Tralha doméstica em meados do século XIX - Reflexões da emergência da pequena-burguesia do Rio de Janeiro


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Tralha doméstica em meados do século XIX - Reflexões da emergência da pequena-burguesia do Rio de Janeiro

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LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 7:205-230, 1989.

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Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 1:205-230, 1989.

A TRALHA DOMÉSTICA EM MEADOS DO SÉCULO XIX: REFLEXOS DA EMERGÊNCIA DA PEQUENA BURGUESIA DO RIO DE JANEIRO Tânia Andrade Lima* Marta Pereira R. da Fonseca** Ana Cristina de O. Sampaio** Andrea Fenzl-Nepomuceno*** António H. Damasio Martins****

Introdução A arqueologia de espaços domésticos, ao tentar recuperar atividades cotidianas, rotineiras e anónimas de grupos humanos, penetra em um dos domínios mais informativos da cultura, contribuindo para o conhecimento de aspectos não conscientes, e por isso mesmo altamente reveladores da estrutura de uma sociedade. Trabalhando basicamente com o lixo, com aquilo que foi considerado imprestável e, por esta razão, descartado, a arqueologia tenta recompor a trajetória de vida desses elementos materiais, em busca dos padrões passados do comportamento humano que permitiram a sua criação, seleção, aproveitamento, descarte e eventual reciclagem, até o seu abandono final. A feição sócioeconômica de uma população transparece claramente em seus dejetos e a variabilidade dos refugos domésticos reflete, entre outros aspectos, diferenças entre classes sociais. A análise de alguns contextos habitacionais e depósitos de lixo existentes no Rio de Janeiro em meados do século XIX, entre as décadas de 20 e 70, vem permitindo constatar, a partir da cultura material, uma das peculiaridades da formação social brasileira: o surgimento de um mo-

(*) '(**) (***) (****)

Bolsista CNPq/Pesquisador. Arqueólogas 6? DR/SPHAN-FNPM. Estagiária 6? DR/SPHAN-FNPM. Bacharelando em Arqueologia FINES/RJ.

do de vida burguês, antecedendo a instalação de uma ordem burguesa propriamente dita no país (Pereira de Queiroz, 1978:56-57). No início do século XIX, à medida que a Europa Ocidental vive o processo de industrialização e desenvolvimento capitalista, a burguesia avança progressivamente, impondo seus valores. O Estado Absolutista Português, ao renunciar no século anterior a um projeto nacional de industrialização, com a assinatura do Tratado de Methuen, fica fpra desse processo, embora integrado ao capitalismo emergente através do comércio. Deslocando-se para o Brasil em 1808, traz consigo a ideologia burguesa vigente no ocidente europeu, assistindo-se assim ao transplante de um modo de vida sem qualquer conexão com a sociedade que o produziu. A chegada da corte determina, portanto, importantes transformações nos valores da colónia. A abertura dos portos às nações amigas possibilita uma grande diversificação nos bens de consumo, até então restritos, em virtude das práticas monopolistas e dos entraves à sua produção no país. O rompimento do pacto colonial traz um forte incremento à atividade comercial e substanciais mudanças nos hábitos de vida da população. Alicerçada nas relações escravistas, a sociedade brasileira à essa época tem como classe dominante os senhores de terras, e, como classe subalterna, os escravos, com uma camada intermediária apenas incipiente (Sodré, 1985:23), em grande parte à margem do sistema produtivo e sobrevivendo à custa de pequenos expedientes 205

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(Cândido, 1970), em um país de estrutura essencialmente agrária. É por volta de 1820 que tem início o desenvolvimento urbano, notadamente nas cidades portuárias, pontos de escoamento da produção agrícola e das matérias-primas exportadas, bem como de recebimento e distribuição das manufaturas importadas, sem que se tenha processado ainda a industrialização no país. Consolida-se a vida citadina no Rio de Janeiro, capital do Império e centro do poder político e administrativo. Ê rompida a dominação colonial, com a emancipação, sendo necessária uma rápida expansão da administração pública, para atender às necessidades do novo Estado. Ao longo* desse processo vai progressivamente crescendo, ganhando força e influência essa camada intermediária, pequeno-burguesa, identificada com os valores de uma classe dominante externa, a burguesia europeia, e assimilando seus padrões de comportamento. O processo de urbanização é acelerado em meados do século, graças à implantação das estradas-de-ferro e à transição da mão-de-obra escrava para o trabalho livre, com a interdição do tráfico. Numa escala social até então pouco matizada aparece o desejo da diferenciação e da ascensão, graças à crescente diversificação de atividades, marcando o surgimento de novos comportamentos sociais. Essa pequena burguesia prematura torna-se cada vez mais expressiva numericamente, composta por profissionais liberais, pequenos comerciantes, servidores públicos, civis e militares, artesãos,-religiosos, letrados, pequenos proprietários, etc. A frivolidade, a afetação, o requinte, o gosto pelo supérfluo, ao arremedo do estilo europeu, são introduzidos no cotidiano do Rio de Janeiro. O interior das residências, antes singelo e restrito aos elementos mais essenciais, ganha uma nova feição nos revestimentos das paredes, no mobiliário, nos adornos e objetos de mesa; os cuidados pessoais passam por um maior refinamento, tanto no vestuário, quanto no trato dos cabelos, da pele, e da própria saúde, impulsionando fortemente o comércio e o setor de prestação de serviços. A arqueologia de espaços domésticos, ao operar diretamente com a materialização desse 206

comportamento, recupera suas evidências diretas. Dentro dessa perspectiva, buscando sobretudo resgatar e comprovar o modo de vida dessa classe, de médio poder aquisitivo, foi analisada, comparativamente, a tralha doméstica proveniente dos seguintes sítios do Rio de Janeiro, inseridos nessa faixa cronológica: — Casa dos Pilões, no Jardim Botânico. — Ilha do Major, na Baía da Ribeira, município de Angra dos Reis. — Paço Imperial e Antigo Cais da Praça XV, ambos no centro da cidade. Usos e costumes cariocas no século XIX Ao desembarcar no Rio de Janeiro, em 1808, a corte portuguesa encontrou uma cidade de aspecto sujo, enlameada e mal cheirosa, com a população concentrada no Morro do Castelo e arredores, evitando as partes baixas, invariavelmente inundadas com as chuvas. Pouco a pouco açudes e pântanos começaram a ser aterrados, numa tentativa de melhorar as condições higiénicas locais, porém "permaneceram" ainda, por um tempo considerável, inúmeros focos de água estagnada responsáveis pela insalubridade reinante. Até 1870 não houve praticamente nenhum serviço de limpeza pública, nem varredura de logradouros. O lixo era simplesmente atirado nos quintais das casas e nas ruas, que "... por baixas, mal calçadas e sem declive, estão sempre cobertas de lodo formado por águas gordurosas e substâncias que ali apodrecem, ali se cobrem de uma camada esverdeada, ali exalam partículas deletérias ..." (carta de um leitor ao "Jornal dos Debates Políticos e Literários", de 28 de junho de 1837, p. 62). Os dejetos eram também jogados nas praias ou lançados ao mar, transformando estes locais em áreas de despejos, imundas, impedindo passeios ou banhos de mar. Aí eram atirados animais e negros mortos, restos de alimentos, toda a sorte de objetos imprestáveis, quebrados, e matérias fecais. Estas matérias eram acumuladas nas residências, em grandes tonéis de madeira, onde esvaziavam-se os urinóis. Guardados normal-

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mente sob as escadas, esses barris ou "tigres", tal como foram apelidados pela população, eram despejados geralmente após o entardecer, pelos escravos. Era frequente o seu "estouro" nas ruas, quando transportados demasiadamente cheios, sendo lá mesmo abandonados, infestando as vias públicas. Todas as tentativas para a criação de serviços sistemáticos de limpeza urbana foram indeferidos pela Câmara Municipal nesse período (Aizen et alii, 1985). Apenas ocasionalmente eram contratados homens para a limpeza das ruas, praças e praias, os chamados galés, sendo a remoção de dejetos feita, em geral, pelos próprios moradores. Em 1874 foi feito um contrato para limpeza das praias e foi somente em 1876 que, afinal, teve início um serviço efetivo de limpeza e irrigação, sendo contratada para esta finalidade a empresa de Aleixo Gary. Em meados do século XIX, portanto, os depósitos de lixo da população carioca eram, fundamentalmente, a orla marítima, as ruas e os quintais das casas. Todavia, não obstante a imundície da cidade e o fato de as casas cariocas serem desprovidas, até meados do século, de água encanada e esgotos, a população mantinha cuidados^eom a higiene pessoal, possivelmente em virtude da influência indígena. A água era apanhada pelos escravos aguadeiros nas bicas e aquedutos públicos, consistindo o asseio em abluções feitas em bacias ou baldes, não raro perfumadas com essências naturais. Não há referências ao uso de escovas de dentes antes da chegada da corte, ao que tudo indica um elemento introduzido por ela. Com efeito, a chegada de D. João VI e sua comitiva, em torno de 15.000 pessoas, na então pacata Rio de Janeiro, que contava à época com cerca de 600.000 habitantes, marca uma nova e decisiva etapa na vida da cidade. As transformações ocorridas a partir daí estão diretamente relacionadas à abertura dos portos às nações amigas e aos tratados de aliança e comércio assinados com a Inglaterra, em 1810, garantindo, entre outros benefícios, a absorção de seus produtos pelo mercado brasileiro, em condições mais favoráveis que as da própria metrópole (Lobo, 1978). Uma crescente variedade de produtos, sobretudo ingleses, inunda o comércio do Rio, avi-

damente consumidos por uma sociedade que pulsa com um novo ritmo. Esses bens de consumo, até então restritos às elites rurais e desconhecidos pela maioria da população, tornam-se acessíveis às novas camadas urbanas. A ânsia de copiar os costumes, o bom gosto e o requinte europeu é canalizada para a decoração de interiores, para o vestuário, para o uso de acessórios e cosméticos, em grande parte inadequados para o clima tropical. A partir de 1815 e das disposições do Congresso de Viena, o Rio de Janeiro passa a ser sensivelmente mais procurado por comerciantes franceses, sobretudo" após 1818, marcando fortemente a sociedade carioca e refinando as suas maneiras de vestir, pentear, comer e se comportar. Os ingleses instalam-se na Rua Direita (atual Rua l? de Março) e os franceses, um pouco mais tarde, estabelecem um comércio varejista nas ruas do Ouvidor e dos Ourives (atual Rua Miguel Couto), já em 1840 quase totalmente tomadas por lojas de moda. São introduzidos tecidos finos, como sedas, tafetás, rendas e bordados; jóias, leques, diademas e pentes para os cabelos, estes últimos indispensáveis à moda dos coques de palmo e meio de altura, os chamados "trepamoleques"; perfumes, cremes, óleos e loções para o cabelo e para a pele tornam-se imprescindíveis à toalete, tanto feminina quanto masculina, refinando a aparência da população urbana. Os interiores das residências, antes despojados, recobrem-se de papéis de parede; cristais e vidros, faianças e porcelanas são incorporados ao acervo doméstico; os pesados móveis coloniais são substituídos por mobiliário francês e inglês, e o piano torna-se peça fundamental nos lares cariocas. O comportamento social adapta-se às novas condições, a maneiras à mesa modificam-se. Anteriormente só a faca era utilizada, com o seu uso limitado aos homens, chefes de família. Comia-se com os dedos — o polegar, o indicador e o médio — ou sorvia-se o alimento, em geral pastoso ou líquido, diretamente das malgas. As elites dominantes possuíam garfos, facas e colheres de prata, porém sempre guardados, sendo considerados mais como investimento do que como uten207

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sílio. Gradativamente os talheres são introduzidos nos estratos pequeno-burgueses, sendo a utilização simultânea do garfo e da faca conhecida como "comer à inglesa", marcando bem a origem do costume (Cascudo, 1983; Luccok, 1975; Freire, 1951). A Inglaterra introduz no mercado brasileiro a sua faiança fina, produzida em larga escala, numa faixa de preço acessível à população de médio poder aquisitivo. Numa alternativa entre a faiança portuguesa, grosseira, e a porcelana, comercializada em grande quantidade pelos-chineses, no entreposto de Macau, o novo produto conquista o mercado não só pela sua qualidade, mas sobretudo pela variedade de padrões, que iam da chinoisçrie a cenas bucólicas de paisagens inglesas, modificando a aparência das mesas e aumentando o número de utensílios necessários à refeição. Os hábitos alimentares, até então calcados na culinária portuguesa, adaptada aos géneros aqui disponíveis, muitos dos quais absorvidos dos indígenas, consistiam em caldos, cozidos, mingaus, feijões, farinha de mandioca, compotas de frutas regionais, canjicas, melados, arroz-doce, bolos e doces à base da goma de mandioca (Luccok, op. cit; Cascudo, op. cit). Por volta de 1820 e 1830 chegam ao Rio os italianos e franceses oferecendo seus serviços de confeiteiros e sofisticando a culinária local. Em 1831 instala-se a primeira sorveteria da cidade. Importa-se maciçamente azeites, frutas secas, nozes, manteigas, queijos, especiarias, doces, vinhos, licores, cervejas, águas minerais, etc. Alimentos já conhecidos ganham uma nova feição, como, por exemplo, o chá; anteriormente considerado como remédio, ganha o status de bebida elegante, graças à convivência com os ingleses, sendo entretando sorvido à moda chinesa, em tigelinhas. Da mesma forma a galinha, tida como alimento de convalescentes, é consumida pela nobreza e classes de médio e alto poder aquisitivo (Freire, op. cit.; Silva, 1984). Os valores das classes dominantes são rapidamente absorvidos pelas novas camadas urbanas (Viotti da Costa, 1987), que pouco a pouco tentam ascender socialmente. Conforme registra Ernest Ebel, em 1824, "...entre os brasileiros há 208

uma nítida separação de classes e a nobreza mesma não tem quase contatos com a burguesia, posto que aquela já não conta com tanta gente de importância ou que se destaque pela riqueza e pelo fausto. Pelo contrário, segue o estilo da Corte, vivendo modesta e simplesmente. A classe comercial, em via de regra, é pouco considerada, porque nesse meio não imperam a educação ou a cultura; suas exigências não vão, por certo, além do ganha-pão. Sem embargo, já existem algumas exceções de apreço e conheci diversos brasileiros que mandam seus filhos a escolas e universidades alemãs" (Ebel, 1972:187-89). Tais "exceções de apreço" em poucos anos tornam-se a norma e as classes médias consolidam a sua posição na formação social brasileira.

Os sítios pesquisados e a tralha recuperada a) A~Casa dos Pilões Localizada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, vem sendo objeto de uma pesquisa interdisciplinar desde 1985, para atender ao projeto de sua restauração. Tem como proposta fundamental estabelecer os níveis estratigráficos correspondentes às ocupações ocorridas, com a finalidade de resgatar informações que possam contribuir para a reconstituição da história da casa. As escavações efetuadas permitiram constatar a ocorrência de leis ocupacionais, representados por seis camadas estratigráficas (figura 1). Aspectos estruturais da primeira delas, a Camada I, por suas características morfológicas e locacionais, evidenciaram vestígios que possibilitaram a seguinte afirmação: no espaço/tempo que lhe é correspondente, funciona no prédio um sistema mecânico de produção, onde a força-motriz utilizada foi hidráulica, através da instalação de uma roda d'água. Esta afirmação, associada aos resultados da pesquisa histórica, permitiram concluir que esta camada corresponde à ocupação da área por uma oficina de compactação de pólvora. A Casa dos Pilões fazia parte do Complexo de Oficinas da Real Fábrica de Pólvora, instalada na fazenda de Rodrigo de Freitas, por D. João VI e sua datação está definida entre 1809 e 1831, período do seu funcionamento neste lo-

r S & g- H CASA DOS PILÕES — J. B. Perfil da parede oeste do vão da roda d'água — 5.4/p. 57 150

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Sedimento terroso c/ entulho moderno

Camada Arqueológica III

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Aterro da camada III

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Camada Arqueológica II

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fi Calha de Madeira em decomposição

Parede do vão da roda d'água (cam. arq. I)

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cal. Informações resultantes da pesquisa histórica demonstram que o conjunto era formado por 16 prédios ocupados pelas oficinas, 10 prédios residenciais, além do palacete (antiga sede da fazenda), destinados a funcionários da fábrica, e ainda por cerca de 86 arrendatários na área da fazenda, desenvolvendo atividades paralelas como olaria, fabrico de cal, plantio de feijão, processamento de madeira, etc. A leitura dos vestígios da Camada II permitiu perceber alterações no tamanho e feitio do prédio no espaço/tempo que lhe é correspondente, o que é confirmado pela "Planta Cadastral da Fazenda Rodrigo de Freitas de 1844" (Arquivo Cidade do Rio de Janeiro, Seção de Iconografia, M3 G14 N? 8. Até o momento, entretanto, não foi possível determinar o tipo de atividade desenvolvida no prédio durante esta ocupação. Sabe-se apenas que está situada cronologicamente entre 1831, data de desativação da fábrica de pólvora, e 1864, data-base da Camada III, quando o prédio sofreu uma reforma para atender aos interesses do Imperial Instituto de Agricultura Fluminense, sob a orientação de Cari Glasl. QUADRO CRONOLÓGICO DA CASA DOS PILÕES

1962 1937 1932 1864 ? 1809

Camada VI Camada V Camada IV Camada III Camada II Camada I

Museu Botânico Residência Kuhlman Reforma Campos Porto Imp. Inst. Agric. Fluminense ? Oficina de Pilões

Os vestígios arqueológicos resgatados na Casa dos Pilões procedem de aterros que cobrem as Camadas I, II e III, o que caracteriza este material como entulho, tratando-se provavelmente de lixo proveniente das unidades habitacionais que existiram nas cercanias, anteriormente referidas. Aí foram reconhecidas três categorias: restos de obras, lixo industrial e doméstico. Entre os restos de obras foram recuperados cravos, pregos, argolas, dobradiças, chaves, ferrolhos, ganchos, puxadores, aldrabas, cadeados, fechaduras, amoladores, chaves inglesas, azulejos, lajotas, tijolos, pedras, telhas e vidros, O lixo

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industrial consistiu em engrenagens, rodas dentadas, aros, peças de encaixe, pinos, parafusos, argolas, ganchos, correntes e cintas. A tralha doméstica propriamente dita compõe-se de utensílios de mesa e cozinha (em louça: pratos, pires, xícaras, malgas, travessas, tampas, potiches, bules e potes; panelas de ferro, vasilhames de cerâmica, garrafas de vidro e grés para bebidas, taças de vinho, talheres), restos alimentares (ossos de animais), enfeites de casa (bibelôs, jarrinhas, potinhos, etc.), itens de vestuário (fivelas de cintos, botões), produtos de higiene, toucador e farmácia (escovas de dentes, pentes, travessas de cabelo, frascos e potes de cosméticos, perfumes e medicamentos), utensílios de costura (tesoura, dedal), brinquedos (bolas de gude, soldado de chumbo, miniatura de louça para boneca), adornos (correntes, berloques, medalhas, contas), artigos de escrita (pena, cabo de pena, lápis, porta-grafite com grafites, carimbo, potes de tinta), cachimbos de barro, ferraduras e moedas. O material utilizado nesta pesquisa é proveniente da camada intermediária entre a I e a III, ou seja, pode ser situado cronologicamente entre os anos de 1831 e 1834, e passível de ser atribuído às famílias dos funcionários ou dos arrendatários que residiam na área.

As louças Entre os fragmentos de louça recuperados, faiança fina, em sua maioria, e porcelana, em pequena proporção, foi possível proceder às seguintes identificações, com base em Coysh & Wood, 1982-84; Godden, 1984; Brancante, 1981; Battie & Turner, 1982; Jenkins, 1981; Manuel de Ia céramique européenne, 1987; Lês poteries-faiences porcelaines européennes, 1983; The Knopf Collector Guide to American Antiquities, 1983. a) Em faiança fina: 1) Padrão "dosPombinhos"ou "Willow Pattern" Faiança fina inglesa, do período conhecido como Chinoiseríe. O padrão é derivado originalmente dos chineses e fez sua aparição na Europa

LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 7:205-230, 1989.

entre 1800/1815, atingindo posteriormente uma estandardização. Foi extremamente popular na Inglaterra, gerando uma lenda e um soneto sobre o motivo. Até 1880 foi fabricado por 54 estabelecimentos cerâmicos ingleses. Apresenta variações de pasta, esmalte e tonalidade azul. Foi também fabricado nas cores verde e rosa, esta última em Maastricht, Holanda, por Petrus Regout (Foto n? 1)

pela produção de louça em lustre rosa e pela policromia, em meados do século XIX. O tipo de decoração foge ao estampado, sendo pintada a mão, utilizando como temática flores estilizadas. Trata-se de uma louça básica, vinculada a serviços de chá e café, sugerindo uma alternativa entre a faiança fina branca ou creme, e a estampada em azul. Foi produzida entre 1820 e 1840 (Foto n? 5).

2) Padrão "Italian Scenery" Faiança fina^ inglesa. Este padrão foi lançado pela Leeds Pottery, nas cores azul e sépia. Encaixa-se no período de 1815 a 1835, durante o qual houve uma grande expansão na produção da faiança fina inglesa, justamente com a introdução de novos desenhos. Nesta época desenvolveu-se um culto ao pitoresco e a maioria dos ceramistas passou a designar seus padrões como cenas metropolitans, vistas britânicas e cenários antigos (Foto n? 2).

6) Padrão "Borrão Azul". Faiança fina inglesa. O termo descreve um tipo de estampado em azul, -onde a tinta escorre dentro do esmalte, produzindo um aspecto borrado ou um efeito de halo. Este resultado é provocado pela introdução de produtos químicos, como o óxido de cálcio ou cloreto de amónia, dentro do forno de vitrificação. Foi introduzido na Inglaterra entre 1835 e 1845, sendo popular por toda a época vitoriana (1837-1901), particularmente para a exportação. Foi fabricado por vários ceramistas, com motivos em chinoiserie, flores e paisagens clássicas (Foto n? 7).

3) Padrão "Milkmaid". Faiança fina inglesa. Trata-se de um padrão lançado por Josiah Spode, por volta de 1814, mostrando uma moça ordenhado uma vaca, em um campo com carneiros, apresentando uma borda floral. O mesmo padrão foi adaptado por outros ceramistas, como por exemplo Davenport, em aparelhos de chá. Foi também copiado pela Don Pottery (1790-1834). Observa-se que a prática de copiar foi muito comum entre os ceramistas ingleses, até 1842, quando surge o copyryght (Foto n? 3). 4) Padrão "Blueor GreenEdged". Faiança fina inglesa. Caracteriza-se pela decoração incisa limitada apenas às bordas, onde é aplicada uma pintura em tons de azul ou verde. O período de sua fabricação está entre 1780 e 1830, sendo que por volta de 1800 já estaria sendo exportada para a América do Norte. Dada a sua simplicidade decorativa, vincula-se o seu uso a pratos de cozinha, de acordo com Jenkins (1981:55) (Foto n? 4). 5) Padrão "Policromo". A origem desta faiança fina aponta para a região de Sunderland, Inglaterra, caracterizada

7) Padrão "Athens". Faiança fina inglesa, em borrão azul. O cartucho foi um recurso utilizado pelos ceramistas para estamparem, de forma decorativa, o título do padrão, o nome do fabricante ou iniciais. A palavra "Athens" designa um padrão, provavelmente fabricado por John Rogers & Son, entre 1831 e 1842 (Foto n? 8). 8) Padrão "Floral". Faiança fina inglesa, fabricada por Copeland & Garrett, entre 1833 e 1847. O padrão floral foi muito popular na Inglaterra, acompanhando muitas vezes a estamparia utilizada em papéis de parede para as residências. Os pioneiros neste padrão foram Wedgwood e Josiah Spode, entre 1759 e o presente, e 1770/1833, respectivamente. 9) Padrão "WildRose". Faiança fina inglesa. Fabricado entre 1830 e 1850, quando alcançou grande popularidade, tem como característica uma borda floral que circunda uma cena bucólica. Esta cena é com211

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Foto l: Faiança fina inglesa, "Willow Pattern'

Foto 2: Faiança fina inglesa, padrão "Italian Scenery ".

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Foto 3: Faiança fina inglesa, padrão "Milkmaid".

Foto 4: Faiança fina inglesa, padrão "Blue or Green Edged".

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5; Fainça fina inglesa, padrão "Policromo'

Foto 6: Faiança fina inglesa, padrão "Policromo" combinado com "SpattenMare".

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Foto 7: Faiança fina inglesa, padrão "Borrão Azul'

Foto 8: Faiança fina inglesa, padrão "Borrão Azul", cartucho "Athens".

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posta por uma cabana, situada próxima a uma ponte, com duas pessoas e um barco, em primeiro plano. O padrão foi inspirado em um desenho de S. Owen, a partir do qual foi feita uma gravura por W. Cooke, publicada em 1811. Foram feitas inúmeras especulações quanto ao verdadeiro local da cena, porém a mais amplamente aceita é a de que se trata de uma vista de Nunham Courtney, a cerca de 5 milhas a sudeste de Oxford. Foi aplicado a diversas formas, desde serviços de jantar até jarras para toalete. 10) Padrão "Beehive". Faiança fina inglesa. Fabricada entre 1804 e 1834, provavelmente por William Ridgway, apresenta uma cena com um-a colmeia em primeiro plano, um vaso de flores por detrás, em um campo aberto, circundada por uma borda em flores e volutas. Uma variante deste padrão foi feita em serviços de chá, por William Adams. • 11) Padrão "Geométrico". Faiança fina e "redwâre" produzidos na Inglaterra em meados do século XIX. Este tipo de decoração foi muito utilizada por Wedgewood, em bules de chá, canecos e jarros, nas cores verde e marrom. i

12) Faiança fina rosa. De origem inglesa, sua produção iniciou-se entre 1835 e 1845, quando a técnica de esmaltagem tornou-se mais sofisticada entre os ceramistas ingleses. Até-então o azul era a única cor que resistia à alta temperatura do forno de vitrificação, sem esmaecer. Com o aperfeiçoamento dos ceramistas e das técnicas foi possível introduzir com segurança novas cores sob o esmalte, sendo mantida a temática então em voga, de cenas bucólicas. 13) Faiança "Opaque de Sarraguemines" Fábrica francesa fundada por volta de 1778, na região do Sarre, funcionando até o presente. Sarraguemines, juntamente com Villeroy & Boch (grupo f ranço-alemão), de Wallerfangen, exportaram serviços de mesa em grande quantidade para o Brasil. 216

14) Faiança de Maastricht. Maastricht, cidade holandesa situada na fronteira com a Bélgica, teve uma grande tradição ceramista, sendo que a fundação da Société Céramique data do início do século passado. Exportou muito para o Brasil, durante todo o século XIX até o início do século XX, provavelmente através do Porto de Antuérpia. Não puderam ser identificados, em faiança fina azul e branca, os seguintes tipos: — 5 padrões com borda floral, reservas (medalhões) e fundos com cenas bucólicas, rurais ou pitorescas. Provavelmente relacionados com o período de 1815-1835, quando foi introduzido o culto ao pitoresco, através de vários livros lançados contendo descrições e ilustrações de paisagens inglesas. — 4 padrões com bordas em volutas, reservas e cenas de paisagens clássicas e românticas, tais como: fontes e lagos com castelos, abadias, construções clássicas, árvores, balcões, montanhas à distância e eventualmente grupos de pessoas, às vezes com cachorros. Este tipo de desenho está vinculado ao período de 1845-1860, na Inglaterra, quando, em função das restrições impostas pelo copyright, a partir de 1842, os ceramistas passam a produzir cenas imaginárias. — padrão com arabescos e aves exóticas. — padrões florais diversos. Em outras cores: — padrão floral e vinho, preto e verde. — 2 padrões em rosa e um em marrom: borda floral com reservas e fundo em paisagens bucólicas, rurais e/ou pitorescas. Expressiva quantidade de cacos de faiança fina branca, algumas com decoração em relevo, não pôde ser identificada, à falta de elementos de referência. Uma parte considerável deve pertencer a louças onde os padrões decorativos foram, por exemplo, aplicados apenas às bordas, sendo deixadas em branco as porções remanescentes das peças. Não obstante é significativa a ocorrência da louça simples. A faiança fina branca começou a ser fabricada no século XVIII; numa tentativa, bem sucedida, de se obter uma pasta mais resistente e clara, que dispensasse a aplica-

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cão de engobo. Dependendo do elemento nela introduzido, modifica-se a sua tonalidade, que adquire tons de creme, amarelo, etc. A sua fabricação manteve-se ao longo do século XIX (ver Zanettini, 1986) e foi possível reconhecer apenas três marcas nesta louça; — Wedgwood: A firma fundada em 1759 por Josiah Wedgwood sempre foi conhecida apenas pelo sobrenome, a despeito das várias sociedades formadas, incluindo um ou mais de seus filhos. Sua produção recebeu diversos tipos de marcas, através dos séculos, tendo chegado aos nossos dias. — Wedgwood Etrúria: famosa fábrica de Wedgwood que surgiu em 1769 e que se manteve até 1849. A marca recuperada é atribuída ao período 1840-1845. — Adams: família de ceramistas que se espalhou por diversos ponto da Inglaterra. Os descendentes do fundador deste famoso estabelecimento, no século XVI, William Adams, foram recebendo sucessivamente o mesmo nome de batismo de seu antepassado até o século XIX. A marca recuperada é atribuída ao período 18001864. è) Em porcelana: 1) Porcelana de Macau. Porcelana azul e branca originária da China, cuja exportação estende-se do século XIV ao XVIII, entrando pelo século XIX, quando toma o rumo do ocidente (anteriormente era destinada ao Oriente Médio). Passa por várias modificações quanto ao desenho, espessura e esmalte, voltando, no final do século XVIII, às primitivas formas decorativas, num azul mais profundo e desenho menos fluente. Com a crescente importação para a Europa ocorre a fabricação em massa, prejudicando a qualidade. Surgem, então, as peças que os portugueses denominam de "Macau", e os ingleses e franceses de "Nankim", fabricadas durante todo o século XIX (Foto n? 9). 2) Porcelana "Vista Alegre". Este estabelecimento, fundado em Aveiro, Portugal, em 1824, de propriedade de José Ferreira Pinto Bastos, dedicou-se à produção de

excelente porcelana e faiança fina em pó de pedra, fabricando serviços de mesa e de chá, vasos, estatuetas, etc., com ceramistas portugueses e saxões. Foram recuperados ainda pequeninos cacos de dois tipos de porcelana oriental e três tipos de porcelana europeia, que não permitiram identificação, além de fragmentos lisos, brancos, que parecem pertencer a essas peças. Os vidros Uma expressiva quantidade de garrafas de bebidas, possivelmente vinhos e conhaques, foi recuperada. Os vidros são em geral grossos, com fundos côncavos, e apenas um fragmento apresenta a gravação "Old Cognac". Entre a abundante vidraria de produtos de toucador e farmácia foi possível reconhecer as seguintes marcas: — "Scotfs Emulsion — Liver Oil", fabricada na Inglaterra, a partir de 1848. A popular Emulsão de Scott, feita do óleo de fígado de bacalhau, foi registrada para produção no Brasil apenas em 1926 (Foto n? 13). — "Magassar Oil — for the hair — Hatton, London". Produto capilar, em pequeno vidro branco. — "Opodel..., Loridon". Fragmento incompleto, não permite identificação mais precisa. Ainda nesse material foram encontrados objetos como: um fragmento de vidro lapidado, possivelmente pertencente a uma manga de lampião; vidros gomados, em verde e branco; parte de uma tampa de compoterra e pés de taças de vinho, em vidro, cujas formas copiam as dos serviços de cristal. As cerâmicas l) Louça vidrada. Este tipo de cerâmica era utilizado em utensílios de cozinha destinados à preparação e ao armazenamento de alimentos. O vidrado, conhecido como "salt-glazed", era aplicado apenas à parte interna dos recipientes, em tonalidades que variavam do amarelo-mostarda ao verde, depen217

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dendo do composto empregado na esmaltagem. As primeiras louças vidradas teriam vindo de Portugal, compondo o equipamento doméstico dos colonizadores. As notícias referentes à sua fabricação no Brasil aparecem apenas em documentos datados em torno de 1800. Os centros de produção teriam sido Bahia, Minas Gerais e São Paulo, atingindo o restante do país através do comércio de cabotagem (Lobo, op. cit.). Observa-se que as negras "de ganho" vendiam o alua nesse tipo de louça em meados do século XIX. 2) Grés., Originalmente produzido na Alemanha, por volta do século XV, generalizou-se, passando a ser amplamente fabricado pela Inglaterra, França e Holanda. Por ser de grande resistência e impermeabilidade tornou-se excelente para o transporte de bebidas e outros líquidos. A Inglaterra e outros países exportaram, durante o século XIX, vários recipientes de grés contendo cerveja, genebra, água mineral e também tinta nanquim, entre outros produtos. A cor do grés pode variar do areia ao marrom avermelhado, bem como o formato das garrafas, dependendo do conteúdo. Muitas delas não apresentam marcas, e foram aqui reaprovêitadas para engarrafar bebidas nacionais. Era comum o anúncio em jornais para a compra de garrafas vazias, por um preço relativamente alto (Foto n? 10). 3) Cerâmica simples. Os fragmentos de vasilhames cerâmicos recuperados atestam que essas peças foram confeccionadas em tornos mecânicos. Poucas apresentam elementos decorativos, limitados a eventuais incisões. Algumas bordas possuem reforço externo e os fundos são planos. b) O Sítio do Major Pesquisas sistemáticas vêm sendo conduzidas em ilhas da Baía da Ribeira, em Angra dos Reis, desde 1984, dentro das atividades do projeto "A ocupação pré-histórica das ilhas do litoral do Rio de Janeiro". Voltado basicamente, dentro desta área, para o estudo de sambaquis existentes nas ilhas do Algodão, Caieira, Major, Com218

prida e Bigode, vem, entretanto, constatando a existência de inúmeros sítios históricos em todo o fundo da baía. Em uma das ilhas pesquisadas, na pequena ilha do Major, de propriedade particular, foi evidenciada a superposição de uma ocupação do século XIX sobre um sambaqui, ambos em avançado estado de destruição, como decorrência do trabalho de máquinas pesadas para a construção de uma praia artificial e de um pier. ' Objetos históricos aparecem dispersos por toda a superfície da praia e junto às pedras existentes no limite com o mar, bem como misturados aos níveis pré-históricos na área que foi escavada, a apenas 5 m da atual linha d'água, atendendo-se aos objetivos e interesses do referido projeto de pesquisa em desenvolvimento. Possíveis remanescentes de estruturas habitacionais do século XIX foram destruídos com as obras, mas a natureza dos objetos recolhidos permite afirmar ter existido no local, no século passado, pelo menos uma unidade residencial. Trata-se, portanto, de um material inteiramente descontextualizado, porém ainda capaz de fornecer informações de interesse arqueológico. Os objetos recuperados próximos à linha d'água parecem confirmar a prática corrente, à época, de se lançar dejetos em geral junto ao mar; quanto aos demais, nada pode ser dito, podendo tratar-se tanto de material apenas revolvido, quanto transportado das proximidades, quando dos trabalhos de remodelação da área. A tralha doméstica resgatada inclui utensílios de mesa e cozinha (pratos, pires, xícaras e malgas, em louça; panelas de ferro, vasilhames de cerâmica simples e vidrada, moringas, facas de mesa, chapas de cobre, chapas de fogão, garrafas de vidro e de grés para bebidas, como vinho e conhaque); restos alimentares (ossos de animais), materiais de construção (telhas, cravos de ferro e de cobre, vidros), produtos de higiene, toucador e farmácia (frascos de perfume, cosméticos e remédios), utensílios de costura (dedal), itens de vestuário (botões de osso e metal), cachimbos de barro neobrasileiros e holandeses, pederneira, moedas. Entre as louças foi possível proceder às seguintes identificações, a partir da bibliografia já

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Foto 9: Porcelana de Macau.

Foto 10: Garrafas de grés.

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mencionada: Faiança de Maastricht, Faiança "Opaque de Sarraguemines", Padrão "Policromo" simples ou combinado com "Spatterware" (padrão "salpicado", provavelmente fabricado na Inglaterra, entre 1840 e 1880, nas cores azul, verde, vermelho ou preto — foto n? 6), Padrão "Borrão Azul", Padrão "Geométrico", Padrão "Blue or Green Edged" e faiança fina rosa, descritos anteriormente. Foram recuperados ainda fundos com as seguintes marcas: Davenport e Wallerfangen. O estabelecimento cerâmico Davenport, situado na região de Longport, Staffordshire, funcionou entre os anos de 1794 e 1887. A marca padrão consiste em^uma âncora impressa, tendo abaixo o nome Davenport, disposto em curva, em letras de caixa baixa, até 1815; daí em diante passam a ser em caixa alta e, após 1830, números impressos ao lado da âncora passam a indicar a data de fabricação. A louça recuperada neste sítio apresenta os números 3 e 7, indicando 1837 como o ano da sua impressão. Por sua vez, a região de Wallerfangen, no Sarre, produziu louça utilitária e de adorno, azulejos, etc., exportando durante o século XIX até o início do século XX. Teve vários estabelecimentos ceramistas, entre eles VilleroyBoch, porém o fragmento recuperado traz impressa apenas a região em que a louça foi produzida, tendo sido quebrado na altura da marca do fabricante, o que impede uma maior precisão na identificação. Foram ainda registradas duas bordas de faiança portuguesa, em azul e branco, atribuídas aos séculos XVn/XVIII. Cerca de 200 fragmentos de faiança branca, a louça de maior popularidade no sítio, simples ou com decoração em relê- , vo, não puderam ser identificados, à falta de eler mentos indicadores da sua procedência; parecem corresponder a pratos rasos e a malgas, e em grande parte podem pertencer a porções não decoradas dos tipos acima descritos. Um curioso artefato, resultante da reciclagem de pequenos cacos de louça, foi recuperado na Ilha do Major: trata-se de uma pequena rodela, com cerca de 2 cm de diâmetro, cujo fragmento original foi desbastado em suas porções periféricas, até adquirir uma forma circular. Há notícias da sua ocorrência em outros sítios contem220

porâneos, no Rio de Janeiro, inclusive no Antigo Cais. Certas peças apresentam um relativo apuro estético na sua confecção, na medida em que são aproveitados os padrões decorativos da louça que lhes serve de suporte. Dentre as garrafas de bebidas, em vidro, algumas possuem marcas, porém apenas fragmentos foram recuperados. Ã falta de exemplares de referência, para comparação, registramos apenas as letras "ERT" em um gargalo de vidro marrom; "ARI", em um caco de vidro claro; "ES.M" em um fundo em vidro verde claro, em formas de seção retangular, quadrada ou circular, com uma considerável variedade de gargalos. Os vidros de cosméticos e remédios resgatados não possuem marcas. Entre as cerâmicas há vasilhames torneados, em sua maioria, com decoração escovada, incisa, engobada de vermelho, com apliques e alças. Poucas peças foram feitas mediante a técnica do acordelado e, neste caso, a decoração é em geral escovada ou marcada. Inúmeras peças receberam vidrado, sempre internamente, em tonalidades que variam do amarelo ao vermelho. Garrafas de grés estão presentes, porém não apresentam marcas. Foram recuperados 5 fragmentos de cachimbos, quatro do tipo neobrasileiro e um holandês. A pederneira encontrada é possivelmente holandesa e parece estar inacabada (Eliete Maximino, 1986 e inform. pessoal), sendo que a sua presença sugere a existência de arma de fogo no local. O botão de metal encontrado pertence a um uniforme militar dos Estados Unidos da América. Chama a atenção a presença de diversos artefados de origem holandesa neste sítio, como a louça de Maastricht, pouco exportada para o Brasil, o cachimbo e a perdeneira, sugerindo o desembarque de uma carga com esta proveniência no porto de Angra dos Reis.

Angra dos Reis em meados do século XIX A antiga comarca de Angra dos Reis (que em 1848 era composta pelos municípios de Angra dos Reis, Parati, Mangaratiba e Itaguaí), na qualidade de porto exportador por onde era escoada a produção do Vale do Paraíba, foi, em

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meados do século XIX, um importante ponto de saída de café e aguardente, bem como de entrada de produtos manufaturados provenientes da Euv ropa. Ruínas das antigas fazendas, alambiques e engenhos de cana-de-açúcar que aí se instalaram no século passado, ainda podem servistas em todo o fundo da baía da Ribeira. Jornais de época, como "A gazeta de Angra" e "O Angraense", registram o cotidiano de uma cidade vibrante, cuja densidade demográfica fora estimada, em 1848, em 61.361 habitantes. Tinha, à essa época, um intenso comércio onde proliferavam entrepostos, empórios, armazéns, lojas de modas, bilhares, charutarias, armarinhos e toda a variedade de estabelecimentos comerciais. Bailes, entrudos e circos animavam a vida da população; festividades religiosas eram intensamente comemoradas com danças, músicas, leilões, fogos de artifício e tômbolas. Toda a sorte de naus e vapores, assim como fragatas, corvetas e vasos de guerra em geral frequentavam as suas baías, garantindo um fluxo constante entre Angra dos Reis e a corte. A década de 80, entretanto, assistiu à decadência da região, das mais importantes da província, motivada não apenas pela ruptura do modo de produção escravista, mas pela abertura da Unha férrea central no Vale do Paraíba, que condenou à morte o seu porto, tido, em 1864, como o segundo porto do Brasil meridional. Considerando inúmeras referências à fertilidade das ilhas que pontilham as baías, é bem possível que as lavouras de cana tenham se estendido até lá. Os restos recuperados na Ilha do Major e constatados em outras ilhas atestam uma fixação que não se restringiu ao continente, e parecem corresponder à unidade doméstica de um ou mais indivíduos de médio poder aquisitivo. c) O Paço Imperial e o Antigo Cais. Estes dois monumentos, embora tenham sido objeto de pesquisa arqueológica em diferentes intervenções, serão tratados aqui em conjunto, ambos situados na Praça XV de Novembro, no centro do Rio de Janeiro.

O Paço Imperial, pesquisado pelo Núcleo de Arqueologia da SPHAN/FNPM durante os trabalhos de restauração arquitetônica do prédio, teve seus resultados iniciais publicados (Pinheiro da Silva, Morley & Ferreira da Silva, 1984); já os trabalhos de recuperação do Antigo Cais encontram-se em andamento e agradecemos à Coordenadoria de Arqueologia do referido órgão o acesso ao material recolhido em ambos os sítios, para o estudo comparativo a que nos propusemos, bem como às arqueólogas responsáveis pelas pesquisas, Maria Luiza de Luna Dias e Waleska Conti. Para efeitos de interpretação consideramos os abundantes e diversificados achados do Antigo Cais como resultantes da prática de se lançar dejetos e lixo em geral às orlas marítimas, no século passado. Para lá devem ter sido transportados e despejados refugos dos prédios existentes nas cercanias, fossem eles unidades residenciais, estabelecimentos comerciais, prédios públicos, etc., aí incluído o próprio Paço Imperial, a julgar pela natureza dos objetos recuperados. Quanto ao material do Paço propriamente dito, recorreremos à interpretação das próprias autoras, que afirmam: "... foram coletados centenas de fragmentos dos mais diversos materiais — cerâmica simples, faiança, ossos de animais, cadinhos e grafite, cupelas, moedas, etc., muitos como parte do entulho trazido do exterior para as sucessivas reformas efetuadas no prédio, outros representando vestígios de atividades desenvolvidas localmente" (op. cit.: 159). Portanto, os refugos recolhidos na pesquisa do Paço são provenientes não apenas da ocupação do prédio, mas também de outras áreas, de difícil determinação. Consideramos aqui, independentemente das autoras, que o "entulho trazido do exterior" pode ser proveniente dos acúmulos feitos junto ao Cais, contíguo ao prédio do Paço, que desta forma conteria dejetos de diversas procedências. Em resumo, sob o nosso ponto de vista, o Antigo Cais foi depositário de parte dos lixos do Paço Imperial, ao longo das suas diversas ocupações, conforme atestam objetos como cadinhos e porcelanas imperiais; em contrapartida, o Paço Imperial recebeu, na forma de entulho, sempre que este se fez necessário durante as sucessivas

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remodelações do prédio, restos possivelmente provenientes de unidades habitacionais das vizinhanças do Cais e nele despejados. A tralha comparada O exame dos objetos recuperados nos sítios acima descritos revelou uma notável recorrência em praticamente todos os tipos de materiais analisados, quer de uso pessoal, quer de uso doméstico. Entre os materiais cerâmicos, as garrafas de grés (foto n? 10) são uma constante, assim como a louça vidrada, em diferentes tonalidades. Cerâmicas simples, em geral torneadas e com decoração incisa também ocoçrem em quantidades apreciáveis, sendo as modeladas manualmente menos frequentes. Nos inúmeros cachimbos de barro neobrasileiros resgatados, todos com fornilhos e de produção artesanal, os motivos ornamentais se repetem, alguns com maior incidência; não são objetos feitos em série, posto que há evidentes diferenças entre as peças, mas parecem obedecer aos mesmos padrões' decorativos, apesar da considerável distância geográfica entre os contextos. A iconografia da época mostra serem os negros escravos os seus principais usuários e uma possível hipótese, aqui levantada e que merece investigação posterior, é a de que tais padrões possam estar vinculados a determinados grupos africanos, enquanto privativos de tribos, clãs, etc., uma forma de manutenção da identidade diante da fragmentação promovida pelo europeu. Um outro tipo de cachimbo aparece no Paço e na Ilha do Major, em cerâmica fina, semelhante ao grés, em formas tubulares. De proveniência holandesa, essas peças parecem ter sido utilizadas por europeus. Entre a vidraria, além das garrafas de bebidas, notadamente vinhos e conhaques, destacase a parafernália farmacêutica: conta-gotas, frascos de pílulas e medicamentos líquidos (foto n? 12) atestam a importação maciça de remédios. Alguns parecem ter sido muito populares, como os pequenos vidros com gargalos alongados, recorrentes em todos os contextos, em tona222

lidade azul cobalto (foto n? 14), embalagem de um medicamento ainda não identificado. Quanto à Scotfs Emulsion, reclames nos jornais da época pregam as virtudes terapêuticas do óleo de fígado de bacalhau contra doenças pulmonares, particularmente a tuberculose, responsável por milhares de mortes nesse período. À par .dos cuidados com a saúde, o trato da aparência pessoal está evidente nos vidros de unguentos e óleos para cabelo (foto n? 15), produzidos na Inglaterra; em frascos de perfumes e cosméticos; nas travessas para cabelo (foto n? 16), nas escovas de dentes feitas em osso (foto n? 17), a essa altura já difundidos nos estratos pequeno-burgueses, a julgar pelo seu descarte nesses depósitos. Essas travessas, assim como dedais e tesouras, adornos, como contas, medalhas e berloques, atestam a presença de mulheres nos sítios, da mesma forma que brinquedos, como louças de boneca, soldados de chumbo e bolas de gude refletem a presença de crianças, caracterizando bem a existência de unidades domésticas. Entre a vidraria, as taças de vinho (foto n? 16), os fragmentos de vidro lapidado, os enfeites de opalina, etc., denotam a progressiva sofisticação que toma conta dos interiores. Bibêlos, como o cachorinho Bennington Poodle (foto n? 19), fabricado pela United States Pottery Company, em Bennington, Vermont, entre 1849 e 1858, mostram bem o gosto pelo supérfluo que invade as camadas pequeno-burguesas cariocas em meados do século passado. Enquanto em Pilões e no Major apenas vidros foram resgatados, no Paço, em contrapartida, foram encontradas peças de serviços para mesa em cristal, bem como vidros de toucador de qualidade superior. No que diz respeito às louças, status e níveis sócio-econômicos de seus usuários podem ser reconhecidos através da sua análise, conforme assinalam Miller & Stone (1970, citados em South, (1978:80). De acordo com esses autores, por exemplo, porcelanas podem ser em geral associadas a pessoas mais afluentes. Entretanto, para que esta possibilidade seja efetivamenté demonstrada, South chama a atenção para a necessidade de se estabelecer um padrão para as possíveis diferenças no equipamento doméstico de

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Foto 11: Mocotós de boi com evidências de corte e descarnadura.

Foto 12: Vidraria de farmácia.

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Foto 13: Vidro de "ScotfsEmulsion", Inglaterra.

Foto 14: Gargalos de frascos de remédio, em tonalidade azul cobalto.

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Fofo 15: Vidro de óleo para cabelo "Magassar OU", Hatton, London.

Foto 16: Taças para vinho, em vidro.

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Foto 17: Travessas para cabelo.

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Foto 18: Escovas de dente em osso.

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Foto 19: Bibelô "BenningtonPoodle", Vermont, EUA.

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Foto 20: Talheres de mesa.

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LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, 1:205-230, 1989.

classes sociais distintas. Um bom controle poderia ser obtido a partir da análise de contextos arqueológicos que tenham pertencido a indivíduos historicamente conhecidos como afluentes, em oposição a outros não-afluentes, no mesmo período de tempo (ênfase do autor). Reconhecendo a validade deste posicionamento foi comparada, no presente trabalho, a louça proveniente de um sítio historicamente atribuído à classe dominante, o Paço Imperial, com a de um assentamento onde, de acordo com os dados históricos, concentram-se funcionários do complexo de oficinas da Real Fábrica de Pólvora, artesãos, pequenos agricultores, etc., e ainda com a de uma unidade residencial em uma pequena ilha, para a qual não há referências. A presença ou a ausência de objetos de custo mais elevado nos refugos parece ser, com efeito, um bom indicador, tendo como premissa básica o fato de que os objetos usados com maior frequência são os mais representados no registro arqueológico. Assim sendo, seria de se esperar uma maior incidência de materiais caros, como cristais, porcelanas, etc., nos refugos das classes mais afluentes, e baixas proporções nos refugos das classes de menor poder aquisitivo. Efetivamente, no Paço Imperial foram recuperados inúmeros cacos de porcelanas, europeias e orientais: entre as primeiras, diversos serviços Vieux Paris; entre as últimas, Macau, Companhia das índias, Imari, Power Blue e porcelana branca lisa (identificação feita pessoalmente por E. Brancante). Em Pilões, apenas as poucas peças mencionadas e nenhum cristal. Na Ilha do Major, por sua vez, ambos estão totalmente ausentes. Ao que tudo leva a crer, parece haver de fato uma correspondência e novos contextos deverão ser testados para que a hipótese se confirme. Quanto à faiança fina, que penetrou em todas as classes, alguns padrões e marcas repetemse em todos ou em quase todos os sítios: "Policromo", "Blue or Green Edged", "Borrão Azul", "WillowPattern", "Macau", "Milkmaid", parecem ter desfrutado a preferência da população carioca. As datas médias de fabricação dessas louças apontam para meados do século XIX, o que possibilita uma dajtação relativa para a Ilha do Major, onde a falta de referências não permi228

tiu uma amarração cronológica mais precisa, se" não através da comparação com os outros depósitos cujas datas são conhecidas. Muito frequentes parecem ter sido os fundos de tigelas ou malgas, pintados com pequenas cenas campestres (como no padrão "Milkmaid" — foto n? 3), ou do cotidiano (Maastricht, onde um policial acossa um personagem bufão), muito em voga em meados do século passado (inúmeros padrões no Antigo Cais). O padrão "Policromo", de confecção grosseira e mais vulgar (fotos n?s 5 e 6), vem atuando como um marcador para os sítios da época, dada a sua alta incidência e frequência em todos os registros. Certamente uma louça inferior, parece ter atuado como uma alternativa para a louça branca, de uso diário. O mesmo pode ser dito para o padrão "Blue or Green Edged" (foto n? 4), presente nos quatro sítios e descrita nos Estados Unidos, conforme assinalado anteriormente, como louça de cozinha, e ainda para os padrões geométricos, que aparecem muitas vezes em cores contrastantes: ocre e preto, verde, marrom e amarelo, na Ilha do Major; marrom e preto, em Pilões; azul, preto e branco, no Antigo Cais. Em tons mais suaves, em azul claro e branco, ocorre na Ilha do Major, em Pilões e no Paço. Entre os restos alimentares aparecem com abundância metacarpos de Bos taurus, vulgarmente conhecidos como mocotós de boi, com evidências de corte e descarnadura (foto n? 11). Prato muito apreciado pela população, a chamada "mão de vaca" foi amplamente consumida pelos cariocas, conforme testemunham os inúmeros ossos nos diversos refugos. A presença de talheres nos quatro depósitos permite aventar a possibilidade de um uso já difundido desses utensílios, e conseqúentemente de maneiras à mesa mais refinadas, o que efetivamente só veio a ocorrer em meados do século. A análise comparada desses materiais vem demonstrando uma sugestiva recorrência e uma relativa uniformidade, apontando para uma padronização no comportamento dos estratos intermediários entre a base escrava e os senhores de terras, fortemente calcado no ideário europeizado das classes dominantes. Por enquanto indiferenciados, esses estratos pequeno-burgueses

LIMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, /:205-230, 1989.

poderão ser melhor discernidos à medida que novas pesquisas forem empreendidas em contextos semelhantes, aumentando o universo de amostragem e permitindo uma leitura mais apurada dessas categorias.

Considerações finais A variabilidade dos refugos domésticos, quer seja ela alta ou baixa, possui um significado que tem que ser decifrado pelo arqueólogo (Wilk & Rathje, 1982). A uniformidade que está sendo constatada na tralha analisada sugere uma difusão ampla e rápida de alguns traços culturais, em contextos aproximadamente contemporâneos. Isto caracteriza um horizonte, na acepção formulada por Willey & Phillips (1958:31-34), nos mesmos moldes do que foi estabelecido por South (op. cit:81), nos EUA, a partir de recorrências verificadas em sítios históricos do século XVIII. Em nosso ponto de vista, esse possível horizonte parece corresponder ao surgimento de uma classe social que se torna numericamente expressiva em meados do século XIX, não detentora dos meios de produção, e que paulatinamente

vai se impondo e ocupando um novo espaço. De médio poder aquisitivo, esta classe garantiu a absorção dos produtos aqui despejados, em profusão, pelos países em rápido processo de industrialização. Tais bens não foram evidentemente de seu consumo exclusivo, mas foi, com efeito, a emergência desta pequena burguesia, e a sua consolidação, que permitiram a disseminação de usos e costumes que implicaram na aquisição maciça dos elementos materiais que vêm sendo recuperados arqueologicamente. Considerando que este hipotético horizonte parece extrapolar os limites do estado do Rio de Janeiro, a julgar por manifestações semelhantes em São Paulo (Margarida D. Andreatta, inform. pess.), em Goiás (Catarina Ferreira da Silva, inform. pess.) e outras unidades da federação, seria de grande interesse, para a sua confirmação, que tais contextos fossem examinados à luz desta possibilidade. Maiores investimentos nessa linha de pesquisa podem se revelar bastante compensadores e possíveis recorrências devem ser investigadas, trazendo novos subsídios para a Arqueologia Histórica no Brasil.

UMA, T. A.; FONSECA, M. P. R. da; SAMPAIO, A. C. de O.; FENZL-NEPOMUCENO, A. & MARTINS, A. H. D. The domestic stuff in the middle of XIXth century: reflexes of the emergence of the petite bourgeoisie of Rio de Janeiro. Dédalo, S. Paulo, pub. avulsa, l:205-230, 1989.

ABSTRACT: This paper deals with a comparativa analysis among household articles from four historical sites in Rio de Janeiro, from the middle 19th century. One of the peculiarities of the brazilian social formation is being empirically verified in this research: the rising of a bourgeois way of life that preceded the bourgeois order that carne along the industrial process. A suggestive recurrence hás been observed on those household articles, showing the same trends on customs and daily practices of the petite bourgeoisie, highly europeanized. The broad and rapid spread of such cultural traits suggests a possible horizon, that must be tested by increasing researches on other contexts of the same time period.

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