Vida escrita por si mesmo 9789723115949


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VIDA ESCRITAPOR SI MESMO
INTRODUÇÃO
Cronologia breve da vida e das obras de Vico
Giambattista Vico, Vida escrita por si mesmo
ÍNDICE
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Vida escrita por si mesmo
 9789723115949

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VIDA ESCRITA POR SI MESMO

Gravura de Giambattista Vico que acompanhava a edição de 1744 da Ciência nova.

VIDA ESCRITA POR SI MESMO Giambattista Vico

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

Reservados todos os direitos de harmonia com a lei. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian

Av. de Berna. Lisboa

ÍNDICE

Introdução ............................... .. .......................................

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Cronologia breve da vida e das obras de Vico ................. 49 Giambattista Vico, Vida escrita por si mesmo ......... ........ 57

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INTRODUÇÃO

O projecto Para o leitor contemporâneo, o interesse e o fascínio de uma obra como a autobiografia de Giambattista Vico (1668-1744)- a Vida escrita por si mesmo (1728) - residem talvez na possibilidade de conhecer o percurso humano e filosófico que conduziu à Ciência nova, a obra pela qual ficou conhecido o seu autor, e que se conta entre os grandes textos filosóficos de todos os tempos. Por outro lado, além de dar a conhecer a história de um filósofo e de uma obra, a Vida abre uma janela com vista ampla para o panorama intelectual das primeiras décadas do século XVIII- italiano, mas não só. Embora Vico tenha vivido em Nápoles praticamente durante toda a vida, as suas ambições tinham na mira não apenas a cidade natal e a Itália, mas sobretudo a Europa, como atestam a dedicatória da primeira edição da Ciência nova, em 1725, «às academias da Europa», e a autobiografia. Com efeito, se nos detivermos na génese da Vida, ou seja, no ambicioso projecto do conde friulano Giovanartico di Porcla, reconhece-se aí um aspecto de grande modernidade no que se refere à transmissão das ideias e dos saberes, indissociável do contexto cultural que levou à publicação da Vida.

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Esclareça-se desde logo que a ideia de escrever a autobiografia não partiu de Vico; diga-se, aliás, que uma iniciativa do género muito dificilmente teria passado pela cabeça de um pensador setecentista tão zeloso da sua boa reputação, tão preocupado com possíveis acusações de imodéstia ou de sobranceria por parte da maldizente elite dos letrados de Nápoles, como o autor da Ciência nova. O projecto de Giovanartico di Porcia, intelectual ligado aos meios mais cultos da sociedade véneta-friulana, foi ideado com o objectivo de promover a publicação de um conjunto de autobiografias de intelectuais italianos de mérito e idoneidade indisputáveis. Deverá remontar pelo menos a 1721, ano em que começou a circular privadamente entre alguns deles, com o acolhimento favorável de figuras como Scipione Maffei, Apostolo Zeno, Benedetto Bacchini, Antonio Vallisneri e, em especial, Ludovico Antonio M uratori. O autor dos Rerum italicarum scriptores tinha já expressado, em 1706, a sua simpatia pela prática da narrativa autobiográfica, afirmando que seria de grande utilidade que os melhores poetas «pusessem também por escrito o modo através do qual tinham encontrado os conceitos».1 A aceitar-se, porém, a conjectura de Benedetto Croce, na base da ideia de Porcia estaria uma carta de ' «E nel vero farebbe a mio credere un ' impresa utilissima alia Repubblica de' Letterati, se piu Poeti valorosi, oltre allasciarci i !oro nobilissimi componimenti, ponessero anche in iscritto ii modo, con cui eglino han trovati i concetti, disoterrate !e Verità ascose dentro a quella Materia». Ludovico Antonio Muratori, De !la perfeita poesia italiana spiegata, e dimostrata con varie osservazioni, Modena, Bartolomeo Soliani, 1706, p. 575.

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Leibniz de 22 de Março de 1714, enviada de Viena ao geólogo e matemático francês Louis Bourguet, residente em Veneza à época. Nessa carta, o filósofo alemão sugeria que Descartes exagerara ao fazer crer que mal tinha lido livros (numa referência ao Discurso do método, bem entendido), e manifestava o desejo de que os autores divulgassem «a história das suas descobertas e os progressos pelos quais chegaram até elas». 2 Dado que Leibniz endereçava alguns elogios ao abade veneziano Antonio Conti, era verosímil que Louis Bourguet tivesse comunicado a Conti o conteúdo da referida carta, dando início em Veneza a uma discussão frutuosa sobre o tema. Sabe-se que o padre Carlo Lodoli, censor eclesiástico daquela república (e que desempenha, à semelhança do abade Conti, um papel de relevo na publicação da Vida), tinha um apreço particular pelo projecto de Porcia. Lodo li designava a «louvável empresa» de escrever sobre si mesmo por «periautografia», neologismo formado a partir dos termos gregos, e por «periautógrafos» os seus praticantes, como relata o monge camaldulense Angelo Calogerà no prefácio ao primeiro tomo da nova revista veneziana por si curada, onde são publicadas a Vida e o projecto de Porcia- a Raccolta d'opuscoli scientifici e

2 Benedetto Croce, «Nuove ricerche sulla vita e le opere dei Vico e sul vichianismo», in La critica, XVI, 1918, p. 216. Escreve Leibniz a Louis Bourguet: «je voudrois que les Auteurs nous donassent I'Histoire de leur découvertes et les progres parles quels ils y sont arrivés», in Die Philosophischen Schriften von Gotifried Wilheim Leibniz, vol. III, C. I. Gerhardt (ed.), Hildesheim, Olms [reedição], 1965, p. 568.

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.filologici -, sob a forma de uma carta endereçada a Antonio Vallisneri, com data de 12 de Setembro de 1728.3 A ideia de Pareia era então há já alguns anos conhecida em Veneza quando, presumivelmente ainda em 1723, Vico foi abordado para escrever a sua autobiografia. Andrea Battistini apresenta razões convincentes para corrigir a datação de Benedetto Croce e Fausto Nicolini, de acordo com a qual o convite teria chegado a Vico no início de 1725 e uma primeira porção de texto teria sido mandada para Veneza em Junho desse ano. Por um lado, o facto de a primeira fase de redacção da Vida terminar no relato do infortúnio do concurso universitário de 1723, não fazendo Vico nenhuma menção à Ciência nova, e ainda a carta de 5 de Janeiro de 1724 de Pareia a Antonio Vallisneri, na qual o nobre friulano comunica ao cientista ter enviado ao padre Cario Lodoli a Vida de Vico juntamente com o seu projecto, para que se imprimissem conjuntamente, permitem conjecturar que o filósofo napolitano terá terminado de escrever a primeira parte da Vida até finais de 1723 (portanto, antes da Ciência nova). 4 Após toda a espécie de obstáculos editoriais, a 14 de Dezembro de 1727 Pareia escrevia a Vico a informá3 Veja-se a reprodução fac-similada do prefácio de Angelo Calogerà em Giambattista Vico, Vita scritta da se medesimo, introduzione e cura di Fabrizio Lomonaco, Napoli, Diogene Edizioni, 2012, pp. 116-130. 4 Sobre esta datação, veja-se o texto introdutório de Battistini à sua edição das obras de Vico: Giambattista Vico, Opere, Milano: Arnoldo Mondadori, 2007, pp. 1231-1242. Sobre as circunstâncias da publicação da autobiografia, veja-se ainda o ensaio de Gustavo Costa, «An Enduring Venetian Accomplishment: the Autobiography of G. B. Vico», in ltalian Quarterly, XXl, n. 0 79, Inverno de 1980, pp. 45-54.

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-lo de que a publicação da obra estaria para breve; o filósofo apressou-se então a redigir uma continuação, que conseguiu expedir para Veneza a 10 de Março de 1728. A segunda fase de redacção da autobiografia compreende as peripécias referentes à publicação da primeira Ciência nova, acontecimento que, como se verá, irá conferir uma visão de conjunto e um desígnio providencial à vida de Vico. Só em 1728 (antes de Outubro, dizem os biógrafos mais avisados) é que a Vi ta di Giambattista Vico scritta da se medesimo vê finalmente a luz, no primeiro tomo da Raccolta d'opuscoli scientifici e .filologici; precedia-a o texto de Pore ia intitulado Progetto ai letterati d 'Italia per scrivere le !oro Vite. 5 Numa época em que ganhavam cada vez mais peso as grandes empresas colectivas, estimuladas pela criação de novos jornais e academias, pela proliferação de epistolários e por uma grande variedade de iniciativas editoriais, no rescaldo de uma crise seiscentista de controlo doutrinário e ideológico decorrente da Contra-Reforma, o tópico da renovação da cultura e da sociedade italianas estava na ordem do dia. 6 Nesse sentido, o projecto concebido por 5 Para que se tenha uma ideia da miscelânea que constituía a «Raccolta», no mesmo número em que é publicada a Vida de Vico saíram na revista veneziana artigos como: Relação de uma víbora que deu à luz as suas crias pela boca, do médico romano G. Paolo Limperani; Da origem, dos progressos e do estado actual da cidade de Prato, de Giovambattista Casotti; Carta de Tubalco Panichio, pastor árcade. Em defesa do uso promíscuo de 'VS. 'e 'Vós'. 6 Sobre os objectivos do projecto de Pareia e o seu contexto sociocultural veja-se em particular o artigo de Cesare De Michelis, «L' autobiografia intelletuale e il "Progetto" di Giovanartico di Porcia», in Vico e Venezia, a cura di Cesare de Michelis e Gilberto Pizzamiglio, Firenze, Leo S. Olschki, 1982, pp. 91-106.

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Porcia- cujo produto final devia compor as Notizie d'alcuni Letterati viventi d 'Italia, e de' !oro Studj - coadunava-se com o ideal de edificação de um saber enciclopédico que começava a nascer na Europa. Constituía, além disso, uma resposta a um estado de insatisfação em face de uma situação cultural específica, a saber, um certo sentimento de inferioridade dos intelectuais italianos em relação às produções do espírito vindas de países protestantes como a Inglaterra, a Alemanha e a Holanda, do qual derivava uma vontade assumida de mostrar aos vizinhos europeus que também naquela península havia homens de mérito e obras dignas de nota. Não deixa de ser significativo, aliás, que o projecto de Porcia e a Vida de Vico sejam publicados no mesmo ano em que sai a Cyclopaedia, or, an Universal Dictionary ofArts and Sciences, de E. Chambers, que virá a servir de base, anos mais tarde, para a Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (1751-1772), de Diderot e D' Alembert. Entre os principais objectivos do nobre friulano encontrava-se assim a redefinição do papel social e político do letterato italiano - o savant, o intelectual. Como esclarece o autor do Progetto, as autobiografias deviam narrar as histórias de formação dos seus autores, de modo a constituir modelos pedagógicos com vista à renovação das elites pensantes. São decerto reveladoras as numerosas indicações de Porcia aos seus interlocutores, que funcionavam como linhas de orientação, e cuja leitura permite

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iluminar alguns aspectos da retórica da Vida. Nas palavras de Porcia, os autores das autobiografias deviam dar conta do ano de nascimento, do nome dos pais e da pátria, bem como das «aventuras que tornavam a sua vida mais admirável e curiosa», desde que tal narração não fizesse «ruborizar o mundo e a posteridade». 7 Devia seguir-se a narração do percurso dos seus estudos desde os primeiros anos de escola, com uma reflexão crítica acerca dos métodos de ensino, da escola e dos professores, incluindo os respectivos méritos, abusos ou lacunas. Após terem ascendido de «Arte em Arte, de Ciência em Ciência», não deixando de assinalar os problemas com que se debateram no ensino das diversas matérias, os autores eram convidados a discorrer sobre aquelas às quais se tinham dedicado de modo mais aprofundado, indicando as obras publicadas e por publicar, bem como os autores que lhes tinham servido de modelo. O projecto, cuja motivação maior era, nas palavras do seu promotor, o «amor pelo progresso das letras na ilustre pátria italiana», incluía ainda várias advertências de carácter ético. Movidos por uma «heróica indiferença», os autores deviam aplicar toda a sinceridade possível na narração do seu itinerário intelectual, sem 7 Pode ler-se a transcrição integral do Progetto ai letterati d 'Jtalia per iscrivere le !oro vite no apêndice ao ensaio de Rosario Diana, «Ragione narrativa ed elaborazione dialogica dei sapere. L' autobiografia di Giambattista Vico e ii suo contenuto problematico», no Bolletino del Centro di Studi Vichiani, XXXIV, 2004, pp. 113-167. Veja-se ainda uma reprodução fac-similada do projecto em Giambattista Vico, Vita scritta da se medesimo (introduzione e cura di Fabrizio Lomonaco), ed. cit., pp. 135-149.

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ceder à tentação de fazer uma apologia e não se inibindo de referir os erros e as falhas em «coisas de engenho e de letras». Deviam, enfim, manter-se fiéis à finalidade de ser úteis a toda uma nação, «libertando-se das amarras do amor-próprio», armando-se, para tal propósito, de uma «generosa neutralidade» no modo de falar de si, e vestindo o papel de