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Português Pages 329 Year 2019
Copyright © 2019 Silviano Santiago
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S235l Santiago, Silviano, 1936Uma literatura nos trópicos / Silviano Santiago. – Recife : Cepe, 2019. 380p. : il. Inclui bibliografia. 1. Literatura brasileira – História e crítica. 2. Literatura – História e crítica. 3. Crítica literária. 4. Análise do discurso literário. I. Título.
CDU 869.0(81)(091) CDD 869.09
PeR – BPE 19-129
ISBN: 978-85-7858-763-5
Nota preliminar
O autor dá adeus a seu manuscrito ao vê-lo transformado em livro. Entrega-o à guarda de terceiros, seus leitores, que o ativam e se tornam novos responsáveis. Ou não. Os leitores, ao depositar a brochura impressa no inferno da biblioteca ou no limbo do sebo, estão também a dar adeus ao antigo manuscrito alheio. Após 40 anos da publicação de Uma literatura nos trópicos, cinco dos seus leitores o trazem de volta à circulação. Nomeio-os em espanto e em agradecimento: Élide Rugai Bastos, Eneida Leal Cunha, André Botelho, Frederico Coelho e Schneider Carpeggiani. Como se fosse braço amputado de corpo que se transforma, por maquinação diabólica de Gutenberg, ou de Picasso, em organismo vivo, cabe-me direcioná-lo hoje às novas gerações. Que ainda faça sentido! O corpo do autor ainda se lembra do ano de 1978, quando sofreu na carne o bisturi da Editora Perspectiva. Durante a cirurgia, cinco ensaios escritos no estrangeiro e um poema alheio se desgarraram dos demais e teriam se perdido no por aí das revistas acadêmicas. Trago os filhos pródigos de volta ao manuscrito original. Como suturá-los aos antigos? Não sei. Tento a costura discreta, re/apresentando-os ao leitor sob a forma de um suplemento, legítima homenagem ao sangue-frio do novo e destemido selo da editora pernambucana. Então, o ensaísta perscrutava a emergência revolucionária da literatura africana em território francês e experimentava outras abordagens do texto literário. Ousava invadir o quase virgem período colonial para, com a ajuda da produção textual correspondente, de que é primeiro exemplo a Carta, de Pero Vaz de Caminha, estabelecer a literatura brasileira menos como disciplina iluminista, mais como discurso cultural — o do entre-lugar — em busca do seu começo na Terra de Santa Cruz. Implantam-se língua portuguesa, cristianismo e homem europeu nos trópicos indígenas. Realço apenas um traço estilístico, que passou despercebido na recepção brasileira. Sem o respaldo de leitura canônica, quis inventar essa nova história. Eu não era guia, já que a trilha não se me apresentava aberta. Seria “pyguara”, o
senhor do caminho, para retomar José de Alencar (ver página 288). Em tal condição, o exercício ensaístico alcança o momento intempestivo no aforismo — na picada aberta na selva pelo índio —, herança de Friedrich Nietzsche e do nosso Oswald de Andrade. O aforismo deve ser lido no contexto do parágrafo, do ensaio e do livro. Pode também ganhar fôlego em contextos semelhantes ou contraditórios e ainda em contextos que são lembrados pelos leitores e por muitíssimas obras futuras. Destaco um deles pela abrangência de guarda-chuva nos céus, que ainda me apavora. Permitam-me lembrá-lo. A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza. Viva a diferença! 7 de janeiro de 2019
O ENTRE-LUGAR DO DISCURSO LATINO-AMERICANO Para Eugenio e Sally
O jabuti que só possuía uma casca branca e mole deixou-se morder pela onça que o atacava. Morder tão fundo que a onça ficou pregada no jabuti e acabou por morrer. Do crânio da onça o jabuti fez seu escudo. (Antonio Callado, Quarup)
Antes de mais nada, tarefas negativas. É preciso se libertar de todo um jogo de noções que estão ligadas ao postulado de continuidade. [...] Como a noção de influência, que dá um suporte — antes mágico que substancial — aos fatos de transmissão e de comunicação. (Michel Foucault, Arqueologia do saber)
Montaigne abre o capítulo XXXI dos Ensaios, capítulo em que nos fala dos canibais do Novo Mundo, com uma referência precisa à história grega. Esta mesma referência servirá também para nos inscrever no contexto das discussões sobre o lugar que ocupa hoje o discurso literário latino-americano no confronto com o europeu. Escreve Montaigne:
Quando o rei Pirro entrou na Itália, logo depois de ter examinado a formação do exército que os Romanos lhe mandavam ao encontro, disse: “Não sei que bárbaros são estes (pois os gregos assim denominavam todas as nações
estrangeiras), mas a disposição deste exército que vejo não é, de modo algum, bárbara.
A citação histórica em Montaigne, metafórica, sem dúvida, na medida em que anuncia a organização interna do capítulo sobre os antropófagos da América do Sul, ou mais precisamente do Brasil — a metáfora em Montaigne guarda em essência a marca do conflito eterno entre o civilizado e o bárbaro, entre o colonialista e o colonizado, entre Grécia e Roma, entre Roma e suas províncias, entre a Europa e o Novo Mundo etc. Por outro lado, as palavras do rei Pirro, ditadas por certa sabedoria pragmática, não chegam a esconder a surpresa e o deslumbramento diante de uma descoberta extraordinária: os bárbaros não se comportam como tal — conclui ele. Na hora do combate, instante decisivo e revelador, no momento em que as duas forças contrárias e inimigas devem se perfilar uma diante da outra, arrancadas brutalmente de sua condição de desequilíbrio econômico, corporificadas sob a forma de presente e guerra, o rei Pirro descobre que os gregos subestimavam a arte militar dos estrangeiros, dos bárbaros, dos romanos. O desequilíbrio instaurado pelos soldados gregos, anterior ao conflito armado e, entre os superiores, causa de orgulho e presunção, é antes de mais nada propiciado pela defasagem econômica que governa as relações entre as duas nações. No momento exato em que se abandona o domínio restrito do colonialismo econômico, compreendemos que muitas vezes é necessário inverter os valores que definem os grupos em oposição e, talvez, questionar o próprio conceito de superioridade. Segundo a citação extraída dos Ensaios, ali onde se esperava uma disposição do Exército delineada segundo os preconceitos sobre os romanos espalhados entre os gregos, encontra-se uma armada bem organizada e que nada fica a dever às dos povos civilizados. Libertamo-nos de um arrancão do campo da quantidade e do colonialismo, visto que a admiração do rei Pirro revela um compromisso inabalável com o julgamento de qualidade que ela inaugura. Apesar das diferenças econômicas e sociais, os dois exércitos se apresentam em equilíbrio no campo de batalha. Mesmo que não se apresentassem em equilíbrio, nunca é demais lembrar as circunstâncias inusitadas que cercam a morte do monarca grego a que se refere Montaigne. O acidente inesperado e fatal guarda, pela sua atualidade, um aviso seguro para as poderosas nações militares de hoje: Pirro, rei
de Éfeso, “foi assassinado na tomada de Argos por uma velha senhora que lhe atirou uma telha na cabeça do alto de um telhado” — como nos informa deliciosamente o Petit Larousse. Vamos falar do espaço em que se articula hoje a admiração do rei Pirro e de um provável processo de inversão de valores.
1. Mas antes é preciso estabelecer certo número de distinções, de modo que se possa ao mesmo tempo limitar e precisar o nosso tópico. Analisemos, primeiro, por razões de ordem didática, as relações entre duas civilizações que são completamente estranhas uma a outra e cujos primeiros encontros se situam no nível da ignorância mútua. Desde o século passado, os etnólogos¹, no desejo de desmistificar o discurso beneplácito dos historiadores, concordam em assinalar que a vitória do branco no Novo Mundo se deve menos a razões de caráter cultural, do que ao uso arbitrário da violência e à imposição brutal de uma ideologia, como atestaria a recorrência das palavras “escravo” e “animal” nos escritos dos portugueses e espanhóis. Essas expressões, aplicadas aos não ocidentais, configuram muito mais um ponto de vista dominador do que propriamente uma tradução do desejo de conhecer. Nesse sentido, Claude Lévi-Strauss nos fala de uma enquete de ordem psicossociológica empreendida pelos monges da Ordem de São Jerônimo. À pergunta se os índios eram capazes “de viver por eles próprios, como camponeses de Castilha”, a resposta negativa se impunha de imediato:
Na verdade, talvez seus netinhos possam; além do mais, os indígenas estão de tal modo entregues ao vício que ainda se pode duvidar da sua capacidade; como prova, evitam os espanhóis, recusam-se a trabalhar sem remuneração, mas levam a perversidade até o ponto de presentearem os próprios bens; não admitem repudiar os companheiros que tiveram as orelhas decepadas pelos espanhóis. [...] Seria melhor para os índios que se transformassem em homens escravos do que continuassem a ser animais livres [...]².
Em visível contraste, os índios de Porto Rico, seguindo ainda as informações prestadas por Lévi-Strauss nos Tristes Trópicos, se dedicam à captura de brancos com o intuito de os matar por imersão. Em seguida, durante semanas ficam de guarda em torno dos afogados para saber se eles se submetem ou não às leis de putrefação. Lévi-Strauss conclui não sem certa ironia:
[...] os brancos invocavam as ciências sociais, ao passo que os índios mostravam mais confiança nas ciências naturais; enquanto os brancos proclamavam que os índios eram animais, estes limitavam-se a supor que os primeiros fossem deuses. Ignorância por ignorância, a última atitude era, certamente, mais digna de homens (p. 83).
A violência é sempre cometida pelos índios por razões de ordem religiosa. Diante dos brancos, que se dizem portadores da palavra de Deus, cada um profeta as suas próprias custas, a reação do indígena é a de saber até que ponto as palavras dos europeus traduziam a verdade transparente. Pergunto-me agora se as experiências dos índios de Porto Rico não se justificariam pelo zelo religioso dos missionários. Estes, em sucessivos sermões, pregavam a imortalidade do verdadeiro Deus, da ressurreição de Cristo — os índios, em seguida, tornavam-se sequiosos de contemplar o milagre bíblico, de provar o mistério religioso em todo seu esplendor de enigma. A prova do poder de Deus deveria se produzir menos pela assimilação passiva da palavra cristã do que pela visão de um acontecimento verdadeiramente milagroso. Nesse sentido, encontramos informações preciosas e extraordinárias na carta escrita ao rei de Portugal por Pero Vaz de Caminha. Segundo o testemunho do escrivão-mor, os índios brasileiros estariam naturalmente inclinados à conversão religiosa³, visto que, de longe, imitavam os gestos dos cristãos durante o santo sacrifício da missa. A imitação — imitação totalmente epidérmica, reflexo do objeto na superfície do espelho, ritual privado de palavras — eis o argumento mais convincente que o navegador pôde enviar ao seu rei em favor
da inocência dos indígenas. Diante dessas figuras vermelhas que macaqueiam os brancos, caberia perguntar se eles não procuravam chegar ao êxtase espiritual
pela duplicação dos gestos. Não acreditariam também que poderiam encontrar o deus dos cristãos ao final dos “exercícios espirituais”, assim como os índios de Porto Rico teriam se ajoelhado diante do espanhol afogado que tivesse escapado à putrefação? Entre os povos indígenas da América Latina a palavra europeia, pronunciada e depressa apagada, se perdia na sua imaterialidade de voz, e nunca se petrificava em signo escrito, nunca conseguia instituir em escritura o nome da divindade cristã. Os índios só queriam aceitar como moeda de comunicação a representação dos acontecimentos narrados oralmente, enquanto os conquistadores e missionários insistiam nos benefícios de uma conversão milagrosa, feita pela assimilação passiva da doutrina transmitida oralmente. Instituir o nome de Deus equivale a impor o código linguístico no qual seu nome circula em evidente transparência. Colocar junto não só a representação religiosa como a língua europeia: tal foi o trabalho a que se dedicaram os jesuítas e os conquistadores a partir da segunda metade do século XVI no Brasil. As representações teatrais, feitas no interior das tabas indígenas, comportam a mise-en-scène de um episódio do Flos Sanctorum e um diálogo escrito metade em português e a outra metade em tupi-guarani, ou, de maneira mais precisa, o texto em português e sua tradução em tupi-guarani. Aliás, são numerosas as testemunhas que insistem em assinalar o realismo dessas representações teatrais. Um padre jesuíta, Cardim, nos diz que, diante do quadro vivo do martírio de São Sebastião, patrono da cidade do Rio de Janeiro, os espectadores não podiam esconder a emoção e as lágrimas. A doutrina religiosa e a língua europeia contaminam o pensamento selvagem, apresentam no palco o corpo humano perfurado por flechas, corpo em tudo semelhante a outros corpos que, pela causa religiosa, encontravam morte paralela. Pouco a pouco, as representações teatrais propõem uma substituição definitiva e inexorável: de agora em diante, na terra descoberta, o código linguístico e o código religioso se encontram intimamente ligados, graças à intransigência, à astúcia e à força dos brancos. Pela mesma moeda, os índios perdem sua língua e seu sistema do sagrado e recebem em troca o substituto europeu. Evitar o bilinguismo significa evitar o pluralismo religioso e significa também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só deus, um só rei, uma só língua: o verdadeiro deus, o verdadeiro rei, a verdadeira língua. Como dizia Jacques Derrida: “O signo e o nome da divindade têm o mesmo tempo e o mesmo lugar de nascimento”⁴. Uma
pequena correção se impõe na última parte da frase, o suplemento de um prefixo que visa a atualizar a afirmativa: “[...] o mesmo tempo e o mesmo lugar de renascimento”. Esse renascimento colonialista — produto reprimido de uma outra Renascença, a que se realizava concomitantemente na Europa — à medida que avança apropria o espaço sociocultural do Novo Mundo e o inscreve, pela conversão, no contexto da civilização ocidental, atribuindo-lhe ainda o estatuto familiar e social do primogênito. A América transforma-se em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas na sua origem, apagada completamente pelos conquistadores. Pelo extermínio constante dos traços originais, pelo esquecimento da origem, o fenômeno de duplicação se estabelece como a única regra válida de civilização. É assim que vemos nascer por todos os lados essas cidades de nome europeu cuja única originalidade é o fato de trazerem antes do nome de origem o adjetivo “novo” ou “nova”: New England, Nueva España, Nova Friburgo, Nouvelle France etc. À medida que o tempo passa esse adjetivo pode guardar — e muitas vezes guarda — um significado diferente daquele que lhe empresta o dicionário: o novo significa bizarramente fora de moda, como nesta bela frase de Lévi-Strauss: “Les tropiques sont moins exotiques que démodés” (p. 96). O neocolonialismo, a nova máscara que aterrorizava os países do Terceiro Mundo em pleno século XX, era o estabelecimento gradual em outro país de valores rejeitados pela metrópole, era a exportação de objetos fora de moda na sociedade neocolonialista, transformada no centro da sociedade de consumo. Hoje, quando a palavra de ordem é dada pelos tecnocratas, o desequilíbrio é científico, pré-fabricado; a inferioridade é controlada pelas mãos que manipulam a generosidade e o poder, o poder e o preconceito. Consultemos de novo Montaigne:
Eles são selvagens, assim como chamamos selvagens os frutos que a natureza, por si só e pelo seu progresso habitual, produziu; quando, na verdade, são os que alteramos por meio de nosso artifício e desviamos da ordem natural é que realmente deveríamos chamar selvagens. Nos primeiros são vivas e vigorosas as verdadeiras, mais úteis e naturais virtudes e propriedades, as quais abastardamos nestes outros na medida em que apenas os acomodamos ao deleite do nosso
gosto corrompido.
O renascimento colonialista engendra por sua vez uma nova sociedade, a dos mestiços, cuja principal característica é o fato de que a noção de unidade sofre reviravolta, é contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa entre o elemento europeu e o elemento autóctone — uma espécie de infiltração progressiva efetuada pelo pensamento selvagem, ou seja, abertura do único caminho possível que poderia levar à descolonização. Caminho percorrido ao inverso do percorrido pelos colonos. Estes, no desejo de exterminar a raça indígena, recolhiam nos hospitais as roupas infeccionadas das vítimas de varíola para dependurá-las com outros presentes nos atalhos frequentados pelas tribos. No novo e infatigável movimento de oposição, de mancha racial, de sabotagem dos valores culturais e sociais impostos pelos conquistadores, uma transformação maior se opera na superfície, mas que afeta definitivamente a correção dos dois sistemas principais que contribuíram para a propagação da cultura ocidental entre nós: o código linguístico e o código religioso. Esses códigos perdem o seu estatuto de pureza e pouco a pouco se deixam enriquecer por novas aquisições, por miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integridade do Livro Santo e do Dicionário e da Gramática europeus. O elemento híbrido reina. A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza⁵: estes dois conceitos perdem o contorno exato do seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo. Em virtude do fato de que a América Latina não pode mais fechar suas portas à invasão estrangeira, não pode tampouco reencontrar sua condição de “paraíso”, de isolamento e de inocência, constata-se com cinismo que, sem essa contribuição, seu produto seria mera cópia — silêncio —, uma cópia muitas vezes fora de moda, por causa desse retrocesso imperceptível no tempo, de que fala LéviStrauss. Sua geografia deve ser uma geografia de assimilação e de agressividade, de aprendizagem e de reação, de falsa obediência. A passividade reduziria seu papel efetivo ao desaparecimento por analogia. Guardando seu lugar na segunda
fila, é, no entanto, preciso que assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda. O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.
2. Se os etnólogos são os verdadeiros responsáveis pela desmistificação do discurso da História, se contribuem de maneira decisiva para a recuperação cultural dos povos colonizados, dissipando o véu do imperialismo cultural — qual seria pois o papel do intelectual hoje em face das relações entre duas nações que participam de uma mesma cultura, a ocidental, mas na situação em que uma mantém o poder econômico sobre a outra? Se os etnólogos ressuscitaram pelos seus escritos a riqueza e a beleza do objeto artístico da cultura desmantelada pelo colonizador — como o crítico deve apresentar hoje o complexo sistema de obras explicado até o presente por um método tradicional e reacionário cuja única originalidade é o estudo das fontes e das influências? Qual seria a atitude do artista de um país em evidente inferioridade econômica com relação à cultura ocidental, à cultura da metrópole, e finalmente à cultura do seu próprio país? Poder-se-ia surpreender a originalidade de uma obra de arte se se institui como única medida as dívidas contraídas pelo artista junto ao modelo que teve necessidade de importar da metrópole? Ou seria mais interessante assinalar os elementos da obra que marcam a sua diferença? Essas perguntas não poderão ter uma resposta fácil ou agradável, pelo fato mesmo de que é preciso de uma vez por todas declarar a falência de um método que se enraizou profundamente no sistema universitário: as pesquisas que conduzem ao estudo das fontes ou das influências. Porque certos professores universitários falam em nome da objetividade, do conhecimento enciclopédico e da verdade científica, seu discurso crítico ocupa um lugar capital entre outros discursos universitários. Mas é preciso que agora o coloquemos no seu verdadeiro lugar. Tal tipo de discurso crítico apenas assinala a indigência de uma arte já pobre por causa das condições econômicas em que pode sobreviver, apenas sublinha a falta de imaginação de artistas que são obrigados, por falta de uma tradição autóctone, a se apropriar de modelos colocados em circulação pela
metrópole. Tal discurso crítico ridiculariza a busca domquixotesca dos artistas latino-americanos, quando acentuam por ricochete a beleza, o poder e a glória das obras criadas no meio da sociedade colonialista ou neocolonialista. Tal discurso reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio; uma obra cuja vida é limitada e precária, aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte, do chefe de escola. A fonte torna-se a estrela intangível e pura que, sem se deixar contaminar, contamina, brilha para os artistas dos países da América Latina, quando estes dependem da sua luz para o seu trabalho de expressão. Ela ilumina os movimentos das mãos, mas ao mesmo tempo torna os artistas súditos do seu magnetismo superior. O discurso crítico que fala das influências estabelece a estrela como único valor que conta. Encontrar a escada e contrair a dívida que pode minimizar a distância insuportável entre ele, mortal, e a imortal estrela: tal seria o papel do artista latino-americano, sua função na sociedade ocidental. Élhe preciso, além do mais, dominar esse movimento ascendente de que fala o crítico e que poderia inscrever seu projeto no horizonte da cultura ocidental. O lugar do projeto parasita fica ainda e sempre sujeito ao campo magnético aberto pela estrela principal e cujo movimento de expansão esmigalha a originalidade do outro projeto e lhe empresta a priori um significado paralelo e inferior. O campo magnético organiza o espaço da literatura graças a essa força única de atração que o crítico escolhe e impõe aos artistas — este grupo de corpúsculos anônimos que se nutre da generosidade do chefe de escola e da memória enciclopédica do crítico. Seja dito entre parênteses que o discurso crítico que acabamos de delinear nas suas generalidades não apresenta em sua essência diferença alguma do discurso neocolonialista: os dois falam de economias deficitárias. Aproveitemos o parêntese e acrescentemos uma observação. Seria necessário algum dia escrever um estudo psicanalítico sobre o prazer que pode transparecer no rosto de certos professores universitários quando descobrem uma influência, como se a verdade de um texto só pudesse ser assinalada pela dívida e pela imitação. Curiosa verdade essa que prega o amor da genealogia. Curiosa profissão essa cujo olhar se volta para o passado, em detrimento do presente, cujo crédito se recolhe pela descoberta de uma dívida contraída, de uma ideia roubada, de uma imagem ou palavra pedidas de empréstimo. A voz profética e canibal de Paul Valéry nos chama: “Nada mais original, nada mais intrínseco a si que se alimentar dos outros. É preciso, porém, digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado”.
Fechemos o parêntese. Declarar a falência de tal método implica a necessidade de substituí-lo por outro em que os elementos esquecidos, negligenciados e abandonados pela crítica policial serão isolados, postos em relevo, em benefício de um novo discurso crítico, o qual por sua vez esquecerá e negligenciará a caça às fontes e às influências e estabelecerá como único valor crítico a diferença. O escritor latinoamericano — visto que é necessário finalmente limitar nosso assunto de discussão — lança sobre a literatura o mesmo olhar malévolo e audacioso que encontramos em Roland Barthes na sua leitura-escritura de Sarrasine, este conto de Balzac incinerado por outras gerações. Em S/Z, Barthes nos propõe como ponto de partida a divisão dos textos literários em textos legíveis e textos “escrevíveis”, levando em consideração o fato de a avaliação que se faz de um texto hoje estar intimamente ligada a uma “prática e esta prática é a da escritura”. O texto legível é o que pode ser lido, mas não escrito, não reescrito, é o texto clássico por excelência, o que convida o leitor a permanecer no interior do seu fechamento. Os outros textos, os “escrevíveis”, apresentam ao contrário um modelo produtor (e não representacional) que excita o leitor a abandonar sua posição tranquila de consumidor e a se aventurar como produtor de textos: “remeter cada texto, não a sua individualidade, mas a seu jogo” — nos diz Barthes. Portanto, a leitura em lugar de tranquilizar o leitor, de garantir seu lugar de cliente pagante na sociedade burguesa, o desperta, transforma-o, radicaliza-o e serve finalmente para acelerar o processo de expressão da própria experiência. Em outros termos, ela o convida a práxis. Citemos de novo Barthes: “que textos eu aceitaria escrever (reescrever), desejar, afirmar como uma força neste mundo que é o meu?”. Esta interrogação, reflexo de uma assimilação inquieta e insubordinada, antropófaga, é semelhante a que fazem há muito tempo os escritores de uma cultura dominada por outra: suas leituras se explicam pela busca de um texto “escrevível”, texto que pode incitá-los ao trabalho, servir-lhes de modelo na organização da sua própria escritura. Tais escritores utilizam sistematicamente a digressão, essa forma mal integrada do discurso do saber, como assinala Barthes. A obra segunda é, pois, estabelecida a partir de um compromisso feroz com o déjà-dit, o já dito, para empregar uma expressão cunhada por Michel Foucault na análise de Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert. Precisemos: com o já escrito. O texto segundo se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira
sobre o primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original nas suas limitações, nas suas fraquezas, nas suas lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com as suas intenções, segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema apresentado de início pelo original. O escritor trabalha sobre outro texto e quase nunca exagera o papel que a realidade que o cerca pode representar na sua obra. Nesse sentido, as críticas que muitas vezes são dirigidas à alienação do escritor latino-americano, por exemplo, são inúteis e mesmo ridículas. Se ele só fala da sua própria experiência de vida, seu texto passa despercebido dos seus contemporâneos. É preciso que aprenda primeiro a falar a língua da metrópole para melhor combatê-la em seguida. Nosso trabalho crítico se definirá antes de tudo pela análise do uso que o escritor fez de um texto ou de uma técnica literária que pertence ao domínio público, do partido que ele tira, e nossa análise se completará pela descrição da técnica que o mesmo escritor cria no seu movimento de agressão contra o modelo original, fazendo ceder as fundações que o propunham como objeto único e de reprodução impossível. O imaginário, no espaço do neocolonialismo, não pode ser mais o da ignorância ou da ingenuidade, nutrido por uma manipulação simplista dos dados oferecidos pela experiência imediata do autor, mas se afirmaria mais e mais como uma escritura sobre outra escritura. A obra segunda, já que ela em geral comporta uma crítica da obra anterior, se impõe com a violência desmistificadora das planchas anatômicas que deixam a nu a arquitetura do corpo humano. A propaganda torna-se eficaz porque o texto fala a linguagem do nosso tempo. O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de outra obra. As palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do texto segundo é em parte a história de uma experiência sensual com o signo estrangeiro. Sartre descreveu admiravelmente essa sensação, a aventura da leitura, quando nos fala das suas experiências de menino na biblioteca familiar:
As densas lembranças e a doce insensatez das crianças camponesas em vão as procuraria em mim. Nunca esburaquei a terra nem procurei ninhos, não colecionei plantas nem joguei pedras nos passarinhos. No entanto, os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais de estimação, meu estábulo e meu campo...
Como o signo se apresenta muitas vezes em uma língua estrangeira, o trabalho do escritor, em lugar de ser comparado ao de uma tradução literal, se propõe antes como uma espécie de tradução global, de pastiche, de paródia, de digressão. O signo estrangeiro se reflete no espelho do dicionário e na imaginação criadora do escritor latino-americano e se dissemina sobre a página branca com a graça e o dengue do movimento da mão que traça linhas e curvas. Durante o processo de tradução, o imaginário do escritor está sempre no palco, como neste belo exemplo pedido de empréstimo a Julio Cortázar. A personagem principal de 62 Modelo para armar, de nacionalidade argentina, vê desenhada no espelho do restaurante parisiense em que entrou para jantar esta frase mágica: “Je voudrais um château saignant”. Mas em lugar de reproduzir a frase na língua original, a traduz imediatamente para o espanhol: “Quisiera un castillo sangriento”. Escrito no espelho e apropriado pelo campo visual da personagem latino-americana, château sai do contexto gastronômico e se inscreve no contexto feudal, colonialista, a casa onde mora o senhor, el castillo. E o adjetivo, saignant, que significava apenas a preferência ou o gosto do cliente pelo bife malpassado, na pena do escritor argentino, sangriento, torna-se a marca evidente de um ataque, de uma rebelião, o desejo de ver o château, o castillo sacrificado, de derrubá-lo, a fogo e sangue. A tradução do significante avança um novo significado — e, além disso, o signo linguístico nuclear (château) abriga o nome daquele que melhor compreendeu o Novo Mundo no século XIX: René de Chateaubriand. Não é por coincidência que a personagem de Cortázar, antes de entrar no restaurante, tinha comprado o livro de outro viajante infatigável, Michel Butor, livro em que este fala do autor de René e de Atala. E a frase do freguês, pronunciada em toda sua inocência gastronômica, “je voudrais un château saignant”, é percebida na superfície do espelho, do dicionário, por uma imaginação posta em trabalho pela leitura de Butor, pela situação do sulamericano em Paris, “quisiera un castillo sangriento”. É difícil precisar se é a frase ouvida ao acaso que atrai a atenção do sulamericano, ou se ele a vê porque acaba de levantar os olhos do livro de Butor. Em todo caso, uma coisa é certa: as leituras do escritor latino-americano não são nunca inocentes. Não poderiam nunca sê-lo. Do livro ao espelho, do espelho ao pedido do freguês glutão, de château à sua tradução, de Chateaubriand ao escritor sul-americano, do original à agressão —
nessas transformações , realizadas, na ausência final de movimento, no desejo tornado coágulo, escritura — ali se abre o espaço crítico por onde é preciso começar hoje a ler os textos românticos do Novo Mundo. Nesse espaço, se o significante é o mesmo, o significado circula outra mensagem, uma mensagem invertida. Isolemos, por comodidade, a palavra “índio”. Em Chateaubriand e muitos outros românticos europeus, este significante torna-se a origem de todo um tema literário que nos fala da evasão, da viagem, desejo de fugir dos contornos estreitos da pátria europeia. Rimbaud, por exemplo, abre o seu longo poema Bateau Ivre por uma alusão aos “Peles-vermelhas barulhentos”, que anuncia no seu frescor infantil o grito de rebelião que se escutará ao final do poema: “Je regrette l’Europe aux anciens parapets”. Aquele mesmo significante, porém, quando aparece no texto romântico americano, torna-se símbolo político, símbolo do nacionalismo que finalmente eleva sua voz livre (aparentemente livre, como infelizmente é muitas vezes o caso), depois das lutas da independência. E se entre os europeus aquele significante exprime um desejo de expansão, entre os americanos, sua tradução marca a vontade de estabelecer os limites da nova pátria, uma forma de contração. Paremos por um instante e analisemos de perto um conto de Jorge Luis Borges, cujo título é já revelador das nossas intenções: Pierre Menard, autor de Quijote. Pierre Menard, romancista e poeta simbolista, mas também leitor infatigável, devorador de livros, será a metáfora ideal para bem precisar a situação e o papel do escritor latino-americano, vivendo entre a assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue. Os projetos literários de Pierre Menard foram de início classificados com zelo por Mme Bachelier: são os escritos publicados durante sua vida e lidos com prazer pelos seus admiradores. Mas Mme Bachelier deixa de incluir na bibliografia de Menard, nos diz o narrador do conto, o mais absurdo e o mais ambicioso dos seus projetos, reescrever o Dom Quixote: “não queria compor um outro Quixote — o que é fácil —, mas o Quixote”. A omissão perpetrada por Mme Bachelier vem do fato de que não consegue ver a obra invisível de Pierre Menard — nos declara o narrador do conto —, aquela que é “subterrânea, a interminavelmente heroica, a sem igual”. Os poucos capítulos que Menard escreve são invisíveis porque o modelo e a cópia são idênticos; não há diferença alguma de vocabulário, de sintaxe, de estrutura entre as duas versões, a de Cervantes e a outra, a cópia de Menard. A obra invisível é o paradoxo do texto segundo que desaparece completamente, dando lugar à sua significação mais exterior, a situação cultural, social e política em que se situa o segundo autor.
O texto segundo pode, no entanto, ser visível, e é assim que o narrador do conto pôde incluir o poema Le Cimetière Marin, de Paul Valéry, na bibliografia de Menard, porque na transcrição do poema os decassílabos de Valéry se transformam em alexandrinos. A agressão contra o modelo, a transgressão ao modelo proposto pelo poema de Valéry se situa nessas duas sílabas acrescentadas ao decassílabo, pequeno suplemento sonoro e diferencial que reorganiza o espaço visual e silencioso da estrofe e do poema de Valéry, modificando também o ritmo interno de cada verso. A originalidade, pois, da obra visível de Pierre Menard reside no pequeno suplemento de violência que instala na página branca sua presença e assinala a ruptura entre o modelo e sua cópia, e finalmente situa o poeta face à literatura, à obra que lhe serve de inspiração. “Le lion est fait de mouton assimilé.” Segundo Pierre Menard, se Cervantes, para construir seu texto, não tinha “rejeitado a colaboração do acaso”, ele tinha “contraído o misterioso dever de reconstituir literalmente sua obra espontânea”. Há em Menard, como entre os escritores latino-americanos, a recusa do “espontâneo”, e a aceitação da escritura como um dever lúcido e consciente, e talvez já seja tempo de sugerir como imagem reveladora do trabalho subterrâneo e interminavelmente heroico o título mesmo da primeira parte da coletânea de contos de Borges: “o jardim das veredas que se bifurcam”. A literatura, o jardim; o trabalho do escritor — a escolha consciente diante de cada bifurcação e não uma aceitação tranquila do acaso da invenção. O conhecimento é concebido como uma forma de produção. A assimilação do livro pela leitura implica já a organização de uma práxis da escritura. O projeto de Pierre Menard recusa, portanto, a liberdade total na criação, poder que é tradicionalmente delegado ao artista, elemento que estabelece a identidade e a diferença na cultura neocolonialista ocidental. A liberdade, em Menard, é controlada pelo modelo original, assim como a liberdade dos cidadãos dos países colonizados é vigiada de perto pelas forças da metrópole. A presença de Menard — diferença, escritura, originalidade — se instala na transgressão ao modelo, no movimento imperceptível e sutil de conversão, de perversão, de reviravolta. A originalidade do projeto de Pierre Menard, sua parte visível e escrita, é consequência do fato de ele recusar-se a aceitar a concepção tradicional da invenção artística, porque ele próprio nega a liberdade total do artista. Semelhante a Robert Desnos, ele proclama como lugar de trabalho as formas prisões (formes prisons). O artista latino-americano aceita a prisão como forma
de comportamento, a transgressão como forma de expressão. Daí, sem dúvida, o absurdo, o tormento, a beleza e o vigor do seu projeto visível. O invisível tornase silêncio no seu texto, a presença do modelo, enquanto o visível é a mensagem, é o que ausência no modelo. Citemos uma última vez Pierre Menard: “Meu jogo solitário é regido por duas leis diametralmente opostas. A primeira me permite ensaiar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda me obriga a sacrificálas ao texto ‘original’”. O escritor latino-americano é o devorador de livros de que os contos de Borges nos falam com insistência. Lê o tempo todo e publica de vez em quando. O conhecimento não chega nunca a enferrujar os delicados e secretos mecanismos da criação; pelo contrário, estimulam seu projeto criador, pois é o princípio organizador da produção do texto. Nesse sentido, a técnica de leitura e de produção dos escritores latino-americanos parece com a de Marx, de que nos falou Louis Althusser. Nossa leitura é tão culpada quanto a de Althusser, porque nós estamos lendo os escritores latino-americanos “observando as regras de uma leitura cuja impressionante lição nos é dada na própria leitura que fazem” dos escritores europeus. Citemos de novo Althusser:
Quando lemos Marx, de imediato estamos diante de um leitor, que diante de nós e em voz alta lê: [...] lê Quesnay, lê Smith, lê Ricardo, etc., [...] para se apoiar sobre o que disseram de exato e para criticar o que de falso disseram [...].
A literatura latino-americana de hoje nos propõe um texto e, ao mesmo tempo, abre o campo teórico em que é preciso se inspirar durante a elaboração do discurso crítico de que ela será o objeto. O campo teórico contradiz os princípios de certa crítica universitária que só se interessa pela parte invisível do texto, pelas dívidas contraídas pelo escritor, ao mesmo tempo que ele rejeita o discurso de uma crítica pseudomarxista que prega uma prática primária do texto, observando que sua eficácia seria consequência de uma leitura fácil. Estes teóricos esquecem que a eficácia de uma crítica não pode ser medida pela preguiça que ela inspira; pelo contrário, ela deve descondicionar o leitor, tornar impossível sua vida no interior da sociedade burguesa e de consumo. A leitura fácil dá razão às forças neocolonialistas que insistem no fato de que o país se encontra na situação de colônia pela preguiça dos seus habitantes. O escritor
latino-americano nos ensina que é preciso liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta, colônia de férias para turismo cultural. Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. Março de 1971 O entre-lugar do discurso latino-americano foi escrito originalmente em francês, com o título de L’entre-lieu du discours latino-américain. Eugenio Donato, que me convidou para palestra na Université de Montréal, achou o título enigmático, tendo sugerido outro: Naissance du sauvage, Anthropophagie Culturelle et la Littérature du Nouveau Monde. A palestra foi lida naquela universidade no dia 18 de março de 1971 e, posteriormente, republicada em inglês, com o título original The Latin-American Litterature: the Space inbetween, pela State University of New York at Buffalo (1973). A versão em português, feita pelo autor, data da publicação do livro Uma literatura nos trópicos (1978).
1 Jacques Derrida, salientando a contribuição da etnologia no efeito de abalo da Metafísica ocidental, comenta: “[...] a Etnologia só teve condições para nascer como ciência no momento em que se operou um descentramento: no momento em que a cultura europeia [...] foi deslocada, expulsa do seu lugar, deixando então de ser considerada como a cultura de referência”. E acrescenta: “Este momento não é apenas um momento do discurso filosófico [ ...]; é também um momento político, econômico, técnico, etc.” (DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria B. M. N. Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995., p. 234).
2 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 1955, p. 82.
3 Consultar o nosso artigo A Palavra de Deus, publicado na revista Barroco, em 1970, hoje na seção Suplemento.
4 DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Minuit, 1967, p. 25. (DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973).
5 Em artigo de significativo título Sol da Meia Noite, publicado em 1945, Oswald de Andrade detectava por detrás da Alemanha nazista os valores de unidade e pureza, e no seu estilo típico comentava com rara felicidade: “A Alemanha racista, purista e recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. É preciso ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting pot do futuro. Precisa mulatizar-se”. Ponta de Lança. Rio, Civilização, 1972, p. 62.
6 Seguimos de perto os ensinamentos de Derrida com relação ao problema da tradução dentro dos pressupostos gramatológicos: “Dans les limites où elle est possible, où du moins elle PARAIT possible, la traduction pratique la différence entre signifié et signifiant. Mais si cette différence n’est jamais pure, la traduction ne l’est pas devantage et, à la notion de traduction, il faudra substituer une notion de TRANSFORMATION: transformation réglée d’une langue par une autre, d’un texte par un autre.” Positions. Paris: Flammarion, 1972, p. 31.
RETÓRICA DA VEROSSIMILHANÇA Admiro como alguém pode mentir pondo a razão do seu próprio lado. (Jean-Paul Sartre)
[...] toda retórica visa a superar a dificuldade do discurso sincero. (Roland Barthes)
Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado, percebendo que, à medida que seus textos se sucedem cronologicamente, certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas. Certa crítica que se fazia à monotonia da obra de Machado, à repetição nos seus romances e contos de certos temas e episódios, ocasionando desgaste emocional por parte do leitor (ou do crítico impressionista), tem de ser também urgentemente revista. Afirmações como esta de Augusto Meyer não podem continuar a ter trânsito livre na crítica machadiana:
[Machado] ganha muito em ser lido aos trechos, ou a largos intervalos de leitura, para que o esquecimento relativo ajude a sentir, não a inércia da repetição e os lados fracos, mas a graça original dos melhores momentos¹.
A busca — seja da originalidade a cada passo, seja da excitação intelectual em base puramente emocional, a leitura dirigida para os “melhores momentos” do romancista — dificultou a descoberta daquela que talvez seja a qualidade essencial de Machado de Assis: a busca, lenta e medida do esforço criador em
favor de uma profundidade que não é criada pelo talento inato, mas pelo exercício consciente e duplo da imaginação e dos meios de expressão de que dispõe todo e qualquer romancista. Já na Advertência ao Leitor, colocada no início do romance Ressurreição, depois de se apresentar à crítica como “operário”, recusa a presunção adolescente do que é considerado comumente como valor pessoal, classificando-a de “confiança pérfida e cega”, para conceder todo o poder criador à “reflexão” e ao “estudo”. Finalmente, recusa para si a condição e a lei dos gênios, para se contentar com a “lei das aptidões médias, a regra geral das inteligências mínimas”. Termina declarando: “Cada dia que passa me faz conhecer melhor o agro destas tarefas literárias — nobres e consoladoras, é certo — mas difíceis quando as perfaz a consciência” (I, 114). Mesmo a divisão abrupta da sua obra em duas fases distintas — felizmente já contestada pelos críticos — também tem de ser refutada. Já no dia 15 de dezembro de 1898, Machado em carta a José Veríssimo expunha com clarividência o problema:
O que você chama a minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre desta, que a penetre e desculpe, e até que chegue a catar nela algumas raízes dos meus arbustos de hoje (III, 1044).
Não seria, pois, fantasia de crítico encontrar em Ressurreição, por exemplo, as raízes do arbusto que é Dom Casmurro, para retomar a metáfora empregada por Machado. Foi, se não nos enganamos, Helen Caldwell, no seu The Brazilian Othello of Machado de Assis, quem primeiro assinalou esta correspondência. Analisada e catalogada, ficou ela infelizmente atirada para um canto, pois o crítico norte-americano analisa em separado os dois romances. Faltou-lhe dar o salto indispensável: estudar Dom Casmurro dentro da economia interna da obra de Machado de Assis. Mais importante ainda é não cair em outro equívoco da crítica machadiana que insiste em analisar Dom Casmurro como um pendant, ou mesmo excrescência, de certa corrente do romance burguês, mas de intenção antiburguesa do século
XIX, a do estudo psicológico do adultério feminino, cujos exemplos mais conhecidos para nós brasileiros são a Madame Bovary e O Primo Basílio. Segundo essa crítica — que não percebe que o romance de Machado, se estudado for, é antes estudo do ciúme, e apenas deste — dois partidos tomaram bandeira e começaram a se digladiar em jornais, revistas e até livros: se condenava ou se absolvia Capitu. Esta disputa chegou a tal ponto, que um machadiano incansável, Eugênio Gomes, decidiu entrar em campo e apaziguar os ânimos e os grupos rivais, escrevendo 200 páginas que levam o título infeliz de O enigma de Capitu. Para a alegria ou tristeza geral da nação, vamos reabrir o problema, mas entraremos por outra porta, já que se nos afigura como indispensável mudar de chave. A ferrugem intelectual é ainda o mais poderoso e corrosivo ácido contra a boa crítica. Qualquer das duas atitudes tomadas na leitura de Dom Casmurro (condenação ou absolvição de Capitu) trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica, na medida em que ele se identifica emocionalmente (ou se simpatiza) com uma das personagens, Capitu ou Bentinho, e comodamente já se sente disposto a esquecer a grande e grave proposição do livro: a consciência pensante do narrador Dom Casmurro, esse homem já sexagenário, advogado de profissão, ex-seminarista de formação, consciência pensante e vacilante, que tem necessidade de reconstruir na velhice a casa de Matacavalos onde viveu a sua adolescência². O leitor, esquecendo a consciência pensante do sexagenário tomava a posição de juiz e se sentia na obrigação de dar o seu veredicto sobre os fantasmas do narrador, quando na realidade o único interesse que deseja despertar Machado de Assis é para a pessoa moral de Dom Casmurro. Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro. Por outro lado, semelhante compreensão do romance deixava escapar o essencial da forma estética escolhida por Machado para os seus romances. O romance de Machado é antes de tudo um romance ético³, no qual se pede, se exige a reflexão do leitor sobre o todo. No caso específico de Dom Casmurro, identificar-se com Bentinho ou com Capitu é não compreender que a reflexão moral exigida pelo autor requer certa distância das personagens e/ou do narrador, aliás, a mesma distância que Machado, como autor, guarda deles.
A problemática de Dom Casmurro ultrapassa por assim dizer o esquema rígido das relações propostas apenas por este romance, pois não é só ele que reflete o problema do amor/casamento/ciúme na sociedade patriarcal brasileira do Segundo Reinado, como não é só ele que ilustra a busca de definição, cada vez mais precisa e mais ambígua, mais rica de detalhes também, da posição complexa e asfixiante do adolescente ao querer o seu lugar ao sol dentro da rigidez da comunidade burguesa e aristocratizante do final do século. Sua condição de adulto e semelhante. Sua impersonalidade e personalidade. Em análise longa e minuciosa que fizemos de Ressurreição, já publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, procuramos mostrar como o problema do ciúme surgiu no universo machadiano. Advém ele — propúnhamos no início do nosso raciocínio — da concepção que tem as personagens machadianas do que sejam o amor e o casamento e, por outro lado, do que sejam eles diante dos delicados jogos de marivaudage que homem e mulher têm de representar para se poder chegar à união. Assinalávamos de início como o conceito de casamento restringe a expansão livre do sentimento, pois o amor é um sentimento enjaulado pela cerimônia cristã (o casamento), e é este que possibilita a constituição da família. É, pois, o universo do amor machadiano asséptico, formal, são, rígido. É ainda masculina e burguesa a sua concepção de casamento. Amar é casar, é comprar título de propriedade. Qualquer invasão estranha nesta propriedade — amante — acarreta um curto-circuito emocional que invalida os dois primeiros termos. Por outro lado, para se passar do amor ao casamento, o homem e a mulher se entregam a diversos jogos sociais. As várias formas de jogo são baseadas em posições opostas e complementares, que definem a sua posição na sociedade: a liberdade e a prisão, o sentimento e a razão. À multiplicidade de experiências que o homem pode ter, por ser livre, corresponderá na jovem solteira ao uso, caso queira a liberdade, de múltiplas máscaras. A aceitação de qualquer experiência por parte da mulher, aliás, requer obrigatoriamente a dissimulação: esconder é a sua atitude habitual, mesmo porque o próprio recato que namorado/noivo/marido exige dela já é um véu que cobre os seus mais legítimos sentimentos. Em termos gerais, dizíamos que o homem recorre à sua razão (casamento) para restringir a sua liberdade, aceitando as correntes da virtude. Já a mulher se liberta da sua condição de escrava agarrando-se ao sentimento (amor) que lhe
parece ser superior a razão (casamento), arriscando-se com isso ao deslize. Se o homem se sente bem escolhendo a razão, que controla o sentimento, já a mulher se sente mulher quando se entrega ao sentimento que simboliza a sua busca de liberdade. Assim é que a personagem feminina mais carregada de dramaticidade para Machado de Assis é a viúva. Lívia, no caso específico de Ressurreição. A viúva, tendo experimentado a razão e o sentimento, só ela é que pode, diante de um novo pretendente, viver o dilema em toda sua extensão. Tem a possibilidade de escolha: ou a fidelidade ao defunto (a crença no casamento, razão, é superior ao sentimento, amor); ou a aceitação de novo marido (a crença no amor, sentimento, é superior ao casamento, razão). Se aceita novo marido é porque é capaz de sentir sucessivos amores. Poderia ser infiel — pensa o novo pretendente. O casamento não será eterno, porque o amor não o é. Só a fidelidade total ao primeiro marido é que justificaria a aceitação de novo marido. Como conciliar tantas contradições? Eis o drama que o solteirão e ciumento Félix tem de enfrentar ao tomar a decisão de levar a viúva Lívia ao altar. Porém, nas vésperas do casamento recebe carta lacônica e anônima, acusando a futura esposa. Espírito já predisposto à dúvida, Félix não pensa duas vezes: dá total crédito à carta anônima e abandona o projeto de casamento. Estamos salientando este episódio do romance porque é ele que nos pode conduzir ao problema ético da conduta do homem ciumento no universo romanesco de Machado. A carta — pressente acertadamente Félix — deve ter sido escrita por Luís Batista, também pretendente aos favores de Lívia e preterido, e portanto não merecia crédito ou confiança, escrita que fora pela pena da inveja ou do orgulho ferido. Mas isso não tinha importância para Félix, porque para ele contava mais a verossimilhança da situação criada pela carta do que a verdade proporcionada pelo exame detido dos fatos. Leiamos o texto: “O que ele [Félix] interiormente pensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do fato, e basta ela para lhe dar razão” (I, 192-3). Machado de Assis, ainda inseguro do seu instrumento de trabalho e mais inseguro ainda da capacidade de apreensão do drama moral de Félix pelo leitor, deixa que o narrador se intrometa na narração e esclareça para o leitor não só os dizeres falsos da carta como o equívoco moral de Félix: “Entendamo-nos, leitor,
eu, que te estou contando esta história, posso afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista” (I, 189). Aclara ele, portanto, (de maneira um tanto gauche, nunca é demais assinalar) a verdadeira procedência da carta e o erro da atitude do médico em relação à conduta da viúva, e deixa finalmente para o leitor a terrível responsabilidade de julgar Félix, de julgar a calúnia que levanta contra Lívia, de julgar enfim a sua decisão que se baseia, não no conhecimento da verdade, mas na mera verossimilhança dos fatos.
II O drama de Félix é agravado quando Machado de Assis idealiza o seu romance Dom Casmurro. Deseja que se torne mais ambíguo, mais sutil, e para isso suprime o narrador onisciente, que explicava os fatos de uma plataforma divina, e dá toda a responsabilidade da narração à personagem ciumenta. Veremos mais tarde como Dom Casmurro se sai desta empresa. Por outro lado, não só muda a profissão da personagem, passa ela a ser advogado, portanto homem mais ligado à arte de escrever, de persuadir e de julgar os outros, como também o faz exseminarista, homem que, pelo menos em teoria, deve ter as antenas mais preparadas para sentir os problemas morais. Casa-o, fá-lo ciumento da esposa, pai de um filho. Deixa que acuse a esposa de infidelidade, que a renegue e que a envie para a Europa com o filho. Mente para os amigos. Na Europa, a esposa morre sozinha. Recebe a visita do filho já moço, deseja-lhe morte de lepra — o seu pedido é atendido, o filho morre de peste no Norte da África. Todas as decisões não se justificam, como no caso de Félix, pelo pleno conhecimento da verdade, mas por acreditar que os acontecimentos se encaixam e podem ser explicados pelo verossímil. Juge-pénitent, assim se propõe ao leitor o herói-advogado e narrador de Albert Camus, em La Chute, destruindo assim a defasagem entre a consciência e a pena, entre o julgamento e a expiação. Réu e advogado de defesa são, respectivamente, Bento e Dom Casmurro. Dom Casmurro, como bom advogado que devia ser, toma para si a defesa de Bentinho, arquitetando uma peça oratória em que se nos afigura de primeira importância o seu aspecto propriamente forense (era escrita por um advogado) e o seu aspecto moralreligioso (escrita por um ex-seminarista).
De início percebemos que o traço mais saliente da retórica do advogado-narrador é o apriorismo. Ele sabe de antemão o que quer provar e sua peça oratória nada mais é do que o desenvolvimento verossímil de certo raciocínio que nos conduzirá implacavelmente à conclusão por ele ambicionada. Sua estruturação dos fatos, sua apresentação do comportamento humano das personagens (inclusive de Bentinho) é informada pelo rigor da demonstração a ser estabelecida. Assim, para Dom Casmurro o essencial era provar (e sair vencedor) que o conhecimento que tinha dos atos de Capitu quando menina lhe possibilitava um julgamento seguro sobre a Capitu adulta e misteriosa. Ou, usando as suas próprias palavras, dirigidas é claro ao leitor: “Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” (I, 942). A única lembrança que pode ter o leitor da jovem Capitu é a que lhe foi dada pela escrita do narrador. Não é de se estranhar, também, como já assinalou Helen Caldwell, que o narrador gaste dois terços do livro descrevendo as suas impressões da Capitu menina e um terço da Capitu adulta. Ora, o que nos provaria que a tese de Dom Casmurro é válida a não ser certa noção preconcebida, certo preconceito, de que o adulto já está no menino, assim como a fruta dentro da casca? A comparação é uma comprovação, baseada que está na verdade da natureza. Como diz outro advogado, este agora nosso contemporâneo e personagem de Les Faux-Monnayeurs, de André Gide, o juiz Profitendieu: “Afinal, isso é apenas um preconceito; mas os preconceitos são os pilares da civilização”. Depois de ter comprovado a primeira parte de sua teoria, Dom Casmurro pode se dar ao luxo de passar por alto sobre a segunda, assim como Félix aceita a verdade da carta anônima sem ter a curiosidade de aquilatar a sua veracidade. Por outro lado, visto sob o ângulo de Bentinho, percebe-se que nesta aritmética estrutural os dois terços descrevem-no em situação favorável, ao passo que os restantes um terço o surpreenderiam quando comete os atos que realmente procura justificar pelos atos de Capitu menina e que deseja subtrair da vista do leitor. Enfim, aplicada a Bentinho, a mesma tese de Dom Casmurro (isto é, a comprovação de uma verdade humana vindo de uma comparação com a verdade “natural”) não é válida, pois o dócil e angelical filho de Dona Glória nada tem do suburbano e casmurro (qualquer sentido que se queira dar a este adjetivo) advogado.
Este desequilíbrio estrutural se encontra justificado, para usar de uma expressão familiar, por uma desculpa esfarrapada. Escreve o narrador: “Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer” (I, 903). Como podia saber, naquele momento preciso, que tinha chegado ao meio do livro? O que é o meio de um livro? Onde fica o meio de um livro que está sendo escrito? Um livro pode ter tantas páginas quantas queira o autor. Seu tamanho depende sempre das intenções de quem escreve, e é sem dúvida a sua elasticidade que destrói a bela tese de Borges na Biblioteca de Babel. Portanto, apressar a narrativa, o melhor dela, como ele próprio nos diz, só porque tinha ultrapassado um marco que na realidade não deveria existir, é porque há motivo. É ainda incorrer em raciocínio apriorístico e cacoete retórico. Outro traço preciso e importante para definir a retórica da verossimilhança é o predomínio da imaginação sobre a memória na investigação do passado. Machado de Assis, em pelo menos dois capítulos deixa claro que quis dar ao narrador a ocasião de levantar o contraste entre as duas faculdades e estabelecer nítida vitória da fantasia. Trata-se do capítulo XL, Uma égua, e do que leva o número LIX, Convivas de Boa Memória. Em ambos, como para frisar ainda mais a vitória da imaginação, elabora um pequeno detalhe que reforça por comparação e por oposição a falta de memória. Desconhece, ou bem não tem certeza do nome do autor das diferentes citações com que abre cada um dos citados capítulos. Confessa no primeiro: “Creio haver lido em Tácito [...], se não foi nele foi noutro autor antigo [...]”; e no outro: “[...] a prova de ter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal [autor] antigo [...]”. Basta justapor os dois trechos seguintes para que se possa apreender em toda sua riqueza o problema de que estamos falando:
A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas correndo (cap. XL). Não, não, a minha memória não é boa [...] Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão (cap. LIX).
Daqui advém sem dúvida a grande diferença — não muito respeitada pela crítica brasileira — entre o narrador de Dom Casmurro e o de À la recherche du temps perdu, na medida em que, no caso de Machado, a reconstrução obedece a desígnios apriorísticos, óbvios ou camuflados, mas sempre sob o devido controle daquele que lembra, que escreve e que sabe onde está o meio do livro, ao passo que no caso de Proust o passado lhe surge como um presente, gratuito e inesperado, que lhe é oferecido pelo exercício apurado dos seus sentidos. No caso de Machado, a reconstituição do passado obedece a um plano predeterminado (cujo exemplo concreto dentro do tecido narrativo seria a reconstrução real da casa de Matacavalos, que mostra em si toda a artificialidade do processo machadiano) e sobretudo a um arranjo convincente e intelectual da sua vida. Frisemos os dois últimos adjetivos: convincente, porque pretende persuadir alguém, o leitor, de alguma coisa; intelectual, porque depende da reflexão constante do narrador, e não trai um desejo de se deixar invadir passivamente pelo passado, por impressões fugidias e passageiras, delicadas. O narrador machadiano, ao contrário do narrador proustiano, é um ressentido, medroso do passado: “Aí vindes de novo, inquietas sombras”, cita Goethe logo no início. No prefácio de Contre Sainte-Beuve, Proust deixa claro a sua posição:
Cada dia atribuo menos valor à inteligência. Cada dia percebo melhor que é só fora dela que o escritor pode novamente reassumir alguma coisa de nossas impressões, isto é, alcançar algo de si mesmo e a matéria única da arte.
Machado, racionalista infatigável, dificilmente poderia ser colocado ao lado do bergsonismo proustiano. Colocar um ao lado do outro é subestimar a formação filosófica de um e do outro. Outro aspecto ainda, não menos desprezível, da retórica de Dom Casmurro é o fato de recusar sistematicamente a procura da identidade perfeita entre dois elementos, procurando antes impingir ao leitor proposições que traduzem a igualdade pela semelhança. Mesmo deixando de lado a regra de três (meninaadulta-fruto-casca), vemos, por exemplo, que Bentinho, segundo o dizer de José Dias e da sua mãe, “é a cara do pai” (I, 904), como ainda nos propõe Dom
Casmurro como argumento maior para o adultério da sua esposa o fato de seu filho não se parecer a ele, sendo mais semelhante ao amigo Escobar. Essa visão da vida em família trai, é claro, certo preconceito, ou neste caso específico, se baseia em provérbios que de certa forma traduzem apenas o bom senso, provérbios como: “Tal pai, tal filho”, ou “Filho de peixe, peixinho é”. A persuasão, no presente caso, surge, portanto, da entrega ao leitor daquilo mesmo que a sua mente já está preparada para receber (“la sagesse des nations”, como se diz em francês); não exige dele nenhum esforço de adaptação, nenhum melhoramento. O convencimento não é feito com a esperança de que o leitor evolua o seu modo de pensar, ou de encarar os problemas, mas pelo fato de lhe propor como base para o seu julgamento aquilo mesmo que já possui: o bom senso⁴. Surpreender, portanto, a falácia do narrador-advogado é recusar a situação de equilíbrio (falsa) proposta pelo conservadorismo, é desmascarar a sua linguagem e deitar certa intranquilidade no status quo. Se, de certa maneira, são esses os mecanismos predominantes no modo de raciocinar do narrador, e, por conseguinte, de convencer, não se deve esquecer de que a retórica do verossímil se espraia, ocasionando certa compreensão particular do comportamento dos outros. Duas atitudes, entre outras, são típicas de Dom Casmurro, quando analisa os que o rodeiam: a) joga a culpa de toda calúnia nos outros, isentando-se aparentemente de qualquer responsabilidade, colocando-se ainda na qualidade de vítima; b) empresta aos outros contradições entre o que chamaremos por enquanto de interior e exterior. No primeiro caso, bastaria lembrar que a primeira acusação contra Capitu foi feita por José Dias: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, e é o mesmo José Dias, à semelhança de Luís Batista em Ressurreição, que inspira a primeira crise de ciúme, afirmando que Capitu não ficará quieta “enquanto não pegar um peralta da vizinhança, que case com ela”. Mais tarde, José Dias tem necessidade de confessar o seu engano de julgamento, e por uma dessas costumeiras felicidades do romance, destruirá por completo a tese proposta no final por Dom Casmurro. A passagem da menina a adulta é vista por José Dias como a transformação da flor em fruto, e se a flor é caprichosa, o fruto é sadio e doce: “Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era flor caprichosa de um fruto sadio e doce [...]” (I, 905)⁵. O descontrole de julgamento de José Dias (critica primeiro, elogia depois) mostra bem o caráter de calúnia que revestiu o primeiro julgamento que fez da
jovem Capitu. (“Modos de criança” não são “expressões de caráter” — boa lição para Dom Casmurro). Bentinho aceitou as calúnias e as elaborou pela imaginação, como ficou patente na passagem em que descreve os seus primeiros ciúmes, quando constrói o quadro em que Capitu é cortejada por um jovem da vizinhança, tendo inclusive correspondido aos avanços do apaixonado. Tão seguro já está de que haviam trocado beijos, que apenas quer saber a quantidade. Mas se foi capaz de elaborar mentalmente a calúnia, não o foi de aceitar a correção do julgamento. Emprestando sobretudo a Capitu e a José Dias a contradição entre o exterior e o interior, entre os gestos/palavras e as verdadeiras aspirações e desejos, acusandoos, portanto, de conduta interessada, de falta de sinceridade e de dissimulação, protege de certa forma Bentinho e ao mesmo tempo chama a atenção do leitor, por contraste, para a sua sinceridade de vítima. Ora, como vimos no caso de Ressurreição, em que o esqueleto do mecanismo de pensamento do homem ciumento se mostra mais a vista, por imperícia do romancista estreante (repitamos), a dissimulação feminina é um dado que existe e existirá na sociedade que Machado descreve, e que pode ser observado em toda jovem que se enamora e deseja casar-se. É consequência da sua própria posição frente ao homem, na sociedade, e de modo algum pode ser tomada como exemplo de futura traição. A não ser, é claro, que se dê mais importância ao verossímil do que a verdade. Acreditamos que já se encontra esboçada em termos gerais e em seus traços predominantes o que estamos chamando de retórica da verossimilhança. Podemos desde já concluir, então, que o romance que estamos analisando dramatiza a “situação moral”, para usar a expressão de Machado ao criticar O Primo Basílio, de Dom Casmurro. Seu problema ético-moral é óbvio, sua reconstituição do passado é egoísta e interesseira, medrosa, complacente para consigo mesmo, pois visa a liberá-lo dessas “inquietas sombras” e das graves decisões de que é responsável. O remorso (outro vocábulo constante na pena de Machado crítico) deve rondar as suas últimas horas. Como no poema baudelairiano intitulado O irreparável, devia ele clamar: “Em que filtro, em que vinho, em que tisana / Afogar esse velho inimigo?”. Dom Casmurro dá prioridade a este “velho inimigo” nas suas preocupações de suburbano pacato, e o afoga com sua escrita. Através do seu discurso ordenado e lógico, procura resolver sua angústia existencial. Depois de persuadir a si, quer persuadir os outros da sua verdade.
Percebe-se, porém, que o ex-seminarista advogado incorre em duas falácias ao estabelecer a sua verdade. Do ponto de vista estritamente jurídico, peca por basear a persuasão no verossímil, e do ponto de vista moral-religioso, por sustentar suas justificativas pelo provável. Assim sendo, Dom Casmurro, que não teve forças para escrever um tratado sobre “Jurisprudência, Filosofia e Política”, tinha, no entanto, estes conhecimentos quando escrevia a obra que com constância está oferecendo ao seu leitor. Seria, pois, uma lástima que o crítico não tomasse em consideração o background cultural daquele que narra sua vida, um pouco impelido pelo olhar dos quatro bustos pintados na parede. Parece-me enfim que a intenção de Machado de Assis ao idealizar Dom Casmurro era de “pôr em ação” dois equívocos da cultura brasileira, que sempre viveu sobre a proteção dos bacharéis e sob o beneplácito moral dos jesuítas.
III Nesse sentido, de grande importância para se compreender não só a extensão da problemática colocada pelo romancista e pelo romance como também a riqueza do drama ético-moral de Dom Casmurro, caso se o considere como uma “pessoa moral”, ou representativo de uma coletividade de chefs/salauds (Sartre) — seria a leitura de Fedro, diálogo de Platão em que Sócrates discute o problema da retórica que se vale do verossímil como recurso de persuasão, e as 18 cartas escritas por Louis de Montalte a um provincial, conhecidas como Les Provinciales (a partir da quinta carta), em que Pascal critica sem nenhuma clemência a casuística jesuíta, através do que se chama o “probabilismo”, ou seja, “a doutrina das opiniões prováveis”. A palavra “provável”, como nos ensinam os teólogos, guarda o seu sentido etimológico, que é o equivalente perfeito do verossímil em retórica. Eis a definição fornecida por um dicionário de religião e ética: “An opinion is probable which commends itself to the mind by weighty reasons as being very possibly true” . Em carta dirigida em 1906 a Joaquim Nabuco, e amplamente divulgada, o próprio Machado de Assis confessa o seu culto por Pascal: “Desde cedo, li muito Pascal [...], e afirmo-lhe que não foi por distração”. Quanto a Platão, embora os críticos não tenham assinalado a importância do seu pensamento na obra de
Machado⁷, é interessante constatar, com a ajuda de Luís Vianna Filho, último biógrafo de Machado, que diversos contemporâneos do nosso autor, durante os anos de elaboração de Dom Casmurro, o assimilavam a figura do filósofo grego:
Para eles [seus amigos] Machado é uma espécie de Platão, cuja companhia ilustre e amável disputam enternecidos. “Só vi nele o grego” dirá Nabuco. É expressivo que, em diversas ocasiões Veríssimo e Mário de Alencar, ao evocarem Machado, se lembrem do filósofo grego.
E mais abaixo, na mesma página, Vianna Filho cita Mário de Alencar: “Mostreilhe uma vez um diálogo de Platão, um trecho da palavra de Sócrates [...]”⁸ A familiaridade com estes dois filósofos e, sem dúvida, a leitura de Fedro, diálogo indispensável na formação dos advogados, juntamente com o Górgias, bem como das Provinciales, em que Pascal critica acirradamente os responsáveis pela nossa educação moral e religiosa, podem sem dúvida explicar a distância indispensável que se deve estabelecer entre crítico e narrador/personagem para se apreciar o drama ético-moral de Dom Casmurro, ou do brasileiro que tem o poder nas mãos, porque decidiu Machado que seu narrador/personagem incorresse sistematicamente naquilo mesmo que idealizava como objeto de sua crítica. O principal interesse do Fedro, como têm salientado os seus modernos exegetas, é o de opor o ponto de vista da Filosofia, representado pela palavra de Sócrates, ao ponto de vista dos sofistas e retóricos, representado por Fedro, na medida em que este é discípulo e admirador de Lísias, reprodutor das suas palavras. Como base para essa discussão, toda a primeira metade do diálogo é dedicada a três discursos sobre o amor, um do próprio Lísias, tal como é repetido por Fedro, e os outros dois da responsabilidade de Sócrates. Para o nosso trabalho, o que interessa salientar é que Sócrates sublinha a indiferença da retórica — tal como era praticada naquele momento na Grécia — a sua indiferença em relação à busca da verdade, exatamente porque o texto sofista se baseia no verossímil. Para Sócrates, como para nós, a palavra retórica está tomada no seu sentido lato. Assim define ele o termo:
[...] a retórica não seria, em suma, uma psicagogia, uma maneira de conduzir as almas por meio do discurso, não apenas nos tribunais e em qualquer outro lugar público de reunião, mas também nas reuniões privadas [...]
Retórica é, pois, basicamente um método de persuasão, de cujo uso o homem se vale para convencer um grupo de
pessoas da sua opinião. E não é este um dos principais interesses da prosa de Dom Casmurro como vimos mostrando? e de que outra maneira se poderia justificar a sua constante necessidade de trazer para a arena de discussão o leitor? Como ainda se poderia justificar a chave de ouro do livro, frase final que pede a aprovação do leitor para contradizer a Escritura e impor a palavra verdadeira como a metáfora do narrador? Segundo Sócrates, o grande erro do ensino e da prática da retórica na Grécia é que, como diz Fedro:
[...] para aquele que se destina a ser orador é absolutamente desnecessário ter aprendido o que constitui a realidade da justiça, mas antes o que dela pode pensar a multidão, que precisamente deve decidir; não tanto o que realmente é bom ou belo, mas o que ela pensará a respeito disso. Eis aí, de fato, qual é o princípio da persuasão, mas não da verdade (pp. 60/61).
Este defeito educacional na formação do orador redunda num duplo cacoete profissional: o desligamento por completo da realidade e por consequência a crença no valor supremo das regras da Retórica, e por outro lado, a centralização do motivo do discurso, não no próprio discernimento do orador, mas no de quem escuta. Daí que o ponto de referência para as suas ideias não é a realidade (a constatação, o flagrante — como se diz em termos policiais), mas o provável, o verossímil, que como vimos é a base da retórica de Dom Casmurro. Sócrates
continua mais adiante:
Vejam que, nos tribunais, ninguém tem o menor interesse pela verdade, mas apenas com aquilo que é convincente. Ora, isso constitui o verossímil, a que deve aplicar-se quem se proponha a falar com arte. Há mesmo casos em que não se deve enunciar o próprio ato, se não se realizou de modo verossímil, deve-se, sim, enunciar as verossimilhanças, tanto na acusação como na defesa. De qualquer maneira, é preciso procurar o verossímil, dando-se repetidas vezes adeus ao verdadeiro! (p. 89)
Dom Casmurro aplica na sua prosa as regras e leis que aprendeu no (mau) ofício de sua profissão: “É, na verdade, a verossimilhança que, percorrendo o discurso de uma extremidade a outra, constitui a totalidade da arte oratória”. (p. 84) Dentro do esquema proposto, em que advogado de defesa e réu são a mesma figura, é importante notar que a persuasão se situa em dois níveis. Dom Casmurro que se persuade a si da sua inocência e que, ao mesmo tempo, persuade os outros. Mas o método que usa já é nosso conhecido. E dentro da sociedade brasileira é muitas vezes persuadindo o outro que se chega a persuadir a si mesmo de alguma coisa. Ao verossímil, Sócrates vai propor, como se sabe, o método filosófico por excelência que é o dialético. E o veículo ideal para a expressão do orador, não é a palavra escrita, mas a falada — como acentua no final do diálogo. Ora, se atentarmos bem para a prosa de Dom Casmurro notaremos que diversas vezes insiste no fato de que escreve, escreve um livro, ao contrário de outros narradores de primeira pessoa que criam a ilusão de que estão falando. É certo que Sócrates, defendendo a palavra escrita, impedia ao mesmo tempo o filósofo de incorrer no dogmatismo, pois podia aquele que fala encontrar-se aberto às sugestões e correções daqueles que ouvem. E finalmente podíamos perguntar: não seria a palavra escrita a base de um dos grandes dilemas da nossa civilização? Acreditar que se apreendeu a substância de um livro pela sua leitura. A complacência que existe no âmbito forense, complacência em relação ao pensamento do ouvinte, a entrega total e consciente do imaginário retórico na reconstrução do passado, encontram seus correspondentes nos planos pessoal e
moral, como adiantávamos, na benevolência que os jansenistas combatiam na casuística dos jesuítas, o “abrandamento da confissão” (l’adoucissement de la confession), baseada que estava a casuística, não nos ensinamentos dos Evangelhos e da Patrística, mas nas summae confessorum que desde o Concílio de Latran (1215) ajudavam os padres nos difíceis e delicados mistérios da confissão. Esta oposição entre a palavra do Evangelho e a casuística se encontra magnificamente expressa e concretizada nas últimas páginas do romance, quando o narrador — em um último esforço de autoperdão e de convencimento do leitor — opõe a palavra de Jesus, filho de Sirach e autor do Eclesiástico, a um argumento metafórico, típico do verossímil, do provável:
Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu Cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te a ti com a malícia que aprender de ti”. Mas eu creio que não, tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca (I, 942).
Como assinala Pascal¹ , no mundo barroco dos casuístas, graças à instituição do Probabilismo como teoria, chegava-se a equívocos extraordinários e sobretudo à organização de uma religião que não conduzia à fé, ou à caridade, mas que queria, pela benevolência, receber no seu seio os grandes e os nobres, agradá-los para receber em troca o seu agradecimento. Tão intricado ficou o sistema, que o Padre Bauny, como
nos diz Pascal, pôde afirmar que: “Quando o penitente segue uma opinião provável, o confessor deve absolvê-lo, ainda que sua opinião seja contrária à do penitente” (p. 81). Este tipo de raciocínio, que raia o absurdo e parece retirado da lógica de Ionesco, é que o jansenismo criticava. Portanto, o ex-seminarista, encaminhando a sua reconstituição do passado dentro do provável, conseguiria sem dúvida (mesmo que não compartíssemos da sua opinião) não só a tranquilidade dada pelo con-
fessor, como — quer-nos parecer — a que exigia para a sua própria consciência. “[...] o desígnio capital que nossa Sociedade tomou como o bem da religião é o de não repelir quem quer que seja, para não desesperar o mundo” (p. 88) — afirma um outro padre nas cartas de Pascal. Outro ponto em que incorre Dom Casmurro, criticado também pelos jansenistas, é o chamado processo de “dirigir a intenção” (p. 97). Consiste este a se propor como o fim de suas ações um objeto permitido. Assim, a maioria dos casos de vingança pode ser desculpada pelo fato de o criminoso não estar realmente se vingando, mas defendendo a sua honra. O exemplo escolhido por Pascal é claro e dispensa comentários: “Aquele que recebeu uma afronta não pode ter a intenção de se vingar, mas pode, isso sim, evitar a infâmia e, por conseguinte, rechaçar imediatamente a injúria, até mesmo com golpes de espada” (p. 98–99). No caso de Dom Casmurro, muitos dos seus atos são justificados por ter “dirigido a intenção”: era sempre a sua honra que estava em jogo. Justifica-se:
Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.
Não se vingou de Capitu, apenas defendeu a sua honra. Não mentiu aos seus amigos, apenas lhes escondia o deslize da esposa. Talvez se sentisse até generoso. Machado de Assis — podemos concluir — quis com Dom Casmurro desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento, certa benevolência retórica — hábitos, mecanismos e benevolência que estão para sempre enraizados na cultura brasileira, na medida em que foi ela balizada pelo “bacharelismo”, que nada mais é, segundo Fernando de Azevedo, do que “um mecanismo de pensamento a que nos acostumara a forma retórica e livresca do ensino colonial”, e pelo ensino religioso. Como intelectual consciente e probo, espírito crítico dos mais afilados, perscrutador impiedoso da alma cultural brasileira, Machado de Assis assinala ironicamente os nossos defeitos. Mas este é um engajamento bem mais profundo e responsável do que o que se pediu
arbitrariamente a Machado de Assis. E pensar que se pode falar da filosofia de Machado acreditando que a base das suas ideias se encontrava no “ressentimento mulato”... [1969]
Palestra escrita a convite de Heitor Martins e lida na sessão especial da Modern Languages Association, em 1969, dedicada a Machado de Assis.
1 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Pref. Augusto Meyer. São Paulo: Melhoramentos, s/d, p. 17.
2 Poder-se-ia, sem dúvida, estudar em Dom Casmurro a relação isomórfica entre casa e romance, na medida em que uma reconstrução se sucede à outra. Proporíamos, como início de raciocínio, no primeiro caso um retorno à origem (mãe), e no segundo, a negação do retorno à origem (casamento). Por outro lado, não se deve esquecer que existe uma simetria dentro do romance, visto que a casa de Matacavalos e a do Engenho de Dentro são semelhantes (mas não iguais), sendo apenas diferente a da Glória, onde reinou Capitu como dona de casa. Mas coincidência feliz é o fato de que a segunda casa, apesar de ser a de Capitu, é sempre referida no texto como a da Glória (nome da mãe de Bentinho).
3 Cf.: “Compte-rendu: Estruturas, de Rui Mourão”. In: Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 2 de agosto de 1969.
4 Em recente artigo sobre a poesia de Affonso Ávila, Ahs! e silêncio, procuramos mostrar como seu poema se constrói por sucessivas
transgressões/traições a uma frase-feita, ou chavão, desajuste este que vem ser o responsável pelo salto semântico e participante, anticódigo e revolucionário.
5 Sem dúvida a metáfora flor/fruto entra em evidente choque com a proposta por Dom Casmurro: fruta/casca. Uma análise microscópica das duas metáforas indicaria por certo a coerência que existe tanto em José Dias quanto em Dom Casmurro, na medida em que na primeira há um processo de transformação, ao passo que na segunda o que sucede é apenas um amadurecimento interno. É claro que o problema da coerência é totalmente estranho ao teor de nosso trabalho.
6 Enciclopaedia of Religion and Ethics, edited by James Hastings, Edinburgh: T & T Clark, 1918, v. X, p. 349. (Uma opinião provável é a que se recomenda ao espírito por razões ponderáveis como sendo muito possivelmente verdadeira).
7 Cf. O Astrólogo e a Velha, capítulo de nosso estudo sobre Ressurreição, reeditado pela editora da UFMG, sob o título de Jano, janeiro (2012).
8 VIANNA FILHO, Luís. A vida de Machado de Assis. São Paulo: Martins, 1965, p. 189.
9 As citações de Platão foram extraídas de: PLATÃO. Phèdre. Paris: Les Belles Lettres, 1966. As páginas são indicadas entre parênteses.
10 As citações de Pascal foram extraídas de: Lettres écrites à un Provincial,
Paris: Garnier-Flammarion, 1967. As páginas são indicadas entre parênteses.
EÇA, AUTOR DE MADAME BOVARY Para Heitor e Terezinha [...] quais os textos que eu aceitaria escrever (re-escrever), desejar, impor como uma força nesse mundo que é o meu? Roland Barhes, S/Z.
A alusão no título é óbvia: Jorge Luis Borges e o seu conto Pierre Menard, autor del Quijote, publicado em Ficciones. Já o que é menos óbvio são as nossas intenções: a proximidade de Gustave Flaubert e de Eça de Queirós no espaço literário europeu e até mesmo a relação intrínseca entre Madame Bovary e O Primo Basílio são diferentes ou mesmo contrárias às relações propostas pelo conto de Borges. As contemporaneidades do francês e do português, aliadas à precedência da francesa e à dependência da portuguesa, poderia nos conduzir implacavelmente ao que tem sido o banquete da crítica tradicional: a busca e o estudo de fontes.
I No caso específico de Pierre Menard, autor del Quijote, três séculos separam o modelo do decalque e nenhuma violação vocabular, sintática ou estrutural, se instaura no decalque, ocasionando a diferença que o tornaria evidentemente distinto do original. Três séculos em que acontecimentos e descobertas ocasionam rupturas imprevisíveis e definitivas, inclusive a própria ruptura que significou no século XVII o livro Don Quijote, rupturas e ruptura que vem modificando o significado da obra de Cervantes, quando analisada dentro do seu contexto histórico, “o século de Lepanto e de Lope [de Vega]”, ou quando estudada no contexto histórico do crítico ou do leitor. Entre o livro impresso e a sua consideração como clássico — um clássico das letras — se situa a sua própria inclusão na História, sistema delicado e flexível, e também a sua condição de elemento modificador dentro do sistema a que ele pertence, agora
por direito adquirido junto aos críticos e historiadores. A acomodação da obra na História e o seu naufrágio no catálogo só podem ser anulados por um crítico que a torne presente, contemporânea — ou seja, transforme-a em prisioneira do próprio contexto histórico do crítico. Se a obra é a mesma (em qualquer século em que é lida), é apenas o nome do seu segundo autor (isto é, do crítico) que lhe impinge um novo e original significado. Como nos propõe o contista argentino, o decalque pode também não ser idêntico ao original, caso em que se assemelharia a um jogo de modernização, “Cristo en un bulevar, Hamlet en la Cannebière, don Quijote en Wall Street”. Jogo de modernização que tomou conta do teatro e do cinema a uma certa época e que visa a aclarar grande parte da obra para os não contemporâneos do autor, tornando-a relevante séculos mais tarde com a ajuda de elementos ou acessórios modernos. A principal função dos elementos modernos é a de iluminar certos aspectos do original que seriam apenas apreciados na penumbra dos iniciados. Tal tipo de transformação foi encontrado em 1925, em um contemporâneo de Pierre Menard, portanto, o poeta Manuel Bandeira. Bandeira tomou dois poemas, um de Bocage e o outro de Castro Alves, e “traduziu” (o termo é dele) os respectivos poemas para a linguagem e a tipografia da vanguarda brasileira de então, acrescentando em comentário: “O meu propósito foi transladar com a máxima fidelidade, sem permitir que na versão se insinuasse qualquer parcela do meu sentimento pessoal, o que espero ter conseguido”. Finalizava, acrescentando: a versão de O adeus de Tereza, o poema de Castro Alves, “se afasta tanto do original que a espíritos menos avisados parecerá criação”. Em segundo lugar, atendo-se ainda ao texto de Borges, poderíamos falar da possibilidade de uma reestruturação das personagens complementares, Dom Quixote e Sancho. Este seria o caso, por exemplo, do romancista Daudet que, criando Tartarin, tentou conjugar “en una figura el Ingenioso Hidalgo y a su escudero”. Tartarin seria o típico produto bastardo da teoria cristã que desde o início do século XIX insistia na mistura do grotesco e do sublime — a teoria do homo duplex expressa por Victor Hugo no Prefácio de Cromwell, retomada posteriormente por Baudelaire, o anjo e a fera, as duas postulações, para Deus e para Satã. Poderia ainda e finalmente o decalque ser uma espécie de identificación total de um autor com outro autor determinado, processo de que não estaria isenta certa crítica, de que foi recente porta-voz Georges Poulet, quando na página que abre a edição de Les chemins actuels de la critique afirma:
“Não há crítica verdadeira sem a coincidência de duas consciências”. No entanto, como dizíamos, no projeto de Pierre Menard o modelo e o decalque são idênticos, tornando a sua versão do Don Quijote diferente das suas produções anteriores em que sempre acrescentava semelhanças. O narrador do conto — e esta seria a razão de ser da sua escrita — nos propõe então uma nova catalogação da obra global de Pierre Menard, sob duas rubricas: levar-se-iam em consideração o seu aspecto visível, e por outro lado o seu aspecto invisível. Este seria determinante da sua obra “interminavelmente heroica”, da sua obra “ímpar”. Dessa forma, no catálogo das obras visíveis que estabelece o narrador do conto, ele pôde incluir o poema Cimetière Marin, de Paul Valéry, porque na transcrição de Menard os decassílabos de Valéry se transformaram em alexandrinos. A transgressão ao modelo se situa, portanto, nas duas sílabas acrescentadas a cada verso, reorganizando o espaço visual da estrofe e do poema, modificando o ritmo interno do verso. Neste sentido, mas já no campo apenas visual, seria necessário lembrar a versão desobediente que nos dá Robert Desnos do Padre-Nosso (em L’Aumonyme, 1923). Dizemos visual, porque no campo propriamente audível, sonoro, não existe transgressão, visto que o som das palavras combinadas pelo poeta perfazem fonema por fonema a totalidade da oração católica. Que o leitor experimente a dupla leitura deste final da oração e do poema, obedecendo à cadeira sonora ou ao espaçamento introduzido pelo poeta: “Nounou laissez-nous succomber à la tentation / et d’aile ivrez-nous du mal”. Mas os textos são idênticos no caso de Don Quijote, e se para erguer o seu romance Cervantes “no rehusó la colaboración del azar”, o acaso da invenção, já Pierre Menard “ha contraido el misterioso deber de reconstruir literalmente su obra espontánea”. O trabalho de Pierre Menard poderia, pois, encontrar a sua razão de ser e a sua metáfora no título da primeira seção de Ficciones: “senderos que se bifurcan”. A escolha consciente por parte do autor diante de cada bifurcação e não mero produto do acaso da invenção. O projeto de Pierre Menard (tanto o invisível, quanto o visível) recusa, portanto, a liberdade da criação, aquilo que tradicionalmente na nossa cultura tem sido o elemento que estabelece a identidade e a diferença, o plágio e a originalidade. Problema, aliás, que os estruturalistas franceses tentam enfrentar, em um gesto semelhante ao do fidalgo espanhol, na sua tentativa de codificar todo e qualquer récit (narrativa). Liberdade crescente de que nos fala o linguista Roman
Jakobson no seu estudo Dois aspectos da linguagem e Dois tipos de afasia:
Existe, pois, na combinação de unidades linguísticas uma escala ascendente de liberdade. Na combinação de traços distintivos em fonemas, a liberdade individual do que fala é nula; o código já estabeleceu todas as possibilidades que podem ser utilizadas na língua em questão. A liberdade de combinar fonemas em palavras está circunscrita: está limitada à situação marginal da criação de palavras. Ao formar frases com palavras, o que fala sobre menor coação. E, finalmente, na combinação de frases em enunciados, cessa a ação das regras coercivas da sintaxe e a liberdade de qualquer indivíduo para criar novos contextos cresce substancialmente, embora não se deva subestimar o número de enunciados estereotipados.
Prisioneiro do dicionário e, em seguida, da sintaxe, o escritor só encontra a liberdade quando se lança na combinação de frases. Este problema tem dificultado de maneira extraordinária a possibilidade de uma crítica literária que se apoiaria em uma “linguística de segundo grau”, como quer Roland Barthes, quando no seu ensaio sobre A análise estrutural do récit, publicado no número 8 da revista Communication, pretende estabelecer uma relação homológica entre a frase e o discurso, transportando para o segundo grupo — o do récit — as propriedades já encontradas e já codificadas pelo linguista no seu estudo da frase. A originalidade do projeto de Pierre Menard, a sua obra invisível, advém, portanto, do fato de que, recusando nossa concepção tradicional do que seja invenção, faça com que negue a liberdade do criador e instaure a prisão como forma de conduta, a prisão ao modelo, única justificação para o absurdo de seu projeto. Em uma carta ao narrador do conto, Pierre Menard afirma:
Meu jogo solitário está regido por duas leis polares. A primeira me permite ensaiar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda me obriga a sacrificálas ao texto “original” e a afirmar, de modo irrefutável, essa aniquilação [...].
Esta concepção da criação literária não estaria distante da definição proposta pelo poeta das formes-prisons, Robert Desnos, que em L’Aumonyme, definia o poeta como:
sílabas
Prisioneiro das e não dos sentidos.
palavras
II. Deixemos no entanto, por um parágrafo, o chamarisco do nosso título e tentemos entrar no complexo problema que nos propõe a conjugação estrelar de algumas obras girando sobre o mesmo tema durante um determinado e curto período, e sobretudo o problema da passagem de uma estrutura existente em dada cultura, no caso a francesa, para outra, ou outras, a portuguesa e a brasileira, um problema pois de desarticulação e de rearticulação, de negação e de afirmação, contradição violenta que se transforma em pânico diante da crítica já militante na época de Eça de Queirós. O plágio, a acusação de plágio ronda o final do século XIX e especialmente o nosso romancista, que desde O Crime do Padre Amaro se viu condenado no Brasil e em Portugal por plagiar Émile Zola e La Faute de l’Abbé Mouret. Para ajudar nosso raciocínio, retomemos a dicotomia visível/invisível, aparente/subterrânea, tal como encontrada em Borges e tentemos ver como ela se articula no estudo das relações entre Madame Bovary e O Primo Basílio, e como de certa forma poderia ela explicitar o mistério da criação no romancista português, ao mesmo tempo que deixa clara, não a sua dívida para com Flaubert, mas o enriquecimento suplementar que ele trouxe para o romance de Emma Bovary; se não enriquecimento, pelo menos como Madame Bovary se apresenta mais pobre diante da variedade de O Primo Basílio.
A obra invisível de Eça poderia ser encontrada logo no início do romance, no zumbido das moscas flaubertianas, atraídas pelo açúcar da cidra depositada no fundo do copo, escolha da bebida que reitera o espaço normando aberto pelo romance francês. Zumbido que ecoará mais tarde em Lisboa, agora moscas que se arrastam por cima da mesa, e que finalmente pousam no fundo da xícara sobre o açúcar mal derretido pelo chá — o chá que fora servido ao casal e que na sua condição de bebida importada já trai a necessidade que tem o português de viver vicariamente o estrangeiro. Moscas que se transformam em moustiques em um romance mais recente e dentro da mesma linha, La Jalousie, de Alain RobbeGrillet. Mas neste, os insetos em lugar de serem atraídos pela sedução do açúcar, voam ao redor da lâmpada de querosene. Zumbido dos insetos que se superpõe ao assobio da lâmpada e que é interrompido aqui e ali pelo ruído de outros insetos noturnos ou pelo grito de animais, e sobretudo pelo esperado ruído do carro que traria de volta a esposa julgada adúltera pelo narrador. E isso em um romancista que tem sido considerado o papa da “escola do olhar”. Ainda nesta mesma linha, sem pretender, no entanto, esgotar as coincidências que se encontram em Madame Bovary e no Primo Basílio, seria necessário falar das leituras das nossas duas heroínas, sobretudo porque os romances românticos digeridos por elas, como o demonstrou René Girard no seu Mensonge romantique et vérite romanesque (a partir dos romances de cavalaria absorvidos por Dom Quixote), têm papel importante na gênese da análise do desejo. Este, segundo o citado crítico, é uma “simples linha reta que une o sujeito e o objeto”, mas acima dessa linha se ergue o elemento mediador (as leituras) que se dirige tanto para o sujeito quanto para o objeto. A presença do elemento mediador levou René Girard a apresentar o problema com a ajuda de uma metáfora espacial que é a do “triângulo do desejo”. Acrescenta ainda Girard: “Encontramse o desejo segundo o outro e a função ‘seminal’ da literatura nos romances de Flaubert. Emma Bovary deseja através das heroínas românticas que povoam a sua imaginação”. No romance de Flaubert se lê:
Avec Walter Scott, plus tard, elle s’éprit de choses historiques, rêva bahuts, salle des gardes et ménestrels. Elle aurait voulu vivre dans quelque vieux manoir, comme ces châtelaines au long corsage qui, sous le trèfle des ogives, passaient leurs jours, le coude sur la pierre et le menton dans la main, à regarder venir du
fond de la campagne un cavalier à plume blanche qui galope sur un cheval noir¹.
E no romance de Eça:
Em solteira, aos 18 anos, entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia: desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões da clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heroicas que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e Ivanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena da águia, presa ao lado pelo cardo da Escócia de esmeraldas e diamantes.
Fato mais curioso ainda, que nos lembraria, não tanto Pierre Menard, mas outro conto de Borges, o primeiro da coleção reunida sob o título de Ficciones, Tlön, Ubquar, Orbis Tertium, e que viria corroborar que essa passagem, sem dúvida, é a parte invisível da obra de Eça de Queirós, é que tal parágrafo não se encontra na tradução norte-americana de Cousin Basilio. Roy Campbell, seu tradutor, ou Noonday Press, a editora, se adiantaram à nossa leitura e simplesmente suprimiram da página 8 a alusão a Walter Scott. Em inglês, a portuguesa Luisa não chegou a ler o romancista de Ivanhoé. No entanto, onde mais se faz sentir a invisibilidade do Primo Basílio é no desaparecimento quase que total do conceito de que poderia e deveria ser a cidade de Lisboa, capital de Portugal e centro cultural distinto dos outros centros culturais europeus. É ainda na necessidade que teve Eça de igualá-la a qualquer cidadezinha da província francesa, Tostes ou Yonville. Em Tostes, Emma devaneia:
Comment était ce Paris? Quel nom démesuré! Elle se le répétait à demi-voix, pour se faire plaisir; il sonnait à ses oreilles comme un bourdon de cathédrale! il flamboyait à ses yeux jusque sur l’étiquette de ses pots de pommade ².
Ambos os romancistas estabelecem o ponto de referência cosmopolita e ideal para as suas heroínas em Paris, lugar geométrico para onde se convergem tanto as esperanças da provinciana Emma, quanto da lisboeta provinciana que é Luisa. Paris, centro da França para a província. Paris, centro da Europa para Portugal. E na igualdade do conceito de centro, se iguala o periférico que é Yonville e Lisboa. Para Luisa: “E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!”. Nesse sentido, poderíamos inclusive generalizar o apego do português por Paris, seja com o testemunho de alguns versos de Cesário Verde, versos de O Sentimento de um Ocidental, ou ainda com as palavras da carta que dirige em 16 de julho de 1879 a seu amigo Mariano Pina:
A tua estada em Paris faz-me imenso mal, a mim particularmente; produz-me a ideia fixa, a monomania de partir para aí. Faço esforços inauditos para presenciar o que se passa nesse mundo superior e descuido-me deploravelmente do que me rodeia. Como um astrônomo abstrato, assestei para a estrangeiro um telescópio e, cansado dos olhos, dorido dos rins, olho atentamente, constantemente. Podem dar-me uma facada, o que é provável, que não verei quem ma der.
Tal atitude, traduzida evidentemente nos versos do poeta, levou Ramalho Ortigão, na crítica que fez de seu livro de poemas, a um violento ataque contra o falso dandismo encontrado na sua poesia:
Em Portugal há, honestos empregados públicos, probos negociantes, pacíficos chefes de família, discretos bebedores de chá com leite e do palhete Colares destemperado com água do Arsenal que deliberaram seguir o gênero Baudelaire. Como, porém, Baudelaire era corrupto e eles não são corruptos, como Baudelaire era um dândi, e eles não são dândis, como Baudelaire viveu no boulevard dos italianos e eles vivem na rua dos Cabalhoeiros, como Baudelaire conhecia a moda, a elegância, o sport, e o demi-monde, ao passo que eles apenas
conhecem as popelines, as carcaças de bobinet e as cuias do sr. Marçal Maria Fernandes, costureiro na travessa de Santa Justa, o resultado é lançarem na circulação uma falsa poesia, que nem é do meio em que nasceu nem para o meio a que se destina, e que [...] (ORTIGÃO; QUEIROZ. Farpas, 1883, v. X, p. 221).
Essa crítica não deixa de ser a reação necessária contra o cosmopolitismo pregado em 1871 nas Conferências do Cassino Lisbonense, ou mesmo bem antes, em 1865, na célebre carta de Antero de Quental dirigida a António Feliciano de Castilho: “Todavia quem pensa e sabe na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim”. Se a análise feita por Borges da obra invisível de Pierre Menard o conduziu a descoberta da sua originalidade, do extraordinário que reveste o seu último e inconcluso projeto, Don Quijote, já o estudo que fizemos do equivalente em Eça apenas nos conduz ao que de mais pobre nos pode apresentar O Primo Basílio, ou mesmo grande parte da produção literária do final do século em Portugal. A equação borgesiana ali se encontra invertida: o que se impõe no romance português, o que busca o leitor hoje no romance de Eça é o visível, são aqueles detalhes que mostram a diferença que o romancista quis estabelecer com relação ao modelo flaubertiano e os comentários à trama geral, sob forma dramática, que aparecem no desenrolar da ação do Primo Basílio.
III. Talvez pudéssemos aqui generalizar e propor como ponto de partida para o nosso raciocínio a conclusão a que esperamos chegar. Tanto em Portugal quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o interesse da literatura não vêm tanto de uma originalidade do modelo, do arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da transgressão que se cria a partir de um novo uso do modelo pedido de empréstimo à cultura dominante. Assim, a obra de arte se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira por parte do artista que surpreende o original nas suas limitações, desarticula-o e rearticula-o consoante a sua visão segunda e meditada da temática apresentada em primeira mão na metrópole. Os românticos brasileiros, por exemplo, se deram conta disso imediatamente quando começaram a tratar o tema indianista. O índio, idealizado
e apresentado como elemento exótico pelos europeus, tema de toda uma literatura de evasão, de fuga dos contornos estreitos da pátria europeia, reconhecimento dos novos valores que o Novo Mundo tentava impor à cultura ocidental, este mesmo índio, quando surgia na pena de um escritor brasileiro, já era um símbolo político, símbolo do nacionalismo, da busca das raízes da cultura brasileira, bandeira desfraldada que dizia da recente independência do país e da necessidade que tinham os escritores de lidar com elementos próprios da sua civilização, até então produto do colonialismo metropolitano. Erigida a partir de um compromisso com o já dito, para usar de uma expressão recentemente empregada por Michel Foucault ao analisar o romance Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert, a obra segunda guarda pouco contato com a realidade imediata que rodeia o seu autor. Por isso são inúteis e mesmo ridículas as críticas que se dirigem à alienação do autor, impondo-se antes uma revisão da propriedade com que utiliza um texto já no domínio público e sobretudo a tática que inventa para agredir o original, abalando os alicerces que o propunham como elemento único e de reprodução impossível. O imaginário do escritor é alimentado não tanto a partir de uma manipulação vivencial da realidade imediata, mas se propõe quase como metalinguagem. A obra segunda, porque comporta em geral a crítica da anterior, se impõe com a violência desmistificadora das planchas anatômicas que deixam a nu a arquitetura do corpo humano. Neste processo de desmistificação, o discurso segundo pressupõe a existência de outro, anterior e semelhante, ponto de partida e ponto de chegada, circuito fechado em que as decisões a serem tomadas pelo narrador ou pelas personagens diante de cada “bifurcação” já estão mais ou menos previstas e prescritas pelo original. A liberdade a ser tomada existe muito mais no plano da arquitetura geral do romance do que propriamente nas mudanças mínimas que poderiam ser estabelecidas para o comportamento das personagens. Assim, pouca diferença existe finalmente entre o suicídio de Emma Bovary e a morte natural que pouco a pouco toma conta de Luisa. Não caiamos na armadilha aberta por Machado de Assis, na célebre crítica do Primo Basílio: “a Luisa é um caráter negativo e, no meio da ação idealizada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral”, pois lhe falta, acrescenta ele, “paixão, remorso e menos ainda consciência”. Machado de Assis, apesar de não nomear Madame Bovary, guardava intacto na mente o romance francês, ao mesmo tempo que se lançava já em um projeto imaginário, que seria seu próprio Dom Casmurro, obra terceira portanto. Machado de Assis — preocupado mais com o drama ético-moral do ciumento,
do que com os segredos do adultério — não pôde compreender que o jogo idealizado por Eça se situava em outro âmbito, distinto do proposto por Flaubert. No âmbito da repetição, da repetição que traz profundidade. Em outras palavras: o comentário das atitudes de Luisa, ou mesmo de seu marido, não se situam no plano convencional da estreita reação violenta e moral a uma causa que é óbvia para o leitor, mas se organiza a partir das reações dos dois a um texto escrito, reprodução no interior do Primo Basílio da própria temática geral do romance.
IV. É claro que estamos nos referindo à peça que Ernestinho escreveu e reescreve durante o desenrolar da ação do romance e que estreou pouco antes da morte de Luisa. A peça se chama Honra e Paixão, título que imediatamente nos conduz à problemática de Emma e de Luisa. Seu argumento, esboçado pelo próprio autor durante uma pequena reunião familiar que se passa no capítulo II, ocasião em que Eça aproveita para apresentar os principais personagens do romance, é o seguinte, segundo as palavras do próprio romance:
Era uma mulher casada. Em Sintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o conde de Monte Redondo. O marido arruinado, devia cem contos de réis ao jogo! Estava desonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruínas acasteladas, onde habita o conde, deixa cair o véu, conta-lhe a catástrofe. O conde lança o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em que os beleguins vão levar o homem. É uma cena muito comovente, dizia, é de noite, ao luar! — O conde desembuça-se, atira uma bolsa de oiro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: Saciai-vos, abutres!...
— Belo final! — murmurou o Conselheiro. — Enfim — acrescentou Ernesto, resumindo — aqui há um enredo complicado: o conde de Monte Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu oiro aos pés do conde, e mata a esposa. O final da peça, no entanto, tem trazido grandes transtornos à vida já agitada de
Ernestinho, sobretudo porque o seu empresário exige duas modificações substanciais. A cena final não se passará à beira de um abismo, mas em uma sala, e pior: ele quer que o marido perdoe a sua esposa. O assunto é então proposto como discussão aos diversos convivas. Isolemos a opinião de Jorge, marido de Luisa, não só pela aspereza das suas palavras e intransigência moral, como ainda porque representam a primeira reação do futuro marido traído. De certa maneira, esta resistência de Jorge acompanhará a imaginação do leitor durante a sua lenta apreensão do drama de Luisa e constantemente lhe lembrará o desfecho verossímil e ideal para o romance que está diante dos seus olhos. Diz Jorge:
Falo sério e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte. No abismo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir que, num caso desses, um primo meu, uma pessoa da minha família, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um princípio de família. Mata-a quanto antes!
Estas palavras de Jorge, é claro, não encontram grande eco entre os seus amigos, todos eles favoráveis à clemência. Mas não satisfeito, Jorge insiste na autoridade do marido sobre a esposa, e chega mesmo a transferir o problema para a vida pessoal do autor, Ernestinho, tornando-a real, e ao mesmo tempo abole a distância estética preconizada por T. S. Eliot. Sua opinião não seria diferente:
E aqui tem, se em lugar de se tratar dum final de acto, fosse um caso de vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: sabes, encontrei minha mulher... Dou a minha palavra de honra, que lhe respondia o mesmo: Mata-a!
Todos protestam violentamente, e a partir de então o futuro marido ultrajado já é conhecido pela alcunha de “tigre, Otelo, Barba Azul”. Não é por simples coincidência que uma série de alusões a Ernestinho, à sua peça e às reações de Jorge se intercalam no desenrolar da intriga, exatamente naqueles momentos em que podem ter um significado paralelo à ação da
personagem em questão. Espécie de espelho que consegue definir os limites morais das atitudes engajadas pela personagem, como se este, desprovido da paisagem interior de que fala André Gide, na sua superficialidade, portanto, apenas pudesse ver as consequências do seu ato pela aparência, na superfície do espelho, na superfície do texto de Ernestinho. Daí a importância para o estudo de Eça de Queirós de repensar as categorias morais estabelecidas pelo eixo Flaubert/Baudelaire, sustentadas, como vimos, por Machado de Assis na sua crítica desfavorável do Primo Basílio. Categorias como: lucidez, remorso, expiação, consciência do mal etc. A arte de Eça de Queirós encontra nesse gosto pelo exterior, pela superfície a sua modernidade, na medida em que se liberta do compromisso com a introspecção, vivendo a profundidade da pele, para usar de uma expressão de Jean Cocteau. Ou ainda, a profundidade do desdobramento, como veremos logo adiante. Por exemplo, no capítulo VII, quando Luisa vai a caminho do “Paraíso” para encontrar Basílio, esbarra na rua por acaso com Ernestinho. Este, depois de se queixar de novo do empresário, confessa a Luisa que finalmente resolveu perdoar sua heroína, dando um posto de embaixador no estrangeiro ao marido. Primeiro passo para certa intranquilidade no espírito de Luisa quando encontra seu amante:
Luisa entrou no Paraíso muito contrariada. Contou o encontro [com Ernestinho] a Basílio. Ernestinho era tão tolo! Podia mais tarde falar naquilo, citar a hora, perguntarem-lhe quem era a amiga do Porto ... — Não, realmente, é imprudente vir assim tantas vezes. Era melhor não vir tanto. Pode-se saber ...
Nesta mesma linha de raciocínio, vemos que bem mais tarde, no capítulo IX, quando Luisa pensa nas reações que pode ter o seu marido quando descobrir o adultério, o quadro que cria imaginariamente é inspirado pelo Jorge que conheceu no capítulo II, intransigente e rancoroso diante da personagem criada por Ernestinho: “O que faria ele se soubesse? Matá-la-ia? Lembravam-lhe as suas palavras muito sérias, naquela noite, quando Ernestinho contara o final do seu drama”.
O círculo que se estabelece em torno das personagens do Primo Basílio e da peça Honra e Paixão vai se estreitando cada vez mais, organizando quase que por completo a vida imaginária de Luisa. Daquela espécie de desdobramento pelo reflexo, passamos a uma forma de simbiose, na qual as personagens do romance perdem a sua identidade e se perdem nas máscaras das personagens da peça de Ernestinho, atores que são, e nos meandros da intriga estabelecida pelo Dumas Filho de Portugal. O terceiro sonho de Luisa é completamente dominado pela ideia de teatro, peça, Ernestinho: Luisa se encontra como atriz, interpretando o papel da heroína de Honra e Paixão, e sob os traços do conde ela reconhece e reconhecemos Basílio. E no final aparece Jorge, o marido, que apesar da modificação imposta à peça pelo autor, representa o seu papel de acordo com a versão primitiva, visto que se vinga da esposa infiel. Se o autor, Ernestinho, já tinha perdoado a esposa na peça, o mesmo autor, no sonho da atriz, ainda continuava se vingando. Como exemplo, aqui vão algumas frases extraídas da longa passagem do sonho:
Ela [Luísa] estava no palco; era atriz; debutava no drama de Ernestinho; e toda nervosa via diante de si na vasta plateia sussurrante, fileiras de olhos negros e acesos, cravados nela com furor. [...] Basílio repetia no palco, sem pudor, os delírios libertinos do Paraíso! Como consentia ela? [...] e viu Jorge, Jorge que se adiantava, vestido de luto, de luvas pretas, com um punhal na mão; a lâmina reluzia — menos que os olhos dele.
À medida que o romance vai se fechando, isto é, dentro da técnica romanesca do século XIX, ao se aproximar o momento da morte do herói ou da heroína, mais concreta se torna a peça de Ernestinho. No antepenúltimo capítulo, estreia a peça, obtendo grande êxito. Luisa, já atacada por estranha e indefinida doença, não pôde presenciar o sucesso do amigo, mas este vem visitar o casal para lhes dar as boas novas. Em um certo momento, a conversa se centraliza em Jorge e, pela primeira vez, o dramaturgo lhe comunica que tinha mudado de ideia com relação ao quinto ato da peça (conversa que repete precedente diálogo entre Ernestinho e Luisa). O autor de Honra e Paixão comparece, de novo, como anteriormente no caso de Luisa antes da sua visita ao “Paraíso”, para ativar o processo de conscientização do problema que enfrenta caladamente Jorge, emprestando-lhe certa insegurança que vem substituir a tranquilidade que tinha
encontrado na inconsciência da paixão. Como em uma tragédia grega, é neste momento, diante de um estímulo exterior, que Jorge compreende que tinha mudado sua maneira de pensar. O diálogo estabelecido por Eça é revelador: — O Jorge é que queria que eu desse cabo dela disse Ernestinho, rindo totalmente. — Não se lembra, naquela noite... — Sim, sim, fez Jorge, rindo também, nervosamente. — O nosso Jorge — disse com solenidade o Conselheiro — não podia conservar ideias tão extremas. E decerto a reflexão, a experiência da vida... — Mudei, Conselheiro, mudei — interrompeu Jorge.
Esse processo narrativo analisado — a presença no interior do romance de outra obra de ficção que reproduz o romance, ou ainda o fato de que o romancista dramatiza dentro do romance, isto é, ao nível das personagens, o seu ideal — coloca de imediato Eça de Queirós e O Primo Basílio ao lado de uma série de outras obras. André Gide talvez seja o primeiro que tenha chamado a atenção para o fenômeno que, segundo ele, se encontra tanto na pintura (refere-se aos pintores flamengos e a Velásquez) quanto no teatro (Hamlet). Na necessidade de uma etiqueta, compara-o ao processo que encontramos na confecção dos escudos (a “mise-en-abyme”), em que um ponto central reproduz, em miniatura, o conjunto do escudo. Conclui o autor de Os Moedeiros Falsos:
Gosto muito de encontrar transposto, numa obra de arte, para a escala dos personagens, o próprio motivo desta obra. Nada a ilustra melhor e estabelece com mais segurança todas as proporções do conjunto.
Este talvez seja o fado e a originalidade das melhores obras escritas nas culturas dependentes de outra cultura: a meditação sobre a obra anterior conduz o artista lúcido à transgressão ao modelo. A transgressão à Madame Bovary se concretiza no Primo Basílio, não tanto na mudança do título, o que poderia à primeira vista nos dar a impressão de que Eça queria mudar o ponto de vista da narração,
passando da esposa adúltera para o amante, mas existe a partir da criação de Ernestinho, autor também, cujo projeto se assemelha, na dialética do seu título, honra/paixão, ao projeto de Eça e ao drama de Luisa e de Jorge. Eça de Queirós faz com que seus personagens tomem conhecimento do seu destino antes que se entreguem às aventuras que os esperam; faz com que tomem consciência das suas ações por um processo de reflexão e de desdobramento; faz finalmente com que Luisa experimente a dor do remorso e da expiação oniricamente, por um processo de simbiose, em que um corpo se entrega à máscara de outro, máscara que nada mais é do que a cópia fiel do seu rosto, e faz com que encontre no sonho a catarse necessária para continuar a sua sobrevivência. Nesta fase de simbiose onírica, o drama da adúltera não se articula mais no plano da lucidez, mas é transportado para o imaginário e para o inconsciente. No eixo do imaginário e do inconsciente também aí encontramos o suplemento que extrapola a problemática do devaneio, do bovarysmo, encontrado no romance de Flaubert. Em Madame Bovary e também no Primo Basílio, como muito bem analisou René Girard, com a ajuda do ensaio de Gaultier, o devaneio propicia uma das formas agudas do desejo triangular. A imaginação de Bovary, totalmente invadida pelas suas leituras romanescas, estabelece o elemento mediador entre ela e o objeto amoroso que cobiça. Em Eça, repetimos, tal processo também se encontra, e havíamos assinalado que seria a parte invisível da sua obra, e bastaria que citássemos esta frase: “Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos!” Mas como o romancista português foi além do seu modelo na idealização de Ernestinho que escreve Honra e Paixão, também ele enriquece o modelo flaubertiano com a introdução do onírico. O onírico passa a ser o veneno segregado em silêncio pela cauda do escorpião, cauda que era instrumento de defesa e de ataque, e que, diante do círculo de fogo, previsão da morte, diante da ausência instaurada por Basílio, pela sua partida, diante da agressividade pusilânime do marido, lentamente se volta contra o próprio corpo, instilando nele gota a gota o líquido que caladamente fabricava, o veneno do remorso, purgação noturna que não chega a aflorar os momentos do dia, da luz, da consciência. Se o devaneio propiciava o desejo, a consumação do prazer, os momentos inesquecíveis do “Paraíso”, já o onírico nada mais é do que a tomada do poder por parte do remorso que, pouco a pouco, vai estabelecendo o seu reino no corpo liberto pelo gozo, pela desobediência ao código imposto pela sociedade, seu reino que é a tortura e o suplício da lei dos homens. Madame Bovary encontra a punição no arsênico, enquanto Luisa, como
um escorpião, se debate contra o veneno segregado pela vida noturna do inconsciente. Seria ridículo querer emprestar a Luisa a lucidez de Baudelaire, “a consciência no mal”, expressa pelo famoso dístico: “Tête-à-tête sombre et limpide / Qu’un coeur devenu son miroir”³. Luisa, na sua mediocridade de lisboeta burguesa, vive em toda sua plenitude o único drama que pode viver, a inconsciência no mal. A obra visível de Flaubert e a obra visível de Eça de Queirós se encontram finalmente, se enlaçam, se complementam
e se organizam harmonicamente no espaço literário europeu da segunda metade do século XIX. O invisível em um é o visível no outro, e vice-versa. O trabalho subterrâneo de Eça se lança audaciosamente através das fronteiras do pequeno Portugal e se inscreve com o suicídio de um escorpião no firmamento europeu. [1970]
1 Em tradução: “Mais tarde, com Walter Scott, ela se apaixona pelos fatos históricos, sonha com arcas, sala de guardas e menestréis. Desejaria ter vivido em algum solar antigo, como aquelas castelãs de busto alto que, debaixo do trevo das ogivas, passavam os dias, o cotovelo apoiado sobre a pedra e o queixo contra a mão, vendo chegar do fundo do campo um cavaleiro de pluma branca que galopa um cavalo negro”.
2 Em tradução: “Como seria aquela Paris? Que nome desmesurado! Ela o repetia para si mesma à meia voz, para sentir prazer; ele soava aos seus ouvidos como um sino grande de catedral! Brilhava diante de seus olhos até no rótulo de seus potes de pomada”.
3 Tradução de Ivan Junqueira: “Conversa a dois, clara e sombria/ Espelho que a alma em si procura!”
O ATENEU: CONTRADIÇÕES E PERQUIRIÇÕES Para Heitor e Terezinha Eu sou negro por dentro e rosa por fora... (Jean Cocteau, Batterie)
É preciso arrancar alegria ao futuro. (Maiakovski, A Sierguei Iessiênin)
Lúcia Miguel Pereira não foi o primeiro crítico, mas o que melhor conseguiu apreender as diversas contradições que apresenta O Ateneu¹, e chamar a atenção para o fato de que do “conjunto de contradições, que poderiam ser consideradas indícios de fraqueza, saía entretanto uma quase obra-prima”. Ei-las:
1. “misto de romance e memórias”;
2. “oscilava entre as insinuações de Machado de Assis e as ousadias dos naturalistas”;
3. “variava no estilo da sobriedade ao rebuscamento”;
4. “parecia um roman à clef [...], na essência nada mais era do que o drama da
solidão” ².
Essas contradições, infelizmente, não foram desenvolvidas ou analisadas nem receberam o idêntico cuidado e interesse com que foram descobertas e anotadas, talvez porque o crítico estivesse escrevendo um capítulo para uma história da literatura brasileira, e não um ensaio sobre Raul Pompeia, e muito menos um capítulo monográfico sobre seu romance. Também cremos que é compreendendo suas contradições que melhor se pode compreender a validez, a autenticidade e a covardia do projeto de Pompeia, romance que exibe algumas outras além das citadas quatro contradições, cuja própria riqueza aliás é extraída desse claro-escuro, tecelagem inusitada em uma literatura que, sob o signo das obras de Machado de Assis e do positivismo, tem se primado por um cartesianismo mais francês do que o francês porque não francês. De tal modo estávamos pouco dispostos a aceitar a contradição seja como valor positivo em um projeto literário, seja como moeda social num projeto humano, que Lúcia Miguel Pereira a classifica como “indício de fraqueza”, parecendo repetir a perplexidade e o ódio de Sérgio diante do proteiforme Aristarco. Por causa delas e porque queriam rejeitá-las a priori, desconhecer mesmo a sua existência, é que os críticos escolhiam uma das facetas, uma das colunas das contradições, e a partir daí desenvolviam linearmente a sua teoria para apresentar no final um todo coerente, válido, fiel ao romance e ao autor (é claro), rico de sugestões e de ideias — porém incompleto. Cada análise do romance permitia, pois, outra interpretação, oposta ou lateral, igualmente válida e justa. Todos os críticos iam tendo razão, sem a ter inteiramente. Lúcia Miguel Pereira — para ficar apenas com os contemporâneos — com a ajuda de Capistrano de Abreu julga O Ateneu um “romance estético e parnasiano”³; já Mário de Andrade sofridamente o coloca entre os naturalistas⁴, e Eloy Pontes acredita que “sem
escapar às influencias claras do seu tempo, fugiu às grosserias com que elas impregnaram seus contemporâneos”⁵. Este último tendo uma concepção machadiana do Naturalismo tal como transparece na crítica ao Primo Basílio. Aí estão pelo menos três posições-chaves definidas: ponta direita, Mário; ponta
esquerda, Lúcia; centro, Eloy. Fácil seria descobrir os diversos meias esquerdas e meias direitas, e mesmo os que, saindo do campo histórico, se infiltraram pelo século XX adentro em flagrante impedimento . Mais do que insistir portanto numa outra análise parcial, reduzida, de mão única e inteligente, como que sugestionada pela probidade edipiana do narrador, incapaz que era de aceitar no outro a oscilação de caráter, seria melhor que estudássemos de perto as contradições, procurando a sua gênese, mostrando seu jogo interno, pondo as claras seu mecanismo, para analisar enfim sua razão de ser dentro da obra.
Falso natural rejeitado Apesar de se tratar de romance escrito na primeira pessoa, com revelações evidentes de autobiografia, narrando ainda aventuras e crises vividas em recente adolescência, O Ateneu estranhamente recusa a retórica do gênero em que se inclui tão voluntariamente. Recusa logo de início a singeleza de estilo e não apresenta à flor da pele as marcas de falta de aprendizado literário por parte do narrador, características das novelas que pretendem oferecer um amálgama ingênuo e verossímil entre narrador e
personagem, cujo melhor exemplo ainda é La Porte Etroite, de André Gide. Os primeiros parágrafos do romance de Pompeia nos lembrariam, pela dificuldade dos conceitos, pelo rebuscamento do vocabulário, uma estrofe quinhentista, se não barroca⁷. Já no parágrafo de abertura de La Porte Etroite, o narradorpersonagem, Jérôme, confessa a sua incapacidade para escrever um livro, preferindo entregar-se antes a narrativa simples das suas lembranças, mesmo porque a busca do “esforço literário” estragaria o prazer que poderia sentir simplesmente evocando-as, dizendo-as⁸. Esta técnica, empregada entre nós por Lins do Rego (Menino de engenho, Doidinho), por Lúcio Cardoso (Inácio, O enfeitiçado), por Fernando Sabino (A marca) e por tantos outros escritores “adolescentes”, foi devidamente comentada por Roland Barthes no seu revolucionário O grau zero da escrita (Le dégré zéro de l’écriture), tendo chegado a uma etiqueta que muito nos agrada: “o falso natural de uma
confidência” . Falso natural: no adjetivo a busca de um estilo que não se adapta ao autor (André Gide), mas ao narrador-personagem (Jérôme); o despojamento necessário para que a inteligência, o refinamento, a cultura e a sensibilidade do primeiro não tornem inverossímil a história contada pelo narrador-personagem. Falso, ainda, a marca visível de uma deformação voluntária e necessária para que haja uma cumplicidade fotográfica, afetiva e superficial entre narrador e personagem. Esta ligação simbólica (placentária, diria Pompeia) tem a sua razão de ser no distanciamento que o autor procura abrir entre si e o narrador-personagem, como se dissesse que o natural é deles, mas o falso é seu, livrando-se ainda de uma associação grosseira e prejudicial (na vida diária) que poderia ser estabelecida entre autor-narrador e/ou autor-personagem. Esse ato de lavar as mãos isenta o autor de toda e qualquer cumplicidade com as suas criações imaginárias, disposto que está, pela posição que ocupa de superioridade, a rejeitar os seus fantasmas pela ingenuidade, pela simplicidade com que ergueram a sua vida e escrita, respectivamente. Por outro lado, a atmosfera de faz de conta criada pelo uso retórico do falso natural pode ser facilmente destruída por um leitor agudo e inteligente. O leitor, rejeitando uma cumplicidade com o narrador-personagem, estabelece uma ligação com o autor, ambos passando a contemplar a obra realizada objetivamente, ambos capazes de dar o seu parecer negativo sobre o narradorpersonagem, bem como sobre os demais participantes da história. Perante o leitor atento (já que o leitor ingênuo aceita a simplicidade do narradorpersonagem e nela se reconhece), o autor consegue desculpar-se dos defeitos e fraquezas da personagem e da sua escrita, pois está interessado em mostrá-la ao público por certas características inusitadas que porventura possa ter, e mesmo assim sob forte luz crítica. O leitor, mesmo censurando o narrador-personagem, aceita o autor, chega mesmo a elogiá-lo, porque pelo uso do falso natural ele conseguiu lançar-lhe uma ponte cúmplice por cima da singeleza da criação, derrubando por terra o perigo de se absolver um texto pseudoautobiográfico pouco inteligente ou recordações cândidas¹ . Como consequência temos, no caso de A porta estreita, uma obra irônica, no sentido em que tudo (ideias, personagens, atitudes, técnica, estilo etc.) é passível de crítica, sob o olhar irmanado e feroz do autor e do leitor, em virtude mesmo da singeleza e da ingenuidade do conteúdo e do invólucro. Mas vejamos o que se passa no Ateneu.
Sérgio não podia de modo algum permitir uma aliança amigável e irônica entre o autor e o leitor, com o fim de conspirar contra o narrador-personagem, ou seja, contra ele mesmo, com o único intuito de julgá-lo. De modo algum tem ele por um só momento o sorriso entreaberto e juvenil, lembrando certos close-up dos filmes de François Truffaut, ou frases do narrador do romance Le diable au corps, de Raymond Radiguet: “Vou me expor a muitas repreensões, mas o quê que eu posso fazer?”. Pelo menos por duas vezes o complexo de perseguido, de vítima, o temor do olhar alheio a surpreendê-lo em falta, se patenteiam no desenrolar da história. O professor Mânlio pronuncia seu nome pela primeira vez e o chama até o quadro-negro para que se submeta a um teste. Sérgio empresta aos seus colegas uma atitude de ataque, como se formassem uma “conspiração contra [ele]” (p. 36); uma conspiração sendo, por definição, um movimento que se arquiteta por detrás e sem o conhecimento da vítima. A sua reação aliás foi das mais típicas do que se entrega desnudo ao seu próprio imaginário, sofrendo calado as suas consequências inexistentes, visualizando um campo de possibilidades punitivas distante e ausente do palpável e do real:
O professor interrogou-me; não sei se respondi. Apossou-se-me do espírito um pavor estranho. Acovardou-me o terror supremo das exibições, imaginando em roda a ironia má de todos aqueles rostos desconhecidos (p. 36).
E nas linhas seguintes, chega ao desmaio, perda passageira do consciente, fuga e refúgio, escapando-se momentaneamente da pressão. Mais tarde, reaparece idêntico receio do comentário crítico alheio, agora com base sólida na realidade, é quando Aristarco lê, pela primeira vez também, o seu nome no terrível e temível Livro de notas. O ambiente do refeitório tornou-se estranhamente silencioso, e a: “[...] congregação justiceira dos colegas voltou-se para [ele], contra [ele]. Os vizinhos de lugar à mesa afastaram-se dos dois lados, para que [ele] melhor fosse visto” (p. 73). É de se estranhar, pois, que uma pessoa que imagina onde não há, uma “ironia má”, que chega até o desmaio para fugir da hostilidade ambiente, que sente “o temor supremo das exibições”, ou ainda que é tão sensível ao olhar alheio fulminante e acusador, furando filas e filas de alunos, como em um sugestivo e audacioso travelling cinematográfico, para ler seu comportamento — é de
estranhar que se entregue ao escândalo do livro, e mais: ao escândalo do livro escandaloso. Na verdade, o autor Pompeia tomou as devidas precauções, que em nada aliás destroem a audácia da sua empresa. Basta que se leiam estas linhas da nota com que a Gazeta de Notícias anuncia a próxima publicação em folhetim do Ateneu (apesar de não virem assinadas por Pompeia, diversos críticos, entre eles Ledo Ivo, viram aí o dedo do escritor):
[...] grandes belezas de estilo, severo escrúpulo da forma, que constitui a um tempo a honestidade e a elegância da obra d’arte, e o mais meticuloso cuidado em abordar os assuntos escabrosos, de modo que a própria família¹¹ do escritor possa ler e confessar que leu o seu trabalho¹².
Temeroso e audacioso, como o próprio Pompeia, Sérgio se resguardou de um imaginário mas possível complô contra o seu livro, permitindo mais do que depressa que ele próprio criticasse a si mesmo, antes mesmo que os leitores o fizessem. Se esconde, portanto, por detrás das “belezas de estilo”, do “severo escrúpulo na forma”, julgando estas duas características da sua escrita como qualidades, encontrando mesmo nelas valor estético (“elegância”) e ético (“honestidade”). Desdobrou-se então no seu romance de uma maneira bastante peculiar: há o que narra (Sérgio-narrador) e há o que vive ou atua (Sérgio-personagem)¹³, como se nos quisesse apresentar no final um modelo que tivesse impressionado duplamente uma fotografia. Se o romance do falso natural apresenta uma simbiose perfeita entre narrador e personagem e uma dissociação entre autor e narrador-personagem, já O Ateneu sugere um diferente corte, pois o seu criador abre uma vala que vai separar o narrador do personagem e estabelecer uma possível, mas necessária, pinguela entre narrador e autor-leitor. Com a distância considerável que se abre e se alarga entre narrador e personagem, linha pontilhada permeável à tesoura e ao esquecimento, o mais velho, o mais experiente, se permite à crítica do mais novo, e o julgamento passa então a se situar no nível do narrador, ao contrário da novela gideana
em que, como vimos, a ironia se situa no nível do autor e do leitor. Aqui é
Sérgio-narrador que critica Sérgio-personagem, à espera do beneplácito do leitor e do autor. A confirmar nosso raciocínio vem o próprio Raul Pompeia que, entre algumas anotações inéditas, colhidas diligentemente por Eloy Pontes, afirma: “Às vezes [o autor] é, ao mesmo tempo, o público e comenta, com observações suas, os gestos, as palavras, as situações dos seus fantoches”¹⁴. Faltou apenas que ele fizesse a distinção óbvia entre autor e narrador. A dissociação entre Sérgio-narrador e Sérgio-personagem está clara, em primeiro lugar, no próprio estilo encontrado por Pompeia, estilo que conseguiu “uma harmonia independente do assunto”, como o qualifica Lúcia Miguel Pereira¹⁵. Estilo sofisticado, irônico, emaranhado, adulto, mais próximo da eloquência (“eloquência escrita”, como quer o Dr. Cláudio), antípoda do estilo que poderíamos supor ideal para o Sérgio-personagem, do falso natural que poderia ter usado para contar as suas recentes aventuras de internato. Em seguida a mesma dissociação se patenteia em alguns trechos que Sérgio enxerta no seu romance, que são mais elaboração atuais da imaginação e espírito crítico do narrador, do seu saber atual, que recordações da sua adolescência — como as três conferências do Dr. Cláudio, “ilha[s] ensaística[s]”, como as chama Ledo Ivo¹ . Se os dois argumentos ainda não forem convincentes, podemos exemplificar o desdobramento com uma passagem do romance em que Sérgio narra as suas desventuras e julga por que não fora castigado pela sua agressão a Aristarco:
Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Gonçalves despedira-se do Ateneu na mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável não se duvida, mas sem testemunhas (p. 192).
Aí fica claro o truque: “hoje penso diversamente”. Aristarco se reflete em um primeiro espelho, Sérgio-personagem, e consegue impressioná-lo favoravelmente. No momento da escrita, a imagem se rebate contra um segundo
espelho, Sérgio-narrador, mas já agora se apresenta com traços diferentes, parecendo ter sofrido, durante o percorrer espacial e temporal, extraordinária metamorfose. A segunda imagem passa a negar em si a sua própria origem, a primeira imagem, e mesmo se volta contra o modelo, Aristarco, atacando-o, só porque tinha impressionado bem, quando não devia, o espelho adolescente. Logo se percebe, por parte de Sérgio-narrador, uma atitude de apadrinhamento: Sérgio-personagem tinha sofrido dores e remorsos (qual novo Prometeu bicado pelo “abutre da [sua] consciência”) que afinal não devia ter sofrido, pois tudo se reduzia, em uma nova e atual análise dos acontecimentos, a um mero e desprezível problema econômico, único que realmente tocava o diretor, e a agressão, portanto, tinha de ser considerada uma mera futilidade.
Eu onisciente A dissociação que existe entre o que conta e o que age, apesar de serem ambos a mesma “pessoa”, aparecerá com maior clareza conceitual e será expressa de uma maneira mais coerente e categórica na concepção que tem Sérgio do correr do Tempo, na compreensão vivencial que tem das relações entre passado, presente e futuro, no significado que empresta à recordação, à saudade, ou seja, na atitude que toma para com seu próprio passado (passado sendo, no Ateneu, sinônimo de infância e/ou adolescência). Logo no primeiro parágrafo, corrigindo certo sentimentalismo e imprecisão que poderiam ser depreendidos do subtítulo do romance, Crônicas de Saudades, crê-se obrigado a precisar o seu significado, se entregando a uma divagação filosófica sobre o conceito de recordação, de saudade, ajuntando depressa a esta última o adjetivo hipócrita (“saudade hipócrita”), acrescentando depois, “eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas”, para concluir que “a atualidade é a mesma em todas as datas” (p. 5–6). Não para aí Sérgio. Ao contrário dos autores que melhor exploraram o problema da memória e que vislumbraram uma intercomunicação promíscua entre presente, passado e futuro¹⁷, Sérgio se entrega a uma concepção juvenil, convalescente e estática do Tempo, arrancando, destacando apenas o presente, isolando-o, mostrando como somente a atividade conta e, mesmo assim, no momento em que é realizada, quando deve se tornar semelhante à regra moral. É essa, aliás, a lição que seu pai lhe envia de Paris: “Salvar o momento presente. A regra moral é a mesma da atividade” (p. 264). Esta foi ainda a conduta seguida pelo seu ex-colega Sanches, e parece que Sérgio gostaria de o imitar, pois, logo
depois de narrar suas aventuras sentimentais com o companheiro de internato, logo em seguida ao momento em que nos conta como este grotesca e acintosamente se declara seu “pretendente”, Sérgio-narrador comenta com ironia: “Era de uma extravagância original aquele Sanches! Hoje ele é engenheiro em uma estrada de ferro no sul, um grave engenheiro [...]” (p. 62). Na arte sutil de Raul Pompeia gostaria de chamar a atenção do nosso leitor para três palavras: “aquele”, “hoje” e “grave”. Releiamos a frase: aquele Sanches é hoje um grave engenheiro. Sanches havia escapado camaleonicamente do estigma do passado, aceito sem problemas maiores uma profissão e uma posição, adquirido pelo menos em aparência as prendas da madureza, talvez como um outro seu contemporâneo que Raimundo Correia descreve como sofrendo de um “mal secreto”. E é de idêntica marca que o pai de Sérgio pretende livrá-lo, preparando-o para se enquadrar, como Sanches, às normas rígidas de conduta da sociedade. Na mesma carta de Paris, aconselha-o amigavelmente, como se adivinhasse no filho o perigo que traz o constante manuseio do passado e/ou receio de muito se ater ao futuro:
Saudade, uma covardia, apreensão outra covardia. O dia de amanhã transige; o passado entristece e a tristeza afrouxa. Saudade, apreensão, esperança, vãos fantasmas, projeções inanes de miragem; vive apenas o instante atual e transitório (p. 264).
Ser forte: viver o presente; todo o resto covardia, fraqueza. Depois disso, não fica tão desconcertante e abracadabrante o súbito fecho do romance, que segue em linhas gerais — observamos agora — o conselho paterno:
Aqui suspendo as crônicas das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo — o funeral para sempre das horas (p. 274).
Tempo, ocasião passageira dos fatos, funeral para sempre das horas. Avivando em pizzicato a ação no momento em que é praticada, deixando-a solta no ar, de passagem, sem memória e sem esperança, Sérgio se liberta artificialmente (ou pelo menos conscientemente) do julgamento ético que é feito, como dizem nos meios jurídicos, pelo estudo dos “bons antecedentes”. Encerrando por outro lado o passado como um cadáver em um mausoléu erigido a Saturno (não esquecendo também que era ao deus do Tempo que se dedicavam as saturnais), reconhecendo, pois, o passado distante e inofensivo, apagado por forçada miopia, não deixando de modo algum que viesse aflorar nas águas do presente, ou se prolongar subterraneamente até o futuro, só assim Sérgio-narrador pôde entregar-se à saudade. Para ele, no presente, era preciso que a experiência passada, a vivência, não contasse, que fosse apagada da sua consciência, do seu corpo, não deixasse enfim as incômodas pegadas. Gostaria de se reconhecer agora como reconhece o Sanches: aquele Sérgio hoje é um grave... Considerados assim, os fatos e as aventuras do passado podem ser visualizados com extrema certeza e nitidez, porque a distância possibilita o trabalho das lentes de precisão, e as requer. Trabalho de miniaturista. Pompeia se situa aqui aos antípodas do Machado de Assis de Dom Casmurro, por exemplo. Para Dom Casmurro o passado é a única razão de ser para que continue a viver no presente, povoe a sua solidão de homem frustrado e incompleto. “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. A personagem machadiana já tinha passado pela madureza, e podia reconhecer os desvios e incertezas do seu passado e agora procura reestruturá-lo. Sérgio enfrenta no momento da escrita a madureza, tem necessidade de definir para o futuro e para sempre o seu caráter, mostrar-se enfim forte — e o passado o impede, vai-lhe desmentindo no instante de qualquer ato que pratica, enquanto as apreensões quanto ao futuro se erigem como barreira intransponível. Um e outro fraquezas: um entristece e afrouxa, o outro, transige, deixando campo aberto para a indecisão. Araripe Junior, seu contemporâneo, via sempre Raul Pompeia, leitor assíduo e atento dos moralistas latinos, “preocupado com a correção que a linha da vida tivera outrora”¹⁸. Sérgio que “nutria talvez no íntimo o ambicioso interesse de um dia reformar os homens com o [seu] exemplo pontificial de virtudes” (p. 70), e que tinha chegado à “desejada personificação moral de pequeno homem”, acreditando ainda que tinha descoberto o “caráter que mant[eria] depois de tão várias oscilações” (p. 103) — depois disso tudo ainda passa pela experiência sentimental com Bento e Egbert. Era, na certa, difícil para ele encontrar a linha
reta de conduta (sobretudo se se ativesse demais à metáfora “linha reta”) que sonha para si e para os outros, principalmente carregando nas costas, como o carregava, o peso do seu comportamento no Ateneu. Essa busca de retidão moral chega a ser sisifiana no romance. Somente vendo-se livre do passado, deixando que rolasse montanha abaixo, enterrando-o, poderia chegar ao topo. Um Sísifo sem o rochedo nas costas... — seria possível? Dom Casmurro reconstrói no Engenho Novo sua casa de Matacavalos. Sérgio incendeia o Ateneu. Compreender Machado e Pompeia seria compreender o jogo dos binóculos. De um lado, aproxima a paisagem; de outro a distância e a reduz ao infinitesimal. Porém ambos estão preocupados em
buscar e dar significado ao presente. Um, tentando erguê-lo sem a interferência do passado; o outro, exigindo-o mesmo como alicerce. O importante a notar, no entanto, é que a distância assinalada entre narrador e personagem vai situar-se em dois níveis na obra de Pompeia: o temporal e o espacial. Daí a ambiguidade (temos as nossas dúvidas de que tenha sido proposital, embora não o aceitemos de modo algum como “erro técnico”) do emprego do eu como pessoa de narração no Ateneu. Pouco a pouco, passadas as primeiras páginas, o livro deixa de ser de memórias, introspectivo, para se apresentar tecnicamente como um agressivo romance em que o narrador se esquece de si para analisar imaginariamente os sentimentos e as emoções do outro. João Pacheco, em capítulo sobre o Realismo na literatura brasileira, chama a atenção para o olhar penetrante e divino de Sérgio:
O narrador é onisciente, conhece o direito e o avesso dos personagens e não os evoca conforme lhe pareceram no momento em que as coisas se passaram, mas segundo a clarividência de uma retrospecção que desnuda todos os escaninhos. Não tem apenas a percepção dos gestos externos de Aristarco; entra-lhe também os sentimentos¹ .
Sintomaticamente, o eu narrador, depois de se livrar dos compromissos com a concepção juvenil, convalescente e ingênua do tempo, torna-se um agressivo eu
onisciente, porque Sérgio tem também interesse em mostrar os outros sob o refletor que melhor lhe convém e agrada no presente. Em outras palavras, tem de defender a si mesmo, isentar-se da ideia de que o mal na sua vivência seja uma culpa única e exclusiva sua. O mal consciente e lúcido o levaria ao remorso e à autopunição, ao abutre da sua consciência, e impossibilitaria a construção de uma vida reta no presente. Um bom exemplo de fuga à responsabilidade está no episódio dos cacos de vidro. Reparem só em algumas frases-chaves: “Aceitara o convite com uma facilidade que ainda hoje não compreendo”. Sérgio seguia Franco “como sonhando”. E finalmente é Franco que o isenta da participação no crime, reduzindo-o a apenas testemunha, quando lhe diz: “Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu me vingo!” (p. 87–88). Também, para estabelecer o seu equilíbrio interno Sérgio força, como já bem assinalaram vários críticos, a caricatura, criando traços mefistofélicos no perfil das outras personagens, sobretudo no de Aristarco, desenhando por oposição uma visível áurea de inocente vítima em torno da sua figura. Qualidade de caricaturista de que não estava isento Raul Pompeia, como demonstram os seus magníficos trabalhos para O Boêmio. Por outro lado, Sérgio-narrador não se incomoda ao receber punições enquanto Sérgio-personagem descreve-as com precisão de detalhes. É agredido fisicamente pelos seus colegas (“Eu tinha as pernas roxas dos golpes [de Sanches]; as canelas me incharam” p. 45), e mesmo se entrega a autoflagelação, ao cilício místico (“Levava no bolso um punhado de pedrinhas, com que formava no soalho um genuflexório despertador” p. 59), porque assim pode concluir e se sentir: “Eu imergia forte das privações” (p. 95). Interessado é que também está, no plano do narrador, em se aproximar da atitude final do companheiro Franco, que espera deixar para o Outro o remorso, embora póstumo, do seu sofrer: “Eram todos culpados; havia de adoecer, havia de adoecer gravemente para que tivessem remorsos, eles mesmos, o Silvino, Aristarco; todos os seus algozes!” (p. 234). De noite Franco morria. Levando-se em conta a concepção já assinalada que Sérgio-narrador tem do tempo, não deixando que Sérgio-personagem chegue até o presente, considerando-o como morto e enterrado no mausoléu do passado, o paralelo acima tem a sua razão de ser, e notamos que não há diferença substancial entre o seu raciocínio e o que passa pela cabeça de Franco moribundo: “Raciocinava como as vítimas da antiga escola, que se deixavam morrer fiadas
no espectro” (p. 235). O Ateneu não é, pois, uma crônica de saudades no sentido mais imediato e romântico do termo, mas a busca de um milagre. Sérgio-narrador tentando ressuscitar Sérgio, fazendo-o personagem, para que de novo entre os vivos seja passageiramente o espectro shakespeariano a acusar os seus carrascos, isentando-os de todo e qualquer compromisso com o mal. Suas ações não foram ditadas pelo seu discernimento, mas vêm tolhidas e explicadas pela auréola das circunstâncias e do outro. A vingança consumada, Sérgio-personagem poderia descansar em paz, e deixaria em paz o narrador no presente, pronto para enfrentar livre e desimpedido o futuro. A escrita do Ateneu é vingativa, assassina, e por isso não deixa de encontrar seu reflexo nas atividades de Mr. Arkadin, personagem de Orson Welles em filme de idêntico título, que impossibilitado de apagar o passado, vai pouco a pouco matando as testemunhas, únicas que poderiam só pela presença e só pela possível narrativa incriminá-lo. Esse traço vingativo, já assinalado muito bem por Mário de Andrade, embora com outra intenção² , é uma constante do temperamento de Sérgio, mesmo se algumas vezes o tente suavizar. Alguns exemplos:
— a briga com Barbalho (p. 44); — “jurei vingança ao Sanches” (p. 65); — vingança a dois com Franco (p. 86-88); — o diálogo que trava com Aristarco: “— Sérgio, ousaste tocar-me! — Fui primeiro tocado, repliquei fortemente.” (p. 191); — “com o sangue-frio das boas vinganças” se investe contra Rômulo (p. 226); — a história de vingança que tanto o atrai, envolvendo Ângela e os seus dois amantes.
Tendo sido tocado primeiro, podia puxar os bigodes de Aristarco. Tendo sido
atacado pelo mal, podia revidar com o mal. Salvam-se as aparências, mas no fundo ainda refulge o estigma do passado, pois a história está sendo evidentemente mal contada. Édipo se cega como autopunição, se libertando ainda das informações materiais que o olhar traz ao contemplar objetos e pessoas. Sérgio-narrador busca esta cegueira desesperadamente, indo ao cúmulo de, não querendo e não podendo violentar os seus sentidos, porque deseja viver, continuar a viver normalmente e apenas violentar o comportamento do outro, violentar a história que conta, pôr fogo no Ateneu, punindo, destruindo o objeto e não o sujeito. Esta, na nossa opinião e raciocínio, seria a interpretação para o “fim brusco de mau romance” (p. 266) com que justifica estruturalmente a catástrofe. Sodoma e Gomorra se queimam, agora era preciso evitar de toda maneira o olhar condescendente e curioso que traria a morte, o corpo se modelando em sal e inércia. O Ateneu comporta, pois, em si uma solução que não existe como tal na realidade. (Pouco importa se o colégio Abílio ainda exista ali na rua Ipiranga, no número 70). Naquela, um acontecimento é sempre um ponto de partida, um trampolim para novos feitos, novas aventuras. No romance, o incêndio fecha a intriga, coroa a ação; faz a soma das aventuras passadas e tira o nove vezes fora. A soma está exata. Assim sendo, a catástrofe reforça e justifica esta compreensão primária, mas útil em termos de sobrevivência, indispensável mesmo, da não interferência do passado no presente. Passado, presente e futuro são oferecidos cada um como um compartimento estanque, pois o tempo e a sua foice apenas deixam atrás deles o “funeral para sempre das horas”.
Estátua proteiforme Se não nos enganamos, a crítica até hoje tem visto com bons olhos, e até justificado, o contínuo puxão nos bigodes de Aristarco que é O Ateneu, lembrando-nos por certo a reação da plateia infantil diante da desforra final do mocinho que tinha começado o filme perdendo. Essa crítica segue cegamente a própria opinião do Sérgio-narrador, que desde as primeiras páginas exacerba o tom caricatural e grotesco nos outros, mostrando-nos um Gulliver despótico entre liliputianos ou, para ser mais preciso, um Golias (cf. p. 10) atacando indefesos Davis, ou ainda um Júpiter que tivesse mandado Mercúrio à Terra em busca de todos os raios disparados e que, de posse de todos, os soltasse de novo
em um só trovão (cf. p. 92). Se se tomar aliás como verdades axiomáticas as informações que Sérgio nos transmite, outra não podia ser a atitude da boa alma crítica, disposta a corrigir no papel as injustiças na vida e na criação, erigidas contra Pompeia e Sérgio, respectivamente. Nesse sentido, o ensaio crítico que fala de Sérgio não destoa dos necrológios que falam do suicídio de Pompeia, ambos tentando recuperar post mortem a sensibilidade ultrajada de um temperamento excepcional, como se vida e livro fossem ainda hoje o espectro a suscitar remorsos nos contemporâneos e nos leitores. E se assim como Sérgio evitou os bons sentimentos para escrever a sua prosa elegante, evitássemo-los também para compreendê-la criticamente. Comecemos por Aristarco e, em seguida, pulemos para o seu discípulo. A acreditar pela reincidência do tema no desenrolar da intriga do Ateneu, Aristarco sofre de uma doença bastante moderna (que nem doença mais é), conhecida sob o nome de temperamento camaleônico ou proteico — a escolha dependendo do leitor, caso queira catalogá-lo no reino animal ou mitológico²¹. Logo no início o contraste nos é mostrado no vestuário: a grande ténue para a festa do encerramento; a roupa esporte, o chapéu-do-chile, para a festa da ginástica, mostrando que o diretor sabia que para a mente sã o negro cai melhor e para o corpo são o branco vai às maravilhas. Mas
não só na troca de roupas, de peles, se estampa a versatilidade de Aristarco. Gestos e comportamento também o traem: na primeira cerimônia, “sentava-se, elevado em seu orgulho como um trono” (p. 11). E na segunda:
[...] viam-no ao mesmo tempo a festejar os príncipes com o risinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico [...]; viam-no bradando ao professor de ginástica, a gesticular com o chapéu seguro pela copa; viam-no formidável, com o perfil leonino rugir sobre um discípulo que fugira aos trabalhos, sobre outro que tinha limo nos joelhos, de haver lutado em lugar úmido, gastando tal veemência no ralho, que chegava a ser carinhoso (p. 18).
E é Sérgio que conclui: “Conheci-o solene na primeira festa, jovial na segunda;
conheci-o mais tarde em mil situações, de mil modos” (grifo nosso). Insiste ainda. Quando da visita que faz seu pai ao gabinete do diretor, nos mostra “a figura paternal do educador” entregue ao “livro de escrituração”, acrescentando que “o especulador e o levita ficavam-lhe dentro em camaradagem íntima, bras dessus, bras dessous”. E as fórmulas com que Sérgio tacha Aristarco em seguida não são menos convincentes: “vaivém de atitudes”, “feição dupla da mesma individualidade”, “duas almas inconhas num só corpo” (p. 28-29). Antes, cronologicamente, no momento em que entravam no gabinete do diretor, Sérgio podia vislumbrar no “semblante de Aristarco uma pontinha de aborrecimento”, que logo é recoberta, cedendo lugar a “uma explosão de contentamento” (p. 29). Bem mais adiante, já no capítulo IV, o vemos primeiro sob a forma de um Júpiter vingativo, “aniquilando a natureza sob a bombarda onipotente” dos seus raios, para em seguida sermos informados de que o mesmo “Júpiter guardava para a oportunidade a carícia do edredom, o gesto flexuoso do soberano cisne”, expandindo-se em “rompimento de amor paterno” (p. 82). Seu comportamento cambiante não vai mudar no segundo ano, apesar de menor atenção ser-lhe prestada, pois durante os escândalos Cândida e goiabada, Sérgio podia anotar: “À mesma porta em que aparecera formidável de manhã, surgiunos transformado, manso, liso como a própria cordura e lealdade; altivo, contudo, quanto comportava a submissão” (p. 197). Sérgio não podia perdoar a Aristarco por essas metamorfoses constantes de caráter, de atitude, as mobilidades interna e externa que o fazem saltar de galho em galho para sempre se apresentar da maneira mais convincente e conveniente, adaptando-se com a agilidade de ator ao meio ambiente, às novas situações: “em mil situações, de mil modos”. Vive ele a vida como se estivesse atuando em um contínuo espetáculo teatral, vivendo a realidade descontínua da personae e não buscando nunca a “linha reta” de comportamento íntimo; fala e gestos humanos ditados e comandados por imposições alheias, por uma situação presente, já que não são produtos e consequência de um sentir sincero, mas de uma adaptação à dada força superior, ou à circunstância. Graças a isso, Aristarco, perante a sociedade que o cerca, tinha conseguido o sucesso através das negações constantes das emoções mais íntimas, como o Sanches, aquele Sanches, um dia conseguira ser um grave engenheiro. Ambos conseguiam e conseguiram se libertar, respectivamente, do eu interior e do passado, criando uma imagem mais para os outros do que para eles mesmos. A imagem de si que ambos apresentam à sociedade, como cidadãos, é esculpida sob medida para o olhar alheio e a situação que enfrentam.
Nesse sentido, estaria sobretudo Aristarco próximo do brasileiro típico descrito por Sérgio Buarque de Holanda. Cansado de si, passa a “viver nos outros”, salvando por um lado a sua vida no campo individual e por outro destruindo a sua possível participação negativa dentro do grupo social a que pertence. Acrescenta Sérgio Buarque: “A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a como peça consciente, no edifício moral”. Essa predominância do individual sobre o social, mas com vitória final do social, nesta terra onde todos são barões, para usar uma outra expressão do citado historiador, dá origem a exagerado culto da personalidade, receio de apenas ser, que Sérgio vai materializar de maneira definitiva e ambígua quando empresta a Aristarco a “obsessão da própria estátua” (p. 10), ideal que rói por contradição as entranhas do nosso proteiforme diretor. E por uma dessas prolongações geniais dentro do romance, a obsessão chega a ser concretizada nas páginas derradeiras do livro, quando os alunos, através de uma subscrição, resolvem oferecer a Aristarco o seu próprio busto. Raul Pompeia, em um rasgo de sutileza psicológica, deixa que o professor Venâncio, antes de descerrar a capa verde que ocultava o busto, o esculpa com palavras, objetivando para Aristarco a sua própria transformação em estátua. Escutando as palavras do mestre, apagada ainda dos olhos a imagem duplicada, portanto apenas presente o seu corpo, é o próprio Aristarco que se crê se transformar em estátua²², destruindo a descontinuidade terrível que existe entre o individual e o social, entre o ser humano e a estátua, concretizando a perda final do íntimo em favor do coletivo, corpo inorgânico, rochedo inerte, bloco metálico. Ele sentia metalizar-se a carne à medida que o Venâncio falava. Compreendia inversamente o prazer de transmutação da matéria bruta que a alma artística penetra e anima: congelava-lhe os membros numa frialdade de ferro; à epiderme, nas mãos, na face, via, adivinhava, reflexos desconhecidos de polimento. Consolidavam-se as dobras das roupas em modelagem resistente e fixa. Sentiase estranhamente maciço por dentro, como se houvera bebido gesso. Parava-lhe o sangue nas artérias comprimidas. Perdia a sensação da roupa; emperdenia-se, mineralizava-lhe todo. Não era um ser humano: era um corpo inorgânico, rochedo inerte, bloco metálico, escória de fundição, forma de bronze, vivendo a vida exterior das esculturas, sem consciência, sem individualidade, morto sobre a cadeira, oh, glória, mas feito estátua (p. 251).
O pior, no entanto, está por vir: a escultura exposta ao olhar e a curiosidade, Aristarco compreende que os elogios eram para o Outro, para a imagem esculpida e não para seu corpo embalsamado e em forma de bronze. Se sente em pânico:
Nada para ele das belas apóstrofes! Teve ciúmes. O gozo da metamorfose fora uma alucinação. O aclamado, o endeusado era o busto: ele continuava a ser o pobre Aristarco, mortal, de carne e osso (p. 251).
Por um hábil processo de punição, que nos lembra o usado por Dante no seu Inferno, conhecido como contrapaso (exemplificado no próprio Ateneu pela citação do episódio de Paula e Francesca), Sérgio transforma o ser camaleônico na almejada versão eterna, deixando-o viver “a vida exterior das esculturas, sem consciência, sem individualidade”, fazendo, no entanto, com que a sua obsessão se personalize em uma verdadeira estátua, deixando o modelo humano às voltas com a contemplação daquele “pedaço de Aristarco, que nem ao menos era gente!” (p. 251). E os gestos de ciúme e de ódio do diretor, ao arrancar a coroa de louros do busto, podem ser bisonhamente interpretados pela assistência, confrontando as duas imagens, como “magnanimidade da modéstia” (p. 251). A verdadeira glória, para Pompeia, não podia contar com a descontinuidade, tinha de viver a realidade da “linha reta”. Teria de ser alcançada sem detrimento da consciência e da individualidade. O coletivo seria uma expansão natural do individual, de tal forma que a estátua (entrada para a História) nada mais fosse que o corpo humano se entregando, na morte, à rigidez do mármore, seu íntimo transparecendo no alvo e no polido da epiderme mineralizada. Visto sob essa perspectiva, e apenas sob ela, amplia-se o significado do confronto entre Sérgio e Aristarco, do seu choque dentro das paredes caiadas de O Ateneu. No diretor, parece que Pompeia quis-nos ainda dar a figura representativa, o protótipo do homem brasileiro, dirigente, dentro da sociedade que deve governar. Do homem político. Essa análise metafórica e ampla se patenteia ao se aproximar o retrato cambiante de Aristarco a uma observação que faz Sérgio ao falar dos objetos guardados pelos companheiros nos seus armários: “[...] outros [colegas], os políticos futuros, criavam camaleões e lagartixas,
declarando-se-lhes precoce a propensão pelo viver de rastos e pela cambiante das peles” (p. 76). Em Sérgio aparece-nos o inadaptado, o revoltado que recusa a aceitar como válidas as normas de comportamento ditadas pelos seus pares, pelos seus contemporâneos. Inadaptado — frisemos — por querer seguir, sem poder, uma retidão que apenas existe na teoria e que mesmo o seu ideal, o vir probus, nunca tinha seguido. Sob esse ponto de vista, Sérgio combatia o Ateneu, mas não o colégio em si; ele combatia Aristarco, mas não o diretor em si; os combatia na medida em que ambos refletiam a sociedade brasileira da época e lhe revelavam lentamente a sua inadaptação e fracasso. A marca da sua diferença também.
Tropismos Fundamentalmente o grande desnorteado do romance é o próprio Sérgio, que desde que transpôs as portas do Ateneu oscilou entre os dois polos opostos, simbolizados, respectivamente, pela advertência de Aristarco contra seus cabelos compridos e pelos cumprimentos de dona Ema pela sua beleza física. “É preciso que chegue um dia à desilusão do carinho doméstico” (p. 231 — afirma o Dr. Cláudio na sua preleção). É aliás com esse fim que Sérgio entra para o Ateneu, como deixou bem claro nas palavras que seu pai lhe diz a porta do educandário. Em lugar, no entanto, de sofrer de imediato a “têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso” (p. 6), Sérgio vai adiando, adiando, sem que nunca atinja o definitivo caráter que a certo momento acredita que tenha atingido, “depois de tão várias oscilações” (p. 103). Devemos, porém, dizer que, a esse momento, ele se mostrava benigno consigo mesmo: a compreensão do norte de sua vida, a ser expressa de novo no final do romance pelo Dr. Cláudio, é, quando vista por Sérgio, ampla e generosa: “Porque parece que às fisionomias do caráter chegamos por tentativas, semelhante a um estatuário que amoldasse a carne no próprio rosto, segundo a plástica de um ideal” (p. 103). Em lugar de chegar à “desilusão do carinho doméstico”, o institui como norma de conduta dentro do Ateneu, oscilando entre os fortes, imagem paterna, e entre os seres femininos, imagem materna. Nesses tropismos, causados pela sua insegurança, Sérgio se assemelha a um girassol em sucessivas e diferentes fases, muito mais próximo de Aristarco do que gostaria de ser.
Desde as primeiras páginas do livro, ao se ver desligado do conforto e aconchego do lar, da vida protegida, Sérgio-personagem procura opor e suplantar o sentimento de melancolia por uma atitude viril, de entusiasmo, de verdadeira entrega a um ideal, que lhe traria finalmente a definição da sua individualidade. Enquanto a melancolia gradativamente perde terreno (os brinquedos da infância já são vistos como antigos), o entusiasmo se agiganta nos primeiros contatos com o Ateneu em festas (a do encerramento e a da ginástica) e mesmo com os mínimos detalhes da decoração interna, como aqueles dois quadros de altorelevo que mostram uma alegoria das artes e estudo e das indústrias humanas, possibilitando ainda que a imaginação da criança fertilize o futuro ambicionado. (Durante o viajar do jovem Sérgio por essa carte du tendre, por esse mapa da ternura, Sérgio-narrador procura nela intrometer sem cessar seu espírito caústico e irônico, seja através do retrato que esboça de Aristarco, seja ainda através de críticas mais ou menos veladas ao Sérgio-personagem. Mas dissociemos os dois de novo; já tendo analisado o narrador, ocupemo-nos agora do adolescente.) Depois de ter passado pelo crivo crítico de Aristarco que lhe pede que vá ao cabeleireiro e ter sido salvo do ridículo pelo carinho maternal e delicadeza de aparição e de frases de dona Ema, grande deve ter sido a satisfação de Sérgio quando escuta da boca do diretor estas palavras mágicas: “O meu colégio é apenas maior que o lar doméstico” (p. 24). Imediatamente o equilíbrio é restabelecido; apaga-se a ideia de separação e a confiança em si e no futuro se faz plena. Aliás a própria estrutura inicial do capítulo obedece ao movimento de vaivém, como se poderia demonstrar através de um estudo da oposição entre o perfeito (ou o imperfeito) e o mais-que-perfeito. Por duas vezes em frases curtas Sérgio tenta trazer a narração até a sua entrada para o Ateneu (perfeito, ou imperfeito), mas a corta bruscamente, relegando-a finalmente para o capítulo seguinte. 1. “Eu tinha onze anos. Frequentara como externo [...]” (p. 6). 2. Um dia meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me [...] Duas vezes fora visitar o Ateneu [...] (p. 8). Os primeiros contatos diretos com o Ateneu de todos os dias, os alunos com
caras medonhas, defeitos e tiques, as informações que lhe empresta Rebelo sobre o ambiente estudantil, as constantes chacotas de Barbalho, que terminam em briga, trazem-lhe pavorosamente a “realidade crua”, o avesso da “gloriosa parada”, o “prosaísmo elementar da faxina” (p. 53), culminando tudo com uma grande decepção diante da vida no educandário, que vai se expressar sob a forma de terror, ideia fixa de perseguição. Como coloca o próprio narrador: “Com esta crise de sentimento casava-se o receio que me infundia o microcosmo do Ateneu” (p. 53). Acuado, decepcionado com o ambiente, pôde concluir páginas atrás que também grande era o desapontamento que agora trazia em si. Imaginando alto o obstáculo a transpor, quase inatingível, desce-lhe o desânimo quando descobre que não existe obstáculo, e que, mesmo que houvesse, não valia a pena transpô-lo. “Fiquei a considerar a diferença daquela situação [o desmaio em sala de aula] para o ideal da cavalaria com que sonhara assombrar o Ateneu” (p. 37). O choque entre o sonho, o ideal e a realidade, traduzido sob a forma de decepção do ambiente, dos outros e dele mesmo, dá origem a um período de mormaço sentimental (“Depois que sacudi fora a tranca dos ideais ingênuos, sentia-me vazio de ânimo” p. 52), que por outro lado vai coincidir com o aparecimento e destaque de Sanches. Este, pouco a pouco vai possibilitando a harmonia sonhada, pois não só preenche às maravilhas a função de protetor (“Eu desejei um protetor, alguém que me valesse, naquele meio hostil e desconhecido” p. 53), lugar que teria sido ocupado idealmente por Aristarco, como também lhe proporciona, através do incentivo ao estudo, a impressão de que na verdade está conquistando o Ateneu. O apego de Sanches por Sérgio não é semelhante ao lobo atacando o indefeso cordeiro — comparação que a boa alma crítica tem divulgado. No encontro dos dois vemos mais um papel pega-mosca. Sérgio, que atrai o guloso mosquito, Sanches, que o rodeia, aprisionando-o depois “[...] esta vaidade feminina de dominar pela fraqueza” (p. 200). Os próprios passos que Sérgio toma ao entrar na piscina (“amedrontou-me a desordem movimentada”, “procurei o recanto dos menores”, p. 49) já eram uma isca solta ao acaso e talvez inconsciente, à procura do protetor de que já sentia falta. O golpe de Sanches, procurando afogá-lo as escondidas e depois salvando-o às claras, já demonstra como a mente do vigilante, que era de uma “ferocidade adorável” (p. 51), estava realmente atraída pelo engodo. Mais seduzido se sente Sanches quando vai adivinhando no temperamento do novo amigo “certa necessidade de amparo, volúpia de fraqueza em rigor imprópria ao caráter masculino” (p. 53). Se entrega, então, sub-repticiamente
como preceptor, auxiliando Sérgio na geografia, na gramática, na história, na história sagrada... Natural, pois, que um dia, ao escurecer, e estando os dois a sós, Sanches proponha e se revele. Com a recusa de Sérgio, Sanches se torna frio, e aqui de novo Sérgio se trai no seu papel de sedutor: “Tive medo de perdêlo” (p. 62). É ainda com bons modos que aceita a nova carga educacional de Sanches, indo este agora, em uma tentativa de encontrar menor frustração no final, “até a cloaca máxima dos termos chulos” (p. 63). Sérgio não poderia mais pretender inocência. Na segunda tentativa, Sanches precipita o desenlace e, recusado de novo, desperta em Sérgio uma confessada atitude de vingança futura e abandono do posto de bom estudante. Mas neste ínterim já está voltado de novo para outro forte: Aristarco. E o que o atrai? “o que sobretudo me maravilhava era a coragem com que Aristarco fisgava os astros, quando todos sabem que apontar estrelas faz criar verrugas” (p. 66). Desiludido, Sérgio inicia longa crise mística, quando consegue aparentemente manter o equilíbrio nas suas buscas, através de uma combinação de opostos que se encontra na fórmula: “triste e feliz” (p. 79). Aceitando o duplo castigo, o de Aristarco, no Livro das Notas, e o de Sanches, refugia-se em contraponto à aventura amorosa numa secreta devoção a Santa Rosália, lembrança meiga da priminha que sempre lhe fora “carinhosa, maternal” (p. 76). Castigado por uma culpa que lucidamente reconhece não ser sua, tentando emular Ribas, mais figura de anjo do que adolescente, o adolescente já não enxerga mais no Ateneu o microcosmo viciado do educandário, mas um monastério:
A neblina da melancolia [...] pesava-me aos ombros como a loba de um seminarista, como o voto de um frade; eu passeava na circunscrição do recreio como num claustro, olhando as paredes, brancas como túmulos caiados [...]. O céu [...] caía agora sobre mim como um solidéu de bronze (p. 79).
Para viver de acordo com o ambiente imaginado, purgatório terreno, Sérgio chega a autoflagelação, ajoelhando-se sobre pedrinhas pontiagudas, aproximando-se, portanto, pela posição, de Franco, e ainda pelas más notas que passa a receber. Os dois, irmanados, projetam a vingança dos cacos na piscina e, por uma dupla coincidência, conseguem iludir a direção, desculpando a fuga com uma colheita de sapotis. Castigado com o pesadelo noturno, castigado
ainda, de pé, no meio do refeitório, Sérgio, por comparação com Franco, começa a perceber a diferença capital entre humildade e humilhação. Embora não usando o segundo vocábulo, usa o primeiro acompanhado de um adjetivo, aproximandose do conceito pelo menos: “a humildade vencida era Franco” (p. 94). Como André Gide, ao analisar Dostoiévski, Sérgio descobre que a humildade abre as portas do Paraíso e a humilhação as do Inferno. Resolve, pois, compreender friamente o que devia ter enfrentado antes: o problema da sua independência, que o atinge de repente, como jocosamente anota Sérgio-narrador, como o relâmpago de Damasco às avessas. Alusão sem dúvida (às avessas) à conversão de São Paulo. Durante este período de descrença, de transição, era esperado que Sérgio repudiasse os dois extremos, Ribas e Franco, e se ligasse de amizade a Barreto, que não só vinha de um colégio de padres, como também era “um personagem duplo, que representava, nas horas de recreio, a folgança em pessoa e tinha momentos de meditação trevosa, com esgares de terror e falava da morte [... ]” (p. 97) . No entanto, a ideia de independência vai ganhando mais força com as saídas de Sérgio, ocasião em que mantém contato com o mundo exterior e consegue, através do pai, um clima especial de privilégio no Ateneu. Fez-se anarquista ao estabelecer o conflito entre a “independência e a autoridade” (p. 102). É nesse momento que acredita ter chegado a “desejada personificação moral de pequeno homem”, ao caráter que manteria “depois de tão várias oscilações” (p. 103). Seu interesse erótico é também canalizado para uma verdadeira mulher, Ângela, a canarina, debatendo-se a sua sensibilidade em uma curiosidade mórbida pela realidade crua, o desejo de ver um cadáver, um de verdade. Na intriga que envolve Ângela e seus dois amantes, sobressai-se o herói Bento Alves. Consideravam-no principalmente pela nomeada de hercúleo. “Os fortes constituem realmente uma fidalguia de privilégios no internato” (p. 115). No seu tropismo, Sérgio novamente atira antenas e olhos para cativar o novo herói. “Para me fitar esperava que eu tirasse dele os meus olhos”. Sérgio parece-se, na sua maneira de atacar, ao porco-espinho que se encoruja primeiro, amedrontado, cativando, para depois lançar os furiosos espinhos. A presa foi atraída mais facilmente porque dessa vez já não tinha vergonha nem necessidade de esconder os sentimentos de sedutor. “Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo” (p. 126).
Já não pode fugir como antes ao olhar dos outros, porque se revelou e se revelava. Perseguições e intrigas o envolvem, esquecidas por um instante devido ao alvoroço do fim do ano. “Durante as férias [Bento] fora ver-me em casa, travando relações com a minha família”. E por um desses equívocos comuns nos meios burgueses, Sérgio é recomendado ao amigo para evitar o “constante perigo da camaradagem perniciosa” (p. 189). O escândalo de Cândida precipita novo e violento desenlace, com a briga entre Sérgio e Bento. A essa se segue uma violenta altercação com Aristarco. Dois coelhos de uma só cajadada! Sérgio se liberta de dois protetores, torna-se um forte, e sai à procura de outra mosca. Egbert: “Achava-me forte para querer bem e mostrar. Egbert merecia-me ternura de irmão mais velho”. Deixa de lado a “vaidade feminina de dominar pela fraqueza”, e em lugar de ser atraído pela força, sente-se fascinado pela beleza do novo companheiro. O tom do livro muda. Não viria a sua satisfação do fato de que realmente representa o papel que queria assumir desde o início? O paternalismo é evidente; os cuidados exagerados são evidentes; o contraponto literário, baseado apenas em literatura francesa, sobretudo em Paulo e Virgínia, encerra tudo num envelope cor-de-rosa. Egbert lhe serve de trampolim. É nesse momento que realiza finalmente o avanço sobre Ema (e não sobre sua filha, como seria de esperar, ainda que fosse só para se vingar de Rômulo). O círculo sentimental do Ateneu pouco a pouco se fecha, a linha voltando ao ponto primitivo, apenas com uma ligeira diferença: das mãos paternas Sérgio passa às mãos maternas. Ema lhe “prendia a mão nas delas, maternalmente, suavemente [...], como se [ele] apenas existisse naquela mão retida” (p. 209). O amigo é deixado de lado: “olhava agora para Egbert como para uma recordação e para o dia de ontem”. E de regresso ao Ateneu, depois do jantar na casa do diretor, pôde sentir-se “grande. Crescia-[Ihe] o peito indefinidamente como se estivesse a fazer homem por dilatação” (p. 210). Ema, durante as férias e a soledade do Ateneu, submerge lentamente, ocupando inteira os devaneios e a atenção de Sérgio. E uma frase de Aristarco, solta no início do romance (“Minha senhora é a enfermeira” — p. 24), dita no momento em que discorria sobre o caráter caseiro do colégio, justifica a doença de Sérgio. E entramos no crescendo da proximidade maior: a união entre filho e mãe vai sendo restabelecida pouco a pouco, artificialmente, como se pode ver na montagem de frases:
Às vezes por gracejo carinhoso levou-me ela mesmo o alimento à boca, a colherinha de sagu, que primeiro provava com um adorável amuo de beijo. Eu me sentia pequeno deliciosamente naquele círculo de conchego como em um ninho. Cantava às vezes para adormecer-me... inclinei a cabeça para o ombro de Ema, como um filho. Achava-me pequenino, pequenino. Sentava-se à cadeira. Tomava-me no colo, acalentava-me, agitava-me contra o seio como um recémnascido, inundando-me de irradiações quentes de maternidade, de amor. Desprendia os cabelos e com um ligeiro movimento de espáduas fazia cair sobre mim uma tenda escura. De cima, sobre as faces, chegava-me o bafejo tépido da respiração. Eu via, no fundo da tenda, incerto como em sonhos, a fulguração sideral de dois olhos (p. 260–266).
No colo, readquirindo a sua primitiva proporção e posição, encolhido como um recém-nascido, o cabelo de Ema descido em forma de tenda, protegendo-o pois do exterior, apenas os dois olhos, também protetores, brilhando livres, isentandoos de qualquer sofrimento no contato com o mundo, o ar que respira sendo também suprido por Ema, Sérgio retorna ao princípio, ao “conchego placentário da dieta caseira”. Encerrado o ciclo das buscas, encerra-se o Ateneu, negando a própria razão do livro, a busca da individualidade por parte de Sérgio. Contraditoriamente.
O Automedonte Existe dentro do Ateneu uma personagem bastante estranha, a quem Sérgio dedica grande simpatia e o único com quem comunga ideias. Personagem que se intromete aqui e ali na ação do livro, mas que nunca chega a fazer parte dela; personagem que não chega a ser apresentada ao leitor como tipicamente o faz o narrador, ou seja, primeiro por um retrato e em seguida colorindo-o ao colocar a personagem em ação. Sem exagero diríamos que é a única personagem sem rosto na galeria do Ateneu, já um privilégio, e talvez a única personagem que nunca faz nada, apenas fala, e é certamente a única personagem masculina, adulta, que mantém estreito contato com Sérgio e que nunca recebe deste uma crítica sequer. Trata-se do Dr. Cláudio, em que todos os críticos em voz unânime reconhecem o dedo e as ideias do próprio Pompeia.
Se nos for permitido, preferimos antes associá-la a Sérgio. Permitida a associação, percebe-se o óbvio regime de privilégio que recebe e se pode visualizá-lo então como uma terceira fase da vida de Sérgio. Em outras palavras, uma espécie desenvolvida, desabrochada e idealizada de Sérgio: Sérgio maduro, grave, lúcido, ponderado, racionalizando tudo e todos, liberto do passado, sem necessidade de o trair ou de trair os outros ou de se trair. Sérgio profissional, entregue a discussões objetivas e abstratas nos campos estético e ético, mesmo que nessas abstrações se possa sentir o impulso caótico que as motivou. Seria o verdadeiro e final fiel da balança que viria equilibrar e apaziguar as múltiplas contradições que apresentam os dois Sérgios. Visão futura, apresentada sob a forma de presente por causa da dissociação de nomes, o Dr. Cláudio é o que conseguiu domar e destruir as versões descritas como passado (personagem) e como presente (narrador), comparecendo sob a auréola de bom, sábio, generoso etc. Ao mesmo tempo, pelas suas palavras, o mesmo professor lança uma luz crítica definitiva sobre os diversos problemas suscitados pelo livro e por nós. A própria maneira como no-lo apresenta Sérgio é típica de um ícone que traz nas suas palavras o ar e a água para insuflar o fogo ou apagá-lo, figura de mediador, de pacificador, automedonte para Sérgio:
O Dr. Cláudio conduzia os trabalhos com verdadeira perícia de automedonte, esclarecia os imbróglios, forjava adjetivos de encômio que ia dando a cada um por sua vez e a todos os estimáveis consócios [do Grêmio literário Amor ao Saber], propunha algumas teses e achava graça em outras (p. 124).
Sua forma mais palpável no romance são três conferências transcritas ipsis litteris (e algumas outras de menor importância que o romancista apenas menciona sem transcrever): duas sobre arte e/ou literatura, a primeira uma crítica geral da literatura brasileira e a outra sobre “a arte em geral” (ambas no capítulo VI), e a terceira sobre a “questão do internato” (capítulo XI). Simetricamente colocadas. Só os tópicos que abordam já nos falam do interesse que têm para uma compreensão larga do romance. Aliás, Ledo Ivo, como vimos, as chamava de
“ilhas ensaísticas”, atirando sem dúvida a atenção do leitor para a sua posição dentro da estrutura do romance — ilha, e para o seu conteúdo dentro da trama — ensaio. As três conferências se completam de uma maneira harmoniosa nos dando criticamente a posição do autor frente a três situações bastante bem definidas: perante a literatura a que pertence, perante o romance como obra de arte e perante a vida passada, material que está a usar. Nesse sentido, tendo-se mais em conta o segundo aspecto, O Ateneu conserva uma modernidade surpreendente, pois é a única obra do século XIX, dentre as que conhecemos, que traz em si uma discussão da própria obra, sua justificação. Na atualidade da literatura brasileira, vista em imagens violentas e chocantes, simbólicas e às vezes herméticas, ilustrada pela putrefação e estagnação dos charcos e dos pântanos, onde os pássaros fogem dos miasmas e as árvores, receosas, se debruçam sobre si mesmas, o Dr. Cláudio sente falta de uma verdadeira obra de arte. “A arte significa a alegria do movimento, ou um grito de suprema dor nas sociedades que sofrem”. Esta, porém, era quase impossível no Brasil, pois aqui “a alegria é um cadáver”. Para acrescentar logo depois: “Ao menos se sofrêssemos [...]”. Por parte do Dr. Cláudio há essa compreensão maior da obra de arte, compreensão em dicotomia, em que a arte ou seria a alegria do movimento ou um grito de suprema dor. E para ambas as formas não estávamos preparados ou capacitados. A alegria sendo inexistente, havia apenas uma esperança, que a obra de arte brotasse de alguém que padecesse, pois é assim que surgem nas “sociedades que sofrem”. Como candidato a essa vaga é que Raul Pompeia se apresenta diante dos seus pares, com um romance que pretende ter a “tenacidade letal de uma vasca”. Qual é a origem para tanta tristeza e tanto sofrimento nessa sociedade que encontra sua réplica em uma paisagem fúnebre e doentia? A culpa não é a da falta de preparo dos autores, não vinha tampouco do caráter do brasileiro, ou mesmo das condições do clima tropical, pouco propício para as elucubrações mentais, mas era obra de um “grande empresário”. Esclarece o Dr. Cláudio: “A obra moralizadora de um reinado longo”, produto da “tirania mole de um tirano de sebo!” (p. 130-131). Palavras que nos recordam idêntica violência encontrada no Aluísio Azevedo de Filomena Borges ao se dirigir ao soberano e sua corte vivendo em Petrópolis. A última afirmação do Dr. Cláudio, como era de se esperar, levanta grandes divergências na plateia, principalmente por lá estarem o Dr. Zé Lobo e o senador Rubim. Deixemos de lado estas duas figuras e nos fixemos no Dr. Cláudio.
Pouco se tem salientado, a nosso ver, este caráter crítico do Segundo Reinado, possivelmente de partidarismo republicano, que pretende apresentar O Ateneu, ainda mais que o autor, vivendo durante tal período, se justifica e justifica os defeitos que porventura venha a ter seu romance por não poder brotar e vicejar numa sementeira adubada, mas apenas viver em pântano, em uma “prosperidade melancólica de salgueiros”, que como nos aclarou antes parecem “crescer, descendo” (p. 130). Assim explicada, algumas conjeturas poderiam ser feitas sobre a obra de Pompeia que, talvez, se não fossem as críticas e desmandos que recebera, tivesse seguido o caminho inaugurado pelas Jóias da Coroa, roman à clef, na qual se percebe sem dificuldade D. Pedro II (duque de Bragantina), às voltas com seu genro (conde d’Eu), na chácara de Santo Cristo (Quinta de São Cristóvão). Assim sendo, foi o nosso romancista encurralado contra a sua vontade, obrigado a se debruçar sobre si mesmo como os salgueiros de que fala e falávamos, impossibilitado que se sentia de fazer uma arte que transmitisse alegria. E Pompeia padecia do mal incurável de ter nascido em uma sociedade que sofria. A acreditar ainda nas palavras do Dr. Cláudio, teríamos de esperar do escritor esta mesma participação ranzinza e intransigente do homem político, que sempre estava às voltas com artigos violentos e charges cáusticas. E teríamos finalmente de falar do fracasso que foi seu projeto de escritor por nunca ter realizado seu ideal. Mas não: sofrendo como sofria, como tinha sofrido, a sua obra era a mais perfeita para o período, pois era um grito de suprema dor na sociedade que sofre... Portanto, a verdade do Ateneu realmente extrapola os limites do educandário e se apresenta metaforicamente (já o adiantávamos) como um retrato do Brasil durante o Segundo Reinado. Talvez na figura de Aristarco não se deve tanto reconhecer o barão de Macaúbas, mas o “grande empresário”, “o tirano de sebo”, e no processo de educação propagado pelo Ateneu, “a obra moralizadora de um reinado longo”. A compreensão da literatura brasileira como tal exposta vem a ser completada com os diversos quadros evolutivos de aspectos da civilização humana que o Dr. Cláudio traçará em seguida, opondo como sempre fortes e fracos, mostrando-nos uma vez mais a preocupação primária e fundamental de Pompeia, que em tudo vê um jogo de forças opostas e em desequilíbrio, ou à procura de equilíbrio²³. Na sua segunda conferência, o Dr. Cláudio fala sobre a supremacia nítida da Arte sobre todas as outras atividades humanas, bem como sobre as outras organizações do pensamento, seja a religião (“invenção das maiorias de fracos”), seja a moralidade (“organização simétrica da fraqueza comum”). A Arte, sendo
evolução natural do agradável realizado (sob a forma de amor, sendo a outra, a nutrição), “originária da propensão erótica fora do amor”, se apresentando, portanto, como “a educação do instinto sexual”, se revela como “cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem”, porque o pode ser, e por isso mesmo é a própria representação da “superioridade humana”, situando-se acima dos preceitos, da religião e da ciência. Esta evolução se casa com a evolução da humanidade, porque esta, hoje, sob “a bandeira negra do darwinismo espartano”, calca aos pés “o preconceito artístico da religião e da moralidade”²⁴. De cume em cume, já que no raciocínio de Pompeia o interesse reside no que é forte, é superior, nova necessidade de outro cume: no topo da Arte, que já é topo, está a eloquência, “a mais elevada das artes”, daí a “supremacia das artes literárias — eloquência escrita” (p. 134–144). Fica clara, pois, a escolha por parte de Sérgio da Arte (“originária da propensão erótica fora do amor”), culto espartano, contraponto necessário à fraqueza que mostra diante dos colegas, à insuficiência diante do código moral e religioso. O Ateneu é, pois, um edifício racional, erguido com o fim óbvio de inversão de valores dentro da sociedade brasileira, com o interesse pouco escondido de postular novos valores na sociedade a que pertence o autor. Por outro
lado, cada explicação do Dr. Cláudio vem reforçar o caráter fechado da obra, já salientado na sua filosofia, na sua estrutura e agora na sua criação. Onde, porém, se revela mais lúcido o pensamento do Dr. Cláudio é quando discute a questão do internato. Na análise que fizemos do comportamento de Sérgio-personagem e na crítica, salientada por nós, que lhe faz Sérgio-narrador, assaltou-nos e nos chocou a inconsciência que ambos demonstram quando praticam o mal, sobretudo em um romance que vive no espaço literário onde se cruza o eixo Charles Baudelaire-Gustave Flaubert²⁵. O primeiro pondo a culpa nos outros, se apresentando como vítima de um mecanismo triturador e macabro; o segundo, exagerando até o grotesco os algozes, e fazendo do primeiro um ser em constante penitência por faltas que não tinha cometido. Ambos procurando escapar-se como podiam da marca que os dariam diferentes para o resto da vida, incapacitados para o convívio normal na sociedade. O Dr. Cláudio os ataca veladamente, mas sem piedade.
De início, alargando o círculo estreito do Ateneu, fazendo-o tomar as proporções da sociedade em que também vive Sérgio-narrador.
Ensaiados no microcosmos do internato, não há mais surpresas no grande mundo lá fora, onde se vão sofrer todas as convivências, respirar todos os ambientes; onde a razão da maior força é a dialética geral, e nos envolvem as evoluções de tudo que rasteja e tudo que morde [...].
Fracassado no internato, fracassará na vida lá fora. Em seguida, o internato, segundo a imagem do mesmo professor, é como a peneira do garimpeiro a separar os de maior dos de menor valor. E naturalmente somos obrigados a colocar, pelo menos do ponto de vista do sucesso social, da adaptação, Sérgio entre os de menor valor. E mais abaixo se situará quando o Dr. Cláudio, prosseguindo, nos diz que “no fundo a direção do caráter é invariável”, e mais: “temos todos um norte necessário: cada um leva as costas o sobrescrito da sua fatalidade”. Nesta visão tacanha e impiedosa do sucesso na vida, como sempre apresentada em dicotomia, na qual a peneira do garimpeiro separa o ouro da ganga, não há forma de escape, não há forma de libertação possível, pois “os caracteres que ali triunfam trazem ao entrar o passaporte do sucesso”, e os que se perdem, “a marca da condenação” (p. 231–232). É esta marca que Sérgio tentou e tenta evitar desesperadamente, durante todo o desenrolar do Ateneu, chegando a iludir por momentos a si e ao leitor, e que finalmente é-lhe descoberta pelo Dr. Cláudio. Sanches, aquele Sanches, trazia o passaporte do sucesso, e com isso saia amnésico, livre e desimpedido do Ateneu, ocupando agora uma posição boa, honesta, decente, entre os seus pares. Sérgio, com a marca da fatalidade estampada no rosto, tinha de reconhecer, com o seu alter ego, que os “débeis sacrificam-se; não se prevalecem”. Para poder salvarse, como Sanches, para poder integrar-se normalmente na sociedade, zombando do olhar crítico alheio, não se sentindo dominar por ele, era-lhe mister maior maleabilidade de caráter. Uma única solução se lhe depara: a mentira, pois somente esta pode apagar momentaneamente o que se quer esconder. Mentir como meio de salvação. Mas não. “Para que a mentira prevaleça, é mister um sistema completo de mentiras harmônicas. Não mentir é simples” — acreditava seu pai e lhe aconselhava de Paris.
Sérgio aceitou o conselho paterno, mas o adaptou de maneira bizarra. Quis ser diferente, não o sendo. Quis, sem o poder, ir até o fundo da integridade, mentindo apenas para si e não para os outros, arquitetando um romance fantástico e cheio de contradições. Quis ser forte, sem o querer; invulnerável, deixando sem o saber o calcanhar de fora. Quis pertencer à melhor sociedade da época, à burguesia, guardando intactos os privilégios de artista. Quis ser aceito por ela como o seu mais íntegro representante, embora tivesse necessidade de confessar o passado escabroso. Iludiu-se a si, sabendo que se iludia. Pretendeu passar por inconsciente, sendo lúcido. Na época dos escritores malditos, quis o ser, não o sendo; passar por, sem se apegar. Não teria sido mais fácil que se conformasse com a sua condição? Admitir que Sísifo tem de carregar o rochedo, Prometeu trazer a águia, Édipo seguir a sina. Não teria sido mais íntegro dedicando seu livro a Sanches? Coragem não lhe faltava. Não teria sido mais honesto inscrever o terrível verso baudelaireano (autor que admirava): “— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!”² , em lugar de desculpar o assunto escabroso com as belezas do estilo? Talvez tivesse sido mais são, em simples termos de sobrevivência, que tivesse aprendido a lição segura que resolveram nos relembrar dois dos autores mais angustiados do nosso tempo, André Gide e Albert Camus, em duas obras capitais, Corydon e Le Mythe de Sysiphe (ambas por coincidência discutindo problemas básicos de Sérgio ou de Pompeia): “O importante, dizia o abade Galiani a Mme d’Épinay, não é curar, mas conviver com os seus males”²⁷. Talvez não. Uma coisa, porém, nos ensinou com a própria morte: é difícil ser inteiriço sendo friável. Por isso é que encontramos de trágica beleza uma anotação dele que, entre outras, talvez se tivesse perdido para sempre: “Os caracteres inteiriços são como as antigas caldeiras — não têm válvulas de segurança e, em caso de pressão desesperada: despedaçam-se”²⁸.
1 Todas as citações de foram retiradas de: POMPEIA, Raul. O Ateneu. 4. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, s/d. (Modernizamos o português).
2 PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1957, p. 104.
3 PEREIRA. Op. cit., p. 114.
4 ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Americ-Edit., 1943, p. 236.
5 PONTES, Eloy. A Vida inquieta de Raul Pompeia, Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p. 9.
6 Uma boa discussão do problema, sem, no entanto, chegar a conclusão pacífica, mas apenas a outra tomada de posição, se encontra no recente: IVO, Ledo. O Universo Poético de Raul Pompeia. Rio de Janeiro: São José, 1963, p. 20–25.
7 Cf. Mário de Andrade, “Raul Pompeia inconscientemente foi a última e derradeiramente legitima expressão do barroco entre nós” (ANDRADE. Op. cit., p. 235).
8 GIDE, A. Romans, récits et soties, œuvres lyriques. Paris: Gallimard, 1958, p. 495.
9 BARTHES, Roland. Le degré zéro de l’écriture. Paris: Seuil, 1953, p. 54.
10 Tanto é verdade que Gide, o autor, depois de publicada La Porte Etroite, poderá dizer que não gosta da escrita de Jérôme: o livro é “pâteux, médiocrement écrit”, já que nele predomina “la flasque prose”. Journal, Paris, Gallimard, 1950, p. 276.
11 Palavras que nos lembrariam, por oposição, outras de Baudelaire, entregandose sem receio ao público, neste prefácio para As Flores do Mal, que finalmente não chegou a ser publicado: “Ce n’est pas pour mes femmes, mes filles ou mes soeurs que ce livre a été écrit; non plus que pour les femmes, les filles ou les soeurs de mon voisin. Je laisse cette fonction à ceux qui ont intérêt à confondre les bonnes actions avec le beau langage”. (Op. cit., p. 211.)
12 Apud Eloy Pontes, op. cit., p. 191.
13 Pelo que vimos expondo e pelo que se segue, é difícil para nós aceitar a interpretação, semelhante na aparência, de Eugênio Gomes: “Pompeia não teve, é claro, a ideia de fazer os seus adolescentes se conduzirem como adultos, e a psicologia de muitos deles foi bem surpreendida, mas torna-se visível sua ascendência sobre Sérgio, ou melhor, a superposição da mentalidade do adulto que escreveu o romance sobre o menino a quem atribui pensamentos, ideias e expressões que ele não podia ter”. Na sua conclusão é que talvez nos encontremos um pouco: “Sérgio é, em consequência, um híbrido de menino e homem que vinga mais pela experiência cultural do romancista do que por sua autenticidade no tempo e no espaço como personagem” GOMES, Eugênio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul-Americana, 1955, v. II, p. 119.
14 Apud Eloy Pontes, op. cit., p. 327.
15 PEREIRA. Op. cit., p. 112.
16 IVO. Op. cit., p. 45.
17 Como nos conhecidos verso de T. S. Eliot: “Time present and time past/Are both perhaps present in time future, / And time future contained in time past”, cuja origem poderia ser traçada na célebre fórmula de Leibniz: “Le présent est chargé du passé, et gros de l’avenir”.
18 ARARIPE JÚNIOR, Tristão A. Obra crítica de Araripe Junior, Rio, Ministério da Educação e Cultura, 1960, v. II, p. 128.
19 PACHECO, João. O Realismo, São Paulo: Cultrix, 1963, p. 144.
20 A tese de que Raul Pompeia não era um espírito vingativo, ou pelo menos que tinha em muito boa estima o Barão de Macaúbas, foi ardentemente defendida por Ledo Ivo (p. 63–64), apoiando-se em Eloy Pontes (p. 24–25), indo ainda o primeiro contra Mário de Andrade (p. 221–222). Esqueceram-se os três, no entanto, de que é Sérgio-narrador o vingativo. Além do mais, até aonde iria a verdade na crônica que Pompeia escreveu pela morte do Barão? Sem mencionar o fato de que o próprio Eloy Pontes, a quem se pode confiar como empresa transportadora de documentos, mas que no domínio da análise dos sentimentos é cego, se contradiz no meio da sua obra ao escrever: “Raul Pompeia escrevia O Ateneu. Era o purgatório onde deverá colocar em atitudes equívocas, expostas
aos castigos, implacáveis da sátira, cobertas com os andrajos do ridículo, condecoradas pela bestice, deformadas, exageradas, achamboadas, as almas da sua aversão” (op. cit., p. 186).
21 Sem grandes interesses em defender o temperamento atual e inusitado de Aristarco, gostaríamos, no entanto, de chamar a atenção do leitor para a atração que por ele sentiria Lawrence Durrell, o criador da multifaceta da Justine, ou ainda, André Gide, o “insaississable Protée”, na feliz expressão de Germaine Brée. Este último aliás se especializou em escrever sobre as atitudes contraditórias do seu temperamento, tendo se definido com fórmulas como: “Je suis un être en dialogue: tout en moi combat et se contredit” ou “Je ne suis qu’un petit garçon qui s’amuse — doublé d’un pasteur protestant qui l’ennuie”. Ao examinar criticamente um álbum de fotografias de Gide, Etiemble pode constatar: “Nous savons aujourd’hui que nous avons plus d’un visage; qui n’a pas trois en soi est un peu moins qu’une bête”. Não seria difícil de imaginar o que diria o crítico de Rimbaud ao examinar possíveis fotografias de Aristarco, ao lado de fotografias de Sérgio.
22 Notar que toda esta análise só é possível porque Sérgio usa o eu onisciente.
23 Se nos fosse pedida uma definição da compreensão da vida que tem Pompeia e que deixa transparecer em O Ateneu, citaríamos de bom grado uma frase sua encontrada por Eloy Pontes: “À direita, temos o fígado, a cólera, a mão armada, a ofensiva; à esquerda, o braço do escudo, a defesa, o amparo, o coração” (Op. cit., p. 324). O que nos lembra o jogo que Robert Mitchum executa no belo filme The Night of the Hunter (cenário de James Agee), colocando em luta as suas duas mãos onde se veem tatuadas nos artelhos as palavras: L-O-V-E- e H-A-T-E.
24 Estudo exaustivo e inteligente dessas ideias dentro do clima intelectual da
época foi feito por Araripe Júnior, na sua série de artigos coligidos pelo Ministério da Educação e Cultura.
25 Não é por acaso que no mesmo ano de 1888, Aluísio Azevedo no romance Cortiço, quando dramatiza o estabelecimento do português no Brasil, seu abrasileiramento, apresenta também conceitos éticos que escandalosamente saem do eixo Baudelaire/Flaubert, europeu e europeizante: “A morte do Firmo não vinha nunca toldar-1hes o gozo da vida: quer ele, quer a amiga, achavam a coisa muito natural” (Op. cit., p. 216).
26 Op. cit., p. 2.
27 CAMUS, Albert. Le Mythe de Sysiphe. Paris: Gallimard, 1942, p. 58. GIDE, Andre. Corydon. Paris: Gallimard, 1925, p. 25.
28 Apud Eloy Pontes, op. cit., p. 323. Trazendo até o presente esta derradeira contradição, ou melhor, relendo O Ateneu depois da morte trágica do autor, o romance adquire ainda e finalmente um tom maldito e inquietante, pois no presente, sem que esteja claro, sem que se tenha certeza, se pressente um futuro suicida na análise psicológica que Pompeia fez de Sérgio. O primeiro romancista que tira partido conscientemente (e não) deste processo, que em Pompeia foi involuntário, repetimos, é Ernest Hemingway. O autor de The Snows of Killimanjaro, que também foi ao encontro da morte, sem paciência de esperar por ela, no seu recente livro de memórias sobre Paris, The Moveable Feast (New York: Bantam, 1956), ao falar da técnica descoberta e empregada nos seus primeiros contos, afirma: “It was a very simple story called ‘out of Sesson’ and I had omitted the real end of it which was that the old man hanged himself. This was omitted on my new theory that you could omit anything if you knew that you omitted and the omitted part would strengthen the story and make people
fell something more than they understood” (p. 75). Depois de ler recentemente este trecho é que conseguimos precisar o algo mais que tínhamos sentido de maneira vaga, mas absorvente ao reler O Ateneu. A história se incumbiu de alargar o enredo por alguns anos para o leitor moderno, preenchendo, sem que verdadeiramente tenha existido para o autor, uma omissão idêntica à de que fala Hemingway. Esta mesma omissão involuntária, também contaria hoje, e bastante, para os leitores dos romances e contos mais autobiográficos do autor norte-americano.
A Bagaceira: fábula moralizante Para Affonso e Jacques, no momento da volta.
Fábula, s. f. Narração alegórica, cujas personagens são geralmente animais, e que encerre uma lição moral; mitologia; ficção; mentira; enredo de poema, romance ou drama; (fig.) assunto de crítica ou mofa. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
1. A janela do texto Aprendamos a ler A bagaceira¹ com a lição que se encontra inscrita no seu primeiro parágrafo, traduzindo ação de uma das personagens principais: “[...] Dagoberto Marçau correu a janela, que é uma forma de fugir de casa, sem sair fora de portas, como se o movesse uma grande curiosidade”. Por causa da solidão, Dagoberto não suporta mais ficar em casa, mas também não tem ânimo para sair sozinho. Encontra, então, o meio-termo da janela, ao mesmo tempo lá fora e cá dentro, limite entre margem e passagem (se não estivesse sozinho em casa, teria ânimo para sair, mas já aí não teria necessidade de sair). Da janela olha para fora — foge de casa, sem ter de passar por portas. Da janela olha para dentro — entra em casa, sem ter de passar por portas. Mas passa sempre do exterior para o interior e vice-versa. Perdido em casa, na casa da ficção — lost in the funhouse (título do livro de contos do norte-americano John Barth) — o leitor fica buscando janelas por onde, ao mesmo tempo, olhar para fora de dentro e para dentro de fora do texto. Por onde sair do texto, sem abandoná-lo, sem traí-lo. Organizar saídas (passagens) de dentro para fora, de
fora para dentro, sem nunca pular para fora das janelas do texto: buscar sua janela, esta aqui também inscrita no próprio texto. Janela onde (se) olha o texto. Buscá-la seguindo dois modos narrativos. Um, onde se fala do excesso de móveis na casa, os quais impedem a circulação livre do leitor por entre os quartos. Caminha aos trancos e barrancos. E o outro, por onde se fala da pobreza monástica da casa, que apenas acresce o desespero e a solidão do leitor, pois nem mesmo encontra objeto, significante, onde repousar seus olhos cansados. Ficam no ar, no segundo caso; esbarram as pernas contra obstáculos, no primeiro. Em ambos os casos, “uma grande curiosidade” o move a olhar da janela (para fora) (para dentro) do texto. Eis o que vê.
2. ... ora... ora... Uma das originalidades de A bagaceira, de José Américo de Almeida, é que oscila, quanto ao modo narrativo, entre dois extremos: ora é um texto que fala demais, isto é, que explicita a interpretação que seria induzida pelo leitor da análise da caracterização das personagens e da sua dramatização dentro da lógica das ações, ora fala de menos, abrindo-se no texto algumas lacunas que são sintomaticamente preenchidas por reticências, deixando o leitor sem saber o que disse exatamente a personagem. No primeiro caso, o próprio narrador (ou de maneira geral o texto) comenta personagens, ação, linguagem, problemas socioeconômicos dramatizados, e tira conclusões, expõe a mensagem da cena ou do livro de maneira clara e definitiva. O texto não quer, portanto, que o leitor participe da ambiguidade inerente a qualquer texto. Não permite, de certa forma, que o trabalho interpretativo da leitura possa colaborar para que se manifeste o significado latente do livro. No segundo caso, o silêncio gráfico das reticências chega a ser tal que o leitor se torna indispensável, pois é ele quem inventa o próprio texto de ficção, escamoteado que se encontra pelo narrador. Precisa ler o que precede a reticência e o que se lhe segue, acertar o esgarçado do texto, escolher o tom da linha e, em seguida, se entregar, de agulha na mão, a um paciente remendo criativo. Só então poderá compreender as intenções da personagem e analisá-la. De um lado, encontramos, pois, excrescências; do outro, buracos. Compreender a razão dos buracos podando as excrescências: esta deve ser a tarefa do leitor
não ingênuo, do leitor-intérprete diante de A bagaceira. E nunca deveria ele cair na armadilha instaurada pelo texto: acreditar que a excrescência é uma ajuda valiosa para o suplemento que é o discurso crítico-interpretativo. Um exemplo simples e claro do primeiro modo narrativo se encontra na página 107, quando pai e filho se defrontam diante de um grave problema que os envolve emocional e amorosamente ao grupo de sertanejos que, foragidos da seca, encontraram abrigo no engenho de Marzagão. Os ânimos dos dois estão exaltados; o conflito, aliás, vinha sendo anunciado desde a página de abertura do livro, por ocasião do primeiro encontro entre os dois no texto, dramatizado significativamente em torno da mesa de jantar, “ponto de comunhão familiar”, onde compartilhavam a comida, mas num “encontro calado”, de “conversas contrafeitas e escassas” (p. 4). Agora, de novo pai e filho se confrontam no final da narrativa, e o pai deseja neste momento marcar, de maneira irônica e agressiva, sua autoridade com relação ao filho. Tal atitude se traduziria em termos de linguagem afetiva por uma inversão no pronome de tratamento, senhor por você. O mais velho trata cerimoniosamente o mais novo. O pai dirige-se ao filho, e o narrador, dentro do parêntese, fala junto com ele ao leitor — as duas vozes (a do pai e a do narrador) se trançam, tecendo o dito e o comentário do dito, o comentário explicitando o não dito: “— Não precisava dar-me parte! Eu já sabia que o senhor (era uma forma agressiva de tratamento) andava metido com o assassino!” (p. 107). O comentário parentético é totalmente desnecessário, inclusive porque o processo estilístico empregado já se encontra codificado pela Gramática e seu uso é corrente na linguagem brasileira. Sem o parêntese, ao leitor caberia descobrir o desvio da norma e ao mesmo tempo construir em torno dele, caso fosse de seu interesse, sua leitura da cena de confrontação. A leitura começaria por informar que, invertendo a convenção no uso do pronome de tratamento, o pai estaria, de maneira velada, chamando a atenção do filho para o fato de ser ele o verdadeiro senhor e de que não admitia nenhum processo de usurpação do poder. Mas o narrador fala demais, fala mesmo ao leitor e em seu lugar. Citemos ainda outro exemplo: diversas vezes o narrador insiste no fato de haver desequilíbrios social e econômico entre o senhor de engenho e o trabalhador, os quais transparecem sintomaticamente na postura do corpo deste último. A pictórica figura do roceiro curvado sobre sua enxada trabalhando a terra do outro (possivelmente a ser comparada com o orgulho ereto do semeador nos quadros românticos europeus) é rica em sugestões para os que desejam analisá-la e encontrar nela uma atitude simbólica que traduziria a própria situação do
trabalhador no complexo socioeconômico paraibano. O narrador, no entanto, não se contenta em assinalar uma primeira vez, na página 11, os “400 anos de servilismo” daquela gente, pois, logo em seguida, na página 17, se propõe a ler para o leitor a postura do trabalhador: “Os trabalhadores curvados sobre as enxadas formavam um magote de corcundas infatigáveis. Mantinham, assim, a atitude natural de servilismo hereditário”. Vemos então que tanto a leitura da linguagem da ficção quanto a das insinuações propriamente ideológicas do texto se encontram comprometidas pela presença exorbitante e falante do narrador. Antecipando-se ele ao suplemento do leitor, descobre-lhe as possíveis sutilezas do texto, deixando que o comentário crítico seja apenas uma paráfrase mais ou menos bem-sucedida das conclusões já inscritas na superfície da ficção. O texto de ficção já traz escrita e explícita a própria “verdade”. A sua verdade expressada por dentro e pela “mentira”. Não é necessário que o leitor procure no texto de ficção (mentira) o seu significado profundo (verdade), pois desde o início foi a intenção do romancista deixá-la clara, como atestam os aforismos de sua autoria que precedem a narrativa, reunidos sob o precavidíssimo título de “Antes que me falem”. Entre eles, selecionamos este: “Há muitas formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira” (p. 2). Antes que lhe falem a ele, romancista, já ele fala a nós, leitores. Acreditamos que o narrador de A bagaceira talvez tenha podido se expressar, desde o início, de maneira tão aberta ao leitor porque o romancista definiu no pórtico do livro a palavra dele como mentirosa. Não deixa de ser atraente, sob o ponto de vista teórico, a curta apresentação do romance pelo “romancista” (é a maneira como assina as duas páginas). Deixa ela a descoberto, no aforismo citado e, por exemplo, o fato de o romancista tomar a iniciativa de quebrar expressamente a ilusão do “real” que a ficção inaugura no seu pacto com o leitor, como representação simbólica que é. Não precisa que o leitor descubra por si só o protocolo a seguir diante de um simulacro linguístico, ou a estratégia de como atacá-lo dentro das normas que o instituem como discurso entre outros discursos, pois o dedo desmistificador e precavido do romancista já anunciou o texto como “mentira”, antes mesmo que se inscrevesse o primeiro significante textual. Por outro lado, vestindo desde o início a máscara da mentira, a ficção (como o louco nos textos medievais) outorgou a si próprio o direito de dizer a verdade
dissimulada, sem que sofra choques absurdos ou repressivos — diz a verdade da mentira, a verdade pela mentira, a verdade dentro da mentira. A bagaceira se inscreve, portanto, dentro de uma determinada “ordem do discurso” (Foucault, 2012), em que a verdade pode ser proferida livremente porque ela é de antemão exilada de seu solo próprio, o dos discursos não fictícios (ou o dos discursos racionais, na comparação). Ela já está a priori inscrita do outro lado do corte que separa a verdade da mentira, a não ficção da ficção — expulsa e rejeitada. O poder retórico deste discurso, a sua força persuasiva, conforme o aforismo citado, advém exatamente do fato de a verdade ser fictícia, imaginária e imaginosa. Se me fosse permitido estender a comparação entre o discurso da loucura medieval e o de uma ficção que o romancista anuncia de antemão como mentira, gostaria de lembrar a oposição estabelecida por Michel Foucault entre o fato de a palavra do louco, exatamente porque é oficialmente nula e não reconhecida, é que pode circular livremente, “dizer uma verdade escondida”, “ver com toda ingenuidade o que a sabedoria dos outros não pode perceber”². Diz José Américo: “O naturalismo foi uma bisbilhotice de trapeiros. Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem”. Às vezes, se os outros não veem é porque não podem ver. Às vezes se a gente vê é porque nos permitem ver o que não se pode ver de outra maneira.
3. Ilusão do “real” Fato não desprovido de interesse é a coincidência, no tocante à técnica narrativa assinalada, que encontramos entre os romances que seguem cronologicamente A bagaceira, formando o conjunto que se convencionou chamar “o romance nordestino”, de que o texto em estudo seria o primeiro exemplo. Os textos posteriores coincidem tecnicamente e, na coincidência, se diferenciam do chamado texto precursor, ocasionando uma possível ruptura na sequência instaurada pelas histórias da literatura, que colocam A bagaceira como marco inicial. Tanto Menino de Engenho quanto Caetés e São Bernardo, ao contrário de A bagaceira, são textos escritos na primeira pessoa, e em todos os três — de uma forma ou de outra — nos parece claro o desejo de que a narrativa seja tomada como “real” pelo leitor. Ao contrário do romancista de A bagaceira, nenhum dos dois estreantes de então, José Lins e Graciliano, desejava desmistificar seu texto ficcional, ilusório, optando por trabalhar dentro da estética do falso natural³, que pudemos analisar em artigo sobre O ateneu, livro sobremodo importante de Raul Pompeia, publicado pela primeira vez em 1888, pelo menos para Lins do Rego.
Na estética do falso natural, o romancista cria um narrador-personagem que é passível de ser criticado por ele, romancista, e pelo leitor. Narrador, portanto, ingênuo, tão ingênuo quanto ele próprio na qualidade de personagem e, por isso, consegue ele dar à narrativa os graus de fluência e de naturalidade requeridas para não inserir nela a sofisticação da cultura do romancista. Narrador que é também personagem; narrador que guarda distância do romancista, para que não haja um conflito intelectual entre os dois “eus” dramatizados no enunciado, o “eu” que narra e o “eu” que atua; narrador que pode ser interpretado pelo leitor, pois este se situa, no momento da leitura, dentro de uma distância crítica com relação a ele em razão de não esposar necessariamente suas ideias, sua visão do mundo. Rachel de Queiroz, comentando recentemente Menino de engenho (1973, p. xxiii), foi sensível ao aspecto da ficção de Lins do Rego transcrito no trecho:
Homem de muitas leituras, José Lins do Rego, romancista, teve a sabedoria de não consentir que essas leituras, as sabenças de bom literato, transparecessem na sua obra, deixando-o parecer simplesmente um espontâneo; quase o que, em pintura, se chama de “ingénu”.
Em Caetés, de Graciliano Ramos, o fato de se ter um romance inscrito dentro da novela dá ao primeiro o caráter de ficção, de inautenticidade, de ilusão (é este o texto que se aponta dentro do texto como mentira), enquanto a novela que se escreve e será lida se apoia em fatos concretos, vividos, reais. Desde o Capítulo II sabemos que o narrador-personagem de Caetés tem um “romance encrencado na gaveta”, “encrencado miseravelmente no segundo capítulo” (RAMOS, 1953a, p. 14), e neste os personagens “realmente não tem verossimilhança”. É pela constatação de que tal romance será mais e mais falso, mais e mais distante da sua realidade, mais e mais ridículo, que o autor/narrador/personagem se interessa em “compor uma novela” (p. 23) com as “pessoas” que o rodeiam no dia a dia. É este projeto que silenciosamente se sobrepõe ao outro, sufoca-o, enquanto o leitor de Graciliano passa, dentro do texto, de um trecho para o outro, passa ainda do título fictício, Caetés, romance histórico que narra as aventuras dos índios da região, ao título simbólico, Caetés, novela de costumes que narra fatos do presente, reais, ocorridos com o narrador, e que atingem sua transcendência imaginária na forma simbólica⁴ encontrada para comentar a ação. Passagem
também definitiva do caeté-personagem (romance) ao personagem-caeté (novela), com domínio final deste: “E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças” (p. 232). E o comentário simbólico final: “Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente” (página final). Já em São Bernardo a entrega da responsabilidade da ficção a vários autores especializados faz com que de início se perceba o desejo do narrador Paulo Honório de dar à ficção o caráter de autenticidade e de erudição necessário e também de dizer que os fatos não seriam subjetivamente vistos por um único foco narrativo, embora no final se apresentassem sob sua única responsabilidade autoral. Ao fracassar tal projeto “literário” se entrega ele sozinho à feitura do romance, e para realçar sua autenticidade, a autenticidade dos fatos narrados e vividos, é que não terá coragem de assinalar seu nome verdadeiro como autor: “a obra será publicada com pseudônimo” (RAMOS, 1953b, p. 10). Estamos vendo que, ao contrário de A bagaceira, frisa-se nos dois casos o real da ficção: tanto a autenticidade existencial dos acontecimentos narrados, quanto o caráter memorialista do modo narrativo são os pontos que indicam que a persuasão se fará com o apoio da ilusão-do-real guardada pelo estratagema retórico. E apenas por motivos extraliterários (contraditoriamente) que a narrativa se fez ficção, se fez literária. No caso de A bagaceira faz-se ficção de propósito, pois é a maneira mais persuasiva de se dizer a verdade. No outro caso faz-se ficção malgré soimême. Aqui, retórica literária e persuasão existem desmistificadas no interior da escrita ficcional para dizer que ela não é imaginária, apesar das aparências.
4. Reticências Na página 7 de A bagaceira encontramos exemplo privilegiável do segundo modo narrativo. Desde o primeiro parágrafo do romance sabemos da infelicidade de Dagoberto por causa da morte prematura de sua mulher. A infelicidade na vida sentimental tem consequências sobre a vida sexual dele, e é nesse sentido que sente necessidade de desabafar. Vivendo só e não podendo contar com os ouvidos do filho já adulto e acadêmico, já que este é “uma mera sombra intrusa” no seu mundo, se entretém em confidências com o feitor. Leiamos o que diz e o que não diz o texto: A solidão entretinha intimidades desiguais. Admitia o feitor em suas
confidências: — ........................................................................................ — Qual o quê! O senhor encruou ... Se duvidar, com esse calibre é capaz de passar a perna em seu Lúcio (p. 7). Em lugar da confidência de Dagoberto encontramos na superfície do texto as reticências⁵ colocadas pelo narrador. Assim é que este houve por bem censurar a fala da personagem, não deixando que o leitor entrasse na intimidade de sua confidência, embora outra personagem, o feitor, o pudesse, apesar da desigualdade social entre eles (ausência de verossimilhança explicada imediatamente pelo texto: “intimidades desiguais”). Estabelece, assim, a narrativa de A bagaceira graus de admissão na confidência de Dagoberto: outra personagem pode ser admitida (inclusive de classe social mais baixa), mas não o
leitor, criando como que um biombo entre esta e a ficção. O leitor fica, por assim dizer, a adivinhar como um voyeur o que se passa por detrás do biombo, o que está escrito por detrás das reticências, as palavras que aqueles pontinhos enfileirados apagaram com sua marcha repressora sobre a folha de papel. E a querer saber o porquê do enigmático biombo. Sem dúvida, ali estava (estaria, esteve) inscrita alguma observação relativa à potência sexual do senhor de engenho, depreenderemos posteriormente e sem dificuldade. Podemos então, como leitores, imaginar por conta própria a fala de Dagoberto, inseri-la no texto, cotejá-la com o contexto, para tentar compreender a passagem em questão. Feito o remendo, percebemos que, curiosamente, é um dos tópicos mais importantes do romance que foi recalcado pelo narrador. Seria, pois, através desse esforço de imaginação que o leitor entraria no drama nunca explícito do livro: o desejo paralelo e convergente do pai e do filho, a rivalidade calada entre os dois, armada pelo desejo de possessão do mesmo objeto amoroso: Soledade. A expressão “passar a perna”, proferida em profecia e com propriedade pelo feitor, nos conduz diretamente ao centro dramático do romance, ao conflito maior que, apesar de não ter sido intensamente dramatizado no tecido narrativo, se conclui no já citado capítulo Pai e filho (p. 107–113). É neste que se aclaram as diversas reticências do texto e se explicita a relação de parentesco dos
retirantes com os senhores de engenho, deixando claras as posições antagônicas tomadas pelas duas personagens masculinas quanto à tática na abordagem do objeto amoroso, bem como e finalmente é ainda neste capítulo que se esclarece que o pai realmente tinha passado a perna no filho. Diz este: “— Meu pai desonrou minha família, prostituiu minha prima, tomou minha noiva!...” (p. 111). A narrativa falou todo o tempo dos encontros “românticos” entre Lúcio e Soledade, da suspeita contínua de Pirunga (que vigiando o jovem casal de namorados era como a própria representação do narrador, o qual também os vigiava com receio de cometerem algo que tivesse de ser colocado sob reticência); a narrativa silenciou todos os encontros sexuais entre Dagoberto e Soledade. No capítulo a que nos referimos ficou finalmente claro para o leitor o que tinha acontecido paralelamente a Soledade, e que ela tinha apenas conseguido exprimir de maneira enigmática, através de uma representação teatral das suas fantasias e angústias: quem seria o pai do seu filho? Quando Lúcio descobriu seu esconderijo no meio do mato, lá encontrou montada a “peça” de Soledade, peça com três personagens que eram três “bebês toscos, de pau”, e ao lado deles “três papelitos fechados como para tirar a sorte: o moço, o velho, o carrapato” (p. 81). Curioso é ainda o fato de que Pirunga (de novo à semelhança do narrador), apesar de estar como “carrapato” por detrás de Soledade, nunca tenha conseguido desconfiar das propostas do “velho” Dagoberto e dos encontros entre os dois. Mas sempre estava a par dos menores gestos do “moço” Lúcio.
5. Os fantasmas da virgindade Assim é que por um lado sabe o leitor do interesse de Pirunga e de Lúcio por Soledade, mas por outro lado não sabia o leitor dos desejos de Dagoberto. Por um lado, Soledade é alvo do amor/medo do jovem, característica que Mário de Andrade já tinha percebido com finura nos poetas românticos brasileiros, todos eles “com medo do amor, principalmente entendido pela realização sexual” (ANDRADE, 1972, p. 200). Desse modo, Lúcio que “se formalizara plagiando Fagundes Varela” (p. 13)⁷ e que idealizava romanticamente Soledade, enxergando-a através da mediação de “Helena [de Troia] e de Carlota, destruidoras de cidades”, escrevia no seu diário: “Eu sofria na minha inocência com pena dos bichos que se amavam. Amor de arranhaduras, de coices e de dentadas. E,
enfim, creio que os beijos doem muito mais” (p. 14).
Eu sofria na minha inocência com pena das bichos que se amavam. Amor de arranhaduras, de coices e de dentadas. E, enfim, creio que os beijos doem muito mais (p. 14).
Sabe o leitor que Pirunga, em um excesso de “zelo selvagem”, amor ou cuidado, cerca Soledade por todos os lados, como guardião da vestal sertaneja. Amor ou cuidado semelhante ao narrado por Valentim, que justificava a cicatriz que traz estampada no rosto: na lei do sertão chega-se a brigar de morte mesmo com o melhor amigo, quando se sabe que este se aproveitava de moça donzela (cf. p. 35–36). Pirunga, no zelo de “mano de criação” (p. 51), não deixa que Lúcio e o texto se entreguem ao gozo e a descrição dos prazeres sexuais, uma vez que: “Pirunga tinha-os de olho. Punha-se de guarda, dissimulando-se nas árvores mais folhudas ou ala-pardando-se nas moitas de camará” (p. 64). Mas não sabia o leitor, por outro lado, que Soledade já tinha sido violentada por Dagoberto, conquista oculta no tecido narrativo. Dagoberto, nos bastidores da cena textual, não punha limites morais para a satisfação do seu desejo, tendo
conseguido Soledade através do feitor, intermediário e confidente, e graças a vários e sucessivos presentes que lhe enviava. A cegueira do narrador, ou mesmo seu pudor, é tanto mais interessante quando analisamos alguns indícios da presença de Dagoberto junto a Soledade. Quando devia descobrir para o leitor a situação entre o “velho” e a retirante, sua narração se situa propositadamente no nível das personagens e nunca ostenta a visão onipresente e divina que apresenta quando se investe de comentarista ideológico. Por exemplo, quando o pai de Soledade descobre um “baú de lata” de sua filha, contendo “toda uma quinquilharia suspeita” (p. 89), aquele fica sabendo pela filha que se trata de presentes do feitor. Nem o personagem nem o leitor ficam sabendo que na verdade se trata de presentes do pai de Lúcio. Soledade é, pois, o elemento que salienta a divergência entre Lúcio e Dagoberto, é a diferença entre os dois. Soledade é ainda e também o elemento que marca a
diferença entre Dagoberto-Lúcio, na medida em que são representantes da libertinagem do engenho (brejo), e Pirunga, na qualidade de protótipo da moral austera do sertão. Os senhores e o retirante. Vejamos, primeiro, a diferença entre Dagoberto e Lúcio, pai e filho. Dagoberto, a madureza; Lúcio, a juventude. A experiência sexual e a descoberta amorosa, a agressividade e o pudor, o que sai em busca de nova esposa e o que ainda se encontra apegado ao fantasma materno. Dagoberto e Lúcio, em torno de Soledade, figura de sobrinha e de prima, figura ambígua e ambivalente, esposa e mãe ao mesmo tempo, lembrança de esposa, lembrança de mãe, como fica patente nas passagens em que é comparada ao retrato da já falecida mãe de Lúcio e esposa de Dagoberto. “... foi tua mãe que amei nela ...” (p. 111) — confessa o pai. Diz Lúcio: “... ela é o retrato de minha mãe” (p. 51). Soledade, figura ambígua e mais: ambivalente, pois é também irmã, irmã de criação de Pirunga e que serve para assinalar a diferença entre a libertinagem do engenho e a lei do sertão. Não tanto a Helena de Troia, destruidora de cidades, como queria Lúcio nos seus devaneios, mas uma espécie de Marcela machadiana (cf. Brás Cubas, Cap. 37, “A quarta edição”), comparecendo no final do texto de “olheiras funéreas” na “máscara violácea do rosto”, sem “aquele acento de beleza murcha da primeira aparição romântica”, face a dizer como “a beleza era pérfida” (p. 136). Entre a Helena de Troia dos devaneios bovarystas e a Marcela do final, uma Soledade que desencadeou paixões e conflitos no meio em que passou a viver, todos cobiçando, ou protegendo, sua virgindade. Alerta seu pai, Valentim, recordando o já citado episódio em que matara seu melhor amigo: “não bula com moça donzela, senão encontra ‘troco’”. Comenta ironicamente o feitor: “Com essa lei aqui você se estrepa”. Ao que responde com o olhar Pirunga: “Os olhos de Pirunga fuzilaram, como um isqueiro” (p. 34). Soledade: máscara de esposa, de mãe e de irmã. Soledades. Não se fixa ela em uma única forma, mas se inscreve simultaneamente como tripartida no imaginário das personagens. O valor polissêmico de sua figura e do significante (de Soledade e da soledade amorosa) possibilita uma múltipla leitura da personagem, na medida em que vive diferentes, contraditórios e semelhantes papéis na cena textual de A bagaceira. Oscila entre o laço de família e a armadilha sexual. A fantasia amorosa das três personagens masculinas é dependente de um desejo que só se realizaria no transgressor, pois encontra ele a chama que o atiça na semelhança e na repetição do quadro familiar. O desejo amoroso no A bagaceira é fomentado pelo laço sanguíneo e ao mesmo tempo proibido por ele; no entanto, desabrocha pleno (o desejo, não a consecução —
frisemos) por toda a narrativa, como se só tivesse sentido o desejo sexual caso se amparasse na muleta dos fantasmas familiares. O objeto do desejo é o ser feminino sob a forma simultânea de semelhança e de diferença. Diferença na repetição, em um primeiro nível, na medida em que se repete sem ser o mesmo: Soledade é e não é esposa, mãe e irmã; semelhança na diferença, em um segundo nível, na medida em que se deseja sempre o objeto porque se assemelha ele ao desejo do outro, passando a ser então o elemento que, pela semelhança, diferenciaria as personagens, organizaria os desejos individuais e seus motivos eróticos. Dessa forma, A bagaceira estranhamente consegue ser um texto dos mais ousados do ponto de vista do comportamento sexual masculino, sem que se manifeste no seu discurso elementos que pudessem anunciar abertamente sua violência e originalidade. Soledade é a virgem cobiçada pelo esposo, pelo filho e pelo irmão. Virgem que na realidade da ficção é, respectivamente, sobrinha, prima e prima (cf. p. 90, com relação a Pirunga). Em todos os três e paralelamente o desejo consciente ou inconsciente de fazer da sobrinha (representação da esposa), da prima (representação da mãe), da prima (representada como mana de criação), a mulher amada. É surpreendente como José Américo conseguiu, através da tripla caracterização, situação tão complexa e, além do mais, totalmente fora da banalidade com que pronuncia a maioria das frases ensaísticas que encontramos disseminadas pela tessitura ficcional. O marido que deseja uma esposa virgem, sabendo-a semelhante à antiga mulher e ao mesmo tempo sobrinha; o filho que não deseja sustentar a chaga da maternidade, ao mesmo tempo sabendo-a semelhante à mãe já morta e sua prima; o irmão que deseja guardar incestuosamente a pureza da irmã, sabendo-a apenas prima. No nível dos fantasmas sexuais, apenas a “esposa” não seria uma forma de proibido, portanto é o único fantasma que podia ser violentado sem transgressão (o de “mãe” e de “irmã”, é claro, seriam formas incestuosas). Só no “marido” é que o desejo se move sexualmente, ocasionando a confusão dramática do final do romance. Soledade regressa maltrapilha e acompanhada do filho de Dagoberto, e Lúcio a apresenta à esposa: Mostrou ainda Soledade: — Essa é... minha prima. E, a custo, com grande esforço sobre si:
— É a mãe de meu irmão... (p. 136). Perguntaria a esposa de Lúcio e pergunta o leitor atônito: como? prima e mãe de seu irmão — você é filho de sua prima? A trágica beleza que poderíamos encontrar hoje em A bagaceira não está tanto na sua lição e solução ideológicas para a terra paraibana (“Só havia ordem nessa nova face da natureza educada por sua [de Lúcio] sensibilidade construtiva” (p. 137), mas ao falar com tanta pureza, tanto silêncio e tanto enigma, com tanta artimanha ficcional, do ambiente e dos fantasmas sexuais e indomáveis da “bagaceira”, lembrando-nos então da definição que se encontra no Glossário: “Bagaceira — pátio das fazendas onde são depositados os detritos da cana moída; por extensão: o ambiente moral dos engenhos” (p. 139). Se a antiga natureza do engenho de Marzagão, graças ao trabalho paciente e ao cuidado de Lúcio, se transformou em um “oásis”, “molde de prosperidade” e “modelo de técnica agrícola” (p. 132), o mesmo não acontece com seus habitantes, apesar de educados e trabalhados pela escola (diz o texto: a natureza tinha sido “educada” por Lúcio):
Os que aprendiam a ler na escola rural achavam indigna a labuta agrícola e derivavam para o urbanismo estéril. A geografia [ensinada nas aulas] era uma noção de vagabundagem. A higiene o horror a terra impura (p. 135).
Dessa contradição — otimismo demasiado e cego nos próprios valores ideológicos e pessimismo com relação ao ser humano, imune a esses valores — é que advém o amargo bocejo final do texto, proferido por Lúcio qual “criador desiludido”: “— Eu criei o meu mundo; mas nem Deus pode fazer o homem à sua imagem e semelhança ...” (p. 137). A verdadeira mensagem ideológica de A bagaceira é essa descrença divina e total que sente o profeta social quando enxerga sua humanidade, seu homem, que se lhe apresenta como ser pouco pensante e por demais egoísta, insensível aos valores do seu socialismo. Cada lavrador está interessado mais em si, na sua restrita e mesquinha felicidade, do que no bem-estar geral proporcionado pela administração de Lúcio. Mensagem moral e bem pouco social de um texto que abertamente fala do ideológico, mas que pela abertura da falta profere o pouco-
caso que sente Lúcio pelo homem e sua natureza, desprezo que, invertido na superfície do texto, aparece como o mal na sua forma mais acentuada de subversão aos ditames pouco democráticos do senhor de engenho.
6. Confronto Por um lado, o discurso ideológico de Lúcio (devidamente respaldado pelo narrador, como já o tinha notado Cavalcanti Proença), nas suas reivindicações de denúncia, de modernidade e de liberdade, não deixa que se profira abertamente o discurso sexual do texto. Por outro lado, o discurso ideológico de Dagoberto, repressor e autoritário, se desloca plenamente para uma grande liberdade no plano sexual, liberdade esta que é reprimida pelo narrador, mais, portanto, — estamos vendo de novo — do lado de Lúcio do que de Dagoberto, sobretudo porque rechaça ele do tecido textual até mesmo as proezas do velho senhor de engenho. O narrador do livro, a favor de uma modernidade ideológica, que transparece claramente na superfície do texto, rejeita ainda uma modernidade sexual no âmbito discursivo, ocultando-a por debaixo de reticências. Como se o “real”, por demais feio e/ou plebeu, tivesse de ser escondido sob belos lances de linguagem castiça, ou pelo silêncio dos três pontinhos. Assim sendo, ora o texto de A bagaceira fala demais, ora fala de menos. Tal caracterização passa a ser dado específico do romance de José Américo, na medida em que o falar demais acarreta o falar de menos, pois, ao pretender ser um romance de “denúncia social”, traz o caráter jornalístico inerente à própria estética assumida. Mas ao mesmo tempo por querer obedecer a certas regras de bienséance e de conveniência linguística — “A plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir...” (p. 3) —, teve de policiar a linguagem no que se referia ao tabu dos tabus: o discurso sexual. Se de um lado é um texto que pretende ser apêndice crítico da situação socioeconômica da região nordestina, e o pode ser por trazer sua verdade dentro da mentira que é a ficção, por outro lado é um texto de narrador recalcado, que, por muito enxergar uma coisa, tem medo de ver outra. Não quer mostrá-la. Aqui e ali vão brotando no texto frases mais de ensaio do que de ficção. Aqui e ali, teriam ido brotando frases comprometedoras no seu linguajar “plebeu”, mas em seu lugar encontramos reticências que escondem o móvel sexual de algumas e muitas atitudes dos personagens. Por um lado o texto vai falando explicitamente sua mensagem, o que não tinha ainda sido dito de maneira tão aberta, isto é, as calamidades e violências encontradas nos diversos
conflitos sociais da região nordestina (em particular, os causados pela seca), e por outro lado o texto vai instaurando pelo silêncio o espaço do que ainda não poderia ser dito. Oscila então A bagaceira entre dois modos narrativos, entre a transgressão ao não permitido dizer no plano socioeconômico e a (auto)censura no plano sexual. Assim é que às conclusões extraídas da análise da realidade e dramatizadas no romance se opõe toda uma camada subterrânea do não dito que se encontra aqui e ali anunciada na superfície do texto pela disseminação das reticências. É essa camada que estamos tentando surpreender e içar para a superfície desta interpretação. A mentira (ou a ficção) ideológica só pode criar um espaço utópico e alienado da “realidade”, bem como gratificante — o espaço onde se levanta o engenho do novo senhor-deus Lúcio. Neste, a figura dominante será a decepção, o enfado e o bocejo. O “real” não era levado em consideração pelo discurso ideológico, e é assim que se esbarra este contra aquele no final do livro, mostrando que a maneira mais persuasiva de dizer a verdade (ainda) não é a mentira, mas ler as reticências do texto de ficção. O pior equívoco do jovem senhor de engenho⁸ é o de se acreditar deus, equívoco facilmente explicado pela crença ilimitada nos próprios valores de seu discurso, que nada mais são do que a expressão da “verdade”. O questionamento de valores, veremos, só pode aparecer na ficção no momento em que Lúcio deixa falar a “realidade”. Assim é que, segundo seus princípios de chefe, tinha duas tarefas: moldar sua terra em vista da criação de um paraíso, e o homem em vista de sua divinização, com esquecimento de sua “natureza” terrena. Mas não é querer finalmente subjugá-los duplamente por aceitar e impor sua condição de senhor e deus? Por erigir para si o nicho do roi soleil todo poderoso? A interpretação de A bagaceira se sabe mais rica lendo o significado polissêmico do significante Sol dentro do texto: Sol, fonte de energia que, quando em excesso, passa a ser sinal de morte. O sertão tomado pelo excesso de sol, ressequido, torna a “criação” impossível, expulsando seus habitantes com “espadas de fogo” (p. 5), enquanto no brejo o excesso de “sol” trouxe apenas uma forma de poder que se redundou catastrófica para seus habitantes, pois os reduzira a tristes figuras: “Lúcio notava que havia gerado a felicidade, mas suprimira a alegria. [...] as valsas arrastavam-se, lerdamente, como danças de elefantíases” (p. 134). Os retirantes hidrópicos do início do romance, “com os fardos das barrigas alarmantes” (p. 5), encontram o duplo e semelhante nestes trabalhadores do
engenho satisfeitos e realizados, mas cujos corpos se arrastam em movimentos de “elefantíase”. Tanto em um caso como no outro, o excesso de sol e de “sol” os torna imprestáveis para a vida. Paralelamente a eles e em outro nível, o sol do sertão encontra o correspondente “sol” do brejo no final do texto, e se harmonizam em um clima insustentável para todos os outros que não sejam ele(s): “Fugiam do sol e o sol os guiava neste forçado nomadismo” (p. 5). Abandonando o sertão, reencontram o sol no engenho, e ainda desta vez imagem excessiva, de esterilidade, de contracepção — em lugar da vida, de novo a morte e a desolação: “O sol que é para dar o beijo da fecundidade dava um beijo de morte longo, cáustico, como um cautério monstruoso” (p. 23).
7. Natureza e “natureza” Acreditamos que o desajuste apontado entre o discurso ideológico e o discurso sexual, entre o sucesso de Lúcio no plano da agricultura e o fracasso no processo de desenvolvimento cultural do homem, com evidente sacrifício no primeiro caso do elemento propriamente físico (fisiológico), e no segundo caso da condição humana — acreditamos que tal desajuste advenha do temor que têm tanto Lúcio quanto o narrador de se aprofundarem no conhecimento da “natureza” (tomado como psique) humana. Apenas interessados que estão pelos problemas sociais, isto é, como se pode melhorar economicamente o padrão de vida de um grupo de homens, ou pelos problemas agrícolas, ou seja, como obter melhores resultados do trabalho humano da terra. Retracemos uma vez mais o fracasso da condição humana em oposição à natureza: ao sucesso com a terra, seu domínio, não correspondeu na narrativa o sucesso com a “natureza” humana, na medida em que esta, por uma rebeldia impossível de se determinar com precisão em A bagaceira, escapava-se do poder de Lúcio como mercúrio. Conclui ele: “Só a terra era dócil e fiel” (p. 137), e concluímos nós por exclusão: os homens de Marzagão não eram dóceis e fiéis. Nesse sentido, é importante salientar e analisar como a natureza (isto é, a paisagem) existe inscrita no texto para ser vista, para ser lida. Para ser interpretada pelo narrador, pelos personagens (e isso acontece com grande frequência em um texto que fala demais como o nosso), seja ainda pelo leitor — leitura esta que é feita em vista de um melhor conhecimento das possibilidades íntimas e sentimentais da “natureza” humana. A “natureza” humana só descobre sua origem e seu poder, sua força, quando devidamente instruída pela natureza.
Funciona esta como uma escola (perdoem a contradição) para os instintos, para que estes, paradoxalmente, se desabrochem livres. Assim é que Soledade, sem coragem para finalmente dar a entender a Lúcio o mais profundo de seus sentimentos, buscando ainda encontrar a franqueza básica que falta ao seu relacionamento, enxerga nas orquídeas presas às árvores rijas a lição a seguir e a obedecer: E vendo as orquídeas nas árvores rijas, [Soledade] tinha vontade de concitar Lúcio a um amor mais franco: — Dá-me apoio e eu te darei as minhas graças, dá-me seiva e eu te retribuirei com alegria do coração (p. 64-65). A graça, a vida e a alegria humanas são descobertas e seriam dadas de graça em imitação do espetáculo da natureza. A origem desta problemática, uma espécie de naturalização do homem, (bem diferente do processo comum de antropomorfização da natureza) pode ser buscada nas leituras de Lúcio, autores românticos brasileiros, bucólicos, já responsáveis, como assinalamos, com a ajuda de Mário de Andrade, pela sua própria concepção do amor e do ato sexual, como ainda pelo lugar dentro do texto em que Lúcio faz suas leituras, como indicaremos com o estudo do elemento cajueiro. Lúcio, incapaz de enxergar “a beleza espontânea da paisagem”, incapaz de simplesmente fruir as delícias de estar em contato com a natureza, “participava antes de seu toque de humanidade, de sua representação sentimental” e mais: “interpretava [suas] formas vivas” (p. 62). A natureza em si não é importante para ele; a paisagem aparece como elemento transitivo, de passagem, para o melhor conhecimento da sua “natureza” e a dos homens. E na medida em que a natureza fala ao homem do homem é que este melhor descobre e conhece as suas possibilidades sentimentais mais ricas. O ser humano não é importante para Lúcio, como não o era a paisagem. O ser passa a ser interessante (e também a paisagem passa a ser interessante) quando decifrado, interpretado na paisagem, no “livro da natureza” (p. 28), quando a paisagem fala do homem e não de si mesma. O homem é mero espelho do comportamento da natureza, repete-a nos seus dramas, explicitando seu próprio significado eterno que já estava representado na natureza. É lendo a natureza, interpretando sua linguagem verde, de folhas, galhos, frutos, cores etc., que o homem melhor conhece e compreende a sua “natureza”. Sem dúvida, existe um lugar marcado dentro do tecido narrativo onde se inscreveu simultaneamente o “livro da natureza” e o livro da literatura — lugar
marcado pelo cajueiro que, como leitmotiv pesponta no tecido outras vezes mais, anunciando sempre, pela sua lição, o desequilíbrio entre o alto e o baixo, entre o orgulho e a humildade, entre a prepotência e a servidão. Vejamos, primeiro, como se inscreve o cajueiro:
Então havia um cajueiro curiosíssimo. Bipartia-se em galhos desiguais: um, hierático, linheiro, parecia querer escorar a céu; o outro, de uma humilde horizontalidade, deitava-se, literalmente, no chão (p. 28).
O que dirá o cajueiro a Lúcio, em momento importante da narrativa, exatamente no capítulo em que confronta seu pai, será o argumento maior que recorda para compreender a diferença social entre sua mãe e a retirante, ainda que esta seja sobrinha daquela: “— Se minha mãe não era retirante, Soledade também não é ... Lembrou-lhe o cajueiro na alameda — o de galhos nascidos do mesmo tronco com destinos desiguais” (p. 110). Nesse “poiso natural”, marcado pelo cajueiro, é que Lúcio vem “repassar seus romances convulsivos”. E é ali também que se entrega às suas leituras românticas, desdenhando, como nos diz o narrador, as folhas verdes em favor das brancas, pois não é seu desejo “interpretar o clássico livro da natureza” (p. 28). A vida de Lúcio, dentro da narrativa, oscila entre os livros clássico e romântico, substitutos ambos para uma perda mais grave na sua infância: a da mãe. São dos dois livros que lhe vêm todos os ensinamentos, todos os conhecimentos. Um lhe foi dado na infância despreocupada, e o outro no cativeiro do colégio:
Órfão de mãe, ao nascer, a natureza criara-o vivaz e livre, como um selvagenzinho folgazão. Não sentira a soledade de unigênito. Crescera de cambulhada com os moleques da bagaceira, garotos de uma malícia descarada (p. 12 — grifos nossos).
Depois, houve um período de “violenta transição” em que teve de esquecer os
“hábitos de liberdade” e entrar para o colégio que se apresenta dentro do texto metaforizado por viveiro, onde convivem de maneira egoísta e safada os mais variados pássaros: “O colégio fora o viveiro onde duzentos bicos comendo no mesmo cocho e bebendo na mesma água. O corrupião que come mole sujando as penas do canário gentil” (p. 12). É nesse lugar, no colégio, que a “natureza” do menino, criada como vimos pela mãe natureza, mãe substituta, encontrará sua fraqueza diante do todo-poderoso relógio que controla todas as vontades e desejos e que a tudo inibe: “Nesse convívio de portas fechadas, o relógio tinha mais vontade do que a sua natureza: era o horário do sono e da fome” (p. 13). Portanto, dentro da narrativa, o retorno de Lúcio à natureza para melhor compreender sua “natureza” vai corresponder sempre a uma busca de ensinamentos que não sejam os ensinamentos dados pela cultura do colégio, mas os do retorno à infância, à origem, a uma infância sem mãe, em que a natureza fazia as vezes de mãe. O encontro com Soledade se articula, se entrelaça em três níveis completamente distintos e unificados no imaginário de Lúcio. O encontro com Soledade — anunciado no texto pela soledade de unigênito — (p. 12) é o reencontro com a “soledade” de sua infância sem mãe, com a mãe natureza, e com esta Soledade, novo substituto de mãe, “retrato de mãe”, para ser preciso e, ao mesmo tempo, objeto de seu desejo. Em suma: a redescoberta de sua “natureza” que tinha sido esmagada pela prisão do colégio. Tanto é verdade, que já no final do livro, quando Soledade dá mostras de pouco interesse por ele, Lúcio perde também seu interesse pela natureza: “Seu bucolismo fora uma criação lírica. [...] O que lhe parecera o sentimento da natureza fora uma subordinação vulgar. [...] Não distinguia as variedades da estação ...” (p. 103). E é exatamente por perder sua “subordinação” com relação a natureza que decide domá-la, domesticá-la, fazer do engenho aquele primor de que falam as páginas finais e de que fala o “relógio” do colégio, esquecendo-se, no entanto, de que, com a independência com relação à natureza, perdia também a liberdade de sua “natureza”. Não podendo mais enxergar a “natureza” do homem, não pode compreendê-la, fracassando seu projeto na totalidade, pois tinha ele se tornado o senhor deus do engenho de Marzagão. Lúcio é o profeta ideológico dos novos tempos: em favor de uma mensagem clara e vaidosa, censurava os anseios de sua “natureza”, recalcando o desejo de retorno à natureza (mãe, infância, soledade, natureza, Soledade) — o pleno conhecimento de si. A (auto)proibição do incesto em Lúcio corresponde, no drama de A bagaceira, à entrega do objeto amoroso,
representação de mãe, ao seu legítimo “marido”, Dagoberto, seu pai, e marca definitivamente o engajamento de Lúcio na ordem social, após o esperado assassinato do pai. Este pendular entre uma ordem social que se proclama racional e uma ordem “natural” que se esconde sob a rasura das reticências prefigura o bem-estar sem alegria. Bem-estar de “criador desiludido”.
1 ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, 9. ed., ver., Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. As citações são extraídas desta edição. Excelente o ensaio introdutório de Manuel Cavalcanti Proença.
2 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012, pp. 12-13.
3 “Já no parágrafo de abertura de La Portre Etroite, o narrador-personagem, Jérôme, confessa a sua incapacidade para escrever um livro, preferindo entregarse antes à narrativa simples das suas lembranças, mesmo porque a busca do “esforço literário” estragaria o prazer que poderia sentir simplesmente dizendoas, evocando-as. [...] Falso natural: no adjetivo a busca de um estilo que não se adapta ao autor (Gide), mas ao narrador-personagem Jérôme); o despojamento necessário para que a inteligência, o refinamento, a cultura e a sensibilidade do primeiro não tornem inverossímil a história contada pelo narrador-personagem” (V. O Ateneu: contradições e perquirições, neste volume).
4 Não temos espaço aqui para desenvolver um ponto comum entre Caetés, La Nausée e Les Faux-Monnayeurs, mas adiantamos que em todos eles a narrativa dramatiza a sobreposição de um determinado discurso por outro. No caso de La Nausée é Roquetin que desiste de seu projeto sobre o Marquis de Rollebon para se entregar ao discurso autobiográfico: recusa pactuar com a História (cf. visita
ao Museu de Bouville e a descoberta dos salauds), colocação entre parêntese da cultura (cf. também o personagem do Autodidata), a aceitação de si como personagem (cf. a epígrafe de Celine). Em Les Faux-Monnayeurs a narrativa parte de uma ideia simbólica de representar os maus escritores por “moedeiros falsos”, chegando a uma realidade mais assombrosa e trágica, pois são os maus literatos que estão distribuindo as verdadeiras moedas falsas.
5 Aparentemente, existiria uma semelhança entre este processo utilizado no romance A bagaceira e o famoso capítulo de Brás Cubas, O velho diálogo de Adão e Eva, em que Machado deixa reticente a fala de Brás Cubas e de Virgínia. Creio que em Machado, mesmo sem querer defendê-lo de certo puritanismo escritural, o processo é consequência da busca de originalidade quando a taxa de redundância é muito alta. Isto é, produzir de novo as palavras bíblicas, ainda que em processo de paródia ou de simples apropriação, seria se repetir inconvenientemente. Além do mais, lembremos que em Machado existe sempre declaradamente um jogo franco entre narrador e leitor, tendo em vista uma maior participação deste no movimento de inscrição do texto na folha de papel. Como exemplo, o jogo de múltipla escolha que o narrador prepara para o leitor quando há melhor comparação para “ideia fixa” (cf. Cap. 4).
6 Nunca é demais chamar a atenção para o fato de que não estamos diante de um caso de elipse dentro da continuidade narrativa de A bagaceira. Casos de elipse existem, e são abundantes quando se trata de representar cenas sexuais, basta que nos lembremos da célebre cena de o Primo Basílio, ou dos constantes cortes elípticos (com ou sem metáfora de fogo ardendo, de mar encapelado batendo contra rochedos etc.) dos filmes comerciais. Aqui, existe mesmo um processo de (auto)censura do texto, na medida em que o corte é indicado pelo travessão que assinala a fala da personagem, pelas reticências e pelas palavras do feitor que repetem similares do patrão. Não se trata, pois, no A bagaceira, de uma estética da “sugestão”, ao gosto simbolista (Mallarmé) ou fim de século (Machado, por exemplo), em que se escondia o objeto ou a cena a ser representada para melhor “gozá-la” no processo de “adivinhação” (paráfrase de Mallarmé, a partir da “Réponse à l’enquête de Jules Huret”). Conforme, ainda, Fernando Pessoa (Ricardo Reis): “Não quero pretender que a sugestão se exclua da poesia. O
mistério mais facilmente se sente quando sugerido do que quando dito. Mas só o mistério pode ser sugerido”.
7 Comenta Mário de Andrade no artigo Amor e medo: “Mas na Juvenília que aliás respira todinha amor e medo, do mais delicado e tênue, encontramos no poema sétimo, uma das expressões mais nítidas do medo de amar. [...] Varela foi, dentre os grandes românticos, o que mais intimamente amou e sentiu a natureza. Castro Alves, Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, a bem dizer pouco a sentiram, Gonçalves Dias deixou, inspiradas por ela, uma ou outra rara página bonita e mais numerosas mornidões. Varela tinha a obsessão da natureza, a que aliás, com a beleza sonora um pouco açucarada do seu verso, ele dá um polido de oleogravura, em que setenta por cento das vezes a gente encontra uma eterna e irritante cascata” (ANDRADE, 1972, p. 213).
8 Não seria tarefa fácil, mas cremos ser urgente, configurar uma determinada ideologia nordestina que se cristaliza em termos nacionais através da figura e do pensamento/ação de Tristão de Ataíde. É este que serve de entroncamento entre a posição de Joaquim Nabuco e de José Américo de Almeida: a veneração a um e a descoberta do outro. Tendo em vista o que estamos dizendo quanto à situação do jovem senhor de engenho, leiamos palavras do prefácio que Tristão escreveu para Minha Formação, datado de 1966: “Nabuco foi educado no meio dos Senhores, mas dedicou sua vida a emancipação dos Escravos. Foi o cerne de toda a sua carreira vitoriosa. Se a quiséssemos reduzir a um ponto único e central escolheríamos esse. Tudo mais derivava daí. Foi a ponte, o traço de união, o elo de dois mundos, de duas mentalidades, de duas classes absolutamente antitéticas. E como o fenômeno — Senhor-Escravo — continua a ser no século XX não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro, embora sob aspectos e nomes aparentemente díspares do que apresentou e, Escravidão negra no século XIX — a posição de Nabuco, analogicamente apresentada em nosso século, continua a ser de uma atualidade tão grande, senão maior, do que foi no século passado, daí sua maior atualidade, que nem o seu estilo literário nem tudo mais que fez em vida explicaria” (NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Rio de Janeiro: Edições Ouro, s/d — grifo nosso).
OS ABUTRES Somos a procura, a entrega, a fome e somos também o abutre do lixo americano. (José Vicente)
Porém, raramente os gregos traduzem verbalmente as profundezas da sua sabedoria e do seu conhecimento. Entre o grande homem do conceito, Aristóteles, e os costumes e a arte dos helenos, subsiste um abismo imenso [...]. (Nietzsche)
1. A curtição (sen-si-bi-li-da-de de uma geração, sensação, estado de espírito, conceito operacional, arma hermenêutica, termômetro, barômetro, divisor de águas etc.) já foi consagrada pela música popular, principalmente pelo chamado grupo baiano liderado bifrontalmente por Caetano e Gil, que comporta grandes realizações, entre elas o extraordinário primeiro disco dos Novos Baianos. Teve seus momentos de visualização com os filmes de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Neville de Almeida, os super-8 de Ivan Cardoso, e com as peças de Antonio Bivar e José Vicente. Criou redações de jornal e de revista no Rio, em São Paulo e em Salvador. Nas bancas Presença, Flor do mal, Rolling stone, Verbo etc. A curtição ocasionou cisões homéricas e irrecuperáveis: entre a patota do Pasquim e os seguidores do guru Luís Carlos Maciel; entre o pessoal que gosta dos baianos que voltam e os que são fãs do Milton Nascimento que ficou e que não dispensa sua caipirinha; entre os bem-situados badalados do cinema novo e os arrivistas malditos do cinema boca de lixo, para ficar com alguns
exemplos recentes. A curtição deslocou o eixo da criação da terra das palmeiras para a London, London, descentrando uma cultura cuja maior validez e originalidade tinha sido o de delimitar cultural, artística e literariamente determinada área geográfica que por coincidência se chamava Brasil. Deslocou o eixo linguístico luso-brasileiro para uma espécie de esperanto nova geração, cristalizado em palavras poucas que se tornaram senhas entre os iniciados. Finalmente deslocou o eixo musical samba (ou bossa-nova) para uma certa “latinamericanidade”: todos os ritmos são bons, como disseram Torquato Neto e Capinam em momento anterior e tropicalista. A curtição: Minha terra tem palmeiras / onde badala o Big-ben. A curtição foi capa da revista Veja e seguramente assunto da revista Manchete. A curtição é vendida discretamente pelas agências de publicidade (entre na sua!), através de cartazes na parede, radinhos de pilha e televisão na sala. Parece que agora chegou a vez da curtição (sen-si-bi-li- -da-de de uma geração, sensação etc.) afetar aquilo a que por tradição e comodidade histórica chamamos de texto literário: discurso fictício, em geral sob a responsabilidade de um ser de papel, o narrador, discurso que (des)obedece a algumas regras da retórica da ficção determinadas pelas obras do passado literário. O atraso da literatura com relação a outras formas de expressão artística já chega a ser normal na nossa época, e talvez neste preciso momento em que a arte da curtição ouve o seu canto de cisne é que a literatura comece a tomar conhecimento do que esteve acontecendo. Perdemos o bonde; não percamos a esperança. Tal atraso tem sua razão de ser no fato de a nova geração olhar com tremendo pouco-caso a comunicação verbal e de considerar ainda com violento desprezo o que se define hoje como escritura. E também porque, do ponto de vista sociológico, estejamos diante de uma geração que curte o gregário, estando, pois, impossibilitada de aceitar a regra maior para a leitura do texto literário, a solidão. Geração, portanto, que se encontra pré-moldada, inconsciente ou conscientemente, pela teoria que visa a baixar a cotação da escritura na cultura do homem ocidental, desmistificá-la, dessacralizá-la (teoria expressa pelo grupo de teóricos franceses, conhecido como estruturalista, e em particular por LéviStrauss¹), e ainda predisposta pelos acontecimentos artísticos coletivos que são indícios seguros de um fim de século tecnocratizado e romano: as salas de cinema, os estádios, os festivais de música popular. Desconsideração para com o objeto escrito e congregação em torno de um acontecimento coletivo que capta a atenção e alucina o corpo e a mente — tais são as oposições que entram em jogo, criando um espaço não burguês, não caseiro, onde se pode fruir os prazeres da
arte, sem se comprometer com a rigidez dos princípios da ideologia dominante. Por isso tem-se criticado esta geração por dois lados: em primeiro lugar, dizem que são incapazes de articular verbalmente seus desejos, ansiedades e angústias, seu estar no mundo. Essa atitude dúbia quanto ao valor e à significação do signo linguístico se encontra expressa numa máxima lapidar de Gramiro de Matos, em que se vislumbraria quase o dedo de Jacques Derrida: “Posso nomear objetos que os signos substituem. Falo sobre eles. Não posso enunciá-los”. E por outro lado, são criticados pelo anarquismo, licenciosidade e promiscuidade com que cercam seus encontros coletivos. Geração, portanto, que desconfia da palavra e da ordem imposta. Da ordem imposta pela palavra. Geração que privilegia a comunicação não verbal e a (des)ordem que esta instaura no solo já grego das taxinomias vocabulares, e que fundamentalmente traduzem uma organização ética e dicotômica dos valores sociais. É preciso descongestionar a vista e o ouvido da palavra — parece que foi a ordem geral —, mas para isso é antes preciso massacrá-los com o som. O som que rompe tímpanos (que levou o intransigente Millôr Fernandes a criar o KaliSono, aparelho que defende o cidadão “de todos os talentos musicais à solta na vizinhança”) desune verbalmente o grupo, mas une comunitariamente os vários membros na curtição. Seria preciso começar a pensar as manifestações artísticas da nossa época não tanto em termos de leitura, mas em termos de curtição (novas regras de apreensão do objeto artístico). Uma desloca a outra e inaugura um novo reino de gozo, de deleite, de fruição, de prazer estético.
2. As novas regras seriam ditadas (eis uma maneira de começar a analisar o problema) pelo próprio exame do texto ou do objeto artístico que se inscreveria dentro da nova estética. Uma primeira noção que adiantaríamos é que o trecho é valorizado, enquanto o todo é relegado para segundo plano. Não é por acaso que estamos de novo diante daquele mesmo fragmentário que foi a marca registrada de Machado de Assis, de Oswald de Andrade e, um pouco mais longe, de Nietzsche. O aforismo contém a verdade. O trecho aparece trabalhado, bordado, rendado, pedindo, portanto, apreensão sintética (o fragmento) e ao mesmo tempo analítica (o bordado). Com isso também se perde a noção de continuidade narrativa, tão importante para a estética que nasceu com o século histórico por excelência, que foi o XIX. A continuidade no e do texto, o discursivo, só faz
sentido se se pensa dentro de uma lógica linear e unívoca, em que o contraditório é expulso em favor da dicotomia seletiva, do pensamento que se expressa em termos de forquilha e de opção. Desde Mallarmé (“evita-se o discursivo”), o problema é (des)arranjar o texto na folha de papel, seja através de uma dispersão da inscrição gráfica, com a valorização do silêncio, do branco, seja ainda através do uso de uma tipografia variada que excluiria o texto dos moldes e da uniformidade do livro ocidental clássico. Visto que o interesse é o de exigir do leitor que curta o texto, diversos recursos podem ser utilizados para causar o que os formalistas russos chamam de “estranhamento”, termo cunhado por Chlovski em artigo cujo título explica bem o espírito da curtição, “a arte como artifício”. Esse efeito assinala a quebra do automatismo encontrado na apreensão e expressão linguística de todos os dias, e abre campo para a invenção e o exercício total da liberdade de criação. Diz Chklovski (segundo a versão francesa de Todorov): “O artifício da arte é o artifício da singularização dos objetos e ele consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção”.
3. Sem dúvida estas três categorias do estranhamento são mais que justas para uma primeira compreensão da estética da curtição: obscurecimento da forma, aumento da dificuldade e maior duração no processo de apreensão. Daí que o artista da curtição prefira o fragmento, a minúcia, o babado, esquecendo o que o escritor tradicional chamaria de alinhavo do texto, a costura do texto. São realmente textos-retalhos, desalinhavados, que temos diante de nós. Com isso, a ordem é curtir um barroquismo formal que se expressa pelo manuseio amaneirado e excessivo da frase e da palavra, fazendo com que ambas adquiram cambiantes arco-íris de fragmento para fragmento, ou mesmo dentro do próprio fragmento: “Deus Dabo Daus / nafivo nativo navivo”, por exemplo. Nenhum desejo de sistematização, nenhuma busca de estilo, a não ser a sistematização do estranho, do novo, do inesperado, da surpresa, da falta de estilo. Disso deriva o fato de que assim como se curtia mais o som do que a letra em música popular, os autores jovens de textos literários parecem nos dizer que devemos curtir sobretudo a sonoridade da palavra. Talvez não fosse impróprio chamar esta arte de arte do significante (aproveitando a dicotomia saussuriana). Diz Gramiro de Matos, (nos parece) citando: “[...] a poética poeticidade da forma tanto a
sensação mágica, visual das palavras, quanto a eficácia sonora delas”. E ainda: “As formas — esqueletos das frases — transmitindo ao subconsciente vibrações emotivas subtis”. Assim sendo, os recursos técnicos que usam são menos comuns dentro da seriedade da literatura, e mais comuns dentro de uma estética Dadá. Repetições constantes de palavras, de frases; grafia das palavras em contínua metamorfose; capítulos escritos de traz pra diante (para serem lidos no espelho) etc. Já José Vicente, talvez o mais articulado de todo o grupo, nos dizia que escreve “porque escrever é minha forma de brincar. É meu brinquedo favorito”. A linguagem redescoberta pela criança no seu aspecto mágico e encantatório de abre-tesésamo, quebra-cabeça, charada, enigma. Ainda no seu deslumbrante e guloso aspecto de macarrão de letras que se ingere (“Ponho-me a escrever teu nome / com letras de macarrão [...]” — Carlos Drummond), de cubos que se empilham ou se perfilam em busca de uma palavra que (talvez sim, talvez não) exista no dicionário. Tudo indica, pois, que a arte da nova geração, erguendo-se como brinquedo, encontra sua satisfação em uma apreciação lúdica em que o interesse maior vem do fato de o curtidor (visto que a palavra “leitor”, já nesta altura, guarda certo ranço) manobrar o texto como se apresentasse ele “modelos para armar” (Julio Cortazar). Levando o lúdico até as últimas consequências, afirma Caetano em entrevista a Rolling Stone:
[...] mas a arte mesmo é o jogo. Eu acho que sempre que a gente pensa estar jogando moralmente com a arte, ou politicamente com a arte, a gente está é jogando artisticamente com a moral, ou artisticamente com a política, quando a gente é artista.
Esse deslocamento das problemáticas política e moral para o plano do artístico marca sem dúvida alguma a diferença básica entre os tropicalistas de 1968 e o grupo de artistas que em 1972 desabrochou (e entre estes incluiríamos alguns daqueles tropicalistas que sentiram a necessidade de se transformar, como José Celso Martinez, em bela e comovida entrevista que deu a Veja, “Crise, mon amour”, 31-1-73). Basta que se compare, por exemplo, o trecho citado de
Caetano com os dizeres de um panfleto que os atores de Roda viva (encenação de José Celso Martinez) jogavam para a plateia:
Todos ao palco!!! Abaixo o conformismo e a burrice — Pequenos burgueses! Tire a bunda da cadeira e faça uma guerrilha teatral, já que você não tem peito para fazer uma real, porra!!!
Nas palavras do grupo Oficina havia a culpa e o ressentimento, até mesmo a noção de uma capitulação ideológica diante de um outro grupo que se apresentava valente, destemido, autêntico. O espetáculo artístico, teatral, pela sua impotência, nada mais podia ser do que um simulacro para pequenos burgueses de um movimento que era real, verdadeiro, revolucionário.
4. Urubu-Rei, de Gramiro de Matos (Ramirão), publicado pelas edições Gernasa, e Me segura qu’eu vou dar um troço, de Waly Sailormoon, editado pela José Álvaro, ambos em 1972 — são os textos literários a que estamos nos referindo e nos referiremos. O autor do primeiro texto se chama na realidade Ramiro Matos, tendo acrescentado ao seu nome um G inicial e a preposição de em homenagem a Gregório de Matos. O nome do segundo é Waly Salomão; a modificação no nome tendo sido na certa influência da palavra-montagem joyciana, dando por resultado este “marinheiro da lua”, de que fala o próprio Gramiro em entrevista a Bondinho. Aliás, não é por coincidência que Waly se tornou bastante conhecido como outro marinheiro, o da canção Vapor barato, grande sucesso da cantora Gal. Dentro ainda de uma descrição apressada, poderíamos arrolar as seguintes características dos dois livros. Me segura é mais anarquicamente convencional, enquanto Urubu-Rei surge como disciplinarmente vanguardista. Diz Sailormoon a certa altura do seu texto:
Juntar todos os meus escritos, botar debaixo do braço, levar pra Drummond ver, bater na sua porta, entrar em sua casa pra ouvir o poeta falar que literatura não existe. Pela manutenção do culto aos mestres, do aprendiz.
O primeiro é de leitura (e emprestamos a este conceito apenas o seu significado tradicional) quase impossível pelas distorções monstruosas operadas na linguagem, requerendo, portanto, uma nova maneira de abordagem, enquanto o segundo prefigura uma espécie de Fernando Braga Mendes Campos, ou mesmo A vida como ela é, do barato. Em ambos o mesmo desejo de dar xeque-mate nos reis imberbes que ocupam as penas dos críticos e as páginas dos suplementos literários e que começam a invadir a Academia Brasileira de Letras. Por exemplo, os nomes tão falados de Callado, Cony, Clarice, João Cabral, Autran Dourado, Rubem Fonseca etc., não aparecem citados nos dois livros. Em ambos o apego desmesurado e radical a alguns poucos mestres do passado e do presente (lidos as vezes só na coleção Nossos Clássicos) que, segundo eles, transmitiram e transmitem lição sábia para a atual geração: Gregório de Matos, Sousândrade, Qorpo Santo, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, entre os nacionais; Dadá, Pound e Joyce, entre os estrangeiros. Diz, por exemplo, Waly no seu delicioso Minuto de comercial (que prenuncia seu mais recente texto, Na esfera da produção de si mesmo, inserido no almanaque Navilouca) que ele próprio é:
[...] leitor apressado bobo calhorda [...] pretensioso de Sousândrade Oswaldândrade Guimarosa, ou seja, leitor do certeiro corte dos concretos. Leitor dos fragmentos 45 e 81 da edição brasileira bilíngue dos Cantares.
E Gramiro, em entrevista concedida a Bondinho:
Conheci Sousândrade agora através de Augusto o anjo dos campos já havia viajado mais pela manga Rosa do jacaré do São Francisco que não vai secar em Fragmentos do Finnegans Wake [...].
No lado brasileiro — percebe-se — o indício certo da escolha tem sido o fato de o escritor ter sido um marginal da literatura; não a marginalidade de um Álvares de Azevedo com as noites na taverna e o culto a Satã, mas o marginalismo criativo que dificulta a entrada do escritor para a História da Literatura pátria. Marginalismo não tanto temático, mas um marginalismo de linguagem, de silêncio, na medida em que aqueles autores, pelo alto grau de criatividade com que cercaram suas obras, foram obrigados a transgredir os códigos linguísticos mais contundentes, o dicionário e a gramática, o léxico e a sintaxe. Poderíamos exemplificar com Gregório de Matos e Sousândrade. Conforme assinalou muito bem Antonio Cândido, na Formação da Literatura Brasileira, Gregório de Matos não existiu “literariamente” até o Romantismo, defasagem entre a escritura e a leitura, entre a obra e a aceitação desta obra pela “literatura” que lembra defasagem semelhante que existiu entre a publicação do Guesa Errante e a sua descoberta pelo grupo Noigandres. Poderíamos sem susto afirmar que tanto Gramiro quanto Waly são consequência direta do espírito revisionista que tem primado não só pelo fato de rever criticamente a literatura brasileira, como ainda por pensar novos modos de organização para uma História da Literatura brasileira, visto que os métodos de ordenação que conhecemos (o método histórico, o de estilo de época etc.) têm cometido barbaridades com o nosso acervo. E finalmente — aproximando-se dos nossos dias — diríamos que pairam no ar como pontos astrais de referência para as viagens de Gramiro e de Waly, a galáxia concreta paulista (“certeiro corte dos concretos”), os nomes citados no primeiro parágrafo deste capítulo, e mais a figura-guru, o enigmático curtidor de bólides, ninhos, labirintos, mentor supremo e pouco democrático da novaPalavra: Hélio Oiticica. Hélio, de Nova York, dá régua e compasso ao grupo com cartas, heliotapes e hospedagem. No East Village — é claro.
5. Finalmente, tanto no Urubu-Rei quanto no Me segura, nota-se um pouco-caso extraordinário (afinal estamos falando de literatura) pelo que se chama o lado castiço da linguagem do escritor. Seus livros são permeados de palavras e de frases estrangeiras, sendo que temos como resultado uma macarronada
linguística, digna do cosmopolitismo novaiorquino ou paulista. No caso de Gramiro, já na primeira página não sabemos se o livro tem mais vocábulos parecidos ao espanhol, ou ao português, e mais tarde indagamos se afinal não estaria escrito em tupi-guarani. Já Waly — à semelhança do Nelson Pereira dos Santos de Fome de Amor — não esconderia as suas perambulações linguísticas em ritmo universal, apregoando no final do livro: “Uma imagem à venda: comprem o macarrão do Salomão, salada do Salomão”. Tal tomada de posição deve ser interpretada, em primeiro lugar, como um total descaso pela problemática da língua (brasileira, ou qualquer outra) e um interesse marcado pela pesquisa na linguagem. Assim sendo, tanto o projeto de Caetano, de Gil, quanto o de Gramiro ou de Waly, se situam teoricamente mais próximos do arrojo cubo-futurista de Oswald de Andrade, e bem distante estão das discussões marioandradinas em torno de uma possível gramatiquinha do falar brasileiro. Não existe neles, como não existiu em Oswald, um desejo de codificar o estilo literário modernista, ou melhor dito, nem ao menos pensam todos eles que seja possível falar em termos de estilo literário, ou de estilo de um autor, pois a inovação morre no mesmo instante em que nasce. Esta também é a lição de Guimarães Rosa (quantos não gostariam de que ele não tivesse ousado ainda mais em Tutameia; Grande Sertão já era demasiado), e não é de modo algum a lição de Manuel Bandeira, como estaria expressa no tão citado poema Evocação do Recife. O signo linguístico não tem nacionalidade e na época de abertura de fronteiras culturais (“oriente ocidente!”) todas as línguas eram válidas desde que fossem elas capazes de traduzir com exatidão e eficiência os desígnios do autor, ou mesmo a fa-tal/idade de ser escritor em uma época tão apocalíptica. José Vicente chega mesmo a afirmar em entrevista a Bondinho, como que secundando palavras de André Breton quando definiu a problemática da écriture automatique, a sua falta de controle sobre o objeto que ele mesmo estava construindo: “Olha, quando eu escrevo, me sinto sendo conduzido. O próprio tema me parece, assim, independente da minha escolha. Então, o resultado ultrapassa também o que eu esperava”. Por outro lado, a salada linguística reflete pouco-caso pelo apenas nacional e o desejo de inscrever o projeto literário em algo mais amplo e mais válido (em termos puramente artísticos): a cultura planetária. Assim é que, de início, estamos diante de uma geração que, recusando as regras de jogo impostas pela tradição cultural renascentista (por que o corte Dante, Shakespeare, Camões, Cervantes, se não porque codificaram uma língua nacional?), coloca em questão as fronteiras, os limites, os passaportes, lutando por valores abstratos e
universais, como a paz, a alegria, o mágico, o maravilhoso etc. Entre parênteses, ratificando o julgamento dos críticos da curtição universal se ouve a voz de Lautréamont: “A grande família universal dos seres humanos é uma utopia digna da lógica mais medíocre.” Fechemos o parêntese. Talvez por aquele motivo é que seja este um movimento que se inscreve pouco dentro das categorias de nacionalidade em que estamos acostumados a pensar e a trabalhar (os diversos departamentos dentro das faculdades de Letras), e se inscrevem mais como projeto de duplicação dos fenômenos agudos da nossa cultura jovem, atual, universal. Ariana não traria mais para Teseu a linha da fronteira pátria, talvez apenas o cordão da idade. Segundo eles, os problemas devem ser pensados mais em termos de geração do que de nação. São eles “os abutres do lixo americano”, ou como diz Waly, existe qualquer coisa de “TRASHico” em tudo isso. A configuração do espaço artístico não seria pois mais feita levando em consideração características nativas, mas antes de mais nada constantes universais, preocupações, de uma determinada faixa da população do planeta.
6. A crítica mais válida que se pode fazer ao grupo (e seria esta de caráter sociologizante) seria que, perdendo o contato com o nacional, com a cultura brasileira institucionalizada, mais e mais perdem a originalidade de expressão, pois se situam no espaço do estrangeiro em relação a nós, brasileiros, e em relação aos outros, que os considerarão sempre estrangeiros. Caetano justifica sua escolha:
Apavorante é ser exterior. Porque o fato de você ter uma nação, um lugar com uma série de relações, funciona como novo útero: tudo o que está fora disso apavora por estar fora. É uma sensação reacionária de querer ficar, não querer sair. Agora, como você sabe, desse útero fui expelido com uma certa violência, e o próprio fato desse exterior não ser sofrido é confortador.
José Vicente não esconde a sua marginalidade dentro do marginal europeu que é a ilha de Wight:
Na ilha de Wight, por exemplo, eu vi aquela gente toda linda, maravilhosa... Eu me sentia vindo de um lugar tão mais cruel, tão mais violento, sabe, onde a gente sempre teve que conquistar as coisas na marra.
Antonio Bivar, apresentando a primeira versão de O cão siamês no programa da peça, justificava a si e à heroína da peça como marginais, não tanto dentro da sociedade brasileira, mas dentro da “sociedade de consumo”:
Relendo a peça várias vezes eu cheguei à conclusão de que ela me coloca em defesa dos marginais. E aqui, a palavra “marginal” não adjetiva o tipo “cliché” de certas áreas da cidade, mas os marginais de uma maneira geral, incluindo os novos marginais dentre os quais eu me coloco e portanto me defendo.
Uma primeira resposta à crítica sociológica a que nos referimos poderia ser dada através de uma análise da reavaliação da cultura de massa que o grupo vem fazendo, desde o primeiro sopro dado por Tropicália. Esta resposta poderia ser complementada por uma sutil diferença entre a cultura institucionalizada brasileira (que eles verdadeiramente rejeitam, seguindo os passos de Oswald nos manifestos dos anos 1920) e a cultura que o povo vem organizando dentro das suas próprias categorias, categorias estas que são taxadas de mal gosto pelos donos da cultura. Assim é que Caetano se aproxima de Luís Gonzaga, canta Coração Materno de Vicente Celestino, enquanto Gramiro de Matos pode se apresentar como “um Valdiki Sorianfo da literapura brasileña”. Assim é que pretendem não tanto fazer uma integração nos valores universais dos valores nacionais institucionalizados, mas antes inserir no contexto universal aqueles valores que foram marginalizados durante o processo de construção da cultura brasileira. Batmacumba — foi a fórmula encontrada por Gil. Os valores marginalizados seriam tanto um Sousândrade, quanto o morro da Babilônia (Waly), ou o carnaval, que, como disse Oswald, é o “acontecimento religioso da raça”. Daí o fato de que para operar tal integração tenham de se liberar do espaço contaminado pela instituição, com isso descentrando a geografia da arte
brasileira. O exílio em lugar de ser o signo certo do retorno e da descoberta, como no caso dos modernistas de 1922, é a estrela de Belém da ida e do encontro. Essa talvez seja a grande diferença entre a nova geração e o pensamento de Oswald de Andrade. Gil: Considere, rapaz a possibilidade de ir pro Japão [...] Se oriente, rapaz pela rotação da terra em torno do sol.
7. Para maior eficiência na persuasão, seria interessante definir os textos de Gramiro e de Waly pelas coordenadas modernistas da vanguarda dos anos 1920: afirmaríamos que Urubu-Rei guarda parentesco maior com Macunaíma, enquanto Me segura se filiaria sobretudo à vertente oswaldiana das Memórias sentimentais de João Miramar. Se uma coisa é certa com relação a esses dois novos textos é que guardam o mesmo “estranhamento” que apresentavam os textos de Mário e de Oswald com relação a literatura que então se praticava. Textos, portanto, de vanguarda (sem que nisso entre qualquer julgamento de valor), dentro do mesmo padrão que ditava o espírito de 1922. Também tal tipo de aproximação não esconde a intenção nossa de incluir os novos projetos dentro do que se chama literatura brasileira, forçando, pois, os críticos oficiais, que têm primado pelo silêncio, a voltar olhos e julgamento para essas manifestações, seja através da rejeição, seja através da aceitação, mas justificadas. A partir, pois, do parentesco “modernista” estabelecido, altamente comprometedor (veja Bom conselho), podemos organizar o seguinte quadro que, por um lado, determina o engajamento de cada texto com o texto anterior, e por outro lado define as diferenças mais óbvias entre os dois. No lado esquerdo características de Urubu-Rei, e no direito de Me segura: tupi-guarani gíria citadina
indígena marginal mítico mitológico (grego) selvagem urbano Uma primeira e básica diferença entre os dois textos é que o tupi-guarani não aparece no livro de Waly, como aliás não aparecia nos livros de Oswald, como assinalou com perspicácia Décio Pignatari, enquanto no livro de Gramiro forma mesmo o arcabouço ideológico e linguístico do livro, na medida em que é de capital importância para ele o aproveitamento de lendas indígenas no original (e desde já Urubu-Rei fica a espera do seu Cavalcanti Proença). Sobressai do todo o extraordinário capítulo intitulado e traduzido Mai Pituna Oiuquau ãna / Quando a noite apareceu, não só pela mistura homogênea dos textos em tupi e português, mas porque Gramiro fez com que a língua portuguesa se conformasse sintaticamente ao tupi, dentro do que se poderia chamar de uma tradução literal. Seu projeto se instala, pois, como antípoda das realizações, por exemplo, de José de Anchieta no seu teatro catequético, em que também houve a mistura de línguas. No texto “traduzido” de Gramiro há coisas estranhíssimas e belíssimas como: “O princípio durante não havia noite dia somente” ou: “Dos grilos era o barulho, e dos sapinhos com ele”. Tal problemática linguística colocaria de novo em órbita a célebre Carta ao Dr. Jaguaribe, apêndice a Iracema, em que José de Alencar analisa a possível contribuição da língua indígena na confecção do projeto literário brasileiro. É claro que Alencar toma atitude bem mais moderada e servil ao léxico e sintaxe portugueses (embora seja bastante revolucionário para sua época), enquanto Gramiro leva a maior drasticidade a interação-integração das duas línguas, quebrando mesmo o que Alencar chama de “harmonia da língua civilizada”. E se Alencar pede que no romance “a língua civilizada se molde quanto possa a singeleza primitiva da língua bárbara”, já Gramiro acredita que o problema não é tanto o da singeleza, mas o da conformação de uma aos moldes linguísticos da outra, havendo portanto no caso contemporâneo uma subserviência do português aos padrões do tupi-guarani. Já Alencar — apesar de pregar ele uma mistura harmoniosa — punha mais ênfase na codificação linguística tal qual expressa pela língua europeia, interpretação que seria corroborada por expressões como “Deus verdadeiro”, quando se refere ao esforço da catequese, negando, pois, tanto no âmbito linguístico quanto no religioso, a possibilidade de o pensamento teológico brasileiro ser sincrético.
O projeto de Gramiro de Matos, por isso mesmo, comporta todo um lado utópico e agônico que é ao mesmo tempo seu fracasso e sua redenção.
8. Compreende ele que o selvagem para nós só pode viver na sua materialidade de texto, de mito (a lição de Lévi-Strauss bem absorvida), já que tanto na sua materialidade histórica quanto vivencial o processo de colonização português foi tão violento que qualquer recuperação não chega a alçar voo do solo ensanguentado. No seu próprio linguajar Gramiro confessa a insuficiência do seu projeto que deseja se incorporar a uma civilização já morta:
A forma deste livrus não tem solução. Na uni-e sensível clarez com que sé i põe todo instrupício duma civilização kua soçobrou morr-eu eu eu em ondas soluços soço perd-eu eu eu estacas.
A própria definição que nos deu da figura do urubu-rei não deixa de certo modo de nos lembrar esta mesma atitude de inutilidade e de segunda mão, diante dos fatos que se podem ser refeitos por uma atitude estética ou ética, deixando pois que o artista fique sendo o abutre pop-rock de que fala José Vicente, ou este outro urubu-rei aborígene. A diferença entre os dois abutres marcando momentos distintos do que Gramiro de Matos chama de “latinoamericâncer”.
Ave sugadora de olhos y cérebros dos animais mortos. Segundo a mitologia indígena, o Urubu-Rei se alimenta num ritual estranifo, penugem negrunda limada, cabeça vermelha de listuras brancas, aproxima-se do cadáver antes d’sol virar mamão, manha pitunazinha, sozinhão fogueteiro i, sobre a cobertura dos outros todos carvão se arrespeitando unsansou’ tros comepica, silenfosso os olhos do animal de morte vesperal, Depois os demais esfincam os bicões nas karnes restrumo.
Essa mesma figura, o abutre, aparece com constância no livro de Waly, mas ligada ao mito de Prometeu (que por sua vez vem ligado a Édipo e Narciso), lembrando um belo e curto conto de Kafka que leva o mesmo nome. Esta nova e outra visão do abutre está comprometida com um movimento interno de autodilaceração, que coloca Me segura em uma faixa autobiográfica, sofrida, pessoal, e, portanto, o texto apela menos para ressonâncias histórico-sociais, visto ser seu Prometeu antes de tudo uma expressão da individualidade estraçalhada. Escreve Waly: “Abutre aponta o bico pro meu fígado / desce pra bicar abalar arrancar meu fígado de acorrentado”. Todas essas citações aliás nos lembram em última instância a abertura do Guesa errante, maravilhosa epopeia às avessas de Sousândrade, com a mesma figura alada que paira sobre os Andes e que desce em rapina para surpreender o índio desprevenido. E completa Sousândrade sua alegoria, transformando a ave de rapina numa “nuvem ibérica”: Nos áureos tempos, nos jardins da América Infante adoração dobrando a crença Ante o belo sinal, nuvem ibérica Em sua noite a envolveu ruidosa e densa. Cândidos Incas! Gramiro de Matos tem razão quando afirma que sua “curtição é muito cheia de filosofuias”. Já Waly Sailormoon prefere trabalhar com a gíria, com o linguajar urbano, seguindo os passos do que Nelson Rodrigues fez para a zona norte no seu teatro, ou ainda prefere ele se inscrever em um mundo mítico que é, ou bem o da grande cidade (com apropriações dos novos arautos da verdade, jornais como Notícias Populares, O Dia), ou bem o do espírito grego, como já assinalamos. Nesse mesmo plano de indagação, descobriremos que Gramiro se situaria mais dentro das páginas do Antigo Testamento, ou mais precisamente junto aos profetas hebraicos, como indicariam as significativas apropriações de Ezequiel (p. 31), Isaías (p. 79 e p. 120) e Jeremias (p. 121). Em dado momento afirma Waly: “Tudo no Brasil faz parte de uma grande peça
de Nelson Rodrigues”. Seu livro pretende ao mesmo tempo descrever a realidade dos marginais que marcam encontro nas prisões, como também oferece um roteiro turístico do Rio — o underground e a superfície, o fundo e o superficial. De um lado, portanto, levantamento do comportamento de um grupo marginal na sociedade brasileira, grupo este que se comunica através de linguagem e mitos que Waly surpreende com graça, rapidez e delírio:
O filho do bicheiro que se entregou pra livrar o pai e estava morrendo de dor de garganta. [...] o detento pequeno-burguês que manda cartas pra noiva como se estivesse acidentado num hospital na Argentina. [...] O débil mental que perdeu a calça prum passista de Escola de Samba.
Por outro lado, a pequena burguesia zona sul é surpreendida pelos divertidos relatórios do agente secreto Longhair, ou por estes flashes incríveis: “Imagem — menino se desprende do bonde vindo se espatifar no capot do táxi que me transportava, salpicando de sangue minha camisa azul ferrete”. No entanto, como característica maior de Waly e como sinal do seu distanciamento do projeto de Gramiro e sua aproximação do de Oswald, o gosto pelo autobiográfico, seja pela insistência da sua própria fotografia na capa e no interior do livro, pela repetição no texto do seu próprio nome (grafado Salomão, Sailormoon, ou ainda narcisicamente de trás para diante como refletido no espelho do poço), seja ainda por um capítulo como Diário querido, ou por afirmações deste teor: “Só, só escrevo coisas autobiográficas. [...] coisas autobiográficas: gemidos duma alma torturada”. Urubu-Rei e Me segura qu’eu vou dar um troço: hipóteses de uma linguagem que se quer constantemente lúdica e livre, sem as peias do dicionário e da gramática; hipóteses de um esperanto nova geração em que se aglutinam textos alheios (“só me interessa o que não é meu” — Oswald) e slogans bombásticos; hipóteses de um desejo que se constrói sem entraves e em delírio, confinado ao mais bárbaro exercício de egolatria e de egotismo; hipóteses de marginais que buscam o pleno exercício do indivíduo na sociedade; hipóteses de um crepúsculo que se abre em apocalipse, albergue de abutres que entre luxo e lixo procuram instituir uma nova ordem, precária, absurda, profética. A profecia de Jeremias
se cumpre: depois de lidos, Urubu-Rei e Me segura seriam atados a uma pedra, carregados até o Eufrates e lançados nas suas profundezas: “assim será afundada Babilônia”. [1972]
1 Ver Uma lição de escrita, capítulo do já citado Tristes tropiques. A crítica a esse capítulo, do ponto de vista “pós-estruturalista”, foi feita por Jacques Derrida em Da Gramatologia, no capítulo A violência da letra: de Lévi-Strauss a Rousseau.
CAETANO VELOSO ENQUANTO SUPERASTRO Para Alôncio
O tema da diferença anulada ou invertida se encontra no acompanhamento estético da festa, na mistura de cores discordantes, no recurso ao travesti [...]. (René Girard, La violence et le sacré).
O missionário mostra-se alarmado com esse desprezo pela obra do Criador: por que os indígenas alteram a aparência do rosto humano? [...] O que quer que ele imagine, trata-se sempre de enganar. (Lévi-Strauss, Tristes tropiques).
1. A revista norte-americana Confidential procurou mostrar, na década de 1950, que os astros de Hollywood eram diferentes na vida real “para pior”. Piores do que parecem. Os astros tinham uma vida no palco ou na tela, e outra bem, mas bem diferente na vida real. O bom repórter do escândalo, da imprensa marrom, como se dizia então, era aquele que, pulando cercas e atravessando muros de ciprestes, lutando contra guarda-costas e cães treinados, conseguia surpreender o astro fora do altar e do seu comportamento ritual. Entrar no lar com ouvidos e câmara para capturar a vida privada, mesmo que no final das contas apenas recebesse em troca um processo judicial. Louis Malle fez um filme com Brigitte Bardot sobre isso. Dizem que Fellini também. Ou então: o espectador via um filme de Ray Milland em que ele fazia papel de pinguço. Começavam a dizer que sua interpretação era tão realista que ele tinha
de ser pinguço na vida diária também. O estúdio então convidava os repórteres das revistas cor-de-rosa para entrar sem cerimônia na casa de Ray: precisava-se de fabricar uma versão “para melhor”. Na intimidade do lar Ray é um excelente pai de família, extremado e carinhoso, amante da esposa e dos filhos (e tome fotografias de abraços e ternura). Isso foi por ocasião do sucesso de um filme chamado Farrapo humano. O título do filme pegou e agora se transforma, em nosso texto, em metáfora para o astro de então: farrapo humano. Uma revista dizia e provava que Tony Curtis tinha sido delinquente infantil. Outra dizia que ele levava vida de cidadão honrado e cumpridor dos deveres. Marilyn posou nua para uma folhinha — era a manchete. Ela precisava então de dinheiro, corrigiam. Marlon Brando, suado e de camisa de meia, interpretando um polaco bestial, agredia um repórter mais indiscreto. Nas boates era visto de smoking ao lado de delicadas e angelicais filhas do Oriente. Imprensa marrom ou cor-de-rosa: qualquer das cores, baseada que estava cada uma em critério estabelecido pela verdade da comunidade, isto é, pelo código de comportamento e de valores ditado pela middle class americana e que as revistas reafirmavam, ou pelo elogio ou pela crítica, ao homem ou ao ator. Não se podia sair das convenções sociais e profissionais, com perigo de ser desprezado muito mais pela máquina publicitária do que pelo público propriamente dito. A imprensa especializada tomava as rédeas da informação e da pressão, da repressão comunitária. Diziam: arte é ilusão e artifício, de acordo, mas o homem por detrás tem de ser diferente do ator. Para melhor ou para pior: nunca propunham um retrato do ator/homem ou um retrato do homem/ator; nunca procuravam uma identidade entre o ator e o homem, identidade que extravasasse os contornos definidos ou pela chamada vida real ou pela chamada vida artística, configurando finalmente uma pessoa que pudesse ser artificial em toda sua simplicidade. A imprensa agia como se o artifício fosse uma máscara que devia ser assinalada, que precisava ser constantemente descolada do rosto. Tirar a maquiagem do rosto do homem para poder lhe entregar a responsabilidade do cidadão atuante dentro da comunidade. Pôr a maquiagem no rosto do ator para indicar o começo da ilusão, da miragem. Luzes! Câmara! O ator não pode continuar homem. O homem não podia continuar ator fora do estúdio.
2
O superastro é o mesmo na tela e na vida real, no palco e na sala de jantar, na TV e no bar da esquina, no disco e na praia, porque nunca é sincero, sempre representando, sempre deliciosa e naturalmente artificial, sempre espantosamente ator, sempre se escapando das leis de comportamento ditadas para os outros cidadãos (e obedecidas com receio). Porque ele é diferente dos outros é sempre o mesmo. Para indicar que o espaço instaurado pelo superastro é o do mesmo, Caetano Veloso no seu último show está dando uma interpretação bem especial a Partido alto, de Chico Buarque, representando-a no palco como se ele fosse o próprio Chico. Comenta a revista Veja: “Há um grande impacto na versão do samba Partido alto, de Chico Buarque, cantado como se Caetano estivesse bêbado [...]”. O superastro vive em toda sua plenitude e contradição comunitária os 365 dias do carnaval e da máscara alheia. Esse é o sonho de Caetano, para ele e para os outros: “em que medida essa explosão [o carnaval] pode se generalizar, pode se estender para o ano inteiro” (Bondinho, nº 34). Ser a fantasia de Carmem Miranda todos os dias e todos os minutos, em todas as ruas e em todos os palcos. Ser 365 dias a festa e o sagrado, interromper de súbito o cotidiano, descerrar as suas mandíbulas de monstro, criando um clima perpétuo de fantasia e de mistério religioso. Fazer do mundo o templo, o “templo do caetanismo” — como gostam de falar os repórteres. Ser a fantasia de Carmem Miranda, com constância e alegria, liberando os sentidos e sentimentos aprisionados pela vida social, pela chamada vida séria, de trabalho e relógio de ponto. Carmem Miranda é a que levava a não seriedade ao extremo do paradoxo (a não seriedade é a seriedade) e ao extremo da realidade ilusória da arte (o real é o artifício), pois ela, nos diz Caetano: “tem o ar mais debochado possível e não há nada de mais profundo e sério, e mais terrível, que a frase que ela tá dizendo” (Bondinho, nº 34). O público não quis aceitar que terminassem de repente com o jogo da diferença, entre o ator e o homem, entre o sério e o artificial, entre a responsabilidade e a fantasia, entre o farrapo e o humano — e protestou. Protesto que se ecoou pela imprensa. O superastro respondeu com seu jargão: “Sem essa, bicho, a época é a do desbunde”.
3.
O desbunde não pode ser definido como se fosse um conceito e muito menos como se tratasse de uma regra de comportamento. É antes um espetáculo em que se irmanam uma atitude artística de vida e uma atitude existencial de arte, confundindo-se. Levar a arte para o palco da vida. Levar a vida para a realidade do palco. Representar no palco a realidade da vida. Representar na vida a realidade do palco. O superastro pode atuar de graça para o público das ruas, pode atuar na rua, para poder se apresentar despojado diante dos espectadores que pagam caro para ver o espetáculo do superastro em boates ou teatros. Ele simplesmente traz para o palco aquela mesma figura artificial e fantasiosa consumida nas diversas aparições públicas e documentadas com carinho pelos fotógrafos. Tanto na rua como no palco o superastro é um elemento catalisador: é ele o significante que indica, dentro do grupo social de que se aproxima, que vai começar o espetáculo, que chegou a hora do carnaval. Como em uma colagem surrealista, ao vê-lo se abrem no peito as cortinas e se acendem os spotlights. O relacionamento entre as pessoas se desloca do plano da vivência diária e passa a ser pura representação. O superastro é o significante em que os olhares se encontram para a metamorfose carnavalesca. Difícil é definir então o conteúdo deste significante, pois o significado é vário e distinto, polissêmico. Geraldo Mairink, na revista Veja (19-1-72), em uma mesma frase recorre a três definições distintas para Caetano, todas justas e contraditórias, todas condizentes só com o momento e só com ele: “Aplaudido na entrada como um deus, Caetano saiu sob os aplausos que não se dedicam às divindades, mas aos artistas; e, acima de tudo, às pessoas de quem se gosta”. É deus, é artista, é pessoa: é superior, é diferente, é semelhante. Tudo ao mesmo tempo. Porque Caetano é sempre o mesmo, é que ele pode ser “espontâneo” no palco. Essa foi a primeira dificuldade que teve Caetano para entrar no mundo artístico: “No estúdio não acreditavam nele [...] O Caetano tinha de cantar daquela maneira mesmo, espontâneo [...]” — disse Guilherme Araújo, relembrando as vacas magras (Rolling Stone, nº 13). Já sabia Caetano que o espontâneo do palco se paga com o extravagante na vida real, pois só o extravagante desperta o comentário, que é o alimento diário do superastro, seu néctar e sua ambrosia, seu pano de prato onde limpa as mãos sujas das canções. O superastro é notícia sem o querer, é seguido sem o saber. A patota do Pasquim não pode compreender isso: quando anunciaram que Caetano ia ser pai, transcreveram a notícia do Jornal do Brasil e comentaram na margem: “E da mãe, ninguém fala? Caetano vai ser pai sozinho? Viva o prafrentismo de bilheteria!” Os jornais disseram que
Caetano voltou de Londres com suas peles, envolto nelas. O superastro já o é fora do palco, da tela, do vídeo, do disco, e não precisa provar mais nada para poder ser superastro no palco, na tela, no vídeo, no disco. Precisa ser espontâneo, ser o mesmo. Necessita apenas de acessórios. Muitos acessórios. Um deles, o mais difícil, é o mais custoso: a boa gerência.
4. Tárik de Souza fala que chamam Guilherme de Araújo de “maquiavélico criador de mitos”. Roberto Freire lhe pergunta, em entrevista para Bondinho (nº 34), não escondendo certa malícia e bisbilhotice: “Dizem que você influenciava no comportamento cênico, no comportamento diante do público. Você criava uma imagem, as roupas?” Responde Guilherme de Araújo em entrevista semelhante para Rolling stone (nº 13): “Foi tudo muito simples. Passei numa loja e comprei [cafetãs] para eles. Era uma maneira das pessoas comentarem e Caetano logo se sentiu bem com o novo traje”. Acrescenta ele mais abaixo em um tom difícil de ser definido, se modesto ou arrogante: “Na época da revolução de maio na França [...] eu disse a ele [Caetano] que ele devia fazer uma música com a frase É proibido proibir”. O mesmo Guilherme Araújo, no início da carreira de Caetano e Gil, “procurava, para as colunas sociais, colocar [retratos com] roupas que pudessem ser descritas”. Com este último truque do empresário, o superastro saía do espaço reservado das colunas chamadas artísticas e entrava no espaço realista das colunas sociais, que comentam sem discriminação alguma tanto o espetáculo da vida diária como o do palco. O público se interessava não tanto pela maneira como Caetano se apresentava no palco, mas como representava na vida real. Isso porque ele ia para o palco com a mesma roupa que vestia no dia a dia. O repórter de Veja (191-72), que cobria a chegada de Caetano ao aeroporto do Galeão e o seu show no João Caetano, percebe isso, através de um significativo “como” que grifamos na transcrição abaixo:
[...] o Caetano Veloso de 1972 vestia uma modesta calça cor de areia, estilo “tomara-que-caia” e um blusão Lee muito curto, desabotoado com o umbigo de fora. Uma roupa no mínimo “diferente”, como a jardineira que usava ao
desembarcar no aeroporto do Galeão [...].
Depois de ter descoberto que não podia continuar para sempre com os blue jeans que a tornaram conhecida em “Carcará”, e passou a cantar os sambas satíricos do soçaite, Maria Bethânia começou a se vestir com a elegância da haute couture. Marcos André, em O Globo, de 18 de novembro de 1968, afirma: “No almoço do Museu de Arte Moderna, por mais incrível que pareça, a mulher mais elegante era Maria Bethânia [...]”. Para o colunista social era incrível que uma artista que se vestia até então com desbotados blue jeans pudesse se apresentar muito bem vestida em um almoço elegante. Ele não tinha compreendido que tanto o blue jeans quanto o vestido haute couture são artifícios do e para o mesmo espetáculo, e querer caracterizar uma pessoa, o superastro, pelo mais exterior do artifício e o mais passageiro — a moda — é sempre querer levar susto. Não se pode usar blue jeans para todo o sempre, nem roupas de plástico, descobriu Caetano. Muda-se de roupa, aliás, como se muda de decoração no apartamento. Um jovem colunista de Rolling stone (nº 2) se entusiasma com a variação de cores nas sucessivas decorações da cobertura de Ipanema onde mora Maria Bethânia, assim como Marcos André tinha se entusiasmado com as mudanças de traje: “Uma decoração que ela muda pelo menos três vezes por ano (agora está, tudo vermelho, antes era azul)”. E anota em seguida um detalhe que já se tornou famoso: uma motocicleta no canto da cobertura, uma Yamaha. “Atenção, garoto, amanhã ela poderá estar num Rolls Royce [...] não se assuste”.
5. Muitos acessórios caros, estamos vendo, que têm de ser obtidos em termos puramente econômicos. O superastro é um objeto caro por definição. Esta afirmativa, aparentemente óbvia e que nem devia merecer maior atenção de nossa parte, sofre, no entanto, objeções por parte de uma geração que vem questionando, ao som da própria música de Caetano e de Gil, que vem questionando teoricamente e pelo próprio comportamento social, os valores do mundo capitalista, da sociedade de consumo. Apesar da macrobiótica, apesar da simplicidade (sofisticada, é claro) dos jeans e das jaquetas Lee, apesar da vida
diária se desenrolar no mais das vezes dentro da banalidade (artificial, é claro) do cotidiano, apesar de tudo, Caetano e Gil são objetos que necessitam dinheiro para se mover, para representar na vida real e no palco. E porque precisam e porque são ouvidos e seguidos pelos que não tem dinheiro, aí surge uma constante fonte de mal-entendidos que tanto Guilherme Araújo, quanto Caetano e Gil, procuram aclarar em todas entrevistas. Transcrevemos este significativo trecho da entrevista com Guilherme Araújo (Rolling Stone, nº 13):
Pergunta — Não existirá uma contradição, artistas do underground, que se apresentam para um público quase sempre duro, cobrarem ingressos? Resposta — Não, em toda parte do mundo eles cobram. Só não consegui aqui uma coisa que vi lá fora, que era variação bem grande dos preços conforme os lugares dos ingressos. O que aconteceu, por exemplo, neste programa da TV Globo, foi que os grã-finos do Rio se sujeitaram a pagar 90 cruzeiros para serem figurantes de um tape.
Guilherme de Araújo engrossa com um jovem mais afoito e hippie na porta do Teatro João Caetano: “Aí eu tinha que dizer, se você comprou esta túnica indiana, tá de bolsa, tem cigarros, pode muito bem pagar os 10 cruzeiros do ingresso”. E salienta ainda que não pode existir qualquer tipo de discriminação no comportamento financeiro do empresário: “Na Bahia, 15 parentes de Caetano quiseram assistir e tiveram que pagar ingresso [...]”. E as informações desse estilo e tom são constantes. Por exemplo, Caetano fica com cinquenta por cento da renda líquida e os músicos com os outros cinquenta, enquanto Guilherme recebe os seus vinte por cento da renda bruta. Assim, a profissão de músico acompanhante, que é mal paga no mundo inteiro, recebe um tratamento decente por parte do superastro brasileiro, pelo menos é o que dizem. O famoso show para a TV Globo teve as suas cifras citadas e recitadas por todos os jornais e revistas e foi comentário dos jovens mais radicais. Pouco a pouco, no entanto, essa contradição vai sendo resolvida, pois os caetanistas de 1972 já não são mais os tropicalistas de 1968. Houve uma
transformação no espírito do grupo que transpareceu logo no poema de boasvindas que Luís Carlos Maciel escreveu para Caetano no primeiro número de Rolling Stone: “O trio elétrico está nas ruas, o sol está forte, o mar está calmo e a preguiça resvala na rua Chile [...]”. Com bastante acuidade a revista Veja descreve:
Os tropicalistas de 1968 faziam longos discursos e defendiam-se com teorias nem sempre exemplarmente claras. [...] O impacto da música de Caetano Veloso e Gil sobre o público jovem tinha forte molho de contestação.
Depois a viagem. Já os caetanistas de 1972 estão em uma “outra”, como diz ainda a citada revista: “a música como sonoridade, a disponibilidade com relação a vida, as experiências pessoais, o aprendizado do corpo, a macrobiótica”. Aquilo que se convencionou ser o estado de “curtição”, e que tentamos definir no texto Os abutres, sobre a literatura de Waly Sailormoon e Gramiro de Matos, e que leva epígrafe de José Vicente: “Somos a procura, a entrega, a fome e somos também os abutres do lixo americano”. Aliás, é José Vicente que tem uma frase definitiva sobre o problema monetário, apelando com propriedade para o caráter mesquinho desse tipo de crítica: “No caso de Caetano, dizer por exemplo que o Caetano virou consumo. Eu acho que ele está além disso, entendeu. A gente não pode amesquinhar a esse ponto” (Bondinho, nº 39). Outra coisa também é certa: o superastro não sabe lidar com a sociedade de consumo. Parece sempre querer insinuar que existe uma diferença radical entre a música no momento em que é divulgada pela primeira vez e, depois, quando já não tem mais dono, já tendo entrado de cheio na “deterioração” das interpretações dos cantores e das orquestras mais diversos. Talvez tenha sido Chico Buarque quem mais tenha sofrido os danos de tal fenômeno (A banda, Carolina etc.), e é dele que vem um grito de desabafo na entrevista estampada no programa distribuído durante a encenação de Roda-viva:
E que tristeza é assistir meses depois, seu trabalho desbotado num programa de domingo à tarde na televisão, bailarinas cansadas balançando as pernas, pra lá e pra cá, em ritmo de protesto. É por isso que me incluo no rol dos debochados.
Um mês depois de composto meu samba já não é meu. É mercadoria exposta ao consumo, desgaste, ridículo e rejeite.
Parêntese Gerência e acessórios e problemas econômicos, diga-se do superastro tupiniquim, em termos de país em desenvolvimento. Pois no caso do conjunto inglês Rolling Stones as coisas se passam de maneira semelhante, mas em escala majestosa, requinte só dispensado hoje em dia aos grandes estadistas e aos poucos grandes milionários como Onassis. Robert Hughes, em recente ensaio para a revista Time (17-7-72), “The Stones and the Triumph of Marsyas”, comenta o aparato técnico que cerca os Stones durante a sua excursão pelos Estados Unidos:
Há as providências de transporte, envolvendo a chegada pontual de pesados caminhões, os jatos particulares de apoio em campos de aviação reservados, a sincronização instantânea daquelas limusines pretas e discretas, que evidenciam e escondem o Superastro; a ultrassofisticada tecnologia de montagem do palco, com seus elevadores hidráulicos portáteis, espelhos de controle remoto e arcos ondulatórios; além disso, os correspondentes oficiais, Truman Capote, da Rolling stone, e Terry Southern, da Saturday Review.
O superastro é também um estilo de vida; é o envolvimento com este estilo que visa a dar ao artifício a nota tônica da artificialidade. Como não se pode ter controle do público (ver as agressões ocorridas no show de Altamont, com pânico e morte), assume-se o controle da imagem. E quando esta imagem vai ser divulgada pelo cinema, maior controle ainda, como nos indicam as diversas sequências do Gimme shelter que se passam diante da moviola, no momento dos arranjos da montagem. Nenhum defeito técnico. Nenhum descuido na encenação da vida diária, do cotidiano e do espetáculo no palco. De tal forma que o superastro possa viver em continuidade a perfeição do ilusório e a ilusória perfeição do devaneio. O redondo e o acabado dos contos da carochinha. O superastro e a tecnologia envolventes são olhados de perto (como Norman Mailer olhou os astronautas para nós na viagem à Lua), inspecionados,
analisados pelos correspondentes especiais, que darão ao espetáculo o carimbo da verossimilhança, da autenticidade, pois foi ele presenciado por minisuperastros, os badalados escritores Capote e Southern. É preciso que a ilusão seja escrita e divulgada para que se possa acreditar nela, como no caso da viagem à Lua. Para que ela passe a realmente existir no dia a dia dos outros. Fotografado para proclamar que Jagger e seu grupo são figuras de carne e osso, pois sua existência é sempre posta em jogo pelo público em razão de não seguirem as convenções estabelecidas para todos os outros. Isso o fazem graças a uma estratégia altamente ideológica, percebe Hughes, estabelecendo a diferença entre eles próprios e os Beatles: “[...] em vez de criar a ilusão de trabalhar dentro das convenções sociais inglesas como os Beatles faziam, eles [os Stones] simplesmente ignoraram as regras”.
6. Façamos um pouco de história. Para poder, depois, se descartar dela. Desde 1967, Caetano já estava preocupado com um novo tipo de personalidade, de aparência, que precisava criar para poder enfrentar a TV e o disco. Tinha se dado conta de que o talento musical não é tudo, não é suficiente. Agora, não só teria um público ativo diante dele, na plateia, como também outro, bem mais vasto e exigente, sentado nas poltronas das salas de estar e que preencheria os minutos de silêncio dos comerciais com comentários e piadas caseiras. Para agradar aos dois públicos elegeu (ou elegeram, ou elegeram para ele) como imagem a figura de Chacrinha, sem, no entanto, idealizar a imagem do homem da buzina, tomando-a antes em toda sua ambiguidade promocional. Assim como os antropófagos de São Paulo, em 1928, tinham eleito o palhaço Piolin como imagem da própria agressividade burlesca, oferecendo-lhe um almoço no Mappin Stores, os tropicalistas buscavam em Chacrinha, em um primeiro e definitivo gesto de desautomatização cultural, o elemento que poderia criar uma atmosfera ideal e proliferante de não seriedade, de descompromisso com as forças da intelectualidade oficial brasileira. Gilberto Gil, no célebre Aquele abraço, situou bem essa ambiguidade: Chacrinha “velho guerreiro” / “velho palhaço”. A imagem de Chacrinha e a descoberta da TV foram acompanhadas por um significativo movimento de valorização do Brasil, Brasil inzoneiro, como dizia Ari Barroso, movimento este que, em última instância foi o responsável por um estranho e inédito movimento cultural. De
repente, descentralizou-se a cultura brasileira da cultura institucionalizada, da cultura aceita e aplaudida pelos intelectuais e pelas universidades, pelas academias de letras e pelos suplementos literários. Transferiu-se o interesse para o humilde e o marginalizado até então pela cultura sofisticada dos grandes centros. Assim é que, de um primeiro momento de vergonha diante do “bárbaro e nosso” (Oswald de Andrade), passou-se, em seguida, a engrandecer aquilo mesmo de que se tinha vergonha — o Brasil tropical e pitoresco, o Brasil do folclore e dos cartões postais, Brasil para estrangeiro, exportado em forma de palmeira, bananeira, terno branco, Carmem Miranda, Zé Carioca etc. Esse primeiro momento foi salientado por Caetano em entrevista concedida à Realidade (dezembro de 1968):
Nós vibrávamos com Buñuel e nos envergonhávamos do prazer que nossos patrícios sentiam ao verem as chanchadas da Atlântida e os filmes de Mazzaroppi, muito embora não perdêssemos um só.
Logo depois, portanto, seguindo já as lições de um Federico García Lorca na Espanha e de Guimarães Rosa e João Cabral entre nós, o grupo já estava trabalhando com “motivos folclóricos e temas de Ciranda de Santo Amaro”, mas sempre — frisemos — “da maneira mais moderna”. Esse entrecruzar do mais moderno e do mais tradicional do Brasil, já salientado pelos críticos do Tropicalismo como Affonso Romano de Sant’Anna e Roberto Schwarz, determinou de maneira precisa o eixo em que se organizou o movimento, acarretando uma concepção de gosto artístico que de modo algum coincidia com o gosto modernista, salvo, é claro, no caso exemplar de Oswald de Andrade. Não havia um desejo de escolha entre isto e aquilo, entre bom e mau, e a dicotomia dos opostos era estabelecida mais para precisar racionalmente os dois lados do que para conduzir a uma opção, a uma solução ou preferência. No mesmo número de Realidade que consultamos, escreve Décio Bar: “Gláuber Rocha não parou para se perguntar o que era bom gosto. Entre uma usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida possível — fica-se com os dois”. Caetano percebeu esse caráter contraditório e sintético que estava sendo apresentado pela arte de Gláuber ou de José Celso Martinez, de Hélio Oiticica ou
de Rubens Gerchman, e quis que seu corpo, qual peça de escultura, no cotidiano e no palco, assumisse a contradição, se metamorfoseasse na contradição que era falada ou encenada pelos artistas, mas nunca vivida por eles. Quis que seu corpo, pelo seu aspecto plástico, cativasse o público e que fosse ele a imagem viva de sua mensagem artística: “[...] partindo exatamente do elemento ‘cafona’ da nossa cultura fundido ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras elétricas e as roupas de plástico”. Palhaço e artista, cafona e roupa de plástico, chanchada e ficção científica, Chacrinha e a jovem guarda, sintetizados por esta bela frase: “Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo”.
7. Caetano trouxe para o palco da praça e para a praça do palco o próprio corpo, e deu o primeiro passo para ser o superastro por excelência das artes brasileiras. O corpo é tão importante quanto a voz; a roupa é tão importante quanto a letra; o movimento é tão importante quanto a música. O corpo está para a voz, assim como a roupa está para a letra e a dança para a música. Deixar que os seis elementos desta equação não trabalhem em harmonia (o que sucede muitas vezes com Roberto Carlos), mas que se contradigam em toda sua extensão, de tal modo que se cria um estranho clima lúdico, permutacional, como se o cantor no palco fosse um quebra-cabeça que só pudesse ser organizado na cabeça dos espectadores. Mudando e recriando a imagem de número para número, Caetano preenchia de maneira inesperada as seis categorias com que trabalha basicamente: corpo, voz, roupa, letra, dança e música. O artista se desdobra em criador e criatura. Deixando aquele na penumbra da enunciação, exibe-se a si mesmo, criatura, artifício, arte, como enunciado. Ler a criatura é ler o artista. Ler é penetrar no espaço das intenções oferecidas e das proposições camufladas. Falando das suas primeiras experiências na TV, Caetano salienta que desde o início funcionou bem porque tinha dois detalhes quase circenses na sua personalidade, que atraíam o público: a facilidade que tinha para decorar letras de música e o seu “aspecto plástico — minha magreza e meu cabelo que finalmente tinha recebido a independência do pente e da tesoura”. A primeira participação da plateia no número de Caetano não está tanto ligada à
sua função de cantor, ou seja, manifestação de agrado ou desagrado quanto à música que interpretava, mas é antes reação ao seu corpo, à sua plástica: “Para mim jogavam pentes aos montes” — confessa ele a Décio Bar. Queriam pentear o cantor que estava diante deles oferecendo-lhes cabelo e música. Queriam participar do ato, participando primeiro do ritual do superastro, da sua toalete. Caetano não tem descurado dessa áurea de sexo e insinuação, de flerte e agressividade, de mistério e santidade, de desacato e fragilidade com que trata os espectadores. No seu mais recente show o público não pôde esconder o espanto. Mesmo os repórteres insistem na descrição do aspecto plástico do cantor, quando não são as colunas sociais ou as de mexerico. Veja (1-11-72) abre seu artigo sobre o show com as seguintes informações: “O astro principal usa batom, maquilagem, veste roupas cintilantes e rebola-se sem comedimento”. Mas logo em seguida tem necessidade de assinalar a receptividade com que recebem o cantor, seu ato, a tal ponto que chegam a participar literalmente do show no palco:
Eventualmente o número de crooners pode ser menor ou maior, conforme os voluntários disponíveis, o mesmo acontecendo com improvisadores e frenéticos bailarinos que se intrometem no palco.
Essa aproximação sensual da plateia, que tem sido a grande característica de Mick Jagger, também o foi desde o início de Caetano. Robert Hughes, no artigo já citado, analisa o relacionamento de Jagger com o público nos seguintes termos:
An essential part of Jagger’s act is his vulnerability. He is a butterfly for sexual lepidopterists, struting and jackknifing across the stage in a cloud of scarf and glitter, pinned by the spotlights. [...] Jagger’s act is to put himself out like bait and then flink himself away just as the jaws are about to close and the audience comes breaking ravenously over the stage ¹.
8. No entanto, essa atitude de superastro que, à primeira vista, visa apenas à gratificação de um narcisismo desenfreado (é esta, infelizmente, a conclusão do raciocínio de Hughes), corresponde, pelo menos no exemplo brasileiro, a determinada situação a que chegou o impasse das artes plásticas no Brasil e o discurso teórico de críticos e artistas que se situam na vanguarda. Ferreira Gullar, o magnífico poeta da Luta Corporal, em um dos seus últimos artigos sobre artes plásticas, insistia no “espetáculo da rua”, indicando que artistas de vanguarda procuravam transgredir, pelo seu trabalho, a diferença entre arte para museu e espetáculo público, saindo dos recintos fechados e das galerias para as ruas, seguindo as pegadas das escolas de samba. Outro crítico, Frederico Morais, procura negar a diferença entre obra e corpo, entre homem e artista, propondo o corpo como o novo propulsor de uma revisão da atualidade do artista plástico entre nós. Esclarece Ferreira Gullar, na Revista Vozes, novembro de 70:
Fala-se muito em integrar a arte à vida, que a arte não deve ser alguma coisa fora da vida. Com toda a razão. Mas para os integrantes das escolas de samba, a sua arte está misturada à sua vida e a vida da cidade.
Eis o exemplo a seguir. Frederico Morais na mesma revista:
O corpo contra a máquina. [...] Se for necessário, usaremos o próprio corpo como canal da mensagem, como motor da obra. O corpo, e nele, os músculos, o sangue, as vísceras, o excremento, sobretudo a inteligência.
A integração arte-vida, arte-cidade, arte-corpo, alarga as possibilidades do objeto artístico, pois o próprio corpo se oferece como criação, o corpo do artista ou o corpo dos outros, dos participantes (não mais simples espectadores). Tudo passando a ser parte integrante do “grande espetáculo”, do happening, da obra que se abre então para o tempo e pelo acaso no ocaso, na invenção passageira e espontânea, no desabrochar descomprometido com as regras e o academismo
institucionalizado. Nesse sentido, seria necessário não só se referir às experiências do teatro de agressão, comandadas por José Celso Martinez, como também às proposições coletivas de Rubem Gerchman e Vergara, como ainda às luvas, por exemplo, de Lygia Clark, ou os parangolés com que Hélio Oiticica enfeita nossos corpos. Todos esses espetáculos, todos esses novos objetos, requerem uma comunhão estreita entre o corpo e a matéria, entre os corpos, entre as epidermes, se entregando então artista e espectador a uma experiência que ultrapassa os limites prescritos pela passividade com que se olham quadros em um museu ou em uma galeria. O superastro, ou mais precisamente, Caetano, se despregou em determinado e específico momento do movimento tropicalista e se enveredou só por entre os caminhos tortuosos da arte brasileira. Expondo-se, expondo seu cabelo e suas fantasias, seu corpo e sua voz, tornando-se ao mesmo tempo criador e objeto, criador e criado, criado-obrigado de uma plateia cada vez mais exigente, cada vez mais eminente, pois seus espetáculos extrapolavam o círculo da música popular e se propunham como a síntese que estavam procurando os artistas brasileiros. Síntese que serviria para definir o caos de um momento que não sendo mais de contestação pura (política, por exemplo), se oferece, no descompromisso e na ligeireza, como manifestações paradoxalmente criativas de crianças “alienadas”. Manifestações apocalípticas dos “mortos da primavera”, como os classificou Gláuber Rocha em artigo polêmico, resumindo as críticas que 1968 (e o cinema novo) fazia a 1972:
O pé descalço não bate fundo na terra, o olho deslumbrado não vê o céu: o inconsciente liberado das vanguardas dos povos pobres viam nos últimos dois anos o infinito azul de Hollywood, as eletrônicas discrepâncias de Jimi Hendrix, o balançar complacente dos Beatles e outros signos liberais de civilizações colonizadoras (O pasquim, 29 de fevereiro de 1972).
A cultura jovem de hoje não depende mais de uma reflexão organizada e controlada por princípios ideológicos, certo — é antes um oferecer aos mais velhos e mais bem situados aquilo mesmo que menos esperam dela. Nesse segundo de decepção, momento passageiro de um espetáculo, de um show, é que instaura o poder de uma arte que, sendo de intenso consumo (ao contrário da
anterior, órfã de público), consegue desviar uma geração para o gozo e o deleite, para o som e a ausência, e talvez estabelecer uma ligação maior, além de fronteiras e de credos, em uma utopia da não presença, do espírito, onde “legal”, “curtir”, “grilo”, “desbunde”, são os pilares da língua franca. A linguagem, no estágio atual do superastro, compõe sua figura tanto quanto a roupa, ou os acessórios. Linguagem, roupas, acessórios: forçados, violentamente artificiais, igualados para todos, todos se comunicando no mínimo esforço pois todas as figuras da aparência se encontram regidas pelo código da semelhança. Entre jovens que se vestem igual, se comportam igual, e já falam igual, pouco se pode pedir a não ser que se definam como um grupo. O superastro funciona, finalmente e para este grupo reduzido, como modelo: a jardineira que Caetano vestia ao chegar ao Galeão de repente se prolifera pelos quatro cantos da cidade, como que reproduzida por mãos de fada. Os jovens, consumindo o superastro, carnavalesca e antropofagicamente, passam a receber, no ritual e na festa, seus fluidos de encanto e de inebriante vida. Esperam, assim, prolongar aquela continuidade a que nos referíamos entre o palco e a rua, entre o espetáculo da vida e a realidade do espetáculo, contaminando com sua presença, sejamos precisos, seus corpos, uma cidade que, sem eles, se apresentaria sob forma de trabalho, crescimento tecnológico e gravata. Instauram eles aos montes, em grupos ou individualmente, pequenas ilhas de cabelos e sandálias, de colares e bijuterias baratas, de calças Lee e camisas de malha Hering, de bolsas a tiracolo e anéis de prata. [1972]
1 “Uma parte essencial da exibição de Jagger é sua vulnerabilidade. Ele é uma borboleta para lepidopteristas sexuais, rebolando e contorcendo-se sobre o palco, numa nuvem de écharpes e brilho, fixada pelos refletores. [...] A exibição de Jagger joga-o pra fora como isca e então repesca-o para longe, bem na hora em que os tubarões estão prontos para aproximar-se e a plateia irromper vorazmente no palco.”
BOM CONSELHO [...] porque eu, não quero, porque eu não devo explicar absolutamente nada. Caetano, contra-capa do disco R765.026L.
1. A ausência de pergunta em um determinado e específico momento da realidade cultural de um país pode assinalar muitas coisas, mas principalmente pouco-caso teórico-especulativo. Tal desinteresse passa a ser a característica dominante de um período em que ou bem não se pode, ou bem não se quer manter abertamente um discurso crítico sobre ou em torno de problemas julgados importantes pelo faro canino da inteligência. A pergunta e a resposta correspondentes democratizam as emoções, as sensações individuais, nivelam em um único conceito reações e anseios diversos e sempre díspares. Instalam uma margem de identidade em que só se contava a multiplicidade rebelde. A pergunta, sem dúvida alguma, traduz por parte de quem a faz um desejo de intelectualizar a problemática que ela levanta, de saber como proceder racionalmente em sertão bravio, de abrir uma vereda para perceber de maneira conceitual o objeto que ela questiona. Na resposta, quem perguntou pretende fazer do objeto analisado um objeto do conhecimento — um objeto cultural. Assim sendo, podemos compreender porque, em um período como o atual da cultura brasileira, faz sentido dizer que o artista jovem não quer perguntar. E enfatizamos o verbo “querer”, pois julgamos que, caso ele quisesse, poderia perguntar. A pergunta, no entanto, mesmo a menos interessada, a mais gratuita, a menos comprometida com o status quo, quando tem por fim o conhecimento de um objeto que será classificado por ela de artístico, visa a recuperar tal objeto, extraí-lo do espaço em que é consumido como simples “entretenimento”, como simples “acontecimento” (happening), para poder situá-lo dentro do terreno estreito, comprometedor e teórico da arte, passando, portanto, a fazer parte integrante do acervo da cultura nacional. O silêncio teórico se encontra nas
palavras de Caetano, no seu desejo de não falar sobre o que faz, sobre o que ocupa seu tempo consagrado à música popular, tanto no passado como no presente ou no futuro: “É ainda mais difícil falar do que estou fazendo agora do que daquilo que fiz no passado. [...] Não posso dizer o que poderá vir a ser o meu trabalho” (Rolling stone, nº 7). Não perguntar significa, pois, deixar o objeto no limbo em que é criado, encenado e consumido, sem arremessá-lo para o altar da arte. Perguntar e sacralizar, dentro da cultura ocidental, são irmãs gêmeas, nascidas da mesma curiosidade e do mesmo desejo de estudar, catalogar, codificar, interpretar, salvar do acaso o acontecimento que assim se tornará significativo em termos propriamente culturais. Nossa civilização não acredita no (ou tem medo do) objeto que não significa nada mais do que ele próprio; por isso o rodeamos de camadas e mais camadas de interpretação, não só porque acreditamos que ele próprio, fundamentalmente, já é interpretação, como também porque em estado puro ele se encontraria incompleto, seria apenas um escândalo. Como diz muito bem Michel Foucault em artigo sobre a problemática da interpretação dentro do corte epistemológico da nossa época (isto é, aquele instaurado pelas obras de Freud, Nietzsche e Marx), somos sempre levados a crer que a linguagem nas culturas indo-europeias não diz exatamente o que ela diz: “O significado que apreendemos, e que é imediatamente manifesto, é talvez na realidade apenas um significado menor, que protege, fecha, e apesar de tudo transmite um outro significado”. Tal significado, latente, é considerado mais forte do que o outro, o manifesto. A procura, portanto, de um significado mais forte, que se esconde, que se encontra por debaixo do outro, é ao mesmo tempo a atitude que nos leva ao conhecimento (em termos ocidentais) e que, por seu turno, aprisiona o objeto primeiro dentro das amarras da interpretação, dentro da “ordem do discurso”, para usar de outra expressão do citado autor. Portanto, os textos sobre cultura jovem devem começar por um mea culpa: porque pergunto, procuro interpretar; porque procuro interpretar, estou recuperando. E no processo de recuperação estou sacralizando um objeto (a música popular, por exemplo) que melhor seria se existisse apenas como transgressão — sem estas nossas linhas circulares, excessivas.
2. Da mesma forma, diremos que é abrigando um objeto em um museu que se está chamando de artístico a este objeto. Fora do museu e do catálogo, ele foi apenas o ponto de encontro, de reunião, entre diversos seres humanos, que sentiram seu “efeito”, mas que não precisaram falar desse efeito em termos conceituais. Já Kinaston McShine, no ensaio em que justifica a mostra feita no Museu de Arte Moderna de Nova York, sob o título geral de Information (1970), se dava conta de que o lugar, o museu, e a atividade de colecionar mais e mais perdiam a sua razão de ser diante da diversidade geográfica onde se realizavam os novos objetos de arte, e perguntava (sem esperar resposta, evidentemente), perplexo apenas:
Por exemplo, toda a natureza do ato de colecionar talvez esteja se tornando obsoleta, e o que o museu tradicional vai fazer com um trabalho no fundo do mar de Sargaço, ou no deserto de Kalahi, ou na região Antártica, ou no fundo de um vulcão? (p. 141).
Se certa ênfase é dada hoje à participação do espectador na construção do trabalho do artista é porque, na ausência do museu, apenas o lugar geográfico do acontecimento (no sentido também de conglomeração humana) é que muitas vezes justifica sua existência. Tanto o museu como o discurso crítico são culpados de um desejo de sacralização e de institucionalização, que visa a impedir o livre trânsito e a morte rápida de objetos de transgressão. Em um recente e elucidativo estudo sobre as vanguardas dos anos 1960, The new avantgarde, Grégoire Müller (1972) pôde também comentar o desaparecimento do lugar-sagrado-museu e o papel da arte na realidade diária tanto do artista como do espectador: “Se a arte tiver que existir, ela o fará na medida em que for suficientemente eficaz para encontrar o seu lugar na vida real” (p. 6). Não qualifiquemos, pois, tão apressadamente os jovens de superficiais quando manifestam total desinteresse pelo jargão conceitual, seja o do discurso crítico especializado, seja o do discurso filosófico. Inscrever um projeto, um objeto, seu ou alheio, dentro das normas da conceitualização constitui o primeiro e mais perigoso sinal de que tal projeto, tal objeto, é recuperável. Em um período como
o presente faz sentido toda uma estética do precário, do transitório, do perecível (cf. Haroldo de Campos (1977) no texto A poética do precário, em A arte no horizonte do provável). Vite fait, vite disparu. O espocar de um foguete, o acender e o apagar de um spot-light. Essa estética do precário, que se encontrava exemplificada pela obra de Kurt Schwitters, se encontra hoje no centro de todo um processo de desmaterialização do objeto artístico, segundo a expressão sugestiva de Lucy Lippard. Um artista como Hélio Oiticica chegou a propor mesmo, em uma conferência realizada na Albright-Knox Gallery, de Buffalo, EUA, “slides as documents showing forms of experimental activity no compromised with art as display” (slides como documentos, mostrando formas de atividade experimental não comprometidas com a arte na qualidade de mostra, 1973) Assim é que apenas a fotografia pode surpreender o objeto e armazená-lo. Colecionam-se slides, e o “museu” se abre no momento da projeção. Sem a respectiva fotografia o objeto teria ficado sem abrigo. Sem a documentação o objeto existiu apenas no momento em que existiu. A fotografia passa a ser o signo que substitui o objeto, signo que nos é dado em lugar do objeto, do acontecimento. Por outro lado, em um momento marcadamente criativo como aquele pelo qual passamos (em especial o ano de 1972) a pergunta viria a inibir o criador, visto que teria de passar de um determinado registro, que é o da invenção, para outro, que é o da crítica. Em períodos de sensibilidade aguda como o nosso (cf. Os abutres), a intervenção racional serve apenas para castrar o texto poético, para situá-lo em um nível de apreensão, de consumo, que não é o almejado pelo criador e muito menos pelo ouvinte ou pelo espectador. Como em todos os períodos em que a ênfase é colocada na criação (e me lembro do auge do Futurismo, do Surrealismo, do Modernismo etc.), se existe um discurso paralelo ao da invenção, este visa apenas a explicitar o poema, o romance e o quadro. Explicitar aquilo que, muitas vezes, o romance, o poema e o quadro comunicam de maneira mais eficaz e completa, para não dizer mais complexa. Consegue apenas conceitualizar — e de maneira bem pouco formal, bem pouco crítica, pois é o próprio criador que é o responsável pelo discurso crítico — o texto inventivo. O discurso crítico é “manifesto”. Ora, no caso presente da cultura brasileira, o texto teórico paralelo ao da criação, visto que o artista não quer e não pode questionar o objeto que lhe delega a posição de “artista” dentro da sociedade, se encontra transformado e adaptado a um gênero que se tornou bastante popular ultimamente: a entrevista. Basta
folhear revistas como Rolling stone, Bondinho, ou então o Caderno B do Jornal do Brasil. Também é compreendendo o fenômeno da entrevista que se poderá entender a curta vida que levam as citadas revistas. Esgotado o número das verdadeiras personalidades que podem ser entrevistadas, a revista não tem mais razão de ser, já que de modo algum desejam seus redatores se dedicarem a exercício teórico. Seria interessante analisar algumas das características da entrevista para poder melhor compreender o problema da pergunta teórica, da sua ausência, e da sua substituição por outro tipo de pergunta, para melhor caracterizar a técnica que Chico Buarque chamou de “bom conselho”.
3. De início, notamos que, na entrevista, a pergunta sempre propõe a discussão teórica, mas o entrevistado evita cuidadosamente o objeto que justifica a própria entrevista. Assim, Caetano recusa categoricamente a responder objetivamente à pergunta que lhe fazem: “Tem você consciência do papel que desempenha nos níveis mais variados neste vasto continente chamado Brasil?”. A resposta é lacônica, ou melhor dito, negativa: “Agora, eu não vou querer aqui explicar por que isso teria de acontecer na música popular, e mais particularmente, comigo” (Rolling stone, nº 7). Desse modo, evita fazer uma análise do papel que representou dentro do que poderíamos chamar de arte brasileira a partir do movimento Tropicália. De maneira similar, em outra entrevista, é escamoteado, no diálogo, evitado, o tópico sobre o sucesso como compositor de Gilberto Gil. O interesse do textoentrevista se centra na sua “personalidade” atual de artista. Percebemos dessa maneira que gentilmente o bate-papo se prolonga por parágrafos e mais parágrafos com graça e brilho, mas em vez de pedir ao artista que fale do estado atual da música brasileira, de se pedir a opinião abalizada do cantor e compositor, em vez de se falar da posição do autor de letras no presente momento da realidade artística nacional, lemos ainda na revista Rolling stone uma série de explicações sobre os infindáveis labirintos da comida macrobiótica, seguidas de teorias de caráter místico-esotéricas que a nosso ver têm pouco em comum, ou quase nada, com o projeto criador de Gil, mas que — descobriremos mais tarde — é parte integrante do “bom conselho” que o artista dá aos seus
ouvintes. O desvio temático, portanto, enfatiza, põe em relevo a personalidade, o comportamento diário, em lugar de colocar em questão as ideias daqueles que se encontram na berlinda. Falam de tudo, menos daquilo que esperávamos que falassem. Com isso, a pergunta antes de ser um meio (o mais antigo, o mais conhecido, pelo menos desde Sócrates) para o conhecimento, para o parto das ideias, tem como resposta uma espécie de cardápio de bons conselhos comportamentais.
4. Em termos mais precisos e mais esquemáticos, diremos que em um diálogo entre A (repórter) e B (artista) possivelmente sobre X (música popular), o interesse da conversa é deslocado para C (leitor), transformando-se B finalmente no lugar e no repertório de verdades profundas (ou de algibeira — não nos enganemos, pois existe muito conselheiro acácio por aí), verdades que distribui ao seu bel-prazer para obrigar que se esqueça com maior eficiência um problema que normalmente seria o tópico da discussão. A entrevista é antes de tudo uma tomada de posição autoritária por parte do artista em relação ao leitor. Cria o artista, em um primeiro instante, uma fresta de diferença entre ele e o leitor, diferença esta que desaparece gradativamente, se torna identidade à medida que a voz autoritária do artista vai divulgando as peculiaridades do seu comportamento e sugerindo a imitação por parte do leitor. No final, ambos se encontrariam em comportamento idêntico. A pergunta é, pois, feita ao artista, mas este, em vez de responder ao repórter, desliga o fio da comunicação que levaria a resposta de volta, que uniria repórter e artista, e abre um novo e diferente canal, canal que conduz sua voz diretamente ao leitor. O artista quer que esta última ligação seja de tal modo sólida, de tal modo resistente, que possa suportar a força e o domínio da sua voz sobre o leitor. Este recurso se justifica por duas razoes bem claras: a) primeiro, o artista não pode falar do objeto que o faz artista sem sacralizar esse objeto, sem retirá-lo da área do “acontecimento”, sem torná-lo arte; b) segundo, caso o artista desse uma resposta certinha de volta ao entrevistador, apenas insistiria sobre sua insegurança diante de uma determinada situação
(social, política, existencial, etc.) que o oprime. A situação opressora existe, e porque ela existe é que o artista tem necessidade de se exprimir como se exprime, mas daí a acreditar que deve exercer o comentário crítico sobre a ideologia dominante é esperar dele, artista, sempre uma voz pálida, apagada, de escravo, que não chegaria a se alçar além das fronteiras do permitido; é desejar para ele o ato suicida. Ou bem sacraliza com sua resposta objetiva e teórica o objeto de transgressão (e o torna ineficiente), ou bem se considera não digno de ser responsável por um objeto de transgressão (e então não é artista). Rejeita a ambas as possibilidades para falar francamente ao leitor — sobre outras coisas. O mecanismo é fascinante porque, se de um lado oculta a verdade de um problema que deveria estar sendo discutido pelo artista, por outro lado opera, graças a um processo de substituição, o deslocamento do primitivo foco autoritário (opressão social, política, existencial etc.) para dar lugar a outra espécie de autoridade, que é a do artista. Assim é que, se em um primeiro movimento se ocultou a verdade, em um segundo outra verdade é colocada em circulação para substituir aquela que foi obrigada a desaparecer. Na entrevista, o artista apaga a força que o oprime do exterior (com o seu silêncio), para melhor canalizar a força da sua própria personalidade, graças a um crédito excepcional legado por ele mesmo a si próprio. Por ele mesmo e pelo público que aceita seu número, seu ato, apenas como entretenimento, como acontecimento, e não exige dele que teorize, que entronize seu ato dentro da cultura.
5. Esse gênero de mecanismo descrito ultrapassou ultimamente as fronteiras da entrevista e se espraiou por algumas canções de Caetano e de Chico. Por exemplo, Como dois e dois, de Caetano (vagamente reminiscente de um poema de Ferreira Gullar, cantado por Nara), e Bom conselho, de Chico Buarque. Na primeira canção os dois elementos de autoridade, mencionados acima, são colocados em evidente contraste e paralelismo no refrão da letra: “Tudo certo / como dois e dois são cinco”. O certo e o errado, ligados pelo “como”, ocasionam um óbvio curto-circuito lógico. Curto-circuito que insiste no erro do certo e na possibilidade do certo no
erro. Em outras palavras, não se coloca dentro do discurso criador objeção alguma ao “certo”, que é, antes, valorizado por uma afirmativa autoritária. É no “como”, na comparação (o recurso mais comum para se instaurar a linguagem poética), que se evidencia o equívoco da primeira situação, e a necessidade de se lhe opor um outro tipo de afirmação que, superficialmente, parece errado, mas que — sempre por oposição, sempre no jogo interno das duas sentenças, dos dois conceitos — passa a ser o certo. Se em Caetano os processos de invenção são na maioria das vezes claros e ali estão para ser interpretados, indicando ainda uma maior sofisticação no labor poético, já em Chico o “bom conselho” é mais direto (talvez pela influência marcante do discurso poético de João Cabral durante os seus anos de formação) e se encontra menos comprometido com os chamados recursos retóricos da vanguarda. Chico Buarque trabalha de maneira mais precisa o esquema descrito. A fonte de autoridade se encontra aparentemente escondida, e é por total substituição, ao sublinhar apenas o positivo e o exemplar da sua mensagem de artista, da sua vida, que se constrói a canção. Como em uma entrevista, de início a personalidade extraordinária é realçada, bem como o romantismo da figura, e é em seguida que se convida o ouvinte à imitação daquela vida, daquela personalidade, daquela figura romântica: “Faça como eu digo / faça como eu faço / aja duas vezes antes de pensar”. Salienta-se ainda o aspecto autoritário do novo modelo, seja através de uma linguagem que lembra a dos provérbios ou máximas populares, seja pelo recurso ao modo imperativo: “Eu semeio vento na minha cidade / Vou pra rua e bebo a tempestade” ou: “Espere sentado ou você se cansa / está provado / quem espera nunca alcança”. Como recurso propriamente poético, encontramos em Chico um desejo de trabalhar, sob forma de transgressão, com a memória popular, com a verdade comunitária, com o intuito básico de apenas provar o equívoco dessa memória e dessa verdade, em um processo de descondicionamento coletivo, mas essencialmente operado no nível linguístico. Tanto o provérbio, “Quem espera sempre alcança”, como o outro, “Quem semeia vento colhe tempestade”, são transportados para o lado de lá, em um movimento de inversão, semelhante ao que encontrávamos na canção de Caetano (dois e dois são quatro!). O primeiro provérbio passa a significar que está provado que quem espera nunca alcança, enquanto o perigo indicado pelo segundo provérbio é sorvido deliciosamente pelo cantor (“bebo a tempestade”).
Explicitado assim o método de composição do autor de Bom conselho não seria inútil salientar que podemos precisar, no caso de Chico Buarque, a fonte de autoridade que se encontrava, desde o início, aparentemente oculta. É ela lembrada pela nossa memória coletiva que nos dando paralelamente a versão dos provérbios nos indica também o lugar onde sempre foi questão da verdade comunitária, lugar este — frisemos — que está sendo substituído e ao mesmo tempo ocupado pela voz do cantor.
6. Por outro lado, tomando apenas como ponto de referência os três versos em que Chico propõe que se deve agir duas vezes antes de pensar, notamos que marcariam eles de certa forma, dentro do diálogo intertextual da música popular brasileira, uma necessária crítica à posição de Roberto Carlos, e de outra maneira, indicariam uma ausência de compromisso seu com as aparências do “cafonismo” — aceitas pelo grupo baiano. Para justificar o paralelo com Roberto Carlos, basta que nos recordemos da letra de Sua estupidez (bastante conhecida também na versão de Gal): “Conte ao menos até três / se precisar conte outra vez / mas pense outra vez [...]”. O fato de o grupo baiano incorporar, por exemplo, Roberto Carlos, “aquela canção de Roberto”, no seu repertório, marca o limite entre o sério e o cafona, entre a responsabilidade e a distância crítica, entre Chico Buarque e eles. Em Chico, o sério e a responsabilidade se juntam criando uma concepção verdadeiramente ética do fenômeno cantor popular. Letras das canções Pedro, pedreiro e A construção, para mencionar apenas as mais óbvias, pertencem a uma sensibilidade que encontra gratificação na máscara triste da tragédia. Tragédia do cotidiano e da miséria, sem dúvida, e que por isso mesmo deseja ultrapassar os limites do acontecimento e da manifestação gratuitos. Saliente-se ainda que a própria composição rebuscada dos versos e estrofes (as rimas raras de A construção, por exemplo), a dicção poética tradicional, já assinalam a necessidade que têm de serem recuperadas facilmente pelo discurso crítico, de preferência o universitário, recuperadas pela explicação de texto (me lembro agora de uma exegese feita por estudantes goianos, publicada meses depois do lançamento da canção). Já em Caetano e Gil (e também em Gal — ela, apenas como intérprete) o cafona
e a distância crítica se contradizem para poder o cantor comentar e ao mesmo tempo cantar o texto, isto é, dizer o texto ipsis litteris, distorcendo, no entanto, sua mensagem. O comentário é em geral feito, no caso específico de Caetano, através do malabarismo vocal (a paródia que faz de Nelson Gonçalves no meio de Onde andarás), ou ainda através do fato de que corpo, roupa, trejeitos, maquilagem, também são parte do número em que diz as letras. Já Chico Buarque, dentro da monotonia vocal que caracteriza sua interpretação e ainda em virtude da sua proverbial falta de jeito, timidez e inibição, não conseguiria de modo algum erguer entre sua voz e o texto a distância irônica necessária para que incorporasse — com a máscara sorridente da comédia — o cafona no seu repertório.
[1973]
O CAMINHO CIRCULAR DA FICÇÃO (ou: não será outra a verdade?) Nada dá certo. Não é bem isso, meu amigo. É que você só costuma prestar atenção nas coisas que não dão certo. E se você pensasse também nas coisas bacanas que te acontecem? (Luís Gonzaga Vieira, Do diário de um pequeno burguês).
O que me assusta de início na recente e excelente coletânea de contos de Sérgio Sant’Anna, Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), é que o autor, tendo já entrado nos anos de madureza e vivendo intensamente como vive os primeiros anos da década de 1970, possa deixar com que a voz narrativa de sua ficção seja tão séria e pessimista, tão calculada e sectária, moralizante. Essa segurança de ter a verdade nas mãos e o futuro na própria escritura, se por um lado me apaixona (pelo que tem de juvenil, de profético, e de demagógico também, é claro), por outro me deixa apavorado, pois não gostaria de crer que Sérgio, como o Kramer de sua ficção, acredite que a tarefa do artista é “a de criar um mundo ficcional, a que a realidade possa posteriormente adaptar-se” (p. 197). Diferente, aliás, não seria — ainda que metaforicamente — o desejo de mais uma personagem sua, o Arquiteto, que, no conto de mesmo nome, queria que a realidade e balbúrdia, a confusão e poluição da Babel moderna se submetessem tranquilamente aos planos ascéticos que bolou para ela durante seus seis dias bíblicos (pois no sétimo descansou e adormeceu, mas não sonhou). Ficcionista-político-arquiteto-Deus, a teia das personagens semelhantes se arma depressa demais e com um ardor mais aceso do que acreditávamos no início da leitura, indicando que Sérgio Sant’Anna quer dar às figuras da ficção a condição do idêntico e ao espaço da ficção a garantia da utopia (no sentido restrito do termo), quer ainda delegar ao artista o papel de legislador dentro da utopia. Mas a própria moral desse sonho pode ser encontrada no conto-parábola já citado, O arquiteto, quando lemos que o alcaide-mor da cidade não tinha ficado satisfeito com os planos do arquiteto e que, por isso, o tinha despachado para um hospital psiquiátrico para se submeter a lavagem cerebral. De lá, já “curado”, sai o artista
mais tarde, e hoje o encontramos trabalhando “no seu projeto mais ambicioso: o colossal monumento ao alcaide-mor” (p. 149). A ficção de Sérgio Sant’Anna parece querer oscilar entre dois polos extremos, maniqueístas e — a nosso ver — equivocados: nem deveria ela abrir o espaço da utopia nem deveria, como na República, de Platão, apenas repetir as verdades da comunidade e dos chefes. O espaço da ficção contemporânea é simplesmente atípico, excessivo, suplementar. E se alguma personagem seu Sérgio devesse ouvir nestes anos de difícil sobrevivência, seria melhor que escutasse o 12 da Nossa casa: “[...] o 12 afirma que as brincadeiras revelam o que se oculta no ser mais profundo de cada um de nós” (p. 130). Este também seria o conselho que daria tanto o Freud da Psicopatologia da vida cotidiana, como o dos mots d’esprit (chistes). No entanto, tais são a premeditação e a segurança das diversas vozes narrativas inventadas por Sérgio Sant’Anna, que seus contos se encerram em uma única e envolvente Palavra (com P maiúsculo, como a imitar as maiúsculas que designam personagem e lugares dentro da sua ficção; Palavra bem genérica e abstrata como para poder englobar os indivíduos que são dramatizados mais pela posição social ou pela facção a que pertencem, do que pela sua individualidade). Uma única e envolvente, repetitiva, pessimista, obsessiva, abusiva, lancinante, violentamente carregada de tons ético-morais, que reencontramos de conto em conto, e que apenas se ausentou de um ou outro, os mais fracos em geral, como Dois Cadáveres para uma Loura, exercício à la Borges em um livro que pouco ou nada tem a ver com a escritura de Ficciones. Essa Palavra obsessiva e verdadeira pode ser extraída da sua abstratização e concretizada nestas duas palavras (com minúscula, agora) tomadas de empréstimo a O 58 e A Nossa casa, respectivamente:
Um homem só se liberta dela [da solitária] quando consegue viver sozinho consigo mesmo. A Casa inteira é uma grande solitária. O mundo inteiro é uma imensa solitária (p. 125). [...] Confirmando, assim, um dos mitos da Casa, que dispõe que todos os diretores são iguais, física e psicologicamente. E que aquele único retrato, dependurado no salão de festas, constitui a galeria de todos os diretores que passaram em todos os tempos, pela Casa (p. 138 — grifo nosso).
Aquela redução da casa, do mundo, a uma solitária, esta despersonalização de todos os diretores em um único retrato, em um único corpo físico e psicológico; essa assimilação de duas casas em uma única e maiúscula casa no tecido ficcional (prisão no primeiro conto, hospital psiquiátrico no outro); essa afirmação categórica do idêntico; esse retorno do e ao idêntico; enfim a redução do plural ao singular, violentando a diversidade, ao mesmo tempo que investe a narrativa e as personagens de denso valor alegórico, enfraquece-as também, pois não pode o tecido ficcional se disseminar a partir da dramaticidade que o fabrica (da dramaticidade interna que situações e personagens criam à medida que a ficção se impõe, à medida que ela se transforma em escritura — como nos ensina Jacques Derrida —, mas é alimentado ele única e exclusivamente pela voz narrativa (autorial algumas vezes, autônoma outras e algumas poucas vezes impessoal) que torna plana e chã qualquer possibilidade de desvio ao molde preestabelecido, à palavra, ao idêntico. Pena que Sérgio Sant’Anna não tenha deixado que o acaso entrasse na sua ficção, seccionando, fissionando a palavra obsessiva, o idêntico. Caso tivesse, em lugar do retorno do e ao idêntico, teríamos o eterno retorno do mesmo nietzschiano, tematizado talvez por vez primeira em um livro de contos contemporâneo. Mas porque Sérgio acredita na palavra única (filosófica, ideológica, pessimista), não pode avançar uma possível (e necessária hoje em dia) transmutação de valores. O valor é dado desde o início da ficção de Sérgio e não se inverte, não se altera; é um dado inicial e absoluto. É ele consignado desde o conto de abertura sob a forma da relação entre senhor e escravo, entre a mãe castradora e o filho obediente (Da janela), entre o maior acionista da fábrica e os operários (A fábrica), entre o diretor e os prisioneiros (O 58), entre o diretor e os loucos (A nossa casa), entre Bertrand e seu possível assassino (O dia que não matei Bertrand), entre o alcaide-mor e o arquiteto (O arquiteto), entre o machão e a fêmea (Marieta e Ferdinando) etc. Quando se muda de posição, não se muda de valores, apenas a personagem “do lado de cá” recebe os valores “do lado de lá”, como é o caso do novo diretor de A nossa casa. Chegando até “em cima” ele continua a operar com a oposição entre valores “de baixo” e “de cima”:
Dizem, entretanto, que sempre recai uma maldição sobre os diretores da Casa. O 18 começou a mudar de aparência, tornando-se sorridente e, misteriosa e
traiçoeiramente, afável. E também passou a desenvolver uma respeitável barriga (p. 138).
Pena que Sérgio não tivesse se detido no exame acurado da “maldição”, em lugar de se deleitar com a mecânica da redução da diversidade ao semelhante. Assim sendo, Sérgio Sant’Anna não vê outra solução senão ficar para sempre com os valores “de baixo”, que passam a ser positivos dentro da sua negatividade, visto que estar “em cima” não é um privilégio, mas uma “maldição”. Sérgio Sant’Anna, apesar de se liberar do ranço dialético que perseguiu de modo geral a mais prolífica literatura política do Modernismo brasileiro, não consegue esconder as garras do “homem do ressentimento” de que fala Nietzsche. Só uma literatura escrita com a pena “do escravo” pode guardar tanto rancor e tanta amargura, tanto remorso, marcar tanto passo, rodopiando-se sobre si mesma. Sérgio, semelhante ao observador que, vendo no quadro a mancha tranquila, informe e sem significado do cachorro (Composição I), crê que só pode lhe dar um significado: pensa ele que o cachorro vai rosnar e arreganhar os dentes, preparando-se para o ataque (p. 34). A manifestação ideológica da ficção não devia se situar tanto no prazer de afirmar a negação, mas empreender primeiro a negação para depois poder afirmar, afirmar os novos valores da nossa época. Negar primeiro que os mais poderosos em uma determinada situação social sejam os mais fortes; afirmar em seguida a própria força que independe portanto da colocação cima-baixo do sistema burocrático ou social. É preciso que as coisas comecem a “dar certo”, como diz Luís Gonzaga Vieira, pois do contrário o escravo será sempre escravo, e dele só virá a palavra da amargura, do desespero, do ressentimento. Se por um lado existe, nos contos de Sérgio Sant’Anna, maior controle da mensagem graças às figuras da repetição (que se transformam em elementos de redundância), por outro, o empobrecimento da trama dramática nos conduz ao desespero de sempre estar escutando idênticas personagens e presenciando idênticas cenas. Tal qual no belíssimo conto O círculo, cuja figura geométrica serve maravilhosamente de metáfora para o que estamos analisando. Como diz ainda o professor em God save the King, “caminhando-se através da linha do círculo acaba-se fatalmente por retornar ao ponto de partida”, e continua ele,
mostrando, como Sérgio Sant’Anna na elaboração dos seus contos, que a linha aparentemente reta da realidade é em última instância circular : “[...] como acontece se viajarmos em linha reta pela superfície da terra, que também é redonda” (p. 169). Todos os encontros do homem com a mulher, no citado conto, os conduzia ao círculo e ao movimento inexorável de ir para o fundo, de mútua destruição. Se algum dia por acaso o círculo partisse, o que contaria seria a “lembrança” do que se passou no círculo. Em outras palavras: até fora do círculo, seria ainda o círculo que dominaria. E o conto que a personagem homem está escrevendo, de nome idêntico ao conto no qual é personagem, nada mais é do que uma cópia da situação primitiva: “Tomou um grande gole [de cerveja] e escreveu o título no alto da página: O círculo” (p. 68). Tanto as primeiras linhas da ficção dentro da ficção, como as primeiras e as últimas linhas da ficção são idênticas (guardando a ressalva que justificamos, a da “lembrança” que assegura a identidade ao anterior), indicando, assim, o caminho circular da ficção de Sérgio Sant’Anna. O mesmo acontece com os turistas que visitam o Museu, no conto Uma visita, domingo à tarde ao Museu. Depois da visita, o grupo de turistas pode apenas ver a própria imagem no outro e diferente (?) grupo, como se o outro só pudesse ser uma ilusão passageira, pois é o idêntico que sempre governa todas as situações dramáticas: “Nós nos debruçamos na amurada do nosso lado e um outro grupo de visitantes se debruçou na amurada idêntica, do lado oposto” (p. 164). E continuando a leitura, descobrimos que “nós” e “eles” são os mesmos, e o conto termina com a repetição ao infinito da troca de olhares cúmplices que estrutura paradoxalmente os campos opostos da identidade: “Nós estávamos ali, olhando para eles, a olhar-nos, olhando para eles, a olhar-nos, etc., etc.” (p. 165). Na ficção de Sérgio Sant’Anna todo começo encontra seu fim, todo começo se encontra no fim, o começo já é fim. Disso advém um dos fenômenos mais curiosos que experimentamos na leitura de cada conto isoladamente: quando lemos o parágrafo de abertura de um determinado conto (o primeiro da coletânea, por exemplo), temos a impressão de que estamos diante de um contista que não gostaria de dar “fim” à sua ficção (isto é, quer deixar a intriga “no ar”), mas quando chegamos ao final da leitura ficamos surpresos com o fechamento da ação. A leitura oscila, portanto, entre o inesperado e o esperado, entre o que parece inconcluso e o concluído, entre o infinito e o finito, gerando uma brecha por onde o leitor sente o “prazer do texto”. Tal jogo entre o aberto e o fechado, entre o infinito e o finito, marca os limites entre a técnica e o tema em
Sérgio Sant’Anna. Seus contos se apresentam com uma técnica narrativa moderna em que se evitam as explicações, as conclusões, as justificações, mas ao mesmo tempo o tema geral do livro procura fechar as ações dentro do círculo do idêntico. Assim é que, no conto Da janela, a visita aguardada de Mário que, tínhamos a impressão pelo exame da técnica narrativa, nunca se concretizaria, é concretizada pela fala da personagem que, mentindo para a mãe, não só mata o irmão e filho querido, como o traz de volta ao lar. O acidente na ficção das personagens é o acidente que também fecha a ação na realidade das personagens, e se o acidente é fictício, também o é o fechamento, pois este é muito mais um gesto impulsivo do controle autoritário que exerce a voz narrativa dentro do conto, do que propriamente o “fim” que vinha sendo preparado pelo tipo de narração que Sant’Anna tinha escolhido. Tal achado, que me pareceu extraordinário ao terminar a leitura do primeiro conto, vai, no entanto, se desgastando, perdendo o interesse à medida que avançamos nossa leitura de todo o Notas de Manfredo. O que era um achado excepcional, signo certo de originalidade dentro da ficção brasileira, começa a virar cacoete, e depois da leitura de Composição I, O círculo, O 58, A nossa casa etc., devemos concluir que teria sido melhor que Sérgio Sant’Anna variasse um pouco mais as armações que idealizou para seus contos. No entanto, nesta crítica estaríamos também pedindo ao autor que não escrevesse o livro que escreveu, que não admitisse em determinados momentos aquela palavra obsessiva de que falávamos antes, que não aceitasse como figura e metáfora para seu livro o círculo, que não estabelecesse como espaço da ficção o idêntico, e neste sentido temos de reconhecer que, se escapasse de nossa crítica, incorreria talvez em outro tipo de crítica. Ou não. Seu conto, a personagem de seu conto tem de viver o destino duplo e contraditoriamente único que se encontra dramatizado no conto final, O espetáculo não pode parar, pois é ele sempre ele próprio e mais uma vida imaginária (criada por ele mesmo, ou por outros para ele), como fica claro nesta passagem:
[...] um homem, às vezes, pode ser mais prisioneiro lá fora do que aqui dentro. Um homem pode tornar-se inteiramente livre aqui na Casa. Como se o espírito
dele passasse entre as grades, pulasse o muro da Casa e ficasse voando sobre todas as coisas (p. 125).
No conto final, existe aparentemente uma vida fora do palco e outra vida dentro do palco, mas as duas vidas, ou melhor dito, os dois textos se entrecruzam, se misturam, se encontram, se superpõem, sendo no final apenas e unicamente um. A voz da personagem que é ator vai pouco a pouco perdendo o sentido, o próprio timbre, e apenas soa como a voz do ator que ele encarna: “Então ela me mata. Sim, sou assassinado” (p. 211). Personagem e ator passam a ser idênticos, falam e se exprimem com idêntica voz. A personagem de Sérgio Sant’Anna — vamos descobrindo — é aquela que perde a própria personalidade para poder ganhá-la, perde a própria personalidade para poder representar o papel que lhe é delegado, no conto, pela voz autorial que comanda e reduz o livro, as situações, as personagens ao único. A personagem, no livro de Sérgio, é ator antes de ser personagem, ou melhor, é personagem sendo ator, é ator sendo personagem, como se sempre o texto de um interferisse no outro, e vice-versa, de tal modo que na montagem final se apresentassem com um único e idêntico texto. Nesse sentido é esclarecedora a relação que é mantida entre o 58 e o 125: “Naquele instante [diz o 125], eu tive a sensação de que não fora eu quem falara. Mas que o 58 falara por minha boca” (p. 122). E, chegando ao final do conto, vemos que o 125 repete, agora para o 237, as mesmas palavras que tinha escutado da boca do 58, fazendo-as agora suas. Mais tarde, será o 237 que repetirá etc. Esclarecedora ainda é uma afirmação do repórter Manfredo Rangel, a respeito de sua personagem-política, Kramer, que se transforma nesta citação em personagem-ator:
O político é um ator. O bom político é um excelente ator, nos moldes de Stanilavski. Ou seja, identificando-se com a figura do personagem, assumindo-o totalmente, de maneira que passa a sentir e representar aquilo que quer — e precisa — sentir e representar. A alegria de Kramer no gol do Flamengo foi quase autêntica (p. 187).
Retornando ao exemplo inicial, o conto Da janela, poderíamos concluir que a
morte de Mário “foi quase autêntica”, e só pode existir porque naquele momento o filho estava representando para a mãe o papel que ela lhe tinha delegado desde as suas primeiras palavras. A personagem-filho é levada a se exprimir como atorfilho nessa estranha “peça” que pouco a pouco sua mãe vai urdindo dos resquícios de lembranças do outro filho, Mário, filho ausente e querido. A morte de Mário apenas existe na realidade do ator-filho e apenas existe na “peça” que sua mãe, pela imaginação, cria ao entardecer, quando as pessoas voltam do trabalho para casa. Difícil, portanto, ou mesmo impossível, seria separar o texto da personagem-filho do texto do ator-filho: estão ambos escritos nas folhas do seu rosto, de maneira corrida e escorregadiça, como uma máscara. Continuando o nosso jogo permutacional de intertextos, podemos agora tomar de empréstimo o final do conto O Pelotão, para concluir que, mentindo sobre a morte de Mário, o filho “manteve sua alegria austeramente sob controle” (p. 56). A alegria do ator é controlada pela austeridade da personagem, ambas escritas na mesma face da página. Como tudo é a mesma coisa no mundo ficcional de Sérgio, pudemos e pode-se encaixar frases de um conto em outro, sem que com isso se estabeleça inconveniências interpretativas. Por isso, ainda, é que não é com surpresa que, lendo o texto Romeu e Julieta, encontramos dois parágrafos de outro texto, O círculo. Esse desdobramento sem desdobramento entre personagem e ator, que estamos analisando, se encontra em um conto que apresenta a técnica mais moderna do livro No último minuto. Aqui, o goleiro, que deixou passar o frango que proporcionou a vitória do adversário, vê sua própria figura diante de si no canal 5, no 3, no 8, e em todos — como se tratava de uma jogada culminante — apresentam o lance de novo em câmara lenta. Diante do aparelho de televisão, apesar dos conselhos da esposa para que o desligue, o goleiro procura não se reconhecer reconhecendo-se frangueiro naquela figura (ele-personagem) que, desentranhada do momento real, se repete infatigavelmente nas sucessivas projeções do video-tape nos vários canais. O instante fatal, surpreendido pela câmera, funciona como descargas mortíferas na retina do goleiro, dando-nos a impressão de que apenas toma total consciência da jogada quando a vê interpretada por ele-ator na televisão: “[...] como a vida se decide às vezes num centímetro de espaço ou numa fração de segundo” (p. 16). É dessa maneira que Sant’Anna consegue captar a sensação desesperadora e bem atual da falta de controle sobre a própria imagem (que é o tema também do conto que deu título ao livro). Porque afinal o jogador acaba sendo ele e a imagem, pois todos os mortais, nesta época de televisão, emitimos signos como antes apenas emitiam
os chamados artistas (escritor, ator, pintor etc.). O jogador vai ser interpretado pelo público televidente pela performance que apresentou no campo e pela cena que representa agora na sala de estar de cada família. E como o ficcionista que relê os signos que disseminou pela página em branco, pode também o jogador se ler na impressão que causou na película virgem. A diferença do artista da palavra, não pode, no entanto, apagar o gesto que imprimiu no vídeo. Sua inscrição é lamentavelmente definitiva e incorrigível: “Ir naquela bola de outro jeito, espalmá-la para córner, mesmo sem necessidade” (p. 16), — gostaria ele, num gesto que teria forçosamente de ser de “loucura”. Dissemos que este conto é um dos de técnica mais moderna no conjunto do livro, porque em lugar da análise de caráter psicológico (por exemplo: a culpa, o remorso, o medo do futuro, por ter deixado passar o frango), Sérgio Sant’Anna desinterioriza a personagem fazendo com que a chamada “ação interior” seja encampada pela ação apresentada e reapresentada pelos meios de representação de que se cerca o homem tecnocratizado na segunda metade do século. Seria bom esclarecer que o salto que Sérgio opera no discurso narrativo não é o dado por Maupassant, ou pelos romancistas da lost generation norte-americana, quando a análise do comportamento (behaviorismo) liberou a prosa da análise introspectiva, tal como pudemos aprender no então surpreendente L’Age du Roman américain, de Claude-Edmonde Magny. Aqui, o fio da narrativa não se situa todo o tempo na “realidade” da personagem, mas a escritura serve quase sempre como meio de reprodução de um discurso (no sentido lato) de representação. A linguagem deve mimar mesmo a câmera lenta, como se ao espichar temporal da ação que se desenrola com lentidão no vídeo correspondesse um espichar temporal da frase que progride no papel. Como derradeira impressão de leitura, diremos que a maioria dos contos de Sérgio Sant’Anna, como os melhores contos do seu, a meu ver, mestre, Rubem Fonseca (e estou pensando na coletânea Coleira de cão, em particular), me parecem por demais comprometidos com a literatura que se fez nos anos 1940 e em princípios da década de 1950. A expressão alegórica (no caso de Sérgio, melhor seria dizer simbólica), já salientada em Rubem por Fábio Lucas e José Guilherme Merquior, o tom moralizante, a seriedade das intenções, os temas binários como confinamento/liberação, autoridade/rebeldia — tudo nos faz lembrar o que de mais novo nos vinha do existencialismo francês de logo depois da Segunda Guerra, como Les chemins de la liberté, de Sartre, ou La Peste, de Camus. Mas, para ser sincero, tanto alguns contos de Sérgio como o livro de Rubem me baratinam porque vêm atados ao Sartre e ao Camus que menos me
agradam hoje em dia. Se fosse o Sartre de La Nausée, ou o Camus de La Chute, vá lá. Assim como não seria difícil (aliás, seria até proveitoso) traçar um paralelo entre o drama ético-moral do delegado Vilela na Coleira de cão, com o doutor Rieux de La Peste, também seria esclarecedor ver como o tema do enclausuramento se assemelha em Notas de Manfredo e no romance de Camus. E dentro desses joguinhos gideanos em que Sérgio Sant’Anna se afirma hábil (veja-se, por exemplo, a televisão que projeta um anúncio em que a própria televisão é a propaganda — p. 38), poderíamos desentranhar no texto de Sérgio a epígrafe de Defoe que Camus usou para o seu romance. Passaria ela a ser o resíduo final do nosso comentário crítico: “É tão razoável representar uma forma de aprisionamento por uma outra quanto representar qualquer coisa que existe realmente por qualquer outra que não existe”. Se a peste cria os muros com que se cercam os habitantes de Oran, separando-os dos povos livres, também outras “doenças” e outras “perversidades” (metafóricas, e da nossa civilização e do nosso tempo) vão criando muros que aprisionam as personagens de Sérgio Sant’Anna, os muros do apartamento da Praia do Flamengo, das várias casas, das fábricas etc. Esse paralelo não é tão gratuito quanto ainda possam estar pensando tupiniquins renitentes, pois também o romance de Camus termina com a mesma melodia do retorno do e ao idêntico (veja-se também o final de Le Mythe de Sysiphe) que vimos analisando com exaustão na prosa de Sérgio. A cidade de Oran vê-se finalmente livre dos ratos e da peste, mas existe em algum lugar e num tempo ainda não previsível uma outra cidade feliz à espera: “[...] chegaria o dia em que, para a desgraça e o ensinamento dos homens, a peste despertaria os seus ratos e os mandaria para morrer numa cidade feliz”. Não seria ainda esta mesma linha de maldição, desgraça e ensinamento que se extrairia dos contos mais moralizantes de Sérgio? [1973]
O ASSASSINATO DE MALLARMÉ
A história da vida literária não se faz sem menção a alguns equívocos construtivos, mas inconscientes. E sem gestos generosos de ingratidão. Para determinar a situação atual da poesia jovem no Brasil é preciso caracterizar primeiro como se deu a passagem de um domínio das vanguardas (Concreto, Práxis, Processo etc.) para a abertura dada por Oswald de Andrade. Em que momento e por que os jovens, em lugar de ler os textos propriamente criativos da vanguarda, começaram a dar mais importância aos poemas e manifestos de Oswald de Andrade? A esse mesmo Oswald que tinha sido lançado e analisado com rigor pelas próprias vanguardas. Os jovens leitores da Poesia Pau-Brasil interessam-se mais pelo discurso crítico em torno da Antropofagia, criado basicamente por Haroldo de Campos, do que pela leitura e obediência aos princípios impostos por “planos pilotos”, ou por “instaurações práxis”. Dessa maneira é que se poderia começar a caracterizar o deslocamento e a reviravolta geral que se operam na concepção que se tinha do poema (do discurso, ou do não discurso poético), cujos frutos estão sendo publicados agora. A reviravolta não pode ser situada no momento ainda dominado pelo que se convencionou chamar de Tropicália, porque mesmo um Caetano Veloso, que mais de perto sorveu Oswald, se expressou ainda dentro dos padrões criativos do poema concreto, como é exemplo as letras do disco Araçá Azul (1973). Nesse mesmo caso estariam os textos de Torquato Neto, quase toda a produção variada do almanaque Navilouca, bem como da revista Código (Bahia) e de Pólen (Rio). O deslocamento e a reviravolta teriam de ser marcados a partir de algum livro em que se abandona obviamente o trabalho na e da palavra solta, no qual se repudia a sintaxe não discursiva, a leitura não linear, e naquele em que o autor pouco se preocupa com a elaborada mise-en-page. Este livro de ruptura que estamos procurando seria caracterizado por poemas irônicos, epigramáticos, curtos, de fraseado e atitude coloquiais, com frases que se combinam lembrando as porretadas dos fragmentos oswaldianos. Preço da passagem (1972), de Chacal, seria este livro. Publicado com tiragem de mil exemplares, que se apresentava em péssimas condições gráficas, sobretudo se compararmos o produto final (31 folhas soltas, mimeografadas,
dentro de um envelope amarelo onde se carimbou porcamente o título) com as produções tridimensionais e as “caixas” de Augusto de Campos, com os cartazes-desenho-industrial de Décio, com o papel e mancha gráfica perfeitos de Mário Chamie, ou ainda e finalmente com as execuções em acrílico do poema Processo. De tal forma misteriosa essas transições enigmáticas acontecem na vida literária que, de repente, não se lê mais o Drummond de Isto e aquilo, lançado como pedra-de-toque por todas as vanguardas, mas se impõe o juvenil e brincalhão Alguma poesia (1930), que desde a crítica de Mário de Andrade e de Manuel Bandeira à piada modernista tinha sido relegado para segundo plano. Mário comentou as galhofas de 1922, torcendo para o alto o nariz da poesia: “O poema-piada é um dos maiores defeitos a que levam a poesia brasileira contemporânea”. Creio que os jovens de hoje não concordam com o julgamento de Mário. Tanto que, em 1972, quando se comemoraram os 50 anos da Semana de Arte Moderna, a par da leitura de Oswald (devidamente instigada por Haroldo de Campos, não nos esqueçamos), tiveram um interesse decisivo por um lado não mariandradino de 1922. Interesse pela poesia de Murilo Mendes principalmente, com sua dicção que lembra o surrealismo, interesse por Cobra Norato, de Raul Bopp, pelos textos da Revista de Antropofagia, e ainda pelo romance de Mário de Andrade (e não pela sua poesia), levado à tela com rara felicidade oswaldiana por Joaquim Pedro de Andrade. Esse novo discurso poético que vai surgindo levará obrigatoriamente o crítico (que sempre vem a reboque) a reconsiderar o acervo literário, instituindo novos títulos e novos nomes do passado. Gregório de Mattos já está nas bocas; também o João Cabral de Melo Neto de O Rio parece que vai voltar; Ascenso Ferreira está esperando que alguém o leia com cuidado. E assim por diante. Em direção diferente, Carlos Nejar, do Sul do país, comanda oportunisticamente um retorno à dicção da geração de 1945, e um pouco aqui e ali surgem os seus seguidores, que necessariamente obrigariam o crítico a fazer corte diferente do feito até agora e a trabalhar com outros pressupostos que não os lançados até agora. Uma coisa, no entanto, é certa: as leituras que informam um jovem fatalmente informam também o seu discurso poético. E esses fenômenos curiosos de deslocamento (seja ele para Oswald, seja ele para 1945) é que determinam o escrever diferente e definirão ainda o que o historiador chamará de mudança de
geração. Escreve-se diferente da maneira como a geração anterior escrevia. Francisco Alvim, da coleção Frenesi, com Passatempo (1974), escreve diferente das vanguardas. Antônio Carlos Secchin, com Ária de estação (1973), escreve diferente das vanguardas. Mas mesmo assim os dois não escrevem da mesma forma. Simplificando diremos que o primeiro puxa para Oswald e o segundo para a geração de 1945. Vejamos: Ao entrar na sala cumprimentei-o com três palavras boa tarde senhor Sentei-me defronte dele (como me pediu que fizesse) Bonita vista pena que nunca viste (Passatempo). Março investe o mago riso na crina solta que o vento canta no rio claro molhando o dia na dor acesa que março amansa (Ária de estação). O problema não está tanto no fato de os dois textos acima serem diferentes entre si e de poetas que se pretendem promissores dentro dos novos padrões estéticos. O difícil está em precisar como a poesia do jovem de hoje está sendo diferente da do jovem de 1950, para ficar com o exemplo mais óbvio e anterior. Vamos por etapas: o poeta original começa quando começa a escrever diferente (e agora a ênfase é colocada não no escrever diferente, estamos percebendo, mas no começar diferente). Desenvolvamos dois exemplos para comprovar nossa tese. Haroldo de Campos, em idos de 1950, no Auto do possesso, livro dedicado a dois mestres da geração de 1945, Péricles Eugênio da Silva Ramos e Mário da Silva Brito, escrevia:
No mês propício as virgens babilônicas Tecem guirlandas em louvor de Ishtar. Olha os seus rostos contornando o templo. Côdeas de luz na lápide do altar. Tua flor, Senhora, de lilases e álcool, A dispersavas pelo boulevard. Touros alados crescem no caminho: Tecei guirlandas para o mês de Ishtar! Enquanto Chacal, em Preço da passagem, envelope-livro em que agradece:
[...] esse trabalho deu-se graças à amizade de luis octávio a disposição de paulino ao mimeógrafo eletrônico a técnica moderna as fotografias de guilherme carlos zeca lita sérgio ivan bigode...
— diz: Com a loucura no bolso, Orlando entrou na Biblioteca Estadual. Folheou folhas estapafúrdias sobre as ideias a arquitetura e a descompostura dos homens Aí achou graça. Aí ficou sério. Aí riu. Aí chorou demais. [...]
Orlando disse mais tarde: — Não faço isso never more. É claro que os quatro textos citados (Alvim, Secchin, Haroldo e Chacal) se chocam e se encontram de diversas formas. Existe, no entanto, certo parentesco entre Alvim e Chacal hoje, como existe outro entre o jovem Haroldo (de 1950) e Secchin. Acrescente-se ainda que pouca coisa em comum existe entre os dois grupos de dois. Ora, espera-se, portanto, que o produto consecutivo de Chacal seja bem diferente do produto consecutivo de Haroldo de Campos, como também se espera que as futuras produções de Alvim sejam diferentes das de Secchin. Ou não. Guardando, no entanto, apenas o texto de 1950 e o de 1972, vemos que o jovem Haroldo ainda se encontrava motivado pelo que a coleção Novíssimos, de um Clube de Poesia paulistano (diretoria: Cassiano Ricardo, Domingos Carvalho da Silva, Jamil Almansur Haddad etc.) podia oferecer a um jovem estreante e retribui a delicadeza na dedicatória e no verso. O poema de Haroldo ainda se encontra muito marcado por uma derivação paulista da geração de 1945, que se exprimia por um lirismo apegado a vocabulário precioso e a situações históricas inusitadas (Ishtar: deusa do amor e da fertilidade na Babilônia), tudo envolto em denso erotismo, e que, por tudo isso, lembrava o Mallarmé dos sonetos, ou (e sobretudo) o Flaubert de Salammbô. O jovem Décio Pignatari aí também está que não nos deixa mentir: nos mesmos Cadernos do Clube de Poesia, no mesmo ano, escrevia de maneira semelhante a Haroldo. Em Carrossel: Astorus, o polvo, e a rúbida Ardenteia, Incendiária de cristais as barbas do Senatus, Celebram suas bodas na Angra de Rapion, O velho golfo, manso eunuco de ventre em desalinho. Já em Chacal, encontramos o descuido como marca; texto pouco asseado e contraditório. Texto de vocabulário e sintaxe coloquiais (distante dos “novíssimos” e da sua sintaxe simbolista), no qual se nega o que mais de perto comandaria o projeto futuro de Haroldo e de Décio: a biblioteca. Nela, o poeta Chacal entra, e dela sai dizendo como o corvo de Poe: never more. Nela as vanguardas entraram e dela fizeram seu templo borgesiano. Mas o descuido pelo
valor cultural institucionalizado é um dado importante dentro do grupo de Chacal, pois acreditam que se possa desvincular, não só o seu projeto existencial de um compromisso com a “ordem” na sociedade, como também o projeto literário de um envolvimento com as formas “bibliotecáveis” de literatura. Assim, par a par, caminham um projeto humano e um projeto artístico que se querem marginais. Se o marginal, enquanto comportamento social e proposição artística, não é uma atitude nova, pois é praticado e teorizado desde as primeiras proposições de Tropicália (e basta citar o trabalho Subterrania, de Hélio Oiticica), já a crítica que se faz à postura vanguardista é um dado recente (além do bem e do mal dos baianos, como vimos em parágrafo inicial). Por outro lado, deve-se acrescentar que o marginal afeta o comportamento dos artistas plásticos e dos cineastas de maneira mais drástica que o dos poetas. Chacal, nesse sentido, é figura ímpar dentre os poetas mais recentes, pois seu projeto se encontra mais próximo das atitudes de um Antônio Manuel (nas suas edições clandestinas de O dia, ou nos super-8), ou de um Sganzela, ou de um Neville de Almeida. O marginal, quando transposto para a sensibilidade dos poetas, tem se primado mais por um comportamento “esteticizante” do que social, visto que os poetas frenéticos ainda guardam ligações bem íntimas com o sistema. Embora se desvinculem do sistema editorial propriamente dito, como veremos adiante. A insatisfação com a biblioteca (leia-se: a insatisfação com o paideuma, dentro do linguajar concreto) já surge de maneira inesperada em um gesto dissidente dentro da revista Pólen e dentro do próprio grupo baiano. Rogério Duarte:
[...] como é meu caro ezra pound? vou acender um cigarro daqueles para ver se consigo lhe dizer isto. andei fazendo um pouco de tudo aquilo que você aconselhou para desenvolver a capacidade de bem escrever. estudei homero; li o livro de fenollosa sobre o ideograma chinês [...], pratiquei diversos exercícios de melopeia, fanopeia e logopeia [...]. continuo no entanto a sentir a mesma dificuldade do início.
Antônio Carlos de Brito, em Grupo Escolar (1974), comentou aquela distinção básica entre a vanguarda e o marginal com um poema no qual se encontram
óbvias alusões hostis aos irmãos Haroldo e Augusto e a Décio Pignatari. Em Estilos de Época, diz: Havia os irmãos Concretos H. e A. consanguíneos e por afinidade D. P., um trio bem informado: dado é a palavra dado E foi assim que a poesia deu lugar à tautologia. Já o descomprometimento com as formas propriamente artísticas e mesmo engajadas poderia nos ser dado por Eudoro Santos. Em A vida alheia (1975), neste comentário a um possível filme, Heartland talkie, dirigido por um fictício Duane Kevin:
[...] se eu me chamasse Duane Kevin e fizesse uns filmezinhos curtidos e bemsucedidos, podia não ser muito de acordo com as autênticas raízes nem estar lá muito comprometido com o futuro da América Latina, mas que seria um sarro, seria.
Já a linguagem coloquial invadindo o verso e determinando até os seus recortes rítmicos não é um simples elemento que indicaria só desprezo pelo vocabulário poético do poema, é também derivada de uma convivência diária e comum, quase que de “patota”, e é dessa conversa que surgem quase escritos os poemas. Todo livro traz inscritos os nomes de todos os membros do grupinho que o motivou. João Carlos Pádua e Bita terminam Motor (1974):
obrigado ao Nando pelos desenhos ao Affonso pelos cartazes ao Jotacê Pereira pelo pássaro ao Zelito pela coragem... Na revista Malasartes, nº 1, explicam o coloquialismo:
Aqui o poema não é coloquial por mero acaso ou por programa, mas por incorporação natural da conversa, do passeio/trabalho/relax diário, do instantâneo revelado às pressas, do cigarro a varejo e tantas coisas mais, desfrutadas em comum (grifos nossos).
Nesse sentido, o poema jovem tende a ser muitas vezes uma anotação de experiências vivenciais, como diz Charles, na mesma revista: “anoto o vivido / alguém tem alguma coisa a acrescentar?” Não estamos distantes de um romantismo descabelado, mas bem longe da depuração vanguardista. Frente a um lirismo modernista, em que um antigo vocabulário subjetivo de emoções e sentimentos é trocado pela precisão da psicanálise, ou pelo barroco do coloquialpopular. De Leomar Froes: Mas infelizmente atravessou o sinal da estabilidade emocional trocando as noites pelos dias e o real por fantasia. Em Exames, de Eudoro Santos: Na terça chegou assobiando
deu bom dia e recebeu de cara a novidade: esquizofrenia. De Geraldo Eduardo Carneiro, em Na Busca do Sete-Estrelo: De novo o frevo veneno fervia o sangue na rua Passacalha o povo pulava diabo no corpo polícia de lado num beijo roxo de vinho adocicado. O ovo de Colombo dos jovens é o de que o livro pode ainda ser um objetomercadoria, isto é, “transável”, passando de mão em mão com possível retorno monetário para quem o escreveu e o executou. As edições de poesia são feitas em geral à custa do autor (ou do grupo) e este tem de ser devidamente reembolsado pelo seu trabalho e despesas. Foi João Cabral, com sua prensa manual em Barcelona (espécie de aspirina para a sua famosa dor de cabeça) quem instituiu no Brasil a ideia de presentear livros de poesia para amigos e correligionários. E pelo sim e pelo não, o negócio do livro como produto a venda “michou”, e ficou só o livro como presente para os caros e distintos colegas. Colegas de profissão. O grupo Concreto, de São Paulo, junto com os diversos outros grupos de vanguarda, é que sem dúvida instituiu o procedimento de João Cabral como norma. Ninguém compra mais livro — foi a ordem geral. Até a recente edição da Revista de Antropofagia havia sido oferecida a alguns poucos eleitores. Das coisas mais difíceis de se ver nas prateleiras de qualquer livraria (mesmo nas especializadas) é livro de vanguarda. Os poetas brasileiros simplesmente enviavam para todo o Brasil and abroad a edição de seus próprios livros, que
assim passavam a circular sem nenhum ônus para o leitor. De uns tempos para cá, quem frequenta bar da moda, ou peça avançada, ou ainda show de música popular, pode estar certo de que encontrará na porta dois ou três jovens hippies que lhe oferecerão por “qualquer coisa” sua poesia mimeografada. — Quanto custa? — O preço da passagem. Não sei se o diálogo, inventado agora, veio à cabeça de Chacal, mas que o título de seu livro parece vir dele, parece. Mas já antes mesmo dos “marginais”, Sebastião Nunes mandava uma cartinha para seus amigos pedindo Cr$20 para custear a edição de seu próximo livro. Em troca, ele se comprometia a mandar um exemplar tão logo estivesse pronto. Se, por um lado, temos o marginal definido mais e mais entre os poetas como uma recusa em participar do sistema comercial instituído entre nós para a distribuição e venda do livro (editora, revendedor-livraria), por outro, vemos o próprio poeta com a cara e coragem que Deus lhe deu “transar” por aí seu livro, sem vergonha ou falso pudor. Na revista Malasartes, os editores da página de poesia não escondem seu desejo de ver o livro de novo circular:
Esse quase inverossímil personagem contemporâneo [o poeta] é forçado a criar novas embalagens para o seu produto pessoal, aprende a passá-lo de amigo pra amigo até o desconhecido [...].
Mas o problema está mais é no estilo: como a troca, a transa deve se dar. É assim que eles logo acrescentam adolescentemente: “o leitor o recebe como uma cola de colégio”. O “transável” não é exatamente o comerciável. É jogada por debaixo da mesa. Não cai o livro em qualquer mão: antes inaugura ele um círculo de iniciados que transgridem a ordem, pois como dizem ainda os editores da citada página:
[...] usar o livro para conferir suas próprias respostas, ou rasgá-lo, se não estiver interessado na pergunta”. Uma espécie de sensibilidade comum cerca o processo de consumo, sensibilidade para fortes e audaciosos que ousam “colar”:
Sob a luz dos postes descobri que a esquina dos ladrões guarda segredos maiores que os que se pensava. Tal sensibilidade se extravasa sob a forma de uma ideologia rudimentar e juvenil, da qual está ausente o caráter programático ou partidário de outros movimentos de rebeldia social. Continuando ainda o ciclo econômico do livro, falta ainda definir as “mãos” que seguram a poesia:
Já sabemos que a civilização está em boas mãos, que o poder passa de boas em boas mãos. E a poesia, está em boas mãos. Esperamos que não.
Essa necessidade de ter o produto poético consumido fez com que os poetas jovens se dedicassem mais e mais a um poema que pudesse ser facilmente digerido pelo leitor comum. Assim como nas Artes Plásticas, depois da exaustão das vanguardas, fala-se de um retorno ao suporte-quadro, na poesia há um retorno ao suporte-verso. Verso que se acha, no entanto, descompromissado da linguagem poética e dos ritmos tradicionais. Versos para um leitor que se encontra despreparado culturalmente para as grandes investidas livrescas e eruditas da vanguarda. Um leitor que tem poucas leituras e um parco conhecimento literário, pois aquelas e este se encontram circunscritos a determinados valores que são os da juventude das grandes metrópoles. A biblioteca deixa de ser o lugar por excelência do poeta e o seu país é o mass media. Em lugar de frequentar os livros, consomem revistas em quadrinhos, jornais que sangram (como O dia ou A luta democrática), vão a sessões de cinema em salas de cinemateca que fervem em nostalgia, estão interessados nas outras formas de arte (em particular: artes plásticas e fotografia, super-8, som pop), assistem à televisão, rindo dos anúncios e curtindo os filmes da meia-noite, ouvem música popular nativa e importada (“quem sabe uns beatles chorando nas bananeiras nos subúrbios”).
Produto híbrido de 1001 artimanhas com os mass media, o poema oscila entre a temática urbana recalcada pelos veículos bem-pensantes, e o pastiche ou a paródia, e se investe, com dicção coloquial e irônica, também sentimental, contra tudo o que pouco a pouco constrói o mundo mítico e repugnante do jovem citadino. A poesia volta a estar nos fatos e nos acontecimentos, nas peripécias inusitadas de uma vida em perigo. E o ato de escrever às vezes se dá como as consequências de se ter ingerido um purgante: Acertaram o cara no meio da Avenida Antônio Carlos os tiros ninguém ouviu porque o esporro cobriu quantos foram ninguém contou três ou quatro flagraram a arma na mão do policial [...] o guarda apitou o recomeçar do movimento as pessoas espalharam o jornal não deu. (Charles) Com tudo isso, ao terminar de se ler esta poesia, fica-se com um desejo de se acreditar um pouco mais na cultura e nos livros. Mas os poetas pedem que não. Pedido que Affonso Romano de Sant’Anna, ao criticar a última leva de poesia vanguardista, surpreende em três versos mágicos, em que comete bárbara e friamente o assassinato de Mallarmé e de Pound: Sei que nem tudo se faz pour aboutir à un livre, antes eu quero a vida. A vida que está lá fora. No local do crime, o coágulo do impasse de hoje. Vedada sua entrada para o livro e para a biblioteca, fica de fora uma literatura de eus ciclópicos e formidáveis, que brandem com não conformismo o alaúde de uma poesia neoromântica e anárquica. O mesmo Affonso:
Aqui estou Eu confiante Eu pressupondo Eu erigindo Eu cavando Eu remordendo Eu renitente Eu acorrentado Eu Prometeu Narciso Orfeu. [1975]
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO
O propósito deste trabalho é o de configurar três momentos e modos distintos de pesquisa em Teoria da Literatura, segundo os postulados de alguns estudiosos franceses da última década. Para que tal tarefa fosse levada a cabo sem acúmulos enciclopédicos, optamos por duas atitudes: a) selecionar primeiro apenas alguns textos e, em seguida, estudá-los de tal modo que servissem de núcleo para fixar determinada situação teórica; b) apresentar sempre as obras a partir de seu sistema conceitual (explícito ou implícito), e nunca a partir de uma possível paráfrase. Com isso, pensamos que evitamos, no primeiro caso, o excesso de exemplificação repetitiva, e deixamos ainda para o nosso leitor a tarefa de incluir (ou não) os seus teóricos dentro de algum dos momentos. No segundo caso, acreditamos que pudemos neutralizar certa retórica tão ao gosto francês pela depuração que representa a exposição pelo conceito. Não se confunda, por obséquio, redução do campo de estudo a determinado grupo, cujo único fim é o de melhor (esperamos) apreender as ideias, com uma simples galomania.
1. A atividade estruturalista foi compreendida nos seus primeiros momentos como análise e não como interpretação. Análise pressupõe e supõe um trabalho bifásico, às vezes sucessivo, às vezes paralelo, em que, de um lado, um processo primeiro de decomposição do objeto de estudo se molda; por outro lado, a um processo de recomposição que explica ou explicita o significado do objeto¹. O trabalho de analisar é executado de tal modo que, pelo segundo movimento, se reconstitui significativamente o objeto inicial que se encontrava, na sua integridade “natural”, como que despedaçado do ponto de vista semântico. A análise é, antes de mais nada, um exercício de superposições de lógicas diferentes — entendamos antes o termo “diferentes”: falando a mesma coisa, em
níveis distintos. As figuras representativas de uma determinada forma de organização existente casualmente no objeto de estudo devem suceder figuras de uma lógica formal, capaz de englobar, no seu racionalismo, a organização casual, além de ajuntar ao objeto um simulacro (complemento e superposição, portanto) de nova ordem, que explicita melhor que a primitiva organização o verdadeiro e profundo significado do objeto. É nessa nova ordem racional que se encontraria marcado definitivamente o significado implícito do objeto de análise, agora finalmente explícito. Assim é que acontecimentos narrados, ao sabor e sob o signo do acaso em um romance², dentro de uma ordem supostamente “real”, serão revistos, pela análise, dentro de uma lógica que procurará configurar as ações e atá-las, por exemplo, ao desenvolvimento e/ou caracterização das personagens. Roland Barthes, em artigo³ muito divulgado, na época em que foi escrito (1963), definia os dois processos como découpage (desmontagem) e agencement (arranjo, regra de associação). Já o objeto reconstituído — não sendo uma mera cópia, é claro — era para ele um “simulacro”, isto é, resultado da “fabricação verdadeira de um mundo que se assemelha ao primeiro, não para copiá-lo, mas para o tornar inteligível”. Assim sendo, no simulacro, “o intelectual [se encontrava] unido ao objeto”. Depois de ter definido o movimento da análise por aqueles três conceitos (desmontagem, arranjo, simulacro), podia ele resumir assim o fim de toda a atividade estruturalista: deve ela “reconstituir um ‘objeto’ de maneira a manifestar nessa reconstituição as regras de funcionamento (as ‘funções’) desse objeto”. Como diz ainda Barthes, “recupera-se o objeto para fazer aparecer as funções”. E tal não deixa de ser a palavra de ordem de Propp, em Morfologia do conto, que, insistindo em um jogo entre constantes e variáveis, concluía que as modificações nas estruturas dos “contos maravilhosos” se situavam ao nível dos nomes das personagens (e dos seus atributos), enquanto suas ações (ou “funções”) não se modificavam⁴. Voltando a
Barthes, percebemos que via ele, na transformação operada no objeto pelo simulacro da análise, um acréscimo semântico de (percebemos de maneira mais clara hoje) valor metafísico: era o inteligível que se acrescentava ao sensível. Um complementava o outro e vice-versa. O estabelecimento da decomposição sintagmática e a explicação pelo funcionamento paradigmático dos elementos internos, das funções, visava a deixar falar aquilo que restava “ininteligível” no objeto “natural”. Como já dizia Lévi-Strauss alguns anos antes, em Tristes
tropiques, ao comentar o encontro feliz da Geologia, do marxismo e da Psicanálise na sua formação intelectual:
[...] compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro; já que a realidade verdadeira nunca é a mais manifesta e que a natureza do que é verdadeiro já transparece no cuidado que ele mostra em se esconder.
E concluía Barthes que, em todos os casos, o mesmo problema era o que se colocava, o da relação entre o sensível e o racional cujo objetivo procurado é o mesmo: uma espécie de super-racionalismo⁵. Seguindo ainda os passos dos autores citados, Gerard Genette, poucos anos depois, via a crítica literária como bricolage em um gesto de adaptação da sua preocupação aos ensinamentos de Lévi-Strauss do Pensamento selvagem⁷. Para o etnólogo (como para Genette), o universo instrumental do bricoleur (como o do crítico literário) é, por definição, “fechado” — e “a regra do seu jogo é a de sempre se virar com os meios de bordo”. Aqui, a diferença entre o objeto natural e o simulacro se expressa pela passagem de um conjunto instrumental dado a um conjunto a se realizar, sendo que a diferença entre eles vai ser instaurada pela disposição interna das partes. Tal semelhança (de instrumento) e tal diferença (de disposição interna), circunscritas ambas ao mesmo, se explicam pelo duplo estatuto que cada elemento do conjunto instrumental comporta em si: cada um é ao mesmo tempo concreto e virtual. Se situa cada um deles a meio-caminho entre o “perceito” (percept) e o “conceito” (concept). E é por isso, conclui Lévi-Strauss, que o signo pode englobar tal elemento filosoficamente, na medida em que é ele um intermediário entre a imagem e o conceito, como lhe tinha ensinado Saussure. Colocada assim, ou ainda por outros caminhos, a problemática do signo linguístico, da linguagem, tinha invadido a pesquisa de todos os teóricos, fazendo com que em seus trabalhos pulsasse “esta inquietação com a linguagem — que só pode ser uma inquietação da linguagem e na própria linguagem”, conforme percebia Jacques Derrida. Tanto na recomposição pelo simulacro, quanto na atividade descrita como bricolage, tratava-se de levantar os vários elementos significativos e constituintes do objeto “natural”, dar a esses elementos um duplo estatuto (sensível e inteligível; significante e significado), pô-los em movimento,
analisando o mecanismo interno das funções ou o jogo relacional entre os elementos no interior do objeto. Mas nos dois casos
a visada era bem mais audaciosa do que parecia: o fim da atividade estruturalista era o todo. O todo na medida em que era artificialmente fechado como “sensível” e/ou “inteligível”, como “objeto natural” e/ou “simulacro”, no pensamento de Barthes. O todo, enquanto fechado (“conjunto finito”) na arquitetura teórica do bricoleur, tal qual foi definida no pensamento do primeiro, Lévi-Strauss. Em suma, a análise perfazia o mesmo caminho do objeto, apenas usando atalhos suspeitos. São os atalhos do conceito e da razão que conduziam, por sua vez, a atividade analítica a querer açambarcar a “solidariedade” dos elementos internos, ou a “totalidade” do objeto estudado⁸. Afirmar apenas a configuração global e a relação das funções, anulando a força, conforme assinala Derrida, visivelmente influenciado por Nietzsche, é indicar como o pensamento estruturalista estava interessado na apreensão do todo, do panorama global proporcionado pela representação panorográfica. É recair em um bidimensionalismo formal, pois o “relevo e o desenho das estruturas tornamse mais visíveis quando o conteúdo, que é a energia viva do sentido, se encontra neutralizado” . O tipo de análise descrito até agora foi feito seguindo principalmente duas postulações teóricas. Ou bem o processo de reconstituição era feito a partir de um exemplo único e se apresentava o estudo deste exemplo como matriz teórica para a análise de outros exemplos semelhantes, aproveitando-se a lição teórica e clássica da Poética, de Aristóteles. Ou bem estabelecia-se a priori um modelo de análise teórico, baseando-se para isso principalmente nos ensinamentos, já julgados “científicos” da linguística¹ e, em seguida, os divulgadores ficavam com a tarefa de aplicá-lo aos mais variados objetos. Estas duas postulações, antes de perguntarem o porquê do objeto, se restringem a uma ininterrupta cadeia de “comos?”, e pretendia extrair o significado sobretudo de um golpear de “funções” umas contra as outras, dentro sempre dos princípios de uma lógica dicotômica e rígida, binária¹¹, em que os elementos diversos, semelhantes e contrários, ou mesmo contraditórios, guardavam a sua individualidade e pureza conceitual, a sua essência. De qualquer forma, em ambas as atitudes descritas encontramos o desejo de só
estudar um exemplo, ou ainda, quando a análise se atinha a um corpus mais amplo (como no caso de Propp, ou do Barthes da análise da narrativa) era apenas para assinalar e enxergar nos exemplos múltiplos aquilo que os reduziria teoricamente (isto é, no laboratório de análise) a um mesmo modelo. A própria (auto) crítica de tal atitude se encontra no parágrafo de abertura de S/Z, de Roland Barthes, publicado em 1970, alguns anos depois do aparecimento do Nietzsche, de Gilles Deleuze, e dos escritos de Jacques Derrida:
Dizem que, graças à ascese, certos budistas conseguem ver toda uma paisagem numa fava. É o mesmo que teriam
desejado os primeiros analistas da narrativa: ver todas os relatos do mundo [...] numa só estrutura; vamos, pensavam, extrair de cada conto o seu modelo, depois faremos desses modelos uma grande estrutura narrativa, que transferiremos (para verificações) para qualquer possível relato: tarefa extenuante [...] e, por fim, indesejável, visto que o texto nisso perde sua diferença¹².
Àqueles dois tipos de análise poderíamos chamar, no campo propriamente literário, de leitura opaca, na medida em que a explicação se atém ao fechamento do texto, ou dos textos estudados, não procurando enxergá-los ou compreendêlos na sua diferença. Tinham a diferença como conceito semântico, mas não a tinham como conceito operacional. E, é claro, ainda não tinham a différance¹³, que é o momento anterior a toda diferenciação, a toda conceituação binária, antecena, portanto, da metafísica ocidental. Tinham o jogo e a relação como inspiradores do significado a ser depreendido do texto, mas não os tinham como elementos estruturantes. O jogo e a relação se esgotavam no centramento operado pela reconstituição totalitária, pelo movimento do agencement, na sua tentativa de configurar a solidariedade de todos os elementos do objeto “natural”, de configurar o que Barthes chamava de “simulacro”. Não tinham, ainda, é claro, como preocupação maior a organização desses objetos naturais dentro de uma determinada ordem que escapasse às da semelhança e da oposição, proporcionada pela visão sincrônica (a-histórica) ou dada de presente pelo modelo teórico utilizado.
2. Talvez por razões de caráter empírico, talvez por razões de caráter teóricoespeculativo, foi necessário repensar o esquema de análise que, didática e apressadamente, descrevemos anteriormente. As razões empíricas podem ser exemplificadas pelo fato de que o analista tivesse sentido a necessidade de explicar aquilo que tradicionalmente se chamava “obra completa” de um escritor, isto é, um conjunto de textos em que há algo em comum, mas que se exprime, no momento em que a análise em separado é abandonada, como diferença. Necessidade ainda de explicar o que, dentro da modernidade, se convencionou chamar “texto de apropriação”, ou seja, texto que, para a sua leitura exemplar, nos remete a outros textos, texto que deixa ver em sua transparência outros textos¹⁴. Necessidade que poderíamos explicitar, apelando para a descrição anterior, pela imagem de um tecido-texto que perdia sua opacidade virando-o contra a luz e que, como véu, deixava ver, entrever, no esgarçado, outras figuras, outros tecidos-textos. Por coincidência se fazia necessária a lição que nos tinha dado Althusser ao ler O capital, e que, agora, os críticos literários tomavam de empréstimo. Desta maneira exemplificava Althusser a sua leitura symptomale:
O resultado desta leitura cruzada [sous grille], em que o texto de Smith é visto através do texto de Marx, projetado nele como a sua medida, não passa de um resumo das concordâncias e discordâncias, a redução [décompte] daquilo que Smith descobriu e daquilo em que fracassou, dos seus méritos e de suas fraquezas, de suas presenças e de suas ausências¹⁵.
Se de um lado, já se impunha de maneira categórica a “formação discursiva” como objeto do estudo estruturalista, visto que todos os “fenômenos”, todos os “acontecimentos” passavam a ser vistos pela óptica da linguística, que tinha se transformado já então no método que indicava a unidade¹ das pesquisas levadas a cabo por disciplinas várias (Antropologia, Psicanálise, Crítica Literária, Economia etc.), por outro lado, salienta-se esse diálogo entre textos, a intertextualidade, que tinha sido negligenciada pelos modelos teóricos anteriores. Tanto
no caso da “obra completa” de um escritor como no dos poemas de apropriação era necessário começar a pensar conceitos até então impensados pelo estruturalismo, ou de maneira mais ampla, conceitos que “solicitariam” (abalariam o todo, etimologicamente) o edifício da metafísica ocidental. Mas faltava aos teóricos, seja a base filosófica, seja a coragem, para sair do campo teórico cujo estatuto se definia pela “cientificidade” do método utilizado — o linguístico — e realmente questionar a teoria como problemática se desenvolvendo dentro (e fora) de uma maneira de pensar, ou de ler, que era o pensamento ocidental. Por outro lado, tanto os pressupostos teóricos dos estudos antropológicos quanto os dos estudos psicanalíticos antes de tudo abalavam a certeza do pensamento centrado na etnia ocidental e nas “filosofias da consciência”. Mas enquanto tal tarefa mais ampla não era encetada pelo menos três conceitos se infiltravam na atividade estruturalista, fazendo com que de maneira “inocente” (perceber-se-ia mais tarde) se começasse a escrever o fechamento da metafísica ocidental: a diferença, a transgressão e a contradição. Pela diferença começa-se a pensar a instância de articulação de um texto sobre outros. Não mais são considerados os textos isoladamente, ou como pertencentes a um único modelo do mesmo, mas como se diferenciando na repetição, como um diálogo entre o mesmo e o outro. Recoloca-se, portanto, a problemática do “sujeito” (do “autor”, em termos literários), pois não existe mais uma origem clara e altissonante que se deve buscar no processo de explicação do texto, origem também da verdade deste texto e que se aclararia no processo de análise literária. Tem-se de pensar em um momento anterior confuso — confusão de escrituras —, pois os textos só falam significativamente a partir da inserção. Tomando como exemplo os poemas de Oswald de Andrade da História do Brasil (na coletânea Pau-brasil), pode-se dizer que o autor da Carta de Pero Vaz Caminha seria tanto este quanto o poeta paulista, os dois, na medida em que um se inscrevia dentro do outro e vice-versa, abandonando-se assim também uma visão cronológica e unívoca do estudo do texto literário, ou cultural de modo mais geral. E quando a inserção se inscrevia em um espaço que dramatizava o choque entre duas culturas (a europeia e a indígena, por exemplo), se descobre um processo de transgressão aos valores de uma das culturas, a cultura dominante no caso. Tal se passa, ainda, no mesmo exemplo, quando percebemos que o questionamento básico dos poemas de Oswald são os dos valores da cultura portuguesa,
ocidental, branca e cristã, espraiados desde a Carta para os outros discursos que representariam de maneira similar a terra brasileira. Retomar o texto histórico do cronista, texto sério, e apropriá-lo dentro de uma estética do não sério, do jocoso, é operar um mecanismo de renversement ideológico, que pode ser explicado pela coexistência no mesmo momento escritural de afirmações que se contradizem. A afirmação e a negação, a contradição se afirma pela diferença (e não por uma simples síntese), ela existe como conceito operacional, pois é ela que pode dar conta de um criar pela destruição, do destruir pela criação, que mais e mais significa (estamos descobrindo um pouco tarde) o espírito moderno.
3. Tanto o panorama das discussões em torno das Ciências Humanas quanto o discurso da Crítica Literária tal qual era praticado pelos diversos estudiosos ambos vão mudar de maneira radical quando da entrada em cena de dois pensadores de nítida formação filosófica. Um, professor de Filosofia em universidades da província e significativamente marginalizado do meio sorbonnard, e o outro, um jovem estudante da Escola Normal Superior, aluno de Althusser e de Foucault. Referimo-nos a Giles Deleuze e a Jacques Derrida. São ambos que se esforçam por retirar as categorias do discurso teórico das várias Ciências Humanas (discurso que, como já salientamos, estava operando com as categorias “inocentes” de Saussure, ou com as categorias mais recentes e “científicas” da Linguística Estrutural) do limbo filosófico em que se encontravam, para dar-lhes o estatuto de culpadas, na medida em que, com elas, ainda se trabalhava dentro do sistema da metafísica ocidental. Sistema este que, paradoxalmente, procuravam de todos os modos abalar. Ponto pacífico de crítica foi a observação de Derrida quanto aos conceitos de “natureza” e de “cultura” no sistema de Lévi-Strauss. Percebendo-os corretamente como premissas do etnocentrismo, Lévi-Strauss os conserva como instrumentos de trabalho, porém os critica enquanto “valor de verdade”. Mas o pensamento dicotômico do texto antropológico relegava para o “escândalo”, para o monstruoso e o impensado, o incesto, em virtude de que, em sua ambiguidade, ostentava traços de natureza e de cultura. Observa Derrida, prenunciando com agudeza a différance e a “origem”:
[...] não é um escândalo que encontramos, pelo qual caímos no campo dos conceitos tradicionais; é o que escapa a estes conceitos e certamente os precede e provavelmente como sua condição de possibilidade¹⁷.
Escapa, precede e possibilita, eis a tarefa: determinar o momento de significação, anterior à diferenciação. Mas para tal é preciso antes abordar o problema do “conceito tradicional”, ou melhor, o do “nome guardado”. Pergunta Derrida: “Por que reter um nome antigo durante um tempo determinado? Por que amortecer de memória os efeitos de um significado, de um conceito ou de um objeto novos?”. Será então preciso compreender o mecanismo da “margem”, que abre e fecha, que fecha e abre, o mecanismo da dupla ciência. Continuam as perguntas:
Que função histórica e estratégica dar desde então às aspas, visíveis ou invisíveis, que transformam isso em “livro” ou fazem ainda da desconstrução da filosofia um “discurso filosófico”?
Trabalha-se então com uma estrutura da marca dupla, da leitura dupla, da escritura dupla, pois:
[...] preso — tomado de empréstimo e fechado — por um par de oposição, um termo conserva seu nome antigo para destruir a oposição a que não pertence mais completamente, a que nunca terá cedido, — a história dessa oposição sendo a de uma luta incessante e hierarquizante¹⁸.
Foi a partir sobretudo de Deleuze e de Derrida que se tornou capital, dentro do pensamento francês contemporâneo, uma releitura das primeiras manifestações estruturalistas, levando em conta uma releitura dos textos filosóficos tradicionais (onde e como os tinha deixado fechados¹ Hegel), releitura ainda da “filosofia a
golpes de martelo” de Nietzsche e dos filósofos alemães Husserl e Heidegger. É através do contato com o discurso nietzschiano, inteiramente desconhecido — tanto nos textos clássicos, como em outros até então inéditos — dos primeiros estruturalistas (já Hegel tinha sido absorvido de uma maneira ou de outra pelos diversos “marxismos”), é através da meditação nietzschiana sobre a linguagem, unida ainda à meditação também sugestiva e paralela de Freud, já avançada radicalmente por Lacan, mas dentro das categorias hegelianas² , que vai se colocar: a) o problema da verdade, da verdade na linguagem, e em particular na “escritura”; b) a problemática da interpretação; c) a problemática da genealogia. Por outro lado, é com Jacques Derrida que se opera a desconstrução do discurso da metafísica ocidental, tendo por base um questionamento de três preconceitos básicos: o etno, o logo e o fonocentrismo²¹. Questionando-os é que avança os “conceitos” de différance e de écriture que prefiguram seu projeto de uma “gramatologia”. Como diz Gérard Granel, ao resenhar seus três livros aparecidos em 1967: “ao longo desta questão da escritura, trata-se de voltar até o lugar em que a metafísica ocidental aparece completamente circunscrita e fechada”²². Subitamente, pois, se coloca como ponto focal de discussão a questão da origem — problema por excelência nietzschiano e que nosso século, com os parênteses fenomenológicos e existencialistas, mais as análises estruturalistas, tinha esquecido, relegando-o para segundo plano, ou simplesmente traduzindo-o (erroneamente) por “começo”. Diz Deleuze: “Genealogia quer dizer ao mesmo tempo valor da origem e origem dos valores. Genealogia se opõe ao caráter absoluto dos valores com o seu caráter relativo ou utilitário”²³. Marcos inaugurais da crítica radical da “totalização cultural sem estatuto” dos estruturalistas foram o Nietzsche et la Philosophie, a comunicação feita por Michel Foucault durante o VII Colóquio Filosófico de Royaumont, em 1964, sob o título Nietzsche, Freud, Marx, bem como os artigos coligidos por Derrida, em 1967, no volume A Escritura e a Diferença. De lá para cá, os textos se proliferaram com
generosidade, embora guardando as garras dos mestres, e seria preciso salientar os nomes de Jean-François Lyotard, Bernard Pautrat e Sarah Kofman, entre outros. Apesar de nítidas diferenças teóricas entre o grupo encabeçado por Deleuze e o outro por Derrida, diferenças girando em torno, de modo bem geral, da interpretação dialética ou não dialética de Nietzsche (hegelinizar ou não Nietzsche), percebe-se, no entanto, em ambos o desejo de dar ao discurso das Ciências Humanas um estatuto ambíguo que seja condizente com a investida operada contra o pensamento socrático, em um movimento de renversement do platonismo²⁴, como quer Deleuze, ou de “desconstrução” da metafísica ocidental, como prefere Derrida. Não se pode começar a falar da problemática da interpretação sem pelo menos uma prévia redefinição de signo (Nietzsche) e de estrutura (Derrida). Tomando por base o citado artigo de Foucault, percebemos desde o início que o signo, a linguagem, não está isento de uma “avaliação” por parte do intérprete ou do genealogista. Já no Livro do filósofo (1872-1873)²⁵, Nietzsche interpelava o “princípio da razão” que se repousava em uma continuidade entre a linguagem e as coisas, em um acordo pacífico e incondicional entre elas, proporcionando então ao pensador a “ilusão” de que a linguagem podia ser a expressão adequada de todas as realidades. Essa desconfiança em relação àquela continuidade, em relação portanto à própria linguagem como veículo do conhecimento e da busca da verdade, leva Nietzsche a propor um outro sistema para a compreensão do valor do signo, abstraindo-o totalmente e
primeiro da problemática da “coisa em si”, e vendo o estabelecimento da linguagem, sua gênese, como uma sucessão de metáforas² impostas pelo homem às coisas. Escreve Deleuze: “em geral, a história de uma coisa é a sucessão das forças que a ocupam e a coexistência das forças que lutam para ocupá-la”. Primeira metáfora: transpor uma excitação nervosa em uma imagem. Segunda metáfora: a imagem se transforma em som articulado. E conclui Nietzsche:
Acreditamos saber alguma coisa das próprias coisas quando falamos de árvores, de cores, de neve e de flores, e no entanto apenas possuímos metáforas das coisas, que não correspondem de modo algum às entidades originais.
Palavras que ecoam de maneira genial na poesia de Alberto Caeiro, nos seus versos que dizem que “pensar é não compreender”, “é estar doente dos olhos”. Daí para a desconfiança em relação à linguagem da filosofia ocidental por excelência — o conceito — nada mais precisava do que apresentá-lo como uma nova forma de metáfora, em um distanciamento ainda maior da linguagem à coisa. Terceira metáfora, portanto. Pois o conceito vive de uma das maiores contradições do pensamento ocidental: a identificação do não idêntico. O conceito, por exemplo, do vocábulo “folha” foi formado com o abandono deliberado de todas as diferenças individuais. Assim é que, percorrendo agora as páginas da Genealogia da moral, vemos que nomear as coisas é antes de tudo um “ato de autoridade” por parte do homem, por parte dos que dominam. Da pacífica relação entre a linguagem e as coisas passamos a uma relação conflituosa que só pode ser descrita
pelo vocabulário da diferença e da violência. O homem impõe uma e sua interpretação e um e seu valor quando utiliza criativamente a linguagem. O trabalho do filósofo, do crítico, será exatamente o de perceber a origem desta violência interpretativa, julgar o “valor dos valores”, estabelecidos por ela. Assim é que, diz a Genealogia:
Toda a história de uma “coisa”, de um hábito, pode ser uma cadeia ininterrupta de interpretações e de aplicações sempre novas, cujas causas nem sequer precisam ser ligadas entre elas, e que, em certas circunstâncias, só sucedem e substituem uma às outras ao acaso²⁷.
Dessa forma, chegamos a dois dos princípios diretores da interpretação, segundo Michel Foucault²⁸. É ela uma tarefa infinita, porque nunca se pode completar, mas não se completa porque não há nada para se interpretar, isto é, nada de primeiro para ser interpretado. Tudo já é interpretação. Assim sendo, a interpretação sempre se volta sobre si mesma, criando um movimento de circularidade que será então definidor do movimento do conhecimento humano.
Assim, apesar das aparências, conclui Foucault: “Parece-me que é necessário compreender esta coisa que a maioria dos nossos contemporâneos esquece: a hermenêutica e a semiologia são duas inimigas ferozes”. Esse aspecto de incompletude da atividade interpretativa é também sublinhado no pensamento de Freud, na Interpretação dos sonhos, por exemplo, quando afirma o caráter polissêmico do texto onírico, dizendo que “os sonhos, como todas as outras estruturas psicopatológicas, regularmente têm mais de um significado”. Esse significado plural do texto não chega a ser esgotado por uma ou várias interpretações, pois existe “pelo menos um ponto em todo sonho no qual ele é insondável — um umbigo, por assim dizer, que é o seu ponto de contato com o desconhecido”. Assim sendo, completa Freud:
Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, possuir qualquer término definido. [...] É num certo lugar em que essa malha é particularmente fechada que o desejo onírico se desenvolve, como um cogumelo do seu micélio² .
Enxergando, pois, a interpretação como polissêmica e como impossibilitada de dar conta da “totalidade”, era necessário repensar o conceito clássico de estrutura e de estruturalidade da estrutura. Tarefa a que se dedicou Jacques Derrida em conferência sob o título A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. Assinala ele, de início, que sempre houve limitação do jogo da estrutura, em virtude de ela vir sempre centrada em um elemento ordenador, organizador, e que, em termos filosóficos, seriam os princípios de archè e de telos. Acontece que a estrutura era, então, trabalhada no laboratório de análise a partir desse ponto fixo, desse centro, que é ao mesmo tempo interno e externo à estrutura, na medida em que ele é ordenador e ordenado, se apresentando o discurso crítico, portanto, como parte de um sistema teleológico. Usando a linguagem da linguística, Derrida diz que a cadeia dos significantes é sempre ordenada por um elemento que está fora dela e que
funciona, a um certo momento, apenas como significado (sem o seu correspondente significante, é claro). Esse elemento vai ser chamado de
“significado transcendental”, ou seja, aquele “que não reenviaria em si mesmo, em sua essência, a nenhum significante, excederia a cadeia dos signos e deixaria de funcionar, a um determinado momento, como significante”. Descentrando, pois, a estrutura, deixando-se de pensar esta como ordenada por um “significado transcendental”, amplia-se indefinidamente o jogo da significação, na medida em que destituindo da condição de óptica estruturante os conceitos de princípio e de fim, passa o discurso escrito a se impor como estrutura solta, abandonada, desamparada, seja por parte do autor, como de qualquer outro elemento estranho à cadeia dos significantes. De um sistema teleológico, típico do discurso da metafísica ocidental, passamos a um “sistema no qual o significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças”. A partir do momento em que postulou essas ideias, foi importante para Derrida a releitura crítica do Fedro, de Platão³ , texto em que se colocava de maneira clara a condição assassina da escritura. O “pai” do discurso se ausenta no momento em que escreve e sem a presença paterna o discurso escrito, como diz Sócrates a Lísias, “necessita sempre a ajuda de seu pai, uma vez que não é capaz de se defender e socorrer a si mesmo”. Escrever é pois: “cair longe da sua linguagem, emancipá-la, ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a palavra [...] Deixá-la falar sozinha, o que ela só pode fazer escrevendo”.
1 Segundo Lalande, no seu Vocabulaire Technique et Critique de Ia Philosophie, tal significado para o termo “análise” remonta ao filósofo Condillac, na sua Logique. Diz o Vocabulaire: “Esse sentido, que engloba decomposição e recomposição, é o estabelecido por Condillac, para quem a análise ou método analítico consiste em “observar numa ordem sucessiva as qualidades de um objeto, a fim de lhes dar no espírito a ordem simultânea em que elas existem’”.
2 Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, deixa que o narrador insista em uma possível sucessão casual dos encontros entre personagens no tecido narrativo, rechaçando, assim, por oposição, qualquer con-
figuração formal e racional deles fornecida por uma análise. Citemos o narrador de Brás Cubas: “Dá-se movimento a uma bola, por exemplo: rola esta, encontra outra bola transmite-lhe o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama ... Marcela, — é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira. Virgília [etc.]” (ASSIS, Machado de. Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1971, v. I., p. 560). Seria necessário analisar todo o capitulo e, em particular, suas implicações no pensamento metafísico. Fica apenas a indicação.
3 BARTHES, Roland. L’activité structuraliste: Essais critiques. Paris: Seuil, 1964, pp. 213-220. Existe tradução brasileira; a tradução para alguns termos foi tomada de empréstimo a ela.
4 PROPP, Vladimir. Morphologie du conte. Paris: Seuil, 1970. Consultar, em particular, o capítulo Método e matéria.
5 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes tropiques. Paris: Plon, 1955, p. 62.
6 Gerard Genette estabelece primeiro a regra do bricolage, para, em seguida, descrever sua “economia”, que se dá em dupla operação: “de análise (extrair diversos elementos de diversos conjuntos constituídos) e de síntese (constituir a partir desses elementos heterogêneos um novo conjunto no qual, no fim das contas, nenhum dos elementos reempregados reencontrará sua função de origem)”. Essa dupla operação, que é considerada por ele como tipicamente estruturalista, é característica do pensamento selvagem. Mas continua Genette, alargando o escopo do propósito lévi-straussiano: “Mas há uma outra atividade intelectual, própria das culturas mais evoluídas, a qual essa análise [a do bricolage] pode ser aplicada quase palavra por palavra: trata-se da crítica, e mais precisamente da crítica literária, [...] a crítica literária fala a língua do seu objeto,
é metalinguagem, ‘discurso sobre um outro discurso’ [...]” (GENETTE, Gerard. Figures. Paris: Seuil, 1966, p. 145–146 — grifos nossos).
7 LÉVI-STRAUSS, Claude. La Pensée Sauvage. Paris: Plon, 1962. Em particular, o capítulo I, A ciência do concreto.
8 Cf. em particular o capítulo O conto como totalidadade, no citado Morfologia do Conto.
9 Cf. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria B. M. N. Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. Panorógrafo é um instrumento em que se obtém, em uma superfície plana, o desenvolvimento da visão perspectiva dos objetos que rodeiam o horizonte (p. 15).
10 Cf. BARTHES, Roland. “Introduction à l’analyse structurale du récit”. In: Communications, n. 8, Paris: Seuil, 1966: “O que dizer então da análise da narrativa, colocada diante de milhões de relatos? [...] ela é obrigada a conceber de início um modelo hipotético de descrição (que os linguistas norte-americanos chamam de ‘teoria’) e a baixar, em seguida e pouco a pouco, a partir desse modelo, em direção às espécies que ao mesmo tempo dele participam e dele se distanciam [...].”
11 Roland Barthes, ainda vítima da armadilha do binarismo, concluía ingenuamente em 1964: “Estas rubricas, percebe-se, apresentam-se sob forma dicotômica; observaremos que a classificação binária dos conceitos parece frequente no pensamento estrutural, como se a metalinguagem do linguista reproduzisse ‘em abismo’ a estrutura binária do sistema que descreve [...]”
(BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1971, p. 14).
12 BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970, p. 9.
13 Cf. DERRIDA, Jacques. La Différance. In: Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1973.
14 Exemplo típico de impossibilidade de compreender s articulação de um texto sobre outro, por cegueira metodológica, se encontra o livro de Jean Cohen, Estrutura da linguagem poética (Trad. Ávaro Lorencini e Anne Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974), às páginas 30-31. De modo algum compreende o crítico o que acontece quando Queneau retoma “Le vierge, le vivace et le bel aujourd’hui”, de Mallarmé, e escreve por cima: “Le liège, le titane et le sel aujourd’hui”. Dentro da literatura francesa, os melhores exemplos de “apropriação” se encontram em Robert Desnos (no período anterior a 1930) e em Michel Leiris.
15 ALTHUSSER, Louis. Lire le capital. Paris: François Maspero, 1969, v. I, p. 16. Conforme ainda a definição de leitura symptomale: “Tal é a segunda leitura de Marx: uma leitura que ousaremos chamar ‘sintomal’, na medida que, num mesmo movimento, ela desvenda o indesvendável no próprio texto que lê, e o relaciona a um outro texto, presente de uma ausência necessária no primeiro. Do mesmo modo que a primeira leitura, a segunda leitura de Marx pressupõe a existência de dois textos, e a avaliação do primeiro pelo segundo. [...] o segundo texto se articula nos lapsos do primeiro”.
16 BARTHES, 1971, op. cit., p. 13.
17 DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e O jogo no discurso das ciências humanas. In: A Escritura e a Diferença. Trad. Maria B. M. N. Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.
18 DERRIDA, Jacques. Hors livre. In: La Dissémination, Paris: Seuil, 1971.
19 Observa Châtelet; “Vale mais — como Marx e como Nietzsche — começar por Hegel, visto que ele é um fim” (CHÂTELET, François. Hegel. Paris: Seuil, 1968, p. 17).
20 Ler a extensa nota que Derrida dedica a Lacan em entrevista concedida à revista Promesse e hoje incluída em Positions (Paris, Minuit, 1973). Derrida acaba de retomar Lacan em leitura do “Séminaire sur la lettre volée”, sob o título de Le facteur de la vérité.
21 Para uma introdução a Derrida, pode-se consultar o nosso Desconstrução e Descentramento. In: Tempo brasileiro, n. 32, 1973.
22 GRANEL, Gérard. Critique, nov. de 1967, n. 32, Paris: Gallimard, 1973.
23 DELEUZE, Gilles. Le concept de généalogie. In: Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.
24 Cf.: DELEUZE, Gilles. Simulacre et philosophie antique. In: Logique du sens. Paris: Minuit, 1969, p. 292-307.
25 NIETZSCHE, Friedrich. Le livre du philosophe. Paris: Aubier-Flammarion, 1989. Consultar em especial: Introduction théorétique sur la vérité et le mensonge au sens extra-moral.
26 Para maiores detalhes, consultar: Kofman, Sarah, Nietzsche et la métaphore. Paris: Payot, 1972.
27 NIETZSCHE, Friedrich Whilhelm. La généalogie de la morale, Oeuvres Philosophiques, tome VII. Paris: Gallimard, 1971. Ver, em especial, Il, 12.
28 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. In: Nietzsche, Paris, Minuit, 1967, p. 183-192.
29 FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v. I, p. 119-560.
30 DERRIDA, Jacques. La pharmacie de platon. In: La Dissémination, op. cit.
Referências bibliográficas
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Notas do Autor 1. O entre-lugar do discurso latino-americano foi escrito originalmente em francês, com o título de L’entre-lieu du discours latino-américain. Foi lido na Université de Montréal, no dia 18 de março de 1971.
2. Retórica da verossimilhança. Palestra escrita a convite de Heitor Martins e lida na sessão especial da Modern Languages Association, em 1969, dedicada a Machado de Assis.
3. Eça: autor de Madame Bovary. Palestra originalmente escrita em inglês e lida no dia 30 de abril, durante o evento comemorativo “Generation of ‘70”,
organizado por Heitor Martins na Indiana University, naquele ano. Tradução para o português pelo autor.
4. O Ateneu: contradições e perquirições. Artigo originalmente publicado na Luso-Brazilian review, winter 1967, p. 53–78.
5. A bagaceira: fábula moralizante. Uma primeira e resumida versão deste artigo foi publicada originalmente no jornal O Globo, em 1973. A atual versão foi apostila na cadeira de Literatura Brasileira, na PUC/RJ.
6. Os abutres foi originalmente publicado com o título de “Os abutres: a literatura do lixo” no número de janeiro de 1973 da Revista vozes.
7. Caetano Veloso enquanto superastro foi originalmente publicado com o título de Caetano Veloso ou os 365 dias de carnaval, nos Cadernos de Jornalismo e Comunicação, no número de janeiro/fevereiro de 1973, pp. 45–56.
8. Bom Conselho foi originalmente publicado no Suplemento literário do Minas Gerais, na edição de 7 de março de 1973, pp. 1–2.
9. O caminho circular da ficção foi publicado originalmente no Suplemento literário do Minas Gerais, número de 8 de setembro de 1973.
10 O assassinato de Mallarmé foi escrito, a pedido de Mário Pontes, para o suplemento literário de O Jornal do Brasil, em 1975.
11. Análise e interpretação foi apostila no Departamento de Literatura Brasileira da PUC/RJ e, posteriormente, publicado no número 41 da revista Tempo brasileiro, abril-junho 1975, pp. 8–23. Republicado em Dispositio (EEUU), n. 1, february 1976, pp. 46–57.
A Palavra de Deus Le signe et la divinité ont le même lieu et le même temps de naissance. (Jacques Derrida)
Assim como há Lêxicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. (Padre Antônio Vieira)
I
O código linguístico e o código religioso Segundo os dizeres da Carta de Pero Vaz de Caminha, no dia 23 de maio de 1500, Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias, quando levavam de volta à terra dois selvagens que tinham sido trazidos à presença de Cabral, foram acompanhados de um degredado “para lá andar com eles e saber do seu viver e maneiras”. Os índios posteriormente recusaram a presença do intruso entre eles — atitude que se repetiu, nos diz ainda Caminha, no dia seguinte. Mas já no último dia da estadia da esquadra de Cabral nas costas do futuro Brasil, na terra ficaram dois degredados e dois grumetes fugidos. A insistência com que Caminha anotou esses detalhes se justifica por uma razão superior, a razão mesma que governa o diálogo que marcaria para sempre a superioridade portuguesa, ou seja, o estabelecimento de um código linguístico comum aos dois povos (sendo ele, é claro, o da língua portuguesa), código este que possibilitaria a implantação da Fé e do Império, a catequese e a colonização, pois se o homem os entendesse, e eles [os selvagens] a nós, seriam logo cristãos. O tempo sendo escasso, percebe-se
ironicamente que são dois degredados, transgressores da lei na metrópole, e dois grumetes fugidos, desobedientes às ordens do capitão, que poderiam livrar os índios da sua condição de pagãos e os converter à doutrina cristã. Não tanto por possuírem a Palavra de Deus, ou por terem sido preparados para divulgá-la, mas simplesmente porque seriam os primeiros brancos a aprender a língua dos selvagens.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé [...].
Na falta de um código que pudesse irmanar portugueses e selvagens diante da imagem do Cristo crucificado, Caminha insistiu na capacidade extraordinária de imitação por parte dos índios. Durante o sacrifício da missa, esta “gente boa e de boa simplicidade”, estes selvagens que, “segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença”, se punham a macaquear os navegadores. Difícil, ou impossível, é hoje saber se o espírito de imitação era ou não era produto do imaginário de Caminha, ou mesmo se ele era ou não era um estratagema político, anotação feita mais para o rei do que para a história, mas o que não nos deve surpreender é que, mesmo sem a língua comum, o escrivão-mor acreditava que os índios os entendiam, como se o gume da Palavra de Deus fosse de tal forma penetrante que, no seu silêncio, iluminasse os gestos dos pagãos, possibilitando que descobrissem religiosamente as qualidades da cópia e do reflexo. Do espelho — miçanga que os portugueses trouxeram para os trópicos no afã de cativar os índios —, do espelho, que descobriam então as possibilidades de uso. Na falta de uma língua comum era, pois, a ideia da imagem refletida, da cópia gestual, da repetição mecânica na superfície do espelho, que governava o convencimento. Catequese primeira (e talvez mágica, se nos lembrarmos, por exemplo, de Caramuru e seu arcabuz, “o deus do fogo”) que guarda em si todas as características de um ritual mímico, em que a ausência do texto não impossibilita que os atores se entreguem de corpo e alma (para usar a dicotomia cristã) à nova religião.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos [...].
Os recursos da representação dirigiram ainda os primeiros passos dos jesuítas, depois da sua chegada em meados do século XVI: o espetáculo, o gosto pela máscara, pelo gesto factício. Anchieta, por exemplo, oferecendo aos índios a oportunidade de representarem os papéis de santos, deixando, portanto, que adotassem uma máscara branca e pia, tendo ainda escrito seus autos em português e tupi-guarani, ou combinando as duas línguas, estabeleceu pela primeira vez o encontro bem-aventurado do código linguístico e do código religioso. Um ajudando ao outro, cada um para o seu lado, mas sempre acertando os passos nas curvas, erguendo o caminho da colonização e da catequese. Anota o Padre Cardim: “Estes meninos [índios| falam português, cantam a doutrina pela rua e encomendam as almas ao purgatório”. É o mesmo Anchieta que vislumbrou a necessidade de estabelecer a Gramática da língua mais usada na costa do Brasil, percebendo que só o conhecimento perfeito da língua dos selvagens é que propiciaria uma articulação mais eficiente nos trabalhos da Companhia de Jesus. Mas o que talvez seja interessante notar é que, do mesmo modo como no código religioso, a possibilidade de outro deus foi excluída, também a possibilidade do bilinguismo foi evitada para os índios. A Gramática de Anchieta, no seu jargão altamente técnico, na qual a compreensão da língua dos selvagens era feita através do modelo latino, era muito mais um instrumento para os jesuítas do que um texto de base para os índios, texto que os ajudasse a compreender racionalmente a sua língua, e muito menos, é claro, a gentileza de uma leçon d’écriture. Já Agostinho Ribeiro, na “licença” que deu para a publicação da Gramática, reconhecia que ela ajudaria com “mais facilidade e suavidade se plantar e dilatar nelas [naquelas partes] nossa Santa Fé”. Visto que seria ridículo, naquelas alturas, falar da possibilidade de o colonizador aceitar o dicionário indígena como possível fonte para o enriquecimento da língua portuguesa, para não tocar nem de leve no problema que os românticos brasileiros teriam de enfrentar.
II
Batismos E foi no período romântico que José de Alencar recapturou pela escrita estes momentos sobre os quais estamos falando. Analisando o seu discurso, talvez possamos ter uma visão detalhada e distante de toda a situação criada pelo descobrimento e pela implantação da Fé e do Império. Em Iracema, Martim, o português, e Poti, o índio, passam ambos por operações de batismo, para simbolizar a troca de valores de que os portugueses seriam exemplo único na sua colonização dos trópicos. Mas a cerimônia do batismo se articulava em dois planos completamente distintos, apesar de Alencar, no seu “luso tropicalismo”, ter pretendido demonstrar que ambos se equilibravam como em um legítimo e justo intercâmbio de valores. Martim, “tendo adotado a pátria da esposa e do amigo”, se deixa pintar o corpo, tornando-se um “coatiabo”. Desta vez foi o português que aceitou a máscara, a pintura, deixando que se impregnasse apenas corporalmente, na epiderme, pela cultura de adoção. Mais tarde, foi a vez de Poti, mas a cerimônia foi mais complexa e definitiva, pois não só chegava a afetá-lo religiosamente, como também na sua personalidade civil. Se antes eram as regras do amor e da amizade que governavam a transformação, agora, anota Alencar com relação ao batismo de Poti, “Deviam ter ambos um só Deus, como tinham um só coração”. Portanto, o batismo de Poti não se situava no nível sentimental e/ou patriótico, como no caso de Martim, mas se articulava no plano religioso, e de uma religião exclusivista, na qual só há lugar para um único Deus e um único nome para o fiel. Poti recebeu novo nome e o engenho com que Alencar o fabricou foi altamente comprometedor: “Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos”. Se um se articulava apenas no nível da epiderme, a pintura, o outro se articulava no nível da alma, da rejeição de valores divinos e aceitação de novos. E termina Alencar esta passagem: “germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem”. Seria necessário grifar o adjetivo “verdadeiro”? As duas forças propulsoras da colonização portuguesa foram o estabelecimento de um código linguístico e de um código religioso comuns. São estes, muito mais do que o código administrativo, ou mesmo o judicial, que primeiro tocam
de perto o povo a ser colonizado. Através deste primeiro amolecimento na rigidez cultural do nativo, da suplantação do que havia antes, através deste gosto pelo diferente, despertado pelo espelho, é que se cai na armadilha. O código, na sua condição de sistema fechado (bem mais o religioso, é claro, do que o linguístico, como descobriu Alencar), pouco a pouco absorveu e englobou no seu seio o novo elemento, e no momento em que este se sentiu presa e preso do sistema sua vida se achou modificada inexoravelmente. Os novos conceitos só puderam ser expressos pela e na nova língua, e foi o uso da nova língua que propiciou o campo perfeito para a “semente” e para o proselitismo: “e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar” (Caminha) . Muito mais do que se acredita normalmente, foram estes dois códigos que trouxeram para o Brasil a ideologia portuguesa. E o linguístico se encontrava devidamente respaldado pela Escritura, pela Palavra de Deus. Ainda Caminha: “E imprimirse-á ligeiramente neles [selvagens] qualquer cunho, que lhes quiserem dar”.
III
Limites do imaginário Aquela mesma metáfora, a da semente, é que inaugura um dos sermões mais ambiciosos do Padre Antônio Vieira, aquele em que, discutindo o papel dos pregadores no Brasil, é levado a falar sobre a arte do sermão. O polo metafórico se encontra convenientemente dirigido por semen e verbum, tal qual se encontram na epígrafe e no leitmotiv¹ do sermão: Semen est verbum Dei. O sermão é estruturado pela lógica da igualdade e da metáfora, e assim sendo, o pregador será semelhante ao semeador e os pagãos à semeadura. Seja na gênese da metáfora, extraída da Sagrada Escritura, do Evangelho, seja ainda no seu desenvolvimento pelo pregador, que visa a justificar a ação da Companhia de Jesus no Brasil, dos que saíram do Paço e cujos passos serão contados pelo Tribunal de Deus, encontramos ótimo material para analisar o imaginário da prosa religiosa. Encontra-se tolhida pela Palavra de Deus, e de tal modo cerceada que a liberdade vai se encontrar não tanto em uma ideia, metáfora, ou palavra que não se encontrem circunscritas pelo Livro santo, mas no malabarismo virtuoso do pregador, que passa do sentido figurado ao concreto, do sentido substantivo ao sentido adjetivo, etc., com grande perícia lógica — em suma, goza o pregador em sua
plenitude finita e lúcida a liberdade da retórica. O malabarismo permutacional tem sua razão de ser e se explica pelos próprios limites impostos pelo código religioso, que semelhante a um dicionário-enciclopédico restringe a compreensão da realidade, dos atos e fatos, à série contida no Livro — sendo este aqui a Bíblia. A Bíblia, ao contrário da Enciclopédia, não se enriquece, mas antes marca passo (paço), sua elasticidade vindo não da palavra e do conceito novos, como no caso da Enciclopédia, mas da nova interpretação. A originalidade e (por originalidade entendemos a transgressão ao código que tem como fonte e inspiração a imaginação) vem do jogo interno dos conceitos, visto que a palavra sempre guarda a sua forma física, fixa e eterna, a da Palavra de Deus. A originalidade é a heresia, crime semelhante a outra transgressão, a do código civil. Vejamos agora um exemplo concreto: a metáfora da semente. Apresenta-se ela de início como no Evangelho, cuidadosamente parafraseada pelo pregador. A semente foi afogada pelos espinhos, secou-se nas pedras, foi pisada pelos homens e comida pelas aves. Do fracasso da semente divina, que não chegou a germinar em virtude do contato com esses quatro elementos, Vieira passa a uma generalização de cunho universal e bíblico: “todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira” (grifo nosso). E como chegou à noção de totalidade? Porque todas as criaturas do Mundo se reduzem a quatro gêneros: vegetativas (espinho); insensíveis (pedra); sensitivas (ave); e racionais (homem). Justificada a generalização, se percebe que consciente ou inconscientemente a Palavra bíblica se juntou à Palavra da ciência, perdendo, portanto, o seu sentido dogmático e se encontrando desmistificada. Vieira se sente incômodo no seu raciocínio, pois os pregadores não deviam pregar aos espinhos, aves e pedras. Destruindo a metáfora, ou seja, vendo os quatro elementos assinalados na sua condição de elementos do Livro da Natureza, aproximando-se, portanto, da realidade, mas tendo necessidade de apreendê-la dentro das fronteiras definidas pelo código religioso, tem ainda e ao mesmo tempo necessidade de compreender a metáfora na sua condição de transgressão: tal é possível porque encontramos “os homens degenerados em todas espécies de criaturas”: “homens homens”; “homens brutos”; “homens troncos” e “homens pedras”. Querendo guardar o modelo bíblico em toda sua riqueza estrutural, mas ao mesmo tempo desejando agora, em uma terceira fase, explicar fatos pertencentes ao Livro da História, compreende Vieira que tem de inverter os termos lógicos da metáfora, pois no Brasil (sobretudo em um sermão dirigido à generosidade do rei), mais do que a semente ou o trigo, quem mais sofreu foram os missionários, pois a catequese não estava sendo tão fácil quanto profetizava Caminha. E o trigo mirrado,
afogado, comido e pisado se metamorfoseia:
Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha do Aroãs, houve missionários mirrados, pois tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença [...] E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens.
Essa obediência estreita e absurda ao Evangelho se encontra várias vezes expressa no corpo do sermão como o dever máximo dos pregadores. A maioria destes fracassa porque acredita estar pregando a Palavra de Deus, quando nada mais faz do que pregar a própria palavra: [...] as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus. Se o servilismo à letra está patente e é obrigatório, pois aí reside a eficiência da palavra do pregador, Vieira também não deixa de lado a crítica maior que pode fazer aos pregadores, crítica esta da qual ele não se exclui, visto que também o ácido da sua imaginação tem corroído as páginas do Livro santo, deixando com que nas entrelinhas se cresça esta fauna imprevisível e profana, humana e palavrosa, que pouco a pouco vai desvirtuando o papel do pregador sobre a terra e o colocando entre os artistas.
Quantas vezes ouço dizer o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número!
Entre a obediência aos “passos da Escritura” e a temida desobediência organizada em torno da semente da imaginação, semente terrena, profana e
pouco eficiente, talvez seja esta a maneira de definir o barroco de Vieira: entre o servilismo necessário diante do código religioso e a liberdade, ainda que vilipendiada, só transparente pelo uso imoderado, mas devidamente autenticado pela Palavra do Evangelho, da retórica. O imaginário se encontra sempre cercado pelo estreito e finito código religioso, podendo apenas encontrar a respiração da liberdade no jogo retórico. E não há de ser o jogo artístico, pois este, usando as imagens de Vieira, sofre a tirania terrena da ordem imposta pelo xadrez, invenção dos homens (“se de uma parte está branco, da outra há de estar negro”). A ordem soberana que subjuga o criativo em Vieira tem de se emanar do poder divino, o poder superior que organizou o campo celeste e, agora, a página branca. Para explicar o estilo sacro ideal, recorre Vieira à metáfora do céu e das estrelas, na qual o “fácil” e o “natural” foi ditado por Deus: “Ordenado, mas como as estrelas”.
IV
O espelho: comunicação e conversão Uma brecha se abre, porém, no processo metafórico do sermão que vimos analisando: Vieira deve ter percebido que a parte mais importante do esquema tríplice que lhe foi dado por Cristo, o elemento semeadura, está totalmente condicionado por um processo espontâneo de reação. Para que se defina melhor o papel do público ouvinte, compreendido pelo elemento semeadura da metáfora da semente, Vieira terá de criar o seu próprio modelo em que o processo de conversão é visto narcisisticamente como uma pessoa que se olha no espelho, com a única diferença de que não é o próprio rosto que se encontra na superfície, mas a doutrina, a Palavra de Deus. Para tal, o pregador tem de organizar uma teoria da comunicação, como se fosse moderno publicista. As três partes são as clássicas: de um lado, o pregador; do outro, o ouvinte; e entre eles, a Palavra divina, a mensagem. O pregador concorre com a “doutrina, persuadindo”, “o ouvinte, com o entendimento, percebendo”, e finalmente “Deus com a graça, alumiando”. “Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo”. Para que se possa ver são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Cada um
destes três elementos devidamente traduzido sendo: “O pregador concorre com o espelho que é a doutrina; Deus concorre com a luz que é a graça; o homem concorre com os olhos que é o conhecimento”. Retornamos como que por milagre à concepção inicial apontada por Caminha, na qual o conceito de imitação era capital e se impunha a metáfora (nem tanto metáfora na época de Caminha) do espelho no processo de conversão. Só que aqui a imitação se passa nos dois planos, tanto do ouvinte quanto do pregador. O pregador, consciente da obediência total ao código religioso, se vê na condição de puro reflexo, luz de planeta, semelhante aos autores dos Livros santos, “inspirados” (no sentido teológico) e guiados por Deus, nada mais fazendo do que deitar no papel a verdade divina. Sua doutrina não é sua, mas antes encontrada aqui e ali na Bíblia, e seu trabalho, semelhante ao descrito por LéviStrauss na Pensée Sauvage, se assemelha ao do bricolage, pois a nova palavra, criada no púlpito, guarda na sua essência o traço divino, seu dicionário, e a contribuição do pregador é a da catálise, da solda, do amálgama. Por outro lado, destruindo no ouvinte o papel da audição, conservando, portanto, a metáfora do espelho em toda a sua riqueza e na condição primitiva encontrada em Caminha, destrói por assim dizer o efeito acústico da mesma palavra no mecanismo da percepção, destruindo ainda e, portanto, curiosamente os efeitos da palavra como instrumento de comunicação, pois esta, mais do que a verdade apreendida pelos olhos, se perde muitas vezes quando o código linguístico traí o código religioso de onde se origina. Vieira, mais do que qualquer outro pregador, estava consciente dos truques que guarda a apreensão das palavras e dos conceitos pela audição. A palavra, apreendida pelo ouvido, apela para a interpretação, ao passo que a imagem dos olhos que ouvem a doutrina, esta imagem transmite apenas o conceito de cópia, de reprodução verossímil, de mímica, deixando de lado para sempre o possível remendo do ouvinte. Todo o processo de doutrinamento, da absorção das diversas peças que compõem o código católico, o catecismo, se dirige sobretudo à vista, na medida em que requer mais um uso passivo da memória, bidimensional e estreito, superficial. Assim, percebemos porque seja tão importante para o conhecimento de si, para a percepção, para a conversão, que Vieira desenvolva no fiel as qualidades dos “ouvidos de ver”. Publicado em Barroco (MG), n. 3, 1970, pp. 7–13.
1 O termo leitmotiv significa o motivo condutor e consiste em um tema que aparece constantemente no decorrer de uma obra com o objetivo de fixar tanto uma personagem como um objeto ou ideia.
Alegoria e Palavra em Iracema
1. Do Romantismo ao Indianismo Na América Latina, ao oposto da Europa, onde ocorreu um movimento de abertura de fronteiras, o Romantismo se apresenta como um encasulamento. A abertura dos portos e a independência já o prognosticavam no Brasil. Encapsulamento político e literário, mesmo se nas aparências e na realidade não o tenha sido, mas o foi na consciência dos que o faziam. O próprio tema do exílio, já notável em Cláudio Manoel da Costa, ainda sob a forma de conflito, nada mais é do que um reforço (reforço por oposição) do instinto pátrio, do encurralamento. Tanto em Gonçalves Dias, na sua famosa Canção do exílio, com a discordância entre o que acontece “lá” e “cá,” tão bem estudada por Aurélio Buarque de Hollanda¹, quanto em Gonçalves de Magalhães, que se inicia à moda de Chateaubriand, fazendo profissão de fé de “peregrino”², mas termina a sua carreira com o seu mais do que interessante A Confederação dos Tamoios. Em Cláudio, conflito; em Dias, choque e escolha dentro do poema; e em Magalhães, choque e escolha dentro da obra. Não se admira, pois, que a literatura passe a ser, mais do que antes, forma e expressão do nacionalismo nascente, e que dois dos principais temas do Romantismo europeu aportem e recebam as cores verde e amarela: a descrição da natureza e o indianismo. Basicamente, estes temas se desenvolvem na Europa e no Brasil de maneira semelhante, inclusive se originam das mesmas fontes; nos fins é que se distanciam. Usamos de propósito o termo “descrição da natureza,” reduzindo a complexidade a um dos seus aspectos. Para nós, a descrição da natureza era parte de todo um processo de (re)conhecimento em que o artista procurava tornar-se consciente dos limites pátrios, do que o rodeava mais de perto, da paisagem tropical enfim. E o que é forma de devaneio para o europeu, possibilidade de evasão (pense agora nos “cocotiers absents de la superbe Afrique”³, de Baudelaire, em oposição às palmeiras e carnaúbas de Alencar), é para nós uma aproximação maior do solo, um desejo de enxergar objetivamente
o que nos cerca. Com a objetividade acumularam-se os nomes, avivaram-se as cores já vivas e exagerou-se o pitoresco. A descrição foi infelizmente, muitas vezes, puro exercício estilístico, extravasando-se dos quadros e da função a que se propunha. Machado de Assis, sempre atento, comentava alguns anos depois da publicação de Iracema, em um artigo publicado em Nova York:
Um poema não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, a que estes sejam naturais, não de acarreto⁴.
Em Alencar, no entanto, interessante processo se desenvolve, apontado já breve e casualmente por Gilberto Freyre. Fala-nos ele dos “índios quase vegetais na sua natureza”⁵. Continuando a sua deixa, diríamos que não é o homem que empresta qualidades humanas à natureza, mas a natureza que serve para pintar o homem. Lembrando-nos por certo o inusitado retrato que Cesário Verde pinta com vegetais em Num bairro moderno . Quando José de Alencar deseja traçar o perfil de Iracema, no capítulo II, recorre a cinco comparações sucessivas: 1, 2: [...] tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que o seu talhe de palmeira.” 3, 4: O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu hálito perfumado. 5: Mais rápida era que a ema selvagem [...]. Deixando de lado a idealização e perfeição patentes nos “mais ... que” ou “não era ... como”, abandonando ainda as comparações com animais, que nos levariam a caminho tortuoso, ou ainda ao radicalismo de um Bernardo de Guimarães, que afirma na sua Jupira: “como sói acontecer entre as
brutas alimárias pouco acima dos quais se achavam aqueles selvagens na categoria dos entes” — vemos em Alencar o desejo de fazer de Iracema um ser
vegetal a mais (e mais perfeito) entre outros vegetais. É ainda Gilberto Freyre que, páginas adiante, falando de outras heroínas de Alencar, observa: “Os cabelos parecem ser uma expressão de vigor e, ao mesmo tempo de maternidade ou feminilidade, da natureza tropical que, das árvores, se derramasse pela nudez das sinhás”. Quando Martim se despede de Iracema, no final do capítulo IX, ela “abraç[a], para não cair, o tronco de uma palmeira”. Alencar, rústico, agreste, transfere para a floresta o lugar-comum da apaixonada que se recosta no canapé a desmaiar, implorando os sais; e ali, realiza a simbiose do “talhe de palmeira” (cap. II) com a palmeira. Mais interessante, porque mais significativo e mais complexo, é o exame da aclimatização do indianismo na América, ou mais especificamente, no Brasil. Exportados para a Europa, o índio e o indianismo, matéria-prima, aqui retornam para dar ao brasileiro uma forma de reação política, social e literária contra Portugal, e por outro lado para proporcionar um retorno à verdadeira fonte do Brasil, uma busca do sentimento de brasilidade, que nos faria ímpares entre pares. Ou como o coloca Oswald de Andrade, em forquilha, no seu Manifesto Antropófago: “Contra todos os importadores de consciência enlatada”, a favor dos “instintos caraibas”. Se para Montaigne era uma faceta da sua curiosidade humanista, ou ainda uma peça que utiliza para dar o xeque-mate na Inquisição, se para Anchieta era uma necessidade para a catequese, se para os viajantes (Léry, Staden, Thévet, D’Evreux, D’Abéville e outros) um desejo de divulgação, se para Rousseau o achado com que, mentalmente, poderia combater o farisaísmo da sociedade parisiense, a sociedade que o tomava, ele cheio de calor humano, misantropo, se para Chateaubriand finalmente uma abertura de fronteiras, o exotismo — para o romântico brasileiro é uma bandeira político-social, é nacionalismo. Para o europeu, a fuga; para nós, a afirmação afinal. Depois da independência política, a literária. E não importa que os nossos índios sejam europeizados. Mesmo que Iracema se padeça com sentimentos corneilianos (o amor-dever para com os tabajaras, seus irmãos, que luta contra o amor-paixão para com Martim, amigo dos inimigos da sua raça e branco), ainda que seja idealizada dantescamente, como nova Beatriz, ou personagem de uma cantiga de amor
medieval, para não falar das idealizações mais próximas e mais à mão, da Elvire de Lamartine à heroína de Chatterton — mesmo assim há em Alencar a consciência de que, se expressando como se expressava, também expressava o Brasil, buscando o ideal de escrever “o verdadeiro poema nacional, tal como o imagino” (p. 186). Já André Gide afirmava com segurança: “Dans le domaine des sentiments le réel ne se distingue pas de l’imaginaire”. Não se tratou aqui de julgar os românticos, mas de compreendê-los, e para se compreender é necessário que o crítico se simpatize, se “empatize” com o criador. Além do mais, pelo exposto, não se faz necessário explicar porque o romântico português tenha evitado tenazmente o tema indianista, mesmo se a poesia de um Cruz e Silva, As metamorfoses, por exemplo, fizesse prever o contrário.
2. Da língua indígena ao autor-crítico A par da reação política, a reação filológica. Os românticos foram os primeiros a malbaratar sistematicamente a língua portuguesa da metrópole, usando modismos brasileiros ou palavras indígenas. (Talvez a única exceção anterior tivesse sido Gregório de Mattos, mas conforme assinala muito bem Antonio Candido: “Ele não existiu literariamente [em perspectiva histórica] até o Romantismo, quando foi redescoberto”, e mais adiante: “antes disso [do Romantismo], não influiu, não contribuiu para formar o nosso sistema literário”)⁷. Aí estão, como documento, as constantes querelas de Alencar com os portugueses, ou pseudoportugueses, estudadas exaustiva e condignamente por Gladstone Chaves de Mello⁸. No entanto, se a Filologia estuda estas transgressões e procura justificá-las, ou negá-las, baseando-se em normas e tradições linguísticas, a nossa função é outra. Averiguar em que o conhecimento da língua indígena afetou, esteticamente, uma das obras de Alencar, Iracema. E aqui, então, cremos que nos distanciaremos do que comumente se tem dito sobre Alencar. Que tivesse conhecimentos inegáveis de tupi-guarani não se discute, e que desse grande ênfase à sua importância para o escritor brasileiro resta ainda menor dúvida. Estes pontos estão claros, seja nas suas abundantes Notas, colocadas no final do volume, seja na tradicional Carta ao Dr. Jaguaribe, que se lhe segue nas
edições comerciais de Iracema. Que ainda compreendesse a primeira importância estética do conhecimento da língua indígena, nem se comenta, pois é ele próprio quem divide as obras indianistas em dois grupos: as que pecam pelo “abuso de termos indígenas acumulados uns sobre os outros”, e com isso quebra-se “a harmonia da língua portuguesa” e perturba-se “a inteligência ao texto”, e as outras, mais equilibradas, que, no entanto, não comunicam ao leitor a “rudez ingênua de pensamento e expressão, que deve ser a língua dos indígenas” (p. 185). Via lucidamente os inconvenientes e as armadilhas em que o escritor poderia cair. Colocava, inclusive para si mesmo, numerosos problemas, e ao mesmo tempo fornecia ao leitor mais arguto algumas pistas seguras para a compreensão total do seu romance. É isso que me empolga hoje em Alencar, a capacidade que tem de, sendo criador, ser crítico também. Enquadra-se, pois, dentro desta categoria tão prestigiada hoje em dia dos criadores-críticos: Baudelaire, Mallarmé, Valéry, Eliot, na poesia; Henry James, Flaubert, Gide, no romance — e muitos outros. E Alencar, como estes, usa a crítica como justificação e estímulo (emulação) para a obra que realiza. E me estão presentes estas palavras recentes do romancista Alain RobbeGrillet que, recusando-se a ver uma “antinomia entre criação e consciência”, conclui:
Il semble que l’on s’achemine de plus en plus vers une époque de la fíction où les problèmes de l’écriture seront envisagés lucidement par le romancier, et où les soucis critiques, loin de stériliser la création, pourront au contraire lui servir de moteur.
Fica claro, portanto, que Alencar se propunha a pensar constantemente a sua lenda. Não é à toa que Cavalcanti Proença pôde dizer dele:
O que o distingue dos contemporâneos é a consciência, despertada cedo, de que o artista se faz é pelo domínio do seu instrumento de trabalho. Fantasia ele a
tinha, e vertiginosa por vezes, mas sob suas leves nuvens, havia chão sólido de preparo, de leitura e de exercício, em que firmava pé para os saltos, voos e até cabriolas que executou.
Essa opinião já vinha, desde o século passado, sendo divulgada por Araripe Júnior, sólido biógrafo e contemporâneo de Alencar. Afirma ele que, quando estudante em São Paulo, Alencar “lia sem descanso novelas, e promiscuamente passava em revista os monumentos da literatura romântica”; e linhas atrás havia assinalado que:
[...] viam-no pacientemente preparar-se para sua estreia, como quem estava certo do papel que teria de representar na literatura de seu país e não receava competência capaz de antecipar-lhe o brilho .
E chega à conclusão de que “José de Alencar não foi um poeta inconsciente, e esta única proposição será suficiente para explicar toda sua vida literária”¹ . Desse mesmo julgamento compartilha Sílvio Romero¹¹, e mesmo, de certa forma, Georges Le Gentil, que em uma breve resenha por ocasião do centenário de Alencar, asseverava: “En 1865, lorsqu’il compose Iracema, Alencar est maítre de ses moyens”¹². Difícil é, pois, para nós aceitar outro julgamento de Araripe Júnior (inclusive em parte contraditório com as outras afirmações do crítico) que diz ser Iracema “talvez a sua obra mais espontânea”¹³. Podemos acatar esta opinião, mas é preciso que nos entendamos sobre o significado preciso do termo “espontânea”, ou então que se grife o “talvez” com que prudentemente inicia a cláusula. Jean Prévost, em um magnífico estudo sobre a criação literária em Stendhal, fala-nos da loi de la détente:
C’est une loi connue des athlètes, des danseurs et de tous ceux qui ont l’expérience des grands efforts rythmés, qu’après un effort intense, un moindre effort procure une aisance intime, et donne au style Tallure légère et la grâce¹⁴.
E cita os exemplos de Voltaire, escrevendo depois do Essai sur les moeurs, Candide; da correspondência de Flaubert; de Valéry, fluvial no seu Cimetière Marin, depois do complexo e obscure La Jeune parque etc. Talvez fosse esta a ideia que tivesse em mente Araripe Júnior, e como tal não a discutimos, pelo contrário, a aceitamos plenamente, inclusive porque viria fazer coro às afirmativas de Cavalcanti Proença e Le Gentil, citadas.
3. Da perífrase à criação de palavras Do tupi-guarani ao português, José de Alencar toma consciência de que manipula duas línguas diferentes na sua estrutura: na indígena, língua aglutinante, vemos que os vários afixos trazem “significado” quando se juntam na formação das palavras, ao passo que na portuguesa, flexiva, são meros condutores de “conceitos”. Do tupi-guarani ao português, então, passamos do vocábulo à perífrase. Dos poucos críticos a abordar e chamar a atenção para este problema e processo em Alencar é o Cavalcanti Proença que, apoiando-se em opiniões de Cardim, não vai muito além do mero constatar, chegando à conclusão bastante geral, para, logo depois, abandonar o assunto. O que importa estudar são os efeitos que Alencar retira do seu conhecimento da língua indígena e ainda os derivados da sua consciência-estética do processo. Inicialmente, se desejarmos retraçar a gênese deste entroncamento em Alencar, teríamos de falar do seu ideal (e como todo ideal inatingível) de “traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos índios” e na tradução necessário é que “a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara” (p. 185). Seguindo o seu próprio conselho, foi até a língua bárbara, e de lá trouxe uma nova visão, um novo approach para o problema linguístico no romance indianista. “Os assuntos pouco interessavam à sua musa fértil; a linguagem era tudo” — adianta-nos Araripe Júnior. Criaria palavras, expressões, perífrases, em português, segundo os moldes do tupi-guarani. Em outros termos, aplicaria o método da criação de palavras de uma língua aglutinante em uma língua flexiva.
Isso está bastante claro, bem exemplificado e explicado, longamente, na Carta ao Dr. Jaguaribe:
Ocorre-me um exemplo tirado deste livro. Guia, chamavam os indígenas, senhor do caminho, pyguara. A beleza da expressão selvagem em sua tradução literal e etimológica, me parece bem saliente. Não dizem sabedor, embora tivessem termo próprio, coaub, porque essa frase não exprimiria a energia de seu pensamento. O caminho no estado selvagem não existe; não é coisa de saber; faz-se na ocasião da marcha através da floresta ou do campo, e em certa direção; aquele que o tem e ó dá, é realmente senhor do caminho (p. 187).
Assim, no capítulo IX, o guerreiro Cauby é apresentado como “senhor do caminho”, e não como “guia”. Reside aí, no entanto, apenas uma das faces do problema, a mais óbvia e discutida (cujo exagero nos conduziria à falsidade da “fala de Tarzã”), problema bastante mais complexo e interessante no reverso da moeda. Gostaria de referir-me em especial aos momentos em que Alencar não traduziu o vocábulo indígena, e o usou tranquilamente em português, acrescentando-lhe, no seu aspecto exterior, audível, um valor encantatório, de magia, de evocação, e oferecendo, no seu aspecto significativo, múltiplas ressonâncias que deveriam ser adivinhadas pelo leitor. Com isso, engrandeceu a sua obra e mostrou pleno o esforço do criador. Pelo menos sob quatro aspectos. 1. Enriqueceu a língua portuguesa de novos vocábulos, alguns que seriam aceitos, e outros repudiados. Como coloca bem Gilberto Freyre:
Em Alencar, a língua portuguesa, sem se ter tomado a língua de um grande escritor, como que adquiriu o que os biólogos chamam de valor híbrido: conservando-se portuguesa, abrasileirou-se, ora arredondando-se em palavras mais do que latinamente doces, ora parecendo língua menos latina que bárbara com zz, yy e ww, vindos do grego, do tupi, do nagô e até do inglês.¹⁵
2. Resolveu satisfatoriamente dois dos problemas graves que assaltam a qualquer romancista: dar nomes aos seres e lugares. Em muito Alencar pode ter pecado, e pecou, mas nisso sempre acertou, dando às suas personagens não só a “particularisation of character”, de que fala Ian Watt,¹ mas também carregandoos propositadamente de valor simbólico, como veremos. 3. Conseguiu, ainda, criar toda uma alegoria ao usar conscientemente alguns desses vocábulos, sem que ficasse ofensiva ao bom-gosto, pois, mesmo para um leitor brasileiro cultivado, os símbolos não estão evidentes demais, antes requerem que sejam decifrados (para usar um vocábulo caro a Mallarmé). 4. Dentro da língua portuguesa, criou ilhas condensadas e cheias de significado, que lembram as experiências mais ousadas de autores anglo-saxões, ou mesmo de um Guimarães Rosa entre nós. Criando e usando palavras como “Moacyr,” em lugar da perífrase “filho do sofrimento” dando-nos a chave nas suas Notas (Joyce escreveu num tempo em que se confiava mais na argúcia e paciência do crítico), vemos que Alencar não está longe da palavra-mala, ou mesmo, em um certo sentido, do ideograma poundiano, visto que para este a literatura é “dichten: condensare”¹⁷. Tudo isso não parecerá estranho a quem leu cuidadosamente a biografia que Araripe Júnior traçou do autor de Iracema. Ali, lembra-se o crítico: “Recordo-me de ter ouvido um dia José de Alencar que estreava no mundo literário pela charada”¹⁸. O gosto pelo jogo, pela divisão artificial da palavra portuguesa em semantemas que exprimem significado, o acompanhava desde criança. Na feitura de Iracema, transferiu-o para outra língua em que a charada não é artifício. A charada foi-lhe revelada pelo reverendo Carlos Peixoto de Alencar, que “conseguiu obter dos esforços da criança uma perfeição talvez precoce”¹ . Araripe Júnior, em páginas adiante, chega mesmo a ver ressonâncias deste aprendizado na investigação que Alencar fará anos mais tarde no passado pátrio:
O mesmo gosto, que o levara em menino ao enigma, atraiu o adolescente ao passado de sua pátria. Quis decifrá-lo, dar-lhe forma, e, de vago, reduzi-lo a concreto; e, como seu gênio não se afeiçoava à análise, à observação, tentou adivinhá-lo. O difuso o horrorizava; a forma nítida, eis sua grande sedução² .
O menino que se aperfeiçoava nas charadas e o adolescente que decifrava as origens da pátria, já estavam em germe no adulto que iria escrever Iracema. Como diria Machado de Assis.
4. Entre o enigma e a alegoria Daí não acharmos incongruente, tampouco fictícia, a tese alegórica que se vem criando em torno do significado de Iracema. O primeiro a dar o grito para a nova interpretação, e não esconde o alvoroço e emoção da sua descoberta, é Afrânio Peixoto:
Iracema é o poema das origens brasileiras, noivado da Terra Virgem com o seu Colonizador Branco, pacto de duas raças na abençoada Terra da América. Não foi, pois, sem emoção, que descobri nessa “Iracema” o anagrama de “América” símbolo secreto do romance de Alencar que, repito, é o poema épico, definidor de nossas origens histórica, étnica e sociologicamente²¹.
Sim, Iracema é o anagrama para América, figura idealizada como era o Brasil pela literatura de informação sobre a terra recém-descoberta²²; caráter feminino que atrai pelas suas aparências o estrangeiro, e que até o enfeitiça através do licor de Jurema (tão romântico, mas tão apropriado) que a índia ministra a Martim para que ele, voltando à sua pátria pelo sonho, a despreze, distancie-se dos seus, e reclame Iracema no ato amoroso, cego, instintivo. Aliás, já Botelho de Oliveira via no Brasil, na sua Silva à Ilha de Maré, uma Vênus surgida das águas, amada por Netuno, o mar, lembrando por dupla oposição o Adamastor camoneano. Compraz-se Botelho de Oliveira a recortar a costa brasileira femininamente, fazendo com que o mar “botando-lhe os braços dentro dela / A pretend[a] gozar, per ser mui bela”²³. E o autor descreve o doce idílio dos amantes que, durante as marés vivas, “vivem nas ânsias sucessivas”; nas marés mortas, o mar menos a conhece, e, portanto, “maré de saudades lhe parece”. Não é o mar que “senhoreia” a jovem Iracema (de ira-mel e tembe-lábios), mas Martim, trazido pelo mar, e é curioso como Alencar foi precavido na escolha do seu nome²⁴, e como nos dá a chave exata nas suas Notas. Ali se pode ler: “Da
origem latina de seu nome, procedente de Marte, deduz o estrangeiro a significação que lhe dá” (p. 163), pois havia dito a Araken que o seu nome na língua dele significava “filho de guerreiro” (cap. III). Simbolismo que já aparece em Os Lusíadas (possível fonte para Alencar), quando Têtis discorrendo sobre os governadores e os heróis da índia, ao referir-se a Martim Afonso de Souza, cujo passado nas costas do Brasil ninguém ignora, engenhosamente sai-se com estes versos: Este será Martinho, que de Marte O nome tem co’as obras derivado; Tanto em armas ilustre em Toda parte, Quanto em conselho sábio e bem cuidado²⁵. Martim, Marte, representa em Iracema o povo português, “a que Marte tanto ajuda”² , e que vai conquistando os mares, as terras, os povos. Lícito, pois, era esperar que Camões, no Concilio dos deuses, fizesse com que Marte fosse o protetor da gente lusa, ajuda que será amplificada com a participação de Vênus, deusa do amor²⁷. Marte e Vênus, a favor, combatem Baco, protetor dos gentios, na verdadeira guerra entre os colonizadores e os bárbaros. Marte e Vênus, valentia e amor, a alma portuguesa. E não são também estas qualidades as de Martim? senão, vejamos como o romancista o introduz: “O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor” (cap. II). Assim nos é apresentado o moço: guerreiro por um lado, temo e amoroso por outro, ainda que isto tenha sido posto à prova um minuto antes, com a flechada de Iracema. Ferido, não revida; desconsiderado, perdoa e ama; amor à primeira vista, “coup de foudre”, romântico, fulminante e eterno. O recurso ao “licor” (atrás o mencionávamos), tão repetido e tão a gosto dos românticos, adquire aqui nova latitude,
abandonando por instante o apenas lugar-comum, o abre-te sésamos dos imbróglios. Expliquemo-nos. Dentro da visão “lusotropicalista” (Gilberto Freyre) da civilização brasileira, seria impróprio fazer com que Martim se apresentasse como profanador da religião indígena, ou mesmo da mulher. Iracema, começa a ficar claro desde o capítulo IV, “guarda o segredo de Jurema”, e
como tal deve quedar-se virgem. Qualquer ato de violência contra o seu corpo redunda em uma ofensa contra os tabajaras, e por oposição desprestígio de Martim, “o homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, “avant la lettre”. “Ele não deixará o rasto de desgraça na cabana hospedeira” (cap. XV) — decidese acordado, na noite da sua partida. Para ser pecador e se conservar ao mesmo tempo inocente, era, portanto, necessário que a sua lucidez fosse ofuscada, que o caminho a seguir, a partir de então, lhe fosse ditado não pelo livre-arbítrio, pela razão, mas pelos inexplicáveis meandros do sono/sonho. É ele quem pede a Iracema “o vinho de Tupã” (ela lhe oferecera antes, cap. VI). Sob o efeito da droga, pode expandir-se, dar vasão aos seus desejos; e aparecem duas conclusões reveladoras na boca do romancista, uma logo em seguida da outra, partes que são da mesma frase: “o gozo era vida”, “o mal era sonho e ilusão” (cap. XV) — o julgamento e o perdão. Na manhã seguinte, as águas banham o “corpo casto da recente esposa” (cap. XV). A violência não fora cometida, pelo menos lucidamente, mas a união se realizou. Mistura de raças, ausência de preconceito. O português, ao contrário do anglo-saxão, não havia trazido a esposa para o Novo Mundo. A partir de então há no livro um significativo intercâmbio de valores, valores de civilização. É Martim que, “tendo adotado a pátria da esposa e do amigo” (cap. XXIV) passa pela cerimônia da pintura guerreira, e recebe mesmo um nome de batismo, Coatyabo (cap. XXIV), o que sofreu a ação da pintura, lê-se nas Notas. Se brasileiriza, se tropicaliza²⁸. Em seguida, Alencar, ainda usando das suas infinitas comparações (excesso que ele mesmo critica, cf. p. 190), estabelece o “modus vivendi” do português nos trópicos. Entre a esposa e o amigo, será como o “jatobá na floresta”: “seus ramos abraçam os ramos do ubiratã e sua sombra protege a relva humilde” (cap. XXIV). Poti e Iracema, os tabajaras e os pitiguaras; Martim ainda traço de união entre tribos inimigas. O intercâmbio se completa com o batismo de Poti, segundo a Santa Madre Igreja, obedecendo-se ao próprio desejo do índio, pois ele queria “que nada mais o separasse de seu irmão branco” (cap. XXXIII). Uma vez mais, Alencar se esmera a arquitetar um nome próprio; aqui, até a ordem que estabelece é importante. Recebe primeiro “o nome do santo, cujo era o dia, e o do rei a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos” (cap. XXXIII). A fé, o império, como diria Camões, e a servidão, acrescentaríamos. Sorrateiramente a voz de Oswald de Andrade se interpõe entre a página e o crítico: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos
portugueses”. Esse aspecto, aliás, é sublinhado com pessimismo pelas palavras finais do ancião Batuireté, avô de Poti, proferidas quando da visita do neto e de Martim à sua cabana: “Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem o gavião branco perto da narceja” (cap. XXII). Mais do que depressa, para evitar qualquer desvio de interpretação, Alencar anota: “Ele profetiza nesse paralelo a destruição de sua raça pela raça branca” (p. 176). Radical e pessimista a conclusão do novo Velho do Restêlo, mas tal não é a profecia de Iracema: professa antes a mistura das raças, a miscigenação no final (é bom frisar: apesar da morte de Iracema). E dos elementos distintos, Martim e Iracema, nasce Moacyr, “o primeiro cearense” (cap. XXXIII). Novamente o conhecimento do tupi-guarani auxilia-o na criação da sua obra alegórica, na procura do nome próprio (também híbrido) adequado e simbólico. Ainda nas preciosas Notas que nos deixou informa: “Moacyr — filho do sofrimento — de moacy, dor e ira, desinência que significa saindo de” (p. 180). Definição do brasileiro, filho do sofrimento, porque fruto do encontro desencontrado. Peças que se adaptam pelo amor, e que não se encaixam pelo social. Do encontro, o filho; do desencontro, o sofrimento. Ou como o quer Afrânio Peixoto, mais patriota: “Símbolo desses primeiros brasileiros, os mamelucos, mártires da civilização, que atraiçoaram a raça autóctona, da qual já não eram, para serem maltratados pela raça invasora, a qual ainda não pertenciam”² .
5. Dura lex Iracema é, pois, como qualquer obra alegórica, um livro que oferece ao leitor dois níveis de leitura. Suporta uma primeira leitura, corrida, da casca para fora, na qual só se apreende o externo, a imagem simples e ingênua, o amor de um português por uma índia, nos primórdios do Brasil, leitura feita magnificamente por Machado de Assis³ . Também, caso queira o leitor aprofundar-se, aí encontrará diferente material: a alegoria do nascimento do Brasil, da civilização brasileira³¹, dos contatos entre portugueses e índios, arquitetada cuidadosamente e carinhosamente pelo autor, através de todo um trabalho na linguagem. Disso talvez, por ricochete, advenha o defeito maior do livro, e a crítica maior
que lhe fazemos. Por querer sustentar estes dois níveis de leitura durante todo o tempo, Iracema passa pela superficialidade no tratamento psicológico das personagens. Já Lúcia Miguel-Pereira, aguda leitora, havia assinalado que “o caráter simbólico emprestado aos heróis — aos dos livros indianistas, os mais importantes — como que os desumanizam”³². E mesmo Lins do Rego, com intuição de criador, em um rápido panorama advertia que “Alencar nos dera uma alegoria imensa, e nós precisávamos de pesquisadores de alma humana”³³. As personagens de Iracema são apresentadas pelo exterior, e o autor nunca quis se intrometer com o íntimo de Iracema ou de Martim (Gonçalves Dias, no poema IJuca Pirama, alcança mais nuances de sentimentos do que Alencar no seu romance). São mais joguetes na mão do autor, do que personagens — seres engomados. E deve ter sido por isso, e mais pela linguagem artificial que constantemente usa, que não tenha querido chamar Iracema de romance, nem mesmo de romance histórico. Lenda apenas. Iracema se nos apresenta com o candor, a ambiguidade (pronta corrigida pelas Notas), a atmosfera irreal, idealizada, a rusticidade, a ingenuidade das histórias que se contam “à calada da noite, quando a lua [...]” (cap. I). Lenda: visão subjetiva, interpretação pessoal, alegoria, ausência de rigor histórico. Aceite-se César pelo que César lhe oferece, e dê-lhe, em troca, o que ele merece. No caso específico de Alencar, porém, a nossa afirmativa inicial, o encapsulamento político da literatura, deve ser revista, a fim de que ganhe maiores matizes. Alguns historiadores (Sílvio Romero, Araripe Júnior) têm mesmo exagerado o papel que alguns dos seus antepassados, principalmente a avó e o seu pai, tiveram na formação do seu espírito antilusitano. Em Iracema o que vemos é um aperto de mão com o índio e com o português. Porém com o português que (frisemos) abandonou Portugal e aceitou sem restrição a pátria de adoção, o coatyabo, conforme ainda fica patente na reveladora cena do sonho (o licor de novo): “Mas porque, mal de volta ao berço da pátria, o jovem guerreiro de novo deixa o teto paterno e demanda o sertão?” (cap. VI). E o mesmo Martim, deus da guerra, passa a ser simbolizado mais tarde no livro pelo jatobá que, como vimos, serra nos braços o Ubiratã e protege a relva. Antilusitanos foram os diversos participantes do grupo “Antropofagia,” inclusive na violência das palavras, dos conceitos, não condizentes com o espírito Pitt de Alencar, ou dos outros românticos. Ou melhor: antilusitanos teriam sido, pois o indianismo para eles era sobretudo uma atitude estética. Publicado em Luso-Brazilian review, winter 1965, pp. 55–68.
1 Para reduzir o número de notas, deixamos de enviar o leitor à fonte todas as vezes que julgamos desnecessário por ser óbvio (ex.: “Canção do Exílio,” Montaigne em “Des Cannibales” etc.). A edição de Iracema usada foi a 12ª edição, revista por Mário Serrano, Rio de Janeiro: Briguiet, 1936. Uniformizamos o português nas citações. HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Território Lírico: ensaios. Rio de Janeiro: O cruzeiro, 1958.
2 Cf. São poesias de um peregrino. Lede, prefácio a Suspiros poéticos e saudades. Nossos clássicos. Rio de Janeiro: Agir, 1961, p. 88.
3 BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal. Paris: José Corti, 1950, p. 97.
4 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: Jackson, 1942, p. 149 (grifos nossos).
5 FREYRE, Gilberto. Reinterpretando José de Alencar. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 15.
6 GUIMARÃES, Bernardo. Jupira. In: História e Tradições da Província de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Garnier, s/d., p. 201.
7 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins
Fontes, 1959, I, p. 18.
8 MELLO, Gladstone Chaves de. Alencar e a língua brasileira. In: Obras Completas de José de Alencar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, v. X, p. 11– 88.
9 ARARIPE JÚNIOR, Tristão A. José de Alencar. 2. ed. Rio de Janeiro: Fauchon, 1894.
10 Idem, p. 15.
11 ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, v. V, p. 74.
12 LE GENTIL, Georges. José de Alencar. In: Revue de l´Amérique Latine, tome XIX, março 1930, p. 216.
13 ARARIPE JÚNIOR. Op. cit., p. 8.
14 PRÉVOST, Jean. La création chez Stendhal. Paris: Mercure de France, 1951, p. 145.
15 FREYRE. Op. cit., p. 19.
16 WATT, Ian. The rise of the novel. Berkeley: University of Califórnia Press, 1962, p. 18.
17 POUND, Ezra. ABC of reading. New York: New Directions, 1960, p. 36.
18 ARARIPE JÚNIOR. Op. cit., p. 11.
19 Idem, p. 11.
20 Ibidem, pp. 19–20.
21 PEIXOTO, Afrânio. Noções de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931, p. 163.
22 Para maiores detalhes, recomendamos o sugestivo livro de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso (Rio: José Olympio, 1959).
23 OLIVEIRA, Manuel Botelho de. “Silva à Ilha de Maré,” estrofe I, In: Música do Parnaso. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1939.
24 Este cuidado, e mais a preocupação simbólica, já transpareciam em O Guarani (São Paulo: Melhoramentos, s/d), em que Peri altera o nome de Cecília para Cecy (p. 165-166), pois este último, informa-nos Alencar, “é um verbo da língua guarani que significa magoar, doer” (p. 258). Eis um trecho do diálogo: “— Mas, então, disse a menina com alguma curiosidade, se tu sabes o meu nome, por que não o dizes sempre? — Porque Cecy é o nome que Peri tem dentro da alma. — Ah! é um nome de tua língua? — Sim. — O que quer dizer? — O que Peri sente.”
25 Os Lusíadas, X, 63-67, em especial 67.
26 Idem, estrofe III. Idem, I, 5.
27 Ibidem, I, 36–41.
28 Processo de abrasileiramento também existe no romance de Aluísio de Azevedo, O cortiço (Rio de Janeiro: Briguet, 1945), não pela religião católica, mas influenciado pelos hábitos, costumes e sensualismo do mulato. Não mais contato entre português e índio, mas entre português e negro (ou mulato). O personagem-chave é Jerônimo, que logo no capítulo VI é enfeitiçado pela música e dança brasileiras da mulata Rita. E acompanhando a aceitação da nossa pátria e da mulher, vem a exigência da cozinha brasileira, ao mesmo tempo que se distancia da esposa portuguesa (cap. IX). Por Rita, brigará com Firmo (cap. X), e o matará (cap. XV). Com ela, passa a viver, abandonando o antigo lar. No final, é um criminoso e adúltero. Azevedo mostra-se mais impiedoso para com os abrasileirados. E mesmo para com os portugueses que se recusam (como Piedade, que termina no álcool). Vício de escola.
29 Op. cit, p. 163.
30 Op. cit, p. 74-86.
31 Não se trata de julgar se falsa ou verdadeira tal tese. Problema bastante complexo que levou os nossos literatos aos mais desencontrados julgamentos. Machado de Assis: “Ê certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isso basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária” (Ibidem, p. 136). Na década 1920–30, encontramos duas atitudes opostas: a de Oswald, Mário e outros, defendendo o passado índio da civilização brasileira, e a de Graça Aranha, machadiana, em declarações como esta: “O nosso privilégio de não termos o passado de civilizações aborígenas facilitará a liberdade criadora [...] O Brasil não recebeu nenhuma herança estética dos seus primitivos habitantes, míseros selvagens rudimentares” (Espírito Moderno. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925, p. 36).
32 Prosa de ficção. Rio de Janeiro, José Olympio, 1950, p. 72.
33 REGO, José Lins do. Conferências no Prata. Rio de Janeiro: CEB, 1946, p. 34–35.
CAMÕES E DRUMMOND: A MÁQUINA DO MUNDO Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes. Machado de Assis
Tomando como base três importantes poemas de Carlos Drummond de Andrade (No meio do caminho, de 1930; Carrego comigo, de 1945; e O enigma, de 1948), analisando-os cuidadosa e meticulosamente, não seria difícil de constatar uma reincidência de tema no tempo, na qual sobressai a evolução de um símbolo: um objeto (pedra, embrulho e coisa, respectivamente) que de repente brota, não se sabe bem de onde, nem para quê, e que, intrigante, intercepta o caminho e os passos do poeta. Oferece-se a ele, desafiando a sua curiosidade e argúcia, como se trouxesse uma mensagem esotérica e importante. Mas o objeto é mudo. Pouco depois, desaparece como veio, sem deixar marcas ou pistas. Dando maior atenção ao último dos três poemas citados, notaríamos que a coisa, o objeto, tornou-se de símbolo, um enigma — e um enigma obscuro que “zomba da tentativa de interpretação”¹. Eis o ponto a que chegou o poeta às vésperas de publicar O claro enigma (1951): a um beco sem saída, a um enigma obscuro. O enigma, aliás, é poema típico dentro das correntes contemporâneas, poema que não teve a força suficiente para desprender-se do criador e entregar-se ao leitor. Vive no estado anfíbio de achado (trouvaille), não chega a ser domado, nem pelo autor nem pelo leitor, quedando-se no limbo da poesia. Ausência de expressão, ausência de comunicação. Por outro lado, perceberíamos que os poemas de Drummond evoluem dentro de uma conscientização lenta do adquirido, evolução paralela à vida do poeta, que se enriquece no dia a dia, renascendo constantemente em cada amanhecer, em cada nova fase da sua poesia, pois o seu valor primeiro é retirado da experiência na vida e na arte. Poesia fênix. Poesia que adquire peso à medida que se expõe e
se torna consciente do seu existir, já passado, prenúncio e razão de ser do futuro. Drummond é o poeta que amadurece — coisa rara no século XX, inaugurado sob os auspícios de Rimbaud. E o antípoda, Drummond, de Fernando Pessoa que nos disse: “não evoluo, VIAJO”². Companheiro que deve sentir-se do Brás Cubas de Machado, ele também crendo que o homem é apenas uma “errata pensante”. Daí o fato de Drummond ter aspirado a ser clássico só depois de ter atingido a idade madura, outonal, ao passo que o verdadeiro clássico já o é desde a primeira obra (ainda que esta não o seja). Ser clássico não é uma atitude artística, mas uma atitude existencial. Esboça-se aqui a diferença essencial entre a sua obra madura e a geração de 1945. Ele queria domar uma explosão dentro da sua própria poesia, da sua poesia passada, enquanto os outros
freavam uma fase anterior da poesia, e começavam a sua obra com uma atitude pensada, medida, clássica. Como um fruto coerentemente se amadurece, como a crosta da terra coerentemente se esfriou, no processo porque passa, Drummond procura e se irmana aos clássicos, para extrair deles o sabor. E na busca, a solução para o seu obscuro enigma: Camões acenou-lhe com “a máquina do mundo”, belíssima alegoria que se encontra no Canto X de Os Lusíadas, e forneceu-lhe, assim, o claro enigma. Vejamos primeiro qual o significado desta alegoria dentro da epopeia camoneana. A máquina do mundo. Luciano Pereira da Silva, em um extraordinário ensaio, pouco comum pela seriedade, estudando A astronomia dos Lusíadas, chama a atenção para os pontos técnicos do conhecimento científico de Camões, pois antes de tudo está interessado pela “parte puramente astronômica”³, da epopeia. Ainda que enviando o leitor mais curioso a esse estudo, temos de convir que a maioria das suas conclusões não nos interessam aqui, visto que, em Drummond, a alegoria carece de base científica, tendo dela apenas extraído a sua essência. Porém, uma das conclusões pode auxiliar-nos:
A concepção da escola de Alexandria era para Ptolomeu um modelo puramente
matemático; as suas esferas são apenas fórmulas matemáticas, auxiliares geométricos para o cálculo das posições dos astros. Para os astrônomos árabes, porém, como Albatênio, as esferas são sólidas, à maneira de Aristóteles; são peças com existência física, de vasto maquinismo pelo qual os corpos celestes são postos em movimento. [...] O modelo criado, para a concepção do universo
deixa pois de ser puramente geométrico; é um modelo físico-mecânico. É a máquina do mundo, que ao Gama e os companheiros é dado ver com os olhos corporais⁴.
Por esta conclusão — que Drummond não devia desconhecer, pois está em um estudo clássico sobre o assunto, posto a público e em edições comentadas da epopeia desde 1913 — se pode ver como a alegoria deve ter impressionado o poeta, pois a máquina do mundo se inscrevia perfeitamente dentro das suas buscas. Trata-se, não de uma fórmula ou equação matemática, abstrata, mas de um objeto físico-mecânico, que poderia muito bem substituir — e com maiores ressonâncias simbólicas, intelectuais e afetivas — a pedra, o pequeno embrulho, ou a coisa. E desde que se tratara de um objeto conhecido, catalogado anteriormente pelo conhecimento humano, estava agora o poeta pronto para vislumbrar o seu interior, devassar a casca, conhecê-lo, admirá-lo, interpretá-lo. Perdia o aspecto de “coisa indescritível” (p. 142), ou de obscuro enigma. Colocada em uma posição privilegiada dentro da estrutura de Os Lusíadas, a máquina do mundo é a soma dos conhecimentos divinos e sobrenaturais entregues a seres de carne e osso, durante a sua própria existência (“de c’os olhos corporais / Veres o que não pode a vã ciência” X, 76), como recompensa pelos grandes feitos alcançados. Serve, pois, por um lado, como complemento e contrapeso para as recompensas terrenas e materiais, carnais, propiciadas a Vasco da Gama e os seus companheiros, na esplêndida e rabelaisiana Ilha dos amores (Canto IX), e por outro lado, juntamente com esta, tem a função de elevar os navegadores portugueses, meros seres humanos, à altura de deuses. Baco temia e, em um discurso aos deuses do mar, prognosticava a posição invejosa dos portugueses no futuro imediato: temo
Que do mar e do céu em poucos anos Venham deuses a ser, e nós humanos. (VI, 29) E é Cupido, sob as instâncias de Têtis, quem propicia a inversão, pois ele: Os deuses faz descer ao vil terreno, E os humanos subir ao céu sereno. (IX, 20) Esta inversão de posições adquire pontos diametralmente opostos, se se estuda a atuação dos deuses e dos homens dentro da aventura, uma a cópia a carbono da outra. Como muito bem observa Antônio José Saraiva:
Os deuses são dotados das paixões, ódios, simpatias, enternecimento e cólera que nós geralmente atribuímos aos homens de carne e osso [...] ao passo que os homens são, ao contrário disto, hirtos vultos, agarrados ao leme da sua missão histórica, sem respiração humana, impassíveis⁵.
E com relação a Vasco da Gama, comenta: “Se move com a impassibilidade ritual que nós atribuiríamos aos deuses, e ao lado dele os deuses são seres volúveis, impressionáveis, levianos e incertos” . Vasco da Gama e os seus companheiros estavam próximos e ainda vivos demais para se tornarem personagens de uma epopeia. Como humanos, percorriam as audaciosas páginas dos historiadores quinhentistas; era preciso torná-los míticos para habitar uma epopeia. E não se trata de uma revelação a um homem, mas a todo um grupo (“tu com os mais [...]” X, 76), mostrando ainda uma vez que se trata de uma epopeia coletiva e não individual (cf. 1, 3, costumeiramente citado). Não é, pois, apenas Vasco da Gama que serve de contrabalanço à voz agourenta e amarga do Velho do Restelo
(IV, 95–104). E conseguem a fama, não com a ociosidade dos que ficaram em casa, com receio da ventura, medo do desconhecido, da luta, com a aceitação prudente e calada do status quo, aproveitando as delícias e molezas do mundo, mas enfrentando o perigo, a natureza inóspita e buscando novos horizontes para o homem. Esta profissão de fé humanista se encontra não só nas duas alegorias citadas, como nas estrofes 95–99 do sexto canto. Ainda hoje podemos ouvir o seu eco nos versos com que Fernando Pessoa justifica os que acreditam no mito do V Império (“Triste de quem vive em casa, / Contente com o seu lar, / Sem que um sonho no erguer de asa, / Faça até mais rubra a brasa / Da lareira a abandonar!”⁷), como os contemporâneos de Dante receberam a mesma doutrina através da sua interpretação da vida de Ulisses (Inferno, Canto XXVI, 83–142). Vasco da Gama e os seus aceitam essas duas provas de reconhecimento por parte de Têtis, e “se vão da lei da morte libertando” (1, 2).
A hipoteca e o aval A organização e a evolução interna dos poemas de Drummond podem receber diversos adjetivos, menos o de anárquicas. A lógica da estrutura na oposição de conceitos no nosso poeta é qualquer coisa que desarma o leitor propenso a complicar situações, ou a abordar a poesia sem o recurso da inteligência. Há sempre nele um desejo de dizer, de exprimir uma ideia, sentimento ou sensação que sejam claramente percebidos pelo leitor, e raramente os seus poemas são apenas a criação de um estado poético, encantatório, divino, que fez e faz a originalidade de uma Cecília Meireles, ou de um Augusto Frederico Schmidt. São discursivos, convincentes, diretos, secos, pobres (“Esta rosa é definitiva, / ainda que pobre” [p. 235]). E como João Cabral de Melo Neto tem receio de “poetizar seu poema,” “perfumar sua flor”⁸, e é sintomático como despreza aquilo mesmo que, normalmente, é tido como riqueza, e privilégio dos grandes criadores: a imaginação: “Imaginação, falsa demente, / já te desprezo” (p. 235). A máquina do mundo, como os três poemas citados ao início deste ensaio, não foge a essa premissa, pois facilmente se pode perceber nele uma série de agrupamentos conceituais, dispostos simetricamente. Vemos no poema cinco fases que obedeceriam à seguinte numeração por estrofe: 1–7: o quadro, a
máquina se entreabre; 8–16: se oferece e fala; 17–23: visão do poeta; 24–30: o poeta recusa; 31–32: fecho, as coisas continuam como antes. Nas três primeiras estrofes esboça e precisa o local do encontro com o objeto, ao contrário do que sucede nos três poemas previamente citados, em que deixava abstratas as
circunstâncias, ou os menores acidentes geográficos. As informações agora são claras: estrada de Minas, retorno à província, retorno sonhado, como se apenas pudesse encontrar a si onde nascera; ouvem-se sinos no fecho da tarde, a hora em que se passa a ação de Claro enigma, hora ambivalente que explica a poesia e o poeta, pelo que sugere envelhecimento, de caminho já percorrido, e também de amadurecimento. Continua com uma notação lírica: aves lançadas contra o céu de chumbo, que perdem o contorno à medida que o chumbo se derrete em negro; e é neste clima, expresso por cores também ambíguas, que o “ser desenganado” encontra a máquina do mundo. Voluntariamente o poeta moderniza a fábula camoneana, criando uma atmosfera irreal e ao mesmo tempo bastante precisa e realista para qualquer mineiro (sempre disposto a criar estória ou a contá-la), pois se assemelha a fatos jornalísticos ligados ao aparecimento de discos voadores. Drummond moderniza pela science-fiction; e o verbo “se entreabre”, logo seguido por “se abre” (estrofe seguinte) serve ainda para dilatar a impressão de suspense, de interesse, como se a máquina do mundo não mais se referisse a nós, mortais, mas fosse objeto interplanetário, alvo da curiosidade pessoal e do interesse geral. Ainda ao contrário dos objetos anteriores (pedra, embrulho, coisa) que teimosamente permaneciam fechados, herméticos, contraídos sobre eles mesmos, extraindo do poeta apenas interrogações, este agora “se entreabre”, “se abre”, sem nem mesmo perturbar ou chocar os sentidos e as intuições do poeta, “as pupilas” e “a mente” (estrofes 5, 6 e 7). Objeto estranho, porém familiar — contradição que se explica pelo passado do tema na sua poesia, corno se a máquina do mundo estivesse sendo ansiosamente aguardada. Como nos casos precedentes, o objeto se oferece, sendo a capital diferença que se oferece aberto agora, convidando o poeta para a inspeção do seu interior, onde se revelaria “a natureza mítica das coisas”. Personalizada, se expressa verbalmente, embora nem voz, sopro, eco ou percussão pudessem ser percebidos pelo homem, que tenta estabelecer uma ligação sensorial com o objeto. Resposta ao olhar humano que a investigava, ou apenas reflexo do olhar que se esbate, e
na tentativa de compreensão emite reflexo, que é realidade e ao mesmo tempo ilusão — como a própria natureza íntima da prosopopeia que consegue falar sem voz, sopro, eco ou percussão. Promete-lhe então a solução para todas as suas perguntas, problemas e investigações de “errata pensante”: “a riqueza”, “a ciência”, “a total explicação da vida”, e mesmo “o nexo primeiro e singular”. A máquina do mundo se revela, pois, como uma entrega ao poeta, em drágeas, de todo o conhecimento de (e, portanto, poder sobre) as coisas, e ainda oferece-lhe a explicação do nexo, ligação, que une homem e o objeto, homem e mundo. Não recusa o poeta inicialmente a oferta, a dádiva (o que não sucedia nos outros poemas, em que o primeiro gesto era de recusa, peremptório e definitivo), mas a aceita, e diante dos seus olhos tem uma verdadeira utopia moderna, na qual a perfeição atingiu não só o domínio das coisas elaboradas, trabalhadas pela mão, materiais, industriais (pontes, edifícios, oficinas), como o domínio dos recursos da terra, ou ainda dos mundos animal, vegetal e mineral, sem se esquecer dos próprios e complexos sentimentos humanos (paixões, impulsos, tormentos). Tudo afinal submetido à vista humana, tudo atrai e chama o poeta para o seu reino, mostrado por vez primeira. Mas o dom tardio não é apetecível; menos: é despiciendo. O poeta não é “mais aquele habitante de [si] há tantos anos”; vive já sem a curiosidade mostrada anteriormente, que se revelava nas constantes perguntas, tentativas de compreensão dos seres, das coisas, do universo enfim. “Baixa os olhos, incurioso e lasso” e desdenha colher a coisa oferta que se abria, se oferecia, se comunicava, se apresentava e se expressava. O poema se fecha, como a linha de uma circunferência (estrutura típica dos poemas mais desenvolvidos do autor), que depois de percorrer outras áreas retorna sobre o ponto de partida, sem que, dubiamente, o trajeto e a experiência tenham contado, embora afinal eles contem. Chegada a noite, na estrada pedregosa de Minas, a máquina repelida se recompõe, e o poeta “Segu(e) vagando, de mãos pensas” — atitude chaplineana, uma aventura a mais que sucedera sobre a terra. Lá está ele no Canto ao homem do povo — Charlie Chaplin: sapatos e bigodes “caminham numa estrada de pó e esperança” (p. 217). E nos vem à mente José. Aqui se queixava o poeta de que “o dia não veio, / o bonde não veio, / não veio a utopia” (p. 130). Tudo chegou em Claro enigma, inclusive a própria utopia que talvez fosse o mais difícil de vir, mas a pergunta continua a mesma: “Sozinho no escuro / qual bicho do mato. /
[...] / você marcha, José! / José, para onde?” (p. 130). O pessimismo não é total em Drummond, como em Chaplin; há sempre uma nota lírica de esperança, de crença em um porvir não muito longínquo, uma flor a ser apanhada na rua (Chaplin), uma flor a brotar no asfalto (Drummond) — oferecidas a Carlitos e a José. É este o lirismo que aprecio em ambos; lirismo que transparece de situações, de atos — e não apenas de palavras, rebuscadas e muitas vezes corroídas pelo sentimentalismo, femininas. Lirismo seco e contagiante.
Acareação De início pode parecer que não há grandes semelhanças entre o aproveitamento da alegoria por Drummond e a própria alegoria em Os Lusíadas. É, realmente, difícil de conciliar a objetividade, distância e cientificismo com que Camões trata a máquina do mundo, fazendo-a recompensa para uma coletividade, simbolizada por Vasco da Gama e os seus, com a subjetividade do empréstimo em Drummond, em que inclusive a base científica é substituída por uma anarquia apocalíptica que beira o improvável. A máquina do mundo em Os Lusíadas, como pacientemente nos mostrou Luciano Pereira da Silva no artigo citado, é um objeto preciso, mecânico e matemático que encontra as suas raízes nas ideias científicas que tinham sido expostas por físicos predecessores, e o tratamento que recebe é o dado por um humanista, no sentido quinhentista do termo, em que o saber, a erudição, se misturam com a poesia. A poesia é feita de verdades assimiladas pela inteligência, e reelaboradas pela sensibilidade. A percepção do assunto foi científica, intelectual; a sua expressão é sensível, lírica. Ao passo que no Claro enigma o desenvolvimento da alegoria é pura e simplesmente o produto da imaginação do poeta, que se extravasa dos limites concretos e atuais para a criação de uma utopia urbana, imprecisa e vaga, cujo correspondente deveria ser procurado não nas investigações científicas da nossa época, mas nas obras de science-fiction, gênero de H. C. Wells. E a comparação tem a sua razão de ser, pois o objeto para Drummond não tem função distinta da “máquina do tempo” para as personagens do romancista inglês. Em Camões e Drummond, a máquina do mundo satisfaz curiosidades. A curiosidade geográfica e astronômica dos navegadores portugueses, curiosidade que se satisfaz pela extensão, já que extensão e olhar (significativo uso desta
palavra na estrofe 76, Canto X) são sinônimos para o descobridor, preocupado em conquistar e dominar terras e não ideias, ou mesmo homens. E a visão ofertada a Vasco da Gama e os seus apenas lhes dá a conhecer uma parte restrita, confinada do mundo; a lição de Têtis é de mecânica celeste e de geografia universal. Satisfaz no poeta mineiro a curiosidade humana e filosófica que, por muito, se lhe havia sido negada (cf. poemas citados). O Universo, no poema de Claro enigma, como não tem um correspondente real ou científico, tem contornos mais amplos e menos palpáveis, e o seu conhecimento não equivale a um acréscimo territorial, mas a uma compreensão mais vasta do mundo e dos homens, sua causa, sua relação e seu porvir; conhecimento da condição humana (daí não denegrir o poema o fato de a máquina do mundo não estar baseada em conhecimento científico). Resposta à curiosidade científica, em um caso; à curiosidade filosófica, no outro. Busca de alargamento de fronteiras espaciais em um caso, busca de alargamento de fronteiras humanas no outro. Busca de um ideal, em uma só palavra. E o caráter da recompensa em ambos os casos nos dá o tom que os difere. A máquina é dada aos portugueses como recompensa pelos feitos heroicos, é um modo de coroar a sua valentia, disciplina e coragem, e significativo é o fato de, para obtê-la, terem de subir ao “erguido cume”, “onde um campo se esmaltava / De esmeraldas, rubis tais que presume / A vista que divino chão Pisava” (X, 77). E sobre o chão divino são deificados. No poeta de Sentimento do mundo, a máquina é uma recompensa pela vida vivida (“Viver é perigosíssimo”, alertava Guimarães Rosa), já que anteriormente ela se lhe fora negada, e não tem ainda o aspecto de coisa ofertada por alguém, mas de algo que se oferece (note-se no poema o emprego constante dá passiva com se, quando se omite o agente da ação), se oferece a um homem e em lugar dos rubis e esmeraldas que esmaltam o caminho para o monte, temos “uma estrada de Minas, pedregosa”. E este realismo voluntário, recusa também do aproveitamento da mitologia grecolatina, é coerente com a situação dada pelo poeta que, recusando a máquina do mundo, recusa também as glórias da sua possessão, a fama. Aceita a sua condição de homem, de mortal.
Nota explicativa (2019) A crítica literária é também escrita pela figura da coincidência. Passo o biênio 1962–1964 como professor no Modern Languages Department, da Universidade
do Novo México, em Albuquerque. Ao ser encarregado da tarefa docente nas literaturas portuguesa e brasileira, coincide que preparo um curso sobre Gil Vicente & Camões e outro sobre a poesia modernista brasileira. Releio Os Lusíadas ao lado de Claro enigma, meu livro preferido de Drummond. Não sou insensível ao tema comum da máquina do mundo. Dali, saío para a literatura comparada, analisando a questão do discurso da tradição no Modernismo brasileiro. Em seguida, sob os auspícios de Jorge Luis Borges, iria ao século XIX europeu. Contrastaria O primo Basílio, de Eça de Queirós, e Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Escrevo Eça, autor de Madame Bovary. Nas férias escolares de 1964, pouco antes de transferir-me para a Universidade de Rutgers, em New Brunswick (Nova Jersey), escrevo ensaio sobre o tópos da máquina do mundo em Camões e Drummond. Logo o submeto à revista Hispania para publicação. Nova coincidência. Às avessas. Na época mantenho contato estreito com os irmãos Campos, Augusto e Haroldo. Surge-me a ideia de rever alguns poemas (ou versos) dos poetas modernistas canônicos (Bandeira, Drummond e Cabral) da perspectiva do experimentalismo dos anos 1960. Escrevo quatro poemas, que intitulo Alguns floreios. A revista Invenção, dos concretos, publica dois deles. Transcrevo os dois poemas referentes a versos de Drummond:
Palavra-puxa-palavra a mote alheio É sempre no passado aquele orgasmo. asno é burro orgasno é de... no passado o h! gasmo no presente oh! pasmo orgiavagian al orgiavagia aval o rgiasmo ódiabo! orgi
aval urenal manual o h! asno pasmo no pre sente sente? orgasnu aval. quem gasna é p ato e asno é burro o !rgasmo não devia o h! não orgasnovagiana l
Palavra-puxa-palavra a mote alheio e um grave sentimento que hoje, varão maduro, não punge, e me atormento. ¹ onde deixaste? no ci mento. tormento? dei xaste as pegadas sof rimento ferimento di uturno hoje pungimen to ontem. onde deixa ste, varão? o gravev arão: sofrimento sof
ri sóri sofri sópung imento e cimento. re mendo? ma dureza dur eo maduca o fruto du reza madura. caduca. Tempos depois, às vésperas da defesa de tese de doutorado na Sorbonne, recebo do Rio de Janeiro, num daqueles envelopes aéreos da época, o poema abaixo, devidamente assinado pelo autor, hoje na Poesia completa.
Em A/GRADE/CIMENTO¹¹ Ao ensaio Camões e Drummond: A máquina do mundo, de Silviano Santiago, professor em New Jersey (U.S.A.) Cammond & Drumões: Sant’lago! que eu nunca v/ira os 2 juntos, i/mago de Br/ucharia ou brinco aniversário tez-sido de novas jérseis que ao vê-lo me sinto gag/o? Quina má de nau no mu(n)do levou K, de goa em goa a nãofragar em Drum-onda? e maquin/ais tal approach
sem que Vaz dolho vasado vos reucrimine, ó malino? Mack-in/ação que Rey-mundo ja+oiçara tr/amar pois de Luís o luisd/ouro eis se cãoverte em desc/ouro no ex-passo de um 2º mal-drummundo. Oiça ou ousa? Fray Luís de Soisa também maq’nista do grão te/atro del mondo m’in/cita no lauto Aulete à dire: cette machine aquiapitalizine. Silv’ano, se vana verba averba o fá de meu grão, salve! mas salviando antes o mão-quinado lusíada que druma em glória no alão, bãobalalãi. Publicado em Hispania, setembro de 1966, pp. 389–394.
1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964, p. 231. Para evitar a repetição desnecessária e monótona, apenas daremos o número da página entre parênteses.
2 PESSOA, Fernando. Páginas de doutrina estética. Lisboa: Editorial Inquérito Limitada, 1946, p. 275.
3 SILVA, Luciano Pereira da. A astronomia nos Lusíadas. In: Revista da Universidade de Coimbra, 1915, p. 305.
4 Idem, p. 306.
5 SARAIVA, Antonio José. Para a história da cultura em Portugal. Lisboa: Centro Bibliográfico, 1946, p. 94.
6 Idem, p. 95.
7 PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960, p. 21.
8 MELO NETO, João Cabral de. Duas águas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 46.
9 O enterrado vivo, Drummond de Andrade.
10 No exemplar de um velho livro, Drummond de Andrade.
11 Agradecemos a Pedro Drummond a permissão para uso do poema de Carlos Drummond de Andrade, nesta edição. Para maiores informações sobre o poeta ver o site: www.carlosdrummond.com.br.
A última voz de Krapp
Inaugurando o “Estúdio nº 1”, o Laboratório do Teatro Experimental (peças de vanguarda) apresenta a derradeira peça publicada de Samuel Beckett, A última voz de Krapp¹, em tradução e com direção de Marco Antônio de Menezes. Interpretação de Ezequiel Neves. Sobre a encenação propriamente dita, os diversos críticos especializados, nesta altura, já devem ter expressado a sua opinião. Em poucas palavras diremos que a direção seguiu uma linha escrupulosa, cavalheiresca mesmo, isto é, procurou encenar a peça com probidade e minúcia, seguindo bem de perto as indicações cênicas do próprio autor. É uma mise-en-scène educada. Semelhante (não sei se por mero acaso ou voluntariamente) à adotada por Roger Blin, diretor francês de Beckett (L’avant-scène, 15 de junho de 1960): “a melhor encenação — salvo o caso excepcional de uma obra como
Les Nègres — é a que é invisível para o espectador. Chegar a falar da paternidade de uma encenação parece-me discutível. Sem contar as indicações dadas pelo autor no seu manuscrito, há gestos que saem por si mesmos”. É uma posição, para tomar outro exemplo belo-horizontino, antípoda da adotada por Carlos Kroeber, em Fim de jogo, do mesmo autor, apresentada em 1959 no teatro do Museu de Arte². Carlos ama demais o espetáculo, é muito Orson Welles, para se ater às indicações do autor, e só a elas; ele constrói paralelamente outra encenação. Marco Antônio, aqui, acredita nas indicações de Beckett, e as teme. Porém, na crença e no temor, a correção quase religiosa. Louvável sobre muitos pontos de vista, o tour de force de Ezequiel Neves que, jovem, consegue, graças à maquiagem habilidosa de Donato Donatti, ser um Krapp de sessenta e nove anos bastante convincente. Mais uma apresentação de Beckett, em nossa capital, proporciona o levantamento de alguns problemas, não poucos, relativos à própria arte teatral nos nossos dias, relativos à problemática da literatura contemporânea (ou a
aliteratura), outros, ainda, referentes à própria obra, personalíssima, de Beckett. Pessoalmente, tenho a convicção de que, no palco, Beckett é insuportável. Um chato. Mas isso é outro problema. Vamos adiante. No entanto, literariamente, Beckett seduz-me incrivelmente, talvez das obras mais interessantes e ricas entre os modernos autores franceses. Este aparente paradoxo é resultado da própria divulgação da peça de teatro. Ela possibilita duas apreciações: primeira, a do palco, e secundariamente, a só leitura. Dissemos modernos autores franceses, pois, apesar de nascer em Dublin, Samuel Beckett é catalogado com certo orgulho para ambas as partes envolvidas entre os participantes do Nouveau Roman. Procuremos então aproximar-nos de Beckett. Acredito que um dos motivos que traz confusão geral nas discussões das peças de Beckett é o desconhecimento, principalmente da sua obra romanesca, anterior à teatral. É imperdoável esquecer-se de que, antes de Esperando Godot, Beckett havia publicado cinco romances³ e que, depois de Esperando Godot, nenhum romance mais foi publicado, tendo nos dado, em compensação, mais três peças de teatro: Fim de jogo; Ato sem palavras; e agora A última voz de Krapp. Aparentemente, parece que Beckett esgotou as possibilidades do romance (dentro, é evidente, da concorrência interna que a sua temática o obriga e o conduz) e passou para o teatro. Aparentemente e também no fundo, porque seus romances o guiaram a uma procura quase louca, não totalmente louca porque sem ilusões, lúcida antes mesmo de ganhar a consciência da realização — procura quase louca do repouso. Repouso, aqui, não é sinônimo de morte, porque a morte é inevitável, e não se a procura, mas se a recebe. Porém repouso é, aqui, aniquilamento, aniquilamento do eu. Não é sem razão que Maurice Nadeau (Temps Modernes, janeiro de 1952) descobre a assinala, fazendo um levantamento das personagens romanescas de Beckett, que estes começam por M de moi (eu, em francês) até chegar ao último personagem, aquele que dá título ao seu último romance L’Innommable (O inominável). Um nome, já ausente da catalogação do registro civil. Menos ser, mais vácuo, quase já silêncio, ausência de humanidade. Uma voz anônima, em resumo. Porque o mundo em que movem as personagens beckettianas começa e termina na solidão. Despojar-se do convívio dos outros, para conhecer-se a si mesmo. A solidão só existe na medida em que nos leva para mais perto de nós, isolandonos do contato com o outro. “Gosto de me levantar para dar uma volta, e depois
voltar a mim, Krapp”. Por isso é que o universo teatral de Beckett (o que aparece concretamente no palco, e não o que se pode adivinhar pelas palavras das suas personagens) é unidimensional. Perdido no espaço, ou melhor, ausente do espaço. Em Fim de jogo, uma espécie de cabana, de onde se avistava, de um lado, terra e só terra, do outro, água e só água. A estética teatral anterior a Beckett (desculpo-me pela generalização) se compraz a nomear lugares, regiões; pode-se mesmo dizer que toda uma topografia e uma toponímia podem ser levantadas a partir de uma peça, e é inegável a parte preponderante que ocupam no conteúdo da obra (penso principalmente nos dramaturgos modernos: de [Tennessee] Williams a [Arthur] Miller). Porém, aqui em Beckett, um mundo propositadamente reduzido nas suas proporções terrenas. As quatro paredes, tanto de Fim de jogo, como de Krapp, lembram-me violentamente o inferno sartriano de Huis-Clos. Este, porém, mais aproximado do “vestíbulo” quase abstrato das tragédias clássicas francesas, contra o qual insurgiram os (dramaturgos) românticos, pedindo a cor local e a multiplicidade de cenários. Dizíamos unidimensional, pois a única dimensão que conta, a dimensão beckettiana por excelência, é o tempo. O tempo que marca, corrói e estropia as suas personagens: a cegueira e a paralisia de Hamm; a impossibilidade de sentar-se e a dificuldade de se locomover de Clov; a miopia de novo e a surdez já acentuada e o andar difícil de Krapp. O tempo que implacavelmente surrupia de cena duas personagens durante o transcorrer de Fim de jogo: a morte dos dois velhos nas (respectivas) latas de lixo. O tempo que é percebido pelas personagens sob três formas: a vivência no passado em contraposição à inércia do presente, e a inércia do presente, estágio preparatório para o repouso absoluto do futuro. Porque o homem Krapp é também e principalmente um especulador do passado. Toda a ação transcorre sob a influência de uma pequena anotação de Beckett quase imperceptível no palco. Krapp se levanta, abre uma gaveta, retira um carretel virgem⁴, torna a guardá-lo, fecha a gaveta. É o dia do seu aniversário; dia em que costuma impressionar nova fita, com observações a respeito da sua condição atual (física e mental). Toda a ação da peça vai ser um constante adiar dessa nova gravação. Para adiar, ele escuta; bebe, absorve o passado através das fitas já gravadas. Aborrece-se por fim, e toma coragem para dar início a sua última gravação, la dernière bande ou a last tape, nos originais francês e inglês.
Recordação dos tempos em que ainda tinha companhia: seja a companhia da mãe, “Mamãe enfim está em paz” (grava aos 39 anos); seja a de Bianca (grava aos 27 ou 29 anos), seja ainda a companhia da voz da senhorita Mc Glome. Hoje, apenas o silêncio em torno, parecendo que a terra está deserta. Sozinho. Mas só hoje ele atinge a objetividade necessária para se conhecer a si mesmo. Na última gravação, Krapp trata o Krapp de 29 anos por ele. O gravador é ao mesmo tempo um meio de libertação e uma busca de objetividade. Beckett ultrapassa o Je est un autre, de Rimbaud. A última gravação começa por: “acabo de escutar este pobre cretino etc”. Este pobre cretino é o próprio Krapp aos 39 anos. Ir além das aparências — a única regra moderna para se conhecer. Como Paul Valéry no seu poema Narciso (investigação do seu eu interior), que se duplica para melhor se conhecer intimamente, com certa objetividade. Em Fim de jogo a solidão de Hamm era, por assim dizer, acompanhada: tinha ao seu lado Clov, espécie de criado, sem direito a voz. Aqui, Krapp encontra a solidão total. Porém, é preciso assinalar, a solidão, quando é atingida, soa como um fracasso: Krapp é obrigado a buscar um meio mecânico como válvula de escape, o gravador. Porque, apesar de tudo, Krapp precisa falar. Precisa comunicar os seus pensamentos. Ao se comunicar com os seres já mortos, recorre à mecânica. Em lugar da companhia de Clov, um gravador. E temos de convir: a troca é vantajosa. Duplamente vantajosa: o gravador escuta, como Clov, e com mais paciência, e além do mais registra e perpetua, através da gravação que não se apaga, os pensamentos dele. Daí o seu cuidado em anotar, no livro de registro, o número da caixa, o número do carretel e os diversos assuntos tratados. Maurice Nadeau, a propósito dos romances de Beckett, diz que ele “se move entre uma palavra vã e um repouso impossível”. Não creio que o mesmo aconteça na sua obra teatral; é preciso dizer, aproveitando ainda a dicotomia de Nadeau, que Beckett se move entre uma palavra necessária e um repouso impossível. Por que necessária e não vã? O gravador explica: é uma palavra que, apesar de tudo não deve morrer, deve ser conservada, mesmo se pouco útil. João Marschner, colunista deste jornal⁵, após a apresentação de A última voz de Krapp, perguntou ao jovem diretor Marco Antônio como deveria ser a próxima peça de Beckett, supondo que o dramaturgo age por redução. Houve certo embaraço e alguns sorrisos. Da nossa parte, pensamos que, se Beckett continuar a repetir no teatro a sua temática romanesca, como o tem feito, sua próxima peça terá como
único personagem um alto-falante, espécie mecânica e atual da boca anônima que vomita palavras em O inominável. Se Beckett não mudar urgente para outra forma de arte. Publicado em O Estado de Minas, fevereiro de 1961, pp. 5–6. Lembrar que, naquela época, ainda não havia a distinção entre o corpo do jornal propriamente dito e o suplemento cultural.
1 A peça foi originalmente escrita em inglês em 1958 e publicada na Evergreen Review, no número de verão, com o título de Krapp’s last tape.
2 Restaurado nos anos 1950, o Cassino da Pampulha, projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, transformou-se em Museu de Arte e o salão de shows, em miniteatro. Este é estreado com a peça Fim de jogo, em tradução de João Marschner e minha. Carlos Kroeber é o diretor.
3 Os cinco romances de Beckett são L’expulsé, Murphy, Molloy, Malone meurt e L’Innommable; o primeiro é publicado na França em 1947 e o último em 1953.
4 Marco Antônio traduziu tape por carretel.
5 O Estado de Minas. Lembre-se que João Marschner foi o cotradutor de Fim de jogo.
A moratória em processo
Em um país pobre de teatro, mais pobre desde a implantação e o sucesso das salas de cinema, e onde a arte cênica, por razões econômicas, esteve quase sempre entregue ao provinciano esnobismo aristocrata que sempre preferiu as peças estrangeiras às peças nacionais, por certo foi um impacto e uma influência salutar o aparecimento, na década de 1940, do grupo Os Comediantes no Rio (tendo como para-choque o dramaturgo Nelson Rodrigues), e a abertura posterior, em São Paulo, da Escola de Arte Dramática (EAD). Sem contar a proliferação lenta e reduzida, mas eficiente, de grupos universitários por todo o Brasil. Foi da EAD que saiu Jorge Andrade, autor que prima entre nós por uma absoluta integridade profissional, cujo melhor atestado é a pesquisa estética em profundidade que vem realizando, peça após peça, da evolução históricoeconômica da família brasileira, em particular da paulista. Tematicamente, pois, A moratória se coloca ao lado de outras peças do autor: todas tratam do tema geral da decadência e/ou desorganização da família durante uma grave crise econômica nacional. Três delas se passam no século XX (crise do café), apresentando características gerais semelhantes, irmãs gêmeas que são de A moratória: O telescópio, A escada e Os ossos do barão. A quinta e última tem raízes históricas, Pedreira das almas, e sua ação se situa no segundo quartel do século XIX, em Minas Gerais, quando, em função da exaustão dos veios auríferos, algumas famílias resolveram descer até o Planalto, dedicando-se à agricultura. Assim como os filões se exauriram, também este tema se esgotou, e a mais recente peça de Jorge Andrade, Vereda da salvação¹, marca uma decidida renovação temática, baseada que está em acontecimento histórico, relativo ao fanatismo religioso entre camponeses. A escolha de A moratória², como tema para um ensaio interpretativo, se justifica talvez pelo fato de que, dentre todas, é a de leitura e interpretação mais difíceis; é a mais rica em sutilezas psicológicas e simbólicas, e enfim é a única que apresenta uma estrutura dramática original e complexa.
Dividir para aprofundar Quando o pano se abre, nos surpreendemos com a quebra proposital da unidade de lugar, ao vermos que o palco se encontra dividido em dois planos, o passado e o presente, ou de maneira mais precisa: uma sala espaçosa de uma antiga e tradicional fazenda do café, em 1929, e um interior citadino, modestamente mobiliado, em 1932. Em ambos os planos, as mesmas personagens (os mesmos atores), mas diferentes: algo de importante está modificando lenta e inexoravelmente as suas vidas. Décio de Almeida Prado, em prefácio para a edição de A moratória, vê nesta divisão de planos um recurso inédito de enriquecimento dramático temporal, e estabelece a partir daí uma dicotomia que apresenta, de um lado, peças que se constroem com “reminiscência involuntária” (como as de Arthur Miller, exemplifica) e, do outro, a de Jorge Andrade, que “se constrói objetivamente sobre dois planos”. Assim, segundo ainda o citado crítico, os planos que se atraem e se repelem ao gosto e intenções do autor criam um “ritmo dramático”, bem distinto do simples ritmo “expositivo” encontrado nas peças do primeiro grupo (p. 14). Interpretada desse modo, A moratória seria um exemplo de tirania do autor sobre o comportamento das personagens, em uma época em que, até no romance, se tenta apagar a sua presença divina. As associações de ideia que o espectador percebe são comandadas pelo gosto do dramaturgo, porque ele não quis (ou não tentou) apreender e transmitir as legítimas e naturais associações de ideia ou de sensação que porventura viessem a ter as mentes livres das suas personagens. Já se vê que se trata de uma interpretação equívoca, que de modo algum parece-nos dar uma justa apreciação das intenções de Jorge Andrade. Em lugar, pois, de insistir em uma compreensão “temporal” e equívoca da peça, cremos que seria mais justo para com Jorge Andrade analisar a divisão de planos como recurso dramático que verdadeiramente é: espacial; e notar ainda como a divisão do palco, quebra da unidade de lugar (frisemos), está intimamente ligada ao problema da unidade de ação. Ao contrário também do que se poderia pensar, quando se compreende a peça temporalmente, ela não comporta de modo algum duas ações distintas e paralelas, mas uma mesma ação, que foi dividida ao meio, porque as suas duas partes, além de simétricas, traziam em si, em miniatura, a
mesma ideia da ação global. Em outras palavras: a ação total é a soma de duas intrigas semelhantes que se repetem em diferente espaço. Assim, existe uma única ação (a perda da fazenda, de uma maneira sintética) que ocorre em duas circunstâncias diferentes: quando a família ainda vive na fazenda e, posteriormente, quando se viu obrigada a mudar para a cidade. Fora disso, o correr da intriga em ambos os planos é linear. A intriga, na fazenda, avança gradativamente no tempo, até um certo ponto ideal em que o seu final coincidiria com o início da situação em 1932, ou seja, com o final da peça. A intriga, na cidade, percorre outra linha reta, superposta à primeira, até o instante em que seu final coincide com a situação final em 1929 (guardadas, como sempre, as diferenças circunstanciais). Note-se, no entanto, que do ponto de vista da estrutura interna da intriga já não há mais a linha reta e horizontal. Temos, em cada um dos planos, uma ascensão para um anticlímax otimista e uma descida para o desespero. Um e outro anticlímax são: a ida de Joaquim à cidade para acertar contas com Arlindo e a posterior visita ao seu irmão (fazenda); a possibilidade de impetrar um processo de nulidade (cidade). No primeiro caso, o anticlímax nos é narrado e não mostrado (p. 133–135), visto que, em razão da unidade de lugar dentro de cada plano, não poderíamos acompanhar Joaquim até a cidade, ou até a fazenda do irmão. Com isso, a ascensão é rápida, e será conhecida, apreendida pelo espectador sob a forma de narração, já passado que é. A descida é que será lenta. No plano de 1932, tudo é mais lento e solene: o anticlímax otimista é alongado até quanto pode, esticando-se por sobre os dois primeiros atos. Além do citado paralelismo de estrutura, que se situa no nível da intriga, temos ainda, graças à simultaneidade de planos, efeitos de contraste no tom dramático (interior de cada cena), cujo melhor exemplo é a cena final do primeiro ato, quando Helena se entrega ao desespero em 1929, enquanto Joaquim e Lucília, no compartimento ao lado, se abraçam no auge da alegria (p. 82–86). Existe, pois, de um lado, o paralelismo das intrigas; do outro, o paralelismo de estrutura dramática das intrigas, e por fim o efeito de contraste ou de semelhança no tom dramático dentro de cada cena, graças à simultaneidade possível dos dois planos. Confundi-los seria intolerável. Cremos que já é chegado o momento de concluir que a divisão em planos se redunda em um duplo efeito de profundidade, nos sentidos geométrico e
filosófico do termo. Um quadrilátero que se torna um cubo; uma superfície que, projetada no espaço, se torna um sólido. Uma mesma ação que se abre em duas intrigas, uma se distanciando da outra em projeção. As linhas de projeção é o apreender da ação pelo espectador. Este, vendo e analisando, traça as linhas pontilhadas que unem as duas superfícies semelhantes e opostas no espaço. O efeito temporal é apenas aparente e circunstancial. A divisão em planos se encontra justificada pela necessidade de repetir, com fins diferentes, intrigas semelhantes em espaços distintos — profundidade geométrica. Em 1929, o que interessa a Jorge Andrade é mostrar o abandono da fazenda, e em 1932, a perda. Abandono e perda: expliquemos os termos. Abandono é apenas o ato que conta, pois agir não é compreender o que está acontecendo; a mudança não requer nenhum esforço mental de adaptação por parte das pessoas. É apenas o corpo que tem de se adaptar a um novo meio. Tanto é que Joaquim, Helena e Marcelo (no nível de Lucília, como veremos, não há tragédia) não mudam de “caráter”, no sentido aristotélico do termo, durante grande parte da ação em 1932; seus hábitos são os mesmos. Houve apenas uma “inversão da situação”: de fazendeiros passam a citadinos, de ricos a pobres, de orgulhosos a humilhados etc. A inversão, no entanto, só se aprofundará quando, abandonada a fazenda, vivendo na cidade, compreendem o que se passa, sentem o desprezo da comunidade; só se completará no momento em que se dão conta da perda definitiva da fazenda (“reconhecimento”). Perdendo o processo de nulidade, perdem também o contorno nítido do conceito de esperança, que os fazia viver miticamente ainda na fazenda, mesmo depois do abandono (frisemos). Têm, então, a consciência de que abandonar significou perder, perder para sempre, e não há a possibilidade de meia-volta. Nesse sentido, quando não há mais esperança de recuperar a fazenda, é de capital importância o conceito vicário de mentira (cidade), pois somente ela é que pode manter o pai em estado de inocência, ou de “ignorância”. E o jogo da mentira passa a ser um jogo de empurra-empurra, até o momento em que se transforma no jogo dos soldadinhos de chumbo, com os três por terra. Marcelo, quando sabe que perderam o processo, se embebeda e no outro dia vomita pela manhã. Frente a frente com o pai, não tem coragem de lhe destruir a
esperança, e se cala na hora agá. Mente por covardia e por amor (p. 125–126). Helena, conscientemente, diz que todos devem mentir a Joaquim (p. 130). E finalmente Joaquim acaba descobrindo a perda do processo por conta própria na cidade, e passa da ignorância à consciência: regressa ao lar, apanha um trapo na mesa e começa a desfiá-lo (“pathos”).³ É tudo o que pode ter nas mãos, depois de perder as terras, a fazenda e a posição social. De nada adianta a crise súbita, generosa e passageira de Lucília, pedindo a Olímpio que “minta” ao seu pai, para que não perca a esperança (p. 186) — o trapo nas mãos de Joaquim, metáfora visual, pinta melhor o seu estado presente, assim como o pano de limpar chão tinha apreendido tão bem o estado de Marcelo (p. 115 e 131). Na fazenda, esse gênero de metáfora era usado como recurso lírico, sublinhando a incapacidade que tinham as personagens de viverem a realidade ameaçadora. No caso de Joaquim tínhamos o relógio ou ainda o galho de jabuticabeira florido; no caso de Marcelo, o véu que dá de presente à mãe. Existe, como anunciávamos, tragédia apenas no nível destas três personagens, já que no nível de Lucília há, pelo contrário, a passagem de um estado de despreocupação, de ingenuidade natural (ou adolescência) ao estado de madureza, e o percurso ignorância-consciência (trágico no caso dos pais e do irmão) marca um avanço positivo, e definitivo, na arquitetura da sua personalidade humana. Esse processo dramático de isolação da personagem tem o seu correspondente claro na encenação, conforme indica o autor no final da peça, quando deixa no palco apenas os seus pais e o seu irmão, tendo tido o cuidado de antes deixar Lucília sair de cena, nos braços de Olímpio.
A cigarra e a formiga Analisemos o tema da peça. E difícil não será porque as falas finais das personagens, como o coro em uma tragédia grega, sublinhadas pela saída gloriosa de Lucília nos braços de Olímpio, deixam tudo muito claro, sem mencionar a óbvia alusão literária que as informa: Marcelo: Já não se ouve o canto das cigarras! Joaquim: O feijão da seca começa a soltar vagens! Helena: Os que plantaram ... vão começar a colher. (p. 188)
A tragédia da displicência — seus múltiplos e variados aspectos psicológicos e sociológicos — se resume nestas três frases exclamativas que são, ao mesmo tempo, a constatação de cada um dos fracassos pessoais dentro do coletivo que é a família, e a compreensão final e definitiva das artimanhas que os fados preparam para os que, semelhantes à cigarra, se refugiam na fantasia e na irresponsabilidade (Marcelo), no anonimato e na religião (Helena), ou nos valores do passado (Joaquim). A antítese surge quando são comparados a Lucília, com a sua máquina de costura sempre a funcionar, cujo ruído, aliás, é o único fundo sonoro da peça. E nada melhor para descrevê-la do que recorrer a Taine que, tendo percebido que “a fábula, por natureza, esconde sempre um homem num animal”, classificou a formiga como o protótipo da burguesa (menagère) dentro da sociedade: “Seche, maigre, vêtue de noir, de taille mince et serrée, toujours prête avec ses six pattes à courir et à saisir, elle est économe, disciplinée, diligente, infatigable”⁴. Seria possível encontrar quatro palavras que pintassem melhor o retrato de Lucília? — e não nos esqueçamos de que esta personagem foi criada no palco pela atriz Fernanda Montenegro, que lhe deve ter transmitido toda uma energia nervosa que o seu temperamento exige. Mas como nas melhores fábulas de La Fontaine, não se creia que esta antítese apenas descubra uma corriqueira moral que seria toda a mensagem da peça. (Os fabulistas medíocres, sim, não escondiam o interesse imediato e moralizador que os levava a escrever. Alguns títulos. Aphthonius: Fabula Cicadarum et Formicarum, instigans adolescentes ad laborem. Le Noble: De la Cigale et de la Fourmi. L’Economie). No presente caso, acreditamos que se trata de um arquétipo de que Jorge Andrade se serviu às mil maravilhas e que servia admiravelmente às suas intenções. Do mesmo modo que Miguel Torga, sempre com intrigas originais na sua série de contos sobre bichos, ao ter que inventar uma história que falasse da oposição entre o poeta e a burguesia, se utilizou da mesma tradição literária.⁵ “Não compreenderá nada do alcance da peça quem não pressentir, por detrás dos indivíduos e dos episódios particulares que ela narra, a agonia de uma sociedade em vias de transição” (p. 11), alerta Décio de Almeida Prado. Joaquim, de um lado, e Lucília, do outro, se perfilam por detrás de escudos que os protegem no seu enfrentar da vida, ao mesmo tempo que definem e justificam as suas atitudes distintas diante da realidade, ou diante da complexa situação brasileira nos anos 1930. Nos respectivos escudos estão inscritas as ideias e ideais doutrinários que
bipartiram a sociedade aristocrática e rural brasileira, quando esta, depois de ter sobrevivido milagrosamente à abolição da escravatura, depois de se ter negado a participar da redentora Revolução Industrial, sofre o golpe mais forte, por causa não mais de um agente interno (para o que sempre se tinha encontrado um paliativo, um jeito), mas externo, a grande depressão. A queda do café, tal como vista por Jorge Andrade, não é apenas um drama de proporções individuais, ou ainda de interesse puramente econômico, mas principalmente o acontecimento social maior que delimita para sempre o campo da aristocracia brasileira (ou melhor: das “grandes famílias”), ao mesmo tempo que abre nova área destinada à nascente classe média. Delimitar significa cercear, e como tal, o avanço das grandes famílias ia chegando ao seu limite final. A facção que tinha futuro, porque tinha espaço para avançar, é a nova classe média, cujos valores, aliás, são menos rígidos e mais adequados a um país em transformação, em desenvolvimento. Em João Miramar⁷, romance satírico de Oswald de Andrade, idêntica oposição é apresentada através do paralelo entre o narrador-personagem, pertencente à sociedade paulista, e Minão da Silva, um caipira pernóstico e semialfabetizado do interior (p. 89). Este, residente em Aradópolis (reparem o nome da cidade), vai subindo na vida, porque sabe que “beleza, festas e inlusão” (princípios que norteiam a vida desvairada e futurista de Miramar) não valem de nada, pois o que é importante é pensar no futuro. Assim é que de “criado” (p. 142), como se considera em uma carta
escrita antes da quebradeira de Miramar, passará a “amigo” (p. 154), em outra escrita posteriormente, e é nesta que lhe informa que vai juntando os pauzinhos da sua jangada. São os da Silva que é vem! — parodiando Manuel Bandeira. Fechemos a comparação. Os valores éticos de Joaquim são valores abstratos e rígidos (a honra, a honestidade, a estima, o orgulho etc.) na medida em que não são produtos da sua própria capacidade de julgamento no momento em que analisa as suas reações e o seu viver passado, mas são conceitos que lhe foram oferecidos de empréstimo e de graça pela classe social a que ele pertence. O desapontamento maior de Joaquim não é tanto consigo mesmo, mas vem da desilusão ao perceber que os seus valores não tinham mais valor dentro da sua própria sociedade. Em outras
palavras: Joaquim fracassa porque a moeda ética que tenta passar não compra mais poder; tornou-se uma moeda cujo uso já tinha sido prescrito⁸. Por outro lado, dentro do reduzido âmbito familiar, Joaquim fracassa como pai, porque não chega a perceber que não pode mais guardar distância (conceito básico na poesia de Drummond de mesmo tema ) entre si e os seus filhos. Acreditava que estes adquiririam, como ele próprio adquiriu, os princípios para uma vida eticamente sã apenas vivendo dentro da própria classe a que eles, por nascimento, pertenciam. Princípios abstratos. A sociedade burguesa requer um contato mais profundo entre pai e filho, pois é o pai que, pela própria experiência, deve controlar a agressividade e a invenção anárquica do filho, ainda mais que já não existem esses pontos de referência abstratos e ideais que serviam como bússola na antiga sociedade. Lucília sai vitoriosa da peça porque se rebelou contra o seu pai, tanto no campo profissional (lições de costura no centro da cidade) como no campo sentimental (se interessa por Olímpio, filho de um inimigo político e que apenas tinha “um cartucho qualquer de doutor” — p. 61). Tanto no profissional como no sentimental descobre que não pode mais depender da formação severa e altamente seletiva que sua classe social lhe tenta incutir. Do mesmo modo que reconhece, com antecedência e certa clarividência, que não é somente a situação financeira da família que está em jogo, mas alguma coisa mais. Diz a Olímpio: “Você está pensando na situação financeira em que vamos ficar e eu não [...] Não é só a fazenda que estamos ameaçados de perder” (p. 106). Ela tem sucesso porque atraiçoa a sua classe de origem: por três anos vive como uma costureirinha (e qualquer brasileiro sabe o sentido pejorativo que pode ter este termo, quando usado para uma moça casadoura). Lucília compreende bem que no novo Brasil o poder não viria mais do orgulho de casta (pride of class), mas do orgulho que é consequência do status social (pride in status), para usar das expressões cunhadas por Lionel Trilling¹ , quando observou a mudança do poder da aristocracia para a burguesia. A perda da fazenda significa, pois, em uma leitura mais ampla da peça, o golpe de misericórdia que deixa Joaquim (os paulistas) para sempre por fora da classe dirigente na nova
sociedade. Esta vai reconhecer os valores de casta, mas só os aceitará quando resguardados pelos “tokens of power” (Trilling), de que tanto Joaquim e os seus vão carecer no futuro. Assim, Joaquim, antes de dar o seu consentimento para o namoro de Lucília, pede informações sobre Olímpio: “Quero saber de quem é que é filho. Isso é que é importante” (p. 60). Ele próprio escutará da boca do seu filho, Marcelo:
Há dias fui à Casa Confiança comprar um par de sapatos. Pedi para pagar no fim do mês, e o dono me perguntou: “Quem é o senhor?” “Sou filho de ‘seu’ Quim”, respondi. Sabe o que ele me perguntou ainda? “E quem é ‘seu’ Quim?” [...] Vivemos num mundo diferente onde o nome não conta mais [...] O senhor não sai à rua para saber o que os outros pensam de nós (p. 117–121).
Ampulheta Durante o transcorrer da peça a posição de chefe da casa passa das mãos do pai para as da filha, exatamente porque o centro econômico também passou de mãos. A crise só não pega desprevenida Lucília (a formiga), que tinha ido aprender costura na cidade e agora se desdobra para sustentar a família. Com a transferência do poder dentro da família, sua estrutura também irá por água abaixo. Significativas são a cena de abertura e a cena final da peça. Na primeira, encontramos Lucília trabalhando para o sustento da família, enquanto o pai, vindo da cozinha, lhe serve café, depois de o ter coado — como uma criada qualquer. E entre os outros afazeres domésticos do ex-senhor da fazenda está o de rachar lenha. Adoentado, procurou um médico a conselho da filha, mas não chegou a comprar os remédios receitados com vergonha de lhe pedir mais dinheiro. Diabolicamente, Jorge Andrade, através de um diálogo de tonalidades sutis, faz com que a atitude paternal consoladora, parta da filha, enquanto o pai é relegado ao mero plano da obediência e do servilismo. Por todos os meios ele tenta ser útil, deixar de ser um peso morto dentro de casa. Na cena final, todos presentes, o pai, depois de se tornar consciente do seu fracasso, pega um trapo na mesa, senta-se lentamente — posição que guardará
até que a cortina desça. Depois que Lucília sai de cena, é Helena que caminha, também lentamente, até o marido e põe a mão nos seus ombros. Helena, de pé; o marido, sentado. Cena que nos lembra outra idêntica, embora dentro de um contexto diferente, a cena final do filme de Michelangelo Antonioni, L’Avventura. Existe decididamente em A moratória uma transferência do patriarcado ao matriarcado que vai a par com a mudança de estrutura social dentro da realidade brasileira. A mulher, no universo de Jorge Andrade, guarda uma maior responsabilidade de direção nos momentos de crise. (Sem dúvida parece que a História veio corroborar as ideias de Jorge Andrade, haja vista a importância que as passeatas de mulheres estão tomando no Brasil de depois da “revolução” de 1964). Já a calma dentro do lar, a harmonia para dois membros da família que discutem, é sempre proporcionada pela presença reconciliadora da mãe, como se pode notar, por exemplo, quando o pai e o filho se digladiam verbalmente no segundo ato: “Vocês perdem o controle, se exaltam pela menor palavra. Quim! Precisamos ser tolerantes se quisermos vencer esta situação. Se não quisermos ver nossa família dividida e destruída” (p. 124). O equilíbrio econômico vem das ágeis pernas de Lucília. A decidida posição de chefe da casa, exercida pela filha, mais se acentuará, se opormos a sua figura aos dois representantes masculinos. Ou ainda, se fizermos o contraste entre o Joaquim de antes e de depois da crise. Para essa comparação, tenhamos em mente: a irresponsabilidade profissional, por exemplo, de Marcelo, que passa de emprego a emprego, como beija-flor, e mais o seu refúgio constante no jogo ou na bebida. Sem mencionar as suas debilidades de menino mimado, que transparecem nas suas relações com a mãe, quando Jorge Andrade chega a lhe dar, embora superficialmente, um complexo de Édipo. Joaquim que não só serve de criada na nova casa, como ainda, em uma pungente cena do final do primeiro ato, se ajoelha com dificuldade, entra embaixo da mesa e começa a catar os botões e alfinetes, deixados cair por Lucília. Sem mencionar ainda a cena em que Lucília lhe dá dinheiro para comprar jornal. Agora seria interessante analisar como Lucília exerce o poder. De uma maneira esquemática, poderíamos assinalar de início que oscila entre dois polos diametralmente opostos: a irascibilidade agressiva e a bondade. A primeira tem origem no julgamento que faz do que está sucedendo: dá ordens como um juiz lê a sentença. Toma mesmo a atitude do juiz, ou seja, daquele que, pela sua posição invejável, tem direito de criticar o próximo, ao mesmo tempo que lhe indica a
senda da reforma e da salvação. E a segunda nasce da consciência que surge na sua mente ao se dar conta do papel que está exercendo dentro da sua família. Como um juiz benévolo, comuta a pena, retrocede na ordem, no momento mesmo em que o outro membro se abaixa servilmente. Em um contrapeso indispensável ao equilíbrio do mando, demonstra grande bondade — bondade lúcida. Lúcida? porque não advém naturalmente do seu temperamento (pelo contrário), mas da compreensão única de que tudo o que se passa, e entre possíveis atitudes, escolhe a bondade, porque melhor se adapta à situação. Uma sensibilidade epidérmica e variável, de mudanças bruscas e imprevistas, controlada pelo sentimentalismo (ou pieguismo) e a simpatia. Um bom exemplo, embora parcial e longo, estaria na quinta cena do primeiro ato. Pai e filha discutem o namoro calado desta com Olímpio. Lucília tinha recusado o pedido de casamento de Olímpio, principalmente depois que viu o seu pai chegar ferido (cf. segundo ato). O pai que criticou Olímpio severamente, com a crise econômica, muda por completo de opinião. Joaquim: Um bom moço. Você seria feliz. Lucília (subitamente áspera): O senhor não pensava assim há três anos atrás. Lembra-se? Helena (em tom de censura, magoada): Lucília! Joaquim (levanta-se): Não disse! Você ainda não me perdoou! Lucília: Nada tenho a perdoar. A situação é nossa e não de vocês. É a minha família. Helena: Basta. Basta, minha filha. Lucília: Tenho também obrigações e quero cumpri-las. Joaquim: Isso não impede que viva a sua vida. Lucília: A minha vida é esta. São duas coisas que não se misturam. Sou responsável também pela carga. Helena: Está certo. Quim, por favor ...
Joaquim: Carga? Lucília: Minhas obrigações. Joaquim (violento): Então eu e sua mãe somos cargas? Lucília: Não foi isso que quis dizer. Não faça as coisas mais difíceis, papai. Joaquim (abaixa a cabeça): A verdade é que você tem razão. Lucília (vai até o pai e o abraça): Não poderia viver longe de vocês, assim como estamos. (p. 44–46) Acompanhemos as marcações do autor: Lucília vai do “subitamente áspera” até o abraço no pai, e isso em questão de minutos. Mais adiante, na mesma cena, quando Joaquim vai saindo calado do palco, a bondade de Lucília é uma vez mais mostrada: Lucília (olhando o pai sair): Papai. Joaquim (para): Que é? Lucília (abre a gaveta de máquina): Olha o dinheiro. Joaquim: Para quê? Lucília: O dinheiro para os jornais. Joaquim: Hoje não vou comprar jornais. Lucília: Ora, papai. Deixe de ser criança. Ficou aborrecido comigo? (p. 48–49)
Filho de fazendeiro Essa agressividade, frustrada por uma inesperada guinada de bondade consciente, é, aliás, característica dos membros jovens nos seus choques com o pai. Tanto Lucília quanto Marcelo refreiam no último instante a sua hostilidade, a estocada final e impiedosa que vinham preparando por ideias ou palavras. Poderíamos citar, como exemplos respectivos, duas cenas importantes da peça,
levando-se ainda em conta o fato de estarem ambas ligadas ao desvendar da perda definitiva da fazenda. Marcelo versus Joaquim (ii, p. 116–126); Lucília versus Joaquim (iii, p. 185–187). Marcelo, depois de saber na cidade que perderam o recurso, encontra com seu pai pela manhã. A discussão brota entre ambos, e vão repassando os diversos temas que mostram o fracasso pessoal e econômico do pai: a perda da honra de família dentro da comunidade; o problema da educação de Marcelo; a moratória; Joaquim, mau negociante. O pai expulsa, então e desde já, o filho da sua futura fazenda, reconquistada em imaginação, é claro. Intervém a mãe dentro do seu papel já conhecido de reconciliadora. Nova acareação, mas o filho se cala, diante de algo mais forte do que ele; não chega a dizer o que queria ter dito ao pai desde o início da discussão. Sob a recriminação da mãe (“Não tem caridade?” p. 128), Marcelo finalmente deixa claro, mas longe dos ouvidos do pai, o que tinha calado: Helena (temerosa): Sabendo? Sabendo o quê? Marcelo: Ele... ele perdeu. Helena: Perdeu?! Marcelo: O processo de nulidade. Não pude me controlar; não tive coragem de dizer... (p. 129) Na última cena da peça, Lucília, como Marcelo anteriormente, tenta desesperadamente esconder do pai (deixá-lo na “ignorância”) a perda do processo e consequentemente da fazenda. E toda a agressividade que tinha demonstrado durante o transcorrer da ação da peça se metamorfoseia em uma atitude desvairada, ilógica e definitiva de proteção ao pai, de compaixão diante de um sofrimento maior. Diante do próprio pai e dos outros membros da família, pede aos berros a Olímpio para que lhe minta: Lucília: Não! Não quero ver meu pai assim. Não quero. Não quero. Deve haver um jeito. Olímpio! Diga que há. Minta. É preciso que você minta! Olímpio: Mentir como, Lucília? Lucília: Não quero que meu pai fique sem esperança. Não quero. (p. 186–187)
Esta passagem brusca, embora esperada, da acusação à defesa (lembrando-nos por certo da já antológica frase de Otto Lara Rezende, divulgada por Nelson Rodrigues: “O mineiro só é solidário no câncer”) não só pode ser percebida como norma de conduta da nova geração como também sublinha o percorrer das avaliações dramáticas que Jorge Andrade faz da personagem de Joaquim. A impiedade ao retratar Joaquim vai diminuindo progressivamente e passamos do orgulho castigado do primeiro ato (servir café, rachar lenha, catar alfinetes etc.) a virtudes excelsas, e seu contorno psicológico, no segundo e terceiro atos, é o de uma vítima inocente sufocada por um meio hostil e desonesto. Em suma, as suas virtudes vão contrabalançando os defeitos, chegando até a vencê-los no final. Basicamente, pois, a peça falha nas suas ambições maiores, exatamente porque Jorge Andrade, filho de fazendeiro, não teve a coragem de acusar com objetividade a velha geração (como o fez na Pedreira das almas, em que foi ajudado pela distância histórica), incorrendo-se num grave defeito de compaixão. O homem subjugou o artista. Mark Schorer, em artigo bastante divulgado, Technique and discovery, teve idêntico comentário sobre D. H. Lawrence, ao analisar Sons and lovers. Chama a atenção para a discrepância entre “a característica explícita” e “as avaliações tonais” do pai e da mãe, concluindo que:
Lawrence is merely repeating his emotions, and he avoids an austere technical scrutiny of his material because it would compel him to master them. He would not let the artist be stronger than the man¹¹.
O ponto de vista que informa o tom dramático da peça é o de Marcelo, que por isso mesmo chega ao final como a personagem menos bem realizada, bem como a de envergadura psicológica mais esquemática e indecisa. Por pouco, acreditamos, Jorge Andrade não teria caído na mesma armadilha em que caiu Tennessee Williams com The glass menagerie. Nesta — personagem é narrador — e toda a ação da peça é apresentada (e, portando, presenciada pelo espectador) do ponto de vista do filho que, camaleonicamente, vai de narrador a personagem, e vice-versa. (“I am the narrator of the play and also a character of it”¹²) Williams se aproxima da técnica romanesca, pois, sem dificuldade alguma
podemos perceber no esquema estrutural da sua peça o mesmo alicerce que sustenta os romances narrados na primeira pessoa. A peça, portanto, não mostra (shows) objetivamente uma realidade, mas narra (tells) um acontecimento. Por outro lado, afirmando que a peça é memória (p. 5), Williams não pôde evidentemente atingir os mesmos ideais a que se propõe Jorge Andrade, mesmo que este, em constantes entrevistas, esteja sempre frisando o caráter memorialista das suas peças. Por exemplo: “O que me fazia, com oito anos, ficar dentro de casa, contemplando aquele velho desfiando um pedaço de pano, ao lado da máquina de costura?”¹³ Balzac, citado por Jorge Andrade na mesma entrevista, tendo como referência a interpretação marxista de Lukács, nunca deixou que o homem fosse mais forte do que o artista... Felizmente Jorge Andrade não foi tão longe quanto Williams. Mas mesmo assim, dentro desta perspectiva, A moratória vive de certa ambiguidade psicológica (ideológica, na leitura mais ampla que fizemos da peça) — ambiguidade que cerca a sua própria vivência de filho de fazendeiro. Publicado em PMLA, maio de 1968, pp. 332–339.
1 A moratória (Rio: Agir, 1965). Número de página, entre parênteses no texto, se refere a esta edição. Pedreira das almas e O telescópio (Rio: Agir, 1960). A escada e Os ossos do barão (São Paulo: Brasiliense, 1964). Vereda da salvação (São Paulo: Brasiliense, 1965). Para uma boa descrição de outras peças, já escritas, porém inéditas, seria proveitosa a leitura da longa entrevista que Jorge Andrade (1922–1984) concedeu, em 1965, a Rubem Borba Filho, publicada nos Cadernos brasileiros (Rio: novembro-dezembro 1965, p. 43–56).
2 Assinale-se também que esta peça foi incluída em uma antologia didática, publicada nos Estados Unidos: Teatro Brasileiro Contemporâneo (New York: Appleton-Century-Crofts, 1965).
3 Usamos, na nossa análise, as célebres três divisões orgânicas da tragédia, segundo Aristóteles: inversão da situação (“reversal of the situation”), reconhecimento (“recognition”) e pathos (“scene of suffering”). In: Poética, cap. xi.
4 TAINE, Hippolyte-Adolphe. La Fontaine et ses jables. Paris: Hachette, 1911, p. 181–193.
5 TORGA, Miguel. Cega-rega. In: Bichos. Coimbra: edição do autor, 1961, p. 85–89.
6 Não podemos aceitar o julgamento que o próprio J. A. fez de si mesmo: “Sou um dramaturgo de esquerda, mas não infantilmente partidário”. A não ser que fique, como ficou, com o único exemplo da Vereda da salvação e seu impacto no T.B.C., consagrado “centro teatral da burguesia paulista”, e ainda o fato de ter sido representada durante “a euforia pós-revolucionária” (Cadernos Brasileiros, p. 50). Mesmo um líder com a prodigalidade de Lenine assevera: “Ily a compromis et compromis [...] Il faut apprendre à distinguer entre l’homme qui a donné aux bandits de l’argent et des armes pour diminuer le mal causé par ces bandits et faciliter leur capture et leur exécution, et l’homme qui donne aux bandits de l’argent et des armes afin de participer de leur butin” (LENINE, Vladimir Ilitch. La Maladie infantile áu communisme. Paris: Union Générale d’Editions, 1963, p. 40).
7 ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964.
8 Cf. José Honório Rodrigues: “Aqueles atributos de compostura aristocrática, de seriedade, de rígida conduta inspirada na tradição, na rotina, de uma sociedade rural, que encontravam neles próprios a fonte de conselho e decisão, que se dirigiam para objetivos fixos, determinados pela própria estrutura econômica, pelos membros de seus grupos e pelos seus pais, perderam, desde 1930, qualquer possibilidade de êxito e deixaram de representar o apelo que atraía os eleitores. O radical desaparecimento das personalidades paulistas da cena política nacional deve-se a esta transformação” (RODRIGUES, José Honório. Aspirações Nacionais. Rio de Janeiro: Fulgor, 1965, p. 37).
9 Cf., por exemplo, Viagem na família e Como um presente. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964, p. 132 e 182.
10 TRILLING, Lionel. Manners, morals, and the novel. In: The liberal imagination. New York: Doubleday, 1953, p. 203–204.
11 SCHORER, Mark. “Technique as Discovery”. In: Hudson Review. v. 1, n. 1, pp. 67-87. Spring 1948.
12 WILLIAMS, Tennessee. The glass menagerie. New York: New Directions, 1966, p. 5.
13 BORBA FILHO, Rubem. Cadernos brasileiros. Rio de Janeiro: novembrodezembro 1965, p. 49.
A urgência de “escrever contra” Eneida Leal Cunha*
(...) entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali (no entrelugar) se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. Silviano Santiago Reler Uma literatura nos trópicos nestas últimas semanas me expôs à dolorosa conexão entre momentos da história política e cultural separados por exatos 40 anos. Lá, na dureza do regime militar, na insubmissão política e cotidiana de jovens como eu, entre palavras de ordem, prisões e todas as seduções libertárias do tempo, preparou-se a abertura de vias e confrontos que foram potencializados nos anos seguintes. Aqui, hoje, quem dormiu no sleeping bag, sonhou e viveu a cabal mudança do país, dos corpos e das vozes em torno, enfrenta, com estarrecimento, a abrupta interrupção de uma ordem social pela primeira vez aberta e acolhedora. Com sua sagacidade intempestiva ou por seu rico anacronismo, Uma literatura nos trópicos pode sustentar uma interpelação ao nosso tempo, porque contém ferramentas hábeis para avaliar a violência — seja do capitalismo neoliberal, da brutal
hierarquização dos corpos, da intolerância com todo dissonante, ou seja, a violência maior da exclusão, frequentemente mortal, do antagonista tornado um inimigo. Os ensaios publicados em Uma literatura nos trópicos são parte dos embates entre intelectuais, escritores e artistas que na década de 1970, na mais dura vigência do regime militar, prepararam o que o mesmo Silviano Santiago designará, 20 anos mais tarde, como “a transição do século XX para o seu fim”,
datada por ele entre 1979 e 1981. Então debatiam-se no campo artístico as vanguardas reativadas pelo tropicalismo, a exaustão da programática estéticocultural marxista e a combinação — para muitos incompreensível — dos meios de comunicação de massa com a insurreição contracultural jovem. No círculo mais próximo ao crítico e professor de literatura digladiavam-se a vertente sociológica, intérprete autorizada da história política, cultural e literária do país há décadas, e o “pensamento francês” (expressão da época, útil pela imprecisão), que aglomerava tanto o formalismo e os vários estruturalismos quanto a sua desmontagem. Os estridentes debates sobre arte e literatura nas principais universidades brasileiras, em cena aberta e com imediata repercussão nos suplementos culturais, funcionaram como válvula de escape providencial para a compressão, o cerceamento das manifestações públicas e a imposição violenta do consenso, próprios da ditadura. Mas esses debates foram também expressão da perplexidade de todos — criadores e críticos — sobre como operar politicamente a arte e a cultura no exterior da sintaxe marxista. Ter-se formado no exterior dessa sintaxe, fora da grande tradição que constituiu o pensamento social e a atividade crítica da maioria de seus pares e contemporâneos brasileiros, é o lance diferencial de Silviano Santiago que repercute em Uma literatura nos trópicos e produz um forte curto-circuito — imagem assídua nas apreciações do crítico quando quer apontar a interrupção no fluxo consensual e rotinizado das ideias ou dos discursos. Na Nota Prévia da edição de 1978 do livro, um salvo-conduto escrito em terceira pessoa, o autor anuncia que “o intérprete perdeu hoje toda a segurança no julgamento, segurança que era o apanágio de gerações anteriores”. Acrescenta: “Sabe ele que o seu trabalho (...) é o de colocar as ideias no seu devido lugar” (grifo meu). O livro se apresentava em 1978, portanto, evocando o secular debate que obsediava e ainda afeta a intelectualidade dos novos mundos, sobre a vigência e a modelagem de ideias europeias no contexto político e cultural dos trópicos. A Nota Prévia se reforça com o posicionamento dos ensaios O entrelugar do discurso latino americano, na abertura do volume, seguido por Eça, autor de Madame Bovary. As epígrafes do primeiro ensaio delineiam a articulação que será central no seu argumento. Uma delas é retirada do folclore brasileiro e relata a argúcia do frágil jabuti abocanhado pela onça: “Do crânio da onça o jabuti fez seu escudo”; a outra é um fragmento de Michel Foucault que convoca para a urgência das
“tarefas negativas” contra todo saber fundado na semelhança: “É preciso se libertar de todo um jogo de noções que estão ligadas ao postulado de continuidade”. Entre a tradição oral reativada e a instigação desconstrutora da teoria francesa, o ensaio é um protótipo do gesto pós-colonial e se insurge contra o apagamento da violência civilizatória, inerente à expansão da ocidentalidade, no repertório das ciências sociais e humanas e nas histórias literárias e culturais do Brasil. Santiago expõe o incessante retorno dessa violência recalcada nas hierarquias entre civilização e barbárie, Europa e Novo mundo, que se desdobram em outras infindáveis e assimétricas oposições, entre centro e periferia, tradição erudita e cultura popular ou massiva, estética e política. Em termos mais fiéis à sequência da argumentação e ao prognóstico do “entre-lugar”, o alvo é a polarização entre vontade de pureza e vivência da mestiçagem, entre colonização (a imposição do modelo às cópias), e descolonização (a agressividade desviante dos simulacros). Com a veemência própria daqueles tempos de opressão política e agitação cultural, a análise de Silviano Santiago descarta a (esperada) síntese dialética e propõe a reversão das classificações, o valor do híbrido e a fertilidade de paradoxos e contradições: “A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (grifos dele). O segundo ensaio da coletânea, Eça, autor de Madame Bovary, demonstra que a contingência da repetição, do pastiche ou da “tradução cultural”, e o dilema da secundariedade não estão confinados na derivação colonial histórica e explícita. Recorre ao Pierre Menard, autor del Quijote, de Jorge Luis Borges, para reinterpretar, como valor afirmativo, a familiaridade escabrosa do Primo Basílio com o romance de Flaubert. Em análise exemplar para a crítica cultural e para a teorização do literário, Silviano Santiago recolhe, na comparação dos dois romances, prosaicas cenas ilustrativas da “reversão do Platonismo” anunciada por Nietzsche e retomada por Gilles Deleuze: a invisibilidade das cópias fiéis, quando coincidem com o seu modelo versus a visibilidade desafiadora dos simulacros quando exibem a sua diferença. A conclusão é análoga à avaliação do “entre-lugar” latino-americano, ressalta o valor da transgressão, a potência da repetição que se produz “fora do lugar”. Vale, para Santiago, tornar-se Outro pela energia transformadora do ritual antropófago. Em um segundo bloco de Uma literatura nos trópicos lê-se a incursão do crítico literário com atuação universitária nos domínios dos mídia, da indústria cultural,
da mercadoria artística ou “de uma arte de intenso consumo”, em especial nos domínios da “juventude”, como diz. A leitura que Silviano Santiago faz da cultura dos anos 1970 também é movida pela força reversiva ou desconstrutora de noções cruciais sobre a arte, na tradição ocidental. Os ensaios expõem a retração de valores da modernidade estética, como a alta cotação da escritura, do literário, do valor artístico universal. Os ensaios Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro e Bom conselho, em sequência no livro, transitam pelos debates culturais dos anos 1970 para apontar — às vezes com voz empenhada, outras com delicada e solidária ironia — a “dessacralização” da alta cultura. Os três ensaios podem ser lidos sob o signo da insistência de um prefixo, próprio daquela geração do desbunde e da desconstrução que aparelha Santiago na sua atividade crítica. Neles, além da “dessacralização”, proliferam as operações de “descentramento” e de “deslocamento” nas decisões de valor. “Curtição” pode ser hoje um termo vazio, mas é a partir dele e no intercâmbio entre o crítico erudito e a então emergente cultura popular que uns semearam (palavra caríssima para Silviano Santiago) e outros disseminaram o valor do precário, do efêmero, do transitivo; a exploração do corpo como lugar de inscrição e leitura; a contingência do espetáculo, as contaminações entre o público e o privado, o desejo e a necessidade; a desconfiança da atividade intelectual que cataloga, codifica, paralisa, sacraliza − “salva do acaso”, como diz. “Curtição” e “desbunde” são palavras já fora de circulação, mas em Uma literatura nos trópicos funcionaram como portas por onde Silviano Santiago fez entrar no debate intelectual e acadêmico brasileiro a cultura da contemporaneidade, com acuidade crítica e sem preconceitos. Pode-se considerar que o intelectual e professor, titulado na Sorbonne e treinado nas universidades norte-americanas, adentra os espaços do desbunde e da curtição com alegria e a excitação etnográfica dos turistas aprendizes, mas igualmente com voraz reverência de um antropófago, herdeiro também da linhagem oswaldiana. A mediação entre o modernismo dos anos 1920 e a sua atualidade cultural do final do século, aliás, é um bom viés (como preza dizer) para se ler os ensaios deste e dos dois outros livros seus publicados em sequência, o Vale quanto pesa (1982) e Nas malhas da letra (1989). Em um dos poucos ensaios dedicados à crítica literária em Uma literatura nos trópicos, a leitura de Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), de Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago flagra a face menos alegre da década e os impasses e arbítrio dos “anos de chumbo”, expondo os efeitos perversos do
autoritarismo na elaboração ficcional. Com palavras ácidas, por vezes duras, lê nas situações dramatizadas por Sant’Anna o sectarismo moralizante e a atmosfera “repetitiva, pessimista, obsessiva, abusiva, lancinante, violentamente carregada de tons éticos-morais” que, diz ele, “reencontramos de conto em conto”. Esta contundência trespassa as páginas da literatura para alvejar o momento político e existencial em que ele e o contista estão imersos, em 1973, ano de publicação do livro de Sérgio Sant’Anna, do ensaio e ápice do governo do general Emílio Garrastazu Médici, quando a ação da censura onipresente se consolida: peças de teatro, filmes, exposições, músicas ou outras formas de expressão artística são interditadas ou rasuradas; artistas, compositores, escritores, professores, políticos e líderes operários são investigados, presos, torturados, exilados do país ou sumariamente executados. Lamentavelmente, estamos voltando a saber, ou aprendendo, hoje, do que se trata.
* Professora e pesquisadora (PUC-Rio) de questões identitárias nas literaturas de língua portuguesa.
Tempo de abutres e superastros Fred Coelho*¹
I 1972: Silviano Santiago deixa por um ano sua cadeira de Literatura Francesa na State University of New York at Bufallo para dar aulas como professor visitante na PUC-Rio. Após mais de uma década percorrendo diferentes universidades na França, no Canadá e nos Estados Unidos, o crítico, poeta, professor e ensaísta chegava a uma cidade que acumulava o deserto do exílio, o silêncio das prisões e a efervescência da transgressão cultural. O Rio de Janeiro que Silviano observa naquele momento fora insuflado nos anos anteriores por experiências como os Domingos da Criação, iniciativa de Frederico Moraes no MAM, as colunas de Torquato Neto e sua desconcertante Geleia geral, publicadas no Última hora, a sequência impressionante de filmes produzidos pela Belair de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, a chegada dos Novos Baianos na cobertura comunitária da Rua Conde de Irajá em Botafogo, os show de Gal Costa no Teatro Tereza Rachel (gravados no disco Fa-Tal), as páginas Underground de Luiz Carlos Maciel no Pasquim, além de jornais experimentais como Flor do mal, Jornal de amenidades ou Presença. Tais manifestações se espraiavam na parte mais abastada da cidade e agregavam uma juventude que, nos fluxos de uma indústria cultural pop voltada para o consumo dessa geração, ocupava praias e ruas. Não mais com passeatas políticas, mas ainda com o seu corpo. Outros corpos, outras políticas. É esse o cenário que emoldura quatro dos 11 ensaios publicados em Uma literatura nos trópicos, nos quais me deterei nas próximas páginas. Refiro-me a Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro e Bom conselho, publicados em periódicos de 1973, e O assassinato de Mallarmé, publicado em 1975. Escritos em tons, abordagens e recortes similares, os quatro ensaios têm como ponto nodal o interesse (nada comum dentre os críticos de então) pelo lugar da escrita e da palavra no âmbito da cultura jovem urbana do país. Para isso, Silviano investiga seus principais eixos criativos do momento: a poesia e a música
popular. Suas novas práticas alteravam as bases do campo letrado brasileiro, a partir de novos dispositivos discursivos e performáticos que chamavam a atenção do ensaísta. Os quatro textos são gerados a partir de um princípio que marcará para sempre a obra do crítico mineiro: o compromisso com a produção de seu tempo, mesmo que muitas vezes tal missão seja espinhosa. São quatro textos que nascem, portanto, de uma visada contemporânea que pegava bólides no ar — as vezes queimando os dedos, outras alimentando ainda mais o calor que emanava de seus corpos inflamáveis.
II No conjunto do livro que agora completa 40 anos, tais ensaios sobre o contemporâneo marcam o contraponto exato para entendermos a trajetória de Silviano. Ao lado da apreensão daquilo que não só o pensamento, mas também o corpo alcançam, temos desde a análise arguta e radicalmente renovadora de nossa situação pós-colonial, até textos sobre a tradição (Machado de Assis, Eça de Queirós e José Lins do Rego) ou novíssimos como Sérgio Sant’Anna. Em muitos desses ensaios, Silviano maneja de forma pioneira conceitos vinculados ao pós-estruturalismo francês e seus autores (dos quais estudou e ouviu pessoalmente em encontros profissionais, principalmente Michel Foucault e Jacques Derrida). Se não era muito comum críticos universitários se dedicarem a obras dessa geração de 1972, no caso de Silviano podemos entender sua visada sobre o tempo presente a partir de uma dupla estratégia: atualização e mapeamento. Em momentos de transformação das práticas estéticas e políticas, atualizar as chaves interpretativas e mapear o campo tornam-se tarefas fundamentais do intelectual (tarefas que certamente urge nos dias atuais). Provavelmente, sua perspectiva internacionalizada e os anos de distância do cotidiano cultural da cidade e do país tenham contribuído decisivamente para esse ímpeto etnográfico no início da década de 1970. O crítico, movendo-se entre o rigor e o babado, define o espaço, delineia corpos, aponta linhas de força. Seu método consegue detectar — a partir do tom efêmero de jornais alternativos, da constituição fragmentada e pessoal das entrevistas (base de boa parte dos ensaios aqui citados), dos poemas velozes que passam de mão em mão e dos sons das ruas — o que chama de uma nova
sensibilidade. Nesse sentido, a abordagem cartográfica funciona como se o pesquisador tateasse com rigor e curiosidade o espaço que adentra. Ela também se espraia pelos cursos inovadores que Silviano oferece no Brasil durante esse período. Em 1972, ao mesmo tempo em que o professor dava aulas na PUC sobre manifestos das vanguardas (tema latente no ensaio Bom conselho), o crítico observava nas ruas, praias e shows a formação de uma ideia de arte cujo vínculo com as vanguardas modernas brasileiras — seja o modernismo antropofágico e brasileiro de 1922, seja o modernismo geométrico e internacionalista dos concretos de 1955 — era disseminada ou contestada nas pautas do Brasispero de então. Nos quatro ensaios em questão, temos duas perspectivas gerais. Uma, do observador maduro, que olha de fora; outra, do investigador informado, que olha de dentro. A primeira se encontra nas definições conceituais sobre as novas formas da juventude urbana lidar com os códigos da cultura do século XX. A partir das variadas formas de texto literário (poesia e na música popular, principalmente), Silviano costura um perfil desse grupo que, na década de 1970, lidava simultaneamente com a recente tradição da ruptura vinda do nosso modernismo e com a cena da contracultura internacional. Já a segunda perspectiva, de alguém que conhece os assuntos desse grupo de muito perto, é constatada pela presença invasiva e instigante de Hélio Oiticica — cujo nome e obra são citados nos quatro ensaios. Essa presença é fruto da aproximação pessoal e das trocas intelectuais entre o crítico mineiro e o artista visual carioca durante o período em que convivem em Manhattan. Ao se mudar para a Babylon em dezembro de 1970, Oiticica fica próximo do professor de Bufallo. O contato produtivo entre os dois, já comentado em diferentes textos pelo crítico, é fundamental para ambos. No caso de Silviano, sabemos que o artista o apresentou a muitos dos meandros da marginália carioca em histórias, cartas e conversas sobre a cidade.
III Os abutres, Caetano Veloso enquanto superastro e Bom conselho, como dito mais acima, foram publicados em diferentes veículos durante o ano de 1973. Pelas datas e referências que aparecem nos textos, porém, fica evidente que suas
ideias foram gestadas durante o ano anterior. Ao lermos todos em sequência (como são organizados no livro), vemos como os assuntos se atravessam e se iluminam. O tema do “desbunde”, abordado pelo viés literário em Os abutres, retorna no texto sobre o superastro. Se, no primeiro, o crítico sugere um perfil cultural específico — e nem sempre positivado — para a geração batizada de “desbunde” (que, na escrita de Silviano, torna-se “curtição”), é no segundo que ele precisa o termo flutuante que tanto definia quanto condenava quem fosse associado a ele. Definição inédita enquanto conceito operacional até então, a curtição é a palavra encontrada naquele momento para o crítico enfeixar situações criativas e existenciais como “sensibilidade de uma geração, sensação, estado de espírito, conceito operacional, arma hermenêutica, termômetro, barômetro, divisor de águas”. Já o desdunde, na perspectiva do contexto observado, seria “um espetáculo em que se irmanam uma atitude artística da vida e uma atitude existencial da arte, confundindo-se”. O primeiro se refere ao campo do sensível (uma nova regra de apreensão do objeto artístico e de suas práticas estéticas), o segundo, ao campo do performático (um novo uso do corpo artístico). Na leitura de Silviano, o modelo de superastro proclamado através da figura de Caetano Veloso se arraigava em outras frentes nessa geração da curtição e do desbunde. Se alguns dos poetas chamados então de “marginais” não eram astros com a fama e o poder do compositor baiano, eles também se instalaram para além da linha que separava o poeta, ser da criação, do funcionário público, ser da profissão. A geração do superastro é também a geração em que poetas fazem a opção radical de existir, até o limite possível, da matéria poética escrita e falada. Na poética da “curtição”, proposta por Silviano em 1973, poetas e artistas em geral não escapariam da armadilha experimental de serem “a imagem viva de sua mensagem artística”. São esses corpos do happening e do palco permanente que se tornam abutres do lixo cultural do ocidente e assassinam Mallarmé em prol de um paradigma sonoro-televisivo, deslocando a letra e sua força política para um espaço em que o corpo — transgressor, hedonista, consumista e consumível — ocupa o proscênio. É a cultura jovem de então que Silviano mapeia e investiga, citando revistas e jornais ou dividindo papos ouvidos nas ruas (basta ler o primeiro e vertiginoso parágrafo de Os abutres). Para executar sua tarefa, coloca em jogo um aparato teórico renovador na ampliação das interpretações geralmente rasas sobre aquele momento. Ao contrário de constatar inerte e afásico um “vazio
cultural” (termo nostálgico cunhado por Zuenir Ventura em 1971), ele injeta potências e aponta impasses no fluxo criativo que se desenrola ao seu redor. As potências ficam evidentes não só na dedicação em destacar trabalhos de iniciantes (Waly, Gramiro, Chacal, Charles ou José Vicente) à luz das principais linhas de força da produção cultural brasileira até então (como o modernismo de 1922, a poesia concreta paulista ou o corte tropicalista de 1968), como na afirmação de que tais nomes instauravam um novo “período de sensibilidade aguda” no país. Já os impasses podem ser resumidos no que ele chamou de “silêncio teórico” dessa geração. Nesse ponto, Silviano sugere que a ausência de uma reflexão crítica, no âmbito das novas sensibilidades do período, se manifesta no pouco-caso com o papel teórico-especulativo das ideias em prol dos efeitos da arte produzido pelas obras-acontecimentos. Isso se manifesta na ausência de perguntas mais ambiciosas sobre a realidade nacional por parte do artista jovem ou então no “não falar” presente em entrevistas marcantes como as de Caetano Veloso e Gilberto Gil ao voltarem do exílio. Na leitura de Silviano, tal silêncio (de perguntas e respostas) configurava um desvio do enfrentamento teórico sobre os papéis políticos em jogo ou sobre possíveis interpretações de seus trabalhos recentes. Ao mesmo tempo, não enfrentar esses desdobramentos no âmbito da recepção pública podia ser uma estratégia para escapar de leituras rapidamente necrosadas no discurso histórico (da arte, da política) em detrimento da efemeridade inapreensível no evento/palco da obra. É o dilema sintetizado na imagem do intelectual dividido entre a biblioteca e a rua, entre a interpretação e o acontecimento. A estratégia do silêncio teórico nas entrevistas e poemas faz do ego criador um motor de falas pessoais cuja verdade não é mais ideológica e, sim, comunitária. Aqui, em contracanto aos argumentos de Silviano, é possível ouvir ao fundo a frase de Waly Salomão, também em uma entrevista, mas já em 1979: “a História pode talvez não ser um pesadelo, mas a historiografia político-cultural-literária certamente sempre será”. Em 1973, portanto, Silviano já aponta algo que elaboraria de forma mais apurada anos depois: o papel fulcral da entrevista como gênero que desloca o debate sociológico (interpretativo, analítico, político do ponto de vista mais ortodoxo) para o debate antropológico (personalista, conselheiro, cotidiano, relativo). Uma estratégia em que “o entrevistado evita cuidadosamente o objeto que justifica a própria entrevista”. Vemos a situação em que o superastro não permite a sacralização — e politização — de sua produção. Na estética da curtição, o
objeto que se torna oficial perde o caráter marginal — caráter esse que define sua materialidade, sua circulação, seu vocabulário, sua ética e sua recepção. Ser “contra a interpretação”, para usarmos o termo famoso de Susan Sontag, era ser contra o desmonte crítico da performance permanente entre palco (ou poesia) e vida. Ainda seguindo o rastro sugerido por Silviano, a armadilha da curtição contracultural e de suas práticas comportamentais (indefinição estética dos gêneros, alimentação macrobiótica ou esoterismos, por exemplo) era a transformação dos mesmos em um tipo de fala pública carente de pensamento crítico e plena de conselhos superficiais.
IV Dentre qualquer geração, porém, existem exceções. Em meio a curtidores e superastros, há os autores e artistas que reivindicaram rigores críticos a despeito dos atravessamentos entre arte, comportamento e pensamento. São principalmente os poetas, artistas e intelectuais que, de um jeito ou de outro, mantiveram ligações com o paideuma concreto de São Paulo e seus desdobramentos dos anos de 1960 e 1970 (livros como A arte no horizonte do provável ou as Galáxias de Haroldo de Campos, Equivocábulos ou Colidoeuscapo de Augusto de Campos, além de seus estudos sobre Duchamp, ou o trabalho dedicado a Mallarmé, feito pelos dois e por Décio Pignatari). Waly Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica, por exemplo, mantiveram tais laços intelectuais e conseguiram produzir rigor experimental em meio a vidas estetizadas. Eram criadores que rejeitavam a hippielândia carioca e a ideia do desbunde, pois, segundo Waly, a mesma refletia “o olhar reificador do sistema”. Em O assassinato de Mallarmé, Silviano já tem condições de, após três anos de sua estadia carioca, ampliar o escopo crítico de sua primeira aproximação. É quando já consegue perceber as nuances internas daquilo que a visada cartográfica de primeiro momento articulou em chaves positivas, como a efetivação de uma literatura ligada ao contexto internacional da contracultura (mesmo com atraso), e em chaves negativas, como a ausência de reflexão crítica e o ego exacerbado dessa cultura jovem. Em 1975, Torquato já havia se suicidado, Oiticica vivia a fase mais profunda e solitária de sua estadia em Manhattan, revistas como Navilouca e Pólen já haviam sido publicadas e Caetano Veloso abalara sua condição consagrada de superastro com o disco radical Araçá azul.
O que Silviano viu embrionariamente em 1972 — os livros mimeografados que começavam a circular — torna-se, três anos depois, divisor de águas na confirmação daquela sensibilidade criativa cujo resultado já estava posto. Ele aponta, dentre a geração de então, o ocaso das vanguardas modernistas, com exceção da presença renovada de Oswald de Andrade através do Tropicalismo. Essa passagem, um “gesto generoso de ingratidão” dos mais novos com as vanguardas construtivas da década de 1950, valoriza os poemas curtos e os manifestos provocadores de Oswald em detrimento dos planos-pilotos e de seu lastro livresco. A partir dessa constatação, o ensaísta indica que os rigores formais e aparatos teóricos estavam em baixa dentre os poetas que se estabeleciam em um circuito informal de publicação, distribuição e circulação. O que o crítico buscava apontar eram as modulações geracionais do ponto de vista da seleção do acervo poético disponível (1922, 1945, 1955) e as consequências de cada escolha na produção de versos e publicações. Nesse contexto, O preço da passagem, segunda incursão do poeta carioca Chacal no formato mimeógrafo, torna-se objeto de uma leitura ácida sobre a qualidade material e poética daquele momento. O comentário de Silviano, porém, é muito mais voltado para o esvaziamento crítico da figura pública do poeta do que propriamente para a qualidade dos poemas feitos. Neste O assassinato de Mallarmé, o poeta superastro da curtição está em plena produção, fazendo do objeto livro uma quimera frente à informalidade do envelope de papel pardo. Para girar a faca no peito de qualquer filiação das vanguardas concretas, os mimeógrafos de Copacabana promovem a fusão plena de poema e poeta nas falas públicas de eventos da Nuvem Cigana como as “Artimanhas”. O livro vira corpo, a escrita vira fala. No ano seguinte do ensaio de Silviano, Heloísa Buarque de Hollanda publicava sua já clássica antologia (já são mais de 40 anos) 26 poetas hoje e colocava numa mesma cena o contexto dessas poéticas da primeira metade dos anos 1970. Com exceção dos poemas de Waly e Torquato, é possível constatar o quadro sugerido pelo crítico. Como nos outros ensaios citados, ele aponta o excesso de “peripécias inusitadas de uma vida em perigo”, que faz com que o ego — do músico consagrado ou do poeta da fala — oscile entre o silêncio sobre a situação política opressora e a transformação da experiência pessoal em opressão autorreferente. Vale lembrar que, em 1970, Silviano lançava Salto, primeiro livro de poemas cuja matriz concreta dava o tom de suas experimentações com a linguagem. A cena dos novos poetas no Rio, portanto, estavam muito distantes do rigor inventivo que o crítico dialogava. O assassinato de Mallarmé é o
esgotamento da palavra escrita enquanto valor livresco e formalista em prol de uma palavra falada enquanto valor imediato e absoluto. No palco, o poeta que fala seus versos dá o tiro no peito do lançador de dados.
V Anos depois, quando o livro foi publicado, Silviano afirmou que nem todos dessa geração — sejam curtidos, sejam concretos — concordaram com suas ideias. Mesmo quando há uma visada retrospectiva (o livro é de 1978 e muitos dos temas são de 1972), não é fácil ser figura no mapa alheio. Vale lembrar que o final da década de 1970 estava pleno de polaridades políticas e culturais na antessala da redemocratização. Em entrevista para o já citado livro Anos 70 — Entrevistas, o crítico faz uma leitura positiva de seus quatro ensaios aqui citados, ao afirmar que, aos poucos, seus temas foram incorporados no meio acadêmico. Sintetiza a empreitada no desejo de demarcar duas frentes: a “fragmentação definitiva do antigo experimentalismo dos anos 1950” e a ascensão da moderna música popular dentre os estudos de literatura. Silviano teve uma sensibilidade de quem, após passar anos fora do país, reconhece suas transformações mesmo quando nada parecia acontecer. Olhos atentos, ouvidos abertos, ideias atuais e o desejo de, ao contrário dos dilemas dos poetas, abraçar, ao mesmo tempo, a biblioteca e a rua.
1* Professor e pesquisador (PUC-Rio) de literatura, história e artes visuais brasileiras.
Sinal dos tempos: anacronismo e atualidade de Uma literatura nos trópicos André Botelho*
Contemporâneo é só quem recebe no rosto o facho de trevas — e não de luzes − que provém do seu tempo. Recebe o facho de trevas no rosto e, no entanto, enxerga. (Silviano Santiago, A moda como metáfora do contemporâneo, 2017) With the lights out, it’s less dangerous. (Patti Smith, Smells Like Teen Spirit, 2007)
Difícil escapar da sensação de aguda atualidade de Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural, que acaba de completar 40 anos. É uma sensação um tanto estranha também, pois se a tópica da “dependência cultural”, que define o assunto no subtítulo, pode parecer datada, parte já de uma história intelectual dos anos 1960–70, os problemas que ela colocava permanecem, em grande medida, em aberto. A chamada mundialização da cultura não parece estar, de fato, gerando exatamente relações multicêntricas ou mais equitativas. Basta lembrar, por exemplo, que, se porventura lemos mais literatura de ficção africana contemporânea no Brasil, as edições nacionais seguem ainda hoje a rota de consagração via grandes editoras e conglomerados editoriais europeus e norte-americanos (em parte, mesmo para aquela escrita em português); ou ainda o espaço tão exíguo ocupado pela literatura brasileira contemporânea nos suplementos literários de maior circulação e consagração internacional, ainda publicados naqueles antigos centros. Noutras palavras, mesmo que não seja exatamente a mesma, continua a existir uma geopolítica mundial da literatura e da cultura com relações e trocas assimétricas e recriação de hierarquias de vários tipos¹.
Mas a atualidade do livro que Silviano Santiago fez publicar em 1978, quando contava 42 anos de idade, não está apenas nos problemas substantivos com que lida, mas em como forja sua abordagem e análise. É certo que os problemas tratados no livro não dizem respeito somente a processos (históricos, sociais, culturais, estéticos) de longa e de média duração em que se constituem, mas também de exceder as circunstâncias originais de publicação — a propósito, sabemos agora que o livro teve uma versão anterior, intitulada Ruptura e tradição. Ensaio sobre o romance brasileiro do século XIX, organizada ao final dos anos 1960, jamais publicada. Não basta considerar que a mudança social se realiza, na sociedade brasileira, mais pela reiteração e acomodação do que apenas pela ruptura para que se possa constatar a atualidade de uma interpretação. Se assim o fosse, toda obra do passado seria atual. O poder de interpelação de Uma literatura nos trópicos é também de ordem teórica, e pode ser testado na concepção, na feitura de texto e na análise crítica forjadas de um ponto de vista muito próprio, em um cerrado e criativo corpo a corpo com a literatura e com as outras linguagens artísticas e manifestações culturais tratadas no livro. Ciente de que a atualidade de um livro constitui tópica convencional em reedições, apresso-me a dizer que, por meio dela, quero expressar que este livro admirável de Silviano Santiago desafia a literatura e a cultura brasileiras não simplesmente ainda hoje, mas, talvez, hoje, mais ainda do que antes. Implicará isso a consideração de que os ensaios recolhidos no livro são tão inovadores que acabaram se antecipando ao seu tempo e só agora os leitores estarão preparados para eles? Ou estaremos em meio a uma espécie de refluxo que faz da sociedade, da cultura e da crítica cultural e literária de 2018 contemporâneas de um livro de 1978? Ou ainda, suas ideias terão atingido tal êxito na definição da agenda intelectual dos últimos quarenta anos a ponto de já nos parecerem simplesmente “perenes”? Em suma, qual seria a natureza da sua atualidade? O problema não comporta resposta unívoca. Enfrentá-lo requer um gesto não disjuntivo de pensamento, que, ao invés de repor binarismos como “aqui” e “lá” ou “antes” e “depois”, favoreça uma perspectiva mais complexa que permita não apenas nuançar, mas colocar em xeque polaridades assentadas, permitindo surpreender presente e passado em uma nova rearticulação tensionada em processo. E em poucos lugares poderemos apreender tão claramente esse gesto de troca do “ou” pelo “e” como no próprio pensamento de Silviano Santiago, inclusive pelo diálogo tão decisivo que estabelece com as ideias de desconstrução e descentramento de Jacques Derrida². Talvez
nenhuma daquelas possibilidades aventadas possa se mostrar verdadeira isoladamente, mas juntas, combinadas, tensionadas possam fazer algum sentido, pois estão relacionadas, não se excluem mutuamente. Diante disso, tomo o caminho do anacronismo para realizar o meu comentário. Uma literatura nos trópicos tanto se antecipou aos debates do “seu” tempo, porque nenhum tempo comporta as mesmas posições ou apenas posições convergentes, quanto, por isso mesmo, algumas das suas questões de fato não envelheceram, porque, entre outras coisas, as ideias não se deixam disciplinar ordeiramente em um só tempo ou contexto. Quanto à recepção dos ensaios reunidos em Uma literatura nos trópicos, nela também pulsa algo de ambíguo. Se algumas das suas ideias tornaram-se tão influentes, chegando mesmo a se confundir com os termos gerais dos debates sobre literatura e cultura mais amplos, não se pode dizer que tenham sido exatamente domesticadas a ponto de perderem sua originalidade e também algumas arestas que podem ainda fustigar, como antes, os esquemas críticos assentados pela tradição, pela rotina institucional e pelo cansaço da imaginação crítica. Exemplos poderiam ser tomados quase aleatoriamente no livro. Como o da categoria de “superastro” para pensar a modelagem da subjetividade individual do artista contemporâneo em seus vínculos ambíguos com a indústria cultural, como discutido em relação a Caetano Veloso; ou a introdução da categoria nativa de “desbunde” como recurso analítico, para além do registro ontológico de identidade geracional que, então, apenas começava a ser vocalizada. Isso é válido especialmente, porém, para a categoria de “entrelugar”, sem dúvida a mais influente de Uma literatura nos trópicos, hoje célebre e amplamente empregada no vasto campo dos estudos culturais em escala internacional. Formulada no ensaio O entre-lugar da literatura latino-americana, publicado originalmente em inglês, em 1971, o conceito forjado por Silviano Santiago é pioneiro em relação a outros usos posteriores, como em The location of culture, de 1994, de Homi Bhabha. E, até por isso, vale registrar os diálogos desse crítico mineiro feito do mundo com Jacques Derrida (Escritura e diferença) e Michel Foucault (Arqueologia do saber), por exemplo, e sua “reescritura” no contexto intelectual pós-colonial. Sabemos que o chamado discurso pós-colonial não constitui nenhuma unidade, ainda que seja possível entrever em suas diferentes
vertentes um esforço comum de produção de referências epistemológicas críticas às concepções dominantes e eurocêntricas de “modernidade”. Problematizar e mesmo desfazer o imaginário ocidental na qualidade de padrão para se pensar os contextos dos países periféricos são esforços recorrentes que permitem repensar a modernidade não mais a partir do exclusivismo europeu, como “narrativa mestra” (Chakrabarty, 2000, p. 27), mas de suas conexões globais (Bhambra, 2014), que podem (e devem) passar a incluir questões como o “[des]encontro colonial” (Connell, 2007)³. O conceito de “entre-lugar” avança, assim, nos modos de definição e compreensão da relação colonial e, ao fazê-lo, desestabiliza as categorias tempo e espaço, apontando ainda para o valor heurístico e histórico da “diferença” e da alteridade sobre a identidade. Falar em “entre-lugar” implica considerar um lugar concreto e específico, e não um mero lugar de passagem, ou um “não lugar” à la Marc Augé (1992)⁴. O que confere densidade tanto histórica como geográfica a ele é o empreendimento colonial, construído sob o signo da homogeneidade e pelo apagamento sistemático da diferença, afinal, “na álgebra do conquistador a unidade é a única medida que conta”, como diz Silviano. Todavia, se o colonialismo procurava a todo custo apagar as diferenças, sua própria dinâmica fez com que novas relações, imagens e sons aparecessem — pouco identificáveis aos olhos e ouvidos talvez insensíveis do colonizador. Assim, o “entre-lugar” é também um lugar a partir do qual se fala, e não apenas sobre o qual se pode dizer algo. E, neste ponto, do cosmopolitismo, se poderia puxar um fio longo desde o Joaquim Nabuco de Atração do mundo, capítulo de suas memórias Minha formação (1900), passando por Mário de Andrade e outros modernistas e chegando a O cosmopolitismo do pobre, de 2008. Não me parece possível mesmo pensar em questões como “inserção” (em contraposição à “formação”) e “cosmopolitismo do pobre” de que Silviano Santiago tem se ocupado recentemente sem qualificar suas relações como o conceito primeiro de “entrelugar”. Anoto que essa relação ainda está por ser demonstrada. Tem sido justamente dessa perspectiva própria que Silviano Santiago, ao se debruçar sobre a literatura brasileira, e não apenas nela, se lembrarmos de Eça, autor de Madame Bovary, por exemplo, e outras linguagens artísticas também analisadas em Uma literatura nos trópicos, tem questionado a tendência recorrente de pesquisa das “fontes” ou das “influências”, que segundo o crítico reproduziriam o discurso “neocolonialista” e policialesco das origens, e, portanto, da “pureza” e da “unidade”. Ao contrário, o que lhe
interessa são os deslocamentos, os
tensionamentos das visões estáveis e polarizadas de identidade, as múltiplas variações de significado a partir de um mesmo e aparente cristalizado significante. A busca por essas zonas de incerteza e impureza desestabilizam as grandes linhagens teleológicas, apostando em instâncias históricas heterogêneas, que desmontam a possibilidade de um discurso enunciador homogêneo e arbitrariamente hierarquizador. Embora não seja este o momento para desenvolver a questão, vale assinalar que é desta perspectiva original que Uma literatura nos trópicos se inscreve no debate sobre dependência cultural do seu (e nosso) tempo. Assim, o conceito muito próprio de “entre-lugar” de Silviano Santiago se coloca no centro do nosso comentário sobre a atualidade-anacronismo do livro reeditado, pois retrata a ideia muito própria e potente de “movimento” que aproxima e também separa diferenças, exigindo que se responda, corajosamente, à questão sobre qual é, afinal, o espaço crítico que se abre quando a noção de unidade é perturbada. Exagerando um pouco, talvez, o “entre-lugar” é tão somente “movimento” e “relação” (sempre carregada de conflito e poder, mas também potencialmente de solidariedade), como expressam, aliás, os muitos “es” da frase final do ensaio: “Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana” (grifos meus). Deixe-me qualificar melhor minha sugestão de que a sensação de atualidade anacrônica de Uma literatura nos trópicos está associada, acima de tudo, a certos recursos teóricos e procedimentais que forja. Espécie de redução estrutural da realidade social, esses recursos analíticos atuam já, de saída, na seleção muito variada de temas dos ensaios, dos gêneros literários e das práticas culturais abordados e das suas temporalidades próprias. Discursos sobre as populações autóctones no âmbito da empresa colonial, indústria cultural, a obra de Machado de Assis, confrontos teóricos e metateóricos na crítica literária, Sergio Sant’Anna, canções da MPB e muitos outros temas aparentemente disparatados no tempo (e também no espaço) comparecem no livro. Sobretudo pelo modo muito próprio de abordagem de temporalidades tão distintas, as tensões entre
passado e presente (deles e nossos) acabam por se tornar um dos vezos formais que percorrem os diferentes ensaios do livro, dando-lhe perspectiva. Penso que este recurso é mesmo crucial para conferir, talvez, mais ainda do que uma perspectiva relacional entre temporalidades e gêneros distintos; ele permite configurar uma espécie de dinâmica temporal anacrônica que pode surpreender e até assustar o leitor de hoje. Três lembranças importantes se impõem aqui. Primeiro, um dos âmbitos de recepção de Uma literatura nos trópicos, que ele, reflexivamente, acabou também por ajudar a modelar no Brasil, foi justamente o da Literatura Comparada, disciplina voltada justamente para estabelecer relações estéticas e sociais no tempo e no espaço⁵. Segundo, que cerca da metade dos artigos reunidos no livro trata diretamente de jovens escritores e artistas que estavam começando a produzir no início dos anos 1970, sendo a outra parte relativa a períodos anteriores e muito anteriores — o que reforça aquela tensão dinâmica entre temporalidades que identificamos. Por fim, mas não menos importante, mesmo, o fato de o título escolhido por Silviano para a versão original do livro — que estava pronta em 1969 ou 1970 — ter sido Ruptura e tradição (Ensaio sobre o romance brasileiro do século XIX). Como observou Silviano em entrevista recente:
Uso a palavra ruptura no sentido de transgressão ao cânone, e me movimento teoricamente no sentido de retorno à ideia de vanguarda modernista e concreta, à semelhança do que fará Octavio Paz em Os filhos do barro (1974), criando o paradoxo tradição da vanguarda. Evidentemente, em 1970 ainda não assumo uma perspectiva latino-americana da literatura brasileira.
Ruptura e tradição... Parece mesmo difícil encontrar um título melhor para o que vimos discutindo até aqui. Ele reforça a ideia de movimento no tempo e de uma dinâmica que enlaça temporalidades, pondo-as em relações de continuidade, de conflito e de corte em diferentes realizações que constituem objeto da análise do teórico da literatura e da cultura brasileiras. No plano de Ruptura e tradição não se encontravam, naturalmente, O entre-lugar da literatura latino-americana, publicado em periódico acadêmico um ano após assinar o contrato jamais executado pela editora, e os ensaios sobre os seus
contemporâneos, alguns deles artistas mais jovens do que o autor, como Caetano e Sergio Sant’Anna, a maior parte deles escrita em 1973. Vemos, assim, que da versão dedicada ao romance brasileiro do século XIX a Uma literatura nos trópicos novas temporalidades são acrescentadas, aproximando e afastando os tempos das obras analisadas aos tempos da escritura e publicação do livro, acentuando ainda mais a questão por nós apontada. É possível, porém, dar mais um passo, e especificar um pouco melhor os procedimentos formais adotados por Silviano Santiago para lidar com temporalidades tão diferentes, baralhando-nos em fios anacrônicos. Exemplifico com ensaio crucial sobre Machado de Assis recolhido no livro. Nele, vemos como a recusa do gesto positivista simplista de dividir uma obra em “fases” permitiu a Silviano reabrir o código Dom Casmurro em face da crítica assentada até a época e em termos que permaneceram pautando a agenda de debates até hoje. Reescrito em 1968, a partir de diferentes textos anteriores, Retórica da verossimilhança recusa a divisão convencional da obra de Machado em duas fases distintas e alcança a possibilidade de uma leitura do conjunto formado por ela, exemplificado pela análise dos romances Ressurreição (1872) e Dom Casmurro (1889). Silviano mostra que “à medida que seus textos [de Machado] se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas”. Embora tenha permanecido em textos posteriores sobre Machado de Assis, em parte, dando forma inclusive ao romance Machado (2016), o gesto não disjuntivo de Silviano Santiago é um dos vezos da sua obra realizada até o momento, ficcional e ensaística. Retórica da verossimilhança merece de fato atenção para pensarmos a atualidade de Uma literatura nos trópicos . Vou me concentrar nele nesta segunda parte do meu comentário. Parte Silviano da constatação de que os dois partidos que organizavam a crítica machadiana sobre Dom Casmurro — entre, de um lado, a condenação de Capitu, e, de outro, sua absolvição —, além de ingenuamente equivocados, já que ele não pode ser um romance sobre traição, mas apenas sobre o ciúme, compartilham ambos de outro preconceito fatal, que é negligenciar a “grande e grave proposição do livro: a consciência pensante do narrador Dom Casmurro”. A forma
estética escolhida por Machado para seu romance, argumenta, é o “romance
ético”. Mostra, então, como o problema ético da conduta do homem ciumento no universo romanesco machadiano, dominado pelo tema amor/casamento/ciúme na sociedade patriarcal brasileira e cuja personagem feminina mais carregada de dramaticidade, aliás, seria a viúva, se desarticula e se rearticula nos romances destacados. Em ambos opera um apreço pela verossimilhança, em lugar da verdade, cujas raízes culturais profundas — e mais atuais do que nunca, acrescentaremos nós adiante — na sociedade brasileira se encontrariam no bacharelismo e no jesuitismo nela dominantes. Recordemos o leitor. Em Ressurreição, o solteirão ciumento Felix desiste de levar a viúva Lívia ao altar, após receber carta anônima levantando dúvidas vagas sobre o caráter da futura esposa, mas que ele acertadamente intui (suspeita inclusive confirmada logo adiante pelo próprio narrador) ser obra de seu rival Luís Batista. Observa Silviano que o fato de saber ter sido a carta escrita pela “pena da inveja ou do orgulho ferido” não altera a disposição de Felix, porque para ele, ao fim e ao cabo, importava mais “a verossimilhança da situação criada pela carta do que a verdade proporcionada pelo exame detido dos fatos”. O drama é ampliado e aguçado em Dom Casmurro, pois Machado deseja, sugere Silviano, que o novo romance “se torne mais ambíguo, mais sutil, e para isso suprime o narrador onisciente, que explicava os fatos de uma plataforma divina, e dá toda a responsabilidade da narração ao personagem ciumento”. Outras mudanças fundamentais são a profissão do personagem, que passa a ser advogado, “portanto homem mais ligado à arte de escrever, de persuadir e de julgar os outros”, e o fato de ser um ex-seminarista, “homem que, pelo menos em teoria, deve ter as antenas mais preparadas para sentir os problemas morais”. Os recursos intelectuais associados aos treinamentos da formação religiosa cristã e da profissão de advogado mostrar-se-ão decisivos na modelagem da subjetividade da personagem e da narrativa moral do Casmurro, e sua combinação é a chave para a compreensão de problemas éticos e culturais de longa duração na sociedade brasileira — ou, como observou a propósito Roberto Schwarz em seu ensaio sobre Dom Casmurro, de 1990, Silviano teria detectado “o caráter brasileiro dessa combinação” entre seminarista e advogado, entre religião e cultura jurídica⁷. No novo romance, como o leitor está inteirado, Machado de Assis casará seu personagem ciumento e fá-lo-á pai de um filho para deixar, contudo, que acuse a esposa de infidelidade, renegando-a e ao filho, cuja paternidade causa-lhe dúvidas, enviando ambos para a Europa. Como de um romance a outro se opera
aquela mudança de narrador, todas as mencionadas decisões não se justificariam, como no caso de Felix, “pelo pleno conhecimento da verdade, mas por acreditar que os acontecimentos se encaixam e podem ser explicados pelo verossímil”. Ou seja, a importância da “verossimilhança” em lugar da “verdade” se expande dramaticamente de Ressurreição a Dom Casmurro, com consequências decisivas para uma caracterização mais precisa do “romance ético”, bem como para uma espécie de perene crise moral da sociedade brasileira, que parece ainda mais aguda neste momento, do que na década de 1970 quando Uma literatura nos trópicos saiu do prelo pela primeira vez. Réu e advogado de defesa irmanam-se na mesma personagem, Bentinho e Dom Casmurro, respectivamente; este, “como bom advogado que devia ser”, toma para si a defesa de Bentinho.
Chama a atenção Silviano para o traço que considera o mais saliente da retórica do outro Santiago, o advogado-narrador: o “apriorismo”. Afinal, a peça oratória arquitetada para a defesa, em que as vocações forense (do advogado) e moralreligiosa (do ex-seminarista) também se irmanam, “nada mais é do que o desenvolvimento de certo raciocínio que nos conduzirá implacavelmente à conclusão por ele ambicionada”. Obedecendo a um plano pré-determinado, a reconstituição do passado pelo narrador machadiano, egoísta e interesseira, materializada também na reconstrução da casa de Matacavalos, segue um mesmo princípio fundante presente em diferentes proposições lançadas ao longo da narrativa que procuram industriosamente traduzir “a igualdade pela semelhança”. Diz Silviano:
O convencimento não é feito com a esperança de que o leitor evolua seu modo de pensar, ou de encarar os problemas, mas pelo fato de lhe propor como base para seu julgamento aquilo mesmo que já possui: o bom senso.
Lembra o crítico a importância e a familiaridade, para Machado de Assis, de dois autores e textos fundamentais a esse respeito: o Fedro, diálogo de Platão em que Sócrates discute o problema da “retórica que se vale do verossímil como recursos de persuasão”, e Les Provinciales, cartas escritas por Louis de Montalte
a um provincial, nas quais Pascal critica “sem nenhuma clemência a casuística jesuíta, por meio do que se chamava o ‘probabilismo’, ou seja, ‘a doutrina das opiniões prováveis’”. Em suma, para Silviano Santiago, a narrativa de Dom Casmurro ao mesmo tempo que se assenta, formaliza um movimento crucial e mais geral ético-moral da cultura brasileira, “que sempre viveu sobre a proteção dos bacharéis e sob o beneplácito moral dos jesuítas”. Verossimilhança como recurso de persuasão e probabilismo — e a palavra “provável”, o crítico anota, é considerada pelos teólogos um equivalente perfeito do verossímil em retórica — são a base daquilo que conhecemos como “bacharelismo”, acentua Silviano. O bacharelismo brasileiro associado à matriz educacional jesuítica herdada do colonizador português e cultivado nas faculdades de Direito foi objeto de crítica em diferentes momentos. Os modernistas de 1922, por exemplo, abusaram da pilhéria tanto na poesia quanto no ensaio criticando o “lado doutor” da nossa formação cultural, para eles materializado no ornamentalismo parnasiano. Em Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda refere-se à “praga do bacharelismo” que condicionaria o móvel dos conhecimentos como fonte de distinção e destaque dos seus cultores:
De onde, por vezes, certo tipo de erudição sobretudo formal e exterior, onde os apelidos raros, os epítetos supostamente científicos, as citações em língua estranha se destinam a deslumbrar o leitor como se fossem uma coleção de pedras brilhantes e preciosas.
Já Oswald de Andrade no Manifesto da poesia pau-brasil, de 1924, personificando o ornamentalismo em Rui Barbosa — um “cartola da Senegâmbia” —, confere feição ao nosso “lado doutor” como um traço cultural dominante, produto do legado civilizacional ibérico transmitido da metrópole à colônia:
O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
No caso de Oswald, a crítica ao bacharelismo parecia trazer como contrapartida, porém, uma aposta algo difusa no progresso tecnológico, talvez associado ao crescente prestígio dos discursos técnicos identificados à República. As próprias reformas educacionais implementadas pelo novo regime, desde as pioneiras Benjamin Constant na área da escola secundária, no âmbito federal, de 1890, e a Caetano de Campos, de 1892, em São Paulo, na área das escolas primária e normal, até as que a elas se seguiram, estavam voltadas para a tentativa de substituição do modelo curricular humanista, herdado do Império, por outro de natureza tecnocientífica identificado à República. Daí a palavra de ordem do modernista: “engenheiros em vez de jurisconsultos”!⁸ A oposição oswaldiana, e modernista em grande medida, porém, pelo próprio caráter normativo a ela associado, corre o risco de diluir o fundamental abordado no problema da “retórica da verossimilhança”, tal como formulado por Machado de Assis, e desvendado por Silviano Santiago. A própria polarização entre os ideais de cultura e educação humanistas e de vocação profissional, embora fosse exigência comum do processo de racionalização da modernidade industrialista e burguesa, parece ter assumido feições diferenciadas na sociedade brasileira; e é mais provável que, entre nós, tais ideais, incongruentes em tese, tenham se interligado, e não se excluído unilateralmente, como poderia sugerir a perspectiva associada à norma europeia. Brutalizando o argumento: o problema modernista talvez fosse acima de tudo chamar a atenção para defasagem da educação brasileira de matriz jesuíticojurídica em face da era industrialista que então se implantava no país, e sua correspondente exigência de uma mentalidade tida como mais pragmática e racional. Se estivermos lendo adequadamente Silviano Santiago, o que ele está dizendo não é
apenas isso. O problema desvendado em Machado de Assis, além de dirimir qualquer dúvida sobre o “engajamento” do Bruxo do Cosme Velho, “perscrutador impiedoso da alma cultural brasileira”, põe em evidência traços éticos e morais enraizados na nossa sociabilidade e nas nossas práticas e valores em geral, perpassando diferentes ideais de cultura e educação. E, poderíamos ainda acrescentar, contextos e regimes políticos.
Acrescento uma nota machadiana à análise de Silviano. Recorro à Teoria do medalhão (1882), no qual Machado de Assis já deixava claro o prestígio simbólico e os proveitos objetivos desfrutados pelos portadores sociais do bacharelismo. Nesse conto, um pai experiente e zeloso orienta o filho recémchegado à maioridade, Janjão, a cultivar o habitus de “medalhão”, o qual, independente da atividade profissional que viesse a escolher, apresentaria a vantagem incontestável de não deixá-lo ser “afligido de ideias próprias”, garantindo, assim, sua posição entre as correntes ideológicas em disputa pela hegemonia política. Conselho que, segundo estima o sábio pai, repositório das práticas que informam a ação dos detentores do poder autocrático, valeria ao filho a leitura do próprio O príncipe, de Maquiavel. Um paralelo com um contemporâneo de Uma literatura nos trópicos nos ajudará a qualificar melhor o sentido político e a atualidade-anacrônica da “retórica da verossimilhança”. Em A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes, publicado em 1975, livro que Silviano Santiago teve, aliás, a oportunidade de resenhar a convite de seu próprio autor, o sociólogo insiste que não se deve confundir autocracia com ditadura . Ditadura e democracia são formas de exercício do poder; ao passo que autocracia diz respeito às formas de organização do poder político. E esta parece mesmo persistir como um princípio ordenador mais geral do Estado e da sociedade brasileira em seu curso histórico, até em momentos democráticos. A meu ver, a “retórica da verossimilhança” parece encontrar na “autocracia” sua correspondente social e política perfeita. Como forma de orientação ética das condutas, a “retórica da verossimilhança” se faz presente no cotidiano da sociedade, nos comportamentos mais rotineiros, da socialização familiar dos indivíduos à estruturação das relações e instituições sociais, vazando os espectros ideológico e político. Assim, não se trata de pensála simplesmente como um ethos autoritário em oposição a outro democrático, mas propriamente como um ethos autocrático. Sua relação com a democracia, portanto, não é de oposição, mas, precisamente, parafraseando a feliz imagem de Gabriel Cohn sobre a autocracia, “sua sombra sempre presente em segundo plano, para emergir, com maior ou menor virulência, em situações de crise do poder burguês”.¹ Não será justamente a “retórica da verossimilhança” que vem à tona com tanta força e persuasão nos dias que correm no Brasil? Penso que não faltarão elementos no horizonte do próprio leitor para que possa avaliar, em numerosos exemplos cotidianos, como o “verossímil” (e as “convicções” a ele associadas) parece se bastar, no lugar da busca da “verdade” e
das “provas factuais”, princípios em que se deveriam assentar a organização das instituições e dos poderes democráticos. Inclusive, a justiça do Estado que, de instituição que deveria proteger os cidadãos do uso discricionário do poder, corre o risco de se tornar corresponsável por conduzir uma situação autoritária oculta por véu de normalidade constitucional, o que implicaria uma autocracia menos visível, porém bem mais direta, como lembra novamente Gabriel Cohn¹¹. Tudo se mostra ainda mais preocupante, aliás, se lembrarmos de duas questões adicionais. Primeiro, a expansão das fronteiras do Judiciário sobre os demais poderes, o Legislativo e o Executivo, o que cria um perigoso (para a democracia) desequilíbrio nas funções que temos assistido no Brasil. Segundo, que o “verossímil” parece estar satisfazendo também às expectativas da opinião pública, que, desvirtuada, vai se tornando uma espécie de prolongamento paradoxal da própria justiça, capaz de lhe dar alguma aparência democrática¹². Forma de socialização autocrática por excelência, ethos da autocracia, a retórica da verossimilhança, tal como discutida por Silviano Santiago, nos dá uma perspectiva na e a partir da cultura brasileira que se mostra crucial também para entendermos as reviravoltas na espiral da democracia que também liga anacronicamente passado e presente no Brasil contemporâneo. Uma literatura nos trópicos é um livro performativo, em um sentido que lembra a discussão de Derrida¹³, isto é, mais do que transmitir conteúdos, mais do que analisar “textos” e “contextos”, age, provoca uma reação no leitor e na comunidade de críticos e teóricos da cultura. O livro implica um posicionamento político e o estimula no leitor. Aí está a sua contemporaneidade. Lembro Giorgio Agamben e sua discussão sobre a noção de “contemporâneo”, a propósito, objeto de diálogo recente de Silviano Santiago, para fechar meu comentário sobre a “atualidade-anacrônica” entre tempos, antes e agora, passado e presente, de Uma literatura nos trópicos. Para Agamben, o contemporâneo não é aquele que adere plenamente a sua época porque, por manter os olhos fixos nela, não consegue enxergá-la; mas, ao contrário, aquele que não coincide perfeitamente com seu tempo, sendo inatual — deslocado e anacrônico — e por isso mesmo mais capaz do que outros de perceber e apreender o seu tempo. A contemporaneidade seria para ele uma relação ao mesmo tempo de adesão e distanciamento do presente, através de uma “dissociação” e de um “anacronismo”¹⁴. Silviano Santiago:
O contemporâneo é, pois, o sujeito que se descola do presente em que vive para perceber o escuro da atualidade em que vivemos todos [...] Contemporâneo é só quem recebe no rosto o facho de trevas — e não de luzes − que provém do seu tempo. Recebe o facho de trevas no rosto e, no entanto, enxerga¹⁵.
1 Mariana Chaguri e eu trabalhamos a questão da dependência cultural em nossa apresentação no seminário Uma literatura nos trópicos 40 anos: dependência cultural e cosmopolitismo do pobre realizado em setembro (na UFRJ, Unicamp e UFMG) e outubro (na Anpocs) de 2018. O seminário foi organizado por Maurício Holez, Mariana Chaguri, Roberto Said e por mim e contou com a participação de cerca de 30 especialistas veteranos e recém-chegados na obra de Silviano Santiago.
2 A consulta aos verbetes “Projeto de desconstrução” e “Descentramento” no Glossário de Derrida idealizado e supervisionado por Silviano Santiago esclarece o ponto, mostrando bem como essas ideias implicam a recusa do gesto disjuntivo e apostam na ideia de movimento (SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976).
3 Bhambra, Gurminder. Connected sociologies. Londres: Bloomsbury Academic, 2014; Chakrabarty, Dipesh. Provincializing Europe. Princeton: Princeton University Press, 2000; CONELL, Raewyn. Southern theory: social science and the global dynamics of knowledge. Cambridge: Polity Press, 2007. Maurício Hoelz e Andre Bittencourt trabalharam em suas apresentações a questão do contexto intelectual pós-colonial de O entre-lugar do discurso latinoamericano no referido seminário.
4 AUGÉ, Marc. Non-lieux, introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Seuil,1992.
5 Tanto Wander Mello Miranda quanto Floréncia Garamuño lembraram desse ponto em suas apresentações no referido seminário sobre os 40 anos de Uma literatura nos trópicos.
6 Agradeço ao editor Schneider Carpegiani por me chamar a atenção para este ponto.
7 SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 16.
8 Ver BOTELHO, André. Aprendizado do Brasil. A nação em busca de seus portadores sociais. Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
9 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. SANTIAGO, Silviano. “A Revolução Burguesa”. In: Sociologia & Antropologia, 2018, v. 8.
10 BOTELHO, André; BRASIL JR., Antonio; HOELZ, Maurício. “Florestan Fernandes entre dois mundos: entrevista com Elide Rugai Bastos, Gabriel Cohn e Mariza Peirano”. In: Sociologia & Antropologia. 2018, v.8, n.1, p. 38.
11 Ibidem.
12 E um dos maiores perigos desse transbordamento de um Judiciário intrusivo, como sugere a historiadora Heloísa Starling, é justamente que os seus membros “passam a se conceber como espelhos da sociedade e acreditam que suas vozes são como expressões mecanicamente exatas do que a sociedade deseja. Quando isso ocorre, a definição do que é bom para todos e de como somos forçosamente obrigados a aderir a essa definição passam a ser sancionadas por grupos e indivíduos que estão convencidos da superioridade de seus princípios e de seus valores sobre todo o restante da sociedade” (STARLING, Heloísa M. “Onde estão os repúblicos? A crise e a república no Brasil contemporâneo”. In: BOTELHO, André; STARLING, Heloísa M. (Orgs.): República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017, p. 107.
13 DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Evanston: Northwestern University Press, 1988. Agradeço a Alejandra Josiowicz por me ter chamado a atenção para o paralelo.
14 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
15 SANTIAGO, Silviano. “A moda como metáfora do contemporâneo”. In: Sociologia & Antropologia, 2017, v. 7, n.1, p.105–124.
* Sociólogo e pesquisador da UFRJ.
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