Um outro mundo antigo

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COLEÇÃO HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA EM MOVIMENTO Direção: Pedro Paulo A. Funari Conselho editorial: Andrés Zarankin, Airton Pollini, José Geraldo Costa Grillo, Gilson Rambelli, Lúcio Menezes Ferreira, Renata Senna Garraffoni Esta coleção visa à publicação de obras originais, com base em uma visão crítica e atualizada, das principais questões historiográficas e arqueológicas. A coleção publica obras organizadas e livros de autoria individual, de autores nacionais ou estrangeiros, em diferentes estágios de suas carreiras, de modo a integrar o que há de mais inovador com as mais reconhecidas contribuições. Sempre marcados pela excelência acadêmica, volumes introdutórios e obras específicas e aprofundadas constituem o cerne da coleção. Conheça os títulos desta coleção no final do livro.

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Katia Maria Paim Pozzer Ma ria A pare c i d a d e O l i v e i r a S i l v a Vagner Carvalheiro Porto organizadores

UM OUTRO MUNDO ANTIGO Projeto, Produção e Capa Coletivo Gráfico Annablume Imagem da capa ? CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peñuela Cañizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam) Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Aléssio Ferrara 1ª edição: agosto de 2013 © Katia Maria Paim Pozzer, Maria Aparecida de Oliveira Silva e Vagner Carvalheiro Porto ANNABLUME editora . comunicação Rua M.M.D.C., 217 . Butantã 05510-021 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (5511) 3539-0226 – Televendas 3539-0225 www.annablume.com.br

Sumário

   7 Prefácio Ciro Flamarion Cardoso  11 Um Outro Mundo Antigo: Novas Perspectivas Katia Maria Paim Pozzer, Maria Aparecida de Oliveira Silva e Vagner Carvalheiro Porto   17 1. Rotinas e Criações Literárias: Ecos de Deir El Medina Margaret Marchiori Bakos   53 2. Rebelião e Religiosidade no Egito Ptolomaico Júlio Gralha e Raquel dos Santos Funari   69 3. A História Antiga de Israel e os Novos Horizontes de Pesquisa Josué Berlesi e Emanuel Pfoh

  95 4. Artistas e Artesãos na Mesopotâmia – entre mito e história Katia Maria Paim Pozzer 111 5. De Ur a Atenas: difusão de tradições musicais e organológicas Fábio Vergara Cerqueira 139 6. Os Gregos na Palestina: o Complexo Jogo Político da Região Vagner Carvalheiro Porto 171 7. Plutarco e o Egito Maria Aparecida de Oliveira Silva 197 8. Religião e práticas funerárias no Egito Romano Marcia Severina Vasques 229 9. Nomes das Coisas: Índia Antiga e Terminologia Carlos Alberto da Fonseca 261 10. Funerais Pretéritos: Uma Estratigrafia da Morte na Índia Antiga Cibele Elisa Viegas Aldrovandi e Mário Ferreira 301 11. Para uma História da mulher na China Tradicional André Bueno

333 Sobre os autores

Prefácio

O título escolhido para este livro coletivo, Um outro mundo antigo, parece usar o adjetivo “outro” atribuindo-lhe dois sentidos diferentes. O primeiro deles aponta para as escolhas conducentes ao vasto campo temático coberto, em especial para a forte presença dos estudos orientais, pouco usual no Brasil −presença, mesmo, da história da Índia e do Extremo Oriente, ainda menos frequentada, ordinariamente, nas pesquisas sobre a Antiguidade neste país. O segundo sentido do adjetivo “outro” indica que, em muitos dos capítulos que integram o volume, houve o desejo de romper com os ângulos ordinários de enfoque e com o que os franceses chamariam de idées reçues. Em ambos os sentidos, nota-se a vontade de trilhar novos caminhos. Uma das renovações de perspectiva propostas poderia eventualmente, em certos ambientes, vir a ter efeito análogo ao de uma bomba de vários megatons. Refiro-me à proposta, à luz de novos estudos, de uma revisão radical da história do antigo Israel em seu conjunto. Em várias ocasiões chamei a

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atenção para o fato de que, para bem e sobretudo para mal, é raro que a Bíblia seja tratada como o são as outras fontes que os historiadores usam. E, já em 1980, o historiador francês Pierre Vidal-Naquet, lançando mão tanto de dados arqueológicos quanto de fontes escritas, iluminava criticamente um detalhe revelador: as manipulações e os usos políticos a que foi submetido o episódio de Masada. Mesmo correndo menos riscos de provocar reações violentas, o livro contém muitas outras propostas inovadoras. Aproximando-me agora dos setenta anos de idade e da aposentadoria, ainda recordo os tempos relativamente recentes em que, entre nós, muito pouca gente se interessava pela pesquisa em História Antiga, pelo menos como escolha profissional. Ao ponto de se entregar o seu ensino, nas universidades, a pessoas sem formação específica no setor ou mesmo sem real interesse pelo assunto. E não era só isso: um preconceito herdado da historiografia romântica e nacionalista do nosso século XIX, centrada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e voltada para o papel da escrita e do ensino da História na construção da nação, afirmava que era uma perda de tempo ou, talvez, uma atividade antipatriótica um historiador se ocupar, neste país, de algo tão distante da “realidade brasileira” quanto se achava que fosse a História Antiga. Um argumento adicional esgrimido com frequência era que, como o Brasil não conheceu em seu território a Antiguidade, seria artificial e mesmo impossível desenvolver, aqui, estudos a respeito. Como se não fosse nos Estados Unidos −outro país que não conheceu em seus limites geográficos o que se chama habitualmente de civilizações antigas− onde, na atualidade, se concentra o maior número de especialistas nessa área de estudos! Algo semelhante poderia ser dito a respeito do Canadá ou da Austrália, por exemplo. Pessoalmente, nunca senti necessidade

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especial de justificar minha própria escolha de objeto, a não ser citando (fora de contexto, sem dúvida, mas não importa) o comediógrafo romano Terêncio: Homo sum, et humani nihil a me alienum puto (“Homem sou, e nada do que é humano considero estranho a mim”). Em umas poucas décadas, a situação, felizmente, melhorou em forma bem perceptível; à custa de muito esforço, sem dúvida. Hoje, na área dos estudos da Antiguidade, contamos no Brasil com núcleos de pesquisa experientes em várias universidades de diversos estados, com programas de pós-graduação nos quais se defendem teses e dissertações num ritmo regular, com revistas especializadas, com uma razoável produção nacional de escritos originais e consistentes, e com um número de reuniões anuais no setor que já é suficiente para que quem organize uma delas tenha de planejar com cuidado sua data para que não venha a coincidir com algum outro simpósio. Este livro é benvinda prova adicional da vitalidade atual dos estudos brasileiros de História Antiga. Ciro Flamarion Cardoso Departamento de História Universidade Federal Fluminense

Um Outro Mundo Antigo: Novas Perspectivas

A velocidade com que povos outrora ignorados despontam no cenário mundial, em especial os habitantes do nascente, reduz distâncias e nos leva a pensar o mundo antigo além de Grécia e de Roma, legítimos representantes da cultura Ocidental. Nesse sentido, nosso livro tem como proposta apresentar ao leitor uma outra perspectiva da História Antiga, tratando de questões originais, estabelecedoras de um diálogo reflexivo sobre o nosso presente. Este livro procura evidenciar uma Antiguidade Oriental por uma abordagem plural em que redes de relações culturais, econômicas, políticas, sociais e religiosas se entrecruzam entre todos os povos aqui apresentados e discutidos. Esta preocupação que cada vez mais incorpora os programas curriculares das escolas brasileiras desde os níveis fundamental e médio, atingindo o ensino universitário e que angaria, paulatinamente, cada vez mais espaço nos livros didáticos, ganha com este livro a oportunidade de oferecer ao público brasileiro, um trabalho com uma preocupação mundial, de se constituir uma história do passado não pela ótica europei-

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zante, que permeou o ensino brasileiro durante tantas décadas do século XX, mas com um olhar que respeita as diferenças, incentiva o estudo dos povos do Oriente aqui representados e repercute os debates atuais da chamada História Antiga. Sobre a ordenação dos capítulos, nós os organizamos segundo um princípio geográfico e temporal, isto é, partimos do leste para o oeste e do tempo mais antigo para o mais recente. Propositalmente, nossa localização, tanto geográfica como intelectual, é a partir do Brasil. Assim, consideramos que o Egito está a leste, subsequente às regiões do Levante e da Mesopotâmia, seguindo com estudos sobre a Grécia como herdeira cultural da Baixa Mesopotâmia, a intervenção grega na Palestina e o Egito romanizado, para chegarmos ao Extremo Oriente, com os trabalhos sobre a Índia e a China antigos. Esta ordenação, ainda, respeita uma linha cronológica, onde partimos de períodos mais remotos e vamos andando no tempo... Sob essa perspectiva, abrimos nosso livro com o capítulo “Rotinas e Criações Literárias: Ecos de Deir El Medina”, de Margaret M. Bakos, no qual a autora nos mostra como a documentação escrita legada por Deir El Medina, o Mosteiro da Vila, traz ao nosso conhecimento a vida social e política do Alto Egito, notadamente um local em que a tradição faraônica manteve-se mais fiel aos rituais relacionados ao âmbito do Faraó. Tais documentos aparecem em forma de cartas, testamentos, escritos de natureza sentimental e satírica, que retratam as práticas culturais egípcias deste Egito que se mostra plural e multifacetado nas reflexões de nossa autora. O segundo capítulo: “Rebelião e Religiosidade no Egito Ptolomaico” redigido por Júlio Gralha e Raquel dos Santos Funari reacende a discussão em torno da religiosidade egípcia, posta em segundo plano pela historiografia que pensa a história política centrada nas relações poder. A análise dos autores

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circunscreve-se ao período do Egito ptolomaico, quando seu território estava sob o domínio macedônico, mais precisamente no III a.C. Três episódios em que o povo egípcio organiza levantes contra a dominação macedônica, cuja amplitude excede o campo político e atinge o cultural e o religioso, forçando seus governantes à adoção de práticas religiosas milenares. No capítulo seguinte, intitulado “A História Antiga de Israel no Cenário Acadêmico Atual: Novos Horizontes de Pesquisa”, escrito por Josué Berlesi e Emanuel Pfoh, encontramos um debate sobre a tendência historiográfica em reconstituir a história de Israel a partir dos textos bíblicos. Conforme demonstram os autores, o resultado dessa análise, pautada na Bíblia, revela-se no esquecimento da história do Levante e dos povos circundantes a Israel. Nesse sentido, a contribuição de nossos autores, com a inclusão de um estudo sobre chamada região levantina, descreve uma história de Israel mais ampla e problematizada, mais focada nos aspectos políticos e culturais. A vida quotidiana dos mesopotâmicos é o cenário principal para o entendimento dessa sociedade no traçado de Katia Maria Paim Pozzer em “Artistas e Artesãos na Mesopotâmia – Entre Mito e História”, o quarto capítulo deste livro. A autora nos contempla com o mito de Enki e Inanna, um texto datado do final do III milênio a.C., que narra o surgimento da civilização na cidade de Uruk e a mais importante obra de um artesão mesopotâmico relatada no mito de Atrahasîs, cujo texto evidencia, de maneira simbólica, importantes práticas culturais dos antigos mesopotâmicos. Pozzer retira desses textos elementos constitutivos e particulares da visão mesopotâmica de sua história e de seus mitos que esclarecem vários episódios de sua história. Em “De Ur a Atenas: Difusão de Tradições Musicais e Organológicas”, de Fábio Vergara Cerqueira, vemos que a teoria e a prática musical mesopotâmicas alcançaram a antiga Grécia

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por meio de seus instrumentos e instrumentistas, influenciando vários outros aspectos da música grega. Neste quinto capítulo, o autor nos esclarece que, na visão dos gregos antigos, a origem de sua música também estava em regiões limítrofes e que, por outro lado, a arqueologia e a assiriologia comprovam que seu embrião estava às margens do Tigre e do Eufrates. Para tanto, Cerqueira emprega os argumentos baseados na teoria musical e na interpretação de tabletes cuneiformes musicais. Escrito por Vagner Carvalheiro Porto, o sexto capítulo intitula-se “Os Gregos na Palestina: O Complexo Jogo Político da Região”. Em seu texto, o autor nos informa que o contato entre gregos e judeus ocorria em suas interações culturais e no intercâmbio comercial que realizavam. Para demonstrar tais relações, Porto nos remete ao período de Alexandre o Grande, por ter sido o precursor desse movimento de interação cultural entre gregos e judeus, não somente, mas entre todos os povos submetidos ao domínio macedônico. Então o autor nos mostra que nesse diálogo cultural, embora o conquistador quisesse a cultura grega como dominante, houve uma via de mão dupla e não uma simples facilitação. “Plutarco e o Egito”, escrito por Maria Aparecida de Oliveira Silva, vem como o sétimo capítulo deste livro. A autora descreve a visão plutarquiana sobre a situação de troca cultural e intelectual entre gregos e egípcios que tende a destacar a influência e o predomínio da cultura grega no Egito. Silva demonstra que Plutarco trata o contato dos gregos com os egípcios como algo indelével na constituição da identidade egípcia, a tal ponto que atribui origens gregas a diversos nomes de deuses do Egito, como, por exemplo, Osíris associado ao deus Dioniso. Nesse sentido, a autora nos mostra que percepção de Plutarco sobre a influência grega restringe-se às regiões dominadas por Alexandre o Grande, em particular, a cidade de Alexandria.

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No oitavo capítulo, “Uma Sociedade Multicultural: Religião e Práticas Funerárias no Egito Romano”, Márcia Vasquez nos apresenta uma época de intenso contato cultural entre egípcios, gregos, romanos, entre outros, que se caracteriza pelo multiculturalismo e pela versatilidade religiosa. Nesse quadro de pluralidade cultural, a autora reflete sobre o debate a respeito da construção ocidental da noção de Ocidente e Oriente. Vasquez discorre ainda sobre essas diversas fronteiras culturais no Egito Romano e conclui que essas relações adquirem aspectos diferenciados de acordo com a abordagem dos pesquisadores e o contexto histórico da região. No capítulo subsequente, “Nomes das Coisas: Índia Antiga e Terminologia”, de Carlos Alberto da Fonseca, o leitor depara com o questionamento do autor sobre a construção do discurso sobre um objeto do saber e sua formalização como conhecimento. Fonseca realiza um levantamento e uma análise de um grupo de pertinências e impertinências produzidas pelo uso sistemático de uma terminologia corrente sobre a história da Índia antiga que veicula significados consagrados, mas desgastados por um uso apressado e mal consentido. Concepções relativas à morte e práticas funerárias associadas a essas concepções constituem o tema central do décimo capítulo, intitulado “Funerais Pretéritos: Uma Estratigrafia da Morte na Índia Antiga”, redigido por Cibele Elisa Viegas Aldrovandi e Mário Ferreira. Por meio da análise das fontes textuais de dois mil anos antes de Cristo, os autores recuperam informações esclarecedoras sobre os rituais funerários na Índia antiga. Em um primeiro momento, os autores relatam episódios retirados dos chamados Veda, que se revelam indispensáveis para a compreensão desses rituais; em seguida, Aldrovandi e Ferreira estudam as fontes textuais que discorrem sobre os rituais de caráter doméstico (os Gṛhya-sūtra), nas quais ficou registrada a práxis funerária dos antigos indianos.

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Encerrando nosso livro, o capítulo “Para uma História da Mulher na China Tradicional”, de André Bueno, apesar da escassez de fontes, ambienta o leitor ao universo feminino chinês. O autor chama nossa atenção para o fato de discursos e textos recentes representarem o feminino com concepções equivocadas, pois ora a mulher é apresentada como subserviente e inferior, ora como divindade e matriz da humanidade. Diante dessa polarização nos estudos sobre a China antiga, Bueno traz ao leitor uma reflexão sobre a pluralidade da condição da mulher chinesa, que se mostra mais próxima da realidade e sem idealizações de natureza variada. Esperamos ter alcançado nosso objetivo de levar ao leitor interessado no mundo antigo debates atualizados sobre regiões e temas pouco abordados, ou analisados sob outras perspectivas. Katia Maria Paim Pozzer – ULBRA Maria Aparecida de Oliveira Silva – USP Vagner Carvalheiro Porto – USP

1. Rotinas e Criações Literárias: Ecos de Deir El Medina

Margaret Marchiori Bakos Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

1. À guisa de introdução

O presente capítulo propõe-se a analisar textos escritos no contexto africano, entre o II e o I milênio a.C. Nessa época, na Europa, sequer se sabia escrever, e as marcas humanas eram ainda muito toscas. Um dos objetivos da reflexão aqui apresentada é reforçar a historiografia, que aponta a primazia da participação afro-oriental nas criações literárias. Tais conhecimentos foram trazidos por gregos e fenícios para o continente europeu. Esses últimos, inclusive, foram os inventores do alfabeto adotado posteriormente por gregos e latinos, tendo como inspiração os hieroglifos egípcios e a escrita cuneiforme da Mesopotâmia. Aristóteles (384-322 a.C) dizia, como segue, em tradução latina, “Aegyptum plerique Asiae, plures Africae adiungunt” (MANFREDI, 1989: 253-8). Como se pode ver, o sábio já valorizava os egípcios pelas contribuições que, dentre muitas outras, seu povo legou à herança cultural africana. mas, ainda

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que o espaço dos egípcios tenha sido minimizado pelos colonialistas europeus, conforme alerta Homi Bhabha (BHABHA, 2007: 50), não se deve, como ressalta o egiptólogo francês Georges Posener (1906-88), “tentar a qualquer preço tornar a literatura egípcia a fonte em que beberam todos os outros povos da antiguidade.” (POSENER, 1993: 233). Segundo Posener, devem-se buscar os elementos que encontrem paralelo em gêneros explorados mais tarde, em temas tratados em outras partes e em formas literárias empregadas até o presente: os egípcios foram precursores em muitos campos, mas são os interesses particulares de cada leitor que possibilitam determinar o que, na literatura egípcia, representa um real legado, evoca uma imagem familiar e/ou uma lembrança específica. As fontes inspiradoras deste capítulo constituem-se de registros, conservados pelo clima seco do Egito, localizados por pesquisas arqueológicas em solos arenosos. Tais registros encontram-se inscritos em suportes diversos – papiros, ostrakas, monumentos e paredes de tumbas –, havendo sido redigidos, no calor da emoção e/ou impostos pelo dever, pelos operários faraônicos. A literatura egípcia, segundo Adolf Erman (ERMAN, 1995: vii), precursor nas suas transliterações, merece ser conhecida, por ser pioneira no mundo da prosa e da poesia. Os textos aqui analisados, marcados muitas vezes com traços de suavidade ou de forte ironia, foram selecionados por sua temática: ensino, vícios, sexo e poder. O que motivou a seleção desse corpus documental foi a necessidade de conferir visibilidade à força de expressão de uma literatura ainda pouco conhecida no Brasil, nunca antes reunida e assim apresentada. Ele pode ser explorado em sala de aula para o desenvolvimento de uma reflexão mais aprofundada sobre efeitos capilares das microtécnicas de poder ativas na

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política e no cotidiano de Deir el Medina. Dentre esses documentos, os literários, sem dúvida, constituem-se em formas de exercício e aplicação do poder (FOUCALT, 1982: 78).

Apontamentos sobre a história de Deir el Medina O nome “Deir el Medina” que, em árabe, significa “O mosteiro da vila”, preserva, na sua própria tradução para a língua portuguesa, marcas dos três séculos de dominação romana cristã, época em que ali se construiu um templo da nova religião. De fato, a dominação romana no Egito teve início no séc. I d.C., com a vitória de Otávio na Batalha de Actium, finalizando somente após a adoção do cristianismo pelos romanos no séc. IV d.C. O nome pelo qual a vila é mais conhecida, Deir el Medina, revela, por outro lado, a imposição da língua árabe pelos muçulmanos, os governantes do Egito a partir da conquista de al-Ási, em 642 d.C. Curiosamente, não obstante, foi essa vila, situada no Alto Egito, o local onde melhor se preservou a herança faraônica literária e artística. Em Deir el Medina, viveram os trabalhadores encarregados da construção e decoração, nos vales da região tebana, dos templos, tumbas e obeliscos, alguns deles monumentais, dos faraós, de seus familiares e da nobreza egípcia, a partir da XVIII dinastia (1550-1307), responsável pela expulsão dos hicsos, até o início do 3° Período Intermediário. A morte de Ramsés III determinou, com o final da XX dinastia e a criação da XXI dinastia (1070 a.C.), o abandono da região e o retorno da corte para o Baixo Egito. O tom didático que perpassa a documentação encontrada na vila abandonada e soterrada por quase dez séculos - as escavações começaram a acontecer a partir do século XVIII d.C. – conferem à rotina de ensino da época uma atualidade inusitada.

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2. Rotinas e criações literárias

No velho reino, em aproximadamente 3050 a.C., já se empregava, nas mastabas de Saqqara, na região do Delta, a expressão:

-}!que se translitera sS e se traduz como o escriba. Quando a vila de Deir el Medina foi criada, os escribas eram os mais importantes funcionários reais, responsáveis pelas trocas culturais internacionais desde o período de sua criação, 1550, até 1070 a.C., início da decadência da cultura egípcia, fase denominada pela historiografia, como oriente antigo. Deir el Medina, devido à própria proposta de criação da vila, passou a abrigar uma elite de artesãos; dentre eles, os conhecedores da escrita eram os mais importantes, pois a construção das tumbas da nobreza e dos faraós implicava a narração de seus feitos. Para os antigos egípcios, o ato de escrever, cujas origens eram por eles desconhecidas, significava bem mais do que o mero registro de um nome, coisa ou pessoa: representava a sua própria criação. Eles atribuíam o desenvolvimento dessa habilidade aos ensinamentos de um deus, Thot, o que tornava os seus práticos – os escribas – seres especiais, possuidores de conhecimentos de caráter divino. Assim, o escriba, ao dominar a escrita, adquiria um poder extraordinário naquela sociedade, pelo valor que nela se conferia à perpetuação, através do registro, de pessoas e fatos significativos. A idealização desse ofício já aparece registrada em um texto específico da XIX dinastia, conhecido como “A sátira dos ofícios”, cuja autoria é atribuída a Dua-Khety. Ele contém o discurso de um pai ao filho. A narrativa, que ilustra a preocupação do genitor para com o futuro do filho, ressalva que a profissão do escriba é aquela que promete uma vida melhor; daí por que é enaltecida pelo progenitor.

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O gênero mais antigo de textos egípcios é o de sabedoria, do tipo “Instrução de um homem sábio ao seu filho”; esses textos visavam a transmitir a experiência e instruir os descendentes na arte de viver. Dentre eles, o mais antigo é o de Djoser (III Dinastia, por volta de 2650 a.C.), que seria deificado no período tardio; entretanto, nada mais resta dele, a não ser o registro de sua existência. Em “A sátira dos ofícios”, que tem por cenário a viagem de pai e filho rumo à Escola de Escribas, na qual o garoto vai estudar, o progenitor descreve os diferentes ofícios e esclarece o jovem sobre todos os ofícios e especifica para o jovem todos aqueles disponíveis para ele no antigo Egito, arrolando, com muita precisão, os problemas intrínsecos a cada uma dessas várias atividades. Dua Khety discorre sobre quinze ofícios, que vão do de oleiro, bastante cruel, porque obriga a remexer na lama como um porco, ao de pescador, o mais sofrido, porque tem os crocodilos como companheiros de labuta. Em contrapartida, Dua Khety elogia as condições de trabalho e refere as recompensas recebidas por aqueles que sabem ler e escrever, salientando sua principal vantagem: “não há profissão sem chefe, exceto a do escriba. Ele é sempre tratado com dignidade por onde quer que vá”. Sabe-se que a cópia e a memorização de textos, como a “Sátira dos ofícios”, era parte importante do processo de formação do aprendiz de escrevinhador, cujo início se dava aos quatro anos de idade e só finalizava aos dezesseis. O aprendizado da escrita era lento e servia apenas para expressar uma língua literária, arcaica, diferente da linguagem falada. Os métodos de ensino, de um empirismo sofrido, compreendiam dois ciclos de estudo. O primeiro, consistia na memorização, pela repetição, de listas de hieróglifos, numerados e classificados na categoria, juntamente com os seus significados. Depois, os jovens passavam aos exercícios de cópias de textos religiosos: as rezas a

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Thot, as Lições de Sabedoria1, as máximas de ordem moral, as cartas privadas; e, finalmente, eram iniciados nas práticas de composição. O título egípcio atribuído às instruções sugere que esses textos constituíam-se em trabalhos didáticos, compostos por máximas e preceitos (JAMES, 1969: 96). Entre os comportamentos que um escriba devia aprender, salienta-se o hábito da discrição. Dua Khety ensina seu filho a não tomar partido em discussões, a manter distância dos oficiais, a não interromper as pessoas, a não falar de coisas secretas e a afastar-se de desordeiros. Aconselha ainda o garoto a ser moderado nas palavras, a comer e beber pouco, a ouvir mais do que falar e a elogiar os competentes. A rotina dos estudos, que tinha por objetivo a memorização dessas lições pelos aprendizes, era bastante rígida, impedindo o jovem de folgar em dias festivos. Sabe-se disso pelas análises feitas em diversos papiros literários nos quais o aluno anotava, todos os dias, o trabalho que fazia, na maioria exercícios de caligrafia, corrigidos pelo professor: até os signos malfeitos e as faltas de ortografia encontram-se assinalados com tinta vermelha. O texto, que segue, tem por ambição demonstrar que nem mesmo a valorização conferida pela sociedade ou as lições ministradas ao longo do processo de aprendizado, impediam o escriba de passar pelos percalços da prática profissional2. Ao contrário, passado o longo e penoso período de estudos, atingidas as posições mais proeminentes, o escriba chegava então a um estágio da vida em que a vaidade, característica dos que exerciam esse ofício, em geral cultivada desde a mais tenra infância, tendo em vista a tendência à hereditariedade dessa função, vinha à tona. Ela poderia provocar atritos desagradáveis A rainha Hatsepsut erigiu quatro obeliscos no templo de Amun em Karnak; dois deles desapareceram. Do par restante, somente um está na posição original, enquanto o outro caiu. Os obeliscos são de granito rosa trazido de Assuan. 2  Uma versão deste texto foi apresentada na UNICAMP. Ver bibliografia. 1 

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entre os profissionais e tornar a rotina do ofício um exercício penoso, devido aos inúmeros desafios em nível técnico e aos atritos decorrentes dos relacionamentos interpessoais. Tais condições caracterizam a genealogia do “Papiro Anastasi”.

2.1. Papiro Anastasi Este documento, também conhecido como “Carta satírica”, data provavelmente da XIX dinastia, havendo sido encontrado nas proximidades de Menfis, em Saqqara. (WENTE, 1990: 98). Hori, o remetente da carta, é um escudeiro e escriba das cavalariças reais. Na correspondência, instrui, ao mesmo tempo em que humilha, um colega de ofício sobre os seus deveres em uma campanha de guerra de conquista. Segundo Wente, o autor pretendia que o texto se espalhasse pelas escolas, o que, ao que parece, aconteceu, devido às inúmeras cópias dele encontradas. Segundo informa Wente, pelo menos 80 ostracas, contendo partes desse texto didático, foram localizadas em Deir el Medina. O papiro Anastasi registra uma disputa, travada entre dois escribas: Hori, lotado na chefia dos Estábulos Reais, e Amenemope, no posto de Comandante do Exército faraônico. A querela gira em torno da competência profissional de ambos, cujos critérios de medição vão sendo apontados e esclarecidos no decorrer da própria narrativa. O texto, registrado em papiro, também conhecido como “Carta polêmica”, está impregnado de um tom humorístico de feição irônica. Sob a forma de sátira, ele revela uma faceta inusitada da corte de Ramsés II (1290-1224 a.C.), referindo diferentes aspectos das relações sociais entre colegas, passíveis de serem encontradas naquela sociedade. A expressão dessas relações se manifesta de diferentes maneiras: através do emprego de uma linguagem cuidadosa, tendo por objetivo a difamação dos seus iguais; via

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apelação às raízes pessoais, estirpe privilegiada de escribas, para humilhação do colega de origem social mais humilde; por meio da acusação explícita de adoção, pelo profissional oponente, de meios ilícitos para o cumprimento de tarefas pessoais que rotineiramente faziam parte de suas atribuições. Em síntese, a história é a seguinte: Hori, escriba dos estábulos, por circunstâncias não explicadas na missiva, envia uma carta para Amenemope, na qual ordena ao escriba militar o fornecimento de grãos para os soldados que estão a seu serviço. Amenemope, entretanto, não segue as instruções e responde à epístola com uma missiva que Hori considera agressiva, confusa e mal-escrita. A “Carta polêmica” consiste, então, na réplica de Hori. A história antecedente pode ser deduzida pelo relato contido na própria carta, que se estrutura em três momentos distintos: (1) o prólogo, no qual Hori apresenta e sistematiza seus atributos, competências e posto na hierarquia dos escribas faraônicos e se defende dos ataques a essas condições feitas por Amenemope; (2) a longa narrativa, na qual Hori expõe, classifica e discute a inconsistência dos argumentos e da competência de Amenemope para fazer qualquer tipo de acusação; (3) o epílogo formal, no qual Hori sugere a Amenemope que aceite as críticas, reformule sua postura, deixando de lado a arrogância, porque não lhe resta outra alternativa. Claro está que a polêmica entre os dois funcionários pode ser uma trama inventada, com fins didáticos e morais, para cópia e memorização dos estudantes de escriba. Essa alternativa é bem plausível pelo tom severo que perpassa o texto, moralista e didático, características essas presentes em documentos destinados à cópia e memorização. A despeito dessas possibilidades e, em qualquer uma delas, o texto interessa sobremaneira pelo inusitado da perspectiva adotada e pelo teor retórico, que aponta a existência desse ambiente

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escolástico à época. O tom irônico que conduz a narrativa, em alguns momentos, expressa a postura pedante de Hori. Hori ostenta, quando tenta se autopromover, a condição de excelente mestre, indicando-se na terceira pessoa: “tudo que sai de sua boca é mel, suas palavras têm o efeito dos medicamentos que revigoram os corações”. A saudação contida em sua carta é muito longa e revela a erudição do escriba: o conhecimento dos ritos mortuários, dos deuses e dos procedimentos cerimoniais. A presença dessas saudações extensas, nas quais significativos deuses do panteão são convocados a homenagear quem recebe a carta, é traço característico dos textos eruditos dos escribas. Elas são importantes, porque permitem aos escribas a exibição de seus conhecimentos sobre as divindades e a mitologia do antigo Egito. Entretanto, especificamente nessa correspondência, há uma segunda razão para o aparecimento desse trecho: Hori quer mostrar que sabe iniciar corretamente uma missiva e, ao mesmo tempo, evidenciar a rudeza e ignorância de Amenemope sobre as normas dos escribas, comprováveis pela omissão de tais cumprimentos na carta que lhe enviou. Fica claro o caráter didático explícito da missiva quando Hori reclama formalmente que a carta que ele recebeu não possui as saudações iniciais. No prólogo, Hori fala de circunstâncias pessoais vivenciadas no momento em que recebeu a carta de Amenemope. Suas palavras transportam o leitor para o cotidiano do segundo milênio a.C., para um dos palácios de Ramsés II, o que realmente soa como fantástico para o historiador: A tua carta me alcançou numa hora de repouso, teu mensageiro me encontrou sentado junto aos cavalos que estão aos meus cuidados. Exultei e fiquei contente e me preparei para responder.

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Entrei no meu alojamento para examinar a tua carta. Entretanto, achei que ela não era de elogios e era de insultos: as tuas frases confundiam isto com aquilo, todas as tuas palavras estavam desconexas e não estavam interligadas...

A análise do momento de recebimento da missiva, feita por Hori, ilustra, por um lado, como se processava, na prática, a troca rotineira de informações entre os escribas; por outro, assinala as normas que presidiam então as formas de comunicação entre profissionais da mesma categoria. A reação de indignação do escriba palaciano, quando ele toma conhecimento das características da carta recebida é muito humana e familiar a todos, em situações análogas. De imediato, Hori mostra sua revolta frente à falta de consideração e de reconhecimento ao seu trabalho, presentes no texto. A primeira dúvida que levanta é sobre as condições mentais do colega. Sem receio algum, ele denuncia o tom colérico, que impregna o discurso de Amenemope em toda a carta. Hori diz conhecer muito bem a natureza de Amenemope, razão pela qual lança uma pergunta ao interlocutor: “as tuas frases não são doces e não são amargas; tomaste fel misturado com mel; tomaste mosto misturado com vinho?”. Qualificando como descontrolado o discurso de Amenemope, Hori passa a discriminar criteriosamente todos os aspectos da carta que julga passíveis de discussão e crítica pelas improbidades cometidas. Inicialmente, ele acusa Amenemope de não ter escrito sozinho a carta, porque lhe faltaria capacidade para tal feito. A descrição das razões pelas quais Hori levanta essa suspeita tem um peso importante na narrativa, pois provocam a identificação do leitor com esse julgamento. A catarse acontece de forma dramática, quando ele diz que pode até mesmo visualizar o semblante perturbado de Amenemope. Essa acusação fornece uma dupla informação: a primeira é a de que Hori, de fato, conhece

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Amenemope; a segunda é a de que a busca de ajuda entre os ajudantes na confecção de relatórios em troca de presentes é uma prática plausível naqueles tempos. Hori diz ao interlocutor: “Teu semblante é perturbado enquanto te levantas enganando os assistentes (?) e dizendo: ‘venham comigo e me dêem uma mão’”. Mas, além de acusar Amenemope de suborno, Hori afirma que ele é relapso no exercício de suas funções, pois: (1) as listagens que envia estão todas malfeitas, porque foram organizadas por várias pessoas, o que explica sua falta de conexão; (2) as listagens não contêm o selo do Superintendente do Celeiros, o que se constitui em falta grave, uma vez que o selo é obrigatório, após cada distribuição de grãos, para registrar e oficializar a operação. Tais falhas, inadmissíveis, segundo Hori, são da responsabilidade do escriba a serviço do exército. O escriba das estrebarias reais acusa, ainda, Amenemope de enviar uma mensagem de qualidade inferior para sua posição profissional. Se é difícil discutir a pertinência de todas as críticas, essa não é verificável. A mensagem de Amenemope, se é que existe, não está disponível. Não há como se ter conhecimento de sua aparência ou qualidade literária. Tem-se apenas a informação de Hori de que ela possui quatorze colunas, cada uma delas escrita por uma pessoa diferente. tua carta é de qualidade inferior demais para se fazer ouvir [...]. Tu te precavéns fazendo saber antes [...] e dizes: “os [papiros] passam o dia amarrados (?) sobre meus dedos, como livros de fórmulas mágicas (?) no pescoço de um doente...

Hori qualifica os conhecimentos de Amenemope de superficiais, e diz, textualmente:

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Chegaste recheado de grandes segredos, recitas uma máxima de Hergedef, mas tu não sabes se ela é boa ou má: que capítulo vem antes dela [...]?

Hergedef, filho do rei Queops, é considerado, tal como Imhotep, um dos homens mais sábios do antigo Egito. Hori acusa Amenemope de ignorar sua importância e de, por isso, ter a coragem de se dirigir a ele de forma descortês: “Tu me dizes: ‘não és um escriba e não és um soldado; te apresentas a ti mesmo como um superior: tu não estás na lista’”. Hori desafia Amenemope a competir com ele e a repetir tais acusações frente a Onuri, o deus Thinis, para que assim o deus possa decidir a questão e fazer justiça evitando que ele se enfureça posteriormente. Também o acusa de não saber realizar os cálculos necessários para a construção de um lago e de uma rampa. Curiosamente, nesse trecho do texto, um fragmento da longa narrativa e dos dados numéricos, há uma espécie de pausa nas acusações, com o surgimento de algumas frases em outro tom, dessa vez nada belicoso. Ao contrário, Hori parece querer consolar o interlocutor, na suposição de que ele se sentisse enfraquecido com seus desafios: Eu era incapaz (?) como tu, antigamente. Unamo-nos para discutir juntos porque meu coração era esperto. Meus dedos dóceis e inteligentes quando tu te equivocas. Adianta-te, não chores.

Mas esse possível diálogo rumo a uma situação de cumplicidade é logo deixado de lado, e Hori retorna ao tom acusatório inicial da missiva. Diz ele: “Te escrevi com lealdade (?), e eis que tu a procura para ti. Tu colocas meus dedos no cepo do açougueiro(?), como um touro na festa, a cada festa do [...(?)]”.

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Um dos trechos da narrativa mais rico em elementos descritivos é o relato de uma aventura à Síria: a jornada, colorida com maestria pelo escriba, apresenta uma visão da natureza circundante, enriquecida com o detalhamento de imagens fantásticas e paisagens em movimento, devido à presença de animais e práticas exóticas. Esse texto, extraordinariamente belo do ponto de vista estilístico, revela o funcionamento da sociedade erudita de escribas do Novo Reino, altamente qualificados na arte da retórica. Na sequência, Hori refere-se às acusações feitas por Amenemope a ele e novamente propõe outro problema para o escriba dos exércitos, em missão imaginária contra os cananeus (nahainas) e os sciardani (povos do mar), resolver: Foste mandado para uma expedição na Fenícia (?), à frente do exército vitorioso, para derrotar os rebeldes chamados Nahaina. As tropas que estão à tua frente são 1900; Sciardan 520 (?), Qehaq 1600, Mascinasc 100, núbios 880, total: 5.000 entre todos, sem contar seus oficiais. Te trazem um presente a tua frente: pão, gado e vinho. O número de homens é muito grande para ti e as provisões são escassas para eles: pães de [...] (= doces [?]) 300 doçuras 1800, diversos tipos de 120, vinho 30 (medidas).

Dando continuidade à sua narrativa hipotética, Hori sugere a constatação de que os soldados são numerosos e as provisões insuficientes para os recrutas. No entanto, eles já estão no acampamento, registrados. “Os beduínos ficam olhando furtivamente: ‘que escriba sábio!’, eles dizem”. Ao chegar o horário do meio-dia, o acampamento está ardendo. Todos reclamam que é hora de partir. Há, pela frente, uma longa marcha. Mas eles não recebem nenhum pão e constatam que já estão muito longe dos quartéis noturnos egípcios. Começam então a questionar o significado desses maus tratos e a reclamar: “sóis um escriba inteligente venha nos dar comida!”

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Hori diz que uma tal situação poderia provocar, por ordem de Ramsés, a destruição de Amenemope, se o Faraó tomasse conhecimento dessa circunstância. Na sequência, Hori expõe um novo desafio a Amenemope: Um cavalo foi encilhado para ti, veloz como um chacal, de orelhas ruivas, que é como uma tempestade de vento quando sai. Solta as rédeas, toma do arco e vejamos o que saberá fazer a tua mão.

Hori lembra Amenemope de que ele nunca subiu a montanha de Sceu, no Líbano. A descrição densa que faz dessa jornada é impressionante: Nunca caminhaste, com as mãos agarradas [...], a carruagem é fustigada por cipós enquanto teus cavalos ficam enredados. Oh, deixa [que eu te diga para ...] - barata. Te retrais de tua subida, luta com sua correnteza, vê, o gosto do maher! Tua carruagem pousa sobre teus [ombros], o teu [assistente], está exausto. Chegas a fazer uma pausa à noite; todo o teu corpo está batido e em pedaços, os teus [membros] estão quebrados, cães (?) de sono.

Hori continua: ao acordar, na hora de partir, a noite é pavorosa. Estás só ao amarrar o cavalo; o irmão não vem para o irmão; um predador entrou no acampamento, o cavalo foi solto; o [...] voltou atrás na noite e roubaram todas as tuas roupas. O teu valete acordou durante a noite e viu aquilo que o predador fez, pegou o que sobrava e juntou-se aos malfeitores, uniu-se às tribos dos beduínos e se fez à maneira de um asiático. Os inimigos vem predar furtivamente e te encontram inerme. Te acordas e não encontras seus traços, muito embora eles levaram tuas coisas: te tornaste

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um maher equipado! Enche teus ouvidos: falar-te-ei de outra cidade misteriosa que tem por nome Biblos.Como é ? E (como é) a sua deusa? Tu lá não caminhaste.

Lançando um desafio para testar o conhecimento de geografia de Amenemope, Hori passa a questionar os muitos e importantes trajetos que um escriba do exército deveria conhecer e os perigos que deveria saber enfrentar para poder guiar, com segurança, os soldados de Ramsés em suas expedições militares: Instruas, ti rogo, acerca de [...] outra cidade no mar que leva o nome de Tiro, o porto: a água é levada com barcos, é mais rica em peixes que em areia. [...] Como o maher pega a estrada para Hazor? Como é o seu curso? Me ponhas na região para ir para Hamat – ao sul do mar da Galiléia Vem que eu te conte sobre outras cidades que estão acima delas! [...] Me instruas, por favor, no que tange à Kina, perto de Megido, me faz conhecer Rehob, me explica Bet-shael e Terekel. Como se atravessa o rio Jordão?

Expressando um conhecimento extraordinário sobre a geografia do local, Hori pergunta pontualmente sobre a zona de Meggido. Ele determina como um maher3 deve marchar na frente do exército e propõe uma situação de perigo, minuciosamente descrita: O desfiladeiro está infestado de beduínos escondidos sob os arbustos. Há os que medem 4 ou 5 côvados da cabeça aos pés com caras ferozes com coração não doce e que As informações sobre a expressão maher foram gentilmente enviadas por Ciro Flamarion Cardoso. 3 

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não escutam gentilezas. Tu estás sozinho, não tens auxílio contigo, não há um exército atrás de ti, não encontras um guia que te permita passar a zona. Decides marchar para a frente, muito embora não conheças a estrada. Os calefrios te tomam, os cabelos da cabeça se eriçam, tua coragem está em tua mão. Tua estrada está cheia de rochas e pedras, não tem um traçado transitável, pois está cheio de galhos de arbustos com espinhos [...] Se for lançado para o abismo o teu colar - do cavalo - se solta e cai a tua cinta que segura o cavalo....

Aos poucos, o tom da narrativa vai-se tornando cada vez mais dramático: Pedes esmola a quem encontras: “oh, me dêem alimento e água, pois cheguei salvo.” Eles fazem ouvidos moucos, não escutam, não prestam atenção aos teus relatos, entras no arsenal. A oficina te circunda, ferreiros estão em teu caminho, fazem tudo o que tu queres e se ocupam de tua carruagem e esta deixa de ser inutilizável. Se apruma de novo o teu timão. [...] Põem um cabo no teu chicote e amarram as cintas...

O caráter didático contido nesse trecho do discurso é bastante provocativo: Bom senhor, escriba escolhido, maher, que sabe o seu ofício, à frente das tropas, primeiro, da armada, descrever-te-ei os países da extremidade da terra de Canaã. Mas tu não me respondes nem bem. nem mal e não me dás em troca nenhuma informação.

Hori lembra a Amenemope a linhagem de escribas da qual descende e recebe instruções, desconhecidas pelos escribas de origem mais humilde:

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Ora, estas furioso por aquilo que te disse porque te pus a prova em todas as funções, meu pai me ensinou e ele sabia como instruir milhões de vezes; eu sei como segurar as rédeas mais que tu que não é capaz. Não há nenhum bravo que possa se comparar comigo e eu estou iniciado nos segredos de Montu (Deus falcão de Tebas, divindade guerreira, patrono dos soberanos a partir da XI dinastia). É muito justo aquilo que sai da tua língua, mas as tuas frases são muito fracas. Vens a mim envolvido em confusões. Cheio de erros. Escancaras tuas palavras como elas se apresentam, não te dás o trabalho de burilá-las. Perdura naquela direção, apressa-te e não cairás. Como ignoras o fato de ter chegado? De que maneira acabará?

Finalmente, Hori conclui sua missiva: Me retiro, eis, sou justo. Curva-te, deixa pesar o teu coração e que ele seja calmo. Não te irrites, mas chega até elas (as coisas que eu te disse). Abrevio o final de tua carta, respondendo aquilo que disseste. Os teus discursos estão reunidos em minha língua, estão parados sobre o meu lábio: são confusos de se ouvir, não há intérprete que os explique. São como as palavras de um homem do Delta com um de Elefantina. Entretanto, se és um escriba de grandes portas, palácios, que se refere aos negócios das terras bem e de forma bela para quem olha. Não digas: “Fizeste feder meu nome junto a outras pessoas!”. Vê, te falei na natureza do maher, atravessei por ti o Retenu (Palestina e Siria), por ti guiei os países estrangeiro para um só lugar e as cidades de acordo com sua posição. Prestemos atenção; olha-as com calma para que tu possas referi-las e que possas te tornar [guerreiro que viajou para o exterior (?)]

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Ao finalizar a leitura dessa narrativa, algumas constatações se impõem. Em primeiro lugar, é mister louvar a atualidade do texto, que comove pela forma sistemática e minuciosa como descreve os elementos físicos e humanos do cotidiano dos trabalhadores intelectuais. Possibilitando interpretações diversas, o texto reacende uma polêmica milenar sobre as situações vividas no contexto restrito de trabalho dos escribas eruditos. Igualmente relevante é a percepção do tom irônico que perpassa a narrativa, marcada pela utilização de estratégias, como a de redutio ad absurdum aspectos da relação humana e a de emprego de metáforas fundadas em elementos muito próximos da cosmovisão contemporânea. Fica evidente, ainda, no texto, a preocupação do narrador em examinar os aspectos psicológicos referentes a pessoas e circunstâncias. Veja-se, por exemplo, a atenção do narrador para os efeitos que críticas apressadas e/ou descabidas e agressivas podem provocar na autoestima e na performance profissional de alguém. Em alguns momentos, Hori preocupa-se em revelar seus próprios sentimentos a esse respeito. Ele pontua principalmente a mágoa provocada pela missiva de Amenemope, que se utiliza de palavras de acusação contra ele. Hori busca, na análise de seu próprio sofrimento, a força e os argumentos para a articulação de sua defesa. Em outros momentos, o escriba reflete sobre suas origens familiares, sobre a firme orientação que recebeu do pai escriba para fazer a sua formação profissional. Ele atribui a essa relação familiar o seu profissionalismo, o excelente caráter e a competência frente ao oponente. Nesses momentos, o escriba das estrebarias reais parece se compadecer do oponente, mostrando-se comovido com a fraqueza demonstrada pelo escriba dos exércitos, quando lhe expõe os desafios da construção civil e das difíceis jornadas em terras inimigas. Nesses trechos, Hori entremeia o discurso

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crítico contra Amenemope com palavras de consolo e de encorajamento. Em nenhum momento, porém, essas passagens generosas atenuam o tom áspero da missiva e o objetivo central da narrativa: mostrar a superioridade pessoal e profissional do escriba das estrebarias sobre o escriba dos exércitos reais.

3. Escribas e sexo: criação de poder feminino

A presente secção compreende a análise de dois documentos, referentes ao poder exercido por duas mulheres. O primeiro, de caráter histórico, contém o discurso de uma faraona; o segundo refere-se ao testamento de uma mulher do povo, podendo ser um texto criado apenas para cópia e formação de vocabulário dos escribas.

3.1. Texto no obelisco de Makaré Hatsepsut no Templo de Karnak – XVIII Dinastia (1479-1458 a.C) O texto inscrito no obelisco de Hatsepsut, no Templo de Karnak, é extraordinário do ponto de vista da história política na antiguidade, porque apresenta um processo de construção teórica, que, em tom didático, fala do poder de uma mulher do antigo Egito. O episódio narrado é uma invenção, nascida na corte, e registrada pelos escribas de Deir el Medina. Para melhor entendê-lo, lembra-se que, com a expulsão dos hicsos do Egito, os príncipes de Tebas passaram a reinar com supremacia e a fazer os seus enterramentos nessa região do alto Egito, elevando o deus Amon à condição de uma divindade nacional. O início desse processo deu-se com o Faraó Ahmose (1570-1546 a.C.), príncipe tebano vencedor dos hicsos, que

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reinou cerca de 25 anos, iniciando a XVIII dinastia. Por falta de um herdeiro homem, como o Egito era uma sociedade matrilinear, ele veio a ser sucedido pelo neto, um jovem militar, filho de sua filha, nascida de sua união com a rainha Ahmose Nefertari. O casal de avôs eram, ambos, considerados os patronos de Deir el Medina e, como tal, adorados. O neto e sucessor chamava-se Tuthmosis I. A história é relevante para este trabalho porque o filho de Tutmosis I também deixou uma sucessão complicada: seus filhos mais velhos morreram antes dele, e restou apenas um, menor de idade, filho de uma esposa secundária, de origem plebéia, que também foi chamado de Tutmosis. Com a finalidade de legitimar sua posição, a criança, entronada como Tutmosis II, casou com sua meia-irmã Hatsepstut, de origem mais nobre que ele, pois era a filha mais velha de Tutmosis I com a Rainha Ahmose Nefertari. Tutmosis II, por sua vez, teve um filho com Isis, uma mulher do harém, e desejou indicá-lo antes de morrer como seu herdeiro, com o mesmo de nome nascimento dele e do avô. Entretanto, o herdeiro era apenas uma criança quando subiu ao trono e foi sua madastra e, ao mesmo tempo, tia, Hatsepsut4, a pessoa indicada para ser sua corregente. Importa ainda informar que Hatsepsut, que se recusou a casar novamente, mas teve filhos com o seu arquiteto, Senenmut5, que, provavelmente por sua importante posição e funções, levou os escribas ao registro de uma história fantasiosa: o próprio deus Amon teria engravidado Ahmosis Nefertari e, por tal razão, Hatsepsut, sendo de origem direta divina, teria direito ao governo do Egito, em lugar do jovem Tutimosis. Neferura, filha, Robins, 45. Hatsepsut recusou casar, mas teve filha com um Senenmut, um gênio da arquitetura egípcia que lhe ergueu um fabuloso templo – Deir el Bahari – e quatro beliscos em Karnak. 4 

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Essa astúcia permitiu a Hatsepsut usurpar do enteado e sobrinho o mando do Egito por vinte longos anos. Com a morte da rainha, não obstante, Tutimosis foi entronado, como Tutimosis III. Ele mandou apagar, de todos os monumentos construídos por Hatsepsut, o nome dela. Os avanços da egiptologia, na modernidade, desvelaram, entretanto, essa história através dos indícios deixados nas pedras que sobreviveram e guardaram a memória da mulher que ousou usurpar um trono real. Em algum momento, enquanto tutelava o futuro Tutimosis III, Hatsepsut abandonou os títulos e insígnias de esposa real de Tutmès II, assumindo a titulação de um faraó. Ela se fez representar nos monumentos, como homem. Para suporte de sua legitimidade como governante, ela mandou construir textos que contavam ter sido ela a escolhida pelo pai para ser sua sucessora e, mais ainda, assim apresentada por ele à corte e a todos os deuses do Egito. Ela também fazia que fosse narrado o mito de seu nascimento divino, representado não só em seu templo mortuário em Tebas, como também em seus obeliscos. Neles, a imagem do deus Amon-Ra é mostrado com a rainha mãe, a rainha Ahmose, seguida pelo seu nascimento. Será que algum escriba leitor dormiu alguma noite preocupado por ter comandado tais inscrições no obelisco? O fato é que uma coluna de inscrições em hieróglifos foi esculpida nos quatro lados de um obelisco de 30m. de altura6. O texto, segundo Lichteim, enfatiza quatros pontos: a devoção de Hatsepsut por seu pai divino Amun e pelo terreno Tutmosis I; o valor em ouro investido no monumento; e, finalmente, o seu direito ao trono do Egito por indicação do deus Amon. Referências no masculino e no feminino aparecem para designar Minha majestade começou o trabalho no ano 15, segundo mês do inverno, dia 1°, terminando no ano 16, quarto mês do verão, último dia, totalizando sete meses de trabalho na pedreira.Os ignorantes e os sábios sabiam disso. 6 

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a pessoa da rainha: ela é, ao mesmo tempo, o filho e a filha de Amon. Pela sua importância, transcreve-se, a seguir, o discurso da rainha neste monumento que, pela originalidade em língua portuguesa, segue na íntegra: Eu fiz essa doação com um coração cheio de amor por meu pai Amun; Iniciada em seus ocultos começos, Informada com seu benéfico poder, Eu não esqueci qualquer coisa que ele ordenou. Minha majestade conhece sua divindade, Eu ajo segundo o seu comando; É ele quem me guia, Eu não planejo nenhum trabalho sem sua execução. É ele quem dá todas as direções, Eu não dormi por causa do seu templo, Eu não extraviei do que ele comandou, Meu coração era Sia (a personificação do conhecimento) diante dele. Eu entrei nos planos de seu coração. Eu não dei as costas para a cidade do Senhor de Tudo Melhor eu voltei minha face para ela. Eu sei que Ipet-Sut é o lugar da luz na terra, A montanha majestosa dos inícios./ O olho sagrado do Senhor de Tudo, O seu lugar favorito que gera a sua beleza, Que reúne os seus seguidores. E é o rei ele mesmo quem diz: Eu declaro perante o povo quem serei no futuro, Quem observará o monumento eu fiz para o meu pai, Quem participar na discussão, Quem olhar para a posteridade – Isto foi quando sentei no meu palácio, E pensei em meu criador, (15) Que meu coração me levou a fazer para ele

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Dois obeliscos de eletro, Cujo cume atingiria o céu, Em majestoso hall de colunas, Entre dois grandes portais do rei, O Touro forte, Rei Aakherkare, o Horus triufante. Agora meu coração volta-se para cá e para lá, Pensando o que o povo dirá, Aqueles que verão o meu monumento de pois de anos, E falarão sobre o que eu fiz. Acautelem-se de dizer, “Eu nada sei, Eu nada sei: Porque isto foi feito? Para moldar uma montanha de ouro, Como alguma coisa que merecidamente aconteceu” Eu juro, como eu sou amada de Re, Como Amun, meu pai, me favoreceu, Como minhas narinas estão refrescadas com vida e domínio, Como eu uso a coroa branca, Como apareço com a coroa vermelha; Como os dois senhores repartiram (20) repartiram suas porções para mim, Como eu governo esta terra como o filho de Isis. Como eu sou poderosa como filho de Isis, Como eu sou poderosa como filho de Nut, Como Ra descansa no barco noturno, Como ele predomina no barco matinal, Como ele associa suas duas mães no no barco divino, Como o céu suporta, e sua criação perdura, Eu serei eterna como uma imperecível estrela, Eu descansarei na vida como Atum – Assim como em relação a esses dois grandes obeliscos, Feitos com eletro por minha majestade por meu pai, Amun, Em ordem que meu nome possa durar neste templo, Para a eternidade e para sempre. Eles são cada um deles blocos de duro granito,

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Sem, sem fendas, sem juntura entre eles. Que alguém que ouça possa dizer, ‘É uma basófia, “O que eu disse”; Pelo contrário dizer, “Isto é próprio dela, Ela é devotada a seu pai!” Veja, o deus me conhece bem, Amun, Senhor do Trono das Duas Terras; Ele me fez governar (30) a Terra Preta e aTerra Vermelha como recompensa, Ninguém se rebela contra mim em todas as terras. Todas as terras estrangeiras são submetidas a mim. Ele colocou minhas fronteiras nos limites do céu. O que Aton cinge trabalha para mim. Ele deu-lhe isto que veio dele, Sabendo disso eu vou governar por ele. Eu sou sua filha na verdadeira verdade. Aquele que serve ele, que sabe o que ele ordena. Minha recompensa de meu pai é vida-estabilidade-lei. No trono de Horus sobre todos os que vivem, eternamente, como Ra. Lichteim p.27-29 v.II (Tradução livre de MMBakos)

Na genealogia do poder de Hatsepsut, emerge a competência do escriba como o criador de palavras, condição que caracteriza a função de escriba leitor, desenvolvida juntamente com o poder do faraó. O mito de Hatsepsut conta uma história sagrada, que se passou em um determinado período histórico (1498-1483 a.C.). Sua criação foi obra de funcionários reais altamente qualificados no domínio da escrita. Concorda-se, assim, à luz do pensamento de Raoul Girardet, que esse mito político, como os modernos, é fabulação, embora ele também exerça uma função explicativa, “fornecendo certo número de chaves para a compreensão do presente, constituindo uma criptografia através da qual pode parecer ordenar-se o caos

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desconcertante dos fatos e dos acontecimentos” (GIRARDET, 1987: 13) Por esse mito, pode-se compreender a desditosa saga da família dos Tutimosis. É mister notar ainda, tendo como inspiração as concepções de Girardet, que ela mobiliza os escribas e esses as pessoas que circulavam no Templo de Karnak, algumas capazes de ler em voz alta esse texto, veiculando-o em tom profético. O fato de Hatsepsut ter conseguido apresentar uma interpretação, com poder explicativo, objetivamente irrrecusável do real de seu contexto, permitiu que uma mulher governasse em nome do deus Amon, uma plêiade de nobres e plebeus por vinte anos. E, mais ainda: a construção de um tempo mortuário fabuloso em Deir el Bahari; o envio de uma expedição à terra de Punt que trouxe riquezas fabulosas ao Egito, deixando o tesouro cheio para seu sucessor iniciar a fase mais belicosa do antigo Egito. Como é fato sabido, Tutimosis III é conhecido na egiptologia como o Napoleão Bonaparte do Novo Reino!

3.2. XIX Dinastia – Testamento de uma plebéia: Naunakhet Este texto, inscrito em um papiro, é oriundo da vila de Deir el Medina. Ele revela uma história muito peculiar, registrando as vontades de uma mulher, Naunakhte; dele se possuem quatro cópias, encontradas em diferentes momentos. O documento é peculiar pelo fato de tratar das vontades de uma mulher, definindo o acesso, posse e administração de seus bens pessoais. A vontade de Naunakhete, cujo nome significa Tebas está vitoriosa, inicia com a data de sua redação: ano 3, quarto mês da estação da inundação, de Sua Majestade o Rei do Alto e Baixo Egito, o Senhor das Duas Terras, Ramsés V, a quem, na saudação inicial, é desejada vida eterna. A seguir, segue-se a exposição do texto que trata das disposições estabelecidas pela

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cidadã sobre o destino a ser dado às propriedades, apresentadas perante uma corte composta por 14 homens. Era uma corte pequena, explica o egiptólogo tcheco Jaroslav Cerny (18981970), talvez devido ao caráter privado do assunto. Todos os membros da corte são citados nominalmente, acompanhados da especificação das atividades por eles exercidas. O discurso informa, assim, sobre a possibilidade de participação no tribunal de diferentes categorias de trabalhadores de Deir el Medina, desde escribas, desenhistas e outros funcionários até de operários não especializados. A fala apresentada, no tribunal, enuncia a posição social de Naunakhet, expressa de forma objetiva: Eu sou uma mulher livre da terra do Faraó. Eu criei oito servos seus, dei-lhes vestimentas e toda sorte de coisas que são normalmente feitas para pessoas de sua posição social. Mas olhe, eu envelheci, e olhe, eles não estão cuidando de mim na minha vez. Quem deles tenha me ajudado, a ele eu darei meus bens, mas quem não tem me dado nada, para ele eu não darei meus bens.

Na sequência, Naunakhte indica como seus herdeiros três filhos homens, nomeados simplesmente como trabalhadores. A um deles, ela destina um prêmio especial: uma tigela de bronze. Ela também aponta uma filha, a quem ela dá alguns pertences. A seguir, Naunakhte elabora uma nova lista na qual constam os nomes dos quatro filhos restantes, um trabalhador e três cidadãs que não devem participar da divisão de 1/3 de seus bens pessoais, mas apenas dos 2/3 do pai deles. O escriba de Deir el Medina, Amennakht, endossa esse desejo. Como essa liberdade de expressão de Naunakhte foi socialmente construída? Esse evento só se tornou conhecido, porque foi encontrado, junto às declarações de Naunakhte, um

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registro que evidencia uma querela familiar em torno dessas vontades. O discurso revela o grau de insatisfação que o desejo de Naunakhte provocou junto aos familiares. Jaroslav Cerny, analisando esse documento, verificou que Naunakhte fora casada duas vezes e que os filhos nomeados no testamento não eram do escriba Kenhikhopshef, o primeiro marido. Eles tinham nascido de sua união com o trabalhador Khaemmun, o segundo esposo. Uma vez entendida a questão da paternidade, fica esclarecida a situação. Como a maior parte dos bens de que Naunakhte dispunha advieram-lhe da morte do marido escriba, ela os repassava apenas aos filhos que a agraciaram com carinho, trabalho e comida. Aos demais, dispensou um tratamento severo, com o corte de benefícios materiais e ausência de indulgência. Essa decisão afeta a Khaemnun e alguns dos filhos, fato que gerou descontentamento e tentativa de reverter o desejo expresso por Naunakhte. Em seus comentários sobre os papiros, Cerny informa que os negócios e as pessoas conectados com o caso de Naunakhte, ao longo do processo, conduzem ao reino de um faraó pouco conhecido da XX dinastia, que se acredita ter sido o segundo sucessor de Ramsés III, havendo reinado por dois anos. Trata-se de um documento de excepcional originalidade, porque há somente dois outros testamentos, além desse, datados do Novo Reino. O testamento de Naunakhte segue o modelo dos documentos legais egípcios: consiste em depoimentos orais feitos por um grupo perante uma corte e/ou testemunhos, registrados por um escriba profissional. Assim, explica Cerny, o que confere legalidade ao documento não é apenas a palavra escrita e, sim, todo o evento narrado e grafado em um papiro ou ostraca. O caso de Naunakhte contém outra relevância, porque mulheres são raramente mencionadas em ostracas e papiros da necrópolis. A maioria desses textos tratam do trabalho dos

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artesões e dos suprimentos, assuntos extrafamiliares. Entre os homens, deve-se considerar a presença de muitos membros do pessoal de serviço da comunidade: carregadores de água, lenhadores, pescadores, homens que lavam roupa, porteiros, guardas, policiais e funcionários. Essas pessoas não pertenciam à população da Vila no sentido estrito e não se pode saber muito sobre suas mulheres e filhas. De fato, o único tipo de ostraca em que as mulheres figuram são aquelas que registram textos privados: cartas, recibos de vendas e transações de crédito, ações judiciais, especialmente aquelas relativas a heranças, oráculos, etc (JANSSEN, 1997: 55). Provavelmente essa corte local, perante à qual Naunakhte prestou declaração, conhecia bem sua história de vida, porque seu primeiro marido, Kenhikhopshef, também fora escriba. Além disso, todos os demais membros da corte, composta de quatorze pessoas, ligados ao trabalho de construção da tumba real. O primeiro marido de Naunakhte, segundo Cerny, foi escriba a partir da segunda metade do reinado de Ramsés II (1279-1213 a.C.), do reinado de Merenptah (1213-1203 a.C.) e dos curtos reinados dos sucessores. É possível que ele não tenha vivido até o início do reinado de Ramsés III, explica Cerny, porque um homem de sua importância teria sido mencionado na documentação do período. A própria Naunakhte era idosa no momento da redação de suas vontades e, por isso, tinha queixas relativas ao fato de ter dado aos filhos deserdados, além do sustento em pequenos, o equipamento necessário para fundarem sua próprias famílias. Sobre a posição da mulher na Vila de Deir el Medina, é possível, pondera Tyldesley, que, nesse local, com alta taxa de concentração de pessoas educadas, tais como desenhistas, escultores e artistas, com suas famílias, o grau de escolaridade fosse maior do que aquele encontrado nas comunidades dedicadas à

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agricultura, nas quais raros seriam os camponeses, homens e mulheres, com capacidade para ler e escrever. Entretanto, poucas mulheres, que normalmente recebiam apenas uma educação primária, seriam capazes de seguir carreiras profissionais. Isto não se devia, explica a autora, à existência de uma proibição de as mulheres ocuparem postos influentes. Na verdade, nada nesse sentido foi encontrado. O fato pode indicar, isto sim, segundo a pesquisadora, que a mulher se envolvesse tanto nos afazeres domésticos que dificilmente tivesse condições de ingressar na formação e no processo de aquisição de uma carreira de trabalho de tempo integral. Além disso, era concedido à mulher o status do marido na comunidade, não havendo necessidade de que ela trabalhasse para ganhos pessoais (TYLDESLEY, 1994: 121). Uma consideração final sobre os desdobramentos do desejo de Naunakhte impõe-se: ele versa sobre sua auto-apresentação – “uma mulher livre que dispõe de seus pertences”. É importante chamar a atenção para o grau de força e de singularidade desse discurso, naquela sociedade. Nesse sentido, cabe examinar, no próprio texto, as referências contidas quanto ao contexto de produção desse discurso, as quais lançam luz sobre as condições de vida específicas de Naunakhte. Ela é viúva de um homem importante de Deir el Medina, uma comunidade muito pequena, na qual todos se conhecem. As relações familiares dessas pessoas têm uma relevância muito grande, como referencial de status, principalmente quando isso significa o envolvimento da hereditariedade, com funções básicas na estruturação do grupo, como é o caso dos escribas, o que lhes confere uma posição social privilegiada também em nível econômico. Certamente, o texto é muito didático, pois mostra a força de uma mulher, mesmo que ela seja apenas um personagem literário; ela possui, como as mulheres da dramaturgia grega, em época bem posterior, a capacidade de distribuir com justiça benesses e castigos.

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Cópias do testamento de Naunakhet foram encontradas em Deir el Medina, juntamente com alguns fragmentos de um texto literário conhecido como as “Máximas de Ani”.

3.3. Instruções de Ani, vinhos, textos e tumbas: inovação no ensino. As instruções de Ani têm duas características peculiares, conforme explica Miriam Lichteim (1914-2000 d.C.), que as diferenciam das instruções de outros períodos. A primeira é a forma de apresentação do autor que se configura como um homem comum, fazendo-se entender e agradando aos que têm apenas algumas posses e educação mediana; a segunda, localizada no epílogo, diz respeito ao comportamento do filho, que, em lugar de agradecer humildemente a lição recebida, como ocorria nas instruções anteriores, faz objeções não apenas quanto aos sentidos da instrução, como também às suas possibilidades pessoais de obedecer ao que lhe fora ensinado. Com isso, o autor introduz uma nova dimensão de interpretação às instruções: a consciência de que o impacto da instrução poderia fracassar, pois a capacidade de educar tem seus limites (LICHTEIM, 1976: 135). As “Instruções de Any” referem muitas vezes a relação entre homens e mulheres, para cujo sucesso o escriba faz quatro recomendações básicas: que o homem tome a mulher, enquanto é jovem; que não a controle em casa, quando sabe que ela é eficiente; que evite mulheres estranhas que apareçam na cidade; e, finalmente, a mais importante para este artigo (até mesmo pelo fato de essas instruções haverem sido encontradas com uma das cópias das vontades de Naunakhte) que assegura à mulher um tratamento atencioso por parte dos filhos, porque ela os sustentou em uma canga, amamentou-os até os três anos, limpou os seus excrementos

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quando eram nojentos, alimentou-os quando eram estudantes. A retribuição dos filhos evita, segundo Any, que a mãe chore e /ou amaldiçoe a sua prole. A vontade de Naunakhte e o texto de Any apresentam um exemplo de punição exemplar, quando uma mulher não é valorizada em sua condição materna. Talvez essa mensagem esclareça a existência do testamento de Naunakhet, em suas várias cópias, e das próprias “Instruções de Any”, como um discurso de cunho moral para cópia e memorização dos escribas em seu longo processo de formação profissional. As “Instruções de Any” são conhecidas através de um manuscrito: Papyrus Boulaq 4 do Museu do Cairo, que data das XXI e XXII dinastias. Fragmentos deste texto em quatro ostracas e em um papiro de oito páginas foram encontrados em Deir el Medina (LICHTEIM, 1974: 135). O texto original foi produzido no Novo Reino, certamente na XVIII dinastia. Como já se referiu, dois aspectos, em especial, distinguem esse texto dos similares. O primeiro é que as “Instruções de Any” têm como autor alguém que se apresenta como funcionário da camada baixa e por objetivo dirigir-se aos homens comuns com educação média e poucas posses. O outro é concernente ao comportamento do filho, que, em lugar de agradecer humildemente a lição recebida, como ocorria nas instruções anteriores, faz objeções não apenas quanto aos seus sentidos, mas também quanto às suas possibilidades pessoais de atender ao que lhe foi ensinado. Essa nova dimensão, introduzida no processo interpretativo das instruções, pode ser exemplificada com o fragmento das instruções falando de bebida. Não se permita beber cerveja Para que pronuncies calamitosos discursos E não percebas o que estás dizendo.

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Se você cair e machucar seu corpo. Ninguém vai lhe estender a mão; Seus companheiros na bebida Se levantarão dizendo: ‘fora com o bêbado!” Se alguém vier para lhe buscar e falar com você, O mesmo vai encontrá-lo estirado no solo, Como se fosse uma criança pequena

Essa bebida foi consumida no Egito desde a formação do Estado, como privilégio dos faraós.No texto mágico religioso das Pirâmides do rei Unas da V Dinastia e nos de seus sucessores da VI Dinastia, cinco jarros de vinho estavam incluídos nas oferendas aos deuses. Esses cinco jarros tinham origens definidas (Baixo Egito) e no mínimo dois deles continham nomes de cidades: Imt para Buto; Snw para Pelusium, nas cercanias do nordeste do Delta (LESCO, 1977: 11). Pelo texto de Any e diversos outros do gênero instruções, e também pela grande quantidade de cartas e bilhetinhos disponíveis em Deir el Medina, sabe-se que o consumo do vinho, aos poucos, passou, de regalia restrita à nobreza, a bebida mais popular. Nessa direção, vai a fantástica decoração da Tumba 155 de Tebas. O texto em hieróglifos, de fácil leitura, porque usa de expressões muito comuns, diz o que segue: O porteiro à esquerda fala sobre o guardador do celeiro: “Ele está bêbado com o vinho” O porteiro bate na porta e diz: “O servo está dormindo”. O servo acordando protesta: “Eu não estou dormindo!

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Tumba Tebana 155. Desenhado segundo LESKO, 1977: 32

4. Palavras de encerramento

Muitos poemas de amor do antigo Egito falam sobre vinho. O que segue revela seus aspectos positivos, bem como as vantagens das comidas bem temperadas. Mas, de tudo, o mais importante, são os bons sentimentos... enquanto penso em meu amor, Meu coração em mim se detém Eu vejo um bolo açucarado? é então sal! e o vinho delicioso e doce, me parece verdadeiramente fel! (NOBLECOURT, 1986: 269)

A forma como se iniciou o presente texto, com a discussão de ideias e informações contidas na “Carta polêmica”, pautada por um tom humorístico de feição irônica, revela, de pronto, facetas inusitadas de escribas reais da corte de Ramsés II (1290-1224 a.C.), tão impressionantes e curiosas

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quanto o texto de Hatsepsut inscrito no obelisco, no qual se relata uma história de escalada ao poder contando com a parceria do deus Amon, ou quanto as instruções de sabedoria e o testamento de Naunakhet, que dota de identidade uma mulher do povo. Sem dúvida, esses são textos literários surpreendentes em tempos de um ensino rígido, de ideias e crenças cristalizadas, das quais Homero, Hesíodo, Aristóteles e sabe-se lá quantos outros sábios tomaram conhecimento e/ou leram em versões gregas. O que mais dizer, para finalizar este estudo sobre as rotinas repetitivas e os desvios sobre elas, operados pelos escribas? É mister parodiar Agnes Heller: os escribas egípcios existiram, eles produziram textos em Deir el Medina. Eles não existem mais, mas seus textos, sim! E, enquanto se fala sobre eles, os escribas viverão. Mais ainda, essas matrizes discursivas, que já emprenharam diferentes concepções, continuaram a perturbar, fomentando discussões sempre atualizadas sobre as capacidades humanas de repetição/criação, em sala de aula. Os europeus que perdoem, mas os afroasiáticos, em especial os egípcios antigos, propuseram bem antes deles práticas e produziram uma literatura didática alternativa de ensino. Agradeço ao CNPq pela Bolsa de Pesquisa (Pq) concedida para desenvolvimento do projeto intitulado:Correspondências de Deir el Medina: a vida cotidiana no tempo de Dhutmose: (+ - 1085-1070 a.C.).

Bibliografia

BAKOS, M. M. Fatos e mitos do Antigo Egito. 2. ed. Porto Alegre, EDIPUC, 2001.

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2. Rebelião e Religiosidade no Egito Ptolomaico

Júlio Gralha Universidade Federal Fluminense Raquel dos Santos Funari Universidade Estadual de Campinas

Introdução

O estudo da religiosidade tem passado por uma renovação, nas últimas décadas. Por longo tempo, os aspectos simbólicos em geral, e aqueles relativos às crenças, em particular, foram deixados em segundo plano. No campo das relações de poder, tema central da historiografia desde o seu começo, muitas vezes a religiosidade foi tomada como mera camada superficial, que encobriria as verdadeiras intenções dos atores históricos. Mesmo no caso do Egito antigo, civilização reconhecida, desde a Antiguidade, como religiosa, nem sempre foi fácil admitir a profundidade das representações religiosas para a vida social. Isso tem mudado e um dos pioneiros nessa direção foi o estudioso canadense Bruce Trigger, como lembrou, há pouco, Ian Shaw (2004: 127):

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“Bruce Trigger ressaltou, no seu livro Early civilizations: Ancient Egypt in context (As primeiras civilizações: o Antigo Egito em seu contexto), que uma das mais importantes diferenças entre nossa cosmovisão e a dos egípcios reside no fato de que nós distinguimos, de forma clara, os mundos natural e sobrenatural - como parte da nossa herança filosófica grega -, enquanto os egípcios encaravam divindades e humanos em interação no mesmo plano social e físico”. Este artigo visa à discussão da importância da religiosidade egípcia no contexto da dominação macedônica, pois as relações de poder, com suas tensões e conflitos, aparecem mediadas pelos sentimentos religiosos egípcios. No final do 3º século a.C. três episódios tiveram lugar no Egito ptolomaico que podem ter contribuído para uma alteração do projeto político-religioso de legitimidade dinástica da casa dos ptolomeus: a batalha de Ráfia, durante 4ª Guerra síria (219-217 a.C.), sob o reinado de Ptolomeu III; as Guerras sírias de um modo geral, e a rebelião de segmentos ligados ao Alto Egito (Sul) entre 206 e 186 a.C. contra o domínio ptolomaico, a Rebelião Tebana. Este último episódio torna-se fundamental para uma reorientação mágico-religiosa da legitimidade do poder que constitui um projeto político-religioso definido. Neste sentido a Rebelião Tebana e as transcrições públicas desenvolvidas como expressão da materialidade da legitimidade de ação e poder podem ser analisadas de duas formas centrais: 1.

Do ponto de vista dos rebeldes – em maior parte constituídos de egípcios nativos helenizados ou não – as transcrições públicas de caráter mágico-religiosa como expressão da legitimidade do poder, se traduzem, em parte, pelo uso de uma antiga profecia que trata da expulsão de estrangeiros por um líder do sul (Alto Egito) e pelo estabelecimento de faraós em

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Tebas – cidade do deus dinástico Amon-Ra e capital do Egito no período de opulência; Do ponto de vista da dinastia ptolomaica, as transcrições públicas se traduzem, em parte, por uma adoção mais significativa dos ptolomeus da monarquia divina egípcia, da titulatura, por doações aos templos e a produção de decretos erigidos em estelas, em diversos pontos do Egito durante a rebelião. Tais decretos tinham como interlocutores e suporte a elite sacerdotal, sobretudo, do norte do Egito — o Delta — e principalmente do segmento sacerdotal de Mênfis ligado ao deus Ptah.

Com o fim da rebelião, as transcrições públicas da legitimidade do poder da dinastia ptolomaica, neste momento mais egipcianizada, se traduz por um programa de construção de templos no Alto Egito como expressão da materialidade — arquitetura e iconografia.

Figura 1: Templo de Hórus em Edfu A construção do templo teve inicio em 234 a.C. no Alto Egito com Ptolomeu III. A esquerda é possível visualizar Ptolomeu XII na fachada do templo representando o faraó que submete seus inimigos visíveis e invisíveis expressando a legitimidade de poder pela arquitetura e iconografia. Fonte: GRALHA, 2007.

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Figura 2: Mamisi no Templo de Isis em Filae. O mamisi era a versão ptolomaica da sala do nascimento de Hórus o qual era identificado com a realeza e o faraó. Tal estrutura pode ser encontrada em diversos templos do Alto Egito e legitima o monarca ptolomaico como faraó através do ritual de nascimento divino. Desta forma, a arquitetura, a iconografia e as práticas rituais conferiam ao monarca ptolomaico a legitimidade de poder diante dos segmentos sociais. Fonte: GRALHA, 2007.

Guerras Sírias

Durante as duas décadas que seguiram a morte de Alexandre o Grande, em 323 a.C., a geografia e as relações de poder no Egeu, Egito, Oriente Médio e Ásia se transformaram pelo conflito entre os seus sucessores. Por volta de 311 a.C. Cassandro controlava parte da Grécia e da Macedônia, Antígona a Ásia e estava em conflito com Selêuco pela região. Ptolomeu tinha o controle do Egito e da Cirenaica (parte da Líbia) e Lisímaco a Trácia. Logo Ptolomeu estende seu controle sobre a Palestina avançando sobre os territórios de Antígona e por sua vez Selêuco passa a controlar toda região da Síria até a Índia. Uma nova fronteira era estabelecida entre os dois “impérios” — Ptolomaico e Selêucida — cuja zona de disputa era a Fenícia, Palestina e o sudeste da Síria.

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Este era o cenário para uma série de seis conflitos pelo controle da Coele-Síria durante o 3º e 2º século a.C., denominados pelos historiadores como “As Guerras Sírias”, cujas datações aproximadas estão registradas abaixo: • • • • • •

A primeira guerra síria ocorreu durante (274-271 a.C.), A segunda durante 260-253 a.C., A terceira entre 246-241 a.C., A quarta entre 219-217 a.C., A quinta entre 202-194 a.C. e A sexta entre 180-168 a.C.

Tais guerras foram elementos significativos para a exaustão de recursos e certo enfraquecimento político dos beligerantes ao longo destes séculos e contribuíram para revoltas nas áreas controladas pelos ptolomeus e seleucidas.

A batalha de Ráfia – quarta Guerra síria

Das guerras sírias, a quarta (219-217 a.C.) e quinta (202194 a.C) são significativas para o estudo da Rebelião Tebana (206-186 a.C.) e a importância da batalha de Ráfia se traduz pela presença no exército ptolomaico de um grande contingente de egípcios recrutados. Pela primeira vez, egípcios passaram a fazer parte do exército ptolomaico e os pesquisadores ressaltam que perto de 20.000 egípcios tomaram parte na importante batalha enfrentando o rei seleucida Antíoco. A vitória ptolomaica parece ter sido decisiva na região impondo compensações aos selêucidas e é possível que tenha dado vigor e poder de reação ao controle ptolomaico, sobretudo no Alto Egito1. 1 

Sobre a batalha de Ráfia ver Políbio, Histórias, livro V: 79-86 e 107.

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Segundo o historiador grego Políbio (200-118 a.C.), a batalha teve lugar na primavera, em local próximo à cidade de Ráfia: No começo da primavera, Antíoco e Ptolomeu (Ptolomeu IV) haviam completado suas preparações e estavam determinados a decidir o destino da expedição síria em uma batalha. Ptolomeu partia de Alexandria com 70.000 infantes, 5.000 cavalos, e 73 elefantes. [...] O exército total de Antíoco consistia de 62.000 infantes, 6.000 cavalos e 102 elefantes (POLÍBIO, Histórias, V, 79)

Políbio também nos informa que tantos os egípcios quantos os líbios formavam parte do exército ptolomaico. Os dois flancos de Ptolomeu eram formados da seguinte maneira: Polícrates com sua cavalaria segurava o extremo do flanco esquerdo e entre ele a falange a pé primeiro cretenses, depois cavalaria, então a guarda real, então a infantaria leve sob Sócrates, estes últimos seguidos por líbios armados à maneira macedônica. No flanco extremo direito estava Echecrates com sua cavalaria, e à sua esquerda Galos e Trácios, e depois deles estava Fóxidas com seus mercenários gregos em contato com a falange egípcia... (POLÍBIO, Histórias, V, 82)

A Rebelião Tebana (206-186 a.C.)

A Rebelião Tebana pode ser entendida como um levante por segmentos sociais e elites da região de Tebas (ou liderados por estes) e talvez outros segmentos descontentes do Alto Egito que pretendiam se separar ou expulsar os “estrangeiros”, neste caso, os macedônios que controlavam o Egito por meio da dinastia ptolomaica havia quase um século.

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Apesar de varias gerações de estes macedônios terem nascido no Egito e mesmo por certa adoção de práticas culturais egípcias e a adoção da monarquia egípcia por parte da realeza, isto não foi o suficiente, sobretudo para os segmentos do Alto Egito. A rebelião tornou o Alto Egito independente por vinte anos, tendo como capital Tebas e dois faraós nativos legitimados pelos segmentos locais e as práticas mágico-religiosas e segmentos sacerdotais locais. Como tais monarcas não erigiram monumentos significativos, torna-se difícil um estudo mais claro de suas ações. É possível que em função do esforço de guerra houvesse pouco tempo para erigir monumentos duradouros. Por outro lado, mesmo se foram construídos, podem ter sido destruídos pelos ptolomeus como forma de apagar a memória desta rebelião, o que era uma prática mágica egípcia tradicional. A rebelião teve inicio na região de Tebas em 206 a.C. e nesta mesma região, no 19º ano de reinado de Ptolomeu V, em 186 a.C., ocorreu o confronto final com a vitória ptolomaica. De um lado Komanos, estratego das forças ptolomaicas e do outro Ankhwnnefer líder e faraó das forças egípcias. O faraó foi capturado e o seu filho, que comandava as forças egípcias, morreu em combate. Os relatos são confusos, mas parece ter havido um perdão em grande escala para os rebeldes. Na se sabe ao certo as razões desta rebelião, mas a situação desfavorecida das populações do Alto Egito (sul) pode ter contribuído para isso, segundo Guther Holbl: pelo menos ao final do terceiro século, o fato de revoltas egípcias ocorrerem em uma escala nacional não pode ser explicada pela pressão advinda de uma influência sacerdotal; pode ser atribuída por outro lado ao descontentamento espalhado entre a massa de trabalhadores. (HOLBL, 2001: 153)

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É provável que as elites locais, que possuíam certa independência, fossem por outro lado menos favorecidas em função de uma atenção maior dada ao norte pelos monarcas ptolomaicos — atenção aos grupos sacerdotais ligados ao deus Ptah por exemplo. Seja como for, certa resistência à política ptolomaica se manifestou. Willy Clarisse (2004) cita que alguns historiadores modernos vêm na rebelião razões econômicas em função dos custos das guerras sírias — sobretudo pelo contingente significativo de mercenários gregos “contratados” para lutar no exército ptolomaico. O fato de egípcios e líbios serem convocados para a batalha de Ráfia pode ser um indicativo de problemas de recursos financeiros. Clarisse salienta que haveria uma taxação elevada nos segmentos sociais para a captação de recursos o que poderia gerar descontentamento, sobretudo no Alto Egito. A Rebelião Tebana contou com dois líderes provavelmente coroados em Tebas, Herwnnefer e Ankhwnnefer, que juntos reinaram por 20 anos. O primeiro reinou de 206-200 a.C e o segundo de 200-186 a.C (HOLBL, 2001: 153). Existem algumas questões quanto ao número de faraós reinantes, se seriam dois ou apenas um que havia mudado seu nome. Neste artigo, isto não é um problema central, pois estamos interessados nos aspectos desenvolvidos em função da Rebelião. De qualquer modo ambos os nomes estavam associados ao mito de Osiris, talvez uma forma de rivalizar com os ptolomeus que expressavam uma ligação com Hórus, filho de Osiris. Estes faraós governaram da cidade de Tebas e tinham como deus dinástico — se assim podemos usar tal termo neste momento — Amon-Ra, considerado responsável pela reunificação do Egito no Primeiro Período Intermediário e no Segundo Período Intermediário. Desta forma, mais uma vez tal caráter mítico e mágico-religioso deste deus era invocado para enfrentar os

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estrangeiros que estavam ocupando o Egito governando do Delta, neste caso Alexandria. Apesar de não ser conclusivo é possível levantar a hipótese de uma retaliação entre os segmentos sacerdotais ligados ao deus Ptah de Mênfis e Amon-Ra de Tebas durante a rebelião e os indícios indicam a presença dos reis núbios ligado ao reino de Meroe como aliados e servindo de suporte aos egípcios contra os ptolomeus. Segundo Gertrud Dietze (2000: 80), durante a rebelião, forças núbias tomaram Philae e causaram a destruição de templos na região. A autora relata que o santuário do deus núbio Arensnuphis foi alvo do ataque sendo reconstruído durante o reinado de Ptolomeu VI. Entretanto fica a questão: núbios destruindo um templo para um deus núbio? Ou isto seria fruto do conflito entres as forças ptolomaicas e rebeldes pela ocupação da região? Os decretos ptolomaicos após a rebelião tratam da destruição de templos imputando somente a culpa aos rebeldes, o que pode ser uma propaganda negativa da rebelião. No que concerne às práticas egípcias, poderia ser também uma forma mágico-religiosa de encantamento transferindo toda destruição somente às forças rebeldes e seus aliados. Uma ação mágica na qual daquele momento em diante, segundo conceito de magia para o egípcio, coube somente aos rebeldes a destruição de capelas e templos na região. Durante os vinte anos de conflitos, o poder destes faraós se estendeu de Assiut a Elefantina o que equivale dizer um controle em quase dois terços do território egípcio ao longo do Nilo. Neste mesmo período, outra revolta explodiu, por volta de 197 a.C. no Baixo Egito tendo com centro a cidade de Lykopolis que estava localizada no nomo de Busiris, mas que em curto período de tempo foi subjugada pelas forças ptolomaicas. Um grafite em grego no templo de Sethi I em Abydos, é um dos pouco indícios destes faraós nativos do Alto Egito. O detalhe

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interessante nesta inscrição é que o grafite está em grego e não em demótico que era a escrita egípcia cursiva. Talvez fosse um simpatizante grego ou um egípcio helenizado. Com o fim da revolta tebana, Ankhwnnefer foi preso e o conselho sacerdotal reunido em Alexandria declarou o monarca inimigo dos deuses, legitimando, dessa maneira, a dinastia ptolomaica (HOLBL, 2001: 156). Por outro lado, o concílio sacerdotal propôs perdão para o líder tebano Ankhwnnefer e para boa parte dos rebeldes envolvidos no conflito. Tal proposta foi aceita por Ptolomeu V Epifanes2. Essa decisão do conselho sacerdotal reforçou as bases mítico-religiosas necessárias para a legitimidade da dinastia ptolomaica, pois o faraó era considerado como mediador entre os deuses e o homens, um Hórus vivo3. Entretanto, a transcrição do decreto Philensis II indica que os rebeldes receberam pena de morte o que parece não ter ocorrido. A Rebelião Tebana parece ter sido um evento de grande importância tanto pelo elemento de legitimidade da própria rebelião como pelas consequências que em boa parte levaram os monarcas a uma nova abordagem do seu projeto político-religioso de legitimidade, que levava em conta um programa de construções de templos e santuários no Alto Egito. Os indícios são relativamente mais claros a partir do reinado de Ptolomeu V durante o qual a rebelião é debelada e o Egito passa estar sobre controle total dos ptolomeus. Se a batalha de Ráfia pode ser considerada importante como um dos principais elementos para a consecução da Rebelião Tebana, por sua vez, a rebelião possui diversos aspectos que podem demonstrar como a resistência nativa e a dinastia ptolomaica se utilizaram de elementos proféticos, míticos (com relação à resistência nativa), e mágico-religiosos expressos em 2  3 

Para um estudo melhor deste episódio é possivel consultar Daumas, 1952: 257-260. O deus Hórus representa o governante do Egito.

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certa medida por uma cultura material de caráter iconográfico e arquitetural (com relação à dinastia ptolomaica). De fato, ambos os segmentos no discurso de legitimidade resgataram e invocaram o caráter mágico-religioso da época faraônica. De certa forma é possível identificar alguns elementos ou aspectos que fazem dessa rebelião significativa, como, em particular, a participação egípcia no exército ptolomaico, a concepção profética dos rebeldes (como na Crônica Demótica), a legitimidade mágico-religiosa como suporte da profecia, a estreita relação dos ptolomeus com o clero de Ptah (Delta e Fayum) e a independência das elites do Alto Egito. O programa de construção de templos no Alto Egito, no século II a.C., após o fim da revolta, atesta a importância da religiosidade egípcia para a legitimação do poder macedônico no Egito. Christelle Fischer-Bovet (2007), em seu artigo Army and Egyptian temple building under the Ptolemies, ressalta que diversos pesquisadores concordam que houve uma política de construções no Alto Egito, no segundo século a.C. Pesquisadores recentes4 afirmam que os ptolomeus desenvolveram uma política doméstica de construção de templos nativos no Alto Egito no segundo século a.C., em parte, com recursos do rei e, muitas vezes, com recursos dos templos, dos funcionários ou de outros indivíduos. (BOVET, 2007: 4)

Conclusão

Os governantes macedônicos do Egito enfrentaram resistência ao seu poder, tanto em termos militares, como religiosos e simbólicos. Embora se tenham aliado ao clero de Ptah, no 4 

Dietze, 2000 e Hölbl, 2001.

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Baixo Egito, a maior parte do antigo reino egípcio, na sua parte meridional, não se considerou incluída na nova ordem imposta pelos governantes gregos. Os ptolomeus, contudo, nesse processo de governo perceberam que tinham que incluir as sensibilidades religiosas dos egípcios para exercerem o poder com a necessária aceitação dos seus súditos. Houve, neste sentido, a adoção de uma política de acomodação às sensibilidades e cosmovisões dos egípcios. As suscetibilidades mágicas dos egípcios, no final das contas, não podiam ser deixadas de lado e foram, com o tempo, essenciais para a manutenção do poder macedônico no Egito, que se adaptou e incorporou a religiosidade egípcia milenar.

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3. A História Antiga de Israel e os Novos Horizontes de Pesquisa

Josué Berlesi Universidade Federal do Pará Emanuel Pfoh Universidade de Buenos Aires

Hebreus ou Israelitas?

Por muito tempo os termos “história dos hebreus” e “história de Israel” eram tidos como sinônimos, porém, embora uma noção já cristalizada associe “hebreu” com “israelita” deve-se ter em mente que há uma diferença entre um e outro. Em casos menos frequentes comete-se um equívoco ainda maior ao considerarem-se equivalentes os termos: hebreu, israelita e judeu. Este último é muito posterior aos dois primeiros. Judeu deriva de yehudim, os habitantes da província de Yehud de modo que não é possível falar da existência de “judeus” no período de formação da unidade Israel. Herbert Donner afirma que “hebreu” não é uma designação que Israel tivesse utilizado preferencialmente e em todos os tempos para referir-se a si próprio. No Antigo Testamento encontram-se apenas trinta e três ocorrências do termo “hebreu”, em contraposição a mais de duas mil e quinhentas para

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“Israel”. Além disso, “hebreu” possui significados distintos ao longo da narrativa veterotestamentária. Note-se, por exemplo, as passagens bíblicas de Êxodo 21.2 (“Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar”.) e Deuteronômio 15.12 (“Quando um dos teus irmãos, hebreu ou hebréia, for vendido a ti, ele te servirá por seis anos. No sétimo ano tu o deixará ir em liberdade”) onde “hebreu” designa um escravo temporário, em contraponto, veja-se Jonas 1.9 (“Ele lhes disse: Sou hebreu e venero a Ihaweh, o Deus do céu, que fez o mar e a terra”) (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1998) que se refere ao uso étnico da palavra. Em um primeiro momento, “hebreu” se refere a um grupo sociológico. Conforme destaca Donner: Parece, antes, tratar-se de pessoas de posição inferior e classe baixa, pessoas que são menosprezadas por outras e também têm auto-estima pouco elevada: portanto, uma categoria social e não étnica. Exatamente isto aplica-se também a grupos de pessoas atestados em fontes literárias extrabíblicas do segundo milênio a.C. e em todos os países do Crescente fértil. Em textos de escrita cuneiforme da Mesopotâmia e da Ásia Menor eles se chamam hapiru [...] Esses ´apiru não são nem um povo nem um grupo de povos, mas pessoas de origem variada situadas fora da ordem social: elementos inconstantes ou errantes com direitos restritos e muitas vezes de baixo nível econômico, foras-da-lei das cidades da Idade do Bronze que, para obter proteção e segurança para sua vida, tinham de submeter-se a uma situação de dependência ou levavam uma vida livre como ladrões e assaltantes de estrada”. (DONNER, 1997: 80-81)

Não obstante, “hebreu” é um termo limitado ao Antigo Testamento. As raríssimas fontes extra-bíblicas fazem refe-

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rência a “Israel”, como é o caso da Estela de Merneptah (ver figura 1). Frente a isso, o uso do termo “israelita” torna-se mais adequado para designar os habitantes do antigo Israel. Essa tem sido uma postura frequente nas pesquisas atuais.

Figura 1: Estela de Merneptah. Fonte da imagem: ROMER, 1991: 40.

A História de Israel e o seu conservadorismo

Feitos os devidos esclarecimentos sobre a empregabilidade dos termos “história de Israel” e “história dos hebreus” cabe dizer que o testemunho religioso veterotestamentário teve grande influência na elaboração do conhecimento acerca dos antigos israelitas. Nesse sentido, os manuais de “História de Israel” têm sido, durante muito tempo, uma paráfrase racionalista do texto bíblico. De fato, grande parte da historiografia sobre essa temática foi conduzida por religiosos. Com a cria-

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ção do Estado de Israel, em 1948, intensificou-se o esforço de comprovar a historicidade da narrativa bíblica, sobretudo, com o auxílio da Arqueologia. Nessa linha de ação surgiram obras clássicas como Und die Bible hat doch Rect (E a Bíblia tinha razão), de Werner Keller. A referida obra foi traduzida em 24 línguas, vendeu mais de 10 milhões de exemplares e chegou a ser usada como manual em escolas (FOX, 1993: 204). Dentro e fora da academia a história dos antigos israelitas era vista como a evolução de um único grupo, ou seja, aceitava-se a sequência: patriarcas, escravidão no Egito, êxodo, conquista da Palestina, confederação das 12 tribos, monarquia davídico-salomônica, divisão entre reino do norte e do sul, exílio e volta para a terra. Acreditava-se que todas essas etapas estavam em conformidade com as evidências arqueológicas e fontes extra-bíblicas, de tal modo, houve um razoável consenso sobre a história de Israel até meados da década de 70 do século XX (THOMPSON: 1992: 1-170; GRABBE, 1997, 1998, 2001, 2005, 2007, 2008 e 2010). É bem verdade que um contraponto existia por parte de certos teólogos e exegetas bíblicos. De modo geral, os pesquisadores que se utilizavam do método histórico-crítico1 apresentavam resistência ao citado consenso, contestando, por exemplo, a historicidade dos patriarcas. Porém, tal resistência permanecia isolada em centros acadêmicos mais liberais. Uma mudança significativa só veio a ocorrer, de fato, a partir da década de 1990, com a criação do Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica. O grupo de pesquisadores que possibilitou o surgimento do referido seminário se uniu em O método histórico-crítico constitui-se de vários métodos de análise de um determinado texto. Os passos essenciais do referido método residem na tradução e crítica textual, crítica literária, história traditiva, história redacional, história da forma, história temática, análise de detalhes, conteúdo teológico e escopo. Para maiores informações, v. Mueller, 1984: 237-318. 1 

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torno das frustrações referentes ao debate sobre o Israel antigo. A partir de então, tem sido conduzida uma profunda revisão deste tema, de modo que os resultados obtidos até o presente momento colocam em xeque o paradigma tradicional da história antiga de Israel. Dentro do mencionado seminário destacou-se um grupo de pesquisadores que ficaram conhecidos como Escola de Copenhague ou minimalistas, os quais, gradativamente, adquiriram notoriedade internacional. Apesar destas significativas mudanças no âmbito historiográfico internacional, os estudos sobre a história de Israel levados a cabo no Brasil se encontram afastados do recente debate referente a essa temática. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que em nosso país o estudo da história antiga é, nitidamente, centrado na antiguidade clássica de modo que são raros os pesquisadores(as) que se dedicam a investigação do antigo Oriente. A parca atenção dispensada à antiguidade oriental não é fruto, unicamente, da ausência de profissionais dedicados a esse campo, igualmente, a utilização de uma bibliografia desatualizada – nos cursos de História – contribui para o desinteresse pelo assunto. Da mesma forma, o estudo sobre o Israel antigo revela-se precário. Em geral, os maiores especialistas nessa área são profissionais do campo da teologia2. De fato, a abordagem acadêmica sobre o Israel antigo absorveu por longo tempo a influência de pesquisas nitidamente conservadoras oriundas,

Airton José resumindo o livro de Davies adverte: “a pesquisa bíblica é vista como uma disciplina teológica, a maioria de seus profissionais é composta de teólogos, cristãos e clérigos e seu habitat comum é o seminário ou o departamento teológico de um estabelecimento de ensino superior ou universidade. Neste ambiente o “antigo Israel” é [uma entidade homogênea, uma igreja embrionária, pensando de modo religioso, pecando, mas, em última instância, justificada por sua fé em Deus]”, disponível em: http://www.airtonjo.com/minimalistas.htm. Acessado em 30 nov. 2006. 2 

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principalmente, da América do norte, onde a Bíblia era interpretada atribuindo-lhe sacralidade3. No tocante especificamente ao Brasil, pode-se dizer que o antigo Israel continua sendo interpretado como uma unidade que se forma fora da Palestina e, em fase posterior, a conquista militarmente, evoluindo de uma confederação tribal até uma monarquia e assim por diante. Uma hipótese que explica a preservação desse olhar tradicional sobre a história do Israel antigo reside, possivelmente, no sentimento religioso que dominou a historiografia acerca deste tema, a partir da qual, muitas vezes confundiu-se e ainda confunde-se o relato bíblico com a história de Israel. Essa visão tradicional só passou a ser combatida, com maior energia, há pouco mais de uma década até mesmo nos centros acadêmicos mais avançados. É evidente que as pesquisas histórico-críticas, sobretudo de exegetas alemães, já haviam desacreditado uma interpretação conservadora acerca dos antigos israelitas a partir da década de 60 do século XX, propondo, por exemplo, que Israel surge como “povo” somente no território da Palestina4, no entanto, a circulação dessas informações foi absolutamente restrita tendo uma absorção basicamente limitada ao público de exegetas. De qualquer forma, as mudanças na interpretação da história em questão são notadamente vagarosas, especialmente levando em conta a força que dispõe, em contextos sociais mais amplos, uma história de Israel não acadêmica, justamente por estar ligada com a fé de muitas pessoas, o que proporciona, consequentemente, múltiplas variantes de corte comercial, 3  Em alguns lugares dos Estados Unidos a situação ainda não mudou. Veja-se a obra de Randall Price, que foi professor de Arqueologia na Universidade do Texas, Austin, 1996. 4  Veja-se, por exemplo, Noth, 1966.

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as quais abordam os temas bíblicos reproduzindo percepções completamente descartadas no círculo profissional5. A comunidade acadêmica tem se posicionado frente a essa situação reconhecendo, contudo, a dificuldade que existe na batalha contra a exploração comercial da história de Israel. Além disso, a atenção que o público leigo dispensa para as informações veiculadas pelos meios de comunicação – sobretudo a televisão - reforça os entraves ao combate desse viés mercadológico. Note-se que nos últimos anos multiplicaram-se os documentários envolvendo temáticas bíblicas como, por exemplo, a arca da aliança e o dilúvio. Nesse sentido, um dos arqueólogos envolvidos com a pesquisa acerca dos temas bíblicos, comenta de forma bastante acertada: ao mesmo tempo em que vivemos uma época de fascinantes descobertas arqueológicas no Oriente Médio e que podem contribuir muito para a compreensão do mundo bíblico, vivemos uma época de fraudes generalizadas, pressupostos científicos duvidosos, teorias fantásticas e fanáticas sem nenhum fundamento. [...] É hora de a arqueologia séria também divulgar, através de todos os meios, as suas descobertas. O público merece e quer o melhor. E os especialistas têm a obrigação de desafiar e desmistificar as mentiras e o sensacionalismo das cada vez mais frequentes fraudes arqueológicas que dizem, via jornais, revistas, televisão, Internet e outros meios eletrônicos que, finalmente, a verdade bíblica, ocultada ao mundo, por séculos, pelas autoridades religiosas judaicas e cristãs, acaba de ser revelada6. Veja-se o caso do documentário “The Exodus Decoded” divulgado no History Channel (04/2006). 6  Traduzido por Airton José da Silva do texto original de Eric Cline: “Raiders of the faux ark”. A tradução encontra-se em: http://www.airtonjo.com/blog/2007/09/cline-denuncia-as-constantes-fraudes-na.html (acesso em 03/01/2010). O texto original pode ser visto em: http://www.boston.com/news/globe/ideas/articles/2007/09/30/ raiders_of_the_faux_ark/ (acesso em 03/01/2010). 5 

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Tais palavras demonstram uma importante faceta do estado atual da questão. De qualquer forma, é importante salientar que investigações sérias e cientificamente orientadas estão sendo desenvolvidas em diversas partes do globo – principalmente na Europa. A tentativa corrente reside em ampliar o foco de análise englobando toda a antiga região levantina. Tal medida é, acima de tudo, fundamental pelo fato de que os demais grupos sociais que habitaram a referida região foram relegados ao silêncio histórico em consequência do monopólio exercido pela “História de Israel”. É sobre essa perspectiva que se tentará dissertar a seguir.

O Estado da História de Israel na Atualidade

Se considerarmos os resultados de investigação da historiografia mais crítica da história de Israel, baseada essencialmente na arqueologia, no material epigráfico e em outras disciplinas auxiliares (antropologia, demografia, etc.) podemos afirmar que essa história teve consideravelmente reduzida a amplitude de períodos que abarcava, de um par de milênios a somente algumas centenas de anos. De fato, a partir dos anos 1970 já não podemos falar de um período dos patriarcas, no qual se situavam as narrativas bíblicas de Abraão, Isaque e Jacó (THOMPSON, 1974; VAN SETERS, 1975; SKA, 2005: 51-62); já não podemos falar com certeza de um Êxodo em massa a partir do Egito, atravessando a península do Sinai e o deserto transjordânico sob a liderança de Moisés (THOMPSON e IRVIN, 1977: 149-212 e 180-209; DIEBNER, 1984, 595-630 e LIVERANI, 2005: 250-269); tampouco de uma conquista militar da “Terra Prometida” sob o comando de Josué (MILLER, 1987: 213-284; LEMCHE, 1985: 48-62 e NA’AMAN, 1994: 218-281) ou de um período

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dos Juízes na Palestina (ORLINSKY, 1962: 11-20; LEMCHE, 1984: 1-28 e MAYES, 1977: 285-322). Em meados da década de 1990 a Monarquia Unida de Davi e Salomão, considerada até tempos recentes como sendo o ponto de partida confiável para uma história de Israel7, foi submetida a dedicado escrutínio, resultando disso a constatação de que tal monarquia, assim como a descreve o texto bíblico, está mais relacionada a uma imagem mítica do que real (THOMPSON, 1992a: 213-300; HANDY, 1997: 312-335 e 2005: 73-86 e PFOH, 2004: 133-160). Essa desconstrução dos períodos da história bíblica e sua falta de correspondência com o registro arqueológico da Palestina, experimentou um processo análogo no que se refere às origens de Israel como organização étnica. Entre as décadas de 20 e 70 do século XX foram três as hipóteses, atualmente clássicas, que tentaram dar conta do surgimento de Israel na história da antiga Palestina (WEIPPERT, 1967)8. A primeira dessas hipóteses, formulada na Alemanha, tem como autor Albrecht Alt, o qual propôs conceber o assentamento de Israel na Palestina não como uma invasão militar tal como se relata no livro de Josué, mas sim como uma infiltração pacífica de seminômades que, ao longo de sucessivas gerações, constituíram o povo de Israel num processo que se estendeu até o século XII a.C. (ALT, 1953: 89-125 e 126-175). A segunda hipótese surgiu nos Estados Unidos, em franca oposição a já mencionada hipótese de Alt. William F. Albright, decano de arqueologia bíblica, juntamente com sua “escola” produziram uma explicação das origens de Israel que tentava constatar por meio das evidências arqueológicas provenientes da Palestina de fins do segundo milênio a.C. a conquista militar Um exemplo do consenso dos anos 1980 pode ser encontrado em Soggin, 1984 e J.M. Miller e J.H. Hayes, 1986. 8  Autor que originalmente propôs estas tres aproximações aos inícios da história de Israel. 7 

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de Canaã, em grande medida concordando com o relato bíblico acerca de tal conquista9. Esta hipótese teve ampla aceitação durante o século XX, especialmente em âmbitos religiosos dos Estados Unidos e consequentemente no recente estado de Israel criado em 1948 (dado que, de alguma maneira, os primeiros proviam ideologicamente ao último um modelo a seguir). A terceira dessas hipóteses apareceu também nos Estados Unidos, no entanto, produziu, em um primeiro momento, uma leitura do texto bíblico mais atenta ao registro etnográfico do Oriente Médio, e depois com atenção voltada para a sociologia do conflito. Em 1962 G.E. Mendenhall propôs em um breve artigo explicar o surgimento de Israel na Palestina não como o resultado de uma conquista exterior de povos provenientes do deserto, mas sim como o produto de uma revolução religiosa dos camponeses das cidades-Estado cananeias da idade do Bronze Tardío (ca. 1500-1200 a.C.) contra o seus “senhores feudais” (MENDENHALL, 1962: 66-87 e 1973)10. Alguns anos depois, Norman Gottwald reformularia esta hipótese com sua monumental obra The Tribes of Yahweh (1979), tomando por base uma suposta luta de classes entre camponeses cananeus e “senhores feudais”, cujo resultado foi o estabelecimento dos camponeses nas terras altas da Palestina, configurando-se assim uma nova entidade étnica chamada Israel, com uma religião monoteísta e uma ideologia igualitária (GOTWALD, 1979). A importância historiográfica da hipótese de Mendenhall e Gottwald reside no fato de que, pela primeira vez, os originadores da unidade Israel foram vistos como nativos da própria Palestina, surgidos por um conjunto de fatores sócioVeja-se por exemplo, Albright, 1935: 10-18; 1939: 11-23; 1940 e 1949. Mendenhall conectou o termo bíblico “hebreus” com os hab/piru da época de El Amarna na Palestina, como muitos já tinham feito (e.g., Barton, 1929: 144-148), mas em termos de uma revolta camponesa, não de uma conquista militar. 9 

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-econômicos e demográficos e não como resultado de uma invasão de elementos forâneos. Vale salientar que nos últimos quarenta anos estas hipóteses foram profundamente revisadas, quando não refutadas por completo. Especialmente, a hipótese da conquista militar da Palestina realizada pelos antigos israelitas a qual não logrou ter corroboração no registro arqueológico (MILLER, 1986: 213-284 e LEMCHE, 1985: 48-62). Por sua vez, a hipótese da revolução social como propiciador das origens de Israel também foi descartada por meio de uma interpretação crítica do registro etnográfico que formava parte substancial de tal hipótese e, ainda mais, por sua falta de constatação no registro epigráfico e arqueológico da Palestina de começos da Idade do Ferro (ca. 1200-600 a.C.) (LEMCHE, 1985: 1-34). Sendo assim, a hipótese da infiltração pacífica de pastores seminômades foi a única a sobreviver com relativo sucesso. Tal hipótese passou por uma reformulação recente, desencadeada por vários investigadores, especialmente por parte de Israel Finkelstein que concebe as origens de Israel na história demográfica de longa duração da Palestina, uma história que começa no fim do IV milênio a.C. e que, com avanços e retrocessos demográficos (que implicam uma dinâmica de sedentarização e nomadização das comunidades de acordo com eventos climáticos, como secas prolongadas ou outros, por exemplo, de caráter bélico ou de crise social interna) se estende até fins do segundo milênio a.C. (FRITZ, 1996: 63-121; DEVER, 2003 e KILLEBREW, 2005: 149-196)11. Se nos dispomos a apresentar um cenário geral sobre o estado da questão da história de Israel na Palestina, podemos afirmar o seguinte: existe um período de “pré-história” de 11  Veja-se, no entanto, Thompson, 1978: 2-43; 1992: 1-13 e 127-70; Lemche, 1996: 9-34; Finkelstein, 1991: 47-59; 150-178 e 11-27; Weippert, 1991: 341-390; Whitelam, 1994: 57-87.

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Israel (séculos XII-X a.C.), do qual podemos dizer muito pouco em termos de identificação étnica, e colocando de lado o testemunho da Estela de Merneptah onde aparece por vez primeira o nome “Israel”, não sabemos como se identificavam os habitantes das terras altas da Palestina12. Por outra parte, uma história de Israel propriamente dita dificilmente começa com a Monarquia Unida de Davi e Salomão. De acordo com I. Finkelstein e N. A. Silberman, a região palestina do século X a.C (época em que se costuma situar o império de Davi e Salomão tal como se descreve na Bíblia) estava habitada nas terras altas unicamente por conjuntos de povoadores recentemente sedentarizados, organizados a partir de laços de parentesco, com uma economia pastoril e também baseada na horticultura e com instâncias políticas de caráter tribal. Em contraponto à historiografia de uma geração atrás, hoje em dia não se pode identificar exclusivamente a origem desta população com os hab/piru das cartas de El Amarna, no entanto, tampouco se pode descartar que elementos associados a essa categoria sociológica tenham incorporado-se à população que aparece nas terras altas da Cisjordânia nos últimos séculos do segundo milênio a.C. A zona setentrional da Palestina (Samaria) possuía um componente maior de sedentarismo e atividade agrícola, ao passo que a zona de Jerusalém estava composta por um número maior de atividade pastoril e um baixo sedentarismo. De fato, a cidade de Jerusalém neste período parece ter sido uma aldeia de cerca de 2.000 habitantes e não uma cidade imperial tal como descreve a Bíblia nos livros de I e II Reis (FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2001). A história sociopolítica de Israel começa com o reino de mesmo nome na zona de Samaria, que teve seu apogeu entre 900 e 722 a.C. Por 12 

Veja-se no geral, Lemche, 1998.

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sua vez, a região da Judéia, com Jerusalém como Capital, parece ter se desenvolvido plenamente entre 700 e 600 a.C. (THOMPSON, 1992a: 410-412; KNAUF, 2005: 164-188 e WARBURTON, 2005: 317-335). Temos então como resultado a existência separada de dois pequenos reinos13 usualmente sob domínio imperial estrangeiro: o reino de Israel floresceu em princípios do século IX a.C., possivelmente vinculado ao controle das rotas caravaneras árabes que dirigiam o comércio inter-regional de longa distância neste período da história do antigo Oriente Próximo (PFOH, 2009: 173-181). A expansão do império assírio em direção à Síria-Palestina teve uma demonstração efetiva com a batalha de Qarqar (Síria) em 853 a.C., que o enfrentou com uma coalizão de reinos levantinos, entre os quais se encontra a Casa de Omri (nome dado a Israel nas fontes neoassírias). Os assírios estabelecerão seu domínio efetivo na região em meados do século IX a.C. e Israel será parte desse império, perdendo toda sua autonomia, até o momento em que sua capital, Samaria, seja conquistada em 732 e logo destruída em 722 a.C. (Idem, 182-185). A historiografia tradicional de Israel costuma ignorar o destino dos habitantes desta região logo da destruição da cidade, no entanto, se considerarmos a demografia tal como a revela o registro arqueológico, torna-se evidente que o campesinato do reino de Israel (ao menos uns 90% de sua população) prosseguiu vivendo na região sob o domínio dos novos amos assírios, em vez de serem enviados ao exílio tal como relata a Bíblia (2 Reis 17) (ZERTAL, 2003: 377-412 e HJELM, 2004). O reino de Judá aparece na arqueologia da Palestina em fins do século VIII a.C., possivelmente relacionado a destruição Dizemos “reinos”, e não “Estados” ou “Estados-nação”, como se costumava conceber a organização sociopolítica de Israel e Judá, posto que o caráter tribal destas formações sociopolíticas é marcadamente visível, por sobre qualquer indício de prática estatal; ver a discussão em E. Pfoh, 2009: 87-112. 13 

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de Samaria em 722 e da cidade de Laquish em 701, a qual era um centro comercial da região e cujo lugar agora ocuparia Jerusalém (THOMPSON, 1992a: 292 e 410-411 e FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2001: 243-246). O século VII a.C. foi o século de ouro do reino de Judá sob o domínio assírio (THOMPSON, 1992a: 410-412; KNAUF, 2005 e WARBURTON, 2005). Com a expansão do império neobabilônico na região, o reino de Judá será submetido e logo destruído em princípios do século VI a.C., levando a elite ao exílio na Babilônia (LIPSCHITS e BLEKINSOPP, 2003). Os períodos seguintes da história da Palestina parecem ser o cenário no qual os escritos do Antigo Testamento serão produzidos e no qual se dará a forma que atualmente conhecemos. O período persa (séculos V-IV a.C.) verá a aparição de coletividades sócio-religiosas vinculadas ao culto a Yahweh, não somente em Jerusalém mas também na Samaria, no Egito (Elefantina e Leontópolis), na Líbia (Cirenaica) e na Transjordânia (Araq El-Emir) (Idem). No período helenístico (séculos IV-II a.C.) florescerão as escolas de teologia do judaísmo e será no período romano (séculos II a.C – II d.C. aproximadamente) que os judaísmos da região produzirão a canonização dos textos bíblicos com muitas das características que conhecemos atualmente. Um exemplo de importância reside na revolta contra o poder selêucida em 167 a.C. por parte dos macabeus e a instauração da teocracia asmonea, com a reestruturação do templo de Jerusalém em 164 a.C., estabelecendo essa cidade como o único lugar de adoração a Yahweh (suplantando os demais lugares do Oriente Próximo, especialmente Samaria) (THOMPSON, 1999: 190-199 e HJELM, 2004). Tendo em mente o relatado, torna-se evidente que a história da religião de Israel também deve ser submetida a uma reavaliação. Sem dúvida, existe um culto a uma di-

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vindade chamada Yahweh em princípios da Idade do Ferro, tal como demonstra o registro epigráfico. No entanto, este culto está longe de ser monoteísta, portando uma forte carga do politeísmo cananeu do período anterior (NIEHE, 1998 e STAVRAKOPOULOU e BARTON, 2010). De fato, em sua origem Yahweh está caracterizado como mais um deus do panteão siro-palestino e será somente em fase posterior que tal divindade incorporará os distintivos que possui no Antigo Testamento. Dessa forma, em linhas gerais, é entre os séculos IX e V a.C. que se pode observar um processo de “monoteísmo inclusivo” na região, vinculado, com efeito, a expansão do imperialismo assírio, onde Yahweh representa instâncias divinas únicas mas que podem ser encontradas em outras manifestações do religioso. Será precisamente no período do século V ao século II a.C. que florescerá um “monoteísmo exclusivo”, segundo o qual Yahweh é o único deus do universo, sendo as outras manifestações ídolos ou falsos deuses, tal como se denuncia no Antigo Testamento através dos profetas bíblicos ou nas palavras do próprio Yahweh (THOMPSON, 1995: 107-124 e 1999: passim). Se nos propomos a emitir uma consideração geral, uma síntese, é possível afirmar que em nossos dias a história de Israel já não pode ser percebida como um evento único na história do antigo Oriente Próximo, especialmente quando tomamos por base posturas tão tradicionais (KAISER, 1998; LONG e WENHAM, 2002; PROVAN, 2003; KITCHEN, 2003 e HOFFMAIER e MILLARD, 2004), como também “centristas” (LIVERANI, 1999: 488-505 e 2003: 323-342; FINKELSTEIN e MAZAR, 2007; GRABE, 2007 e GARBINI, 2008) ou muito mais radicais (COOTE e WHITELAM, 1987; LEMCHE, 1991 e 2008; DAVIES, 1992 e 2008; THOMPSON, 1992A e PFOH, 2009) no espectro das aproximações historiográficas.

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O relevante trabalho arqueológico dos últimos quarenta anos, tanto no âmbito de sítios particulares como através de explorações de superfície de alcance regional, tem demonstrado que não existe uma confirmação histórica dos processos sociais que aparecem nos relatos bíblicos. Na realidade, a história passível de ser reconstruída é essencialmente distinta da narrada no Antigo Testamento. Isto não deveria nos surpreender posto que a ontologia bíblica que concebe o transcorrer social de Israel não pode nem deve estabelecer-se como esquema epistemológico de reconstrução histórica moderna. A Bíblia representa o testemunho teológico da experiência religiosa de comunidades da antiga Palestina (entendendo Israel como aquele que adora a Yahweh). No entanto, os historiadores falhariam em sua metodologia ao adotar acriticamente a narrativa bíblica para reconstruir a história de Israel na região, sobretudo porque tal narrativa constitui, antes de mais nada, a maneira como os benei Yisrael percebiam seu passado. Frente a isso as fontes epigráficas e arqueológicas detêm a primazia na tarefa historiográfica. De acordo com tais fontes, os reinos de Israel e Judá na Idade do Ferro devem ser compreendidos como parte menor de uma história regional da Palestina na antiguidade. Em suma, a possibilidade que encontra o historiador crítico é a de falar de uma “história da Palestina” ou de “uma história de Israel na antiga Palestina”, mas já não mais de uma história do antigo Israel devido às conotações historiográficas, calcadas em velhos paradigmas, que tal terminologia representa.

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4. Artistas e Artesãos na Mesopotâmia - entre mito e história

Katia Maria Paim Pozzer Universidade Luterana do Brasil

Na Mesopotâmia, a atividade artesanal estava fortemente integrada à representação do mundo. O mito de Enki e Inanna, um texto datado do final do III milênio a.C., com cerca de 800 versos, narra o surgimento da civilização na cidade de Uruk e relaciona alguns métiers artesanais dentre as atividades humanas da maior importância (BOTTÉRO e KRAMER, 1993). Neste mito, o deus Enki1, o mais inteligente e astuto dos deuses, que havia descoberto e ajustado todas as prerrogativas da civilização, como as instituições, as técnicas, as boas maneiras e as havia materializado em talismãs mágicos, guardava-os secretamente na sua cidade-templo de Eridu. Um dia a deusa protetora da cidade de Uruk, Inanna2, que vivia em condições de grande austeridade, veio fazer-lhe Enki, o deus da sabedoria, o criador do Homem, era, também, o protetor das atividades artesanais. 2  Inanna, em sumério, Ištar, em acádico, era a deusa do amor e da guerra (Pozzer, 2007). 1 

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uma visita, aparentemente de cortesia. Seguindo a regra de hospitalidade mesopotâmica, Enki oferece-lhe um belo banquete, regado a muita cerveja e vinho: Na mesa sagrada, na mesa celeste, ele desejou as boas-vindas à Inanna! E Enki, lado a lado, em seu templo, entornou cerveja e bebeu vinho, seus cálices cheios, brindaram pelo céu e pela terra, sorvendo sem pressa! (BOTTÉRO, 1992:111)

Enki, aturdido e embriagado é tomado de uma súbita e imensa generosidade. Ele decide oferecer um presente a Inanna, que com habilidade e perspicácia havia insinuado um pedido: o tesouro completo de seus valores culturais, tudo o que representava a Civilização. Assim que os recebeu, a deusa partiu imediatamente de volta para sua cidade. Logo após a partida da deusa, depois que os efeitos da cerveja e do vinho já haviam se dissipado, Enki procura nervosamente, em toda a parte, seus talismãs sem encontrá-los. Ele não mais se lembrava do que havia feito, de os haver presenteado à sua convidada, então, um de seus servidores lembra o fato. Enki sai apressadamente na perseguição de Inanna para retomar seus tesouros, mas é tarde demais, ele avista, ao longe, o barco de Inanna se afastar no horizonte. Assim o mito explica como a cidade de Uruk conquista os princípios da civilização e do desenvolvimento cultural apropriado de Eridu.

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Figura 1: Representação da deusa Inanna. Fonte: Foto da autora, BM, 2011.

Dentre estes tesouros culturais encontravam-se as diversas profissões, com especial destaque aos artistas/artesãos: a técnica do metal, da escrita, da fundição, do couro, da lã, da arquitetura, da madeira, o saber-fazer, etc. (BOTTÉRO e KRAMER, 1993: 235). No Antigo Oriente Próximo não havia distinção entre arte e artesanato, entre artista e artesão, mas o resultado do trabalho artesanal poderia ser apreciado como uma obra de arte, no sentido moderno do termo. Isto é possível quando ele transcende o objetivo estrito para o qual ele foi produzido e provoca uma reação emocional no observador e quando se pode identificar um padrão de design de inspiração individual (BIENKOWSKI e MILLARD, 2000: 33). Outra característica é que os artesãos mesopotâmicos nunca assinavam suas obras e, com exceção de algumas inscrições em tumbas e documentos administrativos, não foi possível identificar o nome de nenhum artista, diferentemente da prática dos artistas antigos no mundo clássico. Os artesãos eram chamados, em acádico, de mâr ummiânum, mas não havia uma palavra para designar “artista”. Os

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artesãos eram classificados, juntamente com outras categorias, em listas sumérias de profissões tais como cantores, escribas, cervejeiros, cozinheiros, barbeiros, etc. Eles trabalhavam agrupados em oficinas dos templos e palácios juntamente com outros artistas. A arte no Antigo Oriente Próximo não teve um estilo único e contínuo ao longo do tempo. Cada período e região apresentou características e desenvolvimento próprios, que estavam condicionados pelo meio ambiente, pelas matérias-primas e pelas influências externas, devidas especialmente, ao comércio de longa distância e às guerras de conquista. Geralmente, os sistemas de representação não eram naturalistas, mas sim idealizados segundo convenções estilísticas com atributos que conferiam sentidos específicos e transmitiam mensagens particulares ao observador. (BORDREUIL, BRIQUEL-CHATONNET e MICHEL, 2008: 40-45).

Quem foram os artesãos?

Muito da literatura, da arte do mundo clássico refere-se à identidade e à habilidade artística de determinados indivíduos. Provavelmente não eram pessoas letradas, mas acredita-se que a maioria deles eram homens livres (awīlû). No Oriente Próximo, os artistas nunca assinam seu trabalho e somente uma parcela pequena das fontes epigráficas fala sobre eles e existem poucas representações plásticas de artesãos na arte antiga oriental. Selos-cilindros dos períodos de Uruk e Jemdet Nasr (3100 a 2900 a.C.) mostram mulheres em situações domésticas com têxteis e cerâmica. Placas de argila do período paleobabilônico mostram um homem esculpindo uma peça de madeira (ROAF, 1991: 125).

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Figura 2: Artesão da madeira. Fonte: BORDREUIL, BRIQUEL-CHATONNET e MICHEL, 2008: 41.

A cultura material de uma civilização pode ser entendida como uma manifestação de sua identidade, assim os artistas-artesãos recriaram o sentido de uma identidade local na sua produção artesanal. A produção artística da Mesopotâmia foi condicionada pelo desenvolvimento tecnológico e pela influência ideológica: sagrada e secular; de prestígio e de subsistência; nativa e importada (OPPENHEIM, 1976: 310). O Cemitério Real de Ur é, sem dúvida, a fonte mais importante, na antiga Mesopotâmia, sobre os objetos de luxo. Centenas de peças, a maioria datando do período Dinástico antigo (2900-2333 a.C.), foram encontradas pelo arqueólogo inglês Sir Leonard Wooley, entre 1922 e 1934. Foi exumada uma grande quantidade de joias, armas, e recipientes fabricados com metais preciosos, instrumentos musicais e outras peças decorativas e todos estes objetos funerários demonstram o altíssimo padrão da produção artesanal e artística na Mesopotâmia (BAHRANI, 2000: 1636).

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Figua 3: Joias de Ur. Fonte: Foto da autora, BM, 2011.

As joias eram usadas na vida cotidiana da Mesopotâmia antiga. A enorme atenção dada aos adornos do corpo, feitos com materiais preciosos, tanto para a vida, como para a morte, está refletida na representação artística e literária. As joias não eram somente usadas por homens, mulheres e crianças, mas, também, como acessórios necessários para o culto de imagens de divindades antropomórficas e criaturas híbridas e sobrenaturais. Elas foram confeccionadas a partir de cobre, bronze, prata e ouro, que eram os metais usados na Mesopotâmia. Pedras coloridas foram muito apreciadas, como a malaquita, a hematita e o quartzo pintado com azul e verde no processo de vitrificação (BAHRANI, 2000: 1635). Alguns documentos se referem à entrega de joias como uma troca de presentes entre reis e embaixadores, segundo o protocolo diplomático da época. Textos míticos e poéticos mencionam o emprego de joias, especialmente por mulheres, que as usavam como adorno, em situações festivas ou ritualísticas, como no Hino da Descida de Inanna aos Infernos: Ela equipou-se dos Sete Poderes, depois de os ter reunido e segurado na mão, e ter pego todos, completos para partir! Ela penteou-se com o Turbante, Coroa da Estepe [...]

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ajustou no pescoço o Colar de lazulita; dispôs igualmente sobre a garganta as Pérolas; colocou os braceletes de ouro. (BOTTÉRO e KRAMER, 1993: 277)

Documentos revelam que exímios especialistas eram trocados entre os reis para conferir prestígio à corte. No I milênio a.C., quando as cidades eram conquistadas em batalhas, os artesãos estavam entre a população deportada. Estes artesãos, altamente especializados, trabalhavam para o templo e o palácio, que os contratavam quando necessário (MATTHEWS, 2000: 455). A preocupação de alguns reis e de suas cortes com a exigência da manifestação de sinais exteriores de prestígio e riqueza, estimulou o trabalho artesanal de luxo e a especialização da profissão. Os selos-cilindros confeccionados para o rei ou, ainda, os relevos murais nos palácios assírios de Dûr Šarrukîn ou Nínive testemunham essa prática (HROUDA, 1992: 212). Às vezes, artesãos eram feitos prisioneiros de guerra, mas nunca foram escravizados. Alguns textos do I milênio a.C. nomeiam escravos e artesãos, evidenciando que tratava-se de categorias sociais distintas. Os templos e palácios possuíam muitos escravos e empregavam trabalhadores livres para tarefas que exigiam habilidades específicas. Os artesãos poderiam ter escravos seus e usá-los como assistentes em seu trabalho (MATTHEWS, 2000: 458).

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Figura 4: Ferramentas. Fonte: Foto da autora, BM, 2011.

O estatuto de artesão livre era variável, mas eles recebiam um pagamento pelos seus trabalhos, como nos informa o § 274 Código de Hammu-rabi: Se um awīlum quer contratar um artesão, dará, por dia, como salário de um [...] 5 še de prata3, como salário de um pisoeiro 5 [še de prata], como salário de alguém que trabalha o linho [x še de prata], como salário de gravador de cilindros-selos, [x še de] prata, [como salário] de um construtor de arcos [x še de prata], [como salário] de um ferreiro [x še] de prata, [como salário] de um carpinteiro 5(?) še de prata, como salário de alguém que trabalha o couro [x] še de prata, [como salário] de um cesteiro [x] še de prata, [como salário] de um pedreiro [x še] de prata. (BOUZON, 1987: 216)

No período da III Dinastia de Ur, os artesãos foram considerados como uma categoria social intermediária, os guruš, com liberdade parcial, sob a tutela do Estado. O seu grau de independência é controverso. Nos arquivos da cidade de Isin, do período tardio, os artesãos eram empregados em oficinas em tempo par3 

5 še de prata equivale a cerca de 0,25 gr. de prata.

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cial. Mas não está claro o que eles faziam no restante do tempo, se estavam sob a tutela do poder central ou trabalhavam em seus próprios negócios. Há evidências de que, às vezes, os artesãos negociavam em grupos, mas não podemos garantir a existência de sociedades profissionais (MATTHEWS, 2000: 466). No período paleobabilônico, os contratos requeriam a confecção de selos-cilindros feitos especialmente para a ocasião e os gravadores de selos poderiam atuar como testemunhas da transação, evidenciando, assim, sua respeitabilidade social (POZZER, 2000: 163-174). Na Mesopotâmia, os reis, desde Ur-Nammu (2112-2095 a.C.) até Assurbanipal (668-627 a.C.), foram, muitas vezes, retratados como artesãos, carregando objetos ou ferramentas, em rituais de fundação de templos e palácios. Alguns documentos epigráficos também testemunham esta simbologia, como esta inscrição real de Assurbanipal: Egigunu, o zigurate de Nippur, a fundação a qual foi colocada no coração do oceano, as paredes que tornaram-se velhas e caíram em ruínas, – eu construí esta casa com tijolos cozidos e betume e completei esta construção. Com a arte do deus dos tijolos eu restaurei e fiz ele (zigurate) brilhar como o dia. Eu erigi seu topo como uma montanha e causei seu esplendor e brilho. (ROAF, 2000: 431)

Oficinas e bairros artesãos

Os arqueólogos têm realizado escavações em prédios usados como oficinas, mas a interpretação destas descobertas é difícil. As oficinas tinham instalações fixas, como bancos e prateleiras, fornos e fogueiras que poderiam ter sido usados

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para trabalhar a cerâmica, o metal ou o vidro, ou ainda para cozinhar alimentos. Tanques de água poderiam ter uso doméstico ou utilizados para a fabricação e tingimento de tecidos, couro e cerâmica. Um tanque, descoberto na corte do templo de Inanna, em Nippur, pode ter sido usado pelos escribas para produzirem tabletes de argila (MATTHEWS, 2000: 459). A organização do trabalho nas oficinas reais, documentada nos arquivos de Mari, evidencia que o palácio foi o centro de produção do artesanato em metal, madeira, lã e couro. A maioria dos artesãos recebia o pagamento de uma salário em pesos de prata, roupas e rações alimentares. (BIENKOWSKI e MILLARD, 2000: 81). No período de Akkad, as oficinas do Estado, que na língua suméria era É.GIŠ.KIN.TI e cuja tradução literal significava "a casa do trabalho em madeira", foram estabelecidas sob a direção de um alto funcionário do reino. Sua principal função era garantir o subsídio régio para o embelezamento dos templos, mas a localização exata destas oficinas reais ainda é desconhecida. Acredita-se que as oficinas estatais não tinham uma localização central nas cidades, como as pesquisas arqueológicas na cidade de Larsa puderam evidenciarem algumas de suas estruturas arquitetônicas. As escavações francesas empreendidas em Larsa nos anos 80, permitiram obter um importante avanço no conhecimento, pois elas revolucionaram a ideia e o conceito que se tinha da cidade antiga oriental. Até então, a cidade de Ur era considerada como a principal referência do urbanismo oriental: uma cidade cercada de muralhas, com uma região central de edifícios públicos de grandes dimensões (palácio, templo, prédios administrativos) e um tecido urbano de habitações privadas muito pequenas (com cerca de 20 m2), muito próximas umas das outras, sem pátio ou jardim, com ruelas estreitas e sinuosas e sem diferenciação social entre as moradias.

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As escavações arqueológicas no sítio de Senkereh, antiga Larsa, mostraram uma realidade bastante diferente de Ur. A equipe francesa descobriu uma cidade dotada de um urbanismo particular, composta de bairros sócio-profissionais distintos, dos quais, um deles, residencial, localizado na periferia, abrigava grandes moradias com mais de 800 m2 de superfície (POZZER, 2003: 23). Os resultados publicados por Huot (1991: 5), expli­cam como, a partir de algumas fotografias aéreas, foi possível estabelecer um levantamento preciso da cidade de Larsa (fig. 2). Huot e sua equipe descobriram assim três quarteirões no interior dos quais parecia ser uma evidência das muralhas da cidade: •





um bairro administrativo e religioso, onde estavam situados o templo de E.babbar, o palácio de Nûr-Adad (rei de Larsa de 1865 a 1850 a.C.) e os conjuntos de grandes edifícios; um bairro residencial, onde o povoamento era mais denso e composto de casas no centro, enquanto que na periferia encontravam-se prédios de importantes dimensões; um bairro intermediário, abrigando também moradias e fornos testemunhando uma intensa e importante atividade artesanal.

Vê-se assim aparecer uma verdadeira estrutura urbana, com zonas muito distintas: o bairro administrativo e religioso com os templos e palácios, uma zona de grandes residências na periferia, tudo isto contrastando com o centro, denso e ocupado por pequenas casas e, mais ao sul, uma zona de atividade artesanal.

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Figura 5: Plano da cidade de Larsa. Fonte: HUOT, 1989.

Há evidências de que cada atividade artesanal tinha a sua oficina própria, como a oficina de lã da cidade de Ur. Esta instituição, parte integrante da burocracia da III Dinastia de Ur (2112-2004 a.C.), empregava centenas de mulheres escravas fiando, tecendo e colorindo roupas de lã. A tecelagem era feita em oficinas que empregavam mais de 200 trabalhadores e situavam-se nas aldeias. Seus supervisores deveriam fornecer relatórios anuais ao poder central, na capital, em Ur (BORDREUIL, BRIQUEL-CHATONNET e MICHEL, 2008: 42). A formação profissional dos artistas não está documentada, mas sabemos que eles poderiam atuar como aprendizes nas oficinas. Além disso, na Mesopotâmia, as profissões tinha caráter hereditário, fazendo com que os jovens aprendessem a profissão com suas famílias, como atesta o Código de Hammu-rabi, em seus parágrafos 188 e 189:

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§ 188 Se um artesão tomou um filho de criação4, e lhe ensinou o seu ofício, ele não poderá ser reclamado. § 189 Se ele não lhe ensinou o seu ofício, esse filho de criação poderá voltar para a casa de seu pai. (BOUZON, 1987: 177)

A burocracia administrativa gerenciava o trabalho dos artesãos, encomendava os objetos, pagava o salário e fornecia o material necessário para a realização do trabalho. As oficinas estavam sob controle do Estado e produziam magníficas peças e emblemas religiosos. Toda a sorte de objetos era confeccionada, como por exemplo: anéis, calçados, roupas, armas, instrumentos musicais, carros, barcos, tapetes e portas (MATTEWS, 2000: 464).

Conclusão

A mais importante obra de um artesão mesopotâmico está relatada no mito de Atrahasîs. Nele, o deus Enki concebe a ideia da criação do Homem e comanda sua "fabricação" pelas mãos da deusa Nintu, a mãe dos deuses, a Dama protetora do nascimento e da fertilidade: Enki decretou, então, uma purificação com banho, e o deus Wê, que tinha "o espírito", foi imolado em plena assembleia. À sua carne e seu sangue Nintu misturou a argila, para que fossem associados de deus e de homem, reunidos na argila. E que os deuses assim fizeram, pela carne do deus houve, também, dentro do Homem, um

O Código de Hammu-rabi discute aqui a prática da adoção de pessoas adultas. (Pozzer, 2000). 4 

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"espírito" que se manifestaria sempre vivo (mesmo) depois de sua morte. (BOTTÉRO e KRAMER, 1993: 537-538)

O texto evidencia, de maneira simbólica, importantes práticas culturais dos antigos mesopotâmicos. A concepção da criação do homem é do deus Enki, o deus da sabedoria e da astúcia e protetor das atividades artesanais, mas a produção deste novo ser é realizada por mãos femininas que trabalham a argila, a deusa Nintu, que é a parteira do mundo divino. A argila, a principal matéria-prima da Mesopotâmia é o material usado para a criação deste novo ser, mas, para que o homem tivesse inteligência necessária para realizar todas as tarefas que lhe foram designadas pelos deuses, era preciso ter uma porção divina. Assim, carne e sangue do deus Wê, aquele que tinha o "espírito" foram misturados à argila para que, desse amálgama, surgisse o Homem. Neste texto, a produção artesanal mais comum e corriqueira, a fabricação da cerâmica, adquire o sentido mais elevado do saber-fazer na mitologia mesopotâmica – a criação da humanidade.

Bibliografia

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5. De Ur a Atenas: difusão de tradições musicais e organológicas

Fábio Vergara Cerqueira Universidade Federal de Pelotas

O problema da origem na música grega antiga

A pergunta pelo protòs euergétēs pelo inventor, precursor, foi uma questão central na historiografia da música na Antiguidade (KLEINGUNTHER, 1933). Houve sempre o interesse em conhecer os inventores dos instrumentos, modos e gêneros musicais. Entre a lenda e o mito, as atribuições de origem são variadas e recaem tanto sobre divindades, heróis e personagens humanos e históricos. Esta curiosidade histórica ligava-se ao forte caráter identitário associado aos instrumentos musicais na Antiguidade. De forma sistemática, alguns instrumentos são colocados como símbolo étnico grego, como diríamos modernamente, como símbolo “nacional”: este é o caso da lýra, vista como o instrumento grego por excelência. A esta acepção correspondem narrativas de origem, sendo a principal delas a história, contada no “Hino Homérico a Hermes”, sobre o papel deste deus na invenção da lýra, de-

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nominada inclusive de khélys, que nos remete à carapaça de tartaruga usada na feitura do instrumento, conforme relatam os versos do hino. Por outro lado, o mesmo processo de produção de sentido identitário atribui origens estrangeiras ao aulós, seja estrangeiro no sentido geográfico (a Frígia ou mesmo a Líbia), seja estrangeiro no sentido de alteridade da civilização (o dionisíaco, os silenos). Assim, um conjunto de explicações, elaboradas desde a mitologia até a teoria musical, estabelecem a etnicidade grega de aspectos vistos como positivos, tais como a lýra e o modo dórico, ao passo que atribuem proveniência estrangeira a aspectos potencialmente geradores de perturbações, como o aulós e os modos frígio e lídio. Em verdade, os argumentos variam muito de autor para autor. Enquanto Platão (República, 399a) condenava o modo lídio e aceitava o frígio, Aristóteles (Política, VIII, 1342 b) fazia o inverso. Píndaro (Píticas, XII), por sua vez, enaltecia a invenção do aulós pela deusa olímpica Atena, ao passo que outros autores destacavam sua rejeição a esse instrumento e sua adoção ou invenção pelo sileno frígio Mársias, que foi execrado após sua derrota diante de Apolo, o deus citaredo. Bem, a percepção grega da origem de vários componentes da cultura musical está prenhe de preconceitos etnocêntricos e de valores morais. Ao mesmo tempo, porém, guarda possivelmente a memória de um passado distante em que a maioria dos elementos da música grega atravessaram o Egeu provindos de diferentes lugares da Ásia Menor. A sua percepção de origem estrangeira limita-se predominantemente a suposições de origem na Trácia, Lídia e Frígia, com quem mantinham contatos mais imediatos. No séc. IV, provavelmente, a visão predominante já havia sido sistematizada por Aristóxenes de Tarento, que é a fonte principal da famosa passagem de Estrabão (X, 3, 17, 5-19):

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Em razão de suas melodias, de seus ritmos e de seus instrumentos, pôde-se considerar a música como originária da Trácia e da Ásia Menor1. Mas essa paternidade aparece com evidência nos locais dedicados ao culto às Musas. A Piéria, o Olimpo, o Pimpla, o Leibethron são regiões e montanhas que pertenceram nos tempos antigos à Trácia antes de passarem aos Macedônios que os ocupam hoje em dia. O Hélicon foi consagrado às Musas pelos Trácios que se haviam estabelecido na Beócia e foram os mesmos que dedicaram às Ninfas Leibethríades a gruta que leva seu nome. Os precursores mitológicos da música antiga passam por ter sido os Trácios: Orfeu, Museu, Thamyras; o nome lendário de Eumolpos viria igualmente desse país. Quanto àqueles que quiseram consagrar a Dioniso a Ásia inteira até a Índia, eles também mostram passando da Trácia para a Ásia a grande parte dos eventos musicais.

A etimologia de termos musicais gregos aponta que a maioria provém da Lídia: skólion (designador do repertório poético-musical dos banquetes), kithára, lýra, phórminx (instrumentos musicais), nḗtē, mésē (designação de funções na escala), élegos, iambos, dithýrambos e peã (gêneros musicais). Devemos lembrar o lugar de destaque, cultural e economicamente, que a Lídia ocupou no século VII, cujos vestígios podem ser constatados na proverbial riqueza do rei Creso e na tradição que atribui aos lídios a invenção da moeda. A etimologia indica, assim, que a Lídia tenha sido, sobretudo neste período, um foco de difusão de cultura musical. A riqueza da sociedade lídia atraiu músicos e poetas gregos de cidades da costa oriental do Egeu, que mais tarde foram reconhecidos como precursores de várias práticas musicais: entre tantos, Posidônios se refere provavelmente a Aristóxenos, que ele parece seguir em todo esse parágrafo. 1 

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podemos recordar Terpandro de Lesbos, Alceu de Mitilene e Pythermos de Teos. Muitos deles, em sua juventude, frequentaram banquetes promovidos pela luxuriante aristocracia lídia, tendo contato com elementos da cultura musical oriental. Alcman, inclusive, nascera na colônia grega existente em Sardes (LAMBIN, 1992: 219-221).

Origem mesopotâmica da música grega

Nas últimas décadas, porém, a arqueo-organologia e o estudo de tabuinhas mesopotâmicas2 abriram novos horizontes sobre a origem da música grega. Marcelle Duchesne-Guillemin, em seu artigo “Sur l’origine asiatique de la cithare”, de 1935, publicado na revista Antiquité Classique, escrito em co-autoria com o iranólogo e esposo Jacques Duchesne, foi a primeira a sugerir a hipótese de uma origem mesopotâmica da música grega. Baseou-se em observações da semelhança organológica entre as harpas e cítaras sumérias de Ur (fig. 1), datadas do III milênio a.C., e cordófonos presentes no espaço do mar Egeu, desde o III milênio a.C., quando encontramos as estatuetas cicládicas de harpistas (fig. 2). (1) U 3011 (Proceedings of the American Philosophy Society, 115, 1971, p. 1334), de Ur, “babilônico recente” (séc. IV-III) = Filadélfia, University Museum, Babylonian Collection (Iraq, 46, 1984, p. 81-5), de Nippur, “babilônico antigo” ou “médio” (séc. XVIII – XV), fragmento do léxico Nabnitu 32. (2) CBS 10996 (Studies in Honor of B. Landesberger = Assyriology Studies, 16, 1965, p. 264-8 ), de Nippur, ca. 1500, fragmentos de uma lista numérica. (3) U 7/80 (Iraq, 30, 1968, p. 229-33 + Orientalia, 47, 1978, p. 99-104), de Ur, “babilônico antigo” (séc. XVIII). (4) VAT 10101 col. VIII 45-52 (= KAR nº 158: Proceedings of the American Philosophy Society, 115, 1971, p. 137-9), de Assur, “médio-assírio” (séc. XIII-XII), recapitulação de um catálogo de diversos cantos. (5) BM 65217 + 66616 (Iraq, 46, 1984, p. 72-8), de Sippar (?), “assírio recente” (séc. VIII), indicações musicais seguidas de hinos. (6) RS 15.30 + 15.49 + 17.387 (Ugarítica, V, p. 463, nº h. 6; Revue d’Assyriologie et archéologie orientale, 68, 1974, p. 69-82, de Ugarit, séc. XV, hino hurrita com notação musical. 2 

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Figura 1: Face da Paz do Estandarte de Ur3, mostra harpista animando banquete (detalhe). Londres, Museu Britânico. Proveniente de um dos três túmulos do Cemitério Real de Ur. Datado de 2600 a 2400 a.C. Fonte: SPYCKET, 1989: 34-35.

Figura 2: Estatueta de Harpista. Museu Arqueológico Nacional de Atenas, inv. 3908. Mármore de Paros. Proveniente de Keros. Cicládico Recente II (cultura Keros-Syros). Datado de 2800 a 2300 a.C. Fonte: Foto do autor. Conforme Kátia Pozzer (2007: 147, fig.2), “uma caixa de madeira, recoberta de betume, onde foram incrustados fragmentos de lápis-lázuli, conchas e calcário vermelho, com duas faces: a Face da Guerra e a Face da Paz. Acredita-se que este objeto, medindo 47cm de comprimento e 20cm de altura, serviria como uma caixa de ressonância para um instrumento musical. A Face da Paz representa a realização de um banquete com as diversas etapas de sua preparação”. 3 

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A partir da década de 1960, com a divulgação de tabuinhas mesopotâmicas sobre música, publicadas por Anne Draffkorn Kilmer, Marcelle Duchesne-Guillemin e David Wulstan, as suposições de uma origem dos instrumentos de corda gregos na Mesopotâmia foi reforçada pelas revelações acerca da teoria musical “babilônica”, como François Lasserre (1988: 74) prefere identificá-la. A análise dos documentos musicais mesopotâmicos revela, segundo F. Lasserre, três aspectos que evidenciam a filiação da música grega em relação à mesopotâmica:

1. Nome das cordas: Gregos e mesopotâmicos, com um

2.

vocabulário musical distinto, utilizaram o mesmo sistema de denominação das cordas, do qual decorre, em ambos os casos, a designação das funções na escala musical. Em as ambas culturas, os instrumentos de corda têm um papel central na elaboração da teoria musical. Esse parentesco foi constatado pela primeira vez por M. Duchesne-Guillemin, em 1963: a sequência dos nomes das cordas (e, por conseguinte, das notas na escala), apresenta entre os gregos a mesma inversão de sentido que foi estabelecida pelos instrumentistas e teóricos musicais babilônicos entre 1700 e 1500 a.C., ou quiçá anteriormente. Afinação da harpa e cordófonos afins: Com o apoio de teóricos gregos e latinos, como Pseudo-Aristóteles (Problemas 25, 32, 44), Aristides Quintiliano (1, 9), Alípio (p. 368-400) e Anônimo de Bellermann (l. 67), conseguimos interpretar o documento mesopotâmico referente à afinação dos instrumentos de cordas, e concluir que os gregos são tributários do método há muito usado na Babilônia antiga.

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Determinação de tonalidades ou modos: As tabuinhas mesopotâmicas revelam que o sistema de modulação empregado em Atenas a partir da segunda metade do séc. V a.C., pelos músicos de vanguarda provenientes da porção oriental da Grécia (Timóteo de Mileto e Frínis, entre outros) – sistema considerado na época uma renovação por muitos contestada – já era praticado há mais de um milênio na cultura musical paleo-babilônica.

Estes avanços da arqueologia e musicologia do Oriente antigo indicam, assim, que a teoria e a prática musical mesopotâmicas foram transmitidas à Grécia, através dos instrumentos e instrumentistas, do mesmo modo que vários outros aspectos da música (como a função dos intervalos nas modulações e transposições). Se os gregos antigos estabeleciam suas regiões limítrofes (Lídia, Frígia, Mísia e Trácia) como origem de onde foram importados vários aspectos de sua cultura musical, a arqueologia e a assiriologia comprovam que sua origem estava bem mais longe, às margens do Tigre e do Eufrates. Tão-somente a arqueologia, baseada nos estudos organológicos e iconográficos, nos possibilitará descrever melhor a cronologia e as etapas desse longo processo de traslado de uma cultura musical de uma região (Mesopotâmia) a outra (Cíclades, Creta, Micenas, Fenícia, Frígia, Lídia, Trácia). As evidências arqueo-organológicas apresentam diferentes momentos desse processo de assimilação de técnicas musicais, adaptando-as a particularidades regionais, como ocorre no desenvolvimento do fabrico da lýra grega (a khélys de Hermes). Ora, tendo em vista os gregos considerarem a lira de sete cordas o instrumento nacional por excelência, e em torno dela estabelecerem uma série de proposições ligadas à construção da

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identidade étnica, uma polêmica se criou na historiografia helenista sobre esse tema: seria a lira grega de fato um instrumento nacional, aborígene, autóctone? A essa pergunta, a arqueologia, combinada à musicologia, instrumentaliza possíveis respostas, pois tem possibilitado estudos diversos sobre a organologia antiga, mediterrânea e médio-oriental, com abordagens que vão além dos aspectos técnicos de sua construção e usos.

O contributo de Marcelle Duchesne-Gullemin

Neste sentido, gostaríamos de destacar o papel imprescindível da musicóloga Marcelle Duchesne-Guillemin para desnudar aspectos fundamentais na relação tributária da música grega para com a música mesopotâmica (suméria e babilônica), num processo de transmissão e herança cultural de longa duração, cujos indícios distribuem-se em um período de três milênios. Nascida Marcelle Guillemin, em Liège, em 1907, desde cedo traçou um percurso interdisciplinar, aliando a musicologia e a assiriologia. Sob a orientação de Charles van Borren iniciou-se na história da arte e, em especial, na musicologia histórica. Em paralelo, recebia os ensinamentos sobre assiriologia junto a Georges Dossin na Universidade de Liège. Juntou assim as condições para defender, em 1932, sua tese doutoral sobre os instrumentos musicais do antigo Oriente Próximo. Já em 1935, ainda no início de sua longa carreira, que se estendeu até seu falecimento, em 1997, esta notável musicóloga belga assinou, em co-autoria com seu futuro esposo, o iranólogo Jacques Duchesne, o primeiro estudo de que se tem notícia advogando a origem asiática das cítaras e liras gregas. Após seu casamento, assinando suas dezenas de artigos como Marcelle Duchesne-Guillemin deixou seu insubstituível contributo ao desenvolvimento dos estudos da música do Mediterrâneo e

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do Oriente Próximo e Oriente Médio. Não devemos esquecer a grande importância que teve também Jacques Duchesne nos estudos orientais. O que talvez não seja com frequência lembrado é que ambos eram praticantes de música, como bem recorda Anne Draffkorn Kilmer, ao relatar a oportunidade em que os conhecera, na visita que fizeram à Califórnia no início da década de 1960, quando pela primeira vez Duchesne-Guillemin teve contato com o tablete cuneiforme do hino hurrita de Ugarit (Síria), conservado na Filadélfia, que foi uma espécie de Pedra da Rosetta para o desvendamento da música mesopotâmica antiga – e Duchesne-Guillemin, poderíamos dizer, teria sido o Champollion da teoria musical babilônica. Após 30 anos debruçada sobre estudos iconográficos e organológicos dos instrumentos musicais da Mesopotâmia e Egito, os quais lhe permitiam supor a origem dos instrumentos de corda gregos nas margens do Tigre e Eufrates (GUILLEMIN e DUCHESNE, 1935 e DUCHESNE-GUILLEMIN, 1937), a partir do contato com o tablete cuneiforme da Filadélfia abraça os estudos da teoria musical babilônica, o que corroborará sua tese sobre a origem oriental da música grega. Um a um, ela se esforça para decriptar os resquícios do pensamento musical mesopotâmico nos tabletes cuneiformes descobertos nas reservas dos museus de Berlim, de Damas, de Londres e da Filadélfia (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1966). Sem dúvida, a chave para a compreensão deste conjunto de testemunhos sobre a música mesopotâmica se encontra no tablete hurrita, encontrado em Rãs Shamra (Ugarit, Síria), nas escavações empreendidas em 1955 pela missão arqueológica francesa: trata-se de um tablete datado de 1400 a.C., de leitura bastante difícil, cujo conteúdo, inicialmente tido como matemático, foi interpretado, por M. Duchesne-Guillemin, como um conjunto de conceitos musicais que justificariam a existência de uma teoria musical babilônica. O tablete hurrita

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a encoraja a afirmar a descoberta de uma escala babilônica (Idem, 1963 e 1965), o que lhe dará os subsídios teóricos para interpretar os fundamentos da denominação dos tons e cordas na teoria musical grega, possibilitando identificar a origem mesopotâmica do pensamento teórico musical grego (Idem, 1967). Seus estudos fizeram assim surgir uma nova especialização na assiriologia e na musicologia, o estudo da teoria musical e da música da Mesopotâmia antiga. Identificou os fundamentos de uma escrita musical hurrita (Idem, 1975) e um quadro geral da música babilônica (Idem, 1977), arriscando-se até a propor uma reconstituição musical (Idem, 1984), a partir dos esquemas melódicos que depreende da notação musical identificada, e que transcreve para a notação ocidental e submete à interpretação de um coro. Vários estudiosos têm-se se debruçado sobre a decifração da escrita e teoria musical proposta por Duchesne-Guillemin, chegando a resultados variados. Segundo Christian Poché, “o conjunto constitui uma série de hipóteses que leva à questão de se saber se o objeto da pesquisa [a música mesopotâmica] é acessível, ou se permanece desesperadamente inalcançável” (POCHÉ: Dictionnaires des Orientalistes de Langue Française). Aliando os estudos iconográficos, organológicos e musicológicos, retomará mais tarde, com novos argumentos, o tema da origem suméria da cítara grega (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1984a). Após seu falecimento aos noventa anos de idade, com mais de seis décadas dedicadas a desbravar a música antiga, seu legado foi publicado pelo editor belga Peters, que lhe consagrou o compêndio Monumentum Marcelle Duchesne-Guillemin (1999). Anne Drafkorn Kilmer (2002), responsável pela primeira publicação do tablete cuneiforme conservado no museu da Universidade da Filadélfia, reconhece o papel decisivo de M. Duchesne-Guillemin:

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Foi um dos primeiros pesquisadores a se dedicarem a reconstrução das escalas e teoria musical babilônica antiga. Foi o primeiro scholar a explorar e explicar a significação musicológica da sequência de pares de números das cordas musicais em um texto cuneiforme do primeiro milênio AEC, escavado no sítio arqueológico de Nipur, no Norte do Iraque. Ela foi capaz de demonstrar que o tablete apresentava duas séries de intervalos em uma escala musical; que os intervalos musicais de quintas, quartas, terças e sextas eram conhecidos naquela época; e que as evidências para uma escala heptatônico-diatônica mesopotâmica eram muito fortes. Foi também um dos poucos pesquisadores a tentar interpretar a instrução musical encontrada em um tablete cuneiforme (de meados do segundo milênio AEC), da antiga Ugarit (moderna Rãs Shamra) na Síria, o qual continha um hino, quase completo, escrito na língua hurrita, mas com instruções musicais em acadiano.

Kilmer destaca o quanto ela compensou sua falta de treinamento nos cuneiformes com um “escrutínio rigoroso das representações iconográficas dos instrumentos musicais e das fontes textuais disponíveis. Faltaria reconhecer que foram indispensáveis os seus sólidos conhecimentos de musicologia, compartilhados com seu parceiro de vida, intelecto e música, o iranólogo Jacques Duchesne, conhecimentos ausentes a outros assiriólogos de então.

Decifrando a origem mesopotâmica dos cordófonos gregos

A título de tributo à contribuição de Marcellle DuchesneGuillemin ao estabelecimento de novos paradigmas sobre as relações de transmissão entre a cultura musical mesopotâmica e grega, gostaria aqui de retomar seus argumentos e apresentá-

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-los ao leitor brasileiro. Refiro-me aqui aos argumentos sistematizados em seu artigo de 1967, Survivance orientale dans la Designation des Cordes de la Lyre en Grece?, publicado na revista Syria. Considero este artigo um divisor de águas, merecedor de destaque na historiografia da música grega e mesopotâmica antiga, ao mesmo tempo em que vejo nele uma peça fundamental no quebra-cabeça dos estudos da transmissão cultural do Oriente para o Mediterrâneo. A musicóloga, arqueóloga e iconografista belga se propôs estudar a origem dos instrumentos de corda gregos, como a lira e a cítara, através de uma pesquisa sobre a origem da denominação das cordas, realizada com base na intersecção de diferentes tipos de registros documentais: os textos literários tradicionais, a teoria musical e os achados arqueológicos (iconografia e vestígios de instrumentos). Critica a abordagem desse problema feita numa “perspectiva limitada demais à tradição filológica” (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1967: 238), pois coloca falsos problemas. O caminho tradicional limitava-se a uma especulação etimológica (dos termos usados pelos gregos para denominar suas cordas e notas), combinada a uma exegese sobre a visão nativa (grega) da origem desses termos. Um exemplo citado é o notável livro de H. Husmann, Grundlagen der antiken und orientalischen Musikkultur ,1961, em que esse autor “expõe em detalhe a gênese dessas noções [denominações das cordas e notas] [...], colocando-se de antemão na perspectiva dos teóricos antigos, supondo, inclusive [o que hoje não pode mais ser aceito], que os instrumentos gregos tinham inicialmente três cordas, por causa dos três nomes característicos.” (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1967: 234) Os limites da tradição filológica o levaram a cometer os mesmos erros de autores clássicos, como Reinach e Sachs,

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como bem demonstra Duchesne-Guillemin, baseada em referências arqueológicas. A hipótese de que a lira grega antiga foi evoluindo do período arcaico ao clássico com o acréscimo de cordas (detalhada em REINACH, 1919: 1444-1445) não se sustenta sobre um estudo atento das representações iconográficas e vestígios arqueológicos. A visão ‘nativa’ sobre a evolução dos instrumentos, da qual podemos encontrar uma descrição quase minuciosa na obra de Ateneu e Plutarco (De Musica), não corresponde ao que nos revela a arqueologia, pois “os instrumentos de três cordas foram raramente representados e nunca na época mais antiga; de qualquer forma, sua existência na época história não tem a ver com ser uma origem das versões de lira mais complexas, pois depois da descoberta de Michael Ventris (1922-1956) e John Chadwick4, vemos que, desde os tempos micênicos, eram já os gregos que utilizavam a cítara de sete cordas ou mesmo de oito, seja em uma forma mais ornada, como a cítara do afresco do palácio de Pylos (fig. 3), imitando o instrumento cretense (fig. 8), seja em uma forma simples, como a pequena cítara votiva de Amykles5 do micênico tardio, que se parece ao pequeno tipo fenício ou hitita.” (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1967: 235) A cerâmica micênica sugere uma disseminação peloponésica do tipo de cítara representada no afresco de Pylos. (fig. 4) Responsáveis por iniciar a decifração do Linear B, entre 1951 e 1953, abandonaram o paradigma estabelecido por Arthur Evans, desde a descoberta de Knossos, de que o Linear B seria uma escrita usada para registrar a língua cretense (minoana). Ventris e Chadwick comprovaram que a língua nos sinais do Linear B se tratava já de uma forma de língua grega, depreendendo-se daí que o mundo micênico poderia ser considerado, do ponto de vista linguístico, como grego. 5  Proveniência: Amycles, ao sul de Esparta. Micênico Tardio. Datada de 1300-1200 a.C. Fonte: Duchesne-Guillemin, 1967: 235. Amykles é um povoamento micênico, do final da Era do Bronze, localizado ao Sul de Esparta, na planície do rio Eurotas, cujo sítio situa-se na mesma área em que se encontra a moderna Amykles. 4 

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Figura 3: Afresco micênico com citarista (Orfeu?) e pássaro. Museu Arqueológico de Chora Messênia, inv. 43 H 6. Proveniente da sala do trono do Palácio de Nestor (parede nordeste), em Pylos. Heládico Tardio (Micênico). Datado do século XIII a.C. Fonte: ANDRIKOU, 2003: 120, n. 18.

Figura 4 :Ânfora cretense com representação de lira. Ânfora com três alças. Hagios Nikolaus, Museu Arqueológico, inv. AE 1102. Proveniente de Lasithi, em Sitia. Minoico tardio. Datado de 1380-1300 a.C. Fonte: ANDRIKOU, 2003, p. 125, n. 22.

As evidências materiais nos induzem à conclusão de que instrumentos de poucas cordas aparecem em todas as épocas, o mesmo ocorrendo com os de muitas, cujo exemplo

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paradigmático seriam as liras sumérias hendecadordes (fig. 5), dodecacordes (fig. 1, cítara babilônica) ou pentadecadordes6 encontradas em Ur, datadas de aproximadamente 2550 a.C.

Figura 5 – Harpa de Ur, com detalhe em forma de cabeça de touro. Londres, Museu Britânico, inv. 121199. Proveniente das tumbas reais de Ur. Meados do terceiro milênio. Fonte: SPYCKET, 1989, p. 32-33.

A análise filológica, em síntese, permite concluir que há uma tendência a coincidirem os nomes das cordas e notas. Sabemos que havia oito nomes de cordas que se aplicavam, no século IV a.C., às oito notas da escala que tinha por limite uma oitava diatônica completa, compostas de dois tetracordes 6 

Lira de Ur, Museu da Universidade da Pensilvânia, Filadélfia, séc. XXVI a.C.

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disjuntos (diezeûgmenon). Ora, os nomes das notas que ultrapassavam a extensão das oito notas, empregadas nos grandes “sistemas” musicais (que atingiam até 15 ou 16 tons), foram formados de maneira bastante rudimentar com a ajuda de índices que apontavam a posição dessas notas em relação à oitava diatônica conjunta inicial. A etimologia possibilitou vislumbrar uma aparente contradição em alguns termos: “a hýpatē (tom mais grave) em seu sentido extra-musical não quer dizer ‘grave’ e mesmo a nḗtē não significa ‘mais agudo’; o homérico neatos, com feminino neatē e contrato nḗtē, quer dizer o ‘mais baixo’, e hýpatos o ‘mais alto’.” (DUCHESNE- GUILLEMIN 1967:234). As fontes literárias não nos permitem ir muito mais longe. Marcelle Duchesne-Guillemin opta por tratar o tema tomando uma dimensão geográfica e cronológica mais ampla, entendendo que a cultura musical grega seja tributária de uma cultura de origem oriental, que acompanhou o caminho das trocas - materiais e simbólicas – entre as antigas civilizações do Oriente Próximo, algumas das quais sequer imaginadas pelos gregos. A arqueologia oferece provas irrefutáveis para essa tese, pois, sem embargo das variações regionais de lutherie, os elementos estruturais se repetem: A cítara não foi inventada pelos gregos; instrumentos semelhantes, formados de um plano de cordas paralelamente tendidos sobre um corpo ressonante, e partindo de uma peça de amarração embaixo, para se fixar em cima a uma travessa segurada por dois braços verticais, são conhecidos em todo o Oriente Próximo, bem antes da aurora da civilização grega. Os musicólogos os classificam com o nome genérico de liras. Pode-se remontar no passado do tipo kithára até um protótipo mesopotâmico. Se a forma das grandes liras de Ur (fig. 1 e fig. 5) é ligeiramente diferenciada por uma ornamentação animal na frente

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da caixa de ressonância, vemos que essa característica desaparece na idade babilônica: a bela terracota de Ischiali7 (fig. 6) mostra bem que se trata do mesmo instrumento simplificado, herdado de uma cultura suméria e que se expandiu na Síria, no Mitani, na Ásia Menor e finalmente na Grécia (fig. 7), bem como no Egito e em Creta (fig. 8), onde foi adotada desde o séc. XV. Cada um que o assimila, o ornamenta ou modifica conforme seu gosto: caixa aprofundada ou reta, braço mais ou menos curvo, cordas iguais ou desiguais, são somente variações de um mesmo tema. Detalhes tipicamente semelhantes são encontrados: compare-se a peça de fixação, à base das cordas na placa de Ischiali8 e no bronze do Museu de Candia9. Esses instrumentos mostram o emprego de cordas numerosas (até 15 em Ur), desde o terceiro milênio; mas é bom observar que os espécimes com poucas cordas (4, 5, 7 ou 9) foram sempre preferidos, em todas as épocas. (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1967: 238-240)

7  Sítio de Tell Ischiali, no Iraque, junto ao rio Diyala, afluente do Tigre, onde se situava a antiga cidade Nerebtum ou Kiti, sob domínio do reinado de Eshnunna. 8  Fragmento de placa de terracota com cítara babilônica. Proveniência: Tell Ischiali, Isin-Larsa. Babilônico Antigo. Fonte: Duchesne-Guillemin, 1967: 240. 9  Museu Arqueológico de Candia, em Creta.

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Figura 6: Harpa paleobabilônica10. Placa de terracota de Tell Ischiali (12,3cm x 7,7 cm). Instituto Oriental, Universidade de Chicago. Babilônico Antigo, em torno do séc. XIX a.C. Fonte: Fink, N.A. History of the Ancients. Near Eastern Art. Gallery 1. Mesopotâmia. Extraído em 13/09/2011.

10  Apesar de a harpa ser um instrumento conhecido desde o início história suméria, o harpista da terracota de Ischiali está bem caracterizado como um musicista do início do segundo milênio, em razão de sua touca justa e do vestido com franjas. São muito comuns as placas de terracota deste período que retratam instrumentos de corda, percussão ou sopro. A produção de placas era uma forma simples e barata para se obter imagens em relevo. As placas de terracota, feitas a partir de moldes, eram um modo simples e barato para se produzir imagens em relevo, razão pela qual podiam ser feitas inúmeras cópias. A popularizão desta versão babilônica das harpas de Ur, em padrão mais simplificado, pode ser testemunhada por terracotas contemporâneas ao exemplar de Ischiali conservado na Universidade de Chicago, como a terracota de Paris, Louvre AO 12454, proveniente de Eshnunna, de menor tamanho, medindo 8,4cm x 8,9cm (fonte: © Marie-Lan Nguyen / Wikimedia Commons).

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Figura 7: Fragmento de ânfora com músico tocando lira. Nafplion, Museu Arqueológico, inv. 14376. Proveniente provavelmente de Tirinto. Heládico Tardio. Datado do século XII a.C. Fonte: ANDRIKOU, 2003, p. 124, n. 21.

Figura 8: Sarcófago minoico de Hagia Triada com cenas de ritual (detalhe com cítara). Iraklion, Museu Arqueológico, inv. M.H. 396. (1,28m x 0,45m x 0,90m). Proveniente da necrópole de Hagia Triadade, em Creta (Túmulo 4). Minoico tardio. Datado de 1420-1300 a.C. Fonte: ANDRIKOU, 2003, p. 114, n. 13.

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Todavia, o objetivo de Duchesne-Guillemin não é somente estabelecer que a lira e a cítara são instrumentos herdados do Oriente: há elementos que insinuam que a musicalidade grega guarde uma memória da teoria musical babilônica, os quais são averiguáveis na comparação de documentos referentes às escalas e à denominação das notas e cordas. Quanto à terminologia dos instrumentos, diferentemente do que ocorre nos textos gregos, o corpus documental babilônico conhecido é bastante pobre em referências; todavia, no que concerne ao nome das cordas, estamos, felizmente, melhor informados, graças a duas tabuinhas particularmente preciosas11. A primeira, de Oxford, fornece o nome de nove cordas; a segunda, da Filadélfia, permite situar essas cordas, que são nomeadas de forma bastante particular, partindo das duas pontas do instrumento. A tabuinha da Filadélfia, dando uma dupla numeração, permite compreender uma curiosa e inesperada forma de contar as cordas, pois a contagem pode ser feita nos dois sentidos: I corda – chamada corda “da frente” II corda III corda – chamada corda “fina” IV corda – chamada corda “feita para o deus EA” V corda IV corda posterior – ou corda VI III corda posterior – ou VII corda II corda posterior – ou VII corda (por dedução a partir dos dois casos precedentes) I corda posterior – ou IX corda

Oxford, Ashmolean Museum, U3011; Filadélfia, Museu da Universidade da Pensilvânia, C.B.S. 10996. 11 

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Ora, essa tabuinha nos revela uma lição bastante coerente de intervalos musicais, que indica um desenvolvimento da teoria musical muito mais remoto do que se pensava – esse escriba babilônico do séc. XV redigiu o que poderíamos considerar o mais antigo ‘tratado musical’ da humanidade! O estudo comparado dessas tabuinhas e da tabuinha de Berlim, cujo sentido só foi entendido após a reconstituição de Marcelle Duchesne-Guillemin (1965: 268), ampliou os horizontes de nossos conhecimentos sobre a música mesopotâmica, permitindo a reconstituição da escala utilizada para se tocar um instrumento como a lira representada na terracota de Ischiali (fig. 6) Interessa-nos, porém, para o melhor entendimento do pensamento musical grego, destacar alguns aspectos que permitem “costurar um parentesco entre a teoria dos Gregos e aquela dos Babilônicos” (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1967:242). Por exemplo, a sequência dos nomes das notas, entre os gregos, apresenta também uma inversão análoga àquela encontrada na tabuinha da Filadélfia. Entre os gregos parece haver dois sentidos na ordem de nomeação das notas: hýpatē - perhýpatē - lýchanos - mésē - paramésē - trítē - paranḗtē - nḗtē (o prefixo “para” indicando algo que se segue, o sentido é: da hýpatē à paramésē, e, inversamente, nḗtē à trítē)

A semelhança entre o sistema grego e babilônico não pode ser em geral evidenciada nos nomes das notas em si, pois termos como lýchanos, hýpatē e nḗtē não têm correspondente. Todavia, algumas observações podem ser feitas sobre a mésē:

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i.

ii.

A mésē corresponde à quarta corda. Na série babilônica, a quarta corda é atribuída ao deus Ea, criador das artes12. A quarta corda, do deus Ea, que dá nome à quarta nota, é tomada como centro da teoria musical; essa nota, no entanto, não está no centro da oitava, da mesma forma que a mésē grega não é o centro dos dois tetracordes disjuntos. Sabemos como a posição descentrada da mésē intrigou aos teóricos gregos, como nos testemunham os Problemas musicais do Pseudo-Aristóteles (25, 32, 44).

Marcelle Duchesne Guillemin identifica um processo de difusão cultural, que teria a cidade suméria de Ur como possível centro difusor, fundamentando-se ainda em alguns outros aspectos, componentes de um conjunto de dados comuns entre a teoria grega e babilônica, que dificilmente se deve a uma coincidência.

Considerações Finais

Não se pode demonstrar um processo contínuo de transmissão cultural entre a Suméria e a Grécia. É possível, porém, pontuar alguns de seus momentos. A escala encontrada na tabuinha babilônica é aquela que os gregos chamaram de lídia. Filho de Anu (ou de Nintu, no panteão sumério) e marido de Damkina, tido como pai de Marduk, era considerado o deus da sabedoria, da escrita, das artes e artesanatos, bem como das águas, da construção, da magia, do plantio, e até mesmo do trabalho humano. Conhecido como “Senhor da Sabedoria” ou “Senhor dos Encantamentos”, o que Ea falasse, tornava-se realidade. Essa relação da música com a sabedoria (Musas), com a escrita (Hermes) e com a magia, permanece na cultura grega, como testemunham a tradição mitológica e intelectual. Na Grande Tríade, Ea é o terceiro deus, junto a Anu e Enlil. 12 

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As inferências que podemos fazer, com base numa justaposição da arqueologia e da teoria musical, seguindo uma análise comparada dos registros gregos e babilônicos, nos sugerem que essa escala lídia vem de muito mais longe do que a Lídia e de uma antiguidade muito mais recuada do que se imaginava. Se a escala remontar à época em que foi redigida a tabuinha da Filadélfia, podemos então supor até uma origem suméria assaz anosa: A tabuinha é datada do séc. XV pela sua escrita, mas uma teoria é sempre codificada certo tempo depois de seu advento na prática. Além disso, na história da civilização sumério-babilônica, copiaram-se sempre as tabuinhas de todas as épocas, para constituir os arquivos. A teoria [expressa na tabuinha da Filadélfia] repousa sobre o emprego de um instrumento de nove cordas; ora, sabemos que em Ur, em torno de 2.550 a.C., já se tinham liras e harpas de 11 a 15 cordas; isso pode fazer a nossa teoria remontar a um período muito mais antigo [do que a data atribuída à tabuinha]. (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1967: 243)

Com o apoio da arqueologia, podem-se identificar rotas de intercâmbio comercial, que nos permitem deduzir uma trajetória de transmissão cultural: Numerosos traços da época suméria foram transmitidos, pelos babilônicos, aos hititas; a Creta da idade minoana esteve em relação com a Capadócia; a poesia ugarítica lembra-se de velhos mitos de Gilgamesh, e a própria Ilíada apresenta reflexos certos. A vida de corte levada nos grandes palácios micênicos de Cnossos, Hagia Triada e Pylos foi o meio ideal de transmissão das artes e das correntes de civilização vindas do Oriente.

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E as cítaras de 8 cordas de Micenas (fig. 4), foram elas instrumentos sobre os quais a escala grega se cristalizou, suprimindo uma das cordas inúteis da tabuinha babilônica? O argumento de uma série limitada à oitava é um argumento forte. Ele é o nosso único recurso, pois os textos faltam13. A tradição musical acompanhou aquela da poesia sobre as rotas do Oriente Próximo até a Grécia, pois o aedo era ao mesmo tempo músico e contador das belas histórias. (Idem, 1967: 245-246)

A tradição musical, ancorada mais do que qualquer outra sobre a oralidade, sobre as mais requintadas qualidades do ouvido, sobre a memória auditiva, deixou-nos, assim, alguns registros de um longo processo de herança cultural. Tomando esse processo como pressuposto, Marcelle Duchesne-Guillemin sustentou sua hipótese sobre a origem da lira grega, tida pela opinião ‘nativa’ como um instrumento nacional: sua origem é oriental, situada num passado muito mais longínquo que aquele das aventuras dos grandes heróis homéricos. Todavia, pôde chegar a esse resultado somente por intermédio do estudo comparado atento de fontes como as representações iconográficas e restos de antigos instrumentos, bem como de uma análise minuciosa da teoria musical. Além disso, precisou estender o universo documental a outras civilizações da Antiguidade. O método empregado por Marcelle Duchesne-Guillemin descortinou outros caminhos a serem seguidos pela arqueologia dos instrumentos da Grécia antiga. Pergunto-me se os gregos não guardavam alguma memória deste processo, quando davam o nome Asia à kithára (Plutarco, De Musica, 6.1133c. COMOTTI, 1991), a cítara de concerto, forma mais sofisticada da expressão de sua música 13 

Grifo do autor.

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erudita, objeto da mais complexa técnica de construção de instrumentos, que ao mesmo tempo era acompanhado de requintes orientais, como a suntuosa indumentária dos citaredos, a proteção de panos ricamente bordados e o custoso acabamento, com braços dourados, incrustações em marfim e até mesmo joias e pedras preciosas (WEST, 1992: 55). De outro lado, o investimento imaginário na identificação da lýra como “marcador étnico”, como identificador da “nacionalidade grega”, independentemente de qualquer origem real, pode ser considerado um indicador da forma bastante particular como os gregos apropriaram-se, em sucessivos momentos ao longo de uma longeva série histórica (mais de dois milênios), de influências musicais (organológicas, teóricas, terminológicas, estéticas) provindas do Oriente. Na recepção destas tradições musicais orientais, longe de uma postura passiva, os gregos engendraram uma musicalidade própria e, sobretudo, um sentido absolutamente singular do lugar da música na vida e na sociedade humana, criando formas culturais absolutamente originais: os vários personagens mitológicos marcados pela música, a teoria do éthos musical, o caloroso debate filosófico e teórico sobre a virtude e o valor educativo atribuídos à música, entre tantos outros notáveis traços de sua cultura musical e intelectual. Conferiram à atividade musical uma enorme vitalidade, preenchida com uma intensa agenda de festivais, concursos, audições, estudos, levando a tradição musical mesopotâmica, cujos registros mais antigos remontam às liras de Ur, a patamares elevados de sofisticação, disputa, erudição, contemplação e fruição, em Atenas e tantas outras cidades gregas, que tinham a música na mais elevada estima.

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6. Os Gregos na Palestina: o Complexo Jogo Político da Região

Vagner Carvalheiro Porto Universidade de São Paulo

Este capítulo tem a pretensão de apresentar ao público universitário e leigo em geral algumas das tantas características que envolvem a presença de gregos em território Palestino. A comunicação entre gregos e palestinos remonta a períodos bem mais recuados, bem anteriores a Alexandre ou Antíoco IV. Segundo Leonardo Chevitarese, em recentes escavações realizadas na Palestina, evidências de materiais feitos de cerâmica tais como crateras e lécitos áticos foram encontradas. Esses achados sugerem não só conhecimento, mas também um possível comércio e interação de culturas grega e judaica disseminados na referida região, desde os tempos mais remotos (CHEVITARESE, 2003: 25). Sabemos que muito antes de Alexandre, já havia na Judéia e nas regiões vizinhas um intenso processo de interação cultural sob o ponto de vista das ideias, língua, modelos de instituições, modo de vida, envolvendo os habitantes não só na Palestina, mas de toda a bacia do Mediterrâneo (HENGEL, 1989: 56).

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Todavia, entendemos ser relevante iniciar nossas observações a partir das investidas de Alexandre, o Grande, na região e conversar um pouco sobre a aplicação do termo helenização neste trabalho. Não pretendo neste texto discutir o conceito de helenização tão consolidado nos manuais de História Antiga. Enfatizo que ao utilizarmos o termo helenização devemos antes de tudo considerar todas as formas de interação da cultura grega com a cultura próximo-oriental, as relações recíprocas que ela provoca, entendendo-a como uma via de mão dupla e não uma simples facilitação, muitas vezes ideologicamente ensejada em que povos orientais absorvem a cultura grega pretensamente superior a partir do contato estabelecido. A discussão pode ser aprofundada lendo-se o belo trabalho de C. Gallini intitulado Che cosa intendere per ellenizzazione. Problemi di metodo e na mesma linha de reflexão o mais recente trabalho de M. Hengel e C. Markschies em seu texto The ‘Hellenization’ of Judaea in the First Century after, cujas referências completas podem ser visualizadas ao final deste capítulo. O que nos importa por hora é conhecer a introdução da cultura grega no Oriente Próximo principalmente a partir das investidas de Alexandre, o Grande na região. Apesar de que, ironicamente, uma tradição proveniente de período clássico tenha construído uma leitura de certa forma estereotipada de um Alexandre macedônio, bárbaro, nada heleno. Arnaldo Momigliano nos ajuda a entender melhor essa construção em dois trabalhos muito importantes para conhecer melhor o assunto disponíveis em língua portuguesa: “As raízes clássicas da historiografia moderna” (2004) e “Os limites da Helenização: interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa” (1991). Alexandre entrou com seus exércitos na Ásia Menor em 334 a.C., depois de ter subjugado a Grécia. Aos 23 anos de idade, o macedônio derrotou o principal exército persa na cidade de Isso. Bastou cerca de um ano – 333 a.C. – para

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que os macedônios detivessem o controle de todo o Oriente, até o vale do rio Indo. A presença de Alexandre no Oriente representou o fim do Império Persa e o começo de uma nova era, conhecida pela historiografia tradicional como Período Helenístico. Como muito já nos foi noticiado, tanto pelos livros de História, pela literatura, como pelos filmes de aventura, Alexandre partiu da Península Balcânica adentrando com suas tropas pela Ásia Menor passando pela Síria, Fenícia, Palestina e Egito. E, de volta, em direção à Babilônia, Susa e Persépólis (ver mapa abaixo).

Figura 1: O Império de Alexandre, o Grande. Fonte: wps.ablongman.com

As cidades da região não conseguiam resistir às investidas do exército alexandrino. Somente as cidades de Tiro e Gaza, da Fenícia e da Palestina respectivamente, ofereceram a Alexandre alguma resistência: Tiro resistiu bravamente a sete meses de assédio e Gaza, leal aos persas, sucumbiu às tropas de Ale-

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xandre após dois meses. Durante as campanhas macedônias, toda a Palestina, que pertencia à V satrapia persa, foi anexada ao novo império de Alexandre, sem maiores dificuldades. A comunidade judaica que vivia em Jerusalém e arredores foi incorporada ao domínio macedônio. Durante as campanhas de Alexandre contra Tiro e Gaza, em 332 a.C., a Palestina foi anexada ao novo império. De acordo com Flávio Josefo, quando Alexandre chegou à Síria, logo conseguiu pilhar Damasco, apoderou-se então de Sidon e cercou Tiro. De lá enviou uma carta ao sumo sacerdote dos judeus, pedindo a este que lhe mandasse reforços, que fornecesse provisões para o seu exército e que, aceitando a amizade dos macedônios, lhe mandasse os presentes que costumava mandar a Dario; e acrescentou que os judeus não teriam nada a temer. O sumo sacerdote respondeu aos mensageiros de Alexandre, o Grande que havia prometido com juramento a Dario que não se levantaria contra contra ele, e que não ia faltar à palavra jurada enquanto Dario fosse vivo. Ainda segundo Josefo, ouvindo isto, Alexandre se encolerizou muito [...] Depois de tomar Gaza, Alexandre se apressou em subir a Jerusalém. O sumo sacerdote Jadus, ao ouvir isto, encheu-se de angústia e temor, não sabendo como se apresentar aos macedônios, cujo rei devia estar muito irritado com a sua recente desobediência (JOSEFO, “Antiguidades Judaicas”, XI, 316). Josefo ainda nos diz que Alexandre (depois que o sumo sacerdote se desculpou) foi ao Templo, onde sacrificava a Deus, e depois atendeu a vários pedidos do sumo sacerdote em benefício de seu povo (Idem, 317). De acordo com Christiane Saulnier e Charles Perrot, assim como A. Momigliano, Jerusalém ou a Judéia ficavam fora da rota de Alexandre, o Grande. Assim, Alexandre jamais esteve nesses lugares. O que ele pode ter feito foi ter enviado até lá um de seus oficiais para obter a submissão da comunidade judaica aos novos

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senhores da região1. Esses autores observam sobre a “Recensão C do Pseudo Calístenes”, que a história deve ter sido forjada por volta da metade do século II a.C., em um círculo filo-heleno, provavelmente alexandrino, inspirada por romances gregos e mais especialmente do romance de Alexandre (SAULNIER e PERROT, 1985: 71 e MOMIGLIANO, 1991: 77). Para Saulnier e Perrot, assim como na Judéia, a anexação de Samaria foi a princípio tranquila. Contudo, logo em seguida à anexação, eclodiu uma revolta na qual Andrômaco, o prefeito de Alexandre na Síria, foi queimado vivo pelos samaritanos. A punição determinada aos samaritanos por Alexandre, quando este voltava do Egito, foi exemplar. Samaria foi destruída e no lugar se estabeleceu uma colônia macedônia (SAULNIER e PERROT, 1985: 72). Como dissemos linhas acima, a mudança da Judéia de mãos persas para mãos macedônias em 332 a.C. não alterou significativamente a vida judaica e as condições econômicas e políticas vigentes. O autor alemão Hans Gerhard Kippenberg em publicação de 1978, apresentou um importante estudo que foi traduzido para a língua portuguesa, por João Aníbal G. S. Ferreira com revisão de José Joaquim Sobral, em 1988. Em “Religião e formação de classes na antiga Judéia”, Kippenberg apresenta um estudo sobre a formação do judaísmo pós-exílico. Essa obra se apresenta como uma proposta de interpretar social e antropologicamente os temas da história religiosa da antiga Judéia. Segundo este autor, os movimentos judaicos de resistência contra os gregos e contra os romanos tiveram interpretações Airton Jose da Silva, História de Israel. Disponível em HTTP://airtonjo.com, nos informa que, além de Flávio Josefo, o encontro do sumo sacerdote de Jerusalém com Alexandre é narrado também na "Recensão C do Pseudo-Calístenes" (um conjunto de lendas sobre Alexandre, atribuídas a Calístenes, sobrinho de Aristóteles, que se cristalizaram por volta do século III a.C.), no Anexo Tardio ao Meguillat Taanit (= Rolo dos Jejuns) e no Talmud da Babilônia (Yoma 69a). 1 

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divergentes por parte dos especialistas, como M. Hengel, H. Kreissig, S. K. Eddy, A. Causse e M. Weber. Ao mesmo tempo os estudos concernentes à sociologia etnológica desenvolvia-se basicamente em três frentes: etnologia do parentesco, etnologia econômica e antropologia política. Com isso, Kippenberg obteve as ferramentas necessárias para interpretar a antiga literatura judaica em relação aos conceitos e métodos da etnologia ou antropologia social. Utilizando a etnologia, ele tenta reconstruir o tipo de ordem social da Judéia antiga, comparando-o com o de outras sociedades do Antigo Oriente Médio. Neste processo, diz o autor, considera-se ainda a relação do indivíduo com a sociedade e da ideia religiosa com a ordem social mais como contradição do que como unidade (KIPPENBERG, 1988: 8-14). Os movimentos judaicos de resistência levantam, para Kippenberg, a seguinte questão: existia uma relação intrínseca entre determinados conteúdos da tradição religiosa e as lutas de resistência, ou a relação era extrínseca ou casual? A hipótese do autor será: a tradição se uniu com duas tendências antagônicas: a tendência à formação de classes2 e a tendência à solidariedade. Formam-se, então, dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência (KIPPENBERG, 1988: 18-23). Para Hans Gerhard Kippenberg, a sociedade judaica tradicional fundamentava-se no clã (mishpâhâh). O clã era constituído por um agrupamento de famílias ampliadas (beth-'âbhoth) que moravam na mesma região e se auxiliavam tanto social quanto economicamente, constituindo uma comunidade jurídica local (Idem: 22-25). Chamamos a atenção para os cuidados que devemos ter ao utilizarmos o conceito “classes” para o mundo antigo. Este termo é muito utilizado por diversos autores, todavia, se não for observada a devida atenção, pode nos colocar em uma armadilha conceitual de teor anacrônico. Lembremo-nos que o conceito de “classes sociais” foi cunhado pelo marxismo no século XIX para interpretar o mundo que se formatava àquela época. 2 

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A mishpâhâh caracterizava-se por: ser um grupo de descendência patrilinear (a linha de descendência corre de pai para filho); era unidade de convocação do exército tribal; pela residência comum de seus membros; transmitia o direito de posse por herança: a terra, os rebanhos, enfim, a propriedade era comunal e não podia ser vendida, mas devia ser mantida em poder do grupo através da herança de pai para filho; era formada de famílias ampliadas; seus membros tinham responsabilidade mútua, gerando uma solidariedade de sangue muito coesa. Tinham regras específicas de casamento, com preferência pelo casamento entre primos patrilineares e com a obrigatoriedade do dote; integrava, em circunstâncias específicas, uma tribo. A partir da época persa a família (beth-'abh) tornou-se a unidade econômica fundamental, deixando o clã (mishpâhâh) em segundo plano (Idem, ibdem)3. A região Palestina foi atravessada por volta de oito ocasiões por exércitos em batalha entre os anos de 323 até 301 a.C.. Daí os vários sobressaltos que atingiram a região: pilhagens, requisições, deportações, desmantelamento de defesas e bens imóveis para prejudicar o inimigo, sustento das guarnições etc. Assim podemos observar a situação da Palestina neste período de vinte e dois anos de conflito entre os herdeiros de Alexandre. Ptolomeu I, por exemplo, na sua luta pela posse da Celessíria4, tomou Jerusalém em 312 a.C., deportando alguns milhares de judeus para o Egito. A maioria foi destinada ao trabalho escravo das minas e da agricultura. Aliás, somadas às migrações e aos merPara entender melhor as relações de parentesco e suas implicações político-econômicas, ver; Kippenberg, 1988: 31-52. 4  Celessíria significava "Síria Côncava" e compreendia os territórios do sul da Síria, da Fenícia e da Palestina. A origem do nome é controvertida. É possível que venha do semítico, algo assim como o hebraico kl sûryh, "toda a Síria", que teria se tornado, em grego, por assonância, koílê syrîa. Originariamente a Celessíria compreendia toda a Síria, mas na época helenística já se distingue entre a syrîa hê ánô (Síria do norte) e a koílê Syrîa. "Celessíria", entretanto, só se torna designação oficial da região sob o governo dos Selêucidas, após 198 a.C. Os Ptolomeus chamavam a região de Síria e Fenícia. Ver: M. Stern, 1976: 14. 3 

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cenários, tais situações acabaram aumentando espetacularmente o número de judeus no Egito, fazendo da diáspora alexandrina a maior comunidade judaica fora de Israel (ABEL, 1952: 30-32). De acordo com Felix-Marie Abel, mesmo com todas as atribulações, as guerras acabaram por trazer também alguns benefícios para a região. A presença do exército macedônio seja sob o comando de Pérdicas, Antípater, Eumênio ou Antígono, produziu uma movimentação política e econômica incomum na Palestina. A região da Síria, na verdade, acabou ficando bem no centro das disputas entre os generais de Alexandre. Junto com o exército veio o comércio, pois milhares de civis acompanharam as tropas: mercadores, traficantes de despojos, escravos, mulheres e crianças. Os veteranos se fixaram nas colônias militares, núcleos de futuras cidades. A guerra colocou em circulação, além disso, enormes quantias de dinheiro. As grandes construções navais – pois esquadras são montadas e destruídas – fizeram prosperar as cidades da costa (ABEL, 1952: 22-25). O domínio dos Ptolomeus sobre a Celessíria durou 103 anos. Durante todo este tempo Ptolomeus e Selêucidas lutaram pela Síria. Os Ptolomeus lutavam porque não podiam se sentir seguros no Egito se suas fronteiras não estivessem protegidas pela Celessíria. E também por razões comerciais: a posse dos portos da Celessíria lhes garantia o controle do Mediterrâneo Oriental e a ligação com a terra-mãe, a Macedônia. Os Selêucidas lutaram pela região porque precisavam cortar as bases dos Ptolomeus instaladas na costa da Ásia Menor. Deste conflito decorreram as chamadas "guerras sírias"5. Do ponto de vista político, a Celessíria compreende as “etnias” a seguir: cidades fenícias costeando o litoral, da cidade Ortozia até os limites de Gaza; o chamado distrito do Templo de Sobre as Guerras Sírias Ver: C. Préaux, 1987/1988: 139-155; E Will, 1982: 146150 e 234-261; F.-M. Abel, 1952: 44-87. Sobre a 4ª e a 5ª guerras sírias temos boas informações em Políbio, Histórias, V, 63-87; XVI, 18-19. 5 

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Jerusalém, predominantemente com judeus; os povos idumeu e samaritano; grupos que descendiam de sírios e de cananeus; muitas cidades no interior, incluam-se aí também as colônias militares macedônias; e, por fim, as tribos dos árabes e dos nabateus, na região da Transjordânia e do sul. O modo de vida grego se implantara mais rapidamente nas cidades fenícias, mas também as pólis mais significativas do interior, tanto na Judéia quanto na Iduméia, na Samaria como na Galiléia, foram inexoravelmente helenizadas. Não havia cidades livres, no sentido da Grécia clássica, dentro do reino ptolomaico. Mas havia cidades que se aproximavam do modelo da pólis grega, com seus magistrados e seu território. Como exemplo podemos mencionar as mais importantes cidades fenícias e palestinas: como Tiro, Sidon, Acco-Ptolemaida, Gaza, Ascalon, Jope e Dora; ou ainda Marisa, na Iduméia (HENGEL, 1981: 287-289 e SAULNIER, 1985: 118-121). Uma importante instituição que se desenvolveu provavelmente durante o domínio ptolomaico é a gerousia, uma assembleia aristocrática composta pelos chefes das famílias mais influentes, pelos sacerdotes e pelos escribas do Templo. De modo geral, convém observar que o desenvolvimento econômico da região da Celessíria fez parte de uma estratégia política bem definida por parte dos Ptolomeus. Estratégia essa que visava, acima de tudo, impedir o avanço de seus rivais Selêucidas sobre a região. Essa política foi implantada principalmente por intermédio da aliança grega com os aristocratas locais. É atribuído a Ptolomeu II, Filadelfo6 um decreto que possivelmente seja de 261-260 a.C. e que sintetiza bem a política empreendida pelos Ptolomeus para a região da Celessíria: Estes títulos dos reis helenísticos – Soter, Filadelfo, Theos, Evergetes, Epífanes etc. – lhes foram, em geral, atribuídos por cidades às quais eles prestaram algum serviço ou libertaram de algum inimigo. Ptolomeu I, por exemplo, é chamado de Soter, "Salvador", porque salvou os ródios de um cerco imposto por Demétrio. Evergetes 6 

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Ordem do rei. Os habitantes da Síria e da Fenícia, que compraram um nativo livre (sôma laikòn eleúteron) ou dele se apropriaram com violência, ou o adquiriram de um ou outro modo, devem declará-lo e apresentá-lo ao ecônomo7 em qualquer hiparquia8 dentro de vinte dias após a publicação deste decreto9.

Também os arquivos de Zenão10 são importantes para a compreensão da administração ptolomaica da Palestina11. Outro dado interessante para se conhecer a administração ptolomaica da Palestina é a história de José, o Tobíada12 e

significa "Benfeitor", Epífanes é o "Manifesto", Theos é o "deus" etc. Ver: C. Préaux, 1987/1988: 194-195 e 245-251. 7  Ecônomo (oikonómos): administrador que é o encarregado das finanças e do comércio de cada distrito. 8  Dentro do governo Ptolomaico da Celessíria, hiparquia era um distrito territorial governado por um hiparco. Este distrito, assim como os nomos egípcios, dividia-se em aldeias (kômê) que eram chefiadas por um comarca. 9  “Carta de Aristea a Filócrates”, 22, In: Diez Macho, 1983-1987: apud Já. A. Silva, disponível em HTTP://airtonjo.com. Ver: F.-M. Abel, 1952: 62-63 e C. Préaux, 1987/1988: 568 acredita na autenticidade deste documento, pelo menos nos seus termos mais gerais. 10  Trata-se de uma coleção de cerca de 2.000 papiros, encontrados após 1910, perto da antiga Filadélfia, localizada nas vizinhanças do oásis de Fayum, onde o dioceta (dioikêtês, administrador ou tesoureiro. Depois do rei ele é o homem mais importante do governo, pois é ele que se encarrega de todo o setor econômico e administrativo do Estado) de Ptolomeu II, Filadelfo, o poderoso Apolônio, mantém sua dôréa (terras doadas pelo rei aos altos funcionários do governo, eram conhecidas como dôreaí = doações). Descobertos por escavadores clandestinos, os papiros de Zenão foram dispersos pelo mundo afora durante a 1ª Guerra Mundial. Estão em Londres, no Cairo, em New York, na Alemanha e na Itália. Os papiros cobrem um período de 32 anos, entre 261 e 229 a.C., e trazem os arquivos de Zenão, originário de Caunos, cidade da Cária controlada por Ptolomeu II. Zenão foi para o Egito, onde entrou para o serviço de Apolônio, no qual permaneceu por 13 anos, de 261 a 248 a.C. A partir deste ano, Zenão deixou Apolônio – do qual não temos mais notícias após 245 a.C. – e se dedicou a seus negócios particulares em Filadélfia. O seu último documento datado é de 14 de fevereiro de 229 a.C. 11  Ver: Orrieux, 1983: 42-43. Os arquivos de Zenão foram redigidos em abril/maio de 259 a.C. O documento segue as regras mais estritas para este tipo de escrito: ano de reinado, corregência, sacerdotes epônimos dos cultos dinásticos, fiador e testemunhas. 12  Sobre José e os Tobíadas, Saulnier, 1985: 451-454 e Préaux, 1987/1988: 571-572.

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de seu filho Hircano, transmitida por Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas, XII 158-236). Em 198 a.C. o rei Selêucida Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.), venceu os egípcios em Panias (Banias), junto às nascentes do Jordão, e expulsou definitivamente os Ptolomeus da Ásia, começando um projeto de expansão de seus domínios. Segundo Flavio Josefo, quando Antíoco III, o Grande, venceu os exércitos dos Ptolomeus, os judeus de Jerusalém o apoiaram nesta luta. O ‘partido’ Selêucida, em Jerusalém, estava mais forte do que o ptolomaico. Por isso em 197 a.C., Jerusalém foi contemplada com um programa de reconstrução e repovoamento – a cidade havia sofrido três assédios consecutivos, em 201, 199 e 198 a.C. (JOSEFO Antiguidades Judaicas XII 138-144). A proposta de reconstrução, a contribuição real para os sacrifícios, em animais, vinho, óleo, incenso, flor de farinha, trigo e sal, a isenção de impostos durante três anos e o repovoamento de Jerusalém eram medidas necessárias para o fortalecimento do governo e dos interesses de Antíoco III naquela região disputada pelos Ptolomeus. Entretanto, a expansão Selêucida sob Antíoco III, o Grande, foi impedida por Roma na medida em que seus interesses entraram em choque com a forte república na Europa.

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Figura 2: O Mundo Helenístico – 240 aC. Fonte: site da Universidade de Oregon.

Acontece que Aníbal13, general cartaginês, após ser derrotado por Roma, refugiou-se na corte Selêucida e instigou Antíoco III a lutar contra Roma. Após muitas negociações frustradas, Roma enfrentou e venceu Antíoco III na batalha de Magnésia, no começo de 189 a.C. O exército romano era comandado por Lucius Cornelius Cipião – depois cognominado "o Asiático" -, ajudado por seu irmão Cipião, o Africano. Antíoco, que tinha 72 mil soldados, perdeu 50 mil homens de infantaria, 3 mil cavaleiros, 15 elefantes e Cipião fez 1400 prisioneiros. Os romanos perderam apenas 400 homens. Em 188 a.C. a paz entre Roma e os Selêucidas foi estabelecida em Apaméia da Frígia, quando foram impostas Para saber mais sobre a presença de Aníbal na Judéia/Palestina ver Rostovtzeff, 1977: 56-78, P. M. Peixoto, 1991 e E. Bradford, 1993. 13 

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humilhantes condições a Antíoco III (WILL, 1982: 210-215). De acordo com Apiano o tratado de Apaméia nos informa que: Antíoco deverá abandonar tudo o que ele possui na Europa e, na Ásia, as províncias aquém do Taurus - as fronteiras serão traçadas em seguida. Ele entregará todos os seus elefantes e todos os navios que indicaremos. No futuro ele não terá mais elefantes e terá somente o número de navios que nós fixaremos. Ele fornecerá vinte reféns, segundo a lista elaborada pelo cônsul. Ele pagará pelas despesas desta guerra, da qual ele é o responsável, 500 talentos eubóicos imediatamente, 2.500 após a ratificação do tratado e 12.000 em doze anos, cada anuidade devendo ser paga a Roma. Ele nos entregará todos os prisioneiros e os desertores e restituirá a Eumênio tudo o que ele ainda retém das possessões adquiridas em virtude do acordo feito com Átalo, pai de Eumênio. Se Antíoco respeitar lealmente estas condições, nós lhe oferecemos paz e amizade sob condição de ratificação do Senado14.

De acordo com Michael Ivanovich Rostovtzeff "A situação geral do mundo helênico não foi afetada por esta guerra. O equilíbrio de poder de que Roma se tornara guardiã continuou a existir, embora de forma peculiar” (ROSTOVTZEFF, 1977: 71). O que Rostovtzeff pretendeu afirmar é que Roma resolvia todas as disputas internas da Grécia, sem consultar, porém, a opinião grega, nem mesmo em assuntos gregos. Todos os reinos helênicos eram independentes, mas nenhum deles tinha poderes para levantar-se contra Roma. A todos eles, e especialmente às cidades gregas, Roma garantia 'liberdade', mas no momento em Apiano, Syriaka, 38-39. apud Sauliner, 1985: 372-373. Apiano é natural de Alexandria e morreu aproximadamente em 160 d.C. Trabalhou como advogado em Roma e compilou narrativas em grego de várias guerras romanas em 24 livros, dos quais temos hoje dez. 14 

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que qualquer um desses reinos se mostrasse disposto a realizar uma política independente, Roma imediatamente tomava as devidas precauções no sentido de contê-las. De todo modo, foi a partir da guerra entre Antíoco III e Roma que começou o declínio do império Selêucida. Daquele momento em diante, Antíoco III e seus sucessores se debateriam em crescentes lutas internas pelo poder, assistindo à fragmentação progressiva dos seus domínios e lutando com grandes dificuldades financeiras. Só a Roma, Antíoco deveria pagar 15.000 talentos eubóicos. O talento eubóico, do nome da ilha de Eubéia, pesava cerca de 26 kg. Logo, Antíoco deveria pagar a Roma o equivalente a 390.000 kg de prata. A falta de condições dos sucessores de Antíoco III de manter o acordo de isenção tributária, em relação a cidades como Jerusalém, por conta dos encargos provenientes da derrota na guerra, e a automática pressão exercida por Roma, conduziu os Selêucidas a uma crise sem precedentes. No calor da situação, Antíoco III foi morto em 187 a.C., pela população revoltada, quando saqueou um templo elamita, para conseguir dinheiro para pagar o que devia aos romanos. De acordo com F. M. Abel, Antíoco foi "ao templo de Bel, famoso por possuir muito ouro e prata dedicados ao deus, e tendo-o assaltado de noite com suas tropas, não levou em conta a coragem vigilante das populações desta região rude. Ele foi morto, ele e os seus, pelos habitantes que acorreram em defesa do santuário. Este foi o fim pouco glorioso de Antíoco, dito o Grande, após trinta e seis anos de reinado com a idade de cerca de cinquenta e cinco anos, em 187 a.C." (ABEL, 1952: 22-25). Seu sucessor, Selêuco IV, Filopator (187-175 a.C.), apoiado por judeus dissidentes do sumo sacerdote Onias III, tentou apoderar-se do dinheiro depositado no Templo de Jerusalém (2 MACABEUS III, 4-40). Em 175 a.C. Selêuco IV foi assassinado.

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Seu irmão Antíoco IV, Epífanes (175-164 a.C.)15, que voltava de Roma onde era refém desde 188 a.C. quando seu pai Antíoco III perdera a batalha de Magnésia e assinara o tratado de Apaméia, assumiu o poder Selêucida. A instabilidade do reino Selêucida aumentou e Antíoco IV tomou medidas helenizantes como forma de consolidar o seu poder. Concedeu o status de pólis a várias cidades, promoveu a adoração de Zeus e reivindicou para si prerrogativas divinas (ABEL, 1952: 109-132). Em Jerusalém o processo de helenização avançara bastante desde o século anterior, especialmente entre a aristocracia sacerdotal e leiga. Formou-se um forte partido pró-helênico, que pretendeu incrementar o avanço civilizatório grego e, por isso, esteve em luta com os judeus tradicionais e fiéis à lei judaica. Estes helenizantes defendiam a urgente revogação do decreto de Antíoco III, que os impedia de se integrarem totalmente ao modo de vida grego. F.-M. Abel observa, por exemplo, que a Judéia estava cada vez mais cercada por cidades helenizadas e era impossível ao judeu não tomar contato com o seu modo de vida. Quem vai a Acco-Ptolemaida passa por Samaria ou Dora; se alguém negocia na Galiléia não pode fugir de Citópólis ou Filotéria; ou na Transjordânia é necessário ir a Pella, a Gadara ou a Filadélfia. Do lado do mar, Marisa está na rota de Gaza ou Ascalon. Jâmnia, Gazara e Jope também não podem ser evitadas (ABEL, 1952: 109-132). A propósito desse processo de helenização, em 174 a.C. foi instalado um ginásio16 em Jerusalém, aos pés da acrópole, contíguo à esplanada do Templo. Para o reinado de Antíoco IV e seu confronto com os judeus, ver: Bright, 1978: 570-576; Abel, 1952: 109-132; Hengel; 1981: 277-290; Saulnier e Perrot, 1985: 105121 e Will, 1982: 326-341. 16.  Lembremo-nos de que o ginásio grego não é mera praça de esportes. É uma instituição cultural das mais importantes, usada no processo de helenização de várias cidades orientais. Além dos esportes gregos, o ginásio implica a presença de divindades protetoras, como Héracles e Hermes e ensina a maneira grega de se viver e de se 15 

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Em 169 a.C., Antíoco IV, depois de ter feito campanha militar contra o Egito, campanha esta vitoriosa, em seu retorno saqueou o Templo de Jerusalém. A real causa deste saque é desconhecida, muito possivelmente tenha ocorrido por causa da sempre crescente necessidade de dinheiro (1 MACABEUS I, 21-23). Políbio nos narra que em 168 a.C., em sua segunda campanha contra o Egito, Antíoco IV foi impedido de entrar em Alexandria, e de assim anexar o país pelo legado romano Popilius Laenas. Roma defendia, deste modo, o fraco Egito e vigiava de perto os Selêucidas (POLÍBIO História XXIX 27). Antíoco IV motivou financeiramente a aristocracia local que por sua vez começou a pressionar sempre mais na direção da helenização total, como modo de quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada nas leis dos judeus e sua aliança com Deus. O enriquecimento fácil desta aristocracia, baseado na tributação e na manutenção de seus privilégios, chocou-se com as normas da lei dos judeus mais tradicionais, fundamentadas na solidariedade familiar e no direito de posse por herança. A revolta dos macabeus se inseriu no confronto econômico entre a aristocracia filo-helenista e os judeus fiéis às leis judaicas – lembremo-nos que o arrendamento estatal dos impostos à aristocracia foi o principal deflagrador dos conflitos. Os sacerdotes Macabeus, líderes da resistência judaica, e seus partidários assideus defendiam a manutenção dos laços de parentesco, da solidariedade étnica contra a instalação do regime de pólis em Jerusalém. Enquanto os partidários da helenização seguiam as ordens do rei (1 MACABEUS II, 19-20; VI, 21-27), os revolucionários17 Macabeus faziam valer os antigos mandamentos (1MACABEUS ver o mundo. Falar o grego corretamente, vestir-se à moda grega, conhecer e discutir a cultura grega são algumas das atividades praticadas no ginásio. 17  Temos consciência da abrangência do significado do termo revolução, e que existe uma sedutora inclinação em utilizá-lo com o sentido moderno do termo. No caso dos Macabeus, trata-se de uma mudança no sentido a retomar os antigos valores judaicos de solidariedade existentes no clã (mishpâhâh) e na família (beth-'abh) já mencionados anteriormente. Para saber mais sobre a história do conceito de revolução, ver Alain Rey, 1989.

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II, 29-38: o sábado; 2,42-48: a circuncisão; 4,36-51: a purificação do Templo). Com a proibição das tradicionais práticas judaicas em 167 a.C. desencadeou-se uma feroz perseguição àqueles que não se submetiam às ordens do rei Selêucida Antíoco IV, Epífanes. A posse de livros da lei judaica, a prática da circuncisão ou qualquer observância de um ritual judaico levava a pessoa à morte. Recusando-se a prestar culto aos deuses gregos, um sacerdote de Modin chamado Matatias, que se retirara de Jerusalém desgostoso com o rumo das coisas, começou um movimento de rebelião armada contra os gregos e seus associados da aristocracia judaica (ver quadro da família dos hasmoneus abaixo).

legenda

CAIXA ALTA: reis que emitiram moedas; m.: casada com; ( ): data da morte; [ ]: nome Figura 3: Quadro parcial da família hasmonéia. Fonte: HENDIN, 2001: 158 (com permissão).

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Junto aos seus cinco filhos e grande grupo de camponeses fiéis às tradições judaicas ele fez uma guerra constante aos “helenizantes”, que culminou, nesse primeiro momento, com a liderança do filho de Matatias, Judas Macabeu, na libertação de Jerusalém e na purificação do Templo, apenas três anos após a proibição dos sacrifícios javistas. Christiane Saulnier comenta que "esta vitória, aparentemente fácil, de Judas Macabeu explica-se pelos problemas que enfrentava neste momento o governo Selêucida. Com efeito, Antíoco IV partira no princípio do ano 165 a.C. para uma campanha nas satrapias superiores (alta Ásia) deixando Lísias em Antioquia para assegurar o governo e a guarda de seu jovem filho" (SAULNIER, 1987: 29). Foi então que, em dezembro de 164 a.C., livre de represálias Selêucidas, Judas e os seus tomaram Jerusalém, purificaram e dedicaram novamente o Templo. Para comemorar o fato foi instituída a festa da Hanukka, isto é, "Dedicação", celebrada no dia 25 de Casleu (15 de dezembro). A luta contra a helenização foi comandada por um grupo sacerdotal, os Macabeus, o que fez parecer que os motivos religiosos fossem prioritários ou mesmo os únicos para a resistência. Todavia é importante lembrarmo-nos de que havia uma coincidência de interesses dos sacerdotes e levitas18 empobrecidos com os interesses dos camponeses. Por isso lutavam lado a lado. Sacerdotes e levitas viviam da contribuição dos camponeses, pois o culto e o sacerdócio não tinham propriedades, excetuando-se, é claro, uns poucos sacerdotes da nobreza. Os Os levitas eram as pessoas que pertenciam à tribo de Levi. A tribo de Levi foi separada exclusivamente para o serviço religioso (Deuteronômio 18:5). Eram encarregados pela guarda (Números 1:53), pela administração (Idem, 1:50) e pelo cuidado do tabernáculo bem como por todos os utensílios da tenda da congregação (Idem, 1:50). Eles também tinham como função ministrar (servir) todo o povo de Israel (Idem, 3:7-8). No reinado de Davi, os levitas foram designados para dirigir o canto e para utilizarem instrumentos musicais no templo (I Crônicas 6:31-32 e. 15:16). 18 

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sacerdotes prestavam serviços em Jerusalém só de tempos em tempos, morando no mais, em suas cidades e aldeias. O financiamento do culto ficava, na maioria das vezes, por conta do Estado. Deste modo, a classe sacerdotal sem terras estava interessada no controle público das terras, como manda a lei judaica, e não na privatização da propriedade da terra, que era a tendência da aristocracia filo-helênica. Somente dessa maneira os sacerdotes poderiam ter certeza das contribuições para o templo e para o sustento de suas famílias. Se a terra pertence a Iahweh, como diz a lei judaica, e os sacerdotes são os intermediários entre Iahweh e o povo, através da instituição do Templo, a sua sobrevivência está garantida. Mas se a terra pertence ao rei, como o quer o direito do conquistador grego, os sacerdotes que não pertencem à aristocracia e não se associam aos gregos são prejudicados (KIPPENBERG, 1988: 59-64). C. Saulnier crê que a resistência dos judeus ‘piedosos’ assumiu, aos olhos de Antíoco IV, as características de uma verdadeira revolta e de uma oposição política perigosa. "Ao mesmo tempo, a profunda divisão dos judeus permite-nos compreender que os filo-helênicos deviam se sentir ameaçados e acolhessem de boa vontade o apoio e a proteção das forças gregas. Assim, o começo dessa crise é ambivalente, porque mistura a perseguição religiosa à guerra civil. Então, o que é interpretado em termos de perseguição pela literatura judaica, pode ser compreendido pelo historiador como uma reação contra a agitação que não parava de aumentar e a repressão de uma verdadeira revolta armada" (SAULNIER, 1985: 126). Jônatas, irmão de Judas Macabeu, foi o primeiro sumo sacerdote da família, ocupando um cargo que, embora estivesse vago, não lhe pertencia, pois ele não pertencia à linhagem dos sumo sacerdotes. Isto começou a criar divisões internas, pois os judeus mais tradicionais não podiam admitir essa atitude.

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Aproveitando-se do aprofundamento da divisão interna do império Selêucida e de seu enfraquecimento político e econômico, os irmãos Macabeus foram pouco a pouco consolidando as suas conquistas na Judéia. Jônatas aproveitou-se das lutas internas dos Selêucidas nas suas disputas dinásticas e consolidou um espaço cada vez mais amplo de liberdade judaica. Com efeito, apareceu um novo pretendente ao trono Selêucida, Alexandre Balas, que se disse filho de Antíoco IV, e teve o apoio dos romanos. Emil Schurer diz que o jovem Balas, vivia em Esmirna, era muito parecido com Antíoco V, Eupator, filho de Antíoco IV, Epífanes. Átalo II, rei de Pérgamo, coroou-o rei, opôs-no a Demétrio, e Balas obteve o apoio do Senado romano, além de contar com as boas graças de Ptolomeu VI, Filometor, do Egito, e de Arirate V, da Capadócia. Assim, Balas iniciou sua guerra contra Demétrio, de quem os sírios estavam saturados (SCHURER, 1985: 238). Para consolidar a sua posição na região Alexandre Balas precisava ganhar o apoio dos judeus. Por isso nomeou Jônatas sumo sacerdote em 152 a.C. Jônatas oficiou pela primeira vez na festa dos Tabernáculos, em outubro de 152 a.C. Além disso, ele recebeu o título honorífico de "amigo do rei"19 (1MACABEUS X, 18-2). Por sua vez Demétrio I, para superar as ofertas de Alexandre Balas, ofereceu aos judeus uma isenção de tributos, além de vários outros benefícios (1MACABEUS X, 25-45). Após a morte de Jônatas, a luta dos Macabeus continuou com seu irmão Simão a partir de 143 a.C. Simão, ao dominar a Acra, a poderosa fortaleza Selêucida de Jerusalém, conseguiu, finalmente, a independência da Judéia. Quanto ao título de "primeiro amigo do rei", Claire Préaux observa que se conhece uma hierarquia de títulos que, começando do mais importante, é a seguinte: “parente do rei”, equivalente aos parentes do rei; “os primeiros amigos”, archisômatophylakes; “os amigos”, somatophylakes; e “os sucessores”. A partir destas promoções, Jônatas, antes líder de uma insurreição contra os Selêucidas, passou a ser funcionário do Estado que então combatia (Préaux, 1988: 209-210). 19 

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Assassinado, Simão20 é sucedido por seu filho João Hircano I, que continuou o processo de judaização da Palestina. Nesta época destacam-se as importantes cidades palestinas: Mádaba, Samega, Siquém, Adora e Marisa. A. Paul lembra que a expansão territorial e os métodos imperialistas dos Macabeus vão se tornando cada vez mais fortes: A maior parte das guerras terminou com a conversão forçada dos vencidos e muitas vezes com extermínios que lembravam o anátema praticado por Josué. João Hircano destruiu o templo do monte Garizim e a cidade helenizada de Sebaste-Samaria e reduziu seus habitantes a escravos. Os idumeus e os itureus21 da Galiléia foram obrigados a se circuncidarem (...) Era necessário aniquilar a civilização grega com suas realizações, e não só suas resistências. 'Ou o judaísmo ou a morte': esta frase poderia resumir o programa político dos grandes Hasmoneus. Foram destruídas assim muitas cidades de importância econômica e cultural tanto para a Palestina como para os territórios vizinhos. Tal foi, em particular, o destino das grandes e prósperas cidades costeiras e das cidades helenísticas fundadas a leste do Jordão. (PAUL, 1983: 191-192; JOSEFO, Guerra dos Judeus I, 64-66 descreve o cerco e a queda de Samaria).

De acordo com Flávio Josefo, para se libertar da tutela Selêucida, João Hircano I apelara para os romanos, com quem renovava o tratado de amizade, já antes estabelecido por seus Com a morte de Simão, os judeus fizeram em sua homenagem placas de bronze nas quais gravaram inscrições com os feitos de Simão e da família dos Macabeus (1Macabeus XIV, 27-49). Essas inscrições nos revelam que ele é etnarca (líder da etnia judaica), tem o direito de usar a púrpura e a fivela de ouro (v. 44) – o que faz dele um dinasta – é estratego (tem autoridade sobre o exército), é chefe (hegoumênos, expressão grega usada na LXX para traduzir sar, "príncipe", ou rosh, "chefe") e sumo sacerdote hereditário. 21  Idumeu, proveniente da Iduméia; itureu, proveniente da Ituréia. 20 

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antepassados. Os romanos, apesar dos problemas que já tinham tido anteriormente com os judeus, apoiariam qualquer iniciativa que pudesse vir a enfraquecer os Selêucidas, cujo território ambicionavam. O Senado romano renovou então a amizade (filia) e a aliança (symmachía) com os judeus em 126 ou 125 a.C., mas também mandou dizer que, no momento, havia outros problemas mais urgentes em Roma. Logo que pudesse, o Senado procuraria defender os interesses dos judeus (JOSEFO, Antiguidades Judaicas XIII, 259-266). Entretanto, as crueldades cometidas por João Hircano I contra as cidades conquistadas e as populações forçadamente judaizadas provocaram a primeira reação dos fariseus contra os governantes Macabeus. João Hircano rompeu então com os fariseus e se aproximou dos saduceus. Essa troca de aliados se refletiria numa paradoxal aproximação com o helenismo. Na verdade, para conseguir as suas conquistas e garantir o seu território, João Hircano I começou a incorporar ao seu exército mercenários não judeus, naturalmente pagos com os tributos recolhidos do povo judeu, o que já desagradou bastante aos aliados dos Macabeus. Paolo Sacchi explica: "Os gentios engajados eram impuros que viviam junto ao povo judeu. Para os essênios a contaminação da cidade crescia, para os assideus surgiam problemas sobre a pureza que antes não existiam. A suspeita em relação ao Hasmoneu devia crescer" (SACCHI, 1976: 115). Aristóbulo I, filho e sucessor de João Hircano, apesar de ter governado apenas por um ano, continuou o processo de reaproximação com a elite grega da região. E a luta pelo poder no seio da família dos Macabeus era bastante forte: Aristóbulo encarcerou sua mãe e seus irmãos (JOSEFO, Antiguidades Judaicas XIII, 303). Após a morte de Aristóbulo I, sua viúva Salomé Alexandra, libertou seus irmãos da prisão e se casou com o mais

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velho, seu cunhado, Alexandre Janeu, que se tornou, assim, rei e sumo sacerdote (JOSEFO, Antiguidades Judaicas XIII, 320). Continuou o processo de anexação de territórios na Palestina, levando suas fronteiras a um ponto que o país nunca mais tivera desde que fora destruído por Nabucodonosor em 586 a.C. Entretanto, Janeu enfrentou pesada guerra civil no seu confronto com os fariseus. Estes vinham aumentando constantemente sua influência junto ao povo, ao mesmo tempo em que os Macabeus se distanciavam progressivamente de suas aspirações, colocando-se os dois poderes em nítido contraste. Os fariseus não estavam inclinados a aceitar como sumo sacerdote um guerreiro do tipo de Alexandre Janeu que não cumpria as rigorosas prescrições que o cargo exigia. Agindo com extrema dureza, ele controlou a situação após seis anos de violentos conflitos (JOSEFO, Antiguidades Judaicas XIII, 372-375). Estes acontecimentos estavam relacionados com a crise vivida por Roma nessa época e que por consequência fez com que os romanos recuassem temporariamente de defender seus interesses na região. A guerra conhecida como "Guerra dos aliados" (Bellum sociale) – na verdade, violentas guerras civis entre o proletariado e a aristocracia romana e também entre os aliados italianos e os cidadãos romanos – fizeram com que Roma perdesse por breve período o controle do Oriente. Somado a isso aconteceu o enfraquecimento definitivo do poder Selêucida que já não ameaçava Roma. Aproveitando-se do conflito interno em Roma, o rei do Ponto Mitridates VI, aliou-se aos partos, armênios, egípcios e sírios para cortar a influência romana na região. Esta "ausência" de Roma, de curta duração, é que permitiu igualmente a Alexandre Janeu promover o seu expansionismo judaizante, segundo muitos autores. André Paul, por exemplo, comenta: "É, pois, sob o impulso de 'reorientalização' dos territórios e

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Estados do Oriente Médio que acompanhava o declínio dos Selêucidas gregos, que se deve situar o combate impiedoso de Alexandre Janeu contra as cidades helenísticas e sua decisão de impor, pela força ou pela morte, o elemento judaico em toda a Palestina" (PAUL, 1983: 198-199). Após a ‘pacificação’ interna, Alexandre Janeu dedicou-se novamente às conquistas territoriais, expandindo o processo de judaização. Conseguiu grandes vitórias, apesar de um confronto mal sucedido com o rei nabateu Aretas que o obrigou a fazer algumas concessões a este povo22 (JOSEFO, Antiguidades Judaicas XIII, 392). Alexandre conseguiu, durante seus 37 anos de reinado, levar o território judaico à sua extensão máxima desde que o país fora devastado pelos babilônios cerca de 500 anos antes. A mulher de Alexandre Janeu, Salomé Alexandra, assumiu o poder depois dele e fez as pazes com os fariseus, governando com grande habilidade. Salomé Alexandra mal acabara de morrer e teve início um conflito entre seus dois filhos, Hircano II e Aristóbulo II. O filho mais velho e sumo sacerdote Hircano II, assumiu o posto de rei à morte de Salomé Alexandra. Mas Aristóbulo II não concordou, deflagrou-se a guerra entre os dois irmãos e, próximo a Jericó, Aristóbulo venceu Hircano. Este ainda se refugiou em Jerusalém, mas foi obrigado a render-se ao irmão que possuía forças superiores. Foi justamente na época do conflito entre os irmãos Hircano II e Aristóbulo II que surgiu no cenário político da Judéia Antípater, pai de Herodes, o Grande. Segundo Flávio Josefo, Antípater era, na época do conflito entre Hircano e Aristóbulo, o estratego da Iduméia, como o fora seu pai, também de nome Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas XIII, 392. Josefo não especifica que concessões são essas. Apenas diz: "Ele [Aretas] entrou com soldados na Judéia, venceu o rei Alexandre, perto de Adida, e voltou depois de ter conversado com ele". 22 

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Antípater, este nomeado para o posto por Alexandre Janeu (JOSEFO Antiguidades Judaicas XIV, 10). Isso explicaria a sua interferência nos negócios judaicos: para a família de Antípater, que vinha construindo seu poder através de alianças e amizades com árabes, ascalonitas e gazenses, o ambicioso Aristóbulo II representava real perigo, enquanto o fraco Hircano II poderia ser mais facilmente manobrado. Foi então que Antípater se posicionou politicamente do lado de Hircano II e começou a manobrar para que este reconquistasse o poder. Ainda de acordo com Flávio Josefo, Antípater procurou influenciar os judeus mais ilustres, lembrando-lhes que Aristóbulo era um usurpador do trono que pertenceu a Hircano, por ser o mais velho (Josefo Antiguidades Judaicas XIV, 11).

Considerações Finais

Quando pensamos no título deste capítulo sabíamos da complexidade que envolvia a presença dos gregos com os já diversos grupos que habitavam a Palestina. Contando pelo menos a partir de Alexandre, o Grande, passando pelo domínio da região por seus generais e seus descendentes, sejam eles ptolomaicos ou selêucidas, ou ainda as disputas envolvendo os macabeus, trata-se de muitos séculos de construção e configuração de uma paisagem grega não só na Palestina como em todo o Oriente Próximo. Foi justamente este quadro complexo, multifacetado e muitas vezes paradoxal envolvendo gregos tão diferentes com judeus e não-judeus (importante salientar) existentes ali que prepararam o terreno, por assim dizer, para os romanos que já tinham poder político e militar, desde pelo menos o século III a. C, na região como vimos, mas, que se estabeleceram definitivamente na Palestina em meados do século I a.C.

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Charles Richard Whittaker em seu trabalho Imperialism and culture: the Roman initiative, nos lembra que no mundo grego era necessário restaurar a disciplina enquanto que no ocidente bárbaro era preciso criar a ordem. Os romanos utilizariam para a empreitada instrumentos de poder como o exército, para a manutenção das fronteiras, e para o interior construíram cidades com características romanas (WHITTAKER, 1997: 158). Havia a questão da ordenação dentro do espaço, podemos citar como exemplo os teatros. A distribuição dos locais regulados por leis era um reflexo das hierarquias das ordens públicas. Inseridos na política de fundação ou re-fundação de cidades, os reis Selêucidas imprimiram uma maciça helenização das cidades por eles dominadas. A fundação de cidades foi um instrumento fundamental para a helenização do Oriente com o consequente fortalecimento do poder macedônio. Antíoco IV, por exemplo, graças a sua política helenizante, concedeu o status de pólis a várias cidades. Daí, pululavam pela cidade um sem número de monumentos ou quaisquer outros elementos culturais gregos na paisagem da Palestina. Também existem muitas evidências de que os próprios rabinos se apossaram de ideias helênicas na construção de seus comentários bíblicos. Skarsaune destaca pelo menos três. Primeiro, o helenismo explicava a existência do mundo por meio de uma lei oculta que rege todo o universo, o Lógos, sendo tarefa moral da humanidade viver uma vida em conformidade com essa razão divina, que é a lei da ética assim como da natureza. Os sábios judeus adotaram esta ideia e aplicaram-na à lei de Moisés. Segundo, destaca-se o método grego de exegese ensinado nas escolas gregas de direito e retórica e aplicado aos códigos de leis, o qual foi amplamente usado pelos rabinos. E em terceiro lugar há “a tradição dos antigos” da qual posteriormente originou-se o conceito da Torah oral a qual tem raízes nas escolas gregas de filosofia (SKARSAUNE, 2004: 28).

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Fato é que a cultura grega moldou a paisagem da Palestina, mais que isso, estabeleceu a partir das estruturas físicas ali alicerçadas, uma influência na forma de conceber o mundo, de gerir o pensamento e os aspectos mais elementares do dia-a-dia das comunidades ali existentes.

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7. Plutarco e o Egito

Maria Aparecida de Oliveira Silva Universidade de São Paulo

Introdução

Antes de tornar-se uma província romana, o Egito era mais um dos povos além da península itálica que se relacionavam comercialmente com Roma. Em 273 a.C., Ptolomeu Filadelfo estabeleceu um acordo entre Alexandria e Roma que permitiu o desenvolvimento das práticas comerciais entre romanos e egípcios. Por muito tempo, Roma nutriu o vivo interesse de manter relações amigáveis com o Egito, uma vez que os romanos travavam duras batalhas contra os cartagineses e seus aliados. Assim, também Ptolomeu Filopator firmou um acordo de paz com os romanos durante os anos de 218 e 201 a.C., enquanto Roma guerreava contra Aníbal, e desde então os romanos beneficiavam-se com a cordialidade exercida com os egípcios. No entanto, após as resoluções das contendas internas e externas, Roma voltou seu olhar imperialista para o território egípcio e atingiu seu objetivo de dominação no primeiro século antes de Cristo.

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Há milênios, o Egito encanta seus visitantes com a pujança de sua arquitetura, a riqueza de seus palácios, a notabilidade de seus estudiosos, mas, aos que aspiravam conquistá-lo, o seu maior atrativo estava em seus férteis campos, pois respondiam pela maior parte da produção de grãos desse período. Convém ressaltar que a localização do território egípcio também estimulava o intento romano de dominar a Ásia Menor e o Oriente Próximo, por ser estratégica à geopolítica de Roma. Assim, o domínio romano sobre o Egito simbolizava a presença de Roma na parte oriental do mundo e o proeminente controle sobre o abastecimento de grãos de todos os territórios conquistados, o que paradoxalmente implicou sua dependência, especialmente de sua política de distribuição dos grãos produzidos em solo egípcio para todo o seu domínio. Tal importância conferiu ao território egípcio a administração direta do imperador Augusto, que nomeia um prefeito para cumprir seus ditames. Por isso escolheu Galo, um amigo íntimo, para desempenhar a função. Além disso, Augusto determinou que três legiões romanas fossem destinadas exclusivamente à defesa desse território, perfazendo um total de quinze mil soldados. Essas medidas foram tomadas logo após a vitória sobre Marco Antônio e Cleópatra na Batalha de Ácio, em 31 a.C., representantes de um Egito helenizado. O processo de romanização iniciado pelo imperador Augusto trouxe uma nova matiz ao cenário cultural egípcio, daí encontrarmos gregos interagindo com romanos e egípcios na maior cidade do Egito: Alexandria.

Gregos e egípcios

O contato de gregos e egípcios antecede em muito a época de Plutarco. Há relatos que dão conta das passagens de Pitágoras, Sólon, Heródoto e outros gregos ilustres pelas terras

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egípcias. As histórias e as aventuras desses gregos nas terras do Faraó não superaram a reputação dos conhecimentos adquiridos por eles no Egito; dentre eles, as ciências mais destacadas são a matemática, a astronomia e a arquitetura. É mister assinalar que, ao lado de gregos, romanos e egípcios, estavam os persas, que antecederam gregos e romanos no domínio do império egípcio. É nessa conjuntura que se desenha um jogo de poderes no qual as manifestações culturais também significam a materialização do poder local quer de gregos, romanos, egípcios ou persas. O Egito – em particular a cidade de Alexandria – é palco para o culto de diferentes deuses por meio dos rituais de gregos, romanos e egípcios, e ainda do mitraísmo, trazido pelos persas da Índia. Tais práticas religiosas terão lugar em Roma, onde encontraremos locais de culto ao Panteão grego e romano, aos deuses egípcios, como Ísis e Osíris, e seitas mitraístas. Em virtude da complexidade de uma análise, mesmo que superficial, de tamanha interação social em poucas páginas, nosso objetivo neste capítulo é discorrer sobre a visão plutarquiana da participação dos gregos no Egito. Os intercâmbios cultural e econômico entre gregos e egípcios foram intensificados após a conquista de Alexandre, o Grande, e mais tarde com a tomada do poder por Ptolomeu e seus descendentes. O Egito conquistado por Alexandre em 332 a.C. estava longe de ser aquele de Tutmósis III e Ramsés II. As dissidências internas e o domínio persa na região foram elementos facilitadores não apenas para a invasão de Alexandre, mas também para a pronta aceitação que os egípcios demonstraram diante de seu comando, tratando-o como o libertador da dominação persa (FLOWER, 2002: 11). E as raízes gregas fincaram-se definitivamente no território egípcio com a fundação de Alexandria, em 7 de abril de 331 a.C. Contudo, será o seu sucessor, Ptolomeu I, que abrilhantará a fama de Alexandria com a construção da primeira biblioteca real em 270 a.C. (Idem, 15-19).

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A partir de então, os Ptolomeus passaram a incentivar a vinda de gramáticos, filósofos, astrônomos e outros, estimulando a pesquisa e a sedimentação de um centro de pesquisa que irradiava suas descobertas e seus conceitos por todo o Mediterrâneo, atraindo estudantes e estudiosos para Alexandria ainda no período da dominação romana. E é nesse quadro de dominação romana que Plutarco de Queroneia ­– de acordo com as pesquisas de Flower, por recomendação de seu mestre egípcio Amônio – viaja a Alexandria para estudar “na Biblioteca do Serapeum com o objetivo de coletar informações sobre as práticas religiosas egípcias para o seu livro Sobre Ísis e Osíris” (Idem, 134). Dentre os vários escritos plutarquianos, o tratado Ísis e Osíris representa, sem dúvida, parte significativa de sua interpretação e de seus conhecimentos sobre a cultura egípcia, dados que analisaremos nas páginas seguintes.

Ísis e Osíris: Filosofia e Religião

De acordo com o Catálogo de Lâmprias, Ísis e Osíris é o tratado de nº 23 (ZIEGLER, 1951: 843) e, na datação estabelecida por Jones, foi escrito em 115 d.C. (JONES, 1995: 122-123), já na maturidade de Plutarco, nascido em 45 d.C. O tratado é dedicado a uma renomada sacerdotisa délfica chamada Cléa, que pertencia a uma tradicional família délfica, cujas mulheres presidiam as Tíadas de Delfos. Ao lado de Plutarco, Cléa participava da corporação dos sacerdotes, além de partilhar seus conhecimentos filosóficos com seu amigo da Beócia. Plutarco recebeu da amiga Cléa a incumbência de educar sua filha Eurídice, que esposou Poliano, filho de outro amigo de Plutarco, e o casal teve uma filha, Flávia Cléa, que se tornou muito conhecida durante o período dos Antoninos por presidir as Tíadas de Delfos (PUECH, 1992: 4842-4843).

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Nas primeiras linhas do tratado, Plutarco afirma que o homem deve ser versado nos deuses pela necessidade humana de conhecer a verdade, um presente divino: A verdade é o máximo que o homem pode alcançar; a verdade é o mais augusto que a divindade pode conceder. Uma divindade cede todas as benesses aos homens para complementarem suas necessidades: mas ao transmitir-lhes a inteligência e a sabedoria permite-lhes serem partícipes dos atributos que lhes são próprios e de que fazem constante uso. Não é a prata nem o ouro o que constitui a felicidade divina; o que estabelece o seu poder não é o trono nem o relâmpago, mas a ciência e a sabedoria. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 351C) 1

Plutarco argumenta que o poder de Zeus apoia-se numa abrangente ciência e admirável sabedoria, elementos que justificariam sua divina eternidade, de onde conclui que “desejar a verdade é aspirar à divindade” (351E). E esses serão os fios condutores da interpretação plutarquiana do contato estabelecido entre gregos e egípcios, em particular, sob a perspectiva da religiosidade. Destacamos o fato de que Plutarco trabalha com três conceitos caros à tradição filosófica grega: o de verdade (ἀληθείας/ alêtheías), o de ciência (ἐπιστήμη/epistémê) e o de sabedoria (φρονήσις/phonêsis). E o mais curioso é notar que ele associa a imagem de Ísis, deusa “sábia e amiga da sabedoria”, a tais preceitos (351E). Como explicar que esses pilares do pensamento filosófico grego estejam associados ao culto de uma deusa egípcia? Ciente da estranheza de sua afirmação, Plutarco constrói uma relação entre essas diferenças culturais ao explicar a origem grega da deusa egípcia Ísis: Tradução de Jorge Fallorca. Doravante, as traduções desse tratado pertencem ao referido tradutor. 1 

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Além do mais, numerosas autoridades afirmam que Ísis é filha de Hermes; outras, não menos numerosas, pretendem que é filha de Prometeu. Uns sustentam a sua convicção, no facto de Prometeu passar por ser o inventor da sabedoria e da previsão; os outros, pelo facto de Hermes ser considerado como o descobridor da escrita e da música. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 352A)

Plutarco associa Hórus a Apolo, Serápis a Osíris, e muitos outros deuses egípcios a divindades de origem grega, discorrendo sobre a etimologia e a pronúncia dos nomes no Egito (RICHTER, 2001: 196-197). Assim, Plutarco revela ao mundo romano as marcas linguísticas deixadas pelos séculos de convivência entre gregos e egípcios, com especial ênfase no período em que os gregos colonizaram o Egito. E o sincretismo cultural de Plutarco continua: O verdadeiro isíaco é aquele que, tendo recebido pela via legal da tradição, tudo quanto se ensina e pratica relativamente a estas divindades, o submete ao exame da razão, e se esforça, pelo meio da filosofia, a aprofundar toda a verdade. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 352C)

Convém lembrar que a religião e a religiosidade egípcias em Plutarco manifestam ainda sua idealização tanto da cultura filosófica e religiosa dos gregos como da religiosidade egípcia (BORGHINI, 1991: 121). Sob essa perspectiva, Plutarco parece mesclar sua descrição dos egípcios à sua visão do que seriam os gregos e sua conduta filosófica. Observemos esta passagem: Por outro lado, este povo não introduziu, como alguns julgam, nas suas cerimônias religiosas, qualquer princípio que não estivesse dentro da razão, nenhum elemento fabu-

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loso ou inspirado pela superstição. Os seus hábitos e costumes baseiam-se, uns, em princípios morais, ou razões de utilidade; outros, justificam-se com engenhosas memórias históricas ou explicações deduzidas da natureza. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 353E)

A crítica de Plutarco destina-se aos cultos baseados nos êxtases de seus integrantes, carregados de superstições e de ações sem sentido. A religião em Plutarco está permeada pela razão, que dá ao homem a consciência de sua existência, conferindo-lhe um lugar no mundo que lhe será favorável ou não, dependendo de sua capacidade de repensar sua humanidade e as inquietações de sua existência através do divino, e por ele preencher seu pensamento com razão e sabedoria, sempre em busca da verdade. Plutarco nos revela as referências de onde partiram tais conclusões: Isto é o que testemunham os gregos mais ilustres: Sólon, Tales, Platão, Eudóxio, Pitágoras e, segundo alguns alunos, também Licurgo. Foram viver para o Egito e chegaram a gozar de intimidade com os sacerdotes. Por isso se diz que Eudóxio ouviu as lições de Conufis e de Memfis; que Sólon deu ouvidos às do saíta Sonchis, e que Pitágoras conversava com o helipolitano Enufis. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 354E)

Embora, na citação anterior, Plutarco descreva uma situação de troca cultural e intelectual entre gregos e egípcios, sua inclinação a destacar a influência grega no Egito se fará presente em muitos trechos de sua narrativa. A partir dos nomes citados por nosso autor, percebemos que Plutarco prioriza a relação entre a religião e a filosofia. Um exemplo disso está em Do E de Delfos, tratado em que Plutarco rende homenagem ao amigo Serapião, em Atenas, e outros amigos atenienses ao

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oferecer-lhes o tratado, no qual discorre sobre o significado do “E” posto na entrada do santuário, por causa da usual curiosidade sobre a pertinência de se ter colocado o “E” em Delfos, conforme lemos a seguir: Há mais evidência de que os primeiros filósofos refletiram sobre a natureza do amado deus e o significado atribuído à letra “E”, que é especial e importante, por isso quiseram apresentá-la como símbolo de alguma coisa grande. Eu tinha até agora evitado o assunto muitas vezes proposto em minha escola. (PLUTARCO, Do E de Delfos, 385A)

Então, percebemos que Plutarco associa a filosofia à reflexão religiosa, em uma relação simbiótica em que a religiosidade do filósofo o inspira a verbalizar o divino, trazer para o mundo tangível o construto sensorial da religião, por isso ele afirma que Amônio fora instruído por Apolo, fato que legitima seu discurso. Convém lembrar que o deus Apolo está associado ao Sol, o que lhe confere uma natureza clara, luminosa, que o conduz à pureza, elemento essencial para o alcance da verdade (OTTO, 2005: 35-112). Notamos que o mestre Amônio é a personagem utilizada por Plutarco para expressar seu entendimento da questão, porque “o deus não era menos filósofo que adivinho” (Ὅτι μὲν γὰρ οὐχ ἧττον ὁ θεὸς φιλόσοφος ἢ μάντις). Com esse argumento, Plutarco insere seu mestre Amônio no diálogo e, por meio dele, introduz o pensamento dos antigos filósofos gregos a respeito da simbologia de alguns elementos que jazem em Delfos, como a trípode, o sentido de Apolo e outros (385B). O cenário do diálogo é o próprio santuário em que estrangeiros interpelam Plutarco sobre o significado do “E” de Delfos.

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O artifício retórico de Plutarco para fixar a atenção do ouvinte/leitor em seu discurso manifesta-se em sua afirmação de que jamais respondera tal questão, nem mesmo para seus alunos. Após despertar o interesse de seu ouvinte/leitor, Plutarco explica que, por se tratar de estrangeiros prestes a partir, daria finalmente a esperada resposta (385A). Pela dinâmica de um diálogo, a resposta de Plutarco não é dada diretamente, pois outras personagens expressam suas opiniões; dentre elas, destacamos a do sacerdote Nicandro, que nos oferece a versão oficial de Delfos para o uso da letra “E”. Conforme o referido sacerdote, a letra “E” corresponde à partícula interrogativa “ei” (se), com a qual se introduz perguntas aos deus Apolo, significando ao mesmo tempo uma partícula desiderativa, que reflete o sentimento de quem o consulta (392A). A resposta de Plutarco revela-se nas palavras de Amônio, que assim se pronuncia sobre o assunto: Para mim, acho que a letra E não designa um número, nem ordem, nem um conjunto, nem qualquer parte do discurso, mas que em si é uma descrição perfeita do deus. Ela nos informa, por esse enunciado, força e virtude. Na verdade, quando nos aproximamos do santuário, o deus envia-nos estas palavras: “conhece-te a ti mesmo”. E nós respondemos com o monossílabo: "Ei”, isto é, "Tu és”, e significa que atribuímos somente a ele a propriedade da verdade, única e incomunicável, que existe por si só. (PLUTARCO, Do E de Delfos, 391E-392A)

Plutarco não desdiz o sacerdote, pois concorda com a expressão “Ei”, mas nos apresenta uma versão diferente para a finalidade de sua inscrição no santuário, uma vez que “Ei” pode significar as duas coisas: “se” ou “és” são diferenciados apenas pela acentuação. Outro ponto concorde entre eles é que não se trata

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somente da letra “E”, como vinham discutindo os pitagóricos, mas de uma expressão verbal do consulente, um sinal da interação entre o humano e o divino. Assim, para o nosso autor, ao consultar o oráculo de Delfos, o homem estabelece uma relação de confiança absoluta no que será pronunciado, o que legitima o processo, pois o ritual perderia vigor e sentido sem a fé do consultante.

Plutarco e Heródoto: dois Egitos

Plutarco trata o contato dos gregos com os egípcios como algo indelével na constituição da identidade egípcia, a tal ponto que atribui origens gregas a diversos nomes de deuses do Egito, como, por exemplo, Osíris associado ao deus Dioniso: Os gregos consagraram a hera a Dioniso; esta planta chama-se chenósiris em egípcio, palavra que significa “Planta de Osíris” [...]. As semelhanças que referimos nas suas festas e sacrifícios são, efectivamente, dessa natureza, que convencem com mais nitidez que todos os testemunhos. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 365E)

Em nosso entendimento, Plutarco constrói essa aproximação etimológica dos nomes dos deuses egípcios a vocábulos gregos com o objetivo único de evidenciar a fundamental contribuição dos filósofos gregos, que se faz notar até mesmo na nomenclatura dos deuses do Egito. O papel da filosofia grega no entendimento da religião egípcia afasta dela as crendices e os pensamentos supersticiosos, pois: Nestas questões, deve-se tomar a razão, secundada pela filosofia, como iniciadora e guia, com o objectivo

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de não admitir mais do que pensamentos santos sobre a interpretação dos ritos e doutrinas. Deste modo, não recearemos o que dizia Teodoro, quer dizer, que os discursos que entregava com a mão direita ao seu auditório fossem recebidos com a mão esquerda por alguns dos seus ouvintes. O mesmo se pode dizer em relação a nós, se compreendermos de maneira diferente à que se deve, aquilo que as leis estabeleceram sabiamente, no que se refere aos sacrifícios e festas religiosas, não deixaremos de escorregar no erro. Portanto, deve-se referir tudo à razão-verdade e inspirar-se nas práticas que dela se libertam, para regular os nossos pensamentos. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 378A-B)

E será por intermédio da filosofia grega que Plutarco discursará em favor da filosofia e da religião como meios de se encontrar a verdade através do conhecimento do divino, uma vez sustentado pelos princípios filosóficos: Platão e Aristóteles [...] querem dar-nos a entender que aqueles que se tiverem libertado, auxiliados pela razão, da mistura confusa de toda a espécie de opiniões, dirigem-se até esse Ser primeiro simples e imaterial, conseguem chegar sem intermediário à verdade pura que está ao seu redor, e acreditam haver alcançado com isso o fim supremo da filosofia. (PLUTARCO, Ísis e Osíris, 382D)

Ao longo do tratado plutarquiano é exposto, ainda que superficialmente, o pensamento de um grande número de filósofos gregos, e dentre eles o mais citado é Platão. Plutarco dedica-se com afinco a explicar os acontecimentos religiosos dos egípcios empregando vários argumentos psicológicos, históricos, políticos, econômicos e estéticos, com ênfase naqueles

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que ressaltam o conceito de razão filosófico-religiosa contido em sua educação platônica. Em um estudo de fôlego sobre a religião egípcia em Plutarco, Hani demonstra que Plutarco descobriu no culto a Ísis reflexões filosóficas dos pensadores gregos, em particular os preceitos observados pelo filósofo ateniense Platão (HANI, 1976: 8). A interpretação herodotiana dos egípcios recebe acirradas críticas de Plutarco, que contesta com veemência a maledicência de Heródoto, quando atribui origem egípcia aos deuses gregos Dioniso e Deméter e quando afirma que Héracles foi um deus cultuado no Egito antes de sê-lo na Grécia (SILVA, 2008: 6-7). De acordo com o relato de Heródoto, Helena foi recebida por Proteu, rei do Egito, quando ela e Páris, também chamado de Alexandre, foram levados por uma tempestade à costa de Mênfis, onde estava situado o seu reino, e o evento é assim descrito pelo historiador: Os sacerdotes, interrogados por mim, contaram-me a seguinte história de Helena: após raptar Helena em Esparta Alexândros navegou de volta à sua terra, mas foi colhido por ventos violentos no mar Egeu e levado por eles até o mar Egípcio; de lá, como os ventos não amainassem, ele chegou ao Egito no lugar chamado Boca Canópia, e finalmente aportou ao lugar chamado Salinas. (HERÓDOTO, História, II, 113)2

Ao aportarem no local, o rei foi informado por seus súditos de sua chegada, sobre o fato de que Páris havia raptado Helena de Esparta e ainda indagado sobre como deveriam proceder em relação a eles. A informação de que Helena nunca chegou a Troia, mas foi deixada no Egito, é descrita por Heródoto até 2 

Tradução de Mário da Gama Kury, autor das traduções de Heródoto neste capítulo.

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o capítulo cento e vinte; tal versão também é encontrada em Hesíodo, fragmento 358 (Merbeck-West), e bem desenvolvida em Eurípides na peça Helena (ASHERI; LLOYD e CORCELLA, 2007: 322-326). Então, Proteu ordenou-lhes que os trouxessem à sua presença e, quando ambos estavam diante do rei, o regente disse-lhes tais palavras: Agora, portanto, já que minha preocupação é não matar estrangeiro algum, não tolerarei que leves contigo esta mulher e tuas posses; guardá-las-ei para o estrangeiro heleno, até o dia em que ele mesmo vier buscá-las de volta; quanto a ti e aos seus companheiros, ordeno-vos que deixeis minha terra com destino a qualquer outra dentro de três dias, se não o fizerdes, tratar-vos-ei como inimigos! (HERÓDOTO, História, II, 115)

E Heródoto de Halicarnasso dá continuidade ao seu relato sobre a recepção de Proteu e acresce a informação sobre a insistência dos gregos em solicitar aos troianos a entrega de Helena e dos tesouros subtraídos de Esparta, e, ao final, depois da repetitiva negativa dos troianos sob a alegação de que ela e os tesouros estavam no Egito, Menelau para lá se dirigiu em busca de sua esposa e de suas riquezas. O desfecho da ida do rei espartano à corte de Proteu é assim relatado pelo historiador: Chegando ao Egito, Menêlaos navegou rio acima até Mênfis; lá ele disse tudo que havia realmente acontecido e foi distinguido com um tratamento muito hospitaleiro, recebendo de volta Helena incólume e com ela todas as riquezas. Menêlaos, entretanto, apesar de tão bem tratado, foi injusto para com os egípcios; por ocasião dos preparativos para o início da viagem de volta por mar ele foi retido pelo mau tempo; diante da persistência dessa dificuldade Menêlaos imaginou e executou um ato

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sacrílego: apoderando-se de duas crianças do local ele as sacrificou. Depois disso, logo que o crime se tornou conhecido, diante do rancor e da perseguição dos egípcios ele teve de fugir em suas naus para a Líbia. (História, II, 119)

A recepção de Plutarco dessa narrativa herodotiana, como se poderia esperar, foi de recusar o dito em sua totalidade, por meio da seguinte crítica: Assim, é filobárbaro, de modo que livra Busíris do dito sacrifício humano e do assassinato de estrangeiros. Enquanto testemunha a imensa piedade e justiça em todos os egípcios, faz recair sobre os gregos esta ação criminosa e a sede de sangue. No segundo livro, afirma que Menelau, após ter recebido Helena de Proteu e ter sido honrado com grandiosos presentes, tornou-se o mais injusto e terrível dos homens; porque retido pela impossibilidade de navegação, “tramou uma ação ímpia, capturou dois filhos dos homens nativos e os ofereceu como sacrifício; odiado e perseguido por isso, partiu em fuga com as naus para Líbia”. (PLUTARCO, A Malícia de Heródoto, 857A-B)3

A argumentação de Plutarco mais uma vez traz erros quanto ao conteúdo exposto por Heródoto, pois acrescenta ao relato herodotiano que “após ter recebido Helena de Proteu e ter sido honrado com grandiosos presentes”, enquanto lemos em Heródoto que “recebendo de volta Helena incólume e com ela todas as riquezas.”. As alterações de Plutarco nos levam a crer em suas palavras de que Heródoto de Halicarnasso é filobárbaro e que cometeu injustiça contra Menelau em sua narrativa. O interesse de Heródoto pelos costumes e práticas dos povos estrangeiros, 3 

Excetuando os excertos do tratado Ísis e Osíris, os demais foram traduzidos pela autora.

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segundo Rood, principia um tipo de literatura etnográfica que se coaduna com a expansão do imperialismo dos persas, lídios e gregos, resultando no contato de diferentes povos. Dessa maneira, o gênero literário de cunho etnográfico se desenvolverá nos escritos seguintes, em virtude desse estreitamento das fronteiras geográficas (ROOD, 2006: 293-296)4. Ressaltamos que, em sua biografia do herói Teseu, Plutarco relata que Héracles sacrificou Busíris (Vida de Teseu, XI, 2), o qual, segundo a mitologia grega, é descrito como um rei do Egito, filho de Posídon, que, para evitar as secas, sacrificava os estrangeiros a Zeus e que Héracles o teria matado quando foi colocado no altar para o seu sacrifício. Sobre o fato de Menelau ter sido honrado com presentes pelo rei, há outro engano, pois Heródoto grafa que as riquezas pertenciam ao próprio Menelau, como podemos ver em seu uso do pronome pessoal reflexivo, com função de possessivo, eōutoū (ἑωυτοῦ). Portanto, vemos que as manipulações de Plutarco servem de artifícios retóricos, à moda dos sofistas, para validar sua argumentação; como Moles nos esclarece, encontramos mentiras nos relatos de Heródoto, Tucídides e Plutarco, porque elaboram manipulações, que o autor denomina “fabricação”, para que suas narrativas pareçam ser verdadeiras (MOLES, 1993: 115-116). Outra questão interessante a ser discutida é que Heródoto justifica o registro do fato de Helena ter sido acolhida por Proteu, demonstrando que Homero deixa entrever em seus versos da Ilíada e da Odisseia que houve um desvio de Páris e Helena na sua ida à Troia, mas que não interessava ao poeta que ela fosse descrita em seus cantos por não atenderem às necessidades de seu argumento, uma vez que não cabia dentro do enredo de sua história (História, II, 116). Na peça Helena Sobre a natureza etnográfica da escrita herodotiana, ver ainda: Sourvinou-Inwood, 2003: 103-144. 4 

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de Eurípides, o tragediógrafo faz referências à hospedagem oferecida por Proteu à Helena e à sua entrega ao rei Menelau, como lemos a seguir: Não era eu, porém, que determinava o destino dos troianos nem o meu nome era para os helenos prêmio da lança. Hermes, tomando-me nas dobras da bruma, envolta em uma nuvem – pois não me esquecera Zeus – instalou-me no palácio de Proteu, em que me encontro, escolhendo o mais virtuoso de todos os mortais, a fim de manter incólume o meu leito para Menelau. (EURÍPIDES, Helena, 42-48)5

Os versos acima transcritos revelam a existência de uma tradição literária que aceita uma versão diferente para o relato homérico e que se aproxima da apresentada por Heródoto, ou seja, que não se trata de uma criação herodotiana, como nos faz crer Plutarco, e que essa variante do mito não foi registrada pelo poeta para que não houvesse falha em seu enredo, uma vez que Homero compõe vários versos em que Helena figura no palácio de Príamo. Citamos, por exemplo, estes versos homéricos: Isso diziam; mas Príamo a Helena chamou em voz alta: “Vem minha filha; aqui mesmo bem perto de mim vem sentar-te porque o primeiro marido, os parentes e amigos revejas. Não és culpada de nada; os eternos, somente, têm culpa” (HOMERO, Ilíada, III, 161-164)6

5  6 

Tradução de José Ribeiro Ferreira. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

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Em defesa da origem grega dos deuses e de Héracles, Plutarco sustenta sua afirmação de que Heródoto de Halicarnasso é filobárbaro, dado que o historiador expõe em vários capítulos do segundo livro de sua História a relação entre as divindades gregas e as egípcias, enfatizando a influência dos egípcios na constituição do Panteão grego e na realização de seus rituais. As afirmações que suscitam o questionamento de Plutarco à narrativa herodotiana encontram-se distribuídas essencialmente em dois capítulos do segundo livro. O primeiro é o cinquenta e dois, em que o autor revela sua descoberta acerca da origem dos deuses gregos: De fato, a Hélade recebeu do Egito quase todos os nomes dos deuses. Estou convencido de haver descoberto que eles vieram dos bárbaros – sobretudo do Egito, penso eu. À exceção de Posêidon e dos Dióscuros, como já disse anteriormente, e de Hera, de Têmis, das Graças e das Nereides, os nomes de todos os outros deuses sempre foram conhecidos no Egito (repito as palavras dos próprios egípcios). Segundo me parece, os deuses cujos nomes eles dizem não conhecer receberam os seus nomes dos pêlagos, exceto Posêidon, conhecido por eles através dos líbios, o único povo que desde sua origem têm um deus com o nome de Posêidon e que sempre cultuou esse deus. Mas os egípcios não dedicam qualquer culto aos heróis. (HERÓDOTO, História, II, 50)

E o segundo ponto principal da crítica plutarquiana é encontrado no capítulo cinquenta e oito da obra de Heródoto, no qual o autor afirma: As festas solenes, as procissões e as oferendas aos deuses também parecem ter sido instituídas primeiro pelos egípcios, e os helenos aprenderam essas coisas deles. Uma prova cabal disso é a seguinte: essas cerimônias parecem

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ter sido instituídas no Egito na mais remota antiguidade, enquanto as dos helenos são de origem recente. (HERÓDOTO, História, II, 58)

Plutarco tece várias observações que demonstram sua desaprovação ao discurso herodotiano e rebate suas assertivas ao longo de sua exposição para concluir que são impróprias e inverídicas por representarem uma proposta que, à medida que o historiador constrói sua narrativa, ele segue: alterando as devoções e purezas dos assuntos sagrados dos gregos com imposturas e ficções dos egípcios. (PLUTARCO, A Malícia de Heródoto, 857E)

Em seu tratado Ísis e Osíris, Plutarco sintetiza o sincretismo religioso de gregos e egípcios, iniciado já à época ptolomaica. Desde a instauração no Egito da dinastia dos Ptolomeus, seus reis estimularam a criação de uma religião greco-egípcia. No entanto, esta jamais se tornou predominante no Egito, como o próprio Plutarco admite, quando se refere à diversidade cultural e religiosa dos territórios egípcios (CALDERÓN DORDA, 1996: 203). No entanto, a imagem do Egito que nosso autor transmite nesse tratado privilegia o cotidiano da cidade de Alexandria, como se a parte respondesse pelo todo (SCOTT-MOCRIEFF, 1909: 89). Outro aspecto interessante nesse tratado, como notou Pérez Largacha, reside no fato de Plutarco citar vários autores que escreveram sobre o povo egípcio, exceto Heródoto. E é sabido que o segundo livro da obra herodotiana é dedicado aos hábitos, costumes e histórias do Egito. Como bem assinala o autor, as razões estão em A Malícia de Heródoto (857 A-E), em que Plutarco censura Heródoto por sua conduta favorável aos egípcios ao afirmar que várias divindades gregas eram procedentes do Egito. Dessa maneira, o discurso plutarquiano

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sobre o sincretismo filosófico e religioso entre gregos e egípcios reafirma seu sentimento de superioridade cultural dos gregos (PÉREZ LAGARCHA, 1990: 196). A interpretação herodotiana dos egípcios recebe acentuadas críticas de Plutarco, que contesta com veemência a maledicência de Heródoto, quando, por exemplo, atribui origem egípcia aos deuses gregos Dioniso e Deméter (857C) (SILVA, 2008: 6-7). A situação econômica e política da Acaia no Império leva à formação de uma elite cultural e econômica que se declara herdeira de uma tradição cultural grega não situada geograficamente na Grécia de seus antepassados, mas nas regiões orientais do Império romano que coincidiam com a passagem de Alexandre, o Grande, por elas. Essa comunidade cultural grega logo tratou de elaborar extensas árvores genealógicas que alcançavam o ramo de Héracles. Conforme conclui Boulogne, o sentimento de pertencimento à cultura grega em Plutarco é tão intenso que sua manifestação de romanofilia notada por alguns estudiosos não passa de uma estratégia plutarquiana para proteger a comunidade grega no Império (BOULOGNE, 1994: 40). Assim, a preocupação plutarquiana em legitimar a origem grega de suas famílias estende-se a seus hábitos e costumes, sendo inadmissível que deuses gregos tivessem uma origem bárbara. Daí a limitação do sincretismo religioso de Plutarco, que admite a coexistência de elementos gregos e egípcios, desde que a influência grega seja predominante, e que seu grande mestre Amônio, um egípcio, seja especialista na filosofia platônica e habitante em Atenas. Lozano de Castro afirma que a religiosidade plutarquiana se manifesta em três tendências marcantes: a influência egípcia, a influência da própria religião grega e a convergência delas, concebidas a partir da oposição “puro” e “impuro”, sob a influência da filosofia platônica (LOZANO CASTRO, 1992: 261-263).

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Conclusões

Plutarco contesta em Heródoto a construção de um Egito mais próspero e desenvolvido que a Grécia, e ainda coloca os egípcios na posição de mestres dos gregos. Vejamos, como exemplo, este passo: Mas em relação às coisas humanas, eles dizem unanimemente o seguinte: os egípcios foram os primeiros entre todos os homens a descobrir o ciclo do ano e a dividir em doze períodos o curso das estações. Dizem eles que fizeram essa descoberta graças aos astros. Esse sistema é mais preciso que o dos helenos em minha opinião, pois estes acrescentam um mês intercalar a cada dois anos, para compatibilizar o calendário com as estações. (HERÓDOTO, História, II, 4)

Então observamos que Heródoto realiza uma análise desprovida de um sentimento de superioridade cultural, que constrói uma barreira no olhar do outro que o impede de ver suas qualidades, por querer a todo momento reafirmar a importância de sua pátria em detrimento da outra, como é o caso de Plutarco ao avaliar o Egito sob a perspectiva de um suposto poder cultural exercido pelos gregos no solo dos faraós. Heródoto pertence à época da florescência grega; não há uma pressão imposta por um dominador que se divide entre simpatizantes e adversários da cultura grega, tal a vivida por Plutarco. Nosso historiador é favorecido também por um momento democrático em que peças teatrais são encenadas, trazendo em seu conteúdo críticas e elogios ao sistema políade, enfim, é o momento da liberdade de expressão, da chamada paresía. Assim, Heródoto pode escrever:

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Mas vou alongar-me em minhas observações a respeito do Egito, pois em parte alguma há tantas maravilhas como lá, e em todas as terras restantes não há tantas obras de inexprimível grandeza para ser vistas. (HERÓDOTO, História, II, 35)

O debate entre Plutarco e Heródoto nos mostra as permanências e as transformações dos contextos e de seus textos, dos momentos e de seus pensamentos. A Grécia de Heródoto conhecia o seu apogeu e o sincretismo religioso era algo comum ao pensamento cosmopolita de seu tempo. Além disso, era recomendável a um intelectual que saísse de seu território em busca de erudição e conhecimentos de outras culturas. Muitos pensadores gregos estiveram no Egito e trouxeram suas impressões e influências desse contato. Já Plutarco desconhece uma Grécia gloriosa, senhora de mares. A Grécia de Plutarco encontra-se pulverizada pelas inúmeras batalhas que abrigou em seu território e pela escassez de recursos, e por isso pouco interessava aos romanos (ALCOCK, 1997: 103). Plutarco revela em seu discurso seu sentimento de pertença à cultura grega. Ressaltamos o quão é significativo que nosso autor tenha declarado no proêmio da biografia de Demóstenes não ser exímio conhecedor da língua latina. Ainda que os romanos e seu invencível exército cerceassem os territórios e a política interna dos gregos, mostraram-se incapazes de controlar e até mesmo de destruir a tradicional cultura grega. Assim, para Plutarco, a contrapartida da dominação romana na Grécia é sua convivência com uma comunidade que não renuncia a seu modo de ser grego. Dentro desse cenário, Plutarco vê-se impossibilitado de criticar abertamente a política romana de repressão militar e de cooptação das elites das províncias, por isso seu silêncio

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sobre esses elementos constituintes de sua realidade para direcionar-se à questão cultural 7. Convém registrar que o princípio desse pensamento plutarquiano também nasce como contraponto ao reconhecido processo de romanização dos territórios conquistados pelos romanos iniciado desde os tempos de Augusto, o que fortalece sua intenção de reconstruir a imagem das personagens gregas do passado para mostrar aos gregos de seu tempo o quão valiosa é a preservação de sua cultura, porque descendem de um povo glorioso, com homens dignos de imitação e de serem mantidos na memória dos vindouros. Daí a preocupação de nosso autor em mostrar o alcance da cultura grega, manifestada em suas práticas, que influencia dominados e dominadores, que torna persas, egípcios, romanos e outros um pouco mais gregos, ainda que declare, no vigésimo capítulo da biografia de Péricles, que o político ateniense aspirava à grandiosidade do império egípcio... Por se tratar de um estudo resultante de meu primeiro pós-doutorado, financiado pela Fapesp, destino meus sinceros agradecimentos a essa Instituição, que há anos possibilita o desenvolvimento de meus projetos e a sedimentação de minha formação como pesquisadora. Agradeço à Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti pelo zelo e companheirismo, além de seus preciosos ensinamentos que enriqueceram sobremaneira a escrita deste trabalho.

7 

Para aprofundar-se na questão, ver: Said, 2006 e Orlandi, 2007.

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8. Religião e práticas funerárias no Egito Romano

Marcia Severina Vasques Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Oriente. Oriente Médio. Oriente Próximo. Lugar onde o sol nasce, leste. O Oriente é um lugar geográfico de fato. Mas também é representação. Imaginação. Miragem. Camelos, pirâmides, oásis, odaliscas, deserto. O Egito, típica imagem do que o Ocidente criou a respeito do Oriente, Oriente Médio ou Próximo, próximo de onde? Estas indagações nos permitem discutir conceitos que há muito tempo estão embutidos em nossa cultura. O Oriente foi construído em oposição ao Ocidente, ou seja, a Europa Ocidental e, posteriormente, os Estados Unidos. Ainda que esta dicotomia tenha se fortalecido na academia no decorrer dos séculos XVIII, XIX e início do XX, possui raízes mais antigas, já que muito do que sabemos a respeito das sociedades do Oriente Antigo nos foi legado por gregos e romanos ou foram decorrentes de sua releitura a posteriori. Mas, em primeiro lugar, devemos nos questionar: o que significa Oriente e Ocidente? Por que diferenciamos as cha-

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madas culturas orientais da Antiguidade e a cultura clássica? A impressão que nos fica é de sociedades despóticas a oriente, com populações escravizadas por governantes divinizados, dadas à indolência e à superstição, que se opõem à ideia de liberdade inventada pelos gregos com sua racionalidade e filosofia, características herdadas pelos romanos, meros continuadores e propagadores do gênio grego. Evidentemente, que esta ideia tradicional já foi há muito abandonada pela historiografia. No entanto, ainda são encontradas no jargão comum de nosso dia a dia e divulgadas pela mídia televisiva e, atualmente, digital. É por isso que ao refletir acerca de um livro com a temática “Oriente” considerei a possibilidade de discorrer a respeito do Egito Romano, época de intenso contato cultural entre egípcios, gregos, romanos, para não citarmos outros povos, pautada pelo multiculturalismo e pela versatilidade religiosa. As fronteiras entre gregos, romanos e outras culturas existem, evidentemente, mas adquirem aspectos diferenciados dependendo do ponto de vista e do contexto onde nos situamos. Objetivamos discutir alguns aspectos destas relações culturais no Egito de então. Iniciaremos com uma pequena discussão a respeito das categorias Ocidente e Oriente para abordar, em seguida, a visão do Egito por gregos e romanos e, por último, uma situação específica de contato cultural no próprio território egípcio com enfoque para a região denominada chora 1, em oposição a Alexandria, ou seja, o Egito mesmo, desde a Antiguidade considerado como existindo em separado de sua capital, sede da monarquia dos Ptolomeus e, após 30 a.C., com a conquista de Otávio, residência oficial do prefeito romano. 1 

Termo que designa território, país ou área rural de uma pólis (Bailly, 1950: 2163-2164).

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Orientalismo

Edward Said (1996) explica o Orientalismo como um fenômeno que se insere no discurso criado por determinada intelectualidade europeia interessada no Oriente, sobretudo o Oriente Médio, foco de seu estudo. Este discurso aparece como decorrente de uma relação de poder, desfavorável ao Oriente, já que é este que permanece como uma região cobiçada e colonizada pelas potências ocidentais no decorrer do século XIX e início do século XX. Juntamente a esta tradição propriamente acadêmica temos a construção de uma imagem do “outro” em oposição ao europeu, que aparece nitidamente nas obras literárias e artísticas e que Said faz remontar ao período clássico grego na figura do dramaturgo Ésquilo, na peça “Os Persas”: O orientalismo tem suas premissas na exterioridade, ou seja, no fato de que o orientalista, poeta ou erudito, faz com que o Oriente fale, descreve o Oriente, torna os seus mistérios simples por e para o Ocidente. Ele nunca se preocupa com o Oriente a não ser como causa primeira do que ele diz. O que ele diz e escreve, devido ao fato de ser dito e escrito, quer indicar que o orientalista está fora do Oriente, tanto existencial como moralmente. O principal produto dessa exterioridade é, claro, a representação: já na peça de Ésquilo Os Persas o Oriente é transformado, de um distante e muitas vezes ameaçador Outro, em figuras que são relativamente familiares (no caso de Ésquilo, mulheres orientais aflitas). A dramática imediaticidade da representação em Os Persas obscurece o fato de que a audiência está assistindo a uma demonstração altamente artificial daquilo que um não-oriental transformou em um símbolo de todo o Oriente (SAID, 1996: 32)

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Evidentemente que a construção do modelo orientalista nos séculos XVIII e XIX baseia-se na ideia de que a Europa é herdeira direta da civilização grega e romana. A oposição Oriente-Ocidente se deu, sobretudo, com a valorização da chamada civilização clássica, considerada em todos os sentidos superior à oriental, pois seria o berço da democracia, da filosofia e das artes. Esta concepção forjada do que foi a cultura clássica traz em si a raiz de um pensamento racista que se construiu em países ocidentais e que desempenhou um importante papel na Alemanha nazista com o seu ideal de pureza racial. A Grécia Antiga, vista neste período apenas como constituída por dois modelos opostos de sociedade, a ateniense e a espartana, foi separada das outras sociedades mediterrâneas como se seu espírito ariano se destacasse das populações semitas, negras e mestiças da Ásia ou da África (BERNAL, 1987). A respeito desta visão tradicional, que oferece uma distinção nítida entre a Antiguidade Clássica e a Oriental, Jack Goody afirma: A Antiguidade, “Antiguidade clássica”, representa para alguns o começo de um novo mundo (basicamente europeu). O período se encaixa com perfeição em uma corrente progressiva da história. Nesse sentido, em primeiro lugar, a Antiguidade teve de ser radicalmente apartada de seus predecessores na Idade do Bronze, que caracterizou algumas das mais importantes sociedades asiáticas. Em segundo, Grécia e Roma passam a ser vistas como fundadoras da política contemporânea, sobretudo no que concerne à democracia. (GOODY, 2008: 37)

Esta sobrevalorização da Grécia e, em seu esteio, de Roma, prejudicou sua consideração como sociedades que, embora

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únicas, tiveram contatos culturais com outras da região do Mediterrâneo, por exemplo, com as chamadas sociedades orientais. Novos estudos permitem que situemos hoje a sociedade grega antiga de uma maneira mais ampla, onde ela está inserida no contexto do Mediterrâneo Oriental (VLASSOPOULOS, 2007). Normalmente considera-se que os próprios gregos se diferenciaram dos “orientais”, quando pautaram sua identidade na relação de alteridade com o “bárbaro”, essencialmente o persa, em decorrência das Guerras Médicas (HARTOG, 2004: 95-96). No entanto, observamos que esta atitude grega em relação aos outros povos da bacia mediterrânea nem sempre foi a mesma em todo período histórico. É preciso situá-la em seu devido contexto. Uma atitude como a de Ésquilo demonstra bem a bipolaridade entre gregos e persas. Normalmente tida como resultado da guerra entre gregos e persas a noção de helenidade pode ser mais antiga e remontar ao século VI a.C. e talvez estivesse associada aos Jogos Olímpicos, restritos a quem tivesse ascendência grega. Enquanto o conceito de identidade grega era agregativo, no período arcaico, na época clássica este passou a se pautar pela alteridade, pela oposição (HALL, 2002). Apesar disto, Heródoto, um autor do século V a.C., não demonstra ter uma visão tão negativa dos não gregos. François Hartog (1999) identifica, de forma acurada, as estruturas narrativas da obra herodotiana com suas inversões, analogias e comparações. Entretanto, não podemos deixar de constatar em Historia, permeando o método de “tradução” feito por Heródoto do mundo bárbaro para os gregos, a presença de uma rica rede de contatos e trocas culturais entre povos diferenciados. Este aspecto da obra de Heródoto é apontado por Rosalind Thomas (2001), que o considera um autor complexo, que demonstra o contexto cultural mais amplo no qual os gregos estavam inseridos. E, talvez, Heródoto estivesse

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em uma situação privilegiada, pelo fato de ser originário de Halicarnasso, uma cidade de origem dória, mas que utilizava o dialeto jônio e estava situada em uma estreita zona de contato com o mundo dito oriental, a região da Ásia Menor. Em época helenística e romana os critérios de etnicidade se tornaram mais fluidos. A questão de parentesco foi suplantada pelo domínio da cultura grega, aspecto mais importante da unidade helênica. Eram bárbaros aqueles que não tinham acesso à paideia e gregos aqueles que compartilhavam a cultura grega (SAID, 2001: 282). Como afirma Hartog (2004: 112): Com os séculos quarto e terceiro, se o par antônimo gregos/bárbaros permanece em operação para classificar e distinguir, sua definição vai-se modificando: menos político, acentua claramente o cultural. Já em Heródoto a identidade grega estava circunscrita por um conjunto de traços culturais (ao lado da comunidade de sangue), mas de agora em diante a grecidade apresenta-se como algo que se pode adquirir.

Apesar da valorização da cultura grega, o contato mais intenso com outros povos do Mediterrâneo, a partir da conquista de Alexandre, o Grande, fez com que ocorresse uma valorização e mesmo admiração pelo Oriente como é o caso, por exemplo, do Egito. Sua antiguidade era associada com sabedoria ancestral, aspecto este que já estava presente na obra de Heródoto. O Egito ptolomaico é um exemplo da convivência entre as culturas egípcia e grega. Ainda que inicialmente tenhamos gregos oriundos de várias partes do Mediterrâneo convivendo com egípcios nativos, mas tentando deles se manter afastados tanto étnica quanto culturalmente, com o decorrer do tempo esta postura foi se relativizando e a ausência de mulheres gregas fez com que o casamento misto fosse cada vez mais frequente.

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Alexandria manteve seu status de pólis, enquanto o restante do Egito era considerado sua chora. As capitais dos nomos2, chamadas metrópoles, também tinham uma elite que cuidava de sua administração, que tentava se diferenciar do restante da população pelo cultivo da educação grega. No entanto, a presença de elementos culturais egípcios era uma constante, o que produziu, de fato, uma sociedade multicultural. No período romano as trocas culturais com a bacia do Mediterrâneo se expandiram. Os cultos de divindades egípcias como Ísis e Osíris estavam presentes em Roma e em várias províncias. No próprio Egito as relações culturais e religiosas eram complexas e servem como exemplos da versatilidade do Império Romano como um todo.

O Egito, segundo gregos e romanos

O Egito era para a cultura grega e, posteriormente, romana, terra de considerações duplas e, mesmo, díspares. Era fonte de atração para o historiador grego Heródoto, acusado pelos seus comparsas de “filobárbaro” e que dedicou ao Egito todo o Livro II de sua História e uma parte do Livro III. Por outro lado, os egípcios eram vistos pelos romanos eruditos como uma terra de zoólatras fanáticos (por causa do culto aos animais) e de mistérios ameaçadores. Na Antiguidade, esta concepção dupla do Egito como país real e mítico aparece desde a Bíblia hebraica até os autores gregos e romanos. Entretanto, os gregos foram os primeiros a se colocarem o problema do que foi o Egito (DONADONI, CURTO e DONADONI ROVERI, 1990: 14). Autores como Divisão distrital do Egito, que remonta ao período faraônico. Durante a maior parte da história egípcia o país estava dividido em vinte nomos no Baixo Egito e vinte e dois no Alto Egito. 2 

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Heródoto e Diodoro da Sicília buscavam no Egito a fonte para o orfismo e outros cultos de Mistérios então em voga na Grécia. A partir dos séculos VI e V a.C. houve uma mudança no pensamento grego no domínio das crenças religiosas. A influência órfico-pitagórica se revela na obra de Heródoto no seu interesse pela religião, pelos mistérios, oráculos e divindades proféticas. Como estas crenças não estavam nos autores gregos mais antigos, como Homero e Hesíodo, Heródoto as tomou como sendo um empréstimo grego da religião egípcia. Heródoto faz uma interpretação grega dos cultos egípcios e considera Ísis como sendo Deméter (II, 65), uma deusa da maternidade, dos grãos, que levou as leis à humanidade e que também desempenhava uma função funerária. Já Osíris foi identificado a Dioniso (II, 26, 47). Outros autores, posteriores a Heródoto, seguiram a mesma conduta, como é o caso de Diodoro da Sicília (I, 92, 1-6). Contudo, os cultos egípcios, ao contrário do que pensava Heródoto, não eram iguais aos gregos. Enquanto no culto de Mistério os laicos podiam ser iniciados, no Egito as cerimônias religiosas eram circunscritas aos sacerdotes, únicos que tinham acesso ao interior do templo. Por outro lado, as procissões e festas religiosas eram públicas e tinham uma grande participação popular. O Egito nem sempre foi visto pelos gregos como uma terra de saberes antigos. A visão erudita que temos da Grécia e do mundo helênico, em geral, é advinda das obras clássicas. Foi a partir delas que a cultura ocidental herdou considerações xenófobas a respeito dos povos orientais. Entretanto, no período helenístico, houve grandes mudanças históricas, a visão do mundo conhecido se ampliou com as conquistas de Alexandre, o Grande. A época helenística, desprezada pela historiografia tradicional como um período de decadência dos grandes valores do classicismo, ressurge, então, como uma época de ricas fontes

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de informação à disposição do estudioso moderno. Por isso, André Bernand (1994: 161) considera o grande século grego não o V e sim o IV a.C., quando os gregos começaram a rejeitar condutas de desprezo em relação ao outro Os romanos, diferentemente dos gregos, não baseavam sua identidade na ideia de raça ou descendência. Ser romano estava, por princípio, associado à conduta. A virtude romana era expressa pela pietas, a vida era regulada pelas obrigações que o indivíduo tinha para com os outros, estas últimas baseadas no costume ancestral - mos maiorum. É claro que o “ser” romano poderia variar de época e lugar, mas, quando confrontados com outras culturas, os romanos se voltavam para o costume ancestral e buscavam os códigos da moralidade republicana. A nova política instituída por Augusto, no início de seu governo, resgatava os códigos ancestrais de comportamento e conduta, com o propósito de chamar os romanos a suas tradições, ameaçadas pelas influências culturais estrangeiras de um vasto Império. As reformas de Augusto tinham como objetivo o fortalecimento de seu poder. As artes, tanto a literatura quanto as artes plásticas em geral, deveriam promover os novos valores do Império. Virgílio aborda o mito de fundação de Roma. Ascânio, filho de Eneias, também chamado Julus, é colocado como o ancestral da dinastia Júlio-Cláudia. Nesta propaganda imperial, os aspectos negativos do Egito foram enfatizados. Augusto fez campanha contra Antônio e Cleópatra. O Egito foi considerado uma terra exótica e repleta de luxúria. Cleópatra era uma terrível mulher e Antônio, discípulo de Dioniso, vivia bêbado em meio aos prazeres mundanos de Alexandria. Após a Batalha de Ácio, foram cunhadas moedas com a inscrição Aegypto capta. Os obeliscos egípcios foram levados para Roma, para mostrar a subordinação egípcia (VERSLUYS, 2002: 6).

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O Egito nem sempre foi considerado negativamente pelos romanos. Miguel John Versluys (2002: 388) cita três períodos históricos distintos com discursos romanos variáveis sobre o Egito: no século III a.C., na áurea época dos Ptolomeus, Alexandria e o Egito eram símbolos da cultura superior helênica, de uma civilização antiga e de prosperidade econômica. No século II a.C., o Egito tornou-se um protetorado romano, as disputas dinásticas entre os soberanos lágidas foram, muitas vezes, solucionadas pelos romanos. Em 30 a.C., o Egito tornou-se de fato romano. A partir de então, foi considerado um país subjugado com uma cultura colonizada. Os egípcios conhecidos em Roma eram, sobretudo, escravos e artistas, pertencentes a estratos sociais desprezados pela elite romana. Os egípcios tinham fama de insubordinados. Políbio, citado por Estrabão (XVII, I, 12-13), considerava os alexandrinos não propícios à vida cívica, por serem miscigenados com os egípcios. Mesmo assim, eram melhores que estes, pois, apesar de tudo, ainda eram de origem grega. No entanto, quando analisamos a questão do ponto de vista de gregos e romanos que habitaram o Egito, outras considerações devem ser apontadas. Augusto não poderia se mostrar muito favorável ao Egito frente aos romanos. Isto fazia parte de sua estratégia política de manutenção do poder. No próprio Egito, os imperadores romanos eram retratados como faraós nos relevos dos templos e construções e restaurações de templos egípcios continuaram sob o governo romano. Estrabão, por exemplo, grego de origem, que esteve no Egito no início do período imperial, por volta de 27 e 26 a.C. e era amigo pessoal do prefeito Aelius Gallus, afirma que o Egito era uma terra civilizada e culta (XVII, I, 3). A inovação do domínio romano se deu com o impulso de Augusto para a criação de uma elite de origem helênica e o incentivo da cultura grega, sobretudo com a instituição do

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gymnasium e do culto imperial. Tal política visava conseguir o apoio de uma elite local, que não fosse totalmente “egípcia” e que também não estivesse associada à política anterior dos Ptolomeus, como era o caso dos alexandrinos. Por isso, o incentivo às elites da chora, em oposição à de Alexandria, que manteve vários privilégios durante o período romano, mas que ficou sob a vigilância estreita dos oficiais romanos. Outro imperador que adotou uma nova postura em relação ao Egito foi Adriano. Antinóopolis ou Antinoe foi fundada com estatuto de pólis no Médio Egito. Sua criação se deveu ao episódio da morte de Antínoo, escravo favorito do imperador que morreu afogado no Nilo. Todavia, o objetivo último da fundação provavelmente se deu pela posição geográfica importante da nova cidade, a qual foi colonizada pelos habitantes da região do Fayum, antigo estabelecimento grego e macedônio no Egito, pois havia sido constituído durante o período ptolomaico por veteranos do exército lágida.

Egito romano: interações e contatos culturais

O Egito foi uma província romana por aproximadamente quatrocentos anos, de 30 a.C.-395 d.C.. Nesta época viviam no Egito, além dos egípcios nativos, indivíduos oriundos de várias partes do mundo greco-romano. A imigração grega para o Egito se iniciou, de forma sistemática, com a conquista de Alexandre, em 332 a.C. e com o estabelecimento da monarquia lágida, em 305 a.C. No período romano vêm se juntar a esses imigrantes e seus descendentes os soldados do exército imperial e os altos funcionários do governo, indivíduos vindos não somente de Roma, mas de várias regiões do Império. A presença grega no Egito remonta, pelo menos, ao século VII a.C., quando foi fundada a colônia grega de Náucratis.

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Desde a Baixa Época (664-332 a.C.) os gregos colaboravam com os faraós atuando no exército como mercenários. Estes, vindos de várias partes do mundo grego, tendiam a se integrar à nova sociedade onde viviam, estando desenraizados de sua terra natal. Era uma característica do helenismo a habilidade dos gregos de se adaptarem a lugares estranhos sem, com isso, deixarem de ser gregos (BAGNALL, 1988: 24). Em um contexto colonial a diferença entre os próprios gregos como jônios e dórios era relativizada, já que, em território estrangeiro, todos eram denominados gregos, até mesmo macedônios e cários. No período helenístico a Grécia tinha perdido sua autonomia, mas os gregos tiveram uma ampliação de seu universo de conhecimento em relação às outras culturas. André Bernand (1994: 183) considera que havia um espírito de tolerância entre gregos e egípcios no Egito ptolomaico, pois os egípcios vinham de sair da dominação persa (Alexandre foi visto por eles como um salvador) e, os gregos, saíram de uma longa guerra no Peloponeso e da derrota para Filipe II. Até a Segunda Guerra Mundial os estudiosos do Egito ptolomaico acreditavam que ocorreu uma fusão cultural entre gregos e egípcios (BAGNALL, 1988: 21), conforme a concepção adotada por Gustav Droysen de que o período helenístico foi caracterizado pela junção da cultura grega com a oriental (PRÉAUX, 1978). Por isso, o termo greco-egípcio foi utilizado para se referir àquelas pessoas filhas de casamentos mistos entre, principalmente, homens gregos e mulheres egípcias. Desta forma, este termo indicaria não somente uma mistura biológica, mas também cultural. No entanto, nos papiros gregos do Egito não há o uso desta denominação para esta parte da população. Os mesmos indivíduos podiam ser designados gregos em uma ocasião e egípcios, em outra. Atualmente, considera-se que as pessoas podiam se movimentar em ambas

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as esferas culturais – grega e egípcia, sendo que a diferenciação entre gregos e egípcios se dava mais pela sua condição social do que propriamente étnica. A relação dos imperadores romanos com a religião egípcia variou conforme a época. Contudo, no geral, os romanos adotavam a política de não intervenção nos assuntos religiosos locais, desde que estes não interferissem na política e na administração das províncias (BEARD, NORTH e PRICE, 2000: 314). No Egito, os imperadores romanos eram retratados na iconografia oficial dos templos como faraós, assim como tinham feito antes deles os outros governantes estrangeiros. No entanto, uma inovação foi estabelecida: diferentemente dos demais que tinham adquirido a nomenclatura completa que designava um faraó, os romanos adotaram apenas um nome, aquele que designava o governante como imperador, em grego, autocrátor. O protocolo faraônico era composto de três sequências de epítetos (“nome de Hórus”, “nome das Duas Senhoras” e “nome de Hórus de Ouro”). A estes epítetos eram acrescentados os nomes dos soberanos, seu nome de nascimento e o da coroação. Com Augusto, as formas protocolares foram reduzidas para o “nome de Hórus”. Assim, o nome de coroação de Augusto tornou-se simplesmente a transcrição em hieróglifos do equivalente grego do título latino imperator, isto é, autocrátor. Pela primeira vez na história o faraó era declarado “estrangeiro”, o que não tinha acontecido nem com os persas nem com os macedônicos. Reconhecia-se que o romano não reinava sobre um império porque ele era faraó: ele era faraó porque ele reinava sobre um império, cuja capital era Roma e o Egito era uma de suas províncias, entre outras. Jean-Claude Grenier (1997: 40) acredita que esta foi uma decisão imposta aos sacerdotes pelos romanos. Considerando que esta hipótese seja verdadeira, os romanos quiseram impor aos egípcios sua supremacia como

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um Império “universal”, cujo imperador não comandava apenas uma simples província. Entretanto, uma outra interpretação também é possível. Ao se negarem a se mostrar verdadeiramente como faraós egípcios, os romanos abriram um precedente: mostraram-se como estrangeiros e usurpadores. A dupla atitude romana frente aos nativos das províncias pode ser também observada no episódio que se seguiu à repressão romana na Tebaida, em 29 a.C.. O prefeito na época, Cornelius Gallus, após a vitória sobre os sublevados, mandou erigir nos templos de Philae uma estela triunfal com textos em hieróglifo, latim e grego. A versão para os egípcios, em hieróglifo, não é a mesma do texto grego e latino. No texto em hieróglifo, o faraó, no caso Augusto, aparece como protetor do Egito e derrotando seus inimigos. No texto grego e latino, os vencidos aparecem como sendo os Lágidas e os próprios egípcios. Com a damnatio memoriae de Cornelius Gallus, em 27-26 a.C., os sacerdotes de Philae aproveitaram para fazer desaparecer a estela e anular seu poder mágico partindo-a em duas. Apesar de uma certa hostilidade romana em relação aos cultos egípcios, no início do período imperial não houve diferença no tratamento dos templos. Augusto se recusou a visitar o touro Ápis, no entanto, é mostrado como faraó sacrificando ao touro Buchis (ALSTON, 2002: 148). Esta atitude poderia parecer estranha à primeira vista, mas está de acordo com a política romana quanto ao comportamento religioso dos povos conquistados. Augusto não poderia se mostrar favorável aos deuses egípcios, quando tinha acabado de derrotar Cleópatra e Marco Antônio. No entanto, longe dos olhos do Senado romano, nada impedia que entre os nativos ele fosse representado como o faraó desempenhando suas obrigações rituais. No final do período ptolomaico e início do romano o controle dos templos era realizado pelas famílias de sacerdotes. No

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século I d.C. este ofício foi feito por um funcionário alexandrino. Mais tarde, com o crescente poder das elites locais, os templos passaram a depender financeiramente das mesmas. O resultado foi o enfraquecimento desta instituição milenar egípcia que entrou em franco declínio a partir do século III d.C.. Na época de Diocleciano, no lugar do templo de Amun, em Tebas, foi construído um campo de legionários romanos. Entre 318 e 330 d.C., reinado de Constantino, cerca de 50% da população do Egito era cristã (BOWMAN, 1990: 46-47). Na última metade do século IV d.C., esta cifra estava em torno de 80 a 90%. Entretanto, o cristianismo conviveu no Egito com as práticas pagãs ainda durante um bom tempo. O último enterro do touro Buchis foi em 295 d.C.. Teodósio (379-395 d.C.) ordenou o fechamento dos templos egípcios, mas o templo de Ísis, em Philae, continuou em funcionamento até a época de Justiniano (527- 565 d.C.). Segundo Richard Alston (2002: 273), o declínio dos templos não foi uma ideia proposital da elite, pois esta era hábil em integrar os elementos locais em sua estrutura cultural. Por outro lado, também não foi a falta de recursos financeiros que abalou as estruturas dos templos. No final do século III e início do IV, as elites gastaram com várias atividades culturais e reformas nas construções das cidades. Para ele, a elite falhou em mobilizar sustento para os templos tradicionais frente ao cristianismo. Para David Frankfurter (1998: 15), como resultado desta crise dos séculos III e IV d.C., a prática religiosa teve de se adaptar às novas circunstâncias e acabou se situando em dois níveis: os sacerdotes passaram a exercer o seu ofício de forma itinerante e os cultos realizados nos templos nacionais e regionais foram, em sua maioria, transferidos para o culto doméstico. A religião popular é vista como dinâmica com a capacidade de se adaptar conforme as condições do contexto. Desta forma, sua continuidade pode ser observada tanto no período romano

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quanto no cristão, quando a cultura copta absorveu muito dos elementos oriundos da religião antiga. Quanto à religião funerária adaptações aos novos tempos também foram necessárias. As transformações verificadas, no contexto funerário, já a partir da Baixa Época, buscavam adaptar os costumes funerários às novas condições econômicas do país. As dificuldades financeiras para conseguir produtos importados e o custo elevado dos sepultamentos levaram à concentração dos elementos funerários na múmia e seus envoltórios (máscaras ou retratos funerários, mortalhas, cartonagens, caixões etc.). No período greco-romano, a prática da mumificação estendeu-se para o conjunto da sociedade. Observa-se, assim, uma sobrecarga nas necrópoles, com a reutilização maciça de tumbas antigas. O Egito Romano por ser uma sociedade de culturas variáveis apresenta, quanto aos costumes funerários, concepções egípcias, gregas, judaicas e outras, que convivem no mesmo território e compartilham da mesma necrópole. Caso, por exemplo, da necrópole de Hermópolis Magna (Tuna el-Gebel), onde as estelas funerárias revelam concepções religiosas diferentes (BERNAND, 1999). As práticas funerárias gregas são mais atestadas em Alexandria e datam, sobretudo, do período ptolomaico, quando a incineração era realizada juntamente com a inumação. No período romano, os gregos, melhor adaptados ao costume local, tendem a assimilar as práticas egípcias. De qualquer forma, a grande maioria da população é formada por egípcios nativos, que continuam com suas práticas milenares. Apesar das adaptações feitas à nova condição de existência, os elementos essenciais da religião egípcia necessários para que o indivíduo conseguisse “renascer” na outra vida permanecem presentes. A tumba tradicional egípcia formada por uma superestrutura e uma subestrutura continua em voga no período romano, mas convive com outros tipos de sepultamento. A diferença do tipo

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de enterramento era derivada dos recursos financeiros da família, como já acontecia antes, no período faraônico. As sepulturas mais simples eram escavadas em poços ou nas falésias das montanhas e, geralmente, compreendiam vários nichos onde eram depositados os corpos. Tudo indica que as oferendas funerárias continuaram a ser depositadas nas tumbas. Alguns estudiosos acreditam que no período romano a preocupação essencial era com o corpo mumificado e seus adornos. No entanto, escavações mais recentes têm revelado que a preocupação com oferendas de alimentos, flores, roupas e outros objetos era constante. A mumificação foi praticada em grande escala no Egito Romano. Talvez por isso muitos estudiosos tenham considerado que houve uma decadência no embalsamamento dos mortos. De fato, muitos produtos importados usados na mumificação eram caros e, a partir da Baixa Época, foram sendo substituídos ou descartados devido ao empobrecimento da população. Além disso, muitas múmias não tinham o cérebro retirado e nem as vísceras. O uso de resina dentro e fora do corpo era frequente. Contudo, em necrópoles preservadas como aquela de Douch, em Kharga, ou a do Oásis de Bahariya, podemos notar que os tipos de mumificação que já tinham sido descritos por Heródoto (II, 86-89), no século V a.C., continuavam a ser praticados e variavam conforme os recursos financeiros e econômicos do morto e de sua família. Era comum, no período romano, o douramento da múmia. Uma folha de ouro era aplicada aos dedos, lábios, mãos, pés, genitais, pálpebras e, às vezes, sobre todo o corpo do morto. As bandagens, geralmente, seguiam o padrão geométrico em forma de losangos, característica do enfaixamento do período. A prática mais comum nos períodos ptolomaico e romano era o segundo tipo de mumificação descrito por Heródoto. O corpo tinha suas vísceras dissolvidas por meio de um líquido corrosivo, óleo de junípero ou cedro, que era injetado via anal.

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Em seguida, era preenchido com resina. Os vasos canopos, usados para conter as vísceras mumificadas do morto (intestino, pulmão, estômago e fígado) passaram a ter uma função decorativa e tendem a desaparecer no período romano. Contudo, as divindades protetoras dos canopos, os Filhos de Hórus (Duamutef, Imsety, Hapy e Qehbesenuef), continuam presentes na decoração de caixões, cartonagens e máscaras funerárias, exercendo a função mágica de proteção. No período romano alguns acréscimos foram feitos à múmia. Placas de língua, retangulares ou ovais, feitas de ouro, eram colocadas na boca ou sobre os lábios. Alguns exemplares datam da XXVI Dinastia (664-525 a.C.), mas são mais frequentes no período romano. Placas ovais também eram colocadas sobre os olhos, talvez para pagar Caronte. Moedas sobre a boca ou nas mãos também eram comuns. Este elemento estranho à tradição religiosa egípcia talvez seja uma identificação do barqueiro grego com o egípcio, presente no “Livro dos Mortos” (capítulos 98 e 99). De fato, é difícil verificar nas práticas funerárias egípcias algum elemento de origem grega ou romana. Este é mais comum nas formas artísticas, de origem clássica, que podem ser vistas nos retratos de múmia, nas representações das mortalhas e das máscaras funerárias. As concepções funerárias gregas e romanas do período imperial não estavam muito distantes da egípcia quanto ao conceito de além-túmulo. Se formos analisar as estelas funerárias egípcias deste período (BERNAND, 1992 e 1999), veremos que as duas visões gregas da morte, uma pessimista e outra otimista, estão presentes e mesmo combinadas no mesmo suporte. A visão tradicional remonta às crenças que aparecem nos poemas homéricos. A morte é vista como um repouso, havendo a necessidade de resignação, pois este é o destino de todos os humanos (mesmo dos heróis, filhos dos deuses imortais). A alma dos mortos é como uma sombra, que

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habita a sua tumba ou a região infernal, domínio de Hades. Os romanos antigos possuíam uma crença semelhante. A segunda visão passou a predominar a partir do século IV a.C. e está associada, sobretudo aos cultos de Mistérios. As doutrinas que supunham uma vida melhor após a morte estavam ligadas, no mundo grego e romano, aos cultos de Mistérios, como aqueles de Elêusis, consagrado a Deméter, e os de Dioniso. Os Campos Elíseos, lugar para onde iam as almas dos bem-aventurados era, inicialmente, reservado somente às almas dos heróis. Depois, esta ideia se popularizou. Pelo Império Romano circulavam doutrinas como o orfismo, que estavam imbuídas de conceitos filosóficos, esotéricos e de salvação da alma. O orfismo estava baseado nos mistérios de Dioniso, dado a Orfeu. O iniciado no culto de Mistério não deveria beber a água do Lethe, o Rio do Esquecimento do mundo dos mortos. Somente bebiam desta água aquelas almas que iriam reencarnar e tinham que esquecer a sua vida passada. Os iniciados no culto de Mistério não iam reencarnar, eles iriam direto para os Campos Elíseos. Acreditava-se também que haveria um julgamento do morto, feito por Hades ou Perséfone, à semelhança do julgamento egípcio, presidido por Osíris. Uma constante na concepção funerária grega, romana ou egípcia era a preocupação com a preservação da memória para a posteridade. O reconhecimento do status do morto, quando era vivo, era essencial para as três culturas e é um aspecto que está presente nas máscaras funerárias do período romano. Segundo a concepção egípcia, após a morte, os vários elementos que compunham a parte “espiritual” da pessoa se separavam. É o caso do Ka, do Ba, do Akh, da sombra e do nome. O Ba era um tipo de alma representada com corpo de falcão e cabeça humana e, às vezes, com braços. O Ka era outro componente da pessoa que teria sido criado juntamente com o corpo. Era retratado

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como um par de braços erguido em posição vertical. Era o Ka que se incorporava às imagens do morto e recebia as oferendas na tumba. Daí toda representação do morto ser uma “estátua” Ka. Akh era o espírito glorificado, era o aspecto do morto no qual ele deixava a morte e era transfigurado em um ser de luz, associado com as estrelas. Ele não é um elemento, pois indica um estado; o indivíduo se torna um Akh quando glorificado, estágio que alcança somente aquele que viveu segundo Maat. Enquanto o Ba e a sombra fazem parte da esfera corporal, física do morto, o Ka e o nome pertencem à esfera social (ASSMANN, 2003: 34). O ritual de mumificação cuida da esfera corporal do morto e está associado às divindades funerárias como Ísis, Néftis e Anúbis. Já o nome e o Ka eram preservados pela esfera social e estavam associados a Hórus, o filho que deveria prover as oferendas para o seu pai (o morto como Osíris) e zelar pelo seu nome entre os vivos. A concepção funerária egípcia estava imbuída de dois conceitos básicos: o ciclo solar associado ao deus-sol Rê e o ciclo da vegetação ou ctônio de Osíris. As duas concepções de morte se combinam, a morte como renovação (Rê), sendo o retorno do morto ao seio materno, representado pela deusa Nut, mãe de Osíris, e a morte como justificação, ligada a Osíris. Inicialmente, toda morte era considerada brutal na concepção egípcia de morte osiriana, pois era um atentado à ordem, à justiça e à verdade (Maat), sendo obra de Seth. Mas a morte não era considerada o mal absoluto, pois ela faz parte da ordem cósmica (ASSMANN, 2003: 123). Mais tarde uma mudança parece operar neste pensamento. O mal responsável pela morte vai ser procurado na própria pessoa que morreu, nos seus atos, pelos quais ela deverá responder e se purificar (ASSMANN, 2003: 126). Durante o julgamento (capítulo 125 do “Livro dos Mortos”) o morto tem seu coração pesado na balança contra a pluma de

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Maat e deve recitar uma longa lista de faltas não cometidas. Após sua aprovação, ele é considerado justificado e está livre da segunda morte. Segundo Jan Assmann (2003: 129-132), o Além passou a ter dois aspectos antagônicos: um destruidor para os maus e outro de salvação para os bons. O julgamento no Além determinava a conduta do indivíduo na terra. O culto de Osíris cresceu a partir da Baixa Época e, no período greco-romano, os rituais de Khoiak, dedicados ao deus, ganharam um sentido político. Conforme Assmann (2003: 528), os egípcios associavam o corpo desmembrado de Osíris à diversidade dos nomos, a fim de celebrar no ritual a união do Egito. Em uma época na qual a cultura egípcia estava ameaçada pelo esquecimento e pela desagregação, Seth encarnava o inimigo, o asiático, em suma, os dominadores estrangeiros. Juntamente com o acirramento do culto de Osíris, ao qual outras divindades do Egito passaram a ser associadas, como Amun na área tebana, a moralização do destino post-mortem se faz mais presente, sofrendo influência do pensamento grego e judaico. O importante é ser justo e ser bom, mesmo que a pessoa não tenha dinheiro para pagar o enterro. A cultura material de caráter funerário do Egito Romano demonstra a riqueza cultural do país e varia consideravelmente conforme a região. Normalmente considera-se que a concepção de morte tradicional egípcia permaneceu intacta quando observamos o uso corrente da mumificação e dos aparatos que compunham o mobiliário funerário. Notamos que em locais onde houve uma maior penetração grega como o Fayum e o Médio Egito, os elementos característicos das culturas grega e romana aparecem na iconografia dos tipos de penteados, das vestimentas, das joias, enquanto a iconografia egípcia tradicional se restringe nas laterais das cartonagens, nos peitorais e corpo dos caixões e na parte posterior da máscara funerária.

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Esta zona de contato entre a cultura egípcia e a greco-romana é bem expressada pelos chamados “retratos do Fayum”. A arte da pintura em encáustica ou têmpera sobre madeira ou linho retratando o morto é oriunda da arte grega. No entanto, possui a função funerária de substituir a máscara funerária egípcia tradicional e o significado da religião egípcia de servir ao morto como forma de reconhecimento de sua múmia, requisito necessário para a manutenção de sua imortalidade. Por exemplo, uma máscara de cartonagem dourada, de origem tipicamente egípcia, mostra elementos correntes no decorrer do século I d.C., como as pulseiras em forma de serpente, a túnica e o manto, vestimenta associada à deusa Ísis no período greco-romano. A parte posterior da cabeça e as laterais da máscara são decoradas com elementos iconográficos egípcios tradicionais, como o escaravelho com asas empurrando o disco solar (fig. 1).

Figura 1: Máscara de Cartonagem. British Museum. London, EA 69020. Fonte: WALKER, 2000: 67-68, fig. 28.

As máscaras poderiam ser substituídas por retratos pintados, que possuíam a mesma função de salvaguardar a memória do morto e propiciar o reconhecimento pelo seu Ba, quando

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este retornasse à tumba de sua viagem pelo Além. O morto era representado vestindo uma túnica com clavus púrpura ou violeta, manto, portando joias, no caso das mulheres, e usando penteado da moda imperial romana do período (fig. 2).

Figura 2: Retrato Pintado. British Museum. London, EA 74713. Fonte: WALKER, 2000: 40-41, fig. 3.

Na arte funerária do Egito Romano a retratação do corpo revela a preocupação tanto com o meio social quanto com as crenças funerárias além-túmulo. Dominic Montserrat (1996: 27) aborda a questão do corpo humano e de seus sistemas simbólicos e afirma: “o corpo individual é uma metáfora para a sociedade e a ordem e a desordem corporal podem ser lidas como uma metáfora para a organização e as relações sociais”. No Egito greco-romano, o corpo pode ser visto como indício de filiação cultural. Para Montserrat (1996: 48) a arte funerária está relacionada com as formas idealizadas do corpo em uma dada cultura. Na morte, o corpo adquire um status diferente. As idealizações são respostas a modelos físicos criados dentro de um sistema de valores. O corpo físico e sua ligação com o status sexual

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do morto eram uma importante preocupação iconográfica no Egito greco-romano. Era necessária a preservação do corpo, para que a pessoa renascesse no outro mundo. Mais do que isto, o morto deveria continuar com as suas faculdades de quando era vivo, especialmente o vigor sexual. As múmias do período romano foram equipadas com mamilos ou falos dourados e a área pubiana era, frequentemente, coberta com folha de ouro. As imagens dão ênfase ao status sexual da pessoa morta. Nos “retratos do Fayum”, os homens eram representados de acordo com o ideal grego de atração sexual masculina, com atenção dada ao torso, olhos e pelos faciais. Eles tornam-se efebos, atletas ou heróis. Na decoração dos nichos o aspecto reprodutivo da mulher é enfatizado com destaque para as áreas eróticas do corpo. Símbolos de status social e categoria de idade eram importantes para aqueles que tinham morrido em estágios de transição de sua vida, particularmente os pré-adolescentes, que ainda não tinham atingido a maturidade sexual. Os adolescentes eram retratados nus ou vestindo uma túnica branca, portando guirlandas de flores sobre a cabeça. Os retratos de jovens com bigode e com guirlandas são idealizações de indivíduos que morreram em uma data específica de sua vida, quando eram membros de uma categoria social importante. As mulheres jovens eram retratadas como ninfas e as mais velhas personificavam a terra e a água fertilizante do Nilo (MONTSERRAT, 1996: 54). Mesmo nos retratos de influência grega ou romana a preocupação com o vigor sexual está presente. Este era essencial para renascer no outro mundo, sendo uma ideia basicamente egípcia (MONTSERRAT, 1996: 73). O retrato pintado de um rapaz (fig. 3), ainda encaixado em sua múmia, demonstra tanto a preocupação com o status social do morto, importante para a preservação de sua memória e para sua vida póstuma, quanto a ideia de juventude eterna. A coroa de folhas sobre a cabeça

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pode se referir tanto à coroa da justificação de Osíris quanto à coroa funerária da tradição grega.

Figura 3: Retrato Pintado. Metropolitan Museum, New York, 1912 11.139. Fonte: WALKER, 2000: 46-47, fig. 9.

Em uma sociedade compósita e multiétnica como a egípcia do período romano devemos ter em mente que a interpretação da cultura material variava conforme a cultura. A forma permite interpretações diversas de um mesmo objeto, conforme o olhar do observador. Assim, tanto podemos distinguir elementos egípcios quanto greco-romanos no material funerário do Egito Romano. É isso que ocorre, por exemplo, na análise destes objetos por parte dos pesquisadores atuais. Há aqueles que tendem a observar mais detalhadamente as características da cultura e da arte grega nos retratos funerários, como é o caso de Euphrosyne Doxiadis (1995), outros que procuram analisá-los como pertencentes à cultura romana e aqueles que os consideram do ponto de vista da egiptologia. Esta combinação de formas e superposições foi chamada por Phillipe Derchain (apud BAILLY, 1997: 58) de “bricolage”,

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uma característica própria da Antiguidade Tardia. A “bricolage” seria, neste sentido, uma cultura da incerteza, na qual notamos a existência de formas compósitas surpreendentes. Entretanto, essas formas estranhas de composição não são arbitrárias à cultura egípcia tradicional. O que acontece é que, no período romano, as formas de contato cultural se expandem, as relações comerciais e o sistema político do Império fazem circular com mais intensidade noções artísticas e religiosas de culturas diversas. Jean-Christophe Bailly (1997: 64) considera o retrato pintado como tendo duas facetas: como uma representação realista do morto desempenha uma função mimética e, como a representação de um duplo, tem uma função mágico-religiosa da máscara mortuária egípcia, a qual ele substitui. Assim, o retrato é, ao mesmo tempo, mimesis, segundo a concepção grega e traz a ideia egípcia da morte (BAILLY, 1997: 70-71). Os “retratos do Fayum” conseguem juntar duas concepções diferentes: a rememoração (retrato semelhante ao morto) e o duplo do morto (BAILLY, 1997: 109).

Considerações Finais

Discutir o Egito no âmbito do Orientalismo pode parecer estranho a um país localizado, em sua maior parte, no nordeste do continente africano. No entanto, o Egito Antigo aparece situado nos livros de História dentro do contexto da Antiguidade dita Oriental. Na verdade, as definições de Oriente e Ocidente se pautaram pela oposição entre as sociedades denominadas asiáticas (suméria, assíria, persa, egípcia etc.) e as ocidentais, notadamente a grega e a romana. Objetivamos neste capítulo mostrar que a definição de estereótipos para o que se considera “Oriente” e “Ocidente”

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vem de longa data remontando, sobretudo, à construção da filosofia e da ciência histórica no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Evidentemente que gregos e romanos nos legaram pensamentos e atitudes em relação às culturas do Mediterrâneo Oriental com as quais tiveram contato. Contudo, atualmente, vários estudos têm apontado que os gregos antigos não eram, necessariamente, tão alheios às sociedades orientais, pois com elas trocaram influências e interagiram culturalmente. A relação entre gregos e romanos com a civilização egípcia sempre foi de admiração e também de estranheza. A antiguidade e sabedoria dos egípcios foram abordadas por Heródoto e outros autores clássicos quando, já no decorrer do século V a.C., houve uma tentativa de “traduzir” a cultura egípcia para o mundo grego. Um comportamento mais xenófobo em relação ao oriental, sobretudo o persa, decorrente das Guerras Médicas possibilitou a construção de uma identidade grega em oposição ao bárbaro. No entanto, tal comportamento se tornou relativizado no período helenístico, quando a educação grega passou a ser a base distintiva dentro de uma sociedade e o caráter étnico, com o tempo, passou a ter menos importância. Esta conduta é perceptível, sobretudo, em situações de colonização, como foi o caso do Egito durante a dinastia dos Ptolomeus. Ainda que em um primeiro momento os denominados gregos tenham tentado se opor aos egípcios nativos, no decorrer do tempo os casamentos mistos predominaram e, na chora houve a constituição de uma elite de origem grega, que se mesclou à população egípcia. Esta mistura se tornou mais perceptível ainda na época romana, com os habitantes do Egito transitando em várias esferas culturais e religiosas e, muitas vezes, portando nomes gregos e também egípcios. Esta interação cultural e religiosa pode ser observada no material funerário do período. Máscaras, mortalhas, retratos de

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múmia e outros tipos de envoltórios para o corpo mumificado mostram a versatilidade da arte desenvolvida, sobretudo, entre o século I e IV d.C. A mescla de elementos gregos e romanos e a iconografia tradicional egípcia é um exemplo disto. A vestimenta e os penteados que imitam a moda imperial demonstram o status social do morto, enquanto as cenas iconográficas de divindades e símbolos egípcios preparam o caminho da “alma” (Ba) em sua trajetória no Além. Os atributos associados a divindades como Ísis e Osíris podem fazer referência tanto à religião egípcia tradicional quanto aos cultos de Mistérios em voga no período romano. Enfim, temos o exemplo de sobreposições de elementos iconográficos, que atendiam às necessidades e crenças religiosas diversas, resultado de uma grande interação cultural entre os habitantes do Egito Romano.

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9. Nomes das Coisas: Índia Antiga e Terminologia

Carlos Alberto da Fonseca Universidade de São Paulo

Sem dúvida, um dos maiores desenvolvimentos e conquistas do homem com relação à formatação e ao uso ergonomizado da linguagem e das línguas foi a forte tendência que conseguiu assegurar à manutenção de uma relação unívoca entre a palavra como referência e a coisa por ela denominada. Quando essa relação se desfaz é porque a situação comunicativa incorpora um elemento estetizante ou emocional normalmente ausente em situações de mera troca de informação. Questões como homonímia, sinonímia e ambiguidade têm mecanismos apropriados de apreensão e eventual correção, se necessária, de modo que a comunicação sempre se dê de forma satisfatória. Quero apontar aqui, em contrapartida, e particularmente, para as situações de referencialização teórica por meio de conjuntos terminológicos que se vão assentando com o desenvolvimento e o acúmulo de um saber sobre determinado objeto do conhecimento, mas que correm perigo de desestabilização e de corrupção se ocorrer uma utilização dos termos técnicos apressada e mal-consentida. No discurso científico, principalmente, mas também no de divulga-

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ção, por menos ou mais descompromissada que ela esteja com os pressupostos do academicismo ou de estrita fidedignidade ao curso sempre acumulativo da pesquisa de um determinado objeto, se essa univocidade não for tomada como objetivo instrumental basilar da construção do objeto como epistema. Quero colocar em relevo a contingência das convenções, a importância de sua historicidade e de suas implicações ontológicas, que deve acompanhar toda textualização ou análise discursiva. No nosso caso em particular, o da construção teórica de um conhecimento do objeto Índia antiga, tão recente na história dos saberes humanos, padece ele de enormes desencontros – seja porque na própria origem da forma/ta/ção dos termos e da indicação de sua correspondência conceitual já não se observou a eliminação de ambiguidades ou amplitudes idealmente indesejáveis; seja porque a habilidade de ir além, de interpretar, muitas e perigosas vezes superestima o domínio do chão de onde se parte e a rígida metodologia necessária, seja porque a repetição de modo leve e rápido, e algumas vezes leviano, não percebe incongruências ou sobreposições daninhas. Podemos começar essa verificação pelos termos que nomeiam os períodos em que se formalizou discursivamente a História da Índia antiga [doravante IA]. Ao período mais recuado no tempo, por alguns poucos referido como arcaico (por pura aproximação ao padrão de referência à cultura grega, mas utilizado aqui por razões que se elucidam com a mera leitura do que vem a seguir), reservou-se o substantivo e o adjetivo védico, sempre um neologismo em cada língua ocidental em que se começou a saber a Índia. Com a informação nem sempre anexada de que se trata de um derivado da palavra sânscrita veda, que integra o nome de quatro coleções de textos que coligem o saber (seu significado) daquela população. Essa derivação, no entanto, não é direta, passa pelo adjetivo sânscrito

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vaidika1 “que se refere ao conhecimento”, palavra preservada no hindi e no hindustani, línguas do contato majoritário entre brâmanes indianos hindus e scholars ingleses na modernidade dos últimos três séculos, na forma vaidik e pronunciada védic nessas línguas modernas do contato, E pronto, a semelhança fônica calou o equívoco: aquilo que para o informante indiano era vedic = “sapiencial” tornou-se para os reinformantes ingleses, apenas vedic/Vedic com o significado novo de período mais antigo da história da Índia. Repetindo: um sapiencial, relativo ao Conhecimento foi fixado no discurso historiográfico – e depois assimilado pelo literário, filosófico e todas as formas de discurso sobre a IA – como nome de uma época que para os indianos não tinha nome: não existe em sânscrito, nem existiu na IA, um termo equivalente ao significado que damos a védico na expresso período védico... Qualquer referência testemunhal que se queira fazer àquela época busca sua natureza de verdade numa citação dos Vedas (ver mais adiante), no Conhecimento, naquilo que foi e ficou como conhecido. Também inexiste, no vocabulário desses ou de outros Vedas, uma palavra que comporte o significado que temos de História. É só séculos mais tarde, no chamado período bramânico, que serão utilizadas as palavras puràõa ‘aquilo que preenche, dá forma”, que, esta sim, pode ser aproximada, mas com muitos reparos, do significado da palavra História como uma narrativa sequenciada, perspectivada, temporalizada e ideologizada de fatos acontecidos, e sa§sàra, o espaço/tempo “em que tudo/todo e qualquer evento – ocorre, flui” e se instala na memória recente pragmática e ali se institucionaliza como tradição; chamemos a isso de “vida”, dicionarizada como circuit of mundane existence, the world,

Em sânscrito, pronunciado assim como uma proparoxítona, com tônica na sílaba vai-vidika. 1 

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secular life, worldly illusion.2 Parece óbvio que os indianos devessem ter um sentido de história, pois que tinham consciência, inclusive gramatical e discursiva, das dimensões do tempo. Mas essa história, vivida na práxis do dia a dia, não tinha adjetivo ou substantivação linguísticos. Um indiano arcaico não sentia necessidade de cogitar definir/referir como védico/a uma experiência evenemencial de que participava ou tinha notícia, mas de todo modo na qual estava imerso do nascimento à morte e sujeito a condições naturais que acreditava superiores a toda ação e atitude humanas. O informante moderno desse estado de coisas, o homem do século XIX, é que precisava recolocar o mundo em ordem e em lugares apreensíveis e nomináveis. E o que seriam o Veda ou os Vedas, palavra-chave nesse contexto? Para o indiano arcaico, veda, palavra sânscrita de passado indoeuropeu3, era o nome da coisa resultante do exercício Palavras da mesma família; sa§saraõa “marcha sem obstáculos de um exército; sa§sàra÷ràntacitta “um que tem a citta ‘mente’ cansada da mundanidade / vida no mundo social / vida em sociedade” – ambos os nomes compostos para retirante, anacoreta (o que se vai de vez) e, mais tarde, para yogin. 3  Nome dado a um grupo de povos habitantes das estepes da Ásia Central que a partir do final do Neolítico se espalhou em ondas sucessivas pelas regiões da Europa, Índia e planaltos iranianos habitadas por gentes que falavam diversas línguas. Dos processos de aculturação então iniciados em cada parte, nos mais variados espaços, em tempos e processos e memórias diferentes, foram se formando novas línguas que guardavam elementos tanto da língua autóctone quanto da língua do invasor. E assim surgiram as línguas e as culturas anatólica, grega, latina, germânica, celta, eslava, indiana, albanesa e armênia, nenhuma delas mais pura que a outra... Dada a extensão geográfica de sua dispersão pelo mundo foram aqueles povos migrantes e seus descendentes chamados de “indoeuropeus” (termo utilizado pela primeira vez pelo linguista e arqueólogo inglês Thomas Young em 1811 na recensão que escreveu sobre o Mithridates do filólogo e linguista alemão J. C. Adelung) e “indogermânicos” (proposto em 1823 pelo orientalista alemão Heinrich Julius Von Klaproth, na obra Asia polyglotta, para substituir o termo indoeuropeu; teve e tem curso na Alemanha, mas não suplantou o sinônimo de uso geral indoeuropeu, que também prevaleceu sobre os termos ário/ariano e jafético [este como nome genérico das línguas dos povos descendentes de Jafet, o filho de Noé]. As línguas resultantes guardam entre si semelhanças de toda ordem linguística, do fônico ao morfossintático e discursivo, o que tem servido para garantir um passado e um fundo comuns a todas elas. Dividem-se nos ramos indo-iraniano (sânscrito e persa), anatólico (desaparecido), báltico, eslavo, itálico, germânico e celta, com suas respectivas protolínguas e as línguas originadas destas, e incluem ainda as isoladas grego, albanês e armênio. 2 

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da ação de VID “know, understand, perceive, learn, become or be acquaited with, be conscious of”4 - sim, mas dada/realizada concomitantemente ao ato de ver. Conhecimento resultante do ato prático de ver: sabe-se e se conhece porque algo foi visto: vi÷ve ta§ sthavira§ viduþ5// todos (vi÷ve) o (tam) sabem/consideram (vidur) velho (sthaviram) porque o vêm velho; mas não só o ver, a raiz foi tendo seu raio de significação aumentado, passando a abranger a denominação de resultados de operações cognitivas cumpridas por outros órgãos dos sentidos e pelo sentido maior, o manas, a mente: viddhi yathà/6 “saiba que” = Todas as equivalências provêm do A Sanskrit and English Dictionary, 1974/1899. A letra “ù”, encarregada no código de transliteração acadêmico universal em uso desde o Congresso de Orientalistas de Genebra de 1894 de representar a letra da escrita devanágari utilizada para a grafia de um fonema sibilante surdo retroflexo, deve ser lida como o “x” de “xícara” ou o “ch” de “chácara”. No esquema/código de transcrição usual em inglês é substituída por “sh”, razão pela qual se vê em muitos livros a transcrição Shiva no lugar da transliteração øiva. [A grafia Siva é apenas a eliminação gráfica do sinal diacrítico; as formas Xiva e Chiva são aportuguesamentos; por sua vez a grafia Ziva é um espanholismo.] A letra § deve ser pronunciada com os lábios apartados, a nasalidade jogada para o nariz, como o “m/n” final das palavras brasileiras terminadas em “em” ou “en” (sem se considerar a ditongação palatalizada do e- em ei-, como em “tambéim, “armazéim”, “pólein” (diferentemente da pronúncia do m consoante em si (como no sânscrito “m”anas, no português “m”ente), na pronúncia da consoante “m” os lábios devem se apoiar um no outro momentaneamente para que haja a explosão. A letra “þ” deve ser pronunciada apenas como uma expiração. 6  Na pronúncia das letras aspiradas, como aqui “dh” e “th”, deve-se preparar com o aparelho fonador a realização da letra primeira, simples, e no momento mesmo da explosão sonora, concomitantemente a ela, liberar ar do fundo da garganta, isso correspondendo à pronncia do “h”. Notar: um “dh” no um “di-há” nem um “dã-há”: deve-se tomar o cuidado de não incluir nenhum outro som entre o “d” e o “h”. Eles representam um único fonema em sânscrito. No caso particular da sílaba “ddha”, ou outras em que a consoante apareça dobrada, não se pronuncia a primeira delas, mas marca-se sua presença não ouvida com uma ausência de som significativa para os ouvidos. Essa prática causa um soquinho na pronúncia, que não se confunde com acentuação tônica, porque incide sobre consoantes e não sobre vogais. Mas nada complicado: isso também existe na pronúncia de sílabas de letras repetidas no italiano, como em “lettera”, “occhio”, “nulla”. O traço colocado sobre as vogais “a”, “i”, “u”, é um sinal diacrítico (mácron), que marca o alongamento da vogal, e não exatamente seu acento. Sua pronúncia dura duas vezes o tempo de uma vogal escrita sem ele. Mas essa duração deve ser fluida, continuada, sem pronúncia isolada de uma vogal e depois da outra. Treine com a palavra “bananada” lida com os “a” abertos (“ba” e não “bã”). Note que na pronúncia das sílabas “ba”, do primeiro “na” e do “da”, o “a” soa mais breve que na pronúncia do 4  5 

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já que você viu / ouviu / sentiu / provou / pensou , então fique sabendo que... O século XIX é o do pensamento comparatista, do reconhecimento da própria individualidade por meio da comparação com outras individualidades, ou da constatação da diversidade. O latim vidēre, o grego éidon [jeidon], o germnico wizza [vitsa]> wissen e outras formas de outras línguas indoeuropeias fornecem o quadro geral dessa herança sobrevivente basilar do arcaico indiano. Ver porque se sabe, saber porque se vê: veda – o conhecimento que anda por toda parte, compartilhado pelo grupo social organizado em torno de uma ideologia comum e discursivizado em cantos de louvor aos deva7 – a/os deus/es, se se quiser, e como sempre se quis traduzir, mas sem o peso judaico-cristão do significado, mais perto do grego jqejo" que do latim deus. O sentido é o de força pulsante de energia vital, criadora, vivificadora (a palavra deriva de DIV “brilhar, palpitar, pulsar") - numa sociedade agro-pastoril, fator que não pode ser de modo algum esquecido quando se fala do arcaico indiano. Essa força é/está no Sol, na Lua, na Terra, nas Águas, nas Estações, no Vento, no Fogo, no Relâmpago, no Raio, no Trovão – e sua ação/ocorrência cíclica, autocondicionada, gasegundo “na”, mais alongado. Essa a diferença na prática entre vogais longas e breves, não reconhecida formalmente nas nossas gramáticas mas em exercício em todas as palavras da língua portuguesa. Diga “livro”, “livrinho”, etc. 7  O “e” e o “o” devem ser sempre pronunciados fechados (em sânscrito esses fonemas não existem na forma aberta); daí alguns autores terem utilizado o sinal do acento circunflexo para representar esse fechamento. Assim, deva se diz dêva, e não déva. Assim como vêda e não véda, no singular como no plural...e isso em se tratando de se querer tentar a reprodução sonora das palavras tal como elas devem soar em sânscrito. Se a opção ou tendência for ensaiar ou ensejar um aportuguesamento das palavras que apresentam esses sons, então aí será o que o falante brasileiro quiser: há falantes de inglês que dizem youga, os franceses dizem yogá, alguns espanhóis dizem djoga. Uma coisa é dizer a palavra em sânscrito dêva, vêda, yôga, dôha. Outra coisa é amoldar esses sons às tendências mais frequentes na fonação do brasileiro: vai ser “ôga”, “óga”, com “i” ou y, com acento grafado ou não, quando as pessoas interessadas finalmente entrarem em acordo. Uma coisa a atitude não-linguística de quem diz que o certo é assim e assado é errado... mas certo em relação a quê?

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rantia a repetição e a reprodução da própria vida humana, no horizonte das expectativas dos mortais (que nascem, vivem e morrem) dependentes absolutos desses imortais (que existem desde e para todo o sempre). Essa repetição cíclica era o èta, a “ordem”8 natural que condicionava/organizava toda a vida, era a própria vida, de pés no chão e olhos no céu para saber a hora da boa chuva e cuidar do arroz e da batata de cada dia... As palavras deva e veda não são apenas um joguinho verbal propiciado pela elasticidade da língua: os deva condicionam o próprio comportamento e a produção dos veda dos seres humanos. Por isso a ritualização extremada dos atos da vida cotidiana, toda ela sacralizada porque orientadora do eixo das atitudes humanas, garante do axis mundi do grupo, imerso nos trabalhos dos dias entre o solo cultivado e o fogo do lar. E o mundo, a vida , continua porque os homens apostam nela, na sua recorrência cíclica, sua crença (sua ÷raddhà credo), seu a-creditar em sua renovação sempre a mesma. O compromisso do homem com o mundo natural tem modelo privilegiado no ritual, dito karman, o ato por excelência, a ação instigante e desafiadora da atividade dos deva, grupo que aos poucos vai incorporando também alguns produtos culturais, como a Linguagem, a Morte, o Casamento, o Jogo de dados, a Doença, o Trabalho, as Armas, a Guerra, a Beatitude, etc - sem qualquer marca ou sinal maniqueísta. Familiaridade e intimidade totais podem-se exigir da Linguagem Vàc9 num bom exercício individual num torneio de poetas em troca de algumas vacas, ou Ver: latim ordo. A letra “c” translitera uma palatal surda comum no inglês, onde o fonema é grafado “ch” – ver “church”, “teacher”... Em português ele/ela ficou no aportuguesamento da palavra italiana “ciao > tchau”. O som da letra “c” deve ser sempre “tch”, “tx”. Já o som do fonema dental “t”, seguido de qualquer vogal, deve soar sempre como entre os brasileiros pernambucanos: “titio” e não “tchitchio”... do mesmo modo o “d”, que nunca deve ser “djia” como realização de “dia”... O “t” e o “d” são dentais, e não palatais - língua nos dentes e não a lngua curvada para o alto do palato. 8  9 

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imaginar o Fogo fugido dos altares encontrado pelos Ventos escondido no fundo de um Rio porque julgava parco demais o pagamento recebido por sua atuação obrigatória nos rituais... Mas quem era o indiano que assim pensava/sabia? Já era, e o era cada vez mais, resultante das trocas culturais, das perdas e da manutenção de valores e objetos e objetivos grupais entre os dravióa, povo autóctone que habitava entre a foz do rio Indo (o mar, oceano sàgara, também chamado sa§sàra-÷oka “depósito das dores da vida cotidiana”, para onde corriam as águas de todo o Pañjab = Pentapotâmia = vale do Indo) e as alturas do Himalaya, o “assento do gelo/frio”, lugar para onde se viajava quando se morria. Da confluência de elementos das línguas faladas por ambos os grupos formou-se uma língua sem nome anotado na IA, referida apenas como bhàùà “linguagem” (no sentido de forma normativizada/ regrada do uso de uma língua), que se apresentava de dois modos na vida social: uma forma estilizada, elitizada, preferida para o uso artístico literário e formal, de valência universal para todo sujeito escolarizado, essa, sim, com referência: sa§skçtabhàùà, uma norma bhàùà, ornamentada, rebuscada > sa§skçta, culta, padrão - que convivia com um feixe de outras normas populares, regionalizadas, sem rebuscamentos, ditas vulgares, mais tarde referidas pelo nome comume genérico de pràktabhàùà “norma próxima da matéria-prima”, que deram origem, por processos históricos variados, vividos após os séculos XI/XII d.C, mas sempre guardando algum vocabulário culto por força da religião e das filosofias, às línguas modernas da Índia. De modo que a diglossia haveria de ser habilidade linguística quase generalizada entre os habitantes da IA.10 Era a norma rebuscada, perfeita - no sentido da palavra latina perfectum (“algo completamente concluído”, ao qual não se pode acrescentar mais nada porque já redondo, nos trinques, 10 

Essa questão foi exaustivamente discutida em meu doutorado (Fonseca, 1989).

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completamente produzido – sentido presente nos elementos morfológicos que compõem a palavra sânscrita sa§skçta11 [ sam- completamente, suficientemente + kçta feito, produzido, particípio passado de Kè “fazer algo concreto”]) com que foi reconhecida pelos comparatistas12 – que era utilizada pelos poetas ditos videntes – ou sapientes (lembremo-nos que saber é ver vendo), os çùi, antes de mais nada andarilhos poetas13 que viam nos deva os conteúdos que expunham a soldo, louvadores profissionais sempre em busca de satisfação estética e pecuniária: as graças divinas (as dos deva) lhes deveriam render vacas durante a vida e fama para além dela: dehi me dadàmi/ “dê- me (e) eu dou” é refrão bastante comum na antologia que reúne a obra desses versejadores ambulantes e sem-escrita. Essa antologia é o que se conhece abreviadamente como ègveda (forma sânscrita de seu título; a grafia Rigveda remete à sua pronúncia moderna no hindi e outras línguas da modernidade indiana) e, na verdade, não existia nessa época como a conhecemos hoje. Existia com outra configuração, com alterações A pronúncia da letra ç, que representa um som vocálico, a mesma do nosso “r” caipira presente em porta verde aberta ou no r do inglês. Trata-se de um fonema retroflexo, como todas as letras que, em transliteração, apresentam um pingo sotoposto (“õ”,“ñ”, “ó”, “ñh”, “óh” e “ù”), que devem ser pronunciadas com a ponta da língua fletida para trás e levada para o mais perto possível do palato, o cacúmeno, perto do cérebro, donde também serem chamadas de cacuminais e cerebrais. 12  Mais um exemplo de palavra sânscrita apropriada pelos Orientalistas em geral e pelos sanscritistas, sanscritólogos e indólogos em particular com um significado que não apresentava na fonte. Nas caçadas da nobreza indiana ou na proteção dos pastos e das plantações, um churrasquinho no melhor ponto também era uma “carne sânscrita”. Cf o início do Ato II da peça Abhijñàna÷akuntalà, de Kàlidàsa, do século V d.C. A vestimenta de ouros e pratas e joias e perfumes e cremes de marajás e maranis também era uma “roupa sânscrita”. Um poema em prácrito com palavras belas e adequadas, perfeito acabamento métrico e desenvolvimento elegante do tema/assunto também poderia ser um “poema sânscrito”... 13  Diz-se tradicionalmente – e os poemas do ègveda o anotam – que eles ouviam os poemas ditados pelos deva ou os viam/liam num plano transcendente a seu alcance. Anda por aí uma das mais antigas e documentadas metáforas/alegorias para a inspiração poética e artística. 11 

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de pequena ou alguma monta na linguagem ou na forma dos poemas? Não, ela não existia de modo algum... Os poemas sobreviveram esparsos na memória das pessoas, e eram compostos e transmitidos oralmente – de modo que os 1028 poemas que na obra estão reunidos são apenas o que pôde ser colecionado ou colacionado já no período bramânico por um brâmane que a tradição refere com o nome de Vyàsa,14 termo que, antes de ser um nome próprio significa “aquele que coloca tudo junto” – um antologiador, um rapsodo; esse sujeito de imensa memória ou habilidade arquivística mental inigualável teria sido também o responsável pela reunião das narrativas ainda avulsas e pela formatação final dos aproximadamente 200.000 versos que compõem o épico Mahàbhàrata, além dos Puràõa e outros textos importantes... Esse conteúdo era o que vigia na época do rapsodo ou aquilo a que sua memória ou sua pesquisa pudesssem ter tido acesso - de modo que se pode pensar com toda probabilidade que muito da produção deambulante dos çùi se perdeu nas curvas da lembrança coletiva ou do prestígio artístico ou até mesmo político de um ou outro autor ou família de poetas. De todo modo, esse é o Veda por excelência, o mais conhecido pelos indianos naqueles tempos arcaicos. O que não quer dizer que fosse o mais popular... Compor, recitar, cantar, salmodiar esses poemas era função, dever e prerrogativa de algumas classes de sacerdotes de um clero de variada especialização, numa sociedade organizada/dividida em grupos de direitos e deveres exclusivos. Não que fossem ininteligíveis... sânscrito e prácritos eram lados Seu nome completo: Kçùõa Dvaipàyana Vyàsa – mas Vyàsa era um indicativo talvez de profissão. Kçùõa era nome muito em voga por conta de ser o nome de uma das divindades da Trindade (ver adiante); Dvaipàyana indicava que ele era natural de Dvãpa, uma ilha do Ganges. Kçùõa pode ser também uma referência à cor escura de sua pele. O rapsodo escurinho lá da ilha. Consta também outra forma completa de seu nome: Kçùõa Dvaipàyana Vedavyàsa podendo ser Kçùõa, o compilador dos Veda, natural de Dvãpa... ou algo assim. 14 

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enfeitados e sem enfeites de uma mesma moeda comunicativa:15 como diz um dos poemas, respectivamente mulher enfeitada que se oferece ao marido e tramas de farrapos.16 Védico por causa desse Veda? Outras três obras em cujos títulos se incrusta a palavra veda tiveram seu conteúdo composto e transmitido oralmente ao longo daqueles séculos – e são conjuntos técnicos, verdadeiros manuais profissionais. O Sàmaveda reúne as notações musicais de parte dos poemas do ègveda, numa amostra de como poderiam soar melodicamente nos rituais. O Yajurveda, também de composição e transmissão orais, coleciona as práticas ritualísticas, enciclopédia dos procedimentos a serem observados na prática dos ritos. Essas três obras, conhecidas apenas oralmente e dispersas desunidamente, estavam ao alcance eventual ou interessado de determinados grupos particulares de indivíduos auto-denominados àrya, palavra de história infeliz nos séculos recentes entre os leitores apressados sempre de última hora. Ela também deriva da raiz è ‘caminhar, perambular” significando “aquele que deve estar ligado aos caminhantes” – quer dizer, o grupo formado pelas castas (ver logo a seguir) dos brâmanes, dos xátrias e dos vaixás, por eles mesmos considerados descendentes e herdeiros dos tais indoeuropeus que chegaram ao vale do Indo por volta do século XX a. C. Como grupo social, político e religioso hegemônico, esses árias opunham-se aos descendentes dos drávidas, os ÷ådra, xudras, originados dos pés do Puruùa, insignificantes na estrutura de poder que conformavam. Outro elemento os 15  Um exemplo extraído da peça Abhijñàna÷akuntalà: diz um pescador aos guardas que o estão levando preso, utilizando o prácrito ÷aurasenã (da região chamada øurasenà): ÷ahaje kila je viõinóie õa hu de kamma vivajjaõãae / pa÷umàlaõakammadàluõe anukampàmidu evva ÷oññie//; falasse ele em sânscrito, e sua fala soaria como: sahaja§ kila yad vinindita§ na khalu tad karma vivarjanãya§ / pa÷umàraõakarmadàruõo ‘nukampamçdur eva ÷rotriyaþ /-/ como se pode perceber, uma questão mais de sotaque e menos de vocabulário e de gramática... 16  Ver: RV 10.71.4,8.

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opunha: o acesso à medicina formalizada, ao conhecimento e à prática médica. Os conhecimentos na área, de uma febrícula a uma cirurgia plástica passando por técnicas de sutura interna de órgãos em cirurgias complicadas, acumulados pelos árias não constitíuam ainda um corpus unitário, mas estavam acessíveis a eles pela ação dos vaidya, os sapientes, os sabidos, os médicos, palavra derivada da mesma raiz VID: o médico sabia porque via e por isso medicava. Medicina curativa. Aos anárias anàrya, os xudras, os não-árias restava o recurso aos atharvan, nome derivado sobrevivente de uma perdida forma athar, outro nome para o fogo, brâmanes dados como curandeiros, adivinhos, rezadores, benzedeiros, enfim, cultivadores de fórmulas e orações de cunho mágico que, em rituais ao redor de um fogo, deveriam impedir a ação de doenças, acidentes,17 calamidades, adultérios, mau-olhado, vício da bebida e do jogo e um extenso etc.18 ou para funcionar como filtros amorosos.19 Fórmula 12 do livro 4 do Atharvaveda AV: “És aquela que cura, a que cura o osso quebrado, és a que cura: cura também este osso, [erva] arundhati. / Que Dhatç [o princípio ativo da erva] volte a reunir, como se deve, ponta com ponta, o osso que em teu corpo está quebrado! Que a medula se junte com a medula, que a ponta se junte com a ponta, que volte a crescer a carne que se soltou, que volte a crescer o osso!/ Que a medula se junte com a medula, que a pele cresça com a pele, que o sangue volte, e que o osso cresça, que a carne cresça com a carne!/ Ó erva, junta o pelo com o pelo, junta a pele com a pele. Que o sangue volte, e que cresça o osso! Volta a reunir o que está quebrado. / Levanta-te, anda, corre - carroça de boas rodas e bons eixos: levanta-te e fica firme!/ Se, ao cair num poço, ele se quebrou, se uma pedra foi lançada e o feriu, que o osso se componha, como èbhu [o deva artesão] monta as partes de seu carro, ponta com ponta.” Tradução de Mário Ferreira. 18  Para estancar a hemorragia AV 1.17: “As virgens que para cá acorrem, vestidas em roupas vermelhas, como irmãs sem um irmão, elas pararão. / Pára, tu que estás abaixo, pára, tu que estás acima, e tu que estás no meio, pára também! As menores veias param; que pare também a grande artéria!/ Das centenas de artérias e milhares de veias, as do meio realmente pararam. Ao mesmo tempo, os extremos cessam de fluir. / À tua volta ergue-se um grande dique de areia. Fica parado! Fica em paz!” Tradução de Mário Ferreira. 19  AV 25.3, para atrair o amor de uma mulher: “Que Kàma [o desejo amoroso] te excite! Não resistas sobre teu leito! Com a seta terrível de Kàma eu te perfuro o coração!/ A seta, alada pelo desejo, envenenada com amor, cuja haste é o desejo inabalável, com ela, bem certeira, Kàma te perfurará o coração!/ Consumida pelo amor, com a boca ressequida, 17 

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Todo esse saber foi reunido no livro Atharvaveda. O que de saber de medicina preventiva que existisse foi-se mantendo e se consolidando na troca de conhecimentos entre o curandeirismo e a cura ativa e no período bramânico foi reunido numa antologia denominada âyurveda, o conhecimento sobre o àyus, a “vida longa”. Um Veda também, mas, como muitos outros Veda compostos no período bramânico, tratados sobre práticas profissionalizantes (como criar elefantes, como fazer e melhor usar arco e flechas, como lapidar pedras e muitos outros), não integram o conjunto referido como os (quatro) Vedas que, como vimos, apresentam funções e objetivos diferenciados, estavam ligados a grupos diferenciados e de uso exclusivo, todos ainda uma massa informe dispersa na memória de seus usuários. Védico por causa desses Vedas? E o mais importante era que, em termos de títulos, o interessante seria notar que o título correto, e completo, desses quatro Vedas é ègvedasa§hità, Sàmavedasa§hità, Yajurvedasa§hità e Atharvavedassa§hità – sendo sa§hità “coleção” o designativo de um gênero literário ou livresco, uma denominação feita no período bramânico, e inerente à consciência crítica e teórica que então se estabelece, inclusive na própria estrutura narrativa do Mahàbhàrata. Um último parágrafo sobre esse período: um dos poemas que dão conhecimento sobre a criação do mundo (um outro vai perguntar: e quem estava lá para ver que foi assim?)20 afirma que do sacrifício do ser primordial, Puruùa, “o que-tudo-preenche/ supre”, do esquartejamento de seu corpo, originaram-se, entre outras coisas, as quatro varõa que os portugueses no século mulher, vem para mim, teu orgulho de lado, minha só, docemente e dedicada a mim!/ Longe de teu pai e de tua mãe, com um aguilhão, trago-te para mim, para que estejas em meu poder e venhas satisfazer meu desejo. / E todos os pensamentos dela, ó Mitra e Varuõa [os deva dos acordos sociais e comportamentais], sejam expulsos! Privando-a de sua vontade, ponham-na em meu poder!” Tradução de Mário Ferreira. 20  “Então, quem sabe verdadeiramente de onde (tudo) surgiu?” RV 10.129.

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XV interpretaram com sua grade ideológica e as chamaram de castas, no que foram seguidos por todos os demais colonizadores da Índia que fabricaram vários discursos que só fizeram nublar uma questão que, para os indianos da IA, era apenas o reconhecimento da diversidade de talentos e necessidades locais momentâneas ou duradouras com vistas à organização do trabalho e o lugar construído/conquistado pelo sujeito na malha econômica e social. A questão será mais bem explicada pelos próprios indianos antigos no período bramânico, quando o status arcaico passar por profundas modificações. Para o período arcaico, o que diz o poema é que da cabeça de Puruùa surgiram os bràhmaõa, que nos acostumamos a fazer equivaler a brâmanes e sacerdotes e ponto final. Dos braços de Puruùa surgiram os kùatriya, ditos militares e só. Das pernas [sic] de Puruùa nasceram os vai÷ya, ditos comerciantes. E, finalmente, dos pés de Puruùa originaram-se os ÷ådra, muitas e muitas vezes ditos escravos. O que nenhum teórico explica é que bràhmaõa deriva da palavra brahman, a palavra edificadora, a palavra que congrega/produz conhecimento e, assim, é brâmane todo aquele ou aquela que tiver o brahman como instrumento de trabalho [podendo exercer, no masculino e no feminino, as funções de médico, engenheiro, guru, recitante, poeta, filósofo e até mesmo sacerdote]. A palavra kùatriya deriva secundariamente de kùatra, a terra como propriedade ou bem comum. Assim, é xátria21 todo aquele que exercer atividades ligadas à administração da terra (toda a nobreza de rajás, marajás, maranis, conselheiros/as e ministros/as) ou sua defesa (todos os exércitos, inclusive fiscais e espias). De uma parte do corpo de Puruùa que a pudicícia scholar disse ser pernas mas o texto Os nomes das varõa em português seguem aqui as formas dadas pelo Dicionário Houaiss, que embaralha todas elas e nelas inclui o termo pária, que é persa e nunca teve nada a ver com o sistema hindu que aqui se refere. 21 

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refere como åru “virilha” vieram os vai÷ya, palavra derivada de vi÷, a transformação, a mudança, e, assim, é vaixá todo aquele cujo trabalho envolver a transformação de uma matéria prima em objeto de uso ou da troca de seu possuidor, cabendo a todos os comerciantes, industriais, artesãos, banqueiros e agiotas. Brâmanes (a esfera do poder filo-científico-religioso), xátrias (poder político, administrativo e militar) e os vaixás (poder econômico) eram todos árias, com direito à escolaridade formal (em idades e duração diferentes para cada grupo - mais curta para os vaixás e mais longa, podendo durar toda a vida, para os brâmanes) e, por conseguinte, ao aprendizado e utilização do sânscrito. Aos pés xudras cabiam todas as funções e serviços obrigatórios para o funcionamento da máquina da sociedade. Estão aí escolhidas e elencadas com comentários básicos pertinentes as bases principais do período arcaico22 – que, com nome ou sem nome pode ter começado por volta do século XX a.C. (admitem-se datas mais afastadas e um pouco mais recentes – com a palavra final a Arqueologia, que só ela poder fazer falar, em suas camadas mais fundas, uma região onde a Índia começou e de onde ela foi saindo até despachar para ali os muçulmanos do século XX d.C. naqueles trens que chegavam às suas estações finais nos dois lados estabelecidos no tratado de Independência carregados de cadáveres de hindus e muçulmanos. Não há evidência suficiente para se afirmar que a chegada dos indoeuropeus e sua decisão de ali permanecer tenha sido um evento tranquilo, sem algum tipo de violência ou coersão. Um dos poemas focaliza um grupo de drávidas que, fugindo, se refugiou no Himalaya, onde certo dia algum tempo depois recebeu a visita de alguns brâmanes parlamentaristas Notar a incidência da raiz è nesses conceitos do período arcaico: çùi o poeta; çta a ordem; çc o poema/saber; çtu a estação do ano; çju que caminha na boa direção = honesto; çõa a) fugitivo, culpado, réu b) algo desejado: dívida, ritual, procriação, água, hospitalidade; çùñi lança, espada. 22 

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árias, que queriam convencê-los a voltar para os vales, onde receberiam todo tipo de ajuda para ali se estabelecerem: casas, vacas, cavalos, sementes... A todas as propostas os drávidas respondiam com altiunissonantes nãos. Tudo mudou de figura quando os brâmanes, já cansados da negociação, anunciaram , em tom mesmo de ameaça, que para ali mandariam então os sacerdotes e gurus, com seus cânticos e ramerrões e seus altares e suas palmatórias - ao que os drávidas entregaram tudo o que possuíam para que por ali não aparecesse tal gente... e essa época teria terminado por volta do século X a.C, ainda sem qualquer referência a batalha de expulsão ou catástrofe natural... a não ser que se leve em conta terem sido essas batalhas pela ocupação da bacia gangética o caldo que foi originando as narrativas de nobres feitos militares que terminaram por se transformar no Mahàbhàrata e, com alguma probabilidade menor, no Ràmàyaõa, que está resumido no livro 3 do MBh (dísticos 15872 a 16601). O fato é que a Índia nunca mais foi a mesma, apesar de ser ela mesma, e começou a vivenciar um novo processo de aculturação na planície do Gaïgà e do Yamunà. Ou melhor, a Índia arcaica do vale do Indo se consolida no vale do Ganges, sobre a mesma trama essencial de desempenho laboral e respeito ao conhecimento/divino , mas com urdidura feita de abstração, urbanismo e individuação – e não mais de concretude, aldeolas e coletivismo. A esse novo período os historiadores denominam bramânico. Por qual razão? Transplantados para uma área nova e com nova população, os agentes descendentes da cabeça de Puruùa passaram, coadjuvados pelo trabalho dos xátrias, a ter um trabalho suplementar: apresentar e explicar todo o conhecimento tradicional desenvolvido no vale do Indo para as novas cabeças das tribos muõóa, também de origem dravídica, que habitavam

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a porção oriental do subcontinente indiano. Seu trabalho há de ter sido incessante, desenvolvido sem trégua – a tarefa de criar todo o estofo ideológico e intelectual da cultura - com o comentário do conteúdo das sa§hità ainda sem compilação,23 conteúdo que se projetava contra um pano de fundo cultural de algum modo constituído que poderia incluir práticas culturais dravídicas levadas à marginalidade ou à subterraneidade no vale do Indo, tais como o yoga, as questões transcendentalistas da reencarnação e aquelas que depois vão se chamar tantra/ tantrismo - que pouco a pouco vão reconquistando espaço e importância conforme for acontecendo um verdadeiro degelo de cérebros caxemirianos para a planície gangética. E o vale do Indo da laboriosa vida agro-pastoril marcada pelo sol à lua vai assumindo os contornos de uma Índia urbana, metropolista, não mais irmãos de arado nas mãos mas de indivíduos com a vida e o tempo nas mãos. Os textos que os brâmanes assim organizam constituem um gênero chamado Bràhmaõa, “relativo aos bràhmaõa”, “aquilo que foi dito pelos brâmanes” ou “aquilo que contém o brahman”, palavra que começa a ter seu significado expandido para o de criação, começo: aquilo que os brâmanes então dizem à nova conformação dos indianos é que aquilo tudo é o começo. Um Bràhmaõa, tal como se nos apresenta, é a transcrição de uma conversa entre um brâmane e alguns sábios sobre a matéria que compõe as Sa§hità, sendo considerado seu anexo/complemento. Parte em prosa, parte já nos dísticos de 32 sílabas (÷loka) que se tornarão o modelo frasal de todo texto explicativo e de muita ficção também, começam a assumir um tom teorizante, um início de ciência religiosa da qual pouco a pouco vai se desprender uma filosofia e E não seria difícil entrever nessa ausência de compilação uma necessidade, uma lacuna, que motivou um compilador, um vyàsa, a prepará-la. 23 

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uma metafísica, num movimento globalizado de reforma do pensamento em cima das bases já longínquas do arcaico de outra geografia e ambiência. Instaura-se com alguma solidez, pelo menos na literatura de ficção que se produz (ver logo a seguir), a ideia das quatro etapas da vida dos brâmanes, os à÷rama,24 a saber: brahmacarin estudante, “seguidor do brahman”, gçhastha “dono de casa”, pai de família, vànaprastha retirante/anacoreta “residente numa floresta” e sa§nyàsin renunciante, “que abandona tudo por completo’ – que deveriam ser seguidas segundo a vontade, a inclinação e a conveniência de cada brâmane. O fato é que retirantes, renunciando à vida de renúncia, começaram a tornar ao convívio urbano e a expor publicamente os resultados de suas reflexões durante o tempo em que se haviam exilado na floresta. Esses textos “produzidos na floresta” (âraõyaka) terminaram por constituir um novo gênero analítico, de cunho mais personalizado, linha investigativa mais individualizada, diferenciado de um texto de voz geral – mas de bom grado também anexados às Sa§hità como anexos/complementos. Como que concluindo um processo de retomada consecutiva de reexplicações, mas com marcas sempre inovadoras em cada gênero configurado, as aulas/preleções orais dos gurus a seus discípulos foram anotadas no canto de suas memórias e um dia assumiram a forma coligida em letras no gênero chamado Upaniùad, palavra cuja morfologia recupera o cenário de origem do texto: upa “com a atenção voltada para, pró” + ni “ao redor de” + SAD “sentar-se”. Tão só e simplesmente aulas, com os alunos sentados no chão, olhando para o mestre eventualmente em pé e distribuídos ao redor dele, ouvindo-o e o interpelando em exposições sobre 24 

Palavra derivada da raiz øRAM “esforçar-se”.

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o àtman, o brahman, o dharma, o karman – todos assuntos novos ou renovados e candentes nesse momento. Aulas todas ligadas às Sa§hità como anexos, só pouco mais de cem as ditas canônicas, mas 13 as mais principais dentre as milhares de aulas anotadas ao longo dos tempos. Afirma-se que seu objetivo é a exposição do sentido secreto das Sa§hità a que estão ligadas, da sua fama de doutrina esotérica, trata de significados místicos e misteriosos e estariam na origem das formulações das escolas filosóficas do Vedànta e do Sà§khya, justamente aquelas que procuram dar conta da constituição diferenciada do real material para, em seguida, dar conta da ilusão e do erro. E àtman o resultado individuado do indivíduo como resultado de sua história, seu lugar social, do processo educativo que mereceu, dos gostos que criou etc... e brahman, novo conceito, é a instância singular que engloba e assume todos os diferentes indivíduos/àtman e lhes possibilita o reconhecimento como integrantes de um mesmo grupo. E dharma é o conjunto de normas e deveres que devem ser seguidos por todo sujeito como decorrência da posição social dada pela função que exerce em sua varõa. E karman é toda e qualquer ação ou ato que o sujeito deve praticar, sempre de acordo com a expectativa do cumprimento do acordo social estabelecido pelo grupo com que está comprometido. Rigorosamente esotérico ou metafísico? A Sociologia e o Direito indianos estão na cola dessas noções.

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Uma upaniùad aula ao ar livre. Fonte: GRISWOLD, 1918: 15.

Pois bem. Esses anexos das Sa§hità, vezes sem conta referidos como anexos dos Veda, são, por esse elo frágil, referidos genericamente como literatura védica. Mas védica em que sentido se revogam quase por completo o panteão louvado em mais de um milhar de poemas do ègveda, substituindo o licor Soma e o fogo Agni e o raio Indra e os ventos Vàyu e o sol Sårya, tão tangíveis aos sentidos físicos nas planuras ou vielas das aldeias do Indo, por três abstrações que funcionam dialeticamente, uma dependendo da outra ou resultando dela? Um Brahman é o princípio criador - talvez uma evolução do sentido e do valor da palavra ou do sentido do coletivo. Um øiva é o princípio transformador, às vezes referido como destruidor. E para completar essa Trimårti (três imagens, três figuras; Trindade”), apenas três25 – o mais será projeção de habilidades na forma de esposas e filhos etc. – um Viùõu, princípio conservador. No rodar da roda, a conservação é a criação do mesmo; a transformação/destruição é uma criação do novo; assim, transformação e conservação 25 

Afirmam os Bràhmaõa que os deva arcaicos chegavam a 3. 333.

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subsumiram a ação da criação, que ficou como que apagada, só se manifestando vez ou outra quando de uma criação ab ovo. Por esta razão a sociedade indiana se dividiu entre os pólos øiva e Viùõu, ÷ivaítas e viùõuítas, redividindo-se conforme os pólos da conservação e da transformação alternem seus postos na condução dos redemoinhos dos grupos sociais e seus interesses mundanos, escatológicos ou soteriológicos, Brahman perdendo quase toda a sua expressão e com uma família diminuta. Eram, foram e são ÷ivaítas, desde que isso se inaugurou na planície gangética, os reformadores, os progressistas, a esquerda se isso ainda for expressão válida, o que inclui grande número principalmente dos poetas, dramaturgos, literatos em geral, artistas, escalões administrativos e políticos – mas, visivelmente, os tradicionalistas viùõuítas eram, foram e são a esmagadora maioria – e por isso a Índia hindu é tão conservadora. Uma questão filosófica se transformou em quesito místico de uma religião e indicativa de tendências político-ideológicas. Quem são os deva do MBh? Personagens invocam Agni ao redor de uma fogueira para a sacralização de armas, exigem que Indra lhes transmita seu fulgor e sua coragem de raios com que possam amealhar vitórias....devas funcionais e prestativos... merecem mesmo a fumaça das fogueiras. E ali onde estão øiva e Viùõu? øiva está morando no Himalaya (que não é mais apenas o lugar para onde viajavam os mortos, mas um ninho de futuras aves reformadoras) se preparando yogin para descer da Caxemira com o tantrismo e inspirar todos os discursos sobre Yoga e trabalhos de análise da linguagem (a semântica de Yaska, a morfologia de Pàõini, o enunciado de Patañjali) e Viùõu está metido na guerra do fim e do começo do mundo, tentando restaurá-lo com estratégias duvidosas em meio ao morticínio maior da IA e da antiguidade e, na pele de Kçùõa, forçando com argumentos de toda a tradição Arjuna a fazer algo completamente novo

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para ele naquele momento da guerra - confrontar-se com sua sombra, seu lado abjeto... Co-adjuvantes da narrativa, e muitas vezes seus impulsionadores e não mais tratados como devas, mas como ã÷vara “senhor, a quem o sujeito se entrega e com quem se divide”, com ele partilhando sua bhakti26 “devoção”. Nesse contexto de vontade e dever e responsabilidade por seus próprios atos, não existem mais deva nem ÷radhhà, trocados que foram por ã÷vara e bhakti. E o que foi feito daquela pletora de conceitos tratados acima? O èta, a ordem natural do mundo, ou a ordem do mundo natural, foi substituído, como conceito impulsionador e organizador, pelo dharma, a ordem construída da vida social, verdadeiro conjunto de normas políticas, jurídicas, éticas, morais, religiosas. E serão muitos os tratados sobre o dharma, o mais referido dos quais o Mànavadharma÷àstra ‘tratado das leis segundo Manu’, o Pensamentador, que retrabalha o corpo esquartejado do homem primordial instituindo normas e preceitos sempre expressos no modo subjuntivo do verbo [o de desejo de que uma ação seja praticada], modo verbal frequentemente traduzido em línguas ocidentais pelas formas do modo imperativo [o modo da obrigatoriedade]. E que logo se fez acompanhar de tratados complementares para a boa regulação da vida em sociedade com interesses próprios: um tratado sobre a política e a administração, o Nãti÷àstra;27 e um tratado sobre economia e gerenciamento da produção e dos bens patrimoniais, o Artha÷àstra.

Da raiz BHAJ “dividir, compartilhar”. De que deriva também a conhecida palavra bhagavat “o compartilhador”, e por isso venerável. 27  Nãti deriva de Nä “olhar, ver, vigiar”, de que derivam também as palavras netra “olho” e netç “condutor, governante” e, no mundo moderno, “motorista”. Também aí é o olhar do dono que engorda o gado. 26 

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Até mesmo a ideia e o contato prático com a morte passaram por transformações. Poemas do ègvedasa§hità28 falam em enterros de cadáveres em covas próximas de outras covas, e talvez essa prática continuasse a dos drávidas; que nas cidades de Mohenjo-Dàro e Harappà, metrópoles do Indo anteriores à chegada dos indoeuropeus mantinham cemitérios fora dos limites da cidade com corpos alojados em urnas funerárias. O deva que presidia, e decidia, essa passagem para o mundo dos mortos era Yàma “regrador”, que enviava um de seus mensageiros retirar repentinamente de circulação entre os vivos o indivíduo que já havia cumprido sua passagem entre eles e então o julgava segundo o balanço de seus bem-feitos e seus mal-feitos e lhe era atribuída então uma punição. Toda essa cena e essa narrativa míticas davam conta do desaparecimento do invólucro corporal do sujeito e aquilo que tinha sido objeto de julgamento passava a fazer companhia aos manes e aos pitç (pais, antepassados) e um conjunto variado de gênios ou coisa que o valha que ou auxiliava os seres humanos ainda vivos ou lhes infernizava a vida com doenças e problemas de todo tipo. A coisa em si a “morte”, mçtyu, também vista como deva, era nome de origem indoeuropeia (ver: latim mors, morior; zend mar, mareta; grego brotov" por mrotov"; eslavo mrÕti; lituano mìrti; gótico maurtht; germnico Mord, morden; inglês murder) ; os poemas do Atharvaveda referem mais de 10 mortes por doença ou acidente e apenas um tipo de morte natural, por envelhecimento. No período bramânico essa morte por razão natural vai ser associada ao ã÷vara Kala, o Tempo, que nasce e morre com o sujeito. É a morte por razões do envelhecimento e desgaste natural do corpo humano, que se enterra para melhor Vale lembrar, ainda, quanto ao ègvedasa§hità, que ele é constituído de 10 partes chamadas maõóala “eixos” temáticos. As de número 2 a 9 são formadas por poemas compostos no período arcaico; as de número 1 e 10, as “capas” reúnem produção já pertencente à plancie gangética; provam-no as referências a acidentes geográficos e clima dessa região. 28 

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se agasalhar nos braços de Kàla, sua primeira e última companhia. O físico, material perecível e fadigado e inútil, passa a ser submetido ao ritual da cremação; em tempos de reflexo sobre o que fica da passagem do homem sobre a terra, as atenções se voltam para o campo da soteriologia do que chamamos de espírito ou alma , o àtman, que passa a incorporar também a imagem e a memória coletivas que o grupo havia criado sobre aquele sujeito e ao qual logo será anexado um peso de chumbo devido aos maus feitos e uma leveza de nuvem pelos bem feitos. Esse àtman é que é o verdadeiro sujeito e não seu corpo. Nesse período acontece, a par da composição textual do conteúdo dos Puràõa, ao mesmo tempo, a remitologização da cultura (com a alegorizaçãoo da Trimårti) e a fixação da tendência ao misticismo (com a instituição da bhakti). Nessa avalanche de novidades, por exemplo, a figura de Viùõu, já no seu avatàra Kçùõa, tem contada sua biografia nas fases de sua infância e matura-idade, o baby traquinas e voluntarioso de historietas quase infantis e o velho filósofo ardiloso e sagaz do MBh, ficando meio na sombra o flautista adolescente sensual e namorador que vai estourar depois do século XI, do que dá testemunho a popularidade do poema Gãtagovinda, de Jayadeva.29 O karman ação ritual foi internalizado como o sentido e o significado da ação do próprio sujeito, o dever passando a ser o grande ritual que o indivíduo cumpre realizar em sua passagem pela terra. Porque começam a surgir especulações sobre a vida após a morte e sobre os modos de salvação antes e depois dela. E muitas correntes de pensamento filosófico-ético de cunho religioso ou não com apresentação de propostas variadas de comportamento e visão de mundo: Buddha e o budismo; Jina e

Ver a bela e premiada tradução de João Carlos Barbosa Gonçalves, 2004b e 2004a: 105-113. 29 

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o jinismo;30 os lokàyata = loka-àyata, os àyata no loka (o mundo circundante, concreto e abstrato; o cosmos organizado; o oposto de caos), os deitados no mundo, os desligados do mundo - isto, os materialistas adeptos de um sistema filosófico ateísta proposto por øàrvàka; os nyàya “que leva até o cerne, o protótipo original, modelo, axioma julgamento”, sistema de filosofia proposto por Gotama ou Gautama baseado no questionamento por argumento ou inferência lógicos ou silogísticos (que consistem numa combinação de entimema e silogismo em 3 ou 5 partes, conforme as subdivisões da escola); esses naiyyika “lógicos” terminaram por fazer sua escola ser tradicionalmente reconhecida entre as seis escolas de pensamento canônicas.31 Como se pode depreender, alguma coisa aconteceu com o privilégio do VID, substituído pela ação de JÑâ32 saber/ descobrir pelo raciocínio, pela ação orientadora do manas “mente” sobre todos os outros sentidos. Tanta secura sensorial e abstração e tanta preocupação teorizante sobre a vida depois dessa vida, tudo isso aliado à responsabilidade pelos bons ou maus frutos que o sujeito pode merecer na dependência exclusiva de seu comportamento, tudo isso terminou também por reconfigurar a noção que se possuía de literatura e do fazer literário. O MBh discute questões como a autoria coletiva e a autoria individual, a diferença entre o mero grafar e o compor imaginativamente, a figura do autor, ou pelo menos a do narrador, como senhor absoluto dos rumos do narrado e da narração; os Puràõa, coleções de históras ou crônicas de marajás de um passado dado como ainda por acontecer e de um futuro A forma Jainismo deriva do sânscrito jaina, que já significa adepto ou ligado a Jina, ou de jainà “sistema fundado por Jina”. É, assim, uma forma de significado redundante. 31  Os seis dar÷ana “pontos de vista” [Pårva]-Mãmã§sà, formalizado por Jaiminãya; Uttara- Mãmã§sà , por Bàdaràyaàa; Nyàya, por Gotama; Vaiùe÷ika, por Kaõàda; Sà§khya, por Kapila; Yoga, por Patañjali. A respeito deste último, ver magníficos estudo e tradução de Lilian Cristina Gulmini, 2001. 32  Pronunciar numa única sílaba “djnhà”. 30 

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já transcorrido, de relatos mitológicos sobre devas destronados e ã÷varas ainda in nuce borram os limites entre o ficcional, o relato historiográfico, a fantasia mítica primando pelo “assim é se lhe parece”; o sempre inventivo teatro vai borrar os limites entre palco e plateia, propondo desde o texto mais completamente arquiteturado com 5 nexos e 64 junturas até o improviso puro em que o ator vai para o palco e cria uma cena a partir de um objeto que um espectador lhe atire.33 Em síntese, esse é o período bramânico, durante o qual a vida focada pelos historiadores aconteceu principalmente na planície gangética, restando ao vale do Indo as importantes referências à passagem de Alexandre pelas terras daqueles vales em 327 a.C. e a existência grandemente desenvolvida de uma arte escultórica budista abeberada na arte grega34 na cidade de Tàxila [ksi] ou Takùa÷ilà, “cidade dos escultores”, por si só agente de uma história fascinante citada num poema arcaico do ègveda, o 7.101.11 como cidade de Taka, o escultor do Universo; no Mahàbhàrata e no Ràmàyaõa como terra dos Gandhàra e em muitos contos budistas e bramânicos. Depois disso, a partir do século VII d. C. , com a ocupação do vale do Indo pelos persas islamizados Moghula35 vai-se tornando Primeira exposição completa; século II d.C., data provável, no Bhàratanàñy÷àstra “tratado de Bharata sobre o nàñya” (“teatro”, no sentido mais amplo possível; representação). 34  Ver a respeito os trabalhos de Cibele Elisa Viegas Aldrovandi, 2002, 2006 e 2005: 306-315. 35  Também as grafias Moghul, Mogul, Mughal e Mogol. Há quem os identifique aos mongóis da Mongólia, inclusive nosso Dicionário Houaiss, para quem mogol e mongol são a mesma coisa. Já para o dicionário Aurélio, no verbete mongol está a definição da pintura Mughal, forma artística vazada em miniaturas preferida e privilegiada pelos Moghula. Na verdade, Babur, o fundador da dinastia, descendia dos mongóis da linhagem de Timur por parte do pai e de Gengis Khan por parte da mãe. Definia sua linhagem como timurida e turco-chaghataico (dissidentes dos mongóis) - o que foi grandemente responsável pelo abandono da cultura mongol por seus descendentes e pela expansão da influência cultural persa no subcontinente indiano com brilhantes resultados literários, artísticos e historiográficos. Foi ele o criador do nome Moghula para seu grupo, para diferenciá-lo do contingente siberiano. Começou a reinar na Índia em 1526. 33 

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espaço muçulmano e se convertendo, com a Independência em 1948, no Paquistão Ocidental e, depois, apenas Paquistão. Esse período, na perspectivação dos historiadores, termina em 327 d. C. com a ascensão ao poder do vaixá Gupta, fundador da dinastia Gupta, xátrias instituídos pelo poder político, continuada em linha direta por seu filho e netos. Durante o governo dos Gupta36 a Índia, com a criação de gigantesca e admirável máquina administrativa, agora com o nome Bhàrata37 assumido para todo o futuro com o prestígio cada vez maior e mais basilar do Mahàbhàrata, que também significa “a grande Índia”, teve consolidadas sua grandeza religiosa, filosófica, econômica, artística em geral, literária em particular, com o desenvolvimento magistralizado de pelo menos três formas artísticas: o teatro, com 50 gêneros teorizados; a dança, não só a chamada dança pura mas principalmente a dança narrativa, além das formas regionais, de vocação folclórica; e a poesia, de toda forma e assunto, mas principalmente a lírica. Esse o chamado período clássico, rótulo dado pelos historiadores também com os olhos na antiguidade greco-romana - mas os tempos aqui são outros: o século V d.C. costuma ser citado como o auge do período, e estamos a dez séculos depois do período clássico grego. E ele vai terminar por volta dos séculos VII-XI, com os persas esfrangalhando suas fronteiras, como se um de seus riquíssimos brocados sânscritos fosse sendo desfiado por entre os dedos de Guptas fracos e corrompidos. Depois disso o chamado período O fundador da dinastia governou como Candragupta I (ler tchándragúpta), de 319 a 335 d.C, quando seu filho Samudragupta subiu ao trono, até 375, sendo substituído por seu filho Candragupta II, que governou até 415; sucedeu-o o filho Kumaragupta, de 415 a 454, que sofreu os primeiros golpes de ataques hunos no noroeste. Apenas mais um Gupta teve algum papel importante na defesa do reino, Skandagupta, mas 467 é a última data relacionada a ele. “Depois de sua morte, decaiu num ritmo cada vez maior a autoridade dos Guptas. A sucessão dos diversos rajás é incerta. (...) o poder Gupta foi socavado pouco a pouco durante os 50 anos seguintes, depois do que o império ficou dividido em diversos reinos menores.” Ver: Thapar, 1969: 175. 37  Forma sânscrita do nome; Bhàrat é sua grafia nas línguas modernas. 36 

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medieval com os muçulmanos no poder, numa ciranda de árabes, mongóis, turcos, afegãos, rajputs, Sultanato de Délhi até os persas, e sua inevitável mistura de tônus diferenciados ao longo do subcontinente e a formação das línguas modernas como o hindi e o urdu, o hindustani e o bengali e suas manifestações diversificadas; depois, quando os britânicos abrirem de vez seus jogos políticos e marciais com a Revolta dos Sipaios em 1857 e também os outros ocidentais ali acampados mais do que para comerciar, inicia-se o período moderno; e com a Independência vem o período contemporâneo. Para concluir, mais uma confusão nesse caldeirão: por muitos, a literatura formada pelo conjunto dos Bràhmaõa, das âraõyaka e das Upaniùad chamada de literatura védica, mas, como vimos, apesar de ela comentar o contedo das Sa§hità, vai se especializando no tratamento de questões que vão cada vez mais passando longe dos ideais das velhas aldeias de ares republicanos de agricultores dependentes da concretude da vida e lançando as bases de um pensamento que atende as necessidades, ao mesmo tempo que as cria, de indivíduos que agora se reúnem em cidades monárquicas de fazeres e socializações diversificadas dependentes das abstrações da vida. E tudo vai terminar nos pontos de vista canônicos das escolas filosóficas e no ressurgimento e na fixação definitiva do Tantrismo, também diversificado em suas tendências. E se o som, a voz, o ÷abda, a linguagem, eram no período arcaico, o garante do conhecimento, também foi da Caxemira, como o tantrismo, que vieram o semanticista Yaska, no século VI a.C, com seu Nirukta;38 o morfossintaticista gramático linguista Pàõini e seu Aùñàdhyàyã “Oito partes”, uma gramática rigidamente descritiva do sânscrito Costumeiramente referido como Explicatio – como se essa palavra, de uso e contexto próprios – fosse capaz de dizer que se trata de uma teoria semântica que explora questões ligadas ao sentido (e não só ao significado) que as palavras possuem para quem as usa, os falantes de sânscrito, e elaborando já uma teoria de campos semânticos. Ver: Fonseca, 2003: 163-170. 38 

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com aportes minuciosos de diferenças sociolinguísticas entre ele e várias normas populares; um comentarista seu, de certo modo seu continuador, pois que suas notas se encaminham para questões de enunciado e situações de enunciação (Patañjali e seu Mahàbhàùya “Grande comentário”, do século II a. C.). E foi numa assembleia de devas entediados lá no Himalaya (provavelmente na Caxemira) que o deus Brahman ordenou ao brâmane Bharata que, para que a apatia dos deva/ã÷vara tivesse um fim, ele reunisse numa única obra todos os saberes e todas as técnicas que pudessem ser de bom proveito para uma arte que representasse o homem e seus objetivos e fraquezas, suas grandezas e seus estados emotivos. Isso o que narra o capítulo inicial do Bhàratanàñya÷àstra “tratado de Bharata sobre o nàñya” - mais do que sobre o teatro, mas também sobre a dança e links para outras formas de representação artística. Para o bem ou para o mal, os indianos haviam assistido ao repertório apresentado pelos atores do exército de Alexandre aos soldados gregos e discutiram com os diretores da companhia as ideias que já possuíam desde o período arcaico39 sobre representação e, assim, o tratado de Bharata em nenhum momento se esquece, sem deixar de ser indiano, da mimese como fio condutor do espetáculo representativo. Mimese à indiana, claro. Aliás, nem o japonessísimo teatro noh abandona a ideia. As peças de teatro compostas durante o tal período bramânico obedecem aos padrões mais implícitos e explícitos de representação das peças compostas durante o período gupta: por isso elas também poderiam ser chamadas de clássicas... ou pelo menos se deveria reconhecer que um padrão de gosto e realização que os historiadores novecentistas ocidentais chamariam de clássico já estava amadurecido e em pleno uso no século IV a.C. Os poemas chamados particularmente de sa§vàda “fala total, encontro para se falar de alguma coisa”, 18 ao todo, tratam de questões nada ritualísticas, como o incesto entre irmão e irmã, o jogo de dados, o fogo escondido no rio – e sua forma dialogada trem feito presumir uma forma qualquer de dramatização\representação. 39 

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Considerações Finais

Para finalizar, esse teatro indiano, principalmente o produzido no período clássico, é chamado tout court e sem qualquer explicação de “teatro sânscrito”. O que essa expressão quer dizer? O teatro grego era feito por gregos, em língua grega, na Grécia ou pelos technitai em viagem. No chamado teatro sânscrito, o sânscrito é a norma linguística menos falada. O cuidado com a representação no palco das diferenças observadas na vida real levou à observação cênica das diferenças de linguagem na sociedade e ao estabelecimento de uma lista puramente teatral de normas ou linguagens específicas para as diferentes personagens: mulheres xátrias, brâmanes e vaixás falavam màhàràùñrã, um prácrito falado no Mahàràùñra, que terminou por dar origem ao moderno marathi; homens árias com educação formalíssima (vale dizer, brâmanes e nobres e militares) falavam sânscrito; todas as outras personagens, masculinas ou femininas, ou crianças ou animais ou objetos, falavam uma variedade bastante grande de prácritos transformados nessa convenção em linguagens sociais, tanto mais distantes do sânscrito nas suas diferenças dialetais quanto mais distantes estivessem as personagens dos lugares sociais dos falantes de sânscrito. E há peças, como a Karpuramañjarã,40 de Ràja÷ekhara, em que até a nobreza (embora ali seja o caso de uma família arrivista, comerciantes nouveaux riches que se dão títulos e ares de nobreza sem berço...) fala prácritos... Teatro sânscrito, então, por quê, se a palavra sânscrito nem gentílico é? Ah mas tem a ver com o significado e todo o sentido da palavra sa§skçta com certeza oposto pelos scholars e pelas plateias indianas às inúmeras formas de teatro popular/esco, de rua, ou de aldeia, como o teatro chhau, de onde Peter Brook 40 

Ver a tradução brasileira de Carlos Alberto da Fonseca, 1995.

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recuperou por exemplo a composição visual do personagem Ganesha em seu portentoso The Mahabharata.41 Fiz aqui um pequeno apanhado das sombras de que é preciso escapar para ser claro com relação à Índia. Nenhum caminho das Índias leva a lugar algum se não for pautado por estrita metodologia e consulta obrigatória a fontes primárias. Julga-se ser hábil o bastante para tecer aproximações com base em semelhanças fônicas entre palavras de culturas diferentes ou sentidos e significados listados em dicionários de símbolos sem refazer e recautchutar o caminho percorrido. Poesia e loucura têm métodos. Jogar pedras no caminho pode causar muitos tropeções.

Bibliografia

ALDROVANDI, Cibele Elisa Viegas. As exéquias do buda øàkyamuni, morte, lamento e transcendêcia na iconografia indiano-budista de Gandhàra. Tese de Doutorado. FFLCHMAE-USP, 2006. . “Buddhism, Pax Kushana and Greco-Roman motifs pattern and purpose in Gandhàran iconography”. Cambridge Antiquity Publications. Cambridge, Cambridge University Press, 2005, pp. 306-315. . Incorporação de padrões de representação grecoromanos no universo simbólico indiano-budista. Dissertação de Mestrado. FFLCH-MAE-USP, São Paulo, 2002. Em plena produção e com imensa popularidade, há as formas representacionais bhavai (teatro/dança/improvisação – Gujarat), kathakali e kudiyattam (dança – Kerala), manipuri (dança tradicional – Manipur), kathak (dança clássica – norte da índia), odissi (dança clássica – Orissa), nautanki (teatro folk), yakhsagana (dança-drama – Karnataka). E, por toda a Índia, o bharatnatyam, considerada a dança clássica por excelência. 41 

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FONSECA, Carlos A. A mocinha Frô-de- loto. Araraquara, FCL-U7NESP, 1995. Coleção Giz-en-Scène, vol. 1. . Teias sobre o Sânscrito. Uma abordagem sociolinguística da Índia Antiga. Tese de Doutorado. São Paulo, FFLCH-USP, 1989. . “Theoretical bases for Yaska’s Nirukta”. Indologica Taurinensia, volume xxix, Proceedings of the XIth World Sansktit Conference. Torino, 2003, pp. 163-170. GONÇALVES, João Carlos Barbosa. As assinaturas devocionais do Gãtagovinda de Jayadeva: metalinguagem e celebração do mito. São Paulo, Annablume, 2004a. . Celebração do mito no Gãtagovinda de Jayadeva: apresentação e tradução do poema sânscrito segundo sua relação com as narrativas épicas. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 2004b. GRISWOLD, Florence. Hindu fairy tales. Boston, Lothrop/ Lee Shephard, 1918. GULMINI, Lilian Cristina. O Yoga÷àstra de Patañjali – tradução e análise à luz de seus fundamentos contextuais, intertextuais e linguísticos. Dissertação de Mestrado. FFLCH-USP, 2001. MONIER-WILLIAMS, Monier. A Sanskrit and English Dictionary. Oxford, Clarendon Press, 1974: reimpressão da primeira edição, de 1899. THAPAR, Romila. Historia de la India. México, Fondo de Cultura Econômica, 1969.

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10. Funerais Pretéritos: Uma Estratigrafia da Morte na Índia Antiga

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Universidade de São Paulo Mário Ferreira Universidade de São Paulo A elaboração de uma estratigrafia dos funerais na Índia Antiga durante os períodos Védico e Bramânico é uma tarefa intrincada e desafiadora. Não apenas porque o material a pesquisar, configurado pelas fontes escritas, é quantitativamente vultoso, mas também porque os eixos temáticos desse corpus documental apresentam grande complexidade ideológica – características essas que impõem ao estudioso a necessidade de proceder a seleções redutoras dos documentos disponíveis e a efetuar aproximações progressivas aos temas neles corporificados. O objetivo deste texto é traçar um painel sobre as concepções relativas à morte articuladas nos primórdios da civilização indiana e sobre as práticas funerárias associadas a essas concepções. Divide-se em duas partes. Na primeira, com vistas a familiarizar o leitor com as fontes escritas do período védico, delineia-se uma breve introdução a esses documentos (os Veda), os quais fornecem evidências fundamentais para a compreensão dos rituais funerários realizados no subcontinente

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indiano a partir do segundo milênio antes da era Cristã. Na segunda, estudam-se as fontes textuais que discorrem sobre os rituais de caráter doméstico (os Gṛhya-sūtra), nas quais ficou registrada a práxis funerária dos períodos em tela.

I. Funerais no Período Védico: Evidências Consignadas nos Hinos do Ṛgveda

Apesar da imprecisão cronológica com que o estudioso se defronta ao pesquisar o corpus literário da Índia antiga, o período Védico é geralmente associado ao segundo milênio a.C. – entre os séculos XX e X a.C.1. Geograficamente, o início de seu desenvolvimento ocorreu na região do Vale do Indo, no Punjabe e na Província da Fronteira Noroeste (ERDOSY, 1995a: 85, ALLCHIN e ALLCHIN, 1982: 306). As fontes literárias fundamentais para a compreensão desse período são as Veda-saṁhitā, as “Coletâneas do saber [revelado]”, as escrituras sagradas consideradas parte do conhecimento divino revelado pelos deuses e intuído pelos antigos sábios ou videntes inspirados, que as transmitiram às sucessivas gerações de escolhidos. Esse corpo literário é constituído por uma coleção de textos ritualísticos consolidada provavelmente, à maneira duma antologia, ao redor do século XII a.C. (FERREIRA, 1997: 86). Os hinos védicos foram inicialmente enfeixados em três obras, configurando uma trayī vidyā, uma “ciência sagrada tripla”: a Ṛg-veda-saṁhitā, a “Coletânea do saber revelado [expresso na forma de] estrofes recitadas”, a mais antiga; a A datação e a constituição dos primórdios da civilização indiana são temas extremamente controversos, carentes ainda de melhores evidências historiográficas e arqueológicas. Para a discussão dessas questões; ver: Aldrovandi, 2006: 204-228. 1 

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Yajur-veda-saṁhitā, “Coletânea do saber revelado [expresso na forma de] fórmulas ritualísticas”; e a Sāma-veda-saṁhitā, “Coletânea do saber revelado [expresso na forma de] estrofes cantadas”. Uma quarta obra, mais tardia, o Atharva-veda, “O saber revelado [expresso na forma de] encantamentos”, foi aproximada dos Veda mais antigos, ainda que a tradição ortodoxa considere tal aproximação ilegítima, por considerar que o Atharva-veda não constitui uma autêntica revelação sagrada. A codificação final dos rituais védicos encontra-se nos Brāhmaṇa, “[Textos afetos às ações ritualísticas dos] brâmanes”, uma coleção de textos posteriores abrangendo instruções para os sacerdotes brâmanes, transmissores desse saber (RENOU, 1966: 11 e 1942: 2). Nessa porção mais tardia dos Veda constam importantes corpos literários, dentre os quais os Kalpa-sūtra, “Aforismos sobre as regras litúrgicas”, que descrevem as formas corretas de realização dos ritos cotidianos); os Śrauta-sūtra, “Aforismos sobre [os ritos, de acordo com a] revelação védica”, que contêm as regras para realização sobretudo dos grandes sacrifícios coletivos prescritos pela tradição ortodoxa; os Gṛhyasūtra, “Aforismos sobre os ritos domésticos”, que descrevem as regras para os ritos e cerimônias realizados cotidianamente no âmbito das famílias ārya; e os Dharma-sūtra, “Aforismos sobre a ordem”, que contêm as instruções e normas para a vida secular e espiritual. Tais fontes pertencem ao período Bramânico e são geralmente atribuídas aos séculos IX e VIII a.C. A principal característica da vida religiosa dos ārya do período védico centrava-se nos sacrifícios consagrados aos deuses; esses rituais permeavam a esfera pública e privada da Índia Antiga. Os hinos védicos são, sobretudo, invocações aos deuses, emitidas durante as preces, oblações e sacrifícios ao fogo (yajña), realizados em um altar (vedi). O Fogo, personificado como o deus Agni, era o veículo de transmissão

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das oblações às divindades. Durante o sacrifício, enquanto se entoavam hinos de louvor, uma elaborada oferenda ritual era servida – e os deuses, convidados a participar e a compartilhar desta, sobre a erva sagrada preparada especialmente para tal fim (RENOU, 1942: 8-17). Durante o período Védico, os sacerdotes representavam o poder mediador capaz de persuadir os deuses de maneira direta, por meio da realização dos sacrifícios e cerimônias. Ao brâmane cabia a intercessão no plano divino pela correta recitação dos hinos e fórmulas ritualísticas contidos nos Veda (FERREIRA, 1997: 85-89, 1983: 5-18; e RENOU, 1966: 6). Dessa forma, sua influência e autoridade tornaram-se cada vez mais difundidas na sociedade, uma vez que os próprios reis e líderes políticos ansiavam por favores e bênçãos das divindades. Isso criou uma oscilação sutil e uma interdependência mútua entre o poder político, exercido pelos kṣatriya, e o poder religioso, detido pelos brâmanes. O Ṛg-veda constitui seguramente a mais antiga antologia poética das línguas indo-europeias. O período aproximado da compilação dos hinos na forma escrita, aceito geralmente pelos acadêmicos ocidentais, situa-se entre 1500 a 800 a.C., embora alguns estudiosos indianos insistam em datas mais antigas (estabelecidas a partir de cálculos astronômicos efetuados de acordo com referências extraídas da própria obra), que chegariam a 3000 ou mesmo 6000 a.C. Uma das evidências cronológicas existentes para a datação dessa obra é a relação estreita entre os hinos do Ṛgveda e a porção mais antiga do Avesta iraniano – as escrituras sagradas do Zoroastrismo (GELDNER, 1896; FECHNER, 1944). A partir das semelhanças linguísticas encontradas nas duas obras, considera-se que a separação entre os ramos indo-ariano e irânico das línguas indo-europeias teria ocorrido por volta de 1500 a.C. (RENOU 1942: 4).

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O Ṛg-veda possui 1028 hinos – ou 1017, mais outros onze considerados acréscimos tardios (FERREIRA, 1983: 12). A obra divide-se em dez maṇḍala (“livros”) e estes, por sua vez, em sūkta (“hinos”) (WINTERNITZ, 1962: 49-103). Os hinos foram compostos no estágio inicial do indo-ariano antigo, que compreende o sânscrito védico, bramânico e clássico. Todos os hinos, sem exceção, foram compostos em formas métricas (MACDONELL, 1917; RENOU, 1942: 19-25; WINTERNITZ, 1962: 53 e GONDA, 1975). Quanto às ideias referentes à morte, constantes no texto, estão elas disseminadas por todos os maṇḍala, mas é no livro X, o mais tardio, que se encontra um pequeno hinário fúnebre, constituído de dez textos (10 a 19), nos quais se articula, de forma mais desenvolvida, uma mitologia funerária, a que se associa uma práxis de manuseio do corpo morto2. É digno de nota que, de acordo com as indicações dos Gṛhya-sūtra, estrofes desses hinos eram recitadas solenemente pelo oficiante da cerimônia fúnebre (a antyeṣṭi), o que revela a importância litúrgica de tais textos. No hino 14, consagrado a Yama, encontra-se a formulação básica do mito. Yama, filho de Vivasvant, foi o primeiro a trilhar os caminhos da morte, razão pela qual o percurso por ele traçado é o paradigma do destino que aguarda os mortos que o sucedem. No reino da morte, situado na “suprema altura acima de nós”, e guardado por Śyāma e Śabala, dois cães malhados de quatro olhos e narizes largos, filhos de Saramā, é Yama que, após acolher o recém-chegado, concede-lhe abrigo entre os antepassados, alimenta-o com as oferendas propiciadas durante a cerimônia fúnebre e faculta-lhe um corpo purificado, repleto de esplendor (MALLORY, 1989: 129; COOMARASWAMY, 1932: 138 e FILIPPI, 1947: 192-202). 2  Para a tradução dos hinos; ver: Aldrovandi, 2006: 235-40.

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O hino 15 é dedicado aos pitāras, os Patriarcas, os antigos mortos abençoados que permanecem no terceiro céu, ou terceiro paraíso, o mais elevado. Os patriarcas são os ancestrais primordiais, os ṛṣi videntes que percorreram o antigo caminho que os mortos devem transpor. As estrelas que adornam o céu são os seus corpos, pois foram eles que encontraram a luz e geraram a luminosidade da aurora (RENOU, 1942: 37). Os nomes de suas estirpes (gotra) estão associados às famílias de sacerdotes que, de acordo com a tradição, compuseram os maṇḍala II a VII do Ṛgveda, e o Atharvaveda. Eles permanecem junto a Yama e comem finas iguarias: o soma lhes apraz, assim como as libações e as oferendas que, dispostas sobre a erva sagrada, lhes são dirigidas durante os ritos fúnebres. Invocados por eles, o deuses acorrem em grande número, ouvem os pedidos que lhes são dirigidos e protegem aqueles que os veneram. Protetores dos mortos, os patriarcas velam também por seus descendentes vivos, a quem outorgam riqueza, progênie e longevidade3. No hino XVI, roga-se ao deus Agni, o fogo da cremação, o condutor dos mortos e o devorador da carne, que não consuma o morto em suas chamas e que lhe preserve o corpo, para que, depois de purificado, ele possa chegar intacto à morada de Yama e dos piedosos ancestrais. Nesse passo, o epíteto que se lhe atribui é jāta-vedas, que se pode traduzir seja por “aquele que possui tudo o que existe”, seja por “aquele que é conhecido por todos os seres” (MALAMOUD 1982: 441-453)4. O texto faz também A última estrofe do texto faz menção aos mortos que são ou não cremados, evidenciando que a cremação não era a única forma de deposição do morto na Índia védica. 4  Malamoud observa que, como o corpo do morto era submetido a dois destinos incompatíveis – a cremação e a partida para o paraíso de Yama –, o hino roga a Agni que se desdobre em fogo kravy-āda, “devorador da carne”, mas também em fogo jatā-vedas, “conhecido dos homens [e aquele que transporta as oblações]", que devia ser invocado para que o corpo do morto não fosse destruído durante a cremação, e sim transformado em oferenda. Assim, o jatā-vedas devia impedir a voracidade impetuosa do fogo de cremação, ele era o contrafogo. Devido ao caráter funesto que o fogo sacrificial do morto passava a ter após a cremação, ele devia ser apagado e, após a cerimônia expiatória, o filho do morto devia acender um novo fogo. 3 

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menção a outros caminhos que o morto pode seguir (assim, o sol, o vento, as águas, o céu, a terra), de acordo com os seus méritos (quer dizer, segundo a correção do cumprimento das regras do rito funerário). Há também uma referência ao caráter protetor, para o corpo morto, das partes do animal sacrificado durante o funeral (uma cabra), porquanto a queima do animal substituto permite que o corpo morto seja curado de qualquer ferimento e chegue ileso e perfeito ao seu destino. No final do hino, ele é invocado a se abrandar e esfriar, a prolongar a vida e proteger os vivos. Esse hino era recitado durante a cremação, como veremos mais adiante, durante a análise do Gṛhya-sūtra de Āśvalāyana. Hino Consagrado à Morte (X, 18, 1-14) Vai, ó Morte, toma outro caminho, toma tua trilha, distinta da trilha dos deuses. Eu te digo, a ti que tens olhos e orelhas: não causes dor à nossa progênie. Já que partistes, confundindo o rastro da Morte, prolongando a duração de nossas vidas, repletos de progênie e de riqueza, sede puros e santificados, ó veneráveis. Os vivos separam-se dos mortos. A invocação que hoje dirigimos aos deuses é favorável. Nós vamos dispostos a dançar e a rir, prolongando a duração de nossas vidas. Eu edifico esta muralha para os vivos. Que nenhum deles ultrapasse este limite! Que vivam cem outonos em abundância! Que ocultem a Morte com uma montanha! Assim como vão os dias em fila, um depois do outro, assim como as estações seguem as estações, Fixa, ó Criador, a medida de suas vidas! Que o novo não abandone o velho!

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Vós, que escolheis a duração da vida, alcançai a velhice, ajuntando-se em fila ordenada, ó inumeráveis! Que Tvaṣṭṛ, mestre do bom nascimento, vos conceda longa vida! Que estas mulheres, que não são viúvas e têm bons esposos, se aproximem, adornadas com unguentos e cremes. Que as mulheres, sem lágrimas, sem dor, ataviadas, subam sem tardar ao leito nupcial. Levanta-te, ó mulher, vem para o mundo dos vivos. Vem, tu que estás ao lado do morto. Vem para ser a esposa de um homem que deseja tua mão e te quer possuir. Tomando o arco da mão do morto, eu digo, para conseguir poder, glória e força: "Tu estás aí, nós estamos aqui! Vençamos, heróicos, a inimizade e a insídia." Aproxima-te desta terra que é tua mãe, terra ampla e favorável. Que ela, virgem, macia como lã para os dedos, te proteja do seio da destruição. Escancara-te, ó terra, não o sufoques! Dá-lhe boa entrada, boa acolhida! Recobre-o com o véu do teu manto, ó terra, como faz a mãe ao filho. Que a terra, escancarando-se, se mantenha firme! Que mil colunas a sustentem! Que esta morada jorre manteiga e que seja para ele um refúgio eterno! Eu fixo firmemente a terra sobre ti. Que eu não te machuque depondo este torrão! Que os pais mantenham este pilar! Que Yama construa uma morada para ti! Eu também, um dia, serei colocado [na terra] como a pena na flecha. Mas retenho minhas palavras agora, como [se retém] o cavalo com as rédeas.

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O hino 18, uma consagração à Morte, principia com uma súplica para que ela, que já fez sua vítima, parta e deixe em paz aqueles que estão vivos. Nos versos seguintes exaltam-se a vida e a prosperidade em contraposição ao vazio deixado pela morte. Os vivos são convidados a se purificar e deixar o luto. Um elemento importante presente nesse hino é a muralha que o oficiante erige simbolicamente entre os vivos e a morte, estabelecendo uma clara separação entres esses mundos. Ela deve manter a morte afastada ou ocultada qual uma montanha, para que, assim, os vivos possam alcançar cem outonos e a morte chegue naturalmente, apenas para os mais idosos. Os versos seguintes mencionam as mulheres e principalmente a esposa do morto. Trata-se do momento em que, antes de a pira funerária ser acesa, a viúva se deitava ao lado do morto e, em seguida, era instada a se levantar e retornar ao mundo dos vivos. Há talvez a indicação de que a viúva podia casar-se novamente, talvez com seu cunhado. Essa estrofe é considerada um indício de uma simulação da imolação das viúvas (satī) na pira funerária do esposo, que se tornou um costume recorrente nas épocas mais tardias, possivelmente um acréscimo tardio para legitimar essa prática. Retira-se, em seguida, também o arco da mão do morto, o que indicaria sua casta guerreira (RENOU, 1942: 75-6). A separação é novamente reforçada e são invocados o poder, a glória e a força. No trecho seguinte, o oficiante pede à terra que acolha e proteja o morto, o que indica uma cerimônia de deposição dos restos mortais da cremação. Ele depõe sobre as cinzas do morto um torrão de terra e reitera a separação do morto e dos vivos, pedindo que Yama e os ancestrais o protejam. O próprio oficiante reconhece que um dia irá trilhar o mesmo caminho. Com base nos hinos apresentados acima, é possível inferir que a cremação era a forma predominante de deposição do morto, embora a inumação também fosse praticada

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(ALLCHIN, 1999: 65; ANTONINI, 1982: 467-481; TUCCI, 1963; STACUL, 1973 e THAPAR, 1966: 45). Nas cremações, Agni é o responsável pelo envio do morto ao outro mundo, onde se encontram os ancestrais e os deuses. Ao deus é suplicado que preserve o corpo intacto e queime somente o animal que é sacrificado durante a cerimônia. Ao transpor o caminho percorrido pelos Pais, o morto chega ao reino da luz e os encontra junto a Yama no paraíso mais elevado. Ali, o morto, unido a um corpo glorioso, desfruta uma vida de deleite, livre das imperfeições e fraquezas corpóreas, na qual todos os desejos são realizados, e permanece junto aos deuses, principalmente de Yama e Varuṇa. No maṇḍala X, além dos hinos anteriormente tratados, existem outras menções a Yama e às demais divindades associadas à morte. O célebre hino 10 apresenta o diálogo entre Yama e sua irmã Yamī (salakṣmā, “aquela que possui as mesmas feições”), os gêmeos primordiais e ancestrais da raça humana. Nesse hino, Yamī expressa seu amor e o desejo de tornar-se esposa de Yama, e suplica ao deus e irmão para que firmem essa união: eles devem procriar pelo bem da humanidade, caso contrário, as futuras gerações estarão comprometidas e sujeitas à destruição (nirṛti). Yamī argumenta que, como Yama é o único mortal existente, a união incestuosa de ambos não seria um mal. Mas Yama recusa-a, Yamī deve encontrar outro companheiro para que forme uma união mais abençoada. As divindades Yama e Yamī, os gêmeos primordiais dos quais descende a humanidade, correspondem a Yima e Yimeh, no Avesta (THAPAR, 1966: 41; MULLER, 1864: 510, 521 e GHOSH, 1989: 36-42). No hino 135, também dedicado a Yama, encontram-se referências às oferendas funerárias. Yama (que é chamado de Pai) e os deuses bebem junto a uma árvore frondosa. O Senhor

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dessa morada cuida afetuosamente dos ancestrais anciãos. O poeta-vidente Naciketas, ainda a lamentar o que seu pai fizera, diz ter olhado de maneira relutante para aquele que reverencia tais anciãos, para aquele que trilhou esse caminho nefasto (Morte). Yama permitiu que ele retornasse vivo à casa do pai e lhe ensinou um ritual para evitar a morte. O verso final descreve o trono de Yama, a Morada dos Deuses, na qual menestréis tocam flautas para aquele que é louvado com cânticos. Esse é o hino em que Naciketas conta sua história (BHATTACHARJI, 1970: 54) e é considerado o núcleo da célebre história de Naciketas e o mistério da Morte presente na Kaṭhopaniṣad.

Yama, o Deus da Morte, nos Veda A partir dos hinos védicos consagrados a Yama e daqueles em que o deus é apenas mencionado, é possível traçar as características primordiais do Senhor da Morte, que fundamentaram o desenvolvimento e as mudanças na sua personalidade no período Épico-Bramânico subsequente. Nos Livros mais antigos dos Veda, os hinos apresentam Yama geralmente associado a Varuṇa e, mais frequentemente, a Agni, o condutor dos mortos, que é chamado de seu amigo e sacerdote. Nos primórdios do período Védico, Yama figura como o primeiro mortal, o primeiro a percorrer o caminho da Morte, o qual passou a ser chamado o “caminho de Yama”. O seu reino, o terceiro paraíso celestial, é a morada dos heróis, o que explica que é ele que doa o cavalo de batalha montado por Indra (o deus-guerreiro por excelência). O deus também figura como aquele que teceu as vestes dos ancestrais Vaśiṣṭha. Embora Yama apareça citado em mais de cinquenta estrofes ao longo do Ṛg-veda, é no maṇḍala X, o mais tardio,

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e no Atharva-veda, que o deus alcança maior destaque, e sua origem e características são apresentadas de modo pormenorizado. Yama permanece em seu trono na Morada dos Deuses, seu reino no céu longínquo e recôndito está associado à direção Sul (BHATTACHARJI, 170: 73-74). Ali, ele reside, entretido por cânticos de louvor e pelo som das flautas tocadas pelos músicos. Agni é seu mensageiro. Seu reino, mencionado com frequência como a morada dos heróis, também é descrito como o local em que o deus congrega todos os mortais. Ele é chamado de Pai da humanidade, Rei dos mortos e o maior dos ṛṣi (sábio), visto que foi o primeiro a trilhar o caminho da Morte, o primeiro dos homens a abandonar o corpo e desvendar a trajetória do morrer. Tornado imortal por morrer, Yama adquire condição divina e torna-se digno de oblações. O imortal é invocado a encaminhar seus adoradores até os deuses e a conceder longevidade aos vivos e imortalidade aos que partiram. O fato de Yama ser mais proeminente no maṇḍala X do Ṛgveda, compilado numa época em que o processo de interação cultural entre os indo-arianos e as populações autóctones estava em curso, pode indicar as assimilações e as mudanças decorrentes desse contato (BHATTACHARJI, 1970: 48). Seu pai é Vivasvant, uma divindade solar, sua mãe, Saraṇyu, é filha do deus Tvaṣṭṛ, o artífice celestial. Ghosh (1989: 87) observa que Yama é filho de Saramā e é, portanto, algumas vezes, chamado de Saraṇyu (nomes cuja raiz, SṚ, significa “fluir”, “escorrer” [como a água], ou “soprar” [como o vento]), o que configura um campo semântico próximo dos núcleos temáticos do mito do deus). Saramā também é representada como uma cadela, mãe dos dois cães que guardam as quatro direções e também os portais do reino do filho (o Yama-loka). Yama é ao mesmo tempo divino e humano. O soma é-lhe concedido como um privilégio dos deuses. Associado aos

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Patriarcas (pitāras) que habitam seu reino (e cujos nomes de estirpe foram conservados, a saber: Mātali, Kāvya, Aṅgiras, Navagva, Atharvan, Bhṛgu e Vaśiṣṭha), tem especial contato com os Aṅgiras, em cuja companhia Yama parte da região Sul, dirigindo-se aos locais em que se realizam os sacríficos, a fim de beber o soma e desfrutar as oblações dispostas sobre a erva sagrada. Yama é ainda o tecelão das vestes que os ancestrais trajam em seu paraíso. Os ancestrais preparam o caminho para o ofertante e são considerados os primeiros seguidores da Lei (dharma). Dharmarāja, “Rei do dharma”, é um dos epítetos de Yama registrados na literatura épico-bramânica, como no Chāndogya-brāhmaṇa [II. 2. 1] (BHATTACHARJI, 1970: 49). Os ancestrais também são mencionados como protetores do sol e associados às estrelas. Os hinos e as preces nos Veda mais tardios revelam um deus benevolente, que atravessou o caminho da morte e que zela pelos mortos, outorgando-lhes longevidade e uma morada aprazível. Os mortos compartilham sua morada e os vivos confiam ao deus seus parentes, desde o momento da travessia derradeira até a sua estada no paraíso celestial de Yama. O deus é adorado como os outros deuses: benévolo e não temido, é o deus dos mortos e não da Morte. No Atharva-veda, entretanto, registra-se uma mudança. Às características já vistas de Yama acrescentam-se as de ser Antaka (“aquele que causa o fim”) e Mṛtyu (a “morte”). Os mortos permanecem na região sul, a desfrutar da companhia do deus. Yama, com pés emplumados (paḍbīśa), tem por mensageiros a coruja (ūluka), o pombo (kapōta) e o abutre (śakuna), embora seus emissários mais frequentes sejam os dois cães malhados de quatro olhos e narizes largos, Śyāma e Śabala, filhos de Saramā (LINCOLN, 1991: 92). Esses animais são os protetores do caminho que o morto deve percorrer até chegar ao local em que estão os ancestrais. Eles observam os

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homens e vagam entre as pessoas como mensageiros do deus e são invocados para propiciar a luz do sol. O Atharva-veda também revela que a morte pode ser evitada com a ajuda de Yama. O homem que venera a Morte com reverência é libertado das suas garras e mais tarde encaminhado ao reino dos Patriarcas. O Atharva-veda descreve Yama como o senhor dos bípedes e quadrúpedes e também como aquele que está além da morte – atimṛtyu (BHATTACHARJI, 1970: 49). Todavia, a morte também é descrita como o “caminho nefasto”. Nirṛti (a “destruição”, a “enfermidade”, ou, de modo mais geral, a “desordem”), divindade presente no Ṛg-veda, está associada a Yama e a Mṛtyu, e é interpelada seguidas vezes, para que se mantenha longe dos homens, pois é considerada um ser nefasto. O pombo, a coruja e o abutre também são seus emissários.

Práxis Funerária e Novos Paradigmas no Período Bramânico

O final do período Védico é atribuído ao século X a.C. O período que se lhe segue é o Bramânico, também chamado Épico-Bramânico, e seu desenvolvimento está associado geograficamente à bacia do Ganges. Tal período presenciou, numa primeira fase, datada dos séculos IX e VIII a.C., a codificação final dos rituais védicos, presentes nos Brāhmaṇa, que serviam como manuais de instruções rituais para os sacerdotes brâmanes. Nessa fase inicial do período Bramânico, desenvolveu-se uma ortodoxia de caráter conservador e as evidências sobre as cerimônias funerárias se ampliam nas fontes textuais. A necessidade de um tratamento sistemático dos rituais durante esse período possivelmente estimulou a organização desses textos. Além dos Brāhmaṇa, também foram codificados nessa época os Kalpa-sūtra, que contêm os Gṛhya-sūtra, as regras para os

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ritos e cerimônias da esfera privada, assim como as regras de preparo e execução desses ritos, que incluem os rituais funerários, analisados a seguir. O deus Yama adquire, a partir dessa época, novas facetas, que irão se desenvolver e se cristalizar nos séculos seguintes. Diferentemente dos Veda e dos ritos contidos nos Śrautasūtra, que invocam os deuses e lhes dedicam os sacrifícios, os Gṛhya-sūtra tratam dos rituais e das cerimônias observadas ao longo da vida do dvija – o “nascido-duas-vezes”, isto é, aquele que, pertencendo às três castas ārya, recebeu os sacramentos védicos. Esse tratado abrange todos os ritos relacionados à família e, portanto, está associado aos ritos de passagem: ao nascimento, ao discipulado, ao casamento e, finalmente, ao funeral. Dentre os ritos de passagem, o funeral é abordado no Gṛhya-sūtra da Escola de Āśvalāyana5, no adhyāya IV, em sete kaṇḍikā, que apresentam os principais elementos da práxis funerária, observados durante a cremação de um dvija. Durante a realização dos ritos funerários eram recitadas várias estrofes dos hinos fúnebres do maṇḍala X do Ṛgveda, prática que se perpetuou até o presente. Alguns estudos recentes apresentam evidências importantes e ampliam o conhecimento sobre os rituais funerários nos períodos mais remotos. Tais relatos fornecem alguns dados que complementam o que está exposto no Gṛhya-sūtra de Āśvalāyana [=GSA], conforme se verá a seguir. A porção IV do GSA inicia-se com a menção ao dvija que havia adoecido e que termina por falecer. A enfermidade era uma grande preocupação, pois podia causar a ruína da família. O moribundo mandava chamar os parentes e dava instruções sobre a divisão dos bens. Entre os bens a repartir, figuravam os hinos, os sacrifícios e a “porção do mundo que lhe pertence” Para a tradução do texto; ver: Aldrovandi, 2006: 254-55. Traduções consultadas: Oldenberg e Muller, 1892 e Varenne, 1967: 314-316. 5 

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(AUBOYER, 1960: 264-276, 278-280 e RENOU, 1947: 208209, 1950: 12-15, 24)6. O Garuḍa-purāṇa [II. 30] fornece uma descrição dos momentos que antecedem a morte do ārya. Um brâmane era chamado à casa e o moribundo lhe fazia algumas oferendas: bolas de algodão, para afastar os piśāca, e potes de ferro (este, um metal considerado cheio de impurezas sutis e bem aceito pelos yama-dūta, os emissários de Yama). De acordo com as crenças, gergelim e ferro eram as oferendas mais apreciadas por Yama, a terceira era o sal. Durante essa cerimônia também se ofereciam um punhado de cereal e sementes de legumes, juntamente com manteiga clarificada e um doce em forma de bola (laḍḍu7). A última oferenda era uma vaca, chamada vaitaraṇī (“aquela que atravessa, ou que faz alguém atravessar”), nome que também designa o rio de sangue e excremento que atravessa a extremidade sul do mundo e demarca a fronteira do mundo de Yama. Esse animal, após ser adornado, era trazido ao cômodo do moribundo, que lhe segurava com força o rabo e depois o entregava ao brâmane, na crença de que o animal conduziria o morto pelo caminho que leva à morada de Yama. Se o moribundo estivesse muito enfermo, uma corda era amarrada à sua mão e à vaca, que permanecia fora da casa; se ele não possuísse meios, deveria oferecer cinco moedas de valores diferentes, simbolizando o preço de aquisição do animal; em alguns casos os idosos preferiam fazer essa oferenda antecipadamente, em um dia auspicioso. A vaca era certamente a oferenda mais importante a ser concedida, porquanto tinha ela a função dum

Um exemplo de cerimônia de transmissão (sampradāna) das posses do moribundo ao filho mais velho consta na Kauṣītaky-upaniṣad [II. XV]. 7  Na atualidade, mesmo as famílias menos favorecidas procuram folhear esse doce com ouro, por ser a iguaria o doce preferido do deus Gaṇeśa, o senhor das trilhas e aquele que remove os obstáculos, 6 

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psicopompo8. O sacrifício da vaca anustaraṇī (“aquela que é deposta”), por sua vez, ocorria durante as exéquias9. De acordo com Bodhāyana, no período Védico, imediatamente após a morte de um familiar, era necessário realizar um homa, isto é, segurar a mão direita do morto e oferecer manteiga quatro vezes ao fogo gārhapatya (GHOSH, 1989: 142). Esse mesmo rito foi descrito de maneira diferente por um outro erudito, que menciona o fogo āhavanīya, ao passo que o GSA recomenda sua realização num momento posterior do rito fúnebre. Nenhum deles, no entanto, registrou o translado do moribundo até a beira do rio, para mergulhar a metade inferior do corpo nas águas, uma prática que parece ter ocorrido até o século XIX, particularmente em Bengala (FILIPPI, 1947: 136). Uma vez constatada a morte, caso o corpo ainda estivesse sobre um leito, ele devia ser deposto no solo, depois que este tivesse sido varrido, esfregado com estrume de vaca e recoberto de ervas sagradas. Nesse momento colocavam-se pedaços de ouro nos orifícios do morto, principalmente no nariz, que era considerado o controlador do sopro vital (RENOU, 1947: 53-54 e FILIPPI, 1947: 120-128), sendo o ouro considerado um indutor da liberação. Também há menções ao translado do cadáver até um arbusto de tulasī (Ocimum sanctum), cujas folhas deviam ser colocadas sobre a garganta e as palmas do morto (GHOSH, 1989: 156-157 e FILIPPI, 1947: 114-116). Em seguida eram realizados os preparativos para as exéquias. O corpo do morto recebia o tratamento devido: o cabelo, a barba e todos os seus pêlos eram raspados e as unhas, cortadas. Também eram providenciados os elementos necessários para Cabe assinalar que, na época anterior, a vaca era oferecida em sacrifício ao fogo, e não entregue ao brâmane, como estipula o GSA. 9  Ainda hoje existem, em alguns Estados da Índia, brâmanes āhitāgni, “manipuladores do fogo”, que realizam os sacrifícios fúnebres em conformidade com as práticas da época védica. O animal sacrificado é, porém, substituído, em efígie, por elementos naturais ou simbólicos (Filippi, 1947: 109-117). 8 

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o sacrifício (erva sagrada e manteiga), utilizados também nas oferendas aos ancestrais. O Gṛhya-sūtra de Gautama [II. 24] recomenda que o cabelo e as unhas devam ser enterrados em um local desconhecido. Fontes secundárias mencionam a unção do corpo do morto com óleos perfumados, a troca das vestes por um traje novo, a união das mãos e o emprego de flores e guirlandas (AUBOYER, 1960: 270-271). A notícia da morte era transmitida por meio de um tambor, tocado sem cessar no vilarejo. Os parentes, mesmo os mais distantes, chegavam à casa do morto, com os cabelos soltos, sinal de sua aflição. O sofrimento da viúva enlutada era demonstrado na lamentação e na destruição de seus adornos [cf. Mānava-dharma-śāstra, V.156-169 (BUHLER, 1890)]. Caso a esposa viesse a falecer antes do marido, ela devia ser cremada com os fogos e instrumentos sagrados do agni-hotra; ao entregar os fogos sagrados à sua esposa, o marido podia se casar novamente, mas devia permanecer na mesma casa. Existiam carpideiras que batiam no peito, lamentavam aos gritos e dançavam enquanto sacudiam as longas cabeleiras desfeitas (AUBOYER, 1960: 270-271). Outro estudo antropológico menciona que, após a preparação do corpo, os parentes andavam ao redor (prasavya) do morto em silêncio reverente, enquanto incenso e cânfora eram queimados. Apenas depois desse rito a lamentação e o sofrimento podiam ser demonstrados (FILIPPI, 1947: 130-131, 135 e 185). A vigília era mantida para assegurar que o morto não fosse importunado por maus espíritos; assim, um maṇḍala era desenhado para protegê-lo, pois tais diagramas sagrados afastavam o mal10. As mulheres, com exceção da viúva, permaneciam em casa a lamentar. 10 

Os maṇḍala são desenhados ainda hoje na entrada das casas pelas mulheres.

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Em relação aos trajes fúnebres, parece ter havido uma preferência por mortalhas brancas para os homens e vermelhas para as mulheres (GHOSH, 1989: 142-143). O morto podia ser recoberto com uma ou duas vestes novas. Em relação à urna funerária, a madeira devia ser a preferida de Yama, a uḍumbara (Fícus glomerata). O cadáver era recoberto por um tecido novo e sem cortes, cujas pontas deviam cair pelos lados da urna, ação que podia ser realizada pelo filho, pelo irmão ou por qualquer um que se dispusesse a fazê-lo, desde que, ao recobrir o morto, fosse dito: “Renuncia ao teu velho traje e coloca esta nova veste”. Em seguida, o corpo era envolto em lençóis ou numa esteira, alçado à altura dos ombros dos carregadores e trasladado até o campo de cremação. O local em que o cadáver deveria ser cremado, assim como o tamanho da cova, são descritos em detalhes [GSA IV.I.6-15]: um pedaço de terra devia ser cavado no sudeste ou sudoeste, num lugar inclinado em direção ao sul ou ao sudeste (em alguns casos, sudoeste); o cemitério devia ser aberto em todas as direções; podia estar coberto de ervas, mas as plantas com espinhos e com seiva leitosa deviam ser retiradas. A água não devia ficar estagnada no solo do cemitério (śmaśāna), mas fluir em todas as direções. A palavra śmaśāna designava tanto o campo de cremação quanto o cemitério, ou a sepultura em que a urna cinerária era depositada, ou ainda um monte funerário (OLDEMBERG e MULLER, 1892: 237, n.12; GONDA, 1978: I, 185 e RENOU, 1954: 150)11. Uma interessante descrição de um cemitério antigo registrou um vasto terreno rodeado de muros e com quatro pórticos (um para ser utilizado por cada casta), decorado com pinturas e esculturas sagradas (AUBOYER, 1960: 274-275). No meio de um grande pátio, havia um altar e um pequeno templo dedicado à deusa das lenhas crematórias; nele havia também pilares sacrificiais e numerosos bancos de pedra. O local possuía um grande número de ervas, arbustos e árvores. Aqui e ali se avistavam algumas urnas funerárias, cuja cerâmica vermelha se destacava entre as plantas e sobre as quais se empoleiravam diferentes pássaros. A água corrente cruzava-o em 11 

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O Mānava-dharma-śāstra [V.92] estabelece que o traslado de um śūdra devia ser feito pelo portal sul da cidade, e que os corpos dos dvija (as três outras castas) deviam ser carregados pelos portões leste (brāhmaṇa), norte (kṣatriya), ou oeste (vaiśya). O cortejo fúnebre era, então, organizado [GSA IV.II]. Na frente, alguns parentes transportavam os fogos sagrados e os objetos sacrificiais do morto rumo ao sul (v. PANNIKAR, 1994: 494; FILIPPI, 1947: 167 e STEVENSON, 1920: 163). Um grupo de anciãos carregava o morto; eles deviam somar uma quantidade ímpar de homens ou mulheres separados. Em alguns casos, o morto era transportado em um carro, que, nesse caso, devia ser puxado por vacas. Também em alguns casos o cadáver devia ser protegido por uma vaca ou cabra de apenas uma cor, ou preta (para o sacrifício), que devia seguir amarrada atrás do morto (VARENNE, 1967: 314; GHOSH, 1989: 142-143; AUBOYER, 1960: 271 e FILIPPI, 1947: 113-114, 134). Segundo algumas fontes, um ramo de folhagem era arrastado para apagar as pegadas dos enlutados (v. BLOOMFIELD, 1891: 416; FILLIPI, 1947: 133; VAN GENNEP, 1909: 151 e BENDANN, 1930: 67). Em seguida, vinham os parentes, que acompanhavam a procissão de acordo com a idade: primeiro, os mais idosos, sucedidos pelos mais jovens; seus cabelos ficavam soltos e os cordões sacrificiais amarrados ao redor do corpo (BENDANN, 1930: 101 e GHOSH 1989: 138). Alcançado o campo de cremação (cemitério), iniciavam-se os ritos preliminares. O oficiante dos ritos (sacerdote) circum-ambulava três vezes o local escavado, em sentido anti-horário (prasavya). Os ritos fúnebres eram cetodas as direções [cf. GSA I.15]. Havia guardas que residiam no local e circulavam armados com bastões, para se defender dos demônios. Nesse local de desolação, não cessava de ressoar o ruído do choro e das lamentações: “Tal qual o tumulto do mar de grandes águas e vagas a inundar, tais gritos tristes jamais se calam”. Havia também monumentos funerários de pedra e tijolo, em forma de cúpulas.

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lebrados no sentido contrário daqueles relacionados aos vivos; o campo de cremação era voltado para o Sul, região dos Mortos, a morada de Yama. Assim, a circum-ambulação (parikrama) do local de cremação devia ser realizada no sentido contrário (anti-horário) ao daquele (pradakṣiṇa; sentido horário) normalmente realizado nas outras cerimônias (MALAMOUD, 1982: 443; PARRY, 1989: 506 e FILIPPI, 1947: 137-139). Em seguida [GSA IV.II.10], aspergia-se água com o ramo de uma planta sagrada (śamī), enquanto um verso do Ṛg-veda [X.XIV.9] era entoado (AUBOYER, 1960: 271 e GHOSH, 1989: 138). Os três fogos sagrados (do agni-hotra) eram instalados nas direções prescritas. Nesse momento, a pira funerária era erguida (GHOSH, 1989: 157 e J. M. e G. CASAL, 1956: 29); sobre ela eram depositadas a erva sagrada e a pele de um antílope preto (FILIPPI, 1947: 114). Em seguida, o cadáver era colocado voltado para cima, com a cabeça em direção ao sudeste (sul); à direita da pira a vaca, ou a cabra, era amarrada. A esposa [GSA IV.II.16-18] era convidada a se deitar sobre a pira funerária (no lado norte do morto) e, em seguida, uma outra estrofe védica [RV, X, 18, 8] era entoada, enquanto ela era chamada a se levantar pelo representante do morto e retornar ao mundo dos vivos. Esse trecho do ritual, como mencionado anteriormente, é considerado uma referência às satī, as viúvas que em períodos mais tardios se imolavam na pira funerária dos esposos; prática realizada até o século XIX, quando foi banida pelas autoridades britânicas. Acredita-se que nos tempos védicos esse rito era meramente simbólico (THAPAR, 1966: 41; 1981: 293-315; AUBOYER, 1960: 272, 276-278; GHOSH, 1989: 139, 164-165 e FILIPPI, 1947: 139). Os representantes do morto são mencionados nesse trecho do Sūtra. Eles deviam ser: um cunhado, um discípulo, ou um criado idoso do marido falecido (o śūdra a que se referem os

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versos 19 e 21). Um arco era colocado junto ao morto, caso ele fosse da casta guerreira, e retirado em seguida, quebrado e devolvido à pira em pedaços, enquanto se entoava um outro verso védico [RV, X, 18, 9]. Caso o representante do morto fosse um servente, era o sacerdote quem recitava os versos védicos [RV, X, 18, 8-9]. Nesse momento, segundo o GSA [IV.III.1-19], devia ocorrer a deposição dos objetos rituais junto ao morto, utilizados em vida nos ritos solenes e no agni-hotra (THAPAR, 1966: 44 e DEMMER, 1999: 68-87). A seguinte ordem devia ser observada: a colher principal na mão direita; a colher secundária na mão esquerda; à sua direita, a espada sacrificial de madeira; à sua esquerda, o receptáculo para o agnihotra; sobre o peito, o grande receptáculo (colher); sobre sua cabeça, os demais recipientes; sobre seus dentes, as cinco pedras para espremer o sumo do soma; ao lado do nariz, dois pequenos recipientes (ou colheres); sobre as duas orelhas, os recipientes que contêm as oferendas para os brâmanes (os doces); sobre o ventre, um recipiente (tigela ou cálice de argila); sobre os órgãos genitais, um bastão de madeira; sobre as coxas, os dois pedaços de madeira que servem para acender a pira funerária; sobre as pernas, o almofariz e o pilão; sobre os pés, os dois cestos. Caso o morto não possuísse mais de um objeto ritual de cada tipo, estes deviam ser quebrados em dois pedaços. Todos os utensílios depostos sobre o cadáver, portadores de orifícios, deviam ser ungidos com manteiga. O filho do morto conservava para si as duas pedras de mó, os utensílios de cobre, ferro e cerâmica (AUBOYER, 1960: 272 e VARENNE, 1967: 314). O filho mais velho realizava, então, o sacrifício do animal [GSA IV.III. 20-25]. O omento (dobra do peritônio) da vaca ou da cabra era retirado e colocado sobre o rosto do cadáver, enquanto um verso era recitado [RV, V, 16, 7]. Em seguida

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retiravam-se os rins do animal, que eram dispostos sobre as mãos do cadáver, o rim direito na mão direita, o esquerdo na esquerda, enquanto se entoava outro verso [RV, X, 14, 10]. O coração do animal era colocado sobre o do morto. Se não houvesse rins, deviam ser usadas duas bolas de massa de arroz ou farinha (nas mãos do cadáver). O animal era esquartejado e cada membro colocado sobre a parte correspondente do corpo do morto. Em seguida o corpo era recoberto com o couro do animal, com os pêlos voltados para cima. A água sagrada era trazida para a oblação, ao mesmo tempo em que um verso védico [RV, X, 16, 8] era recitado, suplicando a Agni que não derrubasse aquele cálice. O oficiante (o filho mais velho), com o joelho esquerdo dobrado, oferecia quatro oblações ao fogo dakṣiṇa, enquanto reverenciava Agni, Kāma, o Mundo e Anumati (v. GHOSH, 1989: 140). Ele retornava e oferecia uma quinta oblação ao morto, vertendo a água sacrificial sobre seu peito, enquanto invocava Agni e fazia uma reverência ao mundo celestial. A cremação do cadáver era então iniciada [GSA IV.IV]. O oficiante ordenava que os três fogos fossem trazidos para atear simultaneamente a pira funerária. O oficiante atento era capaz de pressagiar, durante a cerimônia, a região para a qual o morto iria, de acordo com a chama que primeiro o atingisse: se fosse o āhavanīya (sudeste), ele ascenderia ao mundo celestial; se fosse o gārhapatya (noroeste), ao mundo atmosférico (domínio aéreo ou intermediário); se o dakṣiṇa (sudoeste), ele renasceria no mundo dos homens. Em qualquer dos casos, o morto obteria prosperidade, assim como seus filhos. O fato de as três chamas o atingirem ao mesmo tempo era considerado extremamente auspicioso. Enquanto o corpo era cremado sobre a pira funerária, o oficiante devia recitar um verso védico [RV, X, 14, 7], que instava o morto a partir e a percorrer o antigo

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caminho dos ancestrais. No trecho seguinte, menciona-se que, de acordo com os textos sagrados, aquele cujo filho conhecia esses versos ascendia ao mundo celestial (MALAMOUD, 1982: 452, n. 11). No Garuḍa-purāṇa [V. 57-58] existe uma referência à lamentação. O texto diz que, enquanto o oficiante atirava cereal e sementes de gergelim na pira funerária, ele devia realizar um lamento bastante alto, pois isso “agradava ao morto”; no entanto, não se devia derramar lágrimas após a oferenda de água, pois o preta, uma vez liberto dos liames de parentesco, sofreria com a lágrimas; portanto, “não era apropriado prantear” (GHOSH, 1989: 159). Uma cova era aberta a nordeste do fogo āhavanīya e recebia um tipo de erva sagrada. Eram então realizados os ritos fúnebres conclusivos, nos quais era recitada uma estrofe [RV, X, 18, 3] visando estabelecer a separação entre os vivos e o morto. Assim, aqueles que haviam presenciado a cremação, voltavam da direita para esquerda (prasavya) e partiam do campo de cremação, sem olhar para trás (GHOSH, 1989: 143-144; AUBOYER, 1960: 273 e RENOU, 1945: 135-136). No caminho de volta [GSA IV.IV.10], eles deviam banhar-se num lugar de água estanque e fazer uma ablução: mergulhavam uma vez na água e, em seguida, vertiam água das mãos, enquanto pronunciavam o nome do morto. Segundo o Mānavadharma-śāstra [V.60], todos os parentes samānodaka, homens e mulheres, deviam erguer as mãos cheias de água e pronunciar o nome da estirpe (gotra) e o nome próprio do morto, enquanto derramavam a água voltados para o sul (OLDEMBERG e MULLER, 1892: 243 e MALAMOUD, 1982: 441). Em seguida, trocavam os trajes, as vestes molhadas antigas eram torcidas e estendidas com as bordas voltadas para o norte. Então, sentavam-se próximos da água e esperavam até o anoitecer (até as estrelas

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surgirem); existe uma segunda possibilidade, de acordo com a qual eles podiam voltar para casa antes do pôr-do-sol (durante o crepúsculo). Em cortejo, eles retornavam às casas, primeiro os mais jovens, seguidos dos mais idosos. Ao chegar, deviam tocar coisas auspiciosas, na seguinte ordem: uma pedra, o fogo, esterco de vaca, cevada torrada, sementes de gergelim e água (AUBOYER, 1960: 273; VARENNE, 1967: 316; GHOSH, 1989: 144, 159 e BENDANN, 1930: 125-126). Nessa noite, nenhum alimento devia ser preparado na casa do morto; os familiares deviam ingerir alimentos comprados (oferecidos por amigos), ou que já estivessem preparados de antemão. O alimento não podia conter sal (por três noites). A distribuição de oferendas devia ser evitada e, caso o morto fosse o pai, a mãe ou o mestre da pessoa (OLDEMBERG, 1892: 244, n. 17), esta não devia estudar os textos sagrados (Veda) durante doze dias (AUBOYER, 1960: 273 e GHOSH, 1989: 160). Em seguida, o GSA [IV.IV. 18-27] descreve, em detalhes, o número de dias de luto para cada caso específico, de acordo com o grau de parentesco e as características do morto (STEVENSON, 1920: 163; FILIPPI, 1947: 127-8, 144 e BENDANN, 1930: 113). No Mānava-dharma-śāstra [V. 57-96] estão descritas as purificações que devem ser realizadas pelos parentes do morto, de acordo com cada varṇa (casta). O luto se estende até os parentes de sétimo grau12. A coleta dos ossos [GSA IV.V] era feita pelos idosos, em número ímpar, no caso, ou somente por homens ou mulheres (v. VARENNE, 1967: 316; MALAMOUD, 1982: 442, e 1999: 135-149; GHOSH, 1989: 179). O oficiante circum-ambulava novamente o local de cremação (prasavya), três vezes no sentiAs fontes parecem diferir sobre a definição da relação sapiṇḍa. De modo geral, estipula-se que essa relação abrange até o sexto grau de parentesco; cf. Āpastamba [II.15.2]; Gautama [XIV.13].

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do anti-horário, enquanto aspergia leite misturado à água, com o ramo da planta sagrada (śamī), e entoava um verso [RV, X, 16, 14]. Em seguida, os idosos recolhiam os ossos; utilizando os dedos polegar e anular, coletavam primeiramente os ossos dos pés até chegar ao crânio. Depois de recolhidos e purificados (lavados) numa peneira de fibras, os ossos eram depositados na urna cinerária, evitando-se a produção de qualquer ruído. A urna era, então, levada até uma cova (para a qual as águas, exceto as da chuva, não confluíssem) e sepultada, enquanto se recitava uma estrofe [RV, X, 18, 10] que instava o morto a se aproximar da terra, que é sua mãe (OLDEMBERG e MULLER, 1892: 245; AUBOYER, 1960: 275 e ANTONINI 1982: 468-469, 478). O oficiante atirava, em seguida, terra na cova enquanto recitava duas vezes uma estrofe [RV, X, 18, 11]. A urna funerária era então coberta por uma tampa (estrofe recitada: RV, X, 18, 13, que invoca a proteção dos Pais e de Yama (MALAMOUD, 1982: 442, 446 e RENOU, 1954: 150). No final dessa kaṇḍikā menciona-se que esse rito devia ser realizado na quinzena sombria seguinte à da data da cremação, isto é, entre a lua minguante e a nova (VARENNE, 1967: 322 e GHOSH, 1989: 147). O oficiante varria primeiramente o local em que a urna iria ser depositada com um pedaço de couro ou galhos de palāśa (arbusto associado a Yama); o solo era arado com seis sulcos na direção leste–oeste; então, a tampa da urna era retirada e em seu interior eram depositadas algumas ervas aromáticas. A tampa era recolocada com o mantra específico e sobre ela se espalhava um punhado de sementes de gergelim (tila), de cevada torrada e de darbha (erva do gênero panicum); finalmente, um pouco de manteiga era colocado no lado sul da cova. Em seguida, o oficiante, sem olhar para a urna, untava seu corpo com manteiga e cobria suas pernas com um pedaço

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de tecido; depois, envolvia a urna com outro tecido, enquanto invocava os ancestrais e aspergia água sobre a urna com um ramo de árvore uḍumbara (também associada a Yama); a urna era, então, recolocada na cova e um túmulo era erigido, cercado por tijolos e coroado com um nāla (lótus). Por fim, colocava-se uma porção de arroz cozido ao redor e no topo do montículo e o oficiante recitava o hino fúnebre (GHOSH, 1989: 145 e COOMARASWAMY, 1932: 128-130). O oficiante e os participantes da cerimônia partem sem olhar para trás, banham-se com água e, no devido tempo, realizam a cerimônia śrāddha para o morto (OLDEMBERG e MULLER, 1892: 251). Descrita a cerimônia fúnebre, os dois kaṇḍikā seguintes do GSA abordam as cerimônias póstumas. Uma delas consistia num sacrifício de caráter expiatório, que devia ser realizado no caso da morte de um guru, portanto, o pai, a mãe ou um mestre [GSA IV.VI]. A cerimônia previa a instalação de um novo fogo doméstico na casa do falecido (OLDEMBERG e MULLER, 1892: 246 e PRZYLUSKI, 1920: 41-42). Durante a lua nova, eles deviam levar o fogo e as cinzas até a região sul (dos mortos) enquanto entoavam uma estrofe [RV, X, 16, 9] que suplica a Agni que se afaste. Eles deixavam esse fogo numa encruzilhada, ou noutro lugar, e faziam a circum-ambulação ao seu redor três vezes (prasavya), enquanto batiam com a mão esquerda na perna esquerda. Em seguida, deviam retornar à casa, banhar-se, raspar o cabelo, a barba e os pêlos do corpo e cortar as unhas. Deviam adquirir novas jarras, potes, vasilhas para lavar a boca, que tinham de ser decoradas com guirlandas de flores sagradas (śamī). Também deviam adquirir combustível de śamī e dois pedaços de madeira śamī para acender o novo fogo (por atrito). No momento do agni-hotra o oficiante devia acender o fogo enquanto recitava uma estrofe [RV, X, 16, 9]

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em que se invocam as bênçãos para que esse novo fogo possa enviar as oferendas aos deuses. Para manter o novo fogo, eles deviam permanecer sentados junto dele até que chegasse o silêncio da noite, contando fábulas dos anciãos e histórias de conteúdo auspicioso. Após todo som ter cessado, ou que as pessoas tivessem ido para suas casas ou lugar de repouso, o oficiante da cerimônia devia verter um jato de água ininterrupto, iniciado no lado sul da porta, e entoar uma estrofe [RV, X, 53, 6], enquanto dava a volta na casa até terminar no lado norte da porta. Em seguida, o fogo era instalado e, então, se estendia no seu lado oeste o couro de boi com o pescoço voltado para leste e os pêlos para cima. O oficiante devia fazer as pessoas da casa pisarem sobre esse couro enquanto entoava uma estrofe do hino fúnebre [RV, X, 18, 6] que invoca a longevidade. Depois, ele entoava outra estrofe do mesmo hino [4], enquanto depositava os ramos de erva kuśa ao redor do fogo, em mesmo número que as jovens da casa. Após ter colocado uma pedra ao norte do fogo e recitar palavras que pediam que essa montanha (pedra) os afastasse da morte, recitava quatro estrofes [RV, X, 18, 1-4] que rogam à morte para que siga outro caminho. Em seguida, ele devia olhar para as pessoas e entoar a estrofe seguinte do mesmo hino [5]. Finda essa cerimônia, as jovens da casa ungiam os olhos com manteiga fresca em folhas darbha novas, aplicada com seus dedos polegares e anulares, e então atiravam as folhas darbha para longe e voltavam seus rostos. Durante a unção, o oficiante da cerimônia devia olhar as jovens e recitar uma estrofe [RV, X, 18, 7]. Em seguida, recitava um verso de outro hino [RV, X, 53, 8], enquanto tocava a pedra em primeiro lugar. Depois disso, o oficiante parava, voltado para o nordeste, enquanto as demais pessoas davam uma volta com o fogo, com o esterco de boi e um jato ininterrupto de água, e recitavam três estrofes [do RV, X, 9],

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enquanto o oficiante murmurava uma outra estrofe [RV, X, 155, 5] e um boi fulvo era conduzido ao redor da casa. Todos deviam então vestir trajes novos que não tivessem ainda sido lavados e, em seguida, sentar-se e permanecer nesse local sem adormecer, até o nascer do sol. Depois do alvorecer, murmuravam os hinos sagrados ao sol e os hinos auspiciosos, enquanto preparavam alimento e realizavam oblações com o hino [RV I.97]. Após dar de comer aos brâmanes, o oficiante devia fazê-los proferir palavras auspiciosas. Os brâmanes recebiam como pagamento uma vaca, um cálice de metal e um traje novo ainda não lavado. Na porção seguinte [GSA IV.VII], enumeram-se, inicialmente, alguns tipos de cerimônia śrāddha, os ritos em honra e benefício dos parentes mortos; observadas com grande rigor em épocas específicas do ano, pelos parentes vivos, elas podiam ser ocasiões festivas ou de sofrimento. No final do período de luto, o oficiante era considerado puro e, portanto, pronto para realizar o śrāddha (GHOSH, 1989: 151-159); no entanto, esse rito devia ser precedido do rito expiatório descrito anteriormente. Tais cerimônias podiam ser realizadas diariamente, com oblações de água, ou em dias determinados, com as oferendas dos piṇḍa. Os śrāddha não possuem caráter funerário, mas são um complemento das cerimônias fúnebres, com o propósito de nutrir os mortos, uma vez que o rito lhe conferiu um corpo etéreo. Enquanto a cerimônia fúnebre e o śrāddha subsequente não tivessem sido realizados, o parente morto era considerado um preta, um fantasma ou espírito a vagar, sem um corpo real. Somente após o primeiro śrāddha é que o morto alcançava sua posição entre os pitāras, em sua morada (MONIER-WILLIAMS, 1877: 200-204 e GHOSH, 1989: 147-149).

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As regras da cerimônia śrāddha eram correspondentes às do sacrifício piṇḍa – os pequenos bolinhos de arroz cozidos, representação do morto e dos demais ancestrais (GHOSH 1989: 151-159; STEVENSON, 1920: 159; FILIPPI, 1947: 37-41, 127, 150-166; MALAMOUD, 1982: 452, n.4; VARENNE, 1967: 316 e AUBOYER, 1960: 236). O tempo de luto e o tipo de śrāddha também variavam de acordo com a condição do morto – adulto, criança ou asceta. Alguns estudiosos mencionam dois tipos de cerimônias dedicadas aos ancestrais: o śrāddha, que, como vimos, era específico para a linhagem do parente morto e para as três gerações de ancestrais diretos; e o tarpaṇa, que também se dirigia aos ancestrais, mas, de forma generalizada, a todos os mortos, independentemente de seu parentesco, tratando-se, por conseguinte, de uma cerimônia de agradecimento pela vida, realizada por meio de oblações de água (GHOSH, 1989: 151-159). Existiam cinco tipos de tarpaṇa, dos quais dois estavam associados aos ritos fúnebres, o diya-pitṛ-tarpaṇa e o Yama-tarpaṇa, que deviam ser realizados voltados para o sul. Todos os tarpaṇa deviam ser realizados regularmente; versões mais curtas dessas cerimônias podiam ocorrer durante as abluções diárias. Certas fontes consideravam os śrāddha e tarpaṇa imperativos, pois a alma do morto e os vivos podiam ser prejudicados se tais ritos não fossem observados. Nesse caso, um preta corria o risco de se tornar um piśāca.

Uma Estratigrafia da Morte nos Períodos Védico e Bramânico A fase intermediária do período Bramânico foi marcada por uma mudança sensível nas concepções filosóficas que regiam a religião védica. Essa modificação esteve associada ao desenvolvimento de novas formas de pensamento filosófico,

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de caráter especulativo e metafísico, que sucedeu e assimilou o ritualismo védico e permeou o desenvolvimento do meta-ritualismo presente nas Upaniṣad (RENOU, 1942: 15). Há conceitos desenvolvidos durante o período Bramânico, e outros que assumiram novas significações, que são fundamentais para a compreensão das exegeses presentes nos Brāhmaṇa e na literatura posterior. Alguns desse conceitos estão diretamente associados às questões que envolvem a Morte. Entre os principais conceitos abordados pelo pensamento filosófico desse período figuram o brahman (geralmente traduzido como o “Absoluto”), que é concebido como a essência suprema do universo, manifesto em toda a criação do mundo físico, e o ātman (o si-mesmo), a parte individuada do brahman, dotada de auto-referência. A busca dessa essência universal e a liberação do mundo fenomênico e dos ciclos de reencarnação (saṃsāra) são elementos recorrentes nos sistemas filosóficos e nas religiões que se desenvolveram no subcontinente indiano a partir dessa época. No Hinduísmo, a liberação é chamada mokṣa, no Yoga, samādhi, e no Budismo recebeu o nome de nirvāṇa. O ṛta védico – a ordem universal – será transformado, nessa época, na concepção de dharma, a Lei sagrada, a retidão ética capaz de regular e preservar a sociedade e o universo. Da mesma maneira, o karman (“ação”), que no período védico se referia à ação ritualística, ao ato sagrado do sacrifício, torna-se um termo recorrente da literatura posterior, correspondendo aos efeitos das ações – boas ou más –, do indivíduo, e que são determinantes do seu futuro. O karman adquiriu uma conotação associada ao renascimento, que germinou nas teorias de transmigração mais tardias. De acordo com essas teorias, os saṃskāra, os aglomerados de impressões criadas durante o ciclo vital, não desaparecem com a morte do indivíduo, mas o predispõem a um tipo de renascimento, pré-determinado pelas ações passadas, no mundo

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fenomênico. Essa sucessão de transmigrações é denominada saṃsāra, o ciclo de reencarnações. O saṃsāra, em uma concepção mais ampla e tardia, está associado, em certos sistemas de pensamento, ao mundo ilusório, à māyā, enquanto manifestação dinâmica da transitoriedade em que está imerso todo o indivíduo que ainda não encontrou brahman. No início do período Védico, como antes observado, a morte não recebeu muita atenção, pois o homem védico estava mais voltado à celebração da vida na terra e sua preocupação era a busca da longevidade, os meios de alcançar os cem outonos e a abundância em todas as esferas. Ao longo dos séculos, entretanto, a morte passou a receber maior atenção e tornou-se, no período Bramânico, um dos principais temas com os quais a especulação metafísica se ocupou. Assim, é possível verificar que o desenvolvimento e a representação cada vez mais elaborada do deus Yama, nas fontes textuais, refletem uma preocupação crescente com os elementos filosóficos que envolvem a morte. O próprio desenvolvimento do conceito de reencarnação, no período Bramânico, forneceu as bases para tornar Yama preponderante. A partir das teorias transmigratórias, o domínio desse deus se ampliou, assim como suas funções. Yama cresceu em poder e, com ele, a necessidade de sacrifícios apropriados para propiciar o deus, a fim de que o homem pudesse se libertar do ciclo de reencarnações. Embora Yama seja mencionado de forma recorrente nas Upaniṣad, é na Kaṭhopaniṣad [I-IV] que está claramente refletida a mudança de paradigma em relação à Morte no período Bramânico (RENOU, 1942: 132-141; MULLER, 1884 e WINTERNITZ, 1962: 228-229). O célebre diálogo entre Yama e Naciketas, cuja semente, como vimos, está presente no hino 135 do Ṛg-veda e no Taittirīya-brāhmaṇa [III.11.8], dá testemunho dessa mudança.

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Assim, como pudemos observar, ao caráter inicial do deus Yama, o Senhor da Morte, foram acrescidas características que respondiam às questões filosóficas que se desenvolveram no período Bramânico. Diferente do caráter heróico e iniciático do primeiro homem a transpor o caminho da morte, transformado em deus de um dos paraísos celestiais, o Senhor da Morte passou a ser apresentado, nos períodos mais tardios, como um juiz austero, cuja função era deliberar sobre o destino do morto, de acordo com suas ações passadas. Nessa época, ele recebeu o epíteto de Dharmarāja, o “rei do dharma”, o senhor da lei, da justiça e das virtudes. Yama passa a ser temido, pois qualquer falta pode desagradá-lo. Ao analisar os extratos lendários mais tardios, observamos os demais acréscimos que ao longo dos séculos transformaram Yama num deus punitivo e terrível, o deus da morte e governante dos infernos (GHOSH, 1989: 197-207 e FILIPPI, 1947: 191-203). Menções ao deus da Morte e ao seu séquito são encontradas com frequência na poesia épica indiana, no Rāmāyaṇa13 e no Mahābhārata14, bem como nos Purāṇa, cuja data de composição é atribuída a um período mais tardio. Nos épicos, Yama governa o seu reino, que congrega todos os homens e preserva o registro de todos seus atos. Cada alma que ali chega conhece por meio de Citragupta, seu escriba, o tempo que passará junto a Yama e aos Patriarcas, para depois retornar ao mundo dos vivos. Assim, Yama administra sua morada com justiça e dá a cada um que chega aquilo que fez por merecer. Sua descrição física, no entanto, pode diferir consideravelmente15. Ver a tradução de Griffith, 1870-1874 e Shastri, 1970. As traduções consultadas foram: os Livros I ao V, Van Buitenen, 1973-8 e os livros XI e XII; Fitzgerald, 2004; Ganguli, 1883-1896 e Satri, v. I-XVIII, Madras, 1931-1933. 15  O deus pode surgir com aparência feroz e amedrontadora, com coloração verde-escuro e olhos penetrantes, os cabelos presos num coque e coroado, seus trajes púrpura ou vermelho-sangue, carregando consigo um laço, com o qual aprisiona a alma dos mortos. Seu veículo, por vezes, pode ser um búfalo, e Yama pode aparecer com várias armas, símbolos de seus poderes. Por outro lado, é descrito como uma criatura 13  14 

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Nesse sentido, durante o período Bramânico, o modo como eram realizados os ritos fúnebres para o morto e sua atitude derradeira eram considerados determinantes em sua jornada e capazes de condicionar sua nova forma de existência. Daí a importância das exéquias, que se tornam indispensáveis durante a partida do homem ao outro mundo. Além disso, a estratigrafia das atitudes védico-bramânicas diante da Morte, aqui apresentada, evidencia que os rituais fúnebres realizados para o morto, registrados nos hinos védicos, tinham por função restabelecer o equilíbrio entre aqueles que ficaram no mundo dos vivos e, ao mesmo tempo, procuravam tornar a jornada do morto ao outro mundo auspiciosa. No início de sua vida, os deuses, sábios e os ancestrais eram invocados, sacrifícios eram realizados com a intenção de lhe propiciar uma longa vida. Ao atingir a juventude, ele era iniciado por um mestre e se casava. Em sua casa, os ritos eram celebrados diariamente e, se tudo corresse bem, sua vida seria próspera e longa. Aos poucos esse homem envelhecia, até que sua força e vitalidade fossem finalmente consumidas (STEVENSON, 1920: 135-138; FILIPPI, 1947: 107-109 e PARRY, 1989: 503). Nesse sentido, existia somente um tipo de morte natural, aquela decorrente da idade avançada. O momento da morte devia tardar, não chegar antes do tempo e, caso isso ocorresse, tentava-se fazer o morto retornar à vida e prolongar sua existência neste mundo. Na literatura védica, o tempo destinado à passagem do homem pela terra era de cem outonos. O sofrimento que, inegavelmente, derivava da perda de um indivíduo próximo e amado era sublimado pelos ritos e sacrifícios póstumos, sob forma de reverência e cuidados, diários ou periódicos, à memória dos mortos. bela, com vestes amarelas, os olhos vermelhos e os cabelos presos e decorados com uma flor vermelha, radiante qual o sol. Essa aparente discrepância é considerada decorrente das diferentes formas que o deus assumia, de acordo com as características do indivíduo que ele iria buscar – se virtuoso ou malfeitor (Fonseca, 2001: 1-8).

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Qualquer morte prematura, antes dos cem anos, de acordo com a antiga concepção bramânica, se devia aos efeitos das ações negativas e à propiciação inadequada das divindades que zelam pela vida dos homens, ou da não observância de determinadas cerimônias extremamente elaboradas que somente os iniciados podiam realizar. Nesse sentido, a vida de um homem refletia a soma de seus atos, que deviam ser pautados pela retidão, a fim de lhe assegurar um bom caminho após a morte. Ao nascer foi seu pai que o apresentou aos deuses, agora, em sua partida, era seu filho que celebrava os ritos fúnebres (antyeṣṭi) e as cerimônias dedicadas aos ancestrais (śrāddha). Ao ser cremado, o próprio morto, que já não podia mais realizar os sacrifícios nesse mundo, era oferecido ao fogo, a fim de que suas impurezas se consumissem e ele pudesse atingir o mundo celestial. Embora algumas mudanças tenham ocorrido ao longo dos séculos, os ritos de passagem na Índia preservaram muito de sua tradição pretérita milenar. Nesse sentido, as cerimônias fúnebres hindus, realizadas no presente, ainda procuram seguir os preceitos estabelecidos durante o período Védico-Bramânico.

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11. Para uma História da mulher na China Tradicional

André Bueno Universidade Estadual do Paraná

A ideia deste sucinto texto surgiu de uma constatação por mim realizada há pouco tempo atrás: temos muito pouco em mãos para compreender a história da mulher na China. Afora discursos ou textos recentes – quase todos de caráter engajado, e que projetam sobre a civilização chinesa todo o tipo de preconceito "orientalista" – a compreensão do feminino nesta civilização está longe de ser precisa, e muitas concepções enganosas se difundem em função dessa difícil situação. O conhecimento desta parte significativa da história chinesa tem sido contaminado, no Ocidente, por duas condições básicas: a primeira envolve as distorções usualmente criadas e empregadas pelos "estudiosos" do "oriente" para analisar categorias de estudo aplicadas aos casos chineses, tema que já abordei em outros escritos anteriores (BUENO, 2007a e 2007c); a segunda condição diz respeito a um feminismo intransigente que absorveu muitas determinações deste orientalismo problemático e que, por conseguinte, demonizou a sociedade chinesa

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como um mundo de perversões e crueldades, associando-a a todo tipo de desrespeito humano, tal como ocorreria em outras partes de Ásia e África. Cabe notar, pois, que a análise da história da mulher na China desdobra-se tanto numa investigação séria sobre esta sociedade como numa necessidade de rever os conceitos mais radicais do feminismo. Não se trata de questionar o movimento feminista como um todo, já que suas motivações são legítimas e coerentes; mas é necessário que a construção de uma base crítica sobre a situação da mulher na Ásia seja mais bem estudada e aprofundada, sem o que, as causas em questão deste movimento podem vir a ser tidas como superficiais, erradas e vistas com descrédito. Neste momento a China torna-se, novamente, o espelho distante do Ocidente: a sociedade chinesa, no curso de sua história, tem atitudes variadas em relação à questão da mulher. Ora apresentada numa condição de subserviência e inferioridade humilhante, ora apresentada como um ser divinal e necessário à existência da humanidade, a situação da mulher só pode ser compreendida se, realmente, entendermos que ela foi representada por meio de múltiplas facetas desde a antiguidade chinesa, condição que desde já nos aponta existirem poucas unanimidades em sua análise.

A palavra "Mulher"

Podemos iniciar nossa investigação pelo próprio ideograma "mulher", cuja origem da representação pictográfica é discutida seriamente entre os especialistas. Uma primeira visão admite que a imagem do ideograma representa uma mulher de seios grandes, tal como a imagem das Vênus proto-históricas descobertas pela arqueologia; a segunda defende que imagem

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representa, na verdade, a imagem de uma pessoa de joelhos, em atitude de submissão. Este segundo argumento é largamente defendido pelas feministas mais radicais, mas infelizmente não pode ser aceito com absoluta precisão. Dois motivos podem ser apresentados para isso: 1) os desenhos que teriam dado origem a palavra "mulher", e que representam a referida imagem, fazem parte de um conjunto de pictogramas1 primitivos cuja tradução para os ideogramas mais recentes é, em parte, associativa e especulativa; 2) o radical "mulher" é empregado em várias outras palavras que denotam sua importância fundamental para a cultura chinesa primitiva, tal como em 姓 "nome" (nascido+mulher), 好 "bom" (mulher+filho), 安 "paz" (mulher+teto), etc. Se aceitarmos a concepção de que o pictograma "mulher” representa então uma entidade proto-histórica poderosa, poderemos igualmente encontrar uma chave para a constituição destes vocábulos posteriores.

O ideograma “Mulher”

Representação da “Mulher ajoelhada”

Representação da “Mulher de Seios grandes”

Utilizaremos as palavras pictograma para representações diretas de imagens, ideograma para representações de palavras que associam pictogramas e por fim, logogramas, para representações que conjugam as formas anteriores. 1 

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As primeiras referências

Deste modo, se considerarmos a representação de "mulher" uma associação com esta imagem primitiva, encontraremos consonância desta perspectiva com a teoria amplamente aceita do culto ao feminino desde a época neolítica, e com o papel preponderante do sistema matrilinear na fundação da sociedade chinesa. No excelente artigo de Ana Amaro "O culto da mulher no neolítico chinês" (Revista da Cultura, Macau: ICM, 1997), podemos visualizar o panorama mítico-folclórico, histórico e arqueológico que embasa esta visão teórica. A passagem para os tempos da escrita nos traz o processo de transição complexo que afetou esta sociedade, e da sua consequente e gradual passagem de uma estrutura matrilinear-feminina para patrilinear-masculina. Na época Shang (sécs. -15(?) -11)2, quando surgem os indícios mais antigos de que dispomos desta escrita chinesa, os pictogramas vão perdendo suas características originais, e sua estrutura será motivo para conjecturas por parte dos letrados posteriores. Quanto à edição dos textos, sabemos que na dinastia seguinte - os Zhou (secs. -11 -3) – havia inúmeras bibliotecas responsáveis por preservar estes escritos antigos (originais ou re-copiados), mas o número de variações logográficas multiplicou-se de modo inaudito, tornando ainda mais complexa a transmissão textual nesta época. Uma edição concisa e comentada de alguns textos antigos teria que esperar a chegada de Confúcio (sécs. -6 -5) para ser organizada. Para entendermos a transformação social que afetou os antigos chineses torna-se necessário, portanto, investigar as possíveis contradições que aparecem nesta antiga textualidade. Utilizaremos a notação -1 para períodos a.C. e +1 para períodos d.C., conforme notação comum na sinologia. 2 

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Os textos resgatados por Confúcio aparentemente dão uma grande ênfase nas figuras masculinas de sua história, mas ele próprio usava termos neutros para designar a possibilidade de alguém ascender à sabedoria - ou seja, tanto homens quanto mulheres poderiam consegui-lo. Além disso, se os escritos históricos (como o Shujing, o “Tratado dos Livros”, e o Chunqiu, as “Primaveras e Outonos”) são privados da presença de figuras femininas, o “Tratado das poesias” - Shijing - e o texto cosmológico fundamental, o “Tratado das Mutações” - Yijing, abundam em indicações da importância da mulher na sociedade antiga. Neste breve poema selecionado do Shijing, por exemplo, temos uma declaração simples e ingênua de uma moça que se entrega livremente ao seu encontro casual: No pântano onde mais exuberante cresce A relva rasteira, curvada com o peso do orvalho, Ali um belo rapaz aproximou-se, Sob cuja testa, alta e larga, Brilhavam os olhos límpidos e vivos. Foi por acaso que nos encontramos; Fiquei satisfeita por alcançar o que desejara. Onde a relva cresce rastejante no pântano, Toda coberta pelo orvalho, Ali encontrei o mais belo rapaz, Sobre cujos olhos límpidos e vivos, Erguia-se a testa, larga e alta. O acaso fez-nos que nos encontrássemos, coisa rara, E ambos nos sentimos felizes. (Shijing, BUENO, 2008 in http://amulhernachina.blogspot. com/2008/03/extratos-do-livro-das-canes.html)

Outro trecho mostra as dificuldades de um encontro fortuito:

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Não entre, senhor, por favor! Não quebre os ramos de meu salgueiro! Não que isso me entristeça muito; Mas, pobre de mim! o que dirão meus pais? E embora eu o ame como posso amar, Não posso suportar o que seria tal coisa. Não passe para o lado de cá do meu muro, senhor, por favor! Não estrague minhas amoreiras! Não que isso me entristeça muito; Mas, ai de mim! o que dirão meus irmãos? E embora eu o ame como posso amar, nem quero pensar em tal coisa. Fique do lado de fora, senhor, por favor! Não quebre os ramos do Sândalo! Não que isso me entristeça muito; Mas, ai de mim! o que dirá o mundo? E embora eu o ame como posso amar, Nem quero pensar em tal coisa. (idem)

Estes fragmentos textuais não podem ser menosprezados: na verdade, eles mostram que numa época passada havia uma maior liberdade para as mulheres, uma possibilidade de se expressar que aos poucos foi sendo podada pela gradual masculinização da sociedade. Ainda assim, este processo não foi total nem absoluto, e o imaginário chinês continuou a manter reminiscências marcadamente femininas em sua constituição. Um deles, por exemplo, é o da deusa Nuwa, que teria criado os seres humanos e salvo a terra em ocasiões de calamidade. A escola dos daoístas (surgidos na mesma época de Confúcio) privilegiava o culto da Terra (parte feminina do universo), por entender que ela é que gerava, alimentava e mantinha a vida.

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De modo geral, as concepções cosmológicas da época incorporaram a necessidade de equilíbrio entre os dois sexos como reproduções micro-cósmicas de uma realidade universal, a da relação Yang (masculino) - Yin (feminino), as coordenadas gerais da realidade que geram o processo de oposição complementar definitivo (Taiji). As causas de um movimento que levaram à gradativa submissão feminina na sociedade chinesa devem ser encontradas, portanto, em fatores sociais e econômicos cuja estrutura de longa duração mascarou de modo relativamente eficiente o papel da mulher numa antiguidade mais remota.

O Período dos Han

Mesmo assim, durante a dinastia Han (sécs -3 +3), a questão da mulher não estava de modo algum consolidada. Enquanto sabemos que nas elites as mulheres eram sujeitadas a casamentos acertados e a privação da liberdade individual, os críticos confucionistas apontavam a liberalidade das camponesas, algumas vezes de modo crítico, outras com uma tolerância veladamente simpática. Além disso, mesmo entre os letrados existia uma discussão aprofundada sobre o papel da mulher na sociedade, ponto que Confúcio não teria esclarecido devidamente em seus escritos. Um dos primeiros textos a tratar especificamente disso foi o de Liu Xiang (sec. -1), Lienu Zhizhuan (“Biografias de Mulheres Ilustres”), em que apresentava modelos representativos de mulheres boas, más, dignas, perversas, etc. Um caso a se notar é a biografia da mãe de Mengzi, o principal seguidor de Confúcio. Ela teria arrumado empregos diferentes, e mudado de casa três vezes até conseguir morar perto de uma escola, podendo dar uma educação melhor para o filho. Note-se que o que se destaca aqui não é apenas a abnegação pela família, mas antes de tudo, a sua

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atitude combativa, e a disposição total em enfrentar os possíveis preconceitos e a intolerância machista. Independente, a mãe de Mengzi era uma figura de destaque à qual Liu Xiang não deixava de prestar respeito e admiração. O Lienu Zhizhuan serviu como base para a educação feminina e foi amplamente difundido entre as gerações seguintes, mas, apesar disso, o machismo continuou sendo uma força ascendente nesta sociedade. No século +1, surgiu outro manual específico para a conduta da mulher, conhecido como Nujie ou Nujing (”Lições femininas”, ou “Tratado feminino”), escrito por uma das mais famosas letradas chinesas, Banzhao. Deve-se admitir que esta mulher possuía características especiais em sua época: leitora com vasto conhecimento, historiadora de mão cheia, intelectual ativa e ainda mãe de família, Banzhao começou sua carreira literária finalizando o texto da obra histórica principal dos Han posteriores, o Hanshu, iniciado anteriormente por seu irmão Bangu. Depois disso, uma série de problemas familiares levaram-na a refletir sobre o problema enfrentado pela condição da mulher na época, e o resultado foi a publicação destas conclusões (e conselhos) no Nujie. A leitura desta obra, não muito extensa, é, no entanto, inevitavelmente polêmica. Em algumas partes Banzhao deixa entrever a necessidade da mulher submeter-se a uma condição inferior, demonstrar docilidade e ignorância; em outras, afirma que a mulher é a outra metade que sustenta o mundo, e por isso tem direitos iguais aos do homem. Afirmava ainda que as mulheres deveriam estudar e ser intelectuais (!). Tais paradoxos nos levam, por conseguinte, a pensar se a obra não foi adulterada ou se estas observações aparentemente contraditórias não seriam resultado de uma compreensão singular sobre a sociedade que hoje nos escapa:

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A mulher modesta serve, antes de tudo, aos outros; põe-se por último, antes mesmo de si. Se faz algo de bom, não menciona; se faz algo ruim, nunca o nega. Nunca deixa desonrar-se, e resiste quando outros lhe falam ou fazem mal. Aparenta sempre ser temerosa e medrosa. Quando uma mulher segue tais preceitos, ela pode ser dita humilde, mesmo na frente dos outros. [...] Ora, se apenas se ensina aos homens, e não as mulheres, isso não ignora a relação essencial entre eles? De acordo com os ritos, a regra para começar a ensinar as crianças a ler fixa o seu início na idade de 8 anos, e aos quinze elas devem estar preparadas para o exercício da cultura. Porque apenas os meninos, e não as meninas, podem seguir este princípio? (Nujing, BUENO: 2010: http://chinologia.blogspot. com/2009/08/mulher-na-china.html)

Afinal, os dados de que dispomos desta época nos apontam para uma condição feminina multifacetada. As mulheres (junto com os homens) tinham que enfrentar, muitas vezes, o casamento arranjado; ao marido era permitido uma poligamia relativa (a primeira esposa era considerada principal, e as outras concubinas); ao passar de uma família para outra, viravam filhas dos sogros, e a eles deviam servir; por fim, sua mobilidade social sofria várias restrições. No entanto, estas mesmas mulheres tinham o direito de recusar pretendentes e concubinas; herdavam os bens do marido, e podiam se separar dele – o divórcio é conhecido e aceito na China desde época imemorial, embora não fosse muito bem visto – e continuavam a ser objeto de culto em diversos rituais religiosos populares, que preferiam usualmente invocar a "grande mãe" ou a "mãe terra". As mulheres podiam, inclusive, participar de vários rituais e sacrifícios familiares e imperiais, função considerada

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sagrada na manutenção da ordem social e cósmica. Estas imagens tão diversas nos apontam a necessidade de tomar cuidado com uma avaliação de conjunto pejorativa da sociedade chinesa de então; lembremos, ainda, que estas fontes de que dispomos são escritas por uma elite intelectual, e podemos pressupor que entre as classes mais baixas, a flexibilidade das normações ideológicas podia ser bem maior (haja visto que, vez por outra, o povo surge nestes escritos como sendo "licencioso", ou ainda "rude" e desconhecedor de muitas das regras sociais "ideais").

Transições, mudanças e mais contradições aparentes

O tempo pós Han continuaria a construir um panorama complexo para entender o papel da mulher na sociedade chinesa. Longe de ser apenas a mãe de família ou a filha submissa, as mulheres chinesas atuam em sua sociedade de modo ativo e altivo, como nos indicam alguns acontecimentos históricos e sociais que marcam um longo período de transformação da sociedade até a época Tang e Song. Figuras isoladas como a de Fa Mulan (+ 450) – guerreira indômita que combateu os hunos, virou um dos poemas mais famosos da China e depois foi transformada em desenho animado pela Disney – não nos dão uma ideia do conjunto, mas servem de exemplo para as transformações que analisaremos. O primeiro destes acontecimentos envolve o aprofundamento dos chineses na alquimia (gerenciada principalmente pelos daoístas) que difundem novamente a ideia do equilíbrio entre o "céu e a terra", ou seja, de que homem e mulher deveriam ser postos como iguais num cosmo cuja existência dependia desta articulação fundamental. Os textos de autores como Ge Hong (o Baopuzi, ou “Tratado dos Divinos Transcendentes”),

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por exemplo, defendiam o exercício de práticas sexuais em que o feminino tinha papel preponderante, governando o ritmo da relação e obtendo, a partir disso, benefícios decisivos para saúde. A alquimia sexual, visando atingir o acúmulo do qi (energia) pregava claramente, inclusive, que uma relação sexual saudável era aquela em a mulher atingia vários orgasmos enquanto homem buscava atingi-lo sem ejacular - e apenas uma vez, se fosse o caso. Tal concepção é notável, ainda hoje, para qualquer época ou civilização: A causa da fraqueza dos homens está somente no fato de que aproveitam de forma abusiva de todos os caminhos do relacionamento entre os elementos feminino e masculino. Neste ponto, a mulher é superior ao homem, da mesma forma quando o fogo é apagado pela água. Se você compreende isso e sabe aplicá-lo, você se parecerá com as panelas apoiadas num tripé em que são combinadas harmonicamente as cinco tendências do paladar, fazendo com que surja uma sopa deliciosa de carne e legumes. Quem está bem informado sobre os caminhos dos elementos feminino e masculino desfrutará os cinco prazeres; quem não os conhece e não segue encurtará a própria vida. Quantos prazeres e alegrias ainda podem ser desfrutados! quem não dedicaria atenção a isso? (Fang Chungshu, BUENO, 2010: http://chinologia.blogspot. com/2009/08/mulher-na-china.html)

A chegada do Budismo também propiciou um adendo a esta valorização do feminino na sociedade. Esta filosofia, que admitia que a libertação espiritual era acessível à todos, pregava também uma igualdade sexual que abria a porta dos monastérios à presença de mulheres, sofrendo concorrência apenas dos daoístas (cujas organizações eram bem mais restritas em termos numéricos). Sua rápida absorção popular indignou os confucio-

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nistas, que entendiam que este tipo de discurso vago poderia afetar os costumes da sociedade, e que a visão budista era por demais fantasiosa para se assentar como proposta intelectual. A preocupação confucionista pautava-se muito mais na própria mediocridade de seus autores do que em outra coisa qualquer. Foi uma época em que grande parte dos pensadores desta escola – com notáveis exceções, como Hanyu – foram fracos argumentadores, e tendiam a uma monótona repetição de conteúdos deturpados. Somente nos fins dos Tang – mas principalmente na época Song – que se deu uma revisão geral dos discursos da doutrina através de grandes autores como os irmãos Zheng e Zhuxi, mas suas preocupações se dirigiram muito mais à questões metafísicas e cosmológicas do que propriamente aos problemas sociais. A época Tang mostrou a continuidade destes paradoxos. Uma literatura de contos surgida nestes tempos, por exemplo, mostra histórias fantásticas ou pitorescas, muitas envolvendo mulheres em condições não muito favoráveis, e abordam temas diversos como traição, divórcio, etc. O tom de algumas delas beiram um estilo “Nelson Rodrigueano” de denúncia, escândalo e preconceito social. Um outro manual, o Nu Lunyu, de Song Ruoxin - ou "Analectos para mulheres", reproduzia o tom original da obra de Confúcio, mas adaptava-o às necessidades de educação feminina. Mas seria o período Tang um momento de recrudescimento real do machismo, ou estes escritos fazem parte, justamente, de uma literatura engajada na tentativa de difundir uma ideologia machista? Afinal, os Tang se destacaram por serem tolerantes, cosmopolitas e abertos ao estrangeiro. A representação do feminino na arte também difundiu-se de modo especial, e datam deste período fabulosas estátuas de cerâmica ou pedra que mostram mulheres nobres, cortesãs, musicistas, dançarinas, todas elas bem rechonchudas – este era o ideal de beleza nesta sociedade.

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Outro fator ligado ao budismo iria se transformar num dos casos mais intrigantes da historia da religião: a mutação de um bodisatva masculino (uma emanação salvadora de Buda, Avalokitesvara) numa deusa extremamente popular entre os chineses, Guanyin. Despidos de preconceitos em relação à ideia de reencarnação, os chineses haviam adotado o culto a um bodisatva que originalmente veio da Índia na forma de homem; no entanto, a história de uma jovem menina, cujos poderes para realizar milagres ficaram bem conhecidos, fizeram com que sua figura fosse associada a uma encarnação deste Buda – e sua forma feminina, por conseguinte, foi (e ainda é) muito mais venerada do que o "original macho". Esta transformação pode ser rastreada na época Tang, mas atingiu sua realização plena durante os Song. A lenda de Miao Shan, princesa piedosa sincretizada com Guanyin seria de uma época posterior – a dinastia Yuan, que acompanharemos adiante. Mas é inevitável que, neste período, não façamos um comentário derradeiro sobre a figura inesquecível de Wu Zetian (683+705). Esta mulher foi a primeira imperatriz oficial da China, e quaisquer crimes que possam ser imputados à sua figura – traição, conspiração, luxúria – nada mais eram do que práticas comuns (e toleradas) entre os homens. Isso não basta, contudo. Sabe-se (e é preciso dizer) que seu governo foi um dos melhores no campo político, econômico, e que muito beneficiou o povo - sendo que tais coisas foram narradas por historiadores homens. Wu ainda aperfeiçoou o sistema de exames públicos para admissão na burocracia imperial, desenvolvendo um método ainda mais eficiente de recrutamento e qualificação de funcionários, e aumentando nitidamente sua eficiência. O reinado seguinte do brilhante Xuanzong deveu muito aos empreendimentos desta soberana. O que percebemos neste momento, pois, é uma inevitável tensão entre uma ideologia que queria ser dominante - pautada

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na tentativa de uma instauração definitiva da misoginia -, e um vasto movimento intelectual e popular que não aceitava comodamente tais exigências. Este conflito faz perceber que, criticamente, a história da mulher na China não pode ser lida de modo absolutamente linear e evolutivo. Muito do que pode ser dito sobre estes períodos mais antigos se baseia numa literatura de corte que, nem mesmo entre a elite, era aceita de forma ampla.

As origens de algumas práticas nefastas

No entanto, se seguem aos Tang a dinastia Song, marcada por características sombrias e introspectivas. Os Song produzem algumas das mais fascinantes obras de arte chinesas, de pinturas a porcelanas; a filosofia confucionista, como foi dito, foi alimentada pelo potencial intelectual de figuras fundamentais como Wang Anshi, dos irmãos Zheng e do indefectível Zhuxi; mas esta mesma dinastia se fecha para o mundo exterior, e inaugura (ou pelo menos, traz à tona) algumas das piores práticas sociais da história mundial. Uma delas é a revelação trágica do infanticídio, praticado principalmente por famílias pobres e envolvendo, na maior parte dos casos, meninas indesejáveis. Denunciada e combatida pelo artista e intelectual Su Dongpo, esta prática já ocorria desde muito na China, mas ela ficou patente numa época de fome severa e escassez. No entanto, a atitude humanista deste artista, e de muitos colaboradores envolvendo obras de caridade, ajudou a mitigar o problema, embora não o resolvesse. Su mostrou esta faceta perversa de uma sociedade que se masculinizava e empobrecia. Durante os mesmos Song se popularizou também a estética do enfaixamento dos pés, tão aterradora e deformante, resultado destas inevitáveis buscas pela beleza que resultam em

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acidentes vis na psicologia humana. O estudioso Yu Huai, do século 17, estudou profundamente a questão para sondar suas origens, e as datou em torno do século 12, embora somente no domínio mongol elas tenham se desenvolvido plenamente. Para aqueles que desconhecem, o enfaixamento dos pés consistia em amarrar panos no pé das meninas, desde a mais tenra infância, para que seus pés adquirissem um tipo especial de deformação, que era considerada extremamente atraente e delicada. Embora muito difundida entre a elite urbana, esta prática nunca encontrou ressonância entre as classes mais populares, posto que a deformação impedia um andar normal e a execução de trabalhos comuns: Não havia diferença entre os pés das mulheres e os dos homens nos tempos antigos. O Zhouli (Ritos de Zhou) menciona o ofício do "sapateiro", que tinha o dever de cuidar dos sapatos de reis e rainhas. Cita tamancos vermelhos, tamancos pretos, trançados de seda, vermelha e amarela, curvas negras, sapatos brancos, sapatos de linho para uso cerimonioso, não cerimonioso e caseiro, destinados a homens e damas de títulos. Isto mostra que os sapatos de homens e mulheres eram da mesma forma. Em gerações posteriores, os pequenos e delgados sapatos arqueados das mulheres foram muito apreciados por seu diminuto tamanho. De acordo com pesquisas que fiz, o enfaixamento do pés começou com Li Houcu, de Nantang (937 + 978). Tinha ele uma camareira real chamada Yaoniang (Srta. Yao), notável por sua esbelta beleza e suas danças. O soberano mandou fazer um lótus de ouro, de seis pés de altura, adornado de pedras preciosas, festões e borlas de seda. Esse lótus de ouro, multicolor ficava no centro. Mandou a Srta. Yao atar os pés com seda e acocorar-se em cima

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do lótus, para sugerir a forma de uma lua crescente. Ela dançou no topo do lótus de meias brancas, e fez piruetas sugerindo as nuvens (com as mangas compridas). Muitas pessoas, então, começaram imitar seu estilo. Foi esse o primeiro começo do enfaixamento de pés. Esse costume não teve início antes da dinastia Tang. Por isso, entre os poemas escritos por tantos poetas, cantando a beleza das mulheres, descrevendo incessantemente com grande interesse seu aspecto e gestos, a riqueza de seus adornos no cabelo e cosméticos faciais, seus mantos e saias, a delicadeza de seus cabelos, olhos, lábios, dentes, cintura, mãos e pulsos, nem uma só palavra foi dita acerca de seus "pés pequeninos". No Guofu diz-se: "Novo bordado de seda cobria-lhe o alvo tornozelo e o arco de seus pés era como uma. linda fonte". Caoshi (192+232) tem uma frase assim: "Ela usava sapatos bordados para longas caminhadas". Li Bai (701+762) diz em um poema: "Um par de tamancos denteados de ouro; dois pés brancos; como geada". Han Zhiguang escreve: "Seis polegadas de fina pele arredondada resplendem à luz". Tu Muzhi (803+852) escreve: "Mede um pé menos quatro décimos de polegada". O documento "Miscelâneas dos Segredo Han” diz, descrevendo uma jovem escolhida para ser rainha: "Seus pés mediam oito polegadas e seus tornozelos e arcada eram belos e cheios". Tais menções de "seis polegadas" e "oito polegadas" de pés brancos, macios e cheios mostram que os pés das damas antes do período Tang não eram curvados para se assemelharem à lua crescente. [...] Na dinastia Song, poucas mulheres enfaixavam os pés antes do reinado de Yuanfeng (1078+1085). Mas, nos quase quatrocentos anos que se seguiram, a partir da dinastia mongol (1277+1367) até o presente, as modas

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e exageros antinaturais desenvolveram-se firmemente e caíram em excessos. (Yuhuai, BUENO, 2009: http://chinologia.blogspot. com/2009/08/mulher-na-china.html)

Um comentário em específico deve ser feito sobre esta prática vil: ela resulta, como foi dito, desta perversa busca por uma realização estética que ignora as condições físicas normais dos seres humanos, mas não pode ser utilizada como um índice de civilidade. Afinal, os chineses foram criticados como bárbaros, pelos europeus, por esta moda ainda existir no século 19; no entanto, na mesma Europa da época, as mulheres utilizavam espartilhos que deformavam suas costelas e não raro provocavam tuberculose. Mesmo um grande sinólogo como J. Fairbank, no seu livro “China, uma nova historia” (2007: 168-171), achava que o enfaixamento de pés era tão abominável que só podia ser comparado à amputação do clitóris praticada em alguns lugares da África, mas não as práticas estéticas europeias!!! Para quem dedicou apenas quatro páginas e meia sobre a questão feminina num manual sobre história chinesa, tal indicativo demonstra claramente a pouca atenção dada pelo próprio autor ao problema, carregando-o com uma análise nitidamente pejorativa e preconceituosa. Infelizmente, pois, a China neste caso servia mais uma vez para mostrar as inevitáveis contradições do mundo ocidental.

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O resultado do enfaixamento dos pés, foto de 1911 Fonte: BUENO, 2009 in http://amulhernachina.blogspot.com/2008/03/ nota-sobre-os-sapatos-e-meias-das.html)

A misoginia se acentua

Voltemos ao período Song e a subsequente dinastia, os Yuan (1238 +1368) – que marcam o domínio mongol sobre a China. Um recrudescimento total nas relações sociais foi posto em marcha, dado o aprofundamento dos problemas entre grupos e etnias provocados pela presença do domínio estrangeiro. A sociedade chinesa foi posta a ferros numa hierarquia extremamente severa e desfavorável, e a condição da mulher piora de modo absoluto, dado que a mentalidade mongol sobre o feminino não era das mais exemplares: afinal, os mongóis se orgulhavam dos seus haréns repletos de nativas e estrangeiras submetidas ou

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capturadas - algo que os chineses já praticavam de algum modo anteriormente, posto que desde a época de Confúcio já se ouvia falar de concubinas-, mas que agora era levado ao extremo como um indicador de "sucesso social"; entre os chineses, afinal, existiam regras sobre quem era a primeira esposa, quantas mulheres um homem poderia ter, etc. Nada disso interessava aos mongóis: quantidade importava mais do que o tratamento dado a elas, e um nobre se media por seus feitos em batalha ou por quantas "esposas" possuía no seu harém. Não foi o próprio Gengis Khan quem afirmou: "o maior prazer que um guerreiro pode conhecer é vencer seu inimigo, vê-lo fugir, tomar seus bens, fazer chorar sua família e violar suas esposas e filhas"? Com esta mentalidade em vista, não é de se estranhar que o tratamento dado ao feminino apenas piorasse. Mas talvez o aspecto mais perverso neste processo fosse a concordância tácita de uma elite chinesa que via nisso a chance de afirmar suas práticas misóginas. Creio que podemos entender a já citada redação da lenda de Guanyin, neste período, como uma tentativa de reagir a essa masculinizarão geral da sociedade, buscando no culto a deusa uma forma de revalorizar a figura feminina. A questão principal pode ser caracterizada, portanto, como uma mudança de foco em relação à defesa (ou não) da condição feminina. Se institucionalmente a ideologia incorpora de vez a condição subalterna da mulher, a luta agora seria por revalorizá-la, buscando inverter novamente um processo milenar de embate mental e social.

O advento dos Ming e dos Qing

Em 1368 os chineses retomam o controle de sua sociedade, expulsam vergonhosamente os mongóis para fora de suas fronteiras, implementam uma sociedade altamente militariza-

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da, mas que mantém alguns dos mecanismos repressivos da dinastia anterior – e neste ponto, a posição das mulheres não se altera. De fato, a tendência dos Ming foi a de se fechar em si mesmos, ensejando uma sociedade xenófoba, receosa da presença de elementos estrangeiros, e extremamente vigiada. Tal tendência só favorecia o crescimento da intolerância, uma banalização de práticas chauvinistas e um temor constante de transformação. Exemplos clássicos da mentalidade pequena e fechada da sociedade Ming são a reconstrução da grande muralha e o abandono das expedições marítimas, manifestações claras de um desejo iníquo de fechar-se para o mundo. A presença dos estrangeiros europeus, que começavam a espalhar-se pelo oriente por meio das navegações, iria forçar constantemente esta posição insustentável. Sociedades fechadas e repressoras acabam sempre criando novos crimes, e transformando em devassidão o que era tido como natural. Um resultado sintomático desse homocentrismo foi o surgimento de uma literatura erótica vasta, que buscava tanto recuperar o velho sentido do sexo saudável dos daoístas quanto criar uma perspectiva alternativa àquela difundida no meio social. O romance "Tapete de carne" (Jopotuan, de Liyu) é um exemplo destes escritos, embora seu final tenha um inevitável cunho moralista. Nele, aparecem os mais diversos tipos de práticas sexuais, mas conceitos usuais da mentalidade comum o contaminam (como o desejo inequívoco de um dos personagens em querer aumentar o tamanho do pênis, problema tipicamente machista). No entanto, um vasto grupo de textos deste gênero mostra que os discursos podiam ir mais longe, como podemos constatar no livro de Robert van Gulik, “A vida sexual na China antiga” ou nas diversas obras de Pierre Kaser, especialista dedicado à descoberta e tradução destes textos.

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Exemplar de pornografia chinesa – Época Ming Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:China_Sex_Museum_ Ancient_Erotic_Painting2.jpeg

A literatura institucional produziu, no entanto, dois manuais dedicados à educação feminina: um deles, chamado "Lições domésticas", foi escrito pela imperatriz Xu (mulher de um soberano Ming), e se consagra a ditar as regras de bom comportamento de uma mulher da corte, seu papel submisso e seus deveres familiares. Seu trabalho foi complementado por outra pérola de misoginia, escrita por madame Liu, mãe de um grande letrado da época. Conhecido como Liu Nuzhuan, ou "Modelos para uma mulher", ela descreve igualmente o que deveria (e o que não deveria) ser feito ou praticado por uma dama. Surpreende-nos, pois, constatar que estas autoras incorporaram por completo a concepção do machismo dominante e passaram a trabalhar em seu favor, utilizando dos instrumentos intelectuais disponíveis (a escrita, um confucionismo deturpado, uma complacência misógina, etc.) para difundi-lo: Ao romper do dia, deverá pentear-se e adornar o cabelo com largas travessas, como se estivesse preparando-se para uma audiência na Corte Imperial, mostrando, assim,

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para com seu marido, a reverência que um súbdito deve ao seu Imperador. Depois de lavar as mãos, preparará e oferecerá a seu marido o primeiro alimento, com o respeito que um filho deve a seu pai. Se o marido a tratar com perversidade, ela tornará a atitude respeitosa que um irmão mais novo, em tais circunstâncias, toma para com o primogênito. Se o marido errar, é seu dever auxiliá-lo a corrigir a falta, com amor assente na maior amizade. Só nas mais retiradas horas deverá manifestar o seu afeto de mulher para com seu marido. A mulher deve, durante toda a sua vida, olhar para seu marido como quem olha para o Céu: Uma união amorosa lembra a harmonia de alaúdes e harpas e, prevalecendo a harmonia no lar, a família prospera. Se marido e mulher não viverem em perfeita harmonia e a ruína do seu entendimento for completa, o casal assemelhar-se-á a lanças, que se opõem, não havendo termo para seus desgostos e inquietações. Deve a mulher ser respeitadora, obediente e submissa, desempenhando-se dos seus deveres o melhor possível, partilhando sempre das alegrias e tristezas de seu marido. Mêncio escreveu assim: "No dia do casamento, a mãe da noiva acompanhá-la-á à porta de casa e adverti-la-á dizendo-lhe: "Vais para um novo lar; sê reverente, cumpridora do teu dever e obediente a teu marido". Pode o marido contrair o matrimônio em segundas núpcias, sem que, porém, haja cerimônias nupciais a celebrar. A mulher preenche em absoluto o seu destino, satisfazendo os desejos de seu marido. Porém, se perder a sua graça, esse destino será completamente arruinado. A mulher deve esforçar-se sempre por ganhar o afeto de seu marido. A verdadeira doutrina, que rege a vida entre marido e mulher, exige que esta viva em perpétua reclusão. Se a mulher sair frequentemente, pode originar o escândalo; este pode, for sua vez, provocar a maledicência e desta resultar a ruína e o ridículo do marido. Daqui pode nascer um desentendimento entre os cônjuges, que primeiro se

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manifeste por simples expressões e atitudes desagradáveis, depois por palavras ofensivas e finalmente por gestos agressivos. O marido e a mulher devem viver sob o princípio do respeito mutuo; mas, se chegarem a agredir-se, como pode esse respeito mútuo prevalecer? Claro é que deste procedimento resulta a separação afetiva e, desta, a desarmonia do lar. (Liu Nuzhuan, BUENO: 2010: http://amulhernachina. blogspot.com/2010/07/os-cinco-deveres-femininos.html)

Uma sociedade com tais características e que busca, ainda, fechar-se ao mundo exterior não poderia, de fato, ser bem sucedida em absoluto. Sua falta de visão política favoreceu a derrocada da China, novamente, para os nômades vindos do norte, agora sob a égide do Jurchen - doravante sinizados como Dinastia Qing, ou manchus, instalada no país a partir de 1644. Nada, porém, parece colaborar numa revitalização da condição feminina na sociedade, ao contrário: com exceção de vagos protestos dos Qing contra o enfaixamento dos pés, este parece se popularizar, atingido uma parcela pobre da população que deseja negociar mais vantajosamente o casamento (ou venda) de suas filhas; os mercados de concubinas crescem, e se aperfeiçoam; o aumento da população barateia ainda mais o custo da mão de obra, e o valor humano diminui, refletindo-se diretamente na mulher. Pode se dizer que o período manchu foi economicamente eficaz até o final do século 18, mas em nada ele favoreceu um aprofundamento crítico nas condições sociais. Romances populares como Houlumeng, ou "O sonho do quarto vermelho", de Cao Xueqin, trazem um aperfeiçoamento notável na literatura, mas pouco acrescentam – senão no uso da pornografia como recurso estilístico – ao entendimento da condição feminina. Somente após as terríveis crises que se iniciam no século 19, a intelectualidade chinesa começa a prestar

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atenção na sua incapacidade de reagir aos perigos externos, nas idiossincrasias de sua sociedade, e como consequência disso temos um tímido, porém promissor, início de uma análise mais consciente sobre o papel social da mulher.

Família típica chinesa do início do século 20 Fonte: http://www.oregonlive.com/oregon/index.ssf/2009/02/oregons_ immigration_debate_mor.html

Deve-se notar que a última soberana Qing, a imperatriz Cixi, foi um exemplo emblemático destas contradições latentes no fim da China Imperial. Hábil política e manipuladora, ela conseguiu controlar os destinos da dinastia em sua fase agonizante, mas a lançou num completo processo de estagnação e desagregação. Os comentaristas deste período viam a situação por ângulos diversos: alguns achavam que tal situação de crise era resultado, justamente, de haver uma mulher no poder; outros, porém, entendiam que o papel do feminino na sociedade não podia ser medido por um exemplo

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negativo, mas que o caso demonstrava, de maneira inegável, que as mulheres não recebiam uma educação adequada em termos políticos, sociais e humanísticos.

A entrada da China na modernidade

Ao se debruçarem sobre os problemas da China, os republicanos, que assumiram o poder em 1911, encontraram um panorama complexo e difícil, estraçalhado por guerras civis, ameaças estrangeiras e por uma cultura em muitos pontos retrógada e reacionária. Não é possível transformar uma cultura milenar da noite para o dia, e esta constatação fatal mostrou a grande quantidade de trabalho e tempo que os chineses teriam que empregar para se reinventarem. Creio que entramos num domínio no qual três sugestões cinematográficas são válidas para termos uma ideia do que era a época republicana na China: a primeira, o filme Lanternas vermelhas (chinês), que mostra a difícil vida de uma menina cujo casamento é arranjado com um desconhecido, torna-se prisioneira de uma casa cheia de cômodos separados e é obrigada a disputar a atenção do marido com as outras esposas – com extrema sutileza, o diretor Zhang Yimou apresenta-nos uma complicada época de transição, onde uma cultura milenar buscava preservar, em meio as revoluções da modernidade, suas características mais duras; o segundo filme seria “O pavilhão das mulheres”, norte-americano, de William Dafoe – nesta película, adaptada de um romance de Pearl Buck, uma mulher decide arrumar uma segunda esposa para seu marido, talvez querendo dar férias para si mesma dos seus deveres de esposa; no entanto, ela termina se apaixonando por um padre ocidental, e tudo se complica ainda mais quando seu filho, um revolucio-

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nário comunista, apaixona-se pela nova esposa do pai. Enfim, um conjunto de situações que mostram a inevitável tensão de uma sociedade na qual a mulher busca novos espaços, mas não sabe qual direção seguir; por fim, uma historia real, “O amante da China do norte”, francês, de Marguerite Durras - baseado em sua autobiografia, o filme conta a história da autora, passada no Vietnã colonial, quando ela tinha apenas 15 anos e se apaixonou por um rico filho de comerciantes chineses - o casamento impossível, a visão sobre amor e relacionamento, tudo é permeado pela estrutura pesada da sociedade tradicional chinesa, ainda que situada no estrangeiro. A conclusão um tanto quanto inevitável é de que a República operou muito pouco no sentido de valorizar socialmente o papel da mulher, mas isso foi consequência também do curto tempo em que ela realmente existiu em âmbito continental; em 1949, os republicanos foram obrigados a inventar Taiwan quando os comunistas tomam o governo da China por meio da revolução. Neste ponto da história, a contribuição comunista à causa feminina, no conjunto, é digna de nota. O PC chinês fez de tudo para garantir o seu lugar como um ser socialmente ativo, independente e com direitos iguais ao do homem, além de abolir as antigas e abomináveis regras de casamento. Muitas mulheres se destacaram politicamente neste período recente, e a visão tradicional de submissão feminina foi intensamente combatida: Na China, os homens são normalmente submissos à autoridade de três sistemas (o poder político, o poder do clã, o poder religioso). Quanto às mulheres, estão, além disso, submissas à autoridade dos homens ou o poder marital. Essas quatro formas de poder - política, do clã, religioso e marital – representam o conjunto da ideologia e do sistema feudo-patriarcal e são as quatro grossas cordas que prendem o povo chinês e, em particular, o campesi-

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nato. Mostramos, anteriormente, como os camponeses, nos campos, destruíram o poder dos latifundiários. Este é o pivô, a cuja volta gravitam todas as outras formas de poder. A eliminação do poder dos latifundiários abalou os poderes do clã, religioso e marital.... No que se refere ao poder marital, sempre foi mais fraco nas famílias dos camponeses pobres, onde a situação econômica obrigava as mulheres a assumir uma parte maior no trabalho que nas famílias das classes mais abastadas; daí terem, com mais frequência, o direito de expressão e decisão nas questões familiares. Durante os últimos anos, devido à ruína crescente da economia rural, a própria base da autoridade do marido sobre a mulher se viu minada. Recentemente, com o aparecimento do movimento camponês, as mulheres começaram, em muitos lugares, a criar associações de camponeses; soara sua hora de erguer-se à frente, e o poder marital se enfraquecia dia a dia. Breve, o conjunto da ideologia e do sistema feudo-patriarcal vacilará diante da autoridade crescente dos camponeses. (Livro Vermelho de Maozedong, BUENO, 2009: http:// chinologia.blogspot.com/2009/08/mulher-na-china.html)

Claro, alguns elementos devem ser notados: o próprio Mao Zedong foi um desses lideres contraditórios que (ou ao menos, afirmam algumas biografias) defendia os direitos femininos, mas que traía suas esposas com jovens camponesas escolhidas – e de preferência virgens, pois isso "renovava o vigor masculino". A última esposa de Mao, Jiang Qing, foi – inclusive – extremamente ativa na política, mas repetiu uma serie de erros de suas antecessoras e, após a morte do marido, foi julgada publicamente como se fosse uma nova Cixi. O que pensar a respeito disso? Devemos notar, portanto, que as iniciativas do governo comunista visavam inserir a mulher numa visão moderna do mundo do trabalho, orientadas pela ótica da teoria marxista-

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-maoísta. Isso significou um amplo quadro de avanços, mas também de adaptações. Algumas delas marcam nitidamente as diferenças de visões dos chineses em relação ao resto do mundo. Por exemplo: dada à importância da questão do planejamento familiar, o governo foi obrigado a legislar sobre o número de filhos que um casal pode ter, evitando assim o fenômeno da super população; por outro lado, o aborto e o uso de contraceptivos foi amplamente liberado, mas recentemente proibiu-se o uso de exames que possam indicar o sexo da criança - muitos casais abortavam as meninas, posto que preferiam ter filhos homens. Estas atitudes mostram que há um longo caminho a percorrer para demolir os traços de misoginia encruados na sociedade chinesa, e recuperar um espírito antigo de maior liberalidade e igualdade. Num livro recente, “As boas mulheres da China” (2003), Xinran (a autora) apresenta-nos casos diversos da intolerância para com o feminino que ainda persistem na China comunista: Há um homem velho e aleijado aqui, de sessenta anos, que comprou uma esposa recentemente. Ela parece muito nova. Acho que foi raptada. Acontece muito disso por aqui, mas muitas das garotas conseguem fugir mais tarde. O velho está com medo de que a mulher fuja, por isso amarrou-a com uma grossa corrente de ferro. A cintura dela está em carne viva por causa do peso da corrente- o sangue escoa pela roupa. Acho que ela vai morrer. Salve-a, por favor. Não mencione esta carta no rádio de modo algum. Se os moradores da aldeia descobrirem, expulsam a minha família daqui. Que o seu programa fique cada vez melhor. Seu ouvinte leal, ZhangXiaoshuan. [...] A carta que recebi do garoto Zhang Xiaoshuan foi a primeira a apelar para a minha ajuda prática e me deixou muito confusa. Informei o chefe da minha seção e per-

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guntei o que devia fazer. Ele sugeriu, com indiferença, que eu entrasse em contato com o Departamento de Segurança Pública. Telefonei e contei a história de Zhang Xiaoshuan. O policial do outro lado da linha me disse que me acalmasse. "Esse tipo de coisa acontece muito. Se todo mundo reagisse como a senhora, morreríamos de tanto trabalhar. E de toda forma é um caso perdido. Temos pilhas de relatórios aqui e os nossos recursos humanos e financeiros são limitados. Se fosse a senhora, eu pensaria bem antes de me envolver. Aldeões como esses não têm medo de ninguém nem de nada. Mesmo que fôssemos até lá, eles poriam fogo nos nossos carros e espancariam os nossos oficiais. Eles fazem o impossível para garantir que suas famílias se perpetuem, pois deixar de produzir um herdeiro seria uma ofensa contra os ancestrais”. (Boas mulheres da China, apud BUENO, 2009: http:// chinologia.blogspot.com/2009/08/mulher-na-china.html)

Em Taiwan, o discurso tradicional ainda amarra uma visão mais liberal da sociedade (neste caso, outra sugestão cinematográfica sobre a vida moderna em Taiwan é valida: o filme “As coisas boas da vida”). Por outro lado, isso significa apenas visualizar o lado negativo da questão: a China comunista mantém ativos uma serie de grupos que lutam pelos direitos da mulher, e neste caso especifico, os avanços das atividades destes grupos parecem muito maiores do que em vários países do Ocidente (incluso aí o caso do Brasil). O que quer que seja dito, enfim, sobre a História da mulher na China, não é fácil de ser estudado, analisado e concluído. A tensão que caracteriza sua trajetória – uma sociedade em que se deu o embate milenar entre a misoginia e a igualdade – está longe de findar, e acompanhar o curso destes acontecimentos

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significa, por conseguinte, encontrar estes contrapontos tão necessários, sempre, a compreensão de nossa própria história. "A mulher é a outra metade do mundo", dizia um antigo ditado chinês – como demoramos tanto para entender isso?

Bibliografia

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Sobre os autores

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COLEÇÃO HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA EM MOVIMENTO Direção: Pedro Paulo A. Funari Conselho editorial: Andrés Zarankin, Airton Pollini, José Geraldo Costa Grillo, Gilson Rambelli, Lúcio Menezes Ferreira, Renata Senna Garraffoni Títulos publicados: Amor e sexualidade - masculino e feminino em grafites de Pompéia

Lourdes Conde Feitosa

Gladiadores na Roma antiga: combates e paixões Renata Senna Garraffoni Identidades, discurso e poder - arqueologia contemporânea

Pedro Paulo A. Funari, Charles E. Orser Jr. e Solange Nunes de Oliveira Schiavetto (Orgs.) Jesus de Nazaré: uma outra história

André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli e Monica Selvatici (Orgs.) Alexandre Magno - aspectos de um mito de longa duração

Pedro Prado Custódio

Os xerente: um enfoque etnoarqueológico

Flávia Prado Moi

Judaísmo, cristianismo e helenismo

André Leonardo Chevitarese e Gabrielle Cornelli (Orgs.) História antiga e usos do passado

Glaydson José da Silva

História antiga: contribuições brasileiras

Pedro Paulo A. Funari, Glaydson José da Silva, Adilton Luís Martins (Orgs.) A arte dos regimes totalitários do século XX

Vanessa Beatriz Botulucce

Brasil Central: 12.000 anos de ocupação humana no rio Tocantins

Walter Fagundes Morales

Cultura militar e de violência no mundo antigo

Luiz Alexandre Solano Rossi

Arqueologia da repressão e da resistência: América Latina e ditaduras

Pedro Paulo Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos Reis (Orgs.)

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Subjetividades antigas e modernas

Margareth Rago e Pedro Paulo Funari (Orgs.) Política e identidades no mundo antigo

Pedro Paulo A. Funari e Maria Aparecida de Oliveira Silva (Orgs.) Identidades fluídas no judaísmo antigo e no cristianismo primitivo

Paulo Augusto de Souza Nogueira, Pedro Paulo A. Funari, John J. Collins (Orgs.) Arestas do Poder

Adilton Luís Martins Geoarqueologia de um sambaqui monumental

Ximena S. Villagran

Entre ilhas e correntes

Aline Vieira de Carvalho Sexo e violência - realidades antigas e questões contemporâneas

José Geraldo Costa Grillo, Renata Senna Garraffoni, Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) A construção da pirataria: o processo de formação do conceito de “pirata” no período moderno

Leandro Domingues Duran

“O Príncipe do Egito”: um filme e suas leituras na sala de aula

Raquel dos Santos Funari

Moedas: a Numismática e o estudo da História

Cláudio Umpierre Carlan e Pedro Paulo A. Funari Os manuscritos do Mar Morto – Uma introdução atualizada

Jonas Machado e Pedro Paulo A. Funari

Uma análise político-religiosa da contenda entre Basílio de Cesareia e Eunômio de Cízico (séc. IV d.C.)

Helena Amália Papa

Moeda e poder em Roma – Um mundo em transformação

Cláudio Umpierre Carlan

Os caminhos da Arqueologia Clássica no Brasil: depoimentos

José Geraldo C. Grilo, Pedro Paulo A. Funari e Aline V. de Carvalho (orgs.) Um outro mundo antigo

Katia Maria Paim Pozzer, Maria Ap. de Oliveira Silva, Vagner C. Porto (orgs.)

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