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Portuguese Pages 436 [465] Year 2016
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
Mestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC-SP.
Professora do IBET e da PUC-SP.
APROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
De acordo com o Código de Processo Civil de 2015
NA PUBLICAÇÃO
ORES DE LIVROS, RJ
4a edição revista e atualizada
reito tributário: de acordo com o có Del Padre Tomé. - 4. ed., rev., atual.
~a
editoro e livraria
.BrasIl. I. Titulo.
NOESES
CDU: 34:351.713(81)
2016
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T618p 4.ed. Tomé, Fabiana Del Padre A prova no direito tributário: de acordo com o có digo de processo civil de 2015/ Fabiana Del Padre Tomé. 4. ed., rev., atual. - São Paulo: Noeses, 2016.
480 p. : iI. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8310-076-8
1. Prova (Direito). 2. Direito tributário - Brasil. I. Título.
16-37719
CDU: 34:351.713(81)
SUMÁRIO
PREFÁCIO............................................................................. XIX
SOBRE AS ALTERAÇÕES DESTA 4a EDIÇÃO: O
CAMINHO QUE SE FAZ AO CAMINHAR.................... XXV
NOTAS À 3a EDIÇÃO .......................................................... XXIX
NOTAS À 2a EDIÇÃO.......................................................... XXXI
INTRODUÇÃO ..................................................................... XXXV
CAPÍTULOl CONHECIMENTO, VERDADE E DIREITO 1.1 Algumas palavras sobre o constructivismo lógicosemântico ......................................................................
01
1.2 A questão do conhecimento ..........................................
08
1.2.1 Conhecimento e linguagem.................................
10
1.3 "Saber de", "saber como" e "saber que" ....................
14
1.4 Conhecimento e sistema de referência .......................
15
1.5 A teoria do conhecimento segundo o constructivis mo lógico-semântico ......................................................
17
VII
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
1.6 O "saber que" e sua relação com a verdade, crença e
justificação .............................................. .........................
20
1.7 Breves considerações sobre a verdade .......................
21
1.7.1 Verdade por correspondência.............................
23
1.7.2 Fenomenalismo .....................................................
24
1.7.3 Verdade por coerência ................ .........................
24
1.7.4 Verdade por consenso ..........................................
25
1.7.5 Verdade pragmática .............................................
27
1.8 O significado do vocábulo "verdade" adotado neste
trabalho ........ .......................... ........................... ............... 27
1.8.1 Renúncia à ideia de verdade objetiva ...............
29
1.8.2 A autossustentação pela linguagem ..................
32
1.9 Teoria dos jogos da linguagem e a legitimação pelo
35
procedimento................................................................... 1.10 Verdade material e verdade formal: uma disputa
sem sentido ........................................... ~... ............... ..... 38
1.11 Verdade e sua relação com o direito..........................
41
1.11.1 A fenomenologia da incidência tributária e o
45
necessário quadramento do fato à norma .... 1.11.2 Aplicação do direito: forma como se efetiva
47
a incidência tributária...................................... 1.11.3 Distinção entre "evento" e "fato"; entre
"fato social" e "fato jurídico" .......................... 48
1.12 O direito como linguagem criadora da realidade
52
jurídica........................................................................... 1.13 Verdade e teoria das provas no direito tributário..
VIII
54
RETOMÉ
A PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
m a verdade, crença e
CAPÍTULO 2 20
AUTOPOIESE DO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO
rerdade .......................
21
~ncia ............................ .
23
2.1 Noção de sistema ............................................................
57
24
2.2 A sociedade como sistema comunicacional.. ............. .
58
24
2.2.1 O subsistema comunicacional do direito ......... .
60
25
2.3 O direito na teoria dos sistemas ...................................
62
27
2.4 Sistema autopoiético .................................................... ..
63
2.4.1 Código .................................................................... .
66
2.4.1.1 Duplo ingresso.......................................... .
67
2.4.1.2 Bivalência do código e biestabilidade ...
70
2.4.2 Programas ............................................................. .
72
2.5 Forma e função do programa jurídico........................ .
74
2.6 Processo e autopoiese do sistema jurídico .................
75
2.6.1 Segurança jurídica no sistema autopoiético: relacionamento entre sistema jurídico e am biente ..................................................................... .
76
2.7 As provas na teoria autopoiética do direito ............... .
78
2.8 A prova no sistema comunicacional do direito ......... .
80
rdade" adotado neste 27 ade objetiva .............. .
29
linguagem ................. .
32
l
e a legitimação pelo 35
formal: uma disputa
38 direito ......................... .
cidência tributária e o lto do fato à norma ....
41 45
arma como se efetiva
47
nto" e "fato"; entre °ídico" ............ ....... ....... ~riadora
tlO
48
CAPÍTULO 3 NOÇÕES GERAIS SOBRE APROVA
da realidade 52
direito tributário ..
54
3.1 Plurissignificação do vocábulo "prova" ......................
87
3.2 Acepções do vocábulo "prova" '"...... ............................
89
3.3 Prova como procedimento e produto ..........................
92
IX
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
3.4 A prova no processo de enunciação ............................
94
3.5 Prova como fato ..............................................................
96
3.6 Caráter normativo da prova..........................................
97
3.7 Prova como signo...... ....... ..... ....... ... ........ ....... ..... ...... ......
98
3.8 Indício, pista, vestígio, marca e sinal...........................
102
3.9 Prova como mensagem..................................................
103
3.10 Prova como relação de implicação entre enuncia dos linguísticos ..............................................................
104
3.11 Elemento constitutivo do fato jurídico em sentido
estrito .............................................................................. 104
3.12 Prova como meio de convencimento.........................
105
3.13 Presunções.....................................................................
107
3.14 Prova da prova ..............................................................
107
3.15 Contraprova...................................................................
108
3.16 Protoprova .....................................................................
109
3.17 Prova como demonstração..........................................
109
3.18 Prova como experiência ..............................................
109
3.19 Prova como competição...............................................
110
3.20 Prova como providência preliminar ..........................
110
3.21 Prova como certificação...............................................
111
3.22 Meios de prova ..............................................................
111
CAPÍTULO 4
CLASSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA 4.1 Considerações críticas sobre a "classificação das pro vas" adotada pela doutrina tradicional.......................
x
115
A PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
RETOMÉ
ação ........................... .
94
4.1.1 Prova direta e prova indireta ... ..........................
118
96
4.1.1.1 Crítica à terminologia empregada .........
120
97
4.1.1.2 A imediatividade em relação à percep ção do julgador ........... .................. .............
122
4.1.2 Prova pessoal e real..............................................
125
4.1.3 Prova testemunhal, documental e material.....
126
4.2 Espécies de meios de prova ..........................................
127
4.3 Confissão..... ........ ........... ........ .... ............................. .........
129
4.3.1 Depoimento pessoal.............................................
134
104
4.3.2 Confissão em matéria tributária.........................
134
105
4.4 Documento.......................................................................
143
107
4.4.1 Espécies de documentos......................................
145
107
4.4.2 O documento no direito tributário.....................
146
108
4.4.3 O documento na era da informática ..................
148
98
~
sinal ...........................
102
103
cação entre enuncia 104
) jurídico em sentido
[mento .........................
109
109
minar ......................... .
109
4.4.4 Atos processados em juízo.... ............. ....... ...........
152
110
4.4.4.1 "Prova emprestada" em matéria tributária....
153
110
4.5 Depoimento testemunhal..... ......................... ...... ..........
158
111
4.5.1 O depoimento testemunhal no âmbito tributário..
159
111
4.6 Exame pericial.................................................................
161
4.6.1 Perícia em matéria tributária .............................
163
4. 7 Presunção.........................................................................
167
4.7.1 Classificação das presunções .................. ............
172
4.7.2 Indícios e suas espécies ........... ........... .................
174
[)4
[ElOS DE PROVA
'classificação das pro :licional....... ................
4.4.3.1 Emprego da prova em meio eletrônico na
esfera tributária e o uso de ata notarial.... 150
115
4.7.3 Limites ao emprego de presunções em matéria
tributária ................................................................ 176
XI
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
4.8 Prova obtida por meio ilícito.........................................
183
4.8.1 Vedação, no âmbito tributário, de prova ilicita mente produzida ...................................................
186
CAPÍTULO 5
MORFOLOGIA DA PROVA 5.1 Noções sobre a morfologia da prova............................
193
5.2 Objeto da prova ...............................................................
194
5.2.1 Fatos determinados ..............................................
198
5.2.1.1 Limites ontológicos da possibilidade.....
200
5.2.2 Fatos relevantes ....................................................
201
5.2.2.1 Fato pertinente e concludente................
204
5.2.3 Fatos controversos ................................................
205
5.2.4 Fatos notórios ........................................................
206
5.2.5 Fatos negativos ......................................................
209
5.2.6 A prova nas hipóteses de presunção .................
211
5.2.7 Prova do direito.....................................................
212
5.3 Conteúdo da prova .........................................................
213
5.4 A forma da prova ............................................................
214
5.5 E\.Inção da prova..............................................................
217
5.6 Finalidade da prova........................................................
219
XII
A PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
)RETOMÉ
183 ltário, de prova ilicita 186
CAPÍTULO 6 DINÂMICA DA PROVA 6.1 O ato de provar................................................................
221
,05
6.1.1 Atos de consciência ..............................................
223
[)APROVA
6.1.2 Sintaxe interna do procedimento probatório..
224
6.1.3 Metaprocedimento organizacional das provas
227
193
6.2 Fonte da prova.................................................................
229
194
6.3 Procedimento probatório ..............................................
232
198
6.3.1 Tempo da prova....................................... ..............
233
200
6.3.1.1 Momento da produção probatória no processo administrativo tributário ........
238
6.3.1.2 Aspecto temporal da norma de proce dimento probatório e os critérios para aplicação de diploma legal superve niente ao fato probando ...........................
244
6.3.1.3 O valor probatório da DERCAT apre sentada para fins de adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributário (RERCT) .................................
253
6.3.2 Lugar da prova: noções gerais e sua identifica ção no processo administrativo tributário........
258
6.3.3 Sujeitos da prova no direito processual civiL..
259
6.3.3.1 Os sujeitos da prova no processo admi nistrativo tributário ..................................
262
prova........................... .
os da possibilidade .....
201 concludente ............... .
204 205
206 209
e presunção ............... ..
211 212 213 214 217 219
6.4 Prova é tema de direito material ou de direito proces sual? .................................................................................. 264 6.5 Princípios que orientam a produção da prova no processo administrativo tributário ..............................
268
XIII
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
6.5.1 Princípio dispositivo X princípio inquisitório..
269
6.5.1.1 Controle de legalidade e processo admi
nistrativo tributário: adoção do princí pio inquisitório ..........................................
270
6.5.2 Princípio do devido processo legal....................
272
6.5.2.1 Princípio da ampla defesa .......................
274
6.5.2.2 Princípio do contraditório .......................
275
6.5.2.3 Princípio da publicidade..........................
276
6.5.3 Princípio da proibição da prova obtida ilicita mente ......................................................................
277
6.5.4 Princípio da imediatidade ...................................
277
6.6 Ônus da prova .................................................................
278
6.6.1 Função e estrutura do ônus da prova ................
281
6.6.2 O ônus da prova no processo comunicativo .....
282
6.6.3 Distribuição do ônus da prova............................
284
6.6.4 Convenção das partes relativa à distribuição do
ônus da prova ........................................................ 292
6.6.5 "Ônus" da prova no direito tributário...............
294
6.6.5.1 Presunção de legitimidade dos atos ad
ministrativos e o "ônus" da prova em
matériatributária....................................... 297
6.6.5.2 O "ônus" da prova em face de presun çõeslegais ...... ........ ............... ....... ................
299
CAPÍTULO 7
AXIOLOGIA DAS PROVAS 7.1 Ato decisório e axiologia das provas............................
XIV
303
)RETOMÉ
Irincípio inquisitório ..
A PROVA NO DIREITO TRffiUTÁRIO
269
dade e processo admi -io: adoção do princí 270 :esso legal ................... .
272
,a defesa ...................... .
274
raditório ..................... ..
275
icidade ......................... .
276
la prova obtida ilicita 277 le ................................. ..
277 278
da prova ............... .
281
:esso comunicativo .....
282
prova............................
284
lUS
7.2 Breves noções sobre a axiologia do direito ............... .
304
7.3 Teoria dos atos de fala e a decisão do julgador......... .
309
7.4 Critérios de avaliação das provas.................................
312
7.4.1 Princípios que orientam a apreciação probatória ..
315
7.5 Hierarquia das provas....................................................
318
7.5.1 Hierarquia axiológica das provas...................... .
320
7.6 A produção probatória e os efeitos na convicção do
julgador............................................................................. 321
7.6.1 Influência dos valores na apreciação das provas ..
324
7.6.2 Máximas de experiência ..................................... .
325
7.7 A atividade do julgador..................................................
327
7.8 Momento da atividade valorativa da prova ................
329
7.9 Teoria da decisão jurídica............................................. .
331
7.9.1 A prova como suporte para a tomada de decisão
333
[ativa à distribuição do 292 ito tributário .............. .
294
ttimidade dos atos ad "ônus" da prova em
APROVA NO PROCEDIMENTO ENO PROCESSO
ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
297
'a em face de presun 299
107
SPROVAS
Irovas............................
CAPÍTULO 8
303
8.1 Procedimento e processo administrativo fiscal no ci clo de positivação do direito..........................................
339
8.1.1 Distinção entre procedimento e processo: a fi gura do processo administrativo tributário......
340
8.2 Definição do conceito de lançamento tributário .......
344
8.2.1 A ambiguidade procedimento/produto .............
346
8.2.2 Lançamento tributário e auto de infração........
348
xv
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
8.3 Ato administrativo ..........................................................
350
8.3.1 Estrutura do ato administrativo: pressupostos
e elementos ............................................................ 352
8.3.1.1 Motivo, motivação e a linguagem das
provas.......................................................... 354
8.4 As provas como meio de atingir a verdade lógica:
sua importância no âmbito da imposição tributária. 356
8.4.1 Consequência da falta de prova no lançamento
ou no ato de aplicação de penalidade................ 359
8.5 A produção de prova pela Administração ..................
362
8.5.1 Dever e não ônus da prova .... .......... ....................
364
8.5.2 Limites ao emprego de presunções pela Admi nistração ............................................. ....................
365
8.5.3 O ônus da prova para a atribuição de respon
sabilidade tributária aos administradores........
366
8.5.4 O ônus da prova nas controvérsias relativas à
ausência de notificação fiscal........... ................... 369
8.5.5 A prova de inidoneidade da documentação fiscal
371
8.5.6 Arbitramento .........................................................
376
8.5.6.1 Dever de colaboração do contribuinte ..
378
8.5.6.2 Requisitos para a realização de arbitra mento..........................................................
380
8.6 Desconsideração de negócios jurídicos.......................
383
8.7 Contencioso administrativo tributário ........................
389
8.7.1 Fases do processo administrativo tributário ....
390
8.7.2 Instrução probatória no processo administra tivo tributário.........................................................
392
8.8 Ato decisório e axiologia das provas no processo ad ministrativo tributário ...................................................
393
XVI
A PROVA NO DIREITO TRffiUTÁRIO
)RETOMÉ
350
strativo: pressupostos
PROPOSIÇÕES CONCLUSIVAS.....................................
395
BIBLIOGRAFIA...................................................................
417
352
.0
e a linguagem das
354
19ir a verdade lógica: imposição tributária.
356
~
prova no lançamento e penalidade............... .
359
ninistração ................. .
362
Iva ................................. .
364
)resunções pela Admi
365
atribuição de respon :administradores........
366
ntrovérsias relativas à fiscal ............................. .
369
da documentação fiscal
371
376
ação do contribuinte ..
378
realização de arbitra-
380
jurídicos ...................... .
383
·ibutário ...................... ..
389
listrativo tributário ... .
390
I
processo administra
392
>rovas no processo ad
393
XVII
Dedico esta obra, com amor e profunda admiração, aos meus pais Hermínio e Marly, exemplos de vida e grandes incentivadores.
Ao meu irmão Giovani, pela amizade e companheirismo inigualáveis.
Aos meus pequenos príncipes Renato e Henrique.
PREFÁCIO
O direito, como técnica de modificação social, não vem para representar o mundo, mas para alterá-lo, implantando valores [Lourival Vilanova]. E esse projetar-se sobre o fluxo do suceder humano, na sua peculiar e característica instabilidade, ocorre num contínuo processo dialético que se estabelece entre normas gerais e abstratas, de um lado, e normas individuais e concretas ou individuais e abstratas, de outro, dinâmica da qual participam, invariavelmente, as regras gerais e concretas como veículos introdutores dos comandos prescritivos. Tudo isso se opera mediante a presença indispensável da linguagem, num contexto de crenças, ideias e convicções, a que chamamos de ideologia. Pondere-se, contudo, que somente tem sentido falar numa engenharia do social, se for atendido o pressuposto do respeito à ordenação causal do mundo, pois o direito não pode pretender opor-se aos efeitos da causalidade. Pelo contrário, há de observá-la para, dentro dela, causalidade física ou natural e, principalmente, a social, abrir suas possibilidades disciplinadoras de condutas intersubjetivas. É nessa incessante movimentação empírico-dialética que se forma o conhecimento da mensagem prescritiva. Explicado de outro modo, é travando contacto com o plano da expressão, onde estão montadas as estruturas morfológicas e sintáticas do texto legislado, que o enunciatário organiza a compreensão
XIX
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
da matéria, completando o ciclo comunicacional do direito. Daí avante, a questão de saber se o expediente vai ter o condão de motivar o comportamento, em termos de fazê-lo cumprir ou não a direção normativa, é algo que pertence ao campo da Sociologia e da Psicologia social e individual do direito. Por outro lado, assim como a potência para criar frases linguísticas é infinita, dentro do âmbito de determinado idioma, as possibilidades criativas do legislador são também intermináveis, mantendo-se rigorosamente dentro dos limites da gramaticalidade própria da comunicação normativa. Tudo porque os functores deônticos são interdefiníveis e a matéria do social estende-se numa pluralidade sem fronteiras. Entretanto, se quisermos reduzir o direito à sua expressão mais simples, poderemos apresentá-lo em dois hemisférios correspondentes aos fatos lícitos e aos ilícitos, declarando que a linguagem das normas, na sua multiplicidade compositiva, verte-se sobre a realidade social, qualificando pessoas, situações e coisas, com o objetivo precípuo de constituir fatos, assinalados, por quem legisla, com a marca positiva da licitude ou com o sinal negativo do indesejável. Em seguida, o legislador faz expandir efeitos das entidades assim formadas, instaurando permissões, deveres e proibições que o instrumentalizam para desempenhar sua missão reguladora. Sempre é bom lembrar que o processo de positivação do direito inaugura-se com os preceitos competenciais cravados no Texto Supremo e avança, gradativamente, em direção aos comportamentos inter-humanos para discipliná-los e tornar possível a convivência social. Ora, tais providências são obtidas por intermédio da linguagem das provas, de tal modo que vale a afirmação categórica segundo a qual fato jurídico é aquele, e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem competente, isto é, segundo as qualificações estipuladas pelas normas do direito positivo. Se acrescentarmos a essas reflexões a decisiva e fecunda distinção entre evento e fato, tão presente na epistemologia do conhecimento pós-moderno, chegaremos ao ponto que
XX
A PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
nos interessa salientar neste trabalho verdadeiramente inovador da jovem e talentosa Professora Fabiana Tomé. Estou convencido, aliás, de que em nenhum outro domínio do universo jurídico, a dualidade fato/evento manifesta sua presença com tanta nitidez e vigor. Ou a mutação ocorrida na vida real é contada, fielmente, de acordo com os meios de prova admitidos pelo sistema positivo, consubstanciando a categoria dos fatos jurídicos [lícitos ou ilícitos, pouco importa] e da eficácia que deles se irradia; ou nada terá acontecido de relevante para o direito, em termos de propagação de efeitos disciplinadores da conduta. Transmitido de maneira mais direta: fato jurídico requer linguagem competente, isto é, linguagem das provas, sem o que serão meros eventos, a despeito do interesse que possam suscitar no contexto da instável e turbulenta vida social. Latente entre os conceitos fundamentais deste trabalho está a recomendação, sempre lembrada, de que o jurista é o ponto de intersecção entre a teoria e a prática, entre a ciência e a experiência. É com esse forte e decidido impulso de organização intelectual, que imprime rendimento ao labor cognoscitivo, que Fabiana abraçou o propósito de testar aquela distinção básica justamente no campo das provas, onde se demora o fenômeno de constituição dos fatos carregados de juridicidade. De minha parte, tendo acompanhado, atentamente, todos os movimentos de elaboração deste livro, posso dizer que a autora se apaixonou pela ideia desde o contacto do primeiro instante, passando a desenvolvê-la em clima de significativo esforço de pesquisa. Creio mesmo que nenhum dos clássicos sobre a matéria, nenhum dos grandes tratadistas do assunto deixou de ser examinado, estudado, anotado, linha por linha, argumento por argumento, até o ponto de Fabiana estabelecer as premissas que lhe pareceram mais adequadas e estruturar a tese para outorgar-lhe caráter de autêntica e originalíssima sistematização. Com efeito, no trajeto de orientação da candidata ao doutoramento, foram discutidas, em toda sua amplitude, as
XXI
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
articulações necessárias à configuração da tese, motivo pelo qual me sinto inteiramente à vontade para afirmar que a temática das provas adquire, com este novo e sugestivo tratamento, um perfil doutrinário ao mesmo tempo rigoroso e funcional, em que Fabiana submete a matéria a cuidadoso processo de decomposição e análise, explorando o assunto sob a perspectiva de uma visão ampla, firmada em sólida filosofia e consistente concepção do mundo jurídico. Eis a Ciência do Direito Tributário oferecendo, mais uma vez, contribuição valiosa para a Teoria Geral do Direito, pois a dinâmica da prova é observada no contexto do fato comunicacional e considerada em suas projeções axiológicas, mediante postura corajosa e, de certo modo, inusitada. O livro que a Editora Noeses faz publicar com o título de “A Prova no Direito Tributário”, além dos atributos que mencionei, predicados fundamentais de qualidade, está vertido num Português correto, limpo e objetivo. A simplicidade da frase esconde, por vezes, as complexas e profundas meditações que motivaram a autora durante toda a progressão da obra. Mas, quem já viu Fabiana proferir palestras, ministrar aulas, participar de seminários sabe, muito bem, que aquilo que aparenta ser uma estratégia retórica, uma tática expositiva de persuadir o auditório para conquistá-lo, fazendo prevalecer ideias e estimulando convicções, nada mais é do que um dom natural de uma privilegiada estrutura de caráter, onde se acomoda uma mente lúcida e produtiva. Difícil destacar tópicos ou quaisquer segmentos em texto tão homogêneo e equilibrado. Chamo a atenção, todavia, para o momento em que a autora trata das “noções gerais da prova”, com interessante estudo semântico da figura. E a nota se aplica, igualmente, para os que lhe seguem, como “classificação dos meios de prova”, “morfologia da prova”, “dinâmica da prova” e “axiologia das provas”, devidamente assentados nos pressupostos do capítulo inicial, espaço dedicado a sérias meditações sobre “conhecimento, verdade e direito”.
XXII
A PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Tudo quanto foi dito até aqui mereceu a confirmação pública de Banca Examinadora especialíssima, composta por uma processualista civil (Tereza Wambier), um processualista penal (Antônio Carlos da Ponte), uma tributarista (Maria Rita Ferragut) e uma jurista e semioticista (Clarice Araujo) e presidida por mim, que fui seu orientador. O julgamento da Banca reconheceu, de maneira unânime e com espontaneidade, o valor máximo da tese de Fabiana e essa singela referência justifica, plenamente, não só a recomendação enfática da leitura do texto, mas, sobretudo, que seja ele estudado, compreendido na sua dimensão teórica e aplicado, com determinação, às situações práticas da experiência jurídica brasileira.
Fazenda Sto. Antônio de Palmares, 02 de dezembro de 2005 Paulo de Barros Carvalho Titular de Dir. Tributário da PUC/SP e da USP
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Caminhante, são teus passos o caminho, e nada mais; caminhante, não há caminho, o caminho faz-se ao caminhar. Ao andar se faz caminho e ao olhar para trás vê-se a senda que nunca se voltará a pisar. Caminhante, não há caminho, somente sulcos de escuma ao mar. (Antonio Machado)
SOBRE AS ALTERAÇÕES DESTA 4ª EDIÇÃO:
O CAMINHO QUE SE FAZ AO CAMINHAR Há mais de dez anos venho me dedicando ao estudo da teoria da prova no direito, fazendo-o com afinco, no âmbito das linhas de pesquisa a que me vinculo na qualidade de professora do Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC/SP (“Efetividade do Direito”, “Teoria da norma e fenomenologia da incidência tributária” e “Obrigação tributária e o impacto na sociedade”), nos núcleos de Teoria Geral do Direito e de Direito Tributário. Como decorrência, a presente obra, além de três edições brasileiras, foi objeto de duas publicações em língua espanhola: traduzida por Juan Carlos Panez Solórzano, La Prueba en el Derecho Tributário teve sua 1ª edição em
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2011, pela ARA Editores (Peru), sendo a 2ª edição em espanhol feita pela Editora Grijley, em parceria com a Noeses, em 2012. Com isso, as premissas teóricas passam por constantes reflexões e aprimoramentos, sendo suscitados, também, novos aspectos de sua aplicabilidade para a solução dos problemas jurídicos cotidianos. É o caminho que se constrói caminhando, como os sulcos de espuma no oceano, tão bem evocado no poema de Antonio Machado1. Nesse contexto, o presente volume foi substancialmente acrescido com novos tópicos e aprofundamento dos já existentes, como noções sobre as principais premissas do constructivismo lógico-semântico; esclarecimentos adicionais quanto à distinção entre “evento” e “fato”, assim como entre “fato social” e “fato jurídico”; atualização com suporte em decisões proferidas pelo STJ, no que concerne à possibilidade de revisão judicial de confissão tributária feita para fins de parcelamento tributário, e pelo STF, quanto à figura do sigilo bancário e suas decorrências; comentários sobre o valor probatório das declarações apresentadas quando da adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), dentre outras inserções de doutrina e jurisprudência que auxiliam na compreensão do tema em suas diversas nuances. Os principais acréscimos, porém, como não poderia deixar de ser no momento histórico que vivemos, relacionam-se às consequências da veiculação do Novo Código de Processo Civil, publicado em março de 2015 e vigente desde 18 de março de 2016. Em estudo minucioso, procurei não apenas atualizar o texto desta obra de acordo com os dispositivos recém-editados do Estatuto Processual, mas, além disso, entrever os desdobramentos dessas alterações para efeitos de produção e análise probatória, dos quais destaco, pela relevância que assumem, os tópicos sobre a carga dinâmica da prova, o ônus da prova para a atribuição de responsabilidade tributária aos 1. Caminante, Poema XXIX de Provérbios y Cantares.
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administradores, a prova nas controvérsias relativas à ausência de notificação do contribuinte, a prova de inidoneidade da documentação fiscal e sobre a utilidade da ata notarial. Tendo em vista a expressa previsão de aplicabilidade subsidiária e supletiva das normas processuais civis aos processos administrativos (art. 15 do CPC), no que se incluem os de caráter tributário, inseri, no correr do texto, as principais decorrências de tal disposição, com ênfase à possibilidade de utilização de prova testemunhal na esfera administrativa tributária, à vedação de que o julgador sobreponha suas convicções pessoais ao teor consignado em laudo pericial e à necessária fundamentação das decisões para que se possa falar em efetiva observância do princípio do livre convencimento motivado. Feitas essas notas sobre alguns dos novos pontos constantes desta edição, não posso deixar de agradecer à comunidade jurídica brasileira e latino-americana pela acolhida que os pensamentos sobre A Prova no Direito Tributário têm recebido. Espero que esta 4ª publicação, revista e substancialmente ampliada, sirva como novo instrumento para reiteradas reflexões, debates e aprimoramento do tema das “provas”, para que sigamos caminhando e, desse modo, construindo o caminho.
São Paulo, 27 de setembro de 2016. Fabiana Del Padre Tomé
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NOTAS À 3ª EDIÇÃO
“O caos irreal do poder-ser, do vir-a-ser, do potencial que tende a realizar-se, o qual estamos acostumados a chamar de realidade, surge à tona, aparece ao intelecto, organiza-se em cosmos, em breve: realiza-se nas formas das diversas línguas.” (Vilém Flusser)
A cada dia que passa, a cada experiência vivida, sai fortalecida a minha convicção de que a linguagem constitui a realidade do ser cognoscente. Com efeito, o pensamento de Vilém Flusser, objetivado na obra Língua e realidade, editado pela primeira vez no ano de 1963, apresenta uma proposta que, ainda hoje, pode ser vista como inovadora e atual, indo ao encontro do modelo edificado por Lourival Vilanova: o constructivismo lógico-semântico. A questão que se coloca como pano de fundo diz respeito ao modo pelo qual as coisas constituem-se, isto é, o modo pelo qual as coisas são. E, segundo Vilém Flusser, as coisas são quando se realizam pela linguagem. Assim ocorre com a realidade social, com a realidade econômica, com a realidade política e, como não poderia deixar de ser, com a realidade jurídica. Para que um fato seja constituído no âmbito do direito, desencadeando os efeitos correspondentes, faz-se necessária uma produção linguística específica, na
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forma e pelo sujeito prescrito pelo próprio ordenamento. Daí a relevância do estudo das provas, em seus aspectos morfológico, sintático, semântico e pragmático. Saber produzir e utilizar os enunciados significa ter condições de operar o sistema do direito, com vistas à concretização e individualização normativa. O fato de ter-se esgotado a 2ª edição deste livro permite entrever o interesse que o tema das provas desperta para os estudiosos e para os aplicadores do direito. Por isso, revisei cuidadosamente o texto, atualizando a legislação citada e acrescentando novos elementos. Esta 3ª edição, que se pretende ampliada e atualizada de acordo com o direito positivo vigente, corresponde ao resultado de um trabalho incessante, relacionado ao estudo do processo de positivação do direito, sempre feito com a orientação do Professor Paulo de Barros Carvalho.
São Paulo, 27 de julho de 2011. Fabiana Del Padre Tomé
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NOTAS À 2ª EDIÇÃO
É com grande satisfação que encaminho para publicar a 2ª edição desta obra, resultado da minha Tese de Doutoramento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), sempre contando com a valiosa orientação do Professor Paulo de Barros Carvalho. A receptividade que este trabalho encontrou no meio jurídico deixa entrever a relevância do tema, já que não há como falar em incidência jurídica e surgimento da obrigação tributária sem que seja empregada a linguagem das provas. O desenvolvimento desse tema propiciou-me discutir o assunto em Congressos de Direito Tributário realizados por todo o Brasil, despertando grande interesse dos contribuintes e das autoridades fazendárias, todos preocupados com a regular expedição da norma individual e concreta constitutiva do fato jurídico tributário e do correspondente liame obrigacional. Aproveitando a oportunidade de revisão do trabalho, foram feitos acréscimos ao material já composto, procurando mantê-lo sempre atualizado. Devo registrar, ainda, que o livro A prova no direito tributário foi elaborado com suporte no constructivismo lógico-semântico, método de trabalho hermenêutico que dá nome à disciplina que leciono no Curso de Mestrado da PUC/SP.
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Sabemos que o direito positivo, como genuína construção cultural que é, comporta muitas posições cognoscentes, podendo ser observado por ângulos diferentes, como se dá com a História do Direito, com a Sociologia do Direito, com a Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito em sentido estrito, com a Antropologia Jurídica, com a Filosofia do Direito, apenas para salientar alguns saberes igualmente dotados da mesma dignidade científica. Diante de tanta variedade, eventual descaso pelo método, decorrente da ânsia de oferecer farta cópia de informações, acaba por impedir o conhecimento. Não se pode dissociar a prática da teoria, pois tal pretensão acarreta notícias desordenadamente justapostas ou sobrepostas, bem como dados da experiência jogados ao léu. Para que isso não ocorra, faz-se necessária uma organização do campo empírico, realizada por três vieses: (i) no âmbito filosófico, mediante análise epistemológica; (ii) no âmbito conceitual, tendo como ponto de partida a Teoria Geral do Direito; e (iii) no âmbito factual, por cortes metodológicos das multiplicidades dos fenômenos concretos. Somente por meio desse aperfeiçoamento teórico é que se alcançará o aprofundamento do conhecimento do direito positivo. Essas breves anotações sobre a importância do método e do sistema de referência, bem como das dificuldades inerentes ao estudo dos objetos culturais, como é caso do direito, já permitem identificar a importância do constructivismo lógico-semântico. O estudo da teoria da linguagem tem finalidade específica de fornecer instrumentos teóricos que possibilitem melhor compreensão e operacionalização da experiência jurídica. Dessa forma, busca atender-se à sempre recomendável intersecção entre teoria e prática, entre ciência e experiência, ampliando, assim, o universo das formas jurídicas. Em resumo, podemos dizer que o constructivismo lógico-semântico configura método de trabalho hermenêutico orientado a cercar os termos do discurso do direito positivo e da Ciência do Direito para outorgar-lhes firmeza, reduzindo as ambiguidades e vaguidades, tendo em vista a coerência e o
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rigor da mensagem comunicativa. Fazendo uso desse instrumental, o exegeta está em condições de proceder ao exame da estrutura interna normativa, bem como das relações lógicas existentes na integração das normas com outras unidades do sistema, podendo fazê-lo tanto da perspectiva estática, isolando as proposições normativas, como da perspectiva dinâmica, abrangendo o processo de positivação do direito. De posse dessa plataforma filosófica, o estudioso do direito adquire nova postura analítica, tomando como ponto de partida do conhecimento as formas lógicas, mas sem esquecer que se trata de um objeto cultural e, portanto, impregnado de valores. Por meio deste, desenvolve-se estudo hermenêutico-analítico, em que se dirige a atenção aos dados linguísticos, fazendo uso das categorias lógico-semânticas do texto prescritivo e analisando a norma jurídica na sua inteireza conceptual. Tudo isso, objetivando que o discurso teórico propicie a compreensão da concretude empírica do direito positivo. É fazendo uso desse método que procuramos rediscutir e trazer contribuições à teoria das provas. Espero que a 2ª edição deste livro, a exemplo do que ocorreu com a 1ª, continue a despertar o interesse dos estudiosos e aplicadores do direito, especialmente do direito tributário, estimulando-os a continuar refletindo sobre os requisitos imprescindíveis ao processo de positivação do direito.
São Paulo, 30 de outubro de 2008. Fabiana Del Padre Tomé
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INTRODUÇÃO
Quando pensamos no fenômeno da percussão jurídicotributária, vem-nos à mente a figura de um fato que, subsumindose à hipótese normativa tributária, implica o surgimento de vínculo obrigacional. É a fenomenologia da incidência. Referida operação, todavia, não se realiza sozinha: é preciso que um ser humano promova a subsunção e a implicação que o preceito da norma geral e abstrata determina. Na qualidade de operações lógicas, subsunção e implicação exigem a presença humana. Daí a visão antropocêntrica, requerendo o homem como elemento intercalar, construindo, a partir de normas gerais e abstratas, outras normas, gerais ou individuais, abstratas ou concretas. Essa movimentação das estruturas do direito em direção à maior proximidade das condutas intersubjetivas exige a certificação da ocorrência do fato conotativamente previsto na hipótese da norma que se pretende aplicar. Mas, para que o relato ingresse no universo do direito, constituindo fato jurídico tributário, é preciso que seja enunciado em linguagem competente, quer dizer, descrito consoante as provas em direito admitidas. Observa-se, aí, importante função da linguagem das provas no sistema do direito tributário. É por meio delas que se compõe o fato jurídico tributário, em todos os seus aspectos (conduta nuclear, tempo e espaço), bem como o sujeito que o praticou e sua medida. O mesmo se pode dizer do ilícito tributário: somente com o emprego da linguagem
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competente, isto é, por meio de enunciados probatórios, configura-se o descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental, desencadeando a relação jurídica sancionatória. Como leciona Paulo de Barros Carvalho2, “o discurso prescritivo do direito posto indica, fato por fato, os instrumentos credenciados para constituí-los, de tal sorte que os acontecimentos do mundo social que não puderem ser relatados com tais ferramentas de linguagem não ingressam nos domínios do jurídico, por mais evidentes que sejam”. Por essas razões, consideramos a teoria da prova um dos pontos centrais do direito, e, dentre eles, do direito tributário. Dada a sua relevância, objetivamos, com o presente trabalho, propor uma nova forma de aproximação da teoria das provas, tomando, como ponto de partida, a circunstância de ser o direito um texto, qualificando-se, portanto, como espécie de sistema comunicacional. Como texto que é, o direito e, por conseguinte, as provas são susceptíveis de análise segundo três diferentes perspectivas: (i) observação lógico-linguística, em que se investiga a estrutura da linguagem; (ii) exame semântico, direcionado à compreensão do seu conteúdo significativo; e (iii) estudo pragmático, centrando a atenção ao aspecto dinâmico da criação do texto, bem como aos usos a ele conferidos. Procuramos realizar o exame das provas no direito tributário em função desses três níveis da linguagem, pois, como todo texto, a prova possui uma estrutura, uma forma específica, apresentando elementos essenciais (morfologia) que se relacionam entre si (sintaxe), servindo como estímulo para construções de sentido (semântica), desencadeando efeitos e propiciando sua utilização em determinadas situações (pragmática). Partimos da Teoria Geral da Prova, para, esclarecidos seus conceitos básicos e exposto nosso posicionamento sobre eles, aplicá-los à esfera tributária.
2. Direito tributário, linguagem e método, p. 826.
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Discorrer sobre as provas exige que sejam enfrentadas questões concernentes à composição do sistema jurídico, tais como sua constituição em linguagem, a caracterização do conhecimento e da verdade, a necessidade de decisão de conflitos e de regras que disciplinem o modo pelo qual se atinge aquela verdade, possibilitando a composição dos litígios. Por isso, fixamos, no capítulo 1, algumas premissas necessárias ao desenvolvimento do trabalho, concernentes ao relacionamento entre conhecimento, verdade e direito tributário. Em seguida, considerando o caráter sistemático do ordenamento, passamos a examinar seus elementos e estrutura, objetivando compreender como se opera sua transformação e, desse modo, identificar o caminho pelo qual um fato qualquer, de natureza social, política, religiosa, econômica etc., ingressa no sistema jurídico, como é o caso do subsistema jurídico-tributário (capítulo 2). Firmados esses pressupostos, concentramo-nos nos planos morfológico, sintático, semântico e pragmático das provas. Primeiramente, tecemos comentários sobre o caráter plurissignificativo do vocábulo prova (capítulo 3). Procurando elucidar algumas de suas diversas acepções, traçamos um rol exemplificativo das significações comumente atribuídas a essa palavra, para, em seguida, agrupá-las segundo seus aspectos comuns, explicitando os correspondentes conteúdos. Além disso, definimos o que sejam meios de prova, distinguindo-os da figura da prova. Com isso, procedemos ao estudo semântico da prova. Efetuada a distinção entre prova e meio de prova, dirigimos nossos cuidados às modalidades de meios de prova, examinando criticamente a classificação tradicionalmente realizada pela doutrina processualista. Discorremos, também, sobre os diversos meios de prova prescritos pelo ordenamento brasileiro, bem como sua aplicabilidade à esfera tributária e ao processo administrativo tributário (capítulo 4).
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Dedicamos o capítulo 5 à análise morfológica da prova. Em termos linguísticos, entende-se por morfologia o estudo da constituição das palavras e dos processos pelos quais elas são construídas a partir de suas partes componentes, os morfemas. Considerando que a prova é um enunciado linguístico, podemos, mediante isolamento temático, separar seus elementos, para fins de identificação das peculiaridades de cada um. A essa decomposição do enunciado probatório em unidades linguísticas menores, viabilizando sua investigação analítica para melhor compreender sua forma e estrutura, denominamos morfologia da prova. Ao realizá-la, observamos sete elementos, sem os quais o enunciado jurídico-probatório não subsiste (fonte, objeto, conteúdo, forma, função, finalidade e destinatário), discorrendo sobre eles. Ao direcionarmos nossa atenção à dinâmica da prova (capítulo 6), procuramos evidenciar a forma pela qual se realiza o ato de provar. Compreendida a sintaxe como o feixe de relações que se estabelecem entre as várias unidades de determinado sistema, observamos a existência, no procedimento probatório, de uma sintaxe interna, consistente na organização necessária de diversos elementos linguísticos, para que se tenha a constituição da prova. É a esse âmbito linguístico que se refere a dinâmica da prova, em cujo estudo aludimos às regras de sua ordenação estrutural, determinando o sujeito habilitado a produzi-las e o modo de fazê-lo, bem como os limites temporais e espaciais e os princípios que orientam o procedimento probatório. Além da sintaxe interna da prova, concernente à forma como os elementos morfológicos se combinam para constituir o enunciado probatório, podemos falar, também, em uma sintaxe externa, relativa ao modo pelo qual uma prova se articula com outros enunciados probatórios. É por ocasião da apreciação das provas pelo julgador que se visualiza, com maior nitidez, esse relacionamento. Sobre ele tratamos no capítulo 7, no qual, procurando determinar o emprego das provas como elementos de convicção e sua influência na produção do ato
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decisório, investigamos o método de avaliação das provas prescrito pela legislação brasileira e os aspectos que nele interferem, possibilitando que o julgador, diante de vários enunciados probatórios conflitantes entre si (heterogêneos), acolha alguns e rejeite outros, formando seu convencimento. Ao percorrermos o itinerário acima, examinando os planos morfológico, sintático e semântico das provas, fizemos constantes referências à sua aplicabilidade na esfera tributária, desenvolvendo estudo de ordem pragmática, em que se estabelecem as relações dos signos com os utentes da linguagem. No entanto, é no capítulo 8 que aparece com maior ênfase a pragmática da prova no processo tributário, principalmente no que diz respeito à esfera administrativa. Ali, aplicamos os diversos conceitos trabalhados, examinando a composição e efeitos da prova realizada no procedimento preparatório dos atos de lançamento e de aplicação de penalidade pelo descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental, bem como no processo administrativo tributário instalado com a impugnação do sujeito passivo. Procuramos, neste trabalho, realizar um estudo hermenêutico-analítico das provas no direito tributário e, em especial, no processo administrativo tributário, esperando, com isso, contribuir para o desenvolvimento do estudo de tão relevante tema.
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CAPÍTULO 1 CONHECIMENTO, VERDADE E DIREITO
1.1 Algumas palavras sobre o constructivismo lógicosemântico Muito se tem enaltecido a presença do método na composição do trabalho científico. Isso ocorre porque não existe conhecimento sem sistema de referência: este é condição sem a qual aquele não subsiste. É por se colocarem em um tipo de sistema de referência que os objetos adquirem significado, pois algo só se apresenta inteligível na medida em que conhecida sua posição em relação a outros elementos, tornando-se clara sua postura relativamente a um ou mais sistemas de referência. Sistema de referência, segundo Goffredo Telles Júnior1, consiste no universo cognitivo do sujeito. Cada ser humano “possui um conjunto ordenado de conhecimentos, uma estrutura cultural, que é seu próprio sistema de referência, em razão do qual atribui a sua significação às realidades do mundo”. Desse modo, nenhum conhecimento é absoluto, mas dependente do sistema de referência.
1. O direito quântico, p. 289.
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Nesse contexto, o método seria, em princípio, o meio escolhido pelo sujeito do conhecimento para aproximar-se do objeto por ele mesmo delimitado e, portanto, constituído no próprio processo de cognição. A eleição e aplicação de um específico método, entretanto, encerram imensa gama de dificuldades, que se acentuam, incisivamente, quando se pretende o estudo de um objeto cultural, como é o caso do direito positivo. O direito positivo, como genuína construção cultural que é, comporta muitas posições cognoscentes, podendo ser observado por ângulos diferentes, como se dá com a História do Direito, com a Sociologia do Direito, com a Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito em sentido estrito, com a Antropologia Jurídica, com a Filosofia do Direito, apenas para salientar alguns saberes igualmente dotados da mesma dignidade científica. Diante de tanta variedade, eventual descaso pelo método, decorrente da ânsia de oferecer farta cópia de informações, acaba por impedir o conhecimento. Não se pode dissociar a prática da teoria, pois tal pretensão acarreta notícias desordenadamente justapostas ou sobrepostas, bem como dados da experiência jogados ao léu. Para que isso não ocorra, faz-se necessária uma organização do campo empírico, realizada por três vieses: (i) no âmbito filosófico, mediante análise epistemológica; (ii) no âmbito conceitual, tendo como ponto de partida a Teoria Geral do Direito; e (iii) no âmbito factual, por cortes metodológicos das multiplicidades dos fenômenos concretos. Somente por meio desse aperfeiçoamento teórico que se alcançará o aprofundamento do conhecimento do direito positivo. Essas breves anotações sobre a importância do método e do sistema de referência, bem como das dificuldades inerentes ao estudo dos objetos culturais, como é caso do direito, já permitem entrever a relevância do constructivismo lógicosemântico. O estudo da teoria da linguagem tem finalidade específica de identificar instrumentos teóricos que permitam melhor compreensão e operacionalização da experiência
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jurídica. Dessa forma, busca atender-se à sempre recomendável intersecção entre teoria e prática, entre ciência e experiência, ampliando, assim, o universo das formas jurídicas. O constructivismo lógico-semântico configura método de trabalho hermenêutico orientado a cercar os termos do discurso do direito positivo e da Ciência do Direito para outorgar-lhes firmeza, reduzindo as ambiguidades e vaguidades, tendo em vista a coerência e o rigor da mensagem comunicativa. No Brasil, esse método foi desenvolvido e aplicado, pioneiramente, por Lourival Vilanova, que se dedicou ao aprofundado estudo do discurso normativo. Foi por meio do constructivismo lógico-semântico que o direito retomou suas discussões filosóficas, permitindo, inclusive, o reencontro de diversos ramos do direito com suas origens na Teoria Geral do Direito. O próprio nome constructivismo lógico-semântico foi atribuído por Lourival Vilanova. Parte de uma postura construtivista, agregando-lhe o adjetivo composto lógico-semântico, pois dirige sua atenção aos elementos do discurso. O termo constructivismo2 é empregado para denominar teorias que defendem a ideia de que há sempre intervenção do sujeito na formação do objeto. É palavra ligada ao contexto epistemológico. Contrapõe-se à corrente descritivista, que concebe o conhecimento ao modo aristotélico, como um processo de assimilação das formas. Para o constructivismo, o mundo é uma entidade cuja morfologia não aparece independe dos sujeitos que formam parte dele. A evolução das ciências, mesmo as chamadas ciências naturais, demonstra isso. É com frequência que ouvimos falar em criação de grandezas, como força e aceleração; na identificação de novos elementos, como quando se desmembrou os átomos (até então indivisíveis), em prótons, nêutrons
2. Tendo em vista tratar-se de uma Escola de Pensamento, utiliza-se a denominação que lhe foi atribuída por Lourival Vilanova, conservando-se o “c mudo”.
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e elétrons; nas modificações no modo de enxergar as realidades, como a passagem da teoria geocêntrica para a heliocêntrica; e, até mesmo, na descaracterização de uma realidade até então existente, a exemplo do que ocorreu com Plutão, que deixou de ser um planeta. Essa concepção implica abandonar a ideia de uma Ciência do Direito meramente descritiva de um objeto dado, em visão ingenuamente imparcial e não valorativa. As normas não são dadas, de antemão, no ordenamento, mas dependem de uma atividade construtiva, em que se atribui sentido ao texto de lei. Como enaltece Gregório Robles3, é impossível descrever qualquer fenômeno de cultura: a apreciação humana implica, sempre, uma construção de sentido. E o direito positivo, sendo produzido pelo ser humano, caracteriza-se como objeto cultural. A norma jurídica, unidade irredutível de manifestação do deôntico, é, nos dizeres de Lourival Vilanova, “uma estrutura lógico-sintática de significação”4. É a significação construída na mente do intérprete, resultado da leitura dos textos do direito positivo, apresentando a forma de um juízo hipotético. Não se confunde a norma jurídica, portanto, com o texto bruto, na forma como posto pelo legislador. A norma jurídica e, por conseguinte, o sistema do direito positivo, é construído a partir do texto bruto, mas com ele não se confunde. Eis o primeiro ponto distintivo do constructivismo lógicosemântico. Adotado esse método, o cientista do direito não se limita a contemplar o texto de lei, mas efetivamente constrói os sentidos normativos. A construção de sentido, porém, não é feita de modo indiscriminado. Nessa linha metodológica, procura-se amarrar as ideias, definir os termos importantes, para conferir firmeza ao discurso. E tal amarração opera-se no plano lógico e no 3. Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), p. 129. 4. “Norma jurídica – proposição jurídica (significação semiótica)”, p. 16.
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plano semântico. Daí falar-se em constructivismo lógico-semântico. Com isso, busca-se formar um discurso responsável, isto é, comprometido com as premissas, com o sentido que se firmou para os termos. Isso não significa, contudo, desprezo pelo plano pragmático. Como é sabido, toda linguagem tem um plano pragmático, sendo impossível dissociá-lo dos planos sintático e semântico. Todavia, por meio da abstração, podemos dar ênfase a um ou alguns desses aspectos. E, na proposta metodológica de que estamos tratando, o esforço é acentuado nos planos lógico e semântico. Para atingir tal desiderato, emprega-se técnica analítica. Análise equivale a um processo de resolução ou decomposição do complexo em algo mais simples. Nesse contexto, analisar equivale a decompor o objeto de estudo em uma série de elementos que facilitam a compreensão do fenômeno que se observa. No constructivismo lógico-semântico, o objeto de análise é a linguagem, a qual se pretende reduzir ou traduzir a uma linguagem formal e cuja lógica e procedimentos sejam claros, rigorosos e controláveis. É o que Paulo de Barros Carvalho fez em relação às normas jurídicas tributárias, edificando a teoria da regra-matriz de incidência tributária. O constructivismo lógico-semântico tem por procedimento reduzir os complexos linguísticos a elementos básicos, com o fim de facilitar a compreensão de seu significado. Não se confunde, porém, com a filosofia analítica, pois sofre forte influência do culturalismo. Daí porque recebe o nome, também, de postura hermenêutico-analítica. Segundo Paulo de Barros Carvalho5, no constructivismo lógico-semântico “a postura analítica faz concessões à corrente hermenêutica, abrindo espaço a uma visão cultural do fenômeno jurídico”.
5. Direito tributário, linguagem e método, p. XXIV.
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Essa é a concepção filosófica adotada por Lourival Vilanova, verificando-se (i) forte pendor analítico, aliado à (ii) formação culturalista, da Escola de Baden. No que diz respeito ao culturalismo, este tem em Miguel Reale seu maior representante brasileiro. Essa corrente filosófica consiste em uma concepção do Direito integrada pelo historicismo e pelos princípios fundamentais da Axiologia, considerando a teoria dos valores em função dos graus de evolução social. É exatamente o toque da cultura que, na lição de Paulo de Barros Carvalho6, evita que se pretenda entrever o mundo pelo prisma reducionista do mero racionalismo descritivo. Pendor analítico pode ser tomado como dinâmica mental do espírito de quem pacientemente decompõe, desarticula, analisa, para avançar em direção ao objeto e explorá-lo com a máxima potencialidade. Sempre, é, claro, no interior do universo do discurso, pois a palavra tomada como referência postula outras palavras que sobre ela discorram, de tal modo que se torna impossível romper esse domínio inesgotável de unidades linguísticas. Há que se fazer, porém, advertência acerca dos eventuais excessos no trato com o formal. A visão lógica é necessariamente parcial e o discurso linguístico há de ser visto na sua inteireza constitutiva, vale dizer, na sua integridade comunicacional, suscetível sempre de análise nas três dimensões semióticas: sintática, semântica e pragmática. Em suma, o denominado constructivismo lógico-semântico propõe-se a, respeitando a todos os modelos epistemológicos existentes, servir de método para ingresso na intimidade do fenômeno jurídico, mediante trabalho analítico, porém com influência culturalista, considerando ser o direito um objeto cultural, produto da ação humana. Trata-se de estratégia de movimentação do intelecto para apreender e devassar o
6. Idem, p. 3-4.
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objeto do conhecimento, e que persiste em toda a dimensão de seu trabalho. Método analítico, mas com acentuado aspecto culturalista, em que, a cada instante, se recupera a circunstância do homem, contextualizando-o. O constructivismo lógico-semântico pode ser visto como rigorosa elaboração da metodologia sintática e semântica do direito. Essa concepção filosófica possibilita edificar uma teoria das normas bem estruturada em termos lógicos, discutida e esquematizada no nível semântico e com boas indicações para um desdobramento pragmático. Tudo isso, considerando que a positivação do direito se opera mediante a presença indispensável da linguagem, num contexto de crenças, ideias e convicções, decorrentes dos valores dos sujeitos que integram a sociedade. Trata-se, portanto, de um estudo hermenêutico-analítico do direito, em que se dirige a atenção aos dados linguísticos (linguagem jurídico-normativa), fazendo uso das categorias lógico-semânticas do texto prescritivo e analisando a norma jurídica na sua inteireza conceptual, mas que, por outro lado, também considera a necessidade premente de o discurso teórico propiciar a compreensão da concretude empírica do direito posto. Paulo de Barros Carvalho7 vê nessa concepção expediente que potencializa a investigação: De primeiro, por sair amarrando e costurando os conceitos fundamentais, estipulando o conteúdo semântico dos termos e expressões de que se servem os especialistas; de segundo, porque projeta os elementos especulativos, preparando-os para outra sorte de indagações, agora de cunho culturalista; e, por fim, munidos desse poderoso instrumental, aplicá-lo ao direito tributário dos nossos dias.
Suas obras vêm cumprindo importante função de difundir o constructivismo lógico-semântico aplicado ao Direito, sempre procurando aplicar a lição de Lourival Vilanova, no
7. Idem, p. XXV.
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sentido de que o jurista é o ponto de intersecção entre a teoria e a prática; entre a ciência e a experiência. Seu trabalho mais recente, intitulado Direito tributário, linguagem e método, deixa isso bem evidente, demonstrando a importância e utilidade desse método. Fazendo uso do instrumental fornecido pelo constructivismo lógico-semântico, o exegeta está em condições de proceder ao exame da estrutura interna normativa, bem como das relações lógicas existentes na integração das normas com outras unidades do sistema, podendo fazê-lo tanto da perspectiva estática, isolando as proposições normativas, como da perspectiva dinâmica, abrangendo o processo de positivação do direito.
1.2 A questão do conhecimento A teoria do conhecimento, originalmente, centrava-se no estudo da relação entre sujeito e objeto, fazendo-o a partir do objeto (ontologia), do sujeito (gnosiologia) ou da relação entre ambos (fenomenologia). Com base na filosofia da consciência, via-se a linguagem como instrumento que ligava o sujeito ao objeto do conhecimento, sendo a verdade resultado da correspondência entre a proposição linguística e o objeto referido. Com o advento da filosofia da linguagem, cujo marco inicial é a obra de Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus), passou-se a considerar a linguagem como algo independente do mundo da experiência e, até mesmo, a ela sobreposta, originando o movimento hoje conhecido como giro linguístico. Essa nova corrente filosófica rompeu a tradicional forma de conceber a relação entre linguagem e conhecimento, entendendo que a própria compreensão das coisas se dá pela preexistência de linguagem, não sendo esta concebida como mero instrumento que liga o sujeito ao objeto do conhecimento. A linguagem deixou de ser um meio entre ser cognoscente e realidade, convertendo-se em léxico capaz de criar tanto o ser
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cognoscente como a realidade. Nessa concepção, o conhecimento não aparece como vínculo entre sujeito e objeto, mas como relação entre linguagens, entre significações. Costuma-se afirmar que o conhecimento consiste em saber distinguir as proposições verdadeiras das falsas, proposições estas caracterizadas por descreverem estados de coisas8. Dessa assertiva depreende-se, desde logo, que o objeto do conhecimento não são as coisas-em-si, mas as proposições que as descrevem. Não são as coisas, portanto, verdadeiras ou falsas: os enunciados a elas referentes é que se sujeitam a essa espécie de valoração. Avançando um pouco o raciocínio, adotamos o posicionamento de que o mundo exterior nem sequer existe para o sujeito cognoscente sem uma linguagem que o constitua. As proposições descritivas não se referem à coisa-em-si, mas, necessariamente, a um enunciado. Típico exemplo pode ser observado nos dicionários da língua portuguesa: não se verifica relação alguma entre coisa e linguagem; a correspondência dá-se, sempre, entre linguagens. É a autorreferencialidade da linguagem, muito bem identificada por Lourival Vilanova9: É um traço de toda linguagem o poder ela dizer algo de-simesma. Mas, nesse retrorreferir-se, move-se num universo fechado: a palavra, que figura como objeto, serve-se de outra palavra que fala acerca dela, e nunca é possível sair-se desse conjunto infinito ou indeterminável de elementos-palavras: estaremos sempre no interior do universo-do-discurso.
Firmada essa premissa, consideramos que o fenômeno do conhecimento não se opera entre um sujeito cognoscente e um objeto da experiência, pois qualquer coisa do mundo lá fora só passa a ser susceptível de se conhecer quando apreendida
8. Guibourg, Ghigliani e Guarinoni, Introducción al conocimiento científico, p. 83-84. 9. Analítica do dever-ser. Escritos jurídicos e filosóficos, v. 2, p. 45.
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pelo ser humano, que a constitui linguisticamente. Conhecer não significa a simples apreensão mental de um objeto da existência concreta. Ao contrário, é o intelecto que produz os objetos que conhecemos. Como ponderam Humberto Maturana e Francisco Varela, “todo ato de conhecimento produz um mundo”10. Em consequência, sendo produzido pelo homem, o conhecimento apresenta-se condicionado ao contexto em que se opera, dependendo do meio social, do tempo histórico e até mesmo da vivência do sujeito cognoscente. No dizer de Nicola Abbagnano11, esse contexto é composto pelo conjunto de elementos que, de algum modo, condicionam a significação de um enunciado. Tomados o conhecimento e seu objeto como construções intelectuais, sua existência dá-se pela linguagem: metalinguagem o primeiro; linguagem-objeto o segundo. Só há realidade onde atua a linguagem, assim como somente é possível conhecer o real mediante enunciados linguísticos. Quaisquer porções do nosso meio envolvente que não sejam formadas especificamente pela linguagem permanecerão no campo das meras sensações, e, se não forem objetivadas no âmbito das interações sociais, acabarão por dissolver-se no fluxo temporal da consciência, não caracterizando o conhecimento, na sua forma plena.
1.2.1 Conhecimento e linguagem A questão do conhecimento exige, previamente, o exame do vocábulo existência. A resposta à indagação “que significa existir?” é primordial para fixar o conceito de conhecimento e, por decorrência, de verdade. Além disso, adotada a posição de que o conhecimento se opera mediante construção linguística, impende examinarmos a função da linguagem no sistema social e sua relação com a existência das coisas. 10. A árvore do conhecimento, p. 68. 11. Dicionário de filosofia, p. 199.
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Temos para nós que o sentido de um significante não se confunde com o referente, considerada a coisa em si mesma: seu significado nada mais é que outro significante. Pensamos não existir correspondência entre as palavras e os objetos. A linguagem não reflete as coisas tais como são (filosofia do ser) ou tais como desinteressadamente percebe uma consciência, sem qualquer influência cultural (filosofia da consciência). A significação de um vocábulo não depende da relação com a coisa, mas do vínculo que estabelece com outras palavras. Nessa concepção, a palavra precede os objetos, criando-os, constituindo-os para o ser cognoscente. Como anota Dardo Scavino12, “não existem fatos, só interpretações, e toda interpretação interpreta outra interpretação”. Daí a conclusão de que se a coisa não precede a interpretação, só aparecendo como tal depois de ter sido interpretada, então é a própria atividade interpretativa que a cria. Exemplificando: se uma árvore cai e forma obstáculo à passagem por determinada rua, mas ninguém toma conhecimento desse evento, não há, no mundo social, o fato correspondente. A partir do momento em que a comunidade fica sabendo da ocorrência de tal fenômeno, tem-se constituído o fato social, por ter sido interpretado por alguém e vertido na linguagem da comunicação social. Assim é que, não obstante a árvore possa ter caído naturalmente, por estar muito velha, o fato social, decorrente da interpretação humana, pode consistir em “a árvore foi derrubada por alguém” ou “a árvore caiu em virtude de um temporal” ou, ainda, “a árvore foi derrubada por forças do além” etc. Em suma, o fato inexiste antes da interpretação. É o ser humano que, interpretando eventos ou até mesmo empregando recursos imaginativos, cria o fato, fazendo-o por meio da linguagem, entendida como o uso intersubjetivo de sinais que tornam possível a comunicação. Por essa mesma razão, somente por meio da linguagem é possível o conhecimento, em seu sentido pleno, como algo 12. La filosofía actual: pensar sin certezas, p. 36 (tradução nossa).
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objetivado. Vale recordar a proposição 5.6 do Tractatus logico philosophicus, segundo a qual “os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”13. Isso não significa, porém, a inexistência de quaisquer objetos físicos quando não haja linguagem. O que queremos demonstrar é ser pela linguagem e somente por ela que podemos ter acesso às coisas existentes no mundo, compreendendo-as e criando, desse modo, a realidade objetiva do ser cognoscente, pois, como leciona Paulo de Barros Carvalho14, “conheço determinado objeto na medida em que posso expedir enunciados sobre ele, de tal arte que o conhecimento se apresenta pela linguagem, mediante proposições descritivas ou indicativas”. Seguindo semelhante linha de raciocínio, Leonidas Hegenberg15 conclui que: O ser humano transforma a circunstância em mundo. Dando sentido às coisas que o cercam, interpretando-as, o ser humano pode viver (ou, no mínimo, sobreviver). Quer dizer, o ser humano reconhece as coisas, entende-as, sabe valer-se delas, para seu benefício. Em suma, o caos circundante se transforma em mundo – uma circunstância, dotada ainda que parcial e provisoriamente, de certa interpretação.
O mundo não é um conjunto de coisas que primeiro se apresentam e, depois, são nomeadas ou representadas por uma linguagem. Isso que chamamos de mundo nada mais é que uma interpretação, sem a qual nada faria sentido. Nas palavras desse autor16, ao nascer somos atirados em um mundo, o qual se apresenta, para nós, como uma circunstância cheia de coisas, a que aos poucos nos ajustamos. E, para que esse ajuste não seja apenas físico, mas também intelectual, contamos com as interpretações que dela fizeram 13. Ludwig Wittgenstein, p. 111. 14. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 93. 15. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade, p. 25. 16. Ibidem, p. 19.
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aqueles que nos antecederam, interpretações estas que conferem inteligibilidade ao mundo. A experiência sensorial é imprescindível ao ato de conhecimento. Essa experiência, porém, não se resume ao mero contato com a coisa-em-si, exigindo, para que se opere, a interpretação dos fenômenos que se nos apresentam. É mediante o contato com essa interpretação que construímos outras interpretações mais elaboradas, denominadas significações conceptuais. Em ambos os casos (interpretação primeira e fixação da significação conceptual), faz-se presente a linguagem, sendo-nos lícito afirmar que esta não se restringe a transformar a realidade efetiva em realidade conceptual: mais que isso, a linguagem é o meio pelo qual se criam essas duas realidades. O conhecimento pressupõe a existência de linguagem. A realidade do ser cognoscente caracteriza-se exatamente por esse conhecimento do mundo, constituído mediante linguagem. Não é possível conhecermos as coisas tal como se apresentam fisicamente, fora dos discursos que a elas se referem. Por isso, nossa constante afirmação de que a linguagem cria ou constitui a realidade. “Nada existe onde faltam palavras”17. Algo só tem existência no mundo social quando a palavra o nomeia, permitindo que apareça para a realidade cognoscente. Lenio Luiz Streck18 é preciso ao discorrer sobre o assunto, asseverando não ser possível falar sobre algo que não se consegue verter em linguagem: Isto porque é pela linguagem que, simbolizando, compreendo; logo, aquele real, que estava fora do meu mundo, compreendido através da linguagem, passa a ser realidade. Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que somente aparece [como mundo] na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos 17. José Souto Maior Borges, Ciência feliz, p. 123. 18. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, p. 178 (grifado no original).
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dizer que é algo. [...] A construção social da realidade implica um mundo que pode ser designado e falado com as palavras fornecidas pela linguagem de um grupo social [ou subgrupo]. O que não puder ser dito na sua linguagem não é parte da realidade desse grupo; não existe, a rigor.
As coisas não precedem o discurso, mas nascem com ele, pois é exatamente o discurso que lhes dá significado. Consoante sublinha Manfredo Araújo de Oliveira19, “não existe mundo totalmente independente da linguagem (...). A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade”. E é exatamente em busca dessa inteligibilidade e seu aprimoramento que deixamos de associar palavras a coisas, passando a relacioná-las com outras palavras, mediante aquilo que se intitula definições. Como corolário, é forçoso concluir que as definições não dizem respeito a coisas: o que definimos são as palavras mesmas, empregando outras palavras. Não definimos, por exemplo, o objeto sapato. Sapato é uma palavra e apenas como tal é possível defini-la, esclarecendo tratar-se de “um calçado”. Por tudo o que se expôs, sugerimos que o intérprete direcione sua atenção aos enunciados linguísticos, especialmente porque deles decorre a própria existência dos objetos.
1.3 “Saber de”, “saber como” e “saber que” Leonidas Hegenberg20, em aprofundado estudo sobre o conhecimento, identifica três espécies de saber: (i) saber de; (ii) saber como; e (iii) saber que, relacionando-os com as etapas pelas quais o ser humano passa para atingir aquilo que chamamos conhecimento. O saber de, primeira dessas fases, consiste na compreensão rudimentar do mundo, necessária à sobrevivência do
19. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 13. 20. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade, passim.
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sujeito cognoscente. É a atribuição de um sentido mínimo às coisas que o circundam, permitindo identificá-las mediante a percepção: visão, toque, olfato, audição, paladar. O saber das coisas dá-se mediante sensações que, já enriquecidas por experiências passadas e pela memória, possibilitam o reconhecimento dos objetos sempre que com eles novamente se deparar o sujeito. Efetuados os primeiros contatos com o mundo, desenvolve-se um saber mais complexo, abrangendo relações de causa e efeito [se... então...], permitindo atribuir significados mais claros às coisas. É o saber como. Nesse momento, o sujeito cognoscente encontra-se apto a executar atos de crescente complexidade, mediante sua atuação sobre o mundo. Por fim, como resultado dessa vivência, aliada a inferências intelectivas, o homem atinge o saber que. Este equivale ao conhecimento, no sentido corriqueiramente empregado. Os três tipos de saber andam juntos. À medida que entramos em contato com novos objetos, antes ignorados, aumentamos o saber de. Este, geralmente, relaciona-se com algum ato a executar, implementando nosso saber como. Procuramos, ainda, saber por que as coisas são de determinada forma e não de outra, utilizando, para tanto, nossa capacidade de raciocinar e inferir, alcançando o saber que, ou seja, o conhecimento, na sua plenitude.
1.4 Conhecimento e sistema de referência Não existe conhecimento sem sistema de referência: este é condição sem a qual aquele não subsiste. É exatamente por se colocarem em um tipo de sistema de referência que os objetos adquirem significado, pois algo só é inteligível à medida que é conhecida sua posição em relação a outros elementos, tornando-se clara sua postura relativamente a um ou mais sistemas de referência.
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Mesmo aquela compreensão rudimentar do mundo [saber de] depende de um ponto referencial, pois se orienta por coordenadas de tempo e de espaço. Assim é que uma criança nascida na cidade grande consegue distinguir ruídos de caminhões e automóveis, reconhece o cheiro do monóxido de carbono etc., ao passo que a criança de uma fazenda localizada no interior identifica o som do rastejar da cobra, bem como o piar das diversas espécies de pássaros. O saber de para ambas é diferente, em função do sistema de referência de cada uma. Cada pessoa, conforme seus sistemas de referência, ou seja, suas vivências, dispõe de um particular e específico saber de. É em consequência disso que um mesmo evento ou um único fato podem ser interpretados diferentemente pelos indivíduos. O saber como também se sujeita a condições de tempo e espaço em relação às quais se consolida. Nas matas, um jovem sabe como evitar um escorpião ou caçar um tatu, enquanto o jovem da cidade sabe como tomar um ônibus ou abrir uma lata de conservas. Como bem esclarece Leonidas Hegenberg21, “as ações que somos compelidos a executar no ambiente em que vivemos ditarão, em boa medida, o que se tornará um apropriado saber como”. Pelas mesmas razões, o saber que [conhecimento], andando junto com o saber de e saber como, e sendo dependente do raciocínio e inferência humanos, também exige um sistema de referência. Não havendo sistema de referência, o conhecimento é desconhecimento22, pois, sem a indicação do modelo dentro do qual determinada proposição se aloja, não há como examinar sua veracidade.
21. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade, p. 27. 22. Goffredo Telles Júnior, O direito quântico, p. 289.
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1.5 A teoria do conhecimento segundo o constructivismo lógico-semântico Na trajetória da teoria do conhecimento observamos certa evolução em que, de início, tomava-se o objeto ou o sujeito como determinantes para o conhecimento: eis a ontologia e a gnoseologia, respectivamente. Desse modo, Husserl ocupou-se do objeto do conhecimento. Para esse autor, nada se poderia conhecer se na realidade bruta não houvesse algo dotado da possibilidade de ser captado pelas sensações e pelo intelecto. Passou-se, depois, a considerar a necessária relação entre sujeito e objeto [ontognoseologia], seguindo em direção à fenomenologia, nos termos da qual não conhecemos as coisas como são em si, mas como se nos apresentam. Nessa esteira, Kant se preocupou em elaborar estudos sobre as formas e categorias do conhecimento em função do sujeito transcendental. Na visão kantiana o sujeito, no contexto espaço-temporal, cria o objeto, a ele aplicando categorias do conhecimento. Com base na filosofia da consciência, via-se a linguagem como instrumento que ligava o sujeito ao objeto do conhecimento, sendo a verdade resultado da correspondência entre a proposição linguística e o objeto referido. Na linha do constructivismo lógico-semântico, de modo diverso, entendemos haver inevitável interdependência entre sujeito e objeto: o sujeito só é sujeito perante um objeto e o objeto só é objeto em face de um sujeito. E tal relação ocorre em um contexto específico, sendo o conhecimento determinado pela cultura. O conhecimento não aparece como relação entre sujeito e objeto, mas como relação entre linguagens, entre significações, inserindo-se na concepção da filosofia da linguagem, e, mais especificamente, do giro linguístico. Esse modo de pensar não significa um abandono das construções de Husserl e Kant, mas uma evolução em que passa a considerar-se, com ênfase, o contexto cultural. Assim
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é que Miguel Reale23 pontua que “a questão do conhecimento não pode se reduzir a uma relação puramente lógica entre ser cognoscente e realidade cognoscível, porquanto um e outra se situam ab initio em um contexto cultural”. Afasta-se, com isso, qualquer dogmatismo em relação ao conhecimento. O dogmatismo advém do vocábulo “dogma”, cujo significado refere-se a algo que não precisa de explicação. Para essa posição epistemológica, não existe o problema do conhecimento: não vê o conhecimento como uma relação entre sujeito e objeto, acreditando que os objetos do conhecimento são dados absolutos e que o sujeito simplesmente apreende o objeto. As coisas existem, pura e simplesmente: a verdade está no objeto. Segundo tal concepção, o conhecimento é possível em sua plenitude: o sujeito pode conhecer o objeto em sua totalidade. Partindo dessa premissa, as verdades são certas e indiscutíveis, não havendo função mediadora do intelecto humano na construção do conhecimento. Para o dogmático, também os objetos e os valores existem, pura e simplesmente, independente do sujeito cognoscente. É, segundo Johannes Hessen24, atitude do homem ingênuo, sendo a primeira e mais antiga posição. Por outro lado, o fato de o conhecimento ser construído pelo ser humano e, portanto, inexistir uma verdade objetiva e absoluta, não implica a adoção do ceticismo. O ceticismo, corrente oposta ao dogmatismo, nega a possibilidade do conhecimento. Prega o ceticismo pirrônico [ou pirronismo] que, como o sujeito não pode apreender o objeto, o conhecimento é impossível. Em consequência, não se pode formular qualquer juízo, restando ao sujeito abster-se de julgar. Esse ceticismo, de caráter radical e absoluto, porém, representa uma contradição em termos, pois afirmar que o 23. Cinco temas do culturalismo, p. 28. 24. Teoria do conhecimento, passim.
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conhecimento é impossível implica dizer que se conhece algo: a impossibilidade do conhecimento. Com ele não se confunde o ceticismo acadêmico, postura acadêmica que reconhece nunca termos certeza de algo, de modo que não podemos dizer que uma proposição é verdadeira, mas que parece verdadeira. Na esteira do constructivismo lógico-semântico, o conhecimento é possível: realiza-se com suporte na linguagem. Firmada essa premissa, consideramos que o fenômeno do conhecimento não se opera entre um sujeito cognoscente e um objeto da experiência, pois qualquer coisa do mundo lá fora só passa a ser suscetível de se conhecer quando apreendida pelo ser humano, que a constitui linguisticamente. Conhecer não significa a simples apreensão mental de um objeto da existência concreta. Ao contrário, é o intelecto que produz os objetos que conhecemos. Em consequência, sendo produzido pelo homem, o conhecimento apresenta-se condicionado ao contexto em que se opera, dependendo do meio social, do tempo histórico e até mesmo da vivência do sujeito cognoscente. Esse contexto é composto pelo conjunto de elementos que, de algum modo, condicionam a significação de um enunciado. Tomados o conhecimento e seu objeto como construções intelectuais, sua existência dá-se pela linguagem: metalinguagem o primeiro; linguagem-objeto o segundo. Só há realidade onde atua a linguagem, assim como somente é possível conhecer o real mediante enunciados linguísticos. Quaisquer porções do nosso meio envolvente que não sejam formadas especificamente pela linguagem permanecerão no campo das meras sensações, e, se não forem objetivadas no âmbito das interações sociais, acabarão por dissolver-se no fluxo temporal da consciência, não caracterizando o conhecimento, na sua forma plena. Nesse sentido, anota Miguel Reale25 que “enquanto este não se torna objetivo e comunicável, não há como se falar em conhecimento propriamente dito. [...] 25. Idem, p. 42.
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enquanto o ‘conhecido’ não se exterioriza, revelando-se ‘objeto cultural’, como tal, não há ainda plenitude de conhecimento e comunicação”. Há, entre conhecimento e comunicação, um vínculo incindível. Só existe conhecimento, propriamente dito, quando este se torna objetivo e comunicável. E esse ato de objetivação, convém registrar, é de ordem cultural. Com isso, tem-se a superação da dualidade sujeito cognoscente/realidade conhecida: o que se percebe é a realidade vista pelo sujeito, sendo dependente de condições subjetivas e intersubjetivas. Tem-se o conhecimento, portanto, como relação entre linguagens: a do sujeito cognoscente e a do objeto (aquilo que do objeto se fala). Podemos dizer, então, que o conhecimento é sempre meta-conhecimento, já que para conhecer algo é preciso uma pré-compreensão daquilo que se pretende conhecer. Eis do dado da cultura, atuando como condição a priori do conhecimento.
1.6 O “saber que” e sua relação com a verdade, crença e justificação A fórmula “P sabe que S”, representativa do conhecimento, em que “P” é o sujeito e “S” indica uma sentença declarativa qualquer, pode ser enunciada quando duas condições forem simultaneamente satisfeitas: (i) “P” crê que “S” (acredita no que a sentença “S” afirma); e (ii) “P” tem razões não refutadas que justificam crer que “S”. Em suma, as condições a serem observadas consistem na: (a) crença; e (b) justificação. A crença é tomada como a atitude de afirmar, com certo grau de probabilidade ou certeza, a veracidade de determinada proposição, ainda que não se consiga prová-la racional e objetivamente.
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Guibourg, Ghigliani e Guarinoni26 reconhecem gradação à crença, que pode caracterizar-se como (i) mera conjectura, entendida na qualidade de suposição inverificável ou ainda não verificada; (ii) suspeita, consistente em opinião fundamentada em indícios não veementes; (iii) probabilidade, em que se têm elementos favoráveis à certificação de determinado acontecimento, sem, no entanto, eliminar a possibilidade contrária; e (iv) certeza, configurando o grau máximo da crença, decorrente de um estado psicológico de adesão firme e sem resquício algum de dúvida àquilo que se conhece. Todavia, ainda que se esteja diante da mais elevada intensidade da crença, isso não garante veracidade à proposição, pois conquanto seja condição do conhecimento [saber que], não se apresenta como condição bastante. Para que uma crença seja considerada verdadeira é preciso ter justificação suficiente, aperfeiçoada mediante aquilo a que chamamos de prova. Consiste na argumentação que leva o sujeito “P” a reconhecer ou aceitar a veracidade de uma sentença “S”, ou, em sentido lógico, na demonstração da veracidade de uma proposição, de acordo com determinados princípios lógicos e regras de inferência. Só estaremos habilitados a afirmar que uma proposição é verdadeira, portanto, caso: (i) creiamos na sua veracidade; e (ii) tenhamos provas que justifiquem essa crença. Verdadeiro é o fato que está comprovado de tal forma que se tenha certeza de sua ocorrência: “a prova é sempre e em todo caso a pedra de toque da verdade”27. Tudo isso, obviamente, enunciado de acordo com as regras que presidem cada sistema.
1.7 Breves considerações sobre a verdade Anotamos que o objeto do conhecimento são proposições, a estas se atribuindo os valores verdade e falsidade. Mas que 26. Introducción al conocimiento científico, p. 94. 27. Antonio Dellepiane, Nova teoria da prova, p. 62.
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é verdade? Seria possível conhecê-la? Existiria uma verdade única? Para afirmarmos que “S” é uma sentença verdadeira, e, por conseguinte, estarmos diante do saber que, essas indagações devem ser enfrentadas. Para tanto, convém esclarecer, desde logo, que a verdade é metafísica. Na literalidade, o vocábulo metafísica corresponde à locução após a física, significando, para fins filosóficos, “aquilo que está além da física, que a transcende”28. A metafísica abrange questões que não podem ser solucionadas mediante a experiência, ultrapassando o campo do empírico. Esse conceito aplica-se integralmente à ideia de verdade, pois esta não é susceptível de apreciação pelo método das experiências: todos falam em nome da verdade, mas não há como saber, mediante procedimentos experimentais, quem está realmente dizendo a verdade. Algo semelhante se verifica, por exemplo, com a noção de justiça: é um valor cuja verificação está além das possibilidades de exames empíricos. Diante de uma mesma situação fática, dois sujeitos podem chegar a conclusões distintas: para um, fez-se justiça; para outro, o que houve foi injustiça. Verdade, justiça e segurança jurídica são alguns dos vários conceitos que podemos denominar metafísicos, dada a insusceptibilidade de conhecimento empírico. Isso não significa, contudo, serem esses conceitos ininteligíveis. O fato de ser inexperimentável não se confunde com a incognoscibilidade: o metafísico é passível de conhecimento, ainda que não empírico. Por esse motivo, faz-se necessário analisar as principais correntes filosóficas que se voltam ao conhecimento da verdade, para, optando por uma delas, estarmos habilitados a discorrer sobre a veracidade ou falsidade de determinada proposição.
28. Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia, p. 165.
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1.7.1 Verdade por correspondência Classicamente, define-se a verdade como a adequação de determinada sentença à realidade, exigindo-se identidade entre a proposição afirmativa ou negativa de algo e a realidade por ela referida. Essa ordem de ideias tem sua origem nas concepções platônicas e aristotélicas, considerando (i) a existência de uma realidade anterior e independente do pensamento, em postura realista ontológica, bem como (ii) a possibilidade de ser o real descrito de modo neutro e objetivo, conforme os pressupostos da visão realista epistêmica. É o que sustentam os adeptos da teoria da verdade por correspondência. Essa correspondência demanda que exista um estado de coisas susceptível de ser descrito pela sentença cuja verdade se está averiguando. No caso de tratar-se de um enunciado negativo, sua veracidade depende da inexistência de estado de fato que se enquadre em sua descrição. O pressuposto para a verdade de uma assertiva estaria relacionado à circunstância de ela descrever os fatos tais como eles são. Exatamente aí reside o primeiro problema dessa corrente: ignorar o fato de que o mundo da experiência não pode ser integralmente descrito pela linguagem e, portanto, de que a proposição não o espelha de forma completa. O real é infinito e irrepetível, possuindo, cada objeto, um número ilimitado de determinações. Por isso, o sujeito cognoscente tem sempre percepções parciais do mundo. O segundo obstáculo à adoção de tal posicionamento filosófico consiste no fato de que, nos termos da premissa firmada neste trabalho, as coisas só existem para o ser humano a partir do instante em que se tornam inteligíveis para ele. Dependem, portanto, da sua constituição em linguagem. Disso decorre que a proposição cuja veracidade se examina não se refere ao objeto-em-si, mas ao enunciado linguístico que a compõe, inexistindo aquela suposta correspondência entre a linguagem e algo exterior a ela.
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1.7.2 Fenomenalismo O fenomenalismo é doutrina filosófica segundo a qual o homem não tem acesso à coisa-em-si, mas apenas aos fenômenos, entendidos em seu sentido kantiano, ou seja, a manifestação, forma pela qual as coisas aparecem aos olhos do sujeito cognoscente. Adotando essa linha de raciocínio, assevera Porto Carrero29 que, “por mais que busque aproximar-se do nômeno, há de ater-se sempre ao fenômeno, sempre à aparência real das coisas, diante dos sentidos aperfeiçoados, aparelhados e computados, na sua inópia, pela inteligência”, razão pela qual inexistiria uma verdade absoluta. Conquanto essa teoria negue a possibilidade de o ser humano apreender a coisa-em-si, não deixa de aceitar que existam objetos da experiência, susceptíveis de conhecimento direto. Diverge da verdade por correspondência apenas pelo fato de que não exige relação entre o enunciado e a coisa, mas entre o enunciado e a manifestação da coisa: o fenômeno. Peca, portanto, ao desconsiderar que o próprio fenômeno, para ser conhecido pelo homem, precisa ser constituído em linguagem, pois é só por meio desta que a manifestação do mundo se torna inteligível.
1.7.3 Verdade por coerência Nos termos da teoria da verdade por coerência, a realidade seria um todo coerente, no sentido de que as proposições que em seu conjunto a descrevem não podem ser contraditórias entre si. Essa teoria exige, outrossim, que, além da inexistência de contradição, as proposições aceitas como verdadeiras possam ser deduzidas umas das outras. A verdade do enunciado é identificada pela coerência interna do discurso, pela observância à lei lógica da não-contradição das proposições entre si: a verdade não se estabelece entre o enunciado e
29. Psicologia judiciária, p. 77.
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o mundo da experiência, mas decorre da coerência de determinado juízo com um sistema de crenças ou verdades anteriormente estabelecidas. Tendo em vista que a verdade por coerência preserva a ausência de contradição dentro do sistema, pode ser tomada como critério de verdade interno a um sistema ou teoria determinada, implicando não apenas a ausência de enunciados contraditórios, mas também a presença de conexões positivas que estabeleçam harmonia entre tais elementos30. Falar em verdade por coerência implica, necessariamente, tomar como objeto de análise um determinado sistema: opera-se no interior de um sistema, considerando a relação harmônica e confirmativa ou outras crenças constantes desse mesmo sistema31.
1.7.4 Verdade por consenso Segundo a teoria consensual, a verdade não decorre da relação entre enunciados linguísticos e a realidade sensível, mas do consenso ou acordo entre os indivíduos de determinada comunidade ou cultura32. Dentre vários enunciados, seria verdadeiro aquele que contasse com maior credibilidade. Danilo Marcondes33 define consenso como “um entendimento entre os membros de uma comunidade em determinado período histórico em torno de determinados conceitos e valores”. E, continua esse autor34: “São as convenções sociais de uma comunidade que estabelecem os parâmetros segundo os quais o proferimento de uma sentença pode ser considerado 30. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 147. 31. Essa é a espécie de verdade objetivada no art. 926 doCPC/2015, ao dispor que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. 32. Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia, p. 242. 33. A verdade, p. 29. 34. Idem, ibidem.
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verdadeiro”, evidenciando-se no consensualismo uma forma de convencionalismo, formado historicamente. Sobre o assunto, também Gregorio Robles assevera ser consensual o caráter da verdade histórica:35: “só podemos estar seguros de que determinado texto não se ajusta à verdade escrevendo outra história que demonstre a falsidade do texto criticado. E dificilmente essa demonstração proporcionará certeza suficiente, porque não existe uma prova histórica conclusiva. Pode-se dizer que a communis opinio dos historiadores será o sinal decisivo da exatidão dos conhecimentos alcançados”. Essa verdade, como qualquer outra, é sempre relativa, podendo ser substituída por uma mais recente, tendo em vista que as opiniões comuns ou dominantes são susceptíveis de alteração com o passar do tempo. Necessário se faz deixar bem claro que, nesse contexto, consenso não significa acordo explícito firmado pela totalidade dos integrantes de um sistema, mas sim um consenso “no sistema”, posto como tal por sujeitos habilitados para tanto. Estabelecem-se, assim, verdades “jurídicas”, muitas vezes diferentes daquilo que, no macrossistema social, é tido por verdadeiro. Não obstante argumentos no sentido de que a adoção dessa corrente filosófica acarretaria grande insegurança, por transformar a convicção comunitária da verdade em critério de certeza36, entendemos que, sendo visto o consenso, base para identificação da verdade, como algo constituído pelo sistema em que se insere, essa teoria é perfeitamente aplicável. Isso porque o próprio sistema estabelece o que é consenso, como e quando se opera, eliminando instabilidades na determinação da verdade consensual.
35. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 25. 36. Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p. 43.
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1.7.5 Verdade pragmática A teoria da verdade pragmática, também denominada verdade como utilidade, considera ser um enunciado verdadeiro se, e somente se, tiver ele efeitos práticos para quem o sustenta, sendo-lhe útil. Tal utilidade, quando reconhecida, ampliaria o âmbito de credibilidade da proposição, de modo que, apresentando a crença os caracteres da estabilidade e da generalidade, a proposição seria considerada verdadeira. Para essa corrente filosófica, a verdade não seria um valor teórico, mas apenas uma expressão para designar a utilidade, para indicar aquela função do juízo que conserva a vida e serve à vontade de poder. Verdadeiro, segundo Nietzsche37, “significa apenas o que é apropriado à conservação da humanidade. O que me faz perecer quando lhe dou fé não é verdade para mim: é uma relação arbitrária e ilegítima do meu ser com as coisas externas”. Nesse sentido, verdade confundir-se-ia com utilidade, posicionamento este que, segundo Maria Rita Ferragut38, carece de cientificidade. Para além disso, tendo em vista que, pela perspectiva pragmática, algo é considerado verdadeiro conforma as consequências de sua aplicação prática, há aí, uma espécie de verdade por correspondência: entre o relato e o fato consequencial observado.
1.8 O significado do vocábulo “verdade” adotado neste trabalho Adotamos a concepção segundo a qual a verdade não se dá pela relação entre a palavra e a coisa, mas entre as próprias
37. Wille zur Mach, ed. Kröner, 1978, p. 507, apud Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 998. 38. Presunções no direito tributário, p. 42.
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palavras, ou seja, entre linguagens. Daí porque, sendo relação entre enunciados construídos pelo homem, podemos dizer que a verdade não é simplesmente descoberta, mas criada pelo ser humano no interior de determinado sistema. No âmbito jurídico, a propriedade de tal assertiva é facilmente verificada. O sistema do direito positivo indica os momentos em que os fatos podem ser constituídos mediante produção probatória, impõe prazos para a apresentação de defesas e recursos [tempestividade], além de estabelecer o instante em que as decisões se tornam imutáveis [coisa julgada]. Com determinações desse jaez, fornece os limites dentro dos quais a verdade será produzida, prescrevendo sejam tomadas como verídicas as situações verificadas no átimo e forma legais, independentemente de sua relação com o mundo das coisas. O mesmo se pode dizer da realidade social: tem-se por verdadeiro um fato quando constituído pela linguagem do sistema social, aceita conforme as regras da respectiva comunidade. Essa a razão, também, por que é imprescindível a noção de sistema para fixação da verdade. Apenas pela relação entre as linguagens de determinado sistema pode aferir-se a veracidade ou falsidade de dada proposição. Um enunciado é verdadeiro, em princípio, quando está em consonância com uma interpretação estabelecida, aceita, instituída dentro de uma comunidade de pertinência. O enunciado verdadeiro não diz o que uma coisa é, mas o que pressupomos que seja dentro de uma cultura particular. Nesse sentido, o mundo nada mais é que um sistema de crenças, mediante o qual o ser o humano transforma o caos em algo inteligível. Nascemos e vivemos em um mundo de crenças, as quais, sem divergências dignas de nota, acolhemos e tornamos nossas, utilizando-as como pontos de partida para o desenvolvimento de novas verdades. É o que acontece, por exemplo, com a matemática, física e química: são grandes
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crenças com que vivemos, utilizadas como premissas para discussões, pesquisas e formação do conhecimento. Por tais motivos, tomamos a verdade como o valor em nome do qual se fala, caracterizando necessidade lógica do discurso. Sempre que alguém transmite uma mensagem de teor descritivo, o faz em nome de uma “verdade”, que pretende seja aceita. Sem essa pretensão veritativa, a informação não tem sentido. Essa, a nosso ver, é a posição que melhor reflete as premissas firmadas neste trabalho, tendo em vista que entendemos inadmissível a atribuição de veracidade ou falsidade a um enunciado, com fundamento na correspondência deste com a coisa ou com a manifestação da coisa, ocorrida no mundo da experiência. Diversamente, a verdade de que falamos pode ser referida como a correspondência entre a proposição e uma pré-interpretação mais originária do acontecimento, como pretende Dardo Scavino39. Estamo-nos referindo à verdade construída, que não é simplesmente revelada ou descoberta, mas que nasce do relacionamento intersubjetivo [consenso], considerado determinado quadro referencial [coerência]40.
1.8.1 Renúncia à ideia de verdade objetiva A verdade não se descobre: inventa-se, cria-se, constrói-se. Não há uma verdade objetiva, isto é, uma verdade que possa reclamar validade universal. A verdade é sempre relativa, configurando, como assevera Richard Rorty41, “o êxito de um discurso em um mercado de ideias”. Depende, portanto, 39. La filosofía actual: pensar sin certezas, p. 43. 40. Como anota Danilo Marcondes (A verdade, p. 22), a teoria da verdade por coerência e a da verdade por consenso não são necessariamente excludentes. Vários de seus aspectos são conciliáveis e, ao nosso ver, apropriados para, conjuntamente, estabelecer o método de construção da verdade no interior de determinado sistema. 41. El giro linguístico, p. 65.
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das circunstâncias de tempo e de espaço em que se encontra inserida: a verdade “terra plana” de ontem deixa de existir, dando lugar à verdade “terra redonda” de hoje42. Tal conclusão decorre do fato de que, como para os adeptos da corrente filosófica denominada giro linguístico a verdade não se dá pela correspondência da proposição ao objeto, não há que falar em essências a serem descobertas. Sendo a própria linguagem que cria os objetos, inexistem verdades únicas e imutáveis. O conhecimento, assim como a verdade, são construções linguísticas, sempre sujeitas a refutação por outras proposições. Aquele sistema de crenças tomado como quadro referencial é mutável. Pode, a qualquer momento, sofrer alterações, sendo seus elementos substituídos por outras crenças. Para tanto, necessário que novas proposições e teorias recém formuladas sejam acolhidas pelo sistema. A fórmula “P sabe que S” é falível, sempre existindo ampla possibilidade de rever cada uma das sentenças tomadas como verdadeiras. O falibilismo é inerente aos enunciados que se pretendam verídicos43. Nessa concepção, inexistem verdades absolutas. Todas são relativas: dependem do sistema em que se inserem, das condições de tempo e de espaço. A relatividade da verdade está intimamente relacionada, também, com a possibilidade de modificação dos sentidos atribuídos às palavras de acordo com o sintagma ou com a sucessão discursiva44.
42. Moacyr Amaral Santos, Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 2. 43. O princípio do falibilismo dos enunciados abrange, inclusive, o próprio enunciado que atesta o falibilismo, imprimindo caráter cético a esse posicionamento. Tal ceticismo, porém, não deve ser radical para evitar o “niilismo”, que tolhe a ação, comprometendo as iniciativas do processo cognoscitivo. O ceticismo ora adotado tem cunho teórico-filosófico, cessando tão logo sejam escolhidos os instrumentos para dar operacionalidade funcional à pesquisa, fazendo-a progredir. 44. Eixo paradigmático é o conjunto das palavras que possuem o mesmo sentido, podendo umas substituir as outras, enquanto eixo sintagmático é o relativo às palavras que circundam as demais. Este último confere contexto aos vocábulos, influin-
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Reconhecer e aceitar o falibilismo não implica, entretanto, a negação da existência de “verdades”. Muito pelo contrário. A verdade afigura-se como pressuposto do discurso, algo em nome do qual se fala, possibilitando a convivência e a tomada de decisões. Nota-se, assim, não sermos adeptos do relativismo, entendido como corrente de pensamento que considera possível, dentro de um mesmo sistema, que algo seja verdadeiro para um sujeito e falso para outro, renunciando ao princípio da não-contradição. Também não caracterizamos nossa postura como cética radical, pois essa corrente filosófica, embora parta do pressuposto de que para cada argumento a favor de uma tese existe outro argumento a favor da tese oposta, ambos com igual probabilidade, realiza a suspensão do juízo, não se preocupando com o que seja verdadeiro ou falso, implicando ausência de opinião. Quando afirmamos que não há uma verdade absoluta, universal, referimo-nos à variação de sentidos e valores que uma proposição pode apresentar em virtude da influência do ambiente e condições impostas pelos diferentes sistemas45. Nem poderia ser diferente, considerando que o ser cognoscente desempenha, inevitavelmente, atividade hermenêutica quanto ao objeto de conhecimento. Uma circunstância fenomênica pode ser observada por perspectivas distintas, pois a compreensão do mundo depende horizontes da cultura do intérprete. Nesse sentido, Ronaldo Porto Macedo Júnior46 alude a uma nova ideia de objetividade, que supera a concepção fisicalista da realidade, na medida em que “a objetividade depende, em certa medida, de nós mesmos”. Desfaz-se, com isso, o mito da “imaculada percepção”, que possibilitaria des-
do em sua significação dentro do discurso. 45. Tal postura aproxima-se da corrente filosófica denominada acadêmica, em que se vislumbra uma espécie de dogmática negativa, decorrente do axioma segundo o qual a verdade é inatingível. 46. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea, p. 132.
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crições representacionistas dos objetos, independentes de qualquer subjetividade. Por esse caminho, abandona-se a ideia de um realismo ingênuo ou de um objetivismo absoluto, como demonstrado por B. Russell47: Todos nós partimos do ‘realismo ingênuo’, isto é, a doutrina de que as coisas são como parecem... Mas a física nos garante que o verde da grama, a dureza e a frieza das pedras, e a frieza da neve não são o verde, a dureza e a frieza que conhecemos de nossas experiências pessoais, mas alguma coisa diferente. O observador... realmente... está a observar o efeito da pedra sobre ele... O realismo ingênuo leva à física e a física, se for verdadeira, demonstra que o realismo ingênuo é falso.
A inafastabilidade da atividade interpretativa pelo sujeito que se coloca na postura de observador de um acontecimento qualquer mostra, com evidência, inexistir uma verdade única, absoluta e imutável. Nesse contexto, ganha relevo o método empregado na construção da verdade do fato alegado, de modo que este se afigure convincente em determinado domínio, e, com isso, se estabeleça como “real”.
1.8.2 A autossustentação pela linguagem O significado, como durante muito tempo se pensou, não consiste na relação entre suporte físico e objeto representado, mas na relação entre significações. As assertivas não denotam os acontecimentos em si, mas outras palavras. A verdade não corresponde à identidade entre determinada proposição e o mundo da experiência, mas à compatibilidade entre enunciados: (i) aquele que afirma ou nega algo e (ii) o que constitui o fato afirmativo ou negativo, mediante a linguagem admitida pelo sistema em que se insere [provas].
47. An inquiry into meaning and truth, Londres, 1940, p. 14-15. [tradução livre]
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É comum referirmo-nos a coisas que não percebemos diretamente e de que só temos notícias por meio de testemunhos alheios. Falamos de lugares que não visitamos, pessoas que não vimos e não veremos [como nossos antepassados e os vultos da História], de estrelas invisíveis a olho nu, de sons humanamente inaudíveis [como os que só os cães percebem], e muitas outras situações que não foram e talvez jamais serão observadas por nós. Aludimos, até mesmo, a coisas que não existem concretamente. Por esse motivo, seguimos a linha das teorias retóricas, baseadas no princípio da autorreferência do discurso, contrapondo-nos às teorias ontológicas, que consideram a linguagem humana simples meio de expressão da realidade. Noticia Paulo de Barros Carvalho que “a adoção desse princípio filosófico implica ver a linguagem como não tendo outro fundamento além de si própria, não havendo elementos externos à linguagem [fatos, objetos, coisas, relações] que possam garantir sua consciência e legitimá-la”48. Os acontecimentos não falam. É a linguagem que os constitui e também é ela que os destrói. Não são os eventos que se rebelam contra uma teoria, demonstrando sua inadequação a eles. Somente uma teoria refuta outra teoria. Além disso, é sabido que os acontecimentos físicos se exaurem no tempo. Uma vez concretizado, desaparece, sendo impossível ter-lhe acesso direto. Enrique M. Falcón49, ao discorrer sobre o conhecimento e o modo como este se opera, deixa transparecer essa impossibilidade de intersecção entre fato e evento, ou seja, entre o relato linguístico e o mundo da experiência: “Em geral, se pensa que os acontecimentos passados sobre os quais temos conhecimento não só foram reais, mas também se podem recordar e reviver com toda exatidão. Isso não é certo, pois não se pode afirmar, fora de toda dúvida, no sentido próprio da palavra, a certeza absoluta com relação 48. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 5. 49. Tratado de la prueba, v. 1, p. 95-96 [tradução nossa].
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à ocorrência do evento. Quando muito, podemos dizer que segundo os dados relativos aos acontecimentos, com uma comprovação e controle estrito disso, a possibilidade de que haja sucedido de outra forma é improvável (mas não impossível). Mas nunca se poderá ter a convicção absoluta disso”. Tal situação se verifica, como já anotamos, por ser a linguagem que constitui a realidade. Só se conhece algo porque o homem o constrói por meio de sua linguagem. Enfatiza Tárek Moysés Moussallem50 que “os eventos não provam nada, simplesmente porque não falam. Sempre uma linguagem deverá resgatá-los para que eles efetivamente existam no universo humano”. Isso não significa que a linguagem apenas reconstrua algo já existente no plano concreto. Não há reconstrução, mas verdadeira construção, no sentido de criação primeira. Conquanto a linguagem fale em nome de um evento, dada a sua autossuficiência é possível que, mesmo não tendo ocorrido certo acontecimento, este venha a ser reconhecido pela linguagem. Nesse caso, teremos um fato sem efetiva correlação com o evento [embora o fato tenha existência exatamente por certificar um evento]. Acerca do tema, Paulo de Barros Carvalho51 formula o seguinte exemplo: “sendo suficiente para o reconhecimento jurídico a linguagem que certifica o evento, pode dar-se, também, que não tenha acontecido o crime, isto é, em termos de verdade material, não tenha ocorrido. Todavia, se as provas requeridas o indicarem, para o direito estará constituído”. Referido relato alude à constituição do fato jurídico-penal, mas é igualmente aplicável à esfera do direito tributário e ao sistema social. Cada qual constitui seus fatos mediante a linguagem por eles considerada competente: linguagem jurídica para o primeiro; linguagem social para o segundo.
50. Fontes do direito tributário, p. 27. 51. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 11.
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1.9 Teoria dos jogos da linguagem e a legitimação pelo procedimento A partir da concepção dos jogos de linguagem, podemos identificar dois tipos: um infinito e outro finito. Enquanto na primeira espécie objetiva-se continuar o jogo, na segunda almeja-se vencer. O ponto comum de ambos é a necessidade de que os sujeitos aceitem jogar: é princípio invariável de todo jogo que quem quer que jogue faça-o livremente. No mais, há um grande contraste entre as duas modalidades: as regras do jogo infinito são como a gramática de uma língua viva, utilizada para dialogarmos uns com os outros, ao passo que as do jogo finito assemelham-se às normas do debate, visando a encerrar a fala de outra pessoa. Todos os jogos, infinitos ou finitos, são autônomos e, por conseguinte, heterogêneos uns com relação aos outros, pois cada qual tem suas próprias regras. Um jogo, portanto, legitima apenas as afirmações efetuadas dentro do seu contexto. Um pai, por exemplo, não pode obrigar o filho a arrumar suas coisas se se restringe, simplesmente, a descrever tal conduta. Do mesmo modo, um juiz de paz não consegue realizar casamentos sem observância às regras do jogo, isto é, às prescrições necessárias à sua concretização. Nas palavras de Tárek Moysés Moussallem52, “é como se cada qual efetivamente habitasse uma linguagem e jogasse, de acordo com determinadas regras, com os demais que também a coabitam [S’R S”]”. É certo, também, que não podemos jogar sozinhos. Em todos os casos, precisamos encontrar um oponente [no jogo finito] ou companheiro de equipe [jogo infinito]. Uma pessoa não pode sequer ser humana sozinha, pois inexiste individualidade desacompanhada do convívio social, constituído por uma rede de comunicações. Não nos relacionamos com
52. Fontes do direito tributário, p. 31.
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os outros porque somos determinada pessoa; somos quem somos ao nos relacionarmos com os outros53. Todo jogo apresenta limitações à ação de seus jogadores. E, considerando que estes são livres para jogarem ou não, estamos diante de verdadeiras autolimitações. A concordância dos jogadores é essencial. Direcionemos nossa atenção aos limites do jogo finito, visto que assim se caracterizam os processos administrativos e judiciais, no âmbito dos quais são produzidas as provas jurídico-tributárias. Há limitações de ordem temporal, espacial e subjetiva: é preciso que os processos tenham um começo e um final, determinados no tempo e no espaço, devendo ser praticados por jogadores específicos. Nos jogos finitos há, também, regras relativas ao que os jogadores podem fazer uns aos outros e uns com os outros. São, todas elas, limitações internas, caracterizando as chamadas regras do jogo. Concordar com essas limitações internas significa estabelecer as regras do jogo. Cada jogo tem suas próprias regras, que os diferenciam entre si. É conhecendo as regras que sabemos que tipo de jogo se nos apresenta. Diante desse fato, juntamente da necessária anuência dos jogadores, as regras precisam ser tornadas públicas e os destinatários com elas concordar antes de iniciada a partida. Eis por que as normas jurídicas só passam a integrar o ordenamento quando inseridas no processo comunicacional, sendo-lhes vedado retroagir para alcançar jogos já iniciados54. As regras quanto a essa concordância, por sua vez, são igualmente fixadas pelo sistema em que se joga. No âmbito jurídico brasileiro, há expressa menção ao tema: o art. 3° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve
53. James P. Carse, Jogos finitos e infinitos: a vida como jogo e possibilidade, p. 65. 54. Princípio da irretroatividade das leis, que só ocasional e expressamente pode ser excepcionado [ex.: previsão de penalidade mais benéfica].
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que ninguém pode escusar-se de cumprir a lei alegando seu desconhecimento. Com a publicação da lei, considera-se que os respectivos destinatários têm ciência do seu conteúdo. De certo modo, isso implica legitimação, pelo ordenamento brasileiro, de suas próprias regras mediante o conhecimento e a aceitação, juridicamente constituídos, dos destinatários. Por fim, importa esclarecer que os jogos finitos são disputados dentro de um jogo infinito. É o que ocorre com o direito, cujo sistema [jogo finito] encontra-se inserido no macrossistema social [jogo infinito]. Neste, os jogadores observam regras direcionadas à continuidade do jogo da vida, da existência social. Não obstante, podem participar de batalhas travadas no interior de jogos finitos, cujos ganhos e perdas são encarados apenas como um momento daquele jogo contínuo e pretensamente infindável. De outro lado, tomado o jogo finito como sistema de referência, cada vitória ou derrota representa o desfecho do embate: o vencedor recebe um título, consistente no reconhecimento, pelos demais jogadores, de que foi o vencedor daquele jogo particular. A teoria dos jogos é extremamente útil aos propósitos deste trabalho, na medida em que evidencia o caráter autônomo dos diversos jogos, não podendo um jogo explicar ou interferir nas proposições de outro: uma proposição de cunho econômico ou político, por exemplo, não está a para justificar, confirmar ou infirmar enunciados jurídicos. Além disso, com base na teoria dos jogos podemos afirmar se um fato jurídico é verdadeiro ou não, conforme tenham sido observadas as regras prescritas pelo direito positivo para sua constituição, tais como sujeito competente e procedimento apropriado. O valor verdade é posto pelo ordenamento jurídico; encontra-se, pois, dentro desse ordenamento, e não fora ou antes dele. A verdade, por essa perspectiva, deve ser internamente coerente. Como ilustra Danilo Marcondes55, “as decisões são sempre tomadas dentro do quadro de uma série de 55. A verdade, p. 50.
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instrumentos legais, desde a Constituição até o Código Penal e o Código de Processo Penal. Nesse sentido, temos um sistema em relação ao qual a verdade do que se estabelece deve ser coerente”. Por isso mesmo, em um ambiente jurídico-processual, caracterizam-se como fatos apenas aqueles relatos admitidos nos autos, eis que produzidos e ali introduzidos por mecanismo e sujeito apropriados. Ademais, a própria valoração de uma prova, graduando-a hierarquicamente, depende da coerência com os demais elementos do processo. A força de convencimento de um documento, um depoimento testemunhal e até mesmo de uma confissão, v.g., é considerada no cotejo com os demais dados probatórios.
1.10 Verdade material e verdade formal: uma disputa sem sentido A doutrina costuma distinguir verdade material e verdade formal, definindo a primeira como a efetiva correspondência entre proposição e acontecimento, ao passo que a segunda seria uma verdade verificada no interior de determinado jogo, mas susceptível de destoar da ocorrência concreta, ou seja, da verdade real. Com base em tais argumentos, é comum identificar o processo administrativo tributário com a busca da verdade material, e o processo judicial tributário com a realização da verdade formal. Nesse sentido posicionam-se Alberto Xavier56, Paulo Celso B. Bonilha57 e James Marins58, dentre outros, considerando a busca pela verdade material um princípio de observância indeclinável da administração tributária, em oposição
56. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 124 e s. 57. Da prova no processo administrativo tributário, p. 76. 58. Direito processual tributário brasileiro [administrativo e judicial], p. 177-179.
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ao princípio da verdade formal que preside o processo civil e prioriza a formalidade processual probatória. Essa corrente doutrinária proclama o abandono da formalidade, na esfera administrativa, em prol da produção de prova e contraprova, para, com isso, alcançar a verdade material. Tal conclusão, entretanto, não procede. O que se consegue, em qualquer processo, seja administrativo ou judicial, é a verdade lógica, obtida em conformidade com as regras de cada sistema. Conquanto nos processos administrativos sejam dispensadas certas formalidades, isso não implica a possibilidade de serem apresentadas provas ou argumentos a qualquer instante, independentemente da espécie e forma. É imprescindível a observância do procedimento estabelecido em lei, ainda que esse rito dê certa margem de liberdade aos litigantes. Em estudo inovador, Tárek Moysés Moussallem59 noticia a irrelevância dessa classificação [verdade material e formal], pois, considerando o caráter autossuficiente da linguagem, toda a verdade passaria a ser formal, quer dizer, verdade dentro de um sistema linguístico. Seguindo essa linha de raciocínio, porém quebrando as barreiras da tradição terminológica, é lícito afirmar que a verdade jurídica não é material nem formal, mas verdade lógico-semântica, construída a partir da relação entre as linguagens de determinado sistema. A denominada verdade material refere-se a enunciados cujos termos corresponderiam aos fenômenos experimentais. Funda-se na aceitação da teoria da verdade por correspondência, pressupondo a possibilidade de espelhar a realidade por meio da linguagem. O mundo da experiência, todavia, não pode ser integralmente descrito. O real é infinito e irrepetível, possuindo, cada objeto, um número ilimitado de determinações. Por isso, o sujeito cognoscente tem sempre percepções parciais do mundo. 59. Fontes do direito tributário, p. 39-40.
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A verdade formal, por sua vez, diz respeito a enunciados demonstráveis e dotados de coerência lógica, independentemente de seu conteúdo60. Essa espécie de verdade é própria das proposições nomológicas, existentes na lógica e na matemática. Por cingir sua valoração aos dados de ordem sintática, desprezando o conteúdo [semântica], essa espécie de apreciação de veridicidade é inaplicável às proposições nomoempíricas, sejam elas descritivas ou prescritivas61. Efetuados esses esclarecimentos, e considerando que no direito (i) o exame do conteúdo é essencial à determinação da verdade ou falsidade de certo enunciado – verdade em nome da qual se fala, e que (ii) o mundo das coisas e a linguagem não se tocam, é impróprio falar em verdade formal ou material. Observamos, nos processos jurídicos, que o advogado do autor fala em nome da verdade; o advogado do réu também argumenta em nome da verdade; o juiz, por sua vez, decide em nome da verdade; a parte vencida recorre em nome da verdade; os julgadores ad quem reformam a decisão monocrática em nome da verdade; e assim por diante. Nesse sentido, a verdade apresenta-se como elemento a priori da argumentação, pressuposto lógico do discurso comunicativo: ao realizar afirmações, o sujeito o faz com o objetivo de que o fato alegado seja reconhecido como verdadeiro. Por isso, diante das diversas verdades arguidas, o direito estabelece formas que permitem chegar a um final, mediante decisões que fixam qual é a verdade que há de prevalecer no sistema jurídico. A verdade que se busca no curso de processo de positivação do direito, seja ele administrativo ou judicial, é a verdade lógica62, quer dizer, a verdade em nome da qual se fala, alcan60. Gérard Durozoi e André Roussel, Dicionário de filosofia, 482. 61. Sobre proposições nomológicas e nomoempíricas, consulte-se Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 133 e s. 62. A verdade lógica a que nos referimos não se confunde com aquela verificada mediante aplicação da tabela de verdade, cujo emprego permite enumerar todas as
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çada mediante a constituição de fatos jurídicos, nos exatos termos prescritos pelo ordenamento: a verdade jurídica. Daí por que leciona Paulo de Barros Carvalho63 que, “para o alcance da verdade jurídica, necessário se faz o abandono da linguagem ordinária e a observância de uma forma especial. Impõe-se a utilização de um procedimento específico para a constituição do fato jurídico”, pouco importando se o acontecimento efetivamente ocorreu ou não. Havendo construção de linguagem própria, na forma como o direito preceitua, o fato dar-se-á por juridicamente verificado e, portanto, verdadeiro.
1.11 Verdade e sua relação com o direito Todo enunciado linguístico apresenta forma e função. Orientar a atenção para as formas da linguagem significa ingressar no âmbito gramatical do idioma, mais especificamente em sua sintaxe, entendida como parte da gramática que examina as possíveis opções no que concerne à combinação das palavras na frase. As funções dos enunciados, entretanto, não se encontram presas à forma pela qual estes se exteriorizam. Como acentua Irving M. Copi64, as estruturas gramaticais oferecem apenas precários indícios a respeito da função, sendo lícito ao emissor utilizar determinada forma para expressar diferentes funções, conforme o contexto. O art. 3º do Código Tributário Nacional, por exemplo, define o conceito de tributo, dispondo que: Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
possibilidades de verdade para certa proposição. 63. Curso de direito tributário, p. 357. 64. Introdução à lógica, p. 55.
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Não obstante a forma declarativa desse enunciado, sua função é prescritiva, encerrando a ordem de que, ao ser instituído tributo, este deve apresentar determinados caracteres. Para identificar a função linguística, necessário se faz que o intérprete abandone a significação de base atribuída a toda palavra, buscando a compreensão do discurso dentro da amplitude contextual em que se encontra65, examinando-o segundo os propósitos do emissor da mensagem [plano pragmático]. É preciso deixar bem claro que nenhuma manifestação de linguagem exerce uma única função. Há, sempre, uma função dominante e diversas outras que a ela se agregam no enredo comunicacional, tornando difícil a missão de classificá-las. Para superar esse obstáculo, sugere Alf Ross66 que tomemos o efeito imediato como critério classificatório: La función de cualquier herramienta debe determinarse por su efecto propio, esto es, el efecto inmediato a cuya producción la herramienta está directamente adaptada. Son irrelevantes cualesquiera otros efectos ulteriores en la cadena causal subsiguiente.
Desse modo, partindo do critério do efeito imediato ou função dominante, podemos classificar as linguagens com base no animus que move o emissor da mensagem, identificando as seguintes funções: (i) descritiva; (ii) expressiva de situações subjetivas; (iii) prescritiva de condutas; (iv) interrogativa; (v) operativa; (vi) fáctica; (vii) persuasiva; (viii) afásica; (ix) fabuladora; e (x) metalinguística67. Interessa-nos, por ora, analisar os caracteres predominantes das funções linguísticas descritiva e prescritiva de condutas.
65. Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, p. 65-68. 66. Lógica de las normas, p. 28. 67. Paulo de Barros Carvalho, Apostila de filosofia de direito I (Lógica jurídica), p. 17-27.
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A linguagem descritiva, também chamada de informativa, declarativa, indicativa, denotativa ou referencial, exerce a função de transmitir conhecimentos ordinários, técnicos ou científicos, mediante afirmações ou negações. Seus enunciados submetem-se aos valores de verdade e falsidade, uma vez que a eles se aplica a lógica clássica, apofântica ou alética. Já a linguagem prescritiva presta-se à expedição de ordens, comandos dirigidos ao comportamento humano, intersubjetivo ou intrasubjetivo. A essa espécie de enunciados não se empregam os valores verdadeiro e falso, mas válido e não-válido, inerentes à lógica deôntica. É a função linguística predominante nas proposições jurídico-positivas, que se direcionam às condutas intersubjetivas para alterá-las. Norberto Bobbio68, esclarecendo a distinção entre forma gramatical, entendida como o modo pelo qual a proposição é expressa, e sua função, consistente no fim a que se propõe alcançar aquele que a pronuncia, conclui ser a função prescritiva própria da linguagem normativa, objetivando “dar comandos, conselhos, recomendações, advertências, influenciar o comportamento alheio e modificá-lo”. Lourival Vilanova69, enfatizando essa finalidade, leciona: “Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito”. Tendo em vista que ao direito positivo não se aplicam os valores verdade e falsidade, poder-se-ia indagar: existe relação entre a verdade e o direito? Ocorre que tanto as normas gerais e concretas como as individuais e concretas, não obstante configurem enunciados prescritivos e, portanto, sujeitos aos valores válido e não-válido, são expedidas em conformidade com enunciados descritivos, os quais, por sua vez, submetem-se aos critérios de verdade e falsidade.
68. Teoria da norma jurídica, p. 77-78. 69. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 3-4.
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O antecedente normativo é constitutivo de fato jurídico em sentido estrito70, consistente em um enunciado protocolar que, nas palavras de Paulo de Barros Carvalho71, surpreende “uma alteração devidamente individualizada do mundo fenomênico, com a clara determinação das condições de espaço e de tempo em que se deu a ocorrência”. Por integrar o sistema do direito positivo, é válido ou não-válido: princípio da prioridade pragmática, decorrente do caráter de totalidade de significado inerente ao texto jurídico72. Mas, tendo em vista a necessidade de essa espécie de enunciado ser proferida em consonância com eventos supostamente verificados, é imprescindível sua articulação com a teoria das provas, mediante as quais é apreciada a veracidade de determinado fato jurídico, influenciando a construção da norma concreta. Vale registrar que nenhuma linguagem exerce uma única função, em seu estado puro. Trata-se, apenas, de predominância, e não de exclusividade. É o que acontece com o fato jurídico previsto no antecedente normativo: mostra-se descritivo de um evento, porém prescritivo de efeitos jurídicos. O mesmo se pode dizer da prova, fato jurídico em sentido amplo: descreve acontecimentos, objetivando, no entanto, a produção de efeitos de natureza prescritiva, mais especificamente a constituição ou desconstituição do fato jurídico em sentido estrito, com o desencadeamento da causalidade jurídica correspondente.
70. Sobre a distinção entre fato jurídico em sentido amplo e fato jurídico em sentido estrito, consulte-se o item 3.5 do capítulo 3. 71. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 88. 72. O direito não pode ser considerado mera soma de elementos, devendo ser examinado de forma global. No texto jurídico, tudo é prescritivo, sendo a natureza dos elementos determinada pela natureza do conjunto, cuja função é regular as condutas intersubjetivas. Nas palavras de Gregorio Robles, “o texto jurídico está dotado, como uma totalidade, de uma função pragmática determinada que o converte num conjunto de mensagens cujo sentido intrínseco é dirigir, orientar ou regular as ações humanas” (O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 29).
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1.11.1 A fenomenologia da incidência tributária e o necessário quadramento do fato à norma Quando examinamos o sistema do direito positivo, identificamos variadas espécies de normas jurídicas. Conforme o universo de destinatários a que a norma se refere, esta pode ser classificada em geral ou individual: a primeira dirige-se a um conjunto indeterminado de destinatários, enquanto a segunda individualiza os sujeitos de direito para os quais se volta. Ainda, considerando a descrição contida na hipótese normativa, há normas abstratas, que oferecem critérios para identificar fatos de possível ocorrência, e concretas, remetendo a acontecimentos passados, indicados de forma denotativa. Esses caracteres podem ser combinados de modo que constituam normas (i) gerais e abstratas, (ii) gerais e concretas, (iii) individuais e abstratas, e (iv) individuais e concretas73. As normas gerais e abstratas, cujos típicos exemplos são aquelas veiculadas no corpo da lei, não atuam diretamente sobre as condutas intersubjetivas, exatamente em decorrência de sua generalidade e abstração. É necessário que sejam emitidas outras regras, mais diretamente voltadas aos comportamentos das pessoas, mediante aquilo que se chama processo de positivação do direito, para obter maior aproximação dos fatos e ações reguladas. Com fundamento nas normas gerais e abstratas constroem-se normas individuais e concretas, determinando que em virtude da ocorrência de certo fato jurídico nasceu a relação em que um sujeito de direito S’ tem uma obrigação, proibição ou permissão perante outro sujeito S”.
73. As regras-matrizes de incidência tributária são exemplos de normas gerais e abstratas, assim como o lançamento tributário e sentenças são de normas individuais e concretas. Os veículos introdutores são típicas normas gerais e concretas, enquanto as normas individuais e abstratas podem ser identificadas nos contratos firmados entre pessoas determinadas, objetivando ao cumprimento de prestações se e quando se concretizar uma situação futura.
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Obviamente, para que essa positivação seja realizada de modo apropriado, é imprescindível o perfeito quadramento do fato à previsão normativa74. Esse fato, por sua vez, deve ser constituído segundo a linguagem das provas, com vistas a certificar a veracidade do enunciado subsumido. Observa-se a importância capital que apresenta a prova no ordenamento jurídico, inclusive no âmbito da tributação: ao constituir a obrigação tributária e aplicar sanções nessa esfera do direito, não basta a observância às regras formais que disciplinam a emissão de tais atos; a materialidade deve estar demonstrada, mediante a produção de prova da existência do fato sobre o qual se fundam as normas constituidoras das relações jurídicas tributárias. A fundamentação das normas individuais e concretas na linguagem das provas decorre da necessária observância aos princípios da estrita legalidade e da tipicidade tributária, limites objetivos que buscam implementar o sobreprincípio da segurança jurídica, garantindo que os indivíduos estarão sujeitos à tributação somente se for praticado o fato conotativamente descrito na hipótese normativa tributária. Como bem ensina Paulo de Barros Carvalho75, o princípio da tipicidade tributária define-se em duas dimensões, quais sejam o plano legislativo e o da facticidade. No primeiro está a necessidade de que a norma geral e abstrata traga todos os elementos descritores do fato jurídico tributário e dados prescritores da relação obrigacional, ao passo que no segundo tem-se a exigência da estrita subsunção do fato à previsão genérica da norma geral e abstrata, vinculando-se à correspondente obrigação. Por esse motivo, a norma individual e concreta que constitui o fato jurídico tributário e a correspondente obrigação deve trazer, no antecedente, o fato tipificado pela norma geral e abstrata, com as respectivas coordenadas temporais e espaciais, indicando, no consequente, o fato da base de cálculo, que, juntamente 74. Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário. 75. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 105.
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com a alíquota, especificam o quantum devido, bem como os sujeitos integrantes do vínculo obrigacional. E, para que a identificação desses fatos76 seja efetuada em conformidade com as prescrições do sistema jurídico, deve pautar-se na linguagem das provas. É por meio das provas que se certifica a ocorrência do fato e seu perfeito quadramento aos traços tipificadores veiculados pela norma geral e abstrata, permitindo falar em subsunção do fato à norma e em implicação entre antecedente e consequente, operações lógicas que caracterizam o fenômeno da incidência normativa. Podemos dizer, em síntese, que a linguagem das provas é da ordem da aplicação do direito.
1.11.2 Aplicação do direito: forma como se efetiva a incidência tributária É pelo ato de aplicação do direito que se tem o processo de positivação a que nos referimos no subitem antecedente. “A aplicação do direito é justamente seu aspecto dinâmico, onde as normas sucedem, gradativamente, tendo sempre no homem, como expressão da comunidade social, seu elemento intercalar, sua fonte de energia, o responsável pela movimentação das estruturas”77. Convém esclarecer que a aplicação do direito não dista da própria produção normativa. “A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito”78. Trata-se de ato mediante o qual se extrai de regras superiores o fundamento de validade para a edição de outras regras, cada vez mais individualizadas. E é somente por meio dessa ação humana que se opera o fenômeno da incidência normativa em geral, assim como da
76. Tanto o antecedente como o consequente contém fatos: fato jurídico tributário e base de cálculo, respectivamente. Ao constituir esses fatos, o emissor terá de pautar seus enunciados em provas admitidas pelo direito. 77. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 88. 78. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 260.
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incidência tributária, em particular. Sem que um sujeito realize a subsunção e promova a implicação, expedindo novos comandos normativos, não há que falar em incidência jurídica.
1.11.3 Distinção entre “evento” e “fato”; entre “fato social” e “fato jurídico” Para movimentar as estruturas do direito, aplicando normas gerais e abstratas e delas sacando novas normas, é preciso conhecer o fato. Para relatar algo, é preciso ter acesso a ele. Mas, como já anotamos, acontecido o evento, não há como entrar em contato direto com ele, pois se esvai no tempo e no espaço. Sobram, apenas, vestígios, marcas deixadas por aquele evento, as quais servem como base para construção do fato jurídico e adequado desenvolvimento do processo de positivação. Nota-se, desde logo, que chamamos de evento o acontecimento do mundo fenomênico, despido de qualquer relato linguístico. O fato, por sua vez, é tomado como enunciado denotativo de uma situação, delimitada no tempo e no espaço. Registra Tercio Sampaio Ferraz Jr.79 que “Fato não é pois algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”. O fato refere-se sempre ao passado, a algo já sucedido que se esvaiu no tempo e no espaço. Daí termos acesso apenas ao fato, jamais ao evento. Isso não implica, porém, completo desprezo ou negação do evento, pois, como referido, a postura ora adotada nada tem de niilista. Embora inalcançável, o evento é pressuposto para o fato, ou seja, constitui-se o fato “em nome de” relatar um evento supostamente ocorrido. Entre evento e fato não se transita livremente. Há, entre eles, um abismo intransponível. Aparece assim, de modo claro, a atuação constructivista do sujeito cognoscente: este constrói o fato, não se limitando a descrever aquilo de que se fala. 79. Introdução ao estudo do direito, p. 253.
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Como enaltece Gregório Robles80, é impossível simplesmente descrever qualquer fenômeno: a apreciação humana implica, sempre, uma construção de sentido. Ao assim agir, constrói o fato e, portanto, a realidade. Ao lado do resultado construtivista da linguagem, a cada relato feito opera-se, ainda, a redução de complexidades. É que, sendo o objeto infinito e irrepetível, consideramos impossível descrevê-lo integralmente, em todos os seus aspectos81. E, segundo Goffredo Telles Júnior82, “cada objeto concreto tem um número ilimitado de determinações porque as notas da compreensão de um indivíduo são inesgotáveis”. Graficamente, poderíamos assim representar a relação entre evento e fato, na qualidade de relato seletor e, por conseguinte, redutor de complexidades:
O acontecimento natural, pertencente ao mundo da experiência, não integra o sistema jurídico ou sequer o social.
80. Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), p. 129. 81. Fabiana Del Padre Tomé, Contribuições para a seguridade social à luz da Constituição Federal, p. 17. 82. O direito quântico, p. 272.
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Como já mencionado, as coisas só existem para o homem quando constituídas pela linguagem. Assim, qualquer que seja o sistema que se examine, nele ingressam apenas os enunciados compostos pela forma linguística própria daquele sistema. Relatado o sucesso [evento] em linguagem social, teremos fato social; este, vertido em linguagem jurídica, dará nascimento ao fato jurídico. A relação entre tais conceitos pode ser assim formulada:
O evento está para o fato social, assim como o fato social está para o fato jurídico. Na lição de Paulo de Barros Carvalho83, a realidade social é constituída pela linguagem social, sobre a qual incide a linguagem prescritiva do direito positivo, juridicizando fatos e, desse modo, desenhando o campo da facticidade jurídica. Assim é que os fatos da chamada realidade social [fatos sociais], enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, podem ser tidos como eventos em relação ao mundo do direito. O mesmo se dá com o fato político, econômico, biológico, psicológico, histórico etc.: quaisquer desses, enquan83. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 11.
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to não traduzidos em linguagem jurídica, permanecem fora do campo de abrangência do sistema do direito posto, na qualidade de meros eventos. O caráter peculiar do fato jurídico fica muito claro quando se observa que um mesmo fato social pode dar ensejo a diversos jurídicos.
Ilustrativamente, tomemos o fato relatado em linguagem social, em que se verifica um sujeito [S1] recebendo um objeto e entregando determinada quantia em dinheiro a outro sujeito [S2]. Tomando-o como ponto de partida, podem ser construídos fatos jurídicos diversos. Ilustrativamente, ter-se-ia um fato jurídico de direito privado [Fj1], consistente em negócio jurídico de compra e venda, e outro, qualificado como fato jurídico tributário [Fj2], na medida em que se concretize uma operação jurídica relativa à circulação de mercadorias. Cada um desses fatos jurídicos ingressa no mundo jurídico como enunciado que alude a determinado fato social, mas que, se
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concretiza pelo preenchimento de seus próprios requisitos, nos termos da previsão legal. Fato jurídico, segundo Paulo de Barros Carvalho84, “é aquele que, e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem competente, isto é, segundo as qualificações estipuladas pelas normas do direito positivo”. Assim, conclui o ilustre Mestre: “ou a mutação ocorrida na vida real é contada, fielmente, de acordo com os meios de provas admitidos pelo sistema positivo, consubstanciando a categoria dos fatos jurídicos [lícitos ou ilícitos, pouco importa], e da eficácia que deles se irradia; ou nada terá acontecido de relevante para o direito, em termos de propagação de efeitos disciplinadores da conduta. Transmitido de maneira mais direta: fato jurídico requer linguagem competente, isto é, linguagem das provas, sem o que será mero evento, a despeito do interesse que possa suscitar no contexto da instável e turbulenta vida social”.
1.12 O direito como linguagem criadora da realidade jurídica Consideremos a assertiva de Vilém Flusser85, para quem o universo, conhecimento, verdade e realidade são aspectos linguísticos. Aquilo que nos vem por meio dos sentidos e que chamamos realidade é dado bruto, que se torna real apenas no contexto da língua, única criadora da realidade. Algo se torna real apenas dentro do processo linguístico, quando esse algo é compreendido pelos intelectos em conversação autêntica. Tais axiomas não implicam negação do conhecimento, da realidade ou da verdade. Nega-se, apenas, o caráter absoluto e objetivo dos citados conceitos. Por essa perspectiva, conhecimento, realidade e verdade ocorrem no contexto da 84. Direito tributário, linguagem e método, p. 824. 85. Língua e realidade, passim.
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língua. A famosa correspondência entre frases e realidade não passa de correspondência entre duas frases. Para o ser humano, portanto, inexiste o dado, tomado em sua ontologia. Qualquer elemento pressupõe um sujeito intencional e uma linguagem. Sobre o assunto, convém trazer à colação a obra Pensamento e movimento, do filólogo Pinharanda Gomes. Anota o autor que “O ser só devém real pelo pensar e, por isso, o motivo de, na ordem lógica, o ser vir colocado depois do pensar”. O ser só se torna real pelo pensar. E, como o pensar é constituído pela linguagem, podemos inferir que o ser só se torna real pela linguagem. É a linguagem [o pensar] constituindo a realidade [o ser]. A essência das coisas, tomadas como dados brutos, não têm existência para o sujeito cognoscente. É real apenas aquilo se insere nos limites da linguagem humana. Recorramos, novamente, às lições de Pinharanda Gomes86: “O ser, que é, emerge de si mesmo para fora [existir], originando a existência que está, mas não é. A existência revela o ser, mas o ser, ou essência, esconde-se e continua oculto, sob a existência”. A existência prescinde da essência, mas não prescinde da linguagem. E o que conhecemos, o que nos é real, reside na existência: a forma pelo qual algo nos é apresentado, em dado instante, mediante linguagem. É a linguagem que cria a realidade. Só se conhece algo porque o ser humano o constrói por meio de sua linguagem. Por isso nossa assertiva de que a sociedade é o sistema mais abrangente em que a comunicação pode desenvolverse, sendo impossível a existência social sem linguagem e, portanto, sem comunicação. Sobre o assunto, seguindo as lições de Gregorio Robles87, concluímos que a sociedade é um sistema de comunicação entre seus membros. Posto isso, considerando a presença inarredável da linguagem no 86. Pensamento e movimento, p. 13. 87. Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), p. 65.
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processo comunicativo e o fato de a comunicação ser elemento integrante do sistema social, inexiste sociedade sem linguagem. Essa assertiva, por sua vez, leva à conclusão de que o fato social é constituído por relato linguístico, segundo as regras previstas pelo próprio ordenamento. Tudo o que dissemos até agora se aplica, inteiramente, ao direito, pois este, conforme será estudado no Capítulo 2, qualifica-se como um subsistema composto por comunicações diferenciadas, também inseridas na rede de comunicações que é o sistema social.
1.13 Verdade e teoria das provas no direito tributário O direito tributário rege-se, dentre outros, pelos princípios da estrita legalidade e tipicidade tributária, de modo que a obrigação tributária tem nascimento tão somente se verificado o fato descrito conotativamente no antecedente da regra-matriz de incidência. A figura da prova é de extrema relevância nesse contexto, pois sem ela não existe fundamento para a aplicação normativa e consequente constituição do fato jurídico tributário e do respectivo laço obrigacional. Vimos que a realidade, tal qual se apresenta aos seres humanos, nada mais é que um sistema articulado de símbolos num contexto existencial. Cada sistema delimita sua própria realidade, elegendo o modo pelo qual seus enunciados linguísticos serão constituídos. É o que se verifica no sistema do direito posto: “o que o ordenamento faz é delimitar sua própria realidade, que é a realidade do direito. Essa delimitação artificial consiste em constituir tal realidade jurídica e, simultaneamente, em regulá-la”88. É o sistema do direito que determina o que nele existe ou não. Para tanto, elege uma forma linguística específica, que denominamos linguagem competente. Somente por meio dela 88. Gregorio Robles, O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 13.
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é que a realidade jurídica se constitui, o que, por si só, revela a importância das provas no ordenamento como um todo, inclusive na esfera tributária. Como os acontecimentos físicos naturais exaurem-se no tempo e no espaço, são eles de impossível acesso, sendo necessário, ao homem, utilizar enunciados linguísticos para constituir os fatos com que pretenda entrar em contato. Um evento não prova nada, simplesmente porque os eventos não falam89. Somos nós quem, valendo-nos de relatos e de sua interpretação, provamos. Daí por que os eventos não integram o universo jurídico. Os eventos não ingressam nos autos processuais. O que integra o processo são sempre fatos: enunciados que declaram ter ocorrido uma alteração no plano físico-social, constituindo a facticidade jurídica. Francesco Carnelutti90, embora sem empregar essa terminologia, também vislumbra a prova como suporte necessário à constituição do fato jurídico: “Isso significa que o confessor declara não para que o juiz conheça o fato declarado e aplique a norma tão somente se o fato é certo, senão para que determine o fato tal como foi declarado e aplique a norma prescindindo da verdade”. Para esse jurista, a declaração feita nos processos “não se limita a trazer ao conhecimento o fato declarado, senão que vem a constituir por si mesmo um fato diferente, do qual depende a realização da norma, ou seja, fato jurídico processual. (...) Provar, de fato, não quer dizer demonstrar a verdade dos fatos discutidos, e sim determinar ou fixar formalmente os mesmos fatos mediante procedimentos determinados”. Esse é o motivo pelo qual afirma Jeremías Bentham91 que a arte do processo não é senão a arte de administrar as provas, concluindo também Michelle Taruffo92 que “os fatos devem ser levados a sério. Muitas causas são vencidas ou perdidas nos fatos, 89. Dardo Scavino, La filosofia actual: pensar sin certezas, p. 39. 90. A prova civil, p. 61-72. 91. Tratado de las pruebas judiciales, p. 4. 92. Uma simples verdade: O Juiz e a construção dos fatos, p. 60.
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dependendo se o autor conseguiu ou não provar os fatos postos como fundamento de sua demanda”. Não é qualquer linguagem, porém, habilitada a produzir efeitos jurídicos ao relatar os acontecimentos do mundo social. Como registra Christine Mendonça93: O sistema jurídico, diverso do que ocorre no mundo social, indicará os instrumentos credenciados para constituir tais eventos em linguagem competente. [...] a escritura é indicada como instrumento para ‘dizer que ocorreu’ o evento de uma venda de um imóvel; a certidão de nascimento é indicada como instrumento para ‘dizer que ocorreu’ o nascimento de uma pessoa; a nota fiscal é indicada como instrumento para ‘dizer que ocorreu’ o evento de uma venda de um produto.
Mais do que isso, ao nosso ver a linguagem escolhida pelo direito vai não apenas dizer que um evento ocorreu, mas atuar na própria construção do fato jurídico [fato que ingressou no ordenamento jurídico mediante o processo seletivo de filtragem desse subsistema] e, mais especificamente, do fato jurídico tributário, tomado como enunciado protocolar que preenche os critérios constantes da hipótese da regra-matriz de incidência tributária. Apenas se presentes as provas em direito admitidas ter-se-á por ocorrido o fato jurídico tributário. Provado o fato, tem-se o reconhecimento de sua veracidade. Somente se, questionado ou não, o enunciado pautar-se nas provas em direito admitidas, o fato é juridicamente verdadeiro [verdade lógica].
93. A não-cumulatividade no ICMS, p. 22.
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CAPÍTULO 2 AUTOPOIESE DO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO
2.1 Noção de sistema O vocábulo sistema, assim como a maior parte das palavras, apresenta uma gama de variadas acepções. Há, nesse termo, uma pluralidade de sentidos. A origem etimológica da palavra sistema é grega, provinda de syn-istemi, que significa o composto, o construído. Esclarece Tercio Sampaio Ferraz Júnior94 que, “na sua significação mais extensa, o conceito aludia, de modo geral, à ideia de uma totalidade construída, composta de várias partes. Conservando a conotação originária de conglomerado, a ela agregou-se o sentido específico de ordem, de organização. Aliada à ideia de cosmos, conceito fundamental da filosofia grega, ela aparece por exemplo entre os estoicos para descrever e esclarecer a ideia de ‘totalidade bem ordenada’. Os estoicos atribuíram-lhe, além disso, uma conotação ainda mais marcante, ao ligá-la ao conceito de techne, por eles definida como sistema de conceitos,
94. Conceito de sistema no direito, p. 9.
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configurando-a como suma”. Tomado em seu significado de base, podemos definir sistema como o conjunto de elementos coordenados entre si95, aglutinados perante uma referência determinada. Nesse sentido, posiciona-se Lourival Vilanova96: “falamos de sistema onde se encontrem elementos e relações e uma forma dentro de cujo âmbito, elementos e relações se verifiquem”. Aos elementos Tercio Sampaio Ferraz Jr.97 denomina repertório e às relações chama de estrutura. Não obstante seja comum a distinção entre sistemas reais e proposicionais, conforme os elementos pertençam ao mundo da experiência ou caracterizem enunciados linguísticos98, tal dicotomia fica sem sentido diante da consideração de que a linguagem é constitutiva da realidade. Daí falarmos apenas em sistemas proposicionais, que denominamos nomológicos quando suas partes consistirem em entidades ideais, e nomoempíricos se as proposições, descritivas ou prescritivas, tiverem denotação existencial. Efetuados esses esclarecimentos preliminares e adotada a concepção segundo a qual o sistema apresenta-se como conjunto de elementos relacionados entre si, é possível visualizar a sociedade como um macrossistema dentro do qual se inserem diversos subsistemas, dentre eles, o do direito positivo.
2.2 A sociedade como sistema comunicacional A sociedade é o sistema mais abrangente em que a comunicação pode desenvolver-se, sendo integrada por atos de transmissão, recebimento e compreensão de informações.
95. Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, p. 2. 96. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 173. 97. Introdução ao estudo do direito, p. 165. 98. Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, p. 4.
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Consiste a comunicação, segundo Lúcia Santaella99, na “transmissão de qualquer influência de uma parte de um sistema vivo ou maquinal para outra parte”, estando presente onde houver capacidade para gerar e consumir mensagens. É exatamente esse o elemento que permite diferenciar o sistema social dos demais sistemas existentes: só há sociedade onde os homens estejam em disposição de entender-se, mediante uma linguagem comum que o permita. A comunicação é atividade humana por excelência. Qualquer comportamento, mesmo elementar, aparece carregado de significado, caracterizando-se como ato comunicativo. Isso nos leva a concluir que a comunicação estará presente sempre que existir contato entre dois ou mais indivíduos, pois qualquer conduta, exercida no contexto de situação interacional, implica transmissão de mensagem. O próprio não-agir ou não-falar é comportamento, possuindo valor comunicacional. Watzlawick, Beavin e Jacksin100 já afirmavam que “o comportamento não tem oposto”, sendo impossível cogitar de um não-comportamento. Se uma pessoa não se move ou fica calada, está-se comportando, pois a omissão também é modo de comportamento, conforme se observa na situação referida pelos citados autores: “O homem que num congestionado balcão de lanchonete olha diretamente em frente ou o passageiro de avião que se senta de olhos fechados estão ambos comunicando que não querem falar a ninguém nem que falem com eles; e, usualmente, os seus vizinhos recebem a mensagem e respondem adequadamente, deixando-os sozinhos”101. Se comportamento implica comunicação, não é possível que um indivíduo, numa situação interacional, consiga não se comunicar. Sempre que alguém agir ou omitir, falar 99. Comunicação e pesquisa, p. 22-23. 100. Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação, p. 44. 101. Ibidem, p. 45.
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ou calar, esse alguém estará se comunicando, ainda que não o faça intencionalmente. Isso faz do processo comunicativo uma constante no mundo social. Para que se tenha comunicação, uma das condições necessárias é a existência de linguagem, idiomática ou não. Tal é a indissociabilidade entre comunicação e linguagem que esta tem sido entendida não apenas como código mediante o qual se realiza o ato comunicativo, mas também, em sentido lato, como a própria comunicação102. A presença inarredável da linguagem no processo comunicativo e o fato de a comunicação ser elemento integrante do sistema social implicam a inexistência de sociedade sem linguagem, confirmando nossa assertiva de que o fato social é constituído por relato linguístico, segundo as regras previstas pelo próprio sistema.
2.2.1 O subsistema comunicacional do direito A teoria comunicacional propõe-se a entender o direito como um fenômeno de comunicação. Qualificando-se como sistema comunicativo, o direito se manifesta como linguagem, ou, nas palavras de Gregorio Robles103, “o direito é texto”. Concordamos com essa assertiva. O direito é composto por linguagem, que cria sua própria realidade. Portanto, “direito é texto”. Não estamos nos referindo ao texto em sentido estrito, ou seja, ao mero suporte físico, como é o caso das marcas de tinta sobre o papel. A equiparação do direito ao texto exige que tomemos o vocábulo “texto” em seu sentido lato, no qual se identifica a relação triádica inerente aos signos: suporte físico, significado e significação. Dentro da rede de comunicações que é o sistema social, identificamos subsistemas compostos por comunicações diferenciadas entre si, como é o caso do subsistema do direito. Este se apresenta como um conjunto comunicacional peculiar 102. Norbert Wiener, Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos, p. 73. 103. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 19.
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e com função específica, sendo inadmissível transitar livremente entre o sistema jurídico e os demais sistemas verificados no interior do macrossistema da sociedade, como o econômico, o político e o religioso. Observa Celso Fernandes Campilongo104 que, “na rede de comunicações da sociedade, o direito se especializa na produção de um tipo particular de comunicação que procura garantir expectativas de comportamentos assentadas em normas jurídicas”. Construir uma teoria jurídica implica, portanto, elaborar teoria comunicacional, respeitadas as especificidades do direito positivo relativamente aos demais subsistemas sociais. A concepção da teoria comunicacional do direito tem como premissa que o direito positivo se apresenta na forma de um sistema de comunicação. Direito é linguagem, pois é a linguagem que constitui as normas jurídicas. Essas normas jurídicas, por sua vez, nada mais são que resultados de atos de fala, expressos por palavras e inseridos no ordenamento por veículos introdutores, apresentando as três dimensões sígnicas: suporte físico, significado e significação105. Com base na teoria da sociedade de Niklas Luhmann106, tomamos o direito como um sistema comunicativo funcionalmente diferenciado e dotado de programas e código próprios, apresentando uma forma especial de abertura e fechamento com relação ao ambiente. Esclarece Gustavo Sampaio Valverde107 que, não obstante a sociedade se apresente como um grande sistema, compreendendo todas as formas possíveis de comunicação, na modernidade encontra-se dividida em subsistemas parciais, dos quais são exemplos os sistemas 104. O direito na sociedade complexa, p. 162. 105. Classificação desenvolvida por Edmund Husserl para os três pontos do triângulo básico, modelo analítico de comunicação sígnica. O suporte físico consiste na palavra falada [ondas sonoras] ou escrita (como o depósito de tinta no papel), que se associa a um significado, identificado pela ideia individualizada do objeto a que o suporte físico se refere, e a uma significação, verificada na ideia geral do objeto referido. 106. O direito da sociedade, passim. 107. Coisa julgada em matéria tributária, p. 40.
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político, jurídico, econômico e científico. Esses sistemas possuem códigos de comunicação próprios e específicas operações de reprodução de elementos, que lhes conferem um fechamento operativo e também uma forma peculiar de abertura cognitiva do ambiente. Devido a essas particularidades, o ponto de partida de qualquer análise sistêmica teórica tem de ser a diferença entre sistema e ambiente, distinção esta aplicável tanto ao macrossistema da sociedade como aos sistemas situados no seu interior, como é o caso do sistema jurídico. É o que faremos a seguir: discorreremos, em linhas gerais, sobre alguns aspectos da teoria dos sistemas formulada por Niklas Luhmann, que entendemos ser de extrema utilidade para a compreensão da prova no direito tributário, tais como o fechamento operativo e a abertura cognitiva do sistema jurídico, além do modo como ocorrem suas operações e produção de seus elementos.
2.3 O direito na teoria dos sistemas A visão sistêmica trazida para o direito mediante a aplicação da teoria geral dos sistemas permite identificar, com nitidez, a estrutura fundamental do ordenamento, bem como compreender sua autoformação a partir de seus próprios elementos108. Todo sistema, segundo Niklas Luhmann109, apresenta (i) função e (ii) estrutura. Quando falamos em função do sistema, referimos a toda ação ou atividade que este desenvolve, conducentes a atingir os objetivos previstos. Tratando-se do sistema jurídico, sua função, em termos gerais, consiste na estabilização das expectativas normativas. Estas decorrem das prescrições do direito posto, as quais pretendem interferir
108. Cristiano Rosa de Carvalho, Sistema, competência e princípios, in Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, p. 861. 109. O direito da sociedade, passim.
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nas condutas humanas, determinando como estas devem ser. O sistema jurídico diferencia-se funcionalmente dos demais subsistemas sociais exatamente por estar incumbido de garantir a manutenção de expectativas normativas, ainda que estas venham a ser frustradas em virtude da adoção de comportamentos divergentes daqueles normativamente previstos. O cumprimento dessa função, porém, só é possível mediante determinações estruturais, chamadas código e programa. A função do direito, de estabilizar as expectativas normativas, produz um esquematismo binário, denominado código, segundo o qual as expectativas normativas cumprem-se ou frustram-se. É esse esquematismo binário que fundamenta a identificabilidade do sistema jurídico, permitindo selecionar, dentro das comunicações do sistema social, aquelas que integram o sistema parcial do direito. Para que os códigos cumpram seu papel na produção de elementos internos ao sistema, impõe-se a existência de programas que determinem de que maneira tais códigos devem ser utilizados. No direito, esses programas estabelecem em que hipóteses a comunicação jurídica qualificará como lícito um fato social qualquer e em que situações o identificará como ilícito. Caracterizam-se por serem condicionais, regulando a alocação dos valores ao código binário, segundo a relação implicacional “se... então”. A estruturação do direito mediante a codificação e programação também permite expô-lo a variações temporais e torná-lo independente da causalidade da existência de conflitos, determinando, o próprio sistema, o que pode ser tratado como conflito sujeito a decisões.
2.4 Sistema autopoiético A teoria da autopoiese foi desenvolvida, inicialmente, por Humberto Maturana e Francisco Varella, biólogos que, numa
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visão sistêmica dos seres vivos, divisaram a simultaneidade de fechamento organizacional e a abertura para informações advindas do ambiente. Dada a operatividade dessa teoria, passou a ser aplicada ao estudo dos sistemas sociais, sendo primorosamente desenvolvida por Niklas Luhmann110, tomando por sistema autopoiético aquele que produz sua própria organização, conservando a identidade do sistema e, ao mesmo tempo, fazendo-o sofrer transformações indispensáveis à sua sobrevivência. De forma simplificada, podemos dizer que autopoiético é o sistema que reproduz seus elementos valendo-se de seus próprios componentes, por meio de operações internas. A peculiaridade do sistema autopoiético confere-lhe as seguintes características: (i) autonomia: é capaz de subordinar toda a mudança de modo que permaneça sua auto-organização; (ii) identidade: mantém sua identidade em relação ao ambiente, diferenciando-se deste ao determinar o que é e o que não é próprio ao sistema; (iii) não possui inputs e outputs: o ambiente não influi diretamente no sistema autopoiético; não é o ambiente que determina suas alterações, pois quaisquer mudanças decorrem da própria estrutura sistêmica que processa as informações vindas do ambiente. A autorreferencialidade também se apresenta como pressuposto da autoprodução do sistema, pois, para que este possa autogerar-se, isto é, substituir seus componentes por outros, é necessário que haja elementos que tratem de elementos. No caso do sistema social, atos comunicativos cujo conteúdo seja a geração de outros atos comunicativos; em relação ao sistema jurídico, normas que prescrevam a produção de outras normas jurídicas. Para tanto, o sistema tem de olhar para si próprio, precisa falar sobre si mesmo, nessa citada autorreferencialidade. A clausura organizacional, caracterizadora da autopoiese do sistema, decorre exatamente do fato de que a informação advinda do ambiente é processada no interior do sistema, só 110. Social systems, passim.
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ingressando neste porque ele assim determina e na forma por ele estabelecida. A clausura não significa, portanto, que o sistema seja isolado do ambiente, mas que seja autônomo, que as mensagens enviadas pelo ambiente só ingressem no sistema quando processadas por ele, segundo seus critérios. Por isso, são abertos cognitivamente. Em relação ao sistema atuam as mais diversas determinações do ambiente, mas elas só são inseridas quando este, de acordo com seus próprios critérios, atribui-lhes forma. Conquanto Gregorio Robles111 afirme categoricamente que “o texto jurídico é um texto aberto”, está se referindo à abertura semântica [cognitiva], mediante a qual o sistema tem seus conteúdos modificados. A despeito disso, reconhece que essa regeneração se dá por mecanismos autopoiéticos, os quais autorizam e regulam as decisões ponentes de novos elementos no sistema normativo. Desse modo, o sistema jurídico mantém sua identidade em relação ao ambiente: “o próprio texto cria as ações que podem ser qualificadas como jurídicas, e o fato de regular a ação não significa que a ação jurídica exista antes do texto, mas sim que é o texto que a constitui. Por estranho que possa parecer, o homicídio como ação jurídica só existe depois que o texto jurídico prescreve o que é que se deve entender por homicídio”112. Só aí tal ação ingressa no sistema do direito positivo. Essa clausura operativa e abertura cognitiva, nos moldes expostos, só são possíveis pela existência de códigos e programas específicos para cada sistema parcial. Esses sistemas parciais, como é o caso do jurídico, qualificam-se em razão da diferença com o ambiente, diferença esta que é constituída e delimitada pelas operações internas ao próprio sistema, responsáveis pela autorreprodução de seus elementos, segundo seu particular código e programa.
111. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 29. 112. Gregorio Robles, O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 29.
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2.4.1 Código Vimos que o sistema social é constituído por complexas redes de comunicação, num processo dinâmico constante. E à medida que o sistema vai aumentando sua complexidade, formam-se subsistemas, cada qual com seu código próprio, autonomizando-se uns em relação aos outros. É o que acontece com o sistema jurídico: (i) o sistema social diferencia-se do seu ambiente por produzir-se segundo o código comunicação/não-comunicação; (ii) ao adotar o código lícito/ilícito, o sistema jurídico distingue-se das demais comunicações sociais, pois mediante esse código o direito passa a construir seus próprios componentes, estabelecendo as normas reguladoras das suas operações, estruturas, processos. Cada sistema autopoiético processa as mensagens externas dentro de critérios particulares, mediante um código próprio. Esse código é valorativo e binário: o código do sistema econômico, por exemplo, é ter/não-ter; do sistema político é poder superior [governo] /poder inferior [oposição]; do sistema jurídico é lícito/ilícito. Todas as mensagens recebidas do ambiente são processadas e convertidas por meio desse código binário. O fato de o sistema adotar um código valorativo binário para processar as mensagens que recebe do ambiente é fundamental para manter sua identidade. Assim, mesmo que o sistema econômico influencie o sistema jurídico, este não produzirá atos comunicativos econômicos, mas sim jurídicos, consoante os seus próprios critérios de produção. As informações vindas do ambiente são processadas pelo sistema e, no caso do direito, ele atua sobre as informações reduzindo-as ao lícito e ao ilícito. A economia, v.g., passa informações para o direito, que as submete ao seu filtro, e vai produzindo suas unidades. É a existência de específico código binário que caracteriza um sistema como autorreferencialmente fechado, com abertura cognitiva ao meio ambiente. Por meio de código sistêmico próprio, estruturado binariamente entre um valor negativo e outro positivo, as unidades elementares do sistema são reproduzidas internamente e distinguidas claramente das comunicações
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exteriores. Mas os códigos tornam-se formas vazias caso não sejam combinados com programas. Nesse sentido, a autopoiese importa uma combinação entre codificação e programação, possibilitando, assim, a simultaneidade de fechamento e abertura. O sistema jurídico pode assimilar, de acordo com seus critérios[(código e programa], os fatores do ambiente, sem que seja diretamente influenciado por eles. As expectativas normativas não são determinadas imediatamente por interesses econômicos, pela política, pela ética, pela moral etc.; dependem de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico, exigindo a digitalização interna de informações provenientes do ambiente. Desse modo, reproduzindo-se a partir de um código binário [lícito/ilícito] e de programas [normas jurídicas, tais como as veiculadas na Constituição, leis, decretos, decisões judiciais etc.], o direito aparece como sistema operacionalmente autônomo. Como sistema autopoiético que é, o sistema jurídico comuta as respectivas influências apenas mediante seus programas e códigos, os quais atuam como mecanismo de seleção, filtragem e imunização das influências contraditórias do ambiente sobre o sistema jurídico. Essa imunização assegura que as expectativas normativas sejam tratadas segundo o código lícito/ilícito, de modo que os fatores externos só influam na reprodução do sistema jurídico se e quando submetidos a uma comutação discursiva de acordo com aquela codificação e com os programas jurídicos. A pluralidade de discursos do ambiente é processada internamente pelo sistema do direito, sendo o código o componente que permite distinguir o sistema jurídico do ambiente, bem como identificar o que é conforme o direito e o que é discrepante, conferindo identidade ao sistema.
2.4.1.1 Duplo ingresso Os códigos binários são, aparentemente, fáceis de manejar, por permitirem a imediata identificação de dois valores que se excluem mutuamente, sendo um positivo e outro negativo.
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O fechamento organizacional do sistema jurídico implica que tudo o que não esteja dentro do campo da licitude seja ilícito e vice-versa, sem que sofra interferência de quaisquer outros valores, pertencentes a sistemas diversos. Esse esquema, não obstante se mostre, à primeira vista, muito simples, encobre estruturas complexas, designadas por Niklas Luhmann113 de re-entry, significando o duplo ingresso da forma dentro da forma. Esse duplo ingresso opera-se do seguinte modo: o sistema jurídico sai do lado interno da forma e vai até o lado externo – sistema social – para buscar uma comunicação que deseja disciplinar, trazendo-a de volta ao interior da forma, para dar-lhe tratamento segundo seu código, que é lícito/ilícito, como graficamente representado114:
Convém esclarecer que esse duplo ingresso opera-se apenas no lado interno da forma. O lado externo só se apresenta como componente de delimitação, uma vez que para poder dizer o que pertence ao sistema [interno] é necessário diferençá-lo do ambiente [externo].
113. O direito da sociedade, p. 132. 114. A sigla SS representa o sistema da sociedade, SJ indica o sistema jurídico e C uma comunicação.
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A operação a que nos estamos referindo dá-se mediante a divisão de determinado sistema em duas partes, criando um espaço que representa parcela específica do mundo e que se põe à disposição para um novo corte, com o qual se faz outra distinção naquilo que já foi desmembrado por uma partição anterior. Em relação a essa duplicidade seletiva, Gustavo Sampaio Valverde115 discorre com propriedade: As operações realizadas pelo sistema consistem basicamente na seleção de informações do ambiente e no processamento interno dessas informações, o que significa reconhecer que cada sistema possui um critério e uma forma de selecionar e processar informações, que lhe possibilita operar de uma maneira própria e delimitar-se frente ao ambiente. Essa seleção promovida pelos sistemas é, na verdade, uma dupla seleção, pois compreende uma primeira seleção das informações ambientais para o sistema e uma segunda seleção, já dentro do sistema, de acordo com o seu código comunicativo peculiar.
Diz-se que há um duplo ingresso na forma exatamente por serem efetuadas duas seleções: (i) há um corte no sistema social, selecionando a gama de comunicações que serão diferenciadas pelo código lícito/ilícito, distinguindo, assim, o sistema parcial do direito:
115. Coisa julgada em matéria tributária, p. 57.
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(ii) dentro da forma do sistema jurídico ocorre uma nova divisão que permite implementar o código, conectando as comunicações selecionadas e dando-lhes sentido, atribuindo-lhes a condição de lícito ou ilícito [entendido o “ou” como conectivo disjuntor excludente], como a seguir representado:
No primeiro corte verifica-se predominante atuação do código, enquanto no segundo tem-se o programa conferindo conteúdo às comunicações selecionadas pelo código.
2.4.1.2 Bivalência do código e biestabilidade Código é o esquema bivalente que o sistema utiliza para estruturar as operações próprias e para distingui-las de outros assuntos. Em uma simplificação máxima, os códigos são estruturas que podem ser reduzidas ao objetivo da biestabilidade. Com isso, referimo-nos a sistemas que podem tomar dois estados [positivo/negativo; 1/0 etc.], a partir dos quais se desenvolvem as operações subsequentes. São sistemas que têm incorporadas uma distinção e uma forma, e que incluem a possibilidade de suas operações conectarem-se indistintamente a um lado ou ao outro da distinção [tanto no
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lado positivo como no negativo], apresentando integradas operações de crossing, na terminologia adotada por Spencer Brown116. Graças ao código binário existe um valor positivo a que chamamos lícito e um valor negativo a que denominamos ilícito. O polo positivo aplica-se quando o comportamento coincide com as condutas prescritas pelas normas do sistema, ao passo que o negativo tem aplicabilidade nas hipóteses de infringência àquelas prescrições normativas. O direito não se apresenta como um sistema orientado teleologicamente, o qual, ao alcançar a meta pretendida, cessa suas operações. É claro que orientações em relação a um objetivo determinado podem existir no sistema, mas somente na forma de episódios, como no caso dos processos individuais que culminam com a decisão de um tribunal. O direito é uma história sem fim, um sistema autopoiético que produz elementos para poder continuar gerando mais elementos. A codificação binária é a forma estrutural que garante exatamente isso. Exemplificando: se alguém obtém uma sentença válida, não é lícito que a execute com suas próprias mãos; se o réu for condenado e preso, é lícito alimentá-lo e dar-lhe tratamento humano. Cada operação que opte por um valor – lícito ou ilícito – abre a possibilidade de que as operações subsequentes possam ser novamente avaliadas segundo sua licitude ou ilicitude. A bivalência, além de condição mínima para manter o sistema fechado operativamente, consiste, também, em condição para a capacidade de decidir e, com isso, em requisito para a jurisdicionalidade. Se houvesse mais valores, as situações de decisão ficariam demasiadamente complicadas e o sistema não poderia operar com segurança suficiente. Ao decidir, não deve o juiz fazê-lo como se existissem outros valores além do lícito e ilícito, como decidir em nome da “conservação do poder político”. 116. Apud Niklas Lhumann, O direito da sociedade.
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A unidade do código está expressa, outrossim, no fato de que não se pode tomar uma decisão sobre um valor sem levar em conta o outro. A adjudicação de valores a determinadas situações supõe, por isso, a avaliação do rechaço e da possibilidade contrária, assim como no sistema científico um teorema só pode ser designado como verdadeiro quando se afirma, ao mesmo tempo, que se avaliou que não é falso. O código desdobra o paradoxo segundo o qual a unidade do sistema está conformada por dois valores incompatíveis, ou seja, que a distinção tem uma duplicidade de lados que, do ponto de vista temporal, são relevantes ao mesmo tempo, mas que não podem ser usados simultaneamente. A existência de dois valores faz com que a adjudicação de um deles a determinada situação seja algo contingente, demandando escolha. Por todo o exposto, observa-se serem duas as principais interpretações acerca das funções do código: (i) uma trata o código como possibilidade de distinção entre os vários sistemas parciais que integram o sistema social; e (ii) outra entende o código como divisor do mundo em duas metades: valor positivo e valor negativo.
2.4.2 Programas Não obstante a relevância do código na composição do sistema autopoiético, este, quer do ponto de vista temporal, quer do prisma objetal, mostra-se insuficiente para a estruturação do sistema. Examinando sob o ângulo temporal, o código apresenta-se como algo invariável. Se os valores do código mudarem, estar-se-á diante de um sistema distinto, pois o código representa a maneira como o sistema produz e reproduz sua própria unidade. O código não oferece, portanto, nenhuma possibilidade de adaptação do sistema ao ambiente. Um sistema codificado ou está adaptado, ou não existe.
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Em relação ao seu objeto, o código é uma tautologia, e, no caso da autoaplicação, um paradoxo. A tautologia decorre de que os valores do código são interdefiníveis mediante a negação: o que é conforme ao direito não é discrepante do direito (lícito = não ilícito) e o que é discrepante do direito não é conforme ao direito (ilícito = não lícito). Por essa razão, o código pode ser caracterizado como uma simples duplicação do valor de preferência, no caso, a licitude. O paradoxo, por sua vez, apresenta-se quando o código é aplicado a si mesmo: ao perguntar se algo está conforme ou desconforme ao direito, distingue-se entre lícito e ilícito; para saber se é direito, necessário se faz o prévio conhecimento do que é ser lícito, conhecendo-se, simultaneamente, o que é ser ilícito. Os valores lícito e ilícito não são, propriamente, critérios para a determinação do direito ou do não-direito, sendo necessários outros elementos que indiquem como os valores do código lícito/ilícito se aplicam. Essa semântica adicional é chamada de programa. O código não pode existir sozinho, sem o programa, pois quando uma operação se submete a um valor binário e, portanto, ingressa em determinado sistema, surge a inevitável pergunta: qual dos valores (positivo ou negativo) deve-se-lhe adjudicar? Os códigos são distinções que, no âmbito autopoiético, só podem ser produtivas mediante outra diferenciação: aquela entre codificação e programação. É em virtude da existência de codificação e programação que se pode resolver o problema da invariabilidade temporal e da capacidade de adequação do sistema: a invariabilidade e a incondicionabilidade estão representadas pelo código; a transformabilidade, pelos programas. Os programas, na qualidade de suplemento da codificação, servem para dar direcionalidade à semântica condicionada por um código. Somente na presença de ambos é possível resolver problemas especificamente jurídicos, já que apenas nessa hipótese tem-se uma contingência inerente ao sistema do direito. Aquilo que é correto só se fixa mediante os próprios programas. Não existe nenhum problema de fundamentação do direito que
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não tenha de se solucionar no próprio direito. Por isso, o direito positivo existe unicamente produzido no próprio sistema.
2.5 Forma e função do programa jurídico Os programas dos sistemas jurídicos são sempre condicionais. Em relação ao direito, não se pode considerar uma programação orientada por fins. Os programas finalísticos só são admissíveis, no âmbito jurídico, mediante o contexto de um programa condicional: programas condicionais orientados a certos fins. O marco jurídico dentro do qual se emite uma decisão não é, jamais, um programa finalístico. Ao contrário, o direito tem sempre como fundamento uma estrutura do tipo “se isto/ então aquilo”. Somente na hipótese de se apresentarem problemas na interpretação desse texto é que se pode partir da consideração acerca da finalidade em função da qual deve servir o programa. Nesse caso, é precisamente a programação condicional que permite certa liberdade na imaginação de metas. Em situações extremas, é possível que as condições estabelecidas pelo programa sejam reduzidas a uma norma de competência, do tipo “direito é o que o juiz considera como meio adequado para alcançar um fim”. Mas, ainda nessa hipótese, continuaria havendo um programa condicional, tendo em vista que só se teria direito se o juiz exercesse sua competência dentro dos limites impostos pelo próprio sistema jurídico. A forma do programa condicional “se isto/então aquilo” sobrevive a todas as subsequentes diferenciações sociais mediante uma espécie de mudança de contexto. Possibilita a diferenciação de um sistema jurídico com uma codificação binária, assumindo a função de regular adjudicação dos valores do código ao caso específico. A fixação da forma do programa condicional relaciona-se com a função do direito: a estabilização das expectativas
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normativas. Justamente para o caso de não serem cumpridas, as expectativas são postas na forma de normas. Em síntese, a programação complementa a codificação, conferindo-lhe conteúdo. A diferença entre codificação e programação permite tautologizar o próprio código, tratá-lo como relação de mudança de valores e, com isso, abastecer o sistema com a capacidade para tomar decisões. Combina a invariabilidade com a transformabilidade.
2.6 Processo e autopoiese do sistema jurídico O sistema jurídico impõe a necessidade de decisões. Dispõe ele, todavia, da possibilidade de postergar as decisões e operar durante um tempo na incerteza. Esse período de incerteza é admissível no sistema do direito porque ele próprio promete resolvê-la em algum momento, mediante a previsão de processos. Os processos apresentam-se organizados na forma de episódios temporalmente limitados, iniciando-se com uma demanda e terminando com uma decisão que lhe corresponda. Princípio e fim são momentos constitutivos do sistema processual. Acontecimentos externos ao processo, como um acidente ou um desgosto pessoal, não iniciam o processo. As situações exteriores só têm relevância mediante formas que o processo mesmo identifica e qualifica como início: somente tais formas constituem o início do processo. Só o código que permite a adjudicação da conformidade [ou discrepância] com o direito, mas que a deixa aberta, pode produzir a incerteza de que vive o processo. Todavia, o processo a aproveita como meio para sua própria autopoiese. Utiliza a incerteza para motivar a participação, oferecer oportunidades e, com isso, chamar os participantes para que colaborem, quer dizer, os convoca ao reconhecimento, até que no final se convertam em prisioneiros de sua própria participação, tendo poucas perspectivas de negar posteriormente a legitimidade do processo.
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O código estritamente binário do sistema jurídico é enriquecido, dessa maneira, com um terceiro valor, qual seja a incerteza da adjudicação de um valor. Isso possibilita que a codificação binária fique intacta, visto que impede a introdução de outros valores no sistema, mediante a exigência de que se aplique, ao próprio processo decorrente da incerteza, a distinção do código conforme/discrepante com o direito.
2.6.1 Segurança jurídica no sistema autopoiético: relacionamento entre sistema jurídico e ambiente Lourival Vilanova 117 assevera que o direito se apresenta como uma “linguagem material, sempre aberta ao acrescentamento de enunciados fundados na experiência, que é infinita no sentido kantiano”. Tal afirmação deve ser entendida como referente à abertura cognoscitiva do sistema jurídico, pois este, conquanto aberto em seu aspecto semântico, é sintaticamente fechado. Nada ingressa no sistema do direito que não seja pelo modo por ele próprio prescrito: a forma normativa. É pela conjugação entre código e programa que se obtém esse fenômeno autopoiético, garantindo, simultaneamente, segurança jurídica e relacionamento entre o direito posto e o ambiente. A segurança jurídica pode ser considerada em duas variantes: (i) garante que os assuntos sejam tratados exclusivamente de acordo com o código do direito, sem interferência de qualquer outro interesse não contemplado pelo ordenamento; e (ii) confere previsibilidade às decisões jurídicas, em razão do conteúdo prescrito pelos programas do direito. Tendo em vista, porém, que as decisões são fortemente influenciadas pela subjetividade do julgador, optamos por considerar a segurança jurídica, em seu sentido estrito, como aquela referida na primeira variante: a exigência de que os 117. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 56.
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fatos, para ingressarem no universo jurídico, submetam-se ao código “lícito/ilícito”. Apenas após a atuação do próprio sistema jurídico, mediante aquele duplo ingresso de que falamos no subitem 2.4.1.1, é que os fatos sociais passam a integrar o mundo do direito, surtindo os correspectivos efeitos. Esse é o modo pelo qual sistema jurídico e ambiente se relacionam, como explica com propriedade Paulo de Barros Carvalho118: O que pode acontecer é o sistema S’ tomar conhecimento de informações do sistema S” e processar esses dados segundo seu código de diferença, vale dizer, submetendo-se ao seu peculiar critério operacional. Em linguagem jurídica, é o direito recebendo fatos econômicos, por exemplo, em suas hipóteses normativas e, a partir delas, produzindo novas relações jurídicas por meio dos operadores deônticos [V, P e O].
Sem norma, um fato qualquer não adquire qualificação de fato jurídico. É o sistema normativo que decide quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade, ou, como refere Lourival Vilanova119, os fatos que trazem consequências jurídicas e os fatos que são juridicamente irrelevantes: “o constituírem-se ou desconstituírem-se fatos jurídicos depende de regras de formação do sistema”. Na teoria das provas, a imprescindibilidade da observância às normas disciplinadoras do ingresso de elementos no sistema jurídico para que haja relacionamento entre este e o ambiente em que se insere é facilmente identificada nos efeitos do preceito proibitivo da produção de provas ilícitas: ainda que o fato probante tenha sido constituído, não se apresenta como fato para o direito caso sua realização deixe de observar os limites juridicamente impostos. Além dessa situação, em que o filtro do sistema jurídico aparece com maior nitidez, para todas as hipóteses de produção
118. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 104. 119. Causalidade e relação no direito, p. 54.
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probatória existem normas que prescrevem como constituir provas: são as normas de organização, normas-de-normas que indicam o procedimento para constituírem-se e desconstituírem-se outras normas, cuja observância é imprescindível para que se estabeleça relação de pertinencialidade com o sistema jurídico.
2.7 As provas na teoria autopoiética do direito Enquanto os eventos apresentam-se como ocorrências materiais, verificadas no mundo da experiência, os fatos consistem em enunciados linguísticos que relatam e, desse modo, constituem os acontecimentos perante a realidade social. Por essa razão, pondera Maria Rita Ferragut120 que aquilo que realmente sabemos sobre os eventos nada mais são que suas versões, concretizadas por meio de linguagens que os descrevem e constituem fatos. Não é qualquer espécie linguística, porém, capaz de produzir tais efeitos. Para que se tenha um fato pertencente a determinado sistema, necessário se faz que seja relatado segundo as regras por ele impostas. Não obstante os eventos possam ser expressos por diversos tipos de linguagem, estes só pertencerão ao mundo do direito se produzidos na forma por ele prescrita. Isso confere segurança jurídica ao ordenamento, pois dá a certeza de que ingressará no sistema do direito positivo apenas aquilo que for vertido na linguagem competente, segundo o código lícito/ilícito. A diferença substancial entre fato jurídico, fato social – ou, simplesmente, fato –, fato econômico e fato político decorre da circunstância de que o primeiro é constituído pela linguagem do direito, ao passo que os demais são relatados em linguagem social, econômica e política, respectivamente. Fato jurídico, define Paulo de Barros Carvalho121, é “enunciado 120. Presunções no direito tributário, p. 32. 121. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 105.
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protocolar, denotativo, posto na posição sintática de antecedente de uma norma individual e concreta, emitido, portanto, com função prescritiva, num determinado ponto do processo de positivação do direito”. Como consequência dessa diferenciação linguística, tudo aquilo que não estiver relatado na linguagem admitida pelo direito não será por ele conhecido. Susy Gomes Hoffmann122, esclarecendo as implicações que essa separação entre fato social e fato jurídico acarreta, exemplifica: A justiça jurídica ocorrerá quando forem atendidos os princípios de nossa ordem. Essa justiça poderá, por sua vez, traduzir uma sensação de injustiça social, se adotar esse segundo sentido de justiça como o sentimento de uma sociedade e que não está, necessariamente, atrelado aos ditames da ordem jurídica. Assim, por exemplo, quando uma pessoa deixa de ser condenada porque a única prova de sua conduta criminosa foi obtida por meio ilícito, traduz-se, socialmente, a sensação de injustiça: um criminoso não foi preso. Porém, nos valores da ordem jurídica, a licitude da prova é requisito do princípio do devido processo legal. Portanto, pela ótica jurídica, houve justiça, e pela ótica social, a conclusão pode ser diversa.
A partir da situação examinada por essa autora, nota-se, desde logo, a relevância da prova para a constituição do fato jurídico. O direito, como sistema que determina o modo pelo qual ocorre sua autorreprodução, exige a prova obtida licitamente como suporte para que se tenha um fato jurídico, como é o caso do fato jurídico tributário. Ainda, tomado o direito como um sistema comunicativo funcionalmente diferenciado e dotado de programas e código próprios, este apresenta uma forma especial de abertura e fechamento com relação ao ambiente: o direito possui específicos códigos de comunicação e peculiares operações de reprodução de elementos, o que lhe confere fechamento operativo e abertura cognitiva do ambiente. Só ingressam no
122. Teoria da prova no direito tributário, p. 115.
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ordenamento jurídico, portanto, os fatos que ali sejam postos pela linguagem eleitas pelas regras do direito123. E, como sabemos, as linguagens de caráter social, econômico, político ou histórico, dentre outros, não satisfazem aos requisitos exigidos pelo ordenamento. Para que se tenha um fato jurídico, ou seja, uma nova realidade no âmbito do direito, é imprescindível que haja produção linguística específica, prescrita pelo próprio ordenamento, a exemplo do que acontece com a linguagem das provas: estas se reportam ao fato social para, em conformidade com as regras do direito, constituir um fato jurídico, apto para desencadear os efeitos prescritivos que lhe são peculiares.
2.8 A prova no sistema comunicacional do direito Na qualidade de subsistema recortado do sistema social, o direito positivo, conquanto funcionalmente diferenciado e composto por códigos e programa próprios, apresenta-se como uma rede de comunicações: interações sociais realizadas por meio de mensagens124, no caso, mensagens jurídicas. E, sendo a prova elemento indispensável ao processamento comunicacional do direito, também ela se insere no âmbito da cadeia comunicativa. Para que a comunicação se opere com o mínimo possível de ruído125, Leonidas Hegenberg126 preconiza a observância a quatro princípios básicos: (i) máxima da cooperação, de acordo com a qual, em cada fase de um diálogo, os participantes devem manifestar-se respeitando o direcionamento estabelecido pela troca de ideias, evitando desvios ou dispersões inúteis; (ii) máxima da qualidade, impondo a omissão de tudo o 123. Gregorio Robles, Las reglas del derecho y las reglas de los juegos, passim. 124. John Fiske, Introduction to communication studies, p. 1. 125. O ruído representa uma interferência perturbadora no sistema comunicacional, impedindo ou dificultando a transmissão e compreensão das mensagens. 126. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade, p. 71.
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que se julgue falso ou daquilo para o que faltem evidências corroboradoras; (iii) máxima da quantidade, nos termos da qual o informante há de enunciar somente sentenças oportunas, omitindo-se quanto às supérfluas, evitando, desse modo, o excesso de informações; e (iv) máxima da urbanidade, cujo propósito é rejeitar enunciados obscuros e ambíguos. Assim, a produção probatória, para realizar-se de forma precisa e cumprir seus objetivos no sistema jurídico, há de seguir as orientações manifestadas por tais princípios: (i) deve ser introduzida nos autos no momento apropriado, pelo sujeito que nela tem interesse, de modo que se estabeleça troca de informações entre as partes e o julgador; (ii) exige-se prova dos fatos alegados, de maneira que fato não provado é fato jurídico inexistente; (iii) as provas juntadas aos autos hão de referir-se a fatos pertinentes, relevantes para a solução do conflito instaurado; e (iv) com vistas a cumprir sua função de convencer o julgador, destinatário das provas, recomenda-se que estas sejam produzidas do modo mais claro possível, mediante o emprego de vocábulos com o mínimo de ambiguidade e vagueza, acompanhados, quando necessário, de processo de elucidação, esclarecendo-se o sentido e a extensão atribuídos às palavras. No processo constitutivo da interação comunicacional, coexistem seis componentes, segundo Roman Jakobson127: O remetente envia uma mensagem ao destinatário. Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto a que se refere, apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um código total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmente, um contato, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a entrarem e permanecerem em comunicação.
Apliquemos as noções de emitente ou emissor, destinatário ou receptor, mensagem, canal ou contato, código e 127. Linguística e comunicação, p. 123.
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contexto à teoria das provas, procurando, com isso, melhor esclarecer o modo pelo qual as provas se inserem no processo comunicacional do direito. (a) Remetente. No processo de comunicação deve existir um ponto de onde a mensagem parte. Eis o emissor ou remetente, sujeito imprescindível para o desencadear comunicativo, representado, na teoria das provas, pela parte que realiza sua produção, introduzindo enunciados probatórios nos autos processuais128. (b) Destinatário. Não obstante um sujeito possa emitir mensagens a si próprio – falando consigo mesmo ou escrevendo para si em um diário ou lembrete –, o processo de comunicação em sentido próprio requer que a mensagem tenha um destino distinto do emissor. Esse destino é o receptor ou destinatário, podendo consistir em um grupo de pessoas determinadas (ex.: conferência) ou indeterminadas (ex.: livro, rádio, televisão). Tratando-se, contudo, de enunciação probatória, cujo caráter é eminentemente persuasivo, o destinatário há de ser certo: o julgador, isto é, o sujeito a quem se pretende convencer de algo mediante o uso das provas em direito admitidas. (c) Mensagem. Consiste naquilo que se quer transmitir, ou seja, no conteúdo da comunicação. A mensagem não se produz por uma soma dos fonemas que constituem as palavras, mas pela conjugação de conteúdos que convencionalmente se atribui aos signos linguísticos, variáveis conforme o contexto em que se inserem e a valoração dos intérpretes. A prova, entendida como proposição, identifica-se com esse elemento do processo comunicacional, pois é por meio de seu conteúdo significativo que se pretende convencer o destinatário acerca da ocorrência ou inocorrência de determinado fato. (d) Canal. Para que a comunicação se realize é imprescindível a existência de uma via que permita que a mensagem
128. O fato comunicacional tem início com o processo decisório que culmina com a expedição de atos de fala.
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chegue até seu destinatário. Eis o canal ou contato, componente comunicacional que serve para interligar emissor e receptor da mensagem. No sistema jurídico, esse vínculo é obtido por meio do processo, enquanto instância material, suporte físico das relações processuais. (e) Código129. Além daquele contato entre remetente e destinatário, é preciso que ambos compartilhem um código comum. Se alguém transmite mensagem na língua japonesa para um sujeito que desconhece esse idioma, a comunicação não se opera. Por isso, o sistema jurídico brasileiro adota a língua portuguesa como código, mais especificamente sua modalidade escrita, ou, excepcionalmente, suscetível de ser escrita. Daí por que nosso sistema processual prevê a figura do tradutor juramentado, cuja função é verter a mensagem para o código eleito, conhecido pelo destinatário. (f) Contexto. Consiste no conjunto de condições de uso da língua, envolvendo, simultaneamente, o comportamento do emissor e do receptor, bem como o quadro situacional em que se dá a transmissão da mensagem, interferindo na significação de um enunciado. Em relação às provas, o contexto está representado pela relação jurídica processual em que se pretende interferir130. Tomado o direito como processo comunicacional em que se inserem as provas, convém esclarecer que a atividade desenvolvida pelo destinatário da mensagem não consiste em mera decodificação de signos. A recepção da mensagem exige atos de construção de sentido, análogos aos que se requer para a produção da mensagem. Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que as atividades do emissor e do receptor são 129. Esclarecemos que o termo código é utilizado, nesta oportunidade, em sentido diverso daquele referido por Niklas Luhmann. Aqui, está ele a denotar um dos elementos do processo comunicacional e não as valências que atuam no fechamento operativo dos sistemas. 130. Isso não exclui a existência de um contexto mais abrangente, consistente nas vivências do destinatário [julgador], influenciando sua interpretação daquele específico contexto processual.
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interdependentes e condicionadas entre si, pois, ao produzir uma mensagem, o remetente normalmente antecipa [prevê, espera] certa interpretação por parte do destinatário, e este, ao interpretá-la, geralmente constrói hipóteses sobre os propósitos do emissor, segundo a forma textual utilizada e seu contexto. Antes de codificar ou decodificar, os sujeitos da comunicação propõem hipóteses interpretativas e se orientam mediante raciocínios estratégicos implícitos ou explícitos: o emissor quer ser entendido pelo receptor e este deseja compreender o emissor. Nos processos jurídicos, todavia, a decodificação das mensagens sofre intervenção de mais de um sujeito. Além do julgador, a quem se dirigem as provas, verificam-se constantes manifestações da parte adversa, procurando dar nova significação à prova produzida pelo remetente. É o que acontece na hipótese em que um sujeito “A” junta aos autos determinado laudo pericial, utilizando-o como justificativa do fato por ele alegado. “B”, ao manifestar-se sobre referido laudo, procura atribuir-lhe sentido diverso. Quando as mensagens chegam ao destinatário [julgador], já passaram por essas interferências. No sistema comunicacional probatório aparece, também, o fenômeno da redundância: é o chamado reforço de prova, consistente na apresentação de diversas provas que se confirmam entre si. A parte anexa contrato comprobatório do fato por ela alegado e, simultaneamente, diversos outros documentos relativos ao assunto, objetivando confirmar a veracidade de suas afirmações. Conquanto gramaticalmente seja inapropriada, a redundância, no processo comunicacional, não é algo que se deva repudiar, pois nos sistemas de ambientes ruidosos essa técnica ajuda a alcançar maior fidelidade na interpretação das mensagens. Como leciona Paulo de Barros Carvalho131:
131. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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A redundância justifica-se, perfeitamente, no âmbito da prova. A repetição faz parte da linguagem utilizada em função prescritiva de condutas, sendo a idempotência do conjuntor e do disjuntor, como possibilidade lógica, um traço característico da linguagem deôntico-jurídica.
A repetição de enunciados prescritivos, conquanto semanticamente corresponda ao conteúdo significativo de um só comando, implica relevante acréscimo de eficácia social: no caso das provas, acarreta o incremento de seu poder persuasivo.
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CAPÍTULO 3 NOÇÕES GERAIS SOBRE A PROVA
3.1 Plurissignificação do vocábulo “prova” O termo prova, assim como tantos outros, encontra no uso ordinário e jurídico os mais diversos significados. Esse vocábulo deriva do latim probatio, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação, confirmação. A referência à sua origem, por si só, permite-nos entrever a polissemia da palavra. John Gilissen132, atento a essa pluralidade de sentidos, chama atenção para o fato de que a figura da prova não é exclusiva do domínio do direito. Ela diz respeito a inúmeras outras disciplinas, tanto em ciências exatas como em ciências humanas, podendo assumir vários aspectos, dentre os quais destaca esse autor a (i) prova demonstrativa, consistente em um raciocínio voltado a deduzir, de axiomas ou proposições já provadas, outras proposições. A prova demonstrativa diz respeito a ideias, dados abstratos, sendo empregada na matemática e na lógica; (ii) prova experimental, decorrente de experiências e tendo por objetivo demonstrar uma lei natural: 132. Introdução histórica ao direito, p. 712.
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exemplo clássico é a “lei da gravidade”, experimentalmente comprovada. É a espécie de prova utilizada nas ciências naturais; (iii) prova histórica, direcionada a reconstituir o passado, buscando provar os acontecimentos por meio dos vestígios deixados ao longo do tempo; e (iv) prova judiciária, que em muito se assemelha à prova histórica em virtude de visar à reconstrução de situações já ocorridas. Diferencia-se por ser produzida em juízo, com a função de convencer o julgador acerca da existência ou não de determinado fato. Acrescentamos a essa relação a prova jurídica, da qual a prova judiciária seria espécie. Referida categoria abrange toda a prova constituída segundo regras de direito, independentemente de sua produção ocorrer nos autos judiciais ou fora dele. Essa relação de sentidos atribuídos ao termo prova não é exaustiva. Tal palavra, na linguagem comum, pode significar ensaio, experiência, confrontação, demonstração, exame, sofrimento, dentre outros, evidenciando sua polissemia. Eis o motivo pelo qual Enrique M. Falcón133 adverte sobre a necessidade de focalizar esse vocábulo dentro de determinado contexto ou optar por um momento particular em que seja empregado. É o que faremos, dirigindo nossa atenção, especificamente, à prova jurídica. Não nos interessa apenas a prova judiciária, referida por Gilissen, mas o gênero do qual esta se apresenta como espécie: a prova jurídica, entendida como aquela construída dentro do sistema do direito positivo, independentemente da instauração de processo judicial. Desse modo, considerando que o presente trabalho destina-se, especificamente, ao exame de regras tributárias, tomaremos como centro das nossas atenções tanto as provas produzidas em juízo como também as provas que motivam os atos administrativos de lançamento tributário e de aplicação de penalidade por descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental, as quais, 133. Tratado de la prueba, v. 1, p. 3.
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conquanto integrantes da dinâmica de positivação de normas jurídicas, não se formam no corpo do processo judicial. O corte epistemológico realizado implica, ainda, exame das provas levadas à apreciação do julgador quando instaurado o processo administrativo, as quais, embora não apresentem caráter judicial, são de indiscutível juridicidade, devendo ser constituídas mediante específico método probatório e linguagem prescrita pelo ordenamento.
3.2 Acepções do vocábulo “prova” No sentido comum, as várias acepções do vocábulo prova têm um ponto nuclear, compartilhado por todas elas: o termo é empregado para denotar algo que possa servir ao convencimento de outrem. Prova, segundo Moacyr Amaral Santos134, é o meio utilizado para persuadir o espírito acerca de uma verdade. Relativamente ao âmbito jurídico, a plurivocidade de sentidos mantém-se. Refletindo sobre esse lado semântico, Paulo de Barros Carvalho135 chegou a reunir um número expressivo de possibilidades significativas. Ei-las: 1. procedimento, entendido como a sequência de atos mediante os quais se opera o relato probatório; 2. rito da enunciação, legalmente previsto, ou procedimento organizacional da prova; 3. resultado do procedimento probatório, ou seja, seu produto; 4. conjunto de regras que regulam a admissão, produção e valoração dos elementos trazidos aos autos, determinando o transcurso probatório; 5. enunciação; 6. enunciação enunciada; 7. enunciado linguístico; 8. suporte físico; 9. conteúdo do suporte físico; 10. proposição; 11. veículo introdutor; 12. norma em sentido amplo; 13. norma em sentido estrito; 14. mensagem; 15. signo; 16. indício; 17. pista; 18. vestígio; 19. marca; 20. sinal; 21. ato de fala; 22.
134. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 2. 135. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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atitude pragmática; 23. relação de implicação entre enunciados linguísticos; 24. elemento constitutivo do fato jurídico; 25. fato; 26. fato de provar; 27. fato provado; 28. fato que causa convencimento do julgador acerca da verdade de outro fato; 29. fato da convicção provocada na consciência do julgador; 30. meio de controle das proposições que os litigantes formulam em juízo; 31. soma dos meios produtores de certeza; 32. fundamentação; 33. justificação da crença na verdade de um fato; 34. certeza; 35. verdade; 36. evidência; 37. certificação de que ocorreu elemento constitutivo do fato jurídico; 38. prova direta; 39. prova indireta; 40. presunção; 41. sobreprova; 42. metaprova; 43. reforço de prova; 44. enunciado de segundo nível; 45. contraprova; 46. protoprova; 47. análise; 48. argumento retoricamente produzido; 49. experiência sensorial, decorrente da utilização de um dos cinco sentidos – audição, tato, olfato, paladar e visão; 50. testemunho; 51. competição; 52. concurso; 53. processo seletivo; 54. prova de conhecimento; 55. providência preliminar; 56. exibição; 57. certificação autenticadora; 58. certificação constituidora; 59. documento. Essa é uma pequena amostra das feições que o vocábulo prova pode assumir, sendo desaconselhável pretender atribuir-lhe um único sentido. A polissemia do termo examinado é intrínseca a ele, não sendo possível afirmar que tenha um significado exato136. Daí por que não podemos certificar que uma acepção seja mais ou menos correta que outra. O que faremos, no decorrer deste trabalho, é elucidar seus vários sentidos e especificá-los sempre que utilizados. Uma das razões em virtude da qual persiste a plurissignificação diz respeito ao momento em que a prova é considerada. Não obstante seja comum visualizá-la como algo finalizado, entendendo-a como a demonstração da verdade de um fato, o conceito de prova varia segundo o instante em que se a considere, podendo referir-se a aspectos relacionados à sua fonte,
136. É o que acontece, por exemplo, com a palavra vela, usada para indicar a vela do barco, a vela de parafina, a vela do automóvel.
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aos enunciados probatórios ou à sua valoração. Com base na dinâmica da prova, alguns autores, como Prieto Castro137, procuram construir definição que abranja toda sua complexidade, compreendendo a prova como a atividade que desenvolvem as partes para levar o julgador à convicção da verdade de uma afirmação, fixando os correspondentes efeitos no processo, bem como os objetos de que as partes se servem para provar o recebimento destes por quem irá apreciá-los e o resultado dessa avaliação. Sobre o assunto, examinando a diversidade de acepções do vocábulo prova em direito processual, registra Antonio Dellepiane138 ser o termo usado, ordinariamente, no sentido de elementos produzidos pelas partes ou recolhidos pelo julgador, a fim de estabelecer no processo a existência de certos fatos. Isso não exclui, contudo, seu emprego como ação de provar, quer dizer, ato de fornecer os elementos de juízo ou produzir os meios indispensáveis para determinar a exatidão dos fatos alegados. Além disso, referido vocábulo serve para designar, também, o fenômeno psicológico, o estado de espírito produzido no julgador por aqueles elementos de juízo, ou seja, a convicção, a certeza acerca da existência dos fatos sobre os quais recairá seu pronunciamento. É neste último sentido, esclarece o autor, que se costuma dizer existir ou não prova dos fatos alegados: Nesta última hipótese, isto é, na de não existência de prova, não se entenderá como significando a não existência de elementos de juízo acumulados no processo [meios de prova, primeira acepção], nem tampouco que os não hajam produzido os litigantes [segunda acepção], senão que esses elementos são insuficientes para determinarem a convicção ou, o que é equivalente, que não existe no magistrado o estado de consciência chamado certeza, em razão de haverem sido insuficientes para criá-los os elementos de juízo acumulados139.
137. Manual del derecho procesal civil, p. 285. 138. Nova teoria da prova, p. 21-22. 139. Ibidem, mesma página.
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Tudo isso se deve ao fato de que a prova padece da ambiguidade processo/produto, podendo significar tanto a enunciação como o enunciado resultante [dilema]. E, mais que isso, a palavra prova é plurissignificante, susceptível de ser empregada para aludir (i) ao fato que se pretende reconstruir; (ii) à atividade probatória; (iii) ao meio de prova; (iv) ao procedimento organizacional; (v) ao resultado do procedimento; ou (vi) ao efeito do procedimento probatório na convicção do destinatário. Essa polissemia decorre, principalmente, das diferenças quanto ao alcance do termo, aos diversos momentos em que a prova é considerada, à estrutura aberta da linguagem140 e aos aspectos relativos à sua pertinência. Por esse motivo, sempre que falamos em prova devemos estabelecer a fase de sua dinâmica a que nos estamos referindo.
3.3 Prova como procedimento e produto Prova é palavra que padece do problema semântico da ambiguidade processo/produto, designando tanto a sequência de atos mediante os quais se opera o relato probatório como o resultado desse processo. Indica, simultaneamente, a tomada do depoimento testemunhal e o testemunho reduzido a termo, expresso em base documental. Prova pode ser considerada o processo de determinação do fato [um ou mais fatos jurídicos em sentido amplo, direcionados a certificar um fato jurídico em sentido estrito, como é o caso do fato jurídico tributário], mas é também entendida como o produto desse processo, ou seja, o próprio fato jurídico em sentido amplo. Não podemos esquecer que provar significa enunciar um fato, constituindo-o na realidade jurídica. Esse processo probatório há de seguir, necessariamente, o trâmite legalmente prescrito, que denominamos procedimento organizacional da prova, composto pelo conjunto de regras que regulam a admissão, produção e valoração dos elementos levados aos
140. Toda palavra é vaga e potencialmente ambígua.
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autos, determinando o transcurso probatório. A missão das normas procedimentais é exatamente estabelecer as ações necessárias para que o ato de fala produza um enunciado probatório. Só se tem enunciação produtora de provas se admitida pelo sistema jurídico, mediante as normas de procedimento: normas de competência que determinam como deve dar-se a produção da prova. Apresentam-se como regras sintáticas, tal como sua gramática, que prescrevem o modo como hão de agir os sujeitos para obter o enunciado probatório, estabelecendo a forma organizacional de seus atos. Sob certo ângulo, também esse rito da enunciação recebe o nome de prova. É comum a assertiva de que “iremos estudar a prova testemunhal”, referindo, com isso, o exame nas normas que disciplinam a colheita do testemunho e sua redução a termo. É o que Maria Rita Ferragut141 chama de prova como proposição prescritiva, disciplinadora da comprovação de um fato: “o conteúdo de um enunciado jurídico geral e abstrato, de natureza instrumental, que estabelece a forma de se obter inicialmente um conhecimento ou de comprová-lo, mediante a exatitude ou inexatitude de um significado”. Nesse sentido, é tomada como regra de organização, também conhecida por norma de estrutura, que dispõe sobre o modo de regular um comportamento, ou, nos dizeres de Norberto Bobbio142, “o comportamento que elas regulam é o de produzir regras”. Examinar as normas disciplinadoras do modo de produção probatória significa estudar a sintaxe das provas. É com base nessa espécie de regras que se desenvolve o processo de determinação do fato, constituindo-se o fato jurídico em sentido amplo143.
141. Presunções no direito tributário, p. 46. 142. Teoria do ordenamento jurídico, p. 45. 143. Convém anotar que a observância das regras inerentes ao procedimento probatório é verificada em exame posterior à entrada da prova [entendida como produto] no ordenamento, servindo para orientar sua manutenção ou retirada do sistema jurídico.
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3.4 A prova no processo de enunciação Dentro da multiplicidade significativa da palavra prova destaca-se a concepção tripartida, que a conceitua como atividade, meio e resultado144. Além daquela apreciação relativa à ambiguidade processo/produto, a prova é susceptível de ser considerada no contexto da análise semiótica do discurso. Muitas vezes, toma-se a prova como a ação de provar, isto é, a produção de atos de fala ou enunciação linguística, nos termos prescritos em lei. Trata-se da atividade realizada com a finalidade de [re]construir os fatos alegados, constituindo suporte das pretensões deduzidas e da própria decisão. Eis a prova como enunciação, ato de fala, atitude pragmática que coloca a língua em funcionamento. A enunciação consiste no ato de produção de enunciados. Estes, por sua vez, designam orações bem construídas e dotadas de sentido, devendo ser formulados de acordo com as regras do sistema linguístico a que pertencem145. Considerada a prova como resultado do ato de fala, estar-se-á tomando-a como enunciado. Nesse sentido, a prova seria, segundo definição empreendida por Paulo de Barros Carvalho:146 Produto da atividade psicofísica de enunciação. Apresenta-se como um conjunto de fonemas ou de grafemas que, obedecendo às regras gramaticais de determinado idioma, consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo destinatário, no contexto da comunicação.
Isso não exclui a possibilidade de a prova ser visualizada como suporte físico, tal como as marcas de tinta sobre o papel.
144. Eduardo Cambi, Direito constitucional à prova no processo civil, p. 48. 145. Tárek Moysés Moussallem, A revogação em matéria tributária, p. 30. 146. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 19-20.
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Denomina-se prova, também, o sentido que se constrói a partir do contato com os enunciados, decorrente da atribuição de valores aos signos que o integram. Tem-se a prova enquanto proposição, conteúdo de significação constituído a partir da fórmula gráfica do enunciado. O ato de fala, na qualidade de processo de enunciação, é um objeto dinâmico susceptível de aproximação pelo sujeito cognoscente apenas por meio das marcas que deixa. Eis a prova como enunciação-enunciada: traços relativos à pessoa, ao espaço e ao tempo da enunciação [produção probatória], projetados no enunciado. Sendo integrante do sistema do direito positivo, a prova apresenta-se como norma, quer em sentido amplo, caracterizando enunciado normativo, quer em acepção estrita, na forma de um juízo hipotético-condicional. Para que essa norma ingresse no ordenamento, porém, é preciso ser veiculada pelo instrumento habilitado. As normas andam sempre em pares: norma introdutora e norma introduzida. A primeira consiste em uma norma geral e concreta, derivada da aplicação da regra de competência, que relata em seu antecedente as delimitações de sujeito, espaço e tempo em que ocorreu a enunciação – é o meio de prova; a segunda corresponde ao resultado da atividade enunciativa – prova. A presença do veículo introdutor, portanto, é inarredável, sendo essa mais uma das acepções da prova: instrumento pelo qual as informações sobre fatos são introduzidas no sistema jurídico. De outro lado, importa lembrar que a prova, para ingressar nos autos, há de ser introduzida por um requerimento dirigido à autoridade credenciada a decidir, mediante o qual se solicita a juntada do suporte físico, literalidade textual necessária à construção das normas jurídicas introdutoras e introduzidas.
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3.5 Prova como fato Tomando-se a prova no sentido de enunciado, esta se apresenta como fato jurídico em sentido amplo: (i) fato, por relatar acontecimento pretérito; (ii) jurídico, por integrar o sistema do direito; e (iii) em sentido amplo, por ser apenas um dos elementos de convicção que, conjugado a outros, propiciará a constituição do fato jurídico em sentido estrito, constante do antecedente da norma individual e concreta veiculada pelo ato de lançamento, de aplicação de penalidade ou de decisão administrativa ou judicial. Toda prova é um fato que leva, por implicação, a outro fato. Segundo Paulo de Barros Carvalho147, “um enunciado factual refere-se, invariavelmente, a outro enunciado factual. Prova é sempre um fato que atesta outro fato. Não há prova bastante-em-si, suficiente em si mesma”. Dito de outro modo, a prova é um fato jurídico em sentido amplo, cuja função consiste em convencer o destinatário acerca da veracidade da argumentação de determinado sujeito, levando à composição do fato jurídico em sentido estrito. Formalizando o percurso das provas, temos: [Fa . (F1 . F2 . F3 . ... Fn)] → Fj em que Fa indica o fato alegado, F1, F2, F3 e Fn representam um número finito de fatos [fatos jurídicos em sentido amplo], “.” consiste no conectivo conjuntor, “→” é o conectivo implicacional e “F” é o fato que se pretende constituir por meio das provas [fato jurídico em sentido estrito]. Significa que se houver um fato alegado [Fa], atestado pelas provas [F1, F2, F3, ... Fn], então deve ser o fato juridicamente constituído [Fj].
147. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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A construção da referida fórmula proposicional tem por objetivo demonstrar que o conjunto de diversos fatos, considerados cumulativamente, leva à conclusão de que o fato alegado é verdadeiro. Essa verdade, todavia, é relativa, visto que decorre de raciocínio lógico daquele que aprecia os enunciados probatórios, utilizando-se de operação mental em que, com fundamento nas provas colacionadas, realiza deduções acerca da ocorrência ou não de um fato. Esse é o motivo pelo qual, segundo Susy Gomes Hoffmann148, a prova não passa de uma conjectura, um enunciado que não é verdadeiro ou falso, sendo susceptível de refutações e podendo a estas sobreviver ou não. Enquanto a conjectura resistir às refutações, permanecerá no ordenamento, ostentando a qualidade de prova jurídica. Por tudo o que se expôs, tem-se a prova como um fato de outro fato. Um metafato, portanto: consiste em um fato [em sentido amplo] que alude a outro fato [fato alegado]. Nesse contexto, nova plurivocidade é observada no vocábulo prova, que pode significar (i) o fato de provar; (ii) o fato provado; (iii) o fato que causa convencimento do julgador acerca da verdade de outro fato; e (iv) o fato da convicção provocada na consciência do julgador. Qualquer que seja a acepção adotada é preciso ter sempre em mente que é a partir da coordenação integrativa149 de diversos fatos em sentido amplo que se constrói o fato em sentido estrito.
3.6 Caráter normativo da prova Identificada a prova como fato, isto é, como enunciado linguístico descritivo de um evento, poderia surgir a seguinte indagação: como fato, a prova integra o sistema do direito positivo, sendo, portanto, objeto de estudo da Ciência do Direito? A resposta é afirmativa. A prova apresenta-se como 148. Teoria da prova no direito tributário, p. 54. 149. Terminologia empregada por Manoel de Oliveira Franco Sobrinho para referir-se à soma de elementos comprobatórios existentes no processo [A prova administrativa, p. 80].
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um fato, como um enunciado linguístico. Mas não se trata de um enunciado qualquer, e sim de um enunciado normativo. A prova é, simultaneamente, fato e norma em sentido amplo, pois consiste em proposição que intervém na constituição do fato jurídico tributário em sentido estrito, situado no antecedente da norma individual e concreta. Formalizando, temos: [Fa . (F1 . F2 . F3 . ... Fn)] → Fjt Sendo a norma individual e concreta representada por D (Fjt → S’RS”)150, conclui-se que F1, F2, F3 e Fn são enunciados normativos que atestam Fa e auxiliam na composição de Fjt, sendo este último também um enunciado normativo, figurando no antecedente da norma individual e concreta tributária. Não obstante sejam descritivos de eventos, os efeitos dos referidos fatos [provas] são prescritivos, inserindo-se no conjunto das normas que compõem o direito posto. Eis a prova como enunciado normativo, norma jurídica em sentido amplo. Isso não exclui, contudo, a possibilidade de visualizar a prova como norma jurídica em sentido estrito. Como sublinhamos no item 3.3 deste capítulo, costuma-se chamar de prova, também, à norma de competência, que estabelece o sujeito, tempo, local e modo de construir e introduzir enunciados probatórios no ordenamento.
3.7 Prova como signo A teoria comunicacional propõe-se a entender o direito como um fenômeno de comunicação. Qualificando-se como 150. D é o functor-de-functor, indicador da operação deôntica incidente sobre o liame de implicação proposicional; Fjt representa o fato jurídico tributário em sentido estrito; → é o conectivo implicacional; S’ e S” simbolizam os sujeitos de direito vinculados pela relação jurídica R.
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sistema comunicativo, o direito se manifesta como linguagem, ou, nas palavras de Gregorio Robles151, “o direito é texto”. Sendo constituído por linguagem, a semiótica aparece como uma das perspectivas pela qual o direito positivo pode ser analisado. Entendendo-se por semiótica a Teoria Geral dos Signos, esta se presta ao estudo dos elementos representativos no processo de comunicação, cuja unidade elementar é o signo. Dentre tais elementos, interessa-nos a figura da prova, signo representativo de um fato [fato alegado], o qual, por sua vez, apresenta-se como outro signo, que se refere ao evento. O fato é signo do evento152; a prova é signo do fato. Daí por que afirmamos tratar-se de metafato: fato de outro fato. O signo apresenta status lógico de relação, em que um suporte físico se associa a um significado e a uma significação153, compondo o que se denomina triângulo semiótico. O suporte físico é o elemento material que funciona como estímulo à mente do sujeito que com ele entra em contato [plano da expressão], referindo-se a certo objeto, entendido como a ideia individualizada daquilo que se pretende representar [significado] e dando ensejo à produção mental [significação]. Como signo que é, a prova ostenta todas as associações referidas: exterioriza-se mediante um documento [suporte físico], representativo de um fato [fato alegado como significado], fazendo surgir na mente do intérprete a noção daquele fato [significação]. Na qualidade de signo, a prova não configura representatividade absoluta do fato alegado. O caráter incompleto da representação do fato pela prova dá-se em virtude de que, 151. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 19. 152. Clarice Von Oertzen de Araujo, Fato e evento tributário – uma análise semiótica, in Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, p. 345 e s. 153. Dada a variedade de denominações atribuídas aos pontos do triângulo semiótico, convém esclarecer que optamos por adotar a terminologia husserliana. Charles S. Peirce, diversamente, denomina signo o suporte físico, interpretante a significação e objeto o significado.
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como esclarece Clarice Von Oertzen de Araujo154, “toda codificação é representação parcial do universo”. Nessa mesma linha de raciocínio, observou Roland Barthes155 que “o real não é representável, e é por os homens quererem continuamente representá-lo com palavras que existe uma história da literatura. O facto de o real não ser representável – mas apenas demonstrável – pode ser dito de várias formas: quer com Lacan, definindo-o como o impossível, aquilo que não pode ser atingido e que escapa ao discurso, quer em termos topológicos, quando verificamos que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional [o real] com uma ordem unidimensional [a linguagem]”. Esse é o motivo pelo qual um signo sempre remete a outro signo, numa interminável cadeia decorrente da própria incompletude do signo156, nunca atingindo o objeto significado. A situação supra é mais bem compreendida se tivermos em mente a distinção entre objeto imediato e objeto dinâmico traçada pela semiótica: o primeiro é o objeto tal como representado no signo; o segundo, o objeto que está fora do signo, determinando-o157. Tendo em vista que o objeto dinâmico é infinito e irrepetível, cada objeto imediato representa apenas alguns de seus caracteres, jamais havendo possibilidade de completa identificação entre ambos. Trazendo essas lições para o específico campo das especulações acerca da prova no direito, observamos que o fato alegado figura como objeto imediato do evento, o qual aparece na qualidade de objeto dinâmico, nunca sendo abrangido em sua completude. 154. Fato e evento tributário – uma análise semiótica, in Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, p. 339. 155. Lição, p. 22-23. 156. Essa incompletude do signo decorre do fato de que a significação, denominada interpretante na terminologia adotada por Peirce, também se apresenta como signo, o qual, exteriorizado, dá origem a outro signo e assim por diante. 157. Tomamos o objeto dinâmico como a interpretação primeira, abertura para o mundo, que permite que algo apareça perante nós como coisa. O objeto dinâmico não seria o objeto-em-si, mas a ideia que dele se tem, independentemente de sua existência concreta.
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Do mesmo modo, fazendo um comparativo e considerando que a prova é signo do fato que se deseja provar, podemos dizer que o fato alegado figura como objeto dinâmico perante a prova, a qual funciona como seu objeto imediato, representando-o apenas parcialmente. Convém esclarecer, ainda, que a prova, na qualidade de signo, pode apresentar-se de modo icônico, simbólico ou indiciário. Na primeira hipótese, a prova procura reproduzir o objeto a que se refere mediante a exteriorização de traços que reflitam os atributos daquilo que se pretende representar. Típico exemplo dessa modalidade probatória é a fotografia. A prova simbólica, por sua vez, é constituída por signo arbitrariamente constituído, sem guardar ligação com o objeto da experiência a que se refere. É o mais comum dos tipos de prova, sendo verificado sempre que se estiver na presença de enunciados linguísticos idiomáticos, tais como laudos periciais, depoimentos testemunhais reduzidos a termo, contratos etc. Quanto ao índice, espécie em que o signo mantém conexão existencial com o objeto a que se refere, podemos identificá-lo com toda e qualquer forma de prova. O relacionamento entre a prova e o fato que se quer provar é sempre indiciário: a existência da prova indica a realização do fato que ela aponta, conferindo, nas palavras de Clarice Von Oertzen de Araujo158, vetor referencial à incidência. Referindo-se ao fenômeno da positivação jurídica e à distinção entre evento e fato jurídico, esclarece essa autora que “a produção das normas individuais e concretas, a qual corresponde à própria positivação do direito, está contaminada por índices dos eventos que os fatos jurídicos se propõem a relatar”. Esses índices são, exatamente, as provas, apontando para o fato alegado que figura como suposto do processo de positivação. Por apresentar caráter sígnico, os recursos semióticos são de grande utilidade no estudo analítico da prova, permitindo 158. Fato e evento tributário – uma análise semiótica, in Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, p. 342.
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seu exame em três dimensões: (i) sintática, consistente nas relações dos signos entre si, possibilitando o estudo da forma organizacional das provas e da coordenação destas; (ii) semântica, voltada ao exame do relacionamento entre o signo e o objeto que ele representa, ou seja, entre o signo e seu significado. Estaremos trabalhando nesse nível semiótico ao examinarmos o conteúdo significativo da prova, ou seja, a referência que esta guarda relativamente ao fato alegado; e (iii) pragmática, considerando os signos em seu relacionamento com os utentes da linguagem, compreendendo uso e valor atribuídos pela comunidade jurídica às provas.
3.8 Indício, pista, vestígio, marca e sinal Indício é a denominação dada a tudo o que indique, com probabilidade, a existência de algo159. Não obstante muitas vezes seja tomado como sinônimo de vestígio, pista, marca e sinal, o indício com estes não se confunde. Por consistir em tudo o que possa levar, por operação mental, à conclusão acerca da veracidade ou falsidade de um fato, o indício apresenta-se como gênero do qual a pista, vestígio, marca e sinal são espécies. Comumente, chama-se de indício ao fenômeno do mundo da experiência que tenha alguma relação com o fato que se deseja demonstrar. Nesse sentido é que se afirma ser a impressão digital um indício. Não é essa, entretanto, nossa concepção acerca dessa figura jurídica. Considerando que a realidade do direito só se constitui por meio da linguagem competente, indício seria, no exemplo dado, o laudo pericial que relata a existência de uma impressão digital. Tomamos o indício como um fato que, por presunção, leva a outro fato, o qual se pretende provar. Em outros termos, indício é prova e toda prova é um indício, cujo valor axiológico pode ser forte
159. Antônio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1604.
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ou fraco, caracterizando indício veemente ou não. Vestígio, por sua vez, significa tudo aquilo que restou de alguma coisa que desapareceu. Segundo Paulo de Barros Carvalho160, “vestígio lembra resíduo, sobra de algo que ocorreu e, portanto, peça muitas vezes relevante para compor o enunciado factual relativo ao evento”. Observado o vestígio pelo ângulo subjetivo, chegamos à noção de pista. Trata-se de acepções de prova cujos limites distintivos são muito tênues. Enquanto o vestígio denota tudo de anormal verificado em dada situação, a pista consiste na anormalidade que possa, eventualmente, levar à construção do fato jurídico, exercendo uma espécie de função orientativa do intérprete, de modo que este, utilizando a pista como ponto de partida, siga em busca de novos elementos probatórios. Quanto à marca e ao sinal, são formas de vestígios. Têm-se por marcas os traços deixados por alguém. Já o sinal é qualquer manifestação que possibilite conhecer alguma coisa. Todos, é claro, devidamente relatados em linguagem própria.
3.9 Prova como mensagem Ainda considerando o contexto comunicacional em que se desenvolve o sistema jurídico, podemos identificar a prova como mensagem, consistente na informação transmitida. Nesse sentido, prova é a sequência de signos organizados de acordo com um código e veiculados por um emissor para um receptor, por meio de um canal que serve de suporte físico à transmissão. Nas palavras de Teixeira Coelho Neto161, é elaborada pela fonte com elementos extraídos de determinado repertório, sendo transmitida por um canal e decodificada por
160. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP. 161. Semiótica, informação e comunicação, p. 123.
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um receptor, o qual, para tanto, utiliza elementos constantes de outro repertório, que tenha algum ponto em comum com o repertório da fonte. Tudo, no âmbito do sistema comunicacional do direito a que nos referimos no item 2.8 do capítulo 2 desta obra.
3.10 Prova como relação de implicação entre enunciados linguísticos Examinada em sua estrutura lógica, a prova pode ser vista como relação, consistindo no vínculo abstrato que se instaura entre o enunciado probatório e o fato que se pretende provar. Como explica Maria Rita Ferragut162, “antecedente e consequente unem-se mediante operação de implicação jurídica, que determina que o antecedente importa o consequente, vale dizer, o fato f implica o fato f’ [em que f é a prova, e f’ o fato a ser provado]. Formalizando a linguagem, teríamos D (f → f’), que, em linguagem natural, poderia significar, por exemplo: deve ser que, dado o fato de ter sido emitida nota fiscal de saída de mercadorias, então o reconhecimento jurídico do fato da circulação de mercadorias”. Trata-se de relação de inferência lógica, mediante a qual se afirma a verdade de uma proposição em decorrência de sua ligação com outra já reconhecida como verdadeira: havendo prova constituída conforme as regras do direito, tem-se por existente o fato jurídico a que ela se refere.
3.11 Elemento constitutivo do fato jurídico em sentido estrito Como anotamos no item 3.5 supra, a prova é fato: fato jurídico em sentido amplo que colabora na composição do fato jurídico em sentido estrito. Não é a prova, portanto, mera forma de averiguação da verdade dos fatos. Apresenta-se, ela própria, 162. Presunções no direito tributário, p. 46.
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como um fato, cuja existência é imprescindível à constituição do fato jurídico que fundamenta a pretensão de um sujeito. Por isso, a prova, considerada isoladamente, não se confunde com o fato jurídico tributário. Com a nota fiscal, por exemplo, tem-se prova, mas o fato jurídico tributário consistente na operação de circulação de mercadorias fica condicionado ao pronunciamento do destinatário. A prova é um fato, mas um fato jurídico em sentido amplo, pois não propaga, por si só, efeito jurídico-tributário, entendido como a instalação do vínculo obrigacional tributário. Para que se tenha fato jurídico em sentido estrito, é imprescindível seu relato em linguagem competente no corpo de norma em sentido estrito [mais especificamente, de norma individual e concreta].
3.12 Prova como meio de convencimento Uma acepção muito utilizada de prova diz respeito ao efeito que o resultado do procedimento probatório exerce sobre a convicção do destinatário. Trata-se de aspecto de ordem valorativa, a ser estudado com mais profundidade no capítulo dedicado à axiologia das provas. Seria o fenômeno psicológico provocador da convicção acerca da existência ou inexistência de certos fatos, de modo que, conquanto haja enunciados linguísticos produzidos com o intuito de fazer prova dos fatos alegados, se estes não forem aptos a convencer o sujeito a que se destinam, descaberá falar em prova. Essa é a definição adotada por João de Castro Mendes163, para quem “prova é o pressuposto da decisão jurisdicional que consiste na formação, através do processo, no espírito do julgador, da convicção de que certa alegação singular de fato é justificavelmente aceitável como fundamento da mesma decisão”. É a prova tomada como resultado [produto], porém com ênfase em seu aspecto subjetivo, apresentando-se como sinônimo de êxito ou de valoração, consubstanciado na convicção 163. Conceito de prova em processo civil, p. 741.
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do destinatário. Sobre os aspectos objetivo e subjetivo da prova jurídica, Tercio Sampaio Ferraz Jr.164 discorre: No sentido etimológico do termo – probatio advém de probus, que deu, em português, prova e probo – provar não significa apenas uma constatação demonstrada de um fato ocorrido – sentido objetivo – mas também aprovar ou fazer aprovar – sentido subjetivo. Fazer aprovar significa a produção de uma espécie de simpatia, capaz de sugerir confiança, bem como a possibilidade de garantir, por critérios de relevância, o entendimento dos fatos num sentido favorável [o que envolve questões de justiça, equidade, bem comum etc.].
Em sentido subjetivo, prova é meio de convencimento do destinatário. Desse ângulo, a prova seria, segundo Nicola Framarino dei Malatesta165: O meio objetivo com que a verdade atinge o espírito; e o espírito pode, relativamente a um objeto, chegar por meio das provas tanto à simples credibilidade, como à probabilidade e certeza; existirão, assim, provas de credibilidade, de probabilidade e de certeza. A prova, portanto, em geral, é a relação concreta entre a verdade e o espírito humano nas suas especiais determinações de credibilidade, probabilidade e certeza.
Aparece, nesse contexto, como meio de controle das proposições que os litigantes formulam em juízo, controle este realizado mediante a soma dos meios produtores de certeza, os quais se prestam para justificar a crença do julgador na verdade de um fato, fundamentando sua decisão. Indo além, chega a prova a ser utilizada como sinônimo de certeza, de verdade, de evidência, em virtude de sua atuação persuasiva perante o destinatário, não deixando margem para dúvida.
164. Introdução ao estudo do direito, p. 291. 165. A lógica das provas em matéria criminal, p. 87.
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3.13 Presunções Dentre as diversas significações atribuídas ao vocábulo prova, chama-nos a atenção a dicotomia prova direta/prova indireta, conforme aponte imediata ou mediatamente o fato alegado. Enquanto a prova direta seria aquela que se refere ao fato que se pretende provar, a chamada prova indireta seria indicativa de fato diverso, mas que, por meio de uma operação mental, permitiria chegar ao objeto da prova. Ocorre que, na qualidade de signo, a prova nunca atinge o objeto que representa. É, por conseguinte, sempre indireta, caracterizando o que chamamos de presunção. Apresentada uma prova, é imprescindível que o intérprete realize operação de inferência lógica para, a partir dela, deduzir o fato principal. A prova nada mais é que um fato que leva à presunção de veracidade de outro fato, como se depreende da seguinte assertiva de Jeremías Bentham166: “en al más amplio sentido de esa palabra, se entiende por tal un hecho supuestamente verdadero que se presume debe servir de motivo de credibilidad sobre la existencia o inexistencia de otro hecho”. Toda relação probatória exige a presença de dois fatos: (i) o fato que se pretende provar; e (ii) o fato empregado para demonstrar a veracidade do fato probando. Ambos estão ligados por um vínculo implicacional, de modo que toda decisão fundada em provas decorre de uma presunção, em que o fato provado implica logicamente o fato probando (fato presuntivo → fato presumido).
3.14 Prova da prova Como já tivemos oportunidade de anotar, a linguagem é autorreferencial: uma linguagem fala de outra linguagem. Isso indica a presença de diferentes níveis de discursos: (i) um, figurando como linguagem-objeto, linguagem da qual se 166. Tratado de las pruebas judiciales, p. 15.
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fala; (ii) outro, funcionando como metalinguagem, linguagem que diz algo a respeito de outra167. A prova, ao referir-se ao fato, é metalinguagem em relação a este. Mas a posição de metalinguagem é relativa: uma linguagem utilizada para analisar outra, conquanto se apresente como linguagem de sobrenível, pode ser linguagem-objeto com relação a determinado discurso que a ela se refira. Tais considerações se aplicam, em tudo, às provas. Prova é um fato que aponta para outro fato, cuja veracidade se pretende certificar. Além disso, podemos ter provas de provas: metalinguagem daquela metalinguagem que, em tal contexto, apresenta-se como linguagem-objeto. É o que se verifica na (i) sobreprova ou prova da prova, consistente na linguagem comprobatória do relato veiculado por outra prova (ex.: os livros contábeis são provas das operações negociais realizadas pela empresa, enquanto o laudo pericial esclarecendo as minúcias da escrituração configura prova acerca da prova); (ii) metaprova, representada por enunciados a respeito do conteúdo de prova diversa [ex.: documento redigido na língua inglesa e apresentado como prova de um fato qualquer deve ser traduzido, por tradutor juramentado, para o idioma português; e (iii) reforço de prova, que é a prova confirmatória de outro elemento probatório [ex.: documento comprobatório do fato alegado, corroborado por outros documentos relativos àquele fato]. Em todos esses casos temos enunciados de segundo nível funcionando como prova.
3.15 Contraprova Adverte Moacyr Amaral Santos168 que, quando o réu entende provar fatos que atestam a inexistência do fato provado pelo autor, temos a prova contrária ou contraprova. Contraprova seria, portanto, prova da inexistência dos fatos alegados pelo autor. 167. Cezar A. Mortari, Introdução à lógica, p. 39. 168. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 4, p. 26.
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Uma de suas espécies é a prova de exceção, tomada em sentido lato, consistente na prova de fatos impeditivos, extintivos ou modificativos, obstando efeitos aos fatos aduzidos pelo autor. Mais do que isso, compreendemos a contraprova como toda prova que apresenta caráter desconstitutivo, prestando-se à oposição dos fatos alegados por quaisquer das partes, seja na posição de autor, seja na de réu.
3.16 Protoprova A protoprova não se qualifica, propriamente, como prova. Trata-se de mera proposta de prova, cuja produção pode ou não ser aceita pelo destinatário. Quando a parte processual apresenta petição requerendo a juntada de determinado documento para comprovar o fato por ela alegado, ainda não se tem a prova jurídica. Referido documento adquire essa qualificação a partir do momento em que o documento é aceito nos autos.
3.17 Prova como demonstração Integram o conceito de demonstração quaisquer recursos capazes de atestar a veracidade de um fato. Engloba desde as demonstrações lógico-matemáticas em processos inferenciais até as hipóteses de argumento retoricamente produzido, de modo que toda análise e alegação, quando voltadas ao convencimento do destinatário acerca da certificação de um fato, são qualificáveis como prova.
3.18 Prova como experiência A experiência sensorial é evento. Para ingressar no sistema jurídico, precisa ser relatado pela linguagem do direito. O fato de alguém presenciar um homicídio, por si só, não é prova jurídica. O ato de testemunhar um acontecimento,
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compreendido em seu sentido lato, sem que o relato linguístico se realize conforme as regras sintáticas do direito, não atinge a condição de prova jurídica, conquanto possa servir para a constituição de fato social. É preciso que esse acontecimento, ou melhor, a percepção do expectador acerca da ocorrência que presenciou, seja reduzido a termo, segundo as regras inerentes ao procedimento organizacional da prova. Apesar de a experiência sensorial muitas vezes ser tomada como prova, apenas seu relato linguístico, efetuado da forma prescrita pelo direito, cumpre a função de constituir o fato, caracterizando a prova jurídica. É uma decorrência do caráter autopoiético do sistema do direito.
3.19 Prova como competição Em sentido bem diferente daquele a que nos vimos referindo, mas também caracterizando prova jurídica, temos as competições, concursos, processos seletivos e provas de conhecimento, cujos exemplos são as provas esportivas, os concursos para integrar a magistratura, as seleções para ingresso em cursos de pós-graduação e a avaliação dos conhecimentos adquiridos em razão de disciplinas cursadas, respectivamente. Todas são reguladas pelo sistema do direito positivo, motivo pelo qual se lhes atribui a qualificação de provas jurídicas.
3.20 Prova como providência preliminar Apresenta-se a prova como providência preliminar ao surgimento do produto pretendido, quer no processo, quer fora dele. Assim é que, para a constituição do fato jurídico em sentido estrito, há de ser verificada, preliminarmente, a existência de prova da sua ocorrência. Pretendendo o sujeito exercer qualquer direito subjetivo que lhe seja assegurado, exige-se a apresentação de prova que o qualifique como titular de tal direito. É mediante a exibição
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do título de eleitor, por exemplo, que provo minha condição de cidadão, providência preliminar ao exercício dos direitos correspondentes169.
3.21 Prova como certificação É pela prova que se atesta a veracidade ou falsidade de determinado fato. Por isso, a prova é certificação, podendo apresentar-se nas modalidades (i) autenticadora e (ii) constitutiva. Como certificação autenticadora, podemos citar o reconhecimento de firma em Cartório, comprobatória da autenticidade da assinatura, ou, ainda, a autenticação de fotocópia, atestando sua semelhança com o documento original. Vista dessa perspectiva, a certificação autenticadora é prova de prova. A certificação pode apresentar-se, também, na qualidade de fato constituidor de elemento indispensável à configuração do fato jurídico em sentido estrito. Essa situação se verifica quando um fato, para ingressar no mundo jurídico, exige a presença de componentes diversos: F1, F2, F3 e F4, interligados entre si, formam o fato molecular Fj. Nesse caso, a prova de um dos fatos atômicos necessários à existência de Fj é certificadora da ocorrência de um dos elementos constitutivos daquele fato jurídico. Examinado esse mesmo contexto por um ângulo diverso, podemos dizer, ainda, que a prova certifica a constituição do fato jurídico em sentido amplo, pois é a prova de F1, por exemplo, que lhe confere a condição de fato jurídico.
3.22 Meios de prova Definir com precisão científica o que sejam meios de prova é tarefa tortuosa que impõe sejam firmadas premissas e 169. É interessante registrar a distinção entre exibição e documento exibido: um é procedimento; o outro, produto.
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eleita a perspectiva pela qual o assunto será tratado. Tal exigência decorre da interminável divergência doutrinária envolvendo o assunto, que toma os meios de prova como atividade, produto dessa atividade, documento, técnica empregada para produzir enunciados probatórios ou como os enunciados dessa forma produzidos, dentre outras acepções. João Penido Burnier Júnior170, ao precisar o conceito de meios de prova, considera-os “instrumentos previstos e disciplinados em lei e cuja finalidade é transportar para o processo a confirmação dos fatos alegados pelas partes. Integram eles o sistema probatório”. Semelhante é o posicionamento de Eduardo Cambi171, para quem o meio de prova consiste no “instrumento pelo qual as informações sobre os fatos são introduzidas no processo”. É o meio de prova como documento. Maria Rita Ferragut172, por sua vez, refere-se, simultaneamente, ao documento e ao enunciado que ele veicula: “meio de prova é o enunciado passível de ser produzido pelas partes, que tem por conteúdo a ocorrência ou inocorrência de um determinado acontecimento. É o instrumento material de comprovação da existência de algo, como, por exemplo, a verificação judicial, a perícia, a confissão, a prova testemunhal, a documental e a indiciária. É, em última análise, a representação, em linguagem competente, dos eventos ocorridos no mundo fenomênico”. Visualizando bem a polissemia da expressão, Víctor de Santo173 conclui serem os meios de prova susceptíveis de consideração sob dois pontos de vista: (i) o da atividade dos sujeitos, ao submeterem ao julgador o conhecimento dos fatos do processo [ex.: o depoimento testemunhal]; e (ii) o elemento em relação ao qual essa atividade recai [ex.: a testemunha]. Para
170. Teoria geral da prova, p. 61. 171. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 48. 172. Presunções no direito tributário, p. 45. 173. La prueba judicial: teoría y práctica, p. 29-30.
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Cândido Rangel Dinamarco174, “meios de prova são técnicas destinadas à investigação de fatos relevantes para a causa”, constituídas por uma série ordenada de atos, realizados em contraditório e com observância às formas prescritas em lei. Nesse sentido, poderíamos identificar os meios de prova com as regras de organização probatória. Por fim, em uma acepção bem diferente, Francesco Carnelutti175 denomina meio de prova a atividade dedutiva realizada pelo julgador ao entrar em contato com o fato que lhe é apresentado como prova. A prova, como relato linguístico que é, decorre de atos de fala, caracterizadores de seu processo de enunciação, realizado segundo as normas que disciplinam a produção probatória. Produzido o enunciado protocolar correspondente à prova, este só ingressa no ordenamento por meio de uma norma jurídica geral e concreta, que em seu antecedente traz as marcas da enunciação [enunciação-enunciada, prescrevendo, no consequente, a introdução no mundo jurídico dos enunciados que veicula. Esse instrumento utilizado para transportar os fatos ao processo, construindo fatos jurídicos em sentido amplo, é o que denominamos meio de prova. Meio de prova será tomado, neste trabalho, como o resultado da atividade exercida em observância às regras de organização probatória vigentes, relatada pela linguagem prescrita pelo direito176. Tal opção deve-se à circunstância de que, como observa Tárek Moysés Moussallem177, “a enunciação é um ato fugaz ao qual, na maioria das vezes, o interlocutor não tem acesso”, havendo necessidade de recorrer-se ao 174. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 87. 175. A prova civil, p. 96-99. 176. Partindo dessa premissa, a prova produzida em razão de depoimento testemunhal, por exemplo, corresponderia ao conjunto de enunciados introduzidos no ordenamento, confirmadores ou infirmadores da alegação de uma das partes. O respectivo meio de prova, por sua vez, estaria representado pelos enunciados indicativos do local, data, sujeito e modo inerentes à produção probatória [enunciação-enunciada]. 177. A revogação em matéria tributária, p. 33.
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enunciado, no qual deixa marcas que permitem recuperá-la. Por isso, continua o autor, “a enunciação-enunciada acaba por constituir o sujeito, o espaço e o tempo da enunciação”, possibilitando identificar quem, quando, onde e como se obteve determinado enunciado, no caso, o enunciado probatório.
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CAPÍTULO 4 CLASSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
4.1 Considerações críticas sobre a “classificação das provas” adotada pela doutrina tradicional Conquanto seu suporte físico seja sempre documental, as provas encontram na doutrina variada gama de classificações, em virtude da diversidade de critérios adotados. Tomemos como referência a divisão elaborada por Nicola Framarino dei Malatesta178, que se baseia em três aspectos: (i) conteúdo; (ii) sujeito que as emana; e (iii) forma em que se apresentam. (i) Quanto ao conteúdo, teríamos prova direta, quando esta se refere ao fato que se quer provar; e prova indireta, se alude a um fato diverso do que se pretende provar, mas dele podendo deduzir-se o fato principal. (ii) Quanto ao sujeito que as emana, as provas poderiam ser: pessoais, já que produzidas pelo homem; ou reais, se deduzidas da própria coisa. A prova pessoal seria a divulgação feita por uma pessoa acerca das impressões que o fato probando imprimiu no seu espírito: é o caso do testemunho. A
178. A lógica das provas em matéria criminal, p. 147 e s.
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prova real, por sua vez, consistiria na revelação feita por uma coisa relativamente às marcas deixadas pelo fato que se pretende provar: verifica-se nas impressões digitais e demais vestígios, sendo a pessoa tida como coisa quando submetida a exame pericial. (iii) No que concerne à forma, apresentar-se-iam como: testemunhais, consistindo nas afirmações pessoais e orais; documentais, representadas por assertivas escritas ou gravadas; ou materiais, em que as próprias coisas atestam determinado acontecimento. Relativamente à prova testemunhal, esta seria subdividida em testemunhal comum, provinda de testemunha que interveio no fato e tendo por objeto coisas perceptíveis pelo comum dos homens; e testemunhal pericial, oriunda de testemunha escolhida post factum e tendo por objeto coisas perceptíveis só a quem possua conhecimentos técnicos concernentes a determinado assunto. Essa classificação é adotada por diversos doutrinadores, tais como Moacyr Amaral Santos179, João Penido Burnier Júnior180, Magalhães Noronha181, Arruda Alvim182 e Aclibes Burgarelli183. Outros, conquanto optem por classificação diversa, seguem linha de raciocínio muito parecida. É o caso de Víctor de Santo184, que, referindo-se aos meios de prova, qualifica-os como (i) diretos e indiretos; (ii) reais e pessoais; (iii) escritos e orais; (iv) nominados e inominados; (v) lícitos e ilícitos; e (vi) pessoais, documentais e materiais. Também Jeremías Bentham185, não obstante identifique algumas espécies de provas diferentes daquelas referidas por Malatesta,
179. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 69 e s. 180. Teoria geral da prova, p. 70. 181. Curso de direito processual penal, p. 116-117. 182. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 422-427. 183. Tratado das provas cíveis, p. 236 e s. 184. La prueba judicial: teoría y práctica, p. 31-36. 185. Tratado de las pruebas judiciales, p. 21-26.
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parte de considerações conceituais semelhantes. Esse jurista estabelece nove divisões em relação às provas: (i) prova pessoal e real; (ii) prova direta e indireta ou circunstancial; (iii) prova pessoal voluntária e prova pessoal involuntária; (iv) prova por depoimento e prova por documento; (v) prova literal casual [não produzida com a específica intenção de fazer prova em processo] e prova literal pré-constituída; (vi) prova independente e prova emprestada; (vii) prova original e prova inoriginal [translados, cópias, certidões]; (viii) prova perfeita e prova imperfeita [a perfeição e a imperfeição dependem da fonte da prova e forma de sua produção]; e (ix) prova inteira [reproduz o fato probando] e prova mutilada ou inferior [indício insuficiente]. Francesco Carnelutti186 é quem faz uma organização bem diferençada das modalidades probatórias, classificando as provas em diretas e indiretas conforme a relação entre o julgador e o evento que se pretende certificar a ocorrência ou a inocorrência. A prova seria direta nas hipóteses em que o julgador conhecesse o acontecimento de forma imediata, como se verifica na inspeção ocular, e indireta quando a ele tivesse acesso de modo mediato, por intermédio de depoimentos testemunhais, por exemplo. As provas indiretas, por sua vez, classificar-se-iam em históricas e críticas: as históricas seriam representativas do fato probando, ao passo que as provas críticas exigiriam raciocínio dedutivo por parte do julgador, visto que, por si sós, não representariam o fato. Ambas as espécies probatórias comportariam mais uma subdivisão: a histórica seria testemunhal ou documental, enquanto a prova crítica poderia dar-se por indício ou por presunção. Quanto ao objeto, considerado isoladamente, esse autor também faz a divisão em pessoal e real. Referidas classificações, entretanto, apresentam muitas deficiências. Dentre elas, podemos destacar o fato de que a prova, como enunciado linguístico que é, decorre, 186. A prova civil, p. 81-83.
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necessariamente, de produção humana. Assim, todas as provas são pessoais. Toda prova é, também, documental, pois mesmo as afirmações realizadas oralmente só assumem a condição de prova quando devidamente reduzidas a escrito. Além disso, a prova é sempre indireta, uma vez que jamais alcança o fato que se pretende provar. O que varia, a nosso ver, é o modo de produção probatória. Este sim pode realizar-se (i) pelo emprego de um único fato em sentido amplo, com elevado grau de convencimento [prova “direta”; (ii) pela conjugação de diversos fatos com menor grau de convencimento (prova indireta decorrente de indícios); ou (iii) pela verificação de um fato em sentido amplo ao qual a lei atribui o efeito de implicar o fato probando [prova indireta decorrente de presunção legal]. A enunciação de tais fatos pode, por sua vez, dar-se de diferentes maneiras, decorrendo de (i) manifestação oral ou escrita da própria parte [confissão]; (ii) relato proferido por terceiro que presenciou o acontecimento [depoimento testemunhal]; (iii) opinião emitida por pessoa detentora de conhecimento especializado [perícia]; (iv) enunciado linguístico pré-constituído [documento]; ou (v) certificação realizada pelo próprio destinatário da prova [vistoria e inspeção judicial ou ocular]. O que se classifica, portanto, são os meios de prova: a enunciação relatada na forma prescrita pelo direito positivo, isto é, a enunciação-enunciada. Esta é que fornecerá os elementos necessários à identificação do sujeito produtor dos enunciados probatórios, tempo, local e modo em que ocorreu tal atividade.
4.1.1 Prova direta e prova indireta São denominadas provas diretas as que representam, de forma imediata, o evento, caracterizando seu relato linguístico. A expressão provas indiretas, por seu turno, é utilizada para referir à prova de acontecimentos diversos daquele que se pretende provar, mas cuja existência confirma ou infirma
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o fato probando. Explica Antonio Dellepiane187 que, “se chamarmos p a uma prova direta qualquer, h a um fato indiciário e H ao fato que se trata de reconstruir, teremos que, nas chamadas provas diretas, p leva a H sem intermediário algum, o que não ocorre no caso da chamada prova indireta ou indiciária. Nesta, teremos três termos: P, isto é, uma prova direta que leva a h, fato indiciário, intermediário, o qual, por sua vez e mediante uma inferência, conduz a H, fato principal, fato cuja existência se trata de estabelecer”. A prova direta apresentaria a forma lógica implicacional p→H, enquanto a prova indireta seria representada por [(p→h).(h→H)]→(p→H)188. Por essa razão, um documento qualquer poderia apresentar-se como prova direta ou indireta: direta se, a partir dele, infere-se a ocorrência do fato probando; indireta, se os enunciados constantes do documento referem-se a um fato diverso do principal, o qual, por sua vez, serve como base para deduções acerca do fato alegado. As denominadas provas diretas são tratadas, comumente, como se fizessem prova plena do fato alegado, isto é, como se uma única prova, por aludir diretamente ao fato, fosse suficiente para comprová-lo. Ledo engano. Na maioria das vezes, mesmo as chamadas provas diretas não bastam quando consideradas isoladamente, exigindo a conjugação de diversos elementos para se levar um fato ao conhecimento do destinatário. Um testemunho em que o depoente confirma a alegação de uma das partes, referindo-se diretamente ao fato que se pretende provar, pode não alcançar seus objetivos caso não corroborado por outras provas. O próprio Malatesta189, autor da classificação, evidencia a relatividade do enquadramento de uma prova na modalidade direta ou indireta: “Outros escritores, depois de terem distinguido as provas em diretas e 187. Nova teoria da prova, p. 70. 188. Considerando a regra lógica da transitividade do condicional, se um enunciado (p) implica outro (h), e se esse segundo enunciado implica um terceiro (H), então o primeiro dos enunciados (p) implica o terceiro (H). 189. A lógica das provas em matéria criminal, p. 150.
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indiretas, vieram afirmar que são provas diretas o testemunho, a confissão, o documento, sendo prova indireta o indício, e a jurisprudência adotou também essa nomenclatura. Mostra-se, com isso, não existir nenhum conceito exato do que seja prova direta e indireta. Não se refletiu que o testemunho, a confissão, o documento são classificações formais da prova, e o indício, classificação substancial. Não se refletiu, em consequência, que a prova, sob a forma testemunhal ou documental, pode ter tanto o conteúdo de prova direta quanto o de indício”190. Esse é um dos motivos pelo qual combatemos a criticada distinção. Mas o que decisivamente nos leva a entender que toda prova seja indireta é a indeclinável necessidade de raciocínio lógico para que, tomando-se como ponto de partida determinado fato, possa concluir-se acerca da ocorrência ou não de outro fato.
4.1.1.1 Crítica à terminologia empregada Toda prova é indireta, pois nunca se tem acesso aos fatos, que são sempre passados. Daí por que toda prova é uma conjectura, levando à presunção acerca da ocorrência ou não de certo fato. Nota-se que mesmo na chamada prova indireta há, impreterivelmente, necessidade de prova imediata [direta] de um fato: do indício. O ponto distintivo entre essa espécie de prova e a diretamente realizada residiria na exigência de raciocínio que leve à conclusão acerca de fato diverso, ao qual não se tem acesso direto. Essa distinção, todavia, não resiste a um exame mais profundo. Considerando que os acontecimentos do mundo da experiência são inacessíveis, por se terem 190. A despeito da crítica realizada por Malatesta, esse jurista conclui ser relevante a distinção entre prova direta e indireta. Justifica-se afirmando que na prova direta a relação entre a prova e o fato provado não exige esforço de raciocínio, ao passo que na prova indireta, ela sozinha não leva a conclusão alguma sobre o fato que se quer provar, sendo necessária a conjugação de outras provas para, só então, estabelecer-se a relação com o fato probando (ibidem, p. 154). Manifestamos nossa discordância em relação a tal posicionamento, uma vez que a conclusão construída a partir de toda e qualquer prova exige operação mental de inferência dedutiva [presunção].
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esgotado no tempo e no espaço, a prova consistirá sempre em uma construção linguística que toma por fundamento marcas deixadas pela ocorrência fenomênica. Os registros contábeis, por exemplo, não se confundem com as operações negociais efetivamente realizadas. Mas, sendo relatos daquelas, as constituem no universo jurídico até que outro enunciado com maior poder de convencimento infirme o relato anteriormente verificado. Disso se depreende que toda prova é indiciária, visto que jamais toca o objeto a que se refere. Criticando a distinção entre prova direta e indireta com base no critério da imediatividade da relação entre o fato da prova e o fato a provar, pondera Francesco Carnelutti191 que, excepcionadas as hipóteses em que o conhecimento do fato se dá por percepção do julgador, todas as provas são indiretas: “Se não me engano, que a distinção assim delineada não seja correta se desprende de tudo quanto venho sustentando acerca da estrutura de qualquer forma de prova indireta [no sentido de prova não percebida diretamente pelo juiz]: sempre que o juiz não perceba por si mesmo o fato a provar, adquire seu conhecimento mediante uma dedução, ou seja, mediante um silogismo; a estrutura da prova é, pois, idêntica, tanto se argumenta com um depoimento quanto com um indício”. Adotando posicionamento semelhante, Mittermayer192, examinando a teoria das provas na esfera criminal, considera que absolutamente todos os meios probatórios caracterizam-se como verdadeiros indícios de culpabilidade ou de inocência, ao serem apreciados para a formação do juízo. A distinção entre prova direta e indireta desaparece quando cuidadosamente analisadas essas figuras: a única diferença que remanesce é a consistente na diferença de grau na dificuldade que se experimenta para convencer o destinatário. A diversidade entre ambas fica ainda mais tênue se considerarmos que todo indício, para desencadear os respectivos 191. A prova civil, p. 122-123. 192. Tratado da prova em matéria criminal, p. 479.
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efeitos jurídicos, deve ser provado. Atento a essa peculiaridade, Antonio Dellepiane193 assevera o caráter de universalidade que reveste a prova indiciária: A prova de indícios se resolve sempre nas chamadas provas diretas ou naturais – por isso que todos os fatos circunstanciais, para que possam servir de base a deduções e constituir indícios, precisam comprovar-se por inspeção ocular, confissão etc. Do mesmo modo é também possível demonstrar que todas as provas ditas diretas ou naturais se reduzem, em última análise, à prova por indícios.
Sugerimos, por esses motivos, abandonar a terminologia criticada, adotando-se, em substituição, a dualidade prova simples/complexa ou prova atômica/molecular. Acolhendo o ponto de vista da prova como fato, entendido como seguimento de linguagem, a prova será complexa ou molecular sempre que houver algum conectivo entrelaçando os enunciados atômicos. Assim, quando uma única prova implicar a certeza acerca da ocorrência ou inocorrência do fato, teremos prova simples ou atômica. Quando, ao contrário, houver necessidade de diversos enunciados probatórios confirmando uns aos outros, estaremos diante de prova complexa ou molecular, resultado da combinação de provas simples insuficientes.
4.1.1.2 A imediatividade em relação à percepção do julgador Não obstante Carnelutti194 negue a distinção das provas em direta e indireta conforme sua relação de imediatividade com o fato alegado, adota essa mesma terminologia – prova direta/ indireta – para referir-se a espécies probatórias: “Existe prova [indireta] simples quando o fato que constitui a fonte de prova é (diretamente) percebido pelo juiz; [...] Existe, entretanto, prova [indireta] complexa, quando o fato constitutivo da fonte de prova é, por sua vez, objeto de [determinado mediante] prova 193. Nova teoria da prova, p. 72. 194. A prova civil, p. 241.
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indireta, ou seja, é deduzido de outra fonte de prova”195. A percepção, esclarece esse autor, é sempre direta: o sujeito cognoscente só tem conhecimento de um fato se o percebe com seus próprios sentidos. Entende, porém, que a percepção do julgador pode recair sobre o evento referido pelo fato que se pretende provar ou sobre o relato linguístico produzido por outrem. Na primeira hipótese, a prova seria direta; na segunda, indireta. Vejamos alguns exemplos formulados pelo citado jurista, que facilitam a compreensão do assunto: “O autor pede que sejam derrubadas árvores de tronco alto plantadas no fundo do vizinho à distância menor de três metros da linde; aqui o fato a provar é a situação respectiva das árvores e da linde [...], diretamente com os próprios sentidos, ou seja, indo ver, mediante inspeção judicial [...]. Nesse caso existe prova direta. [...] O autor pede a condenação do demandado ao pagamento do preço do cavalo vendido; aqui o fato a provar é o contrato de compra e venda [...]; agora: como este fato jurídico é transeunte e passado, não pode ser diretamente percebido pelo juiz, senão que deve ser conhecido por ele mediante a percepção de outro fato, do qual possa deduzir a existência do mesmo com ajuda da experiência: o autor exibirá o documento ou as testemunhas, e o juiz inferirá da visão daquele ou da audição destes o argumento para considerar que o contrato tenha sido celebrado, porque se não houvesse sido celebrado, não se haveria formado o documento ou não o haveriam narrado as testemunhas. Neste caso media prova indireta”196. Semelhante é o posicionamento de Eduardo Couture197, ao distinguir as provas diretas por percepção das diretas por representação. A primeira seria verificada quando o julgador entra em contato diretamente com o fato controvertido, como
195. Registramos a adoção de entendimento diverso quanto ao que seja fonte da prova, conforme exporemos no item 6.2 do capítulo 6. 196. Francesco Carnelutti, A prova civil, p. 82-83. 197. Fundamentos del derecho procesal civil, p. 167-170.
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no caso de inspeção judicial, enquanto a segunda decorreria de documentos que se referem ao fato controvertido. Tais concepções, entretanto, não se coadunam com os caracteres inerentes à prova, formulados neste trabalho. A prova, como vimos, é signo: apresenta-se sempre como representação parcial de outro fato, ingressando no ordenamento por meio do relato efetuado nos termos prescritos pelo direito. O fato social nunca ingressa no sistema jurídico pelas suas próprias virtudes, mas pela via estreita da comprovação, isto é, da comunicação jurídica. A própria inspeção judicial, definida por Rosenberg198 como “a percepção sensorial direta do juiz, a fim de se esclarecer quanto a fatos, sobre qualidades ou circunstâncias corpóreas de pessoas ou coisas”, precisa, para ser qualificada como prova, estar documentada nos autos, pois os eventos não ingressam no universo do direito. O mesmo se pode dizer da inspeção ocular, realizada pela autoridade julgadora nos processos administrativos, nas situações em que se faz necessário o exame das marcas deixadas pelo evento, sem demandar, para tanto, específico conhecimento técnico ou científico de um perito. A percepção do julgador em relação aos acontecimentos com os quais entrou em contato não é prova jurídica: a prova, nesse caso, é aquela materializada no laudo de inspeção ou verificação. Descartamos, portanto, a possibilidade de falar em prova direta, pois, além de não se tratar de contato com o evento em si, mas apenas com os sinais por ele deixados, a prova a ser constituída corresponderá a um documento em que se tem um relato factual. Não é a percepção do julgador que faz prova, mas o auto circunstanciado desta, de modo que, como esclarece Cândido Rangel Dinamarco199, “sem essa documentação a inspeção judicial não tem valor de prova e as impressões colhidas pelo juiz não podem sequer servir como fundamento da sentença”. Tudo o que deixar de integrar 198. Derecho procesal civil, p. 117. 199. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 600.
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documentalmente o processo equivale ao conhecimento privado do julgador, sendo repudiado pelo sistema da persuasão racional, adotado pelo ordenamento brasileiro. Daí reafirmarmos nossa assertiva de que toda prova é indireta, consistindo, necessariamente, em representação parcial do fato alegado.
4.1.2 Prova pessoal e real Na tradicional classificação das provas, estas são qualificadas em pessoais e reais, tomando-se o critério do sujeito que as emana. Seriam pessoais as declarações acerca da veracidade ou falsidade de um fato, emitidas por seres humanos. Por seu turno, caracterizar-se-iam como provas reais o próprio fato e suas circunstâncias. Segundo Moacyr Amaral Santos200: Prova pessoal de um fato consiste na revelação consciente, feita por uma pessoa, das impressões mnemônicas que o fato imprimiu no seu espírito. Prova real de um fato consiste na atestação inconsciente, feita por uma coisa, das modalidades que o fato probando lhe imprimiu.
As coisas, entretanto, nada atestam. As manifestações exteriores não falam. É sempre o homem que discursa sobre elas. Como mensagem que é, a prova insere-se no processo comunicacional do direito, exigindo a emissão por um remetente, o qual há de ser, impreterivelmente, um sujeito. Logo, toda prova é pessoal. Nesse sentido é a lição de Paulo de Barros Carvalho201, para quem é descabida a classificação das provas em pessoais e reais: Somente o sujeito de direitos, na condição de emissor, pode inaugurar o processo comunicacional probatório, praticando ato de fala para produzir mensagem destinada a convencer o receptor qualificado para decidir. Mais uma vez aparece o direito como
200. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 49. 201. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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linguagem que não se dirige aos objetos inanimados, porém aos seres humanos em suas relações de interpessoalidade.
Um vestígio não ingressa no sistema jurídico se não relatado em linguagem competente: será preciso, sempre, um laudo que certifique sua existência, constituindo o fato jurídico em sentido amplo. É esse relato linguístico que configura a prova, jamais sendo esta manifestada pelo vestígio-em-si, entendido como fenômeno do mundo da experiência e independente de produção humana.
4.1.3 Prova testemunhal, documental e material A classificação elaborada a partir do critério da forma leva em consideração o veículo pelo qual a comprovação do fato probando é feita. Tratando-se de prova pessoal, esta assumiria a forma testemunhal, quando manifestada oralmente, ou documental, se realizada afirmação por escrito. A prova real, por sua vez, apresentaria forma material, consistente na própria coisa que faz prova do fato alegado. Além de inadmitirmos distinção entre prova pessoal e real, como anotado no subitem anterior, a distinção destas em testemunhal, documental e material não resiste a um exame mais apurado. Sendo a forma o modo de exteriorização do fato, toda prova é documental, já que consistente em relato linguístico, aparecendo veiculado em um suporte físico. Antonio Dellepiane202, conquanto partindo de raciocínio diverso e tomando o vocábulo documento em sentido amplíssimo, já afirmava que as ciências reconstrutivas, das quais a prova jurídica faria parte, são documentárias, por pressuporem sinais ou vestígios deixados pelo acontecimento. Avançando um pouco nessa linha de raciocínio, diríamos que a prova é sempre documental, na acepção estrita da palavra, visto que o fato, qualquer que seja ele, exige relato em linguagem 202. Nova teoria da prova, p. 35.
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para sua constituição. E esse relato, por conseguinte, há de ser expresso em uma plataforma material, entendida, na lição de Paulo de Barros Carvalho203, como “suporte físico em que fica gravada uma parcela de linguagem, configurando a base empírica objetivada do direito, na medida em que permanece a mesma entre todos os participantes da comunidade do discurso”.
4.2 Espécies de meios de prova As provas, como vimos, são sempre indiretas, pessoais e documentais. O modo pelo qual são produzidas é que apresenta uma diversidade de modalidades, autorizando-nos a referir a espécies de meios de prova. A fixação dos meios de provas admitidos em direito pode ser taxativa ou exemplificativa, motivo pelo qual João Penido Burnier Júnior204 classifica os sistemas probatórios em fechados e abertos. O ordenamento brasileiro adota o sistema do tipo aberto, prescrevendo, no art. 369 do CPC/2015, que: As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa a influir eficazmente na convicção do juiz.
Ainda, nos termos do art. 38, §2°, da Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, “Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”, significando, com isso, que todas as demais modalidades probatórias hão de ser admitidas. O Decreto
203. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 108. 204. Teoria geral da prova, p. 64.
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70.235/72, que disciplina o processo administrativo tributário no âmbito federal, embora não traga assertiva tão peremptória, autoriza, além da juntada de documentos, a realização de diligências e perícias [art. 18], devendo tal prescrição ser entendida de forma ampla, abrangendo todos os meios de prova realizados licitamente. A título de exemplo, convém citar, ainda, a Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo, que é explícita sobre o assunto, dispondo, em seu art. 18, que: “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos obtidos de forma lícita, são hábeis para provar a verdade dos fatos controvertidos”. Mesmo que a legislação ordinária de alguns Estados e Municípios não disponha sobre o assunto, é direito do contribuinte o emprego de todos os mecanismos de prova lícitos. A liberdade probatória é decorrência do princípio da ampla defesa, prescrito constitucionalmente, sendo imperativa sua observância em todos os processos administrativos tributários, independentemente de referência expressa ou não. Nesse sentido é o magistério de Agustín A. Gordillo205, asseverando o autor que “não há limitações referentes às provas que podem ser produzidas no processo administrativo, devendo admitir-se, em princípio, qualquer classe de prova das que se aceitam na legislação processual vigente em matéria civil”. Para além disso, o CPC/2015 encontra aplicação subsidiária e supletiva nos processos administrativos, de modo que, nos contenciosos tributários dessa natureza, suas disposições aplicam-se quando ausentes regramentos específicos. Apesar dessa liberdade concernente à produção probatória, as regras de direito substantivo relacionam alguns meios de prova, disciplinando os requisitos necessários à regular constituição do fato jurídico mediante o emprego de tais meios. O Código Civil brasileiro dispõe, no art. 212, sobre os meios de prova, enumerando-os exemplificativamente:
205. Procedimiento y recursos administrativos, p. 300 [tradução nossa].
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Art. 212. Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante: I – confissão; II – documento; III – testemunha; IV – presunção; V – perícia.
Por estarem assim relacionados, esses são meios de prova típicos, em contraposição aos meios de prova atípicos, produzidos em razão da liberdade probatória assegurada pelo princípio da ampla defesa, conforme referido no art. 369 do CPC/2015 e na legislação disciplinadora dos processos administrativos tributários206. Examinemos, a seguir, os meios de prova típicos, discorrendo brevemente a respeito de suas particularidades e utilização no campo do direito tributário. Para tanto, faremos constantes referências a dispositivos do Estatuto Processual Civil, por nele estarem dispostas as normas do procedimento organizacional das provas, perfeitamente aplicáveis ao processo administrativo tributário, em caráter subsidiário e supletivo, nos termos do que estabelece o art. 15 do CPC/2015.
4.3 Confissão A confissão consiste na declaração voluntária em que o indivíduo admite como verdadeiro um fato que lhe é considerado prejudicial, alegado pela parte adversa (art. 389 do CPC/2015). Distingue-se do reconhecimento jurídico do pedido, pois se refere a fatos e não a direitos subjetivos. Confessado um fato, o processo tem seu prosseguimento normal, 206. A possibilidade de emprego de quaisquer desses meios de prova restringe-se aos fatos para os quais não se exija forma especial. Na lição de Washington de Barros Monteiro, “quando a lei impõe certa forma para determinado ato, este não pode provar-se senão quando obedecida a forma prefixada” [Curso de direito civil, v. 1, p. 253].
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sendo a confissão valorada em conjunto com os demais elementos processuais, ao passo que no reconhecimento jurídico do pedido dá-se a extinção do processo com decisão favorável à parte contrária. Não obstante a confissão esteja incluída entre os meios de prova, relacionados nos Códigos Civil e de Processo Civil, alguns doutrinadores, como Cândido Rangel Dinamarco207 e João Batista Lopes208, entendem não se tratar de meio de prova por consistir em mera declaração de conhecimento de fatos desfavoráveis, tornando-os incontroversos e, por conseguinte, dispensando-se a respectiva produção probatória. Tal não é a conclusão a que chegamos, pois a confissão apresenta-se como atividade exercida em observância às regras de organização probatória vigentes, relatada na linguagem prescrita pelo direito, tendo por função o convencimento do julgador, com vistas à constituição ou desconstituição de fatos jurídicos em sentido estrito. É, portanto, meio de prova, razão pela qual entendemos inapropriada a redação do art. 374, II, do CPC/2015, que prescreve não dependerem de prova os fatos afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária209. Pode apresentar-se na modalidade (i) judicial ou (ii) extrajudicial, conforme a confissão seja formulada durante o curso de processo judicial ou fora dele, sendo classificada, também, em (i) expressa, quando emitidas afirmações reconhecendo o fato probando, e (ii) presumida, tácita ou ficta, porque decorrente do silêncio, vertido em linguagem competente. Esta última seria verificada na hipótese de revelia, em que a ausência de contestação faz reputar verdadeiros os fatos sustentados pelo autor (art. 344 do CPC/2015), ou quando a parte intimada a comparecer para prestar depoimento pessoal deixa de fazê-lo 207. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 622. 208. A prova no direito processual civil, p. 98. 209. O vocábulo confissão padece da ambiguidade processo/produto, podendo significar o ato de confessar [meio de prova] ou o resultado dessa atividade [prova].
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ou se recusa a depor [art. 385, §1º, do CPC/2015]. Tal distinção é perspicazmente criticada por Cândido Rangel Dinamarco210, para quem “confissão e revelia são fenômenos bem diferentes entre si e a circunstância de ambos convergirem à incontrovérsia quanto às alegações do autor não é suficiente para forçar a entrada de uma no conceito da outra. Confissão é confissão e revelia é revelia, embora tenham uma consequência comum”. De forma semelhante, a distinção entre confissão verbal e escrita não resiste a um exame analítico, uma vez que o ato de confessar, expressa ou fictamente, há de ser vertido em linguagem escrita, relatado na forma documental. Nesse sentido, toda confissão escrita é verbal211. Quanto à estrutura, Arruda Alvim212 identifica duas espécies: (i) confissão simples, em que se reconhece o fato alegado pela parte contrária; e (ii) confissão complexa, na hipótese de, justaposto ao enunciado que admite o fato aduzido pelo adversário, encontrar-se outro fato, de caráter modificativo ou extintivo, implicando restrição parcial ou total aos efeitos do fato confessado. Uma das características atribuídas à confissão é a indivisibilidade. Isso porque, como explica Caio Mário da Silva Pereira213, “a parte que invoca a confissão do adversário tem de aceitá-la por inteiro. Não lhe é lícito cindi-la, e aproveitar o que lhe convém, repudiando-a na parte que lhe seja desfavorável”. Apenas na hipótese de o confitente aduzir fatos novos que constituam fundamento de defesa de direito material ou de reconvenção, poderá ocorrer sua aceitação parcial pela parte adversa. Acontece que a confissão, conforme referida no art. 389 do CPC/2015, consiste na admissão de um fato
210. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 61. 211. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP. 212. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 515. 213. Instituições de direito civil, p. 389.
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prejudicial ao interesse próprio e favorável à parte contrária na demanda. Por conseguinte, os fatos modificativos, impeditivos e extintivos do direito do autor, alegados pelo requerido, não caracterizam confissão. Não obstante sejam veiculadas no mesmo suporte físico, as naturezas de ambas as assertivas são diversas: são fatos distintos, cuja apreciação pode ser realizada de forma diferençada. Além disso, a confissão, na qualidade de elemento de convicção do julgador, deve ser por ele valorada no contexto dos autos, sendo perfeitamente admissível o cotejo de trechos enunciados na confissão com outras provas constantes do processo, acolhendo o que estiver em harmonia com o conjunto probatório e rejeitando as afirmações infirmadas pelos demais elementos de prova214. Não há que falar, portanto, em indivisibilidade. Considerado o princípio do livre convencimento motivado ou persuasão racional que rege o sistema processual brasileiro, a confissão não pode ser aceita em parte e rejeitada parcialmente apenas se nenhuma outra prova houver nos autos. É comum atribuir à confissão, também, o caráter de irretratável215. A retratação provém do verbo retratar, que consiste em tratar novamente, desdizer-se. Acompanhamos, porém, os ensinamentos de Magalhães Noronha216, para quem o ato de confessar é susceptível de ser retratado, desde que acompanhado de elementos que confirmem os argumentos justificadores da retratação. Semelhante é o posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco217, asseverando ser lícito ao confitente desdizer-se, “apresentando nova versão dos fatos e justificando-a, o que será considerado pelo juiz no exercício de seu livre convencimento – quando então ele analisará as duas declarações em sua consistência interna e harmonia 214. Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, v. 1, p. 431. 215. Vicente Greco Filho, Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 205. 216. Curso de direito processual penal, p. 145. 217. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 631.
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com o conjunto probatório, confrontando-as entre si etc.”. A retratabilidade deve-se à circunstância de ser a confissão apenas um dos elementos de convicção do julgador, sendo perfeitamente possível que os fatos nela relatados não prevaleçam na determinação do fato probando, caso haja prova contrária mais convincente, ainda que apresentada pelo próprio confessor. Não se confunda retratabilidade com revogabilidade. Trata-se de conceitos distintos. Apesar de o art. 393 do CPC/2015 prescrever que “a confissão é irrevogável”, esse mesmo dispositivo esclarece a possibilidade de ser esse ato de fala anulado, caso decorra de erro de fato ou de coação. Em verdade, a segunda parte do citado preceito legal infirma a primeira, pois veicula a possibilidade de tornar seu efeito a confissão, o que preenche perfeitamente o conteúdo significativo do termo “revogável”. Em que pese já ter sido considerada a rainha das provas, atualmente a confissão é vista como um meio de convencimento do destinatário, a ser sopesado juntamente das demais provas que forem apresentadas. Sendo a confissão emitida pelo próprio autor do ato e em seu prejuízo, poder-se-ia imaginar que, verificada uma confissão, nada mais cumpriria ao julgador fazer senão decidir desfavoravelmente ao confitente, dispensando o recurso a qualquer outro meio de prova. Essa seria, entretanto, uma conclusão equivocada. O ato de confessar produz a confissão-produto, documento que veicula enunciados, funcionando como signo: não coincide, portanto, com o fato a ser provado [significado], servindo tão somente para representá-lo de forma parcial, como ocorre com toda e qualquer prova. Esse o motivo pelo qual Antonio Dellepiane218 conclui que a existência de uma confissão “não importa, em suma, nada mais que uma simples suspeita ou uma presunção de verdade, que só assumirá foros de certeza depois de um estudo analítico e de uma crítica severa que levem ao espírito a 218. Nova teoria da prova, p. 157.
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convicção de que essa confissão é sincera e discreta”. Daí por que a confissão não cria direitos e obrigações para as partes, não vincula o julgador e não se confunde com o reconhecimento do pedido ou com a renúncia ao direito. Apenas torna o fato incontroverso, devendo o juiz atribuir à confissão o valor que entender cabível, conforme o contexto em que foi produzida, ou seja, no conjunto de todos os elementos de prova existentes nos autos.
4.3.1 Depoimento pessoal O Código Civil nenhuma referência faz em relação ao depoimento pessoal. Por outro lado, o Código de Processo Civil, ao dispor sobre o procedimento organizacional das provas, disciplina-o pormenorizadamente [arts. 385 a 388]. O depoimento pessoal, considerado isoladamente, entretanto, não caracteriza meio de prova: assumirá essa propriedade apenas se veicular fato contrário ao interesse do depoente e favorável ao seu adversário processual, qualificando, nesse caso, uma confissão. Quando, diversamente, o depoimento pessoal decorrer de iniciativa do julgador com a finalidade de esclarecer os fatos discutidos na causa, seu resultado identificar-se-á com as próprias alegações das partes.
4.3.2 Confissão em matéria tributária Há confissão do contribuinte quando ele próprio constitui o crédito tributário, emitindo a correspondente norma individual e concreta, nas hipóteses de tributo sujeito ao chamado lançamento por homologação. Também ocorre a figura jurídica da confissão quando celebrado termo de parcelamento, acompanhado de instrumento comumente denominado confissão irrevogável e irretratável de débitos tributários. Em todos esses casos, verificando o particular a incorreção das declarações prestadas, é-lhe lícito solicitar sua revisão pelo
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órgão administrativo ou judicial, visto que, em face dos princípios da estrita legalidade e tipicidade tributária, o tributo só é devido se verificada a ocorrência do fato previsto na hipótese da norma geral e abstrata. Se na esfera civil a confissão deve ser examinada em conjunto com os demais enunciados probatórios para que possa servir como fundamento para constituição do fato jurídico em sentido estrito, com maior razão deve sê-lo tratando-se de matéria tributária, pelos motivos a seguir, expostos por Susy Gomes Hoffmann219: A confissão por parte do sujeito passivo deve ser vista com restrições, pois a obrigação tributária, perante o princípio da legalidade, decorre exclusivamente de lei e não da vontade das partes, de modo que, mesmo que o sujeito passivo confesse em algum momento do processo a ocorrência do fato jurídico tributário na forma enunciada no lançamento tributário e, posteriormente, reste provado que aquele fato não ocorreu, a sua manifestação de vontade demonstrada na confissão não terá o condão de validar a obrigação.
Nessa linha de raciocínio, a confissão de débitos, exigida como um dos requisitos para ingresso em programas de parcelamento, não se reveste de força legal que impeça posterior discussão quanto aos valores envolvidos. A circunstância de a adesão a esses programas de parcelamento ser facultativa não justifica a atribuição de caráter irretratável à confissão, como pretende o Fisco. Por esse modo de pensar, ressalta James Marins220: A adesão como expressão de suposta vontade individual do contribuinte eliminaria todo e qualquer vício jurídico do instrumento, ou seja, propõe essa visão – perigosamente utilitarista – a adoção de uma espécie de pacta sunt servanda nos programas de parcelamento, tornando os instrumentos de adesão intangíveis ao próprio Poder Judiciário, mesmo que contenham condições,
219. Teoria da prova no direito tributário, p. 210. 220. Direito processual tributário brasileiro [administrativo e judicial], p. 311-312.
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cláusulas abusivas, incompatíveis com os princípios que governam o ordenamento constitucional.
Neste ponto, convém esclarecer que “parcelamento” é palavra polissêmica empregada para indicar tanto a norma geral e concreta [veículo introdutor], como a norma geral e abstrata, e, ainda, a norma individual e concreta, além de diversas outras acepções. Sobre o assunto, esclarece Aurora Tomazini de Carvalho221 que: Parcelamento é uma forma para se efetuar o pagamento de tributo, é um procedimento para realização do pagamento. Em algumas oportunidades o Estado cria leis, dando a oportunidade aos contribuintes, que se subsumirem a determinadas condições, de efetuar o pagamento de seus créditos de forma parcelada. Nestes casos, o parcelamento é visto como uma norma geral e abstrata que prescreve um procedimento para o pagamento do tributo devido. E se pensarmos na sua incidência com a produção da norma individual e concreta, podemos dizer que se instaura um compromisso do sujeito passivo em efetuar o pagamento sobre esta forma.
Quando o contribuinte “adere” a acordo de parcelamento de débitos tributários, nada mais faz que participar da introdução de norma individual e concreta constituidora de vínculo obrigacional tributário. E, como tal, essa norma jurídica está sujeita aos princípios da legalidade e da tipicidade tributária: deve ter por suporte a regra-matriz de incidência tributária e o acontecimento do fato jurídico nela previsto. Nenhuma confissão de débito tributário, quer efetuada como condição do respectivo parcelamento, quer em decorrência da emissão de norma individual e concreta pelo contribuinte [no chamado lançamento por homologação] ou mesmo nos autos de processo administrativo em curso, tem a prerrogativa de impedir que se discuta sobre a existência do crédito
221. Crimes contra a ordem tributária: a necessidade de esgotamento da esfera administrativa para propositura da ação penal; os efeitos do parcelamento do crédito tributário sobre a punibilidade penal, p. 29.
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tributário, tendo em vista que este nasce apenas se verificado o fato jurídico previsto na norma geral e abstrata, não podendo tal situação ser alterada pela vontade do sujeito passivo. Nesse sentido manifestou-se o TRF da 1ª Região: “Sendo o parcelamento modalidade de moratória, tão somente suspende a exigibilidade do crédito fiscal, não retirando, dessa forma, o interesse do contribuinte de buscar a desconstituição do referido crédito”222. Do mesmo modo, o TRF da 3ª Região concluiu pela possibilidade de o contribuinte questionar a aplicação de multa moratória nas hipóteses de débito parcelado: “Interesse de agir configurado, pois o contribuinte insurge-se contra o pagamento do tributo devido acrescido de multa moratória, em face do art. 138 do CTN”223. Também entendeu o TRF da 5ª Região que “A obrigação tributária é decorrente da lei, não podendo ser alterada pela vontade das partes, daí porque é sempre possível ao contribuinte requerer judicialmente a revisão de parcelamento celebrado se suas cláusulas impõem obrigações inexistentes, máxime em se tratando de contribuinte pessoa jurídica de direito público”224. Vejam-se, ainda, as seguintes ementas: “TRIBUTÁRIO. CONFISSÃO DE DÍVIDA NA VIA ADMINISTRATIVA. REVISÃO JUDICIAL. PARCELAMENTO DESCUMPRIDO. ABATIMENTO DE PAGAMENTOS EFETUADOS. PIS APURADO NA FORMA DA LEI COMPLEMENTAR 7/70. FINSOCIAL À ALÍQUOTA DE 0,5%. 1. A confissão de dívida não impede a sua discussão em juízo, fundada na inconstitucionalidade, não-incidência ou isenção do tributo ou em erro quanto ao fato. Se é fato que, lavrado o respectivo termo, este adquire força de lei entre as partes, igualmente verdadeiro é dizer-se que se trata de ato administrativo vinculado (cuja validade depende do cumprimento dos ditames
222. 2ª Turma Suplementar, AC 199701000308010-MT, Rel. Vera Carla Nelson de Oliveira Cruz, DJ 28.01.2002, p. 146. 223. 4ª Turma, AMS 161674-SP, Rel. Therezinha Cazerta, DJU 25.08.2000, p. 864. 224. 2ª Turma, AC 294729-PE, Rel. Paulo Roberto de Oliveira Lima, DJ 06.06.2003, p. 520.
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legais a que está sujeito), e a irretratabilidade de que se reveste não se sobrepõe ao direito do contribuinte de ver-se corretamente cobrado, e, menos, ainda, à garantia constitucional de tutela jurisdicional de lesão ou ameaça a direito. – A obrigação tributária decorre de lei, e a confissão do contribuinte diz respeito tão somente ao inadimplemento, do que denota não importar, a concordância inicial do contribuinte com o valor do débito apurado pelo Fisco, na imutabilidade deste, pois que, ao credor, não se reconhece o direito de cobrar mais do que é efetivamente devido, por força de lei. [...]”225. “TRIBUTÁRIO. TR/TRD. PARCELAMENTO. JUROS MORATÓRIOS. CONFISSÃO DE DÍVIDA. IRRETRATABILIDADE. 1. Em se tratando de débitos fiscais, foi afastada a aplicação da TRD como índice de correção monetária, mantendo-se a sua incidência como equivalente a juros moratórios, em relação a débitos vencidos. 2. São nulas as cláusulas constantes de contrato de confissão de dívida que atribuem à confissão o caráter de irretratabilidade e onde o devedor renuncia a qualquer contestação quanto ao valor do débito parcelado, pois a obrigação resulta da lei. (...)”226. “TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. CONFISSÃO. PARCELAMENTO. POSSIBILIDADE DE REVISÃO. – A confissão do débito, quando não refletir a verdade sobre a situação declarada, pode ser ilidida por prova inequívoca, a cargo do contribuinte. – Induvidoso o direito líquido e certo do impetrante de revisão da dívida confessada, ante os graves prejuízos advindos aos cofres públicos do pagamento a maior. – Segurança concedida.”227
Pacificando as controvérsias sobre o tema, 1ª Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, nos autos do REsp n°
225. TRF da 4ª Região, 1ª Turma, AC 200004010771323-RS, Rel. Vivian Josete Pantaleão Caminha, DJU 23.11.2005, p. 822. 226. TRF da 4ª Região, 1ª Turma, AC 9404410624-RS, Rel. Fábio Rosa, DJ 10.06.1998, p. 457. 227. TRF da 5ª Região, Pleno, MS 40788-PE, Rel. José Maria Lucena, DJ 25.08.1995.
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1.133.027-SP, julgado segundo o rito de recurso repetitivo, decidiu que é possível rever uma confissão de dívida feita pelo contribuinte. Considerou-se que a confissão pode ser invalidada quando for constatada uma falha que anule o auto de infração a que se refira. Assim, o contribuinte que tenha aderido a um parcelamento com base em confissão de dívida, mas prove de vício na autuação fiscal, pode anular judicialmente o débito indevidamente confessado: “PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. Recurso Especial representativo de controvérsia (art. 543-C, § 1º, do CPC). AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO COM BASE EM DECLARAÇÃO EMITIDA COM ERRO DE FATO NOTICIADO AO FISCO E NÃO CORRIGIDO. VÍCIO QUE MACULA A POSTERIOR CONFISSÃO DE DÉBITOS PARA EFEITO DE PARCELAMENTO. POSSIBILIDADE DE REVISÃO JUDICIAL. 1. A Administração Tributária tem o poder/dever de revisar de ofício o lançamento quando se comprove erro de fato quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória (art. 145, III, c/c art. 149, IV, do CTN). 2. A este poder/dever corresponde o direito do contribuinte de retificar e ver retificada pelo Fisco a informação fornecida com erro de fato, quando dessa retificação resultar a redução do tributo devido. 3. Caso em que a Administração Tributária Municipal, ao invés de corrigir o erro de ofício, ou a pedido do administrado, como era o seu dever, optou pela lavratura de cinco autos de infração eivados de nulidade, o que forçou o contribuinte a confessar o débito e pedir parcelamento diante da necessidade premente de obtenção de certidão negativa. 4. Situação em que o vício contido nos autos de infração (erro de fato) foi transportado para a confissão de débitos feita por ocasião do pedido de parcelamento, ocasionando a invalidade da confissão. 5. A confissão da dívida não inibe o questionamento judicial da obrigação tributária, no que se refere aos seus aspectos jurídicos. Quanto aos aspectos fáticos sobre os quais incide a norma tributária, a regra é que não se pode rever judicialmente a confissão de dívida efetuada com o escopo de obter parcelamento de débitos tributários. No entanto, como na situação presente, a matéria de fato constante de confissão de dívida pode ser invalidada quando ocorre defeito causador de nulidade do ato jurídico (v.g. erro, dolo, simulação e fraude). Precedentes: REsp.
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n. 927.097/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 8.5.2007; REsp 948.094/PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 06/09/2007; REsp 947.233/ RJ, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009; REsp 1.074.186/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 17/11/2009; REsp 1.065.940/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 18/09/2008. 6. Divirjo do relator para negar provimento ao recurso especial. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C, do CPC, e da Resolução STJ n. 8/2008.”228
A confissão realizada na esfera tributária, portanto, nada tem de irretratável. Mesmo se advinda no correr do processo administrativo tributário, em que o próprio impugnante reconhece a procedência dos fatos alegados pela Fazenda, nada impede a posterior apresentação de provas em sentido contrário, levando o julgador ao convencimento acerca da inocorrência do fato confessado. Referida conjuntura dá-se em virtude de ser a concretização do fato jurídico tributário previsto abstratamente na regra-matriz de incidência uma condição necessária para o surgimento da correspondente obrigação de pagar tributo, assim como a relação jurídica sancionadora pelo descumprimento de obrigação tributária ou de deveres instrumentais tem sua regular constituição condicionada ao acontecimento do fato ilícito, previsto na hipótese normativa geral e abstrata. Como qualquer modalidade de meio de prova, a confissão não caracteriza “prova plena”, dispensando outros elementos probatórios: havendo confissão nos autos, esta há de ser valorada pelo julgador, juntamente das demais provas produzidas pelas partes, com vistas a certificar o fato jurídico ou o ilícito tributário, modificá-lo ou extingui-lo. O traço da revogabilidade também está presente na confissão tributária, sendo esta susceptível de anulação nas hipóteses de o ato de confessar ter-se operado em decorrência de erro, dolo ou coação.
228. STJ, 1ª Seção, REsp nº 1.133.027-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 13/10/2010.
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Existem autores que, pautados no art. 214 do atual Código Civil, afirmam a impossibilidade de revogar confissão quando verificado erro de direito229. Tal entendimento não encontra aplicação na esfera tributária. Nesta, o erro justificador da anulação da confissão pode ser de fato ou de direito, tendo em vista que, não obstante o ato de confessar consista, comumente, no reconhecimento de fatos, o erro de direito pode interferir na enunciação que envolva admissão de vínculos jurídicos, como esclarece Devis Echandía230: Por regra geral o erro de direito, isto é, sobre os efeitos jurídicos do ato, não motiva a revogação da confissão, porque não impede que o fato seja certo; mas se o erro de direito conduz à confissão de uma obrigação que não existe ou a negar a existência de um direito que se tem, apresenta-se, também, em última instância, como um erro de fato, e, por conseguinte, aquele é apenas a causa deste, que autoriza sua revogação. Se o erro de fato serve para revogar a confissão, não importa que se origine a partir de um erro de direito. Neste sentido tem razão Lessona e os outros autores por ele citados, ao aceitar a revogabilidade quando o erro de direito produza a confissão de um vínculo obrigatório que não existe.
É o que se verifica, com grande frequência, na esfera tributária, uma vez que a confissão de dívida exprime um valor devido a título de tributo ou multa, decorrente da aplicação de norma jurídica. Em razão disso, cogitada a inconstitucionalidade ou ilegalidade do fundamento de validade do liame obrigacional, impõe-se a apreciação de tais argumentos, e, verificada sua procedência, tem lugar a revogação da confissão. Esse foi o posicionamento adotado pelo TRF da 1ª Região que, ao apreciar discussão envolvendo débito tributário parcelado, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal havia suspendido a eficácia de dispositivo legal que dava suporte à exigência, concluiu: “O parcelamento efetivado na
229. Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 1, p. 572. 230. Teoría general de la prueba judicial, p. 719 [tradução nossa].
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via administrativa não retira o interesse de agir do autor que busca a desconstituição do débito fiscal”231. Em outra oportunidade, esse mesmo Egrégio Tribunal manifestou-se sobre o assunto, admitindo a revisão para que fosse recalculado o valor do tributo devido: “Tendo os Decretos-leis 2.445 e 2.449/88 sido julgados inconstitucionais, pelo STF, as prestações remanescentes do contrato de confissão de dívida e parcelamento, firmado entre a autora e a ré, devem ser recalculadas, para que se lhes aplique a Lei Complementar 7/70”232. Em semelhante linha de raciocínio, concluiu o TRF da 4ª Região que “A confissão e o parcelamento do débito não afasta da apreciação do Poder Judiciário a ocorrência de eventual ilegalidade ou inconstitucionalidade na constituição do crédito tributário”233. E mais: “Uma exação reputada inconstitucional não pode ser consolidada e inviabilizada sua revisão pelo só fato de ter sido objeto de confissão de dívida fiscal. A origem do débito não terá se modificado”234. Discordamos, portanto, do posicionamento que atribui à confissão os atributos da indivisibilidade, irretratabilidade e irrevogabilidade, principalmente quando verificada na esfera tributária. As normas individuais e concretas constituidoras de obrigações tributárias subsistem no sistema jurídico apenas se fundadas em normas gerais e abstratas e se concretizado o fato normativamente previsto. Por conseguinte, verificando o contribuinte a incorreção de relato fático constante da norma individual e concreta de parcelamento de débitos tributários, tem ele interesse de agir para solicitar sua revisão pelo Poder Judiciário.
231. 4ª Turma, AC199901000014502-MG, Rel. Ítalo Fioravanti Sabo Mendes, DJ 06.02.2003, p. 35. 232. TRF da 1ª Região, 3ª Turma, AC 9601365389-DF, Rel. Eustáquio Silveira, DJ 07.07.2000, p. 4. 233. 1ª Turma, AC 200271070028012-RS, Rel. Maria Lúcia Luz Leiria, DJU 06.04.2005, p. 395. 234. 1ª Turma, AMS 9504411991-SC, Rel. Fábio Rosa, DJ 27.01.99, p. 332.
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Na qualidade de elemento de convicção do julgador, a confissão constante do acordo de parcelamento de débitos tributários deve por ele ser valorada no contexto dos autos, cotejando-se os trechos enunciados na confissão com outras provas constantes do processo, oferecidas pelo contribuinte e pelo Fisco, pois em face dos princípios da estrita legalidade e tipicidade tributária, o tributo só é devido se verificada a ocorrência do fato previsto na hipótese da norma geral e abstrata. Por outro lado, é evidente que, enquanto não contestada pelo contribuinte mediante a produção de provas que infirmem a assertiva enunciada por meio do ato de confissão, este permanece no ordenamento com força probatória relativamente aos fatos que reconhece como verdadeiros, salvo se a Administração, pelos dados aos quais tem acesso, verificar, ela própria, a inocorrência do fato confessado, situação em que lhe incumbe tomar a iniciativa de rever ato constitutivo do fato jurídico tributário e da correspondente obrigação.
4.4 Documento A palavra documento provém de documentum, do verbo latino doceo, que significa ensinar, mostrar, indicar. A ideia de documento, ensina Paulo Celso B. Bonilha235, é a de uma coisa que tem em si a virtude de fazer conhecer outra, consistindo, no âmbito jurídico, em uma “coisa representativa de um fato e destinada a fixá-lo de modo permanente e idôneo, reproduzindo-o em juízo”236. Pela via documental constituem-se fatos jurídicos em sentido amplo, com base nos quais o julgador determina o fato jurídico em sentido estrito. Esse o motivo pelo qual afirmamos que todas as espécies de prova assumem a forma documental, pois documento, como definido
235. Da prova no processo administrativo tributário, p. 84. 236. Vale lembrar que essa representação é sempre parcial, servindo não apenas para reproduzir algo, mas colaborando na própria constituição desse algo.
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por Chiovenda237, é “toda representação material destinada e idônea a reproduzir uma dada manifestação do pensamento”. O que as distingue é exatamente o modo pelo qual são produzidas, ou seja, o meio de prova. Por isso, a prova documental referida no presente tópico diz respeito às reproduções de fatos, cujo modo de produção não coincida com aqueles referidos de forma específica pelo direito positivo brasileiro. Em sentido lato, o vocábulo documento é indicativo da plataforma material, suporte físico em que fica gravada uma parcela de linguagem. Para que este assuma foros de meio de prova, porém, precisa ser veiculado na forma prescrita pelo ordenamento jurídico, sendo indispensáveis os requisitos da subscrição pelo autor e da sua autenticidade. Por fim, uma última distinção há de ser feita: o vocábulo documento indica o gênero do qual o instrumento é espécie. “O documento denota a ideia de qualquer papel útil para provar ato jurídico. Instrumento é veículo criador de um ato ou negócio”238. Enquanto o documento diz respeito a todo suporte físico que enuncia fatos quaisquer, o instrumento é a espécie documental que preenche determinados requisitos formais, sendo imprescindível para a constituição e execução de certos atos239 e para que alguns negócios jurídicos se aperfeiçoem240. Em face disso, conclui Maria Helena Diniz241 que “os instrumentos públicos e particulares dão existência aos negócios jurídicos, servindo-lhes, também, de prova”, ao passo que “os documentos têm função meramente probatória”, não obstante colaborem para a constituição do fato jurídico em sentido estrito. 237. Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 456. 238. Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 1, p. 573. 239. João Mendes Júnior, Direito judiciário brasileiro, p. 217. 240. Nos termos do art. 406 do CPC/2015, quando a lei exigir, como da substância do ato, o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta. 241. Curso de direito civil brasileiro, v. 1, p. 269.
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4.4.1 Espécies de documentos Os documentos dividem-se em públicos e particulares, conforme sua origem: entidades públicas ou privadas, respectivamente. Francesco Carnelutti242 atribui a existência dessas duas modalidades à necessidade de garantir que a formação do documento ocorra em consonância com a verdade. Segundo esse autor, “o documento é infiel quando está formado de maneira distinta da verdade. Um dos meios para garantir a fidelidade do documento [um dos remédios contra o perigo de sua infidelidade] consiste, portanto, em prover a sua formação mediante uma pessoa que ofereça garantias intelectuais e morais para excluir ao máximo o perigo de erros de inteligência e de vontade na própria formação. Este provimento dá lugar ao documento oficial, contraposto ao privado”. Tal orientação foi seguida pelo CPC/2015, prescrevendo que o documento público faz prova não só de sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença [art. 405]. Trata-se, todavia, de presunção relativa de veracidade, podendo ser ilidida por outras provas constantes dos autos, de modo que sua falsidade é susceptível de ser declarada judicialmente por meio de ação autônoma ou de forma incidental no processo em que o documento foi apresentado. Para que possa produzir os correspondentes efeitos, a presunção relativa de autenticidade do documento aplica-se, também, aos particulares: as declarações constantes do suporte documental privado, devidamente assinado, presumem-se verdadeiras em relação ao signatário [art. 408 do CPC/2015]243.
242. A prova civil, p. 220-221. 243. “A autenticidade se refere à integridade formal do documento, à sua materialidade; a veracidade se refere ao conteúdo, à sua conformidade com a verdade. O documento pode ser autêntico, mas não veraz, padecendo de falsidade ideológica. O vício de autenticidade é falsidade material” (Vicente Greco Filho, Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 210).
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Quanto ao sujeito que o produz, o documento pode ser heterógrafo ou autógrafo. Documentos heterógrafos são aqueles cuja nota essencial consiste em que não são formados por quem realiza o fato documentado. Nele se descrevem fatos realizados por pessoa diversa daquela que emite o documento, havendo diversidade entre o autor do acontecimento relatado documentalmente e o autor do documento. Já o documento autógrafo é aquele que se refere a um fato praticado pela própria pessoa que o produz. Francesco Carnelutti244 pondera, ainda, que o fato representado documentalmente pode ser o próprio documento. Esse documento, que refere e representa outro, recebe tecnicamente o nome de cópia, em contraste com o documento original [não sendo o fato representado pelo documento original outro documento]. A cópia nada mais é que o documento do documento, um típico exemplar de sobreprova.
4.4.2 O documento no direito tributário A prova documental ocupa lugar de destaque nos processos administrativos tributários. Consiste no conjunto sígnico que se presta para representar um fato, podendo os documentos ser públicos, privados, produzidos com a deliberada intenção de constituir prova, elaborados sem qualquer intenção futura, escritos, gráficos, gravados fonográfica ou fotograficamente etc. Mas, para que esses documentos irradiem efeitos no ordenamento jurídico, precisam ser construídos com observância às regras impostas por esse sistema. Caracteriza prova documental apenas o suporte físico de enunciados que seja reconhecido pelo direito, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo como ao modo de sua formação. Não podemos nos esquecer de que no direito tributário elegem-se, como fatos desencadeadores de vínculos 244. A prova civil, p. 218.
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obrigacionais, atividades que, por sua peculiaridade, originam uma documentação própria. A isso se alia a existência de deveres instrumentais impostos aos sujeitos passivos, implicando a realização de registros contábeis, ou seja, documentação. Disso decorre a importância da examinada modalidade probatória na esfera tributária, prescrevendo o art. 195 do CTN a indispensabilidade de o contribuinte conservar e manter os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos neles efetuados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários procedentes das operações a que se refiram. Vale lembrar, ainda, que o atual Código Civil dispõe, em seu art. 226, que: Os livros e fichas dos empresários e sociedades provam contra as pessoas a que pertencem, e, em seu favor, quando, escriturados sem vício extrínseco ou intrínseco, forem confirmados por outros subsídios.
Tais livros, esclarece Renan Lotufo245, “são documentos que exigem o cumprimento de certas formalidades impostas pelo ordenamento jurídico quanto à ordem de escrituração, que aparecem previstas de forma clara e precisa nos arts. 1.180 a 1.196 deste Código Civil”, devendo a escrituração ser feita sob responsabilidade de um contabilista legalmente habilitado [art. 1.182]. Referidos livros, para que sejam considerados provas, devem observar as formalidades exigidas pela legislação, inerentes à forma de escrituração, registro, exigência de rubricas, dentre outros. Além disso, a despeito do disposto no art. 226 do CC, cuja literalidade aparenta conferir caráter de prova plena aos documentos ali relacionados, essa modalidade de prova documental, assim como qualquer outro meio probatório tributário, ostenta o qualificativo da relatividade, podendo ser ilidida por prova contrária, demonstrando-se a falsidade da escrituração, realizada de modo inadvertido ou proposital.
245. Código Civil comentado, v. 1, p. 585.
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Pode ocorrer que os documentos em que se funda o fato jurídico tributário ou a alegação de sua inocorrência encontrem-se redigidos em língua estrangeira. Nesse caso, o código não se mostra apto à transmissão de mensagens no sistema do direito, fazendo-se necessária sua tradução para a língua portuguesa. Em decisão proferida pelo antigo Conselho de Contribuintes, atualmente reformulado em Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, este assim se manifestou: “os documentos estrangeiros devem ser apresentados com tradução efetuada por tradutor oficial, reconhecida a firma do mesmo e carimbada pelo consulado. O não-cumprimento pelo contribuinte destas formalidades, reiteradamente, constata a não-validade do documento”246. Tratando-se de documento redigido em língua estrangeira, imprescindível a produção de outro documento, comprobatório de seu conteúdo: metaprova, consistente na tradução realizada nos termos prescritos pelo ordenamento.
4.4.3 O documento na era da informática Segundo Enrique M. Falcón247, a informática modificou o sentido do que seja um documento, acarretando substituição 246. Rec. 117.778, Ac. 301-28625, de 10-12-1997. Segundo Edmar Oliveira Andrade Neto, “qualquer documento de procedência estrangeira para produzir efeitos legais no País e para valer contra terceiros e em repartições da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios ou em qualquer instância, juízo ou tribunal, deve ser vertido em vernáculo. Além disso, deve ser legalizado em seu país de origem, ou seja, notarizado, consularizado e registrado em Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Tais exigências decorrem do disposto no art. 224 do Código Civil de 2002 (correspondente ao art. 140 do Código Civil de 1916); no artigo 157 do Código de Processo Civil, e no item 6° do art. 129 e no artigo 148, ambos da Lei 6.015/73. Cabe mencionar, por outro lado, que o Regulamento do Tradutor Público, expedido com o Decreto 13.609, de 21 de outubro de 1943, dispõe, em seu art. 18, que nenhum livro, documento ou papel de qualquer natureza que for exarado em idioma estrangeiro, produzirá efeito em repartições da União, dos Estados ou dos Municípios, em qualquer instância, Juízo ou Tribunal ou entidades mantidas, fiscalizadas ou orientadas pelos poderes públicos, sem ser acompanhado da respectiva tradução” (IRPJ: validade jurídica de documento emitido em língua estrangeira). 247. Tratado de la prueba, v. 1, p. 363.
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do suporte em papel pelo suporte óptico ou magnético, bem como da grafia tradicional pelos campos eletrônicos. Até mesmo a corriqueira forma de subscrição tem sido substituída por uma assinatura eletrônica. Nesse sentido, o suporte documental é contingente, situação esta reconhecida pelo Código Civil, em seu art. 225: As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão248.
O chamado documento eletrônico não apresenta dificuldades quanto à sua caracterização como documento em si. Os problemas envolvendo sua aceitabilidade dizem respeito ao modo de garantir a fidelidade, questão esta que não é exclusiva dessa peculiar modalidade documental, visto que a possibilidade de falsificação é inerente a quaisquer documentos. No âmbito da informática, ao contrário do que se afirma comumente, há meios de controle rígidos e confiáveis. As assinaturas eletrônica e digital são exemplos desses meios. Trata-se de códigos que permitem identificação eficiente e segura, servindo como forma de autenticação que individualiza o autor do ato. É pela assinatura eletrônica – uma espécie de senha – que os sujeitos são identificados, permitindo que estes ingressem no sistema de um computador ou em um programa de informática, enviem mensagens por correio eletrônico ou acessem páginas na Internet. Já a assinatura digital apresenta-se como algo mais complexo e também mais seguro, que se opera mediante códigos privados e códigos públicos inter-relacionados. Na assinatura digital emissor e receptor criam seu próprio código particular, que só eles conhecem e guardam. Além disso, cada um registra, ante a autoridade certificadora, seu código público.
248. Semelhante é a prescrição veiculada pelo Código de Processo Civil, em seu art. 422.
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Mediante o uso do código particular o emissor criptografa a mensagem no código público e o envia ao receptor; este, ao receber a mensagem, verifica perante a autoridade certificadora o código público do emissor e a inalterabilidade do seu conteúdo e o descriptografa por meio de seu código privado, fazendo-o com o auxílio de programas instalados em seu computador. O êxito do sistema está na confiança que os usuários têm na autoridade certificante, que é a controladora e administradora dos códigos públicos e que garante a segurança do tráfego de mensagens. Em síntese, a assinatura digital consiste na aplicação, a um documento eletrônico, de procedimento matemático que requer informação de exclusivo conhecimento daquele que o assina. Essa sistemática é submetida a um rígido controle, possibilitando que a assinatura digital seja susceptível de verificação por terceiros, permitindo identificar o sujeito que assina, bem como qualquer alteração efetuada no documento após ter sido assinado. Para que tenha valor como prova, o documento digital deve ter sido submetido a esse trâmite. Por esse motivo, dada a sua peculiar forma e requisitos de constituição, essa espécie documental requer, muitas vezes, uma sobreprova, a qual se realiza na forma de laudo pericial, certificando observância à sistemática de controle de fidelidade do conteúdo e de autenticidade.
4.4.3.1 Emprego da prova em meio eletrônico na esfera tributária e o uso de ata notarial É interessante, nesta oportunidade, tecer breves comentários sobre os requisitos de aceitabilidade dos arquivos magnéticos como provas tributárias. Assinala Mary Elbe Queiroz249 que o vocábulo documento abrange tudo aquilo que registra um fato, independentemente do meio que se apresenta ou se
249. Processo administrativo tributário. Mesa de debates “A”. Revista de Direito Tributário n. 87, p. 32.
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revela. Logo, perfeitamente possível falar em documento eletrônico, bem como na sua utilização como instrumento probatório, desde que tomadas as devidas precauções para assegurar a integridade da informação digital. Atualmente, grande parte dos contribuintes realiza sua escrituração em meio eletrônico, devendo a colheita desses dados pelo Fisco ser efetuada com cautela, dada a sua fragilidade e possibilidade de adulteração em seu conteúdo. É necessário que os elementos constantes de arquivos magnéticos venham a ser reproduzidos em disquetes que serão lacrados e abertos somente na presença do contribuinte ou testemunha, devendo o acesso a esses dados dar-se, também, diante do sujeito passivo ou de seu representante legal. Outra possibilidade, mais objetiva e, por conseguinte, com menor grau de refutabilidade, consiste na utilização de aplicativo de autenticação eletrônica desses arquivos. Não sendo adotado nenhum desses procedimentos, inadmissível a aceitação dos arquivos como provas, pois, como leciona Paulo de Barros Carvalho250, “para que o documento seja eficaz como meio de prova é indispensável que haja sido subscrito pelo autor, além de que, naturalmente, assuma foros de autenticidade”. A utilização de enunciados que tenham o meio magnético como suporte físico exige, portanto, medidas acautelatórias que impeçam qualquer espécie de adulteração, preservando o conteúdo e assegurando sua autoria. Paralelamente a isso, atualmente vivenciamos momento de informatização dos sistemas não só dos contribuintes, como também das Fazendas Públicas. Muitas vezes, para o contribuinte desempenhar determinado direito que lhe é assegurado pela lei tributária, precisa inserir seus dados em um sistema informatizado, para, então, ver processados seus requerimentos ou até mesmo para cumprir deveres perante o Fisco. Surge, assim, uma nova problemática: como proceder nas hipóteses em
250. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 109.
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que o sistema informatizado da administração pública apresente algum erro, impossibilitando o contribuinte de exercer seu direito ou de cumprir um dever? Parece-nos que o uso da ata notarial, prevista no art. 384 do CPC/2015251, pode ser de extrema utilidade. Trata-se, segundo anotam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart252, de prova documental cujo emprego vem crescendo dos últimos tempos, tendo sido utilizada, com frequência, para a prova de fatos ocorridos na internet. A ata notarial está prevista no art. 7°, III, da Lei 8.935/94, configurando-se como instrumento público por meio do qual o notário certifica a ocorrência de um fato por ele presenciado. Desse modo, presta-se para documentar, dentre outras situações, aquelas constantes de sistemas informatizados.
4.4.4 Atos processados em juízo O Código Civil de 1916, ao relacionar os meios de prova, fazia referência a atos processados em juízo. Acertadamente, tal indicação não foi repetida no atual Código Civil brasileiro. É que os atos processados em juízo são transportados ao corpo de outro processo na forma de documentos, não deixando de configurar, portanto, prova documental, como se depreende do seu art. 218: Os translados e as certidões considerar-se-ão instrumentos públicos, se os originais se houverem produzido em juízo como prova de algum ato.
Atos processados em juízo são aqueles praticados no bojo de um processo, como é caso dos termos judiciais, cartas
251. “Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial.” 252. Prova e convicção, p. 429.
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de arrematação, formais de partilha, alvarás, mandados expedidos pelos juízes, além de provas produzidas nos autos. Como tais atos foram realizados em processo findo, ficando documentados nos autos, poderão ser validamente aproveitados em outros processos, por meio de traslados, servindo como prova. Na doutrina processual, a prova produzida em autos diversos é denominada prova emprestada e sua eficácia probante varia de acordo com o modo de sua formação. Prova emprestada, nas palavras de Ada Pellegrini Grinover253, é “aquela que é produzida num processo para nele gerar efeitos, sendo depois transportada documentalmente para outro, visando a gerar efeitos em processo distinto”. Em geral, tais efeitos são admitidos se a prova que se translada foi produzida em outro processo envolvendo as mesmas partes, pois na hipótese contrária, tendo apenas um dos sujeitos participado da produção da prova no primeiro processo, não poderá ela ser empregada em detrimento da outra, que não teve oportunidade de interferir na sua constituição. No que diz respeito à sua valoração, cumpre ao julgador do processo, ao qual o documento transladado foi juntado, apreciá-la no contexto da nova relação processual, servindo essa espécie de prova documental como um dos elementos de convicção. Sua força probatória não é, necessariamente, a mesma que lhe foi atribuída nos autos em que ocorreu sua produção originária, sendo o julgador livre para valorá-la.
4.4.4.1 “Prova emprestada” em matéria tributária A figura da prova emprestada assume, no âmbito tributário, duas acepções: (i) aquela inerente ao direito processual civil, consistente na construção de uma nova prova, idêntica à já produzida em outro processo envolvendo as mesmas partes, como referido no subitem precedente; e (ii) as informações 253. O processo em evolução, p. 62.
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fornecidas por qualquer das Fazendas Públicas, obtidas por meio de procedimentos fiscalizatórios por elas realizados. Considerada a prova emprestada no primeiro sentido, que denominamos prova emprestada processual, esta caracteriza uma prova de forte valor axiológico, produzindo os correspondentes efeitos, sujeitando-se à apreciação do julgador no contexto probatório e atuando como elemento para formação de seu convencimento. A expressão prova emprestada tributária, por seu turno, costuma ser empregada para designar a segunda das acepções supra, nos termos prescritos pelo art. 199, caput, do CTN: A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
Expressa referência à prova emprestada processual aplicada à esfera tributária é observada no Decreto 70.235/72, que regula o processo administrativo tributário federal. Esse Diploma Normativo prescreve, em seu art. 30, §3°, a atribuição de eficácia aos laudos e pareceres técnicos sobre produtos, realizados pelo Laboratório Nacional de Análises, Instituto Nacional de Tecnologia ou órgão federal congênere, exarados em outros processos administrativos e fiscais, transladados mediante certidão de inteiro teor ou cópia fiel, “a) quando tratarem de produtos originários do mesmo fabricante, com igual denominação, marca e especificação; b) quando tratarem de máquinas, aparelhos, equipamentos, veículos e outros produtos complexos de fabricação em série, do mesmo fabricante, com iguais especificações, marca e modelo”. A despeito do silêncio do legislador, que não costuma impor requisitos procedimentais à utilização da prova emprestada, a esta se aplicam as exigências processuais inerentes a essa modalidade probatória, fazendo-se necessário que (i) a prova tenha sido produzida em processo envolvendo as mesmas partes; (ii) na produção da prova, cujo conteúdo se
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pretende transladar, tenham sido observadas as formalidades estabelecidas em lei; e (iii) haja identidade entre o fato probando do primeiro e o do segundo processo254. Quanto ao segundo tipo de prova emprestada, é preciso esclarecer que esta não configura, jamais, prova plena do fato jurídico em sentido estrito. A informação advinda do órgão fazendário de outra pessoa política não é suficiente para, por si só, provar fato jurídico ou ilícito tributário, autorizando a lavratura de ato de lançamento ou de aplicação de penalidade. É inadmissível a edição de norma individual e concreta, constituidora de relação jurídica tributária ou sancionatória, com base, unicamente, em dados passados por ente tributante diverso. Essa é também a posição de Paulo de Barros Carvalho255, negando à prova emprestada tributária os efeitos peculiares à prova emprestada de direito processual civil: “Não se admite, porém, que uma Fazenda Pública se utilize dos dados levantados e a ela informados por outra Fazenda para fins de autuação de contribuintes, como se fosse uma prova emprestada. Haja vista que a informação recebida não possui valor probatório, a Fazenda, baseada em tais dados, deve proceder à fiscalização e instaurar o devido processo administrativo”. Não pode o Fisco Federal, por exemplo, valer-se de auto de infração lavrado pela Fazenda Estadual para imputar omissão de receitas a determinado contribuinte. A partir das informações fornecidas pelo Estado, compete à União proceder a investigações próprias, produzindo provas que permitam concluir pela ocorrência do referido ilícito. A despeito de amplamente utilizada a prática da autuação fiscal com base em prova emprestada tributária, exige-se que esta seja tomada como elemento inicial da produção probatória. Considerada isoladamente, não se presta para fundamentar a prática de ato administrativo de lançamento ou 254. Lutero Xavier Assunção, Processo administrativo tributário federal, p. 118. 255. Curso de direito tributário, p. 536.
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de aplicação de penalidade, conforme se depreende de reiteradas decisões em processos administrativos, a exemplo dos transcritos a seguir: “ IRPJ. OMISSÃO DE RECEITA. PROVA EMPRESTADA. A utilização pura e simples da autuação estadual não deve servir para fins de exigência de crédito tributário relativo ao imposto de renda se não vem complementada por outros exames e averiguações próprias do tributo federal. Recurso provido”256.
“IRPJ. PIS FATURAMENTO. PROVA EMPRESTADA. A prova emprestada do Fisco Estadual, por si, não justifica a exigência na área federal. Não deve ser admitida lavratura de auto de infração com base em prova emprestada pelo Fisco Estadual, quando os elementos carreados aos autos não são suficientes à verificação da ocorrência do fato gerador do imposto de renda e à determinação da matéria tributável. Recurso a que se dá provimento”257.
O Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre o assunto, decidindo pela inaceitabilidade de imposição fiscal fundada exclusivamente em dados fornecidos por ente tributante diverso: “
TRIBUTÁRIO. PROVA EMPRESTADA. FISCO ESTADUAL X FISCO FEDERAL (ARTS. 7º E 199 DO CTN).
1. A capacidade tributária ativa permite declaração quanto às atividades administrativas, com a troca de informações e aproveitamento de atos de fiscalização entre as entidades estatais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). 2. A atribuição cooperativa só se perfaz por lei ou convênio. 3. Prova emprestada do Fisco Estadual pela Receita Federal que se mostra inservível para comprovar omissão de receita. 4. Recurso Especial improvido”258.
256. Conselho de Contribuintes [atual CARF], 7ª Câm., Ac. 107-05.207, Rel. Cons. Francisco de Assis Vaz Guimarães, DOU de 24-11-1998, p. 15669. 257. Conselho de Contribuintes [atual CARF], 5ª Câm., Ac. 105-13.076, Rel. Cons. Rosa Maria de Jesus da Silva Costa de Castro, DOU de 27-3-2000, p. 9. 258. REsp 310.210-MG, 2ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, j. 20-8-2002, DJ de 4-11-2002,
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Por ocasião da relatoria do Recurso Especial supra, a Ministra Eliana Calmon consignou não ser possível que o Fisco Federal, valendo-se de infração lavrada pela Fazenda Estadual, impute omissão de receita à empresa. Segundo seu entendimento, “a partir das informações do Fisco Estadual, poderia haver investigações dirigidas para, com as suas próprias provas, chegar-se à conclusão de que houve omissão de receitas”259. Mesmo com o advento da Emenda Constitucional 42/2003, que acrescentou o inciso XXII ao art. 37 da CRFB/1988, a conclusão não se altera. Referido preceito estabelece que “as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreira específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio”260, conferindo, assim, status constitucional ao intercâmbio de dados tributários, observados os requisitos da previsão em lei ou convênio. Isso, entretanto, não autoriza o uso de tais informações como único fundamento da autuação. A prova emprestada tributária não é bastante para autorizar a constituição do fato jurídico ou do ilícito tributário, bem como dos liames obrigacionais deles decorrentes. Esta se caracteriza como indício fraco, que deve ser confirmado por outros elementos indicativos da ocorrência do fato, p. 179. 259. Apesar dos robustos argumentos apresentados, verifica-se a existência de decisões administrativas em sentido contrário, favoráveis à autuação baseada exclusivamente em prova emprestada: “IRPJ. SUBFATURAMENTO DE NOTAS FISCAIS. PROVA EMPRESTADA. Provado no processo do Fisco Estadual que notas fiscais foram subfaturadas, pode a administração tributária federal aproveitar a comprovação e tributar a base de cálculo correspondente ao imposto de renda pessoa jurídica. Recurso parcialmente provido” [Conselho de Contribuintes – atual CARF, 6ª Câm., Ac. 106-11.875, Rel. Cons. Thaisa Jansen Pereira, DOU de 9-8-2001, p. 40]. 260. Destaques nossos.
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prestando-se, portanto, como ponto de partida para o procedimento fiscalizatório por parte da pessoa política que pretende dela fazer uso. As informações fornecidas por outro ente tributante devem somar-se a outras provas, para, só então, ter-se por provada a ocorrência do fato previsto na hipótese normativa geral e abstrata.
4.5 Depoimento testemunhal O depoimento, tomado em sentido lato, alcança tanto aquele realizado pelas partes [depoimento pessoal] como o de terceiros [testemunho]. Francesco Carnelutti261 fala em testemunha em sentido amplo para aludir à parte e ao terceiro, e em testemunha em sentido estrito para referir ao terceiro, excluindo de sua abrangência a parte processual. A esta última é que se reporta o Código Civil, considerando testemunha a pessoa distinta dos sujeitos processuais que tenha conhecimento do fato controvertido262. Isso não impede, entretanto, a possibilidade de se constituir prova mediante depoimento das partes, tendo em vista que o direito positivo brasileiro admite todos os meios de prova obtidos de forma lícita: (i) se o depoimento da parte é favorável a ela, tem-se prova como argumentação, reforço das provas já levadas aos autos, metaprova [esclarecimento a respeito de outros elementos probatórios por ela apresentados] ou até mesmo contraprova em relação aos dados oferecidos pela parte contrária; (ii) se contraditório o depoimento, pode constituir prova que beneficie o adversário, sendo possível, dependendo do seu conteúdo, caracterizar confissão. Para que um sujeito possa ser testemunha, é preciso ter capacidade civil, pois se supõe que a percepção e apropriado relato dos fatos exigem certo grau de discernimento. Além dos incapazes, não pode ser testemunha as pessoas impedidas e as suspeitas, nos termos no art. 447 do CPC/2015. Caso o julgador 261. A prova civil, p. 181. 262. Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas de direito processual civil, v. 3, p. 395.
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entenda necessário, porém, é admissível que essas pessoas sejam ouvidas (§4° do art. 447 do CPC/2015), mas sem caracterizar testemunho, tendo o efeito de meras declarações e devendo ser cuidadosamente valoradas263. Tais declarações, a nosso ver, não deixam de ser provas, pois, embora seu valor probatório possa ser mais fraco, servem como elemento de convicção, interferindo, ainda que de forma tênue, na avaliação do julgador. A prova testemunhal, como todas as demais, apresenta-se na forma documental. O modo de sua produção, contudo, é variável. Entendido o depoimento como enunciação, pode realizar-se nas diversas modalidades pelas quais ocorre a transmissão de mensagens. A técnica mais comumente empregada é a oral, com posterior redução desta a termo. Mas, tratando-se de testemunho instrumental, tido como requisito indispensável à própria constituição de determinado negócio jurídico, o meio de sua produção é, desde logo, escrito. Axiologicamente, o depoimento testemunhal há de ser examinado no conjunto probatório, verificando se os demais indícios o confirmam ou não. Conquanto um único testemunho, sozinho, tenha valor probatório fraco, serve como elemento de convicção, não devendo ser simplesmente desprezado pelo julgador.
4.5.1 O depoimento testemunhal no âmbito tributário Além da discussão existente em torno da deficiência desse meio probatório, decorrente das falhas a que facilmente estão sujeitas a percepção e a memória humanas, restritíssima é a utilidade prática da oitiva de testemunhas no processo administrativo tributário em virtude de este abranger, na quase totalidade das vezes, questões de ordem técnica ou contábil, solucionadas pela análise de documentos e diligências periciais. Isso não
263. §5º do art. 447 do CPC/2015: “Os depoimentos referidos no § 4º serão prestados independentemente de compromisso, e o juiz lhes atribuirá o valor que possam merecer”.
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significa, contudo, a imprestabilidade da prova testemunhal no âmbito tributário. Quando a defesa do contribuinte fundar-se em atitudes abusivas da fiscalização, por exemplo, recorrer ao depoimento testemunhal será o meio de demonstrá-lo. Conquanto não seja usual sua utilização, a prova testemunhal pode ser de extrema importância para a certificação de determinados acontecimentos, razão por que o administrado, ao solicitar sua produção, deve fazê-lo de forma justificada, e, evidenciada sua necessidade, é imperativo o deferimento. Além de encontrar respaldo no princípio constitucional da ampla defesa, os arts. 16, IV, e 18 do Decreto 70.235/72, ao prescreverem a realização de diligências, a pedido do contribuinte ou determinada de ofício pela autoridade julgadora de primeira instância, servem para fundamentar tal realização probatória. O vocábulo diligência designa a “medida necessária para alcançar um fim, providência, busca minuciosa, pesquisa, averiguação, investigação”264, abrangendo, portanto, não apenas a efetivação de exames periciais, mas todas as iniciativas que possam ser úteis à comprovação de um fato, tais como verificações ou constatações pessoais in loco e depoimentos das partes ou de testemunhas265. Para além disso, vale lembrar que o Código de Processo Civil de 2015 aplica-se subsidiariamente ao processo administrativo tributário266, sendo que este, em seu art. 442, estipula que: A prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso.
Desta feita, tem-se a admissibilidade da produção de prova testemunhal nos processos administrativos tributários, sempre 264. Antônio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1041. 265. Sobre o assunto, assim manifestou-se o Conselho de Contribuintes [atual CARF]: “PROVA TESTEMUNHAL. Embora possa de algum modo ser considerada fraca, mas é prova e pode ser utilizada não só pelo Fisco, mas também pelo contribuinte” [Ac. 103-13.003, Rel. Cons. Sonia Nacinovic, DOU de 12-12-1997, p. 19131]. 266. Art. 15 do CPC/2015: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.”
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que expediente dessa natureza mostrar-se pertinente quanto aos fatos alegados. Em semelhante linha de raciocínio, José Eduardo Soares de Melo267 relata situações fáticas que tornam imprescindíveis provas testemunhais, como, por exemplo: - fiscalização relativa ao ICMS conclui que não ocorreu a circulação de determinada mercadoria, e que apenas houve os registros contábeis de tal circulação com o objetivo de gerar créditos de uma empresa para outra. Nesse caso, o testemunho do transportador que realiza a operação de circulação de mercadorias é uma prova importante porque terá por objetivo demonstrar a ocorrência de um evento social que a fiscalização desconheceu. - a fiscalização se nega a protocolar pedido formulado pelo contribuinte, relativo à remoção de produto importado na zona primária (aeroporto) para a zona secundária (armazém alfandegado), o que pode ser solucionado judicialmente com a declaração de testemunhas que presenciaram a omissão fazendária.
Por isso, tendo o requerimento de oitiva testemunhal sido efetuado tempestivamente, e estando motivado de modo que justifique sua realização, evidenciando sua relevância para a comprovação de fatos alegados, descabido é seu indeferimento.
4.6 Exame pericial A realização de perícia é necessária quando a complexidade da matéria demanda o exame de objetos por pessoas especializadas. Nesse caso, há o que Leonidas Hengenberg268 denomina saber por procuração ou saber de segunda ordem, visto que apoiado em conhecimento alheio: o julgador tem acesso ao fato jurídico em sentido amplo por meio das declarações do perito, entendido como autoridade conhecedora do assunto analisado. 267. Processo Tributário Administrativo e Judicial, p. 180. 268. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade, p. 124.
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Para que se faça o exame pericial, é indispensável a presença dos pressupostos à sua efetivação, qual seja a necessidade de conhecimentos técnicos ou científicos269. Nesse sentido, cabe ao julgador a função de indeferir postulações meramente protelatórias [art. 139, III, do CPC/2015], determinando a concretização daquelas que forem fundamentais à instrução do processo. O estatuto processual impõe, também, o indeferimento do pedido de perícia quando (i) a prova do fato não depender do conhecimento especial de técnico; (ii) for desnecessária em vista de outras provas produzidas; ou (iii) a verificação for impraticável [art. 464 do CPC/2015]. A aplicação de tais dispositivos exige cuidado para que, a pretexto de cumprir referidas prescrições, não seja tolhida a liberdade probatória das partes. Há de entender-se inútil apenas a prova que não diga respeito aos fatos discutidos na lide, enquanto protelatória é aquela referente a fatos já indubitavelmente demonstrados. A impraticabilidade decorre do desaparecimento dos vestígios a serem analisados, sendo inconcebível o indeferimento da realização de perícia com fundamento na mera dificuldade de sua concretização. Por isso, o pedido de exame pericial deve ser sempre motivado, justificando sua necessidade e praticabilidade. O Código Civil de 1916 indicava, como meios de prova, o exame, a vistoria e o arbitramento. No Código Civil vigente, porém, esses termos foram absorvidos pela noção de perícia em sentido amplo, a qual, segundo Moacyr Amaral Santos270, compreende quatro modalidades: (i) exame em sentido estrito: inspeção, por meio de perito, sobre a pessoa ou coisa móvel ou semovente para verificação de fatos que interessem à causa; (ii) vistoria: inspeção, por perito, de coisa imóvel; (iii) arbitramento: exame para determinar o valor da obrigação e de direitos; e (iv) avaliação: destinada a fixar o justo preço de alguma coisa, tal como o valor de mercado de bens móveis e imóveis. 269. Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, v. 2, p. 521. 270. Prova judiciária cível e comercial, v. 1, p. 85.
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Qualquer que seja a espécie de exame pericial, o respectivo laudo tem de ser fundamentado, justificando as conclusões exaradas. Essas conclusões, por sua vez, devem responder aos quesitos formulados pelas partes, inerentes a pontos controvertidos da lide e que exijam conhecimento especial. Nelas cabe ao perito fazer apreciações a respeito dos fatos analisados, sendo inaceitável que este, extrapolando sua função, estabeleça as consequências jurídicas de tais fatos. A missão de determinar a relação de causalidade normativa compete exclusivamente ao julgador, a quem incumbe avaliar os dados veiculados no laudo pericial no contexto em que se encontra inserido, considerando os demais elementos probatórios carreados aos autos.
4.6.1 Perícia em matéria tributária A realização de prova pericial é inteiramente compatível com os processos administrativos tributários, encontrando expressa previsão no Decreto 70.235/72. Nos termos do seu art. 16, IV, quando o contribuinte tiver interesse na realização de exames periciais, deve, além de requerê-los expressamente em sua peça impugnatória, formular os quesitos pertinentes e, na mesma oportunidade, indicar seu assistente técnico, com a respectiva qualificação e endereço. O pedido, portanto, há de ser específico, não bastando efetuar mera referência ao assunto, de maneira genérica: é preciso indicar, de modo pormenorizado, o elemento fático que se pretende ver examinado. Efetuado o requerimento no tempo e forma legais, prescreve o art. 18 daquele diploma normativo que: A autoridade julgadora de primeira instância determinará, de ofício ou a requerimento do impugnante, a realização de diligências ou perícias, quando entendê-las necessárias, indeferindo as que considerar prescindíveis ou impraticáveis [...].
A partir de tal dispositivo, entendem alguns ser discricionário o poder de dispor sobre a realização ou não dessa
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espécie de diligência271. Há autores, como Aurélio Pitanga Seixas Filho272, que chegam a afirmar que o exame pericial não é meio de prova, mas simples “meio de percepção, isto é, uma forma da autoridade aplicadora da lei tomar conhecimento, ou ter uma percepção, da realidade, através do parecer ou laudo, fornecido por um técnico, ou especialista na matéria fática em discussão”, não possuindo o contribuinte direito subjetivo à efetivação de perícia, devendo sujeitar-se ao que for decidido pela autoridade administrativa. Esse é o posicionamento, também, de Lutero Xavier Assunção273, asseverando que: A autoridade preparadora pode indeferir o requerimento de diligências ou perícia, sem cometer cerceamento de defesa, semelhantemente ao juiz no processo civil, que pode indeferir as diligências inúteis ou meramente procrastinatórias [CPC/2015, art. 139, III274] e a perícia desnecessária ou impraticável (CPC/2015, art. 464, §1°)275.
Da própria justificativa exposta por esse autor, contudo, é possível chegar à conclusão diversa: o ato administrativo que defere ou indefere a realização de exame pericial é ato vinculado. Discricionariedade, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello276, consiste na:
271. Diversas são as decisões do Conselho de Contribuintes [atual CARF] que chegam a conclusão semelhante, a exemplo da transcrita a seguir: “PERÍCIA. LIBERDADE DA AUTORIDADE JULGADORA. A autoridade julgadora administrativa é livre em seu consentimento para conceder ou denegar a feitura de prova pericial, desde que bem fundamentada sua decisão” [Ac. 201-70.153, Rel. Cons. Jorge Olmiro Lock Freire, DOU de 6-8-1996, p. 14711]. 272. A prova pericial no processo administrativo tributário. Processo administrativo fiscal, v. 1, p. 14. 273. Processo administrativo tributário federal, p. 96. 274. Art. 139, III, do CPC/2015. 275. Art. 464, §1°, do CPC/2015. 276. Curso de direito administrativo, p. 855.
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margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.
Quando, diversamente, a expedição do ato não se opera dentro de campo susceptível de escolha, uma vez que a legislação predetermina seu teor caso atendidas as especificações por ela fixadas, tem-se o chamado ato administrativo vinculado277. Na situação ora examinada, o conceito de prescindibilidade e impraticabilidade são extremamente vagos, demandando certo grau de subjetividade. Isso não significa, todavia, que o ato decisório seja discricionário, pois toda interpretação, como construção de sentido que é, exige ato de valoração por parte do intérprete. Apenas no âmbito interpretativo, portanto, tem a autoridade julgadora liberdade de atuação: não se caracterizando o exame pericial como prescindível ou impraticável, é imperativo seu deferimento. Nesse sentido é também a disposição do art. 370, parágrafo único, do CPC/20152015, nos termos do qual: O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias [destaquei].
Por esse motivo, é nula a decisão administrativa que indefere pedido de exame pericial sem motivá-lo de forma apropriada, reconhecendo uma das hipóteses previstas na legislação278. 277. Odete Medauar, Direito administrativo moderno, p. 174. 278. “NORMAS PROCESSUAIS. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE. Manifestando-se o autuante após a impugnação, deve ser dada ciência dessa manifestação ao contribuinte, com abertura
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Advém, então, a seguinte pergunta: que é perícia prescindível ou impraticável? Quando uma diligência apresenta-se como inútil ou protelatória? A perícia mostra-se prescindível, inútil ou protelatória quando o fato que se pretende demonstrar com ela é irrelevante, por não interferir no desenvolvimento da relação jurídica. Tem-se caracterizada a prescindibilidade também na hipótese de o fato que se deseja comprovar já estar suficientemente demonstrado, advertindo Hugo de Brito Machado279, porém, para a circunstância de que não se pode considerar prescindível exame pericial destinado a provar fato favorável ao contribuinte em razão de entender a autoridade julgadora pela existência de prova cabal em sentido contrário, prejudicial ao sujeito passivo. Impraticável, por sua vez, é a perícia de impossível realização, quer por terem os vestígios desaparecido, por não existir técnica que permita identificar as peculiaridades fáticas que se pretende averiguar, ou pela ausência de determinação do objeto do exame pericial. A impraticabilidade não se confunde com a mera dificuldade de realização, motivo pelo qual esta não pode ser alegada em virtude de inexistir, nos quadros da Administração, pessoa habilitada para cumprir a tarefa, e, muito menos, em razão da falta de verba para o respectivo custeio. Inocorrendo quaisquer dessas hipóteses, há de ser deferida a realização da perícia ou diligência pleiteada, cujo laudo assume grande relevância para fins de formação do convencimento do julgador. O Código Processual Civil de 2015, de de prazo para sobre ela se manifestar, em atenção aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Da mesma forma, a falta de manifestação expressa e fundamentada do indeferimento de pedido de perícia formulado de acordo com as normas que o regem macula de nulidade a decisão. Processo que se anula a partir da manifestação fiscal posterior à impugnação, inclusive” [Antigo 1º Conselho de Contribuintes – atual CARF, Ac. 101-93294, Rel. Cons. Sandra Maria Faroni, j. 5-12-2000]. 279. O devido processo legal administrativo tributário e o mandado de segurança, in Processo administrativo fiscal, v. 1, p. 84.
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aplicação subsidiária e supletiva aos processos administrativos tributários, estipula que “O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial” (art. 375 do CPC/2015). Com tais dizeres, veda que a autoridade julgadora desconsidere as conclusões postas em laudo pericial, pelo motivo de com elas não concordar. Trata-se de linguagem produzida por profissional especializado e habilitado para tanto, sendo considerada, por isso mesmo, apta para certificar os fatos cuja análise demanda conhecimento específico do perito. Caso o julgador considere que o teor do referido laudo seja insuficiente, inidôneo ou inexato, não lhe cabe suprir tais deficiências, com carecer-lhe do respectivo conhecimento especializado. Há de, nem tais hipóteses, determinar a realização de nova perícia ou diligência, objetivando que se esclareçam as contradições ou obscuridades constantes do primeiro laudo.
4.7 Presunção Os indícios e as presunções são considerados modalidade de prova indireta, em que, a partir de um fato provado, chega-se, ao fato principal, que se deseja demonstrar. Indício, esclarece Maria Rita Ferragut280, “é todo vestígio, indicação, sinal, circunstância e fato conhecido apto a nos levar, por meio do raciocínio indutivo, ao conhecimento de outro fato, não conhecido diretamente”. Quanto à presunção, é definida por Paulo de Barros Carvalho281 como “o resultado lógico, mediante o qual do fato conhecido, cuja existência é certa, infere-se o fato desconhecido ou duvidoso, cuja existência é, simplesmente, provável”. De tais definições depreende-se que indícios e presunções não são espécies distintas de prova, 280. Presunções no direito tributário, p. 50. 281. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 109.
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mas dois elementos necessários à produção do fato jurídico em sentido amplo: indício é um fato (F’), caracterizando prova de um evento (E’), que, conquanto não seja imediatamente referido pela proposição que se pretende comprovar (F”), a ela nos remete por meio de uma operação mental presuntiva. Não existe, portanto, sinonímia perfeita entre indício e presunção. Embora a presença concomitante de ambos seja indispensável, existindo área semântica comum ao indício e à presunção, há diferença entre eles282. Eventual confusão entre as figuras do indício e da presunção decorre, segundo Malatesta283, da indiscriminada aplicação de significados vulgares das palavras aos termos utilizados no âmbito jurídico. Assim, enquanto a linguagem comum confere à presunção um sentido geral e indeterminado, cabe ao cientista destrinçar, das sínteses iniciais e confusas do senso comum, noções analíticas, claras e precisas. Efetuando tal distinção, tomamos o indício como o ponto de partida para fins de se estabelecer uma presunção. Nas palavras de Antonio Dellepiane284, indício é “todo rastro, vestígio, pegada, circunstância e, em geral, todo fato conhecido, ou melhor dito, devidamente comprovado, susceptível de levar-nos, por via de inferência, ao conhecimento de outros fatos desconhecidos”; ou, como prefere Pontes de Miranda285, “o fato ou parte do fato certo, que se liga a outro fato que se tem de provar”.
282. Sobre o assunto, precisos são os esclarecimentos de Paulo de Barros Carvalho [Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/ SP]: “Na verdade, os termos prova, presunção e indício, tirando aspectos secundários próprios, que vão determinar algumas diferenças nos correspondentes campos de significação, têm núcleos semânticos semelhantes. Não se pode conceber prova sem que tenhamos um enunciado factual que presuma a ocorrência de outro. Da mesma forma, o fato prova será sempre um indício do fato provado. Prova, presunção e indício são palavras que se implicam mutuamente no mundo das significações”. 283. A lógica das provas em matéria criminal, p. 192. 284. Nova teoria da prova, p. 77. 285. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 421.
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Disso podemos concluir que toda prova é um fato que faz presumir a ocorrência de um evento. Toda prova aparece como um indício, capaz de acarretar uma presunção. Isso porque, sendo a verdade absoluta algo intangível, visto que não se tem, jamais, acesso ao acontecimento-em-si, a prova carreada aos autos não passa de indício, a partir do qual se realiza operação lógica que leve à conclusão acerca da ocorrência ou inocorrência de determinado fato jurídico em sentido estrito. Nessa sistemática identifica-se a figura da presunção, considerada ora a operação mental, ora o resultado desta286. Adotando esta última concepção, afirma Carnelutti287 ser a presunção “o resultado [do uso] de um argumento que não fornece a plena certeza, senão a inclinação à certeza ou o princípio de certeza de um fato”. No mesmo sentido manifestam-se José Eduardo Soares de Melo288, que define presunção como “o resultado do processo lógico, mediante o qual do fato conhecido, cuja existência é certa, infere-se o fato desconhecido ou duvidoso, cuja existência é provável”, Enrique M. Falcón289, para quem a presunção é a consequência do silogismo, do qual os indícios se apresentam como premissas, e Paulo Celso B. Bonilha290, segundo o qual presunção é “o resultado do raciocínio do julgador, que se guia nos conhecimentos gerais universalmente aceitos e por aquilo que ordinariamente acontece para chegar ao conhecimento do fato probando”. A despeito da renomada corrente doutrinária em sentido contrário, não vemos a presunção como resultado da atividade mental do julgador. Para nós, esta é a própria operação 286. Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 1, p. 582, chama indício à causa ou meio de se chegar a uma presunção, que é o resultado. 287. A prova civil, p. 120. 288. Presunções no direito tributário, in Caderno de pesquisas tributárias, v. 9, p. 336. 289. Tratado de la prueba, v. 1, p. 116. 290. Da prova no processo administrativo tributário, p. 92.
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intelectual que estabelece relação de causalidade entre o fato indiciário e o fato probando291, como manifestado por Pontes de Miranda292: “A presunção não é meio de prova, nem dá motivos de prova. É atividade do intérprete, do juiz, ao examinar as provas”. É o juízo pelo qual, a partir da verificação de sinais, decide-se sobre a ocorrência de um fato293. Nessa esteira, apresenta-se o indício como premissa – fato conhecido e objetivado –, sendo presunção o vínculo implicacional que dele decorre, chegando-se à conclusão, que é o fato presumido. Sobre a natureza dessa operação mental que liga o indício ao fato probando, Santiago López Moreno294 sustenta tratar-se de indução, diversamente da maioria dos doutrinadores, que veem nesse relacionamento uma forma de dedução. Ocorre que na indução parte-se de situações particulares para concluir sobre algo geral: vejo um cisne branco, outro e mais outro, chegando a ponto de construir teoria segundo a qual todos os cisnes seriam brancos. Essa forma de raciocínio apresenta evidente debilidade, uma vez que a particularidade dos fatos, por mais numerosos que sejam, não é apta a justificar a universalidade de uma assertiva: o fato de que eu tenha visto dez mil cisnes brancos não me permite concluir que todos os cisnes sejam brancos295. A dedução, por sua vez, é exatamente o oposto: parte do geral em direção ao particular. Consiste no raciocínio pelo qual, de uma ou mais proposições conhecidas, conclui-se uma proposição desconhecida: das premissas chega-se até as consequências, sendo regida por regras universais de inferência,
291. Aires F. Barreto e Cléber Giardino, Presunções no direito tributário, in Caderno de pesquisas tributárias, v. 9, p. 186. 292. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 424. 293. Luís César Souza de Queiroz, Sujeição passiva tributária, p. 239. 294. Principios fundamentales del procedimiento civil y criminal, v. 2, p. 307. 295. André Comte-Sponville, Diccionario filosófico, p. 138.
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tais como modus ponens e modus tollens296. No modus ponens, tomada uma assertiva condicional (p→q), da afirmação da proposição antecedente “p” infere-se o consequente “q”, de modo que [ (p→q) . p ] → q. Dito de outro modo, se afirmo “se ‘p’, então ‘q’” e também certifico “p”, é de admitir a verdade de “q”297. Em contrapartida, no modus tollens, considerada a assertiva condicional (p→q), a negação do consequente “q” implica a negativa do antecedente “p”: (p→q). (-q)] → (-p). Corresponde a dedução, portanto, à atividade presuntiva de que falamos, operando-se mediante implicação, nos moldes das regras lógicas ora referidas. Entende Antonio Dellepiane298, porém, que não seria rigorosamente exato dizer que a inferência indiciária é sempre uma dedução rigorosa, pois na maior parte dos casos ela constituiria somente uma inferência analógica, consistente em uma dedução apoiada em inferência indutiva prévia299. Ocorre que, como esclarece Mario Bunge300, as chamadas inferências analógicas e indutivas, espécies de inferências abstrativas, não se prestam a coisa alguma, tendo em vista que nenhuma das duas está sujeita a regras estritas. Inexistindo 296. Mario Bunge, Dicionário de filosofia, p. 95. 297. Delia Teresa Echave, Maria Eugenia Urquijo e Ricardo A. Guibourg, Lógica, proposición y norma, p. 104. Ao considerar a regra lógica do modus ponens, importa notar que sua aplicação permite inferir o consequente apenas se aceita, previamente, a correspondente regra inferencial. 298. Nova teoria da prova, p. 80. “Em verdade, na inferência indiciária, a lei que lhe serve de fundamento, que constitui a premissa maior do silogismo correspondente, não é sempre uma lei cientificamente comprovada e de um caráter necessário, senão que uma lei empírica, uma generalização fornecida pela experiência, um princípio de senso comum, cujo caráter é contingente. Que o autor de um crime foge ou se oculta depois de cometê-lo e, reciprocamente, que todo aquele que foge ou se oculta o faz porque cometeu um delito, são verdades gerais e constantes. Daí, entretanto, se deduz uma generalização: aquele que foge ou se oculta é um criminoso; e esta generalização serve de premissa para estabelecer que um determinado sujeito é autor de um delito”. 299. Semelhante é o posicionamento de Liz Colli Cabral Nogueira, para quem as presunções seriam fundadas em induções lógicas [As ficções jurídicas no direito tributário brasileiro, in Direito tributário, p. 252]. 300. Dicionário de filosofia, p. 195.
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uma suposta lógica analógica ou lógica indutiva, apenas ocasionalmente as analogias e induções sugerem generalizações verdadeiras. É a inferência dedutiva, portanto, a forma lógica que oferece os recursos mais apropriados à construção de conclusões a partir dos indícios.
4.7.1 Classificação das presunções A operação lógica que se faz a partir do indício pode assumir a qualidade de (i) presunção simples ou hominis, sendo construída pelo aplicador do direito, segundo sua própria convicção; ou de (ii) presunção legal ou legis, elaborada também pelo ser humano, mas expressamente determinada em lei. Nessa segunda hipótese, o raciocínio dedutivo figura no âmbito pré-legislativo, de modo que, após introduzido no ordenamento, impõe uma relação artificial entre um fato F’, provado, e o fato probando F”. Tal classificação das presunções, em legais e hominis, não se mostra, contudo, a mais apropriada. Em última instância, toda presunção é legal, pois, como anota Maria Rita Ferragut301, “a presunção hominis, muito embora pressuponha uma relação lógica realizada pelo aplicador do direito a partir de regras da experiência, só se torna juridicamente relevante a partir do momento em que for vertida em linguagem competente, vale dizer, quando o aplicador expedir enunciado individual e concreto que contemple essa operação”. Além disso, vista da perspectiva do fundamento de validade, a chamada presunção hominis, assim como a legal, encontra-se prevista em norma jurídica geral e abstrata. O Código Processual Civil de 2015, ao autorizar ao julgador a livre apreciação da prova, com base nela formando seu convencimento, e independentemente de quem a tiver produzido (art. 369 c/c art. 371), está, de certa forma, a prescrever a adoção da presunção hominis. O art. 375 do mesmo diploma legislativo vai além,
301. Presunções no direito tributário, p. 65.
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expressamente permitindo que o juiz aplique as regras da experiência comum. A distinção entre presunção legal e presunção simples não está, propriamente, na existência ou ausência de previsão em norma geral e abstrata, mas no modal deôntico que atinge o vínculo implicacional entre fato provado e fato presumido. A chamada presunção legal, esclarece Antonio Dellepiane302, “não é outra coisa que a determinação legal pela qual se manda haver por estabelecido algum fato sempre que outro fato indicador do primeiro haja sido suficientemente provado”. Provado o fato indiciário, a conclusão acerca do fato presumido é imposta. Está o aplicador da norma obrigado a certificar a ocorrência do fato presumido sempre que o fato presuntivo ficar caracterizado. Já na presunção hominis a relação que se estabelece em decorrência do fato presuntivo apresenta-se deonticamente modalizada pela permissão: provado o fato indiciário, está o aplicador autorizado a concluir [presumir] acerca da ocorrência ou não do fato probando, constituindo o fato jurídico em sentido estrito [fato presumido]. As chamadas presunções legais são subdivididas, por sua vez, em três tipos: (i) absolutas ou jure et de jure, visto que não admitem prova em contrário; (ii) relativas ou juris tantum, podendo ser ilididas pela comprovação de que o fato ocorrido é diverso do presumido; e (iii) mistas ou intermediárias, em que a lei determina que somente alguns específicos meios de prova são capazes de a elas sobrepor-se. Referida subdivisão não escapa a críticas, por confundir realidades jurídicas distintas. A chamada presunção absoluta nada tem de presunção, pois, ao inadmitir prova em contrário, caracteriza-se como verdadeira disposição legal de ordem substantiva que prescreve determinada consequência jurídica em função de específico acontecimento factual, previsto na hipótese. O raciocínio presuntivo está presente apenas na fase pré-jurídica, em que os membros do Poder Legislativo, 302. Nova teoria da prova, p. 132.
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observando o que ordinariamente acontece, criam normas gerais e abstratas, prescrevendo ao aplicador da lei que reconheça, sempre que provada a existência de certo fato, e independentemente da produção de provas em contrário à existência do fato que se quer provar, um outro fato. Nesse ponto, esclarece Maria Rita Ferragut303, reside o problema, que desqualifica a regra como espécie de presunção: “o fato jurídico que deveria ser meramente processual transforma-se em fato jurídico material, deixando a presunção, com isso, de contemplar uma probabilidade para veicular uma verdade jurídica necessária. Isso sem mencionar que, se a ocorrência do fato indiciário implica necessariamente a verdade do fato indiciado, os efeitos jurídicos deste derivam automaticamente da constatação [em linguagem competente] da ocorrência dos indícios, independentemente da verdade empírica do evento descrito no fato implicado”. Tal realidade apresenta-se completamente distinta da presunção, em que, pela produção da prova de um fato se tem como certa, por meio de operação lógica presuntiva, a ocorrência de outro fato. Apenas se a relação entre o fato conhecido e o fato que se deseja provar for de probabilidade teremos a figura da presunção. A denominação presunção mista também não se mostra apropriada, pois inexiste uma categoria lógica que medeie o absoluto e o relativo. Tudo o que não seja absoluto apresenta o caráter da relatividade. A distinção que poderia existir seria apenas quanto ao modo de ilidir o fato presumido: (i) fazendo uso de quaisquer meios de prova; ou (ii) pela produção de provas especificamente indicadas.
4.7.2 Indícios e suas espécies É corrente a distinção entre indício e prova em função do grau de convicção que o fato provado acarrete no julgador: seria prova quando levar à certeza, e indício se dele
303. Presunções no direito tributário, p. 64.
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decorrer mera possibilidade. Só haverá certeza sobre a veracidade ou não de um fato, porém, se sua ocorrência for necessária ou impossível. Em todas as demais hipóteses, estaremos sempre diante de meras probabilidades, cuja força varia conforme o número de indícios favoráveis e contrários, firmando-se, em nome da segurança jurídica, uma certeza no direito. A decisão do julgador é que determinará se ocorreu ou não determinado fato e essa será a verdade jurídica. Por tal razão, conclui Francesco Carnelutti304 que a certeza é também alcançada pelas presunções estabelecidas a partir de indícios: “se com certeza se designa a satisfação do juiz acerca do grau de verossimilitude, não cabe negar que se obtém inclusive com as fontes de presunção, posto que, se não a obtivesse, não poderia jamais considerar provado o juiz um fato por meio de presunções”. Até mesmo porque, como vimos em tópicos antecedentes, toda prova é indiciária, levando ao estabelecimento da verdade por meio de raciocínio presuntivo. O indício em nada difere da prova. Paulo de Barros Carvalho305 já afirmou, entretanto, que o indício é o “motivo para desencadear-se o esforço de prova”, caracterizando “pretexto jurídico que autoriza a pesquisa, na busca de comprovar-se o acontecimento factual”. Tal assertiva deve-se ao fato de que os indícios, do ponto de vista do valor, podem ser de duas espécies: (i) necessários, que revelam, com elevado grau de probabilidade, determinada situação; e (ii) contingentes, que indicam, de forma mais ou menos provável, certo acontecimento. Não obstante ambos caracterizem fatos indiciários, o vocábulo tem sido comumente empregado para designar a segunda espécie: os indícios contingentes, compreendendo signos que levem o destinatário a vislumbrar a possibilidade de um fato.
304. A prova civil, p. 126. 305. A prova no procedimento administrativo tributário, Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 110.
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O grau de credibilidade dessa categoria de indícios, por sua vez, é variável, podendo seu somatório oferecer mais motivos para crer que para não crer, ou apresentar iguais fundamentos para acreditar e desacreditar em dado fato. Nesse concurso de probabilidades, destacam-se: (i) indícios homogêneos, de conteúdos convergentes, todos conduzindo a um mesmo resultado; e (ii) indícios heterogêneos, indicativos de fatos diversos, exigindo do julgador sua apreciação conjunta, pesando todos esses fatores para, com base neles, construir sua convicção. Os indícios necessários e homogêneos, por integrarem um conjunto harmônico, que conduz, de forma unívoca, a determinada conclusão, configuram aquilo que chamamos de indícios veementes, axiologicamente fortes. Já os indícios contingentes e heterogêneos, por comporem um grupo em que há elementos contraditórios entre si, quebrando a univocidade, possuem valor axiológico fraco, sendo denominados indícios insuficientes. Indício é prova. A prova, por sua vez, é indício de um fato. A distinção que se costuma fazer entre ambos decorre da axiologia das provas, considerando-se que o indício teria menor poder de convencimento. A força probatória de qualquer indício, entretanto, deve ser avaliada no caso concreto, de modo que, havendo um único indício necessário [prova no sentido comumente empregado] ou vários indícios contingentes e convergentes, ter-se-á por provado o fato.
4.7.3 Limites ao emprego de presunções em matéria tributária Os princípios constitucionais tributários da estrita legalidade, da tipicidade e da capacidade contributiva exigem que a obrigação de pagar tributo se instale apenas quando verificada a ocorrência do fato previsto na hipótese da norma geral e abstrata, calculando-se a exação com base na medida monetária desse fato. Inconcebível, portanto, considerar que
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um fato tenha acontecido, ainda que as provas demonstrem o contrário. Atitude desse jaez viola os preceitos magnos que orientam o sistema tributário. Vimos que as chamadas presunções legais são costumeiramente classificadas em relativas e absolutas, conforme admitam prova em contrário ou não. As denominadas presunções absolutas, entretanto, não caracterizam presunção, mas disposição legal de ordem substantiva, estabelecendo a existência de fato jurídico sem que se possa provar o contrário. São, por isso, de inadmissível utilização para fins de determinar a ocorrência de fato jurídico tributário e os elementos definidores da correspondente obrigação. O mesmo se pode dizer das ficções, cujo regime jurídico, no âmbito tributário, é idêntico ao das presunções absolutas, destas se distinguindo de forma muito tênue: enquanto na presunção absoluta a relação causal e sua consequência estão previstas na lei, na ficção o enunciado normativo constrói o próprio fato jurídico, independente de relações de causa e efeito, ainda que artificiais, como ocorre na presunção absoluta306. Essas distinções, porém, são de ordem pré-legislativa, de modo que, introduzidas no ordenamento, o tratamento jurídico conferido a ambas é o mesmo. Convém registrar que as presunções, no âmbito tributário, exercem importantes funções, servindo para (i) suprir deficiências probatórias, sendo empregadas nas hipóteses em que o Fisco se vê impossibilitado de provar certos fatos; (ii) garantir eficácia à arrecadação e (iii) preservar a estabilidade social307. O emprego das presunções no direito tributário, segundo Leonardo Sperb de Paola308, está relacionado 306. Para Pontes de Miranda, essas figuras diferenciam-se em razão de que, “Na ficção, tem-se ‘A’, que não é, como se fosse. Na presunção legal absoluta, tem-se ‘A’, que pode não ser, como se fosse, ou ‘A’, que pode ser, como se não fosse” [Tratado de direito privado, t. 3, p. 446]. 307. É o que se objetiva com a presunção de legitimidade dos atos administrativos e presunção de liquidez e certeza da dívida inscrita, por exemplo. 308. Presunções e ficções no direito tributário, p. 98 e s.
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com a criação de mecanismos que dificultem a evasão fiscal e propiciem maior eficiência na arrecadação de tributos. São técnicas que, na visão de Misabel Abreu Machado Derzi309, objetivam “evitar a investigação exaustiva do caso isolado, com o que reduzem os custos na aplicação da lei; dispensar a colheita de provas difíceis ou mesmo impossíveis em cada caso concreto ou aquelas que representam ingerência indevida na esfera privada do cidadão e, com isso, assegurar a satisfação do mandamento normativo”. Contrapostos, todavia, a essas funções, cuja relevância não se discute, existem direitos constitucionalmente assegurados aos contribuintes, como os princípios da legalidade, da tipicidade, da rígida discriminação constitucional das competências impositivas e da capacidade contributiva, exigindo que a adoção de presunções seja realizada de forma compatível com mencionados direitos constitucionais. Por esses motivos, José Artur Lima Gonçalves310 afirma inexistir, no sistema constitucional brasileiro, fundamento para a criação válida de ficções e presunções absolutas em matéria tributária: “Todas – e não menos que todas – as normas jurídicas que pretendam, por meio de ficção, imputar os efeitos de fato imponível a evento fenomênico que não se caracterize como tal ou manipular o conteúdo patrimonial de obrigação tributária, ou alcançar particular não incluído na categoria de contribuinte [entendido este como o destinatário constitucional da carga tributária], deverão, simplesmente, ser descritas como normas inválidas, alheias ao sistema constitucional, incompatíveis com o subsistema constitucional tributário”311.
309. Direito tributário, direito penal e tipo, p. 105. 310. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 158. 311. Esse jurista não vislumbra utilidade, no âmbito do direito tributário, em diferençar ficção e presunção absoluta, por sujeitarem-se, ambas, a igual regime jurídico.
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Semelhante é o posicionamento de Paulo Ayres Barreto , considerando ser inaceitável recorrer a presunções absolutas e ficções para erigir hipótese de incidência tributária, conotar-se o fato jurídico tributário ou a relação obrigacional dele decorrente. Isso significaria, a seu ver, “propugnar a inexistência de uma rígida discriminação de competência – vale dizer, que se pudesse prever a incidência de tributo sobre o fato ‘A’ porque fictamente o legislador atribui a ele a condição de fato ‘B’, sendo a competência para instituir tributos sobre os fatos ‘A’ e ‘B’ de entes políticos distintos. Proceder nessa conformidade é fazer tábula rasa dos princípios da estrita legalidade, da tipicidade da tributação e da capacidade contributiva”. 312
As inapropriadamente chamadas presunções mistas, por sua vez, também não encontram aplicação na esfera tributária, pois, sendo ilididas por apenas alguns meios de prova, legalmente especificados, violam não apenas o princípio da legalidade e da tipicidade tributária, mas, também, o princípio constitucional da ampla defesa. Caso a legislação imponha essa forma presuntiva, ou mesmo a chamada presunção legal absoluta, deve sua aplicação dar-se como se estivesse diante de presunção relativa, permitindo qualquer produção probatória em contrário. Somente as presunções relativas podem ser validamente utilizadas no direito tributário, desde que, evidentemente, sejam compatíveis com os pilares do ordenamento pátrio, possibilitando o exercício da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, o que inclui a produção probatória objetivando desconstituir o fato presumido. É a conclusão a que chegam Misabel Abreu Machado Derzi e Sacha Calmon Navarro Coêlho313: “se a lei adotar, por razões de praticidade ou para prevenir a evasão, presunções, pautas de valores, tabelas de preços etc., haverá de fazê-lo sempre juris tantum, sendo de se admitir a prova contrária, o contraditório”. 312. Imposto sobre a renda e preços de transferência, p. 143. 313. Direito tributário aplicado: estudos e pareceres, p. 351-352.
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Exemplo dessa espécie de presunção pode ser observado no art. 42 da Lei 9.430/96, que dispõe estar caracterizada “omissão de receita ou de rendimentos ou valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações”. Trata-se de presunção relativa, perfeitamente admissível no ordenamento brasileiro. A título ilustrativo, é interessante fazer referência, também, ao art. 60 do Decreto-Lei 1.598/77314, reproduzido no art. 464 do Decreto 3.000/99 [RIR/99]. Referidos diplomas prescrevem presumir-se distribuição disfarçada de lucros nos negócios em que a pessoa jurídica pratica operações em valores notoriamente diversos dos de mercado. Tal presunção é desconstituída por prova em contrário, determinando o §2° do art. 60 do Decreto-Lei 1.598/77 que a “prova de que o negócio foi realizado no interesse da pessoa jurídica e em condições estritamente comutativas, ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros, exclui a presunção de distribuição disfarçada de lucros”. Observa-se, nos dois exemplares normativos acima, a imprescindibilidade de a autoridade administrativa provar o fato que desencadeia a operação presuntiva e viabiliza a instalação da relação jurídica correspondente. A existência de norma presuntiva não dispensa a produção probatória por parte da fiscalização. Assim, para que se possa presumir a omissão de receitas e constituir o fato jurídico tributário “auferir renda”, necessário se faz o preenchimento dos requisitos previstos no art. 42 da Lei9.430/96, do mesmo modo que, para configurar distribuição disfarçada de lucros, a Administração deve provar a incompatibilidade dos valores envolvidos nos negócios jurídicos praticados entre pessoas ligadas. 314. Alterado pelo art. 20, II, do Decreto-Lei 2.065/83.
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Nesse sentido, veja-se o seguinte julgado do antigo Conselho de Contribuintes, atualmente reformulado em Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, em que se reconhece a inviabilidade da atuação fiscal quando o fato que figura na hipótese da norma presuntiva não foi demonstrado por meio da linguagem das provas: “
PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. PROVA INDIRETA. A presunção legal inverte o ônus da prova em favor do Fisco. Não fica, todavia, o Fisco dispensado de provar a ocorrência do fato base que autoriza a presunção. IRPJ. OMISSÃO DE RECEITAS. PASSIVO FICTÍCIO. Não comprovado que o passivo era fictício, afasta-se a presunção de omissão de receitas.
LANÇAMENTOS DECORRENTES. Aplicam-se aos lançamentos decorrentes as razões de decidir e conclusão adotadas no lançamento matriz. Recurso provido”315.
No que diz respeito às presunções hominis, grande discussão se instala acerca de sua admissibilidade na esfera tributária. Luís Eduardo Schoueri316 figura como forte opositor ao emprego dessa modalidade presuntiva, por considerar que, “estando o sistema tributário brasileiro submetido à rigidez do princípio da legalidade, a subsunção dos fatos à hipótese de incidência tributária é mandatória para que se dê o nascimento da obrigação do contribuinte. Admitir que o mero raciocínio de probabilidade por parte do aplicador da lei substitua a prova é conceber a possibilidade – ainda que remota diante da altíssima probabilidade que motivou a ação fiscal – de que se possa exigir um tributo sem que necessariamente tenha ocorrido o fato gerador”. Ocorre que, sendo a presunção homins consistente na dedução realizada pelo julgador, fundada na sua experiência, derivada, segundo Pontes 315. Ac. 101-93730, Rel. Cons. Sandra Maria Faroni, j. 24-1-2002. 316. Presunções simples e indícios no procedimento administrativo fiscal. Processo administrativo fiscal, v. 2, p. 85-86.
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de Miranda317, daquilo que ele sabe sobre as coisas, das suas relações de coexistência, causalidade, duração ou localização, tal operação mental está presente em toda e qualquer avaliação probatória. Como anotamos no item 3.13 do capítulo 3, a prova, como signo que é, nunca atinge o objeto que representa. Apresentada uma prova, necessário se faz que o intérprete realize operação de inferência lógica para, a partir dela, deduzir o fato principal. Feita essa certificação, aliada ao fato de existir previsão normativa que autoriza o julgador a apreciar livremente as provas, verifica-se ser a presunção hominis inerente a todos os domínios do sistema jurídico, incluindo o direito tributário. Isso não significa, entretanto, que a autoridade administrativa esteja habilitada a constituir os fatos jurídicos como e quando bem entenda: a presunção hominis só pode ser empregada para justificar a constituição do fato jurídico tributário em sentido estrito se evidenciado o nexo lógico entre o fato provado (F’) e o probando (F”). É preciso demonstrar que a ocorrência do indício é prova da concretização da hipótese de incidência, de modo que, quando não se consiga estabelecer relação de causalidade entre o indício e o fato presumido, não há que falar em presunção simples. Dois são os requisitos para que, diante de um indício, possa-se presumir a ocorrência do fato jurídico tributário, constituindo-se a obrigação correspondente: (i) o indício deve ser, necessariamente, provado, já que, se não for provado, não será sequer indício; (ii) é imprescindível a existência de conexão entre o indício e o fato relevante para a aplicação da lei tributária. Essa relação de causalidade, por sua vez, deve apresentar os caracteres da gravidade, precisão e concordância, nos termos explicitados por Moacyr Amaral Santos318: graves são as presunções geradoras de probabilidade com eficácia de criar convicção; precisas significa que não se prestam a dúvidas ou contradições 317. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 425. 318. Primeiras linhas de direito processual civil, v. 3, p. 501.
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lógicas; e concordantes consiste na convergência destas, a partir de vários indícios, para o mesmo resultado. Disso decorre que a implicação presuntiva, além de atender aos reclamos da lógica, deve ser convincente, consistindo na única possibilidade plausível. Miguel Reale Júnior319, discorrendo sobre peculiaridades do direito administrativo sancionador, perfeitamente aplicáveis à esfera tributária em virtude dos princípios da estrita legalidade e tipicidade que a orientam, assevera que, “se há um indício insuficiente, é possível instaurar um inquérito, mas, para a condenação, é necessário um indício veemente”. Logo, se a verificação do indício a partir do qual se constrói a conclusão permitir não só a ocorrência do fato alegado, como também outro diverso, indevido seu emprego para fins de constituição do fato jurídico tributário.
4.8 Prova obtida por meio ilícito A caracterização da prova depende dos métodos reconhecidos pelo respectivo sistema. Para ingressar no ordenamento jurídico, um fato qualquer [social, econômico, político etc.] passa por uma espécie de filtro, que seleciona quais propriedades entram e quais ficam de fora daquele conjunto. São as exigências do sistema autopoiético, conferindo, por esse meio, certeza e segurança jurídica. Em nome desses valores superiores, muitos fatos sociais não deixam de caracterizar-se como eventos em relação ao sistema do direito. É o que acontece com as provas constituídas com violação às normas vigentes. Ao estabelecer os critérios de seleção de elementos, o direito positivo brasileiro nega reconhecimento às provas obtidas ilicitamente (art. 5º, LVI, da CRFB/88). A ilicitude não é qualificativo da prova, mas do meio pelo qual esta foi produzida ou do modo de sua utilização. Esse 319. Apud Tercio Sampaio Ferraz Jr., Indício e prova de cartel, Estudos, Documentos, Debates n. 24, p. 48.
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caráter não recai sobre o conteúdo veiculado no documento probatório, mas sobre outro fato, relatado no antecedente da norma geral e concreta que configura o instrumento introdutor da prova. Trata-se de vício na enunciação e, por conseguinte, nas marcas por esta deixada (enunciação-enunciada), devendo ser rejeitada a prova cujo processo de produção tenha desrespeitado determinação legal. A proibição da prova320 obtida ilicitamente implementa o princípio da segurança jurídica, reforçando nossa argumentação no sentido de que a única verdade buscada nos autos processuais, sejam eles judiciais, sejam administrativos, é a verdade lógica. Ademais, conferir efeitos jurídicos a provas produzidas ou utilizadas de modo ilícito implicaria ignorar não apenas prescrições legais ordinárias, mas, principalmente, direitos individuais assegurados pela Constituição. Nesse sentido, pondera Gilmar Ferreira Mendes321 que “a discussão sobre as provas, no campo do direito material, pode receber inúmeros subsídios do direito constitucional, especialmente dos direitos fundamentais. Alguns direitos fundamentais têm repercussão direta sobre a matéria relacionada com a prova dos atos jurídicos, como o direito à honra, à intimidade e à privacidade (CF/88, art. 5º, X), a liberdade do exercício profissional (CF/88, art. 5º, XIII) e seus reflexos sobre o sigilo profissional, a problemática da prova obtida de forma ilícita, como nos casos de interceptação telefônica ilegal (CF/88, art. 5º, XII) ou do exame de DNA dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1º, III), a aplicação do princípio constitucional do contraditório, dentre outros”. É o Texto Magno a medida e o limite seguro para a produção e apreciação probatória, devendo ser afastada a prova colhida com infringência a direito de caráter constitucional.
320. Em termos mais rigorosos, poderíamos dizer que aquilo que é obtido ilicitamente e, por isso, não aceito nos autos, figura na condição de simples protoprova que, em virtude do vício de legalidade, não alcança o status de prova. 321. Da prova dos negócios jurídicos, in O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale, p. 165.
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Cândido Rangel Dinamarco322 critica essa opção radical do constituinte, a qual, segundo seu entendimento, acaba por “exigir que o juiz finja não conhecer de fatos seguramente comprovados, só por causa da origem da prova: a parte, que nem sempre será o sujeito responsável pela ilicitude [mas ainda quando o fosse], suportará invariavelmente essa restrição ao seu direito à prova, ao julgamento segundo a verdade e à tutela jurisdicional a que eventualmente tivesse direito”. Não concordamos com tal posicionamento, pois é o próprio sistema do direito que determina como as realidades jurídicas serão constituídas. E, ao fazê-lo, exige que o relato dos fatos seja realizado de forma específica, com observância à legislação em vigor. Além de veiculada no corpo da Constituição, tal prescrição é repetida no CPC/2015 – art. 369, que indica como meios de provas possíveis todos os que sejam legais e moralmente legítimos. Com tal imperativo, exclui a possibilidade de admitir provas ilicitamente produzidas. Considerando as diversas teorias concernentes ao assunto, Ada Pellegrini Grinover323 também afasta o princípio da admissibilidade da prova realizada com ilicitude quando conjugada à punição do infrator pelo ilícito de direito material cometido. Isto porque, leciona a doutrinadora, “a aceitarmos essa teoria, estaríamos até mesmo incentivando a prática de atos ilícitos pelos agentes públicos, que muito raramente incorrem em punições efetivas”. Pondera, entretanto, que apenas violação a preceito constitucional macularia peremptoriamente a prova, de modo que, em relação à prova elaborada com infringência a lei ordinária, de caráter civil, penal ou administrativo, aplicar-se-ia o critério da proporcionalidade, conjugado ao princípio do male captum bene retentum, punindo-se o responsável pelo ato cometido. Conclusão desse jaez, conquanto possa atrair muitos adeptos, não encontra respaldo em nosso ordenamento. O Texto Magno não dá margem
322. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 50. 323. O processo em sua unidade, p. 178.
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a exceções, sendo a teoria dos frutos da árvore contaminada, adotada pelo Supremo Tribunal Federal, decorrência direta das prescrições constitucionais. Como leciona Marcelo Neves324, “a vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por proposições científicas”, sendo dependente de “processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico”. O ordenamento brasileiro, ao inadmitir a utilização de provas obtidas ilicitamente, impede que os elementos probatórios assim produzidos passem por aquele filtro, adentrando no sistema do direito posto. Eis o sistema jurídico assimilando os fatores do ambiente de acordo com seus próprios critérios.
4.8.1 Vedação, no âmbito tributário, de prova ilicitamente produzida Estando veiculado na Constituição da República, o preceito que proíbe o emprego de provas obtidas por meios ilícitos estende-se por todo o ordenamento, não sendo necessária sua enunciação no âmbito infraconstitucional. Ao vedar o uso de provas ilicitamente produzidas, o constituinte referiu-se ao processo, de modo amplo, abrangendo, dessa forma, não apenas os processos judiciais, mas também os administrativos325. Tratando-se de processo administrativo tributário federal, existe, além da previsão constitucional, enunciado normativo a ele especificamente dirigido. Conquanto o Decreto 70.235/72 nada mencione a respeito do assunto, a Lei 9.784/99, que disciplina o processo administrativo federal, o faz expressamente, dispondo, em seu art. 30: “São inadmissíveis no processo administrativo as provas obtidas por meios ilícitos”.
324. A constitucionalização simbólica, p. 120-121. 325. No art. 5º, LV, do Texto Constitucional, há expressa referência a “processo judicial ou administrativo”, confirmando não ter o constituinte realizado distinções entre ambos, para fins de aplicação dos princípios gerais do processo.
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Essa legislação, é bom esclarecer, tem aplicação subsidiária ao processo administrativo tributário federal, subsidiariedade esta que, segundo Lúcia Valle Figueiredo326, está explícita no art. 69 da Lei de Processo Administrativo Federal, ao dizer, textualmente, que os processos administrativos específicos continuarão a se reger por lei própria, aplicando-se, apenas subsidiariamente, os preceitos daquela lei. A constituição jurídica dos fatos, dentre eles os fatos jurídicos tributários, encontra limites traçados pelo próprio ordenamento. Este não permite que, em nome da pretensão de provar determinados fatos, violem-se quaisquer direitos assegurados. É imperativo, por conseguinte, que as normas infraconstitucionais, ao disciplinarem a produção probatória, rejeitem aquelas modalidades de composição de provas que, de alguma forma, possam comprometer direitos relacionados com a liberdade e individualidade dos sujeitos. Eis, nas palavras de Maria Rita Ferragut327, “a segurança jurídica e o respeito aos direitos individuais, impondo limites ao conhecimento humano juridicamente relevante”, evidenciando a dualidade entre mundo do ser e do dever-ser, entre o sistema social e o jurídico. A regra impeditiva da adoção de medidas comprometedoras de direitos individuais, aplicada ao campo do direito tributário, não inviabiliza a atividade de fiscalização e arrecadação tributária, pois é excepcionada pela existência de prévia autorização do Poder Judiciário. Tendo este avaliado a pertinência da medida, sua proporcionalidade e necessidade para a preservação de interesse público maior, cabível a permissão para que se adote procedimento normalmente repudiado pelo ordenamento. Convém esclarecer, nesta oportunidade, a distinção entre gravação de conversa telefônica e interceptação telefônica. Entende-se não violadora de sigilo e apta a produzir efeitos 326. Processo administrativo. Mesa de debates “E”, Revista de Direito Tributário n. 91, p. 119. 327. Presunções no direito tributário, p. 50.
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a gravação magnética, ou processo equivalente, entre interlocutores determinados, antecedida ou não de aviso328. De modo diverso, a prova adredemente preparada, mediante emprego de escuta telefônica, é considerada ilícita porque retira das partes regulares do ato de comunicação o direito ao sigilo pessoal e, assim sendo, constitui meio ilegal de obtenção de prova. Quanto aos dados extraídos das memórias de computadores, são susceptíveis de utilização como provas apenas quando, tomadas as medidas assecuratórias da inalterabilidade do conteúdo e autenticidade, digam respeito a atividades comerciais e industriais do contribuinte, nos termos do art. 195 do CTN. Não se admite, contudo, o emprego de tais informações quando retiradas de microcomputador pessoal, com violação do domicílio da pessoa física. Com tal atitude não se compadece o ordenamento brasileiro. Tema que merece destaque, quando cuidamos das provas obtidas ilicitamente em matéria tributária, é o do sigilo bancário. Trata-se de direito inerente à inviolabilidade da vida privada e do sigilo de dados, garantidos pelo art. 5º, X e XII, da Carta Magna, que não podem ser ignorados pela fiscalização tributária. Tercio Sampaio Ferraz Júnior329, citando Pontes de Miranda, explica que o bem protegido no direito à privacidade e no sigilo de dados é “a liberdade de negação de comunicação do pensamento. O conteúdo, a faculdade específica atribuída ao sujeito é a faculdade de resistir ao devassamento, isto é, manter o sigilo [da informação materializada na correspondência, na telegrafia, na comunicação de dados, na telefonia]. A distinção é importante. Sigilo não é o bem protegido, não é o objeto do direito fundamental. Diz respeito à faculdade de agir [manter sigilo, resistir ao devassamento], conteúdo estrutural do direito”. Por isso, conclui Celso
328. Aclibes Burgarelli, Tratado das provas cíveis, p. 91. 329. Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora, Revista dos Tribunais: Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n. 1, p. 145.
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Ribeiro Bastos330 que o direito à privacidade, garantido constitucionalmente, abrange o direito de “impedir que terceiros, inclusive o Estado e o Fisco, tenham acesso a informação sobre o que se denominou área de manifestação existencial do ser humano”, na qual se incluem os dados de ordem pessoal, patrimonial e financeira. Uma conta bancária, sustenta Miguel Reale331, caracteriza uma projeção da personalidade do correntista. Todavia, como já anotamos, esse direito não é absoluto, a ponto de obstruir a atividade da Administração, podendo ser relativizado pelo Poder Judiciário, quando este identificar a necessidade de revelação de dados do contribuinte para assegurar que o interesse público se concretize. Verificando o Judiciário a (i) existência de indício de infração fiscal, (ii) pertinência entre a documentação cuja revelação se pede e o objeto investigado e (iii) imprescindibilidade da quebra do sigilo para o bom êxito das investigações, incumbe-lhe conceder autorização para que se operacionalize o acesso aos dados bancários do contribuinte. O que se pretende evitar com a vedação de quebra do sigilo bancário sem autorização judicial é que a Administração faça uso indevido desses meios, transformando a exceção em regra comum. É o que se depreende do seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: “
TRIBUTÁRIO. SIGILO BANCÁRIO. QUEBRA COM BASE EM PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL. IMPOSSIBILIDADE.
1. O sigilo bancário do contribuinte não pode ser quebrado com base em procedimento administrativo-fiscal, por implicar indevida intromissão na privacidade do cidadão, garantia esta expressamente amparada pela Constituição Federal (art. 5º, X, da CF/88). Por isso, cumpre às instituições financeiras manter sigilo acerca de qualquer informação ou documentação pertinente à movimentação ativa e passiva do correntista/contribuinte, bem
330. Comentários à Constituição do Brasil, v. 2, p. 63. 331. 1º Ciclo de Direito Econômico, apud Márcia Regina Ferreira, O sigilo bancário e o fisco, in Processo tributário – administrativo e judicial, p. 147.
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como dos serviços bancários a ele prestados. Observadas tais vedações, cabe-lhes atender às demais solicitações de informações encaminhadas pelo Fisco, desde que decorrentes de procedimento fiscal regularmente instaurado e subscritas por autoridade administrativa competente. Apenas o Poder Judiciário, por um de seus órgãos, pode eximir as instituições financeiras do dever de segredo em relação às matérias arroladas em lei. Interpretação integrada e sistemática dos arts. 38, § 5°, da Lei 4.595/64 e 197, inc. II e §1°, do CTN. Recurso improvido, sem discrepância”332.
Pretendendo alterar a disciplina jurídica dessa matéria, adveio a Lei Complementar 105/2001, autorizando a Administração tributária a proceder à análise dos registros de instituições financeiras, contas de depósitos e aplicações financeiras dos contribuintes mediante a simples existência de processo ou procedimento administrativo fiscal. Tal determinação representa flagrante ofensa à inviolabilidade da vida privada e dos dados particulares, menosprezando que ao Poder Judiciário compete examinar as situações em que, para garantir o cumprimento da lei tributária, sejam necessárias atitudes invasivas da privacidade do contribuinte. É o Judiciário o único órgão do Estado autorizado a sopesar os valores constitucionais da inviolabilidade dos dados e do interesse público, reconhecendo ou não a existência deste no caso concreto, para, momentaneamente, afastar aquelas garantias constitucionais.
332. 1ª T., REsp 37.566-5-RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU de 28-3-1994. No mesmo sentido são as decisões proferidas no AgRg 2001/0029034-5, 1ª T., Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 19-12-2002, p. 336, e no REsp 114.741-DF, 1ª T., Rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJ de 18-12-1998, p. 291, bem como no REsp 114.760DF, 2ª T., Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 23-8-1999, cuja ementa transcrevemos: “Processual Civil. Recurso Especial. Mandado de Segurança. Sigilo Bancário. Quebra. Procedimento administrativo fiscal. Impossibilidade. Acórdão fundado em matéria de índole constitucional. Violação à lei federal não configurada. Prequestionamento Ausente. Precedentes. [..] A Lei Tributária Nacional [art. 197, parág. Único] limita a prestação de informações àqueles dados que não estejam legalmente protegidos pelo sigilo profissional. Esta Eg. Corte vem decidindo no sentido da ilegalidade da quebra do sigilo bancário mediante simples procedimento administrativo fiscal, face à garantia constitucional da inviolabilidade dos direitos individuais, exceto quando houver relevante interesse público e por decisão do Poder Judiciário, guardião dos direitos do cidadão. Recurso não conhecido”.
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Recentemente, porém, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 601.314-SP, cuja repercussão geral foi reconhecida por aquela Corte, decidiu que o art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 não ofende o sigilo ao direito bancário: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. DIREITO AO SIGILO BANCÁRIO. DEVER DE PAGAR IMPOSTOS. REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÃO DA RECEITA FEDERAL ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ART. 6º DA LEI COMPLEMENTAR 105/2001. MECANISMOS FISCALIZATÓRIOS. APURAÇÃO DE CRÉDITOS RELATIVOS A TRIBUTOS DISTINTOS DA CPMF. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DA NORMA TRIBUTÁRIA. LEI 10.174/2001. 1. O litígio constitucional posto se traduz em um confronto entre o direito ao sigilo bancário e o dever de pagar tributos, ambos referidos a um mesmo cidadão e de caráter constituinte no que se refere à comunidade política, à luz da finalidade precípua da tributação de realizar a igualdade em seu duplo compromisso, a autonomia individual e o autogoverno coletivo. 2. Do ponto de vista da autonomia individual, o sigilo bancário é uma das expressões do direito de personalidade que se traduz em ter suas atividades e informações bancárias livres de ingerências ou ofensas, qualificadas como arbitrárias ou ilegais, de quem quer que seja, inclusive do Estado ou da própria instituição financeira. 3. Entende-se que a igualdade é satisfeita no plano do autogoverno coletivo por meio do pagamento de tributos, na medida da capacidade contributiva do contribuinte, por sua vez vinculado a um Estado soberano comprometido com a satisfação das necessidades coletivas de seu Povo. 4. Verifica-se que o Poder Legislativo não desbordou dos parâmetros constitucionais, ao exercer sua relativa liberdade de conformação da ordem jurídica, na medida em que estabeleceu requisitos objetivos para a requisição de informação pela Administração Tributária às instituições financeiras, assim como manteve o sigilo dos dados a respeito das transações financeiras do contribuinte, observando-se um translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal. 5. A alteração na ordem jurídica promovida pela Lei 10.174/2001 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, uma vez que aquela se encerra na atribuição de
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competência administrativa à Secretaria da Receita Federal, o que evidencia o caráter instrumental da norma em questão. Aplica-se, portanto, o artigo 144, §1º, do CTN. 6. Fixação de tese em relação ao item “a” do Tema 225 da sistemática da repercussão geral: “O art. 6º da LC 105/2001 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”. 7. Fixação de tese em relação ao item “b” do Tema 225 da sistemática da repercussão geral: “A Lei 10.174/2001 não atrai a aplicação do princípio da irretroatividade das leis tributárias, tendo em vista o caráter instrumental da norma, nos termos do artigo 144, §1º, do CTN”. 8. Recurso extraordinário a que se nega provimento.”333
A Corte Suprema, além de entender inexistente ofensa ao direito de sigilo bancário [mas apenas transferência deste para a Administração Pública, sendo vedado ao Fisco divulgar os dados assim obtidos], considerou ser meramente procedimental o disposto no art. 6º da LC105/2001, suscetível, portanto, de aplicação retroativa. Ao nosso ver, entretanto, tal retroatividade dista de ser meramente procedimental, afetando direito constitucionalmente assegurado, sobre o qual referiremos em pormenores no item 6.3.1.2.
333. STF, Tribunal Pleno, RE 631.314-SP, Rel. Min. Edson Fachin, j. em 24/02/2016 [destaquei].
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CAPÍTULO 5 MORFOLOGIA DA PROVA
5.1 Noções sobre a morfologia da prova Sendo a prova um fato jurídico, produto de atos de fala, podemos decompô-la em elementos, como abstração visando a facilitar seu estudo aprofundado. Esse procedimento de decomposição, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello334, corresponde à anatomia do objeto examinado, permitindo visualizá-lo em suas peculiaridades. Caracteriza, assim, uma espécie de estudo morfológico, visto que voltado à sua estrutura. No âmbito da linguística, o vocábulo morfologia designa o estudo da constituição das palavras e dos processos pelos quais são elas construídas, a partir de suas partes335. Considerando que a prova é um enunciado linguístico, é possível, utilizando 334. Curso de direito administrativo, p. 357. 335. O estudo de como uma língua emprega suas combinações significativas é tradicionalmente dividido em morfologia e sintaxe. Mas a linha divisória entre ambas, esclarece Carleton T. Hodge, não é muito nítida, por estarem intrinsecamente relacionadas. Procurando distingui-las, esse autor refere-se à morfologia como a descrição das formas significativas e à sintaxe como o encadeamento dos elementos da oração [Morfologia e sintaxe, in Aspectos da linguística moderna, p. 31].
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linguagem de sobrenível, separar seus componentes, com vistas a estudar as peculiaridades de cada um. Esse desdobramento da prova em unidades linguísticas menores, para fins de identificar seus atributos e funções, possibilitando, desse modo, a compreensão dos elementos de linguagem necessários à produção probatória, é o que denominamos morfologia da prova. Observada a composição do fato jurídico denominado prova, identificamos sete elementos: (i) fonte; (ii) objeto; (iii) conteúdo; (iv) forma; (v) função; (vi) finalidade; e (vii) destinatário. O objeto da prova consiste no fato que se pretende provar, representado pela alegação da parte. O conteúdo nada mais é que o fato provado, entendido como enunciado linguístico veiculado, independentemente da apreciação do julgador: é o fato jurídico em sentido amplo. A forma, modo pelo qual se exterioriza a prova, há de apresentar-se sempre escrita ou susceptível de ser vertida em linguagem escrita. Sua função é persuasiva, voltada ao convencimento do julgador, enquanto a finalidade, objetivo último da prova, direciona-se à constituição ou desconstituição do fato jurídico em sentido estrito. Tudo isso, porém, não se opera sem um sujeito que emita enunciados probatórios [fonte] e um destinatário a quem estes se dirijam, com o escopo de convencer336.
5.2 Objeto da prova O vocábulo objeto origina-se do encontro da preposição latina ob com o verbo jacio. Ob significa diante de, defronte, à vista de, enquanto jacio quer dizer lançar, atirar, arremessar, de forma que a junção de ambos, objacio, pode ser traduzida como pôr diante, servindo para designar algo que se coloca
336. Apesar de caracterizarem elementos estruturais sem os quais não se tem prova, deixaremos de discorrer, nesta oportunidade, sobre os sujeitos envolvidos na atividade probatória [fonte e destinatário]. O tema será tratado no capítulo seguinte, dedicado ao aspecto dinâmico da prova.
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defronte uma pessoa ou como alvo de alguma atividade337. Assim, podemos definir a palavra objeto como “tudo que física ou moralmente se apresenta e se oferece aos nossos sentidos ou à nossa alma”338, de modo que a identificação de qual seja o objeto da prova dá-se pela resposta à pergunta: que precisa ser provado? Partindo de tal premissa, e considerando que as alegações das partes constituem o alvo da atividade probatória, são essas alegações o objeto da prova. O objeto da prova é, necessariamente, um fato: o fato aduzido no processo, cuja veracidade se pretende demonstrar. Chamamos a atenção, novamente, para a diferença entre fato e evento. Não são os eventos, enquanto coisas, acontecimentos do mundo fenomênico, que se provam. A prova volta-se para as afirmações relativas a eventos, mesmo porque, diante da impossibilidade de certificação da verdade por correspondência, um enunciado linguístico [prova] só pode referir-se a outro enunciado linguístico [fato alegado]. A prova é sempre da afirmação, nunca do evento. Se não alegado o fato, não há como prová-lo339. Como veremos no capítulo destinado à dinâmica das provas, primeiro se alega o fato, depois se o prova. Por isso, como bem adverte Maria Rita Ferragut340, constituem objeto da prova “os fatos alegados pelas partes, referentes a eventos ocorridos em lapso temporal necessariamente anterior à alegação”. Já reconhecia Francesco Carnelutti341 que o objeto da prova não são os acontecimentos em si, senão as afirmações, as quais,
337. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 58-59. 338. Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, p. 715. 339. Nos termos do art. 17 do Decreto 70.235/72, “Considerar-se-á não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada pelo impugnante”. A respeito dos fatos não impugnados, é descabida a produção probatória. 340. Presunções no direito tributário, p. 48. 341. A prova civil, p. 67-68.
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no entender do autor, não se conhecem, porém se comprovam, enquanto os acontecimentos não se comprovam, senão se conhecem. De modo semelhante, assevera Jaime Guasp342, de longa data, que o objeto da prova é constituído pelo conteúdo das alegações processuais. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Sentís Melendo343, respondendo à tradicional indagação “que se prova?”, pondera: “no es raro y hasta es lo corriente, que se nos diga: se prueban hechos. No, los hechos no se prueban; los hechos existen. Lo que se prueba son afirmaciones que podrán referirse a hechos. La parte – siempre la parte; no el juez – formula afirmaciones; no viene a traerle al juez sus dudas sino su seguridad – real o ficticia – sobre lo que sabe; no viene a pedirle al juez que averigue sino a decirle lo que ella ha averiguado; para que el juez constate, comprove, verifique”. Nos dias de hoje, é crescente o número de doutrinadores que consideram inexistir, no processo, prova dos acontecimentos concretos, mas das afirmações a eles relativas344, aspecto este que, segundo Enrique M. Falcón345 acaba por reconhecer a importância fundamental que os estudos de semiótica têm adquirido na atualidade. Esse posicionamento sobre o que caracterize o objeto da prova decorre da observação daquilo que acontece no trâmite processual. No processo, seja ele judicial ou administrativo, uma das partes articula um fato [enunciado linguístico], cujo reconhecimento desencadeia direitos e obrigações. A parte adversa, ao defender-se, produz nova articulação linguística, solicitando que prevaleça o fato por ela enunciado. Em momento algum o acontecimento concreto é levado ao processo: o que se prova, portanto, são as afirmações relativas aos
342. Derecho procesal civil, p. 333. 343. La prueba – Los grandes temas del derecho probatorio, p. 12. 344. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 58; Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p. 48; João Penido Burnier Júnior, Teoria geral da prova, p. 11-12. 345. Tratado de la prueba, v. 1, p. 106.
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eventos. Sobre o assunto, discorre Paulo de Barros Carvalho346: “O acontecimento concreto, na sua interminável multiplicidade de aspectos [afinal de contas, o real é infinito e irrepetível], não ingressa nos autos. Tão só os enunciados a ele referidos”. O objeto da prova são os fatos, entendidos como proposições formuladas pelas partes [fatos alegados]. O argumento da parte [alegação que se pretende provar] é o fato que figura como linguagem-objeto da prova, que, por seu turno, apresenta-se na qualidade de metalinguagem em relação àquela. Graficamente, podemos assim representar a relação entre a prova e seu objeto:
Firmada a posição de que o objeto da prova diz respeito a fatos, assim entendidos os enunciados protocolares, mais
346. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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especificamente aos fatos alegados, examinemos, a seguir, os tipos de fatos susceptíveis de prova.
5.2.1 Fatos determinados A determinação é característica inerente ao fato, dentre eles, o jurídico. Todo fato, para assumir relevância perante o direito, deve ser delimitado no tempo e no espaço, pois “será válido como unidade prescritiva se os elementos do seu núcleo e os dados de sua posição espaço-temporal subsumirem-se nos critérios material, espacial e temporal do enunciado conotativo a que esteja subordinado, dentro do sistema”347. Sabemos que a realidade social é manifestamente mais rica que a realidade jurídica, sendo impossível cogitar de uma descrição capaz de captar o fato social em seus numerosos predicados348. O fato juridicizado representa apenas uma parcela da realidade, sendo obtido pela realização de um corte metodológico, abstraindo as porções que, por não terem sido eleitas na composição da hipótese normativa, deixam de interferir na aplicação das regras do direito. É o que chamamos de isolamento temático, que reduz as complexidades do fato sem nele interferir ontologicamente. Na precisa lição de Lourival Vilanova349, “o fato se torna fato jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a hipótese”. Por essa razão, a determinação do fato é exigência inerente ao processo de positivação do direito. Imprescindível que o fato que se pretende ver reconhecido juridicamente seja delimitado, possibilitando a verificação de seu quadramento na hipótese normativa. A operação seletiva de elementos está presente em toda prática 347. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 113. 348. O fato social, por sua vez, não abrange toda a complexidade inerente ao evento, de qualificações infinitas e, portanto, inatingíveis linguisticamente. A linguagem não toca, jamais, o mundo da experiência. 349. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 89.
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de atos, incluindo aqueles realizados nos processos jurídicos, quer administrativos ou judiciais, pois, como anota Clarice Von Oertzen de Araujo350, “quando a parte relata determinado fato, seleciona propriedades; quando constrói fatos jurídicos em sentido amplo [cada prova], tem-se operação de seleção de propriedades, elegendo-se aquilo que considera relevante para, mediante nova seleção, constituir o fato jurídico em sentido estrito (antecedente da NIC351), ou seja, o fato alegado na petição, que se pretende provar”. Por isso, os fatos levados à apreciação do julgador hão de ser precisos, não podendo configurar alegações genéricas ou vagas352. Ao contrário, devem corresponder, necessariamente, a fatos concretos, determinando ou especificando circunstâncias importantes para a causa. Todo fato, ainda que social, exige determinação. Pretendendo-se relatar um acontecimento qualquer, torna-se imperativo da enunciação a fixação de pontos iniciais e finais, bem como a realização de cortes, mediante os quais se opta por deixar de mencionar diversos elementos da trama. Assim é que, para anunciar um abalroamento de veículos, por exemplo, a testemunha costuma apontar, inicialmente, o local onde se encontrava, passando a descrever a situação irregular que presenciou, sem adentrar em minúcias outras, tais como de onde vinha, que tinha feito antes, para onde ia, que pretendia fazer, que roupa trajava, que havia comido etc. Na esfera tributária, a determinação deve ser tal que possibilite identificar o fato conotativamente previsto na hipótese normativa tributária, em seus aspectos material, espacial e temporal, sem necessidade de indicação de outros elementos envolvidos na sua 350. Semiótica do direito, p. 43. 351. NIC é a sigla empregada para designar a norma individual e concreta. 352. Leciona Paulo de Barros Carvalho que as alegações genéricas não são, rigorosamente, fatos. Por isso, esclarece o autor, as previsões gerais e abstratas requerem processo de positivação para gerar fatos jurídicos específicos, no antecedente de normas individuais e concretas [Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP].
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realização. Não interessa se estava chovendo no momento em que se efetivou a operação de circulação de mercadorias, se o vendedor e comprador estavam felizes, o que haviam comido, sobre o que conversaram. Para a enunciação factual exige-se a realização de um isolamento temático, selecionando-se aspectos do mundo da experiência. Para que esse fato ingresse no universo jurídico, nova seleção há de ser feita, apontando os elementos determinados no tempo e no espaço que possam interferir no relacionamento intersubjetivo das partes. Apenas o fato assim relatado é susceptível de prova.
5.2.1.1 Limites ontológicos da possibilidade O problema consistente em determinar a existência de um fato supõe uma averiguação prévia: o da possibilidade ou impossibilidade dessa existência. Assim como o fato descrito na hipótese normativa deve respeitar o limite ontológico da possibilidade, abrangendo acontecimentos pertencentes ao campo do possível, também o fato jurídico concretizado, para demandar produção probatória, há de encontrar-se dentro de tais limites. A todo fato corresponde um coeficiente de probabilidade de existência, cujo valor oscila entre zero e o infinito. Os fatos de ocorrência impossível assumem o coeficiente de probabilidade zero, enquanto aos de concretização necessária corresponde o valor infinito, de modo que a certificação dessas espécies de enunciados não exige produção probatória. Ambos implicam o mais elevado grau de credibilidade: a certeza. Certeza de inocorrência no primeiro caso; certeza da ocorrência no segundo. A conclusão supra é justificada por Antonio Dellepiane353 mediante a aplicação de uma fórmula matemática, em que a
353. Nova teoria da prova, p. 59.
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crença sobre a existência de um fato aparece como função de duas variáveis, representadas pelo coeficiente de possibilidade de existência e pelo valor da prova: C = E . P354 Desse modo, quando o fato é de impossível concretização, o valor de “E” é igual a zero, razão pela qual, qualquer que seja o valor de “P”, o resultado da operação será zero. Por outro lado, sendo necessária a existência do fato, “E” corresponde ao infinito, o que, multiplicado por qualquer valor, resultará, igualmente, na infinitude. Apenas quando houver possibilidade de existência ou inexistência do fato, o coeficiente de probabilidade equivale a 1, em nada interferindo na credibilidade da afirmação, ficando esta na dependência da força ou peso da prova. É claro que a possibilidade ou impossibilidade de determinado fato não escapa às interferências da relatividade, ficando na dependência dos sujeitos, lugares e épocas em que se dá a enunciação. As evoluções tecnológicas e científicas transformam o impossível em algo possível, de forma que, a despeito de lhe corresponder o coeficiente de existência zero, nada impede que se demonstre o contrário. Por isso, como anotamos no início deste subitem, trata-se de verificação a ser realizada previamente: tido um fato por impossível, é preciso comprovar sua possibilidade para, em sequência lógica, certificar sua ocorrência.
5.2.2 Fatos relevantes A relevância está intrinsecamente relacionada com a determinação. Segundo João Batista Lopes355, nem todos os fatos
354. Na referida fórmula, a crença é representada por “C”, “E” é o coeficiente de probabilidade de existência, “P” corresponde ao valor da prova e “.” figura como sinal multiplicador. 355. A prova no direito processual civil, p. 32.
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precisam ser provados, mas só aqueles relevantes, que influenciem o julgamento da lide. A definição do que seja fato relevante, porém, é questão de cunho axiológico, exigindo um corte metodológico mediante o qual se seleciona o que levar aos autos e, dentre os acontecimentos relatados, faz-se novo recorte, escolhendo os enunciados factuais cujo reconhecimento jurídico desencadeia o nascimento de direitos e obrigações. Tomamos fato como enunciado linguístico. Como tal, é construído pelo ser humano. A natureza e relatividade contextual dos enunciados fáticos exigem uma análise detida, que só se pode fazer a partir da premissa de que um enunciado nunca é dado por si mesmo em condição alguma, senão que é formulado por alguém, em uma situação concreta e, geralmente, com uma finalidade específica. Essa construção fática é sempre seletiva, pois, ao enunciar, o sujeito que o formula realiza uma série de eleições mediante as quais despreza o que não interessa incluir no enunciado, tendo em vista o fim que pretende dar ao produto de sua enunciação. Desse modo, expressa apenas aquilo que considera relevante. Michele Taruffo356, ao discorrer sobre o assunto, assevera que no contexto processual entram em jogo dois critérios de relevância que atuam como base para a seleção descritiva do fato que se enuncia: (i) relevância jurídica; e (ii) relevância lógica. Enquanto a relevância jurídica decorreria da qualificação do fato segundo a norma que se lhe aplique para efeitos de decisão [a que possibilita a subsunção], a relevância lógica seria identificada em fatos que, conquanto não sejam juridicamente qualificados por norma alguma, podem integrar o processo em virtude de, por meio de seu conhecimento, ser possível elaborar conclusões a respeito da verdade ou falsidade de outro fato, juridicamente qualificado. Nesse sentido, os indícios seriam fatos sem relevância jurídica, mas abrangidos pela relevância lógica.
356. Algunas consideraciones sobre la relación entre prueba y verdad. Discusiones n. 3, p. 19.
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Tal distinção, contudo, mostra-se inapropriada, tendo em vista que a relevância há de ser sempre jurídica e lógica, simultaneamente. O que Michele Taruffo chama de relevância lógica não deixa de ser jurídica, uma vez que os indícios só são admitidos quando o próprio direito assim prescreve. Por outro lado, a relevância jurídica apresenta, necessariamente, o caráter da logicidade, pois o ato de aplicação da norma exige as operações lógicas de subsunção e de implicação. Víctor de Santo357, examinando a influência dos fatos na decisão do conflito, classifica-os em imediatamente relevantes, cuja prova é indispensável para o acolhimento ou rejeição da pretensão, e mediatamente relevantes, como é o caso dos indícios, que servem para demonstrar a existência ou inexistência de outros fatos, imediatamente relevantes. A nosso ver, porém, o fato apresenta o caráter da relevância ou não o apresenta, inexistindo terceira possibilidade. Além disso, tomamos o vocábulo indício para designar tudo o que indique, com probabilidade, a existência de algo. Logo, é prova, e não fato a provar. A relevância de um fato, no contexto processual, é determinada em função das consequências jurídicas que lhe podem ser atribuídas, motivo pelo qual, estando os fatos relacionados, de alguma forma, com a situação conflituosa, são eles relevantes, fazendo-se necessária a produção das provas correspondentes. São objeto de prova, portanto, os fatos dos quais se irradiam, no dizer de Pontes de Miranda358, a ação, a pretensão ou a exceção, no campo processual. Estão representados, na esfera tributária, pelo fato descrito no ato de lançamento e pelas alegações do contribuinte, quer por ocasião da emissão de norma individual e concreta, quer na impugnação ao lançamento tributário. Daí por que o Decreto 70.235/72 relaciona a descrição do fato como um dos requisitos do auto de infração (art. 10, III), prescrevendo também que, na impugnação à 357. La prueba judicial: teoría y práctica, p. 41-42. 358. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 372.
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exigência tributária, constem os pontos em relação aos quais o sujeito passivo discorda (art. 16, III).
5.2.2.1 Fato pertinente e concludente A pertinência, não obstante às vezes indicada como predicado indispensável aos fatos para que estes sejam susceptíveis de prova359, configura aspecto inerente à relevância, não merecendo tratamento autônomo. A relevância do fato é caracterizada por haver correspondência entre este e a situação enfocada no processo, bem como por seu reconhecimento desencadear efeitos jurídicos peculiares. A pertinência, por sua, vez, diz respeito ao primeiro dos citados requisitos do fato relevante, qual seja o relacionamento entre o fato e a lide instalada. O mesmo se pode dizer da concludência, entendida como a qualidade de conduzir o julgador à conclusão acerca dos fatos discutidos no processo. Fato concludente, nessa concepção, não significa o enunciado que, por si só, seja suficiente para formar a convicção do julgador, mas todo fato que, ao lado de outros, possa servir como argumento para a procedência ou improcedência da demanda360, em nada se distinguindo do chamado fato pertinente. Considerado fato inconcludente aquele que leva ao convencimento da ocorrência ou inocorrência de situações não envolvidas na discussão processual [fato impertinente], sua prova seria totalmente inócua. Nesse ponto, nota-se o intrínseco relacionamento entre os requisitos do fato susceptível de ser objeto de prova e a função que a prova assume no sistema jurídico: sendo destinada ao convencimento do julgador, só 359. Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 1; João Batista Lopes, A prova no direito processual civil, p. 32-33; Enrique M. Falcón, Tratado de la prueba, v. 1, p. 88. 360. Francisco Augusto das Neves e Castro, Teoria das provas e suas aplicações aos atos civis, p. 75.
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tem cabimento a realização de enunciação probatória relativa a fatos que possam levar a essa persuasão.
5.2.3 Fatos controversos Alguns fatos, por deixarem de ser afirmados por qualquer das partes, não ingressam no sistema jurídico. Outros, conquanto relatados por um dos sujeitos da lide, não conflitam com as argumentações da parte adversa, por serem expressamente admitidos ou por mera ausência de impugnação. Após tal certificação, Francesco Carnelutti361 conclui existir um setor de fatos que, por serem referidos tão somente por uma das partes, sem que os adversários os confirmem, são denominados fatos controvertidos, sendo estes, em regra, constituidores da matéria de prova. Seguindo essa linha de raciocínio, o Código Processual Civil brasileiro dispõe, em seu art. 374, II e III, não dependerem de prova os fatos “afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária” e “admitidos no processo como incontroversos”. Seriam essas as duas situações em que, dada a inexistência de controvérsia acerca da veracidade de determinados fatos, haveria dispensa da produção probatória. Convém esclarecer, de início, que o legislador, ao relacionar o fato confessado dentre aqueles que independem de prova, incorreu em petição de princípio362, visto que a confissão, consistente na admissão de fatos desfavoráveis ao confitente, configura meio de prova. É em decorrência dela que se tem o reconhecimento do fato, fazendo com que este deixe de ser controvertido. Esse o motivo pelo qual, a nosso ver, fato confessado é fato provado, não tendo sentido falar em dispensa de prova. 361. A prova civil, p. 42. 362. Falácia lógica consistente em demonstrar um enunciado por outro, quando o segundo, ele próprio, depende do primeiro. Caracteriza-se pela pressuposição, em um argumento, daquilo que se pretende demonstrar em sua conclusão.
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A incontrovérsia pode derivar, também, da ausência de impugnação do fato alegado pela parte contrária. Nas palavras de João Penido Burnier Júnior363 “fato incontroverso é o fato relevante que, alegado por uma das partes, não foi impugnado pela outra, pelo que, em regra, é presumido pela lei como verdadeiro”. Conquanto em algumas situações o direito positivo, a exemplo do art. 344 do estatuto processual em vigor, estabeleça semelhante implicação presuntiva, a controvérsia não é qualidade indispensável ao fato para que este configure objeto de prova. Muitas vezes, a lei exige prova do fato alegado, ainda que em relação à assertiva de uma das partes não se verifique discordância alguma. É o que acontece, dentre outras, nas hipóteses do art. 345 e dos incisos I a III do art. 341 do CPC/2015, além dos fatos necessários para a verificação do preenchimento das condições da ação, imprescindíveis ao processamento da demanda. O mesmo se verifica nos processos administrativos tributários, em que, por exemplo, o impugnante deve comprovar que o sujeito que subscreve a peça impugnatória figura como seu representante legal, estando habilitado para tanto. Nota-se, assim, que, para um fato ser objeto de prova ele não precisar apresentar-se, necessariamente, controverso.
5.2.4 Fatos notórios Escritores nacionais contemporâneos de grande envergadura, como Cândido Rangel Dinamarco364, Vicente Greco Filho365 e Humberto Theodoro Júnior366, defendem o princípio da desnecessidade de prova dos fatos notórios, sendo essa, inclusive, a determinação constante do art. 374, I, do CPC/2015.
363. Teoria geral da prova, p. 26-27. 364. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 63. 365. Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 183. 366. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 413.
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Esse posicionamento advém de longa data, fundando-se em lições de estudiosos como Giuseppe Chiovenda367, segundo o qual são objeto da prova os “fatos que não sejam reconhecidos nem notórios, porquanto os fatos que não se possam negar sine tergiversatione dispensam prova”. Alguns juristas, porém, têm manifestado oposição a ele. Manoel Almeida e Sousa Lobão368 ponderava não bastar dizer ser um fato evidente ou notório para se dispensar a prova, uma vez que a própria notoriedade é fato que precisa ser provado. Essa era a orientação, também, de João Monteiro369: “Costumam os escritores ensinar que só os fatos duvidosos devem ser provados, não assim o que é evidente e notório. Entretanto nos parece que tal conceito, assim genericamente enunciado, não é de receber sem crítica ou distinções. Por mais notório que apareça o fato, seja este permanente ou transitório, precisa de ser provado na causa, isto é, não podendo o juiz julgar só pela notoriedade do fato, pois, se o pudesse, seria também testemunha; preciso é que testemunhas deponham afirmando a notoriedade. Aquela lição só procede se o fato for de notoriedade histórica tão geral, que absolutamente ninguém possa ignorá-lo”. Escritores como Jeremías Bentham370 e Carlos Lessona371 também se insurgiram contra a fórmula notoria non egent probatione, concluindo este último que o notório, por si só, não faz prova, nem deve deixar de ser provado um fato só por ser ele notório, pois a notoriedade não implica veracidade do fato. Além de tais argumentos, que consideramos integralmente procedentes, a notoriedade, como a quase-totalidade dos conceitos, é relativa, condicionada por variantes de espaço e de tempo. Daí a definição de fato notório como aquele cuja existência é conhecida pela generalidade dos cidadãos 367. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 94. 368. Segundas linhas sobre processo civil, v. 1, p. 418. 369. Teoria do processo civil e comercial, p. 126. 370. Tratado de las pruebas judiciales, p. 76. 371. Teoría general de la prueba en derecho civil, v. 1, p. 175.
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de cultura média, no tempo e lugar em que a afirmativa é enunciada. Nesse sentido, assevera Calamandrei372 que não é o conhecimento real e efetivo que gera notoriedade, mas a normalidade desse conhecimento por parte do homem médio pertencente a determinado círculo social e dotado de certo grau de cultura. Pondera esse jurista que a passagem de um cometa invisível a olhos nus, conhecida por poucas dezenas de astrônomos, não é menos notória que a data da cessação da guerra ítalo-austríaca, que é conhecida por milhões de italianos373. Tal ordem de considerações confirma nossa conclusão no sentido de que também os fatos notórios devem ser provados: apenas o modo de atestar sua veracidade é mais simples, podendo dar-se mediante mera apresentação do documento que o relata, apto a torná-lo conhecido por toda a sociedade ou seguimento desta. Outra situação, trazida por Moacyr Amaral Santos374 ao discorrer sobre a desnecessidade de prova de fato notório, acaba por contradizer sua premissa: “O juiz pode ignorar a época em que se faz a colheita de café, no Estado de São Paulo, mas nem por isso essa época deixa de ser notória, bastando-lhe, para conhecê-la, consultar qualquer calendário especializado ou qualquer agricultor ou comerciante de café”. Tal se dá em virtude de que, como esclarece Paulo de Barros Carvalho375, “o qualificativo notório deve ser justificado, ainda que a prova seja singela. Não nos esqueçamos de que a mera referência a ele já é manifestação probatória, pela sua força retórica”. A notoriedade impõe prova para seu reconhecimento, o que implica prova do próprio fato. Os fatos notórios são aqueles incorporados à cultura de um grupo social, cuja verificação é facilmente realizável pelos meios com que conta dito grupo.
372. Estudios sobre el proceso civil, p. 200. 373. Per la definizione del fatto notorio, Rivista di Diritto Processuale Civile, v. 1, p. 269. 374. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 181. 375. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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Isso evidencia a necessidade de verificação do fato para que ele seja considerado notório e, portanto, provado, ainda que o processo de sua verificação seja sumário.
5.2.5 Fatos negativos Costuma-se sustentar que não se provam fatos negativos376. Tal assertiva, contudo, não tem razões de ser. Não é porque um fato seja apresentado sob a forma de enunciado linguístico negativo que a frase deixe de afirmar alguma coisa. Uma proposição negativa implica, necessariamente, proposição positiva contrária. Se asseguro que “Fulano” não estava em São Paulo em determinado dia, isso significa que ele se encontrava em outro local. Por isso, conclui Moacyr Amaral Santos377: “se nas negações há sempre, ou quase sempre, afirmações correspondentes, e vice-versa, dizer-se que o fundamento do princípio negativa non sunt probanda está na circunstância de ser impossível a prova das negativas é o mesmo que se afirmar, igualmente, ser impossível a prova das afirmativas. Basta essa observação para abalar o princípio emanado daquele brocardo”. Relativizando a posição segundo a qual os fatos negativos não seriam objeto de prova, pondera João Batista Lopes378 que apenas as negativas absolutas [ex.: jamais estive em tal lugar] seriam de impossível produção probatória, ao passo que aquelas delimitadas no tempo e no espaço [ex.: não estive em tal lugar no dia X, às Y horas] sujeitar-se-iam à comprovação. No primeiro caso, a impossibilidade da prova não advém do caráter negativo da alegação, mas da sua propriedade indefinida, indeterminada. Para distinguir essas duas possibilidades de
376. É possível a existência de fatos negativos, pois fatos são enunciados linguísticos, e os enunciados podem ser afirmativos ou negativos. O que não se pode conceber é um evento negativo, visto que, sendo o evento um acontecimento, é, necessariamente, algo positivo. 377. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 189. 378. A prova no direito processual civil, p. 34.
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negações, Devis Echandía379 refere-se à existência de (i) negações substanciais absolutas, que não se baseiam na verificação de fato algum, não implicando, por conseguinte, nenhuma afirmação oposta, e de (ii) negações formais ou aparentes, as quais, na realidade, são afirmações negativas. Feita a distinção, conclui o autor que as únicas e verdadeiras negações seriam as substanciais ou absolutas, tendo em vista que as negações formais, qualquer que seja sua modalidade, não passam de afirmações formuladas negativamente, sendo susceptíveis de prova mediante a demonstração do fato positivo contrário. Ocorre que o sistema jurídico não acolhe afirmações indefinidas. Um fato sem delimitações de tempo e de espaço está impedido de alcançar o status de fato jurídico, tendo em vista que as hipóteses normativas exigem, na sua composição, a presença dos critérios temporal e espacial. Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho380, as negativas absolutas não são, sequer, fatos. Por via de consequência, o enunciado relevante para o desencadeamento dos correspondentes efeitos de direito apresenta-se, impreterivelmente, orientado por coordenadas espaço-temporais. Isso faz com que o fato negativo, no direito, seja sempre passível de prova. Uma das possibilidades consiste na demonstração do fato positivo contrário. Assim, tendo o contribuinte sido autuado em razão de distribuição disfarçada de lucros, trazendo o Fisco elementos comprobatórios de alienação de bem do ativo fixo a pessoa ligada, por valor notoriamente inferior ao de mercado, incumbe ao sujeito passivo constituir prova em contrário, demonstrando que o valor da venda não é inferior ao de mercado. A prova dessa negativa faz-se mediante demonstração de que o negócio jurídico realizou-se em valores comumente praticáveis. Em outros casos, a prova do fato negativo decorre da ausência de prova do fato positivo apto a ilidir a negação. Desse modo é que, procedendo a fiscalização à colheita de dados eletrônicos, retirados dos microcomputadores 379. Teoría general de la prueba judicial, p. 210 e s. 380. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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da empresa, e alegando o contribuinte que não foram tomadas providências visando a assegurar a inalterabilidade do conteúdo dos arquivos, tem-se por provada sua argumentação caso o ente tributante não comprove a adoção de tais medidas. Sem a prova dos procedimentos de segurança, tem-se por provada a não-realização destes. Nessa hipótese, o caminho dedutivo é mais complexo, porém não deixa de configurar prova do fato negativo.
5.2.6 A prova nas hipóteses de presunção O art. 374, IV, do CPC/2015 relaciona, dentre os fatos que não dependeriam de prova, aqueles “em cujo favor milite presunção legal de existência ou de veracidade”. Os fatos presumidos não precisariam de produção probatória confirmadora por serem considerados verdadeiros em decorrência de presunções legais ou hominis. Em razão, disso, pontua Vicente Greco Filho381 que, “se a lei dá como verdadeiro determinado fato, está a parte dispensada de prová-lo, em sendo a presunção absoluta. Em sendo a presunção relativa, a parte em favor de quem milita a presunção não precisa prová-lo, incumbindo à parte contrária o ônus de produzir, se for o caso, a prova contrária”. Considerando, porém, que a presunção não passa de operação mental, que toma como ponto de partida um fato para, por meio de inferência lógico-dedutiva, construir-se o fato presumido, a conclusão a que chegamos é bem diversa. Nas presunções, a presença da prova é imperativa, pois não há como desenvolver o raciocínio presuntivo sem que esteja demonstrada a ocorrência do fato que autoriza a presunção [indício]. Nas hipóteses de presunção, qualquer que seja sua modalidade, a prova é indispensável. Como esclarece Maria Rita
381. Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 183.
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Ferragut382, “quem alega a ocorrência do fato indiciado deve provar a ocorrência dos indícios, fatos diretamente conhecidos, e aquele contra quem a presunção aproveita deve provar, alternativa ou conjuntamente, a inocorrência dos indícios, do fato indiciado, a existência de diversos indícios em contrário ou, ainda, questionar a razoabilidade da relação jurídica de implicação”. Logo, não há que falar em inversão do ônus da prova, e, muito menos, em dispensa de produção probatória, como demonstrado no subitem 4.7.3 do capítulo 4.
5.2.7 Prova do direito Em todo processo tem-se alegação de fatos e referência a normas jurídicas cuja aplicação se pleiteia, cabendo ao julgador interpretá-los, fazendo o quadramento do fato à norma. Nessa atividade, dois são os âmbitos de análise necessários à solução da lide: a norma jurídica [questão de direito] e o fato jurídico [questão de fato]. No que diz respeito ao exame da norma jurídica, de sua existência e compatibilidade com o ordenamento, o julgador não depende das afirmações e das provas apresentadas pelas partes, tendo em vista que as conhece – ou as deve conhecer – por si mesmo [iura novit curia]. É indiferente que o conhecimento do direito seja obtido mediante elementos provindos das partes ou proporcionados pela cultura ou investigação pessoal daquele que julga. Esse é o motivo pelo qual, via de regra, o direito não precisa ser provado. Excepcionalmente, contudo, caso uma das partes fundamente-se em norma de direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, é lícito ao juiz requerer a produção probatória do correspondente teor e vigência (art. 376 do CPC/2015). Semelhante é o caminho perfilhado pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, em seu art. 14, estabelece: “não conhecendo a lei estrangeira, poderá o
382. Presunções no direito tributário, p. 71-72.
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juiz exigir de quem a invoca prova do texto e da vigência”. Especificamente no âmbito administrativo tributário federal, a regra é repetida pelo art. 16, §3°, do Decreto 70.235/72, nos termos do qual é permitido ao julgador determinar que o impugnante faça prova do teor e vigência do direito municipal, estadual ou estrangeiro por ele alegado. A prova da existência e teor da lei pode dar-se por qualquer documento que mereça fé, como aqueles exarados por órgão oficial, constantes de coleções de leis, certidão passada pela repartição competente etc. Já a vigência da lei depende de interpretação, podendo ser comprovada por manifestação do departamento responsável, pareceres de juristas, julgados monocráticos ou de tribunais, dentre outros. Tratando-se de prova de direito estrangeiro, há de ser acompanhada de sua tradução, realizada nos termos da lei, e, quanto ao direito consuetudinário, sua comprovação é feita comumente por meio de depoimentos testemunhais ou mediante a apresentação de precedentes jurisprudenciais. Obviamente, em qualquer dessas situações, sempre caberá contraprova, objetivando a demonstração do teor e vigência de regra de direito diversa, competindo ao julgador apreciar e valorar cada uma das provas levadas ao seu conhecimento. Não obstante a situação probatória ora referida receba a denominação prova do direito, a prova nela verificada tem por objeto um fato. Na hipótese de prova do direito estadual, municipal, costumeiro ou estrangeiro, demonstram-se seu teor e vigência, o que não deixa de ser um fato: o fato da existência, conteúdo e vigência da norma.
5.3 Conteúdo da prova O conteúdo da prova está intrinsecamente relacionado com seu objeto. Ambos são verso e reverso da mesma moeda. Enquanto o objeto diz respeito ao fato que se pretende provar, o conteúdo corresponde ao fato provado. O fato probando, objeto da prova, apresenta-se como algo externo à prova, que lhe
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antecede logicamente: é a suposição que se deseja demonstrar. O conteúdo probatório, diversamente, é interno à prova: decorre da existência da prova já realizada, consistindo nos fatos por ela constituídos. Essa distinção é visualizada com maior facilidade quando recordamos que a prova apresenta a qualidade de signo. Como já asseverado, o fato [alegação] é signo do evento, enquanto a prova figura como signo do fato alegado: fato de outro fato. Para tanto, o suporte físico da prova veicula enunciados constitutivos de determinadas situações no tempo e no espaço, as quais, por esse meio, passam a integrar o sistema jurídico. Ao representar o fato alegado, seu objeto, a prova introduz no ordenamento um outro fato: o enunciado probatório, fato jurídico em sentido amplo, que servirá como elemento de convicção do julgador para a composição do fato jurídico em sentido estrito. Esse é o motivo pelo qual se afirma que “alegar e não provar é o mesmo que nada alegar”383. Pelo que se expôs, o conteúdo da prova há de ser, sempre, um fato: o fato veiculado no suporte documental probatório. Mesmo nas hipóteses em que se apresenta a chamada prova do direito, seu conteúdo não deixa de ser um enunciado factual: o fato da existência, teor e vigência de determinada legislação.
5.4 A forma da prova É usual encontrar na doutrina referência ao procedimento sob a noção de forma. Exemplifica Gregorio Robles384 que se fala em forma do contrato ou forma do testamento para indicar o aspecto procedimental ou conjunto de requisitos necessários para que o ato pretendido seja válido. Nesse sentido, cada meio de prova assumiria uma forma, assim entendido o procedimento organizacional exigido pelo ordenamento para que se obtenha o produto prova. 383. Aclibes Burgarelli, Tratado das provas cíveis, p. 37. 384. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 43.
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Não é essa, contudo, a acepção em que estamos empregando o vocábulo. Quando nos referimos à forma como um dos elementos da prova, estamos indicando o modo pelo qual esta se manifesta. É por meio da forma que existe a comunicação, pois apenas se veiculado em um suporte físico o destinatário tem acesso ao enunciado: todo enunciado exige um elemento material que funcione como estímulo à mente do sujeito que com ele entra em contato, desencadeando a construção significativa. Assim entendida a forma das provas, esta será, necessariamente, documental. Ao referir-se aos princípios que orientam a produção probatória, é comum a menção à oralidade. Arruda Alvim385 explica que, em um sentido absoluto, por oralidade “entende-se que somente tem validade para o processo aquilo que tenha sido deduzido originariamente de forma oral, frente ao juiz ou juízes”, contrapondo-se ao processo escrito, o qual, também considerado em seu sentido absoluto, significaria validade apenas aos atos praticados originariamente por escrito. Todavia, considerando o modo como atualmente se concebe o ordenamento, não encontram aplicação esses conceitos radicais, levando à adoção de um princípio da oralidade tomado em sentido mais brando. Fazendo esclarecimentos desse jaez, Aclibes Burgarelli386 conclui que, conquanto a referência à oralidade possa conduzir o menos avisado ao entendimento de que esta se contrapõe à escrituração, no que tange ao direito processual esse princípio conota sentido relativo: “traduz-se na informação de que tudo que é verbalizado, no âmbito das partes do processo, necessariamente deve resumir-se sob a forma escrita”. Semelhante é o posicionamento de Giuseppe Chiovenda387, manifestando que o processo medieval “lentamente se transformou de oral em escrito”. É o que se observa no direito positivo
385. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 414. 386. Tratado das provas cíveis, p. 45. 387. Instituições de direito processual civil, p. 354.
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brasileiro, como anota Vicente Greco Filho388: “O depoimento da testemunha será datilografado, mediante ditado do juiz [...]. O depoimento poderá, também, ser registrado por taquigrafia, estenotipia ou outro método idôneo de documentação, facultando-se às partes a sua gravação. Nesses casos, ou seja, quando não for datilografado na própria audiência, será ele passado para a versão datilográfica quando houver recurso da sentença ou quando o juiz o determinar, de ofício ou a requerimento da parte (art. 417, com a redação dada pela Lei 8.952/94)”389. A prova, qualquer que seja o modo de sua produção, há de ser veiculada sempre em um documento, em linguagem escrita ou susceptível de ser reduzida a escrito. No que concerne ao processo administrativo tributário federal, o Decreto 70.235/72 refere-se expressamente à forma escrita como imperativo dos atos nele verificados, dispondo, em seu art. 2º, que “Os atos e termos processuais, quando a lei não prescrever forma determinada, conterão somente o indispensável à sua finalidade, sem espaço em branco, e sem entrelinhas, rasuras ou emendas não ressalvadas”. As expressões espaço em branco, entrelinhas, rasuras e emendas evidenciam o revestimento linguístico escrito de tais atos: (i) espaço em branco é toda porção do papel em que caberia alguma palavra, sem se perceber ter sido ela intercalada; (ii) entrelinhas são escritos, letras, algarismos ou quaisquer outros sinais que se insiram entre duas ou mais linhas; (iii) rasura decorre da raspagem do papel ou da destruição da tinta que antes estava nele, de modo que, em vez de acrescentar, como acontece em caso de entrelinha, aqui se procede à subtração, erosão ou deterioração do suporte físico documental; (iv) emenda é o ato que, sem entrelinhar, nem rasurar, corrige ou muda o que se escreveu390. 388. Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 223-224. 389. O trecho transcrito alude ao CPC de 1973. Referido assunto é tratado, atualmente, no art. 460 do CPC/2015. 390. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. 3, p. 65-66.
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Considerando que ato processual é toda conduta dos sujeitos do processo que tenha por efeito a criação, modificação ou extinção de situações jurídicas processuais391, a prova apresenta-se como modalidade dele. Trata-se de ato processual instrutório, consistente em carrear aos autos elementos destinados a convencer o julgador acerca da veracidade de suas alegações, a ela aplicáveis, portanto, os dispositivos acima referidos392.
5.5 Função da prova A atividade probatória das partes tende à constituição ou desconstituição dos fatos, mediante convencimento do julgador. Em razão dessa dualidade, bifurcam-se as seguintes correntes acerca da função da prova: (i) corrente cognoscitiva, segundo a qual a prova é essencialmente um instrumento de conhecimento, adotada por Michele Taruffo393, para quem a função da prova é oferecer ao julgador elementos para estabelecer se determinado enunciado é verdadeiro ou falso, mediante conhecimento da realidade; e (ii) concepção persuasiva, entendendo servir a prova como meio de persuasão, nada tendo que ver com o conhecimento dos fatos, não se prestando para reconhecer sua verdade ou falsidade. Essa bipartição decorre da adoção da verdade por correspondência. Partindo, entretanto, da premissa de que não há ligação entre a verdade e os eventos, sendo a realidade constituída pela linguagem, essa contraposição de posicionamentos não tem sentido. Daí por que, ao entender ser persuasiva a função da prova, isso 391. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, p. 299. O ato processual padece da ambiguidade processo/produto, mas, ao referir-se à forma escrita, o Decreto 70.235/72 diz respeito ao resultado da enunciação [produto]. 392. Convém registrar a redundância da referência a ato e termo, pois o segundo, conforme lição de Maria Helena Diniz, é “instrumento pelo qual certos atos processuais são formalizados” (Dicionário jurídico, v. 4, p. 535). 393. Algunas consideraciones sobre la relación entre prueba y verdad, Discusiones, n. 3, p. 31.
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não significa desprezo pela verdade ou falsidade dos fatos: a prova objetiva convencer o destinatário sobre a verdade ou falsidade de um fato, o que se dá com o conhecimento dos elementos trazidos ao processo. Não se tem, por conseguinte, uma persuasão pura e simples, desconectada de qualquer relação com o conhecimento, pois quem fala o faz em nome de uma verdade. Persuadir consiste em contrapor opções, tratando de criar a convicção da verdade de uma opção perante outra. Nisso consiste criar a certeza do julgador, não servindo a prova, como pontua Francesco Carnelutti394, para conhecer os acontecimentos, mas para conseguir uma determinação formal dos fatos. A teoria das provas não se volta ao objeto em si [essência] ou à sua manifestação [fenômeno], mas ao seu relato em linguagem competente [constructivismo], ou seja, ao fato jurídico. Ao discorrer sobre a função da prova, Francesco Carnelutti395 refere-se expressamente ao caráter inventivo do julgamento, consistente em “encontrar, através do presente, o futuro de um passado ou o passado de um futuro. [...] Encontrar o futuro de um passado ou o passado de um futuro é sempre um salto nas trevas. [...] o juiz está em meio a um minúsculo cerco de luzes, fora do qual tudo são trevas: atrás dele o enigma do passado e diante, o enigma do futuro. Esse minúsculo cerco é a prova. [...] A prova é o coração do problema do julgamento”. É por meio das provas levadas aos autos que o julgador se convence acerca da ocorrência ou não dos fatos alegados pelas partes. Nas palavras de Malatesta396, “sendo a prova o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade, sua eficácia será tanto maior, quanto mais clara, mais plena e mais seguramente ela induzir no espírito a
394. A prova civil, p. 80. 395. Ibidem, p. 16. 396. A lógica das provas em matéria criminal, p. 23.
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crença de estarmos de posse da verdade”. Daí sua relevância no convencimento do julgador, seu destinatário397.
5.6 Finalidade da prova A prova não pode ser considerada um fim em si mesma. É instrumento para construir a verdade no processo: a prova é sempre prova de algo. Por isso, não obstante sua função seja persuasiva, essa tarefa de convencer o julgador visa a atingir determinada finalidade, orientada à constituição ou desconstituição do fato jurídico em sentido estrito. Provar um fato é estabelecer sua existência [ou inexistência, na hipótese de pretender-se desconstituir o fato]. Nessa medida, a tarefa daquele que produz a prova jurídica é semelhante à do historiador: ambos se propõem a estabelecer fatos representativos de acontecimentos pretéritos, por meio dos rastros, vestígios ou sinais deixados por referidos eventos e utilizando-se de processos lógico-presuntivos que permitam a constituição ou desconstituição de determinado fato. Esse é o fim da prova: a fixação dos fatos no mundo jurídico398. Conclui-se, com Eduardo Cambi399, que “os fatos não são um dado, mas, ao contrário, algo a ser investigado, construído, no processo, a partir do resultado da atividade probatória desenvolvida pelas partes, em colaboração com o juiz, e da valoração a ser atribuída a essas provas”. Exige-se, portanto, o convencimento do julgador para que este, ao decidir, constitua nos autos o fato jurídico acerca do qual se convenceu.
397. Não deixa de cumprir a prova, ainda, uma função externa ao processo, voltada à legitimação social do exercício do poder jurisdicional. Sobre o assunto, consulte-se Antonio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova no processo penal, p. 13. 398. Francesco Carnelutti, A prova civil, p. 45; Jaime Guasp, Derecho procesal civil, p. 332; Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p. 44; Susy Gomes Hoffmann, Teoria da prova no direito tributário, p. 27. 399. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 52.
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É por meio do caráter instrumental da função persuasiva da prova que esta atinge seu objetivo de fixar determinados fatos no universo do direito. Mediante a atividade probatória compõe-se a prova, entendida como fato jurídico em sentido amplo, que é o relato em linguagem competente de evento supostamente acontecido no passado, para que, mediante a decisão do julgador, constitua-se o fato jurídico em sentido estrito, desencadeando os correspondentes efeitos.
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CAPÍTULO 6 DINÂMICA DA PROVA
6.1 O ato de provar A prova, como relato linguístico que é, decorre de atos de fala, caracterizadores de seu processo de enunciação, realizado segundo as normas que disciplinam a produção probatória. Produzido o enunciado protocolar correspondente à prova, este só ingressa no ordenamento por meio de uma norma jurídica geral e concreta, que em seu antecedente traz as marcas da enunciação [enunciação-enunciada], prescrevendo, no consequente, a introdução no mundo jurídico dos enunciados que veicula. Esse instrumento utilizado para transportar os fatos ao processo, construindo fatos jurídicos em sentido amplo, é o que denominamos meio de prova. Isso não significa, contudo, que para provar algo basta simplesmente juntar um documento aos autos. É preciso estabelecer relação de implicação entre esse documento e o fato que se pretende provar. A prova decorre exatamente do vínculo entre o documento e o fato probando. Conquanto consistam em enunciados linguísticos, os fatos só apresentarão o caráter de provas se houver um ser humano utilizando-os
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para deduzir a veracidade de outro fato. É que, como pondera Dardo Scavino400, “um fato não prova nada, simplesmente porque os fatos não falam, se obstinam em um silêncio absoluto do qual uma interpretação sempre deve resgatá-los. Somos nós quem provamos, que nos valemos da interpretação de um fato para demonstrar uma teoria”. Para concretizar tal desiderato, produzindo enunciados probatórios, exige-se observância a uma série de regras estruturais, que se prestam à organização dos diversos elementos linguísticos, cujo relacionamento se mostra imprescindível à formação da prova. Trata-se da sintaxe interna da prova. Entende-se por sintaxe a parte da gramática que examina as possíveis opções relativas à combinação das palavras na frase, em suas relações de concordância, de subordinação e de ordem401. Consiste no componente do sistema linguístico que determina os liames de interligação entre os elementos constituintes da sentença, atribuindo-lhes uma estrutura. Efetuados tais esclarecimentos, não é difícil concluir que a prova, na qualidade de enunciado de linguagem, apresenta uma sintaxe interna e outra externa: (i) a forma como os signos se combinam para constituir o enunciado probatório corresponde à sintaxe interna; (ii) o modo pelo qual a prova se articula com outros enunciados diz respeito à sintaxe externa. Sobre o assunto, esclarece Paulo de Barros Carvalho402 que, “assim como há uma sintaxe interna das normas jurídicas [intranormativa], há também uma sintaxe externa [internormativa]. A mesma coisa ocorre com as provas: há uma estrutura interior [sintaxe interna] e outra exterior [sintaxe externa, que governa a articulação das provas, organizando-as para que o julgador possa decidir”. Neste capítulo,
400. La filosofía actual: pensar sin certezas, p. 39 [tradução nossa]. 401. Antônio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 2581. 402. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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dedicaremos nossa atenção à primeira modalidade sintática, procurando elucidar seu procedimento organizacional, bem como os componentes que o integram.
6.1.1 Atos de consciência Na atividade de enunciação, tomada como ato de consciência, identificamos três aspectos distintos: (i) a ação de realizar o ato de fala; (ii) o texto produzido pelo ato de fala, entendido em sua forma – suporte físico; e (iii) o conteúdo daquele ato de fala – significação. Em Husserl403 encontramos firme distinção entre os atos ou modalidades-de-consciência do sujeito e os conteúdos por eles veiculados, inexistindo relação unívoca entre ambos. “Os atos de vontade são a conditio sine qua non da existência das normas; não, porém, conditio per quam. Quer dizer, sem o fato do querer empírico de um sujeito individual ou de um sujeito coletivo, exercido em determinada forma [juridicamente preestabelecida], não se constitui a norma. Mas a validade, qualidade específica sua, decorrente da relação que tem ela no sistema de normas, não depende do fato de querer subjetivo”404. Eis a noesis em contraposição ao noema: ato e conteúdo do ato, respectivamente. A todo ato de vontade corresponde um conteúdo, o qual, para ser objetivado, requer, também, forma em que se materialize. Podemos falar, portanto, em (i) ato de consciência; (ii) forma de consciência; e (iii) conteúdo de consciência, como parcelas da intencionalidade indissociáveis entre si. Uma coisa é perceber, como ato específico e histórico, de ordem psíquica; outra coisa é o seu resultado, isto é, a percepção, que aparece como forma de consciência; e outra, ainda, é o 403. Apud Lourival Vilanova, Teoria da norma fundamental, in Escritos jurídicos e filosóficos, v. 1, p. 309. 404. Lourival Vilanova, Teoria da norma fundamental, in Escritos jurídicos e filosóficos, v. 1, p. 325. Registre-se, contudo, que entendemos a validade como relação de pertinencialidade da norma com o sistema jurídico, e não como uma qualidade daquela.
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conteúdo dessa percepção. Do mesmo modo, o pensar é ato de consciência, ao passo que sua forma é o pensamento e o conteúdo identifica-se com a ideia. São três categorias distintas, inconfundíveis entre si. Aplicadas tais concepções à prova, visualizamos a tripartição ato/forma/conteúdo tanto no que diz respeito à inserção do fato probando no ordenamento, como à enunciação do fato provado. Quanto à hipótese fática que se pretende provar, temos: (i) ato de alegar, consistente na atividade enunciativa; (ii) forma do ato, representada pela petição da parte; e (iii) conteúdo do ato, entendido como enunciado cuja veracidade se deseja demonstrar. Relativamente à prova, distinguem-se o (i) ato de provar; (ii) a forma; e (iii) o conteúdo daquele ato. Empregando o testemunho, a título de exemplo, o ato de consciência corresponde à realização da oitiva testemunhal, sua forma é o testemunho reduzido a termo, e o conteúdo identifica-se com os enunciados veiculados, ou seja, o resultado da manifestação da testemunha, constante do respectivo termo.
6.1.2 Sintaxe interna do procedimento probatório Para provar algo é preciso observar as respectivas regras de ordenação, segundo as quais aquele que pretende ver constituído determinado fato jurídico em sentido estrito precisa, primeiramente, afirmar um fato F, para, em seguida, prová-lo. Na dinâmica das provas temos, assim, duas etapas: (i) da afirmação dos fatos; e (ii) da correspondente produção probatória. A afirmação de um fato, segundo Francesco Carnelutti405, é a posição deste como motivo da petição dirigida ao julgador. “Quando o ato cuja realização seja pedida ao juiz pressuponha a existência de determinado fato, a petição do próprio ato implica necessariamente a afirmação do mesmo: afirmação, que se entende, de sua existência material. Se peço ao juiz 405. A prova civil, p. 34.
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que condene Tício a restituir-me a quantia mutuada, afirmo com isso a conclusão do contrato de mútuo e a entrega da quantia ao mutuário”. A dinâmica probatória exige que, primeiramente, se afirme o fato, para, depois, demonstrá-lo com o emprego de provas. Tal afirmação é veiculada na petição inicial e na contestação, no lançamento tributário e na respectiva impugnação, que constituem a base para a produção probatória, realidade jurídica sobre a qual o julgador se orientará para expedir norma individual e concreta resolutiva do conflito de interesses406. Ao discorrermos sobre o objeto da prova, evidenciamos tratar-se, sempre, de um fato. Até mesmo na linguagem ordinária o vocábulo prova é empregado como demonstração da veracidade de alguma proposição. Daí a inarredável conclusão de que “somente se fala de prova a propósito de alguma coisa que foi afirmada e cuja exatidão se trata de comprovar; não pertence à prova o procedimento mediante o qual se descobre uma verdade não afirmada senão, pelo contrário, aquele mediante o qual se demonstra ou se encontra uma verdade afirmada”407. Considerando que a prova de um enunciado se faz por meio de outro enunciado que lhe é posterior, a sintaxe externa do procedimento probatório pode assim ser formalizada: [Fal . (E1 . E2 . E3 . ... En)] → Fj Interpretando a fórmula apresentada, temos: (i) O fato alegado [Fal] é um prius em relação à prova. Primeiro alega-se o fato; depois procura-se prová-lo. Esse fato alegado integra o sistema do direito e, portanto, qualifica-se como fato jurídico em sentido amplo; (ii) E1, E2, E3 e En são, cada qual, enunciados probatórios 406. Rodrigo Dalla Pria, O direito ao processo, in Processo tributário analítico, p. 36. 407. Francesco Carnelutti, A prova civil, p. 67.
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[fatos jurídicos em sentido amplo], ligados pelo conectivo conjuntor aditivo “.”; e (iii) Fj representa o fato jurídico constituído a partir da combinação articulada dos diversos enunciados probatórios [fato jurídico em sentido estrito]. E1, E2, E3 e En consistem nas diversas provas introduzidas nos autos processuais. Em cada uma delas tem-se, internamente, sintaxe do procedimento probatório. Exemplo: supondo-se que E1 seja enunciado constituído por meio de exame pericial, para obtê-lo é preciso seguir um procedimento determinado, em que se alega um fato Fal’, tal como a existência de sinais que precisam ser interpretados por quem tenha conhecimento técnico específico, realizando-se, em seguida, o procedimento de produção do exame pericial, em decorrência do qual surgirá o produto, consistente no laudo pericial. Esquematizando, identificamos a seguinte sequência na produção de cada enunciado probatório: (Fal’. Sp) → E, em que Fal’ é o fato alegado, justificando o pedido de realização probatória, “Sp” indica o procedimento de ordenação da prova, ou seja, sua sintaxe interna, e “E” corresponde ao enunciado probatório produzido. É claro que a referência sintática ora efetuada apresenta-se simplificada, com o objetivo de facilitar a visualização das relações entre os diversos componentes da prova, no seu processo produtivo. A cadeia que se inicia com a alegação e finda-se com o resultado da enunciação probatória ostenta, internamente, pelo menos quatro etapas: (i) pedido de produção da prova; (ii) especificação da prova que se pretende produzir; (iii) justificação, indicando-se os motivos em razão dos quais a produção probatória é relevante; e (iv) deferimento pelo julgador. Tudo isso ocorre naquele ínterim entre a alegação do fato e a realização de sua prova, tornando sua dinâmica bastante complexa, merecedora de tratamento minucioso,
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que será realizado no item 6.3. Para reduzir à expressão mais simples, facilitando a compreensão do que foi exposto, esquematizamos a sintaxe do procedimento probatório. Na representação gráfica a seguir há referência às sintaxes externa e interna, verificadas no ato de provar, bem como ao relacionamento entre ambas:
6.1.3 Metaprocedimento organizacional das provas Toda figura jurídica demanda um procedimento. Assim ocorre, por exemplo, com a personalidade jurídica, com o casamento, com a doação, com a importação etc. Em todos esses casos, para atingir-se a finalidade almejada, que é a constituição de determinado fato jurídico, necessário se faz cumprir os requisitos procedimentais estipulados pela legislação. Existem, porém, procedimentos que não se dirigem, imediatamente, à constituição de figuras jurídicas. Seu objetivo é a realização de outro procedimento. Trata-se de um “procedimento de segunda ordem” ou “metaprocedimento”. Utilizando o exemplo da não-cumulatividade, Paulo de
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Barros Carvalho408 registra tratar-se de um procedimento destinado a concretizar valores assegurados constitucionalmente. Mas, para cuja realização existe procedimento específico [metaprocedimento], o qual indica os livros a serem escriturados, como fazê-lo, quando efetuar, e assim por diante. Para melhor ilustrar a temática dos metaprocedimentos, reportemo-nos ao princípio da igualdade. A finalidade desse primado pode ser verificada, no âmbito processual, mediante observância do mecanismo procedimental do contraditório. Mas o modo exato pelo qual o contraditório se aperfeiçoa também exige um procedimento, indicando, dentre outros dados, o modo e o prazo de manifestação das partes. Retornando ao tema das provas, podemos citar o exame de corpo de delito como um procedimento necessário para a identificação de homicídio. Esse procedimento, por sua vez, há de seguir um rito específico, realizado por sujeito competente e devidamente documentado. Como se vê, a finalidade do procedimento de segunda ordem ou metaprocedimento é realizar o procedimento em si. No âmbito das provas, é farta a referência a procedimentos de segunda ordem. Para constituir um fato [figura jurídica] é preciso um procedimento [ingressar com ação judicial, com a produção de provas]; para produzir as provas [procedimento necessário para constituir o fato jurídico], necessário se faz adotar procedimento específico [metaprocedimento]. Assim, por exemplo, seriam normas metaprocedimentais aquelas que estabelecem como produzir prova pericial [indicar perito técnico, formular quesitos, justificar a necessidade da prova, sempre dentro de específico prazo], testemunhal etc. Convém registrar, ainda, que nada impede que existam procedimentos de terceira ordem. Todavia, o direito efetua 408. Prefácio do livro A não-cumulatividade dos tributos, de André Mendes Moreira.
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um corte na cadeia procedimental, de modo que o procedimento do metaprocedimento, muitas vezes, é extrajurídico. Ex: a paternidade é uma figura jurídica; exige-se um procedimento para implementá-la, como é o caso do exame de DNA [metaprocedimento reconhecido pelo ordenamento jurídico]; e existe um procedimento médico para fazer o exame de DNA [como a comparação biológica], mas esse procedimento de terceira ordem é extrajurídico. Interessam-nos apenas os metaprocedimentos jurídicos, por serem eles aptos a determinar o ingresso, no ordenamento, de novos enunciados probatórios.
6.2 Fonte da prova A expressão fonte do direito apresenta diversas acepções, sendo definida por Paulo de Barros Carvalho409 como “focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada, bem como a própria atividade desenvolvida por essas entidades, tendo em vista a criação de normas”. Diante da polissemia da locução, porém, é interessante transcrever o rol de sentidos colacionados por Eurico Marcos Diniz de Santi410. Segundo esse autor, fonte do direito pode ser tomada como: (i) fundamento de validade de uma ordem jurídica; (ii) a norma jurídica de competência que regula a produção de outras normas jurídicas; (iii) as contingências extrajurídicas que condicionam psicologicamente a convicção e vontade do sujeito que pratica o ato de criação; (iv) o fato jurídico lato sensu, i. é., o ato de produção juridicizado pelas normas que regulam a forma de produção normativa; (v) o produto desse ato, i. é., o veículo introdutor das normas jurídicas; (vi) a norma jurídica construída pelo intérprete a partir desse veículo introdutor; (vii) o evento jurídico tributário como supedâneo da incidência e fundamento de direitos subjetivos e correlatos deveres; e, por fim, (viii) o ulterior
409. Curso de direito tributário, p. 46. 410. Decadência e prescrição no direito tributário, p. 48-49.
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ato de aplicação do direito que cristaliza em linguagem jurídica o evento tributário e a adjacente relação jurídica.
Nesta ocasião, ao estudarmos a fonte da prova, voltaremos nossos cuidados à investigação do modo pelo qual o direito positivo, como sistema autorreferente que é, movimenta suas estruturas e produz novas unidades. Sendo a prova, sob determinada perspectiva, uma norma em sentido amplo e, portanto, elemento de direito, falar sobre sua fonte consiste em discorrer sobre sua produção no sistema jurídico-positivo. Aplicando essa ideia à produção probatória, temos por fonte da prova o sujeito competente em atividade, isto é, o emissor da mensagem probatória exercendo o ato de enunciação. Nesse ponto diferenciam-se fonte e meio de prova: (i) fonte é a enunciação realizada por um sujeito habilitado; enquanto (ii) o meio confunde-se com a enunciação-enunciada, relato linguístico constitutivo do sujeito, tempo, lugar e modo em que ocorreu a enunciação, introduzindo os enunciados probatórios no sistema do direito. Não se observa na doutrina, porém, semelhante conceituação de fonte da prova. João Batista Lopes411, com apoio em Sentís Melendo e Carnelutti, chama de fonte de prova o “fato do qual se serve o juiz para chegar à verdade”. João Penido Burnier Júnior412 conclui ser fonte de prova “a testemunha do fato, o vestígio do carro danificado, a rachadura numa parede etc., ou seja, algo que levará ao juiz o conhecimento do fato”. Também Cândido Rangel Dinamarco413 considera serem fontes de prova os “meios instrumentais externos que, quando trazidos ao processo, o juiz e as partes submetem às investigações necessárias a obter tais informações” sobre a existência ou inexistência de um fato. Ao definirem o que seja fonte de prova, isto é, qual a origem da prova, aquilo que lhe 411. A prova no direito processual civil, p. 61. 412. Teoria geral da prova, p. 61-62. 413. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 86.
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dá nascimento, esses autores ignoram a necessidade da ação humana. Sem que um sujeito movimente as estruturas do direito, (i) não surge nova norma, em sentido estrito ou amplo; (ii) inocorre fato jurídico; (iii) nenhuma relação jurídica se irradia; (iv) não há que falar no aparecimento de provas. Na lição de Lourival Vilanova414, “a vontade entra como juridicamente produtora de normas intercalando-se entre normas. É uma norma N’ que dá ao ato concreto de vontade qualificação para criar a norma N” “. Com base nesse fundamento de validade, age o ser humano, funcionando como fonte das novas regras que ingressam no sistema jurídico. O ordenamento é um texto criado por atos de fala, denominados decisões jurídicas. Essas decisões são elementos dinâmicos do sistema do direito, de modo que a cada decisão tomada produz-se um novo texto, que se incorpora ao já existente. O texto jurídico, anota Gregorio Robles415, “pode ser visto como um conjunto de elementos textuais parciais, que chamamos de normas, mas com isso não podemos perder de vista que tais elementos textuais têm origem em atos de fala especiais, que são as decisões. [...] A constituição é o resultado da decisão do constituinte [...]. A decisão constituinte produz a constituição, que por sua vez estabelece as condições para a adoção de decisões posteriores, que produzirão mais elementos textuais do texto jurídico total, num processo que nunca termina [...]”. Os atos de fala, por sua vez, devem dar-se nos termos previstos por outras normas jurídicas que estabelecem o rito necessário à sua concretização: as denominadas normas procedimentais, de organização ou de estrutura. Firmadas essas premissas e considerando que a prova apresenta-se, segundo determinada perspectiva, como norma jurídica em sentido amplo [enunciado normativo], sua produção decorre de atos de fala, de decisões tomadas pelo homem, 414. Teoria da norma fundamental, in Escritos jurídicos e filosóficos, v. 1, p. 333. 415. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito, p. 33.
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com vistas a colocar novos enunciados no sistema jurídico. Esse é um aspecto de grande relevo: a fonte da prova será sempre um sujeito de direito praticando atos de fala produtores de decisões. Gregorio Robles416, examinando essa peculiaridade, pondera: “As decisões intrassistêmicas produtoras de normas são chamadas pela doutrina tradicional de fontes do direito. Trata-se, contudo, de uma expressão metafórica que encobre a verdadeira realidade da produção normativa: o fato de as normas serem resultado das decisões”. Com base em tais considerações, podemos dizer que a fonte de qualquer enunciado normativo e, portanto, da prova é a decisão do sujeito de direito. Para que se tenha uma prova, são exigidos dois elementos indissociáveis: (i) um sujeito de direito e (ii) um ato de fala [sem perder de vista que um ato de fala só existe porque há um sujeito de direito que o realiza].
6.3 Procedimento probatório O universo do direito é um contínuo homogêneo, de modo que uma norma existe porque está fundamentada em outra norma. Para que ocorra essa movimentação no sistema jurídico, com a produção de novas unidades normativas, é preciso, também, a presença humana, realizando a aplicação do direito. As provas, como enunciados normativos que são, não escapam a essa sistemática. Assim, para ingressarem no universo do direito, hão de ser produzidas com observância a determinadas formalidades, que denominamos procedimento organizacional da prova. Além do rito específico inerente a cada meio probatório, esse procedimento envolve elementos relativos ao tempo, espaço e sujeitos exigidos para a enunciação. Eis a sintaxe interna das provas.
416. Ibidem, p. 6.
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6.3.1 Tempo da Prova A função persuasiva da prova, voltada a formar a convicção do julgador acerca da existência ou inexistência dos fatos alegados no processo, não autoriza que a produção probatória se prolongue indefinidamente no tempo. O sistema jurídico estabelece limites temporais à produção da prova. Como anota Tárek Moysés Moussallem417, “o direito como fator cultural está indelevelmente marcado pelo tempo. Não o tempo físico, o psíquico, mas o institucional, aquele posto intersubjetivamente, estabelecido pela interação humana: criado linguisticamente”. A temporalidade é, assim, um dos elementos constitutivos do direito, sendo determinante na organização procedimental da prova, que há de ser realizada nos instantes legalmente previstos. A distinção entre tempo do fato e tempo no fato418 é perfeitamente aplicável à prova, até mesmo porque, como pontuamos no capítulo 3, esta é um fato em sentido amplo. Podemos falar, portanto, em tempo da prova e tempo na prova. Enquanto o primeiro diz respeito ao átimo em que a prova é constituída mediante formulação linguística, sendo veiculado na enunciação-enunciada, o segundo refere-se ao aspecto temporal atribuído ao evento, relatado no fato da prova [enunciado]. A tempestividade da prova é aferida, portanto, pela observação do critério temporal constante da sua enunciação-enunciada. Nos termos do art. 319 do CPC/2015, o autor deverá indicar na petição inicial os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido, bem como as provas com que pretende demonstrar a verdade de suas alegações [incisos III e VI]. Quando as provas representarem documentos essenciais ao processamento da ação, deverão acompanhar a petição inicial, pois esta, segundo dispõe o art. 320 do Estatuto Processual, “será instruída com
417. A revogação em matéria tributária, p. 81. 418..Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 126.
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os documentos indispensáveis à propositura da ação”, assim entendidos aqueles que sirvam de fundamento ao pedido. Nesse sentido reforça o art. 434 do mesmo Diploma Legal, prescrevendo competir à parte instruir a petição inicial ou a contestação com “os documentos destinados a provar suas alegações”. A bem do rigor terminológico, nesse instante ainda não temos prova, mas mera protoprova, ou seja, proposta de prova. Com o deferimento da petição inicial ou, se for o caso, da contestação, e consequente acolhida dos documentos anexos a tais peças é que se tem, juridicamente, prova.419 Necessário se faz distinguir, portanto, as diversas etapas mediante as quais se operacionaliza a produção probatória: (i) pedido de produção da prova; (ii) sua especificação; (iii) justificação acerca de sua relevância; e (iv) admissão pelo julgador. As três primeiras divisões compõem aquilo que a doutrina denomina requerimento, cujo deferimento autoriza a produção da prova420. Fala-se, por isso, em momentos da prova. Para Goldschmidt421, a proposição da prova consiste no oferecimento, formulado por uma parte, para demonstrar um fato mediante determinado meio de prova. Logo, como oferta que é, pode a produção probatória requerida ser recusada, caso se verifique sua inutilidade, impossibilidade ou inidoneidade, e desde que (i) o julgador motive sua decisão e (ii) não haja dúvida plausível quanto à inadmissibilidade da diligência, não bastando que esta simplesmente pareça protelatória aos olhos do julgador, devendo sua inutilidade ser manifesta.
419. Pode, posteriormente, deixar de sê-lo, caso o julgador determine seu desentranhamento e a desconsidere como elemento de convicção. É o que se verifica, por exemplo, nas hipóteses em que se reconhece a ilicitude do meio de obtenção da prova. 420. Vicente Greco Filho, Direito processual civil brasileiro, v.2, p. 193. 421. Derecho procesal civil, p. 257.
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Caso contrário, operando-se a admissão do pedido como resultado da prévia avaliação de utilidade da prova, passa-se à fase de sua concretização, nos termos da técnica organizacional prescrita para cada meio de prova. Como vimos, o momento de requerer a realização probatória é, em princípio, a formulação da petição inicial e da contestação, conforme o sujeito seja autor ou réu na demanda. Tratando-se, porém, de juntada de documentos, o art. 435 do CPC/2015 autoriza às partes, a qualquer tempo, levar aos autos documentos novos, se destinados a fazer prova de fatos supervenientes ao momento em que a demanda foi instaurada ou se objetivando fazer contraprova em relação ao fato alegado pelo adversário. Mas que seriam fatos supervenientes? Vicente Greco Filho422 assevera que a jurisprudência tem sido liberal quanto à possibilidade de, a qualquer instante, serem juntados documentos novos, “entendendo-se como novo não só o documento que antes não existia, mas também o documento obtido posteriormente ou todo aquele que não foi juntado anteriormente”, desde que conferido à parte contrária o direito de manifestar-se a respeito da nova prova. É muito comum, na prática forense, o protesto vago e genérico nas iniciais e contestações, pelas provas em direito admitidas. Não é essa, certamente, a técnica mais apropriada para se requerer a produção probatória. Entretanto, para que se aperfeiçoe o princípio da ampla defesa, diante dessa espécie de solicitação é preciso que se determine, antes do encerramento da fase postulatória, que as partes especifiquem e justifiquem as provas que desejam produzir, para que, por ocasião do saneamento do processo, o julgador examine sua pertinência, deferindo ou não os pedidos. Havendo o deferimento, tem início a produção da prova, propriamente dita, seguindo as especificidades procedimentais inerentes ao meio de prova escolhido.
422. Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 217.
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Tratando-se da juntada de documentos produzidos fora dos autos [documento constituído], seu requerimento deve, em regra, ser veiculado na inicial ou na contestação, e, excepcionalmente, caracterizando documento relativo a fato superveniente, constar de petição apresentada a qualquer tempo. Nesses casos, a admissão implica, por si só, a respectiva produção probatória, pois autoriza o ingresso do documento no sistema jurídico. Isso ocorre em virtude de que “produzir prova documental é fazer com que o documento penetre nos autos do processo e passe a integrá-lo como peça de instrução”423. Há, aí, o que Arruda Alvim denomina sobreposição de momentos424, por cumularem-se, num só instante cronológico, a admissão e a produção da prova, que são fases logicamente distintas. Quando, porém, pretender-se constituir o documento nos autos processuais [documento constituendo], por meio de exame pericial ou oitiva de testemunhas, por exemplo, o requerimento há de ser apresentado na petição inicial e na contestação, de modo específico e justificado, sendo o exame de sua admissibilidade realizado na fase de saneamento. Havendo a admissão da realização de prova testemunhal, incumbe à parte apontar o rol de testemunhas, com as respectivas qualificações425. Sendo deferida a realização de perícia, é o julgador quem nomeia o perito, cabendo às partes indicar seus assistentes técnicos e formular quesitos426. Observados tais pressupostos procedimentais, a oitiva testemunhal é realizada por ocasião da audiência de instrução e julgamento, momento em
423. Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, v. 1, p. 457. 424. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 442. 425. Exceto no procedimento sumário, em que o rol de testemunhas deve acompanhar a petição inicial ou a contestação. Além das testemunhas arroladas no devido tempo, poderão ser ouvidas, também, as testemunhas referidas, ou seja, mencionadas nas declarações das partes e de outras testemunhas e que tenham conhecimento de fatos relevantes ainda não totalmente esclarecidos. 426. Salvo no procedimento sumário, em que a indicação dos assistentes e quesitos deve dar-se na inicial e na contestação.
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que é reduzida a termo e inserida no processo. A prova pericial, por sua vez, há de ser produzida antes da audiência de instrução e julgamento, fixando o art. 476 do Estatuto Processual Civil o limite mínimo de 20 (vinte) dias. Por vezes, as provas que geralmente se produzem em audiência de instrução e julgamento formam-se fora dela em razão de circunstâncias especiais, previstas em lei. É o caso das situações em que se tem a produção antecipada de prova, por meio de procedimento próprio [arts. 381 a 383 do CPC/2015], quando (i) houver fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação427, (ii) a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito, ou (iii) o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação. Tais exceções são aglutinadas em duas classes, denominadas (i) produção de prova fora de terra; e (ii) prova ad perpetuam rei memoriam. A primeira delas, além de se verificar em momento diverso daquele em que se efetiva a audiência, apresenta peculiaridades quanto ao local de sua produção, motivo por que será examinada no tópico subsequente. Quanto à segunda, é realizada antecipadamente em decorrência do perigo de desaparecimento das marcas deixadas pelo evento, podendo ser (ii.1) propriamente preventiva, por visar a assegurar a eficácia de um direito, tendo por escopo realizar uma prova da qual a parte não tem necessidade atual, mas em relação à qual pode haver necessidade no futuro428. Exemplifica Pontes de Miranda429 com a situação em que, apesar de não ter ocorrido o vencimento da dívida, por ser além de meses ou anos,
427. Por exemplo, quando a parte ou testemunha tiver de ausentar-se, nas hipóteses em que por doença ou idade houver risco de que o sujeito não possa vir a depor no momento da audiência, dentre outras. 428. O Código de Processo Civil de 2015 não prevê expressamente essa modalidade de produção probatória antecipada, mas também não a proíbe, de modo que é facultado ao interessado propor uma ação cautelar cuja pretensão é a segurança da prova. 429. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 264.
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a antecipação da prova seja pedida por motivo de idade do devedor, ou da testemunha, e houver justo receio de que, ao tempo de se poder propor a ação, já não exista ou esteja sem possibilidade de depor; (ii.2) preparatória de ação, com vistas a produzir prova imprescindível para fundamentar a ação principal; ou (ii.3) preventiva incidente, suscitada enquanto se processa uma demanda, servindo para evitar lesão grave e de difícil reparação em virtude do desaparecimento dos sinais deixados pelo acontecimento. Por fim, poderíamos denominar a terceira hipótese antecipatória de (iii) preventiva de ação, visto que, muitas vezes, a propositura de demandas decorre de convicções sobre os fatos. Desse modo, tem cabimento a antecipação probatória quando o potencial autor nutrir dúvidas sobre o fato, necessitando de provas que justifiquem a medida judicial, ou, até mesmo, que revelem a inocorrência do fato e consequente falta de interesse de agir.
6.3.1.1 Momento da produção probatória no processo administrativo tributário Nos termos da redação atual do art. 16, §4°, do Decreto 70.235/72, que disciplina o processo administrativo tributário federal, “a prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual, a menos que: a) fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior; b) refira-se a fato ou a direito superveniente; c) destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidos aos autos”. Semelhante redação é observada em diversos outros diplomas que regulamentam o processo administrativo tributário, como é o caso da Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo [art. 19, caput]. Tais limitações à atividade probatória do contribuinte têm provocado debates profundos entre a doutrina e, até mesmo, entre os julgadores de primeira e segunda instâncias administrativas, entendendo, alguns, que a limitação temporal
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à apresentação de provas pelo administrado acarretaria violação ao princípio da estrita legalidade tributária, mitigando, em consequência, o objetivo de alcançar a verdade material430. Essa não nos parece, entretanto, a conclusão mais apropriada. Como anotamos no capítulo 1, não há que falar em verdade material ou formal, visto que a primeira é inatingível e a segunda aplica-se a proposições nomológicas. Em termos processuais, busca-se a verdade lógica, ou, se preferir, a verdade jurídica, formada dentro do sistema do direito. O homem sente necessidade de falar em nome de algo: em nome da justiça, do sistema, da segurança jurídica e, dentre outros, em nome da verdade. Costuma-se confundir, porém, o falar em nome de algo com a existência desse algo, concluindo pela possibilidade de realizar a justiça, a segurança, a verdade. Ocorre que todos esses conceitos, tomados no interior do sistema jurídico, não passam de construções verificadas dentro do próprio ordenamento, acompanhadas pelas limitações inerentes à enunciação linguística. Se assim não fosse, a procura desses ideais não teria fim. Por isso, intervêm as regras do direito, colocando um ponto final no procedimento de busca da verdade, limitando-o mediante a imposição de prazos e condições à revisão das decisões proferidas. Assim é que o direito à prova, assegurado constitucionalmente pela previsão do devido processo legal e da ampla defesa, não se apresenta irrestrito ou infinito. Aliás, inexiste direito com tais características. A própria Constituição estabelece os contornos da liberdade de produção probatória, a principiar pelo veto às provas obtidas por meio ilícito. A figura do devido processo legal, do qual o direito à prova figura como uma decorrência, é construída com base em prazos, regida por formas específicas, fases e preclusões, constituindo
430. Luís Eduardo Schoueri e Gustavo Emílio Contrucci A. de Souza, Verdade material no “processo” administrativo tributário, in Processo administrativo fiscal, v. 3, passim.
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legítima delimitação à enunciação probatória. Falar em direito à prova, portanto, é falar em direito à prova legítima, a ser exercido segundo os procedimentos regulamentados pela lei431. Trata-se, segundo Manoel de Oliveira Franco Sobrinho432, de consequência da organização jurídica do Estado, das relações entre Administração e administrados, naquilo que respeita à estabilidade geral do ordenamento. Justifica-se, desse modo, a possibilidade de limitação do instante para a apresentação de prova, ainda que se trate de processo administrativo. É o direito regulando o que nele ingressa, exigindo forma e tempo apropriados autopoiese]. Tanto a autoridade administrativa como o contribuinte estão sujeitos a limitações procedimentais: o lançamento e o ato de aplicação de penalidade devem ser acompanhados por todas as provas documentais correspondentes, assim como a defesa do sujeito passivo também precisa trazer os documentos comprobatórios de seus argumentos, sendo vedado fazê-lo posteriormente. É o que preceituam, por exemplo, os arts. 9º, caput, e 15, caput, do Decreto 70.235/72, in verbis: Art. 9º A exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada serão formalizados em autos de infração ou notificações de lançamento, distintos para cada tributo ou penalidade, os quais deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito.433 Art. 15. A impugnação, formalizada por escrito e instruída com os documentos em que se fundamentar, será apresentada ao órgão preparador no prazo de trinta dias, contados da data em que for feita a intimação da exigência.434
431. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 48. 432. A prova administrativa, p. 64. 433. Destacamos. 434. Destaques nossos.
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Semelhante é a prescrição veiculada pelo caput do art. 19 da Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo, nos termos do qual “as provas deverão ser apresentadas juntamente com o auto de infração e com a defesa, salvo por motivo de força maior ou ocorrência de fato superveniente”. Ainda, no mesmo sentido, vale transcrever o art. 21 da Lei 14.107/2005, do Município de São Paulo: Art. 21. A prova documental deverá ser apresentada na impugnação, a menos que: I – fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna por motivo de força maior; II – refira-se a fato ou a direito superveniente; III – destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidas aos autos.
Nota-se, em relação ao contribuinte, que a regra é excepcionada quando a prova documental não tenha sido juntada, tempestivamente, em razão de força maior, ou seja, necessária em virtude de fatos ou argumentos supervenientes [ex.: arts. 16, §4°, do Decreto 70.235/72 e 19, caput, parte final, da Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo]. Nesse caso, a apresentação da prova deve ser acompanhada de justificativa que demonstre a ocorrência de uma das condições excepcionais, estando o deferimento da juntada intempestiva sujeito à apreciação da autoridade julgadora. Acolhido o pedido do contribuinte, as novas provas passarão a integrar os autos, devendo ser avaliadas por ocasião do julgamento. Se preenchidos os requisitos legais, as novas provas são admitidas mesmo se já houver sido proferida decisão de primeira instância, podendo ser examinadas em fase recursal. No que diz respeito à exigência de apresentação de provas pela Administração, inexiste exceção veiculada pelo texto legal. Nem poderia ser diferente, já que só se admite a emissão de norma individual e concreta constituidora de obrigação
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tributária ou de relação jurídica sancionatória quando evidenciados os elementos tipificadores do fato que desencadeia efeitos dessa natureza. Além disso, por meio de atos fiscalizatórios, a autoridade administrativa tem acesso às mercadorias, livros, arquivos e demais documentos relacionados com as atividades comerciais e industriais do contribuinte, estando habilitada a proceder às diligências que entenda necessárias. Nada justifica, portanto, a juntada posterior de provas imprescindíveis à motivação do ato de lançamento ou de aplicação de penalidade435. Entendemos que apenas o reforço de prova pode operar-se no curso do processo administrativo, de modo que, tendo o contribuinte produzido elementos probatórios destinados a ilidir a pretensão fiscal, é cabível a apresentação de dados confirmadores daqueles constantes da exigência tributária, infirmando os argumentos do sujeito passivo. Cumpre esclarecer que as limitações temporais para a apresentação de provas pelo contribuinte, sobre que discorremos, dizem respeito apenas aos enunciados protocolares veiculados em documentos já constituídos e em seu poder. A produção probatória, entendida em seu sentido mais abrangente, estende-se ao longo do processo, até o pronunciamento do órgão julgador, desde que observada outra prescrição de ordem temporal, inerente ao instante do seu requerimento. À produção da prova no processo administrativo tributário aplicam-se as considerações que fizemos no subitem precedente, a respeito da distinção entre (i) proposta, (ii) especificação, (iii) justificação, (iv) admissão e (v) produção da prova. Os três primeiros tópicos dizem respeito ao requerimento da prova, situação em que se tem apenas protoprova. Com a admissão, o julgador reconhece a relevância da produção probatória requerida, e, com sua efetiva realização, opera-se a constituição da prova nos autos.
435. Sobre a impossibilidade de autuação fiscal sem respaldo na linguagem das provas, consulte-se o capítulo 8 desta obra.
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Instaurado o contencioso administrativo tributário mediante impugnação do sujeito passivo, é assegurada a complementação instrutória, mediante a realização de provas periciais, testemunhais e outras diligências que se façam necessárias, conforme o caso concreto, desde que tempestivamente solicitadas e devidamente especificadas e justificadas pelo impugnante. Isso sem falar na possibilidade de a autoridade julgadora de primeira instância determinar, de ofício, em nome do princípio inquisitório, a realização de diligências que considere úteis. A questão que se coloca, em face de tais delimitações, decorre das circunstâncias em que o contribuinte não tenha apresentado a prova quando de sua impugnação e deseje fazê-lo em momento posterior, porém sem demonstrar a concretização de uma das causas excepcionadoras desse limite temporal. Para propor solução a dúvida dessa natureza, necessário se faz compreender a íntegra do sistema jurídico brasileiro, especialmente no que tange aos princípios que regem a produção probatória no processo administrativo tributário. A controvérsia acerca das circunstâncias de tempo para a produção probatória no processo administrativo tributário há de ser examinada considerando-se os efeitos da estipulação do “princípio inquisitório ou da oficialidade” nesse âmbito processual436. Nos termos desse preceito, admite-se impulso oficial no controle de legalidade desempenhado pela Administração Tributária. Por isso, considerados, de um lado, os limites temporais à apresentação de defesa e instrução probatória, e, de outro, o princípio inquisitivo que rege o processo administrativo, pode a Administração, exercendo sua função de autocontrole, apreciar defesa intempestiva e anular, de ofício, seu ato. Não há obrigatoriedade de apreciação de prova apresentada fora do prazo, mas, existindo dúvida quanto à legalidade do ato de lançamento ou de aplicação de penalidade, nada obsta que a Administração efetue valoração do novo
436. Para maiores esclarecimentos sobre o assunto, veja-se o.item 6.5 e subitens.
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documento trazido pelo contribuinte, e considerando-o relevante para o deslinde da questão, admita-o nos autos.437
6.3.1.2 Aspecto temporal da norma de procedimento probatório e os critérios para aplicação de diploma legal superveniente ao fato probando Existem hipóteses em que a legislação, ao regular determinado procedimento, veda que os documentos nele obtidos sejam utilizados como prova em outras situações ou para fins diversos. Pode acontecer, porém, de norma posterior veicular estipulações contrárias, surgindo, então dúvidas sobre a possibilidade jurídica de esse novo diploma ser aplicado aos fatos cuja constituição documental tenha se operado sob a vigência de lei proibitiva de seu uso. É o que ocorreu em relação à extinção CPMF. Além de configurar direito constitucional do contribuinte, a proteção de informações bancárias era expressamente determinada pela Lei 4.595/64, recepcionada pela Carta de 1988. Com o advento da Lei 9.311/96, que instituiu a Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – CPMF, impôs-se às instituições financeiras o dever de informar a Secretaria da Receita Federal sobre os contribuintes e valores globais das respectivas operações bancárias. Tal imposição configura dever instrumental necessário à operacionalidade e fiscalização do imposto, não podendo referidas informações serem utilizadas para quaisquer outras finalidades. Nesse sentido, o art. 11, §3°, da Lei 9.311/96 vedou que os dados assim obtidos fossem empregados para fins de constituição de créditos referentes a outros tributos.
437. Cf. Fabiana Del Padre Tomé, “O tempo da produção probatória no processo administrativo tributário”. In: Estudos em Homenagem ao Professor Roque Antonio Carrazza, vol. 3, p. 275 e ss.
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Todavia, pretendendo alterar a disciplina jurídica dessa matéria, foi editada a Lei Complementar 105/2001, autorizando a Administração tributária a proceder à análise dos registros de instituições financeiras, contas de depósitos e aplicações financeiras dos contribuintes mediante a simples existência de processo ou procedimento administrativo fiscal. A Lei 10.174/2001, por sua vez, alterou a redação ao §3° do art. 11 da Lei 9.311/96, facultando à Secretaria da Receita Federal a utilização de informações relativas à CPMF para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento no âmbito do procedimento fiscal. Ao nosso ver, tais preceitos representam flagrante ofensa à inviolabilidade da vida privada e dos dados particulares, menosprezando que ao Poder Judiciário compete examinar as situações em que, para garantir o cumprimento da lei tributária, sejam necessárias atitudes invasivas da privacidade do contribuinte. É o Judiciário o único órgão do Estado autorizado a sopesar os valores constitucionais da inviolabilidade dos dados e do interesse público, reconhecendo ou não a existência deste no caso concreto, para, momentaneamente, afastar aquelas garantias constitucionais. Apesar dessa visão sobre a incompatibilidade com direito constitucionalmente assegurado, a LC 105/2001 e a Lei 10.174/2001 vêm sendo aplicadas sem qualquer restrição, tendo o Supremo Tribunal Federal decidido por sua constitucionalidade e aplicação retroativa438. Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça tem concluído que a Fazenda Nacional pode utilizar os dados obtidos a partir da arrecadação da CPMF para apurar e constituir crédito de outros tributos. E, mais que isso, essa Corte tem se posicionado no sentido de que a Lei Complementar que dispôs sobre a possibilidade
438. STF, Tribunal Pleno, RE nº 601.314-SP, repercussão geral, Rel. Min. Edson Fachin, j. em 24/02/2016.
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de quebra do sigilo bancário seria aplicável a fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor, tendo em vista o enunciado do art. 144, §1°, do CTN. O assunto, entretanto, era polêmico, tendo havido, no passado, divergências entre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça. É o caso do Min. Francisco Peçanha Martins, integrante da Segunda Turma há época do julgamento do REsp 668.012-PR, para quem o sigilo bancário só poderia ser quebrado por determinação judicial, tendo em vista outros interesses que assim o exijam, como, por exemplo, a investigação de ilícitos criminais: “Tal decisão deveria ser lastreada em indícios de fato delituoso e de sua autoria, bem como na imprescindível necessidade de obtenção de prova por meio de quebra de sigilo bancário. (...) Por ser uma providência excepcional, exige não apenas cautela e prudência por parte do magistrado, como também indícios instrutórios mínimos de autoria e materialidade delitiva”. Nessa linha de raciocínio, concluiu que a edição da LC 105/2001, ao permitir a quebra do sigilo bancário por autoridade fiscal, não dispensou a exigência de “demonstração consistente das suspeitas e da necessidade da medida, o que só pode ser obtido ao fim do processo administrativo, devendo ser cerceada pelo mesmo rigor e cuidados exigidos para a decretação da quebra por autoridade judiciária e pelas CPIS”, sendo tal entendimento acompanhado pelo Min. João Otávio de Noronha. Como exposto em capítulo precedente, entendemos ser o sigilo bancário um direito constitucional, susceptível de ser quebrado apenas mediante autorização judicial, observada sua imprescindibilidade para resguardar interesse superior. Todavia, considerando que assim não fosse, e tendo em vista a e decisão do STF nos autos do RE 601.314-SP, examinemos a possibilidade de se aplicar retroativamente o disposto na LC 105/2001 e na Lei 10.174/2001. Quando examinamos o sistema do direito positivo, identificamos variadas espécies de normas jurídicas. Conforme o universo de destinatários a que a norma se refere, esta pode
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ser classificada em geral ou individual: a primeira dirige-se a um conjunto indeterminado de destinatários, enquanto a segunda individualiza os sujeitos de direito para os quais se volta. Ainda, considerando a descrição contida na hipótese normativa, há normas abstratas, que oferecem critérios para identificar fatos de possível ocorrência, e concretas, remetendo a acontecimentos passados, indicados de forma denotativa. Esses caracteres podem ser combinados de modo que constituam normas (i) gerais e abstratas, (ii) gerais e concretas, (iii) individuais e abstratas, e (iv) individuais e concretas439. As normas gerais e abstratas, cujo típicos exemplos são aquelas veiculadas no corpo da lei, não atuam diretamente sobre as condutas intersubjetivas, exatamente em decorrência de sua generalidade e abstração. É necessário que sejam emitidas outras regras, mais diretamente voltadas aos comportamentos das pessoas, mediante aquilo que se chama processo de positivação do direito, para obter maior aproximação dos fatos e ações reguladas. Com fundamento nas normas gerais e abstratas constroem-se normas individuais e concretas, determinando que em virtude da ocorrência de certo fato jurídico nasceu a relação em que um sujeito de direito S’ tem uma obrigação, proibição ou permissão perante outro sujeito S”. Obviamente, para que essa positivação seja realizada de modo apropriado, é imprescindível o perfeito quadramento do fato à previsão normativa. Esse fato, por sua vez, deve ser constituído segundo a linguagem das provas, com vistas a certificar a veracidade do enunciado subsumido. Observa-se a importância capital que apresenta a prova no ordenamento jurídico, inclusive no âmbito da tributação: ao constituir a obrigação tributária e aplicar sanções nessa esfera do direito,
439. As regras-matrizes de incidência tributária são exemplos de normas gerais e abstratas, assim como o lançamento tributário e sentenças são de normas individuais e concretas. Os veículos introdutores são típicas normas gerais e concretas, enquanto as normas individuais e abstratas podem ser identificadas nos contratos firmados entre pessoas determinadas, objetivando ao cumprimento de prestações se e quando se concretizar uma situação futura.
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não basta a observância às regras formais que disciplinam a emissão de tais atos; a materialidade deve estar demonstrada, mediante a produção de prova da existência do fato sobre o qual se fundam as normas constituidoras das relações jurídicas tributárias. A fundamentação das normas individuais e concretas na linguagem das provas decorre da necessária observância aos princípios da estrita legalidade e da tipicidade tributária, limites objetivos que buscam implementar o sobreprincípio da segurança jurídica, garantindo que os indivíduos estarão sujeitos à tributação somente se for praticado o fato conotativamente descrito na hipótese normativa tributária. Como bem ensina Paulo de Barros Carvalho440, o princípio da tipicidade tributária define-se em duas dimensões, quais sejam o plano legislativo e o da facticidade. No primeiro está a necessidade de que a norma geral e abstrata traga todos os elementos descritores do fato jurídico tributário e os dados prescritores da relação obrigacional, ao passo que no segundo tem-se a exigência da estrita subsunção do fato à previsão genérica da norma geral e abstrata, vinculando-se à correspondente obrigação. Por esse motivo, a norma individual e concreta que constitui o fato jurídico tributário e a correspondente obrigação deve trazer, no antecedente, o fato tipificado pela norma geral e abstrata, com as respectivas coordenadas temporais e espaciais, indicando, no consequente, o fato da base de cálculo, que, juntamente com a alíquota, especificam o quantum devido, bem como os sujeitos integrantes do vínculo obrigacional. E, para que a identificação desses fatos441 seja efetuada em conformidade com as prescrições do sistema jurídico, deve pautar-se na linguagem das provas. É por meio
440. A prova no procedimento administrativo tributário. In: Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 105. 441. Tanto o antecedente como o consequente contêm fatos: fato jurídico tributário e base de cálculo, respectivamente. Ao constituir esses fatos, o emissor terá de pautar seus enunciados em provas admitidas pelo direito.
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das provas que se certifica a ocorrência do fato e seu perfeito quadramento aos traços tipificadores veiculados pela norma geral e abstrata, permitindo falar em subsunção do fato à norma e em implicação entre antecedente e consequente, operações lógicas que caracterizam o fenômeno da incidência normativa. Podemos dizer, em síntese, que a linguagem das provas é da ordem da aplicação do direito. Firmadas essas premissas, verificamos que, com o advento da Lei 10.174/2001 e da LC 105/2001, a Administração Tributária passou a utilizar as informações relativas à CPMF, recebidas das instituições financeiras, para instaurar procedimento administrativo de fiscalização de outros tributos federais e, em consequência, para efetuar a constituição do crédito tributário. Passou a fazê-lo, inclusive, em relação aos períodos anteriores a 2001, atingindo situações pretéritas à entrada em vigor das referidas legislações. Ora, não pode o legislador fixar o início da vigência da lei em data anterior à de sua publicação, pois com isso estar-se-ia violando o primado da segurança jurídica. Tal atitude é ainda mais absurda quando nos lembramos de que “o direito se realiza no contexto de um grandioso processo comunicacional”442, impondo a necessidade premente de conhecimento das normas jurídicas pelas pessoas a que se dirigem, sendo o momento dessa ciência o marco preciso do instante em que a norma ingressa no ordenamento do direito posto. Efetuadas essas breves considerações, entendemos que o princípio da irretroatividade tributária é aplicável a todas as normas jurídicas tributárias. Nem mesmo a lei processual tem o condão de retroagir, pois como leciona Gilberto de Ulhôa Canto443, essa espécie normativa “se aplica desde logo aos fa442. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 242. 443. Direito tributário aplicado – pareceres, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 38.
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tos pendentes, permanecendo, porém, válidos os atos já realizados com observância da lei anterior”. Examinando o que chama de “concepção espacializante do tempo jurídico”, consequência do impacto de eventual sucessão de normas jurídicas em relação a um fato, Wilson de Souza Campos Batalha444 discorre: O tempo jurídico corta, opera dividindo, secando. Não é fluxo contínuo, não constitui um desenrolar-se, um evolver, um transformar-se. Opera por cortes e saltos numa realidade que insta, dura e se transforma paulatinamente. O tempo jurídico, na fixação dos termos e dos prazos fatais, peremptórios, improrrogáveis ou prorrogáveis, corta a realidade que dura, distinguindo a legalidade de ontem da legalidade de hoje, separando a validade do que se fez ontem e a invalidade do que se fez hoje, o útil de hoje e o útil de amanhã, a perda e a aquisição, o castigo dos que dormiram até o dia ‘x’ e o prêmio dos que permaneceram em ativa vigilância até a data ‘y’. Mas como esses cortes numa realidade que dura, essas divisões numa vida social que flui e insta constituíram flagrante injustiça, ou constituíram justiça a gerar inseguranças, surgiu, no seio do conceito jurídico do tempo, a ideia da intertemporalidade.
Nesse sentido, recorda Caio Mário da Silva Pereira445 que, ao tratar de direito intertemporal, o cientista jurídico procura formular princípios que norteiem o intérprete, de modo que se concilie a evolução legislativa com o conceito da estabilidade das relações humanas. Exatamente em virtude do sobreprincípio da segurança jurídica, concretizado mediante a estabilidade das relações que é proporcionada, dentre outros, pelo primado da irretroatividade da lei, não podemos admitir a adoção da Lei 10.174/2001 e da LC 105/2001 para atingir fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor, como é o caso do emprego de dados da CPMF anteriores ao ano de 2001. Segundo Roberto
444. Direito intertemporal, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 15. 445. Instituições de direito civil, 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, v. 1, p. 90.
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Quiroga Mosquera446, tal pretensão “configura artifício desleal da Administração, pois, inicialmente, ‘promete-se’ que os dados não serão utilizados para outros fins senão aqueles atinentes à fiscalização da CPMF e, posteriormente, utilizam-se os mesmos dados, retroativamente, para lançamento de outros tributos”. Nem se alegue eventual permissão de tal retroatividade, em função do veiculado no art. 144, §1°, do CTN. Esse dispositivo prescreve: Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administrativas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios, exceto, neste último caso, párea o efeito de atribuir responsabilidade tributária a terceiros.
Tal enunciado refere-se à imediata aplicação da norma de caráter processual ou procedimental. Não se pode estender seu conteúdo, porém, de modo que venha a acarretar alterações nas relações jurídicas passadas. Acolhemos as considerações do Min. Peçanha Martins, nos autos do REsp 668.012PR, no sentido de que “a regra do §1° do art. 144 do CTN refere-se ao procedimento administrativo e às prerrogativas meramente instrumentais, não podendo ser interpretado de forma colidente com o direito fundamental do sigilo bancário, que só pode ser quebrado na forma estabelecida em lei”. Além disso, o tema da utilização de dados da CPMF diz respeito à produção probatória. Logo, não acarreta implicações de ordem meramente processual, interferindo, decisivamente, na constituição das relações jurídicas, como é o caso da obrigação tributária. Já tivemos a oportunidade de registrar que as provas não apresentam unicamente a função de instrumentalizar o 446. Direito monetário e tributação da moeda, São Paulo: Dialética, 2006, p. 275.
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conhecimento do julgador. Têm, também, o objetivo de dar sustento aos fatos descritos no antecedente de normas individuais e concretas que irradiam seus efeitos independentemente de serem levadas à apreciação do Poder Judiciário ou de outro órgão julgador. Por essa razão, a prova também pertence ao direito material. E, sendo vedado à lei posterior disciplinar aspectos materiais pretéritos, é inadmissível que pretenda ela intervir na circunscrição fática passada, conferindo-lhe efeitos diversos daqueles prescritos à época. Diante do exposto, podemos concluir que, para que o processo de positivação se realize, necessário se faz o perfeito quadramento do fato à previsão normativa abstrata. E é exatamente por meio das provas que se certificam a ocorrência fática e sua adequação aos traços tipificadores veiculados pela norma geral e abstrata, permitindo falar em subsunção do fato à norma e em implicação entre antecedente e consequente, operações lógicas que caracterizam o fenômeno da incidência normativa. Desse modo, a linguagem das provas, prescrita pelo direito, não apenas relata que um evento ocorreu, mas atua na própria constituição do fato jurídico tributário. Posto isso, e tendo em vista que o próprio sistema do direito estabelece quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade, quer dizer, os fatos que desencadeiam consequências de direito e os que são juridicamente irrelevantes, é inadmissível pretender-se aplicar, com efeitos retroativos, norma que altera o modo pelo qual os fatos são considerados no ordenamento. Se em determinado instante (T1) vigorava norma jurídica (N1) que resguardava o sigilo dos dados da CPMF informados à Secretaria da Receita Federal, proibindo seu emprego para constituição de créditos tributários relativos a outras contribuições e impostos, os fatos praticados nessa época encontravam-se sob os efeitos de tal regramento. Legislação (N2) editada em momento posterior (T2) que disponha de modo contrário, permitindo a utilização dos dados da CPMF para constituir créditos tributários de outros impostos e contribuições, altera
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substancialmente a disciplina das relações entre fisco e contribuinte. Firmadas essas premissas, muito embora o STF tenha se manifestado em sentido contrário, concluímos que não se trata de mera norma procedimental, mas de regra que interfere e modifica direito do particular, irradiando efeitos tão somente em relação aos acontecimentos futuros. E conclusão dessa natureza não se limita às disposições da LC 105/2001 e da Lei 10.174/2001, sendo aplicável a todas e quaisquer hipóteses em que se tenha a regulamentação das hipóteses e consequências de acesso, pelo Fisco, a dados do contribuinte, como é o caso do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária, referido no item subsequente.
6.3.1.3 O valor probatório da DERCAT apresentada para fins de adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) Recentemente, o assunto quanto à possibilidade de documentos, constituídos no âmbito de determinada previsão legislativa e cuja disciplina vede seu emprego para fins de constituição de crédito tributário, possuírem força probatória em casos futuros. Isso porque, por meio do Decreto Legislativo 105/2016, o Congresso Nacional aprovou o texto da Convenção de Assistência Mútua em Assuntos Fiscais, assinada em novembro de 2011, tendo por objeto o intercâmbio automático de informações tributárias e financeiras de interesse das nações signatárias. Nesse contexto, sobreveio o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária [RERCT], instituído pela Lei 13.254/2016 e regulamentado pela Instrução Normativa RFB 1.627/2016 e pela Circular BACEN 3.787/2016, possibilitando ao contribuinte, residente ou domiciliado no país em 31/12/2014, a entrega de declaração voluntária de ativos de origem lícita, que, antes de 31/12/2014, tenham sido remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados sem observar a
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legislação competente, assegurando dispensa de penalidades por infrações fiscais e cambiais e anistia pela prática de crimes contra a ordem tributária e financeira. Trata-se de assunto que abrange uma série de controvérsias e, dentre elas, destacamos a problemática quanto ao valor probatório da Declaração de Regularização Cambial e Tributária [DERCAT], visto que nesta há a identificação dos bens e direitos de titularidade do declarante, assim como das condutas ilícitas por ele reconhecidas. Indaga-se, pois, quanto à possibilidade de tais informações serem utilizadas para fins tributários, especialmente nas hipóteses em que, eventualmente, advenha ato da Receita Federal do Brasil que determine a “exclusão” ou “não adesão” ao citado regime. Vejamos como as declarações apresentadas pelo contribuinte se relacionam e quais seus efeitos, quando realizadas sob a sistemática da Lei 13.254/2016. Pois bem, como um dos requisitos para adesão ao RERCT, o art. 4º da Lei 13.254/2016 prescreve a obrigatoriedade de a pessoa física ou jurídica apresentar, à Secretaria da Receita Federal do Brasil, declaração única de regularização contendo a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31 de dezembro de 2014 a serem regularizados, com o respectivo valor em real, ou, no caso de inexistência de saldo ou título de propriedade em 31 de dezembro de 2014, a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes previstos no §1º do art. 5º da mesma Lei. Além da DERCAT, os recursos, bens e direitos constantes dessa declaração deverão também ser informados na: (i) declaração retificadora de ajuste anual do imposto de renda relativa ao ano-calendário de 2014 e posteriores, no caso de pessoa física; (ii) declaração retificadora de declaração de bens e capitais no exterior relativa ao ano-calendário de 2014 e posteriores, no caso de pessoa física e jurídica, se a ela estiver
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obrigada; e (iii) escrituração contábil societária relativa ao ano-calendário de adesão e posteriores, no caso de pessoa jurídica [art. 4º, 2º, da Lei nº 13.254/2016]. Ainda, nos termos do §7º do citado art. 4º, os rendimentos, frutos e acessórios decorrentes do aproveitamento, no exterior ou no País, dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza regularizados por meio da DERCAT, obtidos no ano-calendário de 2015, deverão ser incluídos nas citadas declarações retificadoras (previstas no §2º do art. 4º], sendolhes aplicável o art. 138 do CTN [denúncia espontânea] se as retificações necessárias forem feitas até o último dia do prazo para adesão ao RERCT. Ao apresentar a DERCAT e retificadoras do imposto sobre a renda previstas na Lei 13.254/2016, o contribuinte informa a titularidade de bens e direitos, assim como os respectivos valores, os quais, por presunção absoluta estipulada nessa mesma Lei, são tributados a título de ganho de capital, mediante alíquota de 15% [acrescido de multa de 100% do valor do imposto devido]. Ocorrendo “exclusão” ou “não-adesão” ao RERCT, entretanto, tornam-se inaplicáveis as disposições desse regime especial, possibilitando a exigência de tributos, juros, multas, assim como a aplicação de penalidades cíveis, penais e administrativas, conforme o caso. Essas providências, entretanto, demandam a aplicação das disposições legais ao caso concreto, demonstrando-se, mediante a linguagem das provas, a concretização dos respectivos fatos jurídicos [fato jurídico tributário, ilícito penal, ilícito administrativo etc.]. Os dados comunicados por meio da DERCAT, porém, não podem ser utilizados para essa finalidade. O §12 do art. 4º da Lei 13.254/2016 prescreve que a declaração de regularização não poderá, por qualquer modo, ser utilizada (i) como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal, nem (ii)
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para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou cambial em relação aos recursos dela constantes. Não bastasse isso, o art. 7º, §2º, prescreve ser vedada à Receita Federal do Brasil, ao Conselho Monetário Nacional, ao Banco Central do Brasil e aos demais órgãos públicos intervenientes do RERCT “a divulgação ou o compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes que tiverem aderido ao RERCT com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive para fins de constituição de crédito tributário”. Isso significa sigilo fiscal quanto à DERCAT. Desse modo, havendo a exclusão ou a não-adesão ao RERCT, os dados constantes da DERCAT não podem ser utilizados pela autoridade administrativa tributária. Há de ser feito procedimento investigatório próprio, obtendo-se, por outros meios, os elementos necessários à constituição do crédito tributário. O uso de dados do DERCAT equivale à utilização de prova ilícita, visto que expressamente vedado. Daí que tanto o uso desses dados, como aqueles obtidos a partir [tendo por fundamento] da DERCAT são imprestáveis, implicando nulidade do ato que neles se paute, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal [STJ, HC 137.349; STJ, HC 159.159; STF, ARE 676280]. Não bastasse isso, nos termos do §2º do art. 9º desse Diploma Legal: Na hipótese de exclusão do contribuinte do RERCT, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte.
Deve haver, portanto, todo um procedimento fiscalizatório, cujo termo de verificação fiscal demonstre a origem dos dados tomados para lavratura da autuação, o mesmo devendo ocorrer quanto aos ilícitos penais e outros que se pretenda imputar ao contribuinte.
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Cumpre esclarecer também que, para adesão ao regime, há necessidade de declaração retificadora de juste anual [pessoa física], retificadora da declaração de bens e capitais no exterior [se física ou jurídica] e escrituração contábil societária [PJ]. Esses documentos, normalmente, são de acesso das fiscalizações estadual e municipal. A despeito disso, por decorrência do não compartilhamento das informações da DERCAT e da previsão de que esses dados não poderão ser utilizados, direta ou indiretamente, para constituir créditos tributários, os dados dessa declaração, inseridos nas retificadoras, igualmente não poderão ser utilizados. Diante das demais disposições da Lei 13.254/2016, consideramos que não há como a RFB pretender pautar-se nas retificadoras apresentadas pelo contribuinte para, a partir delas, recalcular os tributos, multas e juros. Essas retificadoras são feitas no contexto da DERCAT, sendo reflexos daquela, aplicando-se lhe, portanto, as disposições do regime especial. Não bastasse isso, por expressa determinação legal, as informações constantes da DERCAT não podem ser compartilhadas com os Estados, Distrito Federal e Municípios, nem mesmo para fins de constituição de crédito tributário447. Desse modo, quaisquer informações prestadas à Receita Federal do Brasil no âmbito do RERCT [como a apresentação de retificadoras] hão de ser mantidas em sigilo pela Administração Federal.
447. Lei 13.254/2016. “Art. 7o A adesão ao RERCT poderá ser feita no prazo de 210 (duzentos e dez) dias, contado a partir da data de entrada em vigor do ato da RFB de que trata o art. 10, com declaração da situação patrimonial em 31 de dezembro de 2014 e o consequente pagamento do tributo e da multa. § 1o A divulgação ou a publicidade das informações presentes no RERCT implicarão efeito equivalente à quebra do sigilo fiscal, sujeitando o responsável às penas previstas na LC 105/2001, e no art. 325 do Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal), e, no caso de funcionário público, à pena de demissão. § 2o Sem prejuízo do disposto no § 6o do art. 4o, é vedada à RFB, ao Conselho Monetário Nacional (CMN), ao Banco Central do Brasil e aos demais órgãos públicos intervenientes do RERCT a divulgação ou o compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes que tiverem aderido ao RERCT com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive para fins de constituição de crédito tributário.”
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6.3.2 Lugar da prova: noções gerais e sua identificação no processo administrativo tributário Como fato que é, a prova acontece dentro de certos limites espaciais. Para que ingresse no sistema jurídico, porém, precisa cumprir certos requisitos, tal como sua admissão pelo julgador, ato que autoriza sua realização e consequente introdução nos autos processuais. Por essa referência, percebe-se ser o processo o lugar em que a prova é produzida. Ensina João Batista Lopes448 que “o juiz é o destinatário da prova, de modo que toda a atividade instrutória deve ser perante ele exercida”. O procedimento é o mesmo ainda que se trate de documento constituído, para o qual se requer apenas sua introdução nos autos, pois a autorização concedida pelo julgador acarreta a produção da prova no processo. Pode acontecer, contudo, que uma parte da enunciação probatória ocorra fora do processo, e até mesmo em local exterior à jurisdição atribuída ao juiz da causa. Esta última caracteriza a chamada prova de fora de terra, ou, simplesmente, prova de fora. A prova de fora de terra faz-se por meio de carta de ordem, precatória ou rogatória. Para tanto, é necessário que um elemento imprescindível à enunciação da prova não esteja dentro dos limites da jurisdição em que tramita o processo, e, assim como em qualquer pretensão probatória, que a prova seja útil à demonstração de fato relevante. A despeito das distinções na sintaxe interna dos diversos meios de prova, possibilitando que alguns deles sejam parcialmente desenvolvidos no exterior dos autos e até mesmo fora de terra, a prova, como resultado, será verificada sempre no processo. Independentemente de onde ocorram parcelas de sua enunciação, o enunciado probatório só assume essa feição ao ingressar no sistema jurídico, por meio de documento juntado ao processo.
448. A prova no direito processual civil, p. 63.
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No âmbito dos processos administrativos tributários, a prova também tem seu lugar nos autos processuais449. Sua enunciação, na qualidade de evento, de ato de fala, opera-se no mundo fenomênico, e, portanto, sem específicas determinações espaciais. Mas, relatada na linguagem competente, as coordenadas de lugar são indeclináveis: uma, relativa ao limite territorial em que foi redigida [lugar da prova]; outra, concernente ao aspecto espacial atribuído ao evento, relatado no fato da prova [lugar na prova]. Tudo isso, entretanto, só figura como prova processual no contencioso administrativo tributário se vier a integrá-lo, mediante sua admissão nos autos.
6.3.3 Sujeitos da prova no direito processual civil Tomada a relação jurídica como o vínculo entre pelo menos dois sujeitos de direito, em torno de determinado objeto, a figura do processo aparece como produto de uma série de relações450. Nas palavras de Paulo Cesar Conrado451, “opera, em primeiro lugar, uma relação linear entre autor e juiz, quando então se deduz uma certa pretensão; logo depois, opera uma outra relação, linear como a primeira, mas desta feita entre juiz e réu; da combinação dessas duas relações básicas é que exsurge, então, a angularidade da relação jurídica processual completa, ou seja, aquela que se conforma pela adição daquelas duas primeiras [lineares]”. Essas relações, por sua vez, atuam dentro de um sistema comunicacional, em que se exige a transmissão de informações às pessoas envolvidas na demanda, mediante atos processuais. Tanto as partes como o julgador são focos ejetores de mensagens no processo, cujo conteúdo varia em razão do papel que cada um deles exerce naquele contexto: 449. Caso não instalado o contencioso administrativo tributário, a prova do fato jurídico ou do ilícito tributário tem seu lugar no suporte físico do lançamento ou no auto de infração. 450. Para maiores esclarecimentos sobre o cálculo das relações, consulte-se Paulo de Barros Carvalho, Apostila de filosofia do direito I [Lógica jurídica]. 451. Introdução à teoria geral do processo civil, p. 214.
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“(i) enquanto autor e réu atuam no processo na defesa de posições antagônicas, um pretendendo [o autor] e outro resistindo [o réu], (ii) o terceiro sujeito, o juiz, atua com o propósito de definir o conflito havido entre aqueloutros”452, contrapondo-se, em virtude disso, a parcialidade da atividade desenvolvida pelas partes e o caráter imparcial dos atos do julgador. Considerado o sistema comunicacional em que se produzem as provas, as partes funcionam como emissores e o julgador como destinatário, disso decorrendo as diferenças nas atuações dos sujeitos processuais. Como consequência do princípio dispositivo, a proposição das provas é, por excelência, ato das partes. A elas compete afirmar os fatos, fundamento do direito subjetivo invocado, bem como convencer o julgador acerca da sua ocorrência, fazendo uso da linguagem das provas. Por outro lado, o sujeito encarregado de dirimir a lide mediante aplicação do direito ao caso concreto também tem participação direta no procedimento probatório. Segundo Moacyr Amaral Santos453, “enquanto as partes atuam por meio de afirmações e proposições, alegando fatos e propondo sua prova, ao juiz cumpre a tarefa de conhecê-los e torná-los reproduzidos no processo. As partes, porém, interferem na atuação judicial, facilitando-lhe o conhecimento e a demonstração dos fatos; o juiz intervém na atuação dos litigantes, pedindo ou forçando esclarecimentos das afirmações feitas, sugerindo ou ordenando provas por eles propostas”. Dá-se, assim, uma perfeita interdependência das atribuições das partes e do julgador no processo probatório, de modo que, conquanto não caiba ao juiz a produção de provas, está autorizado a determiná-la nas hipóteses em que for necessária para a formação do seu convencimento. É o que prescreve o art. 370, caput, do CPC/2015:
452. Paulo Cesar Conrado, Compensação tributária e processo, p. 193. 453. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 260.
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Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Ao julgador não compete, porém, determinar a realização de provas de ofício, em substituição à iniciativa das partes. A interpretação do dispositivo transcrito, considerado o sistema jurídico em sua integralidade, leva à conclusão de que a produção probatória independente do requerimento dos litigantes só tem lugar quando as provas constantes dos autos causarem estado de perplexidade no destinatário, por se apresentarem incompletas454. Trata-se de situação excepcional. Se, entretanto, a parte se omite quanto ao dever de provar, não há que falar em produção probatória por parte do julgador. É lícita a determinação de diligência para esclarecer as dúvidas desde que isso não implique produção de prova que poderia ser e não foi proposta pela parte a quem cumpria o ônus de provar. Como esclarece Aclibes Burgarelli455, “há provas que somente o autor ou o réu devem diligenciar, por entendimento do magistrado, visto como a este, e tão somente a este, reserva-se a operação intelectual de formação do convencimento. Se o juiz percebe que a parte não tem dado encaminhamento razoável ao desfecho da demanda e entende mesmo ser inútil gastar mais tempo com providências de ofício, pode julgar o mérito, mas impõe-se sempre o dever de fundamentar adequadamente sua decisão”. O caput do art. 370 do CPC/2015 tem aplicação nas hipóteses em que se verifica um fato incerto, cuja dubiedade seja emergente das provas já produzidas pelas partes. 454. “Produção não requerida pelas partes – Lide insuficientemente instruída – Impossibilidade de julgamento antecipado, a despeito de pedido dos litigantes – Hipótese em que cabe ao juiz, de ofício, determinar as provas necessárias à instrução do processo – Inteligência e aplicação dos arts. 125 e 130 do Código de Processo Civil [arts. 3°, §§ 2° e 3°, 7° , 139 e 370 do Novo CPC]. Ainda que as partes não tenham requerido produção de provas, mas sim o julgamento antecipado da lide, se esta não estiver suficientemente instruída de sorte a permitir tal julgamento, cabe ao juiz, de ofício, determinar as provas necessárias à instrução do processo” (1º TAC/SP, RT 664/91, apud Aclibes Burgarelli, Tratado das provas cíveis, p. 75). 455. Tratado das provas cíveis, p. 75.
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6.3.3.1 Os sujeitos da prova no processo administrativo tributário Partindo das noções gerais acima traçadas, em que às partes compete afirmar os fatos que pretendem ver reconhecidos, produzindo as provas necessárias para tanto, e ao julgador incumbe agir imparcialmente, examinando e valorando os elementos probatórios constituídos pelas partes, para com base neles dirimir o conflito instalado, é preciso, agora, evidenciar algumas distinções observadas na disciplina jurídica do processo administrativo tributário. O regime jurídico aplicável é diverso daquele verificado no âmbito processual civil. Os processos administrativos são orientados pelo princípio inquisitório ou da oficialidade, de modo que, conquanto o estímulo primeiro, necessário para instaurar o contencioso, caiba ao contribuinte456, o desenvolvimento processual não depende unicamente dos atos deste457. Em decorrência dos princípios constitucionais tributários, como os da legalidade e da tipicidade, bem como da autorização para que a Administração realize, ela própria, o controle de legalidade de seus atos, a produção probatória pode ser efetuada por iniciativa da autoridade julgadora. É o que dispõe, expressamente, o art. 18, caput, do Decreto 70.235/72: A autoridade julgadora de primeira instância determinará, de ofício ou a requerimento do impugnante, a realização de diligências ou perícias, quando entendê-las necessárias [...].
No mesmo sentido, o art. 25 da Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo, atribui ao órgão de julgamento competência para promover “diligências necessárias à instrução do processo”.
456. Isso não exclui a possibilidade de os atos de lançamento tributário e de aplicação de penalidade serem revistos de ofício. Nesse caso, todavia, não se fala em processo nem se verifica contenciosidade. 457. Sobre o princípio inquisitório, consultem-se os subitens 6.5.1 e 6.5.1.1 deste capítulo.
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Art. 25. Os órgãos de julgamento determinarão a realização de diligências necessárias à instrução do processo. § 1º. Encontrando-se o processo em fase de julgamento, somente por decisão do órgão julgador poderá ser determinada diligência para esclarecimento de matéria de fato. [...]”
Também na esfera municipal são identificados comandos de conteúdo semelhante, a exemplo do que se verifica na Lei 14.107/2005, do Município de São Paulo: Art. 25. Os órgãos julgadores determinarão, de ofício ou a requerimento do impugnante, a realização de diligências que entenderem necessárias, fixando prazo para tal, indeferindo as que considerarem prescindíveis, impraticáveis ou protelatórias. Art. 46. O relator, sempre que julgar conveniente, poderá solicitar, dos órgãos da Administração Municipal e dos contribuintes, as providências, diligências e informações necessárias ao esclarecimento da questão, na forma estabelecida no Regimento Interno.
Isso não significa, contudo, a juridicização da busca pela verdade material em contraposição a uma verdade formal realizada nos processos judiciais. Anota Francesco Carnelutti que, “quando em determinado regulamento jurídico todos os processos conhecidos para a exposição do fato estão juridicamente regulamentados de tal modo que seu resultado não possa ser considerado mais que determinação formal do fato, semelhante sistematização e nomenclatura carecem de base”. Semelhante é o posicionamento de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho458, asseverando que tanto nos processos judiciais como nos administrativos o que se pretende obter é a verdade processual: “Todo problema deve ser equacionado dentro do escopo da proposição admitida, servindo a prova para convencimento em torno da certeza precisamente formulada, de modo que a Administração possa, no processo, reconhecer a
458. A prova administrativa, p. 64.
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verdade material, dando ao problema a solução adequada. No processo administrativo, quando a controvérsia se faz flagrante, não é nada fácil distinguir, através do instrumento escrito, a verdade-prova formal da verdade-prova material. A verdade probatória sempre que formal, em face do pressuposto da certeza, confunde-se com a verdade probatória material, ambas movendo-se num mesmo plano de formação do convencimento”. Sem dúvida, existe diferença entre o processo judicial e o administrativo tributário. Mas tal distinção é consequência das peculiaridades da regulamentação de cada qual, e não da espécie de verdade pretendida. Tanto na esfera judicial como na administrativa, o que se alcança é a verdade juridicamente construída, que denominamos verdade lógica. O que se diferencia no procedimento de ambos é o regime jurídico, os princípios que os orientam: o princípio dispositivo no primeiro; o inquisitivo no segundo. A verdade buscada no processo administrativo tributário não se distingue, ontologicamente, daquela pretendida no processo judicial. Esses trâmites diferenciam-se em razão de sua forma regulatória. Assim é que ao processo judicial aplica-se o princípio dispositivo, ao passo que o princípio inquisitivo ou da oficialidade regem as ações no processo administrativo tributário, de modo que a construção da verdade, no âmbito do processo administrativo tributário, opera-se com a ativa participação da autoridade julgadora, que pode determinar a produção probatória que considerar cabível, observados, sempre, os limites postos pelo sistema do direito em vigor.
6.4 Prova é tema de direito material ou de direito processual? Ainda se discute muito sobre a natureza jurídica das normas relativas à prova, indagando-se se seriam processuais ou de direito material. Duas correntes prevalecem: (i) uma, considerando toda regra sobre prova como sendo de direito
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processual; e (ii) outra, entendendo possível separar as regras sobre a produção da prova como de direito processual e as relativas aos meios de prova propriamente ditos como de direito material. É certo, porém, que as provas não operam somente no processo; não constituem exclusivamente uma instituição processual. Segundo Clarice Von Oertzen de Araújo459; A análise da positivação das normas traz inevitavelmente, no Direito contemporâneo, a dualidade entre direito material e processual, pois o próprio fenômeno de aplicação das leis – a incidência – também é regulado pelas normas de estrutura. Ou seja, a incidência envolverá sempre um aspecto de direito material – qual ou quais normas incidem na regulamentação de um caso concreto – e de direito processual – como a incidência deve ocorrer.
O mesmo se pode dizer da teoria das provas: apresenta um aspecto material, voltado à constituição do fato jurídico tributário que se subsome à hipótese normativa, e outro de direito processual, disciplinando a forma pela qual tal fato há de ser constituído nos autos. Essa dualidade é identificada com clareza por Cândido Rangel Dinamarco460, ao afirmar serem as provas institutos bifrontes: Só no processo aparecem de modo explícito em casos concretos, mas são integrados por um intenso coeficiente de elementos definidos pelo direito material e – o que é mais importante – de algum modo dizem respeito à própria vida dos sujeitos e suas relações entre si com os bens da vida. Constituem ponte de passagem entre o direito e o processo, ou seja, entre o plano substancial e o processual do ordenamento jurídico.
459. Semiótica do direito, p. 192-193. 460. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 44.
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No mesmo sentido é a lição de Sílvio de Salvo Venosa461, para quem a matéria da prova “encontra-se na zona fronteiriça entre o direito material e o direito processual, razão pela qual o Código Civil traça os contornos principais, enquanto o Código de Processo Civil tece maiores minúcias sobre o tema. O Direito Civil estipula os meios de prova e os fundamentos principais respectivos pelos quais se comprovarão fatos, atos e negócios jurídicos. O direito processual traça os limites da produção da prova, sua apreciação pelo juiz, bem como a técnica de produzi-la em juízo”. Sobre o assunto, João Baptista Machado462 noticia existirem normas jurídicas que, ao disciplinarem a prova, afetam a substância do fato, devendo ser consideradas pertinentes ao direito substantivo e não exclusivamente ao direito processual. As provas não apresentam unicamente a função de instrumentalizar o conhecimento do julgador. Têm, também, o objetivo de dar sustento aos fatos descritos no antecedente de normas individuais e concretas que irradiam seus efeitos independentemente de serem levadas à apreciação do Poder Judiciário ou de outro órgão julgador. Por essa razão, a prova também pertence ao direito material. A identificação de sua natureza jurídica depende, portanto, do ângulo pelo qual é observada: (i) do prisma estático, temos a prova como elemento de direito substantivo; (ii) da perspectiva dinâmica, encontramos a prova no direito processual, com vistas à aplicação de norma geral e abstrata. É a partir dessa observação que Moacyr Amaral Santos463 conclui que: Aceitando-se, como aceita a generalidade dos autores, a distinção entre direito formal e direito substancial, não há senão que se concluir que a prova participa de um e de outro, do direito
461. Direito civil, v. 1, p. 566-567. 462. Lições de direito internacional privado, p. 17-18. 463. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 41.
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adjetivo e do direito substantivo, segundo seja vista quanto à sua produção em juízo e quanto à sua admissibilidade e valor.
E o motivo pelo qual se opera essa transposição entre direito material e processual é o fato de que a categoria prova transcende ao plano do direito positivo vigente, encontrando raízes na Teoria Geral do Direito. Sobre o assunto, discorre, com propriedade, Paulo de Barros Carvalho464: Para aqueles que tomam o fenômeno jurídico na sua integridade constitutiva, vendo-o como unidade indecomponível, a prova haverá de ser tema da Teoria Geral do Direito. Torna-se impossível dizer, por isso mesmo, em que ramo da dogmática positiva ela se situa, uma vez que as divisões e subdivisões internas respondem apenas a um apelo de corte epistemológico, para fins meramente didáticos. Agora, numa aproximação ligeira, superficial, verificamos uma quantidade intensa de preceitos sobre a técnica de produção das provas no direito processual, ao passo que no direito material prevalecem aqueles preceitos que aludem, basicamente, à constituição dos fatos jurídicos.
Por tudo o que se expôs, a teoria da prova no direito tributário há de ser edificada com base nas noções e caracteres da prova em geral. Sua morfologia e sintaxe são conformadas por regras que, partindo dos elementos intrínsecos à prova, a eles atribui configuração peculiar ao seguimento jurídico em questão. Assim é que, também na esfera tributária, a prova, estaticamente observada, mostra-se componente do âmbito material [com a especificação dos documentos necessários à comprovação dos fatos jurídicos tributários, por exemplo], ao passo que, examinada sua dinâmica, o aspecto processual se destaca.
464. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
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6.5 Princípios que orientam a produção da prova no processo administrativo tributário O termo princípio padece do vício da polissemia, podendo ser empregado em distintas situações, com variados significados. Após detida reflexão semântica sobre esse vocábulo, Paulo de Barros Carvalho465 observa a existência de quatro usos distintos: (i) norma-valor; (ii) norma-limite objetivo; (iii) valor; e (iv) limite objetivo. Optamos pelas duas primeiras alternativas (norma-valor e norma-limite), em razão da homogeneidade sintática do sistema do direito positivo, que é formado única e exclusivamente por normas jurídicas466. Os princípios não existem ao lado das normas, justapondo-se ou contrapondo-se a elas. Impossível admitir a coexistência de normas e princípios, como se fossem entidades diferentes convivendo no sistema do direito positivo. Princípios nada mais são que normas jurídicas carregadas de forte conotação axiológica. Há normas principiológicas gerais que se irradiam por todo o ordenamento, a exemplo dos princípios da segurança jurídica, certeza do direito, isonomia, legalidade, irretroatividade das leis etc. Outras, voltam-se ao âmbito do direito processual, como o princípio do devido processo legal, do contraditório, do juiz natural, da inafastabilidade da jurisdição, da publicidade, do duplo grau de jurisdição, da motivação, da instrumentalidade das formas, da disponibilidade, do impulso oficial, da identidade física do juiz e da concentração. Alguns deles apresentam importantes desdobramentos relativamente à produção probatória no âmbito administrativo tributário, merecendo referência específica neste trabalho.
465. Curso de direito tributário, p. 104. 466. Enquanto alguns princípios são postos em termos vagos e excessivamente genéricos, fazendo-se necessário ingressar no campo da Axiologia e no mundo das subjetividades, outros princípios são enunciados de modo tão preciso que prescindem de maiores discussões, sendo de verificação pronta e imediata, por meio da linguagem das provas admitidas em direito. No primeiro caso, temos princípio como norma-valor; no segundo, como norma-limite objetivo.
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6.5.1 Princípio dispositivo x princípio inquisitório O princípio dispositivo ou da disponibilidade implica a possibilidade de as partes disporem das faculdades jurídicoprocessuais que lhes são cometidas, deixando de postular ou tomar providências com vistas a fazer prevalecer o direito material que lhes assista. Tal preceito pode ser examinado de duas perspectivas: (i) do princípio da demanda e (ii) do princípio dispositivo em sentido estrito. O primeiro implica a vinculação do julgador aos pedidos das partes. Paulo Cesar Conrado467, ao comentar o princípio da disponibilidade, assevera que o aplicador do direito “não pode presumir a existência de desvalores. Sem prévia articulação, em linguagem competente [no caso do processo, a linguagem da petição inicial], da situação conflituosa, descabe ao Estado-juiz supô-lo”. Disso decorre a vedação de prestação de tutela jurisdicional fora dos limites estabelecidos pela lide exposta na inicial. Já o princípio dispositivo em sentido estrito diz respeito ao modo por que se presta a tutela jurisdicional, ou seja, ao seu trâmite procedimental. Decorre, também, da possibilidade que as partes têm de, a partir da sua própria vontade, limitar o conhecimento do aplicador do direito. A esse preceito contrapõe-se o princípio inquisitório, em que o julgador pode conduzir o processo, tomando quaisquer providências necessárias ao conhecimento dos fatos. Enquanto nos processos regidos pelo princípio inquisitório o julgador pode determinar a produção probatória que entender apropriada, independentemente de qualquer manifestação das partes, nos processos em que vige o princípio dispositivo, como o processual civil brasileiro, compete às partes produzir provas, sendo autorizado que o juiz o faça apenas na hipótese de a prova produzida gerar perplexidade em seu intelecto. Tal autorização é desdobramento do princípio do impulso oficial, nos termos
467. Introdução à teoria geral do processo civil, p. 80.
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do qual o Estado-juiz deve conduzir o regular andamento dos processos. Como anota Arruda Alvim468, “em face do que dispõe o art. 130 do CPC469, a única limitação à atividade do juiz com relação à atividade instrutória é a de que a ele não é dado ir além do tema probatório, ou seja, da lide ou do objeto litigioso, nem infringir o princípio do ônus [subjetivo] da prova”. Essa atividade do julgador, no regime dispositivo, é subsidiária à das partes, não servindo para suprir omissões do sujeito inerte. Por fim, convém esclarecer que, tanto nos processos regidos pelo princípio dispositivo como naqueles em que impera o princípio inquisitório, o direito positivo brasileiro exige apreciação das provas segundo o critério da persuasão racional, em que o julgador limita-se a decidir com base no que foi alegado e provado. A distinção entre ambas as espécies processuais diz respeito à iniciativa dos sujeitos do processo em relação à realização de provas, sem que isso interfira, porém, na forma de sua apreciação.
6.5.1.1 Controle de legalidade e processo administrativo tributário: adoção do princípio inquisitório A Administração Pública é regida, dentre outros, pelo princípio da legalidade, sendo-lhe terminantemente vedado ultrapassar os limites da competência a ela atribuída. Para assegurar a observância aos preceitos legais vigentes, o direito positivo brasileiro veicula a possibilidade de controle dos atos administrativos, exercido por órgão interno ou externo. No primeiro caso, identificamos a fiscalização da própria Administração sobre seus atos e agentes, denominado controle administrativo; no segundo, relacionamos a inspeção do Legislativo sobre determinados atos e agentes do Executivo
468. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 412. 469. No CPC/2015, o conteúdo desse dispositivo corresponde ao art. 370.
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[controle legislativo ou parlamentar] e a correção dos atos ilegais pelo Judiciário [controle judiciário ou judicial]. Interessa, para os fins almejados no presente trabalho, o estudo do controle interno, também chamado autocontrole. Este, segundo definição empreendida por Maria Sylvia Zanella Di Pietro470, “é o poder de fiscalização e controle que a Administração Pública [em sentido amplo] exerce sobre sua própria atuação, sob os aspectos de legalidade e mérito, por iniciativa própria ou mediante provocação”, encontrando fundamento nos princípios erigidos na Constituição Federal, incluindo seu art. 37, caput, que prescreve observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Seria um sem sentido jurídico obrigar a Administração ao cumprimento da lei, porém negar-lhe a autorização para revisar seus próprios atos, anulando-os ou confirmando-os, e, desse modo, assegurando o respeito aos princípios magnos. Esse poder para reexaminar seus atos é reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, que, acerca do tema, editou a Súmula 473: A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Se atinarmos à lição de Seabra Fagundes471, mediante a qual administrar é aplicar a lei de ofício, poderemos reconhecer nessa atividade, de rigoroso e sistemático controle da legalidade dos atos administrativos, um signo expressivo da função administrativa, exercitada na plenitude de seu conteúdo existencial. Na esfera tributária, o controle de legalidade pode operarse na forma de um processo administrativo, instalado a partir 470. Direito administrativo, p. 480. 471. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, passim.
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da formalização da resistência do contribuinte à exigência fiscal. Caracteriza-se pela conjugação de atos, organizados harmonicamente, para a obtenção de resultado que se substancia em ato expressivo e final da vontade do Estado, enquanto Poder Público, no desempenho de suas funções. Seu objetivo último é a precisa, exata e fiel aplicação da lei tributária na solução da lide. Pairando dúvida sobre o teor de juridicidade do lançamento tributário ou da aplicação de penalidade, é assegurado ao sujeito passivo o direito de impugnar o ato, suscitando seu controle. Tal atitude desencadeia uma série de outros atos, propiciando o ensejo para a decisão de primeira instância, que nada mais é que a manifestação acerca da validade do ato praticado, emanada por um órgão superior à autoridade que realizou a imposição tributária. Diante do exposto, fica fácil compreender as razões pelas quais o princípio da disponibilidade não tem lugar no contencioso administrativo tributário. Os processos administrativos são orientados pelo princípio inquisitório ou da oficialidade, de modo que, uma vez instalados, passam, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello472, a ser “encargo da própria Administração; vale dizer, cabe a ela, e não a um terceiro, a impulsão de ofício, ou seja, o empenho na condução e desdobramento da sequência de atos que o compõem a produção do ato final, conclusivo”. Logo, ainda que o contribuinte, por inércia, deixe de requisitar produção probatória, incumbe ao julgador determinar sua realização, caso a entenda necessária ao exame do caso concreto473.
6.5.2 Princípio do devido processo legal Ao processo administrativo tributário, entendido como etapa litigiosa do percurso de constituição da obrigação e das 472. Curso de direito administrativo, p. 463. 473. Essa, inclusive, é a prescrição veiculada pelo art. 18, caput, do Decreto 70.235/72 e pelo art. 22 da Lei 10.941/2001, do Estado de São Paulo.
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sanções tributárias, a Constituição de 1988 determinou a observância dos princípios inerentes ao devido processo legal, confirmando o caráter jurisdicional da composição da lide administrativa. Trata-se de preceito de observância necessária em todos os processos, inclusive nos administrativos tributários. Representa, segundo Manoel de Oliveira Franco Sobrinho474, forma de conciliar o interesse público com o direito dos administrados: “a segurança jurídica para os que dependem da Administração através do controle das formas que a lei determinar para que os atos governamentais se legitimem na legalidade”. A ideia de jurisdição não é privativa do Poder Judiciário. Sempre que o Executivo e o Legislativo agirem na composição de conflitos de interesse, estarão exercendo, atipicamente, função jurisdicional, a ela aplicando-se as garantias do devido processo legal, consistentes, segundo Agustín Gordillo475, (i) no direito de ser ouvido e (ii) no direito de oferecer e produzir provas. Efetuada a aplicação de norma tributária por autoridade administrativa, deve o destinatário do ato ser cientificado, possibilitando sua defesa. O direito de ser ouvido abrange, ainda, a oportunidade de manifestação sobre as informações, pareceres, decisões, perícias e documentos formulados ou apresentados pelo órgão exator, bem como a necessidade de apreciação de toda a matéria de defesa produzida pelo administrado. Dele decorre o direito à ampla instrução probatória, assegurando a utilização de todos os meios de prova pertinentes à lide administrativa, desde que licitamente produzidos. Nos exatos termos referidos pelo Texto Constitucional, trata-se do direito ao “contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” [art. 5º, LV], os quais constituem condição necessária para a validade do ato e do processo administrativo instalado.
474. A prova administrativa, p. 40. 475. La garantía de defesa como principio de eficacia en el procedimiento administrativo, Revista de Direito Público, n. 10, p. 16-24.
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Ensina Ada Pellegrini Grinover476 que a expressão devido processo legal indica o conjunto de garantias processuais a serem asseguradas às partes, legitimando, assim, o próprio processo. Conquanto esse princípio, em um primeiro momento, tenha consistido na mera exigência de respeito à forma procedimental, seu conteúdo, na atualidade, é bem mais abrangente. Segundo Paulo Cesar Conrado477, a cláusula due process of law apresenta-se bipartida: (i) um de seus aspectos, denominado substantive due process ou devido processo legal substantivo, encontra aplicação relativamente ao direito material, exigindo observância, pela lei, aos princípios constitucionais fundamentais; (ii) o procedural due process, por seu turno, enfatiza o caráter procedimental do processo, implicando respeito à forma. Desse princípio, expresso no art. 5º, LIV, da CRFB/88, decorrem, dentre outros, vedação a juízo ou tribunal de exceção, proibição de julgamento do processo por autoridade incompetente, garantia de que o particular não será privado de sua liberdade física ou de seus bens sem o correspondente processo judicial, princípios da ampla defesa e do contraditório, exigência de motivação das decisões e publicidade dos julgamentos478. Implica, por conseguinte, a necessidade de propiciar aos litigantes a produção de provas, sempre que úteis para a demonstração de veracidade de fato relevante para o deslinde da causa, observados, obviamente, os requisitos de forma, tempo e espaço prescritos em lei.
6.5.2.1 Princípio da ampla defesa O princípio da ampla defesa, enunciado no art. 5º, LV, do Texto Constitucional, consiste no “direito à adequada
476. O processo em sua unidade, p. 60. 477. Introdução à teoria geral do processo civil, p. 73. 478. Carlos Ari Sundfeld, Fundamentos de direito público, p. 174-175.
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resistência às pretensões adversárias”479. Além do contraditório, uma de suas implicações é a liberdade da prova, nos termos da qual os meios de prova não são limitados nem enumerados taxativamente na lei, podendo a parte utilizar qualquer elemento de convicção que entenda cabível, desde que obtido licitamente. Agustin A. Gordillo480, embora sem se referir especificamente à matéria da prova, assevera que o princípio da ampla defesa é critério de eficácia administrativa, acrescentando Manoel de Oliveira Franco Sobrinho481 que “não há defesa, nem eficácia quanto aos efeitos dela, sem que a matéria de prova assuma condição de relevo jurídico na orientação dogmática do processo administrativo”. Processo administrativo sem oportunidade de ampla defesa é nulo. Claro está que a autoridade que presidir o processo poderá indeferir provas prescindíveis ou impraticáveis, mas, para tanto, deverá justificar objetivamente sua rejeição.
6.5.2.2 Princípio do contraditório O princípio do contraditório, também denominado princípio da audiência bilateral, consiste na prescrição de que ninguém pode ser condenado sem ser ouvido482. Esse princípio diz respeito à oportunidade da defesa, significando, segundo Odete Medauar483, “a faculdade de manifestar o próprio ponto de vista ou argumentos próprios, ante fatos, documentos ou pontos de vista apresentados por outrem”. 479. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, p. 84. 480. La garantía de defesa como principio de eficacia en el procedimiento administrativo, Revista de Direito Público, n. 10, p. 16. 481. A prova administrativa, p. 39. 482. Para Paulo Cesar Conrado, o princípio da bilateralidade da audiência decorre de norma infraconstitucional, como desdobramento do contraditório (Introdução à teoria geral do processo civil, p. 77). 483. Direito administrativo moderno, p. 199.
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Trata-se de elemento ínsito à caracterização da processualidade, em que há necessária transmissão de informações e possibilidade de reação a elas. Está intimamente relacionado com o princípio da ampla defesa, por facultar à parte, quando da ciência de fatos a ela desfavoráveis, a apresentação de argumentos contrapostos. Sustenta Paulo Cesar Conrado484 que “o contraditório tem por missão imediata aperfeiçoar a noção de intersubjetividade que é intrínseca ao direito, equivalendo, nesse particular, a um símbolo jurídico da ideia de comunicação”. Por isso, dizemos que o direito à prova é uma das decorrências do princípio do contraditório. Este, ao prescrever a bilateralidade dos atos processuais, significa, segundo Guilherme de Souza Nucci485, “ter o réu sempre o direito de se manifestar quanto ao que for dito e provado pelo autor, produzindo contraprova”. As provas devem ser produzidas com observância das regras inerentes ao contraditório, sendo requeridas por uma parte, deferidas pelo julgador e realizadas sob a fiscalização da parte contrária486.
6.5.2.3 Princípio da publicidade O princípio da publicidade decorre do devido processo legal, como forma de viabilizar o direito a ser ouvido. Segundo este, todos os atos processuais devem ser susceptíveis de conhecimento geral, inclusive as provas produzidas nos autos processuais, salvo os processos que se desenvolvem em segredo de justiça. Mesmo nessas hipóteses persiste a publicidade em relação às partes, cujo direito de vista dos autos não pode ser tolhido sob nenhum pretexto.
484. Processo tributário, p. 63-64. 485. O valor da confissão como meio de prova no processo penal, p. 36. 486. Eduardo J. Couture, Fundamentos del derecho procesal civil, p. 253.
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Referido primado constitui preciosa garantia do indivíduo no tocante ao exercício da jurisdição, pois assegura o conhecimento, por parte do povo, dos atos processuais, representando, segundo Carlos Ari Sundfeld487, o mais seguro instrumento de fiscalização da atividade jurisdicional. É considerado por Jeremías Bentham488 a mais eficaz salvaguarda das decisões judiciais. Além disso, o princípio da publicidade implica o acesso das partes processuais às provas produzidas, sendo esse um imperativo necessário à implementação da ampla defesa e do contraditório.
6.5.3 Princípio da proibição da prova obtida ilicitamente A Constituição da República, no art. 5º, LVI, inadmite provas obtidas por meio ilícito. Com tal determinação, o direito positivo traçou um dos requisitos necessários ao ingresso da prova no sistema jurídico, sobre o qual discorremos no item 4.8 [capítulo 4]. Apenas o enunciado probatório produzido licitamente, quer dizer, realizado segundo procedimento não vedado pelo ordenamento, constitui prova jurídica, desencadeando os respectivos efeitos.
6.5.4 Princípio da imediatidade O princípio da imediatidade pode ser considerado sob duas perspectivas, segundo Goldschmidt489: (i) em sentido subjetivo, implicando a necessidade de o julgador tomar contato imediato e pessoal com a produção das provas; e (ii) em sentido objetivo, devendo as provas utilizadas estarem tão 487. Fundamentos de direito público, p. 179. 488. Tratado de las pruebas judiciales, p. 93. 489. Derecho procesal civil, p. 87.
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próximas quanto possível da percepção sensorial do julgador e das partes. Qualquer que seja o ponto de vista, com foco na realização da prova ou em seu destinatário, o princípio da imediatidade parte da premissa de que, presenciando a produção da prova, o julgador estará em melhores condições para valorá-la. Considera Malatesta490 haver “sinais de veracidade ou de mentira na fisionomia, no som da voz, na serenidade ou no embaraço de quem depõe”. Esse princípio está intrinsecamente relacionado com o da concentração dos atos instrutórios e o da identidade física do julgador491. Em sua observância, o destinatário das provas deve colhê-las junto às partes, testemunhas, peritos e assistentes técnicos de forma imediata, ou seja, deve participar pessoalmente da produção probatória, presenciando sua enunciação. Por suas peculiares características, o princípio da imediatidade encontra aplicação, especificamente, nos meios de provas em que se verifique a realização de depoimentos ou a inspeção ocular. É preciso registrar, contudo, que sua finalidade só é alcançada se o julgador, ao efetuar tais diligências, reduzir a termo os sinais que sua percepção identificar. Isso porque, além da forma escrita inerente às provas, a decisão exarada há de fundamentar-se exclusivamente nos elementos fáticos constantes dos autos.
6.6 Ônus da prova O primeiro passo para determinar o conceito de ônus consiste em diferençá-lo do conceito de obrigação no marco do processo em geral e da prova em particular, para, com base
490. A lógica das provas em matéria criminal, p. 103. 491. O princípio da concentração dos atos instrutórios exige que a produção das provas se realize no menor intervalo de tempo possível, enquanto o princípio da identidade física do julgador preconiza que um mesmo sujeito proceda à colheita e à avaliação das provas, decidindo a lide.
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nessas distinções, fixarmos, ainda que de modo preliminar, a ideia do que seja o ônus. O ponto diferencial entre ônus e obrigação está nas consequências cominadas a quem não realiza determinado ato. Tratando-se de vínculo obrigacional, havendo omissão do sujeito que figura no polo passivo, este pode ser coercitivamente obrigado pelo sujeito ativo. No ônus, diversamente, o indivíduo que não cumpre suas atribuições apenas sofre as implicações inerentes ao próprio descumprimento. Anota Francesco Carnelutti492 que “existe somente obrigação quando a inércia dá lugar à sanção jurídica [execução ou pena]; entretanto, se a abstenção do ato faz perder somente os efeitos úteis do próprio ato, temos a figura do ônus. [...] Por isso, se a consequência da falta de um requisito dado em um ato é somente sua nulidade, há ônus e não obrigação de efetuar o ato de cujo requisito se trata”. A esse critério distintivo acrescente-se outro, fundado no interesse: enquanto o vínculo obrigacional se impõe para a tutela de um interesse alheio, no ônus o liame volta-se à tutela de interesse próprio. Como explica Ovídio A. Baptista da Silva493, “a parte gravada com o ônus não está obrigada a desincumbir-se do encargo, como se o adversário tivesse sobre isso um direito correspectivo, pois não faz sentido dizer que alguém tenha direito a que outrem faça prova no seu próprio interesse”. O ônus consiste na necessidade de desenvolver certa atividade para obter determinado resultado pretendido. Sua existência pressupõe um direito subjetivo de agir, que pode ou não ser exercido, isto é, um direito subjetivo disponível. Nesse sentido, sublinha Paulo de Barros Carvalho494 que “o ônus 492. A prova civil, p. 255. 493. Curso de processo civil, v. 1, p. 345. 494. Teoria da prova e o fato jurídico tributário – Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP. Esse autor esclarece que, apesar da distinção entre as figuras do ônus e da obrigação, o primeiro
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configura, logicamente, uma relação meio-fim, estabelecida numa regra técnica e estruturada na forma ter-que, enquanto a obrigação funda-se no operador deôntico obrigatório”. Arruda Alvim495 distingue o ônus perfeito do ônus imperfeito. Na primeira modalidade o ônus implica uma tarefa que o titular do direito subjetivo disponível tem de exercitar caso pretenda obter efeito favorável. Em tal hipótese, o descumprimento da atividade exigida acarreta, necessariamente, consequência jurídica danosa. Quanto ao ônus imperfeito, o resultado prejudicial em razão da ausência de efetivação do ato envolvido na relação de ônus é possível, mas não necessário. Nessa segunda espécie é que se enquadra a figura do ônus da prova. Na lição de Giuseppe Chiovenda496, assim como não existe um dever de contestar, igualmente não há que falar em dever de provar. Por isso, denomina-se ônus da prova a relação jurídica que estabelece a atividade de carrear provas aos autos, já que, nas suas palavras, “é uma condição para se obter a vitória, não um dever jurídico”. Esse ônus, todavia, é imperfeito, no sentido de que, conquanto quem não produza a prova assuma o risco pela sua falta, tal omissão não implica, por si só, a perda do direito que se pretende ver tutelado, pois ainda que a parte não se tenha desincumbido do ônus da prova, o julgador pode dar-lhe ganho de causa em virtude de motivos outros. Eduardo Cambi497 formula exemplo no qual os fatos alegados pelo autor são impossíveis, situação em que, mesmo o réu não tendo contestado a ação, apresentando provas em contrário, o juiz pode rejeitar o pedido do autor, julgando-o improcedente. Por outro lado, esclarece o processualista, ainda que a parte tenha realizado o ato exigido em decorrência do também apresenta caráter jurídico, uma vez que a regra técnica estruturada no “ter-que” é posta deonticamente pelo legislador. 495. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 430-431. 496. Principii di diritto processuale civile, p. 48. 497. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 35.
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seu ônus probatório, isso não é suficiente para que lhe seja atribuído efeito favorável, uma vez que, ao apreciar os fatos alegados e valorar as provas em seu conjunto, o julgador pode entender mais convincentes os argumentos e elementos probatórios trazidos por uma parte que por outra. Não basta produzir prova, desincumbindo-se do respectivo ônus para obter êxito na demanda: é preciso que a prova resultante cumpra a função em razão da qual foi realizada, sendo persuasiva o bastante para conferir convicção ao seu destinatário.
6.6.1 Função e estrutura do ônus da prova Consignamos ser o ônus uma espécie de encargo jurídico a que se veem submetidas as partes do processo com vistas a obter o resultado que o sistema outorga a quem realiza os atos na forma e tempo estabelecidos por esse sistema. A figura do ônus da prova, especificamente, decorre da necessidade de possibilitar a decisão em situações em que o conjunto probatório seja insuficiente para convencer o julgador. Assevera Enrique M. Falcón498 que tanto as partes, ao desempenhar sua atividade probatória, como o julgador, no momento de avaliar as provas e ditar a decisão, devem ser orientados por uma regra que ofereça condições de determinar o vencedor e o perdedor na demanda, já que não é possível deixar de julgar. Ao mesmo tempo em que o ônus da prova corresponde ao encargo que têm as partes de produzir provas para demonstrar os fatos por elas alegados, serve ao julgador como auxiliar na formação de seu convencimento, em especial nas hipóteses em que a prova é insuficiente, incerta ou faltante. Nesse sentido, o ônus da prova está intimamente relacionado com problemas de valoração dos elementos carreados aos autos.
498. Tratado de la prueba, v. 1, p. 245.
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A referência à dupla função do ônus da prova é feita, também, por Eduardo Cambi499: “i) servir de regra de conduta para as partes, predeterminando quais são os fatos que devem ser provados por cada uma delas e, assim, estimulando suas atividades; ii) servir de regra de julgamento, distribuindo, entre as partes, as consequências jurídicas e os riscos decorrentes da suficiência ou da ausência da produção da prova, bem como permitindo que, em caso de dúvida quanto à existência do fato, o juiz possa decidir, já que não se admite que o processo se encerre com uma decisão non liquet”. A partir dessa bipartição, fala-se em ônus da prova em sentido subjetivo, no primeiro caso, e em ônus da prova em sentido objetivo, na segunda situação. Tal dualidade existe tão somente para fins de estudo analítico, pois uma função não subsiste sem a outra: elas se complicam. Sendo o ônus uma faculdade, exige um titular que a exerça, servindo de base para a aplicação da regra de julgamento. Por outro lado, a falta de certeza que conduz o julgador a decidir conforme os preceitos do ônus da prova não pode ser dissociada do encargo que pesa sobre quem solicita a tutela jurisdicional, cujo pressuposto é a verificação desse fato incerto. O âmbito objetivo do ônus da prova está, portanto, intimamente ligado ao aspecto subjetivo, sendo ambos necessários para a compreensão do instituto do ônus da prova.
6.6.2 O ônus da prova no processo comunicativo Vimos que o direito se apresenta na forma de um sistema comunicacional, composto por comunicações diferençadas em razão do código lícito/ilícito. Seguindo os ensinamentos de Tercio Sampaio Ferraz Jr.500, podemos visualizar o sistema do direito posto como um discurso racional, entendido como discurso fundamentante. Esclarece o autor que para ser racional “não é preciso que a cadeia reflexiva das fundamentações nos
499. Direito constitucional à prova no processo civil, p. 40. 500. Teoria da norma jurídica, p. 17-18.
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conduza a um corpo de axiomas e dele sejam dedutíveis, nem que, caso este corpo não seja patente ou mesmo não exista, que sejamos capazes de descobrir princípios últimos, explicativos ainda que provisórios [discurso fundamentável], mas sim que haja uma regra que me obrigue à fundamentação [regra do dever de prova]”. Considerada essa característica em relação aos sujeitos do processo comunicacional, identificamos o (i) emissor como aquele que possui o encargo de provar e o (ii) receptor na posição de destinatário do enunciado, em constante troca de mensagens, denominada interação. Assevera Gustavo Sampaio Valverde501 que “o discurso no qual o ouvinte aparece na condição de um interventor ou interessado ativo, pondo em xeque a assertiva endereçada pelo orador, caracteriza-se como um diálogo e torna duvidoso o objeto da discussão. É estabelecido, assim, um discurso dialógico que tem por objeto um dubium. Nesses casos o ouvinte põe em dúvida e exige que o orador justifique o que disse, de modo que, a partir daí, a discussão é enriquecida com ações linguísticas endereçadas à persuasão e ao convencimento”. Exatamente essa é a situação verificada nos processos jurídicos, quer administrativos, quer judiciais. Como discurso dialógico, a comunicação jurídica materializada nos autos processuais exige que todos os fatos alegados sejam fundamentados, com vistas a possibilitar a solução do dubium conflitivo. No discurso jurídico-processual temos duas relações comunicativas: uma, entre sujeito ativo e julgador; outra, entre sujeito passivo e julgador. Em cada um desses liames, os emissores [sujeitos ativo e passivo] enunciam fatos contrapostos, cujo reconhecimento fará prevalecer o direito de um ou de outro. O julgador, como destinatário, exige daqueles que discursam a prova de seus argumentos, os quais devem fazê-lo conforme prescrito pelas regras de distribuição do ônus da prova. 501. Coisa julgada em matéria tributária, p. 86.
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6.6.3 Distribuição do ônus da prova O direito à produção probatória decorre da liberdade que tem a parte de argumentar e demonstrar a veracidade de suas alegações, objetivando convencer o julgador. Por isso, ainda que não lhe tenha sido atribuído o ônus da prova, todos os elementos de convicção que levar aos autos serão importantes, interferindo no ato decisório. Visto por outro ângulo, o direito à prova implica a existência de ônus, segundo o qual determinado sujeito do processo tem a incumbência de comprovar os fatos por ele alegados, sob pena de, não o fazendo, ver frustrada a pretendida aplicação do direito material. Existem, assim, preceitos que determinam a quem incumbe o ônus de provar, denominadas regras de distribuição do ônus da prova. A respeito delas, três são as principais teorias elaboradas pela doutrina: (i) do fato afirmativo, em que o ônus da prova cabe a quem alega; (ii) da iniciativa, segundo a qual é sempre do autor o encargo de provar os fatos por ele alegados; e (iii) dos fatos constitutivos, impeditivos e extintivos, nos termos dos quais àquele que demanda compete provar os fatos constitutivos do seu direito, enquanto ao demandado cabe provar fatos impeditivos ou extintivos de sua obrigação. Além dessas três concepções, que, a nosso ver, estão intimamente relacionadas entre si, podendo ser compiladas em uma só, autores há, como Jeremías Bentham502, que entendem que o ônus da prova deve ser imposto à parte que puder satisfazê-lo com menores inconvenientes, isto é, menor perda de tempo, menos incômodos e despesas inferiores. A dificuldade da adoção dessa sistemática é que, na realidade, não haveria, propriamente, regra norteadora da distribuição do ônus, visto que ao julgador caberia, caso a caso, deliberar livremente sobre a que parte incumbiria constituir prova dos fatos. Modernamente, Leo Rosenberg503 e Gian Antonio Micheli504 se encarregaram de desenvolver teorias sobre o ônus da prova, sempre 502. Tratado de las pruebas judiciales, p. 36. 503. La carga de la prueba, p. 27. 504. La carga de la prueba, p. 59 e s.
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considerando sua função auxiliar à atividade julgadora. Para Rosenberg, as regras inerentes ao ônus da prova ajudam o aplicador do direito a formar um juízo afirmativo ou negativo sobre a pretensão, ainda que remanesçam incertezas com respeito às circunstâncias do fato, porque referidas regras lhe indicam o modo de chegar a uma decisão em tais situações. A essência e o valor das normas sobre o encargo da prova consistem nessa instrução dada ao julgador acerca do conteúdo da decisão que deve pronunciar num caso em que não se têm elementos de convicção sobre um fato importante. No mesmo sentido, Micheli assevera que a regra do ônus da prova manifesta natureza de norma dirigida exclusivamente ao julgador para regular o exercício concreto da jurisdição. O ônus da prova adquire sua maior relevância no momento em que o julgador deve exarar sua decisão, motivo pelo qual não se apresenta como um dever jurídico, mas apenas como uma necessidade prática de provar, a fim que o julgador possa considerar determinado fato como existente. Excluída a posição de Bentham, que, como anotamos, é demasiadamente ampla, atribuindo ao julgador a função de estabelecer, em cada caso concreto, a parte que tem o ônus da prova, as demais correntes doutrinárias relacionam-se e completam-se. Ao mesmo tempo em que estabelecem encargos às partes, as regras de distribuição do ônus da prova conferem um norte ao julgador, nas hipóteses em que as provas não sejam suficientes para convencê-lo deste ou daquele fato. As teorias do fato afirmativo, da iniciativa e dos fatos constitutivos, impeditivos e extintivos, por sua vez, não se excluem mutuamente, podendo as duas últimas ser identificadas na primeira: quem toma a iniciativa, afirma um ou mais fatos; e os fatos constitutivos, impeditivos e extintivos nada mais são que fatos afirmados. O Código Processual Civil de 2015, à semelhança do Diploma Processual anterior505, prescreve, nos incisos do art. 373, que o ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. 505. Art. 333, I e II, do Código de Processo Civil revogado.
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Concordamos com Devis Echandía506 quando afirma que tal teoria não pode ser admitida como regra geral absoluta, de modo que ao autor caiba provar os fatos constitutivos e ao demandado os fatos extintivos, modificativos ou impeditivos. Mais apropriado seria adaptar a assertiva de forma que esta seja independente da posição processual das partes. Entendemos, portanto, que a prova dos fatos constitutivos cabe a quem pretenda o nascimento da relação jurídica, e a dos extintivos, impeditivos ou modificativos, a quem os alegue, independentemente de ser autor ou réu. Segundo Pontes de Miranda507, o ônus da prova incumbe ao sujeito que alega a existência ou a inexistência de um fato, do qual deva resultar uma mutação no estado jurídico atual das coisas. Daí por que Emilio Betti508 conclui serem dois os ônus assumidos por quem pede qualquer coisa em juízo: (i) o ônus da afirmação, isto é, deve afirmar a existência de um fato jurídico no qual se funda o pedido; e (ii) o ônus da prova, quer dizer, precisa provar aquela alegação. A repartição do ônus da prova acompanha o ônus da afirmação, tanto em relação ao autor como ao demandado. Apenas se relatado o fato e presentes as provas em direito admitidas que venham a confirmá-lo, ter-se-á por ocorrido o fato jurídico. Identificam-se, nessa referência, três categorias fáticas: (i) o fato relatado/alegado; (ii) a prova; e (iii) o fato considerado ocorrido. Todos eles são fatos jurídicos, cumprindo específico papel no processo de positivação do direito. Objetivando distingui-los, empreendemos o recurso aos qualificadores sentido amplo e sentido estrito, já aplicados por Paulo de Barros Carvalho509 para diferençar a “norma jurídica em sentido estrito” da “norma jurídica em sentido amplo”. A norma jurídica em sentido estrito consiste na unidade irredutível de manifestação do deôntico, ou, nos dizeres de Lourival Vilanova510, “uma estrutura lógico-sintá-
506. Teoría general de la prueba judicial, p. 216. 507. Anotações à obra de Francisco Augusto das Neves e Castro, Teoria das provas e suas aplicações aos atos civis, p. 63. 508. Diritto processuale civile, p. 91. 509. Direito tributário, linguagem e método, p. 127 e ss. 510. Norma jurídica – proposição jurídica [significação semiótica], p. 16.
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tica de significação”. Assume, assim, a significação construída na mente do intérprete, resultante da leitura dos textos do direito positivo, apresentando a forma de um juízo hipotético: proposição condicional que determina a relação de implicação entre hipótese e consequência [a hipótese descreve os critérios identificadores de um fato e funciona como implicante da consequência, a qual prescreve o regramento de uma conduta intersubjetiva]. O conceito de norma jurídica em sentido amplo, por sua vez, abrange os enunciados prescritivos cujas significações, articuladas entre si, prestam-se para compor a mensagem deôntica com sentido completo [norma jurídica em sentido estrito]. Adotando raciocínio semelhante, chamamos de fato jurídico em sentido estrito àquele posto no antecedente da norma individual e concreta [ou de norma geral e concreta], por ser ele determinado em todos os seus aspectos mediante a conjugação de fatos jurídicos diversos, tidos como seus pressupostos. Fato jurídico em sentido amplo, por seu turno, remete a cada um dos enunciados fáticos [relatos de eventos] inseridos no ordenamento, sem que lhes esteja atrelada uma relação jurídica também em sentido estrito. Posto isso, e considerando o percurso de positivação do direito, identificamos no fato alegado, assim como nas provas, fatos jurídicos em sentido amplo. Para efetuar a aplicação do direito é necessário observar as respectivas regras de ordenação, segundo as quais aquele que pretende ver constituído determinado fato jurídico em sentido estrito precisa, primeiramente, afirmar um fato F [fato alegado], para, em seguida, prová-lo. A dinâmica probatória exige que, primeiramente, se afirme o fato, para, depois, demonstrá-lo com o emprego de provas. Tal afirmação é veiculada, por exemplo, na petição inicial e na contestação, no auto de infração administrativo e na respectiva defesa, que constituem a base para a produção probatória, realidade jurídica sobre a qual o julgador se orientará para expedir norma individual e concreta resolutiva do conflito de interesses. Ao discorrermos sobre o objeto da prova, evidenciamos tratar-se, sempre, de um fato. Considerando que a prova de um
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enunciado se faz por meio de outro enunciado que lhe é posterior, tem-se a prova como um fato de outro fato. Um metafato, portanto: consiste em um fato [em sentido amplo] que alude a outro fato [fato alegado, também fato em sentido amplo]. A prova atua, assim, como signo representativo de do fato alegado, o qual, por sua vez, apresenta-se como outro signo, que se refere ao fato social [evento em relação ao sistema do direito]: •
o fato alegado consiste no relato jurídico do evento/fato social511;
•
a prova é signo do fato alegado; e
•
constitui-se o fato jurídico em sentido estrito tendo por suporte a alegação fática e , no conjunto probatório a ela referente.
Essas relações entre os diversos níveis linguísticos podem ser observadas, com nitidez, na representação gráfica abaixo:
Tendo em visa ser a prova uma espécie de fato que se reporta a outro enunciado fático, motivando o fato jurídico em
511. Clarice Von Oertzen de Araújo, Fato e evento tributário – uma análise semiótica, p. 345 e ss.
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sentido estrito, apresenta-se a prova como elemento indispensável para a regular constituição do fato jurídico em sentido estrito, no âmbito de norma jurídica em sentido estrito [mais especificamente, de norma individual e concreta]. Tal conclusão aplica-se ainda que a assertiva seja referente a fatos negativos. A negação de um fato jurídico exige determinação no tempo e no espaço, caracterizando aquilo que Devis Echandía512 denominou negativas formais, por seu conteúdo implicar afirmação de fato positivo contrário ao alegado pela parte adversa. Semelhante é o posicionamento de Nicola Framarino dei Malatesta513, para quem “a negação de uma determinada qualidade e a de um direito determinado são sempre formais”. Esclarece o autor: “Não se nega a qualidade de branco a um objeto, senão para asseverar que sua cor é vermelha, verde, amarela, ou qualquer outra, contrária ao branco. A negação de uma qualidade é sempre, portanto, formal, tendo por conteúdo imediato, a afirmação de uma outra qualidade. [...] A existência real de todo direito concreto está sempre ligada à existência de condições positivas. Por isso, de um lado, o sujeito exclusivo do direito é a pessoa humana e não se pode conceber um direito, direi assim, suspenso fora do sujeito; do outro, a existência de todo direito concreto está ligada à existência de determinadas condições positivas e não é por isso admissível pela existência de condições positivas contrárias. Quando, pois, se nega um direito a uma pessoa, se o afirma a outra ou ao menos se afirma uma condição positiva, incompatível com a existência do direito em questão”. A prova compete a quem tem interesse em fazer prevalecer o fato afirmado. Por outro lado, se o autor apresenta provas do fato que alega, incumbe ao demandado fazer a contraprova, demonstrando fato oposto. Em processo tributário, por exemplo, se o Fisco afirma que houve determinado fato jurídico, apresentando documento comprobatório, 512. Teoría general de la prueba judicial, p. 210. 513. A lógica das provas em matéria criminal, p. 134.
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ao contribuinte cabe provar a inocorrência do alegado fato, apresentando outro documento, pois a negativa se resolve em uma ou mais afirmativas. A Lei 13.105/2015 inovou o ordenamento processual brasileiro, porém, ao possibilitar a distribuição do ônus da prova de modo diverso. Como visto, as regras de distribuição do ônus da prova prestam-se a orientar o julgador, nas hipóteses em que as provas não sejam suficientes para convencê-lo deste ou daquele fato. Considerando o julgador como o destinatário das provas, andou bem o legislador no novo Código de Processo Civil. Este, nos §§ 1º e 2º do art. 373, assim estabeleceu: §1º. Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. §2º. A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo seja impossível ou excessivamente difícil.
Com preceito de tal conteúdo, há uma espécie de atribuição diversa do ônus da prova. Fala-se, assim, em inversão de ônus da prova. Seguindo, porém, a linha de raciocínio de Leo Rosenberg514 e Gian Antonio Micheli515, entendemos inexistir inversão do ônus da prova, pois referido encargo não está determinado previamente para esta ou aquela parte, ficando na dependência das alegações efetuadas. Não obstante se observe no ordenamento uma série de normas que, aparentemente, estabeleçam essa inversão do ônus da prova, a interpretação sistemática desses dispositivos leva à conclusão de que eles 514. La carga de la prueba, p. 43. 515. La carga de la prueba, p. 61.
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não invertem, efetivamente, o encargo de provar, pois continua havendo necessidade de que cada uma das partes demonstre o pressuposto de fato previsto na hipótese da norma que invoca como fundamento à sua pretensão, ainda que seu pleito seja exatamente a constituição de um fato [F1] que o desincumba de provar outro fato [F2]. Sistematizando as disposições do art. 373, I e II, §§ 1º e 2º do novo Código de Processo Civil, temos os seguintes desdobramentos: 1. o inciso I estipula que o ônus da prova cabe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; 2. no inciso II, tem-se a atribuição ao réu do ônus da prova dos fatos por ele alegados, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor; 3. o § 1º prevê hipóteses de nova atribuição do ônus da prova, mediante demonstração de fatos atinentes (i) às peculiaridades da causa ou (ii) à impossibilidade ou excessiva dificuldade de produção probatória pelo sujeito a quem inicialmente era atribuído o ônus; 4. o § 2º, contudo, dispõe sobre o mecanismo para desconstituirse a atribuição do ônus da prova posto nos termos do § 1º, o que dá com suporte na prova da dificuldade excessiva ou impossibilidade de desincumbência do ônus probatório que lhe tenha sido imposto pelo julgador. Com efeito, a “carga dinâmica da prova” veiculada pelo art. 373 do CPC/2015 não implica mera inversão do ônus da prova, com sua dispensa a quaisquer das partes. Somente se demonstrado o fato da maior facilidade de obtenção da prova por parte processual diferente da que alegou o fato, ou impossibilidade de o sujeito que fez a alegação prová-la, tem lugar a conferência do encargo à parte adversa. Desloca-se, assim, o objeto da prova, que deixa de ser o fato alegado constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo do direito [art. 373, I e II], passando a consistir no fato alegado da impossibilidade
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probatória ou da maior facilidade alheia [art. 373, §1º]. A presença de tal requisito é indispensável para que se atribua a carga da prova a quem não tenha alegado o fato, cabendo, por isso mesmo, a alegação de fato contrário e respectiva contraprova, nos termos do art. 373, §2°, do CPC/2015.
6.6.4 Convenção das partes relativa à distribuição do ônus da prova As convenções sobre a distribuição do ônus da prova são reputadas inadmissíveis, ou, na melhor das hipóteses, vistas com extrema reserva por Giuseppe Chiovenda516, Ugo Rocco517, Gian Antonio Micheli518 e Devis Echandía519. O posicionamento de Chiovenda não poderia ser outro, já que entende ser o ônus da prova dirigido ao convencimento do julgador, como regra de julgamento. No mesmo sentido manifesta-se Micheli, por considerar que o ônus da prova refere-se ao exercício jurisdicional, em relação ao qual não cabe às partes intervir. Ugo Rocco também é contrário a tais convenções, dado o caráter publicístico do processo, sendo vedado às partes acordarem de modo contrário às normas que disciplinam o exercício das provas, que, a seu ver, vincula-se ao direito de ação e destina-se a formar a convicção do julgador. Devis Echandía, não obstante repudie essa espécie de convenção, apresenta posicionamento mais flexível, entendendo que apenas na hipótese de inexistir na lei disposição sobre a distribuição do ônus da prova seria admissível a estipulação privada que o imponha a uma das partes. De outro lado, reconhecem legitimidade a convenções acerca da distribuição do ônus probatório, dentre outros, Leo
516. Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 281-282. 517. Trattato di diritto processuale civile, v. 2, p. 190. 518. La carga de la prueba, p. 37. 519. Teoría general de la prueba, p. 133.
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Rosenberg520 e Francesco Carnelutti521, desde que, obviamente, o objeto do contrato não caracterize direito indisponível. Para esses juristas, se a parte tem poder de disposição no processo, essa disposição pode ser estendida aos seus ônus processuais, como o da produção probatória. O Código de Processo Civil brasileiro legitima as convenções relativas ao ônus da prova, respeitados os limites que ele próprio estabelece. Prescreve, em seu art. 373, § 3°, ser inadmissível a convenção que distribua de maneira diversa o ônus da prova quando: I – recair sobre direito indisponível das partes; II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Avalia Moacyr Amaral Santos522 que “a legitimação de tais convenções resulta da evolução do direito probatório, adaptando-o à realidade prática, pois que, se às partes é lícito confessar, expressa ou implicitamente os fatos, renunciar a seu direito, transacionar ou transigir com referência a ele, seria incongruente impossibilitá-las de convencionar sobre a quem cabe a prova dos fatos em que o direito se fundamenta”. Entendendo que o ônus da prova, além de encargo da parte, serve também como regra de julgamento, em relação à qual convenções privadas não podem interferir, e considerado o comando veiculado pelo art. 373, §3°, do Estatuto Processual, que veda que o acordo de vontades atinja direitos indisponíveis ou impeça o acesso ao Judiciário, identificamos, na chamada convenção de distribuição do ônus da prova, nada mais que uma forma de confissão relativa a certos fatos, que devem ser disponíveis e não impliquem renúncia à tutela jurisdicional. 520. La carga de la prueba, p. 78. 521. Sistema di diritto processuale civile, v. 1, p. 308. 522. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 165.
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6.6.5 “Ônus” da prova no direito tributário Vimos que o ônus consiste no encargo ou responsabilidade por determinado comportamento, não se confundindo com o conceito de obrigação. Reveste os caracteres de uma faculdade, consistindo em permissão bilateral: o agir é necessário para alcançar certa finalidade; se inobservado, contudo, não acarreta punição, mas apenas o não-atingimento do objetivo pretendido. A existência do ônus pressupõe um direito subjetivo disponível, que pode ou não ser exercido, situação que não se verifica na esfera tributária, tendo em vista que os atos de lançamento e de aplicação de penalidades pelo descumprimento de obrigações tributárias ou de deveres instrumentais competem ao Poder Público, de modo privativo e obrigatório, tendo de fazê-lo com base nos elementos comprobatórios do fato jurídico e do ilícito tributário. Daí por que não tem a autoridade administrativa mero ônus de provar o fato jurídico ou o ilícito tributário que dá suporte a seus atos, mas verdadeiro dever, como manifestado por José Souto Maior Borges523: “O Fisco, entretanto, tem o dever – não o ônus – de verificar a ocorrência da situação jurídica tributária conforme ela se desdobra no mundo fático, com independência das chamadas provas pré-constituídas ou presunções de qualquer gênero. [...] Se o procedimento administrativo tributário é, em princípio, indisponível, nele não cabe a inserção da categoria jurídica em que o ônus consiste”. A construção do fato no antecedente da norma administrativo-tributária individual e concreta, por meio das provas admitidas, constitui a própria motivação do ato administrativo, elemento sem o qual este não subsiste524. Efetuado o lançamento ou o ato de aplicação de penalidade segundo os moldes prescritos pelo ordenamento – incluindo sua fundamentação na linguagem das provas –, passa a ser do contribuinte o ônus da contraprova. Instalado o
523. Lançamento tributário, p. 121. 524. Sobre o assunto, consulte-se o capítulo 8 desta obra.
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contencioso administrativo, o discurso jurídico assume o caráter de uma discussão, enriquecida por ações linguísticas endereçadas à persuasão e ao convencimento, em que a cada parte incumbe justificar suas afirmações. Situação diversa é aquela em que a norma individual e concreta, constituidora do fato jurídico tributário e do correspondente liame obrigacional, é expedida pelo particular. Nesse caso, o ato de formalização não se enquadra na definição do conceito de lançamento tributário por faltar-lhe, na composição, a participação de agente público competente525. A despeito disso, é comumente denominado lançamento por homologação, como explica Alberto Xavier526: Entre nós generalizou-se uma classificação, pretensamente baseada no Código Tributário Nacional, que atende ao grau de colaboração do contribuinte no procedimento administrativo do lançamento. Nuns casos, o Fisco toma ele próprio a iniciativa da prática do lançamento, quer por razões atinentes à natureza do tributo, quer por incumprimento, pelo contribuinte, dos seus deveres de cooperação: é o lançamento direto ou ex officio previsto no artigo 149. Noutros casos – situados no polo oposto – é o contribuinte que toma a iniciativa do procedimento, apresentando a sua declaração tributária e colaborando ativamente, como parte, no seu desenrolar: é o lançamento misto ou por declaração, previsto no artigo 147. Enfim, em certas hipóteses, o Fisco só atua eventualmente, a título de controle a posteriori, cabendo ao contribuinte a principal tarefa de calcular o tributo devido, realizar o seu pagamento, sujeito, como se disse, a eventual homologação das autoridades: é o lançamento por homologação previsto no artigo 150.
O critério classificatório que leva à identificação dessas três modalidades de “lançamento” reside no grau de participação do contribuinte no procedimento que culminará no ato constitutivo do crédito tributário. Entendido lançamento como ato, porém, chegamos à conclusão de que lançamento é um só: o chamado lançamento de ofício, pois se trata de ato 525. Eurico Marcos Diniz de Santi, Lançamento tributário, p. 186. 526. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 70.
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exarado por autoridade administrativa, nos exatos termos do art. 142 do CTN. No chamado lançamento por declaração, a constituição do crédito também decorre de norma individual e concreta produzida pela Administração, não diferindo do lançamento de ofício. A participação do administrado restringe-se ao cumprimento de deveres instrumentais, existentes, também, nos denominados lançamento de ofício, em que o contribuinte tem de cumprir deveres dessa espécie, tais como escriturar livros, emitir notas fiscais etc. Os deveres instrumentais são imprescindíveis à operacionalidade da tributação, pois é com base neles que o Fisco constitui o crédito tributário, introduzido no ordenamento pelo ato de lançamento. O denominado lançamento por homologação, por sua vez, nada tem de lançamento. Não é exarado por autoridade administrativa, mas pelo próprio particular. É o contribuinte quem, cumprindo deveres instrumentais, constitui o crédito tributário. Esses esclarecimentos são necessários para identificar o sujeito que constitui o fato jurídico tributário e, por conseguinte, a quem compete apresentar provas do referido fato. Tratando-se de lançamento realizado pela autoridade administrativa, esta precisa motivar seu ato mediante o emprego da linguagem das provas. Sendo a norma individual e concreta emitida pelo particular, a este incumbe demonstrar a veracidade dos fatos alegados527. Caso o ato de lançamento não se fundamente em provas, estará irremediavelmente maculado, devendo ser retirado do ordenamento. Na hipótese de o contribuinte deixar de apresentar os documentos comprobatórios do fato enunciado no antecedente da norma individual e concreta por ele emitida, sujeitar-se-á ao ato de lançamento a ser realizado pela autoridade administrativa e à aplicação das penalidades cabíveis,
527. Essa comprovação pode consistir em deixar à disposição da fiscalização os documentos relativos ao fato relatado no antecedente da norma individual e concreta.
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como adverte Geraldo Ataliba528: “o sistema de legislação vigente, quanto ao assunto, é claro: omissão do contribuinte, a sua falta de colaboração ou a colaboração maliciosa ou danosa, além de serem criminalmente reprimidos, não inibem o fisco no lançamento”. Opostamente, se o contribuinte fornecer os documentos que se referem ao objeto fiscalizado, as informações nele contidas farão prova a seu favor. Devidamente provado o fato enunciado pelo Fisco ou pelo contribuinte, as alegações que pretendam desconstituí-lo devem, igualmente, estar fundadas em elementos probatórios. Tudo, na esteira da regra segundo a qual o ônus/dever da prova cabe a quem alega, não se admitindo, na esfera tributária, convenções que alterem essa forma de distribuição.
6.6.5.1 Presunção de legitimidade dos atos administrativos e o “ônus” da prova em matéria tributária Os atos administrativos apresentam características que objetivam, simultaneamente, conferir garantia aos administrados e prerrogativas à Administração. Dentre elas, releva destacar a presunção de legitimidade, caracterizando presunção juris tantum de validade, da qual decorre que o ato seja considerado regularmente praticado até que outra linguagem jurídico-prescritiva determine o contrário, invalidando-o. Essa presunção, entretanto, não exime a Administração do dever de comprovar a ocorrência do fato jurídico, bem como das circunstâncias em que este se verificou. É que, sendo os atos de lançamento e de aplicação de penalidade vinculados e regidos, dentre outros, pelos princípios da estrita legalidade e da tipicidade, tais expedientes dependem, necessariamente, da cabal demonstração da ocorrência dos motivos que os ensejaram. A motivação deve ser, portanto, respaldada
528. Lançamento – procedimento regrado, in Estudos e pareceres de direito tributário, p. 337.
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em provas. Seguindo semelhante linha de raciocínio, conclui Paulo de Barros Carvalho529: Na própria configuração oficial do lançamento, a lei institui a necessidade de que o ato jurídico administrativo seja devidamente fundamentado, o que significa dizer que o fisco tem que oferecer prova concludente de que o evento ocorreu na estrita conformidade da previsão genérica da hipótese normativa.
Ao discorrer sobre o tema, Susy Gomes Hoffmann530 esclarece que a presunção de legitimidade não diz respeito ao conteúdo do ato administrativo, mas à sua existência no mundo jurídico. Nesse sentido, aliás, a presunção de legitimidade é atributo de todo ato jurídico, quer seja ele praticado pela Administração, quer o seja pelo particular. Trata-se de pressuposto para a realização de negócios jurídicos, dado o caos que se instalaria caso todos os atos praticados tivessem sua validade colocada em dúvida. É exatamente em razão dessa presunção de legitimidade que os atos públicos e privados, enquanto não questionados, permanecem no sistema, produzindo os respectivos efeitos de direito. Portanto, a presunção de legitimidade dos atos administrativos, em particular, do lançamento tributário, nada acrescenta à sua condição de ato jurídico, tornando-se irrelevante para a análise científica do tema. Inconcebível, portanto, o posicionamento segundo o qual, diante da presunção de legitimidade dos atos administrativos, caberia ao contribuinte apresentar provas contrárias ao relatado nos atos de lançamento e de aplicação de penalidade, incumbindo-se a autoridade administrativa apenas de ilidir as provas que o contribuinte juntar aos autos do processo instaurado. É insustentável o lançamento ou o ato de aplicação de penalidade que não tenha suporte em provas suficientes da ocorrência do evento.
529. A prova no procedimento administrativo tributário, Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 107-108. 530. Teoria da prova no direito tributário, p. 127.
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6.6.5.2 O “ônus” da prova em face de presunções legais É frequente a afirmação da doutrina531 no sentido de que, configurando-se hipótese de presunção legal, ocorreria inversão do ônus da prova, ficando a autoridade administrativa dispensada de maiores providências probatórias, passando a ser do contribuinte o ônus de descaracterizar o fato presumido. Tal assertiva tem suas origens nos ensinamentos de direito processual civil, em que se costuma afirmar existir inversão do ônus da prova sempre que houver “o estabelecimento de certas presunções legais de existência de fatos [quer constitutivos, quer extintivos, impeditivos ou modificativos] em favor de uma das partes, cabendo à parte contrária a produção de prova que invalide tal presunção”532. Não podemos, simplesmente, transportar esse raciocínio para a esfera tributária, a qual é regida por princípios próprios, que se aproximam, em muitos aspectos, das rígidas diretrizes do direito penal. A tipicidade é uma delas. Por isso, mesmo quando existam presunções legais, compete à autoridade administrativa apresentar provas do fato a partir do qual se estabelece o raciocínio presuntivo. Qualquer que seja a modalidade de presunção, é imprescindível a prova dos indícios para, a partir deles, demonstrar a existência de causalidade com o fato que se pretende dar por ocorrido. A diferença reside na circunstância de que, tratando-se da chamada presunção legal, a relação causal entre fato presuntivo e fato presumido dá-se no âmbito pré-legislativo. Identificando o aplicador do direito, no caso concreto, a situação prevista na hipótese da regra de presunção, há de concluir pela ocorrência do fato prescrito no consequente normativo: o fato presumido. A demonstração do fato
531. Renan Lotufo, Código Civil comentado, p. 566. Convém registrar nossa posição no sentido de que, mesmo na esfera civil, inocorre inversão do ônus da prova, pois sempre há necessidade de se provar determinada condição para desencadear a relação presuntiva. 532.. João Penido Burnier Júnior, Teoria geral da prova, p. 132-133.
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presuntivo é condição inarredável para a constituição do fato presumido. A legislação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza relaciona uma série de situações que autorizam presumir a ocorrência do fato jurídico tributário, desencadeando o correspectivo vínculo obrigacional. É o que se verifica, por exemplo, nas hipóteses de configuração de saldo credor de caixa e de passivo fictício. O art. 9° do Decreto-Lei 1.598/77 prescreve, em seus §§ 1° e 2°, que a escrituração mantida com observância das disposições legais faz prova a favor do contribuinte dos fatos nela registrados e comprovados por documentos hábeis, cabendo à autoridade administrativa a prova da inveracidade dos fatos assim registrados. Em razão disso, autuação fiscal fundada na alegação de omissão de receitas só é admissível se demonstrado o fato presuntivo legalmente previsto. Nos termos do art. 12, § 2º, do referido decreto-lei, “o fato de a escrituração indicar saldo credor de caixa ou a manutenção, no passivo, de obrigações já pagas, autoriza a presunção de omissão no registro de receita, ressalvada ao contribuinte a prova da improcedência da presunção”533. Esse dispositivo evidencia ser imperativa a produção probatória pelo Fisco: este tem de comprovar a existência de saldo credor de caixa ou de passivo fictício, como pressuposto indeclinável da caracterização da omissão de receitas. É o que se depreende da decisão administrativa, cujo trecho transcrevemos abaixo: IRPJ – OMISSÃO DE RECEITAS – INDÍCIOS – A atividade administrativa de lançamento há de se submeter ao princípio da reserva legal, o que faz com que as exigências tributárias somente possam ser formalizadas com prova segura dos fatos que revelem o auferimento da receita passível de tributação ou mediante
533. Semelhante é a disposição do art. 40 da Lei 9.430/96, bem como do art. 282 do Decreto 3.000/99 (RIR/99).
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a demonstração de que ocorreram os fatos expressamente arrolados pela lei como presunção de omissão de receita534.
O mesmo se pode dizer da distribuição disfarçada de lucros. Como já referido no capítulo 4 [subitem 4.7.3], apenas se comprovada a realização de negócio jurídico entre pessoas ligadas, por valor comprovadamente diverso do de mercado, é que se tem instalada a relação implicacional presuntiva535. Também a hipótese de falta de emissão de documento fiscal ou sua expedição em valor inferior ao do negócio jurídico, referidos no art. 2º da Lei 8.846/94536, são circunstâncias que exigem comprovação, não bastando meras suposições fundadas em indícios fracos. Esse posicionamento é verificado no seguinte julgado: IRPJ – OMISSÃO DE RECEITA – SUBFATURAMENTO: Incabível a exigência com base em omissão de receita pela prática de subfaturamento, quando o Fisco não consegue carrear aos autos provas da ocorrência de tal fato. Pedidos de mercadorias com códigos que sugerem indicações de tal prática são apenas indícios que não confirmam a prática da irregularidade537.
Essas são apenas algumas referências, de caráter exemplificativo538, com vistas a demonstrar a inocorrência de inversão do ônus da prova, ainda que se esteja diante de hipóteses de presunção legal. Com maior razão, tratando-se de presunção hominis, a nosso ver perfeitamente admissíveis na esfera tributária, as 534. Conselho de Contribuintes [atual CARF], Ac. 103-21.652, Rel. Cons. Paulo Jacinto do Nascimento, j. 18-6-2004. 535. Art. 60 do Decreto-Lei 1.598/77. 536. Regulamentado pelos arts. 283 e 848 do Decreto n. 3.000/99 [RIR/99]. 537. Trecho da ementa do Ac. 108-05.454, Conselho de Contribuintes [atual CARF], Rel. Cons. Nelson Lósso Filho, j. 11-11-1998. 538. Sobre outras hipóteses presuntivas, consulte-se a obra Presunções no direito tributário, de Maria Rita Ferragut.
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provas hão de ser veementes, não deixando margem a dúvidas quanto à ocorrência do fato alegado: RECURSO VOLUNTÁRIO – OMISSÃO DE RECEITA – PRESUNÇÃO SIMPLES – Incumbe à fiscalização apresentar um conjunto de indícios que permita ao julgador alcançar a certeza necessária para seu convencimento, afastando possibilidades contrárias, mesmo que improváveis. A certeza é obtida quando os elementos de prova confrontados pelo julgador estão em concordância com a alegação trazida aos autos. Se remanescer uma dúvida razoável de improcedência da exação, o julgador não poderá decidir contra o acusado. No estado de incerteza, o Direito preserva a liberdade em sua acepção mais ampla, protegendo o contribuinte da inferência do Estado sobre seu patrimônio539.
Por tudo o que se expôs, descabe falar em inversão do ônus da prova, qualquer que seja a figura presuntiva: (i) sendo caso da chamada presunção legal, impõe-se a comprovação, por parte do Fisco, da situação ensejadora da relação implicacional prescrita em lei; (ii) na presunção simples, além da prova do acontecimento tomado como fato presuntivo, é preciso demonstrar o vínculo lógico entre este e o fato presumido.
539. Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª T., Ac. 01-05.095, Rel. Cons. Marcos Vinícius Neder de Lima, j. 17.10.2004.
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CAPÍTULO 7 AXIOLOGIA DAS PROVAS
7.1 Ato decisório e axiologia das provas Ultrapassada a fase instrutória, chega o momento de o julgador se manifestar, proferindo decisão. Esta consiste em norma individual e concreta que relata, no antecedente, o fato jurídico em sentido estrito constituído a partir das provas carreadas aos autos [fatos jurídicos em sentido amplo], prescrevendo, no consequente, a correspondente relação jurídica, em que se confere a uma das partes determinada obrigação relativamente à parte adversa, a quem é atribuído o direito subjetivo. A norma assim veiculada deve vir acompanhada de fundamentação, abrangendo a valoração das provas colacionadas pelas partes, esclarecendo o julgador as razões que o levaram àquela conclusão. Importante aspecto da fase de julgamento é a valoração das provas pelo julgador, pois, como pondera João Batista Lopes540, “um fato só se considera provado no momento em que o juiz o admite como existente ou verdadeiro, isto é, o juiz, como destinatário da prova, é quem diz a última palavra sobre 540. A prova no direito processual civil, p. 53.
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a existência ou veracidade do fato”. Por isso, essa avaliação probatória também está sujeita a normas jurídicas, que traçam limites à atividade julgadora. Conquanto ordinariamente se afirme que a decisão é tomada segundo o livre convencimento do julgador, tal assertiva carece de precisão terminológica, pois o critério do livre convencimento, considerado em sua acepção técnica, confere liberdade total a quem decide, permitindo que este julgue até mesmo contra as provas dos autos. Não é esse, entretanto, o sistema adotado pelo direito positivo brasileiro, quer na esfera judicial, quer na administrativa. O critério eleito é o da persuasão racional, que não impõe valores tarifados na apreciação das provas, conferindo certa margem de liberdade para decidir, mas exige que esta se dê em consonância com o conjunto probatório constante do processo. Dentro da margem de liberdade conferida ao julgador atuam as denominadas máximas de experiência. Os conhecimentos adquiridos pelo julgador ao longo de sua vivência social e profissional influem decisivamente na apreciação das provas. Tudo isso contribui para a complexidade da atividade decisória, especialmente se considerarmos que, geralmente, os fatos constituídos nos autos do processo não se encontram, todos eles, ligados por relação de coordenação, confirmando uns aos outros. Ao contrário, via de regra há provas que corroboram as alegações de uma das partes, enquanto outras respaldam os argumentos da parte adversa. Diante de tal situação, o julgador, com base nas normas jurídicas vigentes e em seus valores, seleciona os fatos que entende convincentes, considera-os provados e constitui o fato jurídico em sentido estrito.
7.2 Breves noções sobre a axiologia do direito O termo axiologia designa a Teoria Geral dos Valores. Para compreendê-la, portanto, precisamos ter em mente o que seja valor. A tarefa de defini-lo mostra-se extremamente
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árdua, representando uma das grandes dificuldades da filosofia. Johannes Hessen541 chega a afirmar a impossibilidade de definição do vocábulo. Segundo ele, o conceito de valor “pertence ao número daqueles conceitos supremos, como os de ser, existência etc., que não admitem definição. Tudo o que pode fazer-se a respeito deles é simplesmente tentar uma clarificação ou mostração do seu conteúdo”. A dificuldade realmente existe, mas não a ponto de inviabilizar a definição e estudo do conceito de valor. O exame dos acontecimentos diários pode-nos auxiliar nesse empreendimento, pois toda ação implica, necessariamente, uma decisão. Muitas vezes, esse processo ocorre de forma tão simples que aquele que decide nem sequer nota que está decidindo. Mas, invariavelmente, ao tomar uma conduta qualquer, o ser humano o faz com base em decisões, decorrentes de preferências. Essas decisões são realizadas mediante escolhas. Assim, considerando que escolher é valorar, toda ação humana está indissociavelmente ligada ao valor. Toda conduta é axiológica, o que não significa que a conduta em si possa ser confundida com o valor. Este, nas palavras de Raimundo Bezerra Falcão542, “é, efetivamente, toda força que, partida do homem, é capaz de gerar no homem a preferência por algo”. Por essa singela referência já se percebe que o valor não está nas coisas, não é o objeto de preferência ou escolha. Ao contrário, o valor está no ser humano, no sujeito cognoscente. O valor está no homem e é ser-geratriz: gera a preferência, propicia a escolha, ditando a conduta a ser tomada. Esclarece, ainda, Raimundo Bezerra Falcão543 que “valor não se confunde com bem”. Este é apenas uma decorrência daquele. É por causa do valor que surge a ideia de bem, assim como do desvalor contraposto, mal. A bipolaridade é
541..Filosofia dos valores, p. 37-38. 542. Hermenêutica, p. 20. 543. Ibidem, mesma página.
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característica obrigatória dos valores, de modo que, onde houver um valor, haverá, como contraponto, o desvalor, numa relação implicacional mútua entre ambos. É a implicação recíproca, por conseguinte, outra nota essencial dos valores. Além dessas qualidades, Miguel Reale544 identifica, como traços inerentes aos valores, a referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade, graduação hierárquica, objetividade, historicidade e inexauribilidade. E Paulo de Barros Carvalho alude, ainda, à atributividade, aspecto que enaltece o ato de valoração, indicando a relação entre o agente do conhecimento e o objeto, de modo que o sujeito não se comporta com indiferença, atribuindo ao objeto qualidades positivas ou negativas. Dentre os objetos susceptíveis de conhecimento pelo homem está o direito, na qualidade de ente cultural, sujeito a elevado grau de valoração. Para que tal assertiva fique bem clara, vale recordar a divisão realizada por Carlos Cossio, baseado nas ideias de Husserl, separando os objetos do conhecimento em quatro grandes grupos: (i) objetos ideais; (ii) objetos naturais; (iii) objetos metafísicos; e (iv) objetos culturais. Os objetos ideais são assim denominados porque não têm existência senão na ideia, apresentando-se sem delimitação no tempo e no espaço, ostentando, por isso, elevadíssimo grau de neutralidade ao valor. Quanto aos objetos naturais, têm existência no tempo e no espaço, encontrando-se no campo da experiência sensível. Caracterizam-se, igualmente, por seu alto grau de neutralidade, já que se trata de elemento dado pela natureza, sem que o homem tenha realizado construção alguma em relação a ele. Os objetos metafísicos, por sua vez, têm existência, mas encontram-se excluídos do âmbito da experiência sensível. São valiosos, positiva ou negativamente, na medida em que se podem atingir pelas estimações e valorações. Por fim, os objetos culturais existem no tempo e no espaço, estão na experiência sensível e apresentam-se completamente abertos
544. Introdução à filosofia, p. 160 e s.
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às valorações, visto que são construídos pela atividade humana, que lhes confere sentido. Por essa breve explanação, nota-se que a norma jurídica é um objeto cultural, visto que proveniente da conduta humana. Constitui-se, pois, por elementos valorativos, o que possibilita falarmos em uma teoria axiológica do direito, direcionada ao estudo dos valores que interferem em sua produção, interpretação e aplicação. Examinando as diversas teorias sobre a axiologia do direito, João Maurício Adeodato545 divide-as em duas categorias: (i) monista e (ii) dualista. Monista seria a corrente axiológica que se recusa a distinguir uma esfera específica para a ética, o direito, a moral, em suma, para as relações humanas que implicam preferência, por entender que a natureza é única e indivisível, regida pelas mesmas leis, não sendo cabível, portanto, a separação de seus estratos. A teoria dualista, por outro lado, distingue o ser do dever-ser. Considera que ao lado do mundo da natureza animal, vegetal e mineral, orientado, entre outros, pelo princípio da causalidade, existe uma esfera submetida a determinações diferentes, sendo admissível diferençar leis naturais e leis normativas, mundo da natureza e mundo da cultura. Essas duas correntes, por sua vez, comportam subdivisões. A teoria monista biparte-se em (i.1) materialista, regida primordialmente pelo princípio ontológico da causalidade, e (i.2) espiritualista, que toma por base uma unidade imaterial superior, considerando que o princípio unificador do universo não é a matéria, mas o espírito, a atividade intelectual da consciência. O dualismo também segue várias direções, das quais cumpre destacar o (ii.1) subjetivismo axiológico, segundo o qual as coisas não são por si valiosas e todo valor se origina de uma valoração prévia, consistente em uma concessão de dignidade e hierarquia que o sujeito faz às coisas segundo o prazer ou desprazer que lhe causam, e o (ii.2) objetivismo 545. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência, p. 136 e s.
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axiológico, para cujos defensores uma instância externa e superior às inclinações de cada indivíduo forneceria os parâmetros para separar valor de desvalor, lícito de ilícito. Nessa concepção atribui-se ao valor um status metafísico, que independe completamente das suas relações com o homem. Entre os dualistas objetivistas há, ainda, posições menos radicais, como pontua João Maurício Adeodato546: No Brasil, Miguel Reale, por exemplo, defende a tese das invariantes axiológicas: os valores são criados pelas experiências e culturas humanas, afirma, negando a existência de um reino axiológico em si, defendida por Scheler e Hartmann; mas, uma vez criados, os valores permanecem no horizonte da humanidade e, embora possam vir a ser temporariamente esquecidos, inserem-se para sempre no contexto cultural da comunidade, pois foram realizados de forma semelhante aos fatos historicamente ocorridos. Do mesmo modo que não se pode desfazer um acontecimento histórico, não se pode eliminar um valor, que se torna uma invariante.
Dentre os posicionamentos expostos, identificamo-nos com os postulados do subjetivismo axiológico: os valores são inerentes ao homem. As coisas, inclusive as normas jurídicas, não têm um valor em si, independente da ação e apreciação humana. Os valores são sempre atribuídos pelo homem, quer pelo legislador, ao eleger fatos para compor a hipótese normativa e escolher relações para figurarem como correspondente consequência na causalidade jurídica, quer pelo aplicador do direito, ao interpretar as normas gerais e abstratas, os fatos alegados e provas apresentadas, fazendo-o a partir de suas vivências, de suas preferências, ainda que inconscientes, construindo, com base na combinação desses fatores, normas individuais e concretas547.
546. Ibidem, p. 153-154. 547. Clarice Von Oertzen de Araujo relata a atividade valorativa realizada pelo legislador: “Um exemplo fácil da operação de seleção inserida no universo do Direito Positivo é a elaboração de uma lei pelo Poder Legislativo ou de um outro veículo normativo, como uma medida provisória, pelo Poder Executivo. Este será um
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7.3 Teoria dos atos de fala e a decisão do julgador O direito surge por meio de decisões jurídicas. São os atos de fala, entendidos como enunciação, as condutas caracterizadoras de tomadas de decisão, cujo resultado são os enunciados normativos postos no ordenamento. Tais decisões é que constituem o aspecto gerador ou dinâmico do sistema do direito, exigindo, para sua realização, que determinado sujeito faça uma escolha entre as várias possibilidades. Quem decide o conteúdo de um texto jurídico elege uma opção entre as alternativas existentes, excluindo as demais. Desse modo, toda decisão é contingente. Para que a decisão produza efeitos jurídicos, entretanto, precisa emanar de um sujeito competente, ou, na terminologia de Gregorio Robles548, uma autoridade prevista pelo próprio direito. Considerando que as autoridades são assim qualificadas porque nesse sentido prescrevem determinadas normas jurídicas, e que as normas, por seu turno, existem em razão de terem sido criadas por autoridades, observamos no sistema do direito uma estrutura escalonada, de modo que cada norma e respectivo ato produtor encontram-se em planos distintos, partindo da generalidade e abstração em direção à individualidade e concreção: A1→D1→N1 ↓ A2→D2→N2 ↓ A3→D3→N3 No esquema proposto, identificamos uma autoridade [A1, A2 ou A3] que, ao decidir [D1, D2 ou D3], produz norma jurídica momento de grande liberdade do legislador [em sentido amplo: o editor normativo], pois ele poderá escolher quaisquer fatos sociais para imputar à sua ocorrência o nascimento de relações jurídicas” [Semiótica do direito, p. 39-40]. 548. Teoria del derecho: fundamentos de teoría comunicacional del derecho, p. 42.
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[N1, N2 ou N3], podendo a sequência ser maior ou menor conforme seja necessário para atingir o ponto máximo de proximidade com as condutas reguladas. O ato decisório, sendo criador da norma jurídica, apresenta-se como um ato de fala, expressão comunicativa produtora de enunciados, ou seja, enunciação. Tratando-se de ato de fala, são perfeitamente aplicáveis os ensinamentos de John Austin549, a começar pela lição segundo a qual qualquer ato de fala, mesmo o mais simples, é uma realidade complexa, com muitas dimensões. A primeira dimensão da linguagem, para esse autor, é a do agir. Usando a linguagem, agimos, podendo fazê-lo por diversos modos, produzindo atos com funções diferentes: (i) ato fonético: consiste simplesmente na execução de certos ruídos; (ii) ato fático: expressão de vocábulos, palavras, ruídos com uma forma determinada, que pertencem a um vocabulário e seguem regras de uma gramática; (iii) ato rético: uso de palavras para falar sobre algo; (iv) ato locucionário: ato de dizer algo; e (v) ato ilocucionário: ato de dizer algo, mediante o qual também se faz algo. É muito importante identificar a força ilocucionária de nossos atos locucionários. O ato ilocucionário é aquele que se executa na medida em que se diz algo, mediante a realização de um ato locucionário. E, como o ato ilocucionário não é, em muitos casos, explícito, sua força só pode ser verificada se considerado todo o contexto em que se insere para, desse modo, determinar o papel exercido pela linguagem. Além disso, acrescenta Manfredo Araújo de Oliveira550 que, praticando atos locucionários e ilocucionários, podemos efetuar outra ação, consistente na terceira dimensão do ato de fala: o ato perlocucionário, em que se provocam, por meio de expressões linguísticas, alterações nos sentimentos, pensamentos e ações de outras pessoas. Exemplifica o autor: “Que Pedro diga essa
549. Apud Manfredo Araújo de Oliveira, Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 157. 550. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 159.
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frase – o jacaré é perigoso – é um ato locucionário; que Pedro, por meio dessa expressão linguística, faça uma advertência, isso é o ato ilocucionário; que por meio dessa expressão Pedro consiga afastar alguém do jacaré, isso é o ato perlocucionário”. Não se trata de três atos distintos, mas de três dimensões do mesmo ato de fala. Merecem destaque, nesta oportunidade, as duas últimas dimensões referidas. Ambas apresentam caráter performativo, em que os atos de fala, esclarece Tárek Moysés Moussallem551, “ao selecionarem palavras no esquema abstrato da língua, são responsáveis pela efetivação de uma ação”. Assim é que, no processo administrativo tributário, a produção de provas pelas partes caracteriza ato performativo, configurador de fato jurídico tributário em sentido amplo. Semelhante é a qualificação do ato de emitir norma individual e concreta, decidindo o conflito instalado, uma vez que constitutivo ou desconstitutivo do fato jurídico em sentido estrito. A diferença entre eles reside no tipo de expressão utilizada por cada qual: (i) expressão veridictiva no primeiro caso; (ii) expressão veridictiva e exercitiva no segundo. Manfredo Araújo de Oliveira552 define essas duas modalidades expressionais: 1. Expressões veridictivas: consistem na articulação de um juízo [oficialmente ou não] a respeito de valores ou de fatos com base em material de prova ou em argumentação. [...] 2. Expressões exercitivas: consistem em decidir-se a favor ou contra determinado comportamento.
A expressão veridictiva é observada nos atos de diagnosticar, interpretar, julgar, estando presente tanto no ato de provar como no ato de decidir, aparecendo no antecedente da norma individual e concreta. Já a exercitiva pode ser identificada no consequente da norma individual e concreta 551. A revogação em matéria tributária, p. 24. 552. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 163.
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resultante do ato decisório, consistente na prescrição de determinado comportamento.
7.4 Critérios de avaliação das provas Nos autos processuais, um fato só se considera provado no momento em que o julgador o admite como existente ou verdadeiro. É o julgador, como destinatário da prova, quem diz a última palavra sobre a existência ou veracidade do fato. Para fazê-lo, utiliza critérios fixados pelo ordenamento, que podem ser de três espécies: (i) critério das provas legais ou tarifadas; (ii) do livre convencimento; e (iii) da persuasão racional. A adoção das provas legais ou tarifadas consiste na atribuição, a cada prova, de um valor fixo e imutável, não deixando margem de liberdade para apreciação do julgador. Explicando essa sistemática, assevera Renan Lotufo553 que o denominado regime da prova legal tem sua origem na Idade Média, quando se iniciou a cientificação da prova. Evidentemente, tal sistema diminui em muito a importância do julgador como intérprete dos fatos em relação aos quais deve aplicar o direito, sendo, por isso, historicamente ultrapassado. Na atualidade, a chamada prova legal ou tarifada aparece de forma muito esparsa no sistema jurídico, tal como no art. 406 do CPC/2015, nos termos do qual não se admite qualquer outra forma de prova quando a lei exija como da substância do ato o instrumento público. Semelhante era a natureza da prescrição veiculada no art. 401 do Estatuto Processual revogado, não conferindo efeito probatório ao depoimento testemunhal realizado sem respaldo em outros elementos de convicção, quando estiver em discussão contrato com valor superior ao décuplo do maior salário mínimo vigente no País. O Código de Processo Civil de 2015, entretanto, conferiu ampla possibilidade de utilização de prova testemunhal, 553. Código Civil comentado, v. 1, p. 564.
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estipulando ser esta sempre admissível, salvo que a lei dispuser especificamente de modo diverso [art. 442]. Nota-se que a prova “tarifada”, de valor previamente escalonado, é situação excepcional e de aplicabilidade restrita. De modo oposto, o critério do livre convencimento confere liberdade plena ao julgador, autorizando que este decida sem tomar por base as provas dos autos, e, até mesmo, contra elas. Moacyr Amaral Santos554, em crítica à valoração das provas com base no livre convencimento, assim se manifesta: “Se a verdade pudesse ser resultante das impressões pessoais do julgador, sem atenção aos meios que apresentam no processo, a justiça seria o arbítrio e o Direito a manifestação despótica da vontade do encarregado pelo Estado de distribuí-lo”. Essa sistemática geraria insegurança aos cidadãos. Por tal razão, também esse critério de avaliação probatória foi historicamente afastado, podendo seus resquícios serem observados na figura do Tribunal do Júri, cujos componentes decidem por convicção íntima ou livre apreciação, não fundamentando as razões de seu convencimento, nem importando como formaram sua convicção. No sistema orientado pela persuasão racional, o julgador é livre para decidir segundo seu convencimento, mas não tem liberdade absoluta, devendo ater-se ao conjunto probatório posto nos autos. Essa sistemática, esclarece Vicente Greco Filho555, “ao mesmo tempo em que mantém a liberdade de apreciação, vincula o convencimento do juiz ao material probatório constante dos autos, obrigando, também, o magistrado a fundamentar sua decisão de modo que se possa aferir o desenvolvimento do seu raciocínio e as razões de seu convencimento”. Duas, portanto, são as decorrências da adoção de tal critério: (i) impossibilidade de o julgador decidir exclusivamente com 554. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 7. 555. Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 199.
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base em seu conhecimento pessoal e (ii) necessidade de motivar a decisão. O conhecimento privado do julgador, consistente no conjunto de fatos que chegaram ao seu intelecto pelos mais diversos meios e que não constam dos autos processuais, não pode ser invocado como justificativa da sua decisão. Esta deve fundar-se, sempre, nas provas constantes do processo. É claro que o conhecimento pessoal acaba por influenciar o ato decisório, mediante interferência na valoração dos enunciados probatórios, como veremos no item 7.6 subsequente. O que não se admite é que o julgador constitua fatos sem nenhuma prova que os respalde. Seguindo essa linha de raciocínio, Celso Agrícola Barbi556 certifica que “O juiz é livre para se convencer acerca dos fatos, mas os elementos para essa convicção são apenas os existentes nos autos. Tem aplicação correta o brocardo quod non est in actis non est in mundus; os autos são o mundo do juiz na apreciação dos fatos”. O julgador fica adstrito aos fatos alegados e provados, devendo decidir com base nas provas que lhe são apresentadas, podendo sopesá-las de acordo com sua livre convicção para construir, a partir delas, o fato jurídico em sentido estrito. Esse critério é também denominado, por isso, livre convencimento motivado, tendo em vista que não se admite arbitrariedade, exigindo-se razoabilidade entre as provas constantes dos autos e a decisão do julgador. Este, tendo em mãos vários fatos em sentido amplo [seleções de propriedades dos fatos sociais], faz nova seleção, mediante escolha motivada e baseada em seu livre convencimento, decidindo o relato que prevalecerá e constituindo, desse modo, o fato jurídico em sentido estrito.
556. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 1, p. 535. Celso Agrícola Barbi excepciona a necessidade de o julgador basear-se exclusivamente nos elementos constantes dos autos quando se tratar de fatos notórios ou que independam de provas. Como anotamos no item 5.2 do capítulo 5, entretanto, todo fato alegado exige prova, até mesmo a notoriedade.
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É esse o critério adotado pelo Código de Processo Civil brasileiro [arts. 369 e 371] e também pelas legislações que disciplinam o processo administrativo tributário das diversas pessoas políticas. Dispõe o Decreto 70.235/72, em seu art. 29: Na apreciação da prova, a autoridade julgadora formará livremente sua convicção, podendo determinar as diligências que entender necessárias.
No mesmo sentido, prescreve o art. 26 da Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo: Os órgãos de julgamento apreciarão livremente as provas, devendo, entretanto, indicar expressamente os motivos de seu convencimento.
Veja-se que a liberdade do julgador está limitada às provas produzidas nos autos, de modo que, caso as considere insuficientes para atingir a certeza, deve, em nome do princípio inquisitório, determinar produção probatória complementar. Essa motivação é ratificada de modo incisivo pelo §1° do art. 489 do CPC/2015, de modo que, para haver decisão efetivamente fundamentada, representativa do livre convencimento motivado, o julgador precisa examinar todos os fatos alegados nos autos, as respectivas provas e as normas jurídicas cuja subsunção se pretende efetuar ou afastar.
7.4.1 Princípios que orientam a apreciação probatória A tomada de decisões segundo a persuasão racional ou livre convencimento motivado vincula o ato decisório às provas constantes dos autos processuais, conferindo, por outro lado, liberdade de apreciação ao julgador. Isso significa a inexistência de critérios prefixados de hierarquia das provas, não havendo, salvo raras exceções mencionadas no tópico anterior, preceito legal que determine quais devam ter maior ou menor peso no julgamento da lide.
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Tal sistemática não exclui, todavia, a convivência de princípios que orientam a valoração da prova. Esses vetores não configuram forma de tarifação dos enunciados probatórios, objetivando, apenas, conferir um norte para a escorreita aplicação do critério da persuasão racional. Vejamos, a seguir, os mais relevantes princípios dessa natureza. (i) Princípio da unidade probatória. O conjunto das provas deve ser considerado em sua integridade, de modo que os elementos de convicção sejam interpretados de forma inter-relacionada entre si. Com tal atitude é que se identificam as provas contraditórias entre si e as que se confirmam mutuamente [reforço de prova], fornecendo subsídios para a tomada de decisão. (ii) Princípio da aquisição da prova. As provas, uma vez produzidas, hão de ser consideradas independentemente da parte que as apresentou, podendo funcionar como elemento de convicção a favor ou até mesmo contra esta. Tal orientação é também denominada princípio de comunidade da prova, em razão de que os enunciados probatórios não pertencem a quem os produz, sendo impertinente entender que só a este beneficiem. Na lição de João Carlos Pestana de Aguiar Silva557, uma vez produzidas, todas as provas “passam a integrar o campo probatório unificado, servindo à comprovação do direito de qualquer dos litigantes e ao interesse da justiça na investigação da verdade”. Ao serem introduzidas no processo, sua finalidade é determinar a existência ou inexistência dos fatos a que se referem. Exceção é a prova produzida ilicitamente, que, em razão de sua fonte estar maculada, deve ser excluída dos autos, não aproveitando a qualquer das partes. (iii) Princípio da necessidade da prova. Diz respeito ao imperativo de que os fatos sobre os quais deve fundamentar-se a decisão estejam demonstrados com provas produzidas nos autos por qualquer dos interessados ou pelo 557. As provas no cível, p. 29.
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próprio destinatário, quando o sistema assim o admitir, sem que o julgador possa suprir ausência de elementos probatórios mediante emprego do conhecimento pessoal ou privado que tenha acerca dos fatos558. (iv) Princípio da aplicação das regras científicas na prova. Veda que o julgador, diante de questões demonstradas cientificamente, as desconsidere sem justificativa plausível. Um exemplo é o resultado do exame de DNA que atesta ser uma pessoa genitora de outra. Nesse caso, o juiz não pode afastar-se da conclusão pericial, a não ser que o faça de modo bem fundamentado, argumentando a insuficiência ou inadequação da análise técnica realizada. Quando estiver diante de informações técnicas ou científicas, alheias à formação cultural do julgador, este, para decidir de forma contrária, deve opor argumentos de natureza igualmente técnica ou científica. (v) Princípio da experiência em matéria probatória. Ao apreciar as provas, o julgador faz uso, conscientemente ou não, das situações que experimentou, das vivências, do conhecimento acerca do modo normal e natural que as coisas costumam ocorrer559. (vi) Princípio do “favor probationis”. Esse vetor principiológico desenvolve-se em dois âmbitos diversos: (vi.1) diz respeito à admissibilidade de novos elementos de prova na hipótese de o conjunto probatório já existente não bastar para que o julgador elimine as incertezas concernentes ao fato sobre o qual deva decidir; havendo dúvida, seria preferível pecar por excesso de provas do que por insuficiência da sua produção; e (vi.2) considera que certos enunciados probatórios devem ser interpretados favoravelmente a uma parte no caso de dúvida, aparecendo como um derivado do princípio processual penal in dubio pro reo. Decorre, a nosso ver, das regras inerentes ao 558. Devis Echandía, Teoría general de la prueba judicial, p. 117. 559. O assunto será analisado no subitem 7.6.2 deste capítulo, dedicado às máximas de experiência.
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ônus probatório, de modo que, quando o sujeito que alegar determinado fato não obtiver êxito no convencimento do destinatário, a decisão não lhe deve ser favorável.
7.5 Hierarquia das provas560 O art. 371 do CPC/2015, ao consagrar o princípio da persuasão racional, faz crer, à primeira vista, que inexistira hierarquia entre as provas. Mas, como noticia João Batista Lopes561, “o acolhimento pelo legislador do critério da persuasão racional não implica conferir ao juiz plena liberdade de apreciação das provas”. A persuasão racional, diferentemente do sistema do livre convencimento, exige que o julgador sujeite-se às normas jurídicas postas, inclusive no que diz respeito à admissibilidade das provas. Enunciado probatório originado de depoimento testemunhal, por exemplo, é tido como falho e deficiente, conduzindo o legislador a prescrever, nos arts. 443 e 444 do CPC/2015, algumas restrições à sua admissibilidade. Desses dispositivos depreende-se ser o testemunho hierarquicamente inferior à prova documental, bem como àquela derivada de confissão e exame pericial. Nas palavras de José Frederico Marques562, o legislador “tem alguma desconfiança para com a prova testemunhal, o que se manifesta em limites e restrições pertinentes à sua realização e admissibilidade”. Tem-se, aí, a objetivação do valor que o Legislativo atribui a essa espécie probatória563.
560. Empregamos o vocábulo hierarquia para designar gradação valorativa, nada tendo que ver com a hierarquia formal, entendida como relação de fundamento de validade entre os elementos do sistema normativo. 561. A prova no direito processual civil, p. 56. 562. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 450. 563. Também o art. 406 do Código de Processo Civil impõe hierarquia ao dispor que só o instrumento público perfaz prova de ato em que este seja exigido por lei.
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Evidenciando essa hierarquização das provas, afirma Darci Guimarães Ribeiro564: A própria lei, inc. I do art. 400 do CPC565, a doutrina e a jurisprudência entendem que não cabe prova testemunhal para fato já comprovado por documento; mas a recíproca não é verdadeira. [...] Duvido que, em sã consciência, alguém preferisse apresentar, no nosso sistema, uma prova testemunhal ao invés de uma documental. Isso nos leva a concluir que há, subjetivamente falando [critério subjetivo da prova], uma hierarquia subjetiva entre as provas, na qual a prova legal goza de uma preferência no momento da apreciação.
Os dispositivos citados trazem uma hierarquia expressa, sendo essa espécie de preceito encontrada de forma esparsa na legislação. Nas demais hipóteses, porém, em que o valor a ser conferido às provas não foi imposto pelo legislador, o depoimento testemunhal não é mais nem menos importante do que os outros meios probatórios, devendo seu valor probante ser aferido livremente mediante o cotejo com as alegações das partes e com os documentos, perícias e outros elementos do processo566. Isso não significa, contudo, ausência de relação hierárquica entre as provas quando inexista determinação legal a respeito do assunto. A possibilidade de gradação hierárquica é característica inerente aos valores, de modo que, consistindo a apreciação probatória na atribuição valorativa a cada elemento de convicção, este há de apresentar, em cada caso concreto, maior ou menor força axiológica, conforme entendimento do julgador. Procurando ilustrar o assunto, Paulo
564. Provas atípicas, p. 44. 565. Art. 443, I, do CPC/2015. 566. No direito antigo já vigorou a regra de que o testemunho de uma só pessoa seria ineficaz para demonstrar veracidade de um fato [testis unus testis nullus]. Atualmente, no sistema da persuasão racional, não importa o número de testemunhas, mas a credibilidade destas.
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de Barros Carvalho567 anota que “o conteúdo significativo da palavra indício já é um bom exemplo de hierarquia das provas, pois o indício é uma prova de pouca expressão valorativa. Quanto há referência à locução mero indício e não à prova, temos objetivado, com nitidez, o campo semântico do termo”.
7.5.1 Hierarquia axiológica das provas O direito, como objeto cultural que é, exige inevitável tomada de posição daquele que o interpreta, não havendo como dele se aproximar na condição de sujeito puro, despojado de atitudes axiológicas. Logo, ainda que as normas jurídicas não prescrevam a prevalência de determinado fato em relação a outro, ou, no caso, não atribuam maior poder de convencimento a uma modalidade probatória, a gradação hierárquica estará presente. O valor pode ser definido como a não-indiferença de um sujeito em relação a determinado objeto. É ele, portanto, bipolar, de modo que a um valor se contrapõe um desvalor, e o sentido de um exige o outro, num vínculo de implicação recíproca. Dada essa dualidade, o valor importa sempre uma tomada de posição do ser humano, que lhe confere sentido. Cada valor aponta a um fim específico, exigindo, do sujeito cognoscente, o ato de preferir a um em vez de outro, pois, como anota Miguel Reale568, o fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo determinante da conduta. Com tal ato valorativo, consistente na indicação das preferências, tem-se gradação hierárquica dos valores. Sendo assim, verificando o julgador a existência de provas heterogêneas, apontando para fatos diversos e contraditórios entre si, compete-lhe valorá-las, manifestando sua preferência por uma ou algumas, em detrimento de outras que 567. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Graduação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP. 568. Lições preliminares de direito, p. 292.
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considere pouco convincentes. Esse processo proporciona a existência de uma hierarquia axiológica móvel569 entre as provas jurídicas, variante em função de cada situação concreta. Fala-se em hierarquia axiológica, segundo Riccardo Guastini570, por não ser prescrita explicitamente pelo direito positivo, sendo criada pelo intérprete, que procede à valoração no momento da aplicação do direito. Esta é móvel, por seu turno, por depender da apreciação do julgador realizada no caso específico, valendo apenas para ele, em razão de suas peculiaridades.
7.6 A produção probatória e os efeitos na convicção do julgador A decisão jurídica apresenta-se como algo extremamente complexo, exigindo, além de atos de valoração, a prévia atividade interpretativa. Somente após compreender as escolhas possíveis é que se pode optar por uma delas. No contexto do sistema jurídico, exige-se a interpretação dos enunciados normativos como pressuposto à aplicação do direito. Tal assertiva assume caráter absoluto, pois não há texto sem interpretação. E, sendo a interpretação uma atividade humana, o valor é a ela imanente. Interpretar é construir sentido a partir do texto. Os enunciados linguísticos, leciona Paulo de Barros Carvalho571, não contêm, em si mesmos, significações: “São objetos percebidos pelos nossos órgãos sensoriais que, a partir de tais percepções, ensejam, intrasubjetivamente, as correspondentes significações. São estímulos que desencadeiam em nós produções de sentido”. Semelhante é a assertiva de Miguel Reale572, para 569. Terminologia empregada por J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1203. 570. Le fonti del diritto e l’interpretazione, p. 42. 571. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 18-19. 572. Cinco temas do culturalismo, p. 34.
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quem “O ato hermenêutico não significa uma cópia de algo já dado, que cumpra apenas decifrar ou desvelar – renovando-se de maneira oblíqua o superado entendimento da cognição como adaequatio rei ac intellectus –, porque conhecer, se não é constituir por inteiro o objeto, é contribuir racional e positivamente para constituí-lo, mediante síntese subjetivo-objetiva, na qual a imaginação criadora desempenha papel essencial”. Essa construção de sentidos, quando verificada nos autos processuais, exige a interpretação não só dos enunciados legislativos, mas também dos fatos juridicizados. O julgador interpreta as alegações das partes, as provas por elas produzidas e os dispositivos legais invocados. É esse conjunto de elementos o objeto de sua apreciação. Tudo, como anota Paulo de Barros Carvalho573, dentro dos limites da sua cultura: “a interpretação exige uma pré-interpretação que a antecede e a torna possível”. Percebe-se, com facilidade, que o simples relato fático, muitas vezes, não basta para proporcionar ao órgão julgador o instrumento que este necessita para a expedição de ato decisório. Sustenta Jaime Guasp574 que “o juiz, ao sentenciar, tem que contar com dados lógicos que inspirem o sentido de sua decisão, mas não com qualquer classe de dados deste caráter, e sim com aqueles que sejam, ou pelo menos pareçam, convincentes, a respeito de sua exatidão e certeza. Tem que haver, pois, uma atividade complementar à puramente alegatória dirigida a proporcionar tal convencimento, atividade que, junto à anterior, integra a instrução processual no processo de cognição e que é, precisamente, a prova”. Não se esqueça, porém, que os efeitos desencadeados pelas provas no intelecto do julgador não são intrínsecos a elas: é o próprio destinatário quem, ao apreciar os enunciados probatórios, atribui-lhes valor, conforme suas vivências.
573. Curso de direito tributário, p. 129. 574. Derecho procesal civil, p. 344 [tradução nossa].
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Vale lembrar, ainda, que em algumas situações se verifica a presença de uma única prova, suficiente, por si só, como meio de convencimento do julgador. Com base nela, é possível concluir acerca da existência ou não do fato probando. Trata-se do que denominamos indício necessário e veemente, sendo bastante para dar-se o fato por provado. Na maioria das vezes, contudo, é preciso mais de um enunciado probatório para se alcançar a certeza, devendo os diversos elementos ser examinados em conjunto, valorados e sopesados seus valores. Tal situação é resultado da sujeição das provas à hierarquia axiológica móvel de que falamos. Um indício que, em determinado caso, é considerado suficiente para estabelecer o convencimento do julgador pode, em outros, ser incapaz de, sozinho, servir como elemento de convicção. Exemplo dessa alterabilidade valorativa pode ser observado na ementa abaixo, indicativa de situação na qual se decidiu que, não obstante o imposto incidente sobre a propriedade predial e territorial urbana [IPTU] seja calculado com base no valor venal do bem imóvel, a venda realizada em montante inferior a este não é capaz de firmar o convencimento do julgador acerca da prática de negócio jurídico por valor notoriamente abaixo do de mercado, caracterizador da omissão de receitas [art. 60 do Decreto-Lei 1.598/77): OMISSÃO DE RECEITA – As alienações de imóveis por valores equivalentes a um pequeno percentual do valor que serviu de base ao IPTU e mediante pagamento em dinheiro constitui veemente indício de que a venda se tenha dado por valor superior, omitida a diferença na contabilidade. Todavia, esse fato, por si só, não é suficiente para dar lugar ao lançamento, havendo necessidade de outros indícios convergentes para permitir a presunção575.
Em que pese o órgão julgador administrativo federal ter reconhecido tratar-se de indício veemente, não se satisfez com este, considerado isoladamente. Perfeitamente possível, 575. CARF, Ac. 101-92.719, Rel. Cons. Sandra Maria Faroni, j. 10-6-1999.
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contudo, que em situações semelhantes o julgador, diante das peculiaridades do caso concreto, conclua de modo diverso, entendendo ser prova cabal do valor de mercado do imóvel aquele empregado para fins de exigência do IPTU. Compete ao julgador sopesar os distintos indícios contingentes, conferindo-lhes valor, que podem ser maior a uns que a outros, para, com apoio nesses dados, convencer-se a respeito da veracidade ou falsidade dos fatos alegados.
7.6.1 Influência dos valores na apreciação das provas Vimos que, tendo o ordenamento brasileiro adotado o critério decisório da persuasão racional, ao julgador é vedado decidir exclusivamente segundo suas impressões pessoais. Anota João Batista Lopes576 que, “seja na interpretação das normas, seja na avaliação da prova, o magistrado não goza de liberdade absoluta, mas deve valer-se de critérios técnicos recomendados pela doutrina mais autorizada. Assim, não poderá desprezar os métodos de interpretação, notadamente o teleológico, nem poderá ignorar o princípio da persuasão racional, só para mencionar dois exemplos”. É inegável, porém, que todo e qualquer julgador orienta suas decisões com base em valores pessoais, que ingressam no âmbito da atividade interpretativa. O aplicador do direito não tem como desprezar as influências recebidas em sua formação, tais como educação familiar, convivência em sociedade e experiências da vida profissional, o que faz da neutralidade do direito um mito577. Os valores são ferramentas importantíssimas de convencimento e persuasão, influenciando, decisivamente, a fixação do conteúdo da norma jurídica a ser emitida.
576. Efetividade do processo e prova pericial, Revista Dialética de Direito Processual n. 21, p. 90. 577. Rui Portanova, Motivações ideológicas da sentença, p. 63-75.
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A ideologia578, entendida como o conjunto de ideias, convicções e crenças de um indivíduo, é determinante no processo gerativo de sentido. Desse modo, sendo o valor inerente aos sujeitos, e não aos objetos, a apreciação das provas depende das experiências do intérprete: este constrói o fato jurídico em sentido estrito com base nas provas a que tem acesso, mas o faz orientado por seus próprios valores.
7.6.2 Máximas de experiência A valoração, própria das condutas humanas, inclusive da interpretação do direito, é determinada pelas máximas de experiência. Logo, anota Juan Carlos Cabañas Garcia579, “não são possíveis as funções de interpretação e de valoração da prova sem o uso de máximas de experiência [que condicionam qualquer juízo volitivo ou de valor do magistrado]”. As chamadas máximas de experiência não são normas jurídicas, meios de prova ou provas propriamente ditas. Trata-se dos conhecimentos adquiridos pelo julgador ao longo de sua vivência social e profissional. Friedrich Stein580 oferece-nos lapidar definição do conceito de máximas de experiência, a ela se referindo como juízos hipotéticos de conteúdo geral, desligados dos fatos concretos que se julgam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação são deduzidos e que, acima desses casos, pretendem ter validade para outros novos. As regras de experiência, como também
578. A acepção em que empregamos o vocábulo ideologia não se confunde com aquela expressa por Tercio Sampaio Ferraz Jr., tomada como conjunto mais ou menos consistente, último e global de avaliação dos próprios valores. Segundo o autor, as ideologias “atuam, ao avaliar os valores, no sentido de tornar conscientes os valores, estimando as estimativas que em nome deles se fazem, garantindo, assim, o consenso dos que precisam expressar os seus valores, estabilizando, assim, em última análise, os conteúdos normativos” [Introdução ao estudo do direito, p. 110-111]. 579. La valoración de las pruebas y su control en el proceso civil, p. 64 [tradução nossa]. 580. El conocimiento privado del juez, p. 30.
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são denominadas, integram princípios gerais, construídos a partir da observação dos fenômenos físicos ou do comportamento corrente dos homens e, como tais, servem de apoio para efetuar a valoração da prova. Não há como apreciar uma prova, interpretar o direito, sem interferência de subjetividade, da cultura acumulada pelo julgador. Eis o motivo pelo qual, quando da vigência do Código de Processo Civil de 1973, criticávamos o disposto em seu art. 335, que conferia caráter subsidiário à aplicabilidade das máximas de experiência. Estas, segundo entendemos, estão presentes sempre, em toda apreciação, quer na esfera judicial ou fora dela, o que foi consolidado no Estatuto Processual de 2015, no art. 375, ressalvando as hipóteses de laudo pericial. Ainda que a legislação do processo administrativo tributário nada disponha sobre o assunto, o emprego dessas máximas é imperativo, especialmente em face do art. 15 do CPC/2015. O julgador, na qualidade de ser humano que vive em sociedade, observando os acontecimentos e passando por experimentos diversos, utiliza-se desse arcabouço cultural ao avaliar as provas, interpretar o direito e aplicá-lo. Essa é a razão pela qual Arruda Alvim581 afirma que as máximas de experiência completam o sentido normativo, expressando uma “referibilidade da lei à realidade sobre a qual ela incide, tendo em vista o que a experiência comum (leis físicas, da medicina, da biologia etc.), necessariamente generalizada, significa de verdadeiro”. Cai a talho, nesse contexto, a formulação de Karl Popper, questionando a existência de uma certeza objetiva, independente do observador: Somos sempre nós que formulamos as questões a colocar à natureza; somos nós que, sem descanso, tentamos colocar essas questões de modo a obter um ‘Sim’ ou um ‘Não’ firmes. Porque a natureza só dá resposta se a forçarmos. Enfim, somos nós que decidimos, depois de um exame minucioso, da resposta a dar
581. Manual de direito processual civil, v. 2, p. 522.
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à questão colocada pela natureza... O velho ideal científico do epistema, o ideal de um conhecimento absolutamente certo e demonstrável, revelou-se um ídolo... Somente nas nossas experiências subjetivas de convicção na nossa confiança pessoal podemos estar ‘absolutamente certos’.582
A partir das vivências são construídas máximas da experiência. E, com base nestas, procede-se à valoração dos objetos, dentre eles, as provas. Daí a conclusão de Miguel Reale583, no sentido de que os valores “não são objetos ideais, modelos estáticos segundo os quais iriam se desenvolvendo, de maneira reflexa, as nossas valorações, mas se inserem antes em nossa experiência histórica, irmanando-se com ela”. Máximas de experiência e valores não apresentam, por conseguinte, caráter absoluto e imutável: dependem do contexto em que estão inseridos.
7.7 A atividade do julgador Adotado o critério da persuasão racional, é vedado ao julgador decidir com base em elementos diversos dos levados aos autos processuais. O primeiro passo, portanto, para que esteja habilitado a praticar ato decisório, consiste em entrar em contato com as provas produzidas. Tem-se, aí, a percepção, que se opera por meio dos sentidos [tratando-se da avaliação probatória, esse contato é visual, tendo em vista que as provas apresentam a forma de documentos]. É pela percepção que o julgador alcança os fatos em sentido amplo, tendo acesso ao seu suporte físico, plano de expressão. Em seguida, depois de percebidos os fatos, passa o julgador, na qualidade de intérprete, a construir sentidos a serem atribuídos a cada uma das provas [significação].
582. La logique de la découverte scientifique. Trad. Francesa de Jean Monod, Paris, Payot, 1973, p. 286, apud Jean-Louis Le Moigne, O Construtivismo: Dos Fundamentos, vol. I, p. 241. 583. Introdução à filosofia, p. 141.
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Por fim, de posse de tais construções significativas, examina-as em conjunto, identificando os fatos convergentes e os divergentes entre si, valorando-os conforme se apresentem confirmados ou infirmados pela totalidade dos elementos de convicção. Uma vez determinados os fatos jurídicos em sentido amplo, tem lugar a sua combinação. Trata-se da coordenação das provas, precedida da respectiva valoração, de modo que sejam apreciadas no contexto do conjunto probatório. O resultado da operação poderá implicar a atribuição a cada uma das provas, na hipótese de apresentarem-se homogêneas, de um valor muito maior do que o que tinham individualmente considerado. Feita a apreciação probatória, compete ao julgador concluir, mediante raciocínio, acerca da veracidade ou falsidade dos fatos afirmados pelas partes, constituindo fato jurídico em sentido estrito. Essa atividade é realizada segundo regras lógicas de inferência584. Tal operação mental, sustenta Camargo Aranha585, “é um silogismo puro, em que a conclusão, que é o fato probando, é uma resultante da comparação entre o fato indiciário [premissa menor] e uma lei da experiência ou da razão [premissa maior]”. Exemplifica o autor: “Pela observação chegamos à conclusão de que a pessoa encontrada com o bem apossado é provavelmente o autor do assalto: eis a premissa maior. Fulano foi encontrado logo depois com o relógio e a carteira da vítima: é a premissa menor. Portanto, Fulano é provavelmente o autor do assalto: a conclusão”. Isso não significa, todavia, redução da atividade julgadora a uma figura lógica, sob pena de caracterizar logicismo, que, segundo
584. André Comte-Sponville [Diccionario filosófico, p. 138 e 284] explica o que seja dedução e inferência: “Deduzir é ir de proposições verdadeiras ou supostas (princípios ou premissas) a uma ou várias proposições que se derivam delas necessariamente”. “Inferência é o passar de uma proposição considerada como verdadeira a outra que se julga, em consequência, que também o é, em virtude de uma relação necessária ou que se supõe tal. Esse passar pode ser indutivo [se se passa de fatos particulares a uma conclusão mais geral] ou dedutivo [se se passa de uma proposição a uma de suas consequências]”. 585. Da prova no processo penal, p. 196-197.
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Lourival Vilanova, é uma extrapolação da Lógica586. Regras lógicas dizem respeito à estrutura formal do raciocínio, mas nada interferem em seu conteúdo, que se pauta nas máximas de experiência, na observação do que comumente ocorre, nas vivências e valores do intérprete. Por isso, uma prova pode ser convincente para um julgador, mas insuficiente para outro, naquela mobilidade hierárquica de que falamos. Convém registrar que as etapas da apreciação realizada pelo julgador são indissociáveis e insusceptíveis de ordenação cronológica587, estando, todas elas, impregnadas pela influência das máximas de experiência e dos valores. Nesse sentido, anota Devis Echandía588 que não é possível supor uma percepção desligada totalmente da atividade racional, porque quando o fato é observado, realiza-se certa atividade analítica, que serve para obter as inferências necessárias para sua compreensão. Também Recaséns Siches589, discorrendo sobre a valoração da prova, manifesta entendimento de que “a apreciação da prova é, sem dúvida, uma operação valorativa, e que a constatação e qualificação jurídica dos fatos envolve também operações valorativas”. Desde o instante em que se admite algo como prova, com ela entrando em contato, tem lugar, ainda que de forma inconsciente, a interferência axiológica. O próprio ato de deferir a produção probatória já é exteriorização dos valores do intérprete, que julga útil referido procedimento instrutório.
7.8 Momento da atividade valorativa da prova Ao discorrermos sobre a dinâmica da prova, evidenciamos as etapas de sua produção [capítulo 6, subitem 6.3.1]. Cumpre, 586. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 22. 587. A sucessão entre as etapas é apenas lógica, possível de ser realizada no campo das ideias. 588. Teoría general de la prueba judicial, p. 292. 589. Nueva filosofía de la interpretación del derecho, p. 229 [tradução nossa].
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agora, examinar os momentos em que se opera a apreciação probatória. Em termos subjetivos, a atribuição de valores pelo julgador ocorre durante todo o trâmite processual, tendo em vista que, ao entrar em contato com os enunciados produzidos pelas partes, o destinatário já passa a valorá-los. Mas, sem exteriorizar tais sentimentos, estes não ingressam no mundo jurídico. Por isso, podemos identificar três momentos específicos da apreciação probatória, em que o julgador, após avaliar a prova [ou, muitas vezes, protoprova] objetiva em linguagem o seu posicionamento. São eles: (i) instante em que a prova é oferecida pela parte, ocorrendo a apreciação do julgador para acolhê-la ou não no processo; nesse caso, havendo sua aceitação, a proposta de prova passa à condição de prova, propriamente dita; (ii) por ocasião do saneamento processual, em que o julgador examina as provas já trazidas aos autos, verificando a necessidade de produção de novos enunciados probatórios e, em caso positivo, fixando os pontos controvertidos; e (iii) ao proferir a decisão terminativa, momento culminante da valoração da prova, por compreender a totalidade do conjunto probatório. Sobre o tema, também Devis Echandía590 reconhece a pluralidade de ocasiões em que se opera o procedimento valorativo das provas: Geralmente, a valoração corresponde à sentença. Mas há ocasiões em que se apresenta em providências interlocutórias, quando por elas devem adotar-se decisões sobre fatos distintos daqueles que fundamentam as pretensões da demanda e as exceções que lhe são opostas, como acontece nas oposições ou na entrega ou sequestro de bens, nas objeções aos laudos periciais, pelas recusas de juízes, nas contradições das testemunhas ou falsidade de documentos.
Não é somente no final do processo, por ocasião da expedição da norma individual e concreta terminativa, que o
590. Teoría general de la prueba judicial, p. 347 [tradução nossa].
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problema do valor das provas se apresenta. Durante todo o trâmite processual exige-se que o julgador decida, optando por uma ou outra alternativa. Perfeitamente possível, portanto, dividir a figura da apreciação da prova em duas categorias: (i) total e (ii) parcial. Será total, quando se examinarem, de forma completa, as provas colacionadas aos autos processuais; e, parcial, se a apreciação recair sobre uma prova em particular, durante o curso do processo.
7.9 Teoria da decisão jurídica A criação do direito opera-se mediante decisões jurídicas. Segundo ensinamentos de Gregorio Robles591, “o texto jurídico é um texto autogerador por força de decisão, o que significa que em seu aspecto dinâmico a teoria da decisão constitui o núcleo fundamental”. Isso porque os atos decisórios não aparecem apenas no momento da resolução de conflitos, com a emissão de normas individuais e concretas. São vislumbrados, também, quando se estabelecem os critérios nos termos dos quais o direito há de ser aplicado, ou conflitos deverão ser solucionados, por exemplo. Sempre que se editam normas gerais e abstratas, ou qualquer outra modalidade normativa, existe uma decisão que a precede. Dito de outro modo, toda norma jurídica é resultado de decisão. Não há norma sem ato decisório que lhe anteceda. E, considerando que a norma jurídica criada é constituída por linguagem, a atividade que a gera é um ato de fala. Para que o ato de fala ocorra regularmente, porém, a enunciação precisa ser realizada por autoridade competente, conforme procedimento estabelecido em outras normas, de superior hierarquia formal. Do exposto, nota-se que a teoria da decisão jurídica se concentra no tema da produção normativa, quer no âmbito da
591. O direito como texto: quatro estudos da teoria comunicacional do direito, p. 34.
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abstração ou da concretude, da generalidade ou da individualidade. O intérprete, ao aplicar o direito, realiza ato decisório, emitindo enunciados normativos. O ato de decidir implica a eleição entre várias possibilidades. É, por isso, contingente. Quem decide colocar no sistema do direito um novo enunciado escolhe uma opção possível entre as existentes, excluindo as demais alternativas. Pressupõe, portanto, valoração. Tal peculiaridade faz com que a decisão jurídica possa ser observada em dois aspectos, indissociáveis entre si: (i) o elemento decisório, puramente volitivo – noesis, e (ii) o conteúdo do que foi decidido – noema. Enquanto a primeira perspectiva toma como foco o valor em sua subjetividade, a segunda, dirigindo sua atenção ao que se plasmou no texto, centra-se no valor objetivado. É este último, por estar registrado linguisticamente, que ingressa no ordenamento. A decisão legislativa lato sensu abrange aqueles dois momentos de que falamos: o ato de vontade e seu resultado. Não se pode dizer que o legislador decida sem legislar, nem que o juiz tome decisões sem sentenciar, pois, apenas quando introduzido no sistema do direito, o ato volitivo passa a integrá-lo de forma objetivada. O ato decisório e o de aplicação do direito são mutuamente dependentes, um não existindo sem o outro. Discorrendo sobre o assunto, mais especificamente em relação à hipótese decisória com a finalidade de solucionar conflitos, Clarice Von Oertzen Araújo592 expõe com clareza a influência dos valores: “o litígio que se põe para ser solucionado pelo direito traz em si a expressão contraposta de valores diferentes. As partes envolvidas em um litígio têm interesses diversos. A decisão do litígio posta como expressão da justiça vai proceder a uma decisão binária, entre dois pedidos contrapostos, formulados pelas partes envolvidas no litígio. Neste sentido, a decisão positivará um valor, considerado como a expressão de um juízo de preferência”. A interferência valorativa sofrida pelo julgador não autoriza, entretanto, decisões 592. Semiótica do direito, p. 61.
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puramente subjetivas. Não obstante a subjetividade seja imanente a qualquer atitude criadora do direito, esta há de ser guiada, também, por fundamentos racionais. Nessa esteira, o ordenamento brasileiro exige que sejam expostos os motivos que levaram ao ato decisório, baseados nos elementos constantes dos autos processuais.
7.9.1 A prova como suporte para a tomada de decisão Dentre as decorrências de se adotar a sistemática de avaliação probatória com base na persuasão racional, tem-se a obrigatoriedade de fundamentar o ato decisório, permitindo evidenciar as condicionantes que levaram o julgador ao convencimento dos fatos593. É a motivação da decisão figurando, segundo Juan Carlos Cabañas Garcia594, como expressão do juízo jurisdicional, propiciando objetivação do ato valorativo. Como a decisão não pode justificar-se a partir da íntima convicção do julgador, devendo pautar-se nos fatos constituídos nos autos, a fundamentação caracteriza requisito essencial do ato decisório. Na lição de Pontes de Miranda595: Tem o juiz de dar os fundamentos, que lhe assistiram, para a apreciação das provas: porque desprezou umas e acolheu outras, porque não atribuiu o valor que fora de esperar-se, a alguma, ou algumas, e porque chegou às conclusões que expende.
É na fundamentação que se demonstra o caminho traçado para alcançar a conclusão veiculada, assegurando que a razão do convencimento, conquanto inevitavelmente impregnada pelas máximas de experiência e por valores do intérprete, tenha sido moldada com base nas alegações e provas processuais.
593. Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, Da prova no processo penal, p. 76. 594. La valoración de las pruebas y su control en el proceso civil, p. 223. 595. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 253.
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A apreciação ou valoração da prova, considerada em toda sua amplitude, exige estudo crítico do conjunto, abrangendo as várias provas constituídas pelas partes para demonstrar a veracidade de suas alegações, e, ainda, as que tenham sido produzidas por iniciativa do julgador. A comparação das provas permite ao julgador estabelecer as que sejam essenciais e decisivas para a solução da causa, desconsiderando as que lhe pareçam impertinentes ou as que entenda insuficientes ou fracas perante outras provas. Desse modo, realiza uma espécie de seleção, que se opera tendo em conta a lide instalada, os fatos alegados pelo requerente e pelo demandado, bem como as provas verificadas no processo. Do mesmo modo que a formação de um enunciado probatório envolve uma combinação de elementos, segundo procedimento apropriado [sintaxe interna], as diversas provas são articuladas entre si [sintaxe externa] com vistas a constituir o fato jurídico em sentido estrito: [Fal . (F1 . F2 . F3 . ... Fn)] → F, em que F1, F2, F3, e Fn representam um número finito de fatos [fatos jurídicos em sentido amplo] enunciados em função do fato alegado [Fal], “.” consiste no conectivo conjuntor, “→” é o conectivo implicacional e “F” é o fato que se pretende constituir por meio das provas [fato jurídico em sentido estrito], significando que os diversos enunciados probatórios, considerados cumulativamente, implicam o fato conotado na hipótese da norma jurídica geral e abstrata, necessária à positivação normativa. No âmbito tributário, podemos dizer que vários fatos jurídicos tributários em sentido amplo, conjuntamente examinados, implicam o fato jurídico tributário em sentido estrito, dando nascimento à obrigação tributária. Geralmente, porém, os enunciados probatórios colacionados nos autos processuais não se encontram, todos eles, ligados por relação de coordenação. Normalmente, há provas que corroboram as alegações de uma das partes e, também,
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provas que confirmam os argumentos da parte adversa. Alguns fatos jurídicos em sentido amplo [F1.1, F1.2, F1.3, ... F1.n] conduzem à veracidade do fato probando F1, ao passo que outros enunciados fáticoprobatórios [F2.1, F2.2, F2.3, ... F2.n] levam ao fato jurídico em sentido estrito F2: F1.1------F1.2------F1.3------F1.n------F1 F2.1------F2.2------F2.3------F2.n------F2 Segundo Michele Taruffo596, histórias e narrativas são necessárias tanto no contexto do processo como fora dele, pois são instrumentos mediante os quais informações esparsas e fragmentárias combinam-se e compõem um complexo de fatos dotado de sentido. Tratando-se de um processo, contudo, conclui o autor, não há apenas uma narrativa, mas “uma situação complexa, em que várias histórias são construídas e contadas por sujeitos diferentes, de pontos de vista e em modos diferentes”. Diante de situação como esta, o julgador, com base em suas vivências, valores e máximas de experiência que edificou, seleciona as provas que considera convincentes, construindo o fato jurídico em sentido estrito [F3], mediante a emissão de norma individual e concreta, seguindo o trajeto abaixo representado: F1.1------F1.2------F1.3------F1.n------F1
F2.1------F2.2------F2.3------F2.n------F2
-------------------------------Fjt-------F3
596. Uma simples verdade: O Juiz e a construção dos fatos, p. 54-55.
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A apreciação das provas é a atividade intelectual que o julgador realiza para determinar o poder de convencimento relativo de cada um dos enunciados probatórios, em sua comparação com os demais, para chegar à conclusão acerca da força do conjunto probatório como um todo. Fazendo uso novamente dos ensinamentos de Michele Taruffo597, os fatos constantes dos autos [fatos jurídicos em sentido amplo] propõem possibilidades, as quais hão de ser articuladas pelo intérprete e aplicador do direito, podendo, metaforicamente, ser comparados a um punhado de pedaços de vido colorido, cuja combinação faz um mosaico [fato jurídico em sentido estrito]. Daí a relevância da fundamentação decisória, em que se expõe a articulação entre os enunciados fáticos, consistente no relacionamento entre as alegações das partes e as provas por elas produzidas. Ensina Nelson Nery Junior598 que “Fundamentar significa o magistrado dar as razões de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão”. Por isso, continua o autor, “não se consideram substancialmente fundamentadas as decisões que afirmam que segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido. Esta decisão é nula porque lhe falta fundamentação”. O julgador precisa indicar as provas que considera convincentes e as que entende de baixa força probatória, explicando o motivo por que fez prevalecer uma sobre a outra, como bem leciona Paulo de Barros Carvalho: Realmente, não basta enunciar a relação de provas apresentadas. A fundamentação que se requer pressupõe articulação dos enunciados probatórios, expondo os critérios de avaliação do magistrado. E não é suficiente, também, mera associação 597. Idem, p. 54. 598. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 175.
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acompanhada dos padrões axiológicos que a presidiram: a montagem dessa base há de ser promovida segundo a rigidez das regras lógicas, armando a autoridade o silogismo que conduzirá à decisão final.
Assim como em todo procedimento interpretativo, cumpre ao julgador efetuar a conexão necessárias entre as partes do texto, para que este seja compreendido na complexidade inerente ao texto como um todo, o que, graficamente, podemos assim representar:
Os significados das parcelas singulares da narrativa da parte somente pode ser determinado com referência à totalidade do texto, no que se incluem as provas, narrativas contrárias e contraprovas. Finalizando com a metáfora de Michele Taruffo599: “o significado de cada peça de vidro é determinado por sua posição no desenho final, mas o significado do mosaico em sua totalidade é determinado pelas cores e pela posição de cada peça”.
599. Idem, p. 85.
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CAPÍTULO 8 A PROVA NO PROCEDIMENTO E NO PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
8.1 Procedimento e processo administrativo fiscal no ciclo de positivação do direito Denominamos positivação do direito o processo mediante o qual o aplicador, partindo de normas jurídicas de hierarquia superior, produz novas regras, objetivando maior individualização e concretude. Os preceitos de mais elevada hierarquia e, portanto, ponto de partida para o ciclo de positivação, encontram-se na Constituição da República: são as competências tributárias. Com base nesse fundamento de validade, o legislador produz normas gerais e abstratas, instituidoras dos tributos: são as regras-matrizes de incidência tributária, descrevendo conotativamente, em sua hipótese, fato de possível ocorrência, e prescrevendo, no consequente, a instalação de relação jurídica, cujos traços relaciona. Avançando cada vez mais em direção à disciplina dos comportamentos intersubjetivos, o aplicador do direito veicula
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norma individual e concreta, relatando o evento ocorrido e, por conseguinte, constituindo o fato jurídico tributário e a correspondente obrigação. A aplicação da norma geral e abstrata pode ser realizada pelo contribuinte ou por autoridade administrativa. Na primeira hipótese, tem-se o impropriamente denominado lançamento por homologação, em que o particular emite a norma individual e concreta, constituindo, ele próprio, sua obrigação tributária, dispensando, portanto, abertura de processo administrativo para fins de legitimação da exigência600. Por outro lado, quando a obrigação tributária é constituída por ato administrativo, está-se diante do lançamento tributário, referido pelo art. 142 do CTN. Como ato unilateral que é, exige abertura de oportunidade para o contribuinte impugná-lo, oportunizando-se o contraditório e a ampla defesa, inerentes ao devido processo legal. Formalizada a resistência do administrado à pretensão fiscal, tem início o processo administrativo. Não se pode confundir, porém, processo com procedimento administrativo tributário. Este tem por finalidade preparar o ato de lançamento, mediante o qual se formaliza a pretensão tributária. Aquele, por sua vez, surge após realizado o ato de lançamento, caso impugnado pelo contribuinte. Ambos, procedimento e processo, objetivam, cada qual com seu peculiar regime jurídico, aplicar as normas tributárias gerais e abstratas, seguindo em direção à individualidade e concretude normativa.
8.1.1 Distinção entre procedimento e processo: a figura do processo administrativo tributário A análise do ciclo de positivação na esfera administrativa tributária revela a existência de dualidade terminológica: procedimento/processo. Mas que é processo? Qual sua distinção
600. Isso não impede o pedido de revisão do ato produzido pelo contribuinte.
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relativamente ao procedimento? Na esfera administrativa podemos falar em processo? Na lição de Paulo Cesar Conrado601, a ideia de processo está relacionada com o fato jurídico conflito. O procedimento, por sua vez, nada tem de litigioso. Consiste na forma de organização lógica e cronológica de determinados atos, necessária à consecução de outro ato, caracterizador do objetivo último do aplicador do direito. O que identifica o processo, já afirmava Hely Lopes Meirelles602, “é o ordenamento de atos para a solução de uma controvérsia; o que tipifica o procedimento de um processo é o modo específico do ordenamento desses atos”. Perfeitamente possível, portanto, procedimento sem processo (v.g., procedimento preparatório do ato de aplicação da norma tributária), conquanto não haja processo sem procedimento que oriente o rito a ser traçado. Firmadas essas premissas, concluímos tratar-se de procedimento o caminho perseguido para a realização do ato de lançamento ou de aplicação de penalidade, configurando processo, por sua vez, a composição administrativa dos conflitos fiscais. Enquanto o procedimento administrativo tributário é marcadamente fiscalizatório e apuratório, visando a preparar o ato constituidor da obrigação tributária ou da sanção pelo descumprimento desta ou de deveres instrumentais, a figura do processo administrativo fiscal só aparece em momento posterior ao nascimento do crédito tributário, mediante resistência do contribuinte à pretensão do Fisco. E o veículo de linguagem capaz de fixar juridicamente referido conflito é a impugnação do lançamento ou do ato de aplicação da penalidade, tempestivamente apresentada. Em que pese à propriedade da distinção realizada, ainda se discute sobre a possibilidade de denominar processo o conjunto de atos destinados a obter decisão administrativa 601. Processo tributário, p. 70-73. 602. Direito administrativo brasileiro, p. 590.
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que solucione conflito instalado entre o particular e a Administração. Tal orientação fundamenta-se (i) na tripartição dos poderes, de modo que apenas ao Judiciário competiria praticar atos jurisdicionais, e (ii) na concepção de que o efeito imutável, inerente à coisa julgada, seria requisito do exercício jurisdicional603. Daí por que conclui José Frederico Marques604 que “só por antonomásia fala-se em processo administrativo para a designação de procedimentos formados em repartições públicas, no tocante a atividades diversas que ali realizam órgãos da Administração”. Em tais casos, entende aquele jurista, existiria apenas procedimento administrativo. Referidas objeções, a nosso ver, não se sustentam. Primeiro, porque a despeito da divisão de funções entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, em determinadas situações a estes é permitida a realização de atividades atípicas. Como bem observa Celso Ribeiro Bastos605, os órgãos estatais não desempenham apenas as funções que lhe são próprias, executando, igualmente, funções que a priori são atribuídas a outros órgãos. Além disso, o ato jurisdicional tem abrangência mais ampla do que a referida acima. O vocábulo jurisdição, conquanto tenha sua origem na expressão latina juris dictio, que significa dizer o direito, é empregado em acepção mais larga, envolvendo não apenas o dizer o direito, mas também a realização e a proteção do direito606. Nessa esteira, podemos afirmar que jurisdição consiste no dever estatal que objetiva a composição de conflitos. Até mesmo José Frederico Marques607, que nega a condição de processo ao conjunto de atos realizados com o fito de solucionar conflitos no âmbito 603. Enrico Allorio, Diritto processuale tributario, p. 52-53. 604. Manual de direito processual civil, v. 1, p. 10. 605. Curso de direito constitucional, p. 301. 606. A realização do direito e sua proteção são verificadas apenas na esfera judicial, encontrando correspondência, segundo Paulo Cesar Conrado, nos processos de execução e cautelar [Tutela jurisdicional diferençada [cautelar e satisfativa] em matéria tributária, in Processo tributário analítico, p. 123). 607. Manual de direito processual civil, v. 1, p. 2.
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administrativo, define jurisdição como a atividade ou função que o Estado exerce para compor situação intersubjetiva litigiosa, mediante aplicação do direito objetivo, atividade esta que está afeta, de modo preponderante, aos órgãos do Poder Judiciário. Há preponderância, mas não exclusividade do exercício jurisdicional por parte do Judiciário. Jurisdição é monopólio do Estado, não do Judiciário. Perfeitamente possível, portanto, falar em processo administrativo608. Semelhante é o posicionamento de Lúcia Valle Figueiredo609, que, construindo um elucidativo quadro sinótico, conclui estar-se diante de processo administrativo em sentido estrito quando presente o caráter litigioso. Enquanto o termo procedimento seria empregado para designar a forma específica de desenvolver função administrativa, judicial e legislativa ou, em uma segunda acepção, a sequência de atos administrativos, o vocábulo processo é inerente à situação conflituosa. Por isso, quando a Administração realiza o controle de legalidade de seus atos por iniciativa própria, não há que falar em processo. Este surge apenas se o particular contrapuser-se ao ato administrativo, solicitando sua revisão610.
608. Inexiste hierarquia entre as linguagens da decisão judicial e da decisão administrativa. O que se tem é controlabilidade desta por aquela, de modo que o ponto distintivo entre ambas reside na esgotabilidade da revisão judicial, em virtude da figura da coisa julgada. Contrapondo-se à concepção que toma a decisão administrativa como ato jurisdicional, José Souto Maior Borges assevera: “Mesmo os atos emanados de órgãos da administração em sede contenciosa não são atos jurisdicionais porque, embora emitidos para solver um contraditório, são provimentos unilaterais de autoridade” [Tratado de direito tributário brasileiro, v. 4, p. 119. Ocorre que tais autoridades, além de portadoras de específica função julgadora, não estão autorizadas a julgar de forma parcial, como se fossem, elas próprias, integrantes da contenda. Hão de pautar-se, necessariamente, nos fatos constantes dos autos e nas normas jurídicas aplicáveis, sofrendo a influência de suas vivências e valores inerentes a todo ato decisório. 609. Curso de direito administrativo, p. 424. 610. A importância de tal distinção reside na aplicabilidade, aos processos administrativos, dos princípios norteadores do desenvolvimento processual, tais como o devido processo legal, ampla defesa, contraditório, direito à produção probatória, garantia do duplo grau de jurisdição e efeito vinculante para a Administração relativamente às decisões finais proferidas.
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8.2 Definição do conceito de lançamento tributário O Código Tributário Nacional estabelece, em seu art. 142, caput, que: Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Essa atividade, nos termos do parágrafo único, é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional. Segundo Alberto Xavier611, poder-se-ia pensar que, existindo definição legal expressa, estaria, desde logo, resolvida a questão preliminar da fixação do conceito do instituto que nos ocupa. Não é, porém, desse modo, tendo em vista que o art. 142 do CTN apresenta diversas imprecisões, gerando dúvidas e controvérsias a respeito do assunto. Referido dispositivo faz menção a um procedimento administrativo, enfatizando o caráter dinâmico, procedimental da atividade de aplicação das normas jurídicas tributárias. Entretanto, essa alusão ao prisma da dinamicidade do direito tributário leva à ambiguidade na definição de lançamento: trata-se do procedimento ou do ato jurídico-administrativo conclusivo daquele procedimento? Colabora para essa indeterminação, também, o indicativo de suas fases de desenvolvimento, consistentes em verificar a ocorrência do fato gerador, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido e identificar o sujeito passivo, pois se trata de etapas procedimentais, necessárias à operação lógica de subsunção, que não se confundem com o ato, tomado como resultado do procedimento.
611. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 23.
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Ademais, peca o art. 142 ao relacionar, como um dos objetos do lançamento, a propositura da aplicação de penalidade cabível. Com tal estipulação, coloca no mesmo plano o ato de aplicação da regra-matriz de incidência tributária e das normas sancionatórias pela ausência de pagamento do tributo e pelo descumprimento de deveres instrumentais. Explica Estevão Horvath612 que, desse modo, têm-se englobados, sob um mesmo nome, dois atos distintos e inconfundíveis: o ato de lançamento propriamente dito e o ato de aplicação de sanção, normalmente denominado auto de infração, os quais, embora geralmente plasmados num mesmo documento, são realidades jurídicas diversas. Em outros pontos, porém, aquele preceito do Código Tributário Nacional dispõe de forma harmônica com o restante do ordenamento: (i) prescreve ser o lançamento de competência privativa da autoridade administrativa, evidenciando sua natureza de ato administrativo; e (ii) alude ao caráter constitutivo do crédito tributário. Para sintetizar, utilizamo-nos da definição empregada por Paulo de Barros Carvalho613, que, a nosso ver, reflete com clareza e completude as características do lançamento: Trata-se de ato jurídico administrativo, da categoria dos simples, constitutivos e vinculados, mediante o qual se insere na ordem jurídica brasileira uma norma individual e concreta, que tem como antecedente o fato jurídico tributário e, como consequente, a formalização do vínculo obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo, a determinação do objeto da prestação, formado pela base de cálculo e correspondente alíquota, bem como pelo estabelecimento dos termos espaço-temporais em que o crédito há de ser exigido.
Tal enunciado definitório permite visualizar no lançamento o caráter de ato administrativo, como norma individual e concreta, além dos critérios determinantes de seu conteúdo significativo.
612. Lançamento tributário e “autolançamento”, p. 60. 613. Curso de direito tributário, p. 386.
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8.2.1 A ambiguidade procedimento/produto A locução lançamento tributário costuma ser empregada em duas acepções básicas: (i) indicando o procedimento, entendido como execução de uma atividade com vistas a atingir determinado objetivo; e (ii) significando o ato, resultado daquela atividade. Estamos, mais uma vez, diante de problema semântico do tipo “processo/produto”, como perspicazmente identificou Paulo de Barros Carvalho614. Tal ambiguidade decorre da dualidade significativa que atinge todas as ações. Tomada como conjunto de movimentos, a ação apresenta-se, simultaneamente, como procedimento e resultado. Explica Gregorio Robles615 que a ação concreta é o resultado de um processo de interpretação, exemplificando: “Como sabemos que a testemunha, ao levantar a mão, está prestando juramento, e não saudando uma pessoa do público? Obviamente, porque sabemos que esse movimento concreto nessa situação concreta significa prestar juramento, e não saudar um amigo”. O autor denomina ação genérica a esse conhecimento dos movimentos necessários para atingir um determinado fim, chamando de ação concreta o significado veiculado com a efetiva realização daqueles movimentos. O modelo genérico de ação se expressa na forma de um procedimento, também genérico [previsão abstrata], assim como a ação concreta é materializada em razão de um procedimento igualmente concreto [efetivamente realizado]. O procedimento genérico nada mais é que uma regra que estabelece o que um sujeito tem de fazer para realizar uma ação. As receitas culinárias são típicos exemplos de regras procedimentais genéricas, indicando os passos a serem seguidos para se preparar os pratos. Assim é que, se desejo fazer um bolo, preciso atender a um conjunto de operações
614. Curso de direito tributário, p. 377. 615. Teoria del derecho: fundamentos de teoria comunicacional del derecho, p. 231 [tradução nossa].
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básicas, sem as quais o bolo não se formará. A norma de procedimento, sustenta Gregorio Robles616, estabelece a ação genérica, uma espécie de modelo, de modo que a ação concreta não constitui senão a atuação de um sujeito determinado em uma situação também determinada, previstos na ação genérica. A ação concreta, por sua vez, pode ser observada sob duas perspectivas: (i) uma estática, em que se toma a ação como um produto acabado, expresso, comumente, pelo emprego de substantivos [ex.: a saudação, o juramento, a decisão]; e (ii) outra dinâmica, considerado o curso do seu processamento, sendo referida, geralmente, por meio de um verbo [ex.: saudar, jurar, decidir]. Ambas as visões coexistem, sendo uma o resultado da outra: o conceito estático exige o dinâmico; o ato decorre da ação; a ação concreta pressupõe o procedimento concreto. Nesse sentido, já manifestava Manoel de Oliveira Franco Sobrinho617, asseverando que todos os atos administrativos são metas que não se podem alcançar senão por determinados caminhos. E esses caminhos são exatamente os procedimentos administrativos. Todas essas categorias conceituais aplicam-se, integralmente, à figura do lançamento tributário, auxiliando-nos na sua compreensão. A norma geral e abstrata que determina a sequência de atos a serem desenvolvidos pela autoridade administrativa no curso da fiscalização identifica-se com ação genérica ou procedimento genérico do lançamento618. A concretização da atividade nela prevista corresponde à ação concreta observada pela perspectiva dinâmica, isto é, ao procedimento concreto do lançamento [ato de enunciação, cujas marcas são deixadas na enunciação-enunciada]. Por fim, o ato surgido em 616. Ibidem, p. 237. 617. A prova administrativa, p. 17. 618. Essa acepção foi bem identificada por Eurico Marcos Diniz de Santi, ao referir-se à “solenidade jurídica prevista para o agente competente constituir o suporte fático do fato jurídico suficiente, para edição do ato-norma de lançamento tributário” [Lançamento tributário, p. 161].
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razão do procedimento concreto, consistente na constituição do fato jurídico tributário e do correspondente vínculo obrigacional, caracteriza a ação concreta estática, denominada ato de lançamento tributário [enunciado]. Não obstante todas essas significações estejam em perfeita correspondência com a locução lançamento tributário, cada qual considerando uma perspectiva daquela realidade jurídica, optamos por empregá-la para designar o ato, ação concreta estática, por consistir no enunciado normativo mediante o qual se realiza a incidência tributária, fazendo nascer o fato jurídico e a obrigação de pagar tributo. É em relação a ele que se faz o controle de legalidade, implementado mediante processo administrativo tributário.
8.2.2 Lançamento tributário e auto de infração Necessário se faz, nesta oportunidade, estabelecer a distinção e o relacionamento entre lançamento tributário e auto de infração. Assim como o vocábulo lançamento, a expressão auto de infração é polissêmica, significando (i) norma jurídica geral e concreta, veículo introdutor de outras normas, de caráter individual e concreto, impositivas de sanções em decorrência de infrações administrativas tributárias e, muitas vezes, constituidoras da obrigação tributária619; (ii) norma individual e concreta, cujo antecedente constitui o fato de uma infração, sendo o consequente veiculador da relação jurídica sancionatória correspondente620; e (iii) documento que figura como plano de expressão daqueles conteúdos normativos. Interessa-nos a terceira das referidas acepções, razão pela qual a tomaremos, com Eurico Marcos Diniz de Santi621 e José Artur 619. Renata Rocha Guerra, Auto de infração tributário: produção e estrutura, p. 41. 620. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 233. 621. Lançamento tributário, p. 196.
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Lima Gonçalves622, como o suporte físico de um ou mais atos administrativos. É o auto de infração em sentido lato, denominação atribuída por Paulo de Barros Carvalho623 para denotar a peça portadora de dois atos administrativos diversos: (i) um concernente à constituição da obrigação tributária (lançamento); e (ii) outro relativo à aplicação de penalidade a quem cometeu ilícito tributário. Isso não significa, contudo, idêntica natureza jurídica dessas duas espécies de atos administrativos. A distinção entre ambos se opera pelo exame do suposto normativo: enquanto o antecedente da norma individual e concreta do lançamento consiste na descrição de fato lícito, nos termos do art. 3º do CTN, a aplicação de penalidade decorre da prática de ilícito, consistente no descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental [auto de infração stricto sensu]. Nos dizeres de Alberto Xavier624, “O lançamento aplica a norma tributária material, em cuja hipótese se integra um fato tributário e cujo mandamento se traduz na criação de uma obrigação tributária; ao invés, o ato de aplicação de uma pena fiscal concretiza a norma penal tributária, em cuja hipótese se integra um fato punível, constituído por uma infração à lei fiscal e cujo mandamento se traduz na sanção correspondente”. Lançamento e ato de aplicação de penalidade tributária diferenciam-se em razão de seus conteúdos semânticos, mas apresentam organização sintática semelhante. Ambos, na qualidade de atos administrativos, exigem a presença de pressupostos e elementos para sua constituição, dentre eles, a motivação por meio da linguagem das provas, como discorreremos no subitem 8.3.1.1, subsequente.
622. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 101. 623. Ibidem, p. 235. 624. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 58.
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8.3 Ato administrativo Tomado o direito positivo como o conjunto de normas jurídicas válidas em determinado país, todos os seus componentes hão de ser, necessariamente, normas jurídicas, ainda que em sentido amplo. Conquanto alguns enunciados não apresentem forma hipotético-condicional, caracterizando normas em sentido estrito, a circunstância de integrarem o sistema do direito confere-lhes função linguística prescritiva, permitindo identificá-los como normas em sentido amplo: enunciados normativos que, conjugados a outros enunciados de semelhante natureza, prestam-se à construção normativa stricto sensu. Disso decorre que os fatos, institutos e atos jurídicos nada mais são que denominações atribuídas a regras de direito. O ato administrativo não dista de tais considerações, tendo Lúcia Valle Figueiredo625 definindo-o, inclusive, como: A norma concreta, emanada pelo Estado, ou por quem no exercício da função administrativa, que tem por finalidade criar, modificar, extinguir ou declarar relações jurídicas entre este [o Estado] e o administrado, suscetível de ser contrastada pelo Poder Judiciário.
Esse ato, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello626, reveste-se de características peculiares, que objetivam, simultaneamente, conferir garantia aos administrados e prerrogativas à Administração. Relativamente à garantia dos administrados, são identificados os seguintes atributos: (i) ausência de autonomia da vontade: todo comportamento do Poder Público deve visar à finalidade prevista em lei, sem interferência de eventuais desejos do agente competente para praticar o ato administrativo [decorre do princípio da estrita legalidade]; (ii) busca do interesse público: o fim legal a ser atingido por meio do ato administrativo é o interesse de toda a coletividade e 625. Curso de direito administrativo, p.162. 626. Ato administrativo e direitos dos administrados, p. 20.
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não do órgão estatal, isoladamente considerado; (iii) tipicidade: o interesse público objetivado pelo ato administrativo é aquele previsto em lei, sendo vedada à autoridade administrativa qualquer prática que não esteja legalmente autorizada ou que extrapole a prescrição legal; e (iv) formalismo: o ato administrativo, além de ser praticado com estrita observância ao prescrito em lei, deve atender a requisitos que possibilitem ao administrado o conhecimento de seu conteúdo e motivos determinantes de sua prática. Por outro lado, implementando as prerrogativas da União, os atos administrativos têm por qualificativos: (i) imperatividade: possibilidade de constituir, unilateralmente, obrigações a terceiros627; (ii) presunção de legitimidade: presunção juris tantum de validade, da qual decorre que o ato seja considerado regularmente praticado, até que outra linguagem jurídico-prescritiva determine o contrário, invalidando-o; e (iii) exigibilidade: poder de cobrar do administrado a observação da prescrição introduzida no ordenamento pelo ato administrativo. Não se confunda, todavia, exigibilidade com autoexecutoriedade. Esta, diferentemente da exigibilidade, implica a possibilidade de a Administração, com seus próprios recursos, impor o cumprimento do comando veiculado pelo ato administrativo. Trata-se de característica que não é verificada no lançamento e no ato de aplicação de penalidade tributária, sendo imprescindível a intervenção do Poder Judiciário para proceder à execução da pretensão impositiva.
627. Paulo de Barros Carvalho manifesta posicionamento contrário à atribuição de imperatividade ao lançamento tributário, por entender que a Administração não pode atender a deliberações de sua vontade, sendo-lhe vedado gravar a conduta do administrado quando bem lhe aprouver [Curso de direito tributário, p. 408]. Se, porém, considerarmos que essa constituição unilateral de obrigações opera-se sempre com fundamento em lei, não vemos por que negar ao lançamento tal qualificativo.
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8.3.1 Estrutura do ato administrativo: pressupostos e elementos Todo ato administrativo apresenta aspectos internos à sua estrutura e outros externos, que antecedem sua formação. Não há, na doutrina, consenso quanto à terminologia empregada para se referir a eles, nem quanto ao número de aspectos verificados, visto que será identificada maior ou menor quantidade conforme o grau de analiticidade desenvolvido pelo jurista. Para se reportar aos mencionados aspectos, há autores, como Odete Medauar628 e Maria Sylvia Zanella Di Pietro629, que utilizam o termo elementos. Tal denominação, entretanto, não permite entrever nitidamente a distinção entre o aspecto que precede o ato administrativo e aquele que o integra. Pelo prisma lógico, não há como admitir, por exemplo, que o motivo figure como elemento do ato administrativo, tendo em vista que o antecede. Apenas a motivação, por integrar referido ato, caracterizaria o elemento propriamente dito. Por isso, optamos por denominar elementos os aspectos internos à estrutura do ato administrativo, enquanto os exteriores, requisitos extrínsecos que antecedem à sua formação, chamamos de pressupostos630. Tomado o ato administrativo como norma individual e concreta, os elementos são identificados a partir do exame dessa proposição prescritiva introduzida [enunciado], ao passo que os pressupostos, como componentes da enunciação normativa, deixam suas marcas na enunciação-enunciada631.
628. Direito administrativo moderno, p. 159. 629. Direito administrativo, p. 168. 630. A distinção entre elementos e pressupostos do ato administrativo é realizada com mestria por Celso Antônio Bandeira de Mello [Curso de direito administrativo, p. 358]. Também Lúcia Valle Figueiredo confere denominação diferenciada aos aspectos internos e externos do ato, empregando o termo elementos para o primeiro e requisitos extrínsecos para o segundo [Curso de direito administrativo, p. 187]. 631. Enunciação consiste no ato de fala produtor da norma jurídica [evento], sendo a enunciação-enunciada seu relato em linguagem [fato], localizado no antecedente da norma geral e concreta [veículo introdutor].
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Como requisitos intrínsecos, são elementos do ato administrativo a (i) forma, (ii) motivação e (iii) conteúdo, enquanto os pressupostos consistem na (i) competência, (ii) motivo, (iii) formalidades procedimentais, (iv) finalidade e (v) causa, assim definidos632: Pressupostos: (i) competência: diz respeito ao sujeito produtor do ato, devendo ser agente público investido de poderes para fazê-lo; (ii) motivo: acontecimento no mundo fenomênico que exige ou possibilita a prática do ato633, figurando como suporte fático da motivação; (iii) formalidades procedimentais: rito a ser observado pelo sujeito produtor do ato. Sobre esse ponto, é relevante consignar que a enunciação-enunciada revela alguns aspectos do ato de enunciação, mas, para verificar se foram cumpridos os requisitos procedimentais previstos em lei, necessário se faz proceder ao exame das provas. Por essa razão, esclarece Tárek Moysés Moussallem634, para certificar se houve observância ao procedimento legalmente prescrito “deverá o estudioso agrupar provas de sua realização em conformidade [ou não] com o direito positivo. Assim, deverá analisar os debates do Congresso Nacional, os autos do processo judicial, o procedimento fiscal adotado para confeccionar o auto de infração etc.”;
632. Eurico Marcos Diniz de Santi refere-se à publicidade como um dos pressupostos do ato administrativo, por considerar ser ela que confere comunicação a esse ato, permitindo que se torne intersubjetivo, dando ensejo à possibilidade do contraditório administrativo [Processo administrativo. Mesa de debates “E”, Revista de Direito Tributário n. 91, p. 128]. Não temos dúvida de que sem publicidade não se tem ato administrativo regularmente constituído, mas, como anotamos, a quantidade de pressupostos identificados depende da analiticidade do exame realizado pelo intérprete, de modo que deixamos de considerar esse requisito extrínseco como algo autônomo, optando por compreendê-lo inserido no âmbito das formalidades procedimentais. 633. Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p. 44-45. 634. Fontes do direito tributário, p. 80.
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(iv) finalidade: objetivo pretendido com a prática do expediente administrativo; (v) causa: conexão entre o motivo do ato, motivação e conteúdo. Para Eurico Marcos Diniz de Santi635, a causa não seria elemento nem pressuposto do ato, mas o vínculo implicacional que une antecedente e consequente [nexo de causalidade intranormativa]. Considerada, porém, a causa como a relação que se estabelece entre o motivo, sua constituição em linguagem a partir das provas apresentadas e o conteúdo, é perfeitamente possível indicá-la como um dos pressupostos do ato administrativo, por se tratar de requisito externo ao ato, imprescindível à sua regular constituição636. Elementos: (i) forma: modo pelo qual o ato se revela [suporte físico, em que se veicula linguagem escrita]; (ii) motivação: descrição dos motivos de fato que ensejaram a produção do ato [antecedente da norma individual e concreta]; (iii) conteúdo: prescrição normativa constante do ato [consequente da norma individual e concreta], que, nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello637, encerra a “própria alteração na ordem jurídica produzida pelo ato”, abrangendo os sujeitos ativo e passivo da relação jurídica, bem como seu objeto.
8.3.1.1 Motivo, motivação e a linguagem das provas Todos os elementos e pressupostos que mencionamos são essenciais à existência e regular produção dos atos 635. Lançamento tributário, p. 100-104. 636. Sustenta Cláudia Magalhães Guerra que a identificação da causa como pressuposto do ato administrativo é fundamental para a realização de seu controle de legalidade [Lançamento tributário e sua invalidação, p. 79]. 637. Ato administrativo e direito dos administrados, p. 37.
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administrativos, dentre eles o lançamento e o ato de aplicação de penalidade pela prática de ilícito tributário. Para fins do presente estudo, porém, efetuamos corte metodológico que permite identificar a relação entre tais atos e a linguagem das provas, necessária à constituição do fato jurídico e do ilícito tributário. Voltaremos nossa atenção, portanto, ao motivo e à motivação. Enquanto o motivo é pressuposto fático do ato, representado pela “ocorrência da vida real que satisfaz a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese tributária”638, a motivação compõe o próprio ato administrativo, consistindo na descrição do motivo do ato, situada no antecedente da norma individual e concreta. Tratando-se de ato de lançamento, o motivo é o evento tributário, ao passo que a motivação constitui o fato jurídico correspondente. O mesmo se verifica no ato de aplicação de penalidade: o motivo é o evento ilícito, sendo o fato da ilicitude introduzido no universo jurídico pela motivação. Só haverá motivo se houver motivação, posto ser a linguagem normativa que constitui o fato jurídico, desencadeador do liame obrigacional. Um evento qualquer, se não relatado na forma prevista pelo ordenamento, é juridicamente irrelevante, não se podendo falar em ato, nem em motivo deste. Nesse sentido, leciona Eurico Marcos Diniz de Santi639: Não é o motivo do ato sozinho o fato jurídico criador do atonorma administrativo, nem é o motivo do ato o suposto normativo do ato-norma. O motivo do ato é pressuposto fáctico e, por tratar-se de fato, não pode compor estrutura normativa proposicional. O que ingressa na estrutura normativa do ato-norma é a sua descrição: a enunciação linguística do motivo do ato.
Para que a motivação se aperfeiçoe, entretanto, não basta o relato do motivo. Requer algo mais que um simples enunciado que se subsuma à hipótese normativa. É necessário que sua enunciação seja efetuada com fundamento em outra 638. Eurico Marcos Diniz de Santi, Lançamento tributário, p. 165. 639. Ibidem, p. 109.
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linguagem: a linguagem das provas. Por isso, sustenta Paulo de Barros Carvalho640 ser imprescindível que o pressuposto de fato da incidência seja relatado “de maneira transparente e cristalina, revestido com os meios de prova admissíveis nesse setor do direito, para que possa prevalecer surtindo os efeitos de estilo, quais sejam os de constituir o vínculo obrigacional, atrelando o particular ao Fisco, em termos da satisfação do objeto prestacional”. Tendo em vista que a realidade-em-si-mesma é inacessível, visto que se consome no limite espaço-temporal de sua realização, é a partir das provas apresentadas pelo sujeito cognoscente que se opera a (re)construção dos acontecimentos. Um evento só passa a ser fato jurídico, susceptível de ser tomado como pressuposto [motivo] do ato administrativo de lançamento ou de aplicação de penalidade tributária, se houver provas de sua ocorrência, constituídas segundo as regras prescritas pelo sistema do direito.
8.4 As provas como meio de atingir a verdade lógica: sua importância no âmbito da imposição tributária Discorrer sobre a prova no procedimento e no processo administrativo tributário implica seu exame no âmbito da produção da norma individual e concreta, representada pelos atos de lançamento, de aplicação de penalidade e de decisão administrativa. É certo que a obrigação tributária e seus consectários dependem de prévia instituição em lei, mediante prescrição geral e abstrata. Com a edição de norma, descrevendo hipoteticamente o fato cuja ocorrência desencadeia o nascimento do vínculo obrigacional, tem-se instituído o tributo. Isso, porém, não basta para o surgimento concreto daquele liame abstratamente previsto. É preciso que se materialize o fato jurídico, mediante relato no antecedente de uma norma individual e 640. A prova no procedimento administrativo tributário, Revista Dialética de Direito Tributário n. 34, p. 108.
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concreta, resultado da aplicação do direito. Obviamente, a enunciação do fato jurídico posto no antecedente da norma individual e concreta precisa realizar-se em conformidade com as regras do sistema, observando forma e conteúdos normativamente prescritos. Os princípios da legalidade e da tipicidade na esfera da tributação, por exemplo, exigem que as relações obrigacionais e sancionatórias sejam desencadeadas apenas se efetivamente verificados os fatos conotativamente descritos nas correspondentes hipóteses normativas, razão pela qual se faz imprescindível que tanto os atos de lançamento e de aplicação de penalidades como as decisões proferidas no curso de processos administrativos tributários sejam pautados em provas. É mediante a linguagem das provas que se alcança a verdade lógica, à qual nos referimos no capítulo 1, pois, “para que o fato jurídico tributário seja considerado verdadeiro para o direito, não se requer a certeza de que o relato corresponda fielmente ao evento, mas a certeza de que o enunciado descritivo foi elaborado de acordo com as regras do sistema, submeteu-se às provas e resistiu à refutação”641. Apenas se presentes as provas em direito admitidas, ter-se-á por ocorrido o fato jurídico ou o ilícito tributário, posto que, como assevera Eurico Marcos Diniz de Santi642, “fato jurídico é fato juridicamente provado”. Consciente da imprescindibilidade de o fato constituído pautar-se em provas, o legislador federal dispôs, expressamente, sobre sua necessidade por ocasião da lavratura de exigência fiscal, prescrevendo no art. 9º, caput, do Decreto 70.235/72, que: A exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade isolada serão formalizados em autos de infração ou notificações de lançamento, distintos para cada tributo ou penalidade, os quais
641. Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p. 43. 642. Decadência e prescrição no direito tributário, p. 43.
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deverão estar instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do ilícito643.
Referido dispositivo explicita a necessidade de demonstração das razões que levaram à lavratura do lançamento ou à autuação fiscal, mediante a descrição dos fatos alegados e apresentação dos enunciados probatórios correspondentes, como manifestado pelo então Conselho de Contribuintes, atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais no julgado abaixo: IRPJ – FALTA DE CARACTERIZAÇÃO DA INFRAÇÃO. Em respeito à legalidade, verdade material e segurança jurídica não pode subsistir lançamento de crédito tributário quando não estiver devidamente demonstrada e provada a efetiva subsunção da realidade factual à hipótese descrita na lei como infração à legislação tributária. ÔNUS DA PROVA. Na relação jurídico-tributária, o ônus probandi incumbit ei qui dicit. Compete ao Fisco, ab initio, investigar, diligenciar, demonstrar e provar a ocorrência, ou não, do fato jurídico tributário ou da prática de infração praticada no sentido de realizar a legalidade, o devido processo legal, a verdade material, o contraditório e a ampla defesa. O sujeito passivo somente poderá ser compelido a produzir provas em contrário quando puder ter pleno conhecimento da infração com vistas a elidir a respectiva imputação”644.
As legislações que disciplinam o processo administrativo tributário indicam o momento da realização do ato constituidor do crédito como o apropriado para a apresentação das provas pela Administração, de modo que, esclarecem Marcos Vinicius Neder e Maria Teresa Martínez López645, “não cabe à autoridade fiscal, após a interposição da impugnação pelo 643. Destaques nossos. Semelhante é o caminho trilhado pelo legislador estadual de São Paulo, que, no art. 19 da Lei 13.457/2009, prescreve que “as provas deverão ser apresentadas juntamente com o auto de infração”. 644. Ac. 103-20.594, Rel. Cons. Mary Elbe Gomes Queiroz, j. 22.05.2001. 645. Processo administrativo fiscal federal comentado, p. 126.
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contribuinte, suprir deficiências probatórias do lançamento com a apresentação de novos elementos”. Quando, portanto, o art. 10 do Decreto 70.235/72 aponta a descrição do fato [inciso III] como item de constância obrigatória no auto de infração, deve-se entender, por ordem de interpretação sistemática, que a atitude descritiva há de concretizar-se com fundamento nas provas produzidas no curso da fiscalização.
8.4.1 Consequência da falta de prova no lançamento ou no ato de aplicação de penalidade Na hipótese de ser expedido ato de lançamento ou de aplicação de penalidade sem que os fatos jurídicos relatados encontrem suporte na linguagem das provas, referido ato estará maculado na motivação, um dos elementos intrínsecos ao ato administrativo. A ausência de prova é, manifestamente, um vício que afeta o ato administrativo tributário. Mas quais os efeitos dessa problemática? Trata-se de nulidade formal ou material? Problemas concernentes à ausência de prova são convalidáveis? O assunto é extremamente complexo e repleto de divergências, especialmente no que concerne à possibilidade de convalidação do ato maculado. Comecemos por reiterar a imprescindibilidade de adequação do ato de lançamento ou de aplicação de penalidade com a lei tributária que prescreve sua prática. Caso não ocorra completa subsunção entre ambos, teremos ato administrativo defeituoso, susceptível de ser invalidado646. Surge, então, a problemática relativa à convalidação, entendida esta, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello647, como “o suprimento da invalidade de um ato com efeitos retroativos”, ou, 646. Esclarece Estevão Horvath que, “colocado no mundo jurídico, o lançamento será sempre válido, podendo apenas ser anulado”, tendo em vista a presunção de legitimidade que o atinge (Lançamento tributário e “autolançamento”, p. 64). 647. Curso de direito administrativo, p. 433.
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como sustenta Carlos Ari Sundfeld648, a prática de um novo ato que tem por finalidade reconhecer a invalidade de um ato passado e herdar os efeitos que historicamente este produzira, fazendo-os efeitos seus, salvando-os do desfazimento. Não existe consenso quanto ao critério determinante da possibilidade ou não de convalidação do ato administrativo defeituoso649. Dentre as várias correntes doutrinárias, optamos por adotar aquela que pauta o caráter convalidável do ato conforme a espécie de vício que o atinja. A escolha desse método decorre de sua intrínseca relação e compatibilidade com os pressupostos e elementos do ato administrativo, além de conferir critério seguro e fundado nas regras do direito positivo. Com base nessa premissa, concluímos que, havendo defeito de ordem formal, atingindo um dos pressupostos do ato, este se mostra perfeitamente convalidável. Mas, sendo o vício verificado em um dos elementos do ato, caracterizando problema de ordem material, inadmissível sua convalidação. Os erros formais dizem respeito ao procedimento de elaboração do ato administrativo, acarretando defeito na enunciaçãoenunciada, isto é, na proposição que relata aspectos inerentes ao sujeito produtor, tempo, local e modo de emissão da norma individual e concreta. Os erros materiais, por sua vez, são verificados no próprio enunciado introduzido no ordenamento, sendo internos à norma individual e concreta. No primeiro caso, sendo o problema decorrente da aplicação do direito formal, pode ele ser objeto de saneamento, no modo e tempo em que a legislação estabelecer. Na segunda hipótese, porém, os efeitos do vício são diversos, pois, tratando-se de erro que atinge um dos 648. Ato administrativo inválido, p. 51. 649. Celso Antônio Bandeira de Mello [Curso de direito administrativo, p. 433] entende ser convalidável o ato que possa ser produzido validamente no presente; Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, p. 203-204) examina a possibilidade de convalidação conforme o defeito atinja o sujeito, o objeto, a forma, o motivo ou a finalidade; para Odete Medauar [Direito administrativo moderno, p. 183], o ato administrativo defeituoso é nulo, em princípio, podendo ser mantido no ordenamento conforme a natureza do vício, e em razão do confronto entre o princípio da legalidade, segurança jurídica e outros preceitos que regem o ordenamento.
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elementos intrínsecos à norma individual e concreta, como é o caso da motivação, o ato será nulo e insusceptível de convalidação. É o que esclarece Eurico Marcos Diniz de Santi650: Cinge-se, entretanto, o legislador a limites ontológicos do próprio direito, às regras deontológicas que regram sua estrutura normativa: não se pode convalidar ato-norma administrativo em que se verifique falta de qualquer dos elementos de sua estrutura. De outro lado, não é obstáculo à convalidação a existência de vícios nos pressupostos de sua formação. A estes vícios, o legislador pode estabelecer ou não o dever de invalidar; àqueles, a invalidação é juridicamente necessária.
Do exposto decorre a conclusão de que, sendo o lançamento ou o ato administrativo de aplicação de penalidade realizados sem respaldo em provas, estando, portanto, viciados na motivação, é imperativa sua retirada do ordenamento jurídico pela autoridade competente. Ainda que depois de instalado o processo administrativo tributário venham a ser colacionadas provas capazes de constituir o fato jurídico ou o ilícito tributário, tal procedimento não supre a invalidade que afeta o ato, pois, como anotamos, trata-se de vício na estrutura interna, de natureza não convalidável. A instrução, realizada no corpo do processo instaurado por ocasião da impugnação do contribuinte, volta-se tão somente ao convencimento do 650. Lançamento tributário, p. 115-116. Em outra obra, esse autor diferencia vício de direito material, vício de fato material, vício de direito formal e vício de fato formal. Conclui que os “erros de fato material referem-se à prova do fato gerador”. Problemas de prova do fato jurídico tributário, portanto, são vícios de fato material. Relaciona a problemática da prova, ainda, a outros tipos de vícios: “Vício formal de direito: diz respeito ao próprio exercício da competência administrativa, ou seja, problema de ausência de fundamento na lei formal. Por exemplo, eu trago uma prova, só que a lei administrativa não permite aquela prova; é prova sem fundamento em lei, sem fundamento da lei formal. Vício formal de fato: junta-se prova permitida pela lei formal só que no decorrer do processo administrativo o julgador simplesmente não aprecia aquela prova. [..] Tenho a prova lícita, permitida pela lei administrativa, trazida aos autos, mas, por erro de apreciação ou interpretação da prova, não se considera a prova na aplicação do direito. Tal vício causa nulidade formal”. É problema de valoração da prova. “Vício material de fato: lavra-se auto de infração com todo fundamento legal, mas falta prova do fato ou essa prova é insubsistente. Trata-se de ausência ou insubsistência de prova” [Processo administrativo. Mesa de debates “E”, Revista de Direito Tributário n. 91, p. 129-130].
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julgador sobre pontos contraditados pelo particular, não servindo para preencher eventual ausência de comprovação do fato que serve de suporte à exigência ou autuação fiscal.
8.5 A produção de prova pela Administração Como vimos no subitem 8.2.1, o ato de lançamento e o de aplicação de penalidade pelo descumprimento de obrigação tributária ou de deveres instrumentais são antecedidos por procedimento preparatório. Não obstante o procedimento possa consistir em (i) um conjunto ordenado de atos que evoluem para a consecução de um ato específico, que é sua finalidade, ou (ii) em simples atividade físico-material e intelectual para a produção de um ato jurídico administrativo, a determinação do fato jurídico e do ilícito tributário exige adoção da primeira modalidade. Referindo-se especificamente ao lançamento tributário, José Souto Maior Borges651 assevera consistir seu procedimento nos “elementos do ordenamento jurídico total que regulam o modo de produção” daquele ato. Eis o procedimento genérico, que mencionamos no tópico 8.2.1, supra. Em contrapartida, para efetivar o ato pretendido, o caminho juridicamente traçado há de ser materializado [procedimento concreto]. A enunciação do fato jurídico, ilícito tributário e correspondentes liames obrigacionais exige, portanto, uma sequência de atos jurídicos tendentes a constituí-los, por meio da linguagem das provas. Alberto Xavier652 é categórico ao afirmar que a aplicação da norma tributária não se esgota numa mera operação intelectual: Precisamente porque na sua hipótese se tipificam situações da vida qualificadas pelo recurso a elementos de vária natureza e, mais concretamente, porque os seus aspectos quantitativos 651. Tratado de direito tributário brasileiro, v. 4, p. 106. 652. Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, p. 114.
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oferecem particular dificuldade de determinação, a subsunção do fato tributário na norma exige uma série gradual de operações intelectivas e de atos jurídicos, que sucessivamente vão sendo elaborados e praticados pelas autoridades a quem compete a referida aplicação.
Por isso, necessária se faz a realização de um procedimento, em que a Administração produz, dentre outros, enunciados probatórios. Nesse caso, haja vista a inexistência de litígio instaurado, tem-se, apenas, procedimento, e não processo, na amplitude referida neste trabalho. Logo, os princípios a ele aplicáveis não se confundem com aqueles inerentes ao processo administrativo tributário. Ambos, é certo, regem-se pelos primados da legalidade, do procedimento regular, da finalidade, da motivação, da razoabilidade, da moralidade, do interesse público, da eficiência e da segurança jurídica, uma vez que aplicáveis à Administração como um todo, qualquer que seja a modalidade de ato praticado653. Apenas no âmbito do processo, entretanto, tem-se a garantia constitucional da ampla defesa, visto que esta, nos termos da Carta Magna, aplica-se “aos litigantes” ou “acusados em geral”. O procedimento administrativo fiscalizador não representa materialização conflitiva, configurando sequência de atos unilaterais com vistas a verificar a ocorrência ou não do fato jurídico ou do ilícito tributário, inviabilizando, por conseguinte, questionamentos e oposição por parte do contribuinte. Não queremos, com tal assertiva, significar que a autoridade administrativa esteja autorizada a proceder a atos de fiscalização sem oportunizar qualquer espécie de manifestação por parte do administrado. Vale lembrar que ampla defesa e contraditório são figuras distintas: (i) enquanto a ampla defesa diz respeito à adequada resistência às pretensões adversárias, com todos os meios e recursos a ela inerentes, (ii) o contraditório consiste no direito de ser ouvido. Em decorrência 653. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, p. 472.
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do princípio da publicidade, todos os atos praticados durante a ação fiscal devem ser acessíveis ao contribuinte, a quem, não se conformando com o modo de sua realização, assiste o exercício do direito de petição.
8.5.1 Dever e não ônus da prova A produção de prova pela Administração, como vimos no subitem 6.6.5 (capítulo 6), não caracteriza mero ônus, entendido como encargo necessário para se atingir uma pretensão. Mais que isso, configura um verdadeiro dever. Tendo em vista o caráter vinculado do lançamento e do ato de aplicação de penalidade tributária, é dever da autoridade administrativa certificar-se da ocorrência ou não do fato jurídico desencadeador do liame obrigacional, o que só é possível mediante linguagem das provas. Nesse sentido, inclusive, é a determinação do art. 9º, caput, do Decreto 70.235/72, que ordena sejam a exigência do crédito tributário e a aplicação de penalidade instruídos com os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova. Ademais, sendo a motivação um elemento do ato administrativo, este não subsiste sem aquela. Nos termos do art. 10, III, do Decreto 70.235/72, o auto de infração conterá, obrigatoriamente, a descrição do fato, relato linguístico este que, no contexto em que se insere, não tem como advir sem as correspectivas provas nas quais esteja pautado. O atributo da presunção de legitimidade, inerente aos atos administrativos, não dispensa a construção probatória por parte do agente fiscal. Essa figura presuntiva é juris tantum, significando a possibilidade de ser ilidida por prova que a contrarie, o que reforça nosso posicionamento no sentido de que os atos de lançamento e de aplicação de penalidade dependem da cabal demonstração da ocorrência dos motivos que os ensejaram.
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Convém anotar ainda que, mesmo tratando-se de hipótese de tributação pautada em presunções legais, não se opera inversão do ônus da prova, como se à autoridade administrativa coubesse apenas lavrar a exigência fiscal, deixando a cargo do contribuinte descaracterizá-la. Nesse caso, impõe-se a comprovação do fato presuntivo, devendo o Fisco demonstrar a ocorrência da situação que, nos termos da lei, enseja a relação implicacional que conduz ao fato presumido.
8.5.2 Limites ao emprego de presunções pela Administração654 Apesar de caracterizarem importante instrumento de que dispõe a Administração, auxiliando-a nas tarefas fiscalizatória e arrecadatória, as presunções têm seu emprego delimitado por normas constitucionais que traçam os contornos da competência tributária, além das que asseguram direitos aos contribuintes. Por tal razão, não encontram guarida em nosso ordenamento as presunções absolutas nem as chamadas presunções mistas. As primeiras são obstadas pela rígida repartição constitucional das competências para instituir tributos, bem como pelos princípios da estrita legalidade tributária, da tipicidade e da capacidade contributiva. Quanto às presunções mistas, violam não apenas os primados da tipicidade e capacidade contributiva, mas também o direito à ampla defesa, já que restringem as provas possíveis de serem utilizadas para ilidir o fato presumido. As presunções susceptíveis de serem empregadas pelo Fisco são apenas as relativas, por possibilitarem ao contribuinte a livre produção probatória em sentido contrário. No que concerne às denominadas presunções hominis, entendemos não só possível como necessária a sua adoção, pois,
654. Para um estudo minucioso sobre o assunto, consulte-se o tópico 4.7.3 (capítulo 4).
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como anotamos nos capítulos 3 e 4, toda prova é indiciária. Quaisquer que sejam os elementos de convicção identificados pela autoridade administrativa, a apreciação e inferência lógica realizadas pelo aplicador do direito se mostram imprescindíveis. Considerando que a linguagem jamais toca o evento, todo documento figura como estímulo à construção de sentido, podendo levar à conclusão acerca da ocorrência ou não do fato. Todavia, para que essa operação intelectual possa desencadear a constituição de fato jurídico ou de ilícito tributário, é preciso que os indícios verificados sejam veementes e homogêneos, permitindo a construção de nexo causal entre estes e o fato presumido, com grau máximo de probabilidade [certeza]655.
8.5.3 O ônus da prova para a atribuição de responsabilidade tributária aos administradores O tema da responsabilidade tributária sempre foi alvo de muitas controvérsias, quer no que diz respeito à sua natureza jurídica [se obrigacional tributária ou sancionatória], quer no que pertine à sua abrangência e requisitos de aplicabilidade. O Código Tributário Nacional, ao disciplinar o assunto, prescreve que “são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado” [art. 135, III]. Considerando o teor de tal disposição, bem como a regra segundo a qual o ônus/dever da prova cabe a quem alega determinado fato jurídico, nas hipóteses em que a autoridade administrativa impute reponsabilidade pessoal ao sócio-administrador, com fundamento no art. 135, III, do CTN, necessária se faz a prova de que o administrador agiu (i) com excesso de poderes, praticando atos além do que lhe tinha sido 655. Mesmo na chamada presunção legal relativa tem-se o emprego de presunção hominis, uma vez que imprescindível operação intelectual que conduza à conclusão acerca da ocorrência do fato presuntivo.
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autorizado e, portanto, alheio aos fins da sociedade; (ii) com violação às disposições legais que regem as ações da pessoa jurídica, como é o caso da legislação comercial e civil; ou (iii) com ofensa às disposições constantes dos instrumentos societários – contrato social ou estatutos. Por isso é que, conforme já pronunciado pelo Superior Tribunal de Justiça, a simples falta de pagamento de tributo não configura, por si só, circunstância que acarrete a responsabilidade tributária do administrador, restando impossibilitada essa responsabilização quando não ficar comprovado que o agiu com dolo, excesso de poderes, infração à lei ou estatuto [AG nº 930.334/AL, REsp 668.643/RS]. No entanto, em descumprimento a tal disposição, é comum o procedimento adotado pelas Fazendas Públicas, no sentido de incluir o some dos sócios na Certidão de Dívida Ativa [CDA], independentemente da comprovação de tais pressupostos. Ocorre que, segundo o art. 204 do CTN, a CDA goza de presunção relativa de liquides e certeza. Daí a prolação de decisões, pelo Superior Tribunal de Justiça, invertendo o ônus da prova para considerar que, sendo exarada CDA com o nome do sócio figurando como responsável tributário, resta definida a presunção juris tantum de liquidez e certeza da referida certidão, cabendo ao sócio demonstrar que não se fez presente qualquer das situações previstas no art. 135 do CTN [REsp nº 1.059.481/SP]. Disso advém uma questão fundamental: como faz o sócio-administrador para provar que não praticou atos com excesso de poderes, infração à lei ou ao contrato social ou estatuto? A resposta a essa indagação exige que tenhamos sempre em mente o fato de que a presunção de legitimidade dos atos administrativos não exime a Administração do dever de comprovar a ocorrência do fato jurídico, bem como das circunstâncias em que este se verificou. É que, sendo os atos de lançamento e de aplicação de penalidade vinculados e regidos, dentre outros, pelos princípios da estrita legalidade e da tipicidade, tais expedientes dependem, necessariamente, da
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cabal demonstração da ocorrência dos motivos que os ensejaram. A motivação deve ser, portanto, respaldada em provas. No que pertine especificamente à CDA, trata-se de título executivo constituído unilateralmente, em decorrência de ato administrativo lavrado contra o contribuinte e que, assegurado o devido processo legal, foi mantido no ordenamento. Em vista disso, caso não tenha havido autuação fiscal contra o sócio-administrador, comprovando-se que este agiu com excesso de poderes, violação à lei ou ofensa ao contrato social ou estatuto, cai por terra a presunção de legitimidade da CDA. Retomemos, assim, a questão que colocamos acima: como faz o sócio-administrador para provar que não praticou atos com excesso de poderes, infração à lei ou ao contrato social ou estatuto? Entendemos que essa prova é feita mediante a demonstração de que inexistiu autuação fiscal contra o sócio-administrador, não tendo sido provado o ilícito desencadeador da responsabilidade tributária. Não tem como subsistir inscrição em CDA exarada sem que tenha havido atuação fiscal contra o sócio-administrador, com a prova da prática dos ilícitos referidos no art. 135, III, do CTN. Em vista disso, a prova de que não houve prova é suficiente para ilidir a presunção de liquidez e certeza da CDA. Surge, então, um novo obstáculo, consistente na circunstância de que, muitas vezes, quando da propositura ou do redirecionamento da execução fiscal contra terceiros [sócios, ex-sócios, administradores etc.] estes não têm acesso ao auto de infração lavrado contra a pessoa jurídica. Fica, assim, na dependência de documentos que estão em posse da Fazenda Pública, sendo, em muitos casos inviabilizada a sua obtenção pelo particular. Essa é uma situação de pleno cabimento do disposto no §1º do art. 373 do CPC/2015. Com suporte nesse dispositivo, sempre que a solução da controvérsia demandar o teor de documentos lavrados pela
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Administração, tem cabimento a determinação para que a Fazenda apresente tais dados, tendo em vista a sua maior facilidade na obtenção e apresentação dos citados documentos.
8.5.4 O ônus da prova nas controvérsias relativas à ausência de notificação fiscal Os atos administrativos apresentam características que objetivam, simultaneamente, conferir garantia aos administrados e prerrogativas à Administração. Dentre elas, releva destacar a presunção de legitimidade, caracterizando presunção juris tantum de validade, da qual decorre que o ato seja considerado regularmente praticado, até que outra linguagem jurídico-prescritiva determine o contrário, invalidando-o. Essa presunção, entretanto, não exime a Administração do dever de comprovar a ocorrência do fato jurídico, bem como das circunstâncias em que este se verificou. É que, sendo os atos de lançamento e de aplicação de penalidade vinculados e regidos, dentre outros, pelos princípios da estrita legalidade e da tipicidade, tais expedientes dependem, necessariamente, da cabal demonstração da ocorrência dos motivos que os ensejaram. A motivação deve ser, portanto, respaldada em provas. Inconcebível, portanto, o posicionamento segundo o qual, diante da presunção de legitimidade dos atos administrativos, caberia ao contribuinte apresentar provas contrárias ao relatado nos atos de lançamento e de aplicação de penalidade, incumbindo-se a autoridade administrativa apenas de ilidir as provas que o contribuinte juntar aos autos do processo instaurado. É insustentável o lançamento ou o ato de aplicação de penalidade que não tenha suporte em provas suficientes da ocorrência do evento. O mesmo se pode dizer do ato de notificação do lançamento tributário. Na qualidade de requisito imprescindível para a introdução do débito fiscal no ordenamento, há de ser
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feito e documentado pela autoridade administrativa, cabendo-lhe o ônus de sua demonstração. Eis o motivo pelo qual discordamos do entendimento exarado pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao consolidar a posição segundo a qual o envio do carnê de IPTU pelo Município seria ato suficiente para caracterizar a notificação do lançamento desse imposto, cabendo ao contribuinte excluir a presunção de certeza e liquidez do título daí decorrente, comprovando o não recebimento da notificação do débito656. Embora o assunto tenha sido sumulado por aquela Corte (Súmula 397 do STJ), necessário se faz trazê-lo novamente ao debate, especialmente em virtude das recém editadas regras a respeito da dinâmica da carga probatória. Os julgados que levaram à edição da Súmula 397 basearam-se na presunção de que, tendo havido o envio do carnê ao contribuinte, a ele cabe qualquer contraprova: ou seja, ao contribuinte competiria demonstrar o fato do não recebimento do documento constitutivo do débito tributário. Mas, vale indagar, qual mecanismo teria o contribuinte para demonstrar esse não recebimento? Ao nosso ver, trata-se de circunstância de dificílima ou até mesmo de impossível comprovação, configurando o que os processualistas costumam denominar de “prova diabólica”. Exigência dessa natureza já era objeto de repúdio em nosso ordenamento. Com maior razão, não pode ela substituir em face das disposições do CPC/2015, que de modo expresso e enfático disciplina, no art. 373, §§ 1º e 2º, a atribuição do ônus da prova a quem tenha melhores condições de fazê-lo. No caso da notificação fiscal do IPTU ou de qualquer outro tributo é a Administração quem tem meios para documentar sua concretude e, desse modo, afastar a negativa alegada pelo
656. STJ, Resp. 1.111.124, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. em 22/04/2009.
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contribuinte. Incumbe-lhe, pois, tomar as medidas apropriadas para essa certificação do recebimento pelo contribuinte.
8.5.5 A prova de inidoneidade da documentação fiscal Relevante controvérsia na atualidade está relacionada ao ônus da prova dos fatos que ensejam o direito do adquirente ao aproveitamento de créditos de ICMS [não-cumulatividade], nas hipóteses em que as notas fiscais que suportam a operação mercantil venham a ser, posteriormente, tidas por inidôneas pela autoridade administrativa. O assunto foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça, que consolidou seu entendimento sobre o assunto por ocasião de julgamento em recurso repetitivo, manifestando a impossibilidade de o ato declaratório de inidoneidade produzir efeitos retroativos quando demonstrada a veracidade da compra e venda: PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ. 1. O comerciante que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) tenha sido, posteriormente declarada inidônea, é considerado terceiro de boa-fé, o que autoriza o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, desde que demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, sendo certo que o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (...). 2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual “salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”.
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3. In casu, o Tribunal de origem consignou que: “(...)os demais atos de declaração de inidoneidade foram publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204), sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de Contribuintes.” 4. Consequentemente, uma vez caracterizada a boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado), revela-se legítimo o aproveitamento dos créditos de ICMS. 5. O óbice da Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que o recurso especial fazendário reside na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN. 6. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.657
Tal pronunciamento, em princípio, eliminaria as dúvidas quanto ao direito ao crédito, visto que dispôs ser legítimo o aproveitamento dos créditos de ICMS quando se verifique a efetividade da operação de compra e venda, bem como a boa-fé do adquirente. E consideramos que conclusão dessa natureza é inteiramente aplicável ao creditamento de IPI. Surgem, porém, novos problemas. Como certificar a veracidade da compra e venda? Quais fatores determinam a boa-fé do adquirente? A quem incumbe o ônus das provas desses fatos? Partimos da premissa de que a não-cumulatividade do ICMS, consistente no direito de compensar o imposto que for devido em cada operação com aquele incidente nas anteriores, tem por pressuposto a aquisição de mercadoria sujeita ao
657. 1ª Turma. REsp 1.148.444/MG. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 27.04.2010.
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imposto estadual. Logo, a ocorrência desse fato [compra de mercadoria tributada] é condição para o direito ao crédito do imposto, o que há de ser certificado pela linguagem apta para tanto, ou seja, pela regular documentação fiscal.658 Disciplinando o assunto para fins de conferir uniformidade nacional, a LC 87/1996 estipula, em seu art. 23, caput, ser imprescindível ter-se idoneidade da documentação659. Uma observação inicial a ser feita diz respeito à prova do efetivo recolhimento do ICMS pelo vendedor, que não pode ser colocado como requisito condicional para aproveitamento de créditos pelo adquirente. O mecanismo da não-cumulatividade do ICMS, como visto, tem por pressuposto a aquisição de mercadorias ou serviços tributados. É a comprovação desse fato, portanto, que precisa ser feita perante o Fisco estadual. Eis o contexto em que há de ser compreendida a exigência de documentação idônea. Trata-se daquela regularmente emitida, atendendo às exigências legais, como pontua Paulo de Barros Carvalho660: Cabe destacar, nesta exigência, a necessidade dos documentos atenderem ao que dispõe a legislação, no tocante à sua confecção, tipo, série e demais peculiaridades. Aquilo que se impõe, no caso, é o dever de o contribuinte conferir os documentos que acompanham os bens adquiridos, buscando identificar se atendem ou não ao que estabelecem os dispositivos legais que tratam da matéria. Nada mais.
658. Fabiana Del Padre Tomé, “Critérios determinantes para o direito ao aproveitamento de créditos de ICMS nas hipóteses de posterior declaração de inidoneidade do documento fiscal”. In: Tributação Indireta Empresarial: Indústria, Comércio e Serviços, p. 439 e ss. 659. “Art. 23. O direito de crédito, para efeito de compensação com débito do imposto, reconhecido ao estabelecimento que tenha recebido as mercadorias ou para o qual tenham sido prestados os serviços, está condicionado à idoneidade da documentação e, se for o caso, à escrituração nos prazos e condições estabelecidos na legislação.” 660. Direito Tributário, linguagem e método, p. 373.
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O derradeiro requisito, também percebido na já mencionada legislação661, diz respeito à efetiva ocorrência das operações documentadas, o que já foi previamente lembrado letras acima. Ou, por outras palavras, o que estiver registrado – em documento fiscal – deve refletir a efetiva realização do negócio jurídico, com ingresso, real ou simbólico, da mercadoria no estabelecimento adquirente e o respectivo pagamento.
A título ilustrativo, examinemos o teor do Regulamento do ICMS do Estado de São Paulo [Lei nº 6.374/89]. Nos termos do art. 36, §1º, itens 3 e 4, a mercadoria adquirida deve estar acompanhada de documento fiscal hábil, emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco, assim entendidos esses conceitos: 3 - documento fiscal hábil, o que atenda a todas as exigências da legislação pertinente, seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco e esteja acompanhado, quando exigido, de comprovante do recolhimento do imposto; 4 - situação regular perante o fisco, a do contribuinte que, à data da operação ou prestação, esteja inscrito na repartição fiscal competente, se encontre em atividade no local indicado e possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco.
Voltemos nossa atenção à figura do “documento fiscal hábil”: este seria aquele que atende às exigências legais, tendo sido emitido por “contribuinte em situação regular perante o fisco”. Por sua vez, o fornecedor considera-se em situação regular perante o fisco quando “à data da operação ou prestação esteja inscrito na repartição fiscal competente, se encontre em atividade no local indicado e possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco”. A primeira parte dessa definição de “contribuinte em situação regular perante o fisco” vai perfeitamente ao encontro do que pacificou o STJ, ao considerar que o ato declaratório 661. A legislação referida pelo autor é a do Estado de São Paulo, Lei 6.374/89.
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de inidoneidade não gera efeitos retroativos, sendo inaplicável para terem-se por inidôneos os documentos por ele emitidos antes dessa data. Mas a disposição não para por aí. Continua para acrescentar que será tido por regular o contribuinte que (i) se encontre em atividade no local indicado e (ii) possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco. Surge, assim, certo grau de insegurança para o contribuinte. Antes de proceder a operações de compra, está obrigado a tomar providências para certificar que o fornecedor esteja ativo e localizado onde indica? Quais os mecanismos que possui para tanto? Entendemos que, do mesmo modo que os atos administrativos possuem presunção de legitimidade, também a situação do vendedor no SINTEGRA662 desfruta de tal característica. Se o contribuinte adquirente consultou esse sistema e recebeu a resposta positiva da Administração, isso faz prova a seu favor. É claro que essa presunção apresenta-se como relativa, admitindo prova contrária. Mas, à evidência, essa prova contrária há de ser feita pela autoridade administrativa. Estando o vendedor em situação regular no SINTEGRA, o reconhecimento de sua inidoneidade só afetará o contribuinte adquirente se demonstrado que, a despeito da consulta ao sistema, este tinha conhecimento da situação irregular do fornecedor. Tem-se, assim, a necessidade de prova do ato doloso do adquirente, que deve ser obtida mediante o exercício de atos fiscalizatórios. Não basta, por exemplo, a mera ausência de informações prestadas pelo contribuinte sobre o nome e demais dados da pessoa que representou o emitente do documento quando da operação de compra e venda, ou do nome
662. Sistema Integrado de Informações sobre Operações Interestaduais com Mercadorias e Serviços.
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do condutor do veículo que transportou as mercadorias. Esses não são elementos previstos em lei como necessários para a comprovação dos fatos praticados, de modo que nenhuma consequência jurídica deve ter sua ausência. Também a circunstância de o pagamento ter sido feito com recursos de terceiros não se presta para ilidir a veracidade da operação, pois a ilicitude não se presume. Imprescindível se faz a prova inequívoca de que a operação ou seu valor são falsos, tendo havido, de modo culposo663 ou doloso, a participação do adquirente. Apenas com suporte em tais elementos probatórios é que se admite o estorno dos créditos de ICMS correspondentes.
8.5.6 Arbitramento Denomina-se arbitramento a fixação de determinada quantia mediante arbítrio, como, aliás, sugere o próprio nome664. Essa figura jurídica, entretanto, não pode ser empregada indiscriminadamente, só tendo cabimento nas hipóteses legalmente previstas. Na esfera tributária, o assunto é disciplinado pelo Código Tributário Nacional, que, exercendo função de norma geral de direito tributário, assim prescreve: Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.
663. A culpa opera-se, por exemplo, na desídia do adquirente, em ter deixado de consultar o SINTEGRA. 664. Verifica-se, novamente, vocábulo ambíguo, designando tanto o procedimento como o ato final, de conclusão desse procedimento.
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Do dispositivo transcrito verifica-se a existência de requisitos a serem cumpridos para que a Administração possa fazer uso do arbitramento. Apenas no caso de haver comprovadas razões para duvidar da veracidade das declarações do contribuinte, ou na hipótese de ser este omisso quanto à escrituração fiscal, com completa impossibilidade de mensurar-se o fato jurídico tributário, os valores tributáveis não só podem, como devem, ser arbitrados. Do mesmo modo que o procedimento administrativo de lançamento é vinculado665, obrigando a autoridade administrativa a realizá-lo nos estritos termos da lei, sob pena de responsabilidade funcional, verificado o fato jurídico tributário e impossibilitada sua quantificação com base nos documentos apresentados pelo contribuinte, é imperativa a efetivação do ato de arbitramento, na forma legalmente prescrita. Esse caráter vinculado não exclui a existência de certo grau de subjetividade, visto que esta se mostra inevitavelmente presente no ato de interpretação das normas e dos fatos, não havendo como neutralizá-la totalmente. Como pontuamos, admite-se a realização de arbitramento unicamente quando descumpridos os deveres instrumentais imprescindíveis ao conhecimento da medida do fato tributário. Trata-se, pois, de procedimento de caráter excepcional, que só deve ser adotado em casos extremos, quando houver impossibilidade de, mediante investigação dos documentos do contribuinte, identificar os negócios por ele praticados. Diversamente, se apresentada a escrituração na forma da lei, não padecendo ela de erros ou deficiências que a tornem imprestável, faz prova a favor do sujeito passivo, devendo ser considerados verdadeiros os fatos registrados e respaldados em documentos hábeis.
665. A vinculação e a discricionariedade dizem respeito à forma de realização de determinada atividade. Por isso, na esteira da lição de Eurico Marcos Diniz de Santi [Lançamento tributário, p. 148], concluímos que o procedimento administrativo preparatório do ato de lançamento tributário é que apresenta o atributo da vinculação.
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Mas que vícios seriam esses, caracterizadores da imprestabilidade da documentação do contribuinte? Certamente, não é qualquer erro susceptível de ser assim configurado. Perfeitamente possível que os registros contenham equívocos, sem que isso afete sua idoneidade. Se o Fisco, no exercício do seu dever de investigação, tiver condições de, por quaisquer provas, identificar e corrigir os valores erroneamente escriturados, compete-lhe suprir oficiosamente as deficiências da documentação, efetuando as necessárias retificações e constituindo o fato jurídico tributário e sua medida. De tudo o que se expôs, sobressai a impossibilidade de a autoridade fiscalizadora impor exigências não prescritas em lei e sancionar sua inobservância mediante realização de arbitramento. Havendo o registro contábil, conforme prescrito pela legislação, não há que falar em descumprimento de deveres instrumentais ou em imprestabilidade dos dados escriturados, sendo inadmissível a realização de arbitramento.
8.5.6.1 Dever de colaboração do contribuinte Diante do grande número de contribuintes e da variada gama de atividades por eles praticadas, são-lhes impostos o cumprimento de certos deveres, objetivando facilitar o conhecimento e quantificação dos fatos jurídicos tributários pela autoridade administrativa. São os chamados deveres instrumentais, decorrentes dos deveres de colaborar com a Administração, que, por sua vez, consistem, segundo Renato Alessi666, em: Deveres jurídicos dos particulares pelos quais estes, independentemente das específicas relações voluntárias com os entes públicos e devido unicamente à sua pertinência aos mesmos, estão obrigados a fornecer-lhes aqueles bens e aquelas atividades
666. Principi di diritto amministrativo, v. 2, p. 648, apud Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p. 101.
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pessoais que os entes necessitam para a satisfação de necessidades coletivas.
Para relativizar a dificuldade de identificar os fatos jurídicos tributários realizados pelo vasto universo de contribuintes, tem lugar a imposição dessa espécie de deveres, ficando o sujeito passivo e, até mesmo, terceiros de alguma forma relacionados com referido fato, compelidos a praticar atos que auxiliem a Administração em sua atividade fiscalizatória. Sustenta Heleno Taveira Tôrres667 que “os deveres instrumentais ou formais apresentam-se como ótimos instrumentos para vincular os contribuintes ao atendimento das exigências tributárias, por meio de declarações, registros etc. Por meio destes, as pessoas que participam efetivamente do ato declaram suas atividades e resultados e prestam elementos de prova para o controle administrativo, no que tange à matéria de fato das situações tributáveis”. Nesse âmbito, assumem relevância as exigências de escrituração e conservação de documentos. Aos contribuintes cabe proceder aos devidos registros, nos livros contábeis, dos fatos relativos à sua movimentação empresarial, sempre alicerçados em documentos idôneos e hábeis, que deverão, quando requisitados, ser entregues à fiscalização, servindo à administração fazendária como elemento de prova, conforme preceituado pelo art. 195 do CTN. A contabilidade, convém ressaltar, consiste em uma linguagem do tipo técnico, especialmente concebida para registrar os fenômenos que afetam as situações patrimoniais, financeiras e econômicas das pessoas jurídicas. Na qualidade de discurso, a técnica contábil, assim como o direito posto, promove um corte na realidade sobre que atua. A linguagem da contabilidade, incidindo sobre enunciados do sistema social ou econômico, realiza seleção de aspectos que irão fazer parte de seu universo. Nessa medida, é uma linguagem que fala sobre as mutações patrimoniais, econômicas e financeiras, 667. Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária, p. 390.
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funcionando como seletora de propriedades, recortando aquela realidade social ou econômica para atender os fins que lhe são próprios. Para que os enunciados contábeis ingressem no sistema jurídico, porém, é necessário subordinarem-se ao filtro do direito. Fica evidente a dupla redução de complexidades: (i) uma, decorrente dos próprios limites da enunciação contábil; (ii) outra, advinda da normatização a que referidos enunciados são submetidos por ocasião de sua admissão nos domínios do direito. Somente com a linguagem do direito incidindo sobre a linguagem da realidade contábil surge o domínio da facticidade jurídica. Quando as normas jurídicas prescrevem a obrigatoriedade da realização de determinados registros, de natureza contábil, funcionam, simultaneamente, como regras impositivas de deveres instrumentais, e como prescrições juridicizadoras dos elementos contábeis, servindo à determinação do fato jurídico tributário e do correspondente liame obrigacional. Por via de consequência, havendo legislação que assim o determine, cabe ao contribuinte colaborar com a Administração, mantendo regular escrituração contábil, respaldada em documentos comprobatórios dos dados registrados, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se aos métodos legalmente previstos para a identificação dos valores correspondentes ao fato jurídico tributário por ele praticado, além de imposição sancionatória pelo descumprimento de tais deveres.
8.5.6.2 Requisitos para a realização de arbitramento O arbitramento é medida extrema, somente autorizada em caso de inexistência de escrita ou, havendo escrituração, esta seja infundada, falsa ou não merecedora de credibilidade. Firmamos posicionamento no sentido de conceber a realização de arbitramento apenas nas hipóteses em que a autoridade administrativa não tenha subsídios necessários à constituição do fato jurídico tributário, por ter o contribuinte deixado de cumprir deveres instrumentais, tais como a realização de
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registros contábeis. Eis, aí, dois requisitos de admissibilidade do arbitramento tributário: (i) que o contribuinte tenha deixado de prestar declarações ou esclarecimentos, não tenha expedido os documentos a que esteja obrigado, ou, em que pese à realização de declarações ou esclarecimentos e a expedição de documentos exigidos em lei, estes não mereçam fé; e (ii) que tal inobservância ao dever de colaboração do contribuinte implique total impossibilidade de mensuração do fato jurídico tributário. Ausentes quaisquer desses pressupostos, não tem cabimento a prática do ato de arbitramento, como se depreende da seguinte manifestação do então Conselho de Contribuintes, atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: LUCRO ARBITRADO – PERÍODO-BASE DE 1991 – A desclassificação da escrita e consequente arbitramento do lucro constitui medida extrema, que só se legitima na ausência de elementos concretos que permitam a apuração do lucro real. A falta de registro do Livro de Inventário e o descumprimento de outros requisitos formais [assinatura do contabilista e do gerente ou diretor da empresa] não são suficientes para desclassificar a escrita, eis que informações nele constantes podem ser confrontadas com as do Livro Diário668.
Por isso, nas hipóteses de arbitramento, a produção probatória pela Administração é indeclinável. Necessária é a demonstração de que, a despeito de solicitadas, o contribuinte deixou de prestar declarações ou esclarecimentos. E, no caso de apresentação destas e de registros documentais, é imperativa a prova de que estes estejam viciados, não sendo merecedores de credibilidade. Não basta a mera suspeita: é imprescindível a comprovação da imprestabilidade das informações e demais documentos, impedindo a quantificação do fato jurídico tributário. Além do pressuposto da imprestabilidade dos esclarecimentos e da documentação apresentada pelo contribuinte,
668. Ac. 101-92.828, Rel. Cons. Sandra Maria Faroni, j. 16.09.1999.
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exige-se, para a regular efetivação do arbitramento, observância à forma prescrita em lei. O método para sua realização não pode ser aleatório, criado ao talante dos agentes fiscais. Nos termos do disposto no art. 148 do CTN, o arbitramento há de operar-se mediante processo regular, quer dizer, observado o devido processo legal. A título de ilustração, vejamos o art. 27 da Lei 9.430/96, que, ao disciplinar o assunto, dispõe que o lucro arbitrado será o montante determinado pela soma (i) do valor resultante da aplicação dos percentuais legalmente prescritos sobre a receita bruta e (ii) dos ganhos de capital, rendimentos e ganhos líquidos auferidos em aplicações financeiras e demais receitas e resultados positivos decorrentes de receitas não-operacionais. Diante dessa prescrição, é vedado à fiscalização proceder à atividade diversa, pautando-se em elementos outros para a fixação da base de cálculo tributária. Vale lembrar que, como referimos no item 8.5, a despeito de o procedimento preparatório do ato de lançamento e do ato de aplicação de penalidade não ser orientado pelo princípio da ampla defesa, o primado da publicidade e o direito de petição viabilizam a presença do contraditório, devendo ser oportunizado ao contribuinte o conhecimento das medidas realizadas pela fiscalização, de modo que possa manifestar-se sobre elas, caso entenda apropriado. Seguindo essa linha de raciocínio, nada impede que o contribuinte apresente provas, objetivando descaracterizar a inidoneidade de suas declarações e documentos, servindo como contraprova em relação às assertivas do Fisco e até mesmo como meio de demonstração do valor efetivamente correspondente ao fato jurídico tributário cuja medida a fiscalização pretende arbitrar669.
669. Em sentido contrário, decidiu o 1º Conselho de Contribuintes [atual CARF]: “ARBITRAMENTO – BASE DE CÁLCULO – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO – PERÍCIA – O procedimento para arbitrar a base de cálculo do tributo é ato unilateral, que deve desenvolver-se segundo os ditames da legalidade e com a observância das regras da lógica, não comportando o contraditório, que só se estabelecerá após concretizado o lançamento” [Ac. 105-14.406, Rel. Cons. Irineu Bianchi, j. 12-5-2004].
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Disso depreende-se que, mesmo nas hipóteses de arbitramento, a prova se apresenta indispensável: é preciso demonstrar que não houve o cumprimento dos deveres instrumentais, e que o valor arbitrado se apresenta razoável, aproximando-se ao máximo daquele que provavelmente seria devido em decorrência dos regulares registros contábeis. Arbitramento não se confunde com arbitrariedade. Tudo conforme procedimento legalmente prescrito.
8.6 Desconsideração de negócios jurídicos No exercício da atividade de fiscalização, compete à autoridade administrativa investigar os fatos ocorridos, colhendo, com observância às regras pertinentes ao direito das provas, elementos que possibilitem a formulação de juízo quanto à incidência das normas tributárias. Ao desempenhar tal função, deve ater-se a apurar os fatos praticados, averiguando se estes preenchem as linhas definitórias circunscritas na hipótese normativa, de modo que, havendo o perfeito quadramento, nasce a obrigação tributária, mediante seu relato na linguagem prevista pelo direito positivo; existindo algum ponto dissonante, a percussão jurídica fica obstada. As considerações acima enunciadas são de extrema relevância, pois, em virtude do princípio da autonomia da vontade, que impera no âmbito do direito privado, é permitido ao particular a adoção das mais variadas estruturas negociais. Para atingir o resultado econômico pretendido, está habilitado a escolher livremente o arcabouço negocial que melhor lhe aprouver, de forma que os custos sejam reduzidos e os lucros otimizados. São, inegavelmente, lícitas as atitudes dos contribuintes que objetivem à reestruturação e reorganização de seus negócios, estando asseguradas pelo Texto Constitucional, que, em seu art. 5º, XXII, prestigia o direito de propriedade, depreendendo-se também, do art. 5º, IV, IX, XIII, XV e XVII, e art. 170 e seus incisos, o pleno direito ao exercício da autonomia da vontade. Nesse sentido é a posição de Heleno
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Taveira Tôrres670, segundo o qual “constitui obrigação do administrador de qualquer sociedade empregar todos os recursos para atingir o objetivo da empresa”, sendo-lhe autorizado estruturar-se de forma que o exercício de suas atividades seja menos oneroso. Consignadas tais anotações, impõe-se o registro de que, prevendo a norma tributária, em sua hipótese, uma determinada atividade jurídica, somente poderá ser aplicada se verificada a efetiva ocorrência do negócio previsto. Tendo em vista os princípios da estrita legalidade e da tipicidade, a prática de forma negocial diversa, ainda que permita atingir o mesmo resultado econômico, não autoriza a autoridade administrativa a lavrar o ato de lançamento, constituindo o crédito tributário. Como já lecionava Alfredo Augusto Becker671, “a doutrina da Interpretação do Direito Tributário, segundo a realidade econômica, é filha do maior equívoco que tem impedido o Direito Tributário de evoluir como ciência jurídica. Esta doutrina, inconscientemente, nega a utilidade do direito, porquanto destrói precisamente o que há de jurídico dentro do Direito Tributário”. O direito positivo, como sistema autopoiético que é, só admite a juridicização daquilo que passe por seu filtro. Por outro lado, caso o particular, no desenvolvimento de suas atividades negociais, pratique atos simulados, com vistas a evitar ou mitigar a aplicação de normas tributárias, subtraindo-se ao tributo que seria devido ou reduzindo seu impacto, ou, ainda, incorra em simulação para garantir uma vantagem ou benefício em relação ao qual não teria direito672, tem-se por preenchido requisito indispensável à desconsideração dos negócios jurídicos pelo Fisco, competindo à autoridade administrativa lavrar o lançamento tributário, nos termos do art. 670. Limites do planejamento tributário e a norma brasileira anti-simulação (LC 104/01), in Grandes questões atuais do direito tributário, v. 5, p. 108. 671.Teoria geral do direito tributário, p. 130. 672. Heleno Taveira Tôrres denomina-os, respectivamente, (i) simulação tributária excludente ou redutiva e (ii) simulação tributária includente ou indutiva [Direito tributário e direito privado: autonomia privada, simulação, elusão tributária, p. 357].
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149, VII, do CTN, e impor as penalidades cabíveis. Reforçando tal determinação, prescreve o art. 116, parágrafo único, do mesmo Diploma Legal673 que: A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Para a correta aplicabilidade dos referidos dispositivos, é preciso que se faça uma distinção bem nítida entre atos simulados ou dissimulados e aqueles praticados dentro da esfera de liberdade negocial do contribuinte. Uma coisa é eleger forma menos onerosa para o desempenho, pelo particular, de suas atividades, caracterizando a figura denominada elisão ou planejamento tributário. Outra, bem diferente, é agir com malícia, no intuito de prejudicar o Erário, mediante a prática de ações não autorizadas juridicamente: elusão ou evasão fiscal. Enquanto na primeira hipótese tem-se ato lícito, cuja desconsideração é inconcebível, a segunda encontra-se no campo da ilicitude, sendo repudiada pelo ordenamento. Tanto o art. 149, VII, como o art. 116, parágrafo único, ambos do CTN, exigem, como pressuposto autorizativo da desconsideração dos negócios jurídicos realizados pelo contribuinte, a certificação de atividade que objetive dissimular a ocorrência de situação prevista na hipótese de norma tributária geral e abstrata tributária. O recurso às definições de direito privado, traçadas pelo Código Civil, apresentam-se extremamente úteis à identificação de evasão fiscal, visto que estabelecem critérios determinantes da simulação dos negócios jurídicos. Nos termos do art. 167, §1°, do Código Civil, três são os casos em que se tem configurada a simulação dos negócios jurídicos. Quando:
673. Com redação dada pela Lei Complementar 104/2001.
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I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
Simular significa disfarçar uma realidade jurídica, encobrindo outra que é efetivamente praticada. Nas palavras de Marcos Bernardes de Mello674, “o que caracteriza a simulação é, precisamente, o ser não-verdadeira, intencionalmente, a declaração de vontade. Na simulação quer-se o que não aparece, não se querendo o que efetivamente aparece”. Consiste na declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso daquele que a declaração real da vontade acarretaria, sendo a simulação verificada, segundo Orlando Gomes675, quando “em um negócio jurídico se verifica intencional divergência entre a vontade real e a vontade declarada, com o fim de enganar terceiros”. No negócio simulado, as partes fingem um negócio que na realidade não desejam. Aplicando esses conceitos ao campo do direito tributário, conclui-se que os atos tendentes a ocultar ocorrência de fato jurídico tributário configuram operações simuladas, pois, não obstante a intenção consista na prática do fato que acarretará o nascimento da obrigação de pagar tributo, este, ao ser concretizado, é mascarado para que aparente algo diverso do que realmente é. O mesmo se pode dizer da atividade tendente a distorcer a situação em que se encontra determinado contribuinte, com escopo de exteriorizar atributos que possibilitem a fruição de benefícios que não alcançaria se considerada sua real condição jurídica.
674. Teoria do fato jurídico: plano da validade, p. 153. 675. Introdução ao direito civil, p. 374.
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A dissimulação, por sua vez, nada mais é que uma das perspectivas pelas quais o ato de simular pode ser examinado: enquanto o ato simulado é aquele que aparece aos olhos do observador, ato dissimulado corresponde àquele efetivamente desejado pelas partes, e que se pretende ocultar mediante prática simulatória. Para que haja simulação, é necessário (i) divergência entre a real vontade das partes e o negócio por elas declarado e (ii) intenção de lograr o Fisco. Esses são, por conseguinte, pressupostos indeclináveis da desconsideração das operações jurídicas praticadas pelos contribuintes, devendo estar demonstrados por meio de provas constituídas pela Administração676. Com propriedade, anota Alberto Xavier677 que: Nenhum ato pode obrigar um contribuinte a submeter-se à exigência de tributo sem que fato jurídico materialmente provado exista, afastada, pois, qualquer exigência ficta ou presumida sem respaldo material. Por conseguinte, não pode haver desqualificação sem prova contundente de que, nos documentos apresentados pelo contribuinte, reside o vício de inidoneidade ou inconsistência, justo porque o resultado implicará pagamento de tributo sobre a diferença encontrada na retificação de preços.
É mediante o emprego da linguagem das provas que se desconstitui o fato simulado, constituindo, em seu lugar, o fato que se pretendeu dissimular, servindo como motivação dos atos de lançamento tributário e de aplicação das penalidades correspondentes. Como anotara Vilém Flusser678, “a língua é, forma, cria e propaga realidade”. E isso se aplica, em tudo, ao âmbito do 676. Misabel Abreu Machado Derzi, A desconsideração dos atos e negócios jurídicos dissimulatórios, segundo a Lei Complementar 104, de 19 de janeiro de 2001, in Planejamento tributário e a Lei Complementar 104, p. 231. 677. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 46. 678. Vilém Flusser, Língua e realidade. São Paulo, p. 17.
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ordenamento. Dependendo de como o negócio jurídico é efetuado, ou seja, conforme a linguagem jurídica empregada, estaremos diante de um fato jurídico tributário ou não. Sendo diversos os procedimentos, diferentes serão as operações de direito, ainda que os respectivos efeitos sejam iguais. Apresenta-se, aqui, o “paradoxo do condicional”, em que, sendo verdadeiro o antecedente, o consequente também o será, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira, isto é, se o consequente for verdadeiro, nada obsta que o antecedente não o seja679. Isso significa que não há como admitir a configuração de um negócio jurídico ou outro tomando como suporte, unicamente, os efeitos econômicos que dele se irradiam. Essas anotações, aliadas aos princípios da estrita legalidade e da tipicidade tributária, bem como à vedação da exigência de tributo com suporte em analogia [art. 108, §1º, do CTN], demonstram ser inconcebível a desconsideração de um ato ou negócio jurídico pela singela circunstância de que seus efeitos econômicos são idênticos aos de outro ato ou negócio, sujeito a carga tributária mais elevada. Importa, para fins de aplicação do direito, a perfeita correspondência entre a hipótese de incidência posta na norma tributária e o fato concretizado pelo particular. Caso inocorra esse enquadramento, não se admite, em nosso ordenamento, que se despreze a forma negocial adotada para, simplesmente, considerar seus efeitos econômicos, por serem semelhantes aos dos negócios previstos na hipótese normativa. Quaisquer assertivas no sentido da prevalência da substância econômica sobre a forma jurídica hão de ser consideradas em prol da “realidade” das operações. Assim é que, optando por determinada estrutura negocial [forma], o contribuinte há de assumir “as consequências e ônus das formas jurídicas por ele escolhidas, ainda que motivado pelo objetivo
679. Delia Teresa Echave, Maria Eugenia Urquijo e Ricardo A. Guibourg, Lógica, proposición y norma, p. 83.
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de economia de imposto.”680 É isso que confere a chamada “substância” dos atos. Em suma, o que se tem, na verdade, não é a preponderância da substância ou do conteúdo sobre a forma, mas a identificação da forma mais convincente a respeito do conteúdo do ato. Propomos, portanto, que se tome como critério definitório a concernente ao negócio jurídico verdadeiro, em oposição ao negócio jurídico falso, mascarado por estrutura negocial que não se confirma perante outros dados do negócio.
8.7 Contencioso administrativo tributário Partindo das premissas firmadas neste trabalho, podemos dizer que o processo administrativo contencioso é todo sistema de prestação jurisdicional destinado a resolver conflitos emergentes da relação entre o contribuinte e o Fisco, dentro do próprio âmbito da Administração Pública. No campo tributário federal, está regulamentado pelo Decreto 70.235/72, sendo-lhe aplicáveis, subsidiariamente, os termos da Lei 9.784/99. Nos âmbitos estadual e municipal, cada pessoa política dispõe sobre o assunto. Para além disso, o Código de Processo Civil de 2015 dispõe expressamente sobre sua aplicação aos processos administrativos, no que se incluem os processos administrativos tributários: Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
Impõe-se, por conseguinte, o uso das regras veiculadas pelo CPC para fins de colmatação de lacunas identificadas na legislação que disciplina os processos administrativos tributário [aplicação subsidiária], tendo a legislação processual civil
680. Ac. 104-21729 – antigo 1º Conselho de Contribuintes.
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aplicabilidade, também, para fins de complementação [aplicação supletiva] das estipulações inerentes aos contenciosos administrativos fiscais. Feitas essas notas, importa reiterar que o processo administrativo tributário não se instaura com a lavratura do lançamento ou do auto de infração, pois nesse momento ainda não se tem a resistência do contribuinte, caracterizadora do conflito. Pode ocorrer que o particular permaneça inerte ou concorde com a exigência, efetuando seu pagamento, situações em que inocorre a formalização de processo. Por isso, Fábio Fanucchi681, discorrendo sobre o tema, assevera que, “Na esfera federal, para a maioria de seus tributos [todos cuja receita se destine aos cofres centrais da União], o litígio administrativo se instaurará, em efetivo, com a contestação do sujeito passivo ao lançamento contra ele efetuado. [...] A impugnação é ato escrito, a exemplo da petição inicial do processo judiciário, e será instruída com todos os documentos em que estiver fundamentada [art. 15 do Decreto 70.235/72]”. O processo administrativo tributário tem início tão somente com a impugnação do sujeito passivo, mediante a qual se requer a manifestação jurisdicional do Estado, exercida atipicamente pelo Poder Executivo.
8.7.1 Fases do processo administrativo tributário Tendo em vista que o processo se caracteriza por uma sucessão ordenada de atos para atingir um ato final, que represente a solução da controvérsia instaurada perante o Estado, é possível decompô-lo em etapas, para fins de apreciação analítica. Essas etapas são comumente denominadas fases do processo, designando, nas palavras de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari682, um “conjunto de atos procedimentais, lógica e juridicamente agrupados, vocacionados homogeneamente à 681. Processo administrativo tributário, in Novo processo tributário, p. 53. 682. Processo administrativo, p. 91.
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realização de fins específicos”, consistente na realização de ato decisório resolutivo de conflito. A doutrina costuma dividir em quatro as fases do processo administrativo: (i) introdutória ou de instauração; (ii) instrutória; (iii) decisória ou de julgamento; e (iv) recursal683. Com tal separação, pretende-se indicar, respectivamente: (i) o começo do processo administrativo, mediante iniciativa do particular [impugnação]; (ii) a produção de argumentos e provas destinados a convencer o destinatário; (iii) a emissão de norma individual e concreta, mediante a qual o julgador reconhece a veracidade ou falsidade dos fatos alegados, constituindo fato jurídico em sentido estrito; e (iv) a manifestação de inconformidade da parte vencida, requerendo nova apreciação do tema, por órgão julgador diverso. Não obstante o relativo consenso em torno dessa divisão das etapas processuais, esta não se sustenta perante a legislação que disciplina o processo administrativo tributário federal. Nos termos do Decreto 70.235/72, a impugnação tem de ser instruída com os documentos em que se fundamentar [art. 15, caput, implicando inexistência de distinção entre fase de instauração e de instrução. O mesmo se verifica no processo administrativo estadual de São Paulo, uma vez que as provas devem ser apresentadas juntamente com a defesa [art. 19, caput, da Lei 13.457/2009]. Além disso, dá-se o nome de atos de instrução, segundo José Frederico Marques684, “àqueles destinados a recolher os elementos necessários para a decisão da lide, subdividindo-se eles em atos de prova e alegações”, levando a um conceito genérico de instrução, abrangendo tanto a prática de atos probatórios como as alegações das partes. Semelhante é o posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco685, para 683. Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, ibidem, p. 91; James Marins, Direito processual tributário brasileiro [administrativo e judicial], p. 263. 684. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 317. 685. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 34.
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quem instrução “é o conjunto de atividades de todos os sujeitos processuais, destinadas a produzir convicção no espírito do juiz”, englobando argumentos e provas. Nota-se que o vocábulo instrução não é sinônimo de prova, nem a fase instrutória se confunde com a etapa probatória. A instrução probatória é apenas espécie do gênero instrução, de modo que a chamada fase de instauração não deixa de ser, também, instrutória686.
8.7.2 Instrução probatória no processo administrativo tributário Efetuada a intimação do contribuinte relativamente à exigência tributária, tem ele o prazo fixado em lei para, desejando insurgir-se contra ela, apresentar impugnação. Nessa peça, deve mencionar, dentre outros, os motivos de fato e de direito em que se fundamenta, os pontos de discordância e as razões e provas que possuir, anexando, desde logo, os documentos em que se basear687. Caso pretenda ver realizada alguma diligência, o contribuinte precisa indicá-la e justificar sua necessidade, formulando os quesitos a serem respondidos. É no instante da apresentação de impugnação, portanto, que tem início a instrução processual, podendo esta se prolongar até o momento posterior à decisão de primeira instância. Tendo o contribuinte requerido a execução de diligência e sendo o pedido deferido, ou, na hipótese de, omisso o particular, a autoridade julgadora a quo determinar sua realização de ofício, tem-se a dilação probatória além do instante previsto para impugnação, devendo encerrar-se, porém, antes de proferido ato decisório. A possibilidade de apresentação de 686. José Frederico Marques refere-se à existência de um conceito lato de instrução, compreendendo atos probatórios e alegações, e um conceito estrito, considerando apenas a instrução probatória [Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 318]. 687. Maria Rita Ferragut apresenta interessante relação de casos práticos verificados nas esferas federal, estadual e municipal. As provas e o direito tributário, p. 169 e ss.
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documentos pelo contribuinte é que, observados os requisitos da legislação [art. 16, §§ 4° a 6°, do Decreto 70.235/72 e art. 19, parágrafo único, da Lei estadual de São Paulo 13.457/2009, por exemplo], pode estender-se além daquele ato. Em regra, todos os documentos que fundamentem as alegações do impugnante precisam ser oferecidos com a peça impugnatória, cuja admissão os faz ingressar nos autos. Deixando o contribuinte de fazê-lo, somente estará habilitado a carrear novas provas ao processo se demonstrar (i) a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior; (ii) que o documento refere-se a fato ou direito superveniente; ou (iii) que a prova tem por finalidade contrapor-se a fatos trazidos aos autos depois de efetivada a impugnação. Em tais situações, e apenas nelas, autoriza-se a juntada de novos documentos até mesmo em instante posterior ao ato decisório de primeira instância, sendo apreciados pelo órgão julgador de segundo grau, caso seja interposto recurso. O direito de contrapor-se à exigência fiscal e de produzir provas dos seus argumentos é regrado pelo ordenamento, que, não admitindo a instabilidade das relações jurídicas, fixa termos dentro dos quais as atividades hão de ser realizadas. Assim ocorre com a instrução probatória. O direito à produção probatória implica observância aos limites temporais à sua realização, além, é claro, do atendimento ao requisito de sua obtenção por meio lícito. Isso não impede, contudo, que a autoridade administrativa, na hipótese de considera relevante e pertinente a prova que se pretende apresentar, receba-a, ex officio, para, desse modo, fazer cumprir os preceitos da eficiência da Administração e da economia processual, nos termos em que exposto no item 6.3.1.1.
8.8 Ato decisório e axiologia das provas no processo administrativo tributário Já anotamos que a sistemática de apreciação probatória adotada pelo ordenamento brasileiro, inclusive no âmbito do
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processo administrativo tributário, é o da persuasão racional ou livre convencimento motivado (capítulo 7, item 7.4), de modo que a decisão, não obstante moldada por interferências subjetivas, deve ser proferida com fundamento nas provas constantes dos autos processuais. Por isso, tem-se nulidade formal da decisão de primeira instância quando o julgador deixa de apreciar alguma prova produzida no tempo e forma prescritos em lei. Trata-se, segundo Eurico Marcos Diniz de Santi688, de vício formal de fato: “junta-se prova permitida pela lei formal só que no decorrer do processo administrativo o julgador simplesmente não aprecia aquela prova. [...] Tenho a prova lícita, permitida pela lei administrativa, trazida aos autos, mas, por erro de apreciação ou interpretação da prova, não se considera a prova na aplicação do Direito”. Toda e qualquer produção probatória exige apreciação pelo julgador, operando-se desde (i) a admissão ou rejeição do ingresso de determinada prova nos autos, (ii) a fixação dos pontos controvertidos que exigem maior cuidado na instrução, até (iii) a enunciação decisória terminativa do conflito. Nesta última etapa, entretanto, é que se estabelece o convencimento do julgador acerca da ocorrência ou não do fato jurídico tributário em sentido estrito ou do ilícito tributário, pautado nas provas articuladas por ambas as partes. A convicção precisa, necessariamente, decorrer das provas, apreciadas livremente e confrontadas entre si, com identificação dos aspectos convergentes e divergentes entre elas. Com tais providências, o julgador está habilitado a atribuir maior ou menor força axiológica a cada prova, firmando seu convencimento acerca do conjunto probatório como um todo e, por conseguinte, concluindo sobre a ocorrência ou não do fato jurídico tributário em sentido estrito e do ilícito tributário, bem como dos correspondentes liames obrigacionais. Tudo, é claro, devidamente fundamentado.
688. Processo administrativo. Mesa de debates “E”, Revista de Direito Tributário n. 91, p. 129- 130.
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PROPOSIÇÕES CONCLUSIVAS
De ordem propedêutica: conhecimento, verdade e o sistema do direito 1. Adotada a perspectiva do constructivismo lógico-semântico, o objeto do conhecimento não são as coisas-em-si, mas as proposições que as descrevem. O mundo da experiência só passa a ser susceptível de se conhecer quando apreendido pelo ser humano, que o constitui linguisticamente. Por isso, os atributos veracidade e falsidade não se referem aos objetos concretos, mas aos enunciados que lhes dizem respeito. 2. Não existe conhecimento sem sistema de referência, entendido como conjunto de coordenadas de tempo e de espaço em que a compreensão do mundo se opera. Sem a indicação do modelo dentro do qual determinada proposição se aloja, não há como examinar sua veracidade. 3. Para que uma proposição possa ser considerada verdadeira, é preciso que se atinja a certeza, que é o mais elevado grau da crença, e que se tenha justificação suficiente, aperfeiçoada por meio da linguagem das provas. Verdadeiro é o fato que está comprovado de tal forma que se tenha certeza de sua ocorrência.
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4. A verdade é um conceito metafísico, pois não se mostra susceptível de apreciação pelo método das experiências: todos falam em nome da verdade, mas não há como saber, mediante procedimentos experimentais, quem está dizendo a verdade. A determinação do que seja verdadeiro dá-se mediante o emprego das regras impostas pelo sistema dentro do qual se insere a proposição cuja veracidade se examina. Por isso, não há uma verdade absoluta, objetiva e universal: o falibilismo é inerente aos enunciados que se pretendam verídicos. 5. A distinção entre verdade material e verdade formal não prospera se considerarmos que toda a verdade é construída dentro de um sistema de referência e, portanto, segundo as regras daquele sistema. Optamos, assim, por abandonar as mencionadas denominações, passando a aludir à verdade lógica, quer dizer, à verdade em nome da qual se fala, construída a partir da relação entre as linguagens de determinado sistema. 6. Conquanto o direito positivo seja constituído por linguagem prescritiva, sujeita, portanto, aos valores válido e não-válido, os antecedentes das normas concretas são enunciados de forma descritiva, submetendo-se aos critérios de veracidade e falsidade. Tendo em vista que tais enunciados devem ser proferidos em consonância com eventos supostamente verificados, é imprescindível sua articulação com base na linguagem das provas. 7. Para que o processo de positivação se realize, necessário se faz o perfeito quadramento do fato à previsão normativa abstrata. É exatamente por meio das provas que se certificam a ocorrência fática e sua adequação aos traços tipificadores veiculados pela norma geral e abstrata, permitindo falar em subsunção do fato à norma e em implicação entre antecedente e consequente, operações lógicas que caracterizam o fenômeno da incidência normativa. Desse modo, a linguagem das provas, prescrita pelo direito, não apenas diz que um evento ocorreu, mas atua na própria constituição do fato jurídico tributário.
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8. Tomado o sistema como um conjunto de elementos coordenados entre si, aglutinados perante uma referência determinada, é possível visualizar a sociedade como um sistema composto por uma rede de comunicações, no interior do qual se inserem diversos subsistemas comunicacionais, dentre eles, o do direito positivo. 9. O sistema jurídico apresenta-se como um conjunto comunicacional peculiar, funcionalmente diferenciado e dotado de programas e códigos próprios, que lhe conferem fechamento operativo e forma específica de abertura cognitiva. Sua função consiste, em termos gerais, na estabilização das expectativas normativas. Para atingir tal desiderato, o direito possui determinações estruturais, denominadas código e programa: (i) o código caracteriza um esquematismo binário na forma lícito/ilícito, fundamentando a identificabilidade do sistema jurídico, permitindo selecionar as comunicações que o integram; (ii) os programas determinam de que maneira o código deve ser utilizado, estabelecendo em que hipóteses a comunicação jurídica qualificará como lícito um fato social qualquer e em que situações o identificará como ilícito, regulando a alocação dos valores do código binário segundo a relação implicacional “se... então” (programa condicional). 10. O direito configura um sistema autopoiético, produzindo seus componentes a partir dos próprios elementos que o integram, fazendo-o por meio de operações internas. As informações advindas do ambiente são processadas no interior do sistema, só ingressando no universo jurídico porque ele assim determina e na forma por ele estabelecida. A pluralidade de discursos do ambiente é processada internamente pelo sistema do direito, funcionando o código e o programa como mecanismos de seleção, assegurando que as expectativas normativas sejam tratadas segundo o código lícito/ilícito, de modo que os fatores externos só influam na reprodução do sistema jurídico se e quando submetidos a uma comutação discursiva de acordo com aquela codificação e com os programas jurídicos.
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11. É o sistema do direito que estabelece quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade, quer dizer, os fatos que desencadeiam consequências jurídicas e os que são juridicamente irrelevantes. Só ingressam no ordenamento, na qualidade de provas, os fatos constituídos segundo as regras de formação do sistema. 12. Considerado o ordenamento como uma rede de comunicações, consistentes em interações sociais realizadas por meio de mensagens jurídicas, podemos identificar, na relação probatória, os seis componentes do processo comunicacional: (i) remetente é o ser humano que produz a prova; (ii) destinatário é o julgador, representado pelo sujeito a quem se pretende convencer de algo mediante o uso das provas em direito admitidas; (iii) a mensagem corresponde ao conteúdo significativo da prova; (iv) tem-se por canal o processo, enquanto instância material, suporte físico das relações processuais; (v) a língua portuguesa é o código; e (vi) o contexto está representado pela relação jurídica processual na qual se pretende interferir.
Sobre a morfologia, sintaxe, semântica e pragmática das provas 13. O vocábulo prova é plurissignificativo, encontrando utilização nas diversas áreas do conhecimento. No âmbito jurídico, a plurivocidade de sentidos se mantém e decorre, principalmente, da diversidade de momentos em que a prova é considerada. Pode a prova ser visualizada como (i) algo finalizado, que serve para demonstrar a verdade de um fato (enunciado); (ii) a atividade desenvolvida pelas partes para levar o julgador ao convencimento da veracidade de suas afirmações (enunciação); (iii) o instrumento empregado para constituir o fato provado no processo (enunciação-enunciada); ou (iv) o efeito de tais elementos na convicção do julgador. Várias outras significações podem ser atribuídas ao termo prova, conforme a perspectiva que a examine. Apenas
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a título ilustrativo, relacionamos, no desenvolver desta obra, 59 acepções possíveis. 14. Prova e meio de prova não se confundem. A prova, em sua acepção de base, denota algo que possa servir ao convencimento de outrem. O meio de prova, por sua vez, consiste no instrumento utilizado para transportar os fatos ao processo, constituindo provas. Trata-se da atividade exercida em observância às regras de organização probatória vigentes, relatada pela linguagem prescrita pelo direito (enunciação-enunciada). 15. As provas costumam ser classificadas em: (i) direta e indireta, quanto ao objeto; (ii) pessoal e real, conforme o sujeito que as emana; e (iii) testemunhal, documental e material, segundo a forma em que se apresentam. Tais divisões, a nosso ver, não se sustentam. A prova é sempre indireta, pois jamais alcança o fato que se pretende provar, sendo apenas uma representação parcial, um indício daquele. Além disso, como enunciado linguístico que é, a prova decorre sempre de produção humana, sendo, portanto, pessoal. Toda prova é, também, documental, pois quaisquer afirmações realizadas, ainda que oralmente, só assumem a condição de prova quando materializadas em um suporte físico permanente. 16. Uma possível classificação das provas pode ser efetuada tomando-se como critério sua constituição em linguagem. Entendida a prova como fato, a ela se aplicam os atributos atômico e molecular. Quando composta por um único seguimento linguístico, teremos prova atômica ou simples. Sendo, porém, formada por diversos enunciados, entrelaçados entre si por meio de conectivos, estaremos diante de prova molecular ou complexa. 17. As diferenças verificadas entre as provas decorrem do modo de sua produção. Não obstante todas as provas sejam indiretas, pessoais e documentais, o ordenamento prescreve variações nos correspondentes atos de fala. Há normas de organização probatória que estipulam os requisitos e modos
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pelos quais se operam a confissão, o depoimento testemunhal, o exame pericial, o emprego de enunciado linguístico pré-constituído e a certificação realizada pelo próprio destinatário da prova. O que se classifica, portanto, são os meios de prova. 18. A confissão consiste na declaração voluntária em que o indivíduo admite como verdadeiro um fato que lhe é considerado prejudicial, alegado pela parte adversa. Vemos a confissão como meio de prova, por ter como função o convencimento do julgador, com vistas à constituição ou desconstituição de fatos jurídicos em sentido estrito. 19. No âmbito do direito tributário, há confissão do contribuinte quando ele próprio constitui o crédito, emitindo a correspondente norma individual e concreta, nas hipóteses de tributo sujeito ao chamado lançamento por homologação. Também ocorre a figura jurídica da confissão quando celebrado termo de parcelamento, acompanhado de instrumento comumente denominado confissão irrevogável e irretratável de débitos tributários. 20. Discordamos do posicionamento que atribui à confissão os atributos da indivisibilidade, irretratabilidade e irrevogabilidade, principalmente quando verificada na esfera tributária. Na qualidade de elemento de convicção do julgador, a confissão deve por ele ser valorada no contexto dos autos, cotejando-se os trechos enunciados na confissão com outras provas constantes do processo, sendo perfeitamente possível que acolha as partes que estiverem em harmonia com o conjunto probatório e rejeite as afirmações infirmadas pelas demais provas [divisibilidade]. Ainda, verificando o contribuinte a incorreção das declarações prestadas, é-lhe lícito solicitar sua revisão pelo órgão administrativo ou judicial, visto que, em face dos princípios da estrita legalidade e tipicidade tributária, o tributo só é devido se verificada a ocorrência do fato previsto na hipótese da norma geral e abstrata [retratabilidade]. Por fim, realizado o ato de confessar
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em decorrência de erro, dolo ou coação, a confissão é susceptível de ser anulada [revogação]. 21. Conquanto todas as provas apresentem forma documental, algumas são assim denominadas em razão do modo pelo qual são produzidas [meio de prova]. É o que acontece com as provas documentais referidas pela legislação brasileira: consistem em reproduções pré-constituídas de fatos, cujo modo de produção não coincide com aqueles referidos de forma específica pelo direito positivo brasileiro. O documento corresponde a todo suporte físico que enuncia fatos, dele sendo espécie o instrumento, entendido como veículo que preenche determinados requisitos formais e apresenta-se imprescindível à criação de certos atos jurídicos. 22. A prova documental ocupa lugar de destaque nos processos tributários, tendo em vista que os fatos desencadeadores de vínculos obrigacionais consistem em atividades que, por suas peculiaridades, originam uma documentação própria, tal como a realização de registros contábeis. Além disso, todo suporte físico que contenha informações referentes aos negócios praticados pelo contribuinte caracteriza prova documental, desde que obtido de forma lícita e realizados procedimentos que assegurem sua fidelidade e autenticidade. Esses são requisitos para que se possam empregar, como prova, registros constantes de mídia magnética ou eletrônica. 23. Os atos processados em juízo integram o conceito de prova documental, encontrando perfeita aplicabilidade em matéria tributária. Dentre eles merece destaque a figura da prova emprestada por se tratar de expressão a que se atribuem dois sentidos diversos, levando a conclusões igualmente distintas. Referida locução é empregada para designar: (i) a construção de uma nova prova, idêntica à já produzida em outro processo envolvendo as mesmas partes; e (ii) as informações fornecidas por qualquer das Fazendas Públicas, obtidas por meio de procedimentos fiscalizatórios por elas realizados. No primeiro caso, tem-se elemento susceptível de ser
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utilizado como prova do fato jurídico tributário, observados os requisitos da regularidade da sua produção no processo originário, identidade de partes e semelhança entre os fatos probandos. A segunda modalidade, entretanto, presta-se apenas como elemento de suspeita, servindo de estímulo para a execução de atos fiscalizatórios e produção de provas pelo ente tributante que recebe tais informações. 24. Nada impede que no âmbito tributário faça-se uso de depoimentos testemunhais. A pouca utilização desse meio de prova decorre dos tipos de fatos colocados em discussão, que, normalmente, são demonstráveis por outras formas. Juridicamente, nenhum empecilho há à sua adoção. Ainda que a legislação disciplinadora dos processos administrativos tributários não as refira expressamente, a possibilidade de seu emprego fundamenta-se nos dispositivos que autorizam a realização de diligências e o recurso a todos os meios de prova em direito admitidos, além, é claro, do direito à ampla defesa, constitucionalmente assegurado. 25. Para que se faça exame pericial, é indispensável que o fato em discussão demande o emprego de conhecimentos técnicos ou científicos. Apenas se não preenchido tal requisito, ou se a efetivação da perícia for prescindível ou impraticável, é que se autoriza o indeferimento do pedido de realização de análise pericial. 26. Indícios e presunções não são espécies distintas de prova, mas dois elementos necessários à produção do fato jurídico em sentido amplo: (i) indício é um fato (F’) que serve como estímulo à construção de sentido relativamente à ocorrência ou não de um evento (E’), fundamentando a constituição de um fato jurídico em sentido estrito (F”); (ii) presunção é a operação mental que se realiza a partir do indício, estabelecendo, mediante inferência dedutiva, relação de causalidade entre o indício e o fato probando.
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27. Toda prova é um fato que faz presumir a ocorrência de um evento, servindo à constituição de outro fato. Toda prova é, portanto, indiciária. 28. Os princípios da estrita legalidade, da tipicidade e da capacidade contributiva exigem que a obrigação de pagar tributo instale-se apenas quando verificada a ocorrência do fato previsto na hipótese da norma geral e abstrata, calculando-se a exação com base na medida monetária desse fato. Inconcebível considerar que um fato tenha acontecido, não obstante as provas demonstrem o contrário. Por isso, em matéria tributária não se admite o emprego de presunções absolutas. As presunções mistas também não encontram aplicação no campo do direito tributário, pois, sendo ilididas por apenas alguns meios de prova, legalmente especificados, representam violação aos mencionados princípios constitucionais tributários, além do primado da ampla defesa. 29. Somente as presunções relativas podem ser validamente utilizadas no direito tributário, por possibilitarem o exercício da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, tal como a produção probatória objetivando desconstituir o fato presumido. 30. As presunções hominis, consistentes no raciocínio dedutivo realizado pelo julgador a partir de suas vivências e da observação do que ordinariamente acontece, são admissíveis no direito tributário. Como as provas são sempre indiciárias, exigem aquela operação mental de inferência dedutiva, podendo a figura da presunção simples ser identificada em toda apreciação probatória. 31. Qualquer que seja a hipótese presuntiva, é imprescindível a produção de provas pela Administração. A ela incumbe comprovar o fato que desencadeia a operação presuntiva e viabiliza a instalação da relação jurídica correspondente. Tratando-se de presunção relativa, é preciso que a autoridade administrativa prove a ocorrência da situação que a lei
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estabelece como fato presuntivo. No caso de presunção hominis, exige-se a demonstração dos indícios, bem como do nexo de causalidade entre estes e o fato relevante para a aplicação da lei tributária [fato presumido]. Por isso, os indícios hão de ser veementes e homogêneos. 32. As provas obtidas ou utilizadas ilicitamente não se prestam à constituição do fato jurídico tributário. O sistema do direito, ao estabelecer os critérios de seleção e o modo pelo qual um fato qualquer – social, econômico, político etc. – assume feição jurídica e passa a integrá-lo, nega reconhecimento às provas produzidas de forma ilícita. 33. Observada a composição do fato jurídico denominado prova, identificamos sete elementos: (i) fonte; (ii) objeto; (iii) conteúdo; (iv) forma; (v) função; (vi) finalidade; e (vii) destinatário. 34. Objeto da prova é o fato que se pretende provar, consistente na alegação da parte. A prova é sempre da afirmação, nunca do evento. Mas para que um fato seja susceptível de ser provado, precisa ser determinado, situar-se dentro dos limites ontológicos da possibilidade e ter relevância para fins de aplicabilidade da norma tributária geral e abstrata. 35. A controvérsia do fato alegado não se apresenta como requisito indispensável à produção probatória, visto que no ordenamento existem várias situações em que se exige a realização de provas independentemente da impugnação da parte adversa. O chamado fato notório também não dispensa sua constituição mediante a linguagem das provas, pois o próprio atributo da notoriedade só passa a ter existência jurídica quando assim reconhecido no processo. O mesmo se pode dizer das hipóteses presuntivas, tendo em vista que, qualquer que seja sua modalidade, demanda a comprovação do fato a partir do qual se desenvolve a inferência dedutiva. Os fatos negativos também são objeto de prova, pois sua enunciação pode ser perfeitamente traduzida na forma afirmativa: quem nega algo afirma situação positiva a ele contraposta. Até
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mesmo o direito, quando o próprio sistema assim refira, pode ser provado. Isso não ilide nossa assertiva de que o objeto da prova é sempre um fato, pois nesse caso o que se prova é o fato da existência, teor e vigência do direito municipal, estadual, costumeiro ou estrangeiro. 36. O conteúdo da prova está intrinsecamente relacionado com seu objeto: enquanto o objeto diz respeito ao fato que se pretende provar, o conteúdo corresponde ao fato provado, isto é, ao enunciado linguístico veiculado no suporte físico da prova. 37. A forma da prova, entendida como o modo pelo qual esta se exterioriza, apresenta-se sempre documental, veiculando enunciados escritos ou susceptíveis de serem vertidos em linguagem escrita. 38. A atividade probatória das partes tende à demonstração da veracidade dos fatos por elas alegados, mediante convencimento do julgador. Apresenta a prova, portanto, função persuasiva, dirigindo-se a formar a convicção do destinatário. Sua finalidade é a constituição ou desconstituição do fato jurídico em sentido estrito. 39. Provar algo não significa simplesmente juntar um documento aos autos. É preciso estabelecer relação de implicação entre esse documento e o fato que se pretende provar, fazendo-o com o animus de convencimento. 40. A todo ato de vontade [noesis] corresponde um conteúdo [noema], o qual, para ser objetivado, requer uma forma em que se materialize. Podemos falar, assim, em: (i) ato de consciência; (ii) forma de consciência; e (iii) conteúdo de consciência. Distinguemse, desse modo, o ato de provar, a forma e o conteúdo daquele ato. 41. Quem pretende ver constituído determinado fato jurídico em sentido estrito precisa, em primeiro lugar, afirmar um fato F, para, em seguida, prová-lo. Depois de alegado um fato (Fal), produzem-se enunciados probatórios consistentes
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em fatos jurídicos em sentido amplo e relacionados entre si (E1 . E2 . E3 . ... En) para compor o fato jurídico em sentido estrito (Fj): [Fal . (E1 . E2 . E3 . ... En)] → Fj 42. Cada enunciado probatório possui uma sintaxe interna, em que se tem a alegação de um fato indicativo da necessidade de produzir certa prova (Fal’), desencadeando a realização de atos conforme ao procedimento de organização probatória (Sp), fazendo surgir o enunciado probatório pretendido (E): (Fal’ . Sp) → E 43. Fonte da prova é o sujeito competente em atividade, ou seja, o exercício do ato de enunciação pelo emissor da mensagem probatória. 44. A temporalidade é um dos elementos constitutivos do direito, sendo determinante na organização procedimental da prova. Considerados os limites temporais à produção probatória, é possível identificar quatro etapas em que esta se desenvolve: (i) pedido de produção da prova; (ii) sua especificação; (iii) justificação acerca de sua relevância; e (iv) admissão pelo julgador. Nos termos dos arts. 15, caput, e 16, §4°, do Decreto 70.235/72, que disciplina o processo administrativo tributário federal, assim como do art. 19 da Lei Estadual de São Paulo 13.457/2009 e do art. 21 da Lei 14.107/2005 do Município de São Paulo, o momento apropriado para o requerimento da produção probatória é o da impugnação, ocasião em que os documentos devem ser juntados e solicitada, especificada e justificada a realização de diligências. Excetuam-se somente as hipóteses em que se verifique, por motivo de força maior, impossibilidade de oportuna apresentação do documento, quando se refira a fato ou a direito superveniente, ou caso se destine a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidos aos autos. Relativamente à produção da prova pela Administração, o átimo legalmente determinado é o da lavratura do ato de lançamento ou do auto de infração. Apenas para fins de
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reforço de prova é que se admite produção probatória posterior, efetuada pelo Fisco no curso do processo administrativo. 45. Como fato que é, a prova acontece dentro de certos limites espaciais. Sendo, porém, dependente da admissão do julgador para ingressar nos autos, é o processo o lugar em que a prova se dá por constituída. Ainda que alguns enunciados probatórios tenham parcela de sua enunciação realizada fora dos autos processuais, o ato que os consolida como tais é sempre verificado no próprio processo. 46. A produção das provas é, por excelência, atividade das partes. A elas compete afirmar os fatos, bem como convencer o destinatário acerca da sua ocorrência, fazendo uso da linguagem das provas. Ao julgador, por sua vez, incumbe agir imparcialmente, examinando e valorando os elementos constituídos pelas partes para, com base neles, dirimir o conflito instalado. Compete-lhe, também, ordenar de ofício a produção probatória necessária para eliminar eventuais dúvidas que remanesçam, a despeito das provas colacionadas pelas partes. Em face do princípio inquisitório ou da oficialidade, que orientam os processos administrativos tributários, a possibilidade de o julgador, por iniciativa própria, determinar a realização de diligências é mais evidente, sendo expressamente veiculado no art. 18, caput, do Decreto 70.235/72, assim como no art. 25 da Lei 13.457/2009, do Estado de São Paulo e nos arts 25 e 46 da Lei 14.107/2005, do Município de São Paulo. 47. As provas apresentam um aspecto material, voltado à constituição do fato jurídico tributário, e outro de direito processual, disciplinando a forma pela qual tal fato há de ser constituído nos autos. E o motivo pelo qual se opera essa transposição entre direito material e processual é o fato de que a categoria prova transcende o plano do direito positivo vigente, encontrando raízes na Teoria Geral do Direito. Por isso, a teoria da prova no direito tributário há de ser edificada com base nas noções e caracteres da prova em geral.
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48. Princípios são normas jurídicas carregadas de forte conotação axiológica, orientando a atividade do legislador, do intérprete e aplicador do direito. Alguns deles apresentam importantes desdobramentos relativamente à produção probatória no âmbito administrativo tributário, tais como o (i) princípio inquisitório, nos termos do qual o julgador, ao conduzir o processo, pode tomar quaisquer providências necessárias ao conhecimento dos fatos; (ii) princípio do devido processo legal, impondo observância ao procedimento prescrito em lei, bem como de outros princípios que dele decorrem, a exemplo dos primados da ampla defesa, do contraditório e da publicidade; (iii) proibição da prova obtida ilicitamente; e (iv) princípio da imediatidade, que prescreve a maior proximidade possível entre o julgador e a produção das provas. 49. Por ônus compreende-se a espécie de encargo jurídico a que se veem submetidas as partes do processo, com vistas a obter o resultado que o sistema outorga a quem realiza os atos na forma e no tempo por ele estabelecidos. A figura do ônus da prova decorre da necessidade de possibilitar a decisão em situações em que o conjunto probatório é insuficiente para convencer o julgador. Funciona, assim, como regra auxiliar na formação do convencimento do sujeito incumbido de compor conflitos. 50. O direito à produção probatória decorre da liberdade que tem a parte de argumentar e demonstrar a veracidade de suas alegações, objetivando convencer o julgador. Visto por outro ângulo, o direito à prova implica a existência de ônus, segundo o qual determinado sujeito do processo tem a incumbência de comprovar os fatos por ele alegados, sob pena de, não o fazendo, ver frustrada a pretendida aplicação do direito material. Desse modo, a prova dos fatos constitutivos cabe a quem pretenda o nascimento da relação jurídica, enquanto a dos extintivos, impeditivos ou modificativos compete a quem os alega. 51. A existência do ônus pressupõe um direito subjetivo disponível, razão pela qual não se pode falar que a autoridade
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administrativa tributária tenha o ônus da prova. Os atos de lançamento e de aplicação de penalidade pelo descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental competem ao Poder Público, de modo privativo e obrigatório, tendo de fazê-lo com base nos elementos comprobatórios do fato jurídico e do ilícito tributário. Tem a Administração, por conseguinte, dever de provar. A circunstância de os atos administrativos tributários desfrutarem de presunção de legitimidade não dispensa a produção probatória que o fundamente, pois, sendo esses atos regidos pelos princípios da estrita legalidade e da tipicidade, tais expedientes dependem da cabal demonstração da ocorrência dos motivos que os ensejaram. 52. Mesmo quando existam presunções legais, compete à autoridade administrativa apresentar provas do fato a partir do qual se estabelece o raciocínio presuntivo. É imprescindível a prova dos indícios para, a partir deles, demonstrar a existência de causalidade com o fato que se pretende dar por ocorrido. Descabe falar, portanto, em inversão do ônus da prova. 53. Os valores são inerentes ao homem. As coisas, inclusive as normas jurídicas, não têm um valor em si, independentemente da apreciação humana. Os valores são sempre atribuídos pelo homem, quer pelo legislador, ao eleger fatos para compor a hipótese normativa e escolher relações para figurarem como correspondente consequência na causalidade jurídica, quer pelo aplicador do direito, ao interpretar as normas gerais e abstratas, os fatos alegados e provas apresentadas, fazendo-o a partir de suas vivências, de suas preferências, ainda que inconscientes, construindo, com base na combinação desses valores, normas individuais e concretas. 54. A tomada de decisões, entendidas como atos de fala, constitui aspecto dinâmico do ordenamento, exigindo, para sua realização, que determinado sujeito faça uma escolha entre as várias possibilidades. Para que produza efeitos jurídicos, o ato de fala há de ser emitido por um sujeito habilitado, segundo o procedimento prescrito pelo sistema do direito. Tratando-se
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de decisão estatal posta para solucionar conflito, a autoridade competente há de pautar-se pelo critério da persuasão racional, também conhecido por livre convencimento motivado. Nos termos deste, o julgador há de ficar adstrito aos fatos alegados e provados, incumbindo-lhe decidir com base nas provas que lhe são apresentadas, podendo sopesá-las de acordo com sua livre convicção para, a partir delas, construir o fato jurídico em sentido estrito. 55. Diante da imperativa vinculação do julgador às provas, conjugada à liberdade de apreciação probatória, são identificados alguns princípios que orientam a atividade decisória: (i) princípio da unidade probatória, impondo que o conjunto das provas seja considerado em sua integralidade; (ii) princípio da aquisição da prova, nos termos do qual, uma vez produzidas, as provas devem ser consideradas independentemente da parte que as apresentou; (iii) princípio da necessidade da prova, que exige seja a decisão fundamentada em enunciados probatórios constantes dos autos; (iv) princípio da aplicação das regras científicas na prova, que veda ao julgador simplesmente desconsiderar, sem justificativa plausível, informação técnica ou científica; (v) princípio da experiência em matéria probatória, autorizando o julgador a empregar o conhecimento que adquiriu com suas vivências, relativamente ao modo normal e natural em que as coisas costumam ocorrer; e (vi) princípio do favor probationis, implicando admissibilidade de construção de novas provas quando as que existirem não forem suficientes para conferir certeza, bem como a impossibilidade de considerar provado um fato alegado quando não demonstrado de forma convincente [primado decorrente da distribuição do ônus da prova]. 56. Sendo as provas susceptíveis de valoração, a elas aplica-se o atributo da graduação hierárquica, segundo o critério de preferibilidade. O direito positivo brasileiro, em alguns casos esparsos, prescreve expressamente a superioridade hierárquica de algumas provas em relação a outras. Nas demais hipóteses, tem-se uma hierarquia axiológica móvel, variante em função de cada situação concreta.
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57. A partir de suas vivências, o ser humano constrói juízos acerca do modo que os acontecimentos normalmente ocorrem, denominados máximas de experiência, e, com base nestas, procede à valoração do mundo que o circunda. Ao realizar a atividade interpretativa do direito e dos fatos, inclusive das provas, o julgador é influenciado, conscientemente ou não, por valores e pelas máximas de experiência. Na qualidade de ser humano que vive em sociedade, observando os acontecimentos e passando por experimentos diversos, o julgador utiliza-se desse arcabouço cultural ao avaliar as provas, interpretar o direito e aplicá-lo. 58. Em termos subjetivos, a atribuição de valores pelo julgador ocorre durante todo o trâmite processual, tendo em vista que, ao entrar em contato com os enunciados produzidos pelas partes, o destinatário passa, inevitavelmente, a valorá-los. A exteriorização da atividade valorativa, porém, é comumente observada em três ocasiões: (i) instante em que a prova é oferecida pela parte, realizando-se a apreciação do julgador para acolhê-la ou não no processo; (ii) no saneamento processual, em que o destinatário examina as provas já trazidas aos autos, verificando a necessidade de produção de novos enunciados probatórios e, em caso positivo, fixando os pontos controvertidos; e (iii) ao proferir a decisão terminativa, momento culminante da valoração da prova, por compreender a totalidade do conjunto probatório. 59. A apreciação da prova realizada por ocasião do ato decisório terminativo do conflito exige análise crítica do conjunto probatório, comparando-se todas as provas, estabelecendo-se as que aparentem ser essenciais para a solução da causa e desconsiderando-se as que pareçam impertinentes, insuficientes ou fracas perante outras provas. Desse modo, o julgador seleciona os enunciados que considera convincentes, construindo o fato jurídico em sentido estrito, mediante emissão de norma individual e concreta. Tudo devidamente explicitado na fundamentação decisória.
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60. A análise do ciclo de positivação na esfera administrativa tributária revela a existência de dualidade terminológica: procedimento/processo. O procedimento consiste na forma de organização lógica e cronológica de determinados atos, necessária à consecução de outro ato, caracterizador do objetivo último do aplicador do direito. O processo, por sua vez, é verificado na ordenação de atos estatais para a solução de uma controvérsia. Firmadas essas premissas, concluímos tratar-se de procedimento o caminho perseguido para a realização do ato de lançamento ou de aplicação de penalidade pelo descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental, configurando processo, por sua vez, a composição administrativa dos conflitos fiscais. 61. Tomamos por lançamento tributário o ato administrativo mediante o qual se constituem o fato jurídico tributário e o correspondente vínculo obrigacional. Esse ato, muitas vezes, é precedido por um procedimento preparatório, padecendo a locução da ambiguidade procedimento/resultado, inerente a todas as ações. Optamos, contudo, por empregá-la para designar o ato, ação concreta estática, por consistir no enunciado normativo mediante o qual se realiza a incidência tributária, fazendo nascer o fato jurídico e a obrigação de pagar tributo. 62. Lançamento tributário não se confunde com o ato de aplicação de penalidade. Não obstante ambos possam ser veiculados em um único documento, denominado auto de infração, diferenciam-se em razão do fato integrante do seu suposto normativo: enquanto o antecedente da norma individual e concreta do lançamento equivale à descrição de fato lícito, nos termos do art. 3º do CTN, a aplicação de penalidade decorre da prática de ilícito, consistente no descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental. 63. A emissão de atos administrativos, dentre eles o ato de lançamento e o de aplicação de penalidade em razão do descumprimento de obrigação tributária ou de dever instrumental, depende da existência de determinados pressupostos: (i) competência, (ii) motivo, (iii) formalidades procedimentais,
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(iv) finalidade e (v) causa. Para que sejam regularmente constituídos, esses atos exigem a presença dos elementos (i) forma, (ii) motivação e (iii) conteúdo. O motivo e a motivação estão intrinsecamente relacionados com o tema das provas: enquanto o primeiro é pressuposto fático do ato, representado pelo evento que preenche os requisitos da hipótese normativa tributária, a motivação é o relato que, com fundamento na linguagem das provas, constitui o fato jurídico, introduzindo-o no ordenamento. 64. Os atos de lançamento e de aplicação de penalidade tributária devem respaldar-se em enunciados probatórios. Caso tal requisito não seja observado, o ato estará viciado em sua motivação, elemento indispensável à sua subsistência. Tratando-se de defeito verificado na estrutura interna do ato, caracterizando problema de ordem material, mostra-se inadmissível sua convalidação pela posterior juntada de provas. 65. A produção de provas pela Administração dá-se no âmbito de um procedimento administrativo, em que, conquanto inaplicável o princípio processual da ampla defesa, há de ser assegurado o contraditório, decorrente do direito de petição e do princípio da publicidade. 66. Sendo os atos de lançamento e de aplicação de penalidade vinculados e dependendo sua existência do suporte em provas, a autoridade administrativa possui verdadeiro dever de provar, e não mero ônus. Ainda que se esteja diante de hipóteses presuntivas, o imperativo de produzir provas continua dirigido à Administração: (i) tratando-se de presunção legal relativa, há de demonstrar a ocorrência do fato que desencadeia a relação inferencial presuntiva; (ii) sendo caso de presunção hominis, é preciso a comprovação dos indícios veementes e homogêneos, bem como do nexo causal entre estes e o fato presumido, com grau máximo de probabilidade (certeza). 67. Caso o contribuinte deixe de cumprir deveres instrumentais, de modo que inviabilize a quantificação do fato jurídico tributário por ele praticado, a autoridade administrativa deve
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mensurá-lo por meio de arbitramento. Trata-se de medida excepcional, só sendo cabível quando (i) o contribuinte tenha deixado de prestar declarações ou esclarecimentos, não tenha expedido os documentos a que esteja obrigado, ou quando, não obstante tenha realizado declarações ou esclarecimentos e expedido os documentos exigidos em lei, estes não mereçam fé; e (ii) tal inobservância ao dever de colaboração do contribuinte implique total impossibilidade de mensuração do fato jurídico tributário. Por isso, nas hipóteses de arbitramento, a produção probatória pela Administração é indeclinável, sendo necessária a demonstração do preenchimento dos mencionados requisitos. Além disso, o procedimento mediante o qual se realiza o arbitramento deve corresponder àquele previsto em lei, de forma que o valor arbitrado se apresente razoável, aproximando-se ao máximo daquele que provavelmente seria calculado com base nos regulares registros contábeis. 68. Para que seja possível a desconsideração, pelo Fisco, dos negócios jurídicos praticados pelo contribuinte, nos termos dos arts. 116, parágrafo único, e 149, VII, do CTN, é imprescindível a prova de que este agiu de forma simulatória, fingindo um negócio que na realidade não desejava, com a única finalidade de ludibriar a Administração. É mediante o emprego da linguagem das provas que se desconstitui o fato simulado, constituindo, em seu lugar, o fato que se pretendeu dissimular, servindo como motivação dos atos de lançamento tributário e de aplicação das penalidades correspondentes. 69. O contencioso administrativo tributário instala-se com a impugnação do sujeito passivo ao ato de lançamento ou de aplicação de penalidade. É nesse instante que se tem configurado o conflito. E, como a impugnação tem de ser instruída com os documentos em que se fundamentar, é lícito afirmar que a impugnação do contribuinte, ao mesmo tempo em que instaura o litígio, dá início à fase instrutória do processo administrativo. 70. O direito de contrapor-se à exigência fiscal e de produzir provas dos seus argumentos é regrado pelo ordenamento
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que, não admitindo a instabilidade das relações jurídicas, fixa os limites dentro dos quais as atividades devam ser realizadas. Assim ocorre com a instrução probatória. Concretizada a intimação do contribuinte relativamente à exigência fiscal, tem ele o prazo fixado em lei para, desejando opor-se a ela, apresentar impugnação. Nessa peça, deve mencionar, dentre outros, os motivos de fato e de direito em que se fundamenta, os pontos de discordância e as razões e provas que possuir, anexando, desde logo, os documentos em que se basear. Deixando o contribuinte de fazê-lo, somente estará habilitado a carrear novas provas ao processo se demonstrar (i) a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo de força maior; (ii) que o documento refere-se a fato ou direito superveniente; ou (iii) que a prova tem por finalidade contrapor-se a fatos trazidos aos autos depois de efetivada a impugnação. Se pretender ver realizada alguma diligência, o contribuinte precisa indicá-la e justificar sua necessidade, formulando os quesitos a serem respondidos. 71. Tendo em vista que o ordenamento brasileiro prescreve a adoção da sistemática da persuasão racional, toda e qualquer produção probatória deve ser apreciada pelo julgador para que este forme seu convencimento. Por isso, ter-se-á nulidade formal da decisão de primeira instância administrativa caso o julgador deixe de apreciar alguma prova produzida no tempo e forma prescritos em lei.
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