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VIAGEM PELO
RDBERT AVÉ-LALLEMANT
m 1858, o médico alemão Robert Avé-Lallemant fez uma peregrinação pelo Paraná, São Paulo e Santa Catarina. Dessa experiência resultou uma narrativa diferente daquela que nos oferecem os registros dos demais viajantes da época. Lallermant conheceu o País por mais tempo e tinha uma preocupação que o situava de maneira provocativa e polêmica diante do que observava - fazer a critica da contribuição de Portugal na formação e desenvolvimento do Brasil, contrastando-a com os sucessos da presença alemão nos Estados do sul. Essa postura rendeu-lhe confrontos exaltados e deixou-nos um documento precioso sobre o trabalho e o comportamento dos brasileiros de quase um século e meio atrás. Neste livro, publicamos a parte referente à sua viagem pelo Paraná. Leitura indispensável oferecida pelo "olhar diferente" do autor, que obriga à reflexão e reabre discussões. Não encontraremos em seus textos o simples
ROBERT AVÉ-LALLEMANT
CONSELHO EDITORIAL Aroldo Mrrrcí Hnygert Cassicli.za Lncerda Cclrollo Geraldo Potrgy Janril Snege Margarita Sansotx
Luís Robeuto Soares Rafael Grecn de Mncedo Wilsort Marti~is
Todos os direitos desta ediçáo reservados à Prefeitura Municipal de Curitiba
Coleção Farol do Saber Coordenação Editorial: Frí bio Caiizpaizn Projeto Gráfico: Jallzil Snege
Despedida de Joinville. -Expedição na mata, através da Serra Geral, entre Santa Catarina e Paraná. - Chegada ao primeiro Campo da Província do Paraná. . . . . . . . 7
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Capa:
"Mercadode PPriranPrigtlrí" de Paul Garfirizkel
SEGUNDO CAPÍTULO Gente, de novo. - O caçador de antas do Tijucamas. - A Estância do rio do Meio. -Algumas considerações sobre o mate. - Repouso no Rio Negro. - Civilização incipiente. -Abandono das matas e chegada ao Campo do Ambrósio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
Projeto gráfico do miolo: Harry Avoiz Revisão e Preparação: Silvnnn Aliizeida Barbedo Pesquisa: Lina Beiiglr i Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme Decreto no 1823, de 20 de dezembro de 1907 Ficha catalográfica preparada pela Index Consultoria em Informação e Serviços S/C Ltda.
A948
Avé-Lallemant, Robert, 1812-1884 1858, Viagem pelo Paraná / Robert AvéLal1emant.- Curitiba : Fundação Cultural, 1995. 114 p. - (Farol do Saber) lá
- Descrições e Viagens. 2. Paraná
O Campo do Ambrosio. -Bivaque junto de Chico de Oliveira. - Um francês. - Dificuldades na troca do dinheiro. - Despedida de Wunderwald. - Viagem a pé através dos campos e da mata do Campo Largo. Bodas. - Estância de Dona Ana Teixeira. -Viagem para Curitiba, via São José. - Onde fica a Europa+ . . . . 44 QUARTO CAPÍTULO Estada e sucessos na cidade de Curitiba. - Partida para Antonina e Paranaguá. - Estada em Antonina. - Uma lápide para dois nobres mortos. . . . . . . . . . . . 60 QUINTO CAPÍTULO
(20. ed.) 981.62
910.4 16.2)
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S NO BRASIUPRINTED O IN BRAZIL
Partida de Antonina. - A "Paraense". -Joaquim Antônio de Morais Dutra, o domador dos Coroados. -Vista de Paranaguá. - Nossa Senhora dos Prazeres. - Cananéia. Iguape e nossa festinha de ação de graças. Desenvolvimento material em Iguape. - Partida da barra de Cananéia para Santos. - Santos. . . . . . . . . . 88
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PRIMEIRO Despedida d e Joinville. -Expedição n a mata, através d a Serra Geral, e n t r e Santa Catarina e Paraná. - Chegada a o primeiro c a m p o d a Província d o Paraná. Em 16 de agosto, pelas 8 horas da manhã, despedi-me da aprazível Joinville, com emoção e saudade; lá passara dias muito agradáveis. Todavia mais penosa seria a separação da estimada cidadezinha teuto-brasileira, se não me alegrara um acompanhamento que jamais esquecerei. Escoltaram-me a cavalo os meus melhores amigos de Dona Francisca, especialmente o senhor Aubé, que queria acompanhar-me até ao limite de seu território. Aliás a gentil e jovem esposa do diretor realizara a façanha de mostrar que um gracioso pé de senhora podia percorrer a rude picada na floresta até à serraria do Cubatão. Dali seguimos alegremente a trote. No cemitério lancei o último olhar de despedida à amável localidade. Em pouco, depois de passar por muitos recantos a que me afeiçoara, através de caminhos da colônia, meus familiares, chegamos a Anaburgo e logo em seguida às últimas roças. E começou então a nossa viagem a pé através das selvas. Já falei, em outro lugar, do caminho para a serraria. Desta segunda vez também nos acompanharam alegria e bom humor através da solitária picada. Que daria essa excursão ao romantismo europeu! Onde corria um regato, num momento eram
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cort;id;is algumas pequenas palmeiras com o fac5o (I(* i i ~ i i ~r o improvisava-se uma ponte; quando um tronco clc (i! vorc o l ~ trufa a picada, era ele contornado ou, se havia csl);iqo, 1):innnvrise, rastejando, por baixo. Tudo ia muito bem; o nosso ri~);riilirlrn Wunderwald, que marchava na frente, conqiiisio~ivc*i(liitlcli~on louros. Devo, porém, confessar que a noss;i ~:i;icloiuiij!iilii, senhora Aubé, ganhou muito merecimciit o i a i i i r(* iiOn, Nii iii 1, bonito vestido de montar, a que não Faltav;~c-OII o Illoot~trrl~ttto venceu ela com mais facilidade do q i ~ ri\Os (l\ii\ric tcwli\s tis ~ com o dificuldades da picada, animando a coliiti;~t l vicijriiiiriu seu exemplo; e na margem de um líilipitlo rcK;ito, oiitlr foriim rapidamente espargidas folhas dc paliiicit.;is, iotlos 116srcccl~cmos de seu farnel alguma coisa p;ir;i coiiic.r. Entrementes estalaram na m;it;\ t iios tlc c*spirignr(la.Dos altos ramos caíram duas jacutingas c iilgiiiis tiicnrios, que foram cuidadosamente recolhidos. Ao sairmos da mata veio ao nosso ciicoiitro o digno suíço da serraria, senhor Weber. A1gui.m se acliniitiirii piirn informfi-10 do prodígio que era a chegada da senhora do tlirctor, no que ele não podia acreditar. Entramos, pois, com bandciras dcskaldadas, em nosso quartel de acantonamento e tomamos posse da serraria do Cubatão. Mais uma vez senti a plena poesia do maravilhoso lugar! Através da tranqüila Floresta passava, bramindo, o bravio Cubatão; n o rio da Prata chapinhava a roda hidráulica da serraria, por trás da qual passamos sobre uma pinguela, de modo que nos achávamos entre os dois rios. Revoluteavam martins-pescadores na água, através da qual passava, com grande esforço, um altivo touro. Aqui, nas brenhas, rodeado de pessoas tão amáveis, senti, mais uma vez, não. ser muito fácil a gente separar-se delas para voltar para a mata e aliás para Fazer uma viagem em picadas e para a qual ainda não se abrira nenhuma. Começou, então, uma linda cena da tarde. A nossa caça fora transformada em delicioso petisco, tendo-se cozido ge1 Sistema de traje feminino proposto em 1849 pela reformista americana Amélia Jenks Bloomer. Compreendia saias curtas e calças folgadas. N. do T.
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nerosa porção de taiá. Nesse tempo, no Cubatão, ainda não havia toalha nem serviço regular de mesa; pequenas tábuas serviram de pratos; os dignatários entre nós receberam uma espécie de faca e garfo e, sem isso, ajudariam os dedos. Todos beberam num pequeno copo o vinho trazido. Tudo correu excelentemente. Entardeceu e esfriou um pouco. Depois que o senhor e a senhora Aubé se retiraram, acendemos no centro da casa uma alegre fogueira e acomodamo-nos em volta dela para dormir. Mas, nas primeiras horas da noite, não se podia pensar em repouso. Sabe Deus o que se passava conosco. Brincamos a noite de São João e estávamos todos mudados. Esse o meu primeiro dia de viagem de Joinville para Curitiba. Na manhã seguinte eu não estava tão jovial. Despedimonos. E começou uma difícil viagem na mata. O solo elevava-se gradualmente, as águas murmuravam mais alto; mais agrestes eram as árvores tombadas; afinal, a própria mata obscureceuse, pois de ambos os lados se elevavam os picos da serra. Do lado do sul do vale do rio da Prata e do rio Seco, subia a picada com muita habilidade. Tanto quanto se pode julgar até agora, a estrada será excelente. Tornou-se o desfiladeiro mais estreito, solitário e selvagem. Ali se abria uma clareira. Diante de nós o mais original dos asilos na floresta. Seis a oito homens, alemães e helvécios, construíam uma casa de palmeiras, comprida e baixa; outra, maior, estava pronta desde semanas, o rancho de Wunderwald. O rancho de Wunderwald! Este rancho é de fato, o ideal de cabana silvestre ou casa silvestre. Tem 14 pés de Fundo e 24 pés de largura, telhado largo com paredes muito baixas. Tudo é feito de palmeira, de troncos inteiros ou fendidos, de folhas de palmeiras, tudo amarrado com cipó, na melhor ordem, sendo o conjunto apoiado principalmente em duas grandes palmeiras; em ambos os lados há, a meia altura, camas de sarrafos de palmeira, forradas com folhas de palmeira; diante delas há, como assentos, algumas traves de murta. No centro arde, n o chão, uma agradável fogueira. Em resumo, no seio de Abraão
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não se pode viver mais feliz do q u e no rancho de Wiiiitlirw;iltl, no alto da serra. Além disso, estão pendurados em travessas os iiinis vnriados objetos: machados e calças velhas, carne scc;i, ~)ol;iiti;is de couro, caça morta e cobertas velhas, panelas, copos (I(: I;ii;i, sal, arroz, uma pequena botica, pólvora, chumbo, cspiiij;;irtl;is e pistolas. Estávamos dentro da mata e vivíamos coiiio 1)ríl)cipes. E diante do palácio de palmeira chamejava, c m l>;iixo, uma clara fogueira, em torno da qual a nossa gente foi-iiinva u m magnífico grupo. Atravessava a floresta um denso ricvoeiro. As copas das árvores pareciam fantasmas; a cena cra muito bonita e nós estávamos intimamente contentes. Na manhã seguinte fizemos uma bela excursão serrana. Visitamos íngremes cumes cobertos de mata. Wunderwald mandou derrubar algumas árvores, que se precipitaram, estalando, deixando a descoberto uma bela cadeia de serras. Podíamos avistar, a milhas de distância, no interior da Província do Paraná, um oloroso mundo de floresta com magníficos vales. Debalde se procura no caos serrano um ponto cultivado; não aparece casa, um campo, nenhuma fumaça sobe, nenhum galo canta. Rumoreja no abismo o regato e nenhum outro som percebe o ouvido. E tínhamos de atravessar esse caos! Descemos para o rancho. Os últimos companheiros, o bom padre e Leistico, estimados e bons companheiros, deviam voltar para a serraria e foram portadores de minhas lembranças. E então fiquei só com meu companheiro Wunderwald. Entrementes a nossa gente tinha aberto, para o lado do oeste, um bom pedaço de picada. Subimos durante o resto da tarde a bela serra coberta de mata e iniciamos a trabalhosa peregrinação serrana, que me pareceu ainda mais original do que a minha vida de tropeiro de Lajes a São Josi.. Para essa viagem pela mata fora necessário contratar doze homens. Aprovisionaram-se para oito dias e traziam consigo panelas, as minhas coisas e alguns utensílios domésticos, dc modo que, a caminho, pudéssemos ao menos cozinhar a nossa \
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comida. Faltava-nos ainda u m dos nossos homens. Em marcha para a serraria, deixara-se ficar, meio embriagado, com parte dos meus pertences; surpreendera-o a noite com os horrores da mata e a sinistra solidão. De manhã cedo não se atrevera a seguir sozinho; deixou meus objetos junto de u m riacho e voltou para Anaburgo, de onde partiu um homem mais corajoso do que ele, achou as minhas coisas no caminho e com elas subiu para o rancho de Wunderwald, no fim do vale do rio Seco. Em 19 de agosto, de manhã cedo, houve lá em cima um alegre rebuliço. Os homens arrumavam as suas coisas, comidas, roupas, cobertas, panelas de ferro, etc.; mais uma vez Wunderwald, o experimentado mateiro, passou tudo emrevista, achando e empacotando objetos esquecidos; arrumaram depois espingardas de caça e partimos alegremente os catorze homens para dentro da floresta, na qual devíamos passar, entre animais selvagens, seis a oito dias. Entretanto, nem sempre andamos sob augúrios favoráveis. Princípio de manhã abafadiço. Sibilava sobre as árvores um vento violento e quente; nos píncaros da serra gritavam urus, uma espécie de tinocamu ou melhor inhamu ou galo do mato (~rrrr,em guarani, é galo; Urrrglrai, rabo de galo) anunciando borrasca; nada porém alterava nosso ânimo; seguimos pela estreita picada aberta na véspera. Não se pense, todavia, que uma picada é um caminho como na Europa; coisa inteiramente diversa. Um homem, com um facão de mato, vai na frente do engenheiro; este, com a bússola, dá a direção em que o primeiro deve penetrar na floresta. Então têm de ser removidas, naturalmente, as mais insignificantes moitas, ervas e canas, de modo que se possa passar, mas apenas passar. E tão pequena é essa remoção de mato que, ficando-se muito atrás do desbravador, mal se lhe pode reconhecer a trilha e é preciso ter cuidado para não transviar-se da picada. E, não obstante o pouco que se desbasta, a picada prossegue muito lentamente; dificilmente se avança 1.500 a 2.000 braças num dia e no entanto para os carregadores, que vêm atrás com a bagagem, o trabalho é extremamente
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penoso, verdadeiramente mortificante. Trazem a bagagem amarrada em volta de si e com as mãos e os pés têm de trepar; muitas vezes as moitas e trepadeiras os prendem Fortemente e dcscmbaraçam uns aos outros. A cada momento uma árvorc caída tranca a passagem e é preciso trepar por ela ou passar por baixo. Ou tão íngreme é a encosta que a gente escorrega e cai num buraco, num riacho ou num pântano. É, às vezes, aparcntemente cômoda a picada, porque a mata parece mais rala, inns aparentemente apenas. Entáo o desbravador ou o engenliciro faz um pequeno sinal nas árvores e encontra-se a dircçáo tomada e não uma picada propriamente dita. Em resumo, 6 preciso ter aberto caminho na mata pessoalmente, para bem compreender o que significa atravessar uma nova picada sobre a serra Geral, entre as províncias de Santa Catarina e Paraná. E que se obtém em troca de todas as fadigas, trabalhos e perigos; Algo que o europeu, mesmo a maioria dos viajantes, náo pode sentir: tem-se a visáo da floresta virgem em sua mais secreta profundidade, em seus últimos recantos! Os viajantes em sua maioria, todos aliás, viajam sempre em estradas e caminhos, por mais estreitos e menores que sejam; ou navegam em rios e lagos, sempre com certa comodidade, sob a proteçáo de uma civilização, mesmo incipiente, guiados por um vaqueano, conhecedor de veredas e recantos, um negro, um índio. Não assim na picada! Aqui apenas a agulha magnética, muda e tranqüila, indica o norte, por mais que se lhe pergunte se é alto, se é fundo, se é possível ou impossível passar, subir! Não há mais homem, nem vestígio de homem! Nenhum canto de galo, nenhum ladrido de cão! Por cima da floresta murmura o vento; embaixo, no chão, o rio; ao longe troveja a cachoeira; ninguém está com eles; com o animoso grupo humano, só Deus está. Essa uma admirável situação! Diz-se que há trinta anos um boieiro de Curitiba penetrara no vale do Cubatão. Era, pois, Wunderwald o segundo a entrar ali. Numa peregrinação de três semanas quase morrera de fome, até que subira o planalto do Paraná. Outro audacioso mateiro foi o engenheiro Hégreville. Desceu de Curitiba, o que
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é muito mais fácil, sem dúvida, e guiou-se, depois, pelo vale do Cubatão. As picadas de ambos os engenheiros desapareceram completamente e de novo, quem se atrever a fazer a travessia, tem de valer-se da bússola. O engenheiro Major AIvim só chegou até ao fim do vale do rio Seco, onde se acha o rancho de Wundenvald. Lá encontramos o seu nome numa árvore. Diante de nós trabalho pesado. Em pouco terminou o dia, antes de alcançada a picada e nos dirigimos, contentes e infatigáveis, para oeste e sudoeste. Digo contentes e infatigáveis, porque de fato, os meus doze pioneiros estavam muito bem humorados. Eram eles do Holstein, do Meclemburgo, da Renânia, da Holanda e da Suíça. Os últimos não compreendiam os primeiros; havia enganos cômicos; censurava um ao outro o horrendo alemão e motejavam-se mutuamente em alemânico e em baixo alemão. Apareciam, à esquerda e a direita, magníficas árvores, às vezes de enormes dimensões. Medi uma figueira de 38 pés de circunferência, o que dá mais de 12 pés de diâmetro. Fortes troncos conservavam-se abraçados e repousavam hirtos, mortos no selvagem abraço, nos odiosos e aniquiladores anéis. Passou sobre nós um temporal e tivemos de rastejar como nos foi possível. E como já era tarde e, com o mau tempo não tínhamos esperança de continuar penetrando, foi dada a ordem de desembalar e armar o rancho. A instalação de um local de dormida na mata virgem é, porém, muito original. A bagagem é resguardada para protegêIa provisoriamente da umidade. Ressoa em volta o machado. Primeiramente é preciso conseguir a maior quantidade possível de folhas da Euterpe edirlis. Abundam em torno essas nobres e esbeltas palmeiras. Depois de oito a dez machadadas bem aplicadas, abala-se o tronco. Atenção! - grita o cortador e, como num grito de dor, cai para um lado a graciosa rainha da Floresta; com a queda, precipita-se, estalando, um caos de galhos e árvores jovens; às vezes, ao bater em árvores mais fortes ou no chão, parte-se o tronco em três ou quatro pedaços. Passado o ruidoso temporal da derrubada, cortam-se as grandes Folhas dísticas e se arrastam para o bivaque. E dessa maneira,
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para u m só rancho, por uma única noite, abatcin-se oito ;i (IOZC palmeiras. Entrementes, outros trabalhadores ergueram iiiiin nriri;ição de teto inclinado num ângulo de uns, cinqiicntn gr;iiis, tlc uns sete pés de altura na frente e uns trinta de coiiipriiiictito. Depois essa armação é coberta com folhas de palnicir;is, ciijos folíolos são encaixados uns nos outros com muita 11nbilitl;itlc c rapidez. Posta uma camada tripla ou quádrupla clc Folli;is, fic;i o teto bastante compacto, mesmo contra uma chuva forte; ;is extremidades das folhas que se projetam na Frcntc S ~ Odobradas, formando uma aba do telhado; no chão do rariclio espalham-se Folhas de palmeira de modo que uma cubra mct;itlc da outra; entre as nervuras das folhas deita-se um homem c aí temos uma linda cabana verde-escura e uma cama à IA l'fl111c t Virgil~ie.Todos que a vêem, podem irromper em gritos de alegria, menos aqueles que nela devem passar a noite; porque o chão é úmido, úmida a cama, úmido o ar, e fria e úmida a temperatura. E todavia mesmo os qiic pcrnoitniii cin scmrllinntc rriiicho de palmeira enchem-se dc nlcgrin c tlc critiisi;isnio coni a maravilhosa morada. Estava cu, pelo niciios, ;ilc~:rcc ciitusiasmado. Claramente chamejavam duas fogiicii;is tli;iiitc clc nosso rancho e deitavam singulares clarócs sol~rc.os troncos da floresta virgem. Em torno do fogo rccoiifoi-~;iiiic., os coiiip;iiiliciros nórdicos sentados: um fazia café, oiitso coziiili;iv;i ;i carne seca, um terceiro cortava palmito niiilin 11;iiicl;i tlc ferro, iiin quarto descia ao riacho e trazia água. Perto c no loiigc soavam muitas vozes noturnas através da selva; t a 0 11oiic;i vitl;i dnva sinal de si durante a noite e no entanto mcsnio cssr ~)oiicoera ;i forte, grande, sublime. Assim se passou; marrivillios;iiiici~~c, primeira noite. De novo os sinistros urus nos despertara111 clc iii;iiiIi,i ccclo em 20 de agosto e nos intimaram a partir. Toil-iaclo o c;ifC coiri Farinha de mandioca, tudo foi arrumado rapidamcntc c pos-sc a caravana em movimento. Começou então iim trcclio tlc picada muito incômodo: alternavam-se altos e dcprcssõcs c
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acompanhava-nos uma chuvinha úmida e fria. Numa encosta muito íngreme, apreciamos uma pequena e bonita cachoeira de apenas alguns pés de largura e uns doze de altura, Iímpida e branca, sobre rochas negras; tão delicada e poética, honraria o mais belo parque em grande estilo. Após ligeira pausa ao meio dia, a nossa bússola continuou a dirigir-nos em direção ao oeste. Ouvimos a grande distância o trovejar de uma cascata, num braço já visitado do Cubatáo, grandiosa talvez, Fora porém do nosso itinerário. Ouvimos depois um murmúrio muito abaixo de nós. Descemos. Passava por ali impetuoso regato e, perto de nós, precipitava-se do granito vermelho, a cem pés, num íngreme leito de pedra. Um grande bloco de pedra, nas escarpadas margens, formava pequena gruta, sobre que se debruçavam velhíssimas árvores, contemplando tranqüila e gravemente o penhasco no fundo. Numa serra destas seguem-se as paisagens umas às outras. Quando um dia a montanha se tornar transitável, quando essas cachoeiras forem localizadas e tratadas, e delas se possa contemplar o espetáculo da natureza, ganharão nome esses magníficos sítios e serão evocados. Reencetamos a trabalhosa marcha serra acima. Muitos bambus estorvavam nossos passos. Saiu correndo da alta relva uma anta e desapareceu. Por muito tempo ouvimos o seu estrépito nas moitas. Moviam-se também macacos na copa de alta árvore; debalde tentou-se caçá-los: os tímidos animais sabiam esconder-se muito bem e com eles nada se conseguiu. Num terreno fundo e úmido fizemos alto e começou como na véspera, a cena de devastação da mata para a construção de um rancho. Em pouco se aprontou o teto de palmas, chamejavam as fogueiras e estávamos deitados comodamente em nossas camas de palha sorvendo o café, apesar da tempestade e do nevoeiro. Depois dormimos. Tão simples, tão modesto nosso alojamento noturno e no entanto apareceu um ladrão de noite. Meia-noite despertei e percebi ruído em nossos utensílios de cozinha, nos quais ficara um pedaço de carne-seca para o almoço. Um gambá (Didelltliis) fora até lá e fugiu sem largar a
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PRIMEIRO
CAPITULO
carne; Foi um prejuízo sensível, pois numa viagem na mata a dieta tem de ser rigorosamente regulada. Na verdade, nenhum uru, mas uma tempestade com trovões nos despertou na manhã seguinte. Pouco depois fazia bom tempo e os pioneiros, contentes e incansáveis e entre muitas brincadeiras prosseguiram na viagem mata a dcntro. Subimos muito; dos arejados píncaros avistávamos em baixo o escarpado vale do Cubatão, sem podermos ver o ruidoso rio: maravilhosa a vista dos íngremes penhascos. No topo de alta árvore aquecia-se ao sol uma jacutinga. Um tiro feliz derrubou a bela ave. Com estranheza encontramos aqui a tapera de um rancho. Há três anos Wundenvald erguera, no mesmo sítio, o seu alojamento noturno e com alegre exclamação saudamos o lugar, donde o nosso guia já penetrara no planalto do Paraná. Nova tempestade obrigou-nos a apressar a construção de um pequeno teto de palmeira; uma tarde de sol permitiu-nos bom Fim de viagem através de uma região um tanto plana. Em seguida novo temporal Forçou-nos a acampar. Faltavam palmeiras no local, o solo era pantanoso, chovia a cântaros e, no meio do mato, entre árvores velhas, quase não podíamos pensar em levantar um abrigo para a noitc. Contudo, reunindo as forças, conseguimos. A certa distfincia, algumas palmeiras; o que faltava para completar o teto foi siibstitiiído por grandes folhas de feto arbóreo e bambus bcm cnfolhados. Fez-se assim um rancho, áspero e hirsuto como um porcoespinho, mas apesar de tudo um rancho. E até fogo se pBde acender. Passáramos um dia trabalhoso com todas as alternntivas de uma viagem em picada; estávamos no bivaque como depois de travada uma batalha, de uma vitória duramente alcançada. Mas, para compreender-me, é preciso ter feito uma excursão semelhante. Seguiu-se uma noite lamentável. A chiiva caía forte e em breve a água invadia tudo. Os que dormiam acordavam sucessivamente, praguejando, e muito antes de romper o dia estávamos de pé, meio aborrecidos, meio sorridentes e procurávamos pelo menos conservar o Fogo aceso. Muito melhor nos correu o 22 de agosto. A manli5 límpida e fresca fazia-nos ficar também alegres e bem dispostos
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e assim recomeçamos a nossa Fatigante viagem. Depois de algumas horas de laboriosa subida, despertou-nos a todos profundo espanto a vista de três ranchos desmoronados. Wunderwald jamais acampara aqui; as modestas ruínas não eram tão pouco cabanas de bugres. Conseguintemente, tínhamos de atribuí-Ias ao engenheiro Hégreville; evidentemente passara uma noite aqui com os seus companheiros curitibanos. Pela segunda vez, pois, tivéramos o prazer de encontrar vestígios humanos em nossa solitária peregrinação. E em que consistiam esses sinais humanos que nos alegravam< Em alguns paus cortados com Facas européias! Procuramos apegar-nos aos poucos vestígios que o corte da antiga picada havia deixado nos galhos de árvores, o que nos levou a transviar-nos: evidentemente aqui se tinham cruzado as duas picadas antigas, abertas pelos dois engenheiros. A conseqüência do nosso engano foi considerável perda de tempo. Antes do pôr-do-sol caiu sobre a mata um nevoeiro úmido. Achamos um lugar pitoresco para o rancho. Perto, material de construção para o bivaque. Estalando, caíram dez a doze Etiterye, umas trinta a quarenta pequenas iri deram as suas largas palmas para a cobertura do teto; e construímos o nosso verde palácio silvestre em grandes dimensões, mais de 40 pés de comprimento e oito pés de fundo, com boas camas de palha de palmeira para dormir. Aos golpes de machado de robusto cortador tombou soberba araçá (Myrtlrs araça) para alimentar continuamente, com a sua boa lenha, as nossas duas Fogueiras noturnas. Estávamos de fato, muito bem acomodados; magniFicamente Flamejavam as nossas duas pilhas de lenha; e saboreamos com prazer o jantar, para qualquer europeu simplesmente desprezível. O luxo de nosso palácio chegou ao ponto de passarmos a noite completamente enxutos, embora tenha chovido algumas vezes durante a noite. Na mata somos em verdade Frugais. No dia seguinte deixamos, com pesar, o nosso comprido abrigo verde de palmeira. O cinzento e enevoado crepúsculo matutino tomou-se manhã cheia de sol, em que caminhamos
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valentemente. Puro e azul o céu sobre as íngremes desfiladeiros da serra, em cujos vales mais importantes, como por uma rasgadura, passava abaixo de nós, murmurando, o Cubatrío. JA bastante distante de nós continuávamos ouvindo a cachoeira de um de seus braços laterais caindo ruidosamente no rochoso vale. A nossa bússola agora nos apontava o caminho descendo no vale do rio. Fatigante a descida. Quase impenetrável cmaranhamento de bambus enchia o espaço entre as árvores da mata. Cada passo era vencido a golpes de facão. De repente se nos deparou um ruidoso rio. Era tinia vista salutar. Espumando e rumorejando passam as inquietas águas em seu caminho de pedra; silenciosas e imóveis pendiam sobre o rio as sombrias frondes das árvores. Na úmida sombra das árvores florescia em grande número uma bela A~iinryllis,cada duas flores sobre um grosso e alto pecíolo, cada flor aberta na largura de um palmo. Sobre elas, no alto, pendiam das copas das árvores elegantes flores de fúcsias, misturadas com uma magnífica leguminosa de flores vermelhas. Alguns alccdinídeos esvoaçavam sobre o rio; todo o resto tla natureza animal desaparecera inteiramente. Com muitas fadigas chegamos ao Fiiii, rio acima. Mas todo o vale era semeado de pedras. Atraves dc i i i i i ; ~fenda entre elas saia o rio e formava uma cachoeira de apcrias ;ilgtins pés de altura, porém muito romântica. Aqui, sobrc as pcclras lisas, rodeados pelas claras águas murmurantes, tivcmos de f;izcr alto, pois não se podia pensar em prosseguir. Volta~iiospor algumas centenas de passos, tentando passar para o outro ln(lo do rio. Um pequeno penhasco formava um rápido, iim;i I~ariiIhenta cachoeira. Podíamos passar. A água apenas atC ao jocllio, terrivelmente fria. Sentíamos nos pés nus as angiilosas pedras debaixo da água. Do outro lado, junto ao rio, encontramos uni magnífico local para acampar. Em pouco estava a nossa cabana constriiítln e instalado o nosso pequeno lar. Fiquei sobre uma pcdra lisa que descia até ao rio e sorvi com prazer meu café, que acabava
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de ser feito. Sobre mim numerosas orquídeas exalavam o seu forte aroma de baunilha. A minha direita, algumas braças rio acima, trovejava a água caindo do penhasco e à minha esquerda bramia o rápido. Ao cair o crepúsculo vespertino, tínhamos comido o nossa modesto jantar. Nossas fogueiras ardiam claramente na mata. Pela meia-noite culminava o plenilúnio num céu sem nuvens. Luzes vivas caiam sobre a cachoeira espumante e sobre o brilhante torvelinho do rio. Ao lado das águas iluminadas pela lua, a sombra da floresta parecia profundamente negra. Pequenas nuvens de névoa flutuavam acima do rio, nas frondes das arvores. Os companheiras dormiam tranqüilamente sob o teto de palmeira e, com eles, toda preocupação de um ataque dos selvagens. Deus velava sobre todos. Noite maravilhosa; jamais a esquecerei. Partimos no dia seguinte (24 de agosto) e encontramos ainda várias cachoeiras pequenas. Quase tão belas, quanto o trecho tumultuoso do rio de uns quarenta pés de largura, São as suas partes tranqüilas, com muita propriedade chamadas "poçosJ1,na língua do país. São acumulações de água, profundas, perfeitamente imóveis, as quais como não se Ihes vê o fundo, parecem completamente verde-negras. Geralmente fervilham, sobre elas, numerosos insetos; devem ter, na profundidade, pequenos mas saborosas peixes. A água tranqüila aproxima-se tanto da encosta da serra, que muitas vezes o viandante corre o perigo de cair num desses poços, se a picada passa muito perto deles. Vimos mais de urna vez quase verticalmente, a alguns pés abaixo de nós, a profundidade negra e silenciosa. O nosso valente guia Wunderwald tomou a direção, que ele julgou conveniente, para o norte e mesmo para o nordeste, a fim de atingir breve o planalto da Província do Paraná. Desistimos, pois, do rio e subimos mui trabalhosamente uma elevação muita saliente, da qual não parecia ser possível continuar na direçáo indicada. Dificilmente podíamos passear, no alto, através dos milhares de bromeliáceas, fetos e melostamáceas; em toda parte troncos em decomposiçáo, cheios de
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orquídeas, mas também em toda parte densas moitas de taquara estorvavam os nossos passos. Depois de errar longamente, tivemos de decidir-nos a descer para o Cubatão e seguir, subindo, o seu íngreme leito, em cujo escuro boqueirão avistamos, a distância, uma cachoeira de considerável dimensão, até agora inteiramente desconhecida. Chegamos ao rio muito abatidos e extenuados. Enquanto vagueávamos Iongamente no alto, o dia gradualmente chegava ao fim e tivemos de fazer bem perto da água o nosso teto de taquara, pois na região não havia palmeiras. Avançáramos apenas algumas centenas de braças; diminuía rapidamente nossa provisão e, com ela, também um pouco da coragem e alegria de nossa gente. Sob uma chuva com trovoada adormecemos ou antes nos deitamos para dormir e despertamos molhados por uma chuva miúda, se é que realmente dormirmos. E além da desagradável situação, ainda a senha da manhã: não comer à saciedade, para não sofrer fome, caso a nossa demora na mata ainda se prolongue por mais tempo. Com essa fraca consolação, partimos com a roupa molhada através da mata encharcada e tornamos a vadear o Cubatão para seguir rumo oeste pela sua margem esquerda. Impossível, porém; o vale tornou-se tão escarpado e agreste que tivemos de subir a serra por uma íngreme encosta. Com muita canseira caminhamos. O trovejar daquela cachoeira aproximava-se cada vez mais, mas também cada vez mais alcantilado se tornava o monte; em vez de andar, trepávamos, com pés e mãos, por entre fortes fetos arbóreos e mirtáceas de grandes dimensões. Da encosta a pique avistávamos a vertiginosa profundidade. Ladeiras escarpadas formavam um amplo vale cercado de rochas. De lá vinha o Cubatão, saindo de um estreito desfiladeiro e precipitava-se de centenas de pés em serpeante linha branca e em vários degraus na garganta do vale. Do tronco com dois galhos de gigantesca figueira, procurei obter uma vista exata do grandioso quadro natural. Sobressaltou-me uma espécie de medo. Afigurava-se-me que toda a parede de terra com a sua mata ia soltar-se e precipitar-se nas furiosas águas.
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Jamais pé humano pisara esta região, jamais o olho dum viajante contemplara o maravilhoso espetáculo natural. Éramos os primeiros civilizados que em fatigante e perigosa peregrinação penetrávamos até aqui e descobríamos a grandiosa cachoeira da. alto Cubatão. E como na rápida penetração da civilização, do mar para cá, é provável que dentro de alguns anos já audaciosos pioneiros alemães façam o seu caminho através da bravia serra Geral, entre Santa Catarina e a Província do Paraná e, assim tornem acessíveis aquele vale e a imponente cascata, creio ter o direito de dar ao sublime quadro natural o nome de "Cascata TeresaJJ (Tlzeresienfall) em homenagem à Augusta Imperatriz do Brasil Dona Teresa Maria Cristina. No alto, acima da cachoeira do Cubatão, já assomam, no ar, imponentes araucárias, anunciando assim a aproximação do planalto. Duplamente nos agradou o aparecimento delas: de um lado pressagiavam o fim de nossa aventura e, depois, podíamos ter a esperança de encontrar no chão alguns pinhóes, frutos de araucária. Infelizmente, em ambas as coisas nos enganamos. Subimos um íngreme outeiro a noroeste e tornamos a descer para o Cubatão que, acima de sua grande cascata, segue muita tranqüilamente e não tem, em nenhum dos lados, terreno escarpado, antes, mata úmida e insignificante, através da qual prosseguimos. Aqui recebe o rio, pela esquerda, largo regato. Tornamos a vadear o Cubatão, molhados, em jejum, numa temperatura de anfíbios. Da outro lado da trilha fria e úmida tive uma alegria que, mesmo para um viajante, é pueril, pois aos outros parece muito pequena, mas vem do coração. Florescia no chão úmido em exemplares grandes e numerosos, uma anêmona branca com leve matiz vermelho, cujo "habitus" e porte me recordaram a nossa primaveril aizerilo~ienerizorosa. Até certa tripartição das folhas aproximava a flor da serra Geral de sua parente nórdica. Foi ela, pois, para mim, no Cubatão de Santa Catarina, um amável mensageiro da primavera, que me alegrou por todo o dia. Anoiteceu. No meio de um emaranhamento de taquaras, junto de palmeiras e araçazeiros, fizemos o acampamento. Tudo úmido
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e miserável e particularmente escassa a nossa provisão. Distribuídos com a máxima parcimónia, os nossos alimentos bastariam no máximo para três dias; por mais que fiz6ssemosJ não dariam para mais de três dias, não para saciar-nos, mas para manter-nos. Afora a umidade atorn~entadora,e o forte apetite, quase doentio, passamos bem, graças a Deus; tínhamos pelo menos saúde, exceto um, que sofreu um pouco de disenteria; dei-lhe um pequeno vomitório, embora ele afirmasse que, com tão pouca comida, nada tinha no estôn~ago.Pouco depois se restabelecia. Com frio e fome, fizen~oslaboriosamente uma fogueira. Muito molhada, fazia a lenha bastante fiimaça. Um vento traiçoeiro empurrou-a para dentro do rancho, provocando tosse geral e derramamento de lágrimas. Tão lastimável, em suma, nosso estado, que todos acabamos dando gargalhadas, bem que alguns rogassem rudes pragas 2 mata e jurassem nunca mais voltar a ela. Durante toda a noite, indesejável chuva fina. Atravessou o teto e caiu sobre nós; nunca em minha vida me agachei tanto como aqui, mas em vão: molhei-nie e molhado fiquei. Em 26 de agosto, de manhã, o mesmíssimo quadro! Muita chuva e pouca comida, a natureza vestida de cinzento, os homens com humor cor-de-cinza. Quem mais me pen a 1'izava era Wunderwald, porque já tinha feito uma peregrinação semelhante e conseqüentemente conhecia a direç5o de nossa nova picada e, ao partirmos de Joinville, dera instruçóes aos trabalhadores para se abastecerem somente para oito dias. J5 estavam há dez dias na mata e ainda não podiam ver o fim da viagem. Além disso, havia o trabalho de arrastar as minhas coisas. Por mais que as dividíssemos em pequenas parcelas, eram sempre fatigantes e despertavaili consideravelmente o apetite. Eu próprio era a causa das dificuldades; sem poder ser considerado imputável, eu absolutamente não podia snl~ciquanto seria extenuante e arriscada uma viagem em picatln. Para excitar o menos possível o apetite dos honicns, Wunderwald propós um dia de repouso, enquanto ele com (lois
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homens abriria a picada. Foi aceito. Caso chegasse até ao campo do Paraná, onde pudesse comprar um pedaço de carne - o que não era de esperar - ele nos traria alimento. E partiu. Entrementes, tentamos melhorar o nosso rancho e conseguimos um teto compacto e uma fogueira animada. E secamos as roupas, remendamos as calças, um genuíno quadro holandês na selva brasileira. Profundo silêncio reinava na mata: nenhum grito de pássaro ressoava e se ressoasse, seria necessariamente seguido de um tiro de espingarda para trazer à nossa panela vazia o emplumado morador das árvores. Em parte alguma se via uma caça, mesmo um rasto de anta, mas muitas "veredas de anta" que, como caminhos, passam entre os bambuais. Não se podem, porém, caçar antas sem cão amestrado nessa caça. E não tínhamos cão. Se tivéssemos, não iríamos tentar caçar, mas mataríamos e comeríamos o próprio cão. De muito longe ouvíamos ainda o ruído da cascata Teresa. Tamanho silêncio que se ouviria até uma agulha cair no chão. As palmeiras em volta, imóveis. Para medi-las, mandei abater uma muito esbelta. Estalando, precipitou-se dentro da mata. Com nove polegadas de diâmetro no tronco, em baixo, media 66 pés de comprimento, uma nobre proporção e esbelteza, que em outras plantas não é alcançada. Pelas 4 horas da tarde soou, a distância, a buzina de Wunderwald. Meia hora depois chegou. Tinha aberto picada valentemente e esperava levar-nos muito breve ao campo do Paraná. Essa notícia e uma tarde amena nos causaram a melhor impressão, sem diminuir-nos o apetite, inabalavelmente ótimo. Apesar de muito subir e muito trepar, foi também agradável a manhã seguinte. Avançamos muito na picada aberta na véspera; magnífica e saudável a floresta! Mata de bambus, fetos e bromeliáceas parasíticas. Sobressaíam os araçazeiros e mirtáceas, além de muitos troncos de sassafrás. Estes espalhavam o seu aroma, quando cortados pelos abridores da picada para deixar sinais para os que vinham atrás e que frequentemente tinham de descansar. Nenhum alimento substancial os fortificara para o trabalho. Erguiam-se da floresta magníficas palmei-
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ras e araucárias. Estimamos algumas em mais de 100 pés de altura. Eram no entanto excedidas por soberbas pináceas, cujas gigantescas colunas se elevavam de maneira imponente. Já falei demasiado sobre as araucárias para que deva repetir aqui quanto entusiasmo me despertaram essas árvores colossais, onde quer que as encontrasse. São majestosas colunas que suportam o teto de folhas do partenon da selva. Um tronco cilíndrico de quatro a cinco pés de diâmetro, que se eleva em linha reta a 50 pés, sem esgalhar, é uma vista grandiosa. Com o bom humor que nos provocara o belo dia e o largo trecho de caminho percorrido, tornáramo-nos imprevidentes. Num sítio muito adequado construímos o rancho, cobrindo-o ligeiramente apenas com grandes folhas de feto e alguns bambus, tanto mais que o tempo permanecera claro e límpido. Choveu à noite e tivemos de expiar a nossa imprevidência; de manhã estava tudo molhado. Em 28 de agosto de novo partiu Wundenvald sozinho com dois desbravadores de picada. O honrado e incansável homem gostaria de tirar-nos de nossa apertada situação e alcançar o mais depressa possível o campo, onde, em sua primeira expedição, há três anos, vieram ao seu encontro porcos amontados. Se encontrasse carne, no-la mandaria imediatamente; esse foi o ajuste, mas eu sabia perfeitamente que ele nada encontraria. Na última refeição matinal - se assim se podia chamar nossa escassa provisão -todos desejávamos um alimento qualquer. O mais fácil seria encontrar uma égua velha na orla do campo. Acontece com essas belezas eqüestres o que costuma dar-se com as dançarinas e cantoras velhas. Depois de gastarem a mocidade, aplaudidas, no largo campo da vida, retiram-se para um asilo tranqüilo com melancólico desprezo pelo que perderam: a beleza, a juventude e os aplausos do mundo. Quase em toda parte, no planalto de Santa Catarina, encontrei, à orla dos campos distantes e meio escondidas nas moitas, algumas éguas velhas. Como nos agradaria uma delas na mata. Devíamos estar apenas a meia légua de distância do campo.
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Como Leônidas nas Termópilas, comi, com os meus leais companheiros, o nosso último almoço para depois, com dignidade e calma espartana, passar fome com eles. Se o processo da inanição andasse rapidamente, encontrar-nos-iam numa fila bem ordenada de onze homens mortos de fome. Mas, tais quais se achavam as coisas, eu sabia com certeza que sãos e salvos e contentes alcançaríamos o planalto, embora com uma rija fome canina. Entretanto, consertamos radicalmente o nosso rancho; suportava bem a chuva e esse melhoramento de nossa situação Foi para nós como uma vitória alcançada. Sem a refeição do meio-dia, estávamos muito contentes. Tentamos caçar, sem resultado. Andei uma hora inteira com a espingarda, mas nada achei. Assim aconteceu também com alguns dos outros caçadores. Pela tarde pudemos ainda distribuir entre nós uns restos de comida. Wunderwald não voltou; ele queria chegar ao campo do Paraná e nós só podíamos alegrar-nos com a sua resolução. "Em Filipe nos reveremos" -foram as suas palavras de despedida. Não em Filipe, não no campo decisivo, mas foi na mata, trivialmente, que nos encontramos. Em 29 de agosto eu partira cedo; deram-nos ainda algum café; dividimo-lo entre nós; tive o privilégio de lavar, com a minha quota de café, a lata de açúcar, na qual, aliás, não havia nenhum açúcar. Depois partimos para encontrar o nosso engenheiro no campo e comer ali, conforme ficara combinado, "o porco assado". Seguimos a picada em direção ao norte e pela última vez passamos o rio onde reconhecemos o local de dormida de Wunderwald. Uma hora depois encontramos, infelizmente, o nosso engenheiro no meio da mata. Havia equivoco e tivemos de regressar. Era, pois, recomeçar o dia. Apoderou-se dos homens um desagradável estado de ânimo: todos estavam fracos, silenciosos, exaustos. Os mesmos homens que até então tinham marchado com muito boa vontade, com infatigável vivacidade e entre constantes brincadeiras, agora seguiam calados pela mata: estavam esfomeados, na
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verdade eu não podia censurar-lhes o cansaço e no entanto em nada podia ajudá-los. Por duas vezes Wunderwald, do topo de uma árvore, fez o reconhecimento da região. O número de araucárias aumentava cada vez mais. Tínhamos de segui-las para chegar ao campo. Andamos e andamos e nenhum campo apareceu. Os regatos continuavanl correndo para a direita, para o nordeste, onde ficava o Cubatão; por mais que subíssemos, nenhum campo transparecia através do mato. - Um tiro! - exclamamos nós, quase todos ao mesmo tempo. Um tiro ao norte, a menos de meia légua de nós! Disparamos também, duas vezes, três vezes, e Wunderwald tocou a sua buzina; depois escutamos largamente, atentamente, mas na mata nada se mexia. Talvez o caçador solitário tivesse medo de ser encontrado no meio da mata. E afinal, quem estaria na mata< Nós, porém, estávamos de bom ânimo. O tiro fora de uma espingarda do Paraná, isso era certo, e o caçador devia morar perto, o que também era ccrto; e até podíamos ouvir o seu cáo latir. Veio, pois, a animação. Voltaram a coragem, a alegria, o bom humor. E, com isso, parecia chegar o fim da nossa penosa peregrinação. Quando descenios uma planície riquíssima em fetos, chegamos a um riachinho que corria para o sudoeste, o d'água pertencente ao domínio evidentemente o primeiro €i do rio Negro e, portanto, ao Paraná. Havíamos chegado aos limites extremos da Província do Paraná; isso parecia-nos certo e talvez dentro de poucos minutos, de horas, no máximo, atingiríamos o campo. Para festejar o momento, ofereceu-me Wunderwald a sua última bolacha de munição. Como um moderno Alexandre, rejeitei. Eu náo queria comer nada antes que todos os meus companhciros dc viagem também pudessem comer alguma coisa. Daquele riachinho subia-se obliquamente pela mata. Alguns minutos depois encontramos vestígios de casco de boi no
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ch5o e que aumentavam em direçáo a determinada vereda. Para a direita a vereda perdia-se na mata; para a esquerda tornava-se mais trilhada e nós a seguimos rapidamente, em ansiosa expectativa. - O campo! - exclamoii a homem que ia na frente; o campo bem perto de nós! Mais dez ou quinze passos e cstávarnos no campo aberto; perto e a distância havia enorme multidão de araucárias dispersas ou densamente reunidas em bosques; no alto, no ar, esvoaçavam e gritavam inúmeros papagaios; julguei-me transportado para o planalto de Santa Catarina e de novo na Estância dos índios. Estávamos, pois, fora das brenhas. Embora continuássemos sem ter o que comer, todos estávamos contentes. Sobre uma próxima araucária pousava, gritando, um papagaio. Um tiro bcm dado c um momento depois estava morta, no chão, a avc colorida. Assim, havia possibilidade de conseguir-se algum alimento, sc continuássemos a caçada com prudência e habilidade. Enquanto alguns começavam a construir um rancho na orla da mata, eu, com um dos mais resistentes ao cansaço, tentei descobrir uma casa, gente. E~icontramosuma vereda trilhada pelo gado e segiii~no-Ia.Encontramos vestígios humanos, pois achamos uma gamela de araucária, na qual evidentemente houvera sal para o gado lamber. Pouco depois descobrimos na vereda rastos frescos de pés nus, que seguin~ossubindo um riacho. Mas surpreendeu-nos o crepúsculo, ao passo que ouvíamos tiros em nosso acampamento. Era natural voltarmos, pois éramos apenas dois homens e só tínhamos dois tiros conosco. De regresso, na semi-obscuridade, perdemos a direção. Chamamos e ecoou a buzina de Wunderwald. Dobramos uma ravina. Diante de nós brilhou a fogueira do bivaque dos companheiros. Um qiiarto de hora depois estávanios com eles. Haviam sido mortos três papagaios. Foram distribuídos com os doze trabalhadores, por pouco que um qiiarto de papagaio pudesse satisfazer iim niateiro esfomeado desdc dias. Para si e para mim, o nosso engenheiro ainda tinha um pedaço
de toucinho. Com isso recebi ainda metade da bolacha de munição que eu recusara na mata. Agora podia aceitá-la em boa consciência, porque os meus companheiros também tinham o que comer, embora pouco. Então tive um silencioso desgosto. Apareceram alimentos que alguns haviam guardado para o caso de maior fome ou necessidade. Quanto a mim, o direito da própria conservação também é um direito; mas o direito de sacrificar-se pelos outros parece muito mais belo. Afinal, em nosso caso não se podia pensar em verdadeiro perigo; tratava-se apenas de passar um pouco de Fome. E mesmo assim aqueles precavidos companheiros tinham revelado egoísmo e cautela, para mim, repugnantes. Por pequeno que fosse o jantar na orla da floresta, foi, todavia, reconfortante. Enquanto os doze trabalhadores tomavam a sua sopa de papagaio e comiam a sua quarta parte, eu assei numa haste de bambu a meu toucinho e comi-o com a metade da bolacha. E com infinita satisfação. Sim, não me envergonho de confessar que, depois de comer o toucinho, chupei a ponta do bambu enquanto havia nela gosto de toucinho. No antigo e no novo mundo, comi muitos jantares lucilados, mas não me lembro de nenhum que me tenha sabido tão bem como o da orla do campo do Paraná no dia 29 de agosto. Dormirmos deliciosamente a noite; satisfeitos, despertamos de manhã. Verdadeira manhã araucariana: leve nevoeiro; brilhantes papagaios gritavam nas frondes dos verde-negros bosques de pinheiro; estava fresco, quase frio e com muito prazer nos aquecemos um momento na reatiçada fogueira do bivaque, até que nasceu o dourado e cálido sol. E então partimos, para achar gente. Seguimos a vereda que o meu companheiro e eu já tínhamos palmilhado na véspera por meia milha e dentro em pouco, aliás sem nenhum prazer para nós, estávamos no meio de uma densa mata, tal como se uma potência demoníaca nos tivesse levado de novo ao Cubatão, condenando-nos a novas dificuldades. Wundenvald ia na frente e os outros o seguiam silenciosamente. Porque, depois de ver a planície do campo aberto
e demorar nela algumas horas, uma vereda na mata é dobrado constrangimento. De repente ouvi Wundenvald falando em voz alta, em português. Aproximei-me rapidamente para ver o que se passava.
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ULO Gente, d e novo. - O caçador d e a n t a s d o Tijiicamas. - A estância d o rio d o Meio. - Algumas considerações sobre o m a t e . - Repouso n o Rio Negro. -Civilização incipiente. - A b a n d o n o d a s m a t a s e chegada a o C a m p o d o Ambrósio. Era gente. Apoiados em suas espingardas, armados com facas de mato, estavam em volta do meu bom engenheiro quatro homens e iim menino, todos t i o espantados de encontrar europeiis quanto nós alegres e atí: entiisiasmados por termos descoberto os quatro mestiços de índios. Apertanlos as mfios uns aos outros, saudamo-nos e conversamos. Há, nesses encontros na mata, uma confiança admirável, firme como um rochedo! Resumidamente Ihes contamos a nossa história nas matas e picadas e causou viva alegria aos homens pardos, calmos e realmente bem constituídos, que europeus se tivessem exposto, destemidamente, à trabalhosíssima vida na mata. "Não encontraram nenhum bugrelJJ-perguntou o mais vigoroso entre eles. Dissemos que não. Isso pareceu dar-lhes prazer. Estranho! Nada -nem a solidão, nem o horror da mata, nem os abismos, nem as cachoeiras, nem os animais ferozes amedronta esses homens: só a palavra "bugres" os faz estremecer e empalidecer; só pensar neles já os pert~irba.Vi o assombramento com o espectro dos bugres no Rio Grande, vi-o em Tubarão e no Feixo em Santa Catarina, vi-o em Lajes, em Índios, no rio Bonito, no Trombudo, em toda parte e de novo na mata do Paraná e no entanto nunca tive ocasião de ver
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bugres. E não obstante vi homens calmos e corajosos empalidecerem com a simples palavra "bugresJJ. O menino e três homens seguiram para trazer uma anta que um deles matara adiante do Campinho no dia anterior, mas não pôde conduzir, pois o animal pesava 10 arrobas, ou sejam, 320 libras. Tínhamos ouvido o tiro, que muito nos alentara. Fato curioso, o caçador de antas, que ficara conosco, fora o primeiro homem que Wunderwald encontrara, na mesma região, quando, três anos antes, aqui chegara em sua viagem através de picadas. Ambos se reconheceram imediatamente. Com certa dignidade o caçador de antas tomou um cigarro de palha de milho, levou-o à boca, deu três ou quatro fumadas e passoii-o depois ao nosso companheiro como sinal de hospitaleiras boas-vindas e de alegria por tornar a vê-lo. Examinei o homem dos pés 2 cabeça. Evidentemente era um índio quase puro, de estatura mediana e bem nutrido, pardoclaro, de aparência leuco-fleumática, de rosto bom, redondo e cabelos negro-escuros. Como cobertura da cabeça tinha um couro cru de bugio. Trazia uma camisa azul, calças de 'linho cinzento até os joelhos, com as pemas nuas do joelho para baixo. Além da espingarda tinha ainda duas pistolas e uma faca de mato ao cinto. Este consistia numa pele de gato selvagenl, cuja cauda servia de bainha à faca. Era originalíssimo. Perguntamos se tinha comida, se podían~oscomprar alguma coisa. Disse ele que para vender nada tinha, mas teria prazer em dar-nos o que tinha no seu rancho, lá em baixo, na mata. E seguiu na frente. Logo depois ele parou, examinou uma árvore seca, tomou o nosso machado e cortou o tronco, a fim de que tivéssemos combustível. Levamos alguma lenha conosco e seguimos o estranho guia através da mata. Abriu-se uma depressão ampla e clara. No fundo corria um riacho. Perto, uma casa de madeira, pequena e pobre, feita de traves de pinheiro e uma cabana menor, evidentemente a cozinha. Ao lado da casa, uma horta, cercada com troncos de feto arbóreo, na qual eram cultivadas as coiives e outras hor-
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taliças. Com extraordinária pompa floresciam ali três pessegueiros. Perto da casa um relvado em talude. Além, toda uma encosta derrubada para uma roça. Assim era a primeira estância no planalto do Paraná. Saíram do rancho algumas mulheres e crianças, que olharam admiradas para os recém-chegados. Provavelmente elas, francamente de origem índia, nunca tinham visto tantos homens inteiramente brancos. Éramos para elas sucesso inaudito, talvez um acontecimento na vida dessa gente. O caçador de antas fez uma fogueira, em torno da qual ficamos nós, com verdadeira fome canina. Tomou depois um grande pedaço de carne-seca de anta e um menor de porco do mato (Dicotyles).Assou o primeiro numa vara; uma das mulheres tomou-o e pilou-o num forte tronco de árvore escavado como gral e colocou-o, depois, numa gamela. Em outra vasilha Foi posta farinha de milho; o caçador de antas estendeu um couro, pôs sobre ele a estranha comida e os meus cossacos sentaram-se para comer. Comeram formidavelmente. E eu também. A carne de anta sabia maravilhosamente; para mim tinha gosto perfeito da carne defumada hamburguesa, aliás achei-a mais suculenta e mais vermelho-escura do que aquela. A carne de porco do mato também estava excelente e desapareceu tão rapidamente quanto a carne de anta, embora fossem enormes as porções. Entrementes, não esteve ociosa a hospitalidade do caçador de antas. Ele tinha grandes panelas cheias de pinhão cozido. Começou, em grandiosa escala, o segundo prato do nosso jantar. Por mais gostosos que fossem os pinhóes, não podíamos comê-los todos. Uma hora antes podíamos jurar que não haveria comida suficiente para saciar-nos. A uma das crianças ofereci uma moeda inteiramente nova e ela me trouxe bolos de milho, muito gostosos e que, distribuídos entre os homens, ainda foram comidos. As mulheres mandaram perguntar a Wundenvald para que servia a sua buzina de sinais. Ele tocou um sinal e elas
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ficaram atônitas. Evidentemente nunca tinham vista semelhante instrumento, nem sequer ouvido um trecho de música. Comoveu-me a surpresa e alegria delas. Reconheci mais uma vez o poder da música, mesmo a de uma buzina. Tem-se imposto por meio do Evangelho e por meio de canhões a cultura européia a povos selvagens; quem sabe se não seria mais fácil incutir-lhes os costumes, as leis e a religião por meio do canto e especialmente por meio dos instrumentos de soprot Li que uma vez levaram à ópera os caciques de índios que estavam em negociações com o Congresso de Washington. Cantou uma célebre cantora; a princípio os índios ficaram muito espantados; depois, dominados pelo entusiasmo, arrancaram do corpo os seus ornatos, pele de sariguéia, e as arremessaram aos pés da cantora até que ela ficou com os mais puros ornatos de suas selvas. Em casa das primeiras pessoas que encontramos no Paraná, após trabalhosa peregrinação, passei, pois, uma hora para mim inesquecível. Fizemo-lhes presentes de dinheiro e coisas que Ihes pudessem agradar. Na despedida, dei a mão a todos; essa gente despertou-me muita compaixão. As mulheres mandaram pedir a Wundenvald que lá na floresta tocasse a buzina mais uma vez. Ele prometeu e nós partimos. O caçador de antas acompanhou-nos até a um riacho Iímpido e escachoante, o rio das Tijucamas, que atravessamos sobre um tronco de árvore. Aqui se despediu o nosso homem. Com todo o coração lhe apertei a mão parda e nervosa. Afinal, escreveu-me ele o seu nome: Francisco Bueno Gomes. Subimos pela floresta um caminho escarpado e do alto olhamos em torno. O caçador de antas seguia-nos com a vista, como se desejasse seguir conosco para a vida da cultura e da civilização. Acenamo-lhes ainda e depois desapareceu no mato. Em cima, na crista da serra, Wundenvald tocou a buzina. Em volta o eco repetiu os sons. Depois seguimos mata adentro. Voltávamos, pois, ao convívio humano e saíramos de nossa opressiva situação, notadamente do perigo da fome, mas ainda se achava muito distante de nós a civilização. Continuavam aparecendo novas matas e embora houvesse nelas
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alguma claridade para poder-se ver o caminho, todavia era tão penosa a marcha no solo pantanoso que se poderia preferir a mais simples picada ao ingrato terreno. Ao meio-dia passamos, sobre um tronco de árvore, o pequeno rio Bateia e pouco depois entramos numa grande clareira, adiante da qual cantou um galo. "Um galo!" - exclamamos quase todos nós, alegremente, no mesmo momento. Porque u m canto de galo é o anunciador de uma bem fundada habitação humana, o profeta de um princípio de civilização. Assim era aqui. No meio da floresta elevava-se uma colina, na qual havia uma pequena estância. Subimos para lá a ver se havia possibilidade de achar pousada. Aqui, aliás, a civilização não fizera muita coisa, já, porém, mais do que no rancho do caçador de antas. Formavam a habitação uma casa feita de grossas tábuas de pinheiro, em rigor só um espaço com um tapume e dois telheiros de paredes de barro. A alguma distância havia ainda uma barraca de tábuas. Em volta, cercados para vitelas e porcos. Apesar da pobreza da habitação, fomos recebidos com boa vontade pelos moradores, mas era pouco convidativo o pessoal que ia aparecendo para ver-nos. O dono da casa, Antônio Ribeiro, era, como sua mulher, de origem índia. Sua filha casara com José dos Santos Barbosa, que representava o papel principal e era manifestamente de origem portuguesa, embora remota. Além disso ainda andavam para lá e para cá alguns homens e mulheres, mestiços de índios e brancos; das muitas crianças se podia concluir que alguns formassem casais sobre cujas relações não pude esclarecer-me. Nos confins da civilização não é fácil passar a limpo essas relações. Aquela gente tinha a rudimentar estância em comum e tudo entre eles parecia em condomínio. Deram aos nossos homens a pequena casa de tábuas. Compramo-lhes 16 libras de carne-seca; pouco depois ardiam duas alegres fogueiras para assar a carne, com a qual receberam os nossos homens excelente farinha de milho e mate de primeira qualidade. Foram estendidos couros de boi; pela primeira
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vez gozaram eles, depois de nossa partida de Joinville, cômodo repouso e a esperança de dormida agasalhada, chovesse ou fizesse bom tempo durante a noite. A quem tenha tido de dormir na mata, na estação mais desfavorável do ano, onde agosto corresponde a fevereiro, não preciso dizer que os meus companheiros de mata ficaram contentíssimos. Na vida de um colono há momentos, dias e mesmo semanas em que ele invejaria a Diógenes no seu tonel. Eu próprio, em minha expediçáo pela mata, vivi semelhantes momentos. Wundenvald e eu fomos levados para junto da família. Lá nos sentamos para alguns momentos de repouso e gozei a vida de pioneiro. No chão rústico da pobre casa de madeira -onde só uma porta dá entrada e nenhuma janela deixa penetrar a luz, a qual, porém, toma a liberdade de introduzir-se por todas as fendas da parede de tábuas - crepitava e chamejava um fogo alegre, lançando a sua luz vermelha sobre o pequeno mundo índiobrasileiro em torno de mim. Agachamo-nos sobre pequenos cepos, pois em tais ranchos naturalmente não há cadèiras, bancos e mesas. Bondosamente a velha da casa nos preparou comida e a pôs ao lado do fogo, no chão: com o auxílio de colheres de metal tomamos a saborosa refeição. Como está a civilização européia longe, enormemente longe de semelhante choça, de semelhantes moradores da mata! E, no entanto, como a gente agradece a Deus quando, saindo da Floresta úmida, encontra estes moradores da mata, este rancho! "Os senhores não encontraram bugresl" - Foi essa a primeira pergunta que nos fizeram quando Falamos de nossa expedição. Sempre os selvagens! Há alguma coisa de terrível na luta entre esses homens-animais da selva e o civilizado da colônia! Por menos numerosos que sejam os primeiros e por menos civilização que tenham os últimos, não se pode pensar em transição de uns para as outros, em nenhum tráfego, acordo ou conciliaçáo. Onde se encontram, espreitam-se e lutam com toda a certeza. Onde a flecha de um sai, zumbindo, da emboscada, a espingarda do outro estoura e envia-lhe uma bala
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SECUNDO CAP~TULO
sibilante contra o corpo nu. O bugre não tem direito algum, porque não reconhece nenhum direito. As histórias de roubos, assasiinatos e incêndios em território europeu São horrorosas, mas São somente exceções, somente infrações de um princípio geralmente aceito e observado. Não assim a vida nas selvas. Aqui a regra é a defesa, mesmo o ataque e o assassinato. O que mais agradeço a Deus é que em minha expedição pela mata nunca tenhamos encontrado bugres. Com o nosso armamento, qualquer ataque seria repelido logo no começo com uma bala, mas essa bala feriria um homem e o estenderia no chão. E depoist Depois eu teria de correr para a vítima, mortalmente ferida pela minha própria bala, oferecer-lhe a mão e socorrê-la. Quem pode suportar o olhar de semelhante moribundo, acredita que a gente leve a bolsa de ferros, o martirize lentamente até matá-lo e depois ainda despedace o seu cadáver! Esse quadro da selva é atroz, mas ocorre e poderia desenrolar-se diante de meus olhos europeus. - O senhor não atiraria no bugre, se o encontrasse< perguntou o meu hóspede. - Se não me atacasse, não repliquei eu. O outro abanou a cabeça. - O bugre é um bicho - disse ele. E abandonamos o assunto. Penso que, no íntimo, me deram razão. Isso deve bastar para que o leitor europeu compreenda que a vida na orla extrema da floresta virgem, numa estância isolada, é triste e medonha; e que o aparecimento de catorze europeus com princípios humanitários que, vindo da costa em trabalhosa expediçáo através da mata, penetram no planalto para preparar um caminho para a civilização é, para esses remotos camponeses, um acontecimento universal. Por exemplo, já não é digno de admiração que numa estância exposta ao azar de um ataque de surpresa apareçam subitamente catorze homens com armas e bagagens sem despertarem a mínima suspeita, de modo que o dono da casa sozinho, sem a menor emoção, embora admirado, Ihes sai ao encontro e os convida, a eles que só iam perguntar pelo caminho, a passarem a noite no seu lar, com os seus, a contentarem-se com a sua pobre
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barraca e ficaremt Um único olhar do homem bastou para considerar-nos e reconhecer-nos como alemães, pioneiros de Joinville; um único e simples pensamento bastou para concluir que éramos um grupo da mesma gente a cujas machadadas a floresta tombava, fugia a barbaria e bugres e tigres se retiravam para as suas cavernas de trogloditas. Na estância havia uma criança de tipo facial genuinamente índio, que há cinco dias quebrara o braço. Improvisei uma atadura e mostrei à mãe como poderia ela própria ajustá-la e disse que a criança se restabeleceria. A menina de sete anos, muito turbulenta, Ficou notavelmente quieta enquanto eu lhe punha a atadura: ela via que eu queria ajudá-la. Nisso, para suportar a dor, agiu mais o instinto natural do que uma resoluta vontade infantil. Saí a ver os companheiros. Chamejava alto a fogueira que acenderam e lançava a sua luz vermelha sobre as frondes das escuras araucárias que se elevavam em volta. Na mata murmurava um riacho. A certa distância gritava uma coruja; tudo o mais era silêncio e em suave paz seguiam as estrelas, no mais puro céu, O seu curso noturno. Em casa também ardia o nosso fogo. Sucediam-se cenas curiosas. A Wunderwald e a mim deram o compartimento junto do espaço principal, onde havia uma espécie de armação de cama feita de cipós entretecidos. Não se podia naturalmente pensar em roupa de cama, almofadas e cobertas. A bondosa velha pusera, todavia, como travesseiro, uma porção de saias e outras peças de roupa, cuja emanação me era desagradável; contudo, deitamo-nos como foi possível. Mas a noite era muito Fria; através das largas fendas da parede soprava um ar cortante, de modo que absolutamente não pudemos dormir e confessamos que um bivaque na mata, com um bom Fogo, seria melhor do que nosso pretenso alojamento. Apenas amanheceu, saímos de casa e fomos aquecer-nos na alegre fogueira dos companheiros. Em pouco estávamos desgelados e os outros despertaram. Vieram mais 16 libras de carne e uma porção correspondente de farinha de milho e os
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meus pacientes companheiros alimentaram-se para mais um dia de marcha. Visivelmente, desde ontem, eles tinham aumentado algumas polegadas de diâmetro. Wundenvald e eu fomos chamados para o almoço. De novo nos acocoramos com os nossos homens primitivos em volta do fogo, cada um em seu cepo muito baixo; mantivemos nova palestra sobre a lavoura dos alemães nas terras baixas, pelo que os homens da mata mostraram muito interesse. Mas há muito brilhava o sol sobre a floresta; nos pessegueiros, que floresciam viçosamente perto da casa, zumbiam os colibris em multidão e a nossa gente já tinha embalado tudo. Com muitos agradecimentos pagamos as provisões consumidas por nós e nossos homens e partimos de novo para a mata, pois continuávamos sem encontrar um verdadeiro campo. Atravessamos o pequeno rio do Meio e viajamos algumas horas na mata sabre altos e baixos. Por pior que fosse o caminho em certos pontos, era, todavia, um caminho, às vezes aberto através dos matos, até com algum tráfego. Encontramos homens que seguiam com burros carregados, em geral de mate; em muitos lugares ouvimos falar e chamar no mato; muitos estavam espalhados a distância, ocupados em "fazer" mate, como se diz na linguagem profissional. Encontramos grande quantidade de troncos desfolhados; de muitas árvores até abateram a copa para mais facilmente colherem os ramos tenros e a folhagem. Mate, mate e mais mate! Essa a senha no planalto, a senha nas terras baixas, na floresta e no campo. Distritos inteiros, aliás, províncias inteiras, onde a gente desperta com o mate, madraceia o dia com o mate e com o mate adormece. As mulheres entram em trabalho de parto e passam o tempo de resguardo sorvendo mate e o último olhar do moribundo cai certamente sobre o mate. É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação. Tudo o que em nossa civilização se compreende como amor, amizade, estima e sacrifício, tudo o que é elevado e profundo e bom
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impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servi-lo e tomá-lo em comum. A veneração do café e o perfumado fetichismo do chá nada são, nem sequer dão uma idéia da profunda significação do mate, na América do Sul, que não se pode descrever com palavras, nem cantar, nem dizer, nem pintar, nem insculpir em mármore. Comparativamente, nada é o célebre "Tliere be Irolre of benr~tieshrrgliters" de Byron. Sim, tivesse Moore conhecido o mate, a sua amável Peri teria reconquistado as portas do paraíso e a felicidade dos imortais com o mais belo que há, com um maravilhoso diamante, com uma gota demate! Nas folhudas matas, a centenas de pés de altura, do Rio Grande, Santa Catarina, São Paulo e Curitiba e muito além na América do Sul, cresce a árvore encantada que fornece a erva ou erva-mate; e por isso se chama erva1a região particularmente abundante em mate2. A árvore tem o tronco esbranquiçado, esbelto; de algum modo semelha, na cor, a nossa bétula. Vi poucos troncos de certa grossura, apenas até um pé de espessura; geralmente São mais delgados, esbeltos, graciosos. Divide-se em muitos galhos e ramos densamente cobertos de folhas alternas. As Folhas de pecíolo curto, São longamente ovaladas em sentido inverso, ligeiramente denticuladas, tendo, no máximo, nove a doze dentículos de cada lado. Muitos dentes têm até um pequeno prolongamento como se fosse formar um acúleo. A nervura central da folha, que alcança duas a quatro polegadas de comprimento, sobressai fortemente na Face inferior da folha e recebe, em ordem alternada, as nervuras transversais, no máximo seis de cada lado, que se anastomosam entre si por meio de áreas de inserção, especialmente na orla da folha, dando-lhe quase um tipo de mirtácea. Na folha fresca e muito
2 Aqui sáo suprimidas duas linhas, em que o autor faz um jogo de palavras com "erva" e 'Krautn (cr1.n em alemão) e que só oferece algum interesse para os leitores alemács. rrrng Ifcrifn\r,oI Krnrrr i~cdcr~rcir. 1:'sgilirni~cr rirrr cirr Krnrrr, São as seguintes: "Ursyriir~gliclr nird dicscs Krnrrr, Blnrr, ;si /\Inrc, nlso Itcissr llcrc*n ciri-frrr n l l c ~ r ~ n l ~ l l n~ cN. " . do T.
mais na seca, a orla da folha dobra-se, para baixo, numa ourela saliente. A consistência da folha é sólida, meio coriácea e um tanto seca, a cor é de um bonito verde um tanto escuro; ao secar, a cor escurece mais. O gosto, ligeiramente amargo e aromático, é siri gerleris!
Essas as principais qualidades da folha; pelo menos das que tenho ao lado, sobre a mesa, enquanto escrevo. Náo é preciso lembrar ao botânico que a erva é aparentada com o nosso Ilex nqrrifoliirrrr nórdico ou explicar, a ele e a outros cientistas, que ela e outros gêneros formam a família natural das aquifoliáceas ou iliáceas, sobre as quais se pode consultar qualquer manual de botânica ou, melhor ainda, estudar em nosso Ilex nqrrifoliirrrr nórdico. Mas talvez seja injusto dar ao Ilex nqirifoliirr~ro atributo de nórdico. No Uruguai, pelo menos, vi no chão enorme quantidade de moitas cortadas de Ilex; eram usadas para cobrir canoas arrastadas para o seco e protegê-las contra o calor do sol, para o que as sólidas folhas eram perfeitamente apropriadas. Contemplando o arbusto, no Uruguai, eu não podia descobrir nenhuma diferença entre ele e a planta nórdica. E por que não deve ocorrer o Ile.~,se sua parente próxima, a erva-mate, forma bosques inteiros< O melhor tempo para fazer mate - essa é a expressão profissional - é, no Brasil, de março até ao fim de setembro. Conforme a acessibilidade do lugar e o número dos participantes, seguem então para o erval muitos homens com carretas ou burros e, antes de mais nada, lá edificam um rancho para instalarem uma residência durante semanas ou meses, pois muitas vezes o erval fica até a 30 léguas da morada de origem. Começa então o corte. Vestidos apenas de calças e armadas com um facão de mato, os ervateiros decepam não somente as folhas e ramos finos, mas também galhos regularmente grossos com tudo o que neles se acha. A folhagem é secada a fogo brando e depois pilada, com os ramos finos, em cestas de bambu especialmente preparadas para esse fim ou em sacos de couro cru. Preparada a porção colhida, é enviada para casa,
onde, em grandes estâncias, São entregues a um engenho próprio para mate, ou a um maior. Aqui a erva e a parte lenhosa delgada São piladas e moídas, reduzidas ao pó mais fino possível e depois malhadas em sacos de couro cosidos muito regularmente, o que muito contribui para a valorização do artigo. Esses fardos de mate, preparados de maneira originalíssima com couros de boi, têm uma enorme significação e dificilmente se pode dar uma idéia da quantidade de uma mercadoria da qual nada se sabe na Europa que toma chá e café. Creio não exagerar afirmando que na América do Sul todos os que falam espanhol tomam mate e quase metade dos que Falam português lhes seguem o exemplo. Já Falei, alhures, da quantidade de mate que se fabrica. O engenho do rio Pardo podia fornecer 100 arrobas diárias de mate. Uma firma francesa na pequena Itaqui exportava por ano 4.000 arrobas. A exportação de todo o Rio Grande é estimada em 17.000 arrobas. E se lançarmos um olhar sabre os caminhos do Paraná, especialmente sobre a estrada que, saindo do interior da Ptovíncia, conduz, via Morretes, a Paranaguá, podemos dizer, com alguma certeza, que uns dois terços dos burros que passam pela estrada vão carregados de mate e levam muitos milhares de arrobas da estranha erva para a Costa. E se vamos às antigas Missões e ao Paraguai, berço do mate, de onde veio chamar-se a erva Ilex yrirngirnyerrsis -e esse é o nome clássico do verdadeiro mate - então a fabricação de mate é realmente enorme. Os jesuítas ganharam com ele uma fortuna colossal e parece que o Paraguai ainda exporta centenas de milhares de arrobas da célebre erva, o genuíno, o verdadeiro chá paraguaio, ao lado do qual o que se tem exportado como congonha ou mesmo, cassina é apenas uma variedade da planta ou confusão de nomes. Mas o que é que agrada quando se toma o mate, qual o efeito da erva4 A infusão tem gosto levemente amargo e aromático e, como qualquer porção de água quente, é diurética. Quanto ao
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mais, abstraindo do simbolismo já citado, nada de importante posso dizer sobre os seus efeitos benéficos. Mas como o legítimo bebedor de mate o toma quentíssimo, assim tem ele, certamente, conseqüências desvantajosas. Quando sorvia mate, sempre se me desprendia a pele do céu-da-boca e atravessando o Rio Grande sempre andei com o palato queimado. E penso que se podem atribuir ao uso do mate muitas gastralgias e formas crônicas de gastrite, embora não possa dizer com certeza que provenha do mate uma consequência desvantajosa visível. Em qualquer caso, seria enorme perda de tempo querer discretear sobre o tempo e seu emprego nas regiões onde se bebe o mate. Naquelas regiões não há jornais regulares, nem cafés. O bebedor de mate constrói o seu próprio mundo político e sozinho, diante de sua cuia de mate, é mais feliz do que se estivesse sentado num café. Finalmente, pareceu-me digno de nota que se tenha descoberto nas folhas do mate o princípio essencial do chá, a teína. Tanto mais digno de nota me parece porquanto as folhas de chá bem desenvolvidas têm extraordinária semelhança com as folhas do mate, de modo que, vendo-as umas ao lado das outras, nem sempre se pode distingui-las com certeza, por mais diferentes que sejam os caracteres de família botânica entre o chá e o Iles. Mas, sobre a erva e suas diferentes relações, basta! Pelas 11 horas achávamo-nos numa elevação coberta de mato, de onde descortinávamos belo panorama da serra das Três Barras. Em contornos bem definidos eleva-se a cordilheira cinzentoazulada; por ela passa o caminho de Curitiba, capital da Província do Paraná, para São Francisco. Deve ser horrenda a estrada. Ao nordeste desta serra eleva-se outra ainda mais elevada, que estimo em 5.000 pés de altura. Mas essas avaliações à distância São muito incertas. Um caminho medonhamente mau nos conduziu, através de uma depressão do terreno, ao rio Negro, primeiro rio considerável que, por intermédio do Iguaçu, corre para o Paraná. Num pântano do rio me chamaram a atenção algumas vacas
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pelo seu considerável tamanho e magreza. É que, durante a estação desfavorável, os animais não recebem nenhum auxílio. Mais tarde falaremos a respeito. Junto das águas impetuosas do rio Negro passamos uma agradável hora de repouso, depois de termos atravessado a sua defeituosa ponte. Fez-nos bem o cálido sol da manhã primaveril. Em toda parte brotava um verde fresco; em toda parte florescia uma multidão de afelandras de graciosas flores vermelhas e limbo amarelo; e, em revoada esvoaçavam colibris em volta das bonitas filhas da primavera. Chegavam tão perto de nós, em nosso repouso do meio-dia, que poderíamos apanhá-los com as mãos. Esses doidivanas emplumados são às vezes atrevidos e insolentes. Uma vez a senhora Aubé estava sentada na varanda de sua casa e tinha no seio um ramalhete. Um colibri do mato se aproximou e teve a audácia de querer sugar as Flores. Quando compreendeu o seu erro, fugiu como um raio. Lentamente, arquejando, uma tropa de burros carregados subia a íngreme e suja encosta. Um deles perdeu a sua carga e seguiu de muito bom humor. Perseguiram-no alguns homens que muito trabalharam com o animal enfurecido. Prosseguimos e desde ali tivemos a alegria de encontrar sempre vestígios de civilização na floresta. Aqui e ali, uma roça aberta na mata, e entre elas, um pobre rancho cercado de pessegueiros de flores purpurinas. A cada passo, gritos de crianças e o canto do galo, até que uma nova mata encubra o pequeno quadro primaveril. Finamente, à tarde encontramos um campo, porém muito pequeno; creio que se chama Campo da Jararaca. Adentramonos em seguida numa floresta de légua e meia de diâmetro, com um caminho largo, mas difícil. Os homens estavam cansados com a peregrinação do dia; alguns se atrasaram. Fui adiante com o infatigável engenheiro, acompanhado de um suíço. Depois de muito andar, pudemos finalmente anunciar com a nossa buzina, aos companheiros atrasados na mata, que havíamos saído da mata e alcançado o Campo do Ambrósio. Com isso ficavam de fato atrás de nós as florestas existentes entre Santa Catarina e o Paraná.
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O C a m p o do Ambrósio. - Bivaque junto de Chico d e Oliveira. - U m francês. - Dificuldades n a troca d o dinheiro. Despedida d e Wunderwald. - Viagem a pé através d o s campos e d a m a t a do C a m p o Largo. - Bodas. - Estância d e D o n a A n a Teixeira. - Viagem para Curitiba, via São José. - O n d e fica a EuropaC Não é o Campo do Ambrósio um simples campo relvado; antes uma região onde se alternam campinas, matas e depressões pantanosas, com o que ganha expressão de isolamento e abandono, mormente antes de começar a primavera, quando a relva murcha ainda não foi renovada e o gado emagrecido pelo inverno ainda se acoita na mata em exemplares pouco numerosos. Todavia a vista de uma região ampla e aberta, embora erma, é maravilhosamente surpreendente e refrigerante para quem, como nós, vagueou no espaço apertado de uma picada sob a sombra de Florestas úmidas e só por momentos viu uma pequena clareira. Saudamos, pois, com gritos de alegria o vasto Campo do Ambrósio e, embora não houvesse muita coisa civilizada a observar, muito nos alegrou ver pessegueiros florescendo em diferentes lugares. Atravessamos o campo por muito tempo numa direção, na qual Wunderwald julgava residisse um homem que ele já
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encontrara há três anos. Chamava-se Chico de Oliveira e era coletor de impostos da fronteira, cobrados sobre animais de casco e de unha conduzidos da Província do Paraná para Santa Catarina. Precisamente em frente de sua casa se bifurca o caminho, de um lado para Curitiba, rumo ao norte, e do outro, para Três Barras, rumo ao sudeste. Mas, no campo, não era Fácil achar o caminho. Após meia légua de marcha, chegamos a uma casinha, completamente vazia. Em volta pastavam vacas e bezerros. Floresciam densamente os inevitáveis pessegueiros e os igualmente indefectíveis colibris tinham-se aproveitado da ausência do dono da casa para chafurdar descaradamente nas flores, inflamadas de vermelho-escuro ante a tempestuosa corte dos indômitos amantes. Flores de pessegueiros e colibris! O mais gentil epitalâmio que em qualquer parte possa produzir a primavera. Tivemos de voltar a fim de informarmo-nos com os moradores do Campo do Ambrósio, onde quer que Fosse, sobre a casa do Chico de Oliveira. De qualquer modo tinha eu de encontrar o homem. Como funcionário, ele devia levar em consideração minha carta aberta, do Presidente de Santa Catarina, e ajudar-me a achar animais de sela para a continuação da viagem. Depois, era sua casa o ponto de onde descia o caminho para Três Barras; por aí Wunderwald tinha de regressar, - com os nossos companheiros de mata, para as terras baixas, a fim de, após uma viagem de quatro dias, achar-se de novo em Dona Francisca. Topamos felizmente com o nosso grupo, recém-saído da mata para atravessar o campo. Uma chuva ligeira nos estorvou um pouco. Mandamos o criado que eu acabava de contratar a uma casa a alguns minutos de distância, para informar-se sobre o caminho. Devidamente informados, partimos pela tarde. De longe avistamos a casa que nos Fora indicada, mas o crepúsculo chegou cedo demais e, ao cair da noite, nos encontramos, muito desagradavelmente, num pântano. Apalpávamos o terreno
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TERCEIRO CAP~TVLO
com as mãos c os pés c passamos, sondando, como através de um lago, com mil dificuldades. Já ladravam os cães no pátio de Chico de Oliveira, quando notamos que nos faltava um meclemburguês. Ainda há poucos minutos estava conosco. Embora um homem vigoroso, sofria de palpitações do coração e não devia ter-se apresentado para a exaustiva peregrinação; durante toda a marcha ele se atrasava e agora desaparecera de todo. Dispersos como íamos, muito tivemos dc chamar e procurar, até que afinal apareceu o transviado e, em coluna cerrada, subimos para a casa. 0 s cães ladravam furiosamente. Os nossos gritos assustaram-nos e atemorizaram também os moradores da casa. Tudo bem aferrolhado, não se via nenhum raio de luz, nenhuma resposta aos nossos chamados; tudo na casa parecia morto, embora eu tivesse visto luz, de longe, poucos minutos antes. Não levei a mal a inospitalidade daquela gente. A casa ficava isolada, numa região Fronteiriça, erma e solitária. Catorze homens que chegavam, gritando de longe, de noite e com nevoeiro, lembram uma quadrilha de bandidos. Quem são< Que queremt Quem se colocasse na posição dos moradores faria o mesmo. Mas se se colocasse na minha posição, também ficaria, por sua vez, aborrecido e agitado. Afinal de contas, julgava ter chegado ao fim de uma exaustiva excursão pela mata e achar-me na casa de um homem que devia auxiliar-me e encontrava sua porta fechada. Mas, mesmo com essas dificuldades, Wundenvald sabia abrir uma picada com muita habilidade. Lembrou-se de uma casa pouco distante da de Chico de Oliveira, onde havia uma espécie de posta de guarda. Queríamos tentar alcançá-la e seguimos o caminho ou a direção para ele e chegamos a um lugar onde, em vez do caminho, havia água Iímpida. Felizmente ainda tínhamos uma vela. Como o tempo estava inteiramente calmo, Wundenvald acendeu-a e com alguns companheiros passou habilmente a água, que em parte alguma parecia ter mais de um pé de profundidade. Entrementes, com fragmentos
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de uma cesta de mate, acendemos um logo numa pequena elevação da margem e o conservamos aceso a fim de que servisse de luz e os que estavam estudando o terreno pudessem voltar a reunir-se conosco. Era escuro, silencioso e ermo. Perto de nós uma espécie de sapo executava a sua música atroz. A pequenos intervalos soltava um lamentos0 queixunle, como o de um recém-nascido, ou melhor, de uma criança moribunda. Todo o pântano parecia cheio de lamentosas criancinhas. O som já me desagradara no Campo de São Leopoldo, no Rio Grande; mas era pavoroso para mim no escuro da noite e na situação de abandono em que me achava; lembrei-me da "Pfarrestochter von Taubenhain" de Burger. Ainda por cima um dos bichos rastejou até ao nosso fogo, lamentou-se profundamente e de novo desapareceu no pântano. Era muito cômico; rimos unanimemente e tanto mais quando um dos nossos caiu de uma pequena elevação dentro d'água, molhando-se todo. Tarde, porém, chegou a boa notícia de que fora encontrado um abrigo. Tiramos os sapatos e as meias e, como cegonhas, atravessamos a água; na frente ia uma luz. Andamos mais um quarto de légua, de pés descalços, e depois estávamos diante de uma alegre fogueira. E era pomposo o nosso abrigo! Um homem rico quisera ornar o Campo do Ambrósio com uma bonita casa e, para esse fim, escolhera um lugar elevado. A bem carpintejada armação da casa estava pronta e completa a coberta de telhas muito bonitas. As divisões interiores apenas indicadas, por meio de traves e postes. Enorme quantidade de tábuas e vigas preparadas e especialmente muito cavaco e outros detritos de madeira para a esplêndida fogueira que acabava de ser acesa no centro do bem coberto recinto. A passo de carga nos apossamos completamente do palácio de fadas. Em pouco tempo, com o material existente foram improvisados bancos em torno da fogueira; do lado do vento foram colocadas tábuas; o agradável recinto era seco e quente e unanimemente, confessamos que em toda a nossa campanha não tivemos um só momento tão alegre como o que
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passamos debaixo do telhado novo. No fogo crepitante assouse a carne; ainda tínhamos um bom saldo de nossas 32 libras e ainda trazíamos alguns bolos de milho. Até água potável havia. Ao irem da construção para as suas casas, os trabalhadores tinham deixado uma enorme cabaça; parecia que por nossa causa a tinham enchido de novo. Tudo se reunira para o sibarítico banquete noturno. Até o fogo exalava aroma agradável; entre os detritos de madeira, grandes aparas de sassafrás, que espalhavam um cheiro excelente. Diz-se que os Fugger de ~ u ~ s b u r quando ~ o ~ , hospedaram o Imperador Carlos V, lhe aqueceram o aposento com lenha de canela e sândalo. Mas com certeza não se sentiu o espanhol tão bem no solo alemão quanto nós na terra brasileira, nos limites extremos do Paraná. Com cavacos, ponchos e cobertas foi preparada a cama. Eu só tinha uma preocupação. A nossa fogueira devia ser vista a qualquer distância. Se a vissem, que pensariam de nós< Pensava na possibilidade de um ataque noturno, mas Wunderwald despersuadiu-me de quaisquer cuidados. Imaginava ele com toda a razão, que mesmo se alguém ousasse aproximar-se furtivamente para espionar-nos, ficaria contente se pudesse escapar sem ser visto. Ademais, catorze homens são, sem dúvida, uma força considerável. Onde é que se reuniria gente bastante para atacar catorze homens com vantagem4 Dormimos, pois, sem cuidados e maravilhosamente, até amanhecer, como ainda não dormira desde que deixei o meu quartinho na casa do senhor Aubé em Joinville. E que manhã a de 1" de setembro! Clara, fria e silenciosa. Em pouco o sol radiante enviava seus raios cálidos sobre os campos e nas matas próximas gritavam os papagaios desesperadamente. Vimos gado disperso no campo e - o que mais nos alegrou -à pequena distância, em direções diferentes, três casas, em parte bonitas, que ficavam no campo; em volta de cada uma delas floresciam viçosos pessegueiros. No campo as sombrias araucárias pareciam graves e recolhidas. Via-se, sen3 Antiga família de banqueiros de Augsburgo, que emprestava dinheiro a príncipes e reis, tendo tido o privilégio de cunhar moedas. - N do T)
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tia-se, com profunda piedade e entusiasmo que mesmo aqui, em várzeas tão distantes do grande no meridional da América do Sul, há um sopro de primavera e, mais belo ainda, um sopro de incipiente civiIização, de incipiente educação, e incipiente humanização. Pode ser que um europeu, no macio gozo da civilização e no meio de florido parque da Europa, sorria de mim, caso leia estas linhas, e não compreenda que me entusiasme com um quadro de ermas araucárias, em cujo primeiro plano há relva murcha, em cujo fundo apenas se observam três casinhas e árvores em flor! Pode não compreender, pode sorrir: mas naquela manhã, naquele campo, inspirou-me, no sentido cultural, um sopro de primavera, "contudo, devia haver primavera". E sentia-me como se um prezado companheiro de juventude, um querido amigo de Lubeck, uma natureza mais nobre do que milhares de outras, estivesse naquele momento ao meu lado e me apertasse a mão com a exclamaçáo, sua e minha: "Contudo, deve haver primavera!" Vi, então, cerca de um quarto de légua de nós, uma coisa singular. Não confiei em meus olhos e tomei um pequèno binóculo: na verdade, a passos tranqüilos e graves, vinham dois bois encangados, atrelados a um arado, que um homem guiava segundo as regras da arte; era a primeira vez, em minha vida americana de muitos anos, que via um arado trabalhando, embora tenha visto sinais do seu trabalho nas colônias alemãs. Um arado nos limites dos botocudos e bugres! Desci para onde estava o homem. Parece que só me observou quando o saudei; passou o arado a um negro, veio ao meu encontro e ofereceu-me a mão. Era Chico de Oliveira. Em pouco estávamos tão conhecidos que me ofereceu sua assistência. Mas só me podia oferecer um burro de carga para a continuação de minha viagem, pois seus animais ainda estavam metidos nas matas e baixadas. Já estava satisfeito, mesmo que tivesse de esperar todo o dia pelo único burro de carga. Podia vender-me também a ração de carne-seca para o regresso dos meus companheiros de mata. E com isso voltei para o nosso acampamento.
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Lá encontrei um visitante, um morador da vizinhança, interessado na construção daquela casa. Pedi-lhe desculpa par todos nós; com grande amabilidade, disse que não havia de que pedir desculpa, antes se regozijava com o feliz acaso que nos salvara de nossos apuros. Essa afabilidade tirou-me o acanhamento, sete de nossos mateiros precisavam de um dia de descanso e não podiam encontrar melhor local de repouso do que aquele onde estávamos. Pedi, pois, ao homem, mais vinte e quatro horas de estada no acampamento; e com a maior satisfação acedeu ele. Os homens tiveram um descanso homérico. Chegou pouco depois um segundo brasileiro. Que não pensaria ele de nosso aparecimento estranho< Era o escrivão Francisco Alves Pereira, igualmente empregado na estrada de rodagem do Paraná para Santa Catarina, homem digno e modesto, e lamento que, com sua boa educação, tenha de viver naquela região solitária. Pediu-me que o visitasse em sua casinha, o que fiz com muito prazer. Vi na casa u m inequívoco sinal de cultura: uma pequena coleção de livros e um verdadeiro lar doméstico. Quem teve a paciência de seguir-me através das matas solitárias da serra Geral não achará pueril a menção dessas circunstâncias aparentemente insignificantes. A força armada do Campo do Ambrósio está em casa do escrivão. Consta de um soldado, u m jovem negro de boa índole, cujo distintivo militar consiste num boné azul orlado de vermelho. O segundo, que formava a força da fronteira, desertou há pouco tempo; aborrecia-o a solidão do lugar e a falta de qualquer ocupação. Com muita bondade vendeu-me o escrivão parte de seu pequeno abastecimento de feijão e farinha de milho para a minha gente que, nos quatro dias de sua viagem de regresso para Joinville, na estrada de Três Barras, corria o perigo de não encontrar alimento. Tivemos a propósito dificuldade muito original. Trazia apenas notas de 20 mil-réis. Reuníramos todo o trocado para a nossa gente que, no seu regresso, onde encontrasse casa, poderia salvar-se de dificuldades. O bom escrivão
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não me podia trocar dinheiro e nem mesmo Chico de Oliveira; eu recebera do último todo o troco que tinha em casa. Isso, porém, não constituiu dificuldade. O escrivão deume o nome de uma senhora residente a seis léguas de distância, no caminho que eu devia seguir e com quem devia deixar o dinheiro a ele destinado. E caso também lá, em casa de dona Ana Teixeira, não houvesse troco, devia pedir-lhe o nome de uma pessoa na aldeia a nove léguas de distância, a freguesia de São José, a quem podia efetuar o pagamento. No distante Uruguai, nas Missões do Piratinim, encontrei um processo original de trocar dinheiro. Toma-se o patacão, a moeda de prata, partindo-o, com um cutelo, ou com o machado, em quatro pedaços iguais. Guardei, então, como curiosidade, um quarto dessas moedas de prata. Não é assim com o dinheiro de papel. Resolveu então a dificuldade a bolrn fides que o povo tem no viajante europeu bem educado; viaja-se um ou dois dias com a sua dívida e paga-a quando aparece oportunidade. Pelas 11 horas pode Wundenvald partir com a sua vanguarda, de regresso, via Três Barras. Separamo-nos como amigos. Deixávamos atrás de nós um pouco de vida, de privações e perigos em comum. Depois de uma excursão de muitos dias em picada, nunca mais esqueceremos um ao outro. Com cordial alegria e a mais viva simpatia pelo seu destino, sempre me recordarei do infatigável engenheiro de Joinville, que com a sua bússola e a sua faca de mato me serviu de guia fiel, abrindo caminho de 16 de agosto até setembro, através das selvas da serra Geral que, no norte da Província de Santa Catarina encerra, com seu antemuro oriental, a bacia do rio Paraná. Por trás da primeira colina coberta de araucárias desapareceram os robustos peregrinos. Entre os escuros pinheiros ressoou ainda a buzina de Wundenvald; no sul distante o caçador nórdico dizia-me o último adeus. Naquela ocasião entrara em casa de Chico de Oliveira um original vagamundo, um francês entroncado, de pele queimada, barba espessa e estranha aparência. Trazia para Chico uma carta de um compadre e uma carta dessas tem no Brasil enorme
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importância. Desejando-se alguma coisa de um homem, basta agarrar-se ao seu compadre para obter tudo. Entre os homens é o compadre o que é o mate entre as plantas - tudo. Pareceu-me conhecer o francês e ele evidentemente a mim. Era muito conhecido no Rio, mas para mim um enigma. Através de certas palestras tinha de considerá-lo uma espécie de flibusteiro ambulante da medicina que intrujava o povo nas regiões afastadas da inspeção médica e policial. Afirmava ter sido professor na escola do senhor Icopke em Petrópolis. Seus conhecimentos exatos sobre suínos e todos os animais imagináveis e a perspicácia com que tentou negociar em gado com o nosso hóspede deram-me a idéia de que podia ser negociante de gado e, respectivamente, boieiro. Disse-me meu criado que o francês era carpinteiro e que como tal trabalhara durante semanas, na casa do próprio senhor Aubé. Endiabrada gente esses polimorfos franceses, vagando nas províncias do Brasil e certamente em todo o mundo! Como classificá-los< Qual a sua forma zoológica originalos iorrciir i~idbirrirosgnriilios, injnirdo üiijns c criins! Alnrnr, irtnrnr, é o rcirrn dcsdc ns ~rinrgerrsdo lo'nrnrici nré ns iordillieirns nzrris! 011gclrrc, , yrorii~crnn Driis que Iioic rir 1.0s~~irrirssc iriil~cdirn ~*ingcirrno I'rnrn e iirnitrinr-180sImrn n I'tírrin!"
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se não tem o seu próprio cavalo, o seu próprio burro; ele é apenas um homem, um pobre homem, e não um homemcavalo, um centauro. Ao meu criado, que era conhecido em Curitiba, deram algumas esperanças para me deixarem ao menos a expectativa da possibilidade de partir. Ao amanhecer o dia 10 de setembro, despertei-o e mandei-o em busca de burros ou cavalos, pois eu devia partir sem falta, porque no mesmo dia descia para a costa o correio - último sinal de partida. Por um preço considerável consegui o que me era indispensável, em animais, para a viagem. Podíamos, então, selá-los, mas apenas isto! Tão magros e fracos eram os cavalos que me tinham cedido, que me causava compaixão por-lhes a sela em cima. De Fato, quanta mais eu via o trato dos cavalos no Sul do Brasil, mormente no Paraná durante o inverno, mais me convencia que só se podia encontrar um bom cavalo com o meu velho e honrado amigo Major von Sucl