A Grande Viagem

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Jorge Semprun

A GRANDE VIAGEM Tradução de Celina Luz

Primeira edição brasileira : 1973 Copyright © by t:ditions Gallimard Traduzida de Le Grand Voyage Capa de Vera Duarte Reservados todos os direitos de tradução em língua portuguesa por BLOCH EDITORES S. A. Rua do Russell, 804 - Rio de Janeiro, GB - Brasil Printed in Brazil

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Para J A I M E, porque ele tem 16 anos.

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Há este amontoado de corpos no vagão, esta dor lancinante no joelho direito. Os dias, as noites. Faço um esforço e tento contar os dias, contar as noites. Isto me ajudará talvez a ver claramente. Quatro dias, cinco noites. Mas não consigo contar ou então há dias que se transformaram em noites. Tenho noites demais; noites para vender. Certa manhã, é certo, foi em uma que esta viagem começou. Todo esse dia. Depois uma noite. Ergo meu dedo na penumbra do vagão. O polegar para essa noite. E depois um outro dia. Estávamos ainda na França e o trem mal se mexeu. Ouvíamos vozes, às vezes, ferroviários, acima das botas das sentinelas. Esqueço esse dia, foi o desespero. Uma outra noite. Ergo um segundo dedo na penumbra. Um terceiro dia. Uma outra noite. Três dedos de minha mão esquerda. E este dia em que estamos. Quatro dias, então, e três noites. Avançamos para a quarta noite, o quinto dia. Para a quinta noite, o sexto dia. Mas nós é que avançamos? Estamos imóveis, amontoados uns sobre os outros, é a noite que avança, a quarta noite, em direção de nossos futuros cadáveres imóveis. Dou uma gargalhada: vai ser a Noite dos Búlgaros, mesmo. "Não te cansa", diz o rapaz. No turbilhão do embarque, em Compiegne, debaixo de gritos e pancadas, ele ficou do meu lado. Parece ter feito isso toda a sua vida, viajar com cento e dezenove outros sujeitos num vagão de mercadoria trancado com cadeado. "A janela", disse rapida9

mente. Em três pernadas e três cotoveladas, abriu passagem até uma das aberturas cruzadas de arame farpado. "Respirar é essencial, sabe, poder respirar." "Adianta o quê, rir" disse o rapaz. "Isso cansa a troco de nada." "Pensava na próxima noite", digo para ele. "Que babaquice", diz o rapaz. "Pensa nas noites passadas." "Você é a razão razoável." "Vá à merda", responde ele. Faz quatro dias e três noites que estamos encaixados um no outro, seu cotovelo em minhas costelas, meu cotovelo em seu estômago. Para que ele possa apoiar bem os dois pés no assoalho do vagão, sou obrigado a me equilibrar numa perna só. Para que eu possa fazer o mesmo, e sentir os músculos se descontraírem um pouco, ele se apóia também numa só perna. Ganhamos assim alguns centímetros e descansamos por vez. À nossa volta, é a penumbra, com respirações ofecrantes e empurrões súbitos, aflitos, quando um sujeito desaba. Qu:ndo nos contaram cento e vinte diante do vagão, senti um .frio nas costas, tentando imaginar o que seria. É pior ainda. Fecho os olhos, reabro os olhos. Não é um sonho. "Está vendo isso?" pergunto. "Bom?" diz ele "é o campo." . É o campo realmente. O trem avança lentamente numa subIda. Há neve, grandes pinheiros, fumaças calmas no céu cinzento. Ele olha um instante. "É o vale da Moselle." "Como você pode saber?" pergunto. Ele me olha pensativamente e ergue os ombros. "Por onde você quer que a gente passe?" Ele te~ razão, o rapaz, por onde vocês querem que a gente passe, para Ir sabe Deus aonde? Fecho os olhos e isso cantarola suavemente em. mim: vale .da Moselle. Eu estava perdido na penumbra, mas eIS que o unIverso se reorganiza à minha volta na tarde de inverno que cai. O vale da Moselle existe, é encont;ado nos .mapas, nos atlas. No colégio vaiávamos o professor de geografIa, certamente não é de lá que conservo uma lembrança da Moselle. ~m todo aquele an~, acho que não aprendi uma só lição de geografl~. Bo~che_z me ?dlava. Como é possível que o primeiro aluno em filosofIa nao se mteresse por geografia? Não tinha nada que ver, é claro. Mas ele me odiava mortalmente. Sobretudo depoi~ daquela história das estradas de ferro da Europa central. Eu havIa aberto o jogo e até esfregado na cara dele os nomes dos

trens. Lembro do Harmonica Zug, esfreguei-lhe entre outros o Harmonica Zug. "Bom dever", notou ele, "mas baseado exclusivamente demais em lembranças pessoais." Então, em plena aula, quando ele nos devolveu as folhas, observei que não tinha nenhuma recordação pessoal da Europa central. Europa central não conheço. Simplesmente havia aproveitado o diário de viagem de Barnabooth. O senhor não conhece A. O. Barnabooth, Professor Bouchez? Para dizer a verdade, continuo sem saber se conhecia A. O. Barnabooth. Ele teve uma crise e eu quase fui parar num conselho de disciplina. Mas eis o vale da Moselle. Fecho os olhos, saboreio esta escuridão que se faz em mim, saboreio esta certeza do vale da Moselle, fora, sob a neve. Essa certeza ofuscante em tons cinzentos, grandes pinheiros, povoados graciosos, fumaças calmas no céu de inverno. Faço um esforço para conservar os olhos fechados durante o maior tempo possível. O trem avançava suavemente com barulho monótono de eixos. Apita, de repente. Isso deve despedaçar a paisagem de inverno, como despedaça meu coração. Abro os olhos rapidamente para surpreender a paisagem, pegá-la desprevenida. Ela está lá. Está lá, simplesmente, não tem outra coisa a fazer. Eu poderia morrer agora, de pé no vagão cheio de futuros cadáveres, nem por isso ela estaria menos lá. O vale da Moselle estaria lá, diante de meu olhar morto, suntuosamente belo como um Brueghel de inverno. Podíamos morrer todos, eu, esse rapaz de Semur-en-Auxois, e o velho que berrava há pouco, sem parar, seus vizinhos devem tê-lo silenciado, não o ouvimos mais, e a paisagem continuaria lá, diante de nossos olhares mortos. Fecho os olhos, abro os olhos. Minha vida se resume a esse movimento de pálpebras que me desvenda o vale da Moselle. Minha vida fugiu de mim, flutua sobre esse vale de inverno, é esse vale, suave e morno no frio do inverno. "Está brincando de quê?", pergunta o rapaz de Semur. Olha para mim atentamente, tenta compreender. "Está sentindo alguma coisa?" me pergunta. "Nada", digo. "Por quê?" "Você está piscando os olhos como uma senhorita", afirma. "Um verdadeiro cinema." Não ligo, não quero me distrair. O trem faz a curva nos trilhos pelo flanco da colina. O vale se estende. Não quero me deixar distrair desta alegria tranqüila. A Moselle, suas encostas, seus vinhedos sob a neve, suas aldeias de viticultores sob a neve, entram por meus olhos. Há coisas, seres ou objetos dos quais se diz que saem pelos buracos do

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nariz. t uma expressão francesa que sempre me divertiu. São os objetos que atrapalham, os seres que avassalam, que rejeitamos, metaforicamente, pelos buracos do nariz. Eles retomam sua existência fora de mim, tirados de mim, trivializados, decaídos, por minha rejeição. Os buracos de meu nariz tomam-se o derivativo de um orgulho desmesurado, os próprios símbolos de uma consciência que se imagina soberana. Esta mulher, este amigo, esta música? Acabados, não falemos mais, pelos buracos do nariz. Mas a Moselle inunda meu olhar, imbebe de águas lentas minha alma semelhante a uma esponja. Não sou nada mais que essa Moselle que invade meu ser pelos olhos. t preciso que eu não me distraia desta alegria selvagem. "Faz-se bom vinho nesta região", diz o rapaz de Semur. Ele quer que eu fale. Certamente não adivinhou que estou me deixando submergir na Moselle, mas sente algo estranho em meu silêncio. Quer que sejamos sérios, o rapaz, não é uma brincadeira esta viagem na direção de um campo da Alemanha, não há por que piscar os olhos como um babaca diante da Moselle. t uma região de vinhedos, então ele se agarra aos vinhedos da MoseBe, sob a neve fina e porosa. Vinhedos é sério, ele conhece. "Um vinhozinho branco", diz o rapaz. "Não tão famoso quanto o chablis." Ele se vinga, é natural. O vale da Moselle nos mantém fechados em seus braços, é a porta do exílio, uma estrada sem volta, talvez, mas o vinhozinho branco não vale o chablis. t um consolo, de certa maneira. Ele queria que falássemos do chablis, eu não falarei do chablis, não agora em todo o caso. Ele sabe que temos recordações comuns, que talvez até nos encontramos sem nos conhecer. Ele estava no maqui em Semur, quando fomos, Julien e eu, levar-lhes armas, depois do duro golpe da serraria, em Semur. Ele gostaria que evocássemos lembranças comuns. São lembranças sérias, como os vinhedos e os trabalhos dos vinhedos. São lembranças sólidas. Ele tem medo de ficar só, quem sabe, de repente? Não acredito. Não ainda, pelo menos. t de minha solidão que tem medo, certamente. Pensou que eu afrouxava, subitamente, diante dessa paisagem dourada sobre um fundo branco. Pensou que essa paisagem tinha me tocado em algum ponto sensível, que eu afrouxava, que eu amolecia subitamente. Tem medo de me deixar sozinho, o rapaz de Semur. Oferece-me a lembrança do chablis, quer que bebamos juntos o vinho novo das lembranças comuns. A espera na floresta, com os SS emboscados nas estradas, depois do golpe da serraria. As saídas noturnas, em veículos de vidros espatifados, 12

o fuzil-metralhadora apontado para o ombro. Lembranças de homem, melhor dizendo. / Mas eu não afrouxo, velho. Não interprete mal meu silêncio. Falaremos depois. Era bonito, Semur, em setembro. Falar~mos .de Semur. Há uma história, aliás, que ainda não te conteI. Juhen ficava chateado com a idéia de perder aquela moto. Uma Gnôme et Rhône potente, quase nova. Tinha ficado na serraria, naquela noite, quando os SS chegaram reforçados e que vocês devem ter percebido nos altos bosques. Julien ficava chat:ado. de perder aquela moto. Então, fomos procurá-la. Os alemaes unham estabelecido um posto acima da serraria, do outro lado da água. Fomos lá em pleno dia, esgueirando-nos nos hangares e entre as pilhas de madeira. A moto estava lá, escondida sob uma lona, com o tanque meio cheio de gasolina. Nós a empurramos até a estrada. Com o barulho da partida, os alemães, claro, iam reagir. Havia um pedaço dc estrada em ladeira íngreme, completamente descoberto. Do alto de seu observatório, os SS iam atirar em nós como em tiro ao alvo. Mas ele queria aquela moto, Julien, queria de verdade. Eu te contarei essa história daqui a po~co, você vai ficar contente de saber que não se perdeu a moto. Nos a levamos até o maqui do Tabou nas colinas de Larrey, entre Laignes e Chatillon. Mas não contarei a morte de Julien, por que te contar a morte de Julien? De qualquer maneira não sei ainda que Julien está morto. Julien ainda não está morto, está na moto, comigo, corremos em direção de Laignes no sol de outono e as patrulhas da Feld inquietam-se com essa moto fantasma nas estradas do outono, atiram cegamente no barulho fantasma de moto nas. estradas douradas do outono. Não te contarei a morte de Julien, haveria mortes demais a contar. Não poderei te contar como Julien morreu, não o sei ainda, e você estará morto antes do fim desta viagem. Antes que voltemos desta viagem. Estarrambs todos mortos neste vagão, empilhados mortos de pé, cento e vinte neste vagão, e no entanto haveria o vale. da Moselle diante de nossos olhares mortos. Não quero me deIxar distrair desta certeza fundamental. Abro os olhos. Eis o vale facetado por um trabalho secular, os vinhedos dispostos nas encostas sob uma camada fina de neve partida, estriada por traços amarr~nzados. Meu olhar não é nada sem esta paisagem. Eu estaria cego sem esta paisagem. Meu olhar não des~obre esta p~i­ sagem, ele vive por esta paisagem. t a luz desta palsage~ q~e lDventa meu olhar. t a história desta paisagem, a longa hlstóna da criação desta paisagem pelo trabalho dos viticultores da Moselle, que dá a meu olhar, a todo o meu eu, sua consistência real, sua 13

espessura. Fecho os olhos. Só há o barulho monótono das rodas sobre os trilhos. Só há esta realidade ausente da Moselle ausente de mim, mas presente em si mesma, tal como nela mes~a a fizeram os viticultores da Moselle. Abro os olhos, fecho os olhos, minha vida se resume a um bater de pálpebras .... / "Você está tendo visões?", pergunta o rapaz de Semur. "Justamente", respondo "justamente não." "Parece, no entanto. Parece que você não acredita no que está vendo." "Justamente, justamente não." "Ou então que você vai revirar os olhos." Ele me olha circunspectamente. '·Não liga." "Tudo bem?", me pergunta. "Tudo bem, tenha certeza. Tudo bem, na realidade." De repente há gritos no vagão, berros. Um empurrão brutal de toda a massa inerte de corpos empilhados nos cola literalmente à parede do vagão. Nossos rostos tocam o arame farpado que cruza a abertura. Olhamos para o vale da Moselle. "Ela é bem trabalhada, esta terra", diz o rapaz de Semur. Olho a terra bem trabalhada. "Não é como na minha, claro", diz ele, "mas é trabalho bem feito. " "Viticultores são viticultores." Ele vira levemente o rosto para mim e caçoa. "Você sabe coisas", diz. "Eu queria dizer." "Claro", diz impaciente. "Você queria dizer, é claro que você queria dizer." "Seu vinho não vale o chablis, você disse?" Ele me olha de lado. Deve pensar que minha pergunta é uma armadilha. Acha que sou bem complicado, o rapaz de Semur. Mas não é uma armadilha. :É uma questão de reatar o fio de nossos quatro dias e três noites de conversa. Não conheço ainda o vinho da Moselle. Só mais tarde é que experimentei, em Eisenach. Por ocasião da volta desta viagem. Num hotel de Eisenach, onde tinha sido instalado o centro de repatriamento. Foi uma noitada curiosa essa primeira noitada de repatriamento. De ficar enojado. Na realidade, estávamos sobretudo deslocados. Era necessário, certamente, esse tratamento para nos habituar de novo ao mundo. Um hotel de Eisenach, com oficiais americanos do 111 Exército, franceses e ingleses de missões militares enviadas até o campo. O pessoal alemão, todos velhos fantasiados de

maitres d'hôtel e garçons. E garotas. Montes de garotas alemãs, francesas, austríacas, polonesas, não sei quê. Uma noitada certa, no fundo, muito comum, cada um representando seu papel e fazendo seu trabalho. Os oficiais americanos mascando seus chicletes e falando entre si, bebendo "diretamente no gargalo de suas próprias garrafas de uísque. Os oficiais ingleses, solitários, ar aborrecido por estarem no Continente, naquela promiscuidade. Os oficiais franceses, cercados de garotas, virando-se muito bem para se fazerem entender por todas aquelas garotas de origens diversas. Cada um fazendo seu trabalho. Os maitres d'hôtel alemães fazendo seu trabalho de maitres d'hôtel alemães. As garotas de origens diversas fazendo seu trabalho de garotas de origens diversas. E nós, fazendo nosso trabalho de resgatados dos campos da morte. Um tanto quanto deslocados, claro, mas muito dignos, cabeça raspada, calças de algodão listrado enfiadas em botas que havíamos recuperado em lojas SS. Deslocados, mas, como devíamos, contando nossas historinhas aos oficiais que bolinavam garotas. Nossas derrisórias lembranças do crematório e chamadas intermináveis sob a neve. Em seguida sentamos em volta de uma mesa, para jantar. Havia uma toalha branca na mesa, talheres de peixe, talheres de carne, talheres de sobremesa. Copos de forma e cor diferentes para o vinho branco, para o vinho tinto, para a água. Rimos tolamente diante dessas coisas inabituais. E bebemos o vinho da Moselle. Não valia o chablis, esse vinho da Moselle, mas era vinho da Moselle. Repito minha pergunta, que não é uma armadilha. Não tinha bebido ainda o vinho da Moselle. "Como você sabe que esse vinho daqui não vale o chablis?" Ele levanta os ombros. :É a própria evidência. Isso não vale o chablis, é a evidência. Ele me provoca, para encerrar. "Escuta, velho, não seja chato. :É preciso que a estrada de ferro siga os vales. Por onde queria você que passássemos?" "Claro", digo, conciliante. "Mas por que a Moselle?" "Estou te dizendo que é caminho." "Mas ninguém sabe aonde vamos." "Sabe sim, sabe. Como é que você passava teu fodido tempo em Compiegne? A gente sabe que vai para Weimar." Em Compiegne, eu passava meu fodido tempo dormindo. Em Compiegne eu "estava sozinho, não conhecia ninguém, e além disso a partida do transporte estava anunciada para o dia seguinte. Passei meu fodido tempo dormindo. Em Auxerre havia companheiros de vários meses, a prisão tinha se tornado habitável. Mas

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em Compiegne éramos milhares, era a bagunça total, eu não conhecia ninguém. "Que sono, hem", me disse ele. "Eu não tinha sono", respondo, "não particularmente. Não tinha nada mais para fazer." "E você conseguia dormir, com a bagunça que havia em Compiegne naqueles dias?" "Conseguia. " Ele me explica em seguida que ficou várias semanas em Compiegne. Teve tempo de saber. Era a época das partidas maciças para os campos. Informações sumárias conseguiam passar. Os campos da Polônia eram os mais terríveis, as sentinelas alemãs falavam disso, parece, baixando a voz. Havia um outro campo, na Áustria, para onde era preciso igualmente ter esperança de não ir. Havia depois montes de campos, na própria Alemanha, que mais ou menos se equivaliam. Na véspera da partida soubemos que nosso comboio dirigia-se para um desses, perto de Weimar. E o vale da Moselle era o caminho, simplesmente./ / "Weimar", digo, "é uma cidade de interior." "Todas as cidades são cidades de interior", me diz ele, "menos as capitais." Rimos juntos, já que o bom senso é a coisa do mundo melhor compartilhada. "Eu queria dizer, uma cidade provinciana." "É isso", diz ele, "alguma coisa como Semur, é isso que você insinua." "Talvez maior que Semur, não sei, certamente maior." "Mas em Semur não há campo" diz ele, hostil. "Por que não?" "Como, por que não? Porquê. Você quer dizer que poderia haver um campo em Semur?" "E por que não? É uma questão de circunstâncias." "Merda para as circunstâncias." "Há campos na França", explico, "e poderia haver em Semur." "Há campos na França?" Ele me olha espantado. "Claro." "Campos franceses na França?" "Claro", repito, "não campos japoneses. Campos franceses, na França." "Há em Compiegne, é verdade. Mas não chamo aquilo um campo francês." I 16

"Há um em Compiegne, que foi um campo francês na França, antes de ser um campo alemão na França. Mas há outros que nunca deixaram de ser campos franceses na França."........... Falo a ele de Argeles, Saint-Cyprien, Gurs, Châteaubriant: "Merda", exclama. . Fica derrotado com essa novidade. Mas logo recomeça. "Velho, é preciso que você me explique isso", me diz. Ele não duvida de minha afirmação, da existência desses campos franceses na França. Mas também não se deixa embalar por essa descoberta. Será preciso que eu explique a ele. Ele não duvida de minha afirmação, mas ela não se enquadra na idéia que ele fazia das coisas. Uma idéia muito simples que ele fazia das coisas, com todo o bem de um lado e todo o mal do outro, prático como tudo. Não teve dificuldade em expô-la para mim em poucas frases. É filho de camponeses quase prósperos, tinha querido deixar o campo, tornar-se mecânico, quem sabe ajustador, torneiro, fresador, não importa, bonito trabalho em bonitas máquinas, me disse. E depois houve a STO. É evidente que não ia deixar-se levar para a Alemanha. A Alemanha era longe, e depois não era a França, e depois, ora, a gente não vai trabalhar para pessoas que ocupam nosso país. Tinha-se tornado refratário, então, tinha aderido ao maqui. O resto veio simplesmente, como um encadeamento lógico. "Sou patriota, ora", me disse. Ele me interessava, esse rapaz de Semur. Era a primeira vez que eu via um patriota em carne e osso. Porque ele não era nacionalista, não, era patriota. Nacionalistas, eu conhecia muitos. O Arquiteto era nacionalista. Tinha o olhar azul, direto e franco, fixado na linha azul dos Vosges. Era nacionalista, mas trabalhava para Buckmaster e o War Office. O rapaz de Semur era patriota, não nacionalista por qualquer tostão. Era meu primeiro patriota em carne e osso. "É isso", digo, "eu explico depois para você." "Por que depois?" "Estou olhando a paisagem", respondo, "deixa eu olhar a paisagem. " "São os campos", disse com ar desdenhoso. Mas me deixa olhar os campos. O trem apita. Um apito de locomotiva obedece sempre a razões exatas, imagino. Há uma significação concreta. Mas de noite, nos quartos de hotel que alugamos perto da estação com nome falso e quando custamos a pegar no sono, por causa de tudo que se pensa, ou que se pensa sozinho nos quartos de hotel desconhecidos, os apitos das locomotivas assumem uma ressonân17

cia inesperada. Perdem sua significação concreta, racional, tornam-se um chamado ou uma advertência incompreensíveis. Os trens apitam na noite e a gente se vira na cama, vagamente inquieto. Ê uma impressão alimentada por má literatura, certamente, mas nem por isso menos real. Meu trem apita no vale da Moselle e vejo desfilar lentamente a paisagem de inverno. A noite cai. Pessoas passeiam na estrada, na beira da via férrea. Vão para aquela aldeiazinha coroada de fumaças calmas. Talvez dêem uma olhadela para este trem, um olhar distraído; é só um trem de mercadoria como vários outros. Elas vão para suas casas, não têm nada a ver com este trem, têm sua vida, suas preocupações, suas próprias histórias. Percebo subitamente, vendo-as andar nesta estrada, como se fosse uma coisa muito simples, que estou dentro e eles fora. Uma profunda tristeza física me invade. Estou dentro, faz meses que estou dentro, e esses outros estão fora. Não é somente o fato de eles estarem livres, haveria muito a dizer sobre isso. É simplesmente que eles estão fora, que para eles há estradas, sebes ao longo dos atalhos, frutos nas árvores frutíferas, cachos de uvas nos vinhedos. Estão fora, simplesmente, enquanto eu estou dentro. Não é tanto o fato de não estar livre para ir aonde quero, nunca se é totalmente livre para ir aonde se quer. Nunca fui tão livre para ir aonde queria. Era livre para ir aonde era preciso que eu fosse, e era preciso que eu fosse neste trem, já que era preciso que eu fizesse as coisas que me conduziram a este trem. Era livre para ir neste trem, completamente livre e aproveitei bem essa liberdade. Estou aqui, neste trem. Estou aqui livremente, já que poderia não estar aqui. Mas, no entanto, não é nada disso. Há o fora e o dentro, e eu estou dentro. É uma sensação de tristeza física que se desencadeia na gente, nada mais" I Mais tarde, esta sensação tornou-se mais violenta ainda. Em certa ocasião tornou-se intolerável. Agora, olho essas pessoas que passeiam e não sei ainda que esta sensação de estar dentro vai se tornar intolerável. Eu deveria talvez falar só desses que passeiam e dessa sensação, tal como se apresentou naquele momento, no vale da Moselle, para não tumultuar a ordem do relato. Mas sou eu que escrevo esta história e faço o que quero. Poderia só falar desse rapaz de Semur. Ele fez a viagem comigo, morreu nela, é uma história, no fundo, que não diz respeito a ninguém. Mas decidi falar dela. Por causa de Semur-en-Auxois, primeiro, por causa desta coincidência de fazer esta viagem com um rapaz de Semur. Gosto muito de Semur, onde nunca mais voltei. Gostava muito de Semur, no outono. Estivemos lá, Julien e eu, com três malas cheias de plástico e metralhadoras sten. Os ferroviários

nos tinham ajudado a escondê-las, esperando que entrássemos em contato com o maquio Depois as levamos para o cemitério, lá é que os rapazes foram procurá-las. Era bonito, Semur no outono. Ficamos dois dias com os rapazes, na colina. Tempo bonito, era setembro de uma ponta à ·outra da paisagem. Decidi falar desse rapaz de Semur, por causa de Semur, e por causa desta viagem. Ele morreu ao meu lado, no fim da viagem, acabei essa viagem com seu cadáver de pé, apoiado em mim. Decidi falar dele, ninguém tem nada com isso, ninguém tem nada que dar palpite. É uma história entre esse rapaz de Semur e eu. De qualquer maneira, quando descrevo esta impressão de estar dentro que me invadiu no vale da Moselle, diante dos que passeiam pela estrada, não estou mais no vale da Moselle. De~ zesseis anos são passados. Não posso mais me agarrar àquele instante. Outros instantes vieram se acrescentar àquele, formando um todo com esta sensação violenta de tristeza física que me invadiu no vale da Moselle. É no domingo que aquilo podia acontecer. Uma vez terminada a chamada de meio-dia, tínhamos horas diante de nós. Os alto-falantes do campo transmitiam música suave em todos os dormitórios. E na primavera é que esta sensação de estar dentro podia tornar-se intolerável. Eu ia além do campo de quarentena, no bosquezinho ao lado do revier. No limiar das árvores, parava. Mais longe só havia uma faixa de terra bem destacada, diante das torres de vigia e da barreira de arame farpado eletrificado. Via-se a planície da Turíngia, rica e verdejante. Via-se a aldeia na planície. Via-se a estrada que ladeava o campo por uns cem metros. Via-se os que passeavam na estrada. Era a primavera, era domingo, as pessoas passeavam. Havia crianças, às vezes. Corriam na frente, gritavam. Havia mulheres, também, que paravam na beira da estrada para colher as flores da primavera. Eu estava lá, de pé, no limiar do bosquezinho, fascinado por aquelas imagens da vida do lado de fora. Era bem isso, havia o dentro e o fora. Eu esperava lá, na aragem da primavera, a volta dos que passeavam. Voltavam para suas casas, os garotos estavam cansados, andavam direitinho ao lado dos pais. Eu ficava só. Só restava o dentro e eu estava dentro. Mais tarde, um ano mais tarde, e era de novo a primavera, era o mês de abril, eu também andei nessa estrada e estive naquela aldeia. Estava fora mas não conseguia experimentar essa alegria de estar fora. Tudo estava acabado, íamos refazer esta viagem no sentido inverso, mas talvez não se refaça jamais esta

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viagem no sentido inverso, talvez não se apague jamais esta viagem. Não sei, na verdade. Durante dezesseis anos tentei esquecer esta viagem e esqueci esta viagem. NinguéI? pensa mais! à minha volta, que fiz esta viagem. Mas, na realidade, esquecI esta viagem mesmo sabendo pertinentemente que um dia teria que refazer esta viagem. Em cinco anos, em dez anos, em quinze anos, seria preciso que eu refizesse esta viagem. Tudo estava lá, me esperando, e o vale da Moselle, e o rapaz de Semur, e essa aldeia na planície da Turíngia, e essa fonte na praça da aldeia onde ainda vou beber um longo gole de água fresca. Talvez não se refaça essa viagem no sentido inverso. "O que é que você está olhando agora?", diz o rapaz de Semur. "Não se vê mais nada." Ele tem razão, a noite caiu. "Eu não olhava mais", reconheço. "Mal, isso", diz secamente. "Mal, como?" "De todas as maneiras", explica. "Olhar sem ver nada, sonhar de olhos abertos. Mal, tudo isso." "Recorda-se?" "Também, recordar também. Distrai." "Distrai do quê?", pergunto. Esse rapaz de Semur não pára de me surpreender. "Isso distrai da viagem, afrouxa. É preciso resistir." "Resistir para quê? Para contar essa viagem?" "Não, para voltar", diz, severamente. "Seria muito idiota, você não acha?" "Sempre há uns que voltam, para contar aos outros." "Estou nessa", diz. "Mas não para contar, não estou ligando. Para voltar, simplesmente." "Você não acha que é preciso contar?" "Mas não há nada a dizer, velho. Cento e vinte sujeitos num vagão. Dias e noites de viagem. Velhos que se perdem e começam a berrar. Quero saber o que há para contar." "E no fim da viagem?", pergunto. Sua respiração torna-se ofegante. "No fim?" Não quer pensar nisso, está claro. Concentra-se nos problemas desta viagem. Não quer pensar no fim desta viagem. "Cada coisa a seu tempo", diz finalmente. "Você não acha?" "Sim, você tem razão. Era uma pergunta à toa." "Você faz perguntas assim o tempo todo", diz. "É minha função", respondo.

Ele não diz mais nada. Deve perguntar a si próprio que gênero de trabalho pode ser esse, que obriga a fazer perguntas assim o tempo inteiro. "Vocês são uns babacas", diz a voz atrás de nós. "Babaquinhas". Não respondemos, estamos acostumados. "Vocês estão aí, como babacas, como babaquinhas de merda, não param nunca de contar suas vidas. Uns merdas, uns bundas-sujas." "Ouço vozes", diz o rapaz de Semur. "Vozes de além-túmulo", esclareço. Rimos os dois. "Vocês podem rir, brutos, podem se embebedar de palavras. Mas a intenção é boa. Contar esta viagem? Deixem-me gozar, idiotas. Vocês vão morrer como ratos." "Então, nossas vozes serão também vozes de além-túmulo", diz o rapaz de Semur. Rimos mais ainda. A voz espuma de raiva e nos insulta, com método. "Quando penso", continua a voz, "que é por causa de sujeitos como vocês que eu estou aqui. Uns porcos. Brincam de soIdadinhos e nós é que pagamos pelo estrago. Babaquinhas." É assim quase desde o começo da viagem. Pelo que compreendemos, o tipo tinha uma propriedade na região do maqui. Foi preso numa batida geral, quando os alemães quiseram lim-: par a região . . "Correm de noite pelas estradas", diz a voz cheia de ódio, "dinamitam os trens, bagunçam tudo, e nós é que pagamos o pato." "Esse sujeito está começando a me encher", diz o rapaz de Semur. "Me acusarem, a mim, de ter fornecido víveres a esses sujos. Antes cortar a mão direita, antes denunciá-los, é isso que eu deveria ter feito." "Chega", diz o rapaz de Semur. "Te cuida para não te cortarem outra coisa, os colhões em rodelinhas é que vão te cortar, viu?" A voz berra de horror, de raiva, de incompreensão. "Fecha", diz o rapaz de Semur, "fecha ou eu te bato." A voz se cala. No começo da viagem o rapaz de Semur já bateu nele, bem. O sujeito sabe o que pode esperar. Foi algumas horas depois da partida. A gente mal começara a perceber que não era uma

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piada de mau gosto, que era preciso mesmo ficar dias e noites assim, apertados, esmagados, sufocados. Os velhos já começavam a se afligir em voz alta. Nunca conseguiriam resistir, iam morrer. Tinham razão, aliás, alguns iam morrer. E depois há vozes que pedem silêncio. Um sujeito jovem - supomos que fazia parte de um grupo - disse que seus camaradas e ele tinham conseguido camuflar as ferramentas. Iam serrar o assoalho do vagão, logo que a noite caísse. Os que quisessem tentar a fuga com eles, era só se aproximar do buraco e cair bem achatado no leito da estrada, quando o trem avançasse lentamente. O rapaz de Semur me olhou e eu fiz sim com a cabeça. Estávamos no golpe, claro que estávamos. "Os caras são peitudos", murmurou o rapaz de Semur. "Passar as ferramentas por todas as revistas, é muito peito." No silêncio que se fez, o rapaz de Semur falou: "Certo, velhos, vamos lá. Quando estiverem prontos, avisem, que nos aproximamos." Mas essa frase provocou um coro de protestos. A discussão durou uma eternidade. Todo mundo se meteu. Os alemães iam descobrir a tentativa de fuga e fazer represálias. E depois, mesmo se a fuga desse certo, todo mundo não poderia partir; os que ficassem seriam fuzilados. Houve vozes trêmulas que suplicaram, pelo amor de Deus, que não se tentasse uma tal loucura. Houve vozes trêmulas que nos falaram de seus filhos, seus lindos filhos que iam ficar órfãos. Mas fizemos calar essas vozes. Foi nessa discussão que o rapaz de Semur bateu no sujeito. Aquele não disfarçava. Disse diretamente que, se começássemos a serrar, ele chamaria as sentinelas alemães na próxima parada do trem. Olhamos o sujeito, que estava bem atrás de nós. Tinha cara disso, sem dúvida. Então o rapaz de Semur bateu nele. Houve movimentação, empurramos uns aos outros. O sujeito desabou, a cara em sangue. Quando ficou de pé, viu-nos à sua volta, meia dúzia de caras hostis. "Você entendeu", disse-lhe um homem de cabelos grisalhos, "compreendeu, seu sujo? Um gesto suspeito, um só, e juro que te estrangulo." O sujeito compreendeu. Compreendeu que nunca teria tempo para chamar uma sentinela alemã, que antes estaria morto. Limpou o sangue do rosto e seu rosto era o próprio ódio. "Fecha", diz o rapaz de Semur agora a ele, "fecha ou bato."

Três dias se passaram desde essa discussão, três dias e três noites. A fuga fracassou. Rapazes de um outro vagão tomaram a dianteira no decorrer da primeira noite. O trem parou com um rangido. Ouvimos as rajadas de metralhadoras e projetores invadindo a paisagem. Depois os SS vieram revistar, vagão por vagão. Fizeram-nos descer a poder de pancadas, revistaram os sujeitos um a um e nos fizeram tirar os sapatos. Fomos obrigados a jogar fora as ferramentas, antes que eles chegassem ao nosso vagão. "Escuta", disse o rapaz de Semur num sopro. Não conhecia essa voz, baixa e rouca. "Sim?" pergunto. "Escuta, precisamos tentar ficar juntos. Você não acha?" "Estamos juntos." "Quero dizer depois, quando chegarmos. Precisamos ficar juntos quando chegarmos." "Vamos tentar." "A dois, será mais fácil, você não acha? Resistiremos melhor", diz o rapaz de Semur. "f: preciso mais gente junto. A dois somente, não vai ser fácil." "Talvez", diz o rapaz. "Mas já é alguma coisa." f: a noite que cai, a quarta noite que acorda os fantasmas. No amontoado negro do vagão, os sujeitos se reencontram todos sós, com sua sede, seu cansaço, sua angústia. Faz-se um silêncio pesado, cortado por algumas queixas indistintas, contínuas. Todas as noites é a mesma coisa. Mais tarde, haverá gritos aflitos dos que pensam morrer. Gritos de pesadelo, que é preciso fazer parar de qualquer jeito. A gente sacode o sujeito que berra, convulsionado, boca aberta. Dá uma bofetada, se preciso. Mas agora ainda é a hora perturbadora das lembranças. Elas sobem à garganta, sufocam, amolecem as vontades. Expulso as lembranças. Tenho vinte anos, merda para as lembranças. Há outro método também. f: aproveitar esta viagem para fazer a triagem. Fazer o balanço das coisas que contarão em sua vida, das que não contam nada. O trem apita no vale da Moselle, e eu deixo partir as lembranças leves. Tenho vinte anos, posso ainda me permitir o luxo de escolher em minha vida as coisas que vou assumir e as que vou rejeitar. Tenho vinte anos, posso apagar de minha vida montes de coisas. Em quinze anos, quando escrever esta viagem, será impossível. Imagino, pelo menos. As coisas contarão não somente na vida, mas contarão por si mesmas. Em quinze anos, as lembranças serão menos leves. O

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peso da vida será talvez algo de irremediável. Mas esta noite, no vale da Moselle, com o trem que apita e meu amigo de Semur, tenho vinte anos e merda para o passado./ O que conta mais na vida são os seres que você conheceu. Compreendi isso naquela noite, de uma vez por todas. Deixei partir as coisas leves, as lembranças agradáveis, mas que só me diziam respeito. Um penedo azul, em Guadarrama. Um raio de sol, na Rua d'Ulm. Coisas leves, cheias de uma felicidade fugaz mas absoluta. Estou dizendo, absoluta. Mas o que conta mais na vida são certos seres que você conheceu. Os livros, a música, é diferente. Por mais enriquecedores que sejam, não passam de meios de aceder aos seres. Isto, quando são verdadeiros, claro. Os outros são ressecadores, no fim das contas. Naquela noite, coloquei esta questão claramente, de uma vez por todas. O rapaz de Semur caiu num sono povoado de sonhos. Murmurava coisas que não tenho a intenção de repetir. :f: fácil dormir de pé, quando se está preso na ganga ofegante de todos esses corpos apertados no vagão. O rapaz de Semur dormia de pé, num murmúrio angustiado. Eu sentia simplesmente um peso maior de seu corpo. Rua Blainville, em meu quarto, ficávamos a três, durante horas, para ,fazer também a triagem entre todas as coisas deste mundo. O quarto da Rua Blainville contará em minha vida, eu já sabia, mas naquela noite, no vale da Moselle, inscrevi-o definitiva~ente no haver do balanço. Fazemos uma longa volta para chegar às coisas reais, através de pilhas de livros e idéias recebidas. Sistematicamente, com ferocidade, passávamos pelo crivo as idéias recebidas. Após essas longas sessões é que deSCÍamos para o Coq d'Or, nos dias de júbilo, para devorar repolho recheado. O repolho recheado estalava sob os dentes longos de nossos dezoito anos. Nas mesas vizinhas, coronéis russos brancos e lojistas de Smolensk empalideciam de raiva, lendo os jornais por ocasião da grande retirada do Exército Vermelho, no verão de 41. Para nós, as coisas nesse momento já eram muito claras, na prática. Mas nossas idéias estavam retardadas. Era preciso que puséssemos ~ossas idéias de acordo com a prática do verão de 41, cuja clandade era ofuscante. :f: uma tarefa complicada, apesar das aparências, colocar de acordo idéias retardatárias com uma prática em pleno desenvolvimento. Eu conhecera Michel na Escola Normal Superior, e continuamos amigos, quando eu a tinha largado, não podendo mais conciliar a vida estudiosa, abstrata e totêmica da Escola, com a necessidade de ganhar minha vida. E Michel tinha trazido Freiberg, cujo pai tinha sido amigo de sua família,

um universitário alemão, israelita, cujo traço tinha-se perdido no êxodo de 1940. Nós o chamávamos Von Freiberg zu Freiberg, pois seu nome era Hans, e nós pensávamos no diálogo de Giraudoux. Vivíamos todas as coisas através dos livros. Mais tarde, pa.(a chateá-lo, quando ele tinha tendência a especificar demais as coisas, eu qualificava Hans de austro-marxista. Mas era uma injúria gratuita, só para mexer com ele. Na realidade, é a ele que devemos, em grande parte, não ter ficado no meio do caminho, em nossa recolocação do mundo em questãoj Michel era obcecado pelo kantismo, como uma mariposa pela claridade das lâmpadas. Nessa época era comum entre os universitários franceses. Ainda hoje, aliás, olhem à sua volta, falem com as pessoas. Vocês encontrarão vários comerciantes, garçons, cabeleireiros, desconhecidos nos trens, que são kantianos sem o saber. Mas Hans nos precipitou de cabeça na leitura de Hegel. Em seguida, tirava triunfalmente de sua pasta livros de que nunca tínhamos ouvido falar, e que ele arranjava não sei onde. Tínhamos lido Masaryk, Adler, Korsch, Labriola. Geschichte UM Klassenbewusstsein nos tomou mais tempo, por causa de Michel, que não queria mais largar, apesar das observações de Hans, colocando em relevo toda a metafísica subjacente das teses de Lukacs. Eu me lembro de uma coleção de exemplares da revista Unter dem Banner des Marxismus, que dissecamos como escoliastas aplicados. As coisas sérias começaram com os tomos da Marx-Engels-Gesamte-Ausgabe, que Hans também tinha, claro, e que chamava a .oMega". Chegados lá, a prática retomou seus direitos de um só golpe. Não nos encontramos mais na Rua Blainville. Viajamos nos trens noturnos para ir fazer descarrilhar os trens noturnos. íamos à floresta de Othe, no maqui do Tabou, os pára-quedas abriam-se sedosamente nas noites de Bourgogne. Nossas idéias sendo pouco a pouco clareadas alimentavam-se na prática cotidiana.

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o trem apita e o rapaz de Semur tem um sobressalto. "O quê?", diz. "Nada", respondo. "Você não disse nada?" "Nada", respondo. "Pensei", disse. Ouço-o suspirar. "Que horas serão?", pergunta. "Não tenho a menor idéia." "A noite", diz, e depois pára. "O quê, a noite?" pergunto.

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Alguém grita de repente no fundo do vagão, no lado oposto ao nosso. "Pronto", diz o rapaz. O grito pára de repente. Um pesadelo, quem sabe, devem ter sacudido o sujeito. Quando é outra coisa, o medo, dura mais. Quando é a angústia que grita, quando é a idéia de que se vai morrer que grita, dura mais. "É o que, a Noite dos Búlgaros?" pergunta o rapaz. "Como?" "Ora, a Noite dos Búlgaros", insiste ele. Eu não pensava ter falado da Noite dos Búlgaros. Pensava só ter pensado; em certo momento. Talvez tenha falado. Ou então, estou pensando alto. Devo ter pensado alto, na noite sufocante do vagão. "Então?" diz o rapaz. "Bom, é uma história." "Uma história como?" "No fundo", digo, "é uma história idiota. Uma história assim, sem pé nem cabeça." "Você não quer me contar?" "Quero. Mas não há grande coisa a contar, para dizer a verdade. É uma história num trem." "Combina", diz o rapaz de Semur. "Por isso é que pensei nela. Por causa do trem." "E depois?" Ele faz questão. Nem tanto, no fundo. Faz questão da conversa. "É confuso. Há pessoas num compartimento, e depois, sem rima nem razão, há alguns que começam a atirar todos os outros pela janela." "Essa agora, até que seria bacaninha aqui", diz o rapaz de Semur. "Atirar alguns pela janela, ou sermos atirados?" pergunto. "Ser atirados, claro. Rolaríamos na neve da rampa, seria bacaninha." "Está vendo, a história é um negócio desses." "Mas, por que dos búlgaros? pergunta ele logo. "Por que não dos búlgaros?"

"Você não vai me dizer", diz o rapaz de Semur, "que isso é normal entre os búlgaros." "Para os búlgaros", digo, "deve ser bem comum." "Não chuta", responde. "Você não vai me dizer que os búlgaros são mais comuns que os borgonheses." "Pelo amor de Deus, na Bulgária são bem mais comuns do que os borgonheses." "Quem está falando da Bulgária?", diz o rapaz de Semur. "Já que estamos falando de búlgaros", argumento, "a Bulgária é uma coisa que vem ao espírito." "Não tente me enrolar", diz o rapaz. "A Bulgária, está bem. Mas búlgaros, não é comum nas histórias." "Nas histórias búlgaras, certamente." "É uma história búlgara?", pergunta. "Não", tenho que reconhecer. "Você vê", diz ele peremptoriamente. "Não é uma história búlgara e assim mesmo está cheia de búlgaros. Confessa que é esquisito." "Você teria preferido borgonheses?" "E então!" "Você pensa que borgonheses é comum?" "Pouco me importa. Mas seria bacananinha. Um vagão cheio de borgonheses e eles começam a se atirar pela janela." "Você acha que é comum, borgonheses que se atiram pela janela do compartimento?" pergunto. "Aí você está exagerando", diz o rapaz de Semur. "Tua história oca, cheia de búlgaros, não disse nada contra isso. Se começássemos a discutir, tua Noite dos Búlgaros, não é nada." Ele tem razão. Não tenho nada a dizer. Há luzes de uma cidade, de repente. O trem ladeia casas cercadas de jardins. Edifícios maiores, em seguida. Há cada vez mais luzes e o trem entra na estação. Olho o relógio da estação e são 9 horas. O rapaz de Semur olha o relógio da estação e, forçosamente, vê a hora. "Merda", diz, "só são 9 horas." O trem pára. Flutua na estação uma luz azulada, lindamente distribuída. Lembro dessa luz baça, hoje esquecida. É uma luz que conheço no entanto desde 1936. É uma luz para esperar o momento em que será preciso apagar todas as luzes. É uma luz de antes do alerta, mas onde o alerta já está inscrito. / Mais tarde eu me lembro - quer dizer eu não me lembro ainda, quando estamos naquela estação alemã, já que ainda não aconteceu - mais tarde, vi como era preciso apagar não somente

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"A noite, ainda vai ser longa?" "Começou agora." "É verdade", diz, "começou agora."

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as luzes. Era .preciso apagar também o forno crematório. Os altofalantes transmitiam as notícias assinalando a movimentação das esquadrilhas aéreas, sobre a Alemanha. Quando era noite, os bombardeiros chegavam a certa proximidade, as luzes do campo se apagavam. A margem de segurança não era grande, era preciso que as fábricas funcionassem, que as paradas fossem as mais breves possíveis. Mas, num certo momento, as luzes assim mesmo se apagavam. Ficamos no escuro, a ouvir o negro roncar de aviões mais ou menos longínquos. Mas acontecia de o crematório estar sobrecarregado de trabalho. O ritmo de mortos é uma coisa dilícil de sincronizar com a capacidade de um crematório, por melhor equipado que seja. Nesses casos, o crematório funcionando com pleno rendimento, altas chamas alaranjadas ultrapassavam inteiramente a chaminé do crematório, num turbilhão de fumaça densa. Ir-se em fumaça é uma expressão dos campos. Dá-se um fora com o Sharführer, é-se um bruto, se acontecer um desentendimento com ele, fica-se pronto para ir-se em fumaça. Um amigo, no revier, estava em seu último fôlego, ia partir em fumaça. As chamas ultrapassavam então a chaminé quadrada do crematório. Aí ouvia-se a voz do SS de serviço, na torre de controle. Ouvia-se sua voz nos alto-falantes: "Krematorium, ausmachen", dizia várias vezes. Crematório, apague, crematório, apague. Isso certamente os chateava, ter que apagar os fogos do crematório, isso diminuía o rendimento. O SS não ficava contente, latia: "Krematorium, ausmachen", com uma voz morna e mal-humorada. Nós estávamos sentados no escuro e ouvíamos o alto-falante: Krematorium, ausmachen". "Olha aí", dizia um rapaz, "as chamas devem estar ultrapassando." E depois continuávamos a esperar no escuro. Mas isso tudo foi mais tarde. Mais tarde que esta viagem. Agora estamos na estação alemã e ignoro ainda a existência e os inconvenientes dos crematórios, nas noites de alerta / Há pessoas nas plataformas da estação e o nome da estação escrito num painel: TRIER. "Qual é esta cidade?", diz o rapaz de Semur. "Você está vendo, é Treves", respondo. Oh! Deus, que merda de vida fodida . Eu disse Treves, em voz alta e de repente percebendo. É bem uma grande merda, que seja justamente Treves. Eu estava cego, senhor, cego e surdo, mudo, embrutecido, para não ter compreendido mais cedo de onde conhecia o vale da Moselle? "Você está com ar completamente espantado por ser Treves", diz o rapaz de Semur.

"B, merda", respondo, "estou espantado." "Por quê? Você conhecia?" "Não, quer dizer, nunca estive aqui." "Você conhecia alguém daqui, então?", pergunta ele. "É isso, pronto, é isso." "Você agora conhece boches?", diz o rapaz, suspeitoso. Conheço boches, agora, é muito simples. Os viticultores da Moselle, os lenhadores da Moselle, a lei sobre os roubos de madeira da Moselle. Estavam na Mega, claro. É uma amiga de infância, bom Deus, este bom Deus da Moselle. "Boches? Nunca ouvi falar, o que é que você está querendo dizer?" "Você está gozando", diz o rapaz. "Está gozando mesmo, desta vez." Ele não está satisfeito. Há pessoas na plataforma da estação e elas acabam de perceber que não estamos no trem como passageiros comuns. Devem ter visto silhuetas agitando-se atrás das aberturas cercadas. Falam entre si, apontam o trem, estão excitadas. Há um garoto de uns dez anos, com seus pais, bem em frente de nosso vagão. Ele ouve seus pais, olha para nós, sacode a cabeça. Depois sai correndo. Depois ei-Io que volta correndo, com uma enorme pedra na mão. Depois ei-Io que se aproxima de nós e que atira a pedra, com toda a sua força, na abertura perto da qual nos mantemos. Nós recuamos vivamente, a pedra ricocheteia no arame farpado, quase atingiu o rosto do rapaz de Semur. "Então", diz este, "os boches, você continua sem conhecer?" Não digo nada. Penso que é uma sujeira danada que isso aconteça justamente em Treves. Há no entanto várias outras cidades alemãs, neste trajeto. "Os boches, e os filhos de boches, você conhece agora?" O rapaz de Semur se rejubila. "N ada a ver." Nesse momento o trem recomeça a andar. Na plataforma da estação fica um garoto de uns dez anos que nos mostra o punho e berra insanidades. "Baches, estou te dizendo", me diz ele. "Sem complicações, boches, simplesmente." O trem recupera velocidade e avança na noite. "Ponha-se no lugar dele." Tento explicar-lhe. "No lugar de quem?" "Desse garoto", respondo.

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"Merda que não", faz ele. "Que ele conserve seu lugar esse filho da puta de boche." , . Não digo nada, não tenho vontade de discutir. Pergunto a mIm ~esmo quan_tos alemães será preciso ainda matar para que essa cnança alema tenha uma oportunidade de não se tornar um boche. Ele não tem nada a ver, esse garoto, e no entanto tem tudo a ver. Não foi ele quem se tornou um pequeno nazista e no ent?nto é um nazistazinho. Talvez ele não tenha nenhuma oporturndade de não ser mais um nazistazinho, de crescer até se tornar um grande nazista. Nessa escala individual, a questão não tem interesse. É derrisório que esse garoto pare de ser nazistazinho ou assuma sua condição de nazistazinho. Esperando, a única coisa a fazer para que esse garoto tenha uma chance de não ser mais um nazistazinho é destruir o exército alemão. É exterminar ainda quantid~des de homens alemães, para que eles possam parar de s~r naZIstas, ou boches, segundo o vocabulário primitivo e mistificado do rap?Z de Semur. Num sentido, é isso que o rapaz de Semur quer dIzer em sua linguagem primitiva. Mas num outro sentido, sua linguagem e as idéias confusas que sua linguagem embara~a encerram defin.itivamente o horizonte desta questão. Pois se sao boches verdadeIramente, não serão nunca outra coisa. Seu se~ b?che é :omo uma essência que nenhuma ação humana poderá at~gIr. Se sao bo.ches, serão boches para todo o sempre. Não é mrus um dado socIal, como serem alemães e nazistas. É uma realidade que flutua acima da história, contra a qual nada se pode fazer. Destruir o exército alemão não adiantaria nada os sobrevi~entes seriam boches, sempre. Nada mais a fazer adm de ir se deItar e esperar que o tempo passe. Mas não são boches claro São ale~ães, e freqüentemente nazistas. Um pouco freqüe~temen~ te ~emrus, atualmente. Seu ser alemão e freqüentemente demais naZIsta faz parte de uma estrutura histórica específica e é a prática humana que resolve essas questões. Mas não digo nada ao rapaz de Semur não tenho vontade de discutir. . ' Não conheço muitos alemães. Conheço Hans. Com ele, nen~um problema. Pergunto-me o que faz Hans, neste momento, e nao seI que ele vai morrer. Vai morrer em uma destas noites na floresta acima de ChâtilIon. Conheço sujeitos da Gestapo, também. O Dr. Haas e seus dentes de ouro. Mas que diferença há entre esses sujeitos da Gestapo e os tiras de Vichy que te interrogaram uma noite inteira na chefatura de Paris, naquela vez em que você teve ~quela sorte ~ncrível? Você não acreditava no que via, de manha, nas ruas CInzentas de Paris. Não há nenhuma diferença.

São boches tanto uns quanto os outros, quer dizer, não são mais boches uns que os outros. Pode haver neles diferenças de grau, de método, de técnica; nenhuma diferença de natureza. É preciso que eu explique tudo isso ao rapaz de Semur, claro que ele entenderá. / / Conheço também aquele soldado alemão de Auxerre, aquela sentinela alemã na prisão d~ Auxerre. Os pequenos pátios onde passeávamos, na prisão de Auxerre, formavam uma espécie de semicírculo. Chegávamos pelo caminho da ronda, o guarda abria a porta do pátio, fechava-a à chave atrás de nós. Ficávamos lá, no sol de outono, com aquele barulho de fechadura atrás de nós. De cada lado, muros lisos, bastante altos para impedir a comunicação entre os pátios circundantes. O espaço delimitado por esses muros ia diminuindo. No fim só havia um metro e meio entre os dois muros, e esse espaço era fechado por uma grade. Assim, a sentinela podia ver tudo o que se passava nos pátios, dando alguns passos de um lado e do outro./",.. Eu tinha notado que aquela sentinela, freqüentemente estava de guarda. Era um homem de uns quarenta anos, aparentemente. Parava diante de meu pequeno pátio e olhava. Eu andava para lá e para cá, nos dois sentidos, ou então me apoiava no muro ensolarado do patiozinho. Um dia, na hora do passeio, Iembro-me que o tempo estava bonito, houve um dos suboficiais da Feldgendarmerie de Joigny que parou diante da grade de meu pátio. Ao lado dele estava Vacheron. Por mensagens que tinham chegado a mim, eu soubera que Vacheron tinha sido apanhado. Mas tinha sido preso em Laroche-Migennes, num outro negócio, os dias passavam e parecia que não falara sobre mim. O sujeito da Feld e Vacheron estão na grade de meu pequeno pátio, e a sentinela, essa sentinela de que falo, precisamente, um pouco para trás. Então Vacheron fez um sinal com a cabeça, em minha direção. "Ach so!", diz o sujeito da Feld. E me chama à grade. "Vocês se conhecem?", perguntou, mostrando-nos alternativamente com o dedo. Vacheron está a cinqüenta centímetros de mim. Está descarnado, barbudo, o rosto marcado. Mantém-se curvado, como um velho e seu olhar vacila. "Não", digo, "nunca vi." "Sim", diz Vacheron, num murmuno. Ach so", diz o sujeito da Feld. E caçoa. "Nunca vi", repito. Vacheron me olha e levanta os ombros. "E Jacques?" diz o sujeito da Feld. "Você conhece Jacques?"

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J acques, é Michel, claro. Penso na Rua Blainville. AtualI?ent~ é a p~é-?~stória. O espírito absoluto, a vérification, a objetlvaçao, a dlaletlca do mestre e do escravo, não passam de préhistória desta história real onde estão a Gestapo, as perguntas do sujeito da Feld e Vacheron. Vacheron também faz parte da hiStória real. Pior para mim. "Que Jacques?", pergunto. "Jacques de quê?" "Jacques Mercier", diz o sujeito da Feld. Sacudo a cabeça. "Não conheço", digo. "Conhece", diz Vacheron, num murmúrio. Ele me olha e faz um gesto resignado. "Nada afazer", diz ainda. "Vai te foder", digo a ele entre os dentes. Um pouco de sangue sobe ao seu rosto marcado pela Feld. "Como, como?", grita o sujeito da Feld, que não percebe todo os detalhes da conversa. "Nada." "Nada", diz Vacheron. "Você não conhece ninguém?", pergunta ainda o sujeito' da Feld. "Ninguém", digo. Ele me olha e avalia com o olhar. Sorri. Tem o ar do senhor que pensa que poderia me levar a conhecer montes de génte. "Quem cuida de você?", pergunta ele agora. "O Dr. Haas." "Ach so", diz. Parece pensar que se o Dr. Haas cuida de mim, bem que é preciso que cuidem de mim, eficazmente. No final das contas, não passa de um suboficialzinho da Feldgendarmerie e o Dr. Haas é o chefe da Gestapo para toda a região. Ele tem o respeito das hierarquias, o sujeito da Feld, não tem que se preocupar com um cliente do Dr. Haas. Estamos ali, de cada lado da grade, sob o sol de outono, e parece que falamos de uma doença que eu teria e que o Dr. Haas está tratando eficazmente. "Ach so", diz o sujeito da Feld. E ele leva Vacheron. Eu fico de pé perto da grade, e me pergunto se as coisas vão ser assim, simplesmente, se não haverá um reacender da chama. A sentinela alemã está do outro lado da grade, de pé em frente ao meu pátio, e me olha. Não a tinha visto aproximar-se. 32

É um soldado de uns quarenta anos, de rosto pesado, ou então é o capacete que o toma assim. Pois ele tem uma expressão aberta, um olhar claro. "Verstehen Sie Deutsch?'? pergunta. Eu digo que sim, que compreendo . alemão. "lch mochte lhnen eine Frage stellen'',2 diz o soldado. Este homem é educado, queria me fazer uma pergunta e me pede autorização para fazer esta pergunta. "Bitte schon'',3 digo. Está a um metro da grade, faz um gesto para pôr no lugar a correia de seu fuzil, que tinha escorregado do ombro. O sol está momo, somos muito educados. Penso vagamente que o sujeito da Feld está talvez telefonando à Gestapo, por dever de consciência. Talvez vão fazer a ligação e achar que na verdade é estranho que eu nada tenha dito de J acques, que eu não conheça Vacheron. Talvez tudo vá recomeçar. Penso nisso vagamente, de qualquer maneira não posso fazer nada. Aliás, é claro, é preciso levantar só os problemas que se pode resolver. Na vida privada, também, é preciso aplicar esse princípio, conclusão a que tínhamos chegado no Coq d'Or, precisamente. Esse soldado alemão quer me fazer uma pergunta, eu lhe digo "por favor", somos educados, é bem gentil tudo isto. "Warum sind Sie verhaftet?",4 pergunta o soldado. É uma pergunta pertinente, é preciso reconhecer. É a questão que, neste momento exato, vai mais longe que qualquer outra questão possível. Por que estou preso? Responder a esta pergunta é não somente dizer quem sou, mas também quem são todos aqueles que neste momento estão sendo presos. É uma pergunta que vai nos projetar do particular para o geral, com uma grande facilidade. Por que estou preso, ou seja, por que estamos presos, por que se prende, em geral? Qual é a semelhança entre todas essas pessoas diferentes que estão sendo presas? Qual é a essência histórica comum de todos esses seres diferentes, inessenciais na maioria das vezes, que estão sendo presos? Mas é uma pergunta que vai ainda mais longe. Questionando o porquê de minha prisão, cairemos no outro lado da questão. Pois estou preso porque me prenderam, porque existem os que prendem e os que são presos. Perguntando para mim: por que você está preso?, ele pergunta

1. 2. 3. 4.

Você entende alemão? Eu queria fazer uma pergunta. Por favor. (N. do A.) Por que você está preso? (N. do A.)

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também, e no mesmo movimento: por que estou aqui guardando você? Por que tenho a ordem de atirar em você, se você tentar fugir? Quem sou eu, afinal? Eis o que esse soldado alemão pergunta. É uma questão que vai longe, em outras palavras. Mas eu não respondo tudo isso, claro. Seria babaca como tudo. Tento explicar a ele brevemente as razões que me conduziram até aqui. "Então, você é um terrorista?", me diz. "Se o senhor quiser", respondo, "mas isso não esclarece nada." "O que então?" "Essa palavra, ela não esclarece nada." "Tento compreender", diz o soldado. Hans ficaria contente de ver meus progressos em sua língua natal. Ele adorava sua língua natal, Hans von Freiberg zu Freiberg. Não somente leio Hegel, mas falo com um soldado alemão, na prisão de Auxerre. É muito mais difícil falar com um soldado alemão do que ler Hegel. Sobretudo lhe falar de coisas bem simples, da vida e da morte, de por que viver e por que morrer. Tento explicar a ele porque essa palavra terrorista não o esclarecerá em nada. "Recapitulemos, quer?", me diz quando acabo. "Recapi tulemos. " "O que você quer é defender seu país." "Não", respondo, "não é meu país." "Como?" grita ele, "o que é que não é seu país?" "Mas a França", respondo, "a França não é meu país." "Isso não faz sentido", diz, desconcertado. "Faz sim. Defendo meu país, de qualquer maneira, ao defender a França, que não é meu país." "Qual é seu país?, pergunta. "A Espanha", respondo. "Mas a Espanha é nossa amiga", diz. "O senhor pensa? Antes de fazer esta guerra, vocês estiveram em guerra com a Espanha, que não era amiga de vocês." "Não fiz nenhuma guerra", diz o soldado em surdina. "O senhor pensa?", pergunto. "Quer dizer, não quis nenhuma guerra", esclarece. "O senhor pensa?", repito. "Estou convencido disso", diz, solene. Puxa de novo a correia de seu fuzil, que havia escorregado. "Eu nunca."

"Mas por quê?" Ele parece ofendido porque eu duvido de sua boa fé. . "Porque o senhor está aí, com seu fuzil. Foi o senhor quem quis." "Onde eu poderia estar?", diz, em surdina. ."Poderia ser fuzilado, poderia estar num campo de concentração, poderia ser um desertor." "Não é tão fácil", diz. "Claro. É fácil ser interrogado por seus compatriotas da Feldgendarmerie ou da Gestapo?" Ele fez um gesto brusco de negação. "Não tenho nada a ver com a Gestapo." "Tem tudo a ver", respondo. "Nada, fique certo", tem o ar aflito. "Tudo, até prova em contrário", insisto. "Eu não queria, do fundo de minha alma eu não queria." Parece sincero, parece desesperado com a idéia de que eu o confunda com seus compatriotas da Feld ou da Gestapo. "Então", pergunto, "por que o senhor está aqui?" "É a questão", diz. Mas ouvimos a chave na fechadura do pátio, o guarda vem me buscar. De fato, é a questão, das ist die Frage. Chega-se a ela, forçosamente, mesmo através desse diálogo de surdos, desalinhavado, que tivemos. E sou eu que devo fazer a pergunta: warum sind Sie hier? porque minha situação é privilegiada. Em relação a esse soldado alemão, e no que diz respeito às perguntas a fazer, minha situação é privilegiada. Porque a essência histórica comum a nós todos que somos presos neste ano de 43 é a liberdade. É na medida em que participamos dessa liberdade que nos juntamos, que nos identificamos, nós que podemos ser tão diferentes. É na medida em que participamos dessa liberdade que somos presos. É então nossa liberdade que é preciso interrogar, e não nosso estado de procurados, nossa condição de presos. Claro, deixo de lado os que fazem mercado negro e os mercenários das redes. Esses, sua essência comum é o dinheiro, não a liberdade. Claro, não pretendo que participemos todos igualmente desta liberdade que nos é comum. Alguns, e são certamente numerosos, participam acidentalmente desta liberdade que nos é comum. Talvez escolheram livremente o maqui, a vida clandestina, mas desde então vivem na decorrência desse ato livre. Assumiram livremente a necessidade de ir para o maqui, mas desde então vivem na rotina que essa livre escolha desencadeou. Não vivem sua liberdade.

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que não fez sua vida, por que só conseguiu o ser de sua vida. Sua yida sempre foi um feito massacrante, um ser que lhe era exterIor, do qual nunca pode entrar em possessão para torná-lo habitável. ' . . Estamos cada um de um lado da .grade e nunca compreendi dIreIto por que combatia. Era preciso tornar habitável o ser desse homem, ou melhor, o ser dos homens como esse homem, pois para todo homem, certamente, já era tarde demais. Era preciso tornar habitável o ser dos filhos desse homem, talvez tinham eles a i~ade des~e garoto de Treves que nos atirou a pedra. Não seria maIS complicado que isto, quer dizer, é a coisa mais complicada do mundo. Pois trata-se simplesmente de instaurar a sociedade sem. cla~se. Isso nem passava pela cabeça daquele soldado alemão, ele Ia VIver e morrer em seu ser inabitável, opaco e incompreensível para o seu próprio olhar. . Mas o .trem avança e afasta-se de Treves e é preciso prosseguIr esta VIagem e eu me afasto da lembrança desse soldado alemão na prisão de Auxerre. Disse a mim mesmo muitas vezes que escreveria essa história da prisão de Auxerre. Uma história bem simples: a hora do passeio, o sol de outubro e esta l~nga conversa, em fiapos, cada um de seu lado da grade. Quer dlZe~, eu estava d.:. meu. lado, ele não sabia de que lado estava. E eIS que a oc.asI,a? veI'"_ ~ ._.

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"Mais um que viu La Grande Illusion em cores", diz uma voz de Paris. "Vem", me diz o rapaz de Semur, "vamos colocá-lo no chão, bem esticado contra a parede. Aí é que ele ocupará menos lugar." Começamos a nos mexer para fazer como ele diz e empurramos naturalmente um pouco os que nos cercam. "Eh, o que vocês estão fazendo?", grita uma voz. "Vamos colocá-lo no chão, no canto", diz o rapaz de Semur, "onde ele tomará menos lugar." "Não dá fora", diz um sujeito, "a latrina está lá." "Muito bem, então empurrem a latrina", diz o rapaz de Semur. "Ah, não", diz um outro, "vocês não vão me colar a latrina debaixo do nariz." "Oh, chega", grita um terceiro, enraivecido. "Até agora eu é que fiquei com a merda de vocês sob o nariz." "A tua também", diz um gozador. "Fechem, seus idiotas", diz o rapaz de Semur. "Empurrem essa bosta de latrina para estendermos o cara." "Não vamos empurrar a latrina", diz o sujeito de antes. "E como vamos empurrá-la", grita o que a teve até agora sob o nariz. Ouve-se o barulho do recipiente que raspa a madeira do assoalho. Ouvem-se palavrões, gritos confusos. Depois, o barulho metálico da tampa da privada que deve ter caído. "Ah, os porcos!", grita outra voz. "O que está acontecendo?" "Viraram a privada de tão babacas que são", explica alguém. "Mas não", diz o que pretende ter tido a latrina debaixo do nariz até agora, "foi só um respingo." "Bem nos meus pés, teu respingo", ' diz o de antes. "Você os lava lá na chegada", diz o gozador de antes. "Você pensa que é engraçado?", diz o que recebeu o respingo nos pés. "Sim, sou uma bola", diz o outro, plácido. Ouvem-se risos, piadas duvidosas e protestos sufocados. Mas a latrina, mais ou menos derramada, foi deslocada e podemos estender o corpo do velhote. "Não o estenda de costas", diz o rapaz de Semur, "tomaria muito lugar." Empurramos o cadáver contra a parede do vagão, bem esticado de lado. Aliás, esse cadáver é bem magro, não ocupará muito lugar.

Nós nos erguemos, o rapaz de Semur e eu, e o silêncio recai sobre nós. Ele tinha dito: "Vocês se dão conta?" e tinha morrido. Do que queria que nos déssemos . conta? Não saberia dizer exatamente, é certo. Queria dizer: "Vocês se dão conta, que vida é esta vida? Mas, sim, eu me dou conta. Não faço outra coisa, me dar conta e dar conta. É bem isso que desejo. Encontrei muitas vezes, no decurso destes anos, esse mesmo olhar de espanto absoluto que teve o velhote que ia morrer, justo antes de morrer. Confesso, aliás, nunca ter compreendido bem por que tantos sujeitos se espantavam tanto. Talvez ~r vezes a porta da horta, para ouvir aquele barulho do qual recordava o soar )ixidado, ferruginoso, do si ninho que o batente da porta atingia. Foi então que me virei e vi uma mulber que olhava para mim. Estava esticada numa chaise-longue, perto da velha cabana onde serravam a madeira para os aquecedores, outrora. "Ouve?", digo-lhe eu. "Como?", diz a mulher. "O barulho", digo eu, "o barulho do sino." "Sim", diz ela. "Gosto muito", digo eu. A mulher olba para mim, enquanto atravesso o gramado e me aproximo dela. "Sou uma amiga de Mme Wolff", diz ela, e acho muito natural que ela esteja lá, e que ela esteja ali, e que seja uma amiga de Mme WoIff, e que seja o começo da primavera, de novo. Pergunto a ela se a casa continua a pertencer a Mme Wolff e ela olha para mim. "Faz muito tempo que o senhor não vem?", me diz. Penso que faz cinco ou seis anos que minha família deixou esta casa. "Seis anos mais ou menos", digo. "O sino da horta", diz ela, "o senhor gostava de seu barulho?" Respondo que continuo a gostar. "Eu também" diz ela, mas tenho a impressão que teria preferido ficar só. "O senhor entrou por acaso?", ·pergunta ela, e tenho a impressão que gostaria muito que eu tivesse entrado por acaso, que não houvesse nenhuma verdadeira razão para eu estar aqui. "Nada disso", digo, e explico que queria rever o jardim e ouvir de novo aquele barulho que faz o sino da: horta. "De fato, vim de bem longe para isso", digo. "O senhor conhece Mme WoIff?", diz ela precipitadamente, como se quisesse evitar a qualquer preço que eu lhe contasse as verdadeiras razões de minha vinda. "Claro", digo. Ao lado da espreguiçadeira há um banquinho dobrável, com um livro, fechado, e um copo de água, pela metade, em cima. Afasto o livro e o copo e me sento. "Não fu-

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ma?", digo a ela. Ela sacode a cabeça e eu me pergunto se não vai fugir. Acendo um cigarro e pergunto a ela por que gosta do barulho daquele sino. Ela sacode os ombros. "Porque é como antes", diz, secamente. "É isso", digo e sorrio. Mas ela se ergue da cadeira e inclina-se para a frente. "O senhor não pode compreender", diz. Olho para ela. "Posso", digo, "para mim também é uma recordação de antes." Inclino-me para ela e pego seu braço direito, pelo punho, viro o braço, e meus dedos afloram sua pele branca e fina, e o número azul de Oswiecim tatuado na pele branca, fina, já um pouco murcha. "Eu perguntava a mim mesmo", digo a ela, "perguntava se a senhora tinha, finalmente, feito essa viagem." Então ela puxa o braço, aperta-o contra o peito, e dobra-se, o mais longe possível, na chaise-longue. "Quem é o senhor?", diz ela. Sua voz fica estrangulada. "No vale da MoselJe", digo, "perguntei a mim se a senhora tinha feito essa viagem." Ela olha para mim, ofegante. "Mais tarde, também, quando vi chegar os trens de judeus evacuados da Polônia, perguntei-me se a senhora tinha feito essa viagem." Ela começa a chorar, silenciosamente. "Mas quem é o senhor?", implora. Sacudo a cabeça. "Perguntei a mim mesmo se aquela casa, na Rua Bourdelle, atrás da estação de Montparnasse, ia ser um refúgio durável, ou se não passava de uma parada, antes de recomeçar a viagem." "Eu não o conheço", diz ela. Digo que a reconheci imediatamente, quer dizer, soube imediatamente que a conhecia, antes mesmo de reconhecê-la. Ela continua a chorar, em silêncio. "Não sei quem é o senhor", diz ela, "deixe-me sozinha." "A senhora não sabe quem eu sou", digo, "mas uma vez me reconheceu." Lembro-me de seu olhar de outrora, Rua de Vaugirard, mas ela não tem mais aquele olhar implacável. "Rua de Vaugirard", digo, "em 41 ou 42, não sei mais." Ela pega a cabeça entre as mãos. "A senhora queria saber como ir para a estação de Montparnasse, não ousou perguntar aos que passavam. A senhora perguntou para mim." "Não me lembro", diz ela. "A senhora procurava a Rua Antoine-Bourdelle, na verdade. Levei-a lá. "Não me lembro", diz ela. "A senhora ia para a casa de amigos, na Rua Antoine-Bourdelle, não se lembra?", disse eu. "Lembro-me, dessa rua, dessa casa, lembro-me", diz ela. "A senhora usava um casaco azul", digo. "Não me lembro", diz ela. Mas eu ainda insisto, me agarro à esperança de que ela se recorde. "A senhora estava perdida", digo, "não sabia como encontrar a estação de Montparnasse. Eu é que a ajudei." Então, ela olha para mim e grita, quase. "Ninguém me ajudou, nunca." Sinto que acabou, que é preciso ir embora. "Eu", digo a ela ,"fui ajudado o tempo inteiro." "Ninguém", diz ela,

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"nunca". Olho para ela e vejo que é totalmente sincera, que está inteiramente convencida do que diz. "Tive sorte, talvez", digo, "em toda a minha vida dei com sujeitos que me ajudaram." Então, ela grita, outra vez. "O senhor não é judeu, é tudo." Esmago na relva o resto do cigarro. "É verdade", digo, "nunca fui judeu. Às vezes, lamento." Agora, tenho a impressão que ela quereria me insultar, por seu riso de desprezo, por seu olhar fechado, pelo ferimento aberto de seu rosto de pedra. "O senhor não sabe do que está falando", diz ela. "Não sei", digo, "sei que Hans morreu." Em seguida, há o silêncio, e é preciso que eu vá embora. "O senhor tem certeza que me viu na Rua Vaugirard, em 42?", diz ela. "Se a senhora esqueceu, é verdade que eu não a vi. É verdade que não nos conhecemos." Levanto-me, após ter dito isto. "É um mal-entendido", digo, "desculpe-me". "Não me lembro", diz ela, "sinto muito." "Não tem importância", digo, e vou-me embora.;; Mas não sei ainda que ela fez a viagem e que voltou dela morta, murada em sua solidão. "Que horas serão?", diz uma voz atrás de nós. Ninguém responde, já que ninguém sabe que hora pode ser. É · a noite, simplesmente. A noite da qual não se vê o fim. Aliás, neste momento, a noite não tem fim, é realmente eterna, instalou-se para todo o sempre em seu ser noite sem fim. Mesmo se tivéssemos podido olhar nossos relógios, mesmo se os SS não tivessem pegado todos os nossos relógios, mesmo se pudéssemos ver que horas eram, pergunto-me se aquela hora teria uma significação concreta. Talvez não passasse de uma referência abstrata do mundo exterior, onde o tempo passa realmente, onde tem sua densidade própria, sua duração. Mas para nós, esta noite, verdadeiramente, no vagão, não passa de uma sombra surda, noite destacada de tudo o que não é a noite. "Estamos parados, faz horas qu~ estamos parados", diz uma voz atrás de nós. "Estava pensando talvez que tínhamos prioridade?", diz outro alguém. Tenho a impressão de reconhecer esta última voz. Acho que é a do sujeito que disse que era uma bola, quando ' do incidente da latrina. É ele, com certeza. Começo a distinguir as vozes desta viagem. Mais tarde, em alguns meses, saberei que espécie de viagens eles obrigam os judeus a fazer. Verei chegar os trens, na estação do campo, por ocasião da grande ofensiva soviética de inverno, na Polônia. Eles evacuavam os judeus dos campos da Polônia, 73

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aqueles que não tinham podido exterminar, ou então talvez pensavam poder fazê-los trabalhar ainda um pouco. Foi um rude inverno, aquele inverno do ano seguinte. Vi chegar os trens dos judeus, os transportes dos judeus evacuados dos campos da Polônia. Eram quase duzentos em cada vagão trancado a cadeado, quase oitenta a mais que nós. Nessa noite, ao lado do rapaz de Semur, não tentei imaginar o que poderia representar isso, serem duzentos num vagão como o nosso. Depois, sim, quando vi chegar os trens de judeus da Polônia, tentei imaginar. E foi um rude inverno, esse inverno do ano seguinte. Os judeus da Polônia viajaram seis dias, oito dias, dez dias às vezes, no frio desse rude inverno. Sem comer, é claro, sem beber. Na chegada, quando faziam correr as portas, ninguém se mexia. Era preciso afastar a massa gelada de cadáveres, os judeus da Polônia mortos de pé, enregelados de pé, caíam como gravetos na plataforma da estação do campo, para encontrar alguns sobreviventes. Pois havia sobreviventes. Uma lenta coorte trôpega começava a andar para a entrada do campo. Alguns caíam, para não se levantar nunca mais, outros se reerguiam, outros se arrastavam, literalmente, para a entrada do campo. Um dia, na massa aglutinada de cadáveres de um vagão, vimos três garotinhos judeus. O mais velho tinha cinco anos. Os companheiros alemães do Lagerschutz os escamotearam sob o nariz dos SS. Eles viveram no campo, escaparam dele, os três órfãos judeus que tínhamos encontrado na massa congelada de cadáveres. Assim, nesse rude inverno do ano seguinte, é que eu saberia como fazem os judeus viajar. Mas neste ano, ao lado de meu companheiro de Semur, que estava com o coração morto, de repente, pensei somente que talvez ela já tinha feito esta viagem, aquela mulher judia da Rua de Vaugirard. Talvez ela tivesse olhado o vale da Moselle, ela também, com seus olhos implacáveis./ Ouvimos vozes de comando, fora, passos precipitados, barulho de botas nas laterais da via férrea. "Vamos continuar", digo. "Você acha?", pergunta o rapaz de Semur. "Parece que estão ohamando as sentinelas." Ficamos imóveis, no escuro, a esperar. O trem apita duas vezes e recomeça a andar, brutalmente. "Oh, velho, olha, velho", diz o rapaz de Semur, todo excitado. Olho e é a aurora. Uma franja acinzentada, no horizonte, e que aumenta. É a aurora, uma noite ganha, uma noite a menos nesta viagem. Esta noite não acabava na verdade, não tinha fim previsível. A aurora explode em nós, não passa ainda de uma fina

faixa cinzenta de horizonte, mas nada mais poderá impedir sua expansão. A aurora expande-se de si mesma, a partir de sua própria noite, expande-se sobre ela, para sua anulação rutilante. "Aconteceu, velho, está aí", canta o rapaz de Semur. No vagão, todo mundo começa a .falar ao mesmo tempo e o trem avança. / / Fiz a viagem de volta nas árvores. Quer dizer, tinha os olhos cheios de árvores, oheios de folhas de árvores, cheios de ramos verdes. Estava esticado bem no fim do caminhão, olhava o céu, e o céu estava cheio de árvores. De Eisenach a Longuyon, era uma loucura o que havia de árvores, no céu da primavera. De vez em quando também aviões. A guerra não tinha acabado, entenda-se, mas eles tinham um ar irreal, fora de propósito, aviões ridículos no céu da primavera. Eu só tinha olhos para as árvores, para os ramos verdes das árvores. De Eisenach a Longuyon, fiz a viagem nas árvores. Era bem repousante viajar assim. No segundo dia de viagem, ao entardecer, eu cochilava de olhos abertos, quando vozes explodiram de repente em meus ouvidos. "Está aí, rapazes, está aí, conseguimos." Um sujeito com uma voz estridente começou a cantar a Marselhesa. Era o comandante, sem dúvida, não podia ser outro a me fazer uma dessas. Eu estava bem, não tinha vontade de me mexer. Toda aquela agitação me perturbava. "Está aí, rapazes, estamos em casa, rapazes." "Vocês viram, rapazes? É a França." "Estamos na França, rapazes, é a França." "Viva a França", gritou a voz estridente do comandante, o que interrompeu a Marselhesa, claro. Mas a Marselhesa logo recomeçou, podíamos confiar no comandante,..." Eu olhava as árvores e as árvores não tinham me avisado de nada. Há pouco, se eu acreditasse em todos aqueles gritos, eram as árvores alemãs, e eis que agora eram árvores francesas, se eu acreditasse em meus companheiros de viagem. Eu olhava as folhas das árvores. Tinham o mesmo verde que ·antes. Devia ver mal, certamente. Se tivéssemos perguntado ao comandante, ele teria certamente visto a diferença. Não teria se enganado, com árvores francesas. Há um sujeito que me sacode pelos ombros. "Velho", diz o sujeito, "velho, você não viu? Estamos em casa."

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"Não eu", respondo, sem me mexer. "Como?", pergunta o sujeito. Eu me ergo um pouco e olho para ele. Tem o ar desconfiado. "Mas eu não sou francês." A cara do sujeito se ilumina. "f: verdade", diz, "eu esquecia. A gente esquece, contigo. Vocô fala bem como nós." Não tenho vontade de explicar por que falo bem como eles, por que falo como o comandante, sem sotaque, ou seja, com um sotaque igual ao deles. f: a maneira mais segura de preservar minha qualidade de estrangeiro, a qual prezo acima de tudo. Se eu tivesse sotaque, minha qualidade de estrangeiro seria revelada em qualquer momento, em qualquer circunstância. Tornar-seia algo banal, exteriorizado. Eu mesmo me habituaria a essa banalidade, de ser tomado como um estrangeiro. Ao mesmo tempo, não seria mais nada ser estrangeiro, não teria mais significação. É por isso que não tenho sotaque, que apaguei toda possibilidade de ser tomado por um estrangeiro, a partir de minha linguagem. Ser estrangeiro tornou-se de certa maneira uma virtude interior,." "Não faz mal", diz o sujeito. "Não vamos te encher por tão pouco, num dia tão lindo. A França, aliás, é tua pátria de adoção." Está contente, o sujeito, ri para mim amigavelmente. "Ah não", digo, "uma pátria basta, não vou ainda grudar uma segunda nas costas". O sujeito ficou sem graça. Deu-me o mais bonito presente que podia me dar, que pensa poder me dar. Fez-me francês por adoção. De certa maneira me autoriza a ser igual a ele, e eu recuso a doação. É preciso que eu tente pensar um dia seriamente nessa mania que têm tantos franceses de pensar que seu país é a segunda pátria de todo mundo. É preciso que eu tente compreender por que tantos franceses estão contentes em sê-lo, tão razoavelmente satisfeitos de sê-lo. Agora não tenho vontade de me preocupar com essas questões. Continuo a olhar as árvores que desfilam acima de mim, entre o céu e eu. Olho as folhas verdes, elas são francesas. Eles voltaram para casa, os rapazes, melhor para eles. Num inverno, lembro, há alguns anos, eu esperava numa grande sala da Chefatura de Polícia. Vinha para a renovação de

permanência, e a grande sala estava cheia de estrangeiros, vin~os'y como eu, pela mesma razão, ou para alguma coisa de análogo/ Eu estava numa fila de espera, era uma longa fila de espera na frente de uma mesa que ficava no fim da sala. Na mesa havia um homenzinho cujo cigarro se apagava o tempo todo. O homenzinho olhava os papéis das pessoas, ou as convocações que apresentavam para dirigi-las para esse ou aquele guichê. Às vezes, ele as mandava embora simplesmente, com grandes gritos. O homenzinho mal acabado não queria certamente que o confundissem, que pensassem que era o que parecia ser, um homenzinho mal acabado cujo cigarro se apagava o tempo todo. Então, gritava, às vezes insultava as pessoas, sobretudo as mulheres. Que estávamos imaginando, todos nós, nós estranjas? O homenzinho era a encarnação do poder, vigiava tudo, era um pilar da ordem nova. Que estávamos imaginando, que é possível apresentar-se assim, com um dia de atraso sobre a data da convocação? Os rapazes explicavam. O trabalho, uma mulher doente, crianças para cuidar. Mas ele não se deixava enganar, o homenzinho, por essas razões irrisórias, por aquela evidente má-fé. Ia nos mostrar com quantos paus se faz uma canoa, ia nos mostrar que era preciso não confundi-lo, que possuía o que se sabe lá onde pensamos. Ia nos domar, a nós, sujos estrangeiros. Depois, subitamente, esquecia que devia representar a encarnação fulminante do poder e chupava seu toco de cigarro, sem dizer nada, durante longos minutos. O silêncio recaía na grande sala, sobre os barulhos confusos dos cochichos, dos pés que raspam o assoalho..? Eu estava fascinado pelo espetáculo do homenzinho. Nem achei a espera muito demorada. Finalmente, chegou minha vez e me encontrei diante da mesinha, do homenzinho e sua guimba que acabava de se apagar outra vez. Ele olha minha ficha de permissão de permanência e a agita, com um ar enojado, fuzilando-me com o olhar. Não me mexo, olho fixamente, esse sujeito me fascina. Ele coloca a ficha na mesa, reacende sua guimba e olha a ficha. "Ah, ah", diz com uma voz poderosa, "um vermelho espanhol." Parece louco de alegria. Deve fazer muito tempo que não tem um vermelho espanhol para enfiar os dentes. Lembro-me vagamente do porto de Bayonne, da chegada do barco ao porto de Bayonne. O barco tinha atracado bem ao lado da grande praça, havia maciços de flores, veranistas. Nós olhá-

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vamos aquelas imagens da vida de antes. Foi em Bayonne que ouvi dizer pela primeira vez que éramos vermelhos espanhóis.; Olho o homenzinho, não digo nada, estou pensando vagamente naquele dia de Bayonne, faz anos. De qualquer maneira, nunca se pode dizer nada para um tira. "Olhem só", grita ele, "um vermelho es.panhol." Ele olha para mim, olho para ele. Sei que todo mundo fixa ~s olhos em nós. Então, reergo-me um pouco. Normalmente, fico com as costas um pouco curvadas. Sempre me dizem "endireita as costas", não adianta, sempre fico com os ombros um pouco curvados. Não posso fazer nada, não fico mais à vontade d.e outra maneira. Mas eu me endireito o quanto posso. É preCISO que não se confunda minha atitude natural com uma atitude de submissão. Só esse pensamento me dá horror. Olho o homenzinho, ele me olha. De repente, ele explode: . "Vou te ensinar, seu sujo, eu, sim, eu. Não devia gozar a nunha cara. E para começar, vai te pôr no fim da fila e vai recomeçar a esperar." Não digo nada, pego minha ficha na mesa e viro as costas. Sua guimba ainda está apagada e desta vez ele a esmaga raivosamente num cinzeiro. Ando na sala ao longo da fila de espera, e penso nessa m~a dos ~iras, de sempre dizerem tu. Talvez pensem que isso nos ImpressIOna. Mas ele não sabe o que me fez, esse triste filho da puta. Chamou-me de vermelho espanhol e eis que de repente cessei de estar sozinho na grande sala cinzenta e desbotada. Ao lo.ngo de to~a a fila vi os olhares se expandir, vir à tona, naquela trIsteza ambIente, os mais bonitos sorrisos do mundo. Continuo com minha ficha na mão, por pouco eu a faço estalar no ar. Retomo um lugar, no fim da fila de espera. As pessoas se apertam à minha volta, sorriem. Estavam sozinhas, eu estava sozinho, eis que estamos todos juntos. Ganhou, o homenzinho. '/ Estou esticado no caminhão, olho as árvores. Foi em Bayonne, no cais bem ao lado da grande praça, que soube que era um vermelho espanhol. No dia seguinte, tive minha segunda surpresa, quando lemos num jornal que havia os vermelhos e os nacionais. Por que eram nacionais, mesmo fazendo a guerra com as tropas marroquinas, e legião estrangeira, os aviões alemães e as divisões Littorio, não era fácil de entender. Foi um dos primeiros mistérios da língua francesa que tive que decifrar. Mas em Bayonne, no cais de Bayonne, virei um vermelho espanhol. Havia maciços de flores, muitos veranistas atrás dos guardas, que tinham vindo ver desembarcar os vermelhos espanhóis. Fomos 78

vacinados e nos deixaram desembarcar. Os veranistas olhavam para os vermelhos espanhóis e nós olhávamos as vitrinas das padarias. Olhávamos o pão branco, os croissants dourados, todas aquelas coisas de outrora. Estávamos deslocados, nesse mundo de outrora ....... Em seguida, nunca mais deixei de ser um vermelho espanhol. É uma maneira de ser que era válida em toda parte. Assim, no campo, eu era um Rotspanier. Olhava as árvores e estava contente por ser um vermelho espanhol. Os anos passavam, eu ficava cada vez mais contente. Subitamente, não há mais árvores e o caminhão pára. Estamos em Longuyon, no campo de repatriamento. Saltamos c tenho as pernas enrijecidas. Enfermeiras aproximam-se de nós e o comandante abraça a todas. A alegria da volta, certamente. Depois, é o circo. É preciso beber caldo vitaminado e responder a montes de perguntas estúpidas. Ouvindo essas perguntas, bruscamente tomei uma decisão. É preciso dizer, ela já amadurecia em mim, essa decisão. Tinha pensado nisso, vagamente, nas árvores, entre Eisenach e aqui. Penso que ela amadurecia desde que tinha visto os companheiros tomarem-se ex-combatentes, no salão do hotel de Eisenaoh, sob os lustres do hotel de Eisenach. Talvez mesmo ela tenha começado a amadurecer antes. Talvez estava eu todo disposto a tomar essa decisão, desde antes da volta desta viagem. Em todo caso, respondendo maquinalmente a todas aquelas perguntas estúpidas: "Vocês sentiam muita fome?" "sentiam frio?" "eram infelizes?", tomei a decisão de não mais falar desta viagem, de nunca mais me colocar na situação de ter que responder perguntas sobre esta viagem. De um lado, bem sabia que não seria possível, para sempre. Mas, pelo menos, um longo período de silêncio, anos de silêncio sobre esta viagem, senhor, era a única maneira de se livrar dela. Talvez mais tarde, quando ninguém mais falar destas viagens, talvez então eu falarei . Essa possibilidade flutuava confusamente no horizonte de minha decisão. / / Fomos puxados da esquerda e da direita e finalmente nos reencontramos numa sala de onde nos conduziram, um por um, para um exame médico. Quando chegou minha vez, passei pela radioscopia, pelo cardiologista, pelo dentista. Pesaram-me, mediram-me, fizeramme montes de perguntas sobre as doenças que tinha e montes de perguntas sobre as doenças que havia tido na infância. No fim da fileira, encontrei-me sentado na frente de um médico que tinha 79

meu dossiê completo, com as observações feitas pelos düerentes especialistas. "f: incrível", diz o doutor, depois de ter consultado minha ficha. Olho para ele e ele me oferece um cigarro. "f: incrível", diz o doutor, "aparentemente o senhor não tem nada de grave." Faço um gesto vagamente interessado, pois não sei do que ele fala, exatamente. "Nada nos pulmões, nada no coração, pressão normal. f: incrível", repete o doutor. Fumo um cigarro que ele me deu e tento realizar que é incrível, tento me colocar na pele de um caso incrível. Tenho vontade de dizer, a esse doutor, que estar vivo é que é incrível, encontrar-me na pele de um vivo é que é incrível. Mesmo com uma pressão anormal, seria incrível estar ainda na pele de um vivo. "Claro", diz o doutor, "o senhor tem dois ou três dentes cariados. Mas, enfim, é lógico." "f: o mínimo", digo, para não deixá-lo falando sozinho. "Há seis semanas que vejo passar deportados", me diz ele, "mas o senhor é o primeiro caso em que parece estar tudo em ordem." Ele me olha um instante e acrescenta: "Aparentemente." "Ah sim?", digo educadamente. Ele olha para mim atentamente, como se temesse ver, de repente, aparecerem sinais de algum mal desconhecido que tivesse escapado às observações dos especialistas. "Quer que eu lhe diga?", me diz ele. Na realidade não quero, isso não me interessa verdadeiramente. Mas ele me fez essa pergunta para que eu lhe responda: sim, quero que me diga, de qualquer maneira está decidido a me dizer. "Posso lhe dizer, já que o senhor está em perfeito estado", me diz ele. Depois, faz uma ligeira pausa e acrescenta: "Aparentemente. " Sempre a dúvida científica. Ele aprendeu a ser prudente, o homem, compreende-se isso. "Vou lhe dizer", continua, "a maioria dos sujeitos que passaram por nossas mãos não sobreviverão." 80

Ele se embala, tem o ar apaixonado pelo seu assunto. Aborda uma longa explicação médica sobre as seqüelas previsíveis da deportação. E eu começo a ter um pouco de vergonha de estar em tão bom estado, aparentemente. Por pouco, me acharia suspeito. Por pouco, diria a ele que não teribo culpa. Por pouco, me desculparia por ter sobrevivido, por ter ainda chances de sobreviver. "Eu lhe digo, a maioria dentre vocês vai ficar. Qual s·e rá a proporção, o futuro dirá. Mas não penso me enganar se afirmo que sessenta por cento dos sobreviventes vão morrer nos meses e anos que vêm, das conseqüências da deportação." Tenho vontade de dizer a ele que toda esta história não me· diz mais respeito, que passei um traço nela. Tenho vontade de dizer a ele que está me enchendo o saco, que minha morte ou minha sobrevivência não dizem respeito a ele. De qualquer maneira, meu companheiro de Semur morreu, tenho vontade de dizer a ele. Mas ele faz seu trabalho, esse homem, não posso querer impedi-lo de fazer seu trabalho. "., . Ele me dá até logo e parece que tive uma sorte danada. É preciso quase que eu fique contente de ter feito esta viagem. Se não tivesse feito esta viagem, não teria sabido nunca que era um danado de um sortudo. Devo confessar que, neste momento, o mundo dos vivos desconcerta um pouco. Fora, estava Haroux que me esperava. "Então, velho", me diz, "você vai sair desta?" "Parece, se dermos crédito ao doutor, era um verdadeiro sanatório, tão forte eu estou." "Não eu", diz Haroux, gozando, "parece que o coração não anda muito bem. É preciso que eu me faça examinar de verdade em Paris." "Coração não é grave, basta não usá-lo." "Pensa que eu estou ligando, velho?", diz Haroux, "estamos aqui, o sol brilha, poderíamos ter ido na fumaça." "Sim", digo. Devíamos ter partido na fumaça, mesmo. Gozamos juntos. Haroux vem de lá também, temos o direito de rir disso, se queremos. E queremos, precisamente "Vamos, vem", diz Haroux. "Precisamos ir providenciar papéis de identidade provisórios." "f: verdade, bom Deus, isso recomeça." Começamos a andar para a barraca da administração. 81

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"E então, meu rapazinho", diz Haroux, "você queria que te deixassem circular sem papéis, hem? Mesmo que você fosse outro?" "Que provas têm eles de que não sou um outro. Nós vamos como se fôssemos flores. Podemos ser outros." Haroux se diverte. "É a fé do juramento, velho? Vamos declarar que estamos sob a fé do juramento. Você não acha que é sério, a fé do juramento?" Haroux se diverte. Tem seu coração que não anda bem, certamente o doutor contou-o entre os sessenta por cento que não sobreviverão, mas o sol brilha e poderíamos ter ido na fumaça. "Você parece em forma, Haroux." "Em forma? Você está sabendo. Estou mergulhado em manteiga, velho, é assim que me sinto." "Você tem sorte, para mim, todas essas enfermeiras, essas perguntas estúpidas, esses doutores, todos esses olhares apiedados e essas cabeças balançando, isso me enche o saco." Haroux explode, tem ataques de riso. "Você leva tudo a sério demais, meu rapaz, sempre te disse. É um cabeçudo, ora. Não são de morrer de rir, todos esses paisanos?" Entramos na barraca da administração e ele dá uma olhada circular para todos aqueles paisanos e aquelas paisanas. "De qualquer maneira", diz, "ainda não estamos por dentro, você entende?" Deve ser isso, claro. A fé do juramento ajudando, as formalidades de identificação foram bem breves, no conjunto. Reencontramo-nos no fim da fileira diante de uma jovem mulher loura, de blusa branca, que pega a ficha de Haroux e escreve alguma coisa em cima. Depois ela dá a Haroux uma nota de mil francos e oito maços de gauloises. Pois é a preposta dos prêmios de repatriamento. Ela pega minha ficha e meu cartão provisório de identidade. Escreve alguma coisa na ficha e alinha na mesa os oito maços de cigarros. Começo a colocá-los em meu bolso, mas há demais, preciso conservar a metade nas mãos. Depois ela me estende a nota de mil francos. Haroux me dá um cigarro e fumamos. A jovem mulher loura lança um olhar no meu cartão de identidade, no momento em que me ia devolvê-lo. "Oh", diz ela, "mas o senhor não é francês!" "Não", digo. "Mas não mesmo?", diz ela, olhando meu cartão. 82

"A França é minha páLria de adoção, parece, mas não sou verdadeiramente francês." Ela olha para mim e depois para meu cartão, mais de perto. "O senhor é o quê?", pergunta. "A senhora está vendo, sou refugiado espanhol." "E não se naturalizou?", insiste ela. "Mademoiselle, espere que eu morra para me empalhar." Depois, fiquei um pouco envergonhado. É ainda uma piada de ex-combatente, como diria a jovem morena de Eisenach. "Mas é sério, senhor", me diz ela, com um tom administrativo, "o senhor não é realmente francês?" "Realmente não." Haroux, a meu lado, começa a ficar impaciente. "Que diferença faz que meu chapa seja francês ou turco?", pergunta. "Não sou turco", digo suavemente. Só para colocar as coisas em seu lugar. "Que ele não seja francês, qual é o galho?", pergunta Haroux. A jovem mulher loura está um pouco aflita. "Veja", diz ela, "é a respeito do prêmio de repatriamento. Só os cidadãos franceses têm direito a ele." "Não sou cidadão francês", explico. "Aliás, não sou absolutamente cidadão." "Não vai me dizer que ele não tem direito a essa miserável nota de dez pacotes", explode Haroux. "Justamente", diz a jovem mulher loura, "justamente, ele não tem direito." "Mas quem decidiu essa merda dessa babaquice?", grita Haroux. A jovem mulher loura está cada vez mais aflita. "Não fique zangado, senhor, não tenho nada com isso, é a Administração." Haroux explode num riso tonitruante. "Administração o caralho", diz, "a senhora acha isso normal?" "Mas não tenho que achar, senhor", diz ela. "Não tem opinião pessoal sobre isso?", pergunta Haroux, maldosamente. , "Se fosse preciso que eu tivesse opiniões pessoais, senhor, não acabaria nunca", diz ela, sinceramente chocada. "Limito-me a executar as ordens da Administração", acrescenta. "A mãe", faz Haroux, irritado. "Minha mãe também é funcionária, senhor", diz ela, cada vez mais sem jeito. 83

"Deixe pra lá", digo a Haroux, "você está vendo que mademoiselle cumpre ordens." Haroux me fuzila com o olhar. "Fecha", diz, "você não é francês, não tem nada com esta história. Para mim é uma questão de princípios." "As instruções são formais, senhor. Estão consignadas numa nota escrita. Só os cidadãos franceses têm direito ao prêmio de repatriamento", diz a jovem mulher. "Então, fizemos esta guerra por nada", diz Haroux. "Não enche." "Fecha", ele diz, "é uma questão de princípios." "Aliás", insisto, "nunca fiz esta guerra." "Mas que porra é essa?", diz Haroux, furioso. "N ada, não a fiz, é tudo." "Está querendo dizer o quê?", me diz ele. Continua virado para mim e a jovem mulher loura olha para nós. Continua com meu cartão de identidade provisório na mão. "Quer dizer que não sou um ex-combatente. Quer dizer que não fiz esta guerra." "Tá biruta? Que é que você fez, então?" "Fiz a Resistência", esclareço. "Não buzina, tá? Você pensa que não tem direito a essa miséria de prêmio de repatriamento?" "Oh, perdão!", diz a jovem mulher, sem graça, "não é o prêmio de repatriamento, é um adiantamento. O montante total do prêmio ainda não foi fixado." Ela faz questão de esclarecer essas coisas, a jovem mulher. São assim, na Administração. "Adiantamento o caralho", faz Haroux. "Não seja grosseiro", diz a jovem mulher. Haroux explode de novo num riso tonitruante. "Então, você quer ou não, essa porra de adiantamento?" "Mas não sou repatriado", digo, inocentemente. "É biruta", diz Haroux. "Mas senhor", diz a jovem mulher, "não se trata dele querer ou não querer, trata-se é que não tem direito. O senhor entende? É uma questão de ter o direito." "É uma questão de merda", diz Haroux, definitivo. O barulho da discussão chamou a atenção para nós. Há um sujeito que se aproxima. Não usa jaleco branco, mas um terno azul. Deve ser o chefe de serviço dessa Administração que administra nossa volta ao mundo. Pergunta polidamente sobre as causas da discussão. Haroux explica com palavrões e algumas consi-

derações gerais sobre o estado da França. A jovem mulher loura explica também, administrativamente, com um tom neutro. É um caso que diz respeito a ela administrativamente, ela não tem que tomar partido. O chefe de serviço de terno azul · nos explica polidamente quais são as decisões da Administração. Não há dúvida, é preciso que eu devolva aquela nota de mil francos. Não tenho direito àquela nota de mil francos. "Notem, aliás, que o senhor terá certamente direito, numa data ulterior, ao prêmio de repatriamento, logo que a questão do prêmio de repatriamento e o estatuto dos repatriados sejam legalmente explicados. A questão será forçosamente colocada, em seu conjunto, porque são numerosos os estrangeiros que combateram pela França, como o senhor." Não tenho vontade de lhe dizer que não combati pela França e · de qualquer maneira não sou repatriado. Não tenho vontade de complicar as coisas. Devolvo a nota de mil francos à qual não tenho direito. "Por outro lado, o senhor tem direito ao transporte e à acomodação gratuitos, em todo o território nacional, até seu local de residência. É em seu local de residência que a questão do estatuto de repatriado poderá ser examinada em seu conjunto." Não digo a ele que não tenho local de residência. Talvez isso compli~ casse a questão de minha acomodação e de meu transporte gratuitos, em todo o território nacional. Haroux não diz mais nada. Tem o ar arrasado por todas essas considerações administrativas. Vamos partir.,"E os cigarros?", diz a jovem mulher loura. A questão dos cigarros, subitamente lembrada, faz o chefe de serviço de terno azul arregalar os olhos. "Os cigarros", repete. Haroux está de braços caídos, não sabe mais o que fazer. Mas o chefe de serviço tomou uma decisão rápida e corajosa. "Evidentemente", diz, "segundo o que reza esta circular, os cigarros e o adiantamento de mil francos estão ligados. Mas penso que seremos fiéis ao espírito da circular, se deixarmos os cigarros com o senhor. A menos que o senhor não seja fumante?" "Muito bem", digo, "sou sobretudo fumante." "Fique então com os cigarros", diz ele, "fique então. O espírito desta circular o autoriza a isso." Haroux olha para a direita e para a esquerda, no vago. Procura perceber o espírito daquela circular, talvez. "Boa sorte, senhores", diz o chefe de serviço, "e feliz volta aos seus lares."

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Os pequenos e espertos deuses lares de meu lar devem estar contentes, neste momento. Haroux e eu nos reencontramos no pátio. "Não dá para acreditar", diz Haroux. Não ouso dizer a ele que acho tudo isso bastante significativo, no conjunto, ele parece arrasado demais. Andamos na grande aléia do campo de repatriamento. Mas o fato é que não sou repatriado, sou quase grato àquela mulher loura por ter me recordado isso. Chego de um país estrangeiro a outro país estrangeiro. Quer dizer, eu é que sou estrangeiro. Estou quase contente por ter reencontrado assim minha qualidade de estrangeiro, isso me ajuda a conservar as distâncias. Haroux, é claro, tem um ponto de vista diferente. Está com ar triste, Haroux, por constatar a estabilidade das estruturas administrativas de seu país. Deve ter sonhado com uma França toda nova, no domingo, no campo, quando tínhamos tempo de sonhar. O choque com a realidade o aflige. Haroux não diz mais nada. Mas eu, os choques com a realidade sempre me pareceram prodigiosamente excitantes para o espírito. Isso obriga a refletir, não há dúvida. Andamos na grande aléia do campo de Longuyon e paramos para beber numa fonte. Haroux bebe primeiro, enxuga-se com as costas da mão. I "É babaca como a morte, tudo isto", diz, resmungando. Eu acho que ele exagera, que a morte é assim mesmo muito mais babaca. Bebo também, a água está fresca. Penso que esta viagem acabou. A água fresca corre em minha garganta e eu me lembro daquela outra fonte, na praça daquela aldeia alemã. J ustamente, Haroux estava lá também. Andávamos na estrada branca e havia às vezes sombra, às vezes sol. Os edifícios do Pequeno Campo tinham ficado à direita, entre as árvores. lamos beber. Os SS tinham dinamitado os condutos de água, ontem, ao fugir. Mas devia haver uma fonte, na praça daquela aldeia. Há certamente uma fonte, vamos beber. Nossas botas chocam-se duramente com as pedrinhas, na estrada branca, e nós falamos alto. Deve haver uma fonte, na praça daquela aldeia. No domingo, olhávamos às vezes aquela aldeia, aninhada na planície verdejante. Estávamos no bosquezinho, justo além das barracas do Pequeno Campo, e olhávamos para a aldeia. Havia fumaças calmas, sobre as casas daquela aldeia. Mas hoje estamos fora, andamos na estrada pedregosa, falamos alto. A aldeia deve nos esperar, está no fim de nossa marcha conquistadora, não passa de objetivo de nossa marcha. Olho as árvores, as árvores se mexem. Há o vento de abril sobre as árvores. A paisagem cessou de ser imóvel. Antes, sob o

ritmo lento e imutável das estações, a paisagem era imóvel. Quer dizer, nós estávamos imóveis numa paisagem que não passava de um cenário. Mas a paisagem começou a se mexer. Cada atalho, que começa à esquerda sob as árvores, é uma vida que conduz para as profundezas da paisagem, para a renovação perpétua da paisagem. Todas estas alegrias possíveis, ao alcance das mãos, isso me faz rir. Haroux parou para me esperar, andava na frente. Me vê rindo, sozinho. ,/ "Por que você está rindo, sozinho?", pergunta. "É divertido, andar numa estrada." Eu me viro e olho à minha volta. Ele faz o mesmo. "É", diz, "é bem divertido." Acendemos cigarros. São Camel, foi um soldado americano que os deu a mim. Ele era do Novo México, falava um espanhol cantante. "A primavera", digo a Haroux, "o campo, isso sempre me fez rir." "E por quê?", pergunta. Ele tem cabelos brancos, escovinha, e pergunta por que isto me faz rir, sempre, a primavera, o campo. "Não sei muito bem, isso me relaxa. Ora, me dá vontade de rir." Viramos a cabeça e olhamos para o campo. As barracas do campo de quarentena, os edifícios do Revier, estão em parte escondidos pelas árvores. Mais alto, no flanco da colina, alinham-se as fileiras dos blocos em cimento e no contorno da praça de chamada, as barracas de madeira, de um bonito verde, primaveril. À esquerda, bem no fundo, a chaminé do crematório. Olhamos para aquela colina nua onde os homens construíram o campo. Há o silêncio, e o céu de abril sobre aquele campo que homens construíram. / ' Tento pensar que é um instante único, que nós sobrevivemos tenazmente para este instante único, em que poderíamos olhar o campo, do exterior. Mas não consigo. Não chego a perceber o que há de único nesse instante único. Digo a mim mesmo: meu velho, olha, é um instante único, há montes de companheiros que morreram, eles sonhavam com este instante, em que poderíamos olhar o campo, assim, do exterior, em que não estaríamos mais dentro, mas fora - digo a mim mesmo tudo isso, mas isso não me entusiasma. Certamente não sou dotado para perceber os instantes únicos, na pura transparência de si mesmo. Vejo o campo, ouço o rumorejar silencioso da primavera, e isso me dá vontade de rir,

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de correr nos atalhos para debaixo do verde frágil, como sempre o campo, a primavera. Perdi esse instante único. "Como é, vocês vêm?", grita Diego, cem metros adiante. E nós vamos. Tínhamos sede, pensávamos que devia haver uma fonte, na praça daquela aldeia. Sempre há fontes, na praça das pequenas aldeias campestres. A água corre dela, fresca, sobre a pedra polida pelos anos. Nós alcançamos Diego e Pierre, com grandes passadas, nos esperando na encruzilhada da estrada asfaltada que leva à aldeia. "O que é que vocês estavam inventando?", pergunta Diego. . "A primavera o faz rir. Ele pára, e ri para os anjos", responde Haroux. ;, "Isso o perturba, ora, a primavera", constata Pierre. "Não", digo, "não ainda. Mas é divertido andar numa estrada. Até ontem eram os outros que andavam nas estradas." "Que outros?", pergunta Diego. I "Todos os outros, que não estavam dentro." "bramas numerosos, dentro", diz Pierre, caçoísta. É um fato, éramos numerosos. "Então", diz Diego, "vamos a essa filha da puta de aldeia?" Maquinalmente olhamos para o final da estrada, para aquela filha da puta de aldeia. Na verdade, não é a sede, principalmente, que nos empurra para aquela aldeia. Poderíamos ter bebido a água que os americanos trouxeram, em seus caminhões-cisternas. É a aldeia que nos atrai, por si mesma. A aldeia, era o fora, a vida de fora, que prosseguia. No domingo, no limiar das árvores, além do Pequeno Campo, era a vida de fora que espiávamos. Estamos andando em direção da vida de fora. Não rio mais, canto. Diego vira-se, ultrajado. "O que é que você pensa estar cantando?", diz. "Mas, La Paloma!" Está me chateando. Acho que dá para entender, que estou cantando La Paloma. "Pois sim!", e ele encolhe os ombros. Cada vez que eu canto, dizem-me para calar a boca. Mesmo quando cantamos em coro, vejo os gestos indignados dos companheiros, que tapam os ouvidos. Para acabar, quando cantamos em coro, limito-me a abrir a boca, mas nenhum som passa por ela. É a única maneira de sair dessa. Mas há pior. Mesmo quando não canto nada de exato, que improviso, me dizem que desafino.

Não compreendo como nada pode ser desafinado. Mas parece que o desafinado e o tom justo, em música, são noções absolutas. O resultado é que não posso nem mesmo cantarolar no chuveiro. Mesmo aí, gritam me mandando calar a boca. Andamos na estrada asfaltada e não dizemos mais nada. O campo é bonito, em volta, mas está vazio, é um campo verde e cheio onde não se vê mais ninguém trabalhar, onde nenhuma figura humana aparece. Talvez não seja o momento de trabalhar nos campos, não sei, sou um homem das cidades. Ou então é sempre assim, o campo, no dia seguinte ao da invasão. Talvez os campos são sempre assim, vazios, atentos no silêncio, no dia seguinte ao da chegada dos invasores. Para nós, é a vida de antes que recomeça, a vida de antes desta viagem. Mas para esses camponeses da Turíngia, pois eles devem existir apesar de tudo, é a vida de depois que começa hoje, a vida de depois da derrota, de depois da invasão. Eles estão talvez em suas casas, a esperar que rumo vai tomar sua vida depois da derrota. Pergunto-me que cara vão fazer, nessa aldeia, vendo-nos aparecer. Chegamos diante das primeiras casas da aldeia. Ainda não é uma verdadeira rua, é somente a estrada que se prolonga e em volta da qual começam a se erguer casas. Elas são bem tratadas, essas casas, agradáveis de olhar. Atrás de uma cerca toda branca, ouvimos barulhos de terreiro. E um pouco mais adiante, é a praça da aldeia. Ela está lá, não tínhamos sonhado. Há uma fonte, no meio, duas faias que sombreiam um canto da praça, com bancos. A água corre num recipiente de pedra polida pelos anos, numa plataforma circular à qual se acede por dois degraus. A água corre, num jato igual, e às vezes o vento de abril dispersa o jato de água e não se ouve mais o barulho do jato de água vindo bater na superfície da água do recipiente. Estamos lá, olhamos a água correr. Diego aproxima-se do jato de água, e bebe, longamente. Reergue-se e tem o rosto coberto por gotinhas brilhantes. "Ela é boa", diz. Então Pierre aproxima-se por sua vez, e bebe. Olho à nossa volta, as casas desta praça deserta. A aldeia, dir-se-ia, está vazia, mas sinto a presença humana dessa aldeia, atrás das portas fechadas, das janelas fechadas. Pierre reergue-se por sua vez, e ri. "Bom Deus, água é isso!", diz. No campo, a água era ruim, era preciso cuidar para não beber muito: Lembro-me daquela noite em que chegamos, muitos

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ficaram doentes como cachorros, por terem se enchido daquela água morna e enjoativa. O rapaz de Semur tinha ficado no vagão. Desde que morrera, eu o sustentara com os braços, mantivera um cadáver contra mim. Mas os SS abriram as portas corrediças, seus gritos e suas pancadas des-abaram sobre nós, em meio aos latidos raivosos dos cães de guarda. Saltamos para a plataforma, pés nus na lama de inverno, e deixei meu companheiro de Semur no vagão. Estiquei seu cadáver ao lado do velhote que tinha morrido dizendo: "Vocês se dão conta?" Eu começava a me dar conta, com certeza. Haroux bebeu também daquela água que era boa. Pergunto-me há quantos anos essa fonte derrama sua água viva. Mas são séculos, quem sabe. Talvez foi essa fonte que fez esta aldeia, esse manancial de outrora que atraiu à sua volta os camponeses, as casas dos camponeses. Penso que, em todo caso, esta água viva já corria aqui, quando o Ettersberg não tinha ainda sido derrubado, quando os ramos das faias cobriam toda a colina onde construíram o campo. Os SS haviam conservado, na esplanada entre as cozinhas e o Effektenkammer aquela faia da qual se diz que Goethe vinha sentar-se à sombra. Penso em Goethe e em Eckermann, conversando para a posteridade, sob aquela faia entre a cozinha e o Eftektenkammer. Penso que eles não poderão mais ir ali, a árvore queimou por dentro, não passa de uma carcaça vazia apodrecendo, uma bomba de fósforo americana liquidou a faia de Goethe, no dia em que eles bombadearam as fábricas do campo. Olho Haroux inundar o rosto com esta água fresca e pura e pergunto-me que cara faria se eu lhe dissesse que está bebendo a água de Goethe, que certamente Goethe veio até esta fonte campestre, para saciar sua sede, depois de ter conversado com Eckermann, para a posteridade. É simples, ele me mandaria para aquele lugar. Haroux bebeu e é minha vez. A água é boa, não há dúvida. Não tão boa quanto a água de Guadarrama, a água das fontes do Paular ou de Buitrago, mas ela é boa, não há dúvida. Tem um leve gosto ferruginoso. Em Yerres, também, a água da fonte, no fundo da horta, tinha um leve gosto ferruginoso. Acabamos de beber e estamos de pé, no meio da praça. Olhamos à nossa volta, arrastamos nossas botas no calçamento da praça. Pergunto-me se a aldeia tem medo, se os camponeses nos temem. Eles trabalharam nesses campos, durante anos tiveram os edifícios do campo sob os olhos, quando trabalhavam em seus campos. No domingo, nós os víamos passar na 90

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estrada, com suas mulheres, seus filhos. Era a primavera, como hoje, e eles passeavam. Para nós, eram homens que passeavam, com suas famílias, depois de uma semana de duro trabalho. Seu ser nos era imediatamente acessível, seu comportamento era transparente, para nós era a vida de antes._ Nosso olhar fascinado os descobria em sua verdade genérica. Eram camponeses, num domingo, na estrada, com suas famílias, passeando. Mas nós, que visão podiam eles ter de nós? Bem que era preciso haver uma grave razão para que estivéssemos fechados num campo, para que nos fizessem trabalhar desde antes da aurora, no inverno como no verão. :Éramos criminosos, cujas faltas deviam ser particularmente graves. É assim que eles deviam nos ver, esses camponeses, se é que nos viam, que compreendiam, verdadeiramente, nossa existência. Nunca devem ter colocado para si mesmos, de verdade, o problema de nossa existência, o problema que nossa existência colocava para eles. Fazíamos parte certamente desses acontecimentos do mundo sobre os quais não pensavam, sobre os quais não tinham os meios, não queriam tê-los, por outro lado, de colocar o problema, de encará-los como problemas. A guerra, esses criminosos de Ettersberg (estrangeiros, além do mais, isso ajuda a não colocar problemas, a não complicar sua vida), os bombardeios, a derrota, e as vitórias antes, tudo isso eram acontecimentos que os ultrapassavam, literalmente. Trabalhavam seus campos, passeavam no domingo, depois de ter ouvido o pastor, o resto lhes escapava. Aliás, é verdade, o resto lhes escapava, já que estavam decididos a deixá-lo escapar. "Não há ninguém nesta aldeia?", diz Pierre. "Há, você bem que está vendo", responde Haroux. Bem vemos, de fato, que há gente. Cortinas se movem, em algumas janelas. Olhos nos espiam. Viemos procurar a vida de antes, a vida de fora. Mas trouxemos conosco a ameaça de toda a coisa desconhecida, de uma realidade, até ontem criminosa e punível. A aldeia fez o vazio à nossa volta. "Muito bem", diz Pierre, "não nos resta senão dar o fora." Ele tem razão, mas ficamos, a arrastar nossas botas no calçamento da praça, a olhar aquelas casas cuja vida interior esquivou-se de nós. Que esperávamos, exatamente, desta- aldeia? "Então o quê?", faz Diego, "é uma aldeia alemão, não há por que fazer essa cara." Assim, fazemos uma cara. Já que Diego o diz, é porque fazemos uma cara. Quer dizer, é que eu também faço uma cara, pois os outros, eu bem que via que estavam fazendo uma cara, Diego inclusive. 91

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Rimos idiotamente, olhando uns para os outros. "Bom, vamos embora", diz Haroux. E vamos embora. A aldeia nos expulsa, expulsa o barulho de nossas botas, nossa presença ofensiva para sua tranqüilidade, para sua boa consciência ignorante, ela expulsa nossas roupas listradas, nossas cabeças raspadas, nosso olhar dos domingos, que descobria a vida de fora nessa aldeia. E depois, está aí, não era a vida de fora, não passava de uma outra maneira de estar dentro, de estar no interior desse mesmo mundo de opressão sistemática, conseqüente até o fim, cujo campo era a expressão. Vamos embora. A , água. era boa, assim mesmo, não há dúvida. Era fresca , era agua VIva. "Oh velho, te sacode", diz o rapaz de Semur. Desde que o dia nasceu, caí numa espécie de sonolência embotada. " O quê?", pergunto. "Pinóia. Faz horas que avançamos, sem parar, e você aí, sem ver nada. A paisagem não te interessa mais?" Olho a paisagem, com um olho apagado. Não, não me interessa mais, por agora. Aliás, está longe de ser tão bonita quanto ontem, quanto o vale da MoseIle sob a neve. "Não é bonita, esta paisagem", digo. O rapaz de Semur se diverte. Quer dizer, tenho a impressão que ele força um pouco. "O que é que você queria?", diz. "Um circuito turístico?" "Eu não queria nada. Simplesmente, ontem era bonita, hoje não é bonita, esta paisagem." Desde que o dia nasceu, tenho a impressão que meu corpo vai se partir em pedaços. Sinto cada um desses pedaços, isoladamente, como se meu corpo não fosse mais um todo. As dores de meu corpo se espalham pelos quatro cantos do horizonte. Quando eu era criança, lembro-me, no grande salão de cabeleireiro, onde nos levavam, não muito longe do Bijenkorf, em Haia, eu me esforçava para sentir na minha frente, na minha imagem no grande espelho na minha frente, as vibrações da máquina de raspar elétrica ou o arrepio do fio da navalha nas faces e na nuca. Era um grande salão para homens, com umas doze poltronas na frente daquele longo espelho que ocupava toda a parede. Os fios das máquinas de raspar elétricas corriam numa espécie de haste, à altura de uma mão de homem esticada para cima. Agora que penso nisso, havia o mesmo sistema de máquinas corrediças nu-

ma especle de haste, na grande sala de desinfecção, no campo. Mas ali não havia poltronas, claro. Eu me sentava na poltrona, naquele salão de cabeleireiro ao lado do Bijenkorf e me deixava levar. O calor ambiente, o ronco das máquinas, minha ausência deliberada de mim mesmo me projetavam num entorpecimento vizinho do embotamento. Depois, eu me agitava um pouco interiormente e fixava minha imagem, no longo espelho que ocupava toda a parede em frente. Primeiro, era preciso prestar bastante atenção para fixar só minha imagem, isolá-la de todos os outros reflexos no espelho. Era preciso que o rosto rubicundo daquele holandês que estava raspando uma barba ruiva não viesse atrapalhar minha tentativa. Ao fim de um instante de fixidez quase dolorosa, tinha impressão que meu reflexo no espelho se destacava da superfície polida, avançava para mim, ou então recuava mais, além do espelho, mas em todo caso aureolado por uma espécie de franja luminosa que o isolava de todos os outros reflexos, tornados imprecisos, obscurecidos. Um esforço mais, e a vibração da máquina em minha nuca, não a sentia mais em minha nuca, quer dizer, sim, eu a sentia em minha nuca, mas lá, na minha frente, naquela nuca que devia estar atrás da imagem de minha cabeça refletida no espelho. Hoje, no entanto, não preciso brincar, dolorosamente, de perder à minha volta minhas próprias sensações corporais, hoje, todos os pedaços partidos e pisados de meu corpo se espalham pelos quatro cantos do horizonte restrito do vagão. Só me resta de meu, no interior de mim mesmo, esta bola de fogo, esponjosa e ardente, em algum lugar por trás de meus olhos, onde parecem repercutir, mole mente às vezes, e subitamente de maneira aguda, todas as dores que provêm de meu corpo partido em pedaços espalhados à minha volta. "Em todo caso, avançamos", diz o rapaz de Semur. No mesmo momento em que ele diz isso, há um sol pálido que se reflete nos vidros de um posto de controle e o trem pára ao longo de uma plataforma de estação. "Que merda", diz o rapaz de Semur. As perguntas afluem de toda parte para os que estão perto das aberturas cruzadas por arames farpados. Querem saber onde estamos, os rapazes, o que vemos, se é uma estação ou se estamos, uma vez mais, parados em pleno campo. "É uma estação", digo para os que estão atrás de nós. "Parece ser uma grande cidade?", pergunta alguém. "Não", diz o rapaz de Semur, "parece mais uma pequena cidade." "Chegamos?", pergunta outra pessoa.

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"Como é que você quer que se saiba, velho?", diz o rapaz de Semur. Eu olho a estação e além da estação parece ser uma cidadezinha, de fat~. A plataforma está vazia e há sentinelas na plataforma e sentmelas na frente das portas de acesso às salas de es~ra e p~sagens para viajantes. Vemos pessoas se movendo, atras dos VIdros .d~ salas de espera, atrás das borboletas de passagem para os VIaJantes. "Você viu?", digo ao rapaz de Semur. Ele balança a cabeça. Viu. "Parece que somos esperados." A idéia que é talvez o fim da viagem flutua na névoa de meu cansaço desesperado. Mas ela não me deixa nem quente nem frio, essa idéia que é talvez o fim da viagem. "Talvez seja Weimar", diz o rapaz de Semur. "Você continua convencido de que vamos a Weimar?" . E isso não :fie de~a nem quente nem frio, que estejamos em ~eImar, que seja WeImar. Não passo de um momo amontoado pIsado pelo galope das dores lancinantes.# "Claro, velho", diz o rapaz de Semur, conciliante. E el~ olha para mim. Vejo que ele pensa que era melhor que fosse WeImar, que era melhor que tivéssemos chegado. Vejo que el~ pen.:'a que eu não agüentarei mais por muito tempo. Isso tambem nao ~e toca,. que eu não agüente mais por muito tempo, que eu esteja no fIm do novelo, ou não. Em Ascona, dois anos mais tarde, mais ou menos dois anos mais t~r?e, lem~rei-me dessa parada na estação provincial, sob uma pálIda clandade de inverno. Tinha descido em Solduno, na parada do carro, e em vez de subir logo para a casa, lembro-me, atravessei a ponte e andei até o cais de Ascona. Era inverno também, mas o sol brilhava, tomei um café ao ar livre, sob o sol, no te~raço de um dos bistrôs do cais de Ascona, em frente ao lago bnlhante sob o sol de inverno. Havia a minha volta algumas mulheres, bonitas, carros-esportes, e jovens vestidos de flanela impecável. A paisagem era bonita, tema, era o começo do pós-guerra. Falavam-se várias línguas, a minha volta, e os carros-esportes buzinavam, partindo rapidamente, entre risos, para alegrias fugazes. Eu est.ava sentado, bebia café de verdade, não pensava em nada, quer dizer, pensava que logo devia partir, que esses três meses de re~uso n~ Suiça it~ana log iam acabar. Era preciso organizar mmha VIda, quer dIZer, eu tInha vinte e dois anos, e era preciso começar a viver. No verão de minha volta, no outono não tinha ainda começado a viver. Simplesmente, tinha seguido,' até o fim,

até o esgotamento, todas as possibilidades contidas nos instantes que passam, sucessivos. Agora, era preciso começar a viver, fazer projetos, um trabalho, obrigações, um futuro Mas em Ascona, no cais de Ascona, diante do lago brilhando sob o sol de inverno, eu ainda não tinha futuro. Desde que chegara a Solduno só tinha absorvido sol por todos os poros de minha pele e escrito este livro que eu sabia que só serviria para colocar em ordem meu passado ara mim mesmo. Foi então, em Ascona, diante de meu café, café de verdade, feliz sob o sol, desesperadamente feliz de uma felicidade vazia e enevoada, que me lembrei desta parada na cidadezinha alemã, no decurso desta viagem. Ao longo dos anos, é preciso dizer, lembranças me assaltaram, às vezes, com uma perfeita precisão, surgindo do esquecimento voluntário desta viagem, com a perfeição polida dos diamantes que nada pode atingir. Essa noite, por exemplo, em que eu devia jantar em casa de amigos. A mesa estava arrumada numa grande peça, agradável, havia uma lareira acesa. Falamos de várias coisas, nós nos entendemos bem, e Catherine nos pediu para ir para a mesa. Ela tinha preparado um jantar à russa, e foi assim que tive na mão, de repente, uma fatia de pão preto, e que mordi, de maneira mecânica, prosseguindo a conversa. Então, esse gosto de pão preto, um pouco ácido, essa lenta mastigação do pão preto, rascante, fizeram reviver em mim, brutalmente, aqueles instantes maravilhosos em que comíamos nossa ração de pão, no campo, em que devorávamos longamente, com truques de indiano, para que aquilo durasse, os minúsculos quadrados de pão úmido e granuloso que cortávamos na ração do dia. Fiquei imóvel, braço no ar, com minha fatia de bom pão preto, um pouco ácido, na mão, e meu coração batia loucamente. Catherine perguntou o que eu tinha. Não tinha nada, assim, um pensamento, nenhuma relação, não podia chegar a dizer a ela que estava morrendo, desfalecendo de fome, muito longe deles, muito longe da lareira acesa, das palavras que pronunciávamos, sob a neve da Turíngia, em meio às grandes faias onde sopravam as lufadas de inverno. Ou então aquela outra vez, em Limoges, por ocasião de uma viagem. TÍnhamos parado o carro na frente de um café, Le Trianon, diante do Liceu. Estávamos no balcão, bebendo um café, e alguém pôs em funcionamento o aparelho de música, quer dizer, antes ouvi os primeiros compassos de Tequila, antes de compreender que alguém devia ter posto em funcionamento o aparelho de música. Virei-me, e vi numa mesa um grupo de rapazes e garotas, que tamborilavam o compasso e acompanhavam o ritmo de Tequila com o corpo. Sorri por dentro, primeiro, pensando que, verdadeiramente,

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ouvia-se Tequila em toda parte, que era engraçado ver a jeunesse dorée de Limoges balançar-se ouvindo Tequila. Assim, à primeira vista, eu não teria facilmente associado Limoges e Tequila. Pensei em coisas mais ou menos importantes, a respeito daquela difusão mecânica da música-mercadoria, mas não tenho a intenção de tentar reproduzir quais eram esses pensamentos mais ou menos importantes. Os amigos bebiam seu café, talvez ouvissem Tequila, bebiam café, sem mais. Eu me virei outra vez, e então notei o rosto daquela jovenzinha, crispado, olhos fechados, máscara estática de Tequila transformada em muito mais que música, transformada em garotinha perdida no mundo sem limites do desespero. Bebi mais um gole de café, os companheiros não diziam nada, eu também não dizia nada, tínhamos viajado sem parar durante quatorze horas, mas de repente parei de ouvir Tequila e ouvi com muita nitidez a melodia de Star Dust, como a tocava, no trumpete, aquele dinamarquês que integrava a orquestra de jazz que Yves tinha criado no campo. Não havia nenhuma relação, claro, quer dizer, sim, havia uma relação, pois não era a mesma música, mas era o mesmo universo de solidão, era o mesmo folclore desesperado do Ocidente. Pagamos nossos cafés saímos tínhamos ainda muita estrada a percorrer. Em Ascona, ~ob o soi de inverno, em ~cona~ diante do horizonte azul do lago, foi nessa parada na cIdadezmha alemã que pensei.// O rapaz de Semur tinha dito: "Oh, velho, te sacode", logo antes do trem parar naquela estaçãozinha alemã, lembrei-me. Acendi um cigarro e me perguntei por que essa lembrança afluía à. supe~fície. N,ão havia nenhuma razão para que essa lembrança VIesse a tona, e talvez por isso que ela vinha, como um chamado agudo, no meio desse sol de Ascona, dessa felicidade vazia e enevoada de Ascona, um chamado pungente de espessura daqUele passado, pois é talvez a espessura daquele passado que tornava vazia e ~nevoad~ essa .felicidade de Ascona, todas as felicidades possíveIS, daqUI por dIante. O fato é que a lembrança da estaçãozinha, a lembrança de meu companheiro de Semur, afluiu à superfície. Eu estava imóvel, bebia meu café em pequenos goles, uma vez ~ais, uma vez ainda mortalmente ferido pelas lembranças desta VIagem. O rapaz de Semur tinha dito: "Oh, velho, te sacode", e logo depois estávamos parados naquela estação alemã. Nesse mo ... menta uma jovem mulher veio à minha mesa, com uma bonita boca maquilada e olhos claros. "Você não é o amigo de Bob?", perguntou-me. Eu não era o amigo de Bob, claro, como poderia ser o amigo de Bob? "Não", disse a ela, "desculpe-me." "Pena", 96

disse ela, o que era bastante enigmático. "Você perdeu Bob?", pergunto. Então, ela riu. "Bob, sabe, não há meio de perdê-lo", disse. Depois sentou-se na beirada de uma cadeira e pegou um de meus cigarros, o maço estava na mesa. Ela era bonita, barulhenta, exatamente o que eu precisava para esquecer meu companheiro de Semur. Mas não tinha vontade de esquecer meu companheiro de Semur, naquele momento exato. Dei-lhe fogo, apesar de tudo, e olhei novamente o horizonte azul do lago. O rapaz de Semur tinha dito: "Em todo caso, avançamos", ou alguma coisa assim, e logo depois o trem parou ao longo da plataforma deserta daquela estação alemã. "O que você está fazendo por aqui?", perguntou a jovem. "Nada", eu disse. Ela me olhou fixamente e balançou a cabeça. "Então, Pat é que teria razão?", diz ela. "Explique isso", peço e no entanto não tenho nenhuma vontade de me envolver numa conversa com ela. "Pat diz que você está aqui, assim, por nada, mas nós pensamos que você procura alguma coisa." Eu olho para ela e não digo nada. "Bom", diz ela, "vou deixá-lo. Você está na casa toda redonda, acima de Solduno, na colina de Maggia." "É uma pergunta?", digo. "Não", diz ela, "eu sei." "Então?", faço. "Irei vê-lo, um desses dias", diz ela. "Certo", respondo, "melhor uma noite." Ela faz "sim" com a cabeça e se levanta. "Mas não diga nada a Bob", acrescenta. Levanto os ombros, não conheço Bob, mas ela já foi embora. Peço outro café e fico ao sol, em vez de ir para casa trabalhar eu meu livro. De qualquer maneira, meu livro, vou acabá-lo porque é preciso acabá-lo, mas já sei que ele não vale nada. Não será agora, ainda, que poderei contar esta viagem, é preciso esperar ainda, é preciso esquecer verdadeiramente esta viagem, depois, talvez, poderei contá-la. "Em todo caso, avançamos", tinha dito o rapaz de Semur, e logo depois parávamos naquela estação alemã, eu lembrava-me disso, em Ascona. Em seguida, passou-se um certo tempo, minutos ou horas, não me lembrava mais, em todo caso um certo tempo passou-se, quer dizer, nada aconteceu durante um certo tempo, simplesmente estávamos lá, ao longo da plataforma deserta, e as sentinelas faziam gestos em nossa direção, certamente explicavam às pessoas que tinham vindo, quem éramos. / / "Eu me pergunto, esses boches, o que pensam de nós, como nos vêem", disse o rapaz de Semur. Ele olha aquela estação alemã, e aquelas sentinelas alemães e aqueles curiosos alemães, com olhos graves. De fato, é uma questão que tem interesse. Nada vai mudar para nós, claro, qualquer que seja a imagem que tenham de nós esses alemães aper-

tados atrás dos vidros das salas de espera. O que somos, nós o seremos, qualquer que seja o olhar pousado em nós por esses basbaques alemães. Mas, enfim, somos também o que eles imaginam ver em nós. Não podemos ignorar totalmente seu olhar, ele nos descobre também, revela também o que podemos ser. Olho esses rostos alemães, imprecisos, atrás do vidro das salas de espera e me lembro da chegada a Bayonne, há sete anos. O barco tinha atracado diante da grande praça onde havia maciços de flores e vendedores de sorvetes de baunilha. Havia uma pequena multidão de veranistas, atrás das barreiras de guardas para nos ver desembarcar. Eles nos viam como vermelhos espanhóis, aqueles veranistas, e isso primeiro nos espantava, isso fugia ao nosso entendimento, e no entanto tinham razão, éramos vermelhos espanhóis, eu era já um vermelho espanhol, sem o saber, e graças a Deus, não é nada mal ser um vermelho espanhol. Graças a Deus, continuo a ser um vermelho espanhol e olho esta estação alemã entre a névoa de meu cansaço com um olhar de vermelho espanhol. "Eles nos vêem como bandidos, imagino, como terroristas", digo ao rapaz de Semur. "Num sentido", diz ele, "eles têm alguma razão." "Graças a Deus", digo. O rapaz de Semur sorri. "Graças a Deus", diz ele, "você se dá conta se estivéssemos no lugar deles?" Eu me dou conta de que não saberíamos estar em seu lugar, quer dizer, estaríamos talvez como eles, mistificados, convencidos da retidão de nossa causa. "Quer dizer", pergunto a ele, "que você prefere que estejamos onde estamos?" "Bem, eu preferiria estar em Semur, se você quer saber. Mas entre eles e nós, esses boches aí que nos olham e nós, prefiro estar em nosso lugar." O soldado alemão de Auxerre, ele também, eu sentia que às vezes teria preferido estar no meu lugar. Conheci outros, por outro lado, que estavam muito contentes de estar onde estavam, certos de estar no bom lugar. De Dijon a Compiegne, há oito dias, as duas sentinelas que estavam em nosso compartimento, por exemplo, não tinham dúvidas sobre esta questão. Eram dois sujeitos na força da idade, bem alimentados, eles se divertiam em apertar nossas algemas o mais possível, e dar pontapés com as botas em nossas pernas. Riam alegremente depois, estavam encantados por serem assim tão fortes. Eu estava algemado a um

polonês, um homem de uns cinqüenta anos, absolutamente con-/ vencido de que iam nos massacrar a todos ao longo do caminho À noite, cada vez que o trem parava, ele inclinava-se para mim e cochichava: "Desta vez, vai ser, vamos todos." No começo eu bem tinha tentado fazê-lo raciocinar, "mas era inútil, ele tinha perdido completamente a cabeça. Uma vez, por ocasião de uma longa parada, senti seu hálito ofegante e ele me disse: "Você ouve?" Eu não ouvia nada, claro, quer dizer, nada além da respiração dos companheiros que cochilavam. "O quê?", pergunto. "Os gritos", me diz. Não, eu não ouvia os gritos, não havia gritos. "Que gritos?", pergunto. "Os gritos dos que estão sendo massacrados lá, sob o trem." Não disse mais nada, não valia a pena dizer. "Você ouve?", me diz de novo, algum tempo depois. Não reajo. Então, ele puxa a corrente que nos liga, punho com punho. "O sangue", diz, "você não ouve o sangue correr?" Tinha uma voz rouca, uma voz já desumana. Não eu não ouvia o sangue correr, ouvia sua voz louca, sentia o meu sangue gelar. "Sob o trem", diz ele, "lá sob o trem, riachos de sangue, ouço o sangue correr." Sua voz subiu um tom e um dos soldados alemães resmungou: "Rueh, Schiskerl", e lhe deu uma pancada com o cabo do fuzil no peito. O polonês se encolheu no banco, sua respiração tornou-se sibilante, mas nesse momento o trem recomeçou a andar e isto deve tê-lo acalmado um pouco. Eu cochilei e no meu semi-sono ouvi sem cessar aquela voz já desumana que falava do sangue, dos riachos de sangue. Ainda hoje, às vezes, ouço aquela voz, aquele eco dos terrores ancestrais, aquela voz que fala do sangue, dos massacrados, aquele próprio sangue, viscoso, que canta surdamente na noite. Hoje ainda, às vezes, ouço aquela voz, aquele rumor do sangue na voz tremente sob o vento da loucura. Mais tarde, na aurora, fui acordado com um sobressalto. O polonês estava de pé, berrava não sei o que para os soldados alemães, movia seu braço direito com raiva e o aço da algema serrava literalmente meu punho esquerdo. Os alemães começaram então a bater nele, até que desmaiou. Tinha o rosto em sangue e seu sangue tinha espirrado em mim. É verdade, agora ouço o sangue correr, longos riachos de sangue correr sobre suas roupas, sobre o banco, sobre minha mão esquerda ligada a ele pela algema. Mais tarde, eles o soltaram e arrastaram pelos pés no corredor do vagão e tive a impressão de que estava morto. Eu olhava aquela estação alemã, onde continuava a não acontecer nada, e pensava que fazia oito dias que estava a cami-

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nho, com aquela breve parada em COmpiegnel' Em Auxerre, tinham-nos tirado das celas às quatro horas da manhã, mas estávamos prevenidos desde a noite anterior. Huguette tinha passado para me prevenir, tinha me cochichado a nova através da porta, quando subia para a cela, depois do trabalho nas cozinhas da prisão. Huguette tinha posto La Sou ris em seu bolso, circulava na prisão e levava as novas de uns para os outros. "Amanhã, na aurora, haverá uma partida para a Alemanha, você está nela", tinha-me cochichado. Bom, aconteceu, vamos saber como são esses famosos campos. O rapaz da floresta de Othe estava triste. "Merda", disse, "eu bem queria ficar contigo, que fizéssemos essa viagem juntos." Mas ele não fazia parte desse transporte, ficava com Ramaillet, perspectiva que não o enchia de alegria. Eles nos tiraram das celas às quatro horas da manhã, Raoul, Olivier, três rapazes do grupo Hortieux e eu. Dir-se-ia que todas as galerias sabiam, pois logo se fez uma barulheira na prisão, chamavam-nos por nossos nomes e nos gritavam adeus. Eles nos puseram no trenzinho, até Laroche-Migennes, acorrentados dois a dois. Em Laroche, esperamos na plataforma o trem de Dijon. Estávamos cercados por seis feldgendarmes, empunhando metralhadoras, um para cada um de nós, e havia mais dois suboficiais do Sicherheitsdienst. Estávamos agrupados na plataforma e os viajantes passavam e repassavam em silêncio diante de nós. Fazia frio, eu estava com o braço esquerdo todo dormente, pois eles tinham apertado demais a algema e o sangue não circulava direito/ 'Parece que há movimento", diz o rapaz de Semur. / Ele tinha passado pela prisão de Dijon algumas semanas antes de mim. Em Dijon é que eles reuniam os deportados de toda a região, antes de encaminhá-los para Compiegne ~ Olho e, de fato, parece que há movimento. "O que estamos ouvindo?", pergunta alguém atrás de nós. O rapaz de Semur tenta ver. "Parece que estão abrindo as portas dos vagões, por lá", diz. Tento oIliar também. "Então, chegamos?", diz outra voz. Olho e é verdade, eles fazem descer os sujeitos de um vagão no fim da plataforma. "Você consegue ver?", pergunto. "Parece que os rapazes sobem no vagão, logo depois", diz ele. Observamos o movimento na plataforma, durante alguns minutos. 100

"Sim, eles devem estar fazendo uma distribuição de suco, ou algo assim." "Então, digam, chegamos?" Perguntam atrás de nós. "Não parece", diz o rapaz de Semur, "parece mais que eles distribuem suco, ou algo assim." "Os rapazes sobem de novo para os vagões?", perguntam. "Sim, justamente", digo. "Tomara que tenhamos o que beber, bom Deus", diz alguém mais. Eles começaram pelo fim do comboio e chegam em nossa direção. "Estamos muito longe, para ver o que distribuem", diz o rapaz de Semur. "Tomara que seja água", diz a mesma voz de antes. Deve ser o sujeito que comeu salame durante a viagem, parece ter muita sede. "Estamos muito longe, não se vê", diz o rapaz de Semur. De repente, há barulho bem ao nosso lado, e sentinelas alemães tomam posição diante de nosso vagão. Devem ter começado a operação pelas duas extremidades do comboio. Há um grupo de cozinheiros que chegam com grandes recipientes e um carrinho de bagagem cheio de tigelas brancas que parecem ser de porcelana. Ouvimos o barulho dos cadeados e das barras de ferro, e a porta corrediça do vagão abre-se completamente. Então, um SS mal-encarado late não sei o que e os rapazes que estão mais perto da porta começam a saltar para a plataforma. "Não deve ser suco que estão dando", diz o rapaz de Semur, "em tigelas como essas." Somos arrastados pelo movimento em direção à porta. "É preciso se apressar para o trem", diz o rapaz de Semur, "se quisermos conservar nossos lugares perto da janela." Saltamos para a plataforma e corremos para um dos reei: pientes diante do qual os rapazes se amontoam em desordem. O SS que comanda a operação não parece tão contente. Não deve gostar dessa desordem e desses gritos. Deve pensar que os franceses, na verdade, não são pessoas disciplinadas. Berra ordens, bate um pouco ao acaso, na espinha dos rapazes, com um comprido cacete de borracha/ I" Pegamos ligeiro uma tigela branca e é realmente porcelana, e a estendemos para o cozinheiro que faz a distribuição. Não é suco, não é água, é uma espécie de cozido amarronzado. O rapaz de Semur leva a tigela à boca. 101

"Vacas!", diz, "está salgado como água do mar!" Experimento também e é verdade. É um caldo espesso e salgado . . "Sabe?", diz o rapaz de Semur, "é melhor não engolirmos esse mijo.'./' Concordo com ele e vamos devolver nossas tigelas cheias. Há um soldado alemão que nos olha com olhos arregalados. "Was ist denn lOS?"l, diz. Eu mostro a ele as tigelas e digo: "Viel zu viel Salz."2

Ele nos olha indo embora, balança a cabeça. Deve achar que somos muito difíceis. No momento em que íamos subir novamente em nosso vagão, ouvimos um rumor de apitos, risos agudos, exclamaç~e~. Eu me viro, o rapaz de Semur também. Há um grupo de CIVIS alemães que penetraram na plataforma. Homens e mulheres. Devem ser as personalidades da região, às quais permitiram q~e viessem assistir ao espetáculo de mais perto. Eles choram de nr, gesticulando muito, e as mulheres soltam gritinhos histéricos. Procuramos o motivo de sua agitação. "Muito bem, que merda!", diz o rapaz de Semur. É que os rapazes do segundo vagão depois do n?sso estão nus. Saltam para a plataforma ligeiro, tentando cobnr-se com suas mãos, nus como vermes. "Que circo é esse?", pergunto. Os alemães se divertem muito. Os civis, sobretudo. As mulheres aproximam-se do espetáculo que proporcionam todos aqueles homens nus, correndo de maneira grotesca na plataforma da estação, e cacarejam mais ainda. "Deve ser o vagão onde houve fugas", diz o rapaz. de Semur, "e em vez de lhes tirarem somente os sapatos, os deixaram pelados." Deve ser isso, certamente. "As nojentas estão gozando", diz o rapaz de Semur, enojado. Depois subimos no vagão. Mas teve muita gent~ que f~~ como nós, que subiu ligeiro, e os lugares perto das Ja.nelas Ja estão todos ocupados. Assim mesmo avançamos o maiS perto possível. 1.

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O que é que há? Está muito salgado. (N. do A.)

"Se não é uma desgraça oferecer tal espetáculo."

Se compreendo bem, é aos rapazes que saltaram nus para a plataforma que ele critica. No fundo, tem razão. "Você se dá conta", diz, "sabendo que isso deve divertir esses nojentos, deviam ficar em seu vagão, bom Deus/ , Ele sacode a cabeça, não está nada satisfeito. "Há pessoas que não sabem se comportar"., conclui. Tem razão mais uma vez. Quando se parte para uma viagem como esta, é preciso ter compostura, e saber o que pode acontecer. E não é somente uma questão de dignidade, é também uma questão prática. Quando se sabe o que pode acontecer, a gente se comporta melhor. Não há dúvida, a gente agüenta melhor. Mais tarde, pude me dar conta a que ponto tinha razão meu amigo de Semur. Quando ele disse aquilo, naquela estação alemã, pensei que tinha razão, em geral, pensei que, de fato, é preciso saber se comportar, numa viagem assim. Mas foi somente mais tarde que compreendi toda a importância prática daquela questão. Pensei freqüentemente no rapaz de Semur, mais tarde, no Pequeno Campo de quarentena quando observava o coronel.~ O coronel era uma personalidade da Resistência degolista, e, ao que parece, isso devia ser verdade, pois ele fez carreira depois, tornou-se general, li seu nome muitas vezes nos jornais, cada vez, sorria comigo mesmo. O coronel, no campo de quarentena, tinha-se tornado um vagabundo. Não sabia verdadeiramente se comportar, não se lavava mais, estava pronto a todas as baixezas por umas gotas mais de sopa fedorenta. Mais tarde, quando eu via a foto do coronel, então general, publicada por ocasião de alguma cerimônia oficial, não podia me impedir de pensar no rapaz de Semur, na verdade de suas simples palavras. É bem verdade que há pessoas que não sabem ter compostura. / ; / Os rapazes voltam para o vagão, agora. Na plataforma há apitos, vozes que gritam ordens, balbúrdia. Por ter podido mexer livremente braços e pernas, mesmo por breves minutos, parecia que os rapazes tinham perdido o hábito já formado de ficar apertados uns contra os outros. Protestam, gritam: "Não empurrem, bom Deus!", aos retardatários que tentam abrir uma vaga no amontoado de corpos. Mas os retardatários são empurrados para o vagão a pontapés de botas e pancadas, é preciso que consigam uma vaga. "Então, merda", gritam, "não vamos ficar na plataforma." A porta corrediça é fechada com um barulhão, e o amontoado de corpos agita-se ainda alguns minutos, com resmungos, explosões de cólera cega. Depois, progressivamente, volta 103

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a calma, os corpos reencontram seu ajustamento, a massa de corpos apertados na sombra retoma sua vida ofegante, e murmurante, oscilante com as sacudidelas da viagem. O rapaz de Semur continua de mau humor, por causa dos sujeitos do segundo vagão depois do nosso, que ofereceram aquele espetáculo. E compreendo seu ponto de vista. Enquanto aqueles alemães, na plataforma da estação, atrás dos vidros das salas de espera, enquanto nos viam como bandidos, como terroristas, ainda ia. Pois assim viam o essencial em nós, o essencial de nossa verdade, quer dizer, éramos os inimigos irredutíveis de seu mundo, de sua sociedade. O fato que nos encarassem como criminosos era acessório,. Sua boa consciência mistificada era acessória. O essencial era ' precisamente o caráter irredutível de nossas relações, o fato que fôssemos, eles e nós, os termos opostos de uma relação indissolúvel, que fôssemos a negação mútua uns dos outros. Que eles sentissem ódio de nós, era normal, era mesmo desejável, pois esse ódio dava um sentido claro ao essencial de nossa ação, à essência dos atos que nos tinham levado àquele trem. Mas que eles tenham podido gargalhar com o espetáculo grotesco daqueles homens nus, saltitando como macacos à procura de uma tigela de caldo asqueroso, isso é que era grave. Isso falseava as justas relações de ódio e oposição absoluta entre eles e nós. Aqueles risos histéricos das mulheres diante do espetáculo dos homens nus pulando na plataforma era como um ácido que atacava a própria essência de nossa verdade. Era então com razão que o rapaz de Semur estava de mau humor. "Está aí", digo, "a viagem continua." / / O rapaz de Semur olha para mim e balança a cabeça. "Agüentaremos até o fim, velho", me diz. "Lógico", respondo. "Até o fim da viagem, e ainda após", diz ele. "Lógico." Olho para ele e fico convencido de que ele agüentará, de f\ fato. É sólido o rapaz de Semur, tem idéias claras sobre as ! \ coisas importantes, ele agüentará. Idéias às vezes um pouco primitivas, mas, verdadeiramente, não se pode criticá-lo. Olho para ele e fico convencido de que agüentará. No entanto, ele vai morrer. Na aurora da próxima noite, ele vai morrer. Vai dizer: "Não me abandona, velho", e vai morrer. Em Ascona, dois anos mais tarde, mais ou menos dois anos mais tarde, eu acabo minha segunda xícara de café e penso que não é justo que o rapaz de Semur tenha morrido. Não há mais

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ninguém com quem eu possa falar desta viagem. É como se eu tivesse feito essa viagem sozinho. Estou sozinho, de agora em diante, para me lembrar desta viagem. A solidão dessa viagem vai me roer, quem sabe, a vida inteira. Pago e vou embora lentamente pelo cais de Ascona, sob o s'Ol de inverno de Ascona. Atravesso a ponte, ando para Solduno. Vai ser preciso que eu saia disso sozinho, meu companheiro de Semur está morto. A solidão, também, tinha me atingido em pleno rosto, ao sair daquela casa alemã, depois de termos bebido a água da fonte, na praça daquela aldeia alemã. Andávamos novamente para o campo, Haroux, Pierre, Diego e eu, andávamos em silêncio, e continuávamos sem ter visto viva alma. Tínhamos a perspectiva do campo diante de nossos olhos, agora, víamos o campo como os camponeses devem tê-lo visto, durante anos. Pois eles viram o campo, bom Deus, eles o viram verdadeiramente, forçosamente viram o que se passava ali, mesmo se não quisessem sabê-lo. Em três ou quatro dias, os americanos farão ir ao campo grupos inteiros de habitantes de Weimar. Vão lhes mostrar as barracas do campo de quarentena, onde os inválidos continuam a morrer na podridão. Vão lhes mostrar o crematório, o block onde os médicos da SS faziam experiências com os detidos, vão lhes mostrar os abajures de pele humana de Madame Use Koch, os encantadores abajures pergaminhados onde se desenham as linhas azuis das tatuagens sobre pele humana. Então, as mulheres de Weimar, com seus vestidos de primavera, e os homens de Weimar, com seus óculos de professores e comerciantes, vão começar a chorar, a gritar que não sabiam, que não são responsáveis. Devo dizer, o espetáculo muitas vezes me apertou o coração, fui me refugiar num canto solitário, fugi para enfiar meu rosto na relva da primavera, entre os rumores da primavera nas árvores.? / Sigrid também não sabia, ou talvez, sobretudo, não queria saber. Eu a via nos bistrôs do bairro, trocávamos algumas palavras, acho que ela posava para algumas revistas de moda. E eu tinha esquecido as mulheres de Weimar, em seus vestidos de primavera, agrupadas diante do block 50, ouvindo o oficial americano lhes explicar os prazeres de Use Koch, ant~s de fazê-las entrar para ver as tatuagens delicadas sobre a pele humana, pergaminhada, dos abajures que Madame Ilse Koch colecionava. Penso que tinha esquecido tudo, e olhava Sigrid, na época, nos bistrôs do bairro, e a achava bonita. Uma noite, no entanto, nos encontramos na mesma mesa, e justamente, nessa noite, eu tinha a impressão de acordar de um sonho, como se a vida, desde a volta desta viagem, dez anos antes, não tivesse passado de um 105

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sonho. Talvez tivesse bebido demais, acordado deste sonho que era a vida, desde a volta desta viagem. Talvez não tivesse ainda bebido demais, quando notei Sigrid, na mesma mesa, mas era previsível que eu ia beber demais. Ou talvez a bebida não tivesse nada que ver com tudo aquilo, talvez não precisasse procurar nenhuma razão exterior, acidental, àquela angústia que nascia novamente. De qualquer jeito, eu bebia, ouvia o barulho das conversas, e vi Sigrid. / / "Gute Nacht, Sigrid", digo eu, "wie geht's mit Dir?" Ela tem os cabelos curtos e os olhos verdes. Olha para mim, espantada. "Du sprichst deutsch?", diz ela. Sorrio; claro que sei alemão. "Selbstverstiindlich", digo a ela. Não é evidente que eu fale alemão, mas, enfim, digo a ela que é evidente. "Wo hast Du's gelemt?", pergunta a moça. "Im Kazetf'. Não é verdade que tenha aprendido alemão no campo, já sabia antes, mas, enfim, tenho vontade de amolar essa moça. "Wo denn?", diz ela, surpreendida. É visível que não compreendeu. É visível que não sabe que essas duas iniciais, K e Z, designavam . os campos de concentração de seu país, que é assim que os deSIgnavam os homens de seu país, que ali tinham passado dez anos, doze anos. Talvez ela nunca tenha ouvido falar de tudo isso. "Im Konzentrationslager. Schon davon gehort?", digo. Pergunto se ela ouviu falar dos campos de concentração e ela me olha com atenção. Pega um cigarro e o acende. "Que é que há contigo?", diz, em francês. "Nada." "Por que você está me fazendo essas perguntas?" "Para saber", digo. "Para saber o quê?" "Tudo. É fácil demais não saber", digo. Ela fuma e não diz nada. "Ou esquecer, é fácil demais esquecer." Ela fuma. "Você poderia ser filha do Dr. Haas, por exemplo", digo. Ela sacode a cabeça. "Não sou filha do Dr. Haas", diz. "Mas poderia ser sua filha." 106

"Quem é o Dr. Haas?", pergunta. "Espero que era." "Quem era, então, o Dr. Haas?" "Um sujeito da Gestapo", digo. Ela esmaga seu cigarro fumado pela metade e olha para mim. "Por que você está me tratando assim?", diz. "Não estou tratando, estou perguntando." Ela pega outro Cigarro e o acende. "Continua", diz. E olha em meus olhos. "Teu pai não é o Dr. Haas?" "Não", responde. "Não esteve na Gestapo?" "Não", diz ela . . / Ela não desvia o olhas. "Talvez nos Waffen-SS", digo. "Também não." Então eu rio, não posso me impedir de rir. "Ele nunca foi nazista, claro", digo. "Não sei." Fico cheio, de repente. "É verdade, digo, vocês nunca sabem nada. Ninguém sabe mais nada. Nunca houve Gestapo, nunca Waffen-SS, nunca Totenkopf. Devo ter sonhado." / Esta noite não sei mais se sonhei tudo aquilo, ou então se estou sonhando, desde que tudo acabou. "Não acordem os que dormem esta noite", digo. "É o quê?", pergunta Sigrid. "É um poema." "Um poema muito curto, você não acha?", diz ela. Então, sorrio para ela. "Die deutsche Gründlichkeit, die deutsche Tatsiichlichkeit."l E merda ãfã as virtudêS alemãs: la fica um pouco ruborizada. "Você bebeu", diz. "Estou começando." "Por que eu?", pergunta ela. "Você?" "Por que contra mim?", esclarece. Bebo mais um gole do copo novamente cheio. 1.

A seriedade alemã, a positividade alemã. (N. do. A.) I,

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e~quecimento,

· "Porque você é o porque teu pai nuncaiOiJ nazista, nunca houve nazistas. Porque eles não mataram Hans. Porque é preciso que não acordem os que dormem esta noite." t.--"" Ela sacode a cabeça. "Você vai beber demais", diz. "Nunca bebo o bastante." Acabo o copo e peço mais. , . Há pessoas que entram e saem, garotas que riem alto demais, mUSlca, barulho de copos, uma verdadeira confusão, esse sonho onde nos .encontramos quando nos acordam. Será preciso fazer alguma COisa. "Você está triste por quê?", pergunta Sigrid. "Eu nunca estou triste", digo. "Que quer dizer isso triste?" , "Bom, infeliz." "O que quer dizer isso, a felicidade?" "Infeliz, eu não disse feliz mas infeliz" diz ela. "n .c a mesma coisa, não?" " "Absolutamente. " "Ao inverso, a mesma coisa ao inverso, quero dizer." "Absolutamente", diz Sigrid. "Estou surpreendido com você, Sigrid. Você não é a filha do Dr. Haas e você sabe das coisas." ~a~ e~a não se. d~ixa desviar de seu propósito. . . Nao: como direito e avesso", diz Sigrid. "Felicidade e infelicidade estao cheias de coisas diferentes." "A felicidade é o que, Si~d~", e eu me pergunto, quando faço .esta pergunta, se eu sabena dizer o que é a felicidade verdadeiramente. ' Ela aspira a fumaça de seu cigarro e reflete. "É quando constatamos que existimos, realmente", diz. Bebo um gole de vinho e olho para ela. ":E; quando a certeza de existir torna-se tão aguda que se tem vontade de gritar", diz. "Talvez", digo, "de dor." O olhar de_ seus olhos. ver~es em mim está cheio de espanto. Como se ela nao conseguISse Imaginar que a certeza de existir em toda sua plenitude, pudesse ter uma relação qualquer, de qual~ quer ordem que fosse, como a dor de existir. "O domingo, por exemplo", digo. Ela espera a continuação, que não virá. "Warum am Sonntag?", insiste. Talvez seja verdade que ela não sabe nada, talvez seja verdade que ela nem perceba a realidade dos domingos, no fim do bos-

quezinho, diante dos arames farpados eletrificados, a aldeia sob suas fumaças calmas, a estrada que faz a curva e a planície de Turíngia, verde e cheia. "Vem dançar, eu te explicarei depois o que é a felicidade." Então ela se levanta e sorri, sacudindo a cabeça. "Você não deve saber", diz. "O quê?" "A felicidade", diz ela, "como é." "Por quê?" "Você não deve saber, é só." "Sei sim, é o vale da Moselle." "Está vendo", diz Sigrid, "você fica o tempo todo recordando." "Não o tempo todo. O tempo todo estou sobretudo esquecendo." "Não faz mal", diz ela, "você recorda, esquece, mas é o passado que conta." "E daí?" Andamos para o lugar da sala onde se dança. "A felicidade, eu já te disse, é sempre o presente, no próprio momento." Ela está em meus braços e nós dançamos e tenho vontade de rir. "Você é reconfortante." Ela está em meus braços e é o presente e penso que ela deve ter deixado seu país, sua família, certamente por causa do peso desse passado do qual ela não quer assumir nada, nem a mínima parcela, nem para o bem, nem para o mal, nem para a revanche, nem para o exemplo, que simplesmente ela tenta abolir através de uma infinita sucessão de gestos sem futuro, de dias sem raízes em nenhum solo alimentado de fatos antigos, nada além dos dias, das noites, uns depois dos outros, e aqui, claro, nesses bares, entre essas pessoas futilmente desenraizadas, ninguém lhe pede contas, ninguém exige a verdade de seu passado, do passado de sua família, de seu país, ela poderia ser, inocentemente, a filha do Dr. Haas, que posa para revistas de moda, que dança de noite e vive na felicidade, na certeza aguda, quer dizer, de existir. "Você conhece Arosa?" ,/./ Ela sacode a cabeça, negativamente. "Foi na Suíça", digo, "na montanha." "Na Suíça é sempre na montanha", diz ela, com um muxoxo desabusado. 109

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1 . Felicidade e infelicidade, assume-os calmamente - pois tudo passa e mesmo tu. (N. do A.) 2. Felicidade e infelicidade, assume-os com preocupação - pois tudo é eterno, menos tu. (N. do A.)

Rimos juntos. Quando essa noitada terminar e eu me lembrar dessa noitada em que, de repente, o chamado agudo daquele passado tão bem esquecido, tão perfeitamente afundado em minha memória, me acordou do sonho que era núnha vida, quando eu tentar contar esta noitada confusa, atravessada por acontecimentos talvez fúteis, mas cheios de significação para mim, vou descobrir que a jovem alemã de olhos verdes, Sigrid, assume um relevo particular no relato, vou descobrir que Sigrid, insensivelmente, em meu relato, torna-se o pivô dessa noitada, dessa noite, em seguida. Sigrid, em meu relato, vai assumir um relevo particular, talvez naturalmente, porque ela é, com todas as suas forças ela tenta ser, o esquecimento desse passado que não se pode esquecer, a vontade de esquecer esse passado que nada jamais poderá abolir, mas que Sigrid rejeita de si, de sua vida, de todas as vidas à sua volta, com sua felicidade de cada momento presente, sua certeza aguda de existir, oposta à aguda certeza da morte que esse passado faz ressudar como uma resina acre e tonificante., Talvez este relevo, esta ponta seca sublinhando a personagem de Sigrid no relato que terei, se for o caso, de fazer desta noitada, esta importância repentinamente obsecante, de Sigrid, provém da extrema tensão, ardente, que ela personifica, entre o peso desse passado e o esquecimento desse passado, como se seu rosto liso e lavado por séculos de chuva lenta e nórdica, tendo-a polido, modelado suavemente, seu rosto eternamente fresco e puro, seu corpo exatamente adaptado ao apetite de perfeição juvenil que palpita no fundo de cada um, e que devia provocar em todos os homens tendo olhos para ver, quer dizer, olhos realmente abertos, realmente dispostos a se deixar invadir pela realidade das coisas existentes, provocar em todos eles Uma pressa desesperada de possessão, como se esse rosto e esse corpo, reproduzidos em dezenas, quem sabe, em milhares de vezes pelas revistas de moda só estavam lá para fazer esquecer o corpo e o rosto de Ilse Koch, aquele corpo mal acabado e batido, plantado reto em periiãs retas, firmes, aquele rosto duro e nítido, incontestavelmente germânico, aqueles olhos claros, como os de Sigrid (mas nem a fotografia, nem os jornais de atualidade filmados naquele momento e desde então reprisados, montados novamente em alguns filmes, deixavam perceber se os olhos claros de Ilse Koch eram, como os de Sigrid, verdes, ou então claros, de um azul-claro, ou de um cinza-de-aço, sobretudo de um cinza-de-aço), aqueles olhos de Ilse Koch pousados no torso nu, nos braços nus do deportado que ela havia escolhido para amante, algumas horas antes, seu olhar já recortando aquela

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Devo reconhecer que é verdade. "Então?", diz ela. "Há um chalé, em Arosa, na montanha, com uma bela inscrição em letras góticas, na fachada." Mas Sigrid não parece se interessar particularmente pela inscrição multicolor, em letras góticas, sob o sol nas montanhas, em Arosa. Glück und Unglück, beides trag in Ruh' - alies geht vorüber und auch Du. 1 "É isso, tua inscrição?", pergunta ela. "Sim." "Não gosto." A música parou e esperamos que coloquem outro disco na vitrola. "A felicidade", diz Sigrid, "pode ser que precise ser assumida calmamente, e ainda, não é totalmente seguro. É melhor agarrar-se a ela, e isso não tem nada de calmo. Mas a infelicidade? Como se poderia suportar a infelicidade com calma?" "Não sei", digo, "é a inscrição.' ~ "É idiota. E dizer que tudo passa, você não acha que não quer dizer nada?: h "Você não gosta desse nobre pensamento, percebe-se." "Não, esse teu treco é falso", diz ela/ "Não é meu treco; é uma bela inscrição gótica, em Arosa, sob o sol das montanhas." Dançamos novamente. "N a realidade, é sobretudo o contrário." "Pode-se tentar", digo. "Tentar o quê?" "Tentar inverter esse nobre pensamento, ver no que dá." Dançamos lentamente e ela sorri. "Certo", diz. Glück und Unglück, beides trag in Unruh' - alles bleibt in Ewigkeit, nicht Du. 2 Eis o que daria Ela reflete e franze as sobrancelhas. "Também não gosto", diz. "Então?" "Então, nada. O contrário de uma babaquice, só pode ser outra babaquice."

pele branca e doentia segundo o pontilhado da tatuagem que a atraíra, seu olhar já imaginando o bonito efeito daquelas linhas azuladas, aquelas flores ou veleiros, serpentes, algas marinhas, aquelas longas cabeleiras femininas, aquelas rosas dos ventos, aquelas ondas do mar, e aqueles veleiros, ainda aqueles veleiros de velas desfraldadas como gaivotas ruidosas, seu belo efeito sobre a pele pergaminhada, tendo adquirido por algum tratamento químico um tom de marfim, abajures cobrindo todas as lâmpadas de seu salão, onde vinha a noite, ali mesmo onde ela havia feito entrar, sorridente, o deportado escolhido como instrumento de prazer, duplamente, no próprio ato de prazer, primeiro, e depois pelo prazer bem mais duradouro de sua pele pergaminhada, convenientemente tratada, como marfim, entrecortada pelas linhas azuladas da tatuagem, dando ao abajur um toque inimitável, ali mesmo, estendida num divã, ela reunia os oficiais da Waffen-SS, em volta de seu marido, o comandante do campo, para ouvir um dentre eles tocar no piano alguma canção, ou então um verdadeiro trecho de piano, alguma coisa de sério, um concerto de Beethoven, quem sabe; como se o riso de Sigrid, que eu mantinha em meus braços, estivesse lá, tão jovem, tão pleno de promessas, só para fazer passar para o esquecimento definitivo aquele outro riso de llse Koch no prazer, no duplo prazer do próprio momento e do abajur que ficaria como testemunho, como se as conchinhas trazidas de um fim de semana na praia, ou as flores secas, como lembrança daquele prazer do próprio momento. Mas no momento em que esta noitada começa, quando ainda não encontramos François e os outros, ainda não nos reunimos a eles para irmos juntos a uma outra boate, não sei ainda que Sigrid poderia assumir tal importância no relato que teria que fazer dessa noitada. De fato, não estou ainda me perguntando a quem poderia relatar esta noitada Mantenho Sigrid em meus braços e penso na felicidade. Penso que nunca ainda, nunca até o presente, fiz o que quer que seja, decidi o que quer que seja, em função da felicidade, ou da infelicidade que isso poderia me proporcionar. Esta idéia até me faria rir, se me perguntassem se eu tinha pensado na felicidade que tal ato decidido por mim poderia me proporcionar, como se houvesse uma reserva de felicidade, em algum lugar, uma espécie de depósito de felicidade do qual se pudesse tirar vales, talvez, como se a felicidade não fosse alguma coisa que vem, por acréscimo, mesmo em meio à maior aflição, à mais terrível privação, depois que se tivesse consumado o que, precisamente, era preciso consum7 / 112

E talvez a felicidade não passe desse sentimento que me veio, depois que fugi do espetáculo das mulheres de Weimar, agrupadas diante do bloco 50, lacrimejantes, quando enfiei meu rosto na relva da primavera, na outra vertente do Ettersberg, entre as árvores da primavera. Havia silêncio ali e árvores, de maneira infinita. Os rumores do silêncio e do vento nas árvores, uma maré de silêncio e de rumores. E depois me veio aquele sentimento, em minha angústia, misturado a minha angústia, mas diferente, como um canto de pássaro misturado ao silêncio, que sem dúvida havia feito o que era preciso fazer em meus vinte anos, e que me restavam ainda, talvez, uma ou duas vezes vinte anos para continuar a fazer o que era preciso fazer. Ao sair daquela casa alemã, também, deitei-me na relva e olhei longamente a paisagem do Ettersberg. Na estrada da aldeia é que se erguia aquela casa, um pouco . . Isolada. Notei a casa quando voltávamos para o campo, Haroux, Diego, Pierre e eu. Era uma casa bem jeitosa. Mas o que me chamou a atenção, me imobilizando na praça, é que, situada como estava, de suas janelas devia-se ter uma vista perfeita do conjunto do campo. Olhei as janelas, olhei o campo, e me disse que era preciso entrar naquela casa, era preciso conhecer as pessoas que moravam nela, todos aqueles anos. "Eh!", gritara aos outros, "fico aqui." "Como, você fica aqui?", pergunta Pierre, virando-se. Os dois outros também se viraram e me olham. "Fico aqui", disse, "vou visitar esta casa." Os três olham para a casa e para mim. "O que é agora?", pergunta Haroux. "Nada", digo.,. "Você viu uma garota, na janela?", pergunta Pierre, gozador. Levanto os ombros. "Então, bom Deus", diz Haroux, "se você não quer violentar uma garota, o que é que está procurando nessa casa?" Acendo um cigarro e olho para a casa, olho para o campo. Diego acompanha meu olhar e sorri de lado, como de hábito. "Bueno. Manuel, y qué?"l, pergunta ele. "Has vistO?"2 "He visto", diz ele, "y qué le vas a hacer?"3 "Ei, vocês", grita Haroux, "não poderiam conversar como todo mundo, para que entendamos?" 1. 2. 3.

Bom, Manuel e então? Você viu? (N. do A.) Vi, e que lhe vais fazer?

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"Não seja chauvinista", diz Diego, "nem todo mundo fala francês, sabia?" "Mas estamos aqui", diz Haroux, "e queremos entender." "Olha, olha", diz Diego, "você sabe quantos milhões de pessoas falam espanhol?" "Tá brincando", diz Haroux, "está querendo me dar uma lição?" Diego ri. "Não", diz, "é só para esclarecer as coisas. Nem todo mundo fala francês." "E então?", pergunta Pierre, "por que Gérard quer visitar essa casa?" Diego levanta os ombros. "Pergunta para ele", diz. Então Pierre pergunta para mim: "Por que você quer visitar essa casa, exatamente?" "Vocês viram como "ela está situada?", digo. Eles olham para a casa e depois se viram, para olhar para o campo. "Bom Deus!", grita Haroux, "não se pode negar, estavam de camarote." Pierre sacode a cabeça e não diz nada. Olha para mim. "O que é que vai adiantar?", pergunta Haroux. Não sei. Na verdade, não sei absolutamente o que vai adiantar. "Assim por nada", digo, "vou dar uma olhada." "Se te diverte", diz Haroux, encolhendo os ombros. "Não", digo, "não me diverte absolutamente." Diego me olha e sorri outra vez. "Bueno", diz, "logo nos vemos, Manuel. Vamos, rapazes, ele nos contará." Fazem um sinal com a mão e vão embora. Então eu me aproximo da casa. Empurro a cerca que rodeia o jardim, na parte fronteira da casa. Está aberta e cu entro. No fim de uma aléia subo três degraus e bato na porta da casa. Primeiro ninguém vem. Então bato na porta com os punhos, bato na parte de baixo com as botas. No fim de um instante. ouço uma voz de mulher, atrás da porta. "Aufmachen", grito, "los aufmachenl" Verifico que estou berrando como um ss.f "Los" era a palavra-chave da linguagem SS. Tenho vontade de desistir de tudo e correr atrás dos companheiros, para alcançá-los. Mas é muito 114

tarde, a porta entreabriu-se. Há uma mulher idosa, de cabelos quase brancos, que se mantém na fresta, e que me observa com um ar preocupado. Não se diria que tem medo, simplesmente um ar preocupado, interrogativo., "[ch bin allein", diz ela. Estou sozinha. "Ich auch." Eu também estou sozinho. Ela olha para minha roupa e pergunta o que eu quero. "Ich mochte das Haus besuchen." Digo que queria visitar sua casa, que ela não deve temer nada de minha parte. Simplesmente, visitar sua casa. Ela não parece ter medo, pergunta-se simplesmente por que quero visitar sua casa, mas finalmente abre a porta e me deixa entrar. Atravesso lentamente as peças do térreo, com a mulher em meus calcanhares. Ela não diz mais nada, eu não digo mais nada, olho aqueles aposentos banais de uma casa qualquer de campo. Não é exatamente uma casa de camponeses, é uma casa de pessoas que moram no campo, eu me pergunto o que fazem os moradores dessa casa, na vida. Na verdade, as peças do térreo não me interessam. Pois é do primeiro andar que se deve ter uma bela vista sobre o campo. Certamente uma vista incomparável. Passo rapidamente de uma peça para outra, a mulher de cabelos grisalhos em meus calcanhares. Procuro a escada que deve levar ao primeiro andar. Encontro a escada e subo ao primeiro andar. A mulher parou um momento, no começo dos degraus, e me olha subir. Deve estar se perguntando o que eu quero, certamente. Não compreenderia, aliás, se eu lhe explicasse que quero simplesmente ver. Olhar, não procuro mais nada. Olhar de fora aquele cercado onde demos voltas, durante anos. Nada mais. Se eu lhe dissesse que é isso que eu quero, simplesmente isso, ela não compreenderia. Como poderia compreender? É preciso ter estado dentro, para compreender 'esta necessidade física de olhar de fora. Ela não pode compreender, ninguém de fora pode compreender. Eu me pergunto vagamente, subindo a escada para o primeiro andar ·da casa, se isso não significa que estou um pouco desregulado, esta necessidade de olhar de fora para dentro onde dávamos voltas. Talvez eu tenha me desnorteado um pouco, como se diz. Essa possibilidade não está excluída. Talvez por isso é que Diego deu seu sorriso de lado. Deixemos que ele satisfaça essa maniazinha, deve ele ter querido dizer, com seu sorriso de lado. Isto não me preocupa, por agora. Tenho vontade de olhar de fora, não é nada 115

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grave. Não pode prejudicar ninguém. Quer dizer, só pode fazer mal a mim mesmo. Chego ao fim dos degraus e hesito ante as três portas que dão para o patamar. Mas a mulher de cabelos grisalhos me alcança e passa à frente. Empurra uma das portas. "Das ist die Wohnstube"l, diz. Eu tinha dito que queria visitar sua casa, então ela me fez visitar sua casa. Empurra uma porta e me diz que ali é a sala de estar. É bem prestativa, a mulher de cabelos grisalhos. . Entro na sala de estar e é bem aquilo, é bem aquilo que eu esperava. Mas não, se for sincero, devo dizer que mesmo esperando aquilo, desejava que fosse outra coisa. Era uma esperança insensata, claro, pois a menos que se apagasse o campo, a menos que se pudesse riscá-lo da paisagem, não poderia ser de outra maneira. Eu me aproximo das janelas da sala de estar e vejo o campo. Vejo, na própria moldura de uma das janelas; a chaminé quadrada do crematório. Então, olho. Queria ver, vejo. Queria ter morrido, mas vejo, estou vivo e vejo·b A mulher de cabelos grisalhos, atrás de mim, fala: "Eine gemütliche Stube, nicht wahr?"2 Viro-me para ela, mas não chego a vê-la, não chego a fixar sua imagem, nem a fixar a imagem desta peça. Como se pode traduzir gemütlich? Tento me agarrar a esse pequenino problema real, mas não consigo, deslizo sobre esse pequenino problema Teal, deslizo no pesadelo acolchoado e agudo no qual se ergue, justo na moldura de uma das janelas, a chaminé do crematório. Se Hans estivesse aqui, em meu lugar, qual seria a reação de Hans? Certamente ele não se deixaria soçobrar neste pesadelo. "De noite", pergunto, "vocês ficam nesta peça?" Ela olha para mim. "Sim", diz, "ficamos nesta peça." "Vocês moram aqui há muito tempo?", pergunto. "Oh sim!", diz ela, "há muito tempo." "De noite", pergunto, mas na verdade não é uma pergunta, pois não pode haver dúvida sobre isso, "de noite, quando as chamas ultrapassavam a chaminé do crematório, vocês viam as chamas do crematório?" Ela tem um sobressalto brusco e leva uma mão à garganta. Dá um passo para trás e agora tem medo. Não tinha tido medo até então, mas agora sente medo. 1.

2.

Eis o salão.

Um lugar confortável, não é? (N. do A .)

"Meus dois filhos", diz, "meus dois filhos morreram na guerra." Atira-me como pasto os cadáveres de seus dois filhos, pro~ tege-se atrás dos corpos inanimados de seus dois filhos mortos na guerra. Tenta me fazer acreditar que todos os sofrimentos se equivalem, todos os mortos pesam a mesma coisa. Ao peso de meus companheiros mortos, ao peso de suas cinzas, ela opõe o peso de seu próprio sofrimento. Mas todos os mortos não pesam a mesma coisa, claro. Nenhum cadáver do exército alemão pesará jamais esse peso de fumaça que um de meus companheiros mortos. "Desejo mesmo, desejo mesmo que eles estejam mortos." Ela recua outro passo e se encontra encostada na parede. Vou me embora. Vou deixar esta peça - como se traduz gemiitlich? - vou ao encontro dos companheiros, vou entrar de novo em meu cercado, vou tentar falar com Walter, esta noite, faz doze anos que ele está preso, faz doze anos que ele mastiga suavemente o pão preto dos campos com seu maxilar partido pela Gestapo, faz doze anos que ele partilha o pão preto dos campos com seus companheiros, faz doze anos que ele tem aquele sorriso invencível. Lembro-me de Walter, naquele dia em que escutávamos no rádio as novas da grande ofensiva soviética a última ofensiva, aquela que ia chegar até o próprio coração da Alemanha. Lembro-me de que Walter chorava de alegria, pois aquela derrota de seu país, podia ser a vitória de seu país. Ele chorava ~e alegria, pois sabia que agora podia morrer. Quer dizer, agora tmha não somente razões de viver, mas também de ter vivido. Em 39, em 40, e~ 41, os SS os reuniam na praça de chamada, para que eles OUVIssem, em posição de sentido, as notícias de vitória do estado-maior nazista. Então, Walter tinha me dito, eles apertavam os dentes, juravam agüentar até o fim, o que quer que acontecesse. Está aí, tinham agüentado. A maioria dentre eles tinham morrido e mesmo os sobreviventes estavam feridos à morte não serão nunca vivos como os outros, mas tinham agüentado: 'Yalter chorava de alegria, tinha agüentado, tinha sido digno de SI mesmo, daquele conceito de vida que tinha escolhido há tanto tempo, numa fábrica de Wuppertal. Era preciso encontr~r Walter, esta noite, era preciso falar com ele. A mulher de cabelos grisalhos está encostada na parede e me olha. Não tenho forças para dizer-lhe que compreendo sua dor. que respeito sua dor. Compreendo que a morte de seus dois filhos seja para ela a coisa mais atroz, a coisa mais injusta. Não tenho 117

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força de lhe dizer que compreendo sua dor, .mas que esto~ feliz que seus dois filhos tenham morrido, quer dizer, es.tou feliz que o exército alemão esteja aniquilado. Não tenho mms força para lhe dizer tudo isso. Passo à sua frente, e vôo pela escada, corro no jardim, corro na estrada para o campo, para os companheiros / "Mas não", diz o rapaz de Semur, "você nunca me falou dessa história." No entanto, eu estava convencido de ter falado a ele. Desde que o trem deixou aquela estação alemã, avançamos em boa velocidade. O rapaz de Semur c eu, começamos a contar um ao outro nossas recordações do maqui, em Semur, precisamente. "Não te contei a história da moto?", pergunto. "Não, velho", diz ele. Então, conto a história e ele lembra-se muito bem daquela moto, de fato, que tinha ficado na serraria, na noite em que os alemães os surpreenderam. "Vocês eram malucos", diz, quando explico como fomos buscar aquela moto, Julien e eu. "Que é que você queria, ele ficava doente, Julien, com a idéia de perdê-la." "Completamente malucos", diz, "quem é ess'e Julien?" "Eu já te falei." "O rapaz de Laignes?", perguntou. " É esse: Julien. Ele queria a moto." "Que babaquice", diz o rapaz de Semur. "É, se era", reconheço. "Eles devem ter emboscado vocês", diz. "Sim. Mas Julien queria aquela moto." "Que idéia", diz, "as motos não faltavam." "Mas ele queria aquela, precisamente", insisto. "Por causa de babaquices como essa é que nos matam", diz o rapaz de Semur. Sei bem disso. "O que vocês fizeram dela?", pergunta. Conto como a levamos até o maqui do Tabou, nas colinas entre Laignes e Châtillon. Ao longo das estradas, as árvores e~tavam douradas pelo outono. Depois de Montbard, numa encruzilhada, havia um carro da Feld, parado, e os quatro guardas alemães mijando na valeta. O rapaz de Semur dá uma gargalhada. "O que é que eles fizeram?", pergunta. 118

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Viraram a cabeça, ouvindo o barulho da moto, todos os quatro ao mesmo tempo, como bonecas mecânicas. Julien freou e eles viram que estávamos armados. "Você precisava vê-Ios pulando o fosso, sem mesmo ter tempo de se abotoar." O rapaz de Semur ainda ri. "Vocês atiraram neles?", pergunta. "Não, não tínhamos interesse em amotinar o setor. Nós nos mandamos." "No fim, eles pegaram vocês assim mesmo", diz o rapaz de Semur. "Julien, não." "Você, eles te pegaram assim mesmo", insiste. "Mais tarde", respondo, "bem mais tarde. Um golpe do acaso, nada se podia fazer." Quer dizer, um golpe do acaso, é uma fórmula inexata. Era uma das conseqüências previsíveis, racionais, obrigatórias, dos atos que praticávamos. O que eu queria dizer, é que a maneira como isso aconteceu, as próprias circunstâncias da prisão, eram devidas, em parte, ao acaso. Isso poderia ter acontecido de outra maneira, isso poderia não ter acontecido absolutamente, dessa vez, eis que eu queria dizer. O acaso é que parei em Joigny, bem naquele dia. Eu voltava de Laroche-Migennes, onde tinha tentado retomar contato com o grupo que tinha dinamitado o trem de munições de Pontigny. Na realidade, eu deveria ter ido reencontrar diretamente Michel, em Paris. O acaso, é que eu sentia sono, que estava com noites de sono em atraso. Então, parei em Joigny, na casa de Irene, só para dormir algumas horas. Só para ser encontrado pela Gestapo. Em Auxerre, no dia seguinte, havia rosas no jardim do Dr. Haas. Eles me levaram ao jardim e vi as rosas. O Dr. Haas não nos acompanhou, ficou em seu escritório. Havia gordo que só o grande louro que parecia que se empoava, e estava em Joigny, com o Dr. Haas, e que ofegava o tempo inteiro. Eles me fizeram andar no jardim da residência e vi as rosas. Eram bonitas. Tive tempo de pensar que era engraçado, notar aquelas rosas e achá-las bonitas, enquanto sabia que iam fazer de mim. Desde o começo, tinha escondido cuidadosamente que entendia alemão. Eles falavam na minha frente, sem desconfiar, e eu tinha alguns segundos, o tempo de tradução, para me preparar para o que viria. Eles me levaram para uma árvore, no jardim, ao lado do canteiro de rosas, e eu já sabia que iam me pendurar num ramo, por uma corda passada entre as algemas, que depois soltariam o cachorro contra mim. O cachorro roncava em sua cor-

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reia, mantido pelo louro grande, que parecia se empoar. Mais tarde, bem mais tarde, olhei as rosas através daquela névoa diante de meus olhos. Tentei esquecer meu corpo e as dores de meu corpo, tentei irrealizar meu corpo e todas as sensações desencontradas de meu corpo. olhando as rosas, deixando meu olhar se encher de rosas. Bem no momento em que conseguia, desmaiei. "/ "A gente sempre diz isso", diz o rapaz de Semur. "Diz o quê?", pergunto. "Que é um golpe do acaso, que nada se podia fazer", diz o rapaz de Semur. "As vezes é verdade." "Talvez", diz ele, "mas sempre nos pegam." "Os que são presos sempre acham que nos pegam sempre." O rapaz de Semur reflete um pouco sobre esta verdade evidente. "Aí você tem razão", diz, "nisso você tem razão. Seria preciso perguntar a opinião dos que não são presos." "Taí como é preciso raciocinar." Ele levanta os ombros. "É muito bonito", diz, "raciocinar, mas esperando, nos apanharam como ratos." "Esse campo para onde vamos", pergunto, "já que você está tão bem informado, você sabe o que se faz nele?" "A gente trabalha", diz, muito seguro de si. "Trabalha em quê?", quero saber. "Você me pergunta demais", diz, "sei que a gente trabalha, é tudo." Tento imaginar no que se pode trabalhar, num campo. Mas não chego a imaginar a realidade, tal qual conheci, mais tarde. No fundo, não é por falta de imaginação, é simplesmente porque não soube extrair todas as conseqüências dos dados que conhecia. O dado essencial, é que somos a mão-de-obra. Na medida em que não éramos fuzilados, logo após a prisão, na medida igualmente em que não entramos na categoria de pessoas a exterminar, aconteça o que acontecer, e de qualquer maneira que seja, como são os judeus, nos tornamos a mão-de-obra. Uma espécie particular de mão-de-obra, claro, já que não temos a liberdade de vender nossa força de trabalho, ela nos é extorquida, simplesmente, pelos meios da coação mais despida de justiça, pela mais pura violência. Pois o essencial, é que somos a mão-de-obra. Somente, como nossa força de trabalho não é comprada, não é economicamente necessário assegurar a reprodução. Quando nossa força de trabalho estiver esgotada, os SS irão procurar outra nova~ 120

1 Hoje, dezessete anos após esta viagem, se me lembro daquele dia, no decurso desta viagem há dezessete anos, em que eu tentava imaginar que espécie de vida podia acontecer num campo, são imagens diversas que se superpõem, camadas sucessivas de imagens. Assim, como quando o avião inergulha para o solo, para a pista de aterrissagem, acontece que se atravessa várias camadas de formações nevoentas, as vezes pesadas, espessas, as vezes em flocos, iluminadas lateralmente pelos raios de um sol invisível, acontece que o avião encontra, entre duas camadas de nuvens, uma franja livre e azul de céu acima das formações de algodão que vamos furar mais adiante, no vôo mergulhador em direção da terra firme. Quando penso em tudo isso, hoje, várias camadas de imagens se superpõem, provenientes de diferentes lugares, e de :diferentes épocas de minha vida. Há primeiro as imagens que se fixaram em minha memória, ao longo dos quinze dias que se seguiram à liberação do campo, esses quinze dias em que pude ver o campo do exterior, de fora, com um olhar novo, mesmo continuando a viver nele, a estar em seu interior. Em seguida há, por exemplo, as imagens de Come Back, Africa, esse filme de Rogosin sobre a África do Sul, atrás das quais eu via, em transparência, o campo de quarentena, enquanto apareciam na tela as barracas dos subúrbios negros de Johannesburg. Há ainda essa paisagem da zona, em Madrid, aquela vala poeirenta e fétida de La Elipa, a trezentos metros dos edifícios de luxo, onde se amontoam os operários agrícolas expulsos de seus campos, aquela dobra de terreno onde giram as moscas e os gritos das crianças. É um universo análogo, e ainda, no campo, tínhamos água corrente, sabe-se do amor que os SS têm pela higiene, pelos cachorros de raça e pela música de Wagner. Nesse dia, justamente, eu tinha tentado pensar em tudo isso, voltando daquela aldeia alemã onde tínhamos ido beber a água clara da fonte. Tinha descoberto, bruscamente, que aquela aldeia não era o fora, que era simplesmente uma outra face, mas uma face interior igualmente da sociedade que tinha propiciado o nascimento dos campos alemães/ Eu estava na frente da entrada do campo, olhava a grande avenida asfaltada que conduzia para o quarteirão SS, para as fábricas, para a estrada de Weimar. Era por ali que os Kommandos iam para o trabalho, na claridade cinzenta ou dourada da aurora, ou então, no inverno, na claridade dos projetores, ao som alegre de marchas tocadas pela orquestra do campo. Era por ali que tínhamos chegado, no coração da quinta noite desta viagem com o rapaz de Semur. Mas o rapaz de Semur tinha ficado no vagão. 121

Era. por ali que tínhamos marchado, ontem, com nossos rostos vazIOS .e nosso ódio da morte, contra os SS em fuga, pela estrada de WeIII~ar. É ~or essa avenida que vou partir, quando for embora. ~OI. por ali q.ue ,vi chegar a lenta coluna trôpega de judeus da P?loma.' em melO aquele inverno que findara, naquele dia em q~e tmha. Ido falar com o Testemunha de Jeová, quando me haVIam pedI.do para preparar a fuga de Pierrot e de dois outros companheIros. Ano~, se passaram,. dezesseis anos, e aquela morte já é adolescente, ja a!mge essa Ida,de grave. que tem as crianças de após~erra, as cnanças de apos esta vIagem. Tem dezesseis anos, a Idade dessa morte antiga, adolescente. E talvez eu não pudesse contar essa morte das crianças judias, nomear essa morte, em seus d~talhes, a não ser na. esperança, talvez desmesurada, talvez irrealizavel, de a faze~ OUVIda por essas crianças, ou por uma só dentre elas, por uma s.o que fosse? Ade~tre elas, que atingem a gravidade d~ s,:us deze~se}s. anos, o sIlencIO de seus dezesseis anos, sua exigenc~a. A hIstona dessas crianças judias, sua morte na grande avemd.a ~~ c~mpo? no coração do último inverno daquela guerra, esta hIstona JamaIS contada, enterrada como um tesouro mortal n.o fundo de minha memória, minando-a com um sofrimento esténl, talvez tenha chegado o momento de contá-la com esta esperança d~ 9u.e falo . ~ talvez. P?r or~u1ho que nunca contei a ninguém a hls~ona . das cnanças JudIas, vmdas da Polônia, no frio do inverno maIS f~IO ,daquela guerra, vindo morrer na ampla avenida que C?nd~ZIa a entrada do campo, sob o apagado olhar das águias hItlenanas. Por orgulho, talvez. Como se essa história não dissesse respe.ito a todo mundo, e sobretudo às crianças que hoje tem de~ ~esseIs anos, co~o se eu tiv.esse o direito, até a própria possibil~dade, d,: ~arda-Ia para mIm, por mais tempo. É verdade que tmha deCIdido esquecer. Em Eisenach, também, eu tinha decidido nunca. ser um ex-combatente. É bom, eu tinha esquecido, tinha esq~e~I~O tudo, posso me lembrar de tudo, agora. Posso contar a hIstona das cna~ças judias da Polônia, não como uma história que tenha acontecIdo comigo, a mim particularmente, mas que a~onteceu antes de. tudo àquelas crianças judias da Polônia. Quer d}z~r, a,?ora, depOIS destes longos anos de esquecimento voluntano, nao somente. posso contar esta história, mas é preciso que eu a conte.:. É preCISO que eu fale em nome das coisas que aconteceram, nao em. meu n.om.e pessoal. A história das crianças judias em ~ome das cnanças JudIas. A história de sua morte, na grande avemda que levava à entrada do campo, sob o olhar de pedra das

águias nazistas, entre os risos dos SS, em nome dessa própria morte. '/ As crianças judias não chegaram em plena noite, como nós, chegaram na claridade cinzenta da tarde.17 Era o último inverno daquela guerra, o inverno mais frio daquela guerra cujo destino decidiu-se no frio e na neve. Os alemães eram empurrados por uma grande ofensiva soviética que passava através da Polônia, e evacuavam, quando tinham tempo, os deportados que tinham agrupado nos campos da Polônia. No nosso, perto de Weimar, na floresta de faias acima de Weimar, vimos chegar, ao longo de dias e semanas, esses comboios dc evacuados. As árvores estavam cobertas de neve, as estradas estavam cobertas de neve e no campo de quarentena afundávamos na neve até os joelhos. Os judeus da Polônia foram amontoados nos vagões de mercadorias, quase duzentos por vagão, e tinham viajado durante dias e dias, sem comer e sem beber, no frio daquele inverno que foi o mais frio daquela guerra. Na estação do campo, quando abriam as portas corrediças dos vagões, nada se mexia, a maioria dos judeus tinham morri do de pé, mortos de frio, mortos de fome, e era preciso descarregar os vagões como se tivessem transportado madeira, por exemplo, e os cadáveres caíam completamente rígidos na plataforma da estação, e eram empilhados ali, para serem conduzidos em seguida, em caminhões cheios, diretamente ao crematório. No entanto, ali havia sobreviventes, ali havia judeus ainda vivos, moribundos, em meio àquela pilha de cadáveres enregelados nos vagões. Um dia, num desses vagões onde havia sobreviventes, quando afastaram a pilha de cadáveres enregelados, freqüentemente colados uns aos outros por suas roupas enregeladas e rígidas, descobriram todo um grupo de crianças judias. De repente, na plataforma da estação, na neve, entre as árvores cobertas de neve, houve um grupo de crianças judias, cerca de quinze, olhando à sua volta com um ar espantado, olhando os cadáveres empilhados como troncos de árvores já descascados são empilhados à beira das estradas, esperando serem levados para outro lugar, olhando as árvores e a neve nas árvores, olhando como crianças olham. E os SS, primeiro ficaram chateados, . como se não soubessem o que fazer daquelas crianças de oito a doze anos, mais ou menos, embora algumas, por sua extrema magreza, pela expressão do olhar, tivessem aparência de velhinhos. Mas os SS, dirse-ia primeiro, não sabiam o que fazer daquelas crianças e as reuniram num canto, talvez para ter tempo de pedir instruções, enquanto escoltavam na grande avenida as poucas dezenas de adultos sobreviventes daquele comboio. E uma parte daqueles so-

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Foi nesse dia que vi morrer as crianças judias~

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breviventes ainda terá o tempo de morrer, antes de chegar à porta de entrada do campo, lembro-me que se via alguns desses sobreviventes desabar no caminho, como se sua vida bruxoleante no amontoado de cadáveres de vagões se apagasse bruscamente, alguns caindo reto como árvores fulminadas, em todo o seu comprimento, em cima da neve suja e em certos lugares enlameada da avenida, em meio a neve imaculada sobre as grandes faias tremulantes, outros caindo primeiro de joelhos, fazendo esforço para levantar, para se arrastar ainda alguns metros mais, ficando finalmente estendidos, braços esticados para a frente, mãos descarnadas arranhando a neve, numa última tentativa, dir-se-ia, para avançar ainda alguns centímetros em direção daquela porta, como se aquela porta fosse o fim da neve e do inverno e da morte. Mas finalmente só ficaram na plataforma da estação aquelas quinze crianças judias. Os SS voltaram animados, então, deviam ter recebido instruções precisas, ou então tinham lhes dado. carta branca, talvez tinham-lhes permitido improvisar a manelfa pela qual aquelas crianças iam ser massacradas. Em todo caso, voltaram animados, com cães, e riam barulhentamente gritavam coisas que os faziam dar gargalhadas. Espalharam-se e~ meio-círculo e empurraram à sua frente, para a grande avenida, aquelas quinze crianças judias. Lembro-me, os garotos olhavam e!D volta, olhavam os SS, devem ter pensado no começo que simplesmente eram escoltados para o campo, como tinham visto fazer com os adultos, antes. Mas os SS largaram os cães e começaram a bater nas crianças para fazê-Ias correr, para começar ~quela caçada na. grande avenida, aquela caçada que tinham ~nv~ntado, ou que unham-lhes ordenado organizar, e as crianças JudIas, sob os golpes de porrete, acuadas pelos cães saltando à sua volta, mordendo-as nas pernas, sem latir, nem roncar, eram cães .treinados, e as crianças judias começaram a correr pela grande avemda, para a porta do campo. Talvez nesse instante não tivessem compreendido o que as esperava, talvez pensassem que só era um último trote, antes de as deixarem entrar no campo. E as crianças corriam, com seus bonés de viseiras compridas, enfiados até as orelhas, e suas pernas se moviam de maneira desajeitada, a um só tempo sacudida e lenta, como nos pesadelos em que se corre com todas as forças sem conseguir avançar um passo, e essa coisa que nos segue vai nos alcançar, alcança, e a gente acor~a suando frio, e essa coisa, essa malta de cães e de SS que COrrIam atrás das crianças judias logo engoliu as mais fracas dentre elas, as que só tinham oito anos, talvez, as que logo não teriam mais força de se mover, que eram derrubadas, pisoteadas, surra124

das no chão, e que ficavam estiradas ao longo da avenida, ma;cando com seus corpos magros, desmembrados, a proeressao daquela caçada, daquela malta que se abatia sobr~ elas/ E l~go só sobraram dois , um grande e um pequeno, que tmham perdIdo seus bonés na louca corrida, e seus olhos brilhavam como reflexos de gelo em seus rostos cinzentos, e o menor começava a perder terreno, os SS berravam atrás deles, e os cachorros começaram também a rosnar, o cheiro de sangue os excitava, e então o maior dos garotos diminuiu sua corrida para pegar na ~ão do men