe a efetiva ocorrência na espécie, para que o recurso proceda. A tipicidade do erro é, pois, pressuposto do cabimento do recurso (e, por conseguinte, da sua admissibilidade); se o erro não for típico, o órgão ad quem não conhecerá daquele. A existência real do erro é pressuposto da procedência do recurso; se o erro alegado, típico embora, não existir, o órgão ad quem conhecerá do recurso, mas lhe negará provimento. Nos recursos de fundamentação livre, o cabimento não depende do tipo de crítica que o recorrente faz à decisão; dependerá de outra(s) circunstância(s) - v.g., nos embargos infringentes, da falta de unanimidade no julgamento e do fato de haver-se julgado apelação ou ação rescisória (art. 530) -, que nada têm que ver com o(s) motivo(s) da insatisfação do recorrente. É claro que, nos recursos de fundamentação vinculada, também pode (e costuma) exigir a lei a concorrência de outro(s) pressuposto(s) de cabimento: a tipicidade do erro será apenas um deles; assim, para que seja cabível o recurso extraordinário da letra a, é igualmente necessário, por exemplo, que se trate de decisão proferida “em única ou última instância”. - A distinção entre recursos ordinários e recursos extraordinários, a que alude a parte final do art. 467, é nítida e importante em alguns sistemas jurídicos: por exemplo, no português, onde, à vista de texto expresso (Código de Processo Civil, art. 677), os

recursos chamados extraordinários (revisão e oposição de terceiro) se diferenciam com toda a clareza dos ordinários pelo fato de que a interponibilidade de qualquer destes últimos impede o trânsito em julgado, ao passo que a decisão já se considera passada em julgado mesmo que ainda suscetível de impugnação por algum dos primeiros. Também na Itália costuma falar-se de mezzi ordinari e mezzi straordinari para designar, respectivamente, os remédios que obstam ao trânsito em julgado e aqueles que, ao contrário, o pressupõem. Expressões equivalentes, com o mesmo sentido, encontram-se na doutrina espanhola anterior à nova Ley de Enjuiciamiento Civil (que deixou de incluir entre os recursos a “revisión de sentencias firmes”) e na suíça.33 Diversa é a sistemática do ordenamento brasileiro, no qual a mencionada distinção não tem relevância teórica nem prática.34 Merece ela, em nossa opinião, ser arquivada para todo o sempre, além do mais, pelos equívocos que é capaz de gerar, e de fato tem gerado, mercê da constante e notável flutuação dos critérios doutrinariamente sugeridos para fundá-la.35 A rigor, não existe entre nós uma classe de recursos a que se possa aplicar, segundo critério preciso do ponto de vista científico e útil ao ângulo prático, a denominação genérica de extraordinários. Há, sim, um recurso a que (sem qualquer preocupação de ordem dogmática) se acertou de dar esse nome, assim como há outro (a rigor, um conjunto heterogêneo de figuras recursais) que a vigente Carta Federal rotula de ordinário (arts. 102, nº II, e 105, nº II). As peculiaridades do chamado recurso extraordinário não bastam para servir de base a uma classificação científica ou praticamente valiosa. À semelhança dos outros, o recurso extraordinário obsta, quando admissível, ao trânsito em julgado da decisão, consoante resulta da disposição expressa do próprio art. 467. É desprovido de efeito suspensivo (arts. 497, 1ª parte, e 542, § 2º), mas essa característica também se depara, v.g., na apelação interponível contra qualquer das sentenças arroladas no art. 520, 2ª parte, nºs I a VI. Nem mesmo a circunstância de interpor-se para o Supremo Tribunal Federal singulariza o recurso extraordinário: feita abstração de recursos admissíveis contra acórdãos já proferidos por aquele órgão, era ainda para ele que se interpunham, em certos casos, no regime anterior, a apelação e o agravo de instrumento contra decisões de juízos inferiores, e hoje o recurso batizado de... ordinário pela própria Constituição (art. 102, nº II). Em esforçada tentativa de insuflar vida à classificação - nada merecedora de tamanho desvelo -, afirmou-se que os recursos ordinários “têm como objeto próximo a proteção do direito subjetivo”, enquanto os extraordinários “visam a proteger o direito objetivo (...) e só reflexamente, secundariamente, o direito da parte”.36 Como todo critério quantitativo, isto é, baseado na predominância de tal ou qual aspecto, este de que agora se trata, conquanto interessante, parece-nos insuficiente para fundar distinção de valor substancial - isto sem falar na sua nenhuma utilidade prática, pois não se percebe como e por que permite ele “melhor compreensão de cada modalidade recursal”. Ademais, os recursos ditos “ordinários”, quando interpostos pelo Ministério Público na qualidade de custos legis, também visam precipuamente à proteção do direito objetivo, e nem por isso conforme se reconhece - passam a integrar a outra “classe”. Ora, quando se diz que “o fato de poderem os recursos ordinários, excepcionalmente, (...) ser utilizados para a

proteção do direito objetivo, não serve para transformá-los em extraordinários”, está-se negando ao próprio critério adotado idoneidade para guiar com segurança, em qualquer caso, os eventuais interessados em saber se um recurso pertence a esta ou àquela classe. Mas tal idoneidade é essencial a todo critério de classificação. Critério que falha, que admite “exceções”, que ora se aplica, ora não, ao nosso ver pouco se recomenda. 143. Efeitos dos recursos - Todos os recursos admissíveis produzem, no direito pátrio, um efeito constante e comum, que é o de obstar, uma vez interpostos, ao trânsito em julgado da decisão impugnada (cf. o art. 467). Ao lado desse, que ocorre sempre, dois são os efeitos em geral mencionados como produzíveis pela interposição de recurso: o suspensivo e o devolutivo. Alguns processualistas se referem também ao efeito extensivo, assim denominado o fenômeno pelo qual, em certos casos, o recurso interposto por um litisconsorte aproveita aos restantes;37 aí, porém, antes que de um efeito, per se, parece mais adequado falar da extensão subjetiva dos efeitos propriamente ditos. - Diz-se que o recurso tem efeito suspensivo quando impede a produção imediata dos efeitos da decisão. Seria impróprio aludir, em termos restritos, ao fato de não se poder promover a execução; esse é o traço mais saliente, mas não esgota o conceito, pois as decisões meramente declaratórias e as constitutivas, que não comportam execução (no sentido técnico do direito processual), também podem ser impugnadas mediante recursos de efeito suspensivo. Salvo exceção consagrada na lei (vide, infra, o comentário nº 264 ao art. 521), a suspensão é de toda a eficácia da decisão, não apenas de sua possível eficácia como título executivo. Aliás, a expressão “efeito suspensivo” é, de certo modo, equívoca, porque se presta a fazer supor que só com a interposição do recurso passem a ficar tolhidos os efeitos da decisão, como se até esse momento estivessem eles a manifestar-se normalmente. Na realidade, o contrário é que se verifica: mesmo antes de interposto o recurso, a decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ato ainda ineficaz, e a interposição apenas prolonga semelhante ineficácia, que cessaria se não se interpusesse o recurso.38 É estranha à sistemática do direito brasileiro a distinção entre suspensividade do recurso e suspensividade do prazo de recurso, a cuja luz, em certos casos, a eficácia da decisão se manifestaria desde logo, ficando apenas sujeita a suspender-se, uma vez interposto a tempo o recurso, ao passo que noutros a decisão permaneceria ineficaz durante todo o prazo de interposição. Essa diferença existiu, com relação ao appel, no direito francês, até a reforma do antigo Code de procédure civile em 1965, a partir da qual, ressalvadas as hipóteses de execução provisória, a decisão apelável passou a não surtir efeitos senão após o decurso in albis do “délai d’appel”.39 A distinção entre suspensividade da apelação e suspensividade do próprio prazo para apelar subsiste no ordenamento belga.40 Entre nós, quando provisoriamente exeqüível a sentença, o efeito executivo começa a produzir-se desde o recebimento da apelação, pelo órgão a quo, no mero efeito devolutivo (art. 521); fora daí, prevalece como princípio geral o de que a decisão só se torna eficaz com o trânsito em julgado (vide, infra, nos comentários nºs 263 e 264 ao art. 521, outros casos, excepcionais, de antecipação da eficácia). Convém acrescentar que, no sistema jurídico pátrio, a regra é a de terem os recursos efeito suspensivo, no sentido

exposto, entendendo-se que ele só não ocorre quando alguma norma especial o exclua (cf. infra, o comentário nº 157 ao art. 497). Nos países germânicos, é habitual conceber-se o efeito suspensivo como impedimento à formação da coisa julgada.41 Não é esse, vale a pena frisar, o conceito do direito brasileiro: adotá-lo importaria reconhecer tal efeito a todos os recursos, pois nenhum existe que, sendo admissível, deixe de obstar ao trânsito em julgado da decisão impugnada. Perderia a razão de ser a divisão dos recursos em suspensivos e nãosuspensivos.42 Cumpre evitar equívocos: em nosso ordenamento, o efeito suspensivo concerne apenas à eficácia da decisão, inconfundível com a auctoritas rei iudicatae, embora a regra seja a da coincidência entre o começo da produção de efeitos e o trânsito em julgado. - Chama-se devolutivo ao efeito do recurso consistente em transferir ao órgão ad quem o conhecimento da matéria julgada em grau inferior de jurisdição. Entre nós, sob o direito anterior, não era pacífica a conceituação do efeito devolutivo: enquanto a maioria dos escritores o reconhecia, com maior ou menor amplitude, sempre que alguma questão, seja qual for a sua natureza, se submete ao crivo de novo julgamento, havia quem preferisse limitá-lo às hipóteses de reapreciação da causa, ou, antes, do mérito, no todo ou em parte, mas sem restrição de profundidade.43 Percebe-se a afinidade entre essa segunda concepção e a sustentada por certos autores italianos,44 em cujo entendimento se deve excluir do âmbito do efeito devolutivo aquilo que as partes, de maneira voluntária e expressa, levam à revisão do juízo superior, e confinar-lhe a atuação às questões que este, automaticamente - isto é, independentemente de tal iniciativa -, fica investido do poder de reapreciar, ao julgar o recurso. O mecanismo do efeito devolutivo só seria necessário para explicar a atividade cognitiva em nível mais alto com referência à matéria que não seja objeto de suscitação especificada pelos litigantes. O Código de 1973 aderiu à noção genérica do efeito devolutivo, como ressaltava do art. 543, § 4º, que o atribuía ao recurso extraordinário (cf., agora, o art. 542, § 2º, na redação da Lei nº 8.950, concernente não só ao extraordinário, mas também ao especial). De lege lata, há devolução sempre que se transfere ao órgão ad quem algo do que fora submetido ao órgão a quo - algo, repita-se; não necessariamente tudo. Inexiste, portanto, recurso totalmente desprovido de efeito devolutivo, com ressalva dos casos em que o julgamento caiba ao mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida. O que pode acontecer, conforme se assinalará nos momentos oportunos, é que variem, de um para outro recurso, a extensão e a profundidade do aludido efeito. Aquela - desde já convém observar - nunca ultrapassará os lindes da própria impugnação: no recurso parcial (supra, comentário nº 142), a parte não impugnada pelo recorrente escapa ao conhecimento do órgão superior, salvo se por outra razão (como nos casos do art. 475) este se houver de pronunciar ao propósito. Quando a lei, a título de exceção, atribui competência ao próprio órgão a quo para reexaminar a matéria impugnada, o efeito devolutivo ou não existe (como nos embargos de declaração), ou fica diferido, produzindo-se unicamente após o juízo de retratação: assim no agravo retido (art. 523, § 2º, na redação da Lei nº 9.139). Fora dessas hipóteses,

ao órgão a quo é vedado praticar qualquer ato que importe modificação, total ou parcial, do julgamento, ressalvada a possibilidade de corrigir ex officio ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo (art. 463, nº I). 144. Admissibilidade dos recursos. Juízo de admissibilidade e juízo de mérito - Todo ato postulatório sujeita-se a exame por dois ângulos distintos: uma primeira operação destina-se a verificar se estão satisfeitas as condições impostas pela lei para que o órgão possa apreciar o conteúdo da postulação; outra, subseqüente, a perscrutar-lhe o fundamento, para acolhê-la, se fundada, ou rejeitá-la, no caso contrário.45 Embora a segunda se revista, em perspectiva global, de maior importância, constituindo o alvo normal a que tende a atividade do órgão, a primeira tem prioridade lógica, pois tal atividade só se há de desenvolver plenamente se concorrerem os requisitos indispensáveis para tornar legítimo o seu exercício. Chama-se juízo de admissibilidade àquele em que se declara a presença ou a ausência de semelhantes requisitos; juízo de mérito àquele em que se apura a existência ou inexistência de fundamento para o que se postula, tirando-se daí as conseqüências cabíveis, isto é, acolhendo-se ou rejeitando-se a postulação. No primeiro, julga-se esta admissível ou inadmissível; no segundo, procedente ou improcedente. É óbvio que só se passa ao juízo de mérito se o de admissibilidade resultou positivo; de uma postulação inadmissível não há como nem porque investigar o fundamento. Reciprocamente, é absurdo declarar inadmissível a postulação por falta de fundamento; se se chegou a verificar essa falta, é porque já se transpôs o juízo de admissibilidade e já se ingressou no mérito: a postulação, na verdade, já foi admitida, embora, com má técnica, se esteja dizendo o contrário. A questão relativa à admissibilidade é, sempre e necessariamente, preliminar à questão de mérito: a apreciação desta fica excluída se àquela se responde em sentido negativo.46 Neste último caso, quando a admissibilidade é negada pelo órgão ad quem, diz-se que ele não conhece do recurso; no caso contrário, que ele conhece do recurso, e aí duas hipóteses podem verificar-se: se o órgão ad quem entender que o recurso, além de admissível, é fundado, dá-lhe provimento; se entender que, apesar de admissível, é infundado, nega-lhe provimento. A distinção entre a decisão de não-conhecimento e a decisão de desprovimento é prenhe de conseqüências práticas. Uma das mais relevantes concerne ao “recurso adesivo”, que caduca quando o órgão ad quem não conhece do recurso principal, mas subsiste (e tem de ser apreciado) quando ao principal se nega provimento (art. 500, nº III, cf., infra, o comentário nº 179 a esse dispositivo). 145. O juízo de admissibilidade: objeto - Objeto do juízo de admissibilidade são os requisitos necessários para que se possa legitimamente apreciar o mérito do recurso, a fim de dar-lhe ou negar-lhe provimento. Tais requisitos nem sempre coincidem com os do pleno exercício da atividade judicial de primeiro grau. De um lado, compreensivelmente mais rigorosa quando se trata de provocar novo julgamento, a lei estabelece condições específicas para esse funcionamento suplementar da máquina judiciária. De outro, em sistema como o nosso, não raro o objeto do recurso consubstancia questão resolvida, na

instância inferior, como preliminar ao juízo de mérito, e relativa, exatamente, à presença ou ausência de um pressuposto processual ou de uma “condição da ação”. Quer isso dizer que determinada questão, com a passagem de um a outro grau de jurisdição, pode deslocar-se do terreno das preliminares, onde se inscrevia, para vir a constituir, no procedimento recursal, o próprio mérito: é o que sucede, por exemplo, na apelação interposta contra a sentença que declara o autor carecedor de ação. Em suma: o mérito, no recurso, não coincide necessariamente com o mérito da causa,47 nem as preliminares do recurso se identificam com as preliminares da causa. Conquanto se possa estabelecer entre estas e aquelas certa correspondência - à legitimação para agir corresponde, v.g., a legitimação para recorrer -, nem sempre se responde do mesmo modo, aqui e lá, à pertinente indagação: no sistema do Código de 1973, por exemplo, o Ministério Público, ainda quando não tenha legitimidade para propor a ação, funcionando no processo unicamente como custos legis, sempre a tem, contudo, para recorrer (art. 499, § 2º). Os requisitos de admissibilidade dos recursos podem classificar-se em dois grupos: requisitos intrínsecos (concernentes à própria existência do poder de recorrer) e requisitos extrínsecos (relativos ao modo de exercê-lo). Alinham-se no primeiro grupo: o cabimento, a legitimação para recorrer, o interesse em recorrer e a inexistência de fato impeditivo (v.g., o previsto no art. 881, caput, fine) ou extintivo (v.g., os contemplados nos arts. 502 e 503) do poder de recorrer. O segundo grupo compreende: a tempestividade, a regularidade formal e o preparo. Esses requisitos são genéricos, embora possa a lei dispensar algum deles, em tal ou qual hipótese: assim, por exemplo, não dependem de preparo o agravo retido (art. 522, parágrafo único), nem os embargos de declaração (art. 536, fine), nem os recursos de qualquer natureza “interpostos pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios e respectivas autarquias, e pelos que gozam de isenção legal” (art. 511, parágrafo único, na redação da Lei nº 8.950). Podem os requisitos genéricos, todavia, como é intuitivo, assumir aspectos específicos, variáveis de um para outro recurso, dos quais se tratará nos comentários aos dispositivos pertinentes. 146. O juízo de admissibilidade: competência e forma - Em princípio, reconhece-se ao órgão perante o qual se interpõe o recurso competência para verificar-lhe a admissibilidade; nega-se-lhe competência, ao contrário - salvo quando a lei expressis verbis preceitue diversamente -, para examinar-lhe o mérito. É claro que, atento à distinção entre os dois juízos, não deve o órgão de interposição indeferir o recurso por entendê-lo infundado: a procedência não é requisito de admissibilidade. Por outro lado, a verificação feita por esse órgão concerne apenas aos requisitos apuráveis no momento da interposição, ou que pelo menos devam aperfeiçoar-se antes de recebido o recurso. Escapam a tal controle as causas de inadmissibilidade supervenientes ao recebimento, sem prejuízo do que oportunamente se dirá sobre a deserção (infra, comentário nº 219 ao art. 511). Em qualquer outra hipótese, vindo a faltar algum requisito depois de admitido o recurso, conquanto ainda antes da subida, já não se lhe poderá negar seguimento: só ao juízo superior competirá a declaração de inadmissibilidade.48

Outro princípio fundamental é o de que, seja qual for o recurso, pelo menos a questão da admissibilidade não deve jamais ser subtraída à apreciação do órgão ad quem.49 Por conseguinte, salvo expressa exceção legal, nenhum recurso pode ser rejeitado como inadmissível pelo órgão perante o qual se interpõe, se dessa decisão a lei não faculta ao recorrente outro recurso, ou remédio análogo, para o juízo a que tocaria julgar o primeiro. A competência atribuída ao órgão perante o qual se interpõe o recurso, para aferir-lhe a admissibilidade, não exclui obviamente a competência do órgão ad quem, no tocante a esse ponto. O pronunciamento do primeiro nenhuma preclusão gera para o segundo, que pode e deve examinar (ou reexaminar) livremente a matéria, no momento oportuno. Daí resulta que, enquanto o mérito do recurso é, em regra, sujeito a uma única apreciação - a do órgão ad quem -, sua admissibilidade submete-se, em geral, a duplo controle, na instância inferior e na superior. Pode submeter-se até, por vezes, a número maior de verificações, como nos casos em que o recurso, denegado pelo órgão a quo, veio a subir em virtude do provimento de outro recurso, interposto contra a decisão denegatória, e vai afinal ser apreciado pelo órgão ad quem. O controle da admissibilidade pode e deve ser feito de ofício pelo órgão competente. No que concerne ao juízo que lhe espelha o resultado, se positivo, pode e costuma ser implícito, salvo se alguma regra jurídica impõe que o órgão se pronuncie expressamente sobre a questão. Sempre que o órgão passou ao exame do mérito, entende-se que respondeu de modo afirmativo à questão da admissibilidade. O juízo negativo de admissibilidade, esse tem de ser explícito e fundamentado.50 147. O juízo de admissibilidade: natureza e efeitos - Positivo ou negativo, o juízo de admissibilidade é essencialmente declaratório. Ao proferi-lo, o que faz o órgão judicial é verificar se estão ou não satisfeitos os requisitos indispensáveis à legítima apreciação do mérito do recurso. A existência ou a inexistência de tais requisitos é, todavia, anterior ao pronunciamento, que não a gera, mas simplesmente a reconhece. Os efeitos do juízo de admissibilidade variam, naturalmente, conforme o órgão que o profere e o sentido da decisão. De maneira geral, cabe frisar que da solução que se dê à questão da admissibilidade depende necessariamente a passagem ou não ao exame do mérito. A decisão de meritis só chegará a ser emitida se se resolver aquela questão no sentido positivo. Em outras palavras: o juízo sobre a admissibilidade condiciona, por seu teor, o ser ou o não-ser do julgamento do mérito. Por outro lado, nenhuma influência tem sobre o eventual conteúdo deste: afirmada a viabilidade do exame de meritis, nem por isso se pode ainda saber se o recurso será provido ou desprovido. Essa relação entre as duas questões caracteriza a primeira como preliminar à segunda.51 O juízo de admissibilidade proferido pelo órgão de interposição, se positivo, tem como efeito precípuo o de abrir ao recorrente a via de acesso ao órgão ad quem; se negativo, o de trancar-lhe essa via. Ressalve-se a possibilidade, que se enseja ao recorrente, de interpor, para o órgão a que competiria o julgamento do recurso denegado, outro recurso, ou remédio análogo, contra a decisão que, no grau inferior, lhe barra a via recursal. Passada em julgado essa decisão, a situação da outra, contra a qual se interpusera o recurso inadmissível, se este já o era ab initio, equipara-se à situação que ela teria caso

não houvesse ocorrido a interposição, que não impediu a formação da res iudicata; se o recurso era admissível, e só deixou de o ser por fato superveniente, a interposição obstou à produção da coisa julgada, mas o obstáculo desapareceu no momento em que se configurou a inadmissibilidade posterior. Quando se diz que faz coisa julgada a decisão “não mais sujeita a recurso” (art. 467), o que se diz, com outras palavras - e ressalvadas as hipóteses em que a própria lei exclui o trânsito em julgado, independentemente de recurso (art. 475, ou disposição análoga de lei extravagante) -, é que a res iudicata se produz desde que não haja, contra a decisão, recurso admissível, ou aquele que acaso o fora tenha deixado de o ser. Recurso inadmissível, ou tornado tal, não tem a virtude de empecer ao trânsito em julgado: nunca a teve, ali, ou cessou de tê-la, aqui. Destarte, se inexiste outro óbice (isto é, outro recurso ainda admissível, ou sujeição da matéria, ex vi legis, ao duplo grau de jurisdição), a coisa julgada exsurge a partir da configuração da inadmissibilidade. Note-se bem: não a partir da decisão que a pronuncia, pois esta, como já se assinalou, é declaratória; limita-se a proclamar, a manifestar, a certificar algo que lhe preexiste.52 O juízo positivo de admissibilidade, proferido pelo órgão perante o qual se interpôs o recurso, não basta para assegurar ao recorrente, desde logo, a obtenção do novo julgamento pleiteado. Primeiro, porque pode sobrevir algum fato que torne inadmissível o recurso; ademais, porque, ainda fora dessa hipótese, não fica preclusa a reapreciação da matéria pelo órgão ad quem, onde se procederá livremente ao controle da admissibilidade, inclusive, se for o caso, para declarar insatisfeito algum (ou mais de um) dos que no órgão de interposição se tinham dado como cumpridos.53 Quanto ao juízo de admissibilidade proferido pelo órgão ad quem, se positivo, tem o efeito capital e imediato de ensejar a passagem ao exame do mérito do recurso. O órgão ad quem, nessa hipótese, conhece do recurso, seja para dar-lhe, seja para negar-lhe provimento, conforme a seu ver tenha ou não tenha razão o recorrente. Negativo, o juízo de admissibilidade no órgão ad quem traduz-se em decisão de não-conhecimento. Não diz (não pode dizer!) o órgão ad quem, em tal caso, que o recorrente tinha razão, nem que não a tinha; diz, simplesmente, que sobre isso não lhe é lícito pronunciar-se.54 Encerra-se assim o processo, ou uma série procedimental, salvo interposição de novo recurso, que porventura se faculte contra a decisão de não-conhecimento. No que concerne aos efeitos do juízo negativo sobre a decisão recorrida, aplicam-se aqui, mutatis mutantis, as considerações acima formuladas com referência à decisão proferida, no mesmo sentido, pelo órgão de interposição. Se o recurso, ao ser interposto, satisfazia os requisitos de admissibilidade, e só depois veio a faltar um deles, ou vários, a interposição foi eficaz no impedir a formação da res iudicata, e apenas deixou de produzir esse efeito no momento em que se verificou o fato superveniente, por força do qual se tornou inadmissível o recurso. Se, todavia, a inadmissibilidade estava configurada ab initio, a interposição do recurso não obstou ao surgimento da coisa julgada, que (com ressalva dos casos em que a lei mesma a exclui, independentemente de recurso) remonta: a) ao próprio instante da publicação, em se tratando de decisão irrecorrível; ou b) ao instante em que, entre a publicação e a interposição, ocorreu o fato gerador da inadmissibilidade - v.g., no caso de ser admissível recurso diverso, não interposto, no

termo final do respectivo prazo de interposição, escoado in albis. Sobre o assunto vide também, supra, o comentário nº 70 ao art. 485 e, infra, o comentário nº 221 ao art. 512. 148. O juízo de mérito: objeto - Objeto do juízo de mérito é o próprio conteúdo da impugnação à decisão recorrida. Quando nela se denuncia vício de juízo (error in iudicando, resultante de má apreciação da questão de direito, ou da questão de fato, ou de ambas), pedindo-se em conseqüência a reforma da decisão, acoimada de injusta, o objeto do juízo de mérito, no recurso, identifica-se (ao menos qualitativamente) com o objeto da atividade cognitiva no grau inferior de jurisdição, com a matéria neste julgada. Quando se denuncia vício de atividade (error in procedendo), e por isso se pleiteia a invalidação da decisão, averbada de ilegal, o objeto do juízo de mérito, no recurso, é o julgamento mesmo proferido no grau inferior.55 Ao examinar o mérito do recurso, verifica o órgão ad quem se a impugnação é ou não fundada (procedente) e, portanto, se lhe deve ou não dar provimento, para reformar ou anular, conforme o caso, a decisão recorrida. Ainda quando se denuncia error in iudicando, pode o objeto do juízo de mérito, no recurso, coincidir com o objeto do juízo sobre o mérito da causa, em grau inferior de jurisdição (v.g., quando o tribunal conhece de apelação tendente à reforma de sentença definitiva), ou consistir em matéria estranha ao mérito da causa (v.g., quando o tribunal conhece de agravo de instrumento, interposto contra decisão sobre questão processual). Nas hipóteses de recurso interposto contra decisão denegatória de outro, o objeto do juízo de mérito, no segundo recurso, é constituído por questão relativa à admissibilidade do primeiro recurso: por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal conhece do agravo de instrumento interposto contra o indeferimento do recurso extraordinário pelo presidente de outro tribunal. Mesmo nesses casos, todavia, subsiste nítida, em relação a cada recurso, considerado per se, a distinção entre o juízo de admissibilidade e o de mérito: o Supremo Tribunal Federal pode, v.g., não conhecer do agravo de instrumento, digamos por intempestivo, e em tais condições não lhe apreciará o mérito, isto é, a admissibilidade do recurso extraordinário indeferido. 149. O juízo de mérito: efeitos - Quando o órgão ad quem julga o recurso no mérito, isto é, dele conhece, mais de uma possibilidade é concebível: a) nega-se provimento ao recurso, por entender-se infundada a impugnação; b) dá-se provimento ao recurso, por entender-se fundada a impugnação - caso este que se desdobra em dois: ou o órgão ad quem reforma a decisão recorrida, ou simplesmente a anula, conforme tenha reconhecido a presença, respectivamente, de error in iudicando ou de error in procedendo. Os efeitos do julgamento não são iguais em todas essas hipóteses. Cumpre distinguir: de um lado, os casos de desprovimento e os de provimento que se traduzem em reforma da decisão impugnada (error in iudicando); de outro, o de provimento com anulação desta (error in procedendo). Nos primeiros, o objeto do juízo de mérito, no procedimento recursal, coincide com o objeto do juízo no grau inferior; em outras palavras, ambos os pronunciamentos (o inferior e o superior) versam sobre a mesma matéria, ao menos do

ponto de vista qualitativo (cf., supra, o comentário nº 148). Ora, não podendo subsistir duas decisões com o mesmo objeto, o julgamento proferido pelo órgão ad quem necessariamente substitui a decisão recorrida, nos limites da impugnação - ou, em termos mais exatos, nos limites em que dela conheceu o tribunal do recurso. É a esse fenômeno que se refere a lei com a fórmula do art. 512, que só incide nas hipóteses aqui consideradas. A substituição pode dar-se por decisão de teor diverso daquele que tenha a inferior (caso de provimento do recurso) ou por decisão de igual teor (caso de desprovimento do recurso, em que se costuma dizer, de modo inexato, que a decisão inferior foi confirmada). Voltaremos ao assunto nos comentários ao art. 512. Quando se dá provimento ao recurso para anular a decisão impugnada, por error in procedendo, o julgamento proferido pelo órgão ad quem não coincide, no objeto, com o do órgão a quo, nem, por conseguinte, o substitui: limita-se a cassá-lo, para que posteriormente se profira, no grau inferior, nova decisão. É o que sucede, por exemplo, na hipótese de prover-se apelação interposta contra sentença proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente, ou com infração da regra que proíbe o julgamento extra petita (art. 460). Sendo o recurso julgado no mérito, a decisão recorrida jamais chega a transitar em julgado; nem mesmo quando o órgão ad quem nega provimento ao recurso, “confirmando” (como vulgarmente se diz) aquela decisão. O que poderá transitar em julgado é, sempre, o pronunciamento do órgão ad quem. 150. Direito intertemporal dos recursos: A) Princípios - Pode acontecer que, na pendência do processo, lei nova modifique o sistema de recursos, quer para facultar algum contra decisão até aí irrecorrível, quer para suprimir recurso existente, quer para alterar-lhe os requisitos de admissibilidade ou os efeitos. O princípio fundamental, na matéria, é o de que a recorribilidade se rege pela lei em vigor na data em que foi publicada a decisão: a norma processual superveniente respeita os atos já praticados e os respectivos efeitos já produzidos antes de sua vigência.56 À luz desse princípio, rigorosamente aplicado, se a lei nova concedeu recurso que não cabia, a decisão permanece irrecorrível, mesmo que, ao entrar aquela em vigor, ainda não tenha decorrido lapso de tempo equivalente ao prazo de interposição por ela fixado. Se a lei nova suprimiu recurso existente, subsiste a interponibilidade em relação às decisões que, pela lei anterior, podiam ser impugnadas pelo recurso suprimido, até o termo final do respectivo prazo, ou até que ocorra, eventualmente, outra causa de inadmissibilidade; a fortiori, têm de ser processados e julgados os recursos já interpostos na data em que a nova lei começou a viger. Se o recurso cabível era um, e passou a ser outro, continua interponível aquele que o era antes de entrar em vigor a lei nova; e o recurso antigo porventura já interposto processa-se e julga-se como tal. Considerações de ordem prática têm imposto certa flexibilidade na aplicação dessas regras. Impossível se torna, por exemplo, a admissão de recurso suprimido pela lei nova, se esta extinguiu o órgão competente para julgá-lo, sem indicar outro em substituição. Quanto ao procedimento cabível, inclusive para o julgamento do recurso, não há dúvida de que se subordina, desde a respectiva entrada em vigor, às prescrições da lei nova.

Aqui, o princípio aplicável é, pura e simplesmente, o da imediata incidência (não se pense em retroatividade, que não ocorre!) das normas supervenientes nos processos em curso. Rege ele, também, a questão da competência;57 se a lei nova, pois, atribui a outro órgão o julgamento, o preceito abrange o recurso já interposto, mas ainda não julgado pelo órgão que deixou de ser competente. 151. Direito intertemporal dos recursos: B) aplicação dos princípios à reforma do ordenamento positivo brasileiro - O Código de 1973, tão lacônico nesta matéria, estatuiu singelamente, na 2ª parte do art. 1.211, que, ao entrar em vigor, suas disposições se aplicariam desde logo aos processos pendentes. Limitou-se, aí, a consagrar o princípio fundamental, de índole genérica, que domina o direito intertemporal processual - e, de resto, não constitui senão reflexo daquele outro, ainda mais amplo, expresso no art. 6º, caput, principio, da Lei de Introdução ao Código Civil (“A lei em vigor terá efeito imediato e geral”). No que concerne, especificamente, a recursos, o que se previu, nas “Disposições Finais e Transitórias”, foi apenas a ultratividade das normas procedimentais constantes do estatuto de 1939, acerca de recursos abolidos no corpo do Código, mas subsistentes em relação a procedimentos regulados em leis especiais que os adotassem, até que nova lei especial adaptasse à do Código a sistemática recursal desses procedimentos (art. 1.217). Nem uma só palavra acerca da transição entre o sistema antigo e o novo, no campo dos recursos. O Código anterior continha um dispositivo a respeito (art. 1.047, § 2º); neste, o silêncio foi total. Aplicáveis, destarte, os princípios acima expostos, que se conciliam com o enunciado no art. 1.211, 2ª parte, explicitando-lhe os efeitos da incidência neste setor particular do direito processual. Tal entendimento, de modo geral, foi prestigiado pela jurisprudência. O próprio Supremo Tribunal Federal, que noutra ocasião se desviara da boa doutrina,58 dessa vez a consagrou, em acórdão proferido logo após a entrada em vigor do atual diploma, ao reconhecer que o cabimento de recurso por ele extinto continuava a reger-se pelo Código antigo, quanto às decisões que datassem da época de sua vigência.59 Suprimida a revista, subsistiu, para os julgados anteriores a 1º.1.1974, a impugnabilidade por essa via, desde que satisfeitos os pressupostos fixados no estatuto de 1939. Numerosas decisões proclamaram, com acerto, que a supressão não obstava ao conhecimento dos recursos de revista,60 embora algumas, com restrição ao nosso ver injustificável, tenham invocado a circunstância de que a interposição se dera antes de entrar em vigor o novo Código.61 O ponto era, na verdade, irrelevante: bastava que a revista fosse interponível, não se devendo exigir que já houvesse sido interposta. Outra questão que teve de ser examinada foi a das decisões outrora suscetíveis de agravo de petição. Esse recurso, também extinto, foi absorvido pelo de apelação; mas, nas hipóteses em que cabia agravo, de acordo com o procedente ordenamento, o agravo é que havia de ser interposto, contra qualquer decisão anterior à vigência do atual Código, e como agravo tinham os tribunais de processá-lo e julgá-lo.62 Menos felizes parecem-nos

os acórdãos que converteram o agravo em apelação, só por ter esta passado a ser o recurso cabível.63 Mais recentemente, o advento da Constituição de 1988 também suscitou problemas de direito intertemporal em tema de recursos. O mais importante resultou da bipartição do recurso extraordinário, a ensejar o surgimento de nova figura, o recurso especial, para a matéria infraconstitucional, atribuído o respectivo julgamento ao Superior Tribunal de Justiça (art. 105, nº III; vide, infra, o comentário nº 313). Até a instalação deste, o Supremo Tribunal Federal continuou a exercer “as atribuições e competências definidas na ordem constitucional precedente” (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 27, § 1º). A partir daí, foi preciso decidir como se procederia em relação aos recursos extraordinários (e agravos de instrumento interpostos contra o respectivo indeferimento) nos quais não se versasse questão constitucional. A observância rigorosa do princípio acima exposto (supra, comentário nº 150) teria levado à intangibilidade dos recursos extraordinários como tais; mas do disposto no art. 27, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias podia inferir-se, a contrario sensu, que após a instalação do Superior Tribunal de Justiça já não era lícito ao Supremo Tribunal Federal continuar a julgar, como extraordinários, recursos sobre matéria que deixara de situar-se no âmbito de sua competência. Daí o alvitre, que se adotou, de converter em especiais (e remeter ao Superior Tribunal de Justiça) os recursos extraordinários concernentes a questões infraconstitucionais - o que tornou necessário, em muitos casos, bipartir o recurso interposto com fundamentação heterogênea (ao mesmo tempo constitucional e infraconstitucional), para distribuição da matéria entre os dois tribunais.64 O argumento da cessação de competência (aí, dos juízes federais de primeiro grau) viria também a ser invocado - ao nosso ver, com menor propriedade - para considerar que devia converter-se em apelação o recurso de embargos infringentes contra sentença (vide, infra, o comentário nº 231 ao art. 513), interposto mas não julgado antes da revogação da Lei nº 6.825, de 22.9.1980, pela Lei nº 8.197, de 27.6.1991.65 Capítulo I - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS 152. Objeto do Capítulo - Obedecendo a sistemática louvável e tradicional entre nós, abre o Código um capítulo consagrado às “disposições gerais” sobre os recursos. Nele se incluem normas: a) de enumeração dos recursos cabíveis (art. 496); b) de indicação dos atos irrecorríveis, praticados no primeiro grau de jurisdição (art. 504); c) concernentes aos requisitos de admissibilidade dos recursos (arts. 499, 502, 503, 511) e, particularmente, ao requisito da tempestividade, isto é, aos prazos de interposição (arts. 506 a 508);

d) relacionadas com efeitos dos recursos e com a extensão subjetiva dos efeitos (arts. 497, 509); e) referentes a certas classes ou espécies de recursos: principal e adesivo (art. 500), total e parcial (art. 505); f) sobre a desistência do recurso (art. 501); g) sobre o efeito do julgamento do recurso (art. 512); h) atinentes a peculiaridades do procedimento (arts. 498, 510). Consoante ressalta da tentativa de classificação feita acima, nem sempre usou o legislador a melhor técnica na distribuição e seriação da matéria. Notam-se também omissões na disciplina de alguns dos tópicos versados, a começar pela própria enumeração do art. 496, que, como oportunamente se verá, não é completa, mesmo que se tenha em vista a situação existente no momento da entrada em vigor do Código. Ademais, há neste capítulo dispositivos manifestamente deslocados, porque relativos, de modo específico, a tal ou qual recurso: assim o art. 498, cujo lugar próprio seria o Capítulo VI, Seção II (outrora intitulada “Do recurso extraordinário”, hoje “Do recurso extraordinário e do recurso especial”); e, em certa medida, o art. 497, ao qual se pode reconhecer, todavia, alguma utilidade no presente contexto, segundo se mostrará no comentário respectivo (nº 157). Art. 496. São cabíveis os seguintes recursos: I - apelação; II - agravo; III - embargos infringentes; IV - embargos de declaração; V - recurso ordinário; VI - recurso especial; VII - recurso extraordinário; VIII - embargos de divergência em recurso especial e em recurso extraordinário. (Redação dada pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994)

Direito anterior - Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, Parte III, art. 678; Código do Rio Grande do Sul, art. 1.004; da Bahia, arts. 1.229 a 1.231; de Minas Gerais, art. 1.421; de Pernambuco, art. 1.415; do Distrito Federal, art.1.107; de São Paulo, art. 1.068; Código Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, art. 2.278; Código de Processo Civil de 1939, art. 808. Direito comparado - Costa Rica: Código Procesal Civil, arts. 550 e 551; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, art. 601; Equador: Código de Procedimiento Civil, art. 342; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 345; França: Code de procédure civile, art. 527; Itália: Codice di procedura civile, art. 323; Panamá: Código Judicial, art. 1.164; Portugal: Código de Processo Civil, art. 676; Uruguai: Código General del Proceso, art. 243. COMENTÁRIO 153. Elaboração legislativa - No anteprojeto BUZAID, o art. 544 referia-se aos seguintes recursos: embargos infringentes, apelação, agravo de instrumento, embargos de declaração, recurso ordinário e recurso extraordinário. Os quatro primeiros seriam admitidos pelo Código; os dois últimos, de assento constitucional (vigia, então, a Carta de 1967, com a redação da Emenda nº 1, de 1969), apenas regulados por ele. Observe-se, porém, que os embargos infringentes aí mencionados eram os interponíveis no primeiro grau de jurisdição, em causas de valor igual ou inferior ao quíntuplo do salário mínimo vigente na sede do juízo (art. 561) - correspondentes, pois, aos do art. 839 do diploma de 1939. A existência desse recurso, peculiar às causas de pequeno valor, sempre fora condenada pela melhor doutrina,1 e a Comissão Revisora - num dos seus raros alvitres acolhidos - recomendou a eliminação, como aliás já o fizera o congresso realizado em Campos do Jordão para discutir o anteprojeto. O projeto remetido ao Congresso Nacional restauraria, entretanto, os embargos infringentes cabíveis contra acórdãos e o recurso de revista, em cuja exclusão anuíra a Comissão Revisora. Quanto ao “recurso ordinário constitucional”,2 deixou de figurar na enumeração introdutória (art. 500 do projeto), mas só porque - à semelhança do Supremo Tribunal Federal em seu Regimento Interno - passou o legislador, com acerto, a entender que não devia tratá-lo como entidade recursal autônoma, senão como apelação ou agravo, conforme o caso (art. 554, nºs I e II). Já a revista, a que se consagrara o Capítulo V do Título X do Livro I, foi suprimida pelo Senado, quando da tramitação do projeto no Congresso Nacional. 154. Confronto com o direito anterior - Dos recursos mencionados no art. 808 do Código de 1939, mantiveram-se no art. 496 do vigente estatuto, sem alteração terminológica, a apelação, os embargos de declaração e o recurso extraordinário - este, aliás, previsto na Constituição da República, e por isso ineliminável por lei ordinária. No tocante à apelação, cabe notar de passagem que, na atual sistemática, esse nomen iuris só se aplica com propriedade à impugnação voluntária de sentença (cf. o comentário nº 135, supra); a antiga “apelação necessária ou ex officio” (Código de 1939, art. 822) assumiu

caráter diverso, recebendo tratamento à parte, no art. 475, fora do título consagrado aos recursos - embora, curiosamente, o parágrafo único do citado dispositivo continuasse (e continue) a falar em “apelação voluntária”, como se outra existisse. Desapareceu a revista. Os antigos “embargos de nulidade ou infringentes do julgado” (art. 808, nº II, do Código de 1939) passaram a denominar-se apenas “embargos infringentes” e ficaram limitados à impugnação de acórdãos, excluindo-se-lhes o cabimento (que viria mais tarde a ser restaurado em certos casos: vide, supra, a nota 1 ao comentário nº 153) contra decisões de primeiro grau. Quanto ao agravo (art. 808, nº III, do Código de 1939), das três modalidades nominadas que comportava (agravo de instrumento, agravo de petição, agravo no auto do processo), uma única subsistiu ostensivamente, o agravo de instrumento, embora o primitivo art. 522, § 1º, do diploma de 1973 (hoje, art. 523, na redação da Lei nº 9.139, de 30.11.1995) contemplasse figura correspondente, em substância, ao velho agravo no auto do processo. 155. Os recursos suprimidos - A supressão da revista só podia merecer aplausos. Esse recurso, na prática judiciária, jamais preencheu de modo satisfatório a função uniformizadora da jurisprudência, que lhe inspirara a criação. É surpreendente, aliás, que ele houvesse ressurgido no projeto, depois de excluído do anteprojeto, em cuja “Exposição de Motivos” (nºs 36/7) fora objeto de severa crítica;3 tanto mais quanto é certo que nenhuma sugestão fizera, no sentido do restabelecimento, a Comissão Revisora. Andou bem o Senado, ao acolher a emenda supressiva. Eliminada a revista, já não havia lugar na lei nova, é claro, para recurso correspondente ao agravo previsto no art. 860 do estatuto ab-rogado. Esse agravo, cabível da decisão que não admitisse a revista, naturalmente desapareceu com ela. - O agravo de petição, no sistema do Código anterior (art. 846), prestava-se à impugnação das decisões terminativas, quer dizer, daquelas que põem fim ao procedimento de primeiro grau sem julgarem o mérito da causa. Essa função viu-se absorvida pela apelação, que passou a caber contra qualquer decisão final (“sentença”, de acordo com o art. 162, § 1º), definitiva - isto é, de mérito - ou não (art. 513). Na “Exposição de Motivos” do anteprojeto, buscou-se justificar a solução adotada precisamente com argumento tirado das incertezas em torno da conceituação de “mérito”, por força das quais se manifestavam dúvidas freqüentes na jurisprudência sobre a demarcação das áreas de cabimento dos dois recursos.4 Isso na verdade acontecia sob o regime de 1939; o vigente diploma, contudo, discrimina em termos expressos os casos de extinção do processo sem julgamento de mérito e com julgamento de mérito (arts. 267 e 269, respectivamente), o que bastava para preexcluir a dificuldade apontada. A Comissão Revisora propôs, sem resultado, a manutenção do agravo de petição, a favor da qual, sem embargo de autorizadas opiniões em contrário,5 militavam razões ponderáveis de ordem teórica e de ordem prática. Entre as primeiras, avulta a relacionada com o efeito devolutivo, que não pode ter a mesma amplitude na hipótese de impugnar-se mera decisão terminativa e na de recorrer-se contra a sentença de mérito: haverá, por isso, na realidade, dois recursos de características diversas, ainda que reunidos sob igual

nomen iuris (cf. infra, os comentários ns. 238 e 243 ao art. 515).6 As razões de ordem prática podem ser assim resumidas: a) o agravo de petição dava ensejo a que o juiz, convencendo-se de ter errado, se retratasse, para mandar prosseguir o feito, ao passo que, interposta apelação - com ressalva, naturalmente, de regra especial como a do art. 198, nº VII, da Lei nº 8.069, de 13.7.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e agora a do art. 296 do próprio Código, na redação da Lei nº 8.952, de 13.12.1994 -, já nada lhe será lícito fazer, mesmo que reconheça o erro, senão ordenar a subida dos autos ao tribunal, com a óbvia conseqüência de um retardamento capaz de acarretar grande prejuízo; b) ainda quando mantida a decisão pelo órgão de primeiro grau, o agravo de petição seria processado e julgado no tribunal, de ordinário, com maior rapidez, por jamais depender de revisão, ao passo que a apelação só excepcionalmente a dispensa (art. 551, § 3º); c) subsistindo os embargos infringentes, que não caberiam contra acórdão proferido em agravo de petição, mais ressalta o inconveniente de admitir-se apelação contra simples decisões terminativas, dada a possibilidade de que, no órgão ad quem, haja divergência na votação, e assim o acórdão se torne ainda embargável (art. 530). Se se tiver em vista a hipótese, nada acadêmica, de duas ou mais apelações sucessivas no curso do processo, concluir-se-á que a muito pouco se reduziu a suposta simplificação trazida pelo afastamento do agravo de petição: a rigor, diminuiu-se de um nome o elenco dos recursos existentes, nada mais, e por preço que nos parece francamente excessivo. Na verdade, sob rótulo único (“apelação”), continuam a existir dois recursos, de características distintas, quanto ao objeto e quanto ao efeito devolutivo (cf., infra, os comentários nºs 232 e 233 ao art. 513). De lege ferenda, boa parte dos inconvenientes da inovação seriam corrigíveis com facilidade: bastaria excluir a exigência da revisão e o cabimento dos embargos infringentes (uma vez afastada a solução mais radical de abolir esse recurso), nos casos de apelação contra sentença meramente terminativa. Parece-nos alvitre capaz de contentar gregos e troianos: os que não gostavam do agravo de petição continuarão a ver ausente do catálogo dos recursos o nomen iuris que lhes desagrada; os que nele enxergavam certas vantagens terão o consolo de reencontrá-las, ao menos parcialmente, na disciplina da apelação, quando se trate de hipótese correspondente àquela em que antes cabia a figura suprimida. Deixe-se jazer em paz, se assim se quer, o agravo de petição; chame-se porém a apelação a suceder-lhe no que tenha de positivo a sua herança. A maior celeridade do agravo de petição em confronto com a apelação, convém recordar, foi a causa de o haverem adotado não poucas leis extravagantes como recurso cabível inclusive contra a sentença definitiva. Tal vezo era condenável, por perturbar a sistemática do ordenamento; paradoxalmente, em relação a ele é que o novo estatuto se mostrou tolerante, ao dispor, no art. 1.217: “Ficam mantidos os recursos dos processos regulados em leis especiais e as disposições que lhes regem o procedimento constantes do Dec.-lei nº 1.608, de 18.9.1939, até que seja publicada a lei que os adaptará ao sistema deste Código.” A tarefa de adaptação foi empreendida por meio de dois diplomas. Primeiro, ainda antes da entrada em vigor do Código atual, a Lei nº 6.014, de 27.12.1973, tornou cabível a apelação, em vez do agravo, nos processos: do registro de loteamentos e da ação de

adjudicação compulsória de imóveis (Dec.-lei nº 58, de 10.12.1937), do mandado de segurança (Lei nº 1.533, de 31.12.1951), da ação de alimentos (Lei nº 5.478, de 25.7.1968), da falência (Dec.-lei nº 7.661, de 21.6.1945), da declaração judicial da nacionalidade brasileira (Lei nº 818, de 18.9.1949), da fixação judicial do “aluguel corrigido” (Lei nº 4.494, de 25.11.1964), da concessão de assistência judiciária aos necessitados (Lei nº 1.060, de 5.2.1950), da intervenção em empresa por abuso do poder econômico (Lei nº 4.137, de 10.9.1962), da ação de acidente do trabalho (Lei nº 5.316, de 14.9.1967), dos embargos à execução judicial de crédito hipotecário vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação (Lei nº 5.741, de 1º.12.1971, cujo art. 5º teve suprimido o antigo § 1º), da ação de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente em garantia (Dec.-lei nº 911, de 1º.10.1969) e da ação de despejo regida pelo Dec.-lei nº 4, de 7.2.1966; a mesma Lei nº 6.014 modificou a Lei nº 4.655, de 2.6.1965, que aludia, no art. 5º, § 2º, a “recurso de reexame”, expressão substituída por “apelação”. Mais tarde, por força da Lei nº 6.071, de 3.7.1974, passou a apelação a ser igualmente o recurso cabível contra sentença proferida em caso de impedimento de reunião pela autoridade policial (Lei nº 1.207, de 25.10.1950), em ação declaratória de “isenção” tributária (Lei nº 3.193, de 4.7.1957), em ação para reparação de dano moral causado no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, bem como em matéria de apreensão de impressos que contiverem propaganda de guerra ou de preconceitos de raça ou de classe, promoverem incitamento à subvenção ou ofenderem a moral pública e os bons costumes (Lei nº 5.250, de 9.2.1967). Convém ressalvar que nem todos os agravos previstos nesses diplomas eram de petição: a apelação veio substituir também agravos de instrumento, que esdruxulamente cabiam contra decisões finais: assim, na Lei nº 3.193, de 4.7.1957, art. 4º, no Dec.-lei nº 911, de 1º.10.1969, art. 3º, § 5º, e na Lei nº 5.741, de 1º.12.1971, art. 5º, § 1º (suprimido). Caso singular foi o do agravo de petição previsto no art. 64 do Dec.-lei nº 7.036, de 10.11.1944, repristinado por força do art. 29, nº II, da Lei nº 5.316. Como nenhum dispositivo, quer da Lei nº 6.014, quer da Lei nº 6.071, a ele fizesse menção, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, em matéria de acidente de trabalho rural, o agravo sobrevivera às leis adaptadoras.7 O art. 22 da Lei nº 6.367, de 19.10.1976, porém, veio a revogar expressamente, sem qualquer ressalva, o Dec.-lei nº 7.036 e a Lei nº 5.316. 156. Recursos não incluídos no primitivo rol do art. 496 - Não era exaustiva a enumeração feita pelo dispositivo sob exame, no texto primitivo. Seria um disparate, naturalmente, pretender que ela incluísse figuras recursais contempladas em leis extravagantes posteriores, como os embargos infringentes contra sentenças (Leis nºs 6.825 - revogada, como já se assinalou, pela Lei nº 8.197, de 27.6.1991 - e 6.830, de 22.9.1980, arts. 4º e 34, respectivamente) e o recurso cabível contra a sentença do antigo Juizado Especial de Pequenas Causas (Lei nº 7.244, de 7.11.1984, arts. 41 e segs.; cf., hoje, os dispositivos correspondentes da Lei nº 9.099, que trata dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para não falar das inovações que viria trazer a Carta de 1988. Mas a verdade é que nem sequer se mencionaram todos os recursos previstos no próprio Código (ou em leis especiais a este preexistentes: assim, o agravo do art. 4º da Lei nº 4.348, de 26.6.1964).

Com efeito. No art. 532 (modificado pela Lei nº 8.950), facultou-se um recurso, a que não se deu nome especial, contra o indeferimento liminar dos embargos infringentes pelo relator; correspondia-lhe, no texto de 1939, o agravo (denominação agora restabelecida) do art. 836. Outro recurso inominado aparecia no art. 557, parágrafo único, interponível contra o indeferimento do agravo de instrumento pelo relator; esse não tinha correspondente no antigo diploma, pela simples razão de que ali não se contemplava a possibilidade de semelhante indeferimento. Atualmente, a figura recursal prevista no § 1º - e batizada também de agravo - cabe contra a decisão do relator que nega seguimento a qualquer recurso “manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”, e bem assim contra pronunciamento do relator que dê provimento a recurso pelo qual se impugnou decisão “em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior” (caput e § 1º-A, respectivamente, na redação da Lei nº 9.756). A nova redação dada ao inciso II do art. 496 pela Lei nº 8.950 (“agravo”, tout court, em vez de “agravo de instrumento”) tornou-o abrangente. Nele acham espaço agora todas as figuras assim denominadas. Resta falar dos embargos a que aludia o art. 546, parágrafo único (chamados “embargos de divergência”), contra decisão de turma do Supremo Tribunal Federal que, em recurso extraordinário, ou agravo de instrumento, divergisse do julgamento de outra turma ou do plenário. Subsistente no Regimento Interno da Corte (arts. 330 a 332; vide, infra, os comentários nºs 335 e 337), a despeito da revogação do art. 546 do Código pela Lei nº 8.038 (art. 44), e reincorporado ao Código pela Lei nº 8.950 (que restaurou o dispositivo, com nova redação), esse recurso nada tem em comum, além do nome, com os embargos infringentes dos arts. 530 e segs. Criara-o com maior amplitude, sob o regime anterior, a Lei nº 623, de 19.1.1949, mediante o acréscimo de um parágrafo único ao art. 833 do Código de 1939. Dele não cogitava o anteprojeto BUZAID, nem o projeto remetido ao Congresso; o parágrafo único do primitivo art. 546 proveio de emenda aditiva oferecida no Senado Federal. A “embargos de divergência” fora do âmbito da Corte Suprema - existentes no campo trabalhista (Consolidação das Leis do Trabalho, arts. 893, nº I, e 894, letra b), mas desconhecidos do Código - aludiu a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em dispositivos sobre competência: os arts. 89, § 5º, letra a, e 101, § 3º, letra a, os quais atribuíram o processamento e o julgamento de tais embargos às seções especializadas, respectivamente do Tribunal Federal de Recursos e dos Tribunais de Justiça estaduais. Nada disse o texto acerca dos requisitos específicos de admissibilidade, dos efeitos, do procedimento. Ora, o mero enunciado de um nomen iuris, a que só se juntou a indicação da competência, é muito pouco para a instituição de nova figura recursal. Ninguém se animaria em sã consciência - tão defeituosa é a técnica da Lei Orgânica da Magistratura Nacional - a desprezar por absurda a hipótese de puro e simples equívoco: teria o legislador redigido aqueles textos na errônea convicção de já existirem, com a presumida amplitude, os embargos de divergência. Outra explicação, que ocorreu a não poucos,8 é a

de que a Lei Orgânica se limitara a fixar por antecipação a competência para o processamento e o julgamento de semelhantes embargos, se e quando fossem criados... A Lei nº 8.038, de 28.5.1990, instituiu, no Superior Tribunal de Justiça, embargos de divergência análogos aos do Supremo Tribunal Federal. De acordo com o art. 29, seriam eles interponíveis, no prazo de 15 dias, contra decisão de turma que, em recurso especial, divergisse do julgamento de outra turma, de seção ou do órgão especial. O procedimento era o estabelecido no Regimento Interno (vide, neste, os arts. 266 e 267). Hoje, o art. 546 do Código (na redação da Lei nº 8.950) trata dos embargos de divergência em ambos os tribunais. Art. 497. O recurso extraordinário e o recurso especial não impedem a execução da sentença; a interposição do agravo de instrumento não obsta o andamento do processo, ressalvado o disposto no art. 558 desta lei.9 (Redação dada pela Lei nº 8.038, de 28.5.1990) Direito anterior - Consolidação de RIBAS (1876), art. 1.472; Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, Parte III, arts. 720 e 721; Código da Bahia, art. 1.309; de Minas Gerais, art. 1.477 e parágrafo único; de Pernambuco, art. 1.497; do Distrito Federal, art. 1.134; de São Paulo, art. 1.090 e § 1º; Código de Processo Civil de 1939, arts. 808, § 1º, e 843. COMENTÁRIO 157. Exceções à regra da suspensividade - O Código julgou necessário indicar, logo neste segundo dispositivo do Capítulo “Das disposições gerais”, os casos em que a interposição de recurso não tem efeito suspensivo. É que a regra, na matéria, é a da suspensividade, como aliás ressumbra do tratamento dado, no particular, à apelação (cf. art. 520 e, supra, o comentário nº 143). Por conseguinte, sempre que o texto silencie, deve entender-se que o recurso é dotado de efeito suspensivo: assim ocorre com os embargos infringentes. Esse já era, aliás, o princípio no sistema do Código de 1939.10 É certo que, nos arts. 465, parágrafo único (dispositivo todo revogado pela Lei nº 8.950) e 538 (na redação anterior à referida lei), se dispôs expressamente que os embargos de declaração suspenderiam o prazo para a interposição de outro recurso. Mas aí se tratava de dar solução inequívoca a um problema específico, resultante da possibilidade de caberem dois recursos - o de embargos declaratórios e algum outro - contra a mesma decisão. Era preciso esclarecer se a parte teria de interpô-los simultaneamente, ou poderia deixar o outro para depois de julgados os embargos. A existência dos aludidos dispositivos não se explica, destarte, por uma necessidade de atribuir aos embargos efeito suspensivo em relação à eficácia da decisão embargada: tal efeito haveria de produzirse, mesmo que o Código não contivesse as regras dos arts. 465, parágrafo único, e 538. 158. Exeqüibilidade provisória da sentença na pendência de recurso extraordinário ou especial - Nos termos do art. 497, 1ª parte, “o recurso extraordinário e o recurso

especial não impedem a execução da sentença”. A lei prevê aqui, a título de exceção, a produção antecipada do efeito executivo, que normalmente não se produziria senão a partir do trânsito em julgado. Apenas a do efeito executivo; não se alude neste dispositivo à antecipação da eficácia da sentença, in genere. Mais ampla, em seu teor literal, era a dicção do art. 543, § 4º (revogado pelo art. 44 da Lei nº 8.038), verbis “o recurso extraordinário será recebido unicamente no efeito devolutivo” (cf., hoje, o art. 542, § 2º, na redação da Lei nº 8.950, onde está implícito o “unicamente”: vide, infra, o comentário nº 324 a esse dispositivo). A problemática atinente ao início da eficácia sentencial, na pendência de recurso especial e/ou extraordinário, não se restringe, é claro, ao tópico da execução. Tem-se sustentado em doutrina, por exemplo, que as sentenças constitutivas só começam a surtir efeitos uma vez transitadas em julgado; em relação a elas, pois, não caberia invocar a falta de suspensividade de quaisquer recursos.11 Voltemos ao efeito executivo, que é o de que cogita o dispositivo ora comentado. Muito se discutiu, sob o Código de 1939, se devia reputar-se provisória ou definitiva a execução promovida na pendência de recurso extraordinário. Dividiu-se a doutrina, firmando-se na jurisprudência, porém, o segundo entendimento.12 O vigente estatuto considera definitiva a execução “fundada em sentença transitada em julgado ou em título extrajudicial”, e provisória, a que se baseia em sentença “impugnada mediante recurso, recebido só no efeito devolutivo” (art. 587). Ora, de um lado, o texto do art. 467 deixa fora de dúvida que a coisa julgada só se forma quando a sentença (lato sensu) já não seja passível de impugnação mediante “recurso ordinário ou extraordinário”, não havendo como distinguir entre o momento do trânsito em julgado e o momento de formação da res iudicata: as duas expressões são equivalentes. De outro lado, o art. 542, § 2º atribui efeito meramente devolutivo aos recursos extraordinário e especial (cf., originariamente, quanto ao extraordinário, o § 4º do art. 543, acrescentado pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973; depois, com relação a ambos, o art. 27, § 2º, da Lei nº 8.038, de 28.5.1990). Consagrada ficou, pois, de lege lata, a tese da provisoriedade,13 aplicando-se à execução de julgado ainda sujeito a recurso extraordinário (ou especial) as regras do art. 588. A ela se procede mediante carta de sentença, salvo onde houver autos suplementares (art. 589, 2ª parte). Diga-se o mesmo, aliás, da execução acaso promovida na pendência do agravo de instrumento contra a decisão que indefira o recurso extraordinário ou o especial (art. 544, na redação da Lei nº 8.950),14 ou ainda na dos embargos de divergência no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça (art. 546, na redação da Lei nº 8.950): enquanto subsiste a possibilidade de que se conheça do recurso extraordinário (ou especial), ou de que se reforme a decisão que lhe tenha negado admissão, ainda não se pode afirmar que haja coisa julgada, embora se conceba que o resultado do julgamento do recurso (no caso de não conhecimento) venha a evidenciar que a decisão recorrida já transitara em julgado (cf., supra, os comentários nºs 70, ao art. 485, e 147). 159. Exclusão do efeito suspensivo para o agravo de instrumento - Reza a 2ª parte do texto sob exame que “a interposição do agravo de instrumento não obsta o andamento do

processo, ressalvado o disposto no art. 558”. É preciso harmonizar a referência a “agravo de instrumento” com a nova sistemática dada ao agravo pela Lei nº 9.139, de 30.11.1995. Hoje, o complemento já não tem razão de ser, e pode gerar a falsa impressão de que a interposição do agravo retido (que não é “de instrumento”) obsta o andamento do feito. Não: a disposição excepcional abrange ambas as modalidades do recurso. Deve entender-se que a interposição do agravo não influi no andamento, isto é, que o processo continua tal qual continuaria se a decisão interlocutória não houvesse sido impugnada. A rigor, portanto, o que a lei exclui não é apenas a influência do agravo sobre o andamento do feito: é a suspensão dos efeitos da própria decisão agravada. Isso explica a ressalva final, concernente a hipóteses em que, por exceção, se torna possível “suspender o cumprimento da decisão” - ou seja, a eficácia da interlocutória impugnada pelo agravante - “até o pronunciamento definitivo da turma ou câmara” (art. 558, caput, na redação da Lei nº 9.139). Há decisões interlocutórias que têm, justamente, o efeito de suspender o andamento do processo: v.g., aquela em que o juiz defere o requerimento de citação do denunciado (art. 72, caput). Em casos tais, se alguém agrava, nem por isso o feito retoma incontinenti a sua marcha. A situação do processo será a que ocorreria abstraindo-se da interposição do agravo: a decisão interlocutória conserva, a despeito do recurso, a eficácia que lhe é própria. Não se deve falar, ao propósito, em “efeito suspensivo implícito ou reflexo” do agravo.15 A suspensão tem como causa única a decisão interlocutória: basta ver que, do ponto de vista que interessa aqui, as coisas se passam exatamente do mesmo modo quer se agrave, quer não. No rigor da lógica, pois, ter-se-ia de atribuir um efeito suspensivo “implícito ou reflexo” assim à interposição do agravo, como à sua não interposição, conforme o caso. Mas não há tal: o efeito, aí, é todo da decisão. O verdadeiro sentido da regra do art. 497, 2ª parte, é o de que normalmente o agravo nenhuma repercussão tem sobre a eficácia da decisão agravada. Sua interposição não obsta ao andamento, quando o feito haja de prosseguir após a decisão; nem o faz andar, quando ela lhe suspenda o andamento. Entender diversamente a norma importaria dar efeito suspensivo ao agravo, em certas hipóteses, e negar-lho em outras; não é isso, entretanto, que a lei quer dizer. Quanto aos casos em que, a título excepcional, se pode suspender a eficácia do pronunciamento agravado, vide os comentários nº 364 e segs. ao art. 558. Hipótese de suspensividade obrigatória, antes da Lei nº 8.953, de 13.12.1994, era a do art. 601, caput, cuja parte final subordinava a eficácia da sanção processual cominada na inicial à preclusão da decisão que a houvesse aplicado. Art. 498. Quando o dispositivo do acórdão contiver julgamento por maioria de votos e julgamento unânime, e forem interpostos embargos infringentes, o prazo para recurso extraordinário ou recurso especial,

relativamente ao julgamento unânime, ficará sobrestado até a intimação da decisão nos embargos. Parágrafo único. Quando não forem interpostos embargos infringentes, o prazo relativo à parte unânime da decisão terá como dia de início aquele em que transitar em julgado a decisão por maioria de votos. (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001) COMENTÁRIO 160. Sobrestamento do recurso extraordinário ou especial - O art. 498 não contém, à evidência, “disposição geral” sobre recursos; a regra nele inscrita respeitava de modo específico ao procedimento do recurso extraordinário, numa hipótese particular. O art. 42 da Lei nº 8.038 modificou-lhe a redação, para incluir a referência ao recurso especial. Ainda hoje, continua inadequada a localização do dispositivo. Trata-se do caso em que o acórdão proferido no julgamento de apelação ou de ação rescisória tenha resultado, em parte, de votação unânime e, em parte, de votação por maioria. Da parte em que não houve divergência (só desta!), desde que satisfeitos os demais pressupostos, é admissível recurso extraordinário (e/ou especial); da outra parte, cabem embargos infringentes (art. 530). Os recursos precisam ser interpostos desde logo, quer o recorrente seja o mesmo em todos, quer não. Não se pode deixar a interposição do recurso extraordinário (e/ou do especial) para depois do julgamento dos embargos; a parte do acórdão em que tiver havido unanimidade transita em julgado, ainda que admissível o extraordinário (e/ou o especial), se decorre in albis o prazo respectivo, que não se suspende, nem se interrompe, em virtude da interposição dos embargos contra a parte restante.16 É claro que não se exclui a priori a possibilidade de vir a caber recurso extraordinário (e/ou especial) contra o acórdão que julgar os embargos (por fundamento relativo a este!); mas não é disso que se cuida aqui. A Lei nº 10.352 modificou radicalmente a sistemática acima descrita. A partir de sua entrada em vigor, o legitimado a interpor recurso especial e/ou extraordinário contra a parte unânime do acórdão não precisa fazê-lo desde logo: o prazo de interposição “ficará sobrestado até a intimação da decisão nos embargos” – ou, mais exatamente, só começará a fluir desde essa intimação. Pode acontecer, por outro lado, que ninguém interponha embargos com relação à parte não unânime do acórdão. Em tal caso, o prazo para interpor o recurso especial e/ou extraordinário contra a parte unânime “terá como dia de início aquele em que transitar em julgado a decisão por maioria de votos”. Das duas hipóteses (interposição ou não interposição de embargos) cuidam, respectivamente, o caput e o parágrafo único do art. 498, em sua nova redação. A incidência do caput, convém notar, não pressupõe necessariamente que o órgão julgador dos embargos se pronuncie sobre o respectivo mérito. Pode acontecer que deles não se conheça, por falta de algum requisito de admissibilidade; a conseqüência será sempre a mesma, já que os embargos, apesar de inadmissíveis, foram interpostos. Por

“decisão”, no caput, deve entender-se qualquer decisão que ponha termo ao processamento dos embargos. Art. 499. O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público. § 1º Cumpre ao terceiro demonstrar o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial. § 2º O Ministério Público tem legitimidade para recorrer assim no processo em que é parte, como naqueles em que oficiou como fiscal da lei. Direito anterior - Ord. Filipinas, L. III, Tít. LXXXI; Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, Parte III, art. 689; Código da Bahia, art. 1.250; de Minas Gerais, art. 1.425; de Pernambuco, art. 1.419; do Distrito Federal, art. 1.109; de São Paulo, art. 1.072; do Estado do Rio de Janeiro, art. 2.284; Código de Processo Civil de 1939, arts. 814 e 815. Direito comparado - Bélgica: Code Judiciaire, art. 1.122; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, arts. 213, nº I, 222; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, art. 350, 2ª parte; Costa Rica: Código Procesal Civil, art. 561; Equador: Código de Procedimiento Civil, art. 347; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 338; Filipinas: Rules of Court, R. 40, Seção 1; França: Code de procédure civile, arts. 546, 583; Itália: Codice di procedura civile, art. 404; Panamá: Código Judicial, art. 1.161, 3ª e 4ª alíneas; Peru: Código Procesal Civil, art. 356; Portugal: Código de Processo Civil, arts. 680 e 778; Uruguai: Código General del Proceso, art. 242; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, art. 297. COMENTÁRIO 161. Legitimação para recorrer - Assim como a legitimação para agir é condição do exercício regular do direito de ação, e portanto da possibilidade de julgar-se o mérito da causa, analogamente a legitimação para recorrer é requisito de admissibilidade do recurso, que precisa estar satisfeito para que o órgão ad quem dele conheça, isto é, o julgue no mérito. Consoante já se observou em doutrina, seria em princípio concebível, correspondendo a uma “representação idealizada do Estado de direito”, sistema em que se permitisse a qualquer pessoa impugnar uma decisão judicial que lhe parecesse injusta.17 Na realidade, por óbvias razões de conveniência, trata a lei de limitar o círculo dos possíveis recorrentes. Surge então, neste contexto - à semelhança do que se dá no concernente ao exercício mesmo da ação -, o problema da legitimidade, impondo-se verificar se quem interpôs o recurso se inclui ou não no elenco dos habilitados a fazê-lo. Refere-se o dispositivo sob exame à “parte vencida”, ao “terceiro prejudicado” e ao Ministério Público. No plano dogmático, há que distinguir entre a legitimação para

recorrer e o interesse em recorrer, de que o texto legal cuida promiscuamente. A legitimação do terceiro, na verdade, pressupõe o prejuízo que lhe tenha causado a decisão, e implica, pois, a existência de um interesse na remoção desse prejuízo. Tal circunstância não impede, porém, que se preserve a distinção conceptual entre os dois requisitos, ao contrário do que preconiza certa corrente doutrinária, que, de modo explícito ou implícito, se recusa a enxergar entre ambos qualquer diferença, ou nega autonomia ao requisito do interesse em recorrer, visto sempre como simples fundamento ou razão de ser da legitimação.18 Convém examinar separadamente a legitimação para recorrer como parte, a legitimação para recorrer como terceiro e a legitimação do Ministério Público. É o que se passa a fazer, não sem antes registrar que normas jurídicas especiais podem habilitar à interposição de recurso, especificamente, outras determinadas pessoas ou órgãos: assim, por exemplo, nos processos “que tenham por objeto matéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários”, a Lei nº 6.385, de 7.12.1976, art. 31, caput e § 3º, na redação dada pela Lei nº 6.616, de 16.12.1978, atribuiu àquele órgão “legitimidade para interpor recursos, quando as partes não o fizerem”. 162. Legitimação da parte - Legitimam-se a recorrer, como partes, em primeiro lugar, o primitivo autor ou o primitivo réu, ainda que revel. Havendo litisconsórcio, qualquer dos litisconsortes, ativos ou passivos, legitima-se ao recurso; pouco importa a espécie de litisconsórcio, bem como o momento em que ele se constituiu, desde que anterior à decisão impugnada: se só depois desta ingressa no feito, impugnando a decisão, alguém que poderia ter-se litisconsorciado a uma das partes, o recurso é de terceiro, e apenas em conseqüência dele surge o litisconsórcio. Se na fase antecedente do processo figurou incapaz representado ou assistido, e no instante da decisão, ou logo após, vem a cessar a incapacidade, o recurso pode, obviamente, ser interposto pelo ex-incapaz. Se a incapacidade sobreveio, será necessária, para a interposição do recurso, a representação ou a assistência. Num caso e noutro, parte é sempre, antes e depois do recurso, aquele cuja incapacidade cessou ou surgiu. Muda a parte, ao contrário, quando algum fato intercorrente produz o aparecimento ou desaparecimento do fenômeno conhecido como substituição processual. A admitir-se como subsistente a disciplina do regime dotal do Código Civil, mesmo à luz do art. 226, § 5º, da Constituição de 1988, se, v. g., a nubente traz, como dote, imóvel a cujo respeito litigava com terceiro, o casamento celebrado na data da decisão, ou logo após, legitima o marido para recorrer, em seu próprio nome, na defesa do bem dotal, que à mulher continua a pertencer (Código Civil, arts. 289, III, e 290, fine). Se, ao contrário, naquela data se dissolve a sociedade conjugal, a legitimação, que cabia ao marido, restitui-se à mulher, e em nome desta se interporá o recurso. Não há conflito com a regra do art. 42 do estatuto processual, porque não ocorre “alienação da coisa ou do direito litigioso”: titular da relação jurídica material é e foi sempre a mulher. Tampouco se tira objeção do disposto no art. 264, caput, fine: a mudança da parte, aqui, não só é permitida, mas até diríamos que é imposta por lei (pela norma relativa à legitimação, constante do Código Civil).

São legitimados a recorrer os sucessores, a título universal ou singular, por fato concomitante com a decisão, ou ocorrido depois dela, mas ainda dentro do prazo recursal. Na sucessão causa mortis, tem-se de atender ao estatuído nos arts. 43, 265, § 1º, 1.055 e segs. do Código de Processo Civil. Na sucessão inter vivos, o sucessor pode ter assumido a posição de parte, de acordo com o disposto no art. 42 e seus parágrafos; se o fez, evidentemente, legitima-se como parte à interposição de recurso. Os intervenientes de que trata o Livro I, Título II, Capítulo VI, tornam-se igualmente partes, e como tais se legitimam a recorrer, a menos que, antes da decisão, se tenham desligado do processo, isto é, deixado de ser partes. O não-comparecimento do interveniente coacto, apesar de citado, não exclui a qualidade de parte: ele a adquire desde a citação, independentemente da circunstância de atender ou não ao chamamento. Também se legitima a recorrer o assistente, quer o do art. 54, quer o do art. 50, que também é parte, embora não parte principal19 - o que não exclui, note-se de passagem, que nalgum texto do Código a referência a “parte” deva ter interpretação restritiva, como atinente só às partes principais. Pode o assistente recorrer mesmo que não o faça o assistido: se a sua situação é tal que o habilitaria a interpor o recurso como terceiro prejudicado, ou seja, ainda que até então não participasse do feito, deve a fortiori habilitá-lo à interposição quando nele já figure antes de proferida a decisão; aliás, o art. 52 confere ao assistente “os mesmos poderes” que competem ao assistido. Fica excluída, porém, a interponibilidade de recurso pelo assistente simples quando o processo se extinga em virtude de reconhecimento do pedido, de desistência ou de transação entre as partes principais (arg. ex art. 53, verbis: “cessa a intervenção do assistente”); ou ainda, por analogia, na hipótese de renúncia do autor “ao direito sobre que se funda a ação” (art. 269, nº V). No processo de execução, além do devedor e do credor (ou de qualquer dos vários credores, se for o caso), outras pessoas podem legitimar-se a recorrer contra decisões relativas aos incidentes em que assumam a posição de partes: assim o arrematante ou pretendente à arrematação, o remidor ou pretendente à remição, o credor hipotecário que requeira a adjudicação de imóvel (art. 714, § 1º), o contratante da obra ou do serviço, na execução regulada pelos arts. 634 e segs. 163. Legitimação do terceiro prejudicado: A) Direito comparado - Em alguns ordenamentos, reserva-se ao terceiro prejudicado um recurso específico: é a tierce opposition, no direito francês (Code de procédure civile, art. 582) e no belga (Code Judiciaire, art. 1.122), a opposizione di terzo, no italiano (Codice di procedura civile, art. 404). Outros adotam sistema eclético, no qual o terceiro dispõe, em determinados casos, de recurso específico, mas também pode eventualmente usar dos recursos comuns às partes: assim o direito português, que tem a oposição de terceiro (Código de Processo Civil, art. 778), cabível “quando o litígio assente sobre um ato simulado das partes”, sem contudo deixar de facultar os outros recursos, fora dessa hipótese particular, às “pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão (...), ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias” (art. 680, 2ª alínea).20

Entre nós, as vias recursais que se abrem ao terceiro prejudicado são sempre e apenas as mesmas concedidas às partes; os pressupostos de cabimento da apelação, do agravo, dos embargos, do recurso extraordinário (ou especial), não são, para o terceiro prejudicado, diferentes dos pressupostos de cabimento da apelação, do agravo, dos embargos, do recurso extraordinário (ou especial) da parte. Não há recurso de que só o terceiro disponha, nem recurso de que disponham as partes e se negue em tese ao terceiro. 164. Legitimação do terceiro prejudicado: B) Direito brasileiro - O conceito de terceiro determina-se por exclusão em confronto com o de parte: é terceiro quem não seja parte, quer nunca o tenha sido, quer haja deixado de sê-lo em momento anterior àquele em que se profira a decisão. A distinção, para efeito de recurso, é menos relevante no sistema do Código de 1973 que no direito anterior: o diploma de 1939, no art. 815, §§ 1º e 2º, concedia ao terceiro, em certas hipóteses, prazo maior que o da parte para a interposição de recurso; a lei nova nenhuma diferença estabelece ao propósito. O problema da legitimação, no que tange ao terceiro, postula o esclarecimento da natureza do prejuízo a que se refere o texto legal. A redação do § 1º do art. 499 está longe de ser um modelo de clareza e precisão: alude ao “nexo de interdependência” entre o interesse do terceiro em intervir “e a relação jurídica submetida à apreciação judicial”, quando a rigor o interesse em intervir é que resulta do “nexo de interdependência” entre a relação jurídica de que seja titular o terceiro e a relação jurídica deduzida no processo, por força do qual, precisamente, a decisão se torna capaz de causar prejuízo àquele.21 No entanto, bem oportuna teria sido, aqui, uma tomada de posição em termos categóricos e insofismáveis, para cortar de vez as notórias controvérsias, travadas antes e depois da entrada em vigor do Código de 1939, entre duas correntes doutrinárias: uma que se satisfazia com a existência de mero prejuízo de fato, outra que exigia a ocorrência de prejuízo jurídico, só facultando recurso ao terceiro que fosse titular de direito atingível, ainda que indiretamente, pela decisão. Sob o regime anterior, sustentamos o segundo entendimento, que se nos afigurava mais condizente com os princípios gerais informadores do instituto da intervenção de terceiros, do qual constitui simples modalidade o recurso de terceiro prejudicado.22 Com efeito, todas as formas de intervenção espontânea, no processo de conhecimento de primeiro grau, tinham como denominador comum a circunstância de servirem à defesa de direitos subjetivos, inclusive no caso da assistência, em que essa defesa era indireta; ora, não havia porque supor-se que a lei tivesse querido ser mais liberal quanto à intervenção em fase recursal do que no grau inferior de jurisdição. Esse argumento de ordem sistemática parece-nos continuar válido à luz do Código de 1973: observe-se que a possibilidade de intervir como assistente reclama do terceiro “interesse jurídico” (não simples interesse de fato!) na vitória de uma das partes (art. 50).23 Apesar, pois, da obscuridade do dispositivo ora comentado, no particular, entendemos que a legitimação do terceiro para recorrer postula a titularidade de direito (rectius: de suposto direito) em cuja defesa ele acorra. Não será necessário, entretanto, que tal direito haja de ser defendido de maneira direta pelo terceiro recorrente: basta que a sua esfera jurídica seja atingida pela decisão, embora por via reflexa.24 É essa, aliás, a linha hermenêutica sugerida pela própria tradição do direito luso-brasileiro.25

165. Legitimação do Ministério Público - O Código de 1939 só reconhecia ao Ministério Público o poder de recorrer “quando expresso em lei” (art. 814) - feita abstração, é claro, das hipóteses em que ele ocupava a posição de parte. Na ausência de texto legal permissivo (como o da Lei nº 4.717, de 29.6.1965, art. 19, § 2º), recusava-lhe a doutrina legitimação para recorrer nos processos em que sua função era a de custos legis; os tribunais, porém, sensíveis a intuitivas razões de conveniência, freqüentemente entendiam que a interposição de recurso, em casos tais, era inerente àquela atribuição.26 O atual Código, louvavelmente, aqui se definiu com toda a nitidez, estatuindo, no § 2º do artigo sob exame, que “o Ministério Público tem legitimidade para recorrer assim no processo em que é parte, como naqueles em que oficiou como fiscal da lei”. Os recursos utilizáveis pelo Ministério Público na função de custos legis são os mesmos de que dispõem as partes, sem diferença no que tange aos pressupostos de cabimento. Ressalvese apenas que, à luz dos dizeres do art. 500, não pode o Ministério Público, naquela qualidade, recorrer adesivamente (cf., infra, o comentário nº 174 ao citado dispositivo). Recorrendo contra decisão proferida em processo onde funcionava como fiscal da lei, assume o Ministério Público, no procedimento recursal, a condição de parte, com iguais “poderes e ônus”, à semelhança do que ocorre quando exerça o direito de ação (art. 81), salvo regra especial - v.g., a que dispensa de preparo os recursos por ele interpostos (art. 511). Porque assume tal condição é que o Ministério Público se legitimará, em qualquer dos casos previstos no art. 485, à ação rescisória do acórdão que julgar o seu recurso (cf., supra, o comentário nº 100 ao art. 487). Aliás, seria pouco razoável imaginar um procedimento recursal sem parte (ativa), quando só o Ministério Público recorra - o que é sempre possível, visto que a lei não subordina à interposição de recurso por qualquer dos litigantes o exercício do poder atribuído ao órgão pelo art. 499, § 2º, fine. O texto sob exame, em sua literalidade (“oficiou”), apenas se refere à hipótese de já ter o Ministério Público intervindo no feito como custos legis, ao proferir-se a decisão. Mas há outra que merece ser considerada: a de haver-se deixado de proceder à intimação do Ministério Público, apesar de obrigatória a sua intervenção. Resta saber, então, se ele também se legitima ao recurso quando, embora ainda não haja participado do processo até o momento da decisão, devesse ter sido ouvido na qualidade de fiscal de lei. Não obstante o silêncio do art. 499, § 2º, parece-nos fora de dúvida a legitimação do Ministério Público para, em casos tais, interpor o recurso cabível, com a finalidade de pleitear a anulação do processo a partir do instante em que tinha de ser intimado, nos termos do art. 246 e seu parágrafo único. É, ao nosso ver, a solução mais consentânea com os princípios: conquanto se trate de nulidade absoluta, decretável de ofício pelo órgão ad quem, há interesse em permitir que ela seja alegada, para evitar que passe despercebida, e nada mais razoável que abrir oportunidade, para tanto, ao próprio Ministério Público, já que as partes podem eventualmente omitir-se, por desatenção ou cálculo. Ademais, no tocante à sentença de mérito, a nossa conclusão encontra apoio em raciocínio a fortiori: se aquela transitasse em julgado, legitimar-se-ia o Ministério Público a promover-lhe a rescisão (art. 487, nº III, letra a); ora, supondo-se que antes do trânsito em julgado venha ele a tomar conhecimento do que se passa, por mais forte razão

se lhe há de permitir que a impugne desde logo, pela via recursal adequada. Não teria sentido, com efeito, forçá-lo a aguardar a formação da res iudicata, para utilizar-se da ação rescisória, com grave detrimento para a economia processual. 166. Interesse em recorrer: A) Generalidades - Da legitimação para recorrer deve distinguir-se, como acima exposto, o interesse em recorrer, que é outro dos requisitos de admissibilidade do recurso. A noção de interesse, no processo, repousa sempre, ao nosso ver, no binômio utilidade + necessidade: utilidade da providência judicial pleiteada, necessidade da via que se escolhe para obter essa providência. O interesse em recorrer, assim, resulta da conjugação de dois fatores: de um lado, é preciso que o recorrente possa esperar, da interposição do recurso, a consecução de um resultado a que corresponda situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que a emergente da decisão recorrida; de outro lado, que lhe seja necessário usar o recurso para alcançar tal vantagem.27 Na literatura processual, entre nós e alhures, costuma-se indicar o primeiro fator - a que, em geral, se dá maior realce - por meio da alusão a ter sido vencido o recorrente, ou, com variedade de formulações, à sucumbência, ao gravame, ao prejuízo que lhe há de ter causado a decisão, quando não à circunstância de não se lhe haver dado acolhimento ao pedido, ou de haver-se acolhido o da parte contrária.28 Este último critério29 apenas seria aplicável à sentença de mérito e às decisões de outra natureza proferidas em resposta à iniciativa das partes, não servindo para os inúmeros casos em que o órgão judicial resolve de ofício alguma questão, inclusive quanto aos itens sobre os quais ele deve pronunciar-se, na própria sentença, independentemente de pedido expresso (arts. 18 e § 1º, 20, 32, 290, 293, fine). Ademais, todas as fórmulas habituais têm o defeito de encarar o problema ao ângulo exclusivo da parte, como se só em relação a esta se houvesse de cogitar do requisito do interesse: é óbvio, por exemplo, que se cairia em gritante impropriedade se se pretendesse falar na sucumbência do terceiro prejudicado, que até aí permaneceu estranho ao feito e não pode, pois, ter sido vencido. 167. Interesse em recorrer: B) A utilidade do novo julgamento - A construção de um conceito unitário do interesse em recorrer, ao que nos parece, exige a adoção de uma óptica antes prospectiva que retrospectiva: a ênfase incidirá mais sobre o que é possível ao recorrente esperar que se decida, no novo julgamento, do que sobre o teor daquilo que se decidiu, no julgamento impugnado. Daí preferirmos aludir à utilidade, como outros aludem, como fórmula afim, ao proveito que a futura decisão seja capaz de proporcionar ao recorrente.30 Essa maneira de considerar a questão permite uniformizar-lhe os termos, quer se trate de recurso de parte, quer de terceiro prejudicado, quer do Ministério Público enquanto fiscal da lei. É evidente que, na terceira hipótese, há de entender-se a utilidade ou proveito não como vantagem destinada a beneficiar individualmente o órgão do Ministério Público que interponha o recurso, mas como a satisfação que poderá ter, mercê do pronunciamento do órgão ad quem, o interesse (na observância do direito objetivo) sustentado por aquele no processo. O art. 499, optando pela fórmula mais comum, refere-se à “parte vencida”. Cabe dar ao adjetivo entendimento que se harmonize com as noções acima expostas. É vencida a

parte, sem dúvida, quando a decisão lhe tenha causado prejuízo, ou a tenha posto em situação menos favorável do que a de que ela gozava antes do processo, ou lhe haja repelido alguma pretensão, ou acolhido a pretensão do adversário. Mas também se considerará vencida a parte quando a decisão não lhe tenha proporcionado, pelo prisma prático, tudo que ela poderia esperar, pressuposta a existência do feito.31 Assim, por exemplo, se algum cidadão propõe ação popular, e o órgão de primeiro grau julga improcedente o pedido com base na “deficiência de prova”, isso não constitui o melhor resultado possível para os réus, porque a sentença não se reveste da autoridade de coisa julgada, tornando viáveis novas investidas subseqüentes (Lei nº 4.717, de 29.6.1965, art. 18); mais vantajoso será, para eles, que se julgue improcedente o pedido, negando-se no ato o alegado vício - com o que ficarão a salvo, em caráter definitivo, de ulteriores ataques identicamente fundamentados. Em tais condições, devem reputar-se “vencidos” os réus, na medida em que deixaram de conseguir esse plus, e terão interesse em recorrer para tentar ainda consegui-lo, pleiteando do órgão ad quem a declaração da inexistência do vício (“confirmação” da sentença, por fundamento diverso). Tudo isso se afirma, é claro, com a ressalva da possibilidade legal: em nosso sistema positivo, v.g., para o autor a quem se acolheu integralmente o pedido e se concederam todos os acessórios, não há caminho que o possa levar, na instância recursal, a qualquer melhoria de situação; decerto não lhe seria lícito pleitear, perante o órgão ad quem, a concessão de parcela adicional, que deixara de postular. Por isso se lhe negará o interesse em recorrer: não há vantagem que ele possa esperar, visto que no julgamento do recurso jamais se lhe poderá conceder o plus. É suficiente, contudo, que a possibilidade de melhoria se configure no tocante a qualquer tópico, mesmo secundário, sem que se haja de exigir este ou aquele grau de relevância ao ângulo quantitativo. Se, por exemplo, a sentença deu ganho de causa a Caio, no capítulo principal, mas lhe negou a condenação do adversário Tício ao pagamento dos honorários de advogado, tem Caio interesse em recorrer para pleiteá-la. O interesse de Caio em recorrer existirá inclusive quando ele pretenda, simplesmente, a majoração da verba honorária a cujo pagamento foi condenado Tício. Nesse limite, Caio reputar-se-á “parte vencida”, no sentido do art. 499, caput, e até poderá, eventualmente, invocar o art. 500 para recorrer em caráter adesivo (cf., infra, o comentário nº 175 a esse dispositivo.) - Deve aferir-se ao ângulo prático a ocorrência da utilidade, isto é, a relevância do proveito ou vantagem cuja possibilidade configura o interesse em recorrer.32 A razão de ser do processo não consiste em proporcionar ocasião para o debate de puras teses, sem conseqüências concretas para a fixação da disciplina do caso levado à apreciação do juiz. Nem pode a atividade do aparelho judiciário do Estado servir de instrumento para a solução de questões acadêmicas. Por isso, não entra em linha de conta a veleidade, que alguma das partes tenha, de obter satisfação psicológica com o acolhimento in totum, pelo órgão ad quem, da argumentação utilizada na defesa do seu direito, se a decisão já assegura a este tutela eficaz. Daí se tiram importantes corolários. O mais gritante deles costuma a doutrina formulá-lo dizendo que não legitima a interposição de recurso a simples discrepância entre as razões

de decidir e os argumentos invocados pela parte; ou, em outras palavras, que só se admite recurso contra o dispositivo, e não contra a motivação. Quer isso dizer que, se se trata de matéria sobre a qual houve debate, é irrelevante, para o fim aqui considerado, que o juiz se tenha apoiado, total ou parcialmente, em argumentos diversos daqueles sugeridos pelo litigante a cujo favor, no entanto, decidiu:33 ainda na hipótese de que ele explicitamente rejeitasse todos esses argumentos, a existência ou a inexistência do interesse em recorrer teria de verificar-se à luz da mera conclusão, e não do raciocínio armado para produzi-la. Ressalvem-se os casos, aliás excepcionais, em que a própria lei atribui importância prática à motivação, como acontece no tocante à sentença de improcedência na ação popular, cuja força, consoante se recordou há pouco, varia de acordo com o fundamento do decisum. À luz do mesmo princípio acima exposto, reputa-se inadmissível, por falta de interesse, o recurso em que as razões de impugnação concernem a um só dos fundamentos da decisão impugnada, quando o(s) outro(s) seja(m) bastante(s), por si, para justificá-la.34 Com efeito: se, por hipótese, ainda que reconhecida pelo órgão ad quem a inconsistência daquele singular motivo, a conclusão subsistiria in totum, isso significa que o julgamento do recurso em caso algum poderia trazer a quem o interpôs qualquer vantagem prática. Observe-se ao propósito que, neste contexto, em se tratando de recurso contra decisão de tribunal, assume grande relevância a distinção entre fundamentos do acórdão e fundamentos de voto (mesmo vencedor!): aqueles serão exclusivamente os adotados pela maioria dos votantes, e por tal critério é que se verificará se o recurso alveja ou não todos os fundamentos (cf., infra, o comentário nº 375 ao art. 563). Hipótese importante de aplicação do princípio sob exame é o de acórdão com duplo fundamento, um de índole constitucional, outro de nível infraconstitucional - suscetível em princípio, pois, de impugnação simultânea por meio de recurso extraordinário e de recurso especial. É firme a jurisprudência no sentido de que, se não se recorreu extraordinariamente (ou se o recurso extraordinário foi indeferido, por decisão preclusa), o especial se torna inadmissível:35 mesmo que viesse a ser provido, nenhuma utilidade prática teria isso para o recorrente, porquanto o acórdão recorrido subsistiria pelo fundamento de ordem constitucional. Importa acentuar aqui a íntima vinculação entre a matéria de que estamos tratando e a questão dos limites objetivos da coisa julgada.36 A interposição do recurso visa imediatamente a evitar que se cristalize, através da formação da res iudicata, a disciplina dada ao caso concreto pela decisão. Ora, em nosso ordenamento, só a conclusão desta é que se põe, com a exaustão dos recursos admissíveis, sob aquela cobertura; não, porém, os motivos que levaram o juiz a pronunciar-se num sentido ou noutro, inclusive a solução das questões de fato e das próprias questões prejudiciais (art. 469). Assim, nenhum impedimento se cria a que sejam objeto de nova discussão e, porventura, de apreciação divergente em qualquer processo relativo a outra lide. Por isso é que, com a ressalva já consignada, unicamente do dispositivo pode advir interesse prático na provocação de segundo pronunciamento dentro do mesmo feito. 168. Interesse em recorrer: C) A necessidade do recurso - O outro aspecto do interesse - o referente à necessidade - merece agora ser convenientemente ressaltado. Do

mesmo modo que o interesse em agir, como condição de legítimo exercício da ação, se liga à ocorrência de uma situação em que se torna necessário o ingresso em juízo, por não haver outro remédio eficaz para a (suposta) ameaça ou lesão ao (alegado) direito, assim também o interesse em recorrer, como requisito da admissibilidade do recurso, pressupõe a necessidade deste para o atingimento do resultado prático que o recorrente tem em vista. Suponhamos que, em ação de cobrança, o pedido do autor haja sido julgado improcedente, mas, a despeito disso, o réu, logo após a prolação da sentença, ofereça em pagamento a importância cobrada, mais os acessórios. Nessas circunstâncias, abre-se para o autor o ensejo de conseguir, in totum, sem necessidade de apelar, vantagem prática igual à que poderia esperar do julgamento da apelação. Se, não obstante, apela, deve o recurso considerar-se inadmissível, por falta de interesse. Outro ponto relevante: o vencedor no principal não precisa recorrer só para levar alguma questão prévia, resolvida em seu desfavor, à cognição do órgão ad quem, se este já se investirá do poder de reexaminá-la graças ao efeito devolutivo do eventual recurso da parte contrária. Uma de duas: ou o adversário não recorre, e com o trânsito em julgado fica o litigante vitorioso protegido em definitivo, ou o adversário recorre, e isso basta para ensejar o reexame (cf., infra, no que respeita à apelação, o comentário nº 244 ao art. 515). Serve de exemplo a preliminar (de mérito) de prescrição, repelida em primeiro grau: o réu que a suscitara sem êxito, mas viu julgado improcedente o pedido - v.g., por falta de prova do fato constitutivo do afirmado crédito - não tem necessidade de apelar, nem, portanto, interesse em fazê-lo. Merece consideração especial a hipótese de sujeitar-se a sentença a reexame obrigatório em segundo grau (art. 475 ou regra análoga). À primeira vista, ela excluiria o interesse em recorrer do litigante a quem possa aproveitar o reexame, pois a cognição da matéria se devolverá ex vi legis, independentemente de recurso. Impende, todavia, levar em conta que, recorrendo, terá esse litigante a oportunidade de arrazoar, de criticar a sentença, de aduzir argumentos a favor da respectiva reforma ou invalidação. Para ele, portanto, há óbvia vantagem prática na interposição do recurso, o que basta para configurar o interesse. - Com base nas noções até agora fixadas, não parece difícil encaminhar a boa solução um problema assaz debatido na doutrina estrangeira: o da recorribilidade da decisão inexistente, ou eivada de defeito capaz de torná-la inválida. Não caberia aqui, é óbvio, o tratamento ex professo da matéria, entre todas árdua, referente à existência e à validade das decisões judiciais. Lembraremos apenas, em termos intencionalmente esquemáticos, e levando em conta os dados do nosso direito positivo, que, do ponto de vista dos efeitos, os vícios que elas podem apresentar são agrupáveis em três grandes classes: a) a dos que não resistem à eficácia preclusiva da coisa julgada e, por isso, não alegados em recurso, se tornam irrelevantes (assim, o error in iudicando decorrente de má apreciação da prova); b) a dos que, após o trânsito em julgado, podem servir de fundamento à desconstituição, mediante ação rescisória, mas não impedem a decisão de produzir, nesse ínterim, todos os efeitos normais (assim, a incompetência absoluta do órgão judicante); c) a dos que, dispensando o exercício da rescisória, são alegáveis por outros meios, v.g. como óbices à execução, através de embargos (assim, a falta ou nulidade da citação

inicial para processo decorrido à revelia). Há, como se vê, uma gradação de a) a c), uma ordem crescente de gravidade aos olhos da lei. Fora da série, colocar-se-iam as chamadas decisões inexistentes (por exemplo, as desprovidas de dispositivo), para as quais, como é de fácil intuição, nem sequer chega a pôr-se a questão da validade, e menos ainda a da eficácia. O problema do interesse em recorrer tem de ser estudado separadamente em relação a cada uma dessas categorias. E neste contexto, mais do que em qualquer outro, avulta a relevância do princípio da necessidade. A idéia que nos há de orientar na pesquisa é a de que não se deve admitir o recurso senão quando a interposição dele seja o único remédio capaz de ministrar garantia plena contra o ato judicial. Desde que por via mais simples, sem qualquer gravame, pudesse o recorrente obter total proteção, deixa o recurso de ser necessário e, por conseguinte, falta o interesse em recorrer. Do mero enunciado das premissas já emerge, bem nítida, a solução que nos parece correta para o caso das decisões inexistentes. A inexistência, com efeito, se é da decisão final, faz que o processo continue a fluir no mesmo grau, não se podendo dizer que o julgador functus est munere suo; se de alguma interlocutória, não gera qualquer preclusão, continuando em aberto todas as questões “resolvidas”. Não há, juridicamente, decisão, e o fato pode ser declarado a todo tempo, ex officio ou por provocação do interessado. A doutrina alemã, em sua maioria, a despeito de reconhecer que aí não se precisa usar de recurso algum, costuma afirmar que se pode recorrer. Embora do ponto de vista lógico a solução contrária lhes pareça mais exata, esses autores admitem o recurso, no caso, por motivos de ordem prática.37 À luz do direito brasileiro, não se nos afigura concebível qualquer risco para a parte, pela omissão do recurso. Nem mesmo quanto à “sentença” que se pretendesse executar: a inexistência dela poderia ser alegada em simples petição, independentemente da efetivação da penhora, ou do depósito, por não se tratar de embargos. Assim, preferimos acompanhar, neste tópico, a orientação de ponderável corrente da doutrina italiana,38 para considerar inadmissível, por falta de interesse, o recurso manifestado contra decisão inexistente. De modo algum nos animaríamos a admiti-lo como “remédio facultativo”:39 a necessidade da interposição constitui, ao nosso ver, pressuposto essencial da admissibilidade - em harmonia, aliás, com princípio básico (filiado ao da economia processual), a cuja luz, no processo, não se deve admitir a prática de atos desnecessários. A solução há de ser diversa para as outras hipóteses acima enumeradas. Em a), a existência do interesse é mais que óbvia: a interposição do recurso é o único meio normalmente capaz de ensejar o rejulgamento. Em b), conquanto ainda reste a ação rescisória, o interessado ficaria sujeito, até a eventual desconstituição, a todos os efeitos do pronunciamento, inclusive, sendo o caso, à execução forçada; é manifesta, pois, a utilidade prática que, em tese, pode proporcionar-lhe a interposição do recurso. Quanto à hipótese sub c), se, com a interposição de recurso, a ensejar desde logo a cassação da sentença, se abre a oportunidade de evitar para o interessado algum gravame

(por exemplo: a penhora ou o depósito de que dependeria o oferecimento de embargos de devedor), é incontestável a vantagem prática que daí advém. Ademais, pode tratar-se de sentença declaratória ou constitutiva, que não gera execução, a não ser pela condenação acessória em custas e honorários; se, por hipótese, não a houve, e o vencedor com isso se conformou, não surgiria sequer, para o vencido, a ocasião de embargar. Absurdo negarlhe, destarte, interesse em recorrer. Art. 500. Cada parte interporá o recurso, independentemente, no prazo e observadas as exigências legais. Sendo, porém, vencidos autor e réu, ao recurso interposto por qualquer deles poderá aderir a outra parte. O recurso adesivo fica subordinado ao recurso principal e se rege pelas disposições seguintes; I - será interposto perante a autoridade competente para admitir o recurso principal, no prazo de que a parte dispõe para responder; II - será admissível na apelação, nos embargos infringentes, no recurso extraordinário e no recurso especial; III - não será conhecido, se houver desistência do recurso principal, ou se for ele declarado inadmissível ou deserto. Parágrafo único. Ao recurso adesivo se aplicam as mesmas regras do recurso independente, quanto às condições de admissibilidade, preparo e julgamento no tribunal superior. (Redação dada pela Lei nº 8.950, de 13.12.1994) Direito comparado – Direito comparado – Alemanha: ZPO, §§ 524, 554, 567, nº 3, 574, nº 4; Bélgica: Code Judiciaire, art. 1.054; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, art. 228; Chile: Código de Procedimiento Civil, arts. 216 a 219; Colômbia: Código de Procedimiento Civil, art. 353; Costa Rica: Código Procesal Civil, art. 562; Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, art. 604, 2ª alínea; Equador: Código de Procedimiento Civil, art. 358; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 340, § 2º; França: Code de procédure civile, arts. 548 a 551; Grécia: Código de Processo Civil, art. 523; Guatemala: Código Procesal Civil y Mercantil, art. 607; Índia: Code of Civil Procedure, Order 41, Rule 22; Inglaterra: Basic Rules of the Supreme Court, Order 59, Rule 6; Itália: Codice di procedura civile, arts. 333, 334, 343, 371; Japão: Código de Processo Civil, art. 293; Peru: Código Procesal Civil, art. 373, 4ª alínea; Portugal: Código de Processo Civil, art. 682; Suécia: Código processual, Cap. 50, Secção 2; Suíça: Lei Federal de Organização Judiciária, art. 59, 2ª alínea; Uruguai, Código General del Proceso, art. 253.1; Venezuela: Código de Procedimiento Civil, arts. 299 a 304.

COMENTÁRIO 169. Recurso independente e recurso adesivo - Com freqüência ocorre que nenhuma das duas partes obtenha o máximo que podia esperar do pronunciamento judicial; por exemplo: em ação de cobrança, o autor pedira x, e o réu contestara toda a dívida; o juiz condena este a pagar apenas x - y. São as hipóteses que a doutrina costuma designar como de “sucumbência recíproca”.40 No sistema anterior, a cada parte incumbia o ônus de interpor, no prazo comum, o seu recurso: o autor, para tentar conseguir que o órgão ad quem lhe concedesse também y; o réu, para pleitear a declaração da improcedência total do pedido. Se o autor não recorresse no prazo comum, perderia em definitivo a possibilidade de obter y; se o réu não recorresse no prazo comum, ficaria sujeito, em definitivo, à condenação em x - y. Ao órgão ad quem, com efeito, não seria lícito, no julgamento do recurso de uma só das partes, beneficiar o litigante adversário, piorando a situação do único recorrente (proibição da reformatio in peius: vide, infra, o comentário nº 240 ao art. 515); vencido o prazo comum, transitava em julgado a parte da decisão desfavorável àquele que houvesse deixado de recorrer. Ora, podia acontecer que alguma das partes, embora não totalmente satisfeita, se sentisse inclinada, por qualquer razão, a conformar-se com o julgamento, v.g., para evitar ulteriores incômodos e despesas. Se, entretanto, não interpusesse o recurso no prazo comum, sujeitava-se a ver prosseguir o feito, apesar disso, em virtude da interposição pela parte contrária, talvez no último instante do prazo. Tomada assim de surpresa,41 sofria, afinal de contas, dupla frustração: abstivera-se de recorrer por achar que o encerramento imediato do processo era compensação bastante para a renúncia à tentativa de alcançar integral satisfação, e no entanto a compensação lhe escapava; pior ainda, já não dispunha de meio idôneo para, retificando a posição primitiva, ir buscar no juízo recursal o que deixara de conseguir no grau inferior de jurisdição. Na prática, o que sucedia as mais das vezes era a interposição, por ambos os litigantes, de recursos que, no fundo, nenhum faria questão fechada de interpor. Cada qual estaria disposto a permanecer omisso e a permitir que a decisão passasse em julgado, mas sob a condição de que o outro observasse comportamento idêntico.42 A não ser, porém, que se concertassem para em conjunto renunciar à impugnação ou manifestar aquiescência ao julgamento, subsistia sempre, no espírito do autor, o receio de que o réu viesse a recorrer no momento derradeiro, e vice-versa. O peso desse receio impelia cada uma das partes, por seu lado, a impugnar uma decisão que, não fora tal circunstância, logo se teria revestido da autoridade de coisa julgada, com vantagem para o interesse público na rápida composição das lides e no pronto restabelecimento da paz social. Em outras palavras: ao contrário do que sugere uma sadia política legislativa,43 o regime legal anterior favorecia o prolongamento do processo, talvez desnecessário e nem sequer verdadeiramente querido pelas partes. O Código de 1973 introduziu nessa disciplina oportuna inovação. A regra continuou a ser, naturalmente, a de que a cada litigante, na hipótese de terem ambos interesse em recorrer, cabe interpor o seu recurso, com autonomia, “no prazo e observadas as exigências legais”. Entretanto, a parte que estiver inclinada a conformar-se com o

julgamento, mas apenas sob a condição de que também o adversário se abstenha de recorrer, pode aguardar sem sobressalto o decurso do prazo comum: sobrevindo o termo final sem que a outra parte impugne a decisão, esta passa em julgado e torna-se imune a qualquer modificação; se, ao contrário, a outra parte interpuser recurso, e o processo houver de subir, por isso, ao grau superior de jurisdição, abre-se ainda ao litigante que de início se conservara inerte, e a despeito de já esgotado aquele prazo, a possibilidade de tentar obter do órgão ad quem pronunciamento que melhore a sua própria situação. Assim se evita a interposição precipitada do recurso pelo parcialmente “vencido”, graças à certeza, que se lhe proporciona, de que terá, caso queira, nova oportunidade de impugnar a decisão no que lhe interesse. Ambas as partes, em suma, vêem-se no fundo incentivadas a abster-se de impugnar a decisão. Cada qual sabe que não precisa fazê-lo desde logo, porque terá tempo para pensar duas vezes; e mais: sabe que, recorrendo incontinenti, talvez provoque a reação de um adversário em princípio disposto a conservar-se inerte. O mecanismo adotado não constitui, portanto - como à primeira vista poderia parecer -, um expediente de facilitação do recurso. Bem ao contrário: visa a diminuir o número de impugnações, atuando como contra-estímulo pela dupla forma acima descrita. E atingirá o grau ótimo de funcionamento quando ninguém mais interpuser recurso contra decisão parcialmente desfavorável. Mesmo abaixo desse marco ideal, porém, são intuitivos os benefícios que se podem esperar do ponto de vista da economia processual, inclusive, em certa medida, com desafogo dos tribunais.44 Nada disso seria praticável se a lei não prometesse aos litigantes uma segunda ocasião, para o caso de permanecer omisso um deles, no prazo comum, e afinal descobrir que o outro recorreu. Em tal emergência, assegura-lhe o art. 500 a possibilidade de contra-atacar. A essa manifestação de vontade, através da qual o recorrido se converte, por sua vez, em recorrente, é que se refere o dispositivo sob exame, com terminologia obviamente imprópria, quando diz que, “vencidos autor e réu, ao recurso interposto por qualquer deles poderá aderir a outra parte”. O recurso “adesivo” nada mais é do que o recurso contraposto ao da parte adversa, por aquela que se dispunha a não impugnar a decisão, e só veio a impugná-la porque o fizera o outro litigante. Dele se distingue o recurso independente, que é o interposto autonomamente por qualquer das partes interessadas, sem relação alguma com a atitude do adversário: aqui se pressupõe, como é evidente, o firme propósito de impugnar a decisão em qualquer hipótese, quer também recorra, quer não, a outra parte.45 170. Direito comparado - O ordenamento italiano tem a impugnazione incidentale, que se desdobra em duas figuras distintas, reunidas, por causa de traços comuns puramente formais, sob o mesmo nomen iuris. Uma delas corresponde ao recurso adesivo do nosso Código: pressupõe a chamada “sucumbência recíproca” e designa o recurso interponível pelo recorrido, à vista de ter a outra parte impugnado a decisão, e com o fito de obter, por sua vez, resultado que lhe seja - a ele, recorrido - mais favorável. A segunda figura tem lugar nos casos da denominada “sucumbência paralela”,46 isto é, naqueles em que dois ou mais litisconsortes têm interesse em recorrer contra a decisão que deu ganho de causa ao adversário comum: aí, quando um dos litisconsortes se antecipa, recorrendo sozinho,

cabe aos demais interpor os seus recursos por via incidental, no mesmo processo, a fim de que sejam todos julgados em conjunto (Codice di procedura civile, art. 333). O que aproxima as duas espécies é a disciplina do procedimento aplicável a ambas; do ponto de vista substancial, evidentemente se trata de situações muito diversas. A posição adotada pelo Código italiano prende-se ao intuito de dar solução uniforme, já nas hipóteses de “sucumbência recíproca”, já nas de “sucumbência paralela”, a um problema de técnica legislativa relacionado com a circunstância de que, no direito peninsular, ao contrário do que sucede em regra entre nós, os recursos se interpõem diretamente perante o órgão ad quem. Por isso, tanto no caso de recorrerem partes contrapostas, como no de recorrerem dois ou mais litisconsortes, tornava-se necessário adotar expediente que assegurasse a unidade do procedimento recursal, evitando que cada um dos recursos viesse a ser processado e julgado separadamente.47 Daí a conjunção das várias impugnações: é claro, porém, que só nas hipóteses de impugnazione incidentale interposta por litisconsorte do primeiro recorrente seria razoável falar de “adesão”, quer ao ângulo formal, quer ao ângulo substancial; naquelas em que os recorrentes se defrontam como litigantes adversos, muito ao contrário, apenas formalmente ocorre “adesão”, no sentido de que a impugnazione incidentale segue o mesmo caminho da interposta antes pela outra parte.48 - O direito alemão prevê em termos expressos, quanto à Berufung (apelação), à Beschwerde (agravo) e à Revision, a possibilidade de “aderir” o recorrido à impugnação da parte contrária.49 Essa “adesão” (Anschliessung) também só o é do ponto de vista formal: a nova impugnação insere-se no procedimento recursal já iniciado com a feita à mesma decisão pelo litigante adverso. Substancialmente, o que se verifica é a contraposição, não a convergência de pretensões. Equivocam-se os autores que afirmam englobar o conceito de Anschliessung, no sistema tedesco, ambas as figuras: a do recurso interposto pelo litisconsorte do primeiro recorrente e a do recurso interposto pela parte contrária.50 Os textos legais são claríssimos. - No ordenamento português, é bem nítida a distinção entre a figura do “recurso subordinado” e a do “recurso adesivo”. Ocorre a primeira quando, tendo ficado “vencidas” ambas as partes, uma delas aguarda o decurso do prazo normal de interposição, para só impugnar a decisão por havê-lo antes feito o adversário; “o recurso subordinado pode ser interposto dentro de 10 dias, a contar da notificação do despacho que admite o recurso da parte contrária” (Código de Processo Civil, art. 682, 2ª alínea, na redação do Dec.-lei nº 329-A, de 12.12.1995). De “adesão ao recurso” fala-se apenas com referência à hipótese de “sucumbência paralela”, como condição legal, sob determinadas circunstâncias, para que a impugnação oferecida por um dos litisconsortes aproveite aos outros (art. 683, 2ª alínea, letra a, e 3ª e 4ª alíneas). - Na França, desde a legislação napoleônica, existe o appel incident, hoje regulado nos arts. 548 e segs. do Code de procédure civile de 1975. Reza o texto em vigor que “l’appel peut être incidemment relevé par l’intimé tant contre l’appelant que contre les

autres intimés” (art. 548), e acrescenta que “l’appel incident peut également émaner, sur l’appel principal ou incident qui le provoque, de toute personne, même non intimée, ayant été partie en première instance” (art. 549). Os contornos da figura são amplos, não se restringindo o cabimento do appel incident às hipóteses de “sucumbência recíproca”, às quais costumavam reportar-se (embora sem usar tal denominação) as exposições clássicas da matéria.51 - No tocante ao direito suíço, cabem as seguintes observações: a) No cantão de Genebra, o teor literal do art. 345 da antiga Loi de procédure civile, de 1920 - e do art. 298 da atual (de 1987), que o reproduz -, dizendo que, no caso de apelar uma das partes, “as outras” podem interpor apelação mesmo depois de expirado o prazo normal, parece refletir um conceito de “appel incident” (nomen iuris consagrado na 2ª alínea) que, à semelhança do francês, não se limitaria à impugnação contraposta à do adversário pelo recorrido parcialmente sucumbente.52 b) As leis processuais dos outros cantões de língua francesa - e bem assim o texto francês da Lei Federal de Organização Judiciária -, em vez de “incident”, usam o adjetivo “joint” ou a expressão “par voie de jonction”, para designar, só e sempre, o recurso que o litigante vencido em parte contrapõe ao manifestado antes pelo contendor. c) Com essa mesma característica essencial aparece, nos cantões de língua alemã, uma figura a que, decerto sob a influência tedesca, se aplicam, em geral, denominações como Anschlussberufung (ou Anschlussappellation) e outras análogas. Ela corresponde igualmente ao recurso adesivo do nosso art. 500. d) O Código do cantão do Ticino, enfim, distingue e disciplina em dispositivos autônomos (arts. 314 e 315, respectivamente) o recurso contraposto pelo apelado ao do apelante e o recurso justaposto ao do recorrente anterior por algum litisconsorte. No entanto, curiosamente, emprega num caso e noutro a mesma terminologia, chamando “appello adesivo” também à primeira figura. - As leis processuais dos países hispano-americanos, na esteira da antiga Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola, usam o verbo “adherir” (ou “adherirse”) e palavras dele cognatas, como “adhesión”, com referência ao ato pelo qual, nas hipóteses de “sucumbência recíproca”, a parte que de início se mantivera inerte vem a impugnar por sua vez a decisão, diante do recurso manifestado pela outra. A figura coincide, pois, com a contemplada no art. 500 do nosso Código. No México, todavia, fala-se de “apelación adhesiva” noutro sentido: para designar a apelação interponível pelo litigante que, embora vitorioso, pretende obter do órgão ad quem decisão mais bem fundamentada que a do órgão a quo, e com esse fim “adere” ao recurso do vencido.53 171. A questão terminológica - O exame, ainda que sumário, das principais legislações estrangeiras basta para evidenciar a notável confusão terminológica reinante nesta matéria. Substancialmente, há um abismo entre a situação da parte que contrapõe o seu

recurso ao do adversário, primeiro recorrente, e a situação do litisconsorte que se reúne a outro na impugnação. Basta ver que, na primeira hipótese, os dois recorrentes pretendem atingir resultados diametralmente opostos, ao passo que na segunda têm objetivos convergentes. Não obstante, como se mostrou, há ordenamentos que, sob a inspiração de motivos secundários, de ordem formal, atribuem a mesma denominação a ambas as figuras: é o caso da impugnazione incidentale do direito italiano. Pior ainda, pelos equívocos que pode gerar, e sem embargo de precedentes históricos que talvez o expliquem, mas não o justificam -, é o uso do verbo aderir (e das palavras cognatas) com relação a hipóteses em que uma das partes recorre e o litigante adverso, em razão disso, vem pleitear por sua vez, do órgão ad quem, resultado mais favorável ao seu próprio interesse que o obtido no procedimento de grau inferior. Falar hoje de “recurso adesivo”, em casos tais, é correr o risco de pôr o intérprete em falsa pista. Pode ser que, nalgum sistema alienígena, a denominação seja sustentável à luz da preocupação, que terá pesado decisivamente no espírito do legislador, de assegurar, pela reunião formal dos recursos, a unidade do procedimento perante o órgão ad quem. No direito pátrio, todavia, esse aspecto não assume relevo algum, já que os recursos mencionados no art. 500, nº II, e porventura admissíveis contra a mesma decisão, não se endereçam diretamente ao juízo superior: as apelações são interpostas por petição dirigida ao juiz que proferiu a sentença (art. 514), os embargos infringentes por petição dirigida ao relator do acórdão embargado (art. 531, na redação da Lei nº 8.950), os recursos extraordinários e especiais “perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido” (art. 541, caput, também na redação da Lei nº 8.950); com exceção do agravo de instrumento (para o qual não está prevista a possibilidade de “adesão”), todos ingressam necessariamente, em qualquer hipótese, nos próprios autos do feito que até aí vinha correndo, de sorte que não há perigo de fracionar-se o procedimento recursal - nem o havia mesmo antes de reformado o texto do Código. Impossível, portanto, atribuir a considerações relacionadas com esse problema a preferência pelo nomen iuris de “recurso adesivo”. Surgiram críticas, no particular, durante os trabalhos de elaboração;54 elas se limitavam, aliás, a ecoar reparos já formulados alhures, a respeito de legislações que apresentam defeitos semelhante, v.g., a espanhola e as que, na América Latina, a tomaram por modelo, como a venezuelana.55 A Comissão Revisora alvitrou, sem êxito, que se substituísse a designação constante do art. 548 do anteprojeto BUZAID pela de “recurso subordinado”. O projeto definitivo e, como ele, o Código mantiveram, entretanto, a de “recurso adesivo”. Importa sobremodo que se procure evitar, na interpretação e aplicação do texto, qualquer confusão entre as duas figuras acima caracterizadas. No art. 500, apenas se trata do recurso que se contrapõe ao do primeiro recorrente; não se cogita do recurso que o reforça, como seria o interposto pelo litisconsorte. 172. Natureza jurídica da adesão - Na Alemanha, a jurisprudência e expressiva corrente doutrinária têm admitido a possibilidade da Anschliessung, mesmo por parte do litigante totalmente vitorioso na instância inferior: assim, por exemplo, seria lícito ao autor, mediante a Anschlussberufung, ampliar o pedido, isto é, pedir mais do que pedira (e

obtivera) no primeiro grau de jurisdição.56 Indo além, alguns chegam a negar à “adesão” a natureza de verdadeiro recurso, entre outras razões por lhe faltarem os efeitos característicos (suspensivo e devolutivo).57 Essa tese, porém, tem sido combatida com argumentos ao nosso ver convincentes.58 No direito brasileiro é indiscutível o caráter recursal da figura contemplada no art. 500. Convém apenas ressaltar que não se trata de um recurso per se, diverso em substância do recurso independente de igual denominação. A despeito das peculiaridades da disciplina legal, a apelação adesiva é, basicamente, uma apelação; os embargos infringentes adesivos são embargos infringentes; o recurso extraordinário (ou especial) adesivo é um recurso extraordinário (ou especial).59 Por isso mesmo reza o parágrafo único do dispositivo sob exame que “ao recurso adesivo se aplicam as mesmas regras do recurso independente, quanto às condições de admissibilidade, preparo e julgamento no tribunal superior”. Tampouco variam os efeitos da interposição: a apelação adesiva devolve ao órgão ad quem o conhecimento da matéria que constitui objeto da impugnação, com a mesma profundidade da apelação independente, e tolhe a eficácia da decisão impugnada, na parte em que o foi, com ressalva das exceções previstas na lei; os embargos adesivos produzem efeito devolutivo e suspensivo; o recurso extraordinário (ou especial) adesivo, ao contrário, só produz o primeiro.60 Nenhum recorrente adesivo pode frutiferamente pedir algo que não lhe seria lícito pleitear por meio de recurso independente. 173. Requisitos de admissibilidade do recurso adesivo: generalidades - Segundo o parágrafo único do art. 500, “ao recurso adesivo se aplicam as mesmas regras do recurso independente, quanto às condições de admissibilidade, preparo e julgamento no tribunal superior”. Tira-se da cláusula grifada, em primeiro lugar, que o cabimento do recurso adesivo reclama a concorrência dos requisitos necessários para tornar apelável, embargável ou passível de recurso extraordinário ou especial, conforme o caso, a decisão impugnada, já que a lei restringe a esses recursos (antes, três; hoje, quatro, com o acréscimo do especial) a possibilidade de adesão; aliás, o texto originário do Código deixava de fora os embargos infringentes, havendo o Congresso Nacional aproveitado a oportunidade da votação da Lei nº 5.925, de 1º.10.1973, para suprir a lacuna, através de emenda aditiva, apresentada ao projeto governamental. Não basta, porém, que a decisão seja apelável, embargável ou suscetível de recurso extraordinário ou especial, para que caiba o recurso adesivo correspondente. É preciso, além disso, que ela haja sido efetivamente impugnada pela parte contrária; o texto legal, bem claro nesse ponto (“ao recurso interposto por qualquer deles...”), não autoriza o entendimento dos que admitem61 a interposição de recurso adesivo antes mesmo que se interponha algum outro (dito na lei “principal”). Se um dos litigantes parcialmente vitoriosos era a União, o Estado ou o Município, os autos subirão ao tribunal, em qualquer hipótese, para revisão do(s) capítulo(s) decidido(s) contra a Fazenda Pública e obrigatoriamente sujeito(s), por isso, ao duplo grau de jurisdição (art. 475, nº II); mas, caso não tenha ela apelado, não há que cogitar de adesão por parte do adversário, pois inexistirá “recurso interposto” a que se possa aderir.62

Exigível, ainda, é que o chamado recurso principal subsista na data da interposição do adesivo. Este, com efeito, tira da existência daquele a sua única razão de ser: ora, sublata causa, tollitur effectus. Se já não existe recurso principal, já não há porque nem como aderir. Assim, será incabível a adesão, caso o órgão judicial não tenha admitido o recurso da outra parte, e esta se haja abstido de impugnar o indeferimento, ou o haja impugnado sem êxito; do mesmo modo, caso o recorrente principal tenha desistido. Não é requisito de admissibilidade do recurso adesivo a existência de vínculo substancial entre a matéria nele discutida e a suscitada no recurso principal. Pouco importa que se trate, num e noutro, de capítulos perfeitamente distintos da sentença: por exemplo, do relativo ao pedido originário e do atinente à reconvenção.63 A “sucumbência recíproca” há de caracterizar-se à luz do teor do julgamento considerado em seu conjunto; não exclui a incidência do art. 500 o fato de haver cada uma das partes obtido vitória total neste ou naquele capítulo. Interpretação diversa contraria a ratio legis e reduz a eficácia prática do mecanismo legal. 174. Legitimação para o recurso adesivo - A legitimação ativa compete à parte que, no grau inferior de jurisdição, se contrapunha ao primeiro recorrente; se havia litisconsórcio, é óbvio, a qualquer dos litisconsortes cujo adversário comum interpôs o primeiro recurso. Ressalvada a hipótese de unitariedade do litisconsórcio, caso o recurso principal, interposto pela parte adversa, se enderece a um único (ou a alguns) dos co-autores ou coréus parcialmente vencidos, só esse(s) co-autor(es) ou co-réu(s) se legitima(m) à adesão, que poderá visar apenas à matéria pertinente à situação do(s) recorrido(s) na impugnação principal.64 Analogamente, se um único dos litisconsortes foi derrotado, enquanto os outros obtiveram total vitória, não pode a parte contrária aderir ao recurso daquele para pleitear a reforma da sentença no tocante aos demais.65 O assistente, como parte que é, ao nosso ver, tem legitimação para recorrer adesivamente, tal qual teria para impugnar a decisão por via independente, naquilo em que haja sido desfavorável ao assistido. É claro, todavia, que para o assistente simples prevalecem aqui as mesmas restrições a que está sujeito na interposição de recurso independente (supra, comentário nº 162 ao art. 499). Quanto ao opoente, que litiga contra ambas as partes primitivas, sem dúvida poderá aderir ao recurso manifestado por qualquer delas, caso tenha ocorrido “sucumbência recíproca” em relação àquela que primeiro recorreu; se, porém, a oposição foi rejeitada in totum, não lhe será lícito manifestar adesão ao recurso de algum dos litigantes originários, correndo-lhe o ônus, se quiser impugnar a decisão, de fazê-lo independentemente.66 Não há recurso adesivo de terceiro prejudicado, nem do Ministério Público nos processos onde não ocupava, no momento da decisão, a posição de parte.67 Tampouco se pode aderir a recurso de terceiro prejudicado, nem a recurso interposto pelo Ministério Público, se este até então não era parte, mas apenas fiscal da lei: o dispositivo fala em terem ficado “vencidos autor e réu” e, a seguir, em adesão da outra parte ao “recurso interposto por qualquer deles”.68 Ao terceiro prejudicado e ao Ministério Público (fora dos casos em

que seja parte) corre sempre o ônus de interpor, no prazo comum, recurso independente. Não podem aguardar o esgotamento do prazo, a fim de resolver se recorrerão ou não. A legitimação passiva toca ao litigante que haja interposto o recurso principal. Esse é que, no adesivo, figurará como recorrido.69 175. Interesse em recorrer adesivamente - O interesse em recorrer adesivamente aferese à luz da função processual do recurso adesivo, que é a de levar à cognição do órgão ad quem matéria ainda não abrangida pelo efeito devolutivo do recurso principal, e que portanto ficaria preclusa em não ocorrendo a adesão. Se o órgão ad quem já poderia conhecer da matéria ao julgar o primeiro recurso, em princípio deve negar-se ao recorrente adesivo o interesse em recorrer, por falta de necessidade. Daí surgem, como é intuitivo, diferenças relevantes entre a adesão à apelação e a adesão ao recurso extraordinário (ou especial), como reflexo da diversidade de amplitude do efeito devolutivo, numa e noutros. Pode acontecer que o recorrido, no recurso extraordinário (ou especial), tenha necessidade de aderir para ensejar ao órgão ad quem a apreciação de determinada questão, e em hipótese análoga o apelado não tenha igual necessidade, por já estar devolvido ao tribunal o exame da questão, mercê da apelação interposta pela outra parte (vide art. 515, §§ 1º e 2º, e os comentários pertinentes, bem como, supra, o de nº 168 ao art. 499): o caso será, então, de inadmissibilidade (e, pois, de não conhecimento) do recurso adesivo, por falta de interesse. Parcialmente vencida que seja a Fazenda Pública em primeiro grau de jurisdição, é fora de dúvida que essa parte da sentença se submete obrigatoriamente, com recurso ou sem ele, à revisão pelo tribunal (art. 475, nºs II e III). Apesar disso, se se omitira no prazo comum (dobrado: art. 188), tem a Fazenda interesse em aderir à apelação do seu contendor, pois só assim lhe será lícito oferecer razões (e sustentá-las oralmente: art. 554), para influir no convencimento do órgão ad quem, com relação à parte cuja reforma lhe aproveite.70 É claro que o recurso adesivo da Fazenda Pública, como o de qualquer litigante, caducará se o recurso principal desaparecer ou não for conhecido - o que não dispensará o tribunal de reexaminar, ex vi legis, o(s) capítulo(s) a ela adverso(s). No que respeita à utilidade do “recurso adesivo”, valem as considerações feitas, em termos genéricos, no comentário nº 167 ao art. 499, supra. Convém esclarecer que a “adesão” não se torna inadmissível só por ser pequena a relevância do proveito ainda suscetível de obtenção, por parte do recorrente “adesivo”: o recurso deste pode até visar capítulo acessório da decisão - referir-se, por exemplo, unicamente às custas e/ou honorários de advogado.71 Afigura-se desarrazoado supor inexistente, aí, o requisito da “sucumbência”: corretamente entendido (vide, supra, o comentário nº 167), ele é exigível também para o recurso independente; ora, ninguém nega que se possa recorrer independentemente com o fito exclusivo de ver majorada a verba honorária. 176. Prazo de interposição do recurso adesivo - O prazo para a interposição do recurso adesivo é “o de que a parte dispõe para responder”; isto é, 15 dias (art. 508). Não se exige que a petição de adesão e a resposta ao recurso principal sejam apresentadas simultaneamente: basta que ambas o sejam na quinzena.

Noutros ordenamentos, costuma-se distinguir entre a hipótese de interposição no prazo comum e a de interposição fora dele: assim, por exemplo, no direito italiano, a impugnazione incidentale pode ser tempestiva ou tardiva,72 conforme seja interposta antes de esgotado o prazo do recurso principal, ou após o respectivo dies ad quem (Codice di procedura civile, art. 334); distinção análoga existe no direito alemão, segundo o mesmo critério, entre a modalidade autônoma (ZPO, § 522, 2ª alínea) e a modalidade dependente da Anschliessung (adesão).73 A diferença tem, lá, efeitos práticos: quem adere dentro do prazo em que poderia ter interposto recurso independente não fica subordinado - ao contrário do que se dá no caso oposto - à sorte do recorrente principal. No sistema brasileiro, tem-se negado a possibilidade de considerar adesivo o recurso interposto por qualquer das partes no prazo comum, quer já antes haja recorrido a outra parte, quer não.74 A razão pela qual, alhures, se fala de “incidentalidade” ou de “adesão”, com referência às hipóteses acima indicadas, é de ordem puramente formal e relaciona-se com a circunstância de que a segunda impugnação se insere no mesmo procedimento instaurado em virtude da primeira. Entre nós, porém, como oportunamente se assinalou, nenhuma peculiaridade ocorre a tal respeito, visto que quaisquer recursos vêm sempre aos autos do processo perante o próprio órgão a quo. Daí se tiraria que só há recurso adesivo quando a interposição se der no prazo especial do art. 500, nº I: esse, até, o traço específico do recurso adesivo, como figura procedimental.75 Não obstante, inclinamo-nos a admitir que algum dos litigantes, no caso de “sucumbência recíproca”, recorrendo embora dentro do prazo comum (mas depois da interposição de recurso pelo adversário!), possa dar à sua impugnação, se quiser, o caráter de adesiva para o que terá de declará-lo em termos expressos: no silêncio do recorrente, presume-se a independência do recurso interposto no prazo comum. De qualquer modo, porém, a disciplina será a mesma: o recorrente adesivo que se antecipe ao prazo especial do art. 500, nº I, não desfrutará só por isso de vantagem alguma. Quer manifestado no prazo especial, quer no comum, sempre se subordinará o recurso adesivo à sorte do principal, no sentido que se explicará no comentário nº 178, infra. Inexiste, no direito pátrio, modalidade autônoma de adesão. As regras comuns sobre prazos, referentes à contagem e à prorrogação, incidem quanto ao de interposição do recurso adesivo. No que diz respeito à suspensão e à interrupção, o regime é o que será oportunamente exposto para os prazos recursais em geral (vide, infra, os comentários nºs 200 e segs. ao art. 507). Se houver litisconsórcio, e mais de um dentre os co-litigantes “vencidos” tiver deixado de recorrer por via independente, no prazo normal, sendo diferentes os procuradores, contar-se-á em dobro o prazo para a interposição de recurso adesivo por qualquer deles (art. 191). Também se contará em dobro (art. 188) o prazo para interposição de recurso adesivo pela Fazenda Pública76 (com a conseqüente não-coincidência entre esse e o prazo que ela tem - sem duplicação para responder ao recurso principal), ou, quando parte, pelo Ministério Público, que só em tal hipótese, aliás, pode aderir (cf., supra, o comentário nº 174).

No caso de que trata o art. 500, impugnada a decisão, no prazo normal, por um único dos litigantes, nem por isso transita em julgado, desde logo, a parte que lhe tenha sido favorável. O trânsito em julgado somente ocorrerá no termo final do prazo de que disponha o adversário para recorrer adesivamente77 a menos, é claro, que nesse ínterim algum fato haja tornado inadmissível o recurso adesivo: v.g., a aceitação da decisão, na parte referida, por quem se legitimaria a aderir. Frise-se que a ninguém é dado invocar o prazo especial do art. 500, nº I, apenas para contornar o obstáculo porventura surgido com o esgotamento do prazo normal de interposição: não é recurso adesivo, nem se pode receber como tal, o recurso daquele que pura e simplesmente perdeu a oportunidade de recorrer. Se houve, porém, “sucumbência recíproca”, e uma das partes só vem a impugnar a decisão na quinzena de que dispõe para responder, não basta para tornar inadmissível o seu recurso o mero fato de nele se omitir a declaração de que se está aderindo ao do contendor, manifestado no prazo normal.78 Ainda na hipótese de o segundo recorrente, por erro ou inadvertência, qualificar de “independente” a sua impugnação, parece-nos que o juiz deve recebê-la como adesiva, desde que concorram todos os pressupostos de admissibilidade. 177. Procedimento no recurso adesivo - Interpõe-se o recurso adesivo perante a própria “autoridade judiciária competente para admitir o recurso principal” (art. 500, nº I): o juízo de primeiro grau (art. 514), o relator do acórdão embargado (art. 531, na redação da Lei nº 8.950) ou o presidente (ou vice-presidente) do tribunal (art. 541, caput, na redação da mesma lei), conforme se trate, respectivamente, de apelação, de embargos infringentes ou de recurso extraordinário (ou especial). Devem observar-se as exigências legais relativas à forma de interposição do recurso independente da mesma espécie: assim, quanto à apelação adesiva, incidem as disposições do art. 514, e quanto ao recurso extraordinário ou especial adesivo, as do art. 541. Vários acórdãos têm entendido que não é possível conhecer, como apelação adesiva, do pedido de reforma da parte da sentença desfavorável ao apelado, que este formule na mesma peça onde apresenta sua resposta ao recurso do adversário.79 Ao nosso ver, desde que aí se contenham todos os elementos indispensáveis a uma petição de interposição de recurso adesivo, será excesso de formalismo reclamar peça separada. Ao órgão perante o qual se interpõe o recurso adesivo competem, em relação a este, atribuições idênticas às que lhe competiriam no tocante ao recurso independente. Não lhe incumbe verificar se o recurso adesivo é fundado ou infundado, senão proceder ao controle da respectiva admissibilidade, indeferindo-o se faltar algum requisito. Contra esse indeferimento caberá o recurso que se poderia interpor contra o indeferimento do recurso independente. Recebido que seja o recurso adesivo, seguem-se os mesmos trâmites previstos na lei para o processamento do recurso independente. Ocorrendo deserção, o incidente se regerá pelas normas aplicáveis à deserção do recurso independente. Remetidos os autos ao órgão ad quem, neles estarão insertos o recurso principal e o adesivo. O procedimento no tribunal superior, naturalmente, é uno, correndo como se houvesse dois recursos independentes contra a mesma decisão, com as partes em

posições inversas. Nenhuma peculiaridade procedimental resulta da natureza adesiva de um dos recursos. Incidem as disposições pertinentes do Capítulo VII deste Título (“Da ordem dos processos no tribunal”), complementadas pelas constantes dos regimentos internos. 178. Subordinação do recurso adesivo ao principal - O “recurso adesivo”, reza o inciso III, “não será conhecido, se houver desistência do recurso principal, ou se for ele declarado inadmissível ou deserto”. Explica-se a norma pelo simples fato de que o recorrido só impugnou, por sua vez, a decisão, em virtude de tê-la impugnado a parte contrária.80 O pedido de novo julgamento, pelo recorrente adesivo, fica, pois, sujeito à condição legal de que o órgão ad quem venha efetivamente a julgar (de meritis) o recurso principal; em tal sentido, subordina-se a este. Trata-se de característica constante e comum a quaisquer recursos adesivos: a regra não comporta exceção alguma. É estranha ao sistema brasileiro - que provavelmente tomou aqui por modelo o direito português81 - a distinção entre um tipo “autônomo” e um tipo “dependente” de adesão, como a que existe na Anschliessung tedesca e na impugnazione incidentale italiana. Em nosso ordenamento, todo recurso adesivo é, nos termos expostos, subordinado ao principal (cf. supra, o comentário nº 176). Se o recorrente principal já tiver desistido do recurso, antes que o recorrido manifeste a sua adesão, o próprio órgão perante o qual se dê a interposição deve indeferir o recurso adesivo, pois este, como se observou, pressupõe um recurso principal subsistente (cf., supra, o comentário nº 173). Manifestada depois a desistência, perante o órgão a quo ou o tribunal superior, pela parte que impugnara independentemente a decisão, em virtude dela cessará também o recurso adesivo.82 Se, ao apreciar o recurso principal, o órgão ad quem dele não conhecer, por verificar a ocorrência de deserção ou de qualquer outra causa de inadmissibilidade (originária ou superveniente), tampouco se conhecerá do “recurso adesivo”. Advirta-se, porém: aqui se está pressupondo corretamente empregada a expressão “não conhecimento”; se o caso, na verdade, é de desprovimento do recurso principal, cujo mérito se apreciou, ainda que com uso inadequado daquela outra expressão, de jeito nenhum fica afastada, só por isso, a possibilidade de conhecer-se do adesivo (vide, infra, o comentário nº 179 e também os de nºs 333, quanto ao recurso extraordinário, e 336, no tocante ao especial). Nada do que se acaba de dizer significa que os órgãos judiciais fiquem dispensados de averiguar a existência dos requisitos de admissibilidade próprios do recurso adesivo. Pode acontecer, é claro, que o recurso adesivo seja indeferido, ou que dele não se conheça, por alguma razão a ele mesmo peculiar, conquanto admissível o principal. O inverso é que jamais sucederá: a inadmissibilidade do recurso principal acarreta sempre a do adesivo, embora a recíproca não seja verdadeira. Analogamente, se é certo que a desistência do recurso principal extingue o adesivo, a desistência deste nenhuma repercussão terá no processamento daquele.83 179. Julgamento no tribunal superior - Ao julgamento do recurso adesivo no tribunal superior aplicam-se as normas relativas ao recurso independente da mesma espécie.

Julgam-se numa única sessão o recurso principal e o adesivo; a este, naturalmente, só se passa caso se tenha conhecido do primeiro, sendo contudo irrelevante o modo por que o tribunal se haja pronunciado, de meritis, a seu respeito - salvo na hipótese de anular-se a decisão recorrida, quando então tudo volta ao estado anterior.84 É de suma importância que se observe a boa técnica no distinguir entre nãoconhecimento e desprovimento do recurso principal. O fato de negar-se provimento ao recurso principal não exclui que se possa conhecer do adesivo, desde que satisfeitos os respectivos requisitos de admissibilidade. Se o órgão ad quem disser que não conhece do recurso principal, quando devia dizer que lhe negava provimento - como fez o Supremo Tribunal Federal em relação a muitos recursos extraordinários (e agora tem feito o Superior Tribunal de Justiça com referência a outros tantos recursos especiais) interpostos sob invocação de contrariedade a norma jurídica federal - e, por isso, deixar de conhecer do recurso adesivo, estará violando a lei e cometendo injustiça contra o recorrente adesivo, que tinha o direito, em casos tais, de ver julgado o seu recurso.85 Problema interessante é o relativo à ordem que se há de observar no julgamento, quando a matéria suscitada no recurso adesivo seja prévia, do ponto de vista lógico, à do recurso principal. Por exemplo: no julgamento da apelação, rejeitou-se a preliminar de nulidade processual, levantada pelo réu, e depois declarou-se improcedente o pedido do autor. É possível que, tanto num ponto como noutro, se componham os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário (ou do especial). O réu, porém, vitorioso que foi na questão principal, não tem porque interpor, no prazo comum, recurso extraordinário (ou especial) independente. Todavia, se o autor recorre, como o seu recurso apenas devolve ao tribunal superior o conhecimento da questão principal, surge para o réu o interesse em recorrer adesivamente: se não o fizer, o órgão ad quem não poderá examinar a preliminar de nulidade (por hipótese, não decretável de ofício), e há o perigo de que, na matéria principal, decida favoravelmente ao autor. Suponhamos que o réu, para conjurar esse risco, interponha recurso extraordinário (ou especial) adesivo. Assim, toda a matéria devolve-se à cognição do Supremo Tribunal Federal (ou do Superior Tribunal de Justiça), restando saber qual das questões deverá ser enfrentada primeiro - ou, o que é o mesmo, qual dos recursos terá prioridade no julgamento. Concebem-se duas soluções. Uma delas parte da premissa - explítica ou implicíta - de que a ordem lógica do exame das questões não comporta inversão em hipótese alguma: no exemplo figurado, antes de mais nada, será preciso verificar se ocorre ou não a nulidade, e só depois, caso repelida a preliminar, é que se chegará à apreciação do meritum causae. Significa isso que o recurso adesivo será julgado, de meritis, em primeiro lugar; mas, como ainda aí o respectivo conhecimento pressupõe que se possa conhecer do outro, cumprirá ao tribunal, de início, apurar se o recurso principal deve ser conhecido, quer dizer, se ele é admissível.86 Sendo negativa a conclusão, nenhum dos dois recursos será julgado no mérito; sendo positiva, passará o tribunal a examinar o recurso adesivo e, se este for também admissível, julgá-lo-á de meritis. Então, acolhida porventura a preliminar de nulidade, ficará prejudicado o recurso principal; rejeitada que seja a preliminar, o recurso principal será julgado livremente no mérito.

Tal solução pode revelar-se desvantajosa para o recorrente adesivo. É claro que melhor lhe consulta o interesse a “confirmação”, pelo Supremo Tribunal Federal (ou pelo Superior Tribunal de Justiça), da decisão que declarou improcedente o pedido. Semelhante desenlace coloca-o, com efeito, sob a proteção da coisa julgada material, que não se formará se o tribunal se limitar à anulação do processo. Supondo-se, por conseguinte, que o recurso principal não tenha fundamento, será preferível, para o recorrente adesivo, que o seu próprio recurso não chegue a ser julgado! Daí a conveniência, que surge para ele, de inverter-se a ordem do julgamento, só se passando ao exame da matéria veiculada no recurso adesivo na hipótese de verificar-se que a outra parte tem razão no que tange à matéria do recurso principal; do contrário, simplesmente se negará provimento a este, “confirmando-se” a decisão de improcedência do pedido, sem tocar no recurso adesivo. Com base nesse raciocínio é que em mais de um país, ainda que não sem resistência, se tem admitido um recurso adesivo condicionado, isto é, interposto ad cautelam, para ser julgado unicamente no caso de convencer-se o órgão ad quem da procedência do recurso principal.87 Em chegando a tal conclusão, o tribunal, em vez de dar provimento, incontinenti, ao recurso principal, voltaria os olhos para o adesivo, e só tornaria àquele se desprovido este. Semelhante modo de proceder asseguraria ao recorrido, no exemplo em foco, a possibilidade de manter a vitória conquistada, na instância inferior, quanto à matéria principal, a despeito de haver também ele impugnado a decisão, adesivamente, para insistir na preliminar de nulidade. Entre as objeções que se têm erguido à admissibilidade da “adesão condicionada”, ressalta a que se inspira no princípio segundo o qual os atos processuais não podem ser praticados sob condição, em detrimento da certeza e da segurança na marcha do processo. Todavia, os autores que mais detidamente estudam o problema concluem que as condições incompatíveis com os atos processuais são apenas as referentes a acontecimentos externos ao próprio processo.88 Aliás, a regra do art. 289, que consagra expressamente a chamada “cumulação eventual” de pedidos, mostra que o sistema pátrio não é infenso à possibilidade de subordinar-se um ato de parte a condição intraprocessual. Cabe assinalar, enfim, que não falta quem repute supérflua a declaração, pelo recorrente adesivo, nas hipóteses acima indicadas, de que condiciona o julgamento do seu recurso à verificação da procedência do principal: a interposição do recurso adesivo, em si mesma, estaria aí naturalmente sujeita a uma “condição necessária”, e portanto sempre subentendida.89 Art. 501. O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso. Direito anterior - Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, Parte III, art. 694; Código de Minas Gerais, art. 1.460; de Pernambuco, art. 1.432; do Distrito Federal, art. 1.119; do Estado do Rio de Janeiro, art. 2.298; Código de Processo Civil de 1939, art. 818. Direito comparado - Alemanha: ZPO, § 515; Áustria: ZPO, § 484; Bolívia: Código de Procedimiento Civil, art. 307; Costa Rica: Código Procesal Civil, arts. 208 e segs.; Cuba, Ley de Procedimiento Civil,

Administrativo y Laboral, art. 609; Equador: Código de Procedimiento Civil, art. 402; Espanha: Ley de Enjuiciamiento Civil, art. 450; Filipinas: Rules of Court, R. 41, Seção 22, e R. 50, Seção 4; França: Code de procédure civile, arts. 400 e segs.; Japão: Código de Processo Civil, art. 292; Panamá: Código Judicial, art. 1.167; Portugal: Código de Processo Civil, art. 681, 5ª alínea; Suécia: Código processual, Cap. 50, Secção 25, 1ª parte. COMENTÁRIO 180. Desistência do recurso: generalidades - Chama-se desistência do recurso ao ato pelo qual o recorrente manifesta ao órgão judicial a vontade de que não seja julgado, e portanto não continue a ser processado, o recurso que interpusera. Vale pela revogação da interposição. Pode ser total ou parcial, desde que divisível a matéria objeto da impugnação: assim, por exemplo, o autor que pedira x + y e, nada obtendo no grau inferior de jurisdição, recorrera quanto a ambas as parcelas, é livre de desistir do recurso no tocante à soma, ou só a x, ou só a y. Não se confunde a desistência com a renúncia ao recurso: aquela pressupõe recurso já interposto; nesta, ao contrário, o renunciante abre mão previamente do seu direito de impugnar a decisão.90 Tampouco se confunde com a aquiescência à própria decisão, que é a manifestação, pelo vencido, antes ou depois da interposição do recurso, da vontade de conformar-se com o julgado. Distingue-se ainda da desistência a figura da deserção, que consiste no fato de tornar-se inadmissível o recurso pela omissão do recorrente em proceder ao respectivo preparo no prazo devido; não seria próprio falar aqui em “desistência tácita”: a deserção é pura conseqüência objetiva da falta de preparo oportuno, prescindindo de qualquer indagação sobre a vontade do recorrente, que tanto pode haver-se omitido intencionalmente como por mera negligência ou descuido.91 Os efeitos também são diferentes: a renúncia, a aquiescência e a deserção fazem inadmissível o recurso; a desistência torna-o inexistente, sem que caiba indagar se ele era ou não admissível. 181. Requisitos da desistência - A desistência pode ocorrer “a qualquer tempo”, ou seja, desde a interposição do recurso até o instante imediatamente anterior ao julgamento. É indiferente, pois, que aquele já tenha sido ou não recebido, que se encontre ainda pendente no juízo a quo ou que já tenha subido ao tribunal superior. Em regra, a desistência manifesta-se através de petição escrita, dirigida, conforme o caso, ao órgão perante o qual se interpôs o recurso, ou ao relator no tribunal. Pode-se, entretanto, desistir oralmente, na própria sessão de julgamento (antes de iniciada a votação!): a lei não impõe forma especial (cf. o art. 154). É desnecessária a lavratura de termo, como já era no regime do Código de 1939 (art. 16). Hipótese de desistência tácita é a prevista no art. 523, § 1º, na redação da Lei nº 9.139 (vide o comentário nº 274 a esse dispositivo).

A desistência não comporta condição nem termo, e independe da anuência do recorrido, que não se precisa ouvir a respeito. Aplica-se a regra, inclusive, ao recurso principal, embora a desistência em relação a este faça caducar o recurso adesivo. O diploma de 1973, como o anterior, dá à desistência do recurso tratamento diverso do adotado para a desistência da ação, que, depois do prazo para a resposta, se condiciona ao consentimento do réu (art. 267, § 4º). Justifica-se tal diversidade: no procedimento de primeiro grau, o réu pode ter interesse próprio na emissão da sentença de mérito, preferindo ver logo julgada a lide, para furtar-se aos incômodos que decorreriam de eventuais reproposituras da demanda, e pôr fim ao estado de incerteza conseqüente à instauração do processo sem julgamento de meritis. Aqui, porém, já existe uma decisão, que a desistência do recurso normalmente fará prevalecer em definitivo, sem que disso, em princípio, advenha qualquer prejuízo para a outra parte.92 Nem sequer o recorrente adesivo pode dizer-se prejudicado pela desistência do recorrente principal: na verdade, aquele só terá impugnado a decisão porque este o fizera; se quisesse obter novo julgamento sob quaisquer circunstâncias, caber-lhe-ia o ônus de interpor, no prazo normal, recurso independente.93 Não raro, aliás, a parte que recorre adesivamente, na prática, menos pretenderá conseguir na verdade o plus que pleiteia do órgão ad quem do que simplesmente exercer sobre o adversário pressão psicológica no sentido de que desista do recurso principal: essa é que será, no fundo, a real finalidade colimada pela adesão,94 de sorte que tal desistência se apresenta aos olhos do recorrente adesivo como resultado plenamente satisfatório. Não vale a desistência manifestada por procurador sem poder especial (arg. ex art. 38, que alude, in genere, a “desistir”). No que concerne à Fazenda Pública, regra de direito administrativo pode e costuma subordinar a manifestação da desistência pelo procurador à prévia autorização do chefe do Poder Executivo, ou de alguma autoridade à qual se delegue competência para tanto. Relativamente ao Ministério Público, inexiste na lei processual civil norma correspondente à inscrita no art. 576 do Código de Processo Penal, que o proíbe de desistir do recurso interposto. 182. Efeitos da desistência - Validamente manifestada, a desistência parcial restringe o objeto do recurso, preexcluindo a cognição do órgão ad quem no tocante à(s) parte(s) de que se desistiu; a total produz a extinção do procedimento recursal, independentemente de termo e de quaisquer outras formalidades. Ao contrário do diploma de 1939, que continha exigência expressa a respeito no art. 16, onde se falava, em termos genéricos, de “desistências”, o Código vigente dá a entender que a desistência do recurso não precisa sequer ser homologada:95 com efeito, o art. 158, caput, dispõe que “os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”, e o parágrafo único abre exceção à regra apenas para a desistência da ação, que, esta, “só produzirá efeito depois de homologada por sentença”. O órgão judicial, tomando conhecimento da desistência do recurso e verificando-lhe a regularidade, simplesmente declarará extinto o procedimento recursal, podendo acontecer, no entanto, que o feito haja de prosseguir em razão da existência de outro recurso contra a mesma decisão, ou por ser interlocutória aquela de que se tinha recorrido.

A desnecessidade da homologação não significa exclusão de toda e qualquer atuação do juiz (ou do tribunal). É óbvio que este há de conhecer do ato e exercer sobre ele o normal controle sobre os atos processuais em geral.96 A diferença em relação às hipóteses de ato dependente de homologação reside em que, nestas, o pronunciamento judicial tem natureza constitutiva, acrescenta algo de novo, e é ele que desencadeia a produção dos efeitos, ao passo que, aqui, toda a eficácia remonta à desistência, cabendo tão-só ao juiz ou ao tribunal apurar se a manifestação de vontade foi regular e - através de pronunciamento meramente declaratório - certificar os efeitos já operados. Importa determinar o efeito da desistência sobre a decisão recorrida. Na Alemanha, outrora, era controversa a questão: parte da doutrina entendia que, não estando preclusa por outro motivo (notadamente, decurso do prazo de interposição) a via recursal, conservava o desistente a possibilidade de recorrer de novo; mas havia quem sustentasse o contrário. A redação do § 515, 3ª alínea, da ZPO, foi, entretanto, modificada, e o texto atual refere-se unicamente à perda do recurso interposto (“des eingelegten Rechtsmittels”); daí haver-se generalizado entre os alemães o primeiro entendimento97 - o que significa que, por si só, a desistência não basta para fazer transitar em julgado a decisão de que se recorrera. Já na Áustria domina a tese oposta.98 Entre nós, o Código de 1973 silencia sobre o ponto. Ao nosso ver, deve entender-se em princípio que com a desistência do recurso, validamente manifestada, passa em julgado a decisão recorrida, desde que o único obstáculo erguido ao trânsito em julgado fosse a interposição de recurso pelo desistente. Não nos parece que fique salva a este a possibilidade de recorrer novamente, ainda que o prazo não se haja esgotado. Isso não importa desconhecer a diferença conceptual entre desistência e renúncia ao direito de recorrer. Focalizamos o problema a outro ângulo: o da preclusão. O recorrente já tinha exercido, de maneira válida, o direito de impugnar a decisão; com o exercício, tal direito consumou-se, e não é a circunstância de vir a desistir-se do recurso que o faz renascer.99 A decisão é agora, pois, irrecorrível; e por outro lado cessaram, em virtude da desistência, os efeitos da interposição do recurso, entre os quais o de impedir o trânsito em julgado.100 Sendo parcial a impugnação ou a desistência, com esta passa em julgado a decisão na parte de que se recorrera, ou na de que se desiste. Exame em separado merece a hipótese de “sucumbência recíproca”, em relação à qual cabe indagar se a parte que interpusera recurso independente, no prazo normal, e dele desistira ainda perante o órgão a quo, mas vem a ser depois intimada da interposição pelo adversário, pode ou não renovar, adesivamente, a sua impugnação. Na Alemanha, a doutrina e a jurisprudência têm dado resposta afirmativa a tal pergunta,101 conquanto se possa relacionar semelhante atitude com a premissa, extraída do texto legal em vigor, de que só o recurso de que se desiste é atingido pela desistência. Não obstante, mesmo no direito brasileiro, e sem prejuízo do que acima ficou dito sobre a preclusão resultante da interposição do primeiro recurso, continuamos a pensar, a despeito dos argumentos em contrário,102 que é admissível, no caso, a impugnação adesiva. O efeito preclusivo cede, aí, diante da regra especial do art. 500, caput, 2ª parte, que, sem restrição de espécie alguma, reabre ao litigante parcialmente vencido a possibilidade de impugnar por sua vez

a decisão, em verificando que dela recorrera o adversário.103 Na hipótese figurada, como sempre ocorre, a impugnação adesiva naturalmente se subordinará ao recurso principal, interposto pela outra parte. Outro problema interessante é o do efeito que se há de reconhecer à desistência de um (ou alguns) dos recorrentes, no caso de litisconsórcio. A questão reveste fisionomia peculiar em se tratando de litisconsórcio unitário; dela se cuidará no item subseqüente (nº 183). O desistente equipara-se ao vencido para o fim de suportar as despesas do recurso. Ao respectivo pagamento deve condená-lo o órgão perante o qual se manifestou a desistência (arg. ex art. 20 § 1º). Efeito peculiar à desistência do recurso principal, como já se expôs, é o de tornar insubsistente o recurso adesivo (vide, supra, o comentário nº 178 ao art. 500). O ordenamento português, nessa hipótese, atribui em termos expressos ao recorrente principal, que desiste, a responsabilidade por todas as custas, inclusive as do recurso subordinado (Código de Processo Civil, art. 682, 3ª alínea, fine). A despeito de valiosas opiniões em contrário,104 julgamos inaplicável tal solução, de lege lata, entre nós. A ela se opõe, em primeiro lugar, a norma do art. 19, caput, consoante a qual “cabe às partes” (isto é, a cada uma delas) “prover as despesas dos atos que realizam (...) no processo”; ao recorrente adesivo pois, tocam as custas do seu recurso.105 Ademais, se o recorrente principal, para desistir, tiver de suportar esse plus de responsabilidade, menos atraente lhe parecerá o caminho da desistência, e com isso a adesão do adversário muito perderá da força persuasiva capaz de provocá-la.106 Produz os mesmos efeitos da desistência o não-cumprimento da sentença que, em processo cautelar incidente, na pendência de recurso interposto no processo principal, houver julgado procedente o pedido de reforço de caução, formulado pela parte contrária (isto é, pelo recorrido no feito principal). É o que deflui do disposto no art. 838, fine, onde, sem necessidade, se valeu o legislador do antiquado expediente da presunção (“...presumindo-se que o autor tenha desistido da ação ou o recorrente desistido do recurso”). O que há, na realidade, é simples equiparação de efeitos, nada mais: a omissão do recorrente em reforçar a caução, dentro do prazo assinado pelo juiz, acarreta-lhe conseqüências iguais às que sobreviriam se ele desistisse do recurso pendente contra decisão proferida no processo principal. No texto, aliás, menos se vê presunção que ficção.107 183. Desistência do recurso e litisconsórcio - O dispositivo sob exame autoriza o recorrente a desistir do recurso sem a anuência dos litisconsortes. Pressupõe-se, naturalmente, que tenha ocorrido a chamada “sucumbência paralela”, e que dois ou mais dos co-litigantes vencidos hajam impugnado a decisão. Para o desistente, sobrevém o trânsito em julgado; para o(s) outro(s) recorrente(s), contudo, ex vi do art. 48, fine, subsiste a possibilidade de novo julgamento no órgão ad quem, cujo teor talvez não coincida com o da decisão impugnada. Abre-se, pois, o risco da quebra de uniformidade na solução do litígio: em relação a A, que desistiu, a disciplina da situação litigiosa será a

fixada pelo órgão a quo; em relação a B e C, que não desistiram, será a que se vier a fixar no julgamento do recurso. Semelhante resultado não é concebível, todavia, em se tratando de litisconsórcio unitário, isto é, quando a situação litigiosa for tal que reclame necessariamente disciplina uniforme para todos os co-litigantes. O exemplo clássico é o dos vários acionistas que pedem juntos, pelo mesmo fundamento, a anulação de uma deliberação da assembléia social, v.g. sobre a reforma dos estatutos da sociedade. Suponhamos que, rejeitado o pedido no primeiro grau de jurisdição, os autores apelem, mas um deles posteriormente desista do recurso. Caso se venha a dar provimento às demais apelações, a deliberação será anulada; ora, é inadmissível que ela subsista só para o desistente, sob pena de consagrar-se absurdo não apenas lógico, mas prático: o ato de reforma dos estatutos não pode simultaneamente valer para um acionista e não valer para os outros. A única solução consiste em negar à desistência, nessas hipóteses, o efeito normal de produzir o trânsito em julgado para o desistente. Em outras palavras: se o teor da decisão impugnada tem de ser igual para os vários litisconsortes, a desistência do recurso não a faz passar em julgado a não ser que todos os litisconsortes recorrentes desistam.108 Caso desista um só, ou desistam alguns, essa desistência surte efeitos unicamente no que concerne à responsabilidade pelas custas processuais e pelos honorários do advogado da parte contrária: confirmada a decisão do órgão a quo, ao(s) desistente(s) caberá parcela menor nas condenações acessórias, que em relação a ele(s) devem ser reduzidas em quantum proporcional ao que ocorreu após a sua manifestação. No mais, o(s) desistente(s) conserva(m) a posição de parte(s) e fica(m) sujeito(s) ao julgamento que venha a proferir o órgão ad quem. Se nem todos os litisconsortes unitários houverem recorrido, será plenamente eficaz a desistência do único recorrente, ou de todos os recorrentes, caso haja mais de um. Conforme se mostrará no comentário nº 214 do art. 509, a interposição produziu efeitos também para o(s) omisso(s); mas tais efeitos cessam desde que cesse a causa. Ao(s) que se tenha(m) abstido de recorrer não é lícito insistir em que o procedimento recursal prossiga; sua anuência é desnecessária para que o(s) recorrente(s) desista(m) eficazmente. Manifestada por este(s) a desistência, a decisão recorrida transita em julgado (só então!) para todos. Basta, no entanto, que um só dos recorrentes se abstenha de desistir, para tornar diverso o tratamento da questão. Se um dos litisconsortes unitários interpôs recurso antes que o fizesse qualquer dos outros, e em seguida desistiu, sendo ainda recorrível a sentença por algum dos restantes, o recurso que este porventura tempestivamente interponha produz efeitos inclusive para o que haja desistido do seu. Caso, ao contrário, nenhum outro recurso seja interposto, a decisão transitará em julgado com relação ao desistente no mesmo momento em que transitar em julgado quanto ao último dos co-litigantes que poderia recorrer. Desde esse instante, e só a partir dele, haverá coisa julgada para todos os litisconsortes. Analogamente ao que acima se expôs, a desistência do recurso interposto em face dos colitigantes pelo adversário, na hipótese de este unicamente desistir quanto a uma parte dos

recorridos, produzirá todos os efeitos normais se se tratar de matéria que comporte diversidade de soluções: para os litisconsortes perante os quais se desistiu, passa em julgado a decisão de grau inferior; para o(s) outro(s), a solução será a que se contiver no pronunciamento do órgão ad quem. Se, porém, for indispensável a preservação da uniformidade, a desistência do recurso interposto pelo adversário não produzirá o trânsito em julgado da decisão recorrida, senão quando manifestada em relação à totalidade dos litisconsortes unitários.109 Art. 502. A renúncia ao direito de recorrer independe da aceitação da outra parte. Direito anterior - Código de Minas Gerais, art. 1.458. Direito comparado - Alemanha: ZPO, §§ 515 e 565; Áustria: ZPO, § 472; França: Code de procédure civile, arts. 556 a 558; Japão: Código de Processo Civil, art. 284; Peru: Código Procesal Civil, art. 361; Portugal: Código de Processo Civil, art. 681, 1ª alínea; Uruguai: Código General del Proceso, art. 241.2. COMENTÁRIO 184. Renúncia ao direito de recorrer: generalidades - Renúncia ao direito de recorrer é o ato pelo qual uma pessoa manifesta a vontade de não interpor o recurso de que poderia valer-se contra determinada decisão. Já vimos como se distingue da desistência, que pressupõe recurso interposto (cf., supra, o comentário nº 180 ao art. 501), ao passo que a renúncia é prévia à interposição;110 ademais, a renúncia torna inadmissível o recurso, enquanto a desistência o extingue, independentemente de qualquer investigação sobre a respectiva admissibilidade. Tampouco se confunde a renúncia com a aquiescência à decisão, que tem com aquela em comum o serem ambas causas de inadmissibilidade do recurso: na aquiescência, a pessoa que tinha interesse em recorrer assume, diante do julgado, atitude de conformação, de assentimento, de anuência; o trancamento das vias recursais é aspecto secundário e conseqüencial, que pode até não ter sido querido.111 Não se configura como renúncia (tácita) ao direito de recorrer a prática, pela parte, de qualquer ato do qual diretamente resulte, no processo, em verdadeira relação de causa e efeito, a decisão a ela desfavorável: v.g., a desistência da ação, a renúncia ao direito postulado, o reconhecimento do pedido. Em regra, nesses casos, será inadmissível o recurso porventura interposto por aquele que a provocou: seria logicamente contraditório admitir-se a impugnação da decisão por quem tenha agido com o fito de fazê-la surgir. A ninguém é dado usar as vias recursais para perseguir determinado fim, se o obstáculo ao atingimento desse fim, representado pela decisão impugnada, se originou de ato praticado por aquele mesmo que pretende impugná-la; no fundo, trata-se de aspecto particular do princípio que proíbe o venire contra factum proprium, e o impedimento ao recurso, em perspectiva dogmática, subsume-se na figura denominada preclusão lógica, que consiste, como é sabido, na perda de um direito ou de uma faculdade processual pelo fato de se haver realizado atividade incompatível com o respectivo exercício.112 Trata-se aqui, no

entanto, de fatos impeditivos do direito de recorrer; já a renúncia é fato extintivo desse direito.113 185. Requisitos da renúncia - Só se pode renunciar validamente ao direito de recorrer a partir do momento em que ele já seria exercitável in concreto: assim como não se desiste de recurso ainda não interposto, tampouco se renuncia a recurso ainda não interponível. Tal era a communis opinio em nossa doutrina, sob o Código de 1939.114 O anteprojeto BUZAID pretendeu inovar, admitindo, no art. 550, 2ª parte, a “renúncia antecipada”, desde que por “declaração comum de todas as partes”, e assim figurava a norma no art. 508 do projeto, não obstante houvesse a Comissão Revisora sugerido a respectiva modificação, para tornar certo que a renúncia só poderia ser manifestada a posteriori. O Congresso Nacional suprimiu a parte concernente à “renúncia antecipada”, é verdade que sem proibi-la expressamente. Panorama de grandes contrastes oferece, no particular, o direito comparado. Em Portugal, o art. 681, 1ª alínea, fine, admite a renúncia antecipada “se provier de ambas as partes”.115 Assim também o novo código peruano, quanto ao recurso contra a sentença de mérito, desde que se cuide de direito disponível e a renúncia não contrarie “a ordem pública, os bons costumes ou norma imperativa” (art. 361). Na literatura italiana, prevalece a tese da inadmissibilidade.116 Os alemães, ao contrário, reputam válida a renúncia prévia, mediante convenção das partes.117 Na Áustria e na Suíça, a doutrina mostra-se muito dividida,118 enquanto na França, ao disciplinar a renúncia à apelação, o código em vigor exclui somente que ela seja “antérieure à la naissance du litige” (art. 557), admitindo-a, pois, de modo implícito, antes da decisão. Pensamos que deve prevalecer entre nós, na interpretação do dispositivo ora sob exame, a tese tradicional, que nega validade à renúncia prévia.119 Renunciar ao direito de recorrer antes de proferida a decisão é renunciar a um direito que ainda não se tem e, a rigor, nem sequer se sabe se nascerá - o que depende, como é intuitivo, do sentido em que venha a pronunciar-se o órgão judicial. Sem dúvida se pode conceber aí a renúncia, no plano dogmático, à maneira de ato praticado sob condição suspensiva (tácita), cujos efeitos se produzirão caso o renunciante, à vista da decisão, adquira na verdade o direito de recorrer. Tal construção, porém, só se tornaria aceitável se, ao praticar o ato, pudesse o renunciante prever-lhe as eventuais conseqüências com toda a precisão, em ordem a ter noção exata da extensão do seu possível prejuízo; repugna admitir que se renuncie a um (futuro) direito não apenas incerto, senão também indeterminado no conteúdo. Ora, é imprevisível o teor da decisão que o juiz proferirá: basta pensar na hipótese de que, por erro, conceda ele ao adversário do renunciante mais do que pedira. Assim, a possibilidade de renunciar-se validamente apenas surge, ao nosso ver, no instante em que surge a possibilidade de interpor-se o recurso. O termo final é a própria interposição (depois da qual só cabe falar de desistência, não de renúncia), ou a ocorrência de qualquer fato que já torne inadmissível o recurso: esgotamento in albis do prazo para interpô-lo, aquiescência à decisão recorrível etc. Não exige a lei forma especial para a renúncia. Todavia, dadas as características do ato, entende-se que deve constar de petição escrita, dirigida ao órgão perante o qual pende o

feito. Não há necessidade da lavratura de termo, nem de homologação judicial (art. 158).120 Como a desistência do recurso, a renúncia ao direito de recorrer tampouco admite condição ou termo. O texto reza expressamente que ela “independe da aceitação da outra parte”. A justificação da norma descansa sobre os motivos acima expostos, com relação à desistência do recurso (cf. o comentário nº 181 ao art. 501). 186. Efeitos da renúncia - A renúncia validamente manifestada, como fato extintivo do direito de recorrer, torna inadmissível o recurso que porventura interponha o renunciante, apesar dela, contra a decisão. Esta, portanto, desde que não exista outro óbice (v.g., possibilidade de interposição por pessoa diversa, com extensão dos efeitos ao renunciante), transita imediatamente em julgado. Se o renunciante vier a recorrer, o órgão perante o qual se der a interposição deve indeferir o recurso e, caso lhe dê seguimento, dele não conhecerá o tribunal superior. Na hipótese de o recurso a que se renunciou ser o último que se poderia interpor no processo, a renúncia acarreta a extinção deste. Questão interessante é a de saber se a renúncia ao recurso independente, manifestada dentro do prazo normal de interposição, impede o renunciante de recorrer adesivamente. O direito alemão dá resposta negativa (ZPO, §§ 521, 1ª alínea, e 556, 1ª alínea); o português adota igual solução, ressalvando porém o caso de ter havido “declaração expressa em contrário” (art. 682, 4ª alínea, acrescentada na reforma de 1961). Entre nós, no silêncio da lei, parece razoável lançar mão da analogia e aplicar à renúncia o que se estabelece para a aquiescência: ora, quanto a esta, o art. 503, caput, é categórico em recusar a possibilidade de recorrer a quem aceitou, expressa ou tacitamente, a decisão, e não faz distinção alguma, ao propósito, entre recurso independente e recurso adesivo. Todavia, não há obstáculo a que se reconheça como válida a ressalva porventura feita, expressis verbis, pelo renunciante; quem pode renunciar ilimitadamente ao direito de recorrer pode também, é claro, renunciar tão-só ao direito de recorrer por via independente, reservando-se a possibilidade de fazê-lo em caráter adesivo, se a outra parte vier a impugnar a decisão. Não se tratará propriamente de renúncia condicional, mas de renúncia parcial.121 187. Renúncia ao direito de recorrer e litisconsórcio - Assim como não depende da aceitação da parte contrária, tampouco se subordina a renúncia ao consentimento dos litisconsortes do renunciante, que também têm interesse na impugnação da decisão. É claro que o fato de um dos co-litigantes haver renunciado ao seu recurso não influi minimamente na situação dos restantes, cada um dos quais continua a poder recorrer enquanto não sobrevenha, para eles, alguma causa de inadmissibilidade, como o esgotamento do prazo. Quando um litisconsorte renuncia ao recurso e outro recorre, caso se trate de matéria sujeita ao regime comum do litisconsórcio, nenhum problema exsurge se o órgão ad quem dá provimento ao recurso, para reformar a decisão. O resultado será um para o renunciante e outro para o que recorreu. Em se tratando, porém, de matéria que só comporte regulamentação uniforme, essa possibilidade há de ficar preexcluída. Daí a

necessidade de disciplina particular para o litisconsórcio unitário, sujeito ao regime especial. Valem aqui as considerações feitas, a propósito da desistência, no comentário nº 185 ao art. 501. A solução é análoga: em casos tais, a renúncia não faz transitar em julgado a decisão, a não ser quando renunciem todos os litisconsortes. A renúncia de um, ou de alguns, só tem o efeito de exonerar o(s) renunciante(s) da parcela das custas e honorários advocatícios, correspondente à fase do processo posterior à sua manifestação, na hipótese de não lograr êxito o recurso do(s) outro(s). Quanto ao mais, conserva(m) o(s) renunciante(s) a posição de parte(s) e submete(m)-se ao julgamento que venha a proferir o órgão ad quem, sobre o recurso interposto pelo(s) que não haja(m) renunciado.122 Art. 503. A parte, que aceitar expressa ou tacitamente a sentença ou a decisão, não poderá recorrer. Parágrafo único. Considera-se aceitação tácita a prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer. Direito anterior - Ordenações Filipinas, L. III, Tít. LXXIX, § 2º; Consolidação de RIBAS (de 1876), art. 1.529, § 2º; Dec. nº 3.084, de 5.11.1898, Parte III, art. 691; Código de Minas Gerais, art. 1.458; de Pernambuco, art. 1.447; do Distrito Federal, art. 1.110, nº I; do Estado do Rio de Janeiro, art. 2.297, fine. Direito comparado - Bélgica: Code Judiciaire, art. 1.044; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 344, § 1º; França: Code de procédure civile, arts. 409 e 410; Itália: Codice di procedura civile, art. 329; Panamá: Código Judicial, art. 1.162; Portugal: Código de Processo Civil, art. 681, 2ª e 3ª alíneas. COMENTÁRIO 188. Aquiescência ou aceitação: generalidades - Diz-se que alguém aquiesce à decisão quando manifesta a vontade de conformar-se com ela. Já se assinalou oportunamente a distinção entre a aquiescência e a desistência do recurso (vide o comentário nº 180 ao art. 501), bem como entre aquela e a renúncia ao direito de recorrer (vide o comentário nº 184 ao art. 502). Quem aquiesce a uma decisão, repita-se, simplesmente se curva diante do julgado, aceita-o, sem que a sua vontade se volte de modo direto para a abstenção de utilizar os recursos acaso cabíveis.123 A aquiescência pode ser total ou parcial, consoante se refira a todo o conteúdo impugnável da decisão, ou só a uma parte dele. Se o réu, por exemplo, foi condenado a pagar x + y, é livre de conformar-se quanto à soma, ou apenas quanto a uma das parcelas, x ou y, ou mesmo quanto a uma fração de qualquer das duas, ou de ambas.

Pode ainda a aceitação ser expressa ou tácita. Expressa é a que se traduz em manifestação dirigida ao órgão judicial ou ao litigante adverso. Considera-se aquiescência tácita “a prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer” (art. 503, parágrafo único). É tradicional a regra de que a aquiescência tácita se há de inferir de fatos inequívocos (facta concludentia), inconciliáveis com a impugnação da decisão.124 O exemplo clássico, encontradiço em leis antigas,125 é o do condenado a pagar que pede prazo para cumprir a condenação. Acrescenta-se em doutrina, entre outros, o do cumprimento espontâneo de sentença ainda insuscetível de execução forçada.126 189. Requisitos da aquiescência - Do ponto de vista temporal, a aquiescência pode ser manifestada desde o momento em que o órgão judicial se pronuncia127 até aquele em que o julgado comece a produzir efeitos quanto à pessoa que se está considerando. Assim, por exemplo, se a decisão é impugnada mediante recurso sem efeito suspensivo, de modo que já cabe a execução provisória, não se deve entender como aceitação o pagamento feito pelo condenado. É preciso que o ato seja espontâneo para configurar aquiescência. Com essa ressalva, parece-nos que tanto se concebe a aceitação antes como depois de interposto recurso.128 Pelo prisma subjetivo, a redação do art. 503, caput, dá a impressão de que só a parte pode aquiescer a uma decisão. Mas não há por que restringir assim o conceito. É intuitivo que também o terceiro prejudicado pode manifestar conformação com o pronunciamento que o desfavorece, inclusive tacitamente, praticando ato incompatível com a vontade de recorrer. Para ele, as conseqüências de semelhante comportamento devem ser as mesmas que surgiriam para as partes. Se a estas não é dado aceitar a decisão sem perder o direito de recorrer, seria ilógico que, sob iguais circunstâncias, houvesse de conservá-lo o terceiro. A aquiescência expressa manifesta-se, de ordinário, por escrito, mas não é inconcebível que se exteriorize verbalmente - v.g., na própria audiência de instrução e julgamento, logo após a prolação da sentença. Quanto à aquiescência tácita, exige o parágrafo único do dispositivo sob exame que o ato seja praticado “sem reserva alguma”; a cláusula figurava no texto luso de 1939, de onde sem dúvida a mutuou o nosso legislador, mas já não consta, em Portugal, do art. 681, 3ª alínea, suprimida que foi pela reforma de 1961. Quem pratique ato incompatível com a vontade de recorrer, reservando-se contudo a possibilidade de impugnar a decisão, não se considera aquiescente. Pode-se eficazmente aceitar qualquer decisão, interlocutória ou final (“sentença”), de grau inferior ou superior de jurisdição. Não existe, no ordenamento brasileiro, limitação correspondente à da lei italiana, cujo art. 329 nega eficácia à aquiescência no tocante às decisões passíveis de revocazione com fundamento em dolo da parte ou do juiz, falsidade de prova ou descoberta de novos documentos (art. 395, nºs 1, 2, 3 e 6). Vale notar, de passagem, outra imperfeição do texto ora comentado: ao dizer “a sentença ou a decisão”, ou terá sido redundante,129 por mencionar o gênero e uma das espécies, ou empregou “decisão” no sentido restrito de “decisão interlocutória”, e neste caso - além de fazer

falta o adjetivo - ficou incompleta a enumeração, pois objeto da aquiescência também pode ser um acórdão (cf. arts. 162, §§ 1º e 2º, e 163). Pelas mesmas razões expostas a propósito da desistência (supra, comentário nº 181 ao art. 501), a aceitação da decisão independe do assentimento da parte contrária.130 Tampouco há necessidade da lavratura de termo, ou de homologação judicial (art. 158).131 190. Efeitos da aquiescência - A aquiescência é, como a renúncia, fato extintivo do direito de recorrer e torna inadmissível o recurso porventura interposto, antes ou depois dela, pelo aquiescente.132 Inexistindo outro obstáculo, a decisão transita imediatamente em julgado. O recurso que se interponha após a aquiescência deve ser indeferido; do que já pendia quando ela ocorreu não se deve conhecer. O dispositivo sob exame só cuida expressamente da aceitação anterior à impugnação, como ressalta da parte final do caput verbis: “não poderá recorrer”, que nem por isso há de ser interpretada como excludente da alternativa (cf., supra, o comentário nº 189). Não se estabelece distinção alguma entre recurso independente e recurso adesivo, de sorte que não há como abrir exceção para este. Isso apenas se justificaria à vista de disposição expressa, como a do art. 334 do Código italiano, 1ª alínea, fine, ou a do art. 682, 4ª alínea, da lei portuguesa (com a ressalva da cláusula inicial), ou ainda a do Code Judiciaire belga, art. 1.054, 1ª alínea, fine. É evidente que, se for parcial a aceitação, os efeitos apontados unicamente se produzirão no tocante à parte da decisão a que se tiver aquiescido. 191. Aquiescência e litisconsórcio - Aplicam-se à aquiescência, mutatis mutandis, as observações feitas a propósito da desistência do recurso e da renúncia ao direito de recorrer, em tema de litisconsórcio (vide, supra, os comentários nº 183 ao art. 501 e 187 ao art. 502). Se o regime litisconsorcial é o comum, a aceitação da decisão por um ou por alguns dos co-litigantes surte, em relação a ele(s), os efeitos normais, ficando o(s) outro(s) livre(s) de recorrer, caso queira(m). Se a matéria, porém, está sujeita ao regime especial do litisconsórcio unitário, a aquiescência, seja anterior, seja posterior à interposição do recurso, é eficaz apenas no que tange às eventuais condenações acessórias; a decisão não transita em julgado senão em virtude da aquiescência de todos os litisconsortes.133 Art. 504. Dos despachos de mero expediente não cabe recurso. Direito comparado - Portugal: Código de Processo Civil, art. 679. COMENTÁRIO 192. A questão terminológica - Ao esboçarmos, no comentário nº 139, supra, uma classificação dos pronunciamentos judiciais, mostramos que o Código ora fala, simplesmente, em “despachos”, ora em “despachos de expediente” (art. 189, nº II), ora

ainda em “despachos de mero expediente”, como no dispositivo sob exame. Isso se explica pela circunstância de que, em mais de um passo, a denominação de “despacho” se vê aplicada a atos de conteúdo decisório, que não se limitam em absoluto à função de impulsionar o processo; por exemplo: o “despacho saneador” (art. 338, caput), o “despacho” que defere ou indefere a medida liminar nas ações de manutenção e de reintegração de posse (art. 930, parágrafo único). Esses atos, na realidade, têm a natureza de decisões interlocutórias, ajustando-se perfeitamente à definição do art. 162, § 2º; são atos pelos quais, no curso do processo, resolve o órgão judicial questões incidentes. Teor decisório possuem também certos atos peculiares ao procedimento em grau superior de jurisdição, praticados por membro do colégio judicante, aos quais o Código igualmente chamava “despachos”: assim nos arts. 532, caput, 2ª parte (modificado pela Lei nº 8.950), 543, § 1º (revogado pela Lei nº 8.038), e 557 (ao qual deu nova redação a Lei nº 9.139 e, depois, a Lei nº 9.756). Teria sido preferível reservar o termo “despacho” exclusivamente para os atos de puro impulso processual, praticado pelo juiz, v.g., quando abre prazo a qualquer das partes para falar nos autos, ordena a remessa destes ao contador, manda proceder à anotação de reconvenção ou de intervenção de terceiro pelo distribuidor (art. 253, parágrafo único), designa dia, hora e lugar para ouvir a parte ou a testemunha impossibilitada de comparecer à audiência (art. 336, parágrafo único) etc. Se o legislador houvesse mantido inteira coerência com as definições que ele próprio insculpiu no art. 162, não teria sentido a necessidade de recorrer a complementos como “de expediente” ou “de mero expediente”: chamaria “despacho”, tout court, a todo pronunciamento do juiz, sem conteúdo decisório, ao longo do feito.134 Releva notar que a introdução do § 4º no art. 162, pela Lei nº 8.952, reduziu bastante o espaço ocupado pelos atos de que se está tratando: agora, “os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz, quando necessário”. Mas é claro que pode perdurar um resíduo; seria arbitrário afirmar que o art. 504 se esvaziou por completo de interesse prático. 193. Irrecorribilidade dos despachos - Os despachos, propriamente ditos, são irrecorríveis.135 Convém observar, todavia, que, uma vez proferidos, podem dar ensejo ao surgimento de questões incidentes, as quais se terão de resolver, já agora, mediante decisões interlocutórias. Exemplificativamente: o juiz, por despacho, manda juntar aos autos documento apresentado por uma das partes; a outra impugna a juntada e requer o desentranhamento; se o requerimento é indeferido, este novo ato já não constitui despacho, mas decisão interlocutória, impugnável mediante agravo (art. 522). A situações do gênero provavelmente dará lugar a revisão, pelo órgão judicial, de atos do servidor, nos termos do art. 162, § 4º. Quanto aos pronunciamentos decisórios, impropriamente chamados “despachos”, se proferidos no primeiro grau de jurisdição, em princípio, também comportam agravo (art. 522),136 a menos que regra especial disponha diversamente ou a interpretação

sistemática aponte, com toda a clareza, noutro sentido; se em grau superior, serão recorríveis nos casos e pela forma especificamente previstos. Art. 505. A sentença pode ser impugnada no todo ou em parte. Direito anterior - Código do Rio Grande do Sul, art. 1.008; da Bahia, art. 1.237; de Minas Gerais, art. 1.423; de Pernambuco, art. 1.417; do Distrito Federal, art. 1.112; de São Paulo, art. 1.070; do Estado do Rio de Janeiro, art. 2.282; Código de Processo Civil de 1939, art. 811. Direito comparado - Cuba: Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, art. 613; Estado do Vaticano: Codice di procedura civile, art. 340, § 1º; Itália: Codice di procedura civile, art. 329, 2ª alínea; Portugal: Código de Processo Civil, art. 684, 2ª e 3ª alíneas. COMENTÁRIO 194. Recurso total e recurso parcial - O recorrente pode ter interesse em impugnar apenas parcialmente a decisão,137 ou pode tê-lo em impugná-la toda. No segundo caso, porém, é livre de restringir a sua impugnação a uma parte do julgado; bem assim, no primeiro, em reduzi-la a uma fração da parte de que poderia recorrer. O fenômeno é tão concebível no recurso adesivo quanto no independente: se se acolhera o pedido no tocante a duas das quatro parcelas pleiteadas pelo autor, é lícito à parte que deixara de impugnar a sentença aderir à apelação do adversário, fazendo abranger na sua adesão ambas as parcelas ou limitando-a a uma única das duas em que o julgamento lhe fora desfavorável. Nesta matéria, como em relação à propositura da ação, impera o chamado princípio dispositivo: ninguém é obrigado a deduzir em juízo, por inteiro, as pretensões que tenha, nem a insistir naquelas que porventura haja visto repelidas. No Código de 1939, o art. 811, depois de estabelecer regra igual à do dispositivo ora comentado, acrescentava que se presumia total a impugnação, quando o recorrente não especificasse a parte de que recorria. Tinha de entender-se que a presunção abrangia não necessariamente todo o conteúdo da decisão, mas todo o conteúdo impugnável pelo recorrente. Com efeito: o recurso não seria admissível se se referisse a alguma parte em que o recorrente nenhum plus pudesse esperar, em que o novo julgamento em nada lhe pudesse melhorar a situação.138 Logo, se o interesse do recorrente se cingia, digamos, às partes x e y, não se estendendo à parte z, e ele não fazia qualquer especificação, jamais seria lícito concluir que estivesse impugnando as três partes, senão apenas que impugnava as duas primeiras. Como o dispositivo aludia à impugnação total, em casos tais, a doutrina foi levada a constituir os conceitos de “recurso total” e de “recurso parcial” em função dessa maneira de dizer, considerando total o recurso quando versasse sobre tudo aquilo que ao recorrente interessava impugnar, mesmo que não abarcasse o conteúdo inteiro da decisão.139 Assim se evitava a conseqüência embaraçosa de haver-se como compreensivo até da parte favorável ao recorrente - abrindo-se a porta à reformatio in

peius - o recurso interposto por um dos litigantes, sem especificação, nas hipóteses da chamada “sucumbência recíproca”.140 O atual diploma não reproduz a cláusula final do antigo art. 811, embora a Comissão Revisora - em mais uma das suas inúmeras sugestões desprezadas - houvesse proposto o acréscimo de um parágrafo ao art. 553 do anteprojeto (correspondente ao art. 505 do Código), com a seguinte redação: “Se o recorrente não especificar a parte de que recorre, entender-se-á que o recurso abrange tudo aquilo que poderia ser objeto de sua impugnação.” Parece-nos, entretanto, que essa será a regra a observar-se, no caso, aliás pouco freqüente, de recurso (independente ou adesivo) sem especificação.141 195. Efeito da limitação do recurso - O art. 553, parágrafo único, do anteprojeto BUZAID dispunha que o recurso parcial importaria “a aquiescência pela parte do que não foi impugnado”. Repetia, assim, a norma constante do art. 329, 2ª alínea, do Código italiano, onde se trata essa hipótese como de aquiescência tácita, com a conseqüência de que, uma vez manifestado o recurso, a parte por ele não abrangida imediatamente transita em julgado, já não podendo o recorrente, depois, impugná-la, se bem que ainda em curso o prazo de interposição (princípio da exclusão dos recursos integrativos ou complementares).142 O parágrafo, contudo, deixou de figurar no projeto remetido ao Congresso, apesar de não lhe ter feito objeção substancial a Comissão Revisora.143 Resta saber se, no silêncio do texto, a limitação do recurso (independente ou adesivo) produz esse efeito em relação ao recorrente. A favor da resposta afirmativa argumentarse-á que, “normalmente, a impugnação parcial da sentença não comporta outra interpretação plausível que não seja esta: o recorrente aceita as partes da sentença das quais não interpôs recurso”.144 A lei, porém, é mais exigente na configuração da aquiescência tácita: ela só se consuma pela “prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer”. Ora, o ato de impugnar determinada parte da decisão não se pode considerar incompatível com a vontade de impugnar outra parte ou outras partes. Inclinamo-nos, assim, para a solução negativa.145 A impugnação sucessiva, dentro do prazo, de partes distintas da decisão não ofende a preclusão consumativa, porque apenas quanto à(s) parte(s) originariamente impugnada(s) se exercera o poder de recorrer; nem vulnera o princípio da unicidade, porque cada parte é havida, desse ponto de vista, como uma decisão per se (cf., supra, o comentário nº 141). Dir-se-á, e com razão, que ela é capaz de gerar complicações procedimentais; maiores, entretanto, são as criadas pelo recurso adesivo, e nem por isso deixou o Código de consagrá-lo. Desde que, pelo esgotamento do prazo (para a interposição por via independente ou, se for o caso, para a adesão), ou por outra causa, se torne inadmissível a impugnação da(s) parte(s) restante(s) da decisão, das quais primitivamente não se recorrera, aí nenhuma dúvida pode sofrer que, com o respectivo trânsito em julgado, precluso fica o seu reexame. O objeto da cognição no grau superior é delimitado pelo âmbito do recurso, embora não tenha o órgão ad quem, necessariamente, de cingir-se à análise dos fundamentos invocados pelo recorrente, ou às questões suscitadas por ele e pelo recorrido: isso depende da disciplina legal adotada em cada caso e variável de um para

outro recurso. O que o órgão ad quem não pode fazer é ultrapassar os marcos postos pelo recorrente: assim como, no julgamento de primeiro grau, se tem de decidir a lide nos limites em que foi deduzida (art. 128) e não é possível conceder à parte mais do que pedira (art. 460), analogamente se passam as coisas no julgamento do recurso. Nem se faculta ao recorrente, depois de configurada alguma causa de inadmissibilidade (nomeadamente após o termo final do prazo de interposição), converter em total o recurso manifestado como parcial, ou de qualquer modo ampliar a impugnação. 196. Capítulos abrangidos e capítulos não abrangidos pelo recurso - Cumpre ressalvar que os capítulos meramente acessórios de algum outro ficam abrangidos pela impugnação relativa ao capítulo principal, mesmo que o recorrente silencie a respeito deles. Se, v.g., o réu foi condenado a pagar a importância devida, mais juros da mora, custas processuais e honorários de advogado, e recorre quanto ao principal, é evidente que o recurso apanha as condenações acessórias146 e, no caso de provimento, elas ipso facto cessam. Nem fora necessário, aliás, no primeiro grau de jurisdição, pedido expresso do autor (arts. 20 e 293); e continua a não ser necessário pedido expresso do recorrente. Vitorioso que seja este, as condenações em custas e em honorários devem ser impostas pelo órgão ad quem, de ofício, à parte adversa (vide, quanto às despesas, o art. 20, § 1º). Considerações até certo ponto análogas cabem quanto ao destino do depósito, na ação rescisória (cf., supra, o comentário nº 127 ao art. 494). Não basta, contudo, a simples existência de vinculação lógica entre duas partes da decisão para que os efeitos do recurso interposto contra uma delas se estendam à outra.147 Suponhamos, por exemplo, que em reconvenção ou em ação declaratória incidental se pleiteie a declaração da inexistência da relação jurídica de que depende o direito postulado na ação originária; acolhida esta e rejeitada aquela, ou vice-versa, o recurso interposto apenas contra a parte da sentença referente à ação originária não basta para devolver ao órgão ad quem, como objeto do juízo, o conhecimento da matéria prejudicial; reciprocamente, o recurso interposto apenas contra a parte relativa à reconvenção ou à ação declaratória incidental tampouco devolve o conhecimento da lide deduzida na ação originária. No primeiro caso, se se julgou inexistente, no juízo a quo, a relação prejudicial (apreciada, principaliter, na reconvenção ou na ação declaratória incidental), a coisa julgada que se formar sobre ela tem de ser respeitada pelo órgão ad quem, de modo que este jamais poderá dar pela existência do direito dependente; se, ao contrário, se declarou existente a relação prejudicial, ficará livre ao órgão ad quem julgar inexistente, por outra razão, o direito pleiteado na ação originária.148 No segundo caso, em que só se impugna a parte da decisão concernente à matéria prejudicial, forma-se desde logo a coisa julgada sobre o que se decidiu quanto à ação originária; poderá eventualmente ocorrer contradição lógica entre o pronunciamento de grau inferior e o de grau superior, se neste se declarar inexistente a relação prejudicial, quando aquele reconheceu o direito dependente, ou vice-versa, já que o órgão ad quem não estará jamais vinculado pela decisão relativa à ação originária, cujos fundamentos não adquirem a auctoritas rei iudicatae (art. 469).

Por outro lado, quaisquer questões preliminares, embora comuns à parte impugnada e à parte não-impugnada da decisão, só com referência àquela podem ser apreciadas pelo tribunal do recurso. Suponhamos, v.g., que a sentença, repelindo a alegação de faltar ao autor legitimatio ad causam, condene o réu ao pagamento de x. Apela o vencido unicamente para pleitear a redução do quantum a y. Ainda que o órgão ad quem se convença da procedência da preliminar - que em princípio, como é óbvio, levaria à declaração da carência de ação quanto ao pedido todo -, já não lhe será lícito pronunciála senão no que respeita a x-y, única parcela que, por força do recurso (e ressalvada a eventual incidência de regra como a do art. 475, nº II, que torne obrigatória a revisão), se submete à cognição do juízo superior. No tocante à parcela y, que não é objeto da apelação - nem, por hipótese, se devolve necessariamente -, fica vedado ao tribunal exercer atividade cognitiva: o capítulo correspondente passou em julgado no primeiro grau de jurisdição. O mesmo princípio aplica-se à hipótese de só versar a impugnação sobre um ou alguns dos capítulos recorríveis, embora com invocação de vício que, se existente, poderia acarretar a invalidação total da decisão. Assim, v.g., se o réu, condenado a pagar x + y, funda a sua apelação na denúncia de suposto error in procedendo, mas pleiteia unicamente a anulação da sentença quanto a x. Mesmo que o tribunal reconheça o vício, e este afete por inteiro o julgamento de primeiro grau, não se poderá anular a decisão no concernente a y; tal capítulo transitou em julgado.149 OBS: Até pág. Eletrônica 200 (inclusive)

FIM