Um falcão no punho - Diário I

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Jodoigne, 27 de Março de 1979 Tal como sou acompanhada pelos lagos — águas adormecidas naturais p duráveis —, de igual modo deve , fazer parte da sombra, que se desloca comigo, inscrever os dias estendidos por longo período de tempo. No seu calendário deve impôr-se imediatamente a noção de noite — uma semana, um mês, um ano de noites. Sem o calendário, o fluir do tempo deve parecerlhe incomensurável, e tornar-se um obstáculo à separa­ ção clara entre as figuras que voltam em períodos (perigos) regulares, ao mesmo ponto da abóboda. Se geralmente os mese§ começam com a lua nova, ela atra­ vessa épocas em que não tem outro sonho senão o de conhecer, e todos oS livros, limites e indícios da vida quotidiana lhe pare79 dou passeios no bifinitpmente grande dos jardins (Causa Amante, ou O Nascimento de Ana de Penalosa, I.° título). ^ à noite: penso em Giordano Bruno, fem quem teria sido sua mãe. “1 Onde vives ainda, Giordano, em que dia? Quem foi tua mãe? Se vier acolhcr-se entre nós, não a deixaremos só. Faremos com ela uma espccic de jogo, mas ela nunca suspeitará dç. que maneira!foste morto. Eu tinha von­ tade de cantar-vos louvorjes, pois vos via chegar ao ^ limiar do mundo; quem té pôs no limiar da chama, a prumo na chama, homem {inteiro? Sempre ela loi uma mulher três vezes radiantei J

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Jodoigne, 7-11 de Junho Exposição dos móveis feitos pelo Augusto, na sala oblonga da Estufa, que foi o nosso primeiro quarto em Jodoigne. A sala. com a janela ao fundo, os azulejos preios e brancos, os móveis, a sua relação reciproca, eram belos e duradouros. Atrás, no terreno inculto, cu não esquecia a presença das galinhas, dos galos, e dos gatos meio agrestes. Foi uma semana variada, de crise, dispersão, reconstituição, embora eu não tivesse tempo para ordenar as minhas impressões, reflectir, e escrever. No dia 10, domingo, comecei a ficar apreensiva por não ter recebido ainda a carta semanal de minha mãe; tal qual a conheço, ela teria aceite também a materni­ dade de um gato, de um cavalo, de uma andorinha, mas não de uma águia, ou de um outro animal que fosse de rapina. Como evoluirá a doença de olhos de Maríolho? Vontade de possuir o poder absoluto de o lazer viver, de que lhe seja restituída a vista; não vê, suas pálpebras estão coladas, Laura, que o deu à luz, não tem leite, e ele ficou só e, o que é pior, só e dependente; mas eu 15

familiarizei-me com alguns sinais da sua espécic; o Au­ gusto di/.-n' . 1 que não interfira, que me disponha a dei­ xá-lo seguir seu destino: seu abandono. Durante o tempo em que preparámos a exposição dos móveis, o jardim cmcrgiju da sua selvática desordem (saiu do seu meio fluído), sem se tornar uma manifesta­ ção da Casa; eu própria lhe tinha introduzido uma ligeira orientação dispersivaíe, passeando nele, poder-seia dizer que o conjunto das plantas, que ali se desenvol­ viam, era iivre de caminharjpara diferentes partes; mas, presentemente, distingue-se] no trevo branco que reco­ bre o centro do pátio, as idas e vindas dos visitantes.

Ser prisioneira de um dia de extrem a claridade . ) (Causa Amante, ou O Nascimento de Ana dc Penalosa). Vista com tempo, Lisboa não é igual a nenhuma outra; é ela mesma, sem evidência; o rio Tejo já morreu muitas vezes, e a cidade não tem forças para prender-se j nele; os rios arrastam consigo a forma das cidades que atravessam. Foi no desenrolar destas configurações que me surgiu a criada Engrácia, levantando-sc com frio c fechando a janela para aquecer-se na penumbra. É a introdução de Engrácia què, ao ver-me trabalhar com a agulha, percebe imediatamente que as transformações .são o nosso pão quotidiano, que nos falta, e que vai ler o que está escrito sobre a mesa. e demonstrado peia can­ deia que havem os de apagar, os legumes que há-de tra­ zer do jardim , e preparar \para o almoço ficando ela, afinal, a p ô f devido tom a sequência narrativa, e indo eu para a cozinha tom ar a jsua luz. Decido, nessa altura

natalícia. (irar o d de deus. e chamar eus ao que fo r a diferença que o prive de ser a sita vontade. Ela diz-me, da sala, que gostaria de escrever para dar impulso ao que eu vivo; eu respondo-lhe, da cozinha, que tenho vontade de viver para continuar o que ela escreve. Quando tom o consciência desta relação amante, reparo que uma criança, sem ser nem sua, nem minha filha, se ju n to u a nós: empurra um arco e, segundo a sequência narrativa de Engrâcia, estimula-a a escrever assim: os dias da noite, e os dias da noite. A s três concebemos nitidam ente os dias com a noite, e os dias com a sua noite. Atentas a razão, partilham os o que nos f o i trazido: Engrâcia fic a com a escrita, a criança com eus, eu fico aqui.

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Jodoigne, 25 de Junho de 1979 O que vivemos, colocamo-lo nos sonhos que faze­ mos. Dormi dc um único sono, e iive um sonho: viajo num carro eléctrico, em Lisboa, e reconheço, '• pouco a pouco, o homem sentado a meu lado; mas a sua presença parece-me morta, ou distante. Com o tempo, sem acontecimentos que possam ser descritos, eu, o homem, e sua mulher, tornámo-nos amigos. Estou con­ tente por ter vencido a minha repugnância dc contrair relações, e de gozar daquele convívio. Também na casa da rua Domingos Sequeira repararam que eu saio fre­ quentes vezes. Depois estou deitada na cama, entre o homem e a mulher; o homem toca-me, e a mulher sobressalta-se. Encosto-me a ela, e pergunto-lhe se tem filhos. — Tenho très. D a representação involuntária do sonho passo para O Nascimento de A na de Pcnalosa. (') Isto é, mergulho (') T itu lo dc Causu A m ante, ncslii época.

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numa nebulosa impelida por um intuito de decifração: “Se eu obtiver um instrumento óptico adequado, virei a conhecer a composição da-nebulosa”. Nos meus últimos sonhos há uma clareira, em Lis­ boa, a clareira tutelar; este círculo, onde está implan- . tado um candeeiro, ou uma árvore, ou um trovão, assiste ao sonho. O Augusto e eu passeamos sempre à volta desse sinal compreendendo que a neblina que nos envolve é a navegação deTejo-rio. Não mais, para nós, terá um contorno sinuoso, próprio de rio. Tornou-se numa narração possível do mundo. Como num sonho cm que estou acordada, julgo . que se me revela o sentido do primeiro sonho: ' | cu susiento-me entre a vida e a morte, no que o / Augusto chama o entresser. A mulher é a minha figura protectora, e o marido representa a'morteTJulgãm che\ g a d o o momento'dFcòntinuar a guardar-me viva, com viva-voz. Por detrás de nós, no centro de nós, inscrevese a pròfunda dilatação do livro, em que somos três, o Augusto, eu, e o-próprio livro, que Tcjo-rio pastoreia, ou orienta. ■■■-—...... _■ ! ..■■ í Esse livro para mim é uma queda, uma fonte de luz situada no alto; esteja onde estiver, faça o que fizer, vejo-me sempre cair, refluir, de páginas fechadas e abertas.

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Jodoigne, 26 de Junho dc 1979 Tínhamos a mesma idade, e eu olhava-a muitas vezes do meu lugar, na aula. Ela tinha uma espécie de factotum, chamado Amália; hoje, faz-me pensar na ori­ gem, e na natureza .das afeições de que imagino, adequando-se ou não a nós, as definições dadas por Spinoza. (') . Elã provocou-me assombro, alegria, inveja, tris­ teza, e, finalmente, orgulho que consiste cm “por amor, fazer mais caso de si mesmo do que é justo”. E ra rapariga-saber. Mesmo seu rosto, e sua silhueta, sabiam o que era o belo; sabia uuvir-se ler, dobrava a língua portuguesa com o conhecimento de outra língua, desenhava com a correcção de quem escreve. Eu tinha, sobretudo, o desejo malogrado de possuir tal compreensão das ciências, ou memória dos acontecimentos. Mas a escrever, ou a reflectir sobre o que tinha lido, era fruste. Quando eu olhava a minha condiscípula, tinha for­ çosamente consciência d a minha relação ambígua com o saber, e da minha avareza pela escrita. (*) Spinoza/Oeuvrcs 3/Ethiques/G am ier FlammaricJn/1965/pá|>. 197.

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Jodoigne, sonho de 26 para 27 de Junho Se o espírito fosse o corpo onde e!e estivesse... Necessito de fazer uma operação aos olhos. As janelas ficam por detrás de mim. que estou sentada; o medico é um velho alto; magro; de óculos; explica a uma pessoa que acaba dc entrar como vai proceder. Impeço-o de prosseguir a explicação: — Eu não sou um objecto. A enfermeira do oftalmologista é uma criança de uns dez anos. Aplica-me sobre os olhos duas compressas de algodão, e eu sei que a operação vai começar, Não sinto angústia. Não estou preocupada. Enquanto a ope­ ração dura, uma mulher que podia ser a do sonho de ontem, entra e, debruçada sobre mim, começa a ler um texto. Acordo a ver, na clareira tutelar; digo ao Augusto, que se encontra espalhado por toda a parte, que me adormeceram e despertaram sem dificuldade. Responderá este sonho à pergunta “alcançarei a vida eterna?”. Prefiro, para tornar o meu interlocutor (?) mais próximo, diz-me, “alcançarei a vida eterna?”. 21

Jodoigne, 8 de Julho de 1979 C om o m e seduzem estas palavras ruelas, beirais, al/urjas, saguões, becos, escadarias, pla­ nos, serventias, pátios; um único Rossio — o chafariz de Dentro: um a única avenida — os Remédios; um ímico m onum ento — a Torre de São Pedro; postigos, esqui­ nas, arestas, lápides, siglas; grades; portais esquecidos. Este poderia ter sido um dos princípios de Da Sebe ao Ser mas desconheço uma palavra, cuspinheira, e Tico a conjectu­ ra r sobre o seu sentido; são estes os átomos do texto, e eu estou em combinação com eles. Nesta atmosfera surge(Lisbo^ a companheira, dila­ cerada por outras possibilidades de existência. Atmos­ fera é o peso de uma cojuna cilíndrica de mercúrio. Desta vez o rio estuda atentatam ente a cidade, divide-a mais termos, e se g m e n to s_____________ bancos fci-& y de pedra, registos de azulejos, pedras sol­ tas, restos de muralhas, e lim escritor que, finalmente, se afasta. Seu vulto voluntarioso carrega a obscuridade da língua, e a m ulher que perdeu po r tê-la fe ito grande; a 22

vumtade de Margarida sobe pelo nw stnt dc um nuvln parado no rio, e as outras caravelas, que o rodeavam, voltam jm/u m/v, para o lugar de origem. Margarida, sempre subimiu nt> sacrifício, apresenta finalm ente às estrelas seu filho, o Senhor Luís M.. A s estreias voltadas pura as colinas e tabernas políeromas da cidade dizem-lhe, no vão de um a escada, que ele é gente do mar. — Não^ele é gente j do telxto — corrige Margarida crucificada no mais alto mastro do navio, que não tardou a enfunar as velas, e a entrar num jardim como porto. Cercava esse jardim uma casa miserável da cidade. que substituía agora o antigo palácio que la estava, e fo ra a Universidade fr e ­ quentada por Luís M. Sua mãe. Margarida, sabia como ele rinha sido preso peia primeira palavra que jjrununciara — lixo — , e a que ela tinha acrescentado, nos tempos cm que ainda o ensinara — lixo de escrita. Ele gostava de pronunciar lixo de postigos, lixo de esquinas, lixo í/ e arestas, lixo de lápides, lixo de siglas, lixo de grades, lixo de partais esquecidos, lixo de todos os ter­ m os variáveis. Nesta Escola, que não era secreta, e s ó d e dia funcionava, Luís M. tornara-se imperceptivelmente o dom ador do texto de sua mãe, e o vadio que passeava nas betesgas da cidade de Lisboa. Tendo sabido que o bem e o mal se tinham afastado um do outro até terem abandonado o combate, ele e sua mãe começaram a tentar ensinar o céu a fazer descer das badaladas da Sé e de São Vicente uma cidade sem o peso e a podridão da primeira. Cidade que Luís M. trazia na ponta da lingua, e guardava ciosamente debaixo dà capa, com receio que fosse embruxada po r alguém menos generoso do que ele. Macerava as siglas num líquido — água do Tejo, ou do Mosa, ou do Eufrates, e form ava com suas abrevia23

luras soltas curvas sobre a muralha, em \‘cz de a percor.rer em volta. Queria ultrapassar sua mãe, e sua mãe queria ultrapassá-lo. A m b o s procuravam, a partir de certas alturas da cidade, estratagemas, mas com escrú­ pulos. De que falavam ? Onde soçobravam suas relações fam iliares corrompidas pela rivalidade? E o laço um bili­ cal que os unia teria alguma vez existido? Quantas vezes? } So b qw ' ..igno? Expresso em que rota humana? Cuspiram frequentes vezes para o chão na noite em que se separaram, mas o cuspo não se metamorfoseou em vozes altas e sonorosas. Luís M. subiu as escadarias, e adormeceu momentaneamente sobre os reflexos do rio, convencido de que era preciso ficar orfão para saborear a vida. Sua mãe, que se exilava, lançava-lhe os seixos da experiência do alto dos mastros, para que ele partisse para o im im o da cidade, e o exaltasse. A cidade não linha, contudo, íntimo, a não ser algumas portas, e um rio. Luís M. cobriu-se de tinta. Nos seus sonhos, Alfama regorgitava de gente, e o beco da Mosca atravessa uma fronteira do seu espirito. Pensava em Spinoza, e, nas reverberações da sua própria cidade, principalmente nos aspectos da parte primitiva. Som ou o número das suas contemplações, e encontrou-se no início do mesmo sonho, em que sua mãe já viajava. Apalpou o st;u vulto de escritor, e não sabia o que era, e por que razão tais pensam entos sinistros não o deixavam cm paz. Eram pensam entos de criança, e não de hom em. E sua mãe já tinha' partido. Não devia voltar-se para trás. Nem m esm o para a sombra. Margarida ia seguindo no mas­ tro da caravela, e um a moeda rebolava para ele, a menos que fo sse um torvelinho de ouro. Não era a m oeda da 24

cidade, era a última m oeda da mãe chegando uié ele. A travessou o anfiteatro,

e percorreu Lisboa até que uns arruaceiros, que o arras­ taram para um a briga, o apunhalaram pela manhã. Tinham-no apunhalado sem gravidade, no sitio em que a moeda o protegia. A marca incutida na liga tom ou-a inconfundível, e Luís A*/. decidiu que em nenhum caso a daria em troca. Era um besante, pesada moeda bizantina, cunhada nos tempos áureos do Impé­ rio. Depois de a ter comprimido de encontro à ferida, para impedir a livre circulação do sangue, reparou que o rio. em que fo ra mergulhado até à cintura, estava deserto, e que um a brisa lhe indicava o lugar onde devia dirigir-se. A m oeda havia-se-llw calado ao peito, e ele sentia-se perturbado com a existência súbita de dois corações que sempre fariam a cadência um do outro. A hemorragia tinha estancado, mas o lábio inferior tam­ bém estava ferido. Depois do m om ento em que sabia onde ir, sentiu-se perturbado com a vastidão da cidade, o que era sinal de fraqueza. Mas, reparando melhor, a cidade não era vasta, era desconhecida, e aquele não era o rio Tejo, era outro rio debruando outra cidade flu via l em que qualquer referência faltava. Um pensam ento vinha-lhe depois de um pensam ento diferente, e fa zia frio. quando a estação na cidade que se transformara era o verão. Entre o verão e o inverno havia a lacuna do outono, e principiou a percorrer a gama das palavras outonais, leve, rápido, alegre. O que o conduziu rapida­ mente à ideia de morte, que ficava escondida, com temor, p o r detrás dessa progressão constante de pensa­ m ento que limpara a cidade do seu persistente mau sabor.

Jodoignc, 9 de Julho de 1979 O ntem 'estava verdadeiramente perturbada com a sociedade secreta dos Brontii. A Ama, o cão Keeper, o eremitério, o jogo dos escritos (') que pertencia ao meio ambiente e, já de longe, a perspectiva do meu olhar abrangend-1 - s com admiração e piedade; o eremitério é um quadro consonante com certas naturezas e há nele uma prática de não distinção consciente dos mundos; quis começar a falar dos pobres, e hei-de acabar por encontrar-lhes o retrato adequado para além; por enquanto, uma imensa espessura me intercepta a vista; só pressinto que Emilv Djckinson acaba de che­ gar, sem ser uma intrusa, ào eremitério dos Bronte; mais um rosto enigmático que me escolheu, e essa moldura do novo retrato forma-se à nossa volta como uma sebe .n u m jardim. Fora. Ou dentro. Os pobres. Na Europa havia alguns' lugares sem habitantes mas, desde que num desses lugares existisse um único ser com X1) P ercorridos, soube-se, p o r cinco mil páginas dc pequena caligrafia infantil.

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um rilual de vida c de pensamento, um eremité­ rio, tornava-se especialmente perigoso para as civilizações.1 Este texto podia continuar assim: falei nos Bronte a Juan, e ele fico u seduzido; nessa socie­ dade secreta Juan encontrou um sedutor e agora, durante a nossa viajem, não só marítima, faz-m e cons­ tantemente perguntas; eu. não sendo Psalmodia. o orá­ culo, não quero privá-lo de um dos episódios mais fam iliares da nossa viagem, e prom eti transcrever só pa­ ra ele. o uso pessoal que faço do m undo. Juan unta-me, e eu chamo-lhe a atenção para esses seres, essas mulheres que ele apenas pode ligar por outras vias du sensualidade; Juan, como o doutor Fausto, e se twrciliias.se nas duus pessoas distintas -no homem, Do carpo. Da alma, estaria disposto a troçar por esse conhecimento, esta última. No interior da sua casa, do seti pomar, vemos Emily Dickinson que hú-de ser alguém aqui, num a imobilidade só aparente; fa z um verso, depois oulro. The souls selects her oir/i S o c ie ty ______ T h e n ______ shuts lhe D o o r _______ senta-se, levania-se, uma ideia cintila-lhe diante, atrás de nós, e assim vai dando o nó ao avental e colhendo subida num a escada, os fru to s do pom ar que. se pas­ sasse mais um único dia, cairiam am anhã na sombra da 27

árvore; para ela, a claridade é lenta, e a casa o corres­ pondente do eremitério. O seu corpo está vazio de prazer: o prazer envolve-a; quando ela coloca a poesia, há um a espécie de nimbo à sua volta: metros e m etros de tecido p o r escrever a separam de Juati, o que eu logo lhe digo, a partir deste m om ento, deixamo-la, sem deixar de a ver nos confins do Connecticut; a . m ulher que está sentada à frente, e tem a cabeça ainda coberta, é Margarida. Continuei este texto com o sentimento da profusa posteridade das beguinas. a sua vinda não f o i acidental, recebeu uma carta de Anne, de Emily, de Charlotte, de Branwell, para que ela os confirmasse no Besliário; ainda hoje existe a conste­ lação em que as diferentes camadas do presbitério se tornaram de expressão luminosa, pela escrita: entrou, sem ter a certeza de que as crianças não saberiam mais do que ela, e encontrou, no lugar da casa de mais difícil acesso, os autores, os tipógrafos, os editores, e até um balcão onde se vendiam livros; havia, para cada um a destas ocupações espaços próprios e Charlotte entoava cadenciadamente os episódios que Branwell conceberia na escrita; Margarida viu, ocupando todo o chão da sala, o quadro com o retrato dos quatro fe ito por Branwell ainda sem os sinais, que acusaria mais tarde, de ter sido dobrado como um a simples fo lh a de papel; 28

dedicou-se, com eles, à com posição do rom anceminiatura: a cópia numa caligrafia legível, o cone cias folhas, os pontos na lombada; nunca. na tipografia de Plantin-Moretus. sentira emoção seme­ lhante à de ali estar com aquelas crianças não precoces, mas súbitas. Quando as olhava, olhava-se a si própria até ser atravessada por Úrsula, A na de Penalosa, e todos os reflexos vivos que a tarde trazia; na tipografia, o sentido era construído com sinais de flores, de folhas, de pedras, de fios, e o traçado da pena. mais além, cobria a voz de BranweU. com o rito da escrita; de cada lado de Charlotte, que imprimia. Emily e A nne sustentavam um a vela na m ão, e coniavum os pingos de cera que caiam no sobrado. cu preparava este texto com eles,'na minha casa de Jodoigne, e dava de beber a Brãnwcll, quando ele se calava; quando a sua voz se calava em fragmentos de silêncio, Emily, se quisesse, podia extinguir uma das velas; eu nunca vira nada de semelhante, sentia o peito opresso como se me faltasse o ar, ou o xale para me cobrir; eles ressuscitavam os mor­ tos e, tendo atingido a forma de expressão própria ao ser, jogavam sobre quem era cada um deles, incluindo Keeper, a quem eu chamo Jade; certamente, estas crianças tinham nascido mortas, ou imortais. 29

cies já sabiam que quase nada havia de reslar dos escri­ tos citados por Emily e Anne nos seus diários; cstc ceri­ m o n ia l da sa la o n d e mais ninguém p o d ia ir, exceptuando Keeper, é a cena Tulgor, ou o anel, que me ficou deles; eu conclui, mas não ousei dizer-lhes, que era nece.'1^ rio encontrar um exorcismo comum para a verdade J j imaginário; quando veio, num dos dias seguintes, o momento de exprimir-me em face de todos eles, não encontrei, por fim, as minhas próprias palavras mas as dc uma oração litânica de Buda: “ mesmo que eu quisesse — ó monges —, explicar-vos, •vi • por várias maneiras, as coisas da animalidade, ; .. • eu não poderia • . • exprimir, com palavras ' — ó monges —, até que ponto o nosso sofrimento, e o dos animais, ; é profundo. Voltei-me então para Emily Dickinson — falar não é inevitável; trabalhava sem falar e, ao fim do dia, tinham-se quase esquecido que ela existia; apenas sé via, sem quaisquer raízes, o resultado do seu trabalho.

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Jodoigne, 10 de Jullio de 1979 Julgou que a brisa o orientava para extra-muros, mas ticpois de algumas deambulações surpreendeu-o a simeiriu dc unta aragem ainda mais branda, que soprava de um silhar: sobre essa pedra, que revestia a parede de um preilio are meio. o dia principiara a nascer e, por entre os traçai/os decorativos, estava escrito que. naquela arca. se guardavam os registos referentes às fam ílias notáveis; fosse por que fosse manhã, ou por qualquer outra razão, não havia, por enquanto viv’alma, e todos os detalhes, naquelas circunstâncias, retratavam os ausentes da cidade; talvez por causa da fraqueza provocada pelo golpe, embora ligeiro, ou por sentir um a sensação de enlevo, ao caminhar num a calçada deserta; experim entou a necessidade de serenar-se a reflectir perlo de um poço, e de molhar o lenço na água para lavar o besante, os pêlos, a pele. e a ferida. Tinha, pois, para observar, um a cidade que, naquele m om ento, estava deserta, com vestígios humanos cujas pegadas lhe repugnava seguir. Para lá de um portal de volta inteira, que dava acesso a um pálio cie carruagem, com galerias 31

que sustentavam o primeiro andar, começou a reconhe­ cer, na tepidez da noite que viera de improviso, uma tal frescura encoberta que disse para si m esm o que estaria disposto a peregrinar p o r acidentes e congostas se ali, segundo j á suspeitava, houvesse um poço; de facto, res­ guardado por um a abóbada, havia um poço largo de boca, que outrora fornecera publicam ente água à cidade, com o sinal do desgaste das cordas e de onde se evaporava, arrefecendo o ar, a humidade que o atraíra. Sem saber se a água do poço era potável, se havia po r qualquer meio ao seu alcance a possibilidade de atingi-la, deixou-se levar pelo enlevo de, sozinho, poder irrigar o seu pensam ento e a vegetação que cobria o lugar onde outrora fo ra Lisboa. A ág'. '. de que se habituara a ouvir dizer que m ur­ murava, indicava-lhe que um bando de pobres atraves­ saria, à hora do calor, á cidade de lés-a-lês. deslocando os brasões, fa zen d o desaparecer os livros das genealo­ gias, destruindo as provas da outorga de tenças, pen­ sões, e cargos em fre n te do Paço Real. — Sonho, sonho — respondeu Luís M. — E se eu tivesse um a febre, não a provocada pelo meu ferimento, mas a que contrai com o jim a que me destino. — O po ço fazia-lhe perder as forças, com a sua respiração húm ida de fu n d o s ; debruçou-se sobre ele, como para lhe aspirar da boca a água. Interrompo_aqui_o_ texto porque desliza para a jfíéíáfofca. Queria desfazer o nó que liga, na literatura pòrteW esa, a água e os seus maiores textos. Mas esse nó é m u it^ forte, um paradigma frontalmente inatacável. 32

Jodoigne, 11 dc Julho de 1979 Cercado dc bardas, e de um tapume, há um terreno anterior ã Casa para o qual sc abrem as dependências onde, antigamente, viviam os animais, incluindo cava­ los. Há ainda num canto um barbiibo — rede de esparto para não deixar comer, ou mamar. Passei muitos momentos entre o interior c o exterior, e quando vinha o mês de Junho, submersa naquele lugar que me mostrava um canto da natureza regenerando-se no meio da cidade, eu guardava, para mim mesma, a ccrteza de que o verde que implica, ou envolve, todo o verde, não se pode nomear. Aquela parte era uma parte onde eu ia raramente, e supunha, algumas vezes, que do outro lado do tapume, também vivia alguém suspeito das mesmas inclinações. Pequenos animais domésticos criavam-se ali, morriam só dc morte natural, sem conhecer a minima violência. Apenas os cardos eram-arrancados. por virem suas sementes a proliferar nas Culturas vizinhas. As ortigas ficavam, e eu colhia-as para fazer a sopa, com o sentimento de que o meu jardim cuidava espontanea­ mente de mim. Lembro-me de um dia, de luz rara na n

nélgica, cm que me sentei no chão para fingir coser, voltada para as portas abertas do estábulo. Como não tinha relógio de pulso, e precisava saber que horas eram, para voltar à frente da Casa, onde habitava, trouxera comigo um despertador. Para não o ouvir cobrira-o com a roupa, enquanto ele marcava o tempo da minha persistente vontade de observar, e de meditar. Eu pró­ pria mal me movia para que aos animais, refugiados aqui, o meu corpo se afigurasse o menos perigoso possí­ vel; apenas arrumava, por puro prazer, a caixa da cos­ tu ra e . recapitulava, com vagar, todos os detalhes que via. i

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Jodoigne, 17 de Julho de 1979 (já na direcção de Portugal) Se eu tivesse que voltar do exílio voluntário, escreve a rapariga que tcnria a impostura da lirmua, viver fo ra destes fjasseias nocturnos, destas invenções suspeitas de verdade, da amizade surpreendente de Engrácia, dos dicionários de João da Cruz. que ele partilha comigo, entraria dc novo na cçrca. fechada sobre as pequenas casas, ande vivem, cutn força superior a elas mesmas, e angusiiandu-se por entrar na primeira ascese, minhas irmãs. i\'tj entanto, ouço sempre presentes suas vozes; quando m e deito na cama. a noite fa la sinceramente comigo, como vinda com facilidade da outra margem; imagino que, nuns e noutros quartos de portas fechadas, o convívio com a espera toma a imagem de poeira, ou form as agudas de estudo. Desejávamos voltar, na pior das hipóteses, a ser possuídas p o r nossas famílias, nos­ sas casas sem saída possível. Para darmo-nos coragem 35

umas às outras, confessamos, cm voz alta que se ouve de quarto em quàrto, que temos medo do tempo, de termos que atravessá-lo nos seus retrocessos quotidianos. Branca i a todas que, quando atingir idade avançada, já não quererá entrar no seu país por recear o choque da decadência física de sua mãe. Começámos, nessas noites que refiro, a ter o m esm o tipo de sonho, em que João da Cruz diz que os textos propiciatórios que escrevemos, nos dão luz. Pudessem Luís M., ou João da Cruz, tam bém assumir a sua sombra, sem ascendência, nem descendência. De facto, viviam de um leite demasiado ácido. De humanidades animais. De movimentos de espécies. De ansiedades que as deixavam perplexas. De escadarias construídas por entre os séculos. De tudo faziam vida e seus instrumentos de trabalho. São essas fontes que as definem como autores — os que foram sempre postos no principio. Deve ter havido dias em que foram só pessimismo, morosidade, ausência dc vontade. É penoso o lado da vazante do ciclo, cm que deseja­ mos sair, viajar de comboio, dc barco, ou de automóvel, não fundirmo-nos com os seres, mesmo numa liga de ouro. Segundo diz minha irmã, nossa mãe apaga-se, numa distância de contactos; a alegria que nos elevava, esmorece; eu fico indecisa, e reparo que hoje trabalho com emoções, mas não me emociono. .Estou a ler um autor, fico a reflectir sobre a opulên­ cia da sua linguagem compulsiva. A língua nele não ó um instrumento de trabalho, é o trabalho fatalmente 36

( realizado, circunscrito à linguagem que o possui. Daí que, nas áreas dos seus livros, quanto mais se restringe a amplitude temática, maior, e mais espesso, é o seu desenvolvimento. Julgo ter na minha frente diários minucioso que alguém escreveu na terceira pessoa, para outros. E pergunto-me de que forma certos agrupamen­ tos humanos, nos seus solares, casas de lavoura, cam­ pos, teriam existido com relevo se não houvesse aqueles modos de dizer, de nomear. Reflicto assim, para uso próprio, que quem escreve possui diferentes áreas de linguagem, com aberturas para que seja possível a sua recíproca interpenetração. Se assim não fosse, não haveria mais do que.a reconstituição, não significante, de uma velharia. Escrever é amplificar pouco á pouco, Voltei à vontade de imobilidade, de não tomar parle em quer que seja que comprometa o corpo; quando penso em Portugal, como acontece agora, constitui-se imediatamente um véu dc palavras de que nasce o Litoral Sul. o espaço ondulante de O Nasci­ mento de Ana de Pcnalosa, com setis mistérios e realismos por descrever, que me protegem da incompletude; com ele, contemplo o feito, e o por fazer; tento atingir rostos, atiiudes, lugares de intimidade — sua presença trespassada pela conversa de João da Cruz. É nas dife?' renças. e nas similitudes, na experiênc|a que também me faz sofrer, que p r o c u r a i ditçcção para estabelecer uma narrativa que é um\combatçí Penso muitas vezêsf'“E se Vasco da Gama não ti­ vesse voltado...” . Escrevo um texto que não utilizo: recebo um pedido de meu pai. Lacrado. Embora e/e 37

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tenha iiila t> cuidado de pôr remetente, verifico que está sem pre J o kí do meu alcance pois seus endereços são m últiplos. Fico perplexa, como se eu fo sse a filh a de vários hom ens que nunca decidirão dar-se a conhecer. Num canto da carta estava escrito: Vem ver-me. — Num canto da carta estaya tam bém assinado teu triplo pai que te pede.

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) Herhais, 23 de Janeiro dc 1981 • líerbais: a ilha para onde nos dirigimos tinha sido riscada do mapa; u não $er que o lugar onde nos encon­ trávamos, desprendendõ-ie dos prados firmes, nos levasse para ela. Os dias já não são o que eram; nunca havíamos suposto que seria necessário recorrer tanto à escrita: “si |‘on pousse assez loin dans le langage, on se trouve pris dans 1'étrcinte de la pcnsée.” a perda do mar pela areia é inevitável; da vela que arde à 1 folha que respira, o seu rosto permanecia sempre i latente; e qualquer objecto estava sempre a ser rodeado por ela. 39

II cr ba is, 9 de Abril dc 1981 O Augusto e eu sentámo-nos no banco-tábua do jardim; é o momento em que Esse se apresenta no livro. Falamos dos modos geométricos da inteligência que se produzem neste lugar cultivado por mim, e em que coopero com a natureza selvagem. Falamos do pendor conceptual de certas árvores pois cremos que há árvores que agem ? Camões saindo dc Portugal ao encontro de CopOrnico que lhe mostraria os seus cálcu­ los impublicados como tinha feito com Rheticus. Assim teria sido tão diferente o final do canto IX dos Lusíadas (todo o ímpeto dos descobrimentos “exige” uma teoria heliocêntrica, já que Giordano Bruno é propriamente inaudível) e o encontro amoroso na Ilha teria alcançado um âmbito que nunca poderá conseguir por mais cálcu­ los cabalísticos que se façam. De passagem para Cracóvia, onde Copérnico era um cónego maçador, sedentário e prudentíssimo, Camões podia ter entrado em contacto

cora grupos dc Fiéis do Puro Amor o que leria dado à sua lírica um timbre inesquecível que não atinge, se comparada aos poemas de Amor que deles nos restam. Há um acento platónico na sua lírica que é marca certa dc ausência e dc inexperiência (há uma diferença entre ser vivido e ser experiente). Mas o contrário é igual­ mente verdadeiro. O que Camões não teria dado a Copérnico, o que não teríamos ganho se a ciência nas­ cente não tivesse sido um “saber a seco”?. E Pessoa? Tanta palavra, tanta imagem, tanta más­ cara, para dizer “não encontrei” . Dez séculos antes Al~ -Hallâj tinha dito o mesmo, vivido numa época tão agitada como a dele, com todo o mundo muçulmano em recomposição. Mas que diferença entre um e outro. Al-Hallâj disse-o. Não encontrou porque Se encontrou, e na Praça de Bagdad onde o despedaçavam, sabendo que ele tinha razão mas era blasfemo, morreu afirmando-lhes: “Eu sou o Criador”. A pedra deste túmulo não a consigo demover. Não será Lisboa-Bagdad, mas tão-só Lisboa-Leipzig. Sempre escrevendo, sempre caminhando e diva­ gando, Aossê sabe que alguém está para entrar. Repleto de inocência m e olha sem me ver, e m eus pés estão no seu caminho. Frágeis obstáculos sobem na claridade da vela, que ilu­ mina um a voz que recita, está a meu lado com reflexão e medo. Quem está não é ser conhecido, nem homem, nem animal, nem palavra, nem planta, nem ser que se exprima. É deus m ortal e desconhecido como eu, em silêncio me pede que o encontre, e lhe faça companhia 106

na espera e no medo. Mas este medo à alegre e viaja, rodeado de areia, encontra o deserto, precipita-se nele e procura o seu m undo até à água. Uma toalha de espirito reúne as m il areias e canta no azim ute da vela, onde este ser repousa, sem sono nem indolência, sorrindo de amor abrupto e doce. Quem ele è me ama, apesar de não habituado à humana presença, excepto se fo r a de um hom em qur cheire a besta num campo de neve e terra. Quem ele seja submete-se a este quadro, e trespassa o espaço na sua pequenez de pena. Não procuro decifrá-lo para que evolua em paz, aproxima-se e deixa-me sobre o abismo deste abismo onde esplendem as porias intermi­ náveis que, um ao outro, vamos abrindo. Estranho espi­ rito, assim navegas entre o amor e as portas fechadas. Desapareces lentamente, no rasto de meus olhos. Se/n pressa me deixas, mas ficas sempre. Quase te vejo, cada vez te tornas mais desconhecido, no jardifai neva — há comida para os pássaros na soleira da porta. Teus ;>assos se afastam, te evadem da casa.; que não consegues deixar c afinal, deixas. Já não cs meu pai. nem meu ami^o, cs um a estação u'.i\et)te. Meus oíhn\ te seguem sempre í’ neles brilhas, não sabia que teu afastamento era tão doce. Assi/n pene­ tras em tua casa, qualquer peito de pássaro, cintilação de estrela, onde te esperum. Sem o tem po entre nós, os anos irradiam uma luz sempre presente.

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Herbais, 3 de Dezembro de 1982 uma outra ferida, um outro luto de animais, ou plantas, desponta no horizonte: os nossos vizinhos mais recentes desejam c om p rar o jar­ dim separado que, pelo nosso contrato, está incluído no arrendamento comercial da Casa, e dependências; o Augusto vai contestar, mas eu admito que ganhem o litígio e vejo que, neste ambiiente dubitativo se enraizzi a partida definitiva de Herbais e que, para o futuro, eu não quererei mnis plantar nenhum arbusto, ou árvore para mim; sempre que o nosso espaço, ou sèio, é am ea-!: çado, ou cobiçado, as plantas, ou os animais, são as vitimas; presumo que se fecha uma fase — a fase da imobilidade —, e que nos anos próximos seremos mar­ cados com o signo da passagem por lugares provisó­ rios; esta manhã estava, no entanto, inconsolável por aban­ donar à sua sorte os arbustos, quem me diz que não vão cortá-los, • i deslocá-los, dar-lhes uma importância secundária e um destino de joguetes do homem; e eu 108

seria privada do horizonte pontiagudo daquela pouca terra cm forma de proa; durante o sono desLa noite') admitira que era vizinha das raízes compadecentes de; Primus Triloba e, mais tarde, explicando a mim mesma i o prosseguimento de Lisboalcipzig, e o método que ia ; seguir em tal trabalho, tive o sentimento de que o jardim • que estava a perder, e em que eu no verão passado criara ; geometrias reflectidas em arbustos, se havia de transfor- ; mar em território, ou seio de um livro. O seio de u m ; livro ninguém o pode dominar ou destruir, nem eliminar | por crueldade, ou cobiça.

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Herbais, 6 dc Dezembro de 1982 Tem dois anos e meio c é de uma imensa beleza; comparando-o ao espaço, é mais espaço do que o es­ paço; os seus arbustos, e árvores, obedecem a uma plantação irregular mas têm uma ordem; o inverno dominando pela geada as ervas do chão, faz sobressair a sua parte aérea que ressoa nas minhas costas quando volto para casa. Os ladrões de jardins, que fazem do jardim? O jar­ dim fica cego para eles, ou são eles que fecham os olhos?. No dia em que a terra for trocada por cobiça, para que existirão páginas para este livro? levo comida à gata preta, e vou-me embora. Regresso, Ela assusta-se, mas logo sossega. — Não é nada — falo-lhe. — É o nada que eu sou. 110

Herbais, 13 de Dezembro dc 1982 nesses dias Lisboaleipzig era a única dirírbção a tomar, pedir a Bach e Pessoa que se entregassem à minha com­ panhia; eu tinha o opressivo sentimento de estar à janela sem nada ver, e que o meu grande esforço para encontrá-los tinha efeitos ridículos, senão contraprodu­ centes; a minha paciência dc viver em Herbais chegava ao fim, e era incerta a minha esperança de fundar um novo livro que correspondia a uma amhição que ultra­ passava talvez a minha medida: sentia-mc sem ouvidos, ou com ai inàos sobre eles para dominar as vozes que me chama\am para o largo, e para o êxodo; poderia cair exausta de escrever. Se eu pudesse produzir um som e s p e c ia l----------------------------------------------------- esta \ a reunido no jantar um grande número de caniores ou músicos inscritos no serviço da Capela: quando Aossê entrou ficou de pé, e cies julgaram estar dianle de um judeu pelo lacies claro, a barba, e a atitude marcante que acompanha a pertença às minorias; o pseudo-judeu era alto, e nunca tinha tido o projecto de aprender com Bach a música. Tmpressionava-o, no entanto, a ideia dc

que quando Bach morresse, o seu Órgão pereceria dc consumpção. Dc facto, tinha tido razões múltiplas para vir, todas cias dc igual valor e importância e, se as des­ crevesse, sabia que mataria cerce a sua vontade de ficar. Anna Magd^lena pôs mais um prato, e deu-lhe um lu­ gar à mesa, mas a sua intenção principal cra, vindo dc Lisboa, conhecer mais dados ainda sobre a abjccção que votava a si mesmo. Como separar a arte de acompanhar e de compor da arte de desaparecer? Sentou-se à mesa sob o seguinte estímulo guia-me a só razão. Anna Magdalena, ajudada por Johanna Catharina, m udou e distribuiu os pratos e, quando chegou a sobre­ mesa, ele ofereceu os bolos comprados na pastelaria. Bach, à cabeceira, emitia uma opinião que tinha a peito: — Deve ser possível ultrapassar também esse obstáculo. — Ali nunca se ouviu falar dc nenhuma impossibilidade — o que torna uma obsessão verdadeiramente bela —, e todos os músicos, sentados à volta do Pai, segundo o que pensov J^ossê, por muitos e numerosos que.fossem, tinham uma voz principal.

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Herbais, 14 dc Dezembro de 1982 esta noite, sempre que acordava, ouvia uma irase que, finalmente, exprimia com clareza os meus sentimentos particulares: aparelhar as velas. E fazia a seguinte per­ gunta: se sou, por natureza, um nómada, por que planto árvores e arbustos mal chego a um lugar, e depois desejo levantá-los do jardim, para levar comigo quem tem raizes? trabalho agora de uma maneira um pouco dispersa, obe­ decendo a impulsos, e a muitas ideias que se perdem; hoje, quando cremava aparelhar as \elas l* essa ordem alvoroçada me dava alenio para partir, r>emi que passar da fase dc estar consciente à de escrever requer um papel sempre à mao, c uma interrupção voluntária da_vida.quotidiana. No Hm, o texto reflecte, faz-me ade­ rir ao meu próprio intimo, e ao meu próprio caminho. Aparelhar as velas foi hoje o meu oráculo, instru­ ção dada ao espaço em que eu habito em Herbais, e onde faço “criação de perguntas”. Não é uma metáfora, é realmente a ordem de deslizar de Herbais — o eremité113

rio. A dor de o deixar, e a alegria de partir, ficaram cm equilíbrio; é uma época assinalada por uma experiência importante — de um lado, isolamento e abando­ no, do mesmo lado arrebatamento e transporte. O , “encarceramento" lem relações com as cenas fulgor cie que eu não suspeitava quais eram os elos. Aqui tivemos o ante-gozo do que era o deserto, sem sermos propriamente testemunhas oculares dò sol, da extensão seca, e da areia; deixei-me enternecer por este lugar despovoado, por estes habitantes que vivem nor­ malmente em sítios secos. Fulgor, tentação, e a sequên­ cia regular da incamunicabilidade. Neste ritmo gostaria de lançar os fundamentos de Lisboaleipzig.

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Herbais, 18 dc Dezembro de 1982 o que mc choca mais (ofensa que faço a mim mesma), nesta experiência dc isolamento, é a explosão súbita do ódio. Fixa-se em seres pré-tc.\(o quase inocentes, que, de repente, me incomodam, se levantam como inimigos. Sou tentada a crnbrenhar-me neles, a voltá-los do avesso, e a afastá-los fugindo para um novo buraco; e. esta noite, sem conseguir consertar o meu osso fractu­ rado. cncontro-me no parapeito da janela dos Bach; a tentação de vê-los na sua própria sala de jan tar é imensa, e luto entre o interior e o exterior, sinto-me consciência prisioneira dentro do vidro. Tenho necessi­ dade de fazer cortesias a Fernando Pessoa sentado à mesa, e de erguê-lo numa transparência que corre e brinca. Tenho sobretudo vontade de penetrar no quarto, e de abrir a porta da capela onde está o órgão; tenho, sobretudo, vontade de passar através do vidro preambular em que me encontro.

Fico, na noite que dá início ao inverno, e quase sem o sentir, a odiar esta atenção permanente de criar sem lima única vibração que me guie. O órgão: aqui, o mandatário é o órgão. Eu sou uma corda, não um ornato, e todos nós fazemos parte dele. Com Aossê. na casa dor '^ c h entrou uma certa visão do mundo de que fcu sou o representante. Introduzi-me no poder de manipular a ausência de quantidade, e estou presente. o órgão é um devorador, e quando Bach tocou pela primeira vez, à nossa frente, e servindo-se de mim como uma das cordas, Aossè constatou que ele tinha os dedos vermelhos, sobretudo nas pontas — e custava a suportar o seu ar de bondade, muito grato e agradecido porque ele tinha vindo. Aossê não era o nome colectivo dos quatro exercí­ cios da escrita; más era aquele que pensa quando viaja, e por isso se retirara para trás, disposto a entrar em Leipzig, c a abandonar por si mesmo Lisboa — tal como ela fora no momento precedente.

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Herbais, 25 de Dezembro de 1982 Procuro uma mulher, uma nova figura feminina, pois agora vejo que era ela que a metáfora continha. Esquecidas as palav-ras, não quero que a figura desapa­ reça, deixe de filtrar-se no escuro. É uma figura que canta diferentes massas de água, e avança sobro uma floresta de cabelo, í: noite e há sol no lugar da lua. Encontro o que procurava, sempre esquecida. A figura pcrcurre seu corpo e di/ que me visita sem finalidade, à beira de calar-sc c de exprimir-se. Sigo seu rasto sem mover-me, com a mão sobre os olhos, e os olhos sobre a boca. Procuro seu nome na recordação, todos que pronuncio derrubam sua imagem que foge para diante. Estou vestida de branco e de lã, para purificar-me, o cordeiro, depois de ressuscitar três vezes, não morreu para sempre. Diz-me que se chama Infausta, que é muralha, e eu o guardo na última linha da voz. 117

Herbais, 26 de Dezembro de 1982 Uma figura feminina que quer entrar, Infausta, um espirito dc perseverança e mansuetude. Modo sorri­ dente, soube coser como quem sorri, Deixou inúmeros bordados e rendas na biblioteca da casa. Abrindo as páginas do" livros procurava ideias e desenhos para seus panos e c.s^erimentava, com suspiros, o sopro de suas mãos. Ê uma jovem que abre as portas sem ruído, e traz consigo o silêncio como um véu de ideário. Senta-se com vastas escritas sobre os joelhos, e sonha com a morte que a trará aqui. Fica olhando em frente vendo a opacidade, quis encontrar-me hoje por absoluta necessi­ dade de espírito. Seuto-me a seu lado quase chorando de tépida alegria, peço-Ihe que me deixe ler suas rendas, que me empreste suas mãos onde se acolhem cães, galos, animais, c plantas entre eles. Há dias encontrou-mc num sonho ('), estava eu num quarto baixo c aberto, a olhar uma raposa e um lobo e, ao escutar sua voz, disse: “Se eu pudesse vós vivereis sempre aqui sem encon­ trar violenta morte, nem maus tratos na hora seguinte”. (') Sonho do dia 17 de Dezembro,

llí,

Herbais, 31 tle Dezembro de 1982 Vejo avançar uma rapariga. Vcsliu-se dc saias com­ pridas e dc cintura estreita. Caminha por uma estrada incorruptível, ladeada de laranjeiras da altura de sicomoros. Uma luz de fundo a acompanha, a antecede na sua passagem tjuc deixa os que vêm às portas estupccfactos. No rosto tem uma máscara, e o corpo articulado de madeira parece ser destinado ao lançamento nas chamas. É verão, ou uma estação semelhante, desconhecida destes habitantes mas não de Infausta; por isso, na curva do caminho está plantada uma árvore. O sicomoro. Cai inteiro, separa-se-lhe o tronco dos ramos. Os ramos incendeiam-se, recolhem os verdes na chama, e o fogo não tem fumo. Consumido o fogo desceu para o outro lado do caminho, sentar-se à beira de Aossê, com cjucm para sempre a deixo, nesta língua.

Ilcrbais, 28 de Janeiro de 1983 ------------------- parlo para Portuga! para uma ambiente falto de alegria, ou hostil; o vale dc Herbais, onde eu pretendo exercer a fundo capacidades e sentidos, mostra-me hoje as suas maiores perspeclivas, e por isso lhe chamo vale, porto hospitaleiro e lugar receptivo; parto escrevendo através da língua portuguesa, tendo deixado por consciência o sol e a água sempre latentes no terrenho de Herbais; aqui imaginei, sob a forma dc Pessoa, um único rio cósmico que não se quebra em fronteiras c vi-o, sem perplexidade, advir ao real; por essa ocasião, Icmbro-me de ter sentido o desejo de que não haja pr-i^s que sejam como guardas de matilhas. No entanto, voli partir de Herbais já com a experiência do destino p o r escrever tendo provido, por ora, meu barco da tripulação necessária. Tudo o que disse foi fundado no conhecimento obtido pela prática, reali­ zado. Não é uma mistura de realidade e sobrenatural, conforme li há dias. 120

...Infausta é o heterónimo feminino dc Aossê - a chave da porta; e eu tenho a sensação de que o que eu escrever rola sobre uma densidade muito mais medonha e vasta do que o meu próprio cu pessoal. Presente mente ando aflita por não conseguir captar a arte especifica de Bach — a música. Passei a minha vida a ouvir música, e agora que Aossê silencioso escuta Bach, penso que nada ouvi. Colhi no jardim roubado um ramo de salvia. Refiro-me ao jardim que não pude manter no lote quando comprámos a casa. Já lhes perdoei o rapto. A minha única imposição para perdoar-lhes era que dei­ xassem as árvores c os arbustos desenvolver-se em paz, e que não fossem devastados os quadrados de triângulos e intuições que ladrilhavam a sua amplitude. no acroporlo, um pouco mais tarde: o Aeroporto como exercício; parto às cinco horas, e N n u cm face da /ona crepuscular do exterior. Re­ conheço-me menos deprimida porque me sinto com capa­ cidade para esperar, e escrever;

a doença da mae reflecte a nevrose de toda a minha vida; posta sobre um cavalo, que Tazer senão equilibrar-me?; não esperava nunca vir a empregar esta palavra mas para mim cia não tem um sentido depreciativo — é uma das asas possíveis do meu destino; sem um certo número de incapacidades, teria ficado sem luz própria, longe desta vigilia.

Sim, há algo que me ofcrcce constantemente trabalho; que não deixa iludir-se sobre as minhas-forças nem pelas suposições que faço a respeito da minha vida. É da ordem da consolação saber que nunca falha. no ar

em terra era noite, subindo ao céu penso nos continentes do hemisfério norte, em quem vive normalmente em lu­ gares muito Trios porque o imenso resto do dia clareava ainda, e os efeitos de luz que nós penetrávamos era cheio de lacunas; acidentes geográficos celestes de todas as proveniências desfilavam monotonamente como sc eu impulsionasse um realejo com manivela; e como era perigoso estar num espaço envolvente tão distante tive um sobressalto certamente comum a um grande número de passageiros, e fiz uma invocação entregando-me ao espaço, ao tempo, e ao movimento; o voo suscitava-me muitas ideias, em breve me senti firme entre cavidades, formas e dimensões, pesos e alturas de que se desco­ nhece o fundo; eu vinha para fazer face a problemas familiares, disposta a uma grande humildade, e aquele panorama em que tudo se pode conceber maior ou menor, lembrou-me o estudo da geografia aplicado à psicologia. Nada seria igual ao que fora nas relações parentais, eu esgotara a parte com que tinha de contri­ buir para que se mantivesse, no lar, a coluna de fumo.

de facto, sentia-me protegida por todo este domínio antiquíssimo do dealbar do dia ao crepúsculo; a certa altura estendia-se por detrás de nós um mantel em que pareciam estar desenhados dorsos de carneiros — era o 122

último lugar cm que cu estivera, ro ritmo por sonho.

com um primei­

Hoje, cm Herbais, custou-me abandonar os Dicio­ nários, os galos, a imagem de Jade que já não se encon­ trava presente. É uma contradição amar Herbais, e querer afastar-me mas, por vezes, sou só eu, civilmcnte. nunca devo referir no livro o nome de Pessoa; os nomes que não são os do autor são atribuídos em função do lugar que ocupam na descrição minuciosa da casa, no friso, em forma de mesa, por cima de uma porta; na entreluz, como quem diz o entresser; na tabaqueira cm prata, com um vaso pouco fundo; devia viajar mais vezes, romper porções de território e, sobretudo, sentir a brisa do movimento; as viagens são momentos abertos a qualquer estado afectivo que, cm união com a inteligência, tevam longe a estrutura de um livro;; icmbro-mc de uma viagem de comboio ParisBru.xelas. cm que nevava. A neve comove-me, e faz-me arguta — tudo me parece muito antigo, ou só para ser usado mais tarde; eu olhava através sem outra razão além do próprio ver; mas subitamente serviu-me de prisma óptico, polarizou-se a luz, e empreguei os meios, ou esforços necessários, para chegar a tocar de leve Da Sebe ao Ser.

os heteróminos ocultam Infausta e Aossê; Bach é o defi­ nido, sobre quem já recaiu determinação; mesmo o co­ nhecido. Penetração, meu acesso à sua música. A arte musical, o que é?

1 de Fevereiro de 1983 — Lisboa Minha mãe recebcu-nos còm imensa alegria e sere­ nidade. À r ^ d i d a que o velhò a molda, há uma face nova, de luminosa bondade, que aparece. Augusto fotografou-a várias vezes, porque quer guardar a ima­ gem de alguém que se volla para a morte, sem perder o pé — e que nos deixa a sua face. Christine, antes da nossa partida, tinha-nos enviado um texto de Levinas, precisamente sobre o desniunido essencial da nossa facc. Lcmbrci-me, muito lon­ ginquamente, de um outro texto de Borges que hoje, no geral mc parece — só a palavra bíuff se adequa. Junto, a acompanhar, alguns poemas persas e, sobretudo, um poema (creio que) de Al-Hallâj, que ele dirige à sua própria consciência e, que eu verti em português, traduzindo espontaneamente “oh conscience de ma conscience” por “ó volume do meu som”, cuja continuação aqui deixo; “que te fazes ião ténue c escapas à imaginação do próprio medo. E que evidente ao mesmo ti^npo, e escondido, transfiguras tudo, por 124

lua própria iniciativa. Se eu te pedisse que me perdoas­ ses — a li que cu loco — seria esqueccr-me da lua ubiquidade, mostrar-te as minhas dúvidas quanio à nossa união, mostrar-me indeciso, no momento em que me fazes teu porta-voz. Tu, que és a reunião de tudo, não és para mim um outro mas eu mesmo. Como pedir-le perdão então?”. Já à noite, olhando através das vidraças da casa de minha mãe os pontos de luz que bordam o Tejo (que para mim será sempre o Tejo-rio dc Na Casa de Julho e Agosto quando enterram nele a imagem dc M iimzere Alisubho aponia “esle é o mar”), me apareceu a vinda de Musica até junto de Bach. Eu não queria afinal saber o que é a música, eu desajaria vê-la. Vê-la com os olhos de Bach, como se eu ali estivesse sentada como cie, a olhar o Tejo-rio.

i.cntaniente. a noite circula, t’ cai. Sento-m e inten­ cionalmente em frente da janela para a ver cair por detrás da cortina de renda. Colocaram-na hoje. A chama da vela divide a voz que cauta. O espirita di> mal passa. 1orna-me inteligente e lúcido, o espirito do mal fa z parte da vida. Tuu ténue a renda, tão ténues us cama­ das telúricas que percorro, chego ao sorvedouro eni que era nada. Nem os pássaros existiam, nem a primeira asa se estendera, Bem e M al cresciam como gémeos na mesma força. Estou no lugar da planta dentro do germe, a chama ilumina o Volume, criação arcaica, o som faz face ao ar, o ar fa z parte da árvore genealógica. Sentado nesta cadeira, estou sentado debaixo da árvore que. naquele tempo, talvez fo sse arbusto do paraíso. Minha 125

imagem Música está sempre presente diante de minha boca. Sua silhueta se recorta no pónto mais íntimo da casa. Jade, a meus pés, dorme, e recolhemos nosso espi­ rito no que dizemos, e no ciciar breve que não nos abandona: — Tinha-te dado uma haste metálica e flexível, com um ornato na ponta, igual a uma que possuo. — A o recebê-la, julguei que desejavas a minha morte. — Música pousa a cabeça no colo como quem borda os cabelos. Herdou o gesto de Mimtzer, seu sorriso. O amor nos abandona mas regressa a cavalo, entra na sala e põe a pata na vela. Peço a Música que se levante e me acompanhe, pois desejo ver através da cor­ tina arrendada, e na noite, a percussão da chama. Esguia e fulm inante, sob a pata que em vão a esmaga, e nos percorre o corpo. Música não fa z nenhum movimento, sua cabeça tornou-se singular, mais inteligente que a transparência do vestido. Saio sozinho com a voz atrás de mim, e o peso antiquíssimo da casa que me chama, e nos reflecte sempre. No principio, que principio?, todos os seres estavam reunidos na mesma vastidão dem o­ níaca da treva. Sexo e alma, mãos epés. patas e cérebro, ouvidos e m udez se encontravam enterrados sem estar m ortos como se crê nos mortos. Esperavam na ilusão da vida. Música adormece agora. aterrorizada com a enorme so