Teatro completo [8]

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.ertoltBrecht

TeatroCompleto. o Sr. Puntila e seu criado Matti

Aresistível ascensão de Arturo Ui .I

PAZ E TERRA



TEATRO COMPLETO em 12 volumes

• BERTOLT BRECHT

I TEATRO COMPLETO em 12 volumes

Ef) PAZ E TERRA

Coleçào TEATRO vo1.l 2 Direç ão: Fernando Peixoto

BERTOLT BRECHT TEATRO COMPLETO em 12 volumes VIII

O SR. PUNTILA E SEU CRIADO MATTI (941) Tradução de Millôr Fernandes A RESISTÍVEL ASCENSÃO DE ARTURO UI (941) Tradução de Angelika E. Kóhnke

Conselho Editorial Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

Copyright by Suhrkamp Verlag. Títulos dos originais em alemão: Herr Puntila und sein Knecht Matti © 1950, Suhrkamp Ver1ag, Frankfurt am Main; Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui © 1953, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main. Coordenação Geral: Christine Roehrig, Fernando Peixoto Preparação Mário Quaiato Revisão Carmen T. S. Costa Capa Isabel Carballo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do livro)

Índice

Brecht, Bertolt , 1898-1956. Teatro completo, em 12 volumes / Berto lt Brecht. - Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992 - (Coleção teatro; v. 9-16) Tradução de: Bertol t Brecht: Gesammelte \Xérke in 20 Bãden, Publicados v. 1-8 1. Teatro alemão L Titulo. II Série.

92-1927

CDD-823.91

Índices para catálogo sistemático: 1. Século 20: Teatro: literatura alemã 823.91 2. Teatro: Século 20 : literatura alemã 823.91 Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA SA Rua do Triunfo, 177 01212 - São Paulo - SP Te!.: (011) 223-6522 Rua São José, 90 - 11.° andar - cj. 1111 20010 - Rio de Janeiro - RJ Te!.: (021) 221-4066 qu e se reserva a propriedade desta tradu ção.

1992 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

o Sr. Puntila e seu criado Matti A resistível ascensão de Arturo Ui

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o Sr. Puntila e seu criado Matti \

Herr Puntila und sein Knecht Matti Escrita em 1940 Tradução: Millôr Fernandes

PERSONAGENS

P UNI1 LA. LATIFUNDIÁRIO E VA . SUA FILHA

MArn . SEU M O TO RISTA G ARÇOM

J UIZ A TTACHÉ

EMA VETERINÁRIO MANDA . F ARMACÊlJIlCA LISU . ORDENHADO RA GORDO TRABALHADOR TRABALHADO R R UIVO TRABALHADO R MISERÁVEL LAINA

SURKALA FINA ADVOGADO SANDRA . T ELEFO NISTA P ADRE MUL HER DO PADRE FI LHA MAIS VELHA DE S URKALA

PRÓLOGO

Recitado pela Orden hadora Respeitável público, nossa época é triste . Sábio é que m se atorme nta, tolo é qu em vive em paz. Mas como não adia nta deixar de rir, Escrevemos esta co média para vos divertir. As piadas que ouvireis nesta represen tação Não foram pesad as e m ba lanças de precisão. Não so mos usurários Que bu scam e rebusca m medid as exa tas, Damos é em sacos e tonelad as co mo batatas. Senho ras e se nho res, apresentamos hoje Um animal pré-hi stórico - o latifundiário . Em lingu agem mais simples: um propri etário ag rário. Conheceis bem o cida dão: Um animal pau -d'águ a e comilão. O nde ele se instala, é ce rto, Instala-se um deserto. Desta vez, porém , ele vem vindo, No meio de mata s magníficas, Belos rios, lagos lindos. Mas, no cená rio, nada disso pint amos. Prestai mais atenção no qu e falamos. Verei s latas de leite tilintando nos bosqu es da Finlândia , Aldeias ave rme lhadas por um verão sem noite , Galos se mp re acordados, Rios qu e co rrem tépidos, Fumaça azul subindo dos telhados. Sentados aí, Da primeira à última fila, Isso tudo ve reis, es pero, Na co média do Sr. Puntila.

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I PUNTILA ENCONTRA UM HOMEM

Parqu e Hotel de Tavasto, Puntila, o ju iz e o Garçom . O juiz ca mbaleia na cadeira, completa mente bêbado. PUN11LA - Garçom, há qu anto tempo estamos aqui? GARÇOM -

o Sr. Puntila e seu criado Matti

Bertolt Brecht

Há dois dias, Sr. Puntila .

PUN11LA ao ju iz, em tom de censura - Só dois dias, ouviu? E voc ê já se dá por ve ncido e finge qu e está cansado . E eu qu e pretendia falar um pou co a meu respeito, dizer como me sinto só, discutir um pou co de política! Pois sim! Ao menor empurrão, vocês cae m todos como peras podres! É, o es pírito está vivo , mas a carne é fraca! Onde é que anda aquele médi co qu e ainda ontem de safiava todo mundo pra beber co m ele? O chefe da estação viu quando arrastaram ele daqui , o pobre-diabo. Mas o chefe também, coitad o , depois de uma resistência her óica , entregou os pontos às sete da manhã. Naquela hora o farmacêutico ainda estava de pé . Mas agora, por onde andará? E essas são - imaginem! - as maiores autoridades da comarca! Para o juiz que dorme - Bonito exemplo para o povo de Tavasto, um juiz que não agüenta um co po bebido numa parada de caminho! Já pensou nisso , Frederi co? Um homem culto , ilustre co mo você , que toda a cidade olha com admiração , que deveria ser um modelo para todos, um modelo de resp onsabilidade e sobretud o de resistência... Mas por qu e você não reage? Senta aqui firme , vamos, e conversa um pou co comigo, lamentável criatura. Ao Garçom - Que dia é hoje?

ob jetivo é es pantar os fregueses para qu e não voltem mais - daí essa insolên cia! O lha aqui, me traz outra agua rde nte e limpa bem o ouvido pra não confundir tud o d e novo: eu disse agua rdente e sexta -feira, co mp ree nde u? GARÇOM - Entendi, Sr. Puntila. Sai correndo. PUN11LA ao ju iz - Acorda, Ô, vead ão! Não se deixe assim sozinho ! Capitular dessa man eira diante de dua s garrafas de bebida! Se embriago u co m o che iro! Se escondeu no fund o do barco enquanto eu remava neste mar de álcool , neste oceano - velha co! - e mal se arrisca a botar o nariz de fora . Que vergonha! Olha só : agora eu vou me aventurar no líquido elemento. Sobe à mesa e "caminha sobre as águas ". E caminho , caminho na aguardente ... e afundo , por acaso afundo? Descobre Matti, o chofer, que está parado na entrada, já há algum tempo. Quem é você ? MAm -

Seu chofer, Sr. Puntila.

PUN11LA desconfiado - Você é o quê? Repete! MAm -

O seu chofer, Sr. Puntila .

PUN11LA - Assim, sem mais nem menos? Isso qualquer um pode dizer. Eu não te conheço. Talvez porque o senhor não olh ou bem para a minha cara. Estou com o senhor só há um mês e meio.

MAm -

PUN11LA - E agora , de o nde é que você veio? Aí de fora . Há doi s dias que estou esperando no carro.

GARÇOM - Sábado , Sr. Puntila.

MAm '-

PUN11LA - Como sábado? Devia ser sexta!

PUN11LA - Que carro?

GARÇOM - Desculpe, mas é sábado.

MAm -

PUN11LA -

PUN11LA -

Ah, está me contradizendo? Bonito garçom! Já vi tudo: teu

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O seu carro: o Studebaker. Engraçado! Você pode provar?

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o Sr. Puntila e seu criado Matti

Bertolt Brecht

Não. Só vim av isar qu e não tenho a inten ção de es perar nem um minut o ma is. Agüent ei até agora. Mas não se pod e tratar um hom em assim.

pés. Eu so u O grande proprietário Puntila de Lammi, um homem honrado - tenho noventa vacas. Comigo voc ê pode beber tranqüilo , irmão .

PUNTlLA - Que coisa que r dizer um hom em ? Agora mesm o d isse qu e e ra um cho fer. Você tem de admitir qu e e u te peguei numa co ntradição .

MATIl - Eu sou Matti Altonen: muit o prazer em conhecê-lo. Em dois tempos bebe os dois copos.

MAm -

,

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O senho r já vai ve r se eu so u hom em ou não. Ningué m vai me tratar co mo a um cacho rro, Sr. Puntil a! E não pretendo ficar ali fora a vida inte ira até que o se nho r se digne sair.

MAm -

PUNTlLA - Voc ê já d isse ante s que não ia ag üe ntar. Está se repetind o. Pod e ir. Já vou . É só me pagar os 175 marcos que me deve . A carteira e u vou apa nhar lá e m Puntila.

MAm -

PUNTlLA - Eu conheço essa voz. Gira em volta de Matti, exa m ina ndo-o como a um animal estranho. É uma voz de hom em! Senta e bebe um copo de aguardente aqui comigo! Nós dois precisamos nos conhec er.

entrando com um tabuleiro cheio de copos aguardente , Sr. Puntila , e hoje é sexta-feira.

G ARÇOM

PUNTlLA - Agora sim! Indicando Matti GARÇOM -

Aqui está a

Um amigo meu .

Amigo? É o se u chofer!

PUNTlLA - Ah, é cho fer? Eu sempre digo qu e é viajand o qu e se conhece m as pessoas mais interessantes. Põe dois copos nas mã os dele. MAm

- Não sei se vou beber esse negócio , Sr. Puntila . Ainda não percebi bem quai s são suas inten ções.

PUNTlLA - Eu já vi tud o. Você é um hom em desconfiad o. Aliás, é razoável. A gente nunca deve sentar numa mesa com estranhos. Imagina: é só você fechar um olho e te levam tud o , da cabeça aos

PUNTILA - O prazer é todo meu . Viu que bom coração eu tenho? Uma vez apanhei um caramujo no meio da rua e tornei a colocá-lo no jardim para evitar que o esmagassem. Lembrando bem, fui até mais exagerado . Coloquei-o no alto de um bambu para ele ficar bem seguro. Você também tem bom coração, se vê logo. Olha , o que eu não suporto são esses tipos que escrevem "eu" com e maiú sculo. Essa gente merece chicote. Conheço uns proprietários qu e pesam cada prato de comida que dão aos empregados. Se dependesse de mim, o meu pessoal comia carne assada o ano inteiro. Eles também são seres humanos e gostam de comer bem, como ... eu. Estão no direito deles, você não acha? MAm -Acho.

PUNTILA - Oh , Matti, é verdade mesmo que eu deixei você esperando lá fora tanto tempo? Isso não se faz; você não sabe como essas co isas me deprimem. Olha , se eu fizer isso outra vez , você pega a chave inglesa e me arrebenta a cabeça. Matti, você é meu amigo? MAm -Não.

PUNTlLA - Muito obrigado. Eu sabia. Matti, olhe bem pra mim: que é que você vê? MAm -

Um pedaço de imbecil gordo e embriagado.

PUNTILA - Vê como as aparências enganam? Não sou nada disso, Matti: eu sou um homem doente. MAm -

PUNTlLA -

Muito doente. Me agrada que você perceba. Nem todo mundo é capaz de

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o Sr. Puntila e seu criado Matti

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perceber. Ao me ver assim , ninguém diria. Trágico uns ataques, sabe? Mcrn -

Eu tenho

É mesmo, Sr. Puntila?

PUNTILA - Acha que estou brincando? Tenho ataques, sim! Acordo e percebo, de repente, que estou sóbrio! Fresco como um pé de alface . Que é que você acha: é grave? Mxrn -

São muito comuns esses ataques de frescura?

PUNTILA - Uma vez por mês . O resto do tempo sou perfeitamente normal, como agora. Isto é, me sinto completamente senhor de todas as minhas faculdades , com absoluto domínio de mim mesmo. E, de repente, me vem o ataque. O primeiro sintoma é uma estranha perturbação na vista . Pego dois garfos - pega um só - e só vejo um . Mxrn -

Fica vesgo?

PUNTILA - Não, vejo só a metade do mundo; mas o pior é que, durante esses ataques de lucidez total e desvairada, eu desço ao nível de um animal, não conheço mais nenhum freio . E quando fico nesse estado, meu irmão, ninguém pode me acusar de nada do que eu faço, pois me torno completamente responsável pelos meus atos. Não quando se tem um coração no peito dizendo sempre que estamos doentes. Perturbado - Sabe , irmão, o que significa ser responsável pelos próprios atos? Um indivíduo responsável é capaz de tudo. Por exemplo, é capaz de esquecer o bem dos próprios filhos, não tem mais amigos, fica mesmo disposto a caminhar sobre o próprio cadáver. Isso acontece exatamente porque, como dizem os advogados , é responsável pelas próprias ações. Mxrn -

E não faz nada contra esses ataques?

PUNTILA - Faço o que posso, irmão! O que é humanamente possível fazer! Bebe. Esse é o meu único remédio. Eu engulo sem piscar, e não em doses infantis, pode acreditar. Se eu posso falar algo a meu respeito, é que eu enfrento esses ataques absurdos de luci-

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dez como um homem. Mas, que adianta? Voltam da mesma maneira! Veja, por exemplo, como fui abjeto com você, que é, evidentemente, uma maravilha de homem. Taí, pega esse belo pedaço de carne! Eu gostaria de saber que acaso admirável fez com que eu te encontrasse. Como é que você veio parar no meu serviço? Msrn -

Perdi o emprego que tinha antes. Mas não foi por culpa minha .

PUNTILA - Como foi? MArn -

Eu via fantasmas!

PUNTILA - Verdadeiros? Mcrn dando de ombros -

Foi na fazenda de um certo Dr. Peppman. Ninguém jamais tinha ouvido falar que havia fantasmas lá. Antes da minha chegada, fantasma era coisa que não existia na fazenda. Mas se o senhor me perguntar a razão, eu posso lhe dizer que os fantasmas foram conseqüência da péssima comida. Pois todo mundo sabe que, quando a massa de farinha vira um bolo no estômago, a gente começa a ter pesadelos e a atrair os íncubos. E eu , então, que sou tão sensível a uma boa cozinha, sofro demais com uma cozinha ruim . Pensei em ir embora logo, mas não tinha pra onde, e estava com o moral muito baixo; então comecei a freqüentar a cozinha e a fazer uns comentários meio enviesados. Não se passou muito tempo e as ajudantes da cozinheira começaram a ver cabeças de meninos fincadas na cerca do quintal, e se mandaram. Logo depois, era uma bola cinzenta que rolava da estrebaria; quando a gente pegava, tinha olhos e boca, como um homem. Quando eu contei isso à governanta, ela teve uma coisa! E a arrumadeira também foi embora quando eu disse a ela que às onze da noite, perto do banheiro, eu tinha visto um homem andando com a cabeça embaixo do braço e até parou e me pediu fogo pro cachimbo. Foi aí que o Dr. Peppman começou a ficar irritado, dizendo que a culpa era minha, que eu é que fazia todo o pessoal ir embora, que na fazenda dele não tinha nenhum fantasma. Ah, não tinha? Estava redondamente enganado.rfo í o que lhe respondi. Durante duas noites seguidas, enquanto a mulher

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do Dr. Peppman estava na maternidade esperando criança, eu tinh a visto , com meu s próprios olhos , um espectro branco saindo da jane la da governa nta e entra ndo de mansinho no qu arto dele! Aí, de med o , o Dr. Peppman perd eu a respiração. Me despediu ali mesmo. Porém , na hora de ir embora, eu disse o qu e qu eria: se ele pretendia qu e os es píritos o deixassem em paz, devia tomar mais cu idado com a cozinha, porque os espíri tos detestam fedor de carne estragada. PUNTILA - Compree ndo. Você deixou o emprego porque eles eram miseráveis com tua co mida . Isso de você que rer come r bem , em absoluto não te diminui a meus olhos, desd e que você guie be m o meu tratar, não seja ind isciplinad o e saiba dar a Puntil a o q ue é de Puntil a. Assim tud o irá be m entre nós. Qu alquer um pode co nviver com Puntila. CantaVocê brigar co migo é um ape ritivo, Pra ir pra cama com aquele objetivo. Com qu e prazer Puntil a iria para a floresta de rrubar bétulas, limpar os campos e guiar tratar! Mas me deix am , por acas o? Me botaram um co larinho duro que e u não posso nem virar o qu eixo ! Não fica bem o papai tratar da terra , não fica be m o papai bolinar as moças, não fica bem o pap ai tomar café co m os emprega dos! Mas agora acabou esse "não fica bem" . Viajo para Kurgu ela, dou minh a filha co mo noiva ao Attaché, e aí posso me se ntar em man gas de camisa com quem quiser, se m dar satisfação a ninguém. Me deito com Madame Klinckm ann e pront o . E a vocês, aume nto imediatame nte a diária, po is o mundo é gra nde e eu tenho terras e matas que chegam para vocês e chegam também para Punt ila. MATIl ri fo rte e prolongadamente e depois se levanta -

Pul'fIlLA - Agora me aconselha um pouco, irmão; precisamos falar de dinheiro . MAm -

Mxrn -

Então não falam os de dinheiro.

PUNTILA - Engano se u, devemos falar. Por que, pergu nto e u, não po demos ser vulgares? Somo s ou não somos homens livres? l'vIATIl -

Não somos.

PUNTILA - Pois e ntão! Como hom en s livres, pode mos fazer o que be m entendemos. Portant o, vamos falar de dinheiro. Tenho que arran jar um dote pra minha filha ún ica, por isso é que saí por aí. esse momento é preciso ser frio, calcu lista e bêbado como um corno. Vejo duas possibilidad es: ou vender um bosque ou ve nder-me a mim mesm o. O que é que você me aconsel ha? l'vIATIl -

Eu não me venderia, se tivesse um bosque.

PUNTILA - Qu e está dizendo? Você me decep cion a profundamente , irmão . Sabe lá o que é um bosque? Um bosque para você significa apenas cinqüenta mil alqueires de madeira ou é também uma verde delícia para os olhos? E você quer vender uma verde delícia para os olhos? Te envergonha! l'vIATIl -

PUNTILA - Quero esta r ce rto de que não ex iste nen hu m abismo entre nós dois. Diga, Matti: "Não existe esse ab ismo ".

Mcrn -

Se o senhor mandar, Sr. Puntila, não existe esse abismo.

É claro!

pUI'fIlLA - Mas é tão vulgar falar de dinheiro.

Muito bem , muito be m. Agora calma e vamos acordar o Jui z. Mas, cuida do, pelo amo r de Deus; se ele se assustar, nos dá pelo me nos cem anos de cadeia .

MATIl -

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PUNTILA -

Então vendemos a outra coisa?

Tu qu oque, Brutus? Quer que eu me venda? Para co meço de co nversa, quem é que ia com pra r?

PUNTILA - Madame Klinckmann. Mcrn -

Quem? A tia do Attacb ê

o Sr. Puntila e seu criado Matti

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PUNTILA -

Ela tem um fraco por mim.

E pretende vender o seu corpo àquela dona? É espantoso, Sr. Puntila!

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MAm -

EVA

PUNTILA - Por que , espantoso? Mas então a liberdade, irmão? Eu me sacrifico. Que coisa sou eu?

Pátio da propriedade em Kurguela . Eva espera o pai e, enqua nto isso, come chocolate. O Attaché Eino Silakka , de robe de chambre, aparece 110 alto da escada .

MAm -

Boa pergunta. Que coisa é o senhor?

O juiz desperta e, com o mão, procura sobre a mesa u ma campainha

imaginária. JUIZ - Silêncio na sala! PUNfILA - Dorme e por isso pen sa que está no tribunal. Irmão , acho qu e ago ra você coloco u o dilem a. Qu e vale mais: um bosqu e co mo o meu ou um hom em co mo e u? Você é magnífico! Tá, toma a minh a carteira, paga a co nta e gua rda dep ois, se não e u pe rco . Apo ntando o juiz - Tira ele daí , leva pra fora! Eu perco tud o, ser ia melhor não possuir nada . Não se esqueça nun ca: dinheiro fed e. Matti ca rrega o ju iz nas costas. Este é o me u sonho : não possuir nada. Assim podíamos an da r pela nossa bela Finlândia a pé , ou usa ndo um automovinho de dois lugares. Ninguém ia nos negar uma go ta de gasolina; e, qua ndo estivéssemos cansados, entrávamos numa pousada como esta e metía mos um copinho, depois que talvez nos tivessem obrigado a rachar alguma lenha... um traba lho que você era capaz de fazer com a mão esquerda. CoZINHEIRA entra no proscénio com um balde e um vassourão, e canta Durant e quase três dias Puntil a se emb riagou, E qu ando enfim foi embora O ga rçom nem cump rimentou. - "Ó, vagabundo e ladrão , Não lhe deram educação?" - "Já viu pessoa educada, Depois de andar três dias Com um a unha encravada?"

EVA - Madame Klinckmann deve estar muito aborrecida. ATIACHÉ - Ah , titia não fica aborrecida muito tempo. Telefonei outra vez, tentando localizá- los. Na praça da Igreja passou um carro com dois hom ens cacarejando. EVA -

São eles. O que tem de bo m é que meu pai eu reconheço no v ôo . Qu an do se fala dele, eu sei logo que é dele que se fala. Quando alguém co rre com um ch icote atrás de um empregado, ou dá um automóvel de presente a uma viúva, eu sei logo : é meu pai. .

ATIACHÉ - Tenho ho rror de escândalo. Enfim, aqui , pelo menos, não estamos na faze nda . Tão tenho a menor inclinação por números, nem vontade alguma de saber quantos litros de leite foram distribuídos na cidade. Aliás, leite eu nem bebo. Mas para escândalo eu tenho uma sensibilidade única. Assim que o Attaché da Embaixada de Londres, depois de engolir oito conhaques um atrás do outro, gritou para o outro lado da sala que a duquesa de Catrumple era uma prostituta, e u o pre veni imediatamente de que ia haver um escândalo. E dito e feito. Acho que são eles. Sai rapida mente. Entram Puntila, o juiz e Matti. PUNTILA - Chegamos, filha. Nada de cerimô nias. Eva, não vá acordar ninguém; bebemos ainda uma garrafinha, aqui entre nós , e depois vamos dormir. Me diz : você se divertiu? EVA -

Esperávamos vocês já há três dias.

PUNTILA -

Fom os parad os no caminho, mas trouxem os tud o. Matti,

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pega a minha mala. Espe ro qu e você tenha cuidado bem dela , que nad a tenha quebrad o . Senão va mos morrer de sede aqui. Como vê, viemos a tod a pressa porque eu sab ia que você estava nos espe rando . JUIZ EVA -

Posso cump rime ntá- la, Eva? Pap ai, você é um desastre . Eu morro de tédi o aqui. Há uma sema na qu e estou nesta casa soz inha, co m o Atta ché, a tia dele e um romance sem ca pa.

PUNTILA - Nós nos apressa mos , eu fiquei insistindo o tempo tod o que não podíamos dar um a man cada . Eu ainda tenho qu e acertar algumas coisas com o Attaché so bre o noivado , e fiquei tranqüilo sabendo qu e o Attaché estava contigo. Pelo menos havia algu ém te fazendo companhia durante a minha au sên cia. Cuidado com a mala , Matti, não vá acontecer um acidente. Com infinita precaução, pousa a mala e abre. JUIZ -

Puntila, me parece que Eva não demonstra o menor interesse pela situação . Com o Attaché, diz que não consegue nem brigar! Isso me recorda um processo de divórcio , em que a mulher se queixava do marido nã o lhe ter dado uma s boas bofetadas quando ela atirou um abajur na cabeça dele! Tinha ficado profundamente humilhada com a indiferença, dizia ela.

PUNTILA - Está aí; mais uma vez tudo saiu bem. Quando Puntila se mete numa coisa , a coisa semp re sai bem. O quê? Você não está contente? Deixa ele comigo, aquele ali. Sabe o que te digo? Manda esse Attachéandar. Isso nem homem é. Matti dá risadinhas cheias de maligna satisfação. EVA -

o Sr. Pumila e seu criado Matti

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Eu disse apenas que ninguém pode se divertir sozinha com o Atta ché.

PUNTlLA - Mas é o que eu digo também! Pega o Matti, aí: com ele , todas se divertem.

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EVA - Ah, pap ai, você é imp ossível! Para Matti - Apanha ess a mala e leva para cima. ptMJ1LA - Calma! Calma, por favor! Primeiro d eixa eu tirar uma ou duas garrafas. Ainda qu ero be be r um gole e nquanto discuto co m você se esse Attaché e mbrulha ou não e mbrulha o estô mago. Você , pelo me nos, acertou o no ivad o co m ele? EVA - Não . Nem falam os nisso . A Matti -

Não abra ess a mala!

PUNTlLA - Como? Não combino u o noivad o? Em três dias? Mas qu e foi que você fez? Eu te disse q ue esse tipo não me agra da. Eu, pra no ivar, preciso só três minutos. Olha, vai lá em cima e cha ma ele; eu vo u buscar um a da s moças da cozinha, pa ra ele ve r co mo se faz um noivado relâmpago . E tira fora um a garrafa de Borgonha. Não , é melhor um licor ! EVA -

Não , acab ou: você não bebe mais, papai. A Matti pro meu quarto lá em cima, o segundo à direita .

Leva a mala

PUNTlLA alarmado enqua nto Matti levanta a mala - Ah, Eva, isso não é co isa qu e se faça . Não é delicad o . Você não pode deixar se u pai morrer de se de! Eu te prometo que vo u esvaziar só um a garrafa, com tranqüilidade e sabedoria; co nvido apenas a Arrumadeira ou a Cozinheira. E Frederico, naturalmente, o pobrezinho também está morrendo de sede! Seja humana, filhinh a! EVA -

Estou em pé, até agora , exatamente para impedir que você acorde os empregados.

PUNTILA - Eu estou convencido de que Madame Klinckm ann... Por falar nisso , onde está ela? Ficará um pou co aqui co migo, co m muito prazer. Frederico está cansado, pode ir se deitar. Eu vou trocar umas palavrinhas com Madame Klinckmann, o que, aliás, era minha intenção desde que cheguei . Ah, sempre tivemos um fraco um pelo outro. EVA -

Eu o aconselho a esperar um pouco mais. Madame Klinckmann

já está bem furiosa de ter es pe rado três dias: acho qu e amanhã de manhã você não vai conseguir nem a honra de vê-la. PUNTILA - Vou lá bater no qu arto dela e resolvo tud o. Sei co mo é que se trata uma mulher; essas coisas, Eva, é na tural, você não pode saber. EVA - Sei, pelo men os, qu e nenhuma mulh er vai qu erer ficar co m você nesse estad o. A Matti - Já não lhe disse para levar a mala? Ainda acha pou co , três dias de atraso? PUNTILA - Eva, seja razoável. Se não quer mesmo qu e eu suba pro quarto de Madame KJinckm ann, então me cha me aquela gordinha e ngraça dinha, aquela pequenininha, eu acho qu e é a governa nta, não é não? Eu discuto a co isa co m ela e dá no mesmo. EVA -

o Sr. Puntila e seu criado Matti

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Pap ai, não exagera, ou eu mesma subo com a mala, e qu ando cheg ar lá em cima, deixo ela rolar pela escada sem que rer.

PUNTILA aterrorizado, ele pára; Matti leva a mala; Eva o segu e lenta mente. Com voz de rei Lear - Vejam co mo uma filha trata o p rópri o pai! Torna a subir no automóvel. Fred erico , todos a bord o , vamos! JUIZ - Qu e é qu e você qu er? PUNTILA - Quero ir-me embora daqui , isto não me agra da. Vê , sofro um acide nte no terror da noite, assim mesm o faço tudo pra chegar na hora , e olha co mo me tratam . Ah, Frederico , isso me faz lem b rar o filho pródigo: já imaginou o que se ria da história se , qua ndo ele vo ltasse , em vez de um vitelo gordo e fumegante, a família lhe tivesse dado uma esculhambação? Vou-me embora. JUIZ - Pra onde? PUNTlLA - Quanta pergunta! Que curiosidade! Você não viu que minha própria filha me proíbe um cálice de álcool? Não compreende que agora eu tenho de me embrenhar na noite , em bu sca de alguém que me faça a carida de de uma ou duas garrafas?

JUIZ

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_ Raciocine um pou co , Puntila. O nde é que você vai encontrar bebida alcoólica ãs du as e meia da manh ã? A ve nda de álcoo l se m receita médica é p roibid a.

PUN11LA - Ah, você também me aba ndona? E ainda du vida do meu prestígio: não vo u conseg uir bebid a sem receita médica! Pois eu vou te ensina r co mo se consegue uma bebida legal a qu alqu er hora do dia ou da noite . EVA aparecendo no alto da escada vel, imediatamen te.

Pap ai, desce daí desse automó-

PUNTILA - Fica boazinh a, Eva, e honra teu pai e tua mãe, se qu er viver muito tempo nesta terra. Qu e droga de casa! Têm o cos tume de deixa r as tripas dos convida dos secando na corda . E eu vou ficar sem mulhe r? Você vai ver se fico ou não fico! Pod e ir dizer a essa KJinckmann qu e desisto da co mpanhia del a! Pra mim ela é co mo a virgem lou ca: não tem óleo na lâmpad a! E agora, pé na táb ua: o chão vai tremer de pavor! Todas as curvas do caminho vão ficar retas de med o! Sa i violentamente em marcha a ré. EVA descendo a escada, a Matti - Faz ele parar! Faz ele parar, eu disse! MAm apa recendo atrás dela -

Agora é tard e . Corre co mo um lou co!

JUIZ - Bem, acho qu e não vou espe rar. Já não sou tão jovem quanto fui um dia. Fica em paz, Eva, não vai aco ntecer nad a: teu pai tem uma sorte sem-vergonha. Por favo r, onde é o meu qua rto? Sobe. EVA -

O terceiro à dire ita, em cima . A Matti - Nós dois temos que ficar aqui montando guarda, para evitar que ele beba com as em pregadas ou caia no utras intimidades.

MAm que procura uma posiç ão c ômoda -

Ah, sim, intimidade demais é sempre um perigo. Uma vez e u traba lhava numa fábr ica de papel e o porteiro pediu demissão , porque o diretor lhe perguntou como o filho ia pas sando.

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EVA -

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Muita ge nte se aproveita dessas fraqu ezas de meu pai. Ele é bom demais.

sava. Além disso , o fato de um homem ser ou não divertido, não tem a menor importància.

Mxrn - É verdade, os momentos em que se embriaga são a felicidade para que m trab alha com ele. Vira u m homem form idável, só vê no mundo camundongos bra ncos e fica co m vontade de fazer carinho neles, de tão bom que fica. Ah, é tão bom!

MATIl - Conheci um su jeito que ficou milionário vendendo margarina e artigos parecidos. E não era um suje ito divert ido .

EVA -

Não me agrada nad a ouvir você falar assim de se u patrão . Espero qu e não tom e ao pé da letra tud o o que ele diz. Sobretudo com respeito ao Attaché. Não qu ero qu e ande por aí rep et ind o as co isas que ele disse aqui de brin cad eira.

Mxrn - O qu ê? Qu e o Attaché não é homem? Qu ant o a isso , qu e coisa vem a ser um homem? As opiniões divergem . Eu, por exe mplo, uma vez trab alha va numa fábrica de cerveja. A dona da fábric a tinha uma filha... Uma filha, sa be co mo é, que se mpre me chamava para levar o roupão dela no banheiro , porque essa filha era uma moça muito pudica. "Me traz o meu roupão, Matti", gritava ela, e e u lá ia com o roupão , e enco ntrava ela completame nte nua . "Sabe, Matti, algum homem podia me ver tomando banho." EVA - Não entendo o qu e quer dizer com isso . Mxrn - Não qu ero dizer nada , falo só pra matar o tempo , pr a e mpurrar a co nversa pra frent e . Quando falo co m os patrões, nunca eu quero dizer nada, não tenho nenhuma opinião: não se pode admitir uma co isa dessas nos empregados. EVA depois de uma pausa - Gostaria qu e você so ubesse que o Attaché é muito bem-visto nos altos escalões do Ministério do Exterior e tem uma bela carreira diante de si. É um a das cabeças mais brilhantes da nova ge ração. Mxrn - Compreendo. EVA -

O que eu qui s dizer, qu ando disse o qu e disse a meu pai , na sua frente , é que não tinha me divertid o tanto qu ant o meu pai pen -

EVA -

Não sei por que estou lhe da ndo trela , falando do Attaché. Nós nos conhecemos desde crianças. Acho que e u so u uma pessoa com energia dem ais, sabe, por isso me aborreço com tanta facilidade.

MArn - E en tão começam as dúvidas. EVA - Eu não falei em dúvidas. Não se i por qu e não me e ntende . Acho que deve estar cansado. Por que não vai dormi r? MArn - Porque estou lhe fazendo co mpa nhia. EVA - Não é preciso . O qu e eu tinh a a lhe dizer, já disse: qu e o Atta ché é um hom em inteligente e bem-educad o , qu e não dev e ser julgado pela apa rência, nem pelo qu e diz nem pelo qu e faz. É che io de atenções, lê no s meu s olhos todos os meus des ejos. É incapaz da mais leve grosseria, de abusa r da minha confiança ou de fazer qualque r exibição de virilidad e . Eu gosto muito del e . Mas... você está co m so no? Mxrn - Fala, fala, pode co ntinua r falando , se nhorita. Se e u fecho os olhos é pra me co nce ntrar melh or. Cortina .

entra com um pano de limpeza e uma pazinba, e canta A filha do patrão leu um livro imoral E ago ra diz que é intele ctual. Encontrando um emp regado, Olhou- o bem no rosto E perguntou com enfad o: "É verdade que, apesar de chofer, Você também é homem quando quer?".

CoZINHEIRA

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AS NOIVAS MATINAIS DO SR. PUNTILA

Alvorecer na vila . Casinhas de madeira. Numa está escrito: Correio. Noutra , Veterinário. Noutra, Sementes e Ervas. No meio da praça, um poste telegráfico. Puntila bate com o Studebaker no poste e põe-se a xingá-lo violentamente. PUNTILA - Via livre! Esta não é a auto-estrada de Tavasto?! Sai da frente, porcaria de poste! Que ousadia, interromper dessa maneira o caminho de Puntila! Quem é você? Você tem um bosque? Tem noventa vacas? E então, como se permite? .. Para trás! Se der mais um passo, vai se arrepender amargamente: chamo a polícia e mando te prender como subversivo. Desce do carro. Ah, insiste em não sair, hein? Vai até uma das casas e bate à janela. Ema, a contrabandista, espreita medrosamente. Bom-dia, linda senhora, passou bem a noite? Preciso que me faça um pequeno favor. Eu sou o grande proprietário Puntila de Lammi, e me encontro numa situação verdadeiramente dolorosa: minhas vacas estão com escarlatina. Por isso tenho necessidade absoluta de comprar álcool legítimo. Poderia a bela jovem me dizer onde mora o Veterinário? Derrubo a pontapés a merda desse barracão, se não me disser logo onde ele mora , tá ouvindo? Meu Deus! O senhor está muito exaltado! A casa do Veterinário é aquela ali. Mas, se não o entendi mal , o senhor está preci sando de álcool. E álcool eu tenho: álcool do bom, álcool forte . Eu mesma faço .

PUNTILA - Sai da minha frente , perdida! Você tem a audácia de me oferecer se u álco ol ilegal? Não sabe que eu só bebo álcool permitido pela lei? Qu e o outro nem me passa pela garganta? Antes a morte, do qu e desrespeitar as leis de meu país. Sou um esc ravo da lei. Qu ando preciso mandar espanca r algu ém, ou faço de acordo co m o có digo pen al ou não faço . EMA -

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Plm tila corre à casa do Veterinário e toca . O Veterinário surge.

3

EMA -

o Sr. Puntila e se u criado Matt i

Bertolt Brecht

Meu caro se n hor, qu er sabe r de uma co isa? Vá para o diabo que o carreg ue, co m suas leis! Desaparece.

PUNTILA - Veterinário, Veterinário , afinal te peguei! Eu so u o grande pro prietário Puntila de Lammi, tenho noventa vacas e todas as nove nta estão co m febre aftosa. Tenho , pois, necessidad e urgente de álcool autorizado. VETERINÁRIO - Penso qu e O amigo erro u de endereço . Ach o melh or voltar pro lugar de onde veio , com a graça de Deu s. PUNTILA - Veterinário , você me decepciona. Ach o até qu e não é vete rinário de verdade. Senão, sabe ria o qu e tod os dão a Puntila quando as vacas de Puntil a es tão com febre aftosa . Não esto u mentindo. Se e u di ssesse qu e el as es tava m co m câ ncer, estari a mentindo , mas quando digo que estão co m febre aftosa , não é mentira: é uma senha sec reta entre hom en s de bem. VI:TERINÁRIO - E se e u não entender a se nha? PUNTILA - Bem, se não entender, eu me sentirei na obrigação de avisar que Puntila é o mais terrível samurai de toda esta regiã o . Já tem três veterinários na consciência. Sobre ele existe até uma can ção popular. Isso o ajuda a compreender minhas dificuldades? VETERINÁRIO rindo - Ajuda , ajuda . Se o senho r é realmente um homem tão terrível , é justo que eu lhe dê uma receita. Quero ape nas ter ce rteza de que é febre aftos a. PUNl1LA - Olh a, Veterinário , as minh as vacas estão co m mancha s verme lhas deste tam anho . Em duas delas, as man chas já estão até ficando pretas; não é a doença em sua forma mais violenta? E depois, a dor de cabeça que sofrem as pobrezinhas. Ficam a noite inteira berrando e ge me ndo , se virando na ca ma, incap azes de pensar e m outra co isa qu e não nos próprios pecad os. VETERINÁRIO - Neste caso é meu dever fornecer-lhe o alívio imediatame nte. Escreve a receita. PUNTILA -

A conta, manda pra Punt ila, já sabe. Corre à far mácia e toca

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o Sr. Puntila e se u criado Matti

Bert olt Brecht

a campainha violentamente. Enquanto espera, Ema, a contra: bandista, sai do barracão . EMA enquanto lava uma garrafa, canta-

Era no tempo de amora O carro veio de fora E entrou nesta cidade Com um homem de verdade. Torna a sair. Na janela aparece Manda, a empregada da farmácia. MANDA -

Hei, que é que você quer? Arrancar a campainha?

PUNTILA - É melhor ficar sem campainha, do que sem companhia como eu . Pissi pissi pissi pissu sa rará sururu. Preciso de álcool para noventa vacas , amor de minha vida . Depressa, meu tesouro! MANDA -

Você precisa é que eu chame um guarda, isso sim.

PUNTILA - Ô, bonequinha. Um guarda prum homem como Puntila de Lammi? Que adianta um guarda? Pra mim, precisa pelo me nos dois. Mas pra que dois guardas? Eu quero bem aos guardas, coitados, eles têm os pés maiores do mundo e cinco dedos em cada pé , por quê? Porque também amam a ordem, como eu . Entrega a receita. Aqui está , lê aí, minha pombinha: uma lei e uma ordem. A empregada da farmácia vai buscar o álcool. Enquanto isso, Ema, a contrabandista, sempre lavando a garrafa, aparece outra vez, cantando.

Glu glu glu glu glu... Ó, música finland esa... a mais bela música do mundo... Meu Deu s, eu ia esquecendo. Agora tenho álcoo l, mas não tenho mulher. E você não tem álcoo l nem tem homem. Linda farmacêutica, qu er se r minh a noiva?

ptJN1lLA -

Muita agrade cida , Sr. Puntila de Lammi , mas eu, sabe , só fico noiva de acordo co m a praxe : "ane l direitinho e um go le de vinho".

MAN DA -

PUNTILA - De acord o , não sera ISSO que... O importante é você ficar noiva, e já não é sem tempo. Que vida levou até agora? Me fala um pou co de voc ê, me diz co mo é que vive: pra ser seu noivo , eu preciso saber tudo. Eu? A minha vida é a segu inte: estudei quatro an os e meu patrão me paga menos que cozinheira. Metade do ordenado eu mando para minha mãe , que sofre do coração. Eu também sofro, puxei a ela . Dia sim, dia não, pego o turno da noite . A farmacêutica vive com ciúmes, porque o patrão dá em cima de mim. O doutor tem uma letra horrível e eu uma vez troquei as receitas. Os remédios, caindo na roupa, queimam tudo, e o senhor sabe o pre ço das fazendas. Eu não tenho amigos: o chefe de polícia , o gerente da cooperativa e o diretor da biblioteca já são casados: portanto, eu não tenho muito com quem me divertir. O senhor quer saber? Não acho a vida muito engraçada, não.

MAN DA

à

PUNTILA - Está vendo? Fica com Puntilal Toma , bebe um gole!

EMA -

E fomos colher amoras: Ele se deitou na grama, Cobiçando a todas nós Com o seu olhar em chama. Torna a sair. Manda traz o álcool.

rindo - Olha que garrafão! Espero que consiga também alguns arenques , para melhorar o porre que essas vacas vão tomar. Entrega a garrafa.

MANDA

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MANDA -

E o anel ? Se diz : "anel direitinho e um gole de vinho".

PUNTILA - Santo Deu s! Não servem as argol as da cortina? MANDA -

Quantas argolas o senhor quer? Uma só, ou várias?

PUNTILA - Muitas, uma não chega. Puntil a quer jnuito de tudo, sempre . Uma garota só não tem sentido para Puntila , você entende? Enqua nto a emp regada da farmácia va i buscar as ar[$olas da cortina, Ema sai de casa outra vez, canta ndo.

EMA -

E enquanto fermentávamos as amoras , Conosco ele brincava alegremente, E rindo ria e ria rindo, Metendo o dedo no recipiente. Torna a entrar em casa efica espiando da janela . A empregada da farmácia dá as argolas a Puntila . Enquanto isso, repete a bocca chiusa o tema da outra . PUNTILA botando uma argola no dedo dela - Eu te espero em minha casa , domingo, em Puntila , às oito horas. Vamos fazer uma grande festa de noivado. Ele vai andando. Passa Lisu, a ordenhadora, com um balde na mão. Espera aí, minha pombinha! Eu te quero, menina. Você me agrada. Onde vai a esta hora da manhã? Lisu - Tirar leite das vacas.

PUNTILA - Como, minha filha, então o balde é tudo o que você bota entre as pernas? Não quer um homenzinho pra você? Ah, mas que vida a tua! Vem cá, me conta como é a tua vida, menina. Você me interessa. LISU -

o Sr. Puntila e seu criado Matti

Bertolt Brecht

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Minha vida é assim: me levanto às três e meia da manhã pra varrer o estábulo e limpar as vacas. Depois tenho que ordenhar as vacas e lavar os baldes, com soda cáustica e outras porcarias que queimam as mãos. Aí limpo o estábulo outra vez e tomo um café que me dá dor de estômago, porque é daqueles, né? Como um pouco de pão com manteiga e tiro uma pestana. Na hora do almoço, cozinho umas batatas com salsa . Carne, eu não vejo nunca. De vez em quando a patroa me dá um ovo de presente ou eu acho algum no mato. Depois eu torno a varrer o estábulo, tiro mais leite das vacas, torno a lavar os baldes. Minha obrigação é ordenhar cento e vinte litros de leite por dia . De noite , como pão com leite . Me dão dois litros de leite por dia, mas as outras coisas eu tenho que comprar na fazenda . De cinco em cinco domingos eu tenho um dia inteiro livre, de noite vou dançar; às vezes me dou mal e pego filho. Tenho dois vestidos. Tenho também uma bicicleta.

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PuNTILA - E eu tenho uma fábrica inteira, um moinho a vapor, uma serraria, e não tenho mulher. Que é que você me diz, minha franguinha? Está aqui o anel, bebe um gole ali, e estamos noivos de acordo com toda a praxe. Você também já sabe: domingo às oito, lá em casa , em Puntila. Combinado? LIsu - Combinado. PUNTILA continua a andar - Em frente, em frente , a caminho da cidade. Não agüento a curiosidade de saber quem é que já está de pé a esta hora da manhã. As mulheres são irresistíveis a esta hora: acabaram de sair da cama, ainda estão com os olhos brilhantes e pecaminosos... e em volta, o mundo é tão jovem. Chega à Central Telefônica. Sandra, a telefonista, está saindo. Bom-dia, deusa da vigília! Mulher onisciente, que sabe tudo através dos fios mágicos da telefonia. Bom-dia a ti, minha pomba-rola. SANDRA -

Bom-dia, Sr. Puntila. O senhor, tão cedo? Que aconteceu?

PUNTlLA -

Então não sabe? Procuro esposa .

SANDRA -

Ah, é o senhor? Eu procurei pelo senhor a noite inteira.

PUNTILA - Sim, você sabe tudo. E passa a noite inteira acordada, em vigília pela cidade. Me diz aqui: que vida você leva? SANDRA - Já lhe digo. Minha vida é a seguinte: ganho cinqüenta marcos, mas há trinta anos que não saio do escritório. Atrás do escritório , tenho um terreninho onde planto batatas. Dava para viver, já não dá porque agora tenho que pagar meu almoço e o café está cada vez mais caro. Sei de tudo que acontece na cidade e mesmo no estrangeiro. O senhor ficaria espantado se soubesse o que sei. Por isso é que até agora não casei. Sou secretária do Clube dos Trabalhadores, meu pai era sapateiro. Ligar e desligar linhas de telefone, fazer purê de batatas e saber tudo, essa é a minha vida , Sr. Puntila . . PUNTILA - Pois é hora de mudarmos de vida! E depressa. Telefona imediatamente ao escritório central e comunica ao diretor que você

o Sr. Puntila e seu criado Matti

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Para ordenhar minha vaca? Por mim, Ó, bela , Nunca te levantes do leito ; Eu deito".

vai casar com Puntila de Lammi. Aqui está o anel , aqui está a bebida, aqui está tudo de acordo com a praxe, e domingo às oito, já sabe, lá em casa . SANDRA rindo -

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Estarei lá sem falta. Já sei que domingo é a festa de

noivado de sua filha . PUNTILA pa ra Ema, a contrabandista - Como vê , cara senhora, estou noivando aqu i de forma coletiva; espero que a senhora me dê o prazer de comparecer também. Ela estende o dedo; Pu ntila co-

loca a argola. As QUATRO cantam-

Quando nós acabamos de comer O hom em já tinh a ido embora Mas até hoje estamos es perando E ainda achamos que ele não demora. PUNTILA _ Tudo be m. Agora posso vo ltar a correr co m meu carrinho, atravesso os pinhais, atravesso a floresta , e ainda chego a tempo no Mercad o dos Trab alhad ores. Choc choc choc choc choc cho c chie chie chic chie. Um viva às filhas desta terra abençoada : a vós, que , du rante anos e anos vos levan tastes em vão com a alvora da . Mas Punt ila chegou para vos fazer ditosas. Vinde a mim, vós todas que ace ndeis o fogo das matinas , faze ndo o fumo sub ir pelos telhados, brilhante à luz do dia! Vinde todas, de pés nus; a erva fresca da ma nhã conhece os vossos pés: Pu ntila também vai conhecer! Corlina . COZINHEIRA como antes, mas agora com uma tigela de louça e uma mulher batendo massa Q uando Pun til